Filosofia e Linguagem. Logos e Praxis

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MARIA LUÍSA PERES COUTO SOARES PROFESSORA AUXILIAR DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA FILOSOFIA E LINGUAGEM LOGOS E PRAXIS LISBOA 2004

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MARIA LUÍSA PERES COUTO SOARES

PROFESSORA AUXILIAR DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

FILOSOFIA E LINGUAGEM

LOGOS E PRAXIS

LISBOA 2004

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- Quando utilizo uma palavra – disse Humpty Dumpty, num tom desdenhoso -, ela significa exactamente o que eu quero que ela signifique, nem mais, nem menos.

- A questão está em saber – disse Alice – se tu podes fazer que as palavras tenham significados diferentes.

- A questão está em saber – disse Humpty Dumpty – quem deverá ser o mestre, é só isso.”

LEWIS CARROLL

Alice do outro lado do espelho

O símbolo pode dizer ao Homem,

como dizia a esfinge de Emerson: «Dos teus olhos, sou eu o olhar»

CHARLES SANDERS PEIRCE

Le mot, qu’on le sache, est un être vivant… le mot est le verbe, et le verbe est Dieu

VICTOR HUGO

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Introdução

I. Filosofia Transcendental e Crítica da Linguagem.

1. Linguagem e Pensamento. A conaturalidade entre o pensar e o dizer. Homo

Loquens.

2. “A viragem linguística” (Linguistic turn). As origens da Crítica da

Linguagem. A análise linguística como campo e modo do filosofar.

3. A radicalização da crítica no Tractatus.

4. A Linguagem como medium universal.

5. Wittgenstein, um filósofo kantiano?

6. A Semântica do «Eu».

II. A Tradição Analítica

1. Funções significativas: a distinção entre sentido e referência (Sinn und

Bedeutung de Frege).

2. O sentido dos nomes próprios.

3. A referência do conceito.

4. Sentido e Referência das proposições: Sinn und Bedeutung e Der Gedanke

5. Aporias do sentido

6. O que é pensar? A apreensão do sentido? Pensar e conhecer.

III. Semântica e Pragmática

1. A estrutura do acto de julgar.

2. Asserção e predicação.

3. Impasses da noção de correspondência.

4. Juízos de existência. A semântica da existência.

5. A Sprachkritik de Brentano: as ficções da linguagem.

6. Dimensão pragmática da linguagem. Os actos de fala.

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INTRODUÇÃO

Uma das tarefas da filosofia consiste em optar por um ponto de partida, como

considerava Granger. Mas a procura de um ponto de partida faz parte já do

filosofar. E prescindir de um ponto de partida fixo constitui também uma opção

possível e pode ser um modo de pensar enriquecedor e fecundo.

Estas observações são pertinentes na medida em que a Filosofia da

Linguagem, hoje em dia, está em grande parte dominada pela Filosofia Analítica,

que dificilmente se deixa circunscrever ou enquadrar numa caracterização definida.

Dummett1 assinala o cunho anti-sistemático e polifacetado do movimento

analítico, e aponta apenas três princípios básicos, comuns a toda a escola analítica:

o propósito da filosofia é o de analizar a estrutura do pensamento; este desideratum

distancia-se duma abordagem psicológica dos processos de pensamento e o único

método consiste na análise da linguagem. Isto é muito e é pouco. É muito porque

se pode ver nestes três princípios a mesma persistência em encontrar uma

metodologia sistemática dos grandes pensadores desde Descartes, Spinoza a

Husserl. É pouco, porque partindo destes princípios, cabe uma grande variedade

de modos de praticar a filosofia: basta pensarmos em autores tão diferentes como

Carnap ou Goodman, e Austin, Ryle ou Searle.

Ao elaborar este Programa não se procurou reconstituir a gênese da analítica

contemporânea, nem seguir estritamente uma «metodologia» específica e restritiva.

As grandes questões fundamentais – como pode a linguagem exprimir o

pensamento e reflectir ou actuar sobre o mundo? – são sem dúvida aquelas das

quais se têm ocupado de uma forma ou outra os grandes autores da escola

analítica. No entanto, a filosofia analítica é um exercício de análise que muitas

vezes ignora os seus próprios pressupostos, na opinião de Rorty. Entre esses

pressupostos está precisamente a problemática epistemológica, que esteve na base

1 Truth and other enigmas, “Can Analytical Philosophy be systematic and ought it to be?”, p. 441.

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do neopositivismo lógico e no seu propósito de construir uma linguagem ideal que

traduzisse com toda a precisão o pensamento científico. Foi este ideal que norteou

também o trabalho de Frege, de Wittgenstein (no Tractatus). Mas originariamente

esta intenção obedecia à pretensão de resolver as profundas dificuldades dos

problemas epistemológicos. Segundo Rorty, “a coisa mais importante que

aconteceu na filosofia nos últimos trinta anos não é a própria viragem Linguística,

mas sim o início de uma radical reformulação de certas dificuldades

epistemológicas que perturbaram os filósofos desde Platão e Aristóteles”2.

A crítica neopositivista, baseada no critério empirista de sentido anula-se a si

mesma, como foi recorrentemente apontado pelos grandes objectores ao

verificacionismo (desde Popper, Wittgenstein, até Quine). As expectativas criadas

pela viragem Linguística seriam um logro, se a própria filosofia analítica posterior

não tivesse, ela própria, denunciado os pressupostos neopositivistas, libertando-se

deles para recuperar os grandes problemas da ontologia e da metafísica. A analítica

de raiz positivista, com a pretensão de ocupar o lugar da ontologia, contém em si

mesma os gérmenes da sua destruição: a filosofia e a metafísica liquidada e expulsa

pela porta volta a entrar pela janela. Rorty reconhece que a viragem Linguística

tem diante de si dois horizontes possíveis: a promessa de um verdadeiro e

renovador trabalho analítico e, simultaneamente, a sua autodissolução e o suicídio

da própria filosofia3.

Não partilhamos do prognóstico que anuncia o fim da Filosofia. Também na

dinâmica do pensar nada se cria, nada morre, tudo se transforma. Depois de

momentos agonizantes, os grandes temas ontológicos e metafísicos retornam

como a Fênix renascida. O panorama filosófico dos últimos anos confirma-o: a

crítica devastadora do discurso metafísico coexiste com a renovação das grandes

tradições do pensamento e das suas interrogações fundamentais. Os impasses

provocados por uma demarcação extrema entre os saberes filosóficos e científicos,

que conduziram à tentativa de eliminação dos primeiros, são superados pela

transformação da própria noção do sentido. Recupera-se a contextualização num

horizonte antropológico mais amplo, que integra o uso e o carácter social e

2 Cfr Rorty, The Lihnguistic Turn, p. 39. 3 Cfr ibidem, p. 35.

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dinâmico do processo de significação, e a sua relação expressiva da complexidade

do mental: a analítica encontra o seu prolongamento na pragmática e na filosofia

da mente. Ao mesmo tempo, a construção de sistemas lógicos e de linguagens

formalizadas veio trazer de novo à boca de cena problemas filosóficos

tradicionais, dando-lhe novas formas (pense-se, por exemplo, nos pressupostos

ontológicos de um sistema formal, na discussão do estatuto de entidades

abstractas, na análise dos juízos de existência e suas implicações metafísicas, no

problema das modalidades, etc.).

As questões que renascem da análise lógico-semântica da linguagem

ultrapassam as margens estritas da Filsofia da Linguagem e ramificam-se em

múltiplas e variadas áreas e disciplinas filosóficas. Além disso, permitem retomar o

fio das grandes tradições do pensamento, desde Platão, Aristóteles até à Filosofia

Moderna e Contemporânea.

Voltando ao problema inicial, o do «estilo»: optamos por orientar-nos pelas

seguintes directrizes: uma perspectiva anti-historicista que vise os problemas e

argumentos no contexto alargado de um diálogo entre pensadores, mais do que na

sua delimitação temporal; uma orientação analítica, mas também interpretativa;

uma intenção descritiva e compreensiva.

Em toda a tradição filosófica, desde o Crátilo de Platão, ou a Metafísica de

Aristóteles até aos autores contemporâneos, há um «comércio» constante entre

Filosofia e Linguagem. O que se pretende é mostrar que benefícios pode tirar a

interrogação filosófica desse «comércio».

!!!!!

A Filosofia da Linguagem ocupou um lugar central na reflexão filosófica do

século XX, sobretudo a partir dos anos 30, dando origem a uma nova orientação

no modo de pensar e argumentar os problemas: a linguagem não é perspectivada

como “objecto” da filosofia, mas assume o papel de ponto de partida e condição

de todo o pensamento e discurso com sentido. Nisto consistiu a grande

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transformação da filosofia – a «viragem linguística» - que trouxe a linguagem para

o lugar de philosophia prima, enquanto Crítica da Linguagem Pura.

Na primeira parte deste Programa, tratar-se-á desta passagem da Filosofia

Transcendental kantiana para a Filosofia Analítica, que se pode caracterizar de um

modo geral por uma mudança do centro de gravidade da problemática filosófica: o

conhecimento, sua possibilidade e alcance é substituído pela linguagem como

fenômeno tipicamente humano onde se reflectem o funcionamento da mente e os

seus processos.

O locus principal desta passagem é o Tractatus de Wittgenstein, que

radicaliza a crítica kantiana, transformando-a num «linguismo transcendental».

Trata-se de averiguar das condições de possibilidade de todo o discurso, ou dos

limites de toda a linguagem com sentido. Esta tarefa assenta na base de uma

aporia incontornável, que põe em causa o estatuto das próprias proposições do

Tractatus: pretender traçar os limites da linguagem leva a ultrapassar esses próprios

limites, produzindo um discurso que infringe as próprias regras do sentido

pressupostas. O impasse final do Tractatus simboliza o problema crucial da

possibilidade de uma semântica total focada exclusivamente na dimensão

representativa da linguagem.

A II parte explora alguns dos principais tópicos de uma semântica

filosófica: como medium entre pensamento e mundo, a linguagem tem o privilégio

de ser a via de acesso ao pensamento e ao mesmo tempo um espelho do mundo.

Para desempenhar esta função de apresentação da realidade, de ser imagem dos

factos, o processo de significação pressupõe uma dimensão cognitiva e prática da

parte de sujeito que usa os signos. A capacidade de significar não se reduz à mera

capacidade mimética de reproduzir, representar, mas implica capacidades

heurísticas e o dom peculiar de intencionar, sem os quais qualquer palavra ou signo

permaneceria mudo e opaco e perderia a sua dimensão transitiva e, com ela toda a

sua transparência.

A semântica de Frege encara a linguagem como o único meio de acesso ao

pensamento, conferindo-lhe visibilidade. De outro modo, os nossos processos

mentais permaneceriam incognoscíveis, impossíveis de analisar. Só a análise

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linguística permite a elucidação do que significa pensar, raciocinar. A distinção

entre sentido e referência, introduzida por Frege, permite responder a duas

questões fundamentais respeitantes ao processo de significação: por um lado, a

dimensão cognitiva do emprego da linguagem que explica como é que um sujeito

sabe usar os nomes, as proposições e reconhece o que estes designam; por outro lado,

a capacidade de referir, através dos signos linguísticos, objectos de pensamento

determinados. O sentido, que no caso das proposições, é precisamente o

pensamento expresso, traduz mediação entre o signo e o seu referente através dos

processos cognitivos do sujeito locutor: um nome tem sentido porque apresenta

um critério de identificação do objecto designado, um predicado porque permite

determinar quais os objectos que caem sob o conceito correspondente, a

proposição porque exprime um pensamento que tem por referência um dos

valores de verdade. Em qualquer dos casos, o sentido apresenta-se como uma seta

que indica a direcção do signo para o seu referente, o elemento extra-linguístico

visado pela linguagem. Assim se traduz semanticamente a dupla relação da

linguagem com a mente e com a realidade extramental – uma proposição exprime

um pensamento (o seu sentido) e designa um valor de verdade ( a sua referência).

A noção de sentido garante a objectividade do pensamento, que não se encerra no

domínio da subjectividade, mas alcança um estatuto intersubjectivo independente

dos actos psicológicos do pensar e do julgar. Pensar, para Frege, significa

apreender, captar um sentido. O pensamento não é um mero produto mental, mas

algo que transcende a consciência do sujeito e que se lhe apresenta como algo de

real.

Ao estabelecer a distinção entre o conteúdo do juízo e a asserção, Frege

introduz já uma nota importante para as novas teorias do juízo: o acento posto na

força assertiva prenuncia a dimensão pragmática do julgar, que não é a mera síntese

de representações, mas a afirmação ou a negação de algo (como verdadeiro ou

falso). O modelo da linguagem como espelho ou imagem do real não dá conta da

especificidade do acto de julgar, forma germinal de todo o pensar: a reformulação

da teoria do juízo de Brentano mostra precisamente a peculiaridade do juízo como

posição, que releva de um acto espontâneo do sujeito. A revisão brentaniana da

noção do juízo vai a par da sua reformulação crítica da verdade como

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correspondência, e da linguagem como “imagem” da realidade, duas concepções

que se sustentam mutuamente.

O breve exame da teoria do juízo de Brentano e da sua Sprachkritik servirá

de ponte para a consideração da dimensão pragmática da linguagem. O carácter

refigurativo, o discurso como representação mimética da realidade não recobre

toda a complexidade dos processos da linguagem. Com Brentano fica claro que

qualquer acto judicativo pressupõe uma posição, uma afirmação (ou negação) de

existência. Isto significa que a análise do juízo deve focar o acto de julgar e não a

sua expressão Linguística abstracta através de uma proposição. A própria idéia de

significado proposicional é uma abstracção que violenta a realidade psicológica e

linguística. Não há nenhum correlato real ou quase-real do juízo, como as

proposições em si ou os pensamentos enquanto realidades autónomas a serem

apreendidas: para Brentano, real, é apenas o sujeito do juízo e o seu acto de julgar.

As frases não têm vida própria, não são entidades linguísticas ou objectos

abstractos que possam ser examinados em si mesmos. O modelo da linguagem-

espelho, no qual as proposições expressas numa frase são consideradas como

objecto de referência, dos quais se deve tentar analisar a estrutura, além de

demasiado simplista, é enganador porque não é assim que funciona a linguagem. A

revisão crítica de Wittgenstein e a sua sugestiva noção de jogo de linguagem

mostram que esta toma a forma de comportamento, actividade, especificamente

prática e social: a semântica colapsa na pragmática, de contrário origina

«mitologias» totalmente transviadas.

A pragmática – que encontrará expressão emblemática na noção de

performativo, introduzida por Austin – lida precisamente com o funcionamento da

linguagem no contexto. Esta perspectiva assinala um nítido contraste com a

tradição, pois a sintaxe e a semântica sempre pretenderam dar uma visão da

linguagem em abstracto, sem ter em conta os contextos situacionais: a primeira

pretende averiguar se uma série de palavras constitui uma frase gramaticalmente

correcta, a segunda, ocupa-se do significado de uma proposição-tipo, abstraindo

de qualquer emprego concreto e particular. De facto, na prática linguística, não há

lugar nem para uma abordagem do significado de proposições em si mesmas

consideradas, fora do contexto de uso, nem se pode esquecer que os factores

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práticos e sociais se interpenetram com os factores puramente semânticos, que

determinam o significado das palavras e proposições.

O nosso percurso partirá, portanto, do problema da possibilidade da

semântica, como discurso de segunda ordem sobre o processo de significação,

para a pragmática, e contextualização da linguagem no enquadramento prático e

social. Nem a imagem da linguagem como espelho ou imagem, nem o modelo do

jogo pode dar conta do funcionamento da linguagem em exclusivo. Ambas

remetem uma para a outra, numa rede complexa que releva de um contexto

interdisciplinar: um estudo sobre a linguagem não pode eximir-se das

interferências psicológicas, antropológicas e ontológicas. Por isso o diálogo entre

Filosofia e Linguagem constitui um programa com amplos horizontes e

proporciona um campo sem limites para a investigação filosófica.

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1. Linguagem e Pensamento. A conaturalidade entre o pensar e o dizer.

Homo Loquens.

1. Não é novo o interesse filosófico pela linguagem. Já no Fédon, Platão propõe

estudar a linguagem como espelho da realidade, para que a sua mente não ficasse

cega pela visão directa das próprias coisas, como acontece com um desavisado

observador de um eclipse do sol. A idéia da linguagem como espelho é recorrente

até à modernidade, adoptando formas muito diversas, desde a kantiana, em que a

linguagem reflecte o pensamento, mas não a realidade que permanece

incognoscível, até ao isomorfismo estrutural entre linguagem e mundo do

atomismo lógico e da teoria pictórica do Tractatus.

O fio condutor nos primórdios da ontologia antiga é o logos, termo que designa

simultaneamente o pensamento e a linguagem, a ratio e a oratio exprimindo a

estreita conexão entre ambos. Como assinala Heidegger, a distinção terminológica

entre as duas dimensões – logos como ratio e logos como oratio – é muito mais tardia

e a sua completa separação surge apenas com o racionalismo moderno.

Originariamente o homo sapiens é simultaneamente homo loquens, a capacidade de

pensar coincide com uma capacidade de simbolizar e de significar.

Numa primeira aproximação ao binómio Pensamento/Linguagem,

detectamos esta conaturalidade entre o pensar e o dizer, as duas faces do logos que

se evidenciam na própria articulação da razão e da linguagem. A estrutura lógica

desta última não é apenas uma manifestação evidente do pensar, é o pensar,

enquanto forma configuradora da linguagem. Há, no entanto, uma certa assimetria

entre linguagem e pensamento: não se pode negar em absoluto a possibilidade de

um pensamento não articulado, não expresso verbalmente; mas o que não é

concebível é uma linguagem humana que não seja ela própria também

pensamento.

Sendo uma poiesis essencial, internamente vinculada à praxis do pensamento, a

linguagem confere uma dimensão fáctica e uma visibilidade ao pensamento: este é

invisível, intocável, é a linguagem que, como uma veste – segundo a metáfora de

Frege – lhe dá visibilidade. Esta relação íntima torna-se patente na intrínseca

inteligibilidade da linguagem: entendemos o que lemos num livro antigo e

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poeirento, ou numa inscrição antiga, como entendemos uma frase totalmente

nova e inesperada e somos capazes de exprimir novos pensamentos com palavras

velhas.

Não se identificando totalmente com o pensamento, pois lhe confere o seu

aspecto mundano, fáctico, visível, a linguagem não se reduz tão-pouco a uma

forma externa, sobreposta, mas é também, formalmente, pensamento e tem, por

isso, uma certa dimensão transcendental. Por esta razão, olhar, reparar nos modos

de dizer, permite ver e apreender os modos de pensar (o modus significandi

corresponde ao modus cognoscendi, como o exprime Tomás de Aquino). Aqui se

pode fundar uma exploração de todos os problemas do conhecimento recorrendo

à via da análise linguística, como meio privilegiado para a elucidação dos processos

do pensar: a filosofia da linguagem e o problema da significação ocuparão o lugar

inaugural e principial de toda a filosofia, produzindo uma viragem radical da

centralidade do sujeito e da consciência para a estrutura linguística. O novo

programa da «viragem linguística» (linguistic turn) adopta este axioma fundamental:

a única via para a análise do pensamento passa pela análise da linguagem.

2. No Crátilo, Platão propõe para exame a definição do nome como mimesis da

coisa real, definição que repercutirá em toda a concepção da linguagem como

reflexo exacto da realidade, que encontra a sua expressão na teoria pictórica do

Tractatus. Neste sentido, ocorre pensar num outro aspecto da linguagem, o da sua

relação com o mundo: ela surge-nos como um plano mediador, uma via de acesso

entre pensamento e mundo, um espelho no qual se reflectem as coisas. Se

pudermos confiar neste isomorfismo entre as palavras e as coisas, a estrutura da

linguagem parece poder servir como uma pauta adequada para a reflexão

metafísica e ontológica. Poderá a análise da linguagem constituir também a via

mais indicada para a solução dos problemas metafísicos? Austin nota com

perspicácia que a análise da linguagem poderá ser a primeira palavra em metafísica,

mas não é a última. De facto, toda a reflexão metafísica inclui também a tarefa

crítica das próprias condições do pensamento e, neste caso, assumirá a crítica da

linguagem.

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Uma crítica da linguagem pode traduzir-se em dois tipos de procedimentos: 1.

a análise lógico-linuística como versão de uma investigação transcendental sobre

as condições de possiilidade do dizer com sentido (O Tractatus é o exemplo desta

radicalização da filosofia transcendental kantiana numa espécie de “linguismo

transcendental”, segundo a leitura proposta por Stenius). 2. a luta contra as

ambiguidades, vaguezas, disformidades induzidas pela linguagem que, se por um

lado exprime o pensamento e representa a realidade, também mascara o primeiro

e deturpa a segunda. As atitudes de suspeita para com os mitos e

pseudoproblemas que nascem dos mal-entendidos linguísticos são comuns a

Frege, Brentano, Wittgenstein. O ideal da linguagem rigorosa e perfeita norteou

todo o trabalho de Frege e absorveu a atenção de Wittgenstein no Tractatus. A

pretensa conaturalidade entre o dizer e o pensar encontra-se obstruída no uso

corrente da linguagem e dificulta a compreensão dos problemas a tal ponto que,

como escreverá Frege, “em grande parte, todo o trabalho do filósofo consiste em

lutar com a linguagem”.

3. O interesse filosófico pela linguagem não se limita ao facto de esta ser uma

via de acesso ao pensamento, e permitir por isso a elucidação de problemas no

âmbito da epistemologia, filosofia da mente e mesmo metafísica. O fenómeno da

linguagem é revelador da peculiaridade do ser humano enquanto tal. Este é

constitutivamente um animal symbolicum, não só por revelar as competências

linguísticas próprias, mas porque toda a praxis linguística constitui o seu habitat

natural. Não faz sentido estabelecer uma separação entre linguagem-mundo-

pensamento, interpondo barreiras artificiais e isolando três domínios distintos e

autónomos. Os signos linguísticos pertencem ao nosso mundo, como quaisquer

outros factos, e incarnam formalmente os pensamentos. Daí que o interesse pela

linguagem não se pode reduzir simplesmente ao interesse pelos signos como algo

que se sobrepõe às coisas do mundo e por vezes as ocultam; nem se pode ver

nesse interesse pelas palavras um sintoma de crise ou decadência da filosofia, que,

desatenta às coisas reais tal como são, se deixa prender às palavras que as

significam.

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Embora o objectivo central deste Programa seja o de proceder à elucidação do

pensamento e modos de conhecer através do que revela a análise linguística, não

se pode deixar de ter presente o horizonte antropológico mais amplo e abarcante

do fenómeno da linguagem: nele se revela de um modo privilegiado a dinâmica

inter-subjectiva e social do ser humano.

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2.“A viragem linguística” (Linguis t i c turn). As origens da Crítica da

Linguagem. A análise linguística como campo e modo do filosofar.

1.“O que distingue a filosofia analítica nos seus diversos aspectos de

outras correntes filosóficas, é em primeiro lugar a convicção de que uma análise

filosófica da linguagem pode conduzir a uma explicação filosófica do pensamento,

e em segundo lugar a convicção que esse é o único modo de alcançar uma

explicação global”4

Antecedendo, em parte a corrente analítica, os representantes do Círculo

de Viena defendiam já a ideia que a análise lógica da linguagem é o instrumento

imprescindível para discernir o sentido das proposições e este por sua vez define-

se em termos de verificabilidade. Wittgenstein não se pode considerar um

partidário do verificacionismo, mas representa bem os dois princípios acima

mencionados. Exemplo flagrante da primazia atribuída à análise da linguagem, é

Frege, que muitos consideram o pai da filosofia analítica. Nos Fundamentos da

Aritmética, Frege propõe uma questão epistemológica – como podemos determinar

o sentido de proposições que contêm a expressão de números? – e responderá

através de uma investigação sobre a linguagem.

No entanto, a atitude de Frege em relação à linguagem é ambivalente: se

por um lado ela espelha o pensamento, também o deforma e mascara. É

necessário manter uma certa cautela e desmitificar o excesso de confiança na

possibilidade de encontrar na linguagem o reflexo adequado e autêntico do

pensamento. Em carta a Husserl, Frege adverte: “A tarefa essencial do lógico

consiste em libertar-se da linguagem”.

De qualquer modo o trabalho de Frege constitui uma fonte de inspiração

para a viragem linguística: três aspectos estão na raíz deste novo modo de proceder

para tratar dos problemas filosóficos.

1) Em primeiro lugar a convicção de que a estrutura do pensamento deve

reflectir-se na estrutura da proposição e, sem o recurso à expressão linguística não

4 Dummett, M – La Philosophie Analytique, p. 13.

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encontraríamos qualquer meio para compreender o que exprime o pensamento.

Faz parte da essência do pensamento ser exprimível linguisticamente, se bem que

Frege não identifique radicalmente pensamento e sentido; hipoteticamente pode

pensar-se na existência de pensamento em si, não expresso linguisticamente. No

entanto, não há outra via para aceder ao pensamento que não seja a da análise

linguística. Todos aqueles que adoptarem como princípio a análise do significado

linguístico como modo de acesso a uma análise dos pensamentos, encontram em

Frege os fundamentos do seu estilo filosófico e do seu modo de investigação.

2) É ao pensamento, e não à proposição, que se deve atribuir o verdadeiro e

o falso; o valor de verdade constitui a referência da proposição, mas é em primeiro

lugar o seu sentido que tem originariamente esse referente. A tensão entre o

sentido – como modo de dar-se o referente – e a necessidade do próprio conceito

de referente para explicar o conceito de sentido, torna ambivalente o lugar da

análise do significado como via de acesso à compreensão e apreensão do referente

das proposições. Frege admite a possibilidade de apreender um pensamento sem

recorrer à sua expressão linguística; como se dá essa apreensão do pensamento,

apreender um sentido, a não ser como o sentido de uma expressão à qual se pode

atribuir um referente?

3) A perspectiva segundo a qual seria possível apreender os pensamentos na

sua «nudez», desprovidos da «veste» linguística, entra em conflito com o conceito

do sentido de uma expressão. Um sentido que não possa ser captado é uma pura

ilusão, uma quimera; se de facto é possível apreender um pensamento em si

mesmo, deveríamos ser capazes de dizer o que significa apreender esse

pensamento, de contrário, é difícil conciliar essa viabilidade de acesso com a

impossibilidade de o explicar. Apesar das ambivalências com que Frege trata a

relação entre pensamento e linguagem, admitindo que a expressão simbólica do

primeiro não é absolutamente necessária para que exista um pensamento, a praxis

do trabalho de Frege origina indubitavelmente uma nova orientação para a análise

linguística como sendo a via adequada para uma análise do pensamento, e a única

que permite dar uma explicação da sua estrutura e configuração lógica.

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2. Um outro aspecto fundamental justifica que se fale de uma autêntica

«viragem»: os pensamentos deixam de ser considerados como eventos ou

processos localizados na consciência e passam a ter um estatuto objectivo, uma

existência própria como entidades intemporais, imutáveis e autónomas do próprio

acto psicológico de pensar. Esta «expulsão» dos pensamentos do âmbito da

consciência coincide com todo o «movimento para a objectividade» cujos

antecedentes se podem encontrar nitidamente em Bolzano (as proposições em si),

e tem como consequência prática a rejeição de qualquer forma de psicologismo. A

lógica e as teorias do pensamento e da significação estão fora do campo da

psicologia e não relevam em nada das leis fácticas dos processos psíquicos:

Husserl, Frege são os principais campeões na luta contra o psicologismo, que se

continuará em Wittgenstein na crítica aos processos mentais, internos e, de um

modo indirecto na concepção do sentido como uso. Dummett aponta a herança

fregeana de Wittgenstein, ao afirmar que a tese da objectividade do sentido é uma

antecipação da doutrina de Wittgenstein segundo a qual o significado é o uso.

3. O alcance desta projecção do pensamento fora da consciência é claro:

toda a investigação que pretenda compreender o que é pensar, explicar os

processos do conhecimento, não tem as suas raízes numa filosofia da consciência,

ou na genealogia psicológica dos conceitos, mas na teoria do significado e da

expressão linguística, porque é este o locus próprio do pensamento. A análise da

linguagem não termina na fisicalidade e na facticidade dos signos, mas é de facto

uma análise do pensamento. É fácil antever como a filosofia analítica conduzirá

naturalmente á filosofia da mente.

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3. A radicalização da cr í t i ca no Tractatus . Filosofia Transcendental e

Analítica da Linguagem.

1. A «viragem linguística» constituiu uma certa transformação da filosofia, não

quanto aos seus problemas, argumentos, teorias, mas quanto ao modo de tratar

dos mesmos. O interesse central pela linguagem, que tem monopolizado a atenção

filosófica nos últimos anos não significa desinteresse pelas grandes questões da

filosofia, mas traduz a convicção de que a linguagem proporciona a chave para

resolver (ou, em certos casos, dissolver) os grandes enigmas. A nova orientação do

modo de pensar pressuposta no linguistic turn, pode considerar-se, de certo modo,

como uma réplica da «revolução copernicana» e o confronto destas duas viragens

mostra o papel mediador da filosofia transcendental no processo de

transformação da metafísica. O aspecto central desta viragem de uma crítica do

conhecimento qua análise da consciência para uma crítica do conhecimento qua

análise da linguagem reside precisamente na transformação do problema do valor

de verdade: este já não se identifica com o problema da evidência ou da certeza

para uma consciência solitária em sentido cartesiano, nem tão pouco na validade

objectiva para uma «consciência em geral», em sentido kantiano, mas sim com o

problema de uma formação intersubjectiva de consenso, em virtude do acordo

linguístico. Em continuidade com o problema transcendental kantiano – a reflexão

sobre as condições de possibilidade e validade do conhecimento – a linguagem

constituiria agora o tema e o meio da reflexão transcendental, em lugar da própria

consciência.5

Apel aponta essa posição mediadora do pensamento kantiano:

“A mudança fundamental da relação entre a filosofia e a linguagem que

distingue o século XX do XIX, e talvez até de toda a tradição, consiste em que a

linguagem já não é tratada simplesmente como objecto da filosofia, mas pela

primeira vez, é considerada como condição de possibilidade da filosofia. Neste sentido,

a “filosofia da linguagem” não é já uma filosofia de ligação, como a “filosofia da

natureza, “a filosofia do direito”, a “filosofia da sociedade”, etc.;(...) hoje em dia a

5 Cfr. Apel, La Transformación de la Filosofía, tomo I, p.298.

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“filosofia da linguagem” é considerada (...) como philosophia prima; quer dizer,

assim como a crítica do conhecimento segundo o procedimento de Kant, e de

certo modo como a sua radicalização em crítica da linguagem, ocupou o lugar da

ontologia.”6.

2. O Tractatus presta-se a múltiplas e diversas leituras: a primeira recepção da

obra de Wittgenstein por Russell e os representantes do Círculo de Viena

adoptou-o como a magna carta do empirismo e essas primeiras versões

encobriram certamente o pensamento originário de Wittgenstein. Outras leituras

mais atentas e livres dos compromissos neopositivistas, reconheceram a estreita

vinculação do Tractatus a uma atitude transcendental e até a sua filiação kantiana. É

claro que a influência de Kant não vem directamente dos seus escritos, mas

provavelmente das leituras de Schopenhauer que tanto marcaram Wittgenstein na

sua juventude. Ao contrário dos pensadores neopositivistas, Wittgenstein foi até

certo ponto um filósofo kantiano, se bem que, como tantos outros, transformou o

sistema de Kant numa forma peculiar de transcendentalismo, que Stenius

denomina como “linguismo transcendental”7.

Nos dois casos, na filosofia transcendental de Kant e na crítica da linguagem

de Wittgenstein, estabelece-se ou aponta-se um limite: o limite da experiência

possível e do que é acessível à razão teórica, o limite da linguagem com sentido.

Para além desse limite, fica a aparência transcendental originada pelo uso ilegítimo

da razão, ou o sem sentido que se mostra nas proposições, mas que não pode ser

dito. Para traçar este limite, é necessário determinar as condições de possibilidade

da experiência (Kant), e as condições de possibilidade do dizer com sentido

(Wittgenstein). É a exigência da determinação do sentido – do sentido do nosso

próprio conhecimento e da sua expressão linguística – que move todo o processo

crítico.

O pensamento wittgensteiniano apresenta-se, assim, como uma forma radical

da análise transcendental, a crítica do pensamento através da clarificação das suas

6 Die Idee der Sprache in der Tradition des Humanismus von Dante bis Vico. Bouvier, Bonn, 1975, p. 22. 7 Stenius, E. Wittgenstein’s Tractatus. A critical Exposition of its Main Lines of Thought, Oxford, Blackwell, 1964. Cfr sobretudo cap. XI.

21

condições de sentido, que são dadas pelas exigências lógicas do dizer com sentido.

O limite marca a fronteira entre o dizer e o mostrar, (“O que se pode mostrar não se

pode dizer” T. 4.1212), que se pode aproximar da fronteira kantiana entre o que se

pode pensar (denken), mas não conhecer (erkennen).

A Filosofia é a actividade crítica que consiste essencialmente em elucidar

proposições (T. 4.112). O seu resultado não é um corpo de «proposições

filosóficas», mas o contínuo esclarecimento da nossa linguagem. Compete-lhe

“delimitar o que é pensável, e assim o impensável”.

“Ela deve delimitar o impensável, do interior, através do pensável” (4.114).

Deste modo, “ela denotará o indizível, ao representar claramente o que é

dizível” (4.115).

O indizível é o transcendental, o que se mostra ao dizer o dizível.

3. A Lógica do Tractatus é transcendental, não é uma doutrina, mas um

“espelho cuja imagem é o mundo” (6.13). Ela “trata de cada possibilidade e todas

as possibilidades são os seus factos” (2.0121).

A dimensão transcendental, possibilitante da corrrespondência entre a figura

linguística e os factos, é a forma lógica. Na Dedução Transcendental, Kant

demonstra que as formas a priori da subjectividade transcendental são as formas

dos objectos enquanto tais. Pois bem, na análise wittgensteiniana mostra-se que a

forma lógica é a forma da realidade (2.18). O que possibilita este isomorfismo não

é uma realidade de facto, mas uma exigência de jure. A forma lógica não é

representável nem dizível – “o que se exprime na linguagem, nós não podemos

exprimir através dela” (4.121).

O dizível corresponde à realidade total, o mundo (2.063), o fáctico que é

constituído por «estados de coisas» e cuja substância são os objectos simples.

Estes são exigidos transcedentalmente pela própria lógica: não nos são dados nem

na experiência, nem na percepção, nem em qualquer outro modo de

conhecimento ou acesso. São requeridos de uma forma a priori pela própria

concepção da análise, que os contém já implicitamente: “Parece que a ideia do

SIMPLES se encontra já na de complexo e na de análise, de tal modo que

chegámos a esta ideia com total independência de exemplos de objectos simples,

22

ou de proposições que os mencionem, e compreendemos a existência do objecto

simples - a priori – como uma necessidade lógica”8. Esta exigência é precisamente

a exigência da determinação do sentido (3.23).

O solipsismo peculiar de Wittgenstein é a consequência última, paradoxal, das

teses sobre a lógica da linguagem: os limites da nossa linguagem são os limites do

próprio «eu». Limites totalmente impossíveis de transcender, não há modo de ir

«para além» da linguagem, nem mesmo de dizer o que não podemos pensar (5.61).

É a própria Lógica, que enche o mundo, que determina os seus limites e estes

limites expulsam o «sujeito metafísico» porque este não pertence ao mundo, mas é

um limite do mundo (5.632).

Comenta Apel: “Aqui se manifesta de forma extrema o carácter de caso limite

da filosofia transcendental wittgensteiniana da linguagem. Na medida em que o

sujeito é absolutamente idêntico com o projecto mundano formal da linguagem

pura transcendental, cai toda a reflexividade, toda a retroreferencialidade do

sujeito sobre o seu projecto mundano da linguagem. Tudo se passa como se não

existisse em absoluto sujeito algum. Só há factos reais tal como se dão sempre já

figurados através da linguagem. (…)

“Isto descobre-nos a verdadeira razão pela qual, para a filosofia transcendental

do primeiro Wittgenstein, não pode dar-se nenhum discurso com sentido da

linguagem sobre si mesma e sobre a sua relação com o mundo (…) A linguagem

só refigura estados de coisas permanentes, mas ao mesmo tempo não oferece

também na representação do mundo a relação do homem consigo mesmo, isto é,

com as suas possibilidades existenciais, nem portanto a índole do seu projecto do

mundo”9

A auto-limitação da filosofia transcendental como actividade crítica dá-se na

passagem de uma dimensão estritamente transcendental – o pensamento – a uma

dimensão quase transcendental – a linguagem – na qual se exclui da esfera do

sentido qualquer momento reflexivo. O pensamento enquanto tal perde

completamente a sua autonomia em relação à sua própria expressão proposicional,

ou seja o pensar coincide literalmente com o dizer. A possibilidade de uma filosofia

8 Notebooks (1914-1916), p. 60. 9 La Transformación de la Filosofía, tomo I, p.233..

23

transcendental dissolve-se, pois é inviável conciliá-la com esta forma radicalizada

de crítica da própria linguagem: ao pretender assumir ela própria a atitude

transcendental, redu-la a uma posição paradoxal, impossível de sustentar.

24

4. A Linguagem como medium universal

1. A ideia fundamental do Tractatus, a de traçar um limite entre o que se

pode dizer com sentido e o que não pode ser dito, sem sair da própria linguagem,

resulta num paradoxo que não é senão a réplica do paradoxo do conhecimento

transcendental. A íntima ligação entre os dois problemas é claramente apontada

por Wittgenstein: “O limite da linguagem mostra-se na impossibilidade de

descrever o facto que corresponde a uma proposição... sem repetir a mesma

proposição.

“Trata-se aqui exactamente da solução kantiana ao problema da filosofia”10

O «paradoxo do conhecimento transcendental» reapresenta-se na dimensão

linguística: a impossibilidade de transcender os limites da linguagem e de dizer

algo sobre a realidade independentemente da sua própria refiguração na

linguagem, conduz à inefabilidade da semântica, ou seja a inexpressabilidade das

relações significativas que constituiriam a mediação entre a linguagem e a

realidade.

Pelo menos no Tractatus, a inefabilidade da semântica é manifestamente

defendida por Wittgenstein como consequência da sua adopção da ideia da

linguagem como o medium universal, o limite para além do qual nada pode ser

pensado nem dito (Cfr. 4.12). As relações semânticas, o que correlaciona a

linguagem com o mundo é relegado para aquilo que pode ser mostrado, mas não

pode ser dito.

Todo o itinerário filosófico de Wittgenstein pode ser visto como uma Crítica

da Linguagem, num prolongamento da tarefa, assumida desde o Tractatus, de

mostrar os limites da linguagem e a simples falta de sentido dos vãos esforços do

entendimento ao chocar com estas fronteiras (Cfr Investigações, 119). Hintikka

propõe esta leitura de toda a filosofia de Wittgenstein: o intuito sempre perseguido

de limitar o domínio do pensável, torna a sua filosofia não só análoga, mas

intrinsecamente semelhante à de Kant11.

10 Vermichte Bemerkungen, p. 27. 11 Para este tema da linguagem como medium universal e a inefabilidade da semântica, cfr Hintikka, M.B. e J. – Investigating Wittgenstein, cap.I.

25

2. Interessa-nos apenas apontar algumas das teses do Tractatus

representativas da linguagem como medium universal e da inefabilidade da

semântica.

a) De acordo com 4.022, o sentido de uma proposição apenas

pode ser mostrado. O que é o sentido de uma proposição? Em

4.2, Wittgenstein define-o como “a sua concordância ou a

sua não-concordância com as possibilidades da existência e

da não existência de estados de coisas”. Estas relações de

concordância ou não-concordância são exactamente as

relações semânticas, e não é possível exprimir

linguisticamente as relações de “projecção” que estabelecem

a conexão de uma proposição com os factos atómicos.

b) A relação dos nomes com os objectos simples, que são os

seus significados, é também inexprimível. A existência de um

objecto apenas pode ser mostrada através do uso do

respectivo nome na linguagem. Isto significa que o conceito

de existência individual é inefável (Cfr 5.61)

c) O mundo como um todo é também inexprimível porque são

inexprimíveis os seus limites (5.61). Como a ética e a estética

tratam do mundo como um todo, são transcendentais

(6.421), pertencem ao domínio do que se pode mostrar, não

dizer.

d) As formas lógicas (as formas da representação) incluem-se

neste domínio do inefável. Sobre o estatuto transcendental de

toda a lógica e nomeadamente o carácter místico da forma

lógica, condição possibilitante de todo o dizer com sentido,

podem citar-se numerosas passagens do Tractatus (2.172, 2.22,

2.181, 2.174; sobre o estatuto das tautologias e contradições,

4.461).

26

e) A impossibilidade de uma filosofia do sujeito ou o

desvanecimento do «eu» na coincidência absoluta com a

forma a priori da linguagem.

3. Até que ponto o «segundo modo de pensar» de Wittgenstein se mantém

dentro dos limites da linguagem, apesar da sua reformulação das principais

teses do Tractatus? Seguindo Hintikka, a tese da inefabilidade da semântica é

mantida ao longo de todo o pensamento de Wittgenstein. Significa isto que o

impasse de uma Crítica da Linguagem se mantém, e o carácter paradoxal de

uma «reflexão» sobre a linguagem constituirá um obstáculo intransponível para

a possibilidade de tratar do «fenómeno humano da linguagem»?

A questão exige uma exploração do próprio «estilo» filosófico de

Wittgenstein e um exame do significado e alcance do seu «pragmatismo». Creio

que, embora seja indubitável que todo o pensamento de Wittgenstein

permanecerá sempre profundamento enraizado na linguagem – linguagem

como praxis peculiarmente humana, linguagem como a única expressão do

mundo e do homem – o intuito inicial de uma radicalização da crítica da

linguagem se transformou numa «fenomenologia» e numa hermenêutica das

formas de vida, da cultura, da história humana, configuradas pela prática da

linguagem em sentido amplo e geral.

Como síntese, voltamos a remeter para Apel: “em contra-posição ao ideal

logístico de uma linguagem simbólica que produza estados de coisas

subsistentes, a linguagem real tem em todo o momento que representar na

concepção do mundo uma relação do homem consigo mesmo. De outro

modo não teria absolutamente nada que pudesse representar como «algo».

Nesta relação pré-reflexiva do discurso humano consigo mesmo é onde deve

encontrar-se – pode pensar-se – a possibilidade de uma superação do

paradoxo do Tractatus.12

12 Apel, La Trasnformación de la filosofía, tomo I, p. 236.

27

28

5. Wittgenstein um filósofo kantiano?

1. O impasse final do Tractatus, no entanto, é o mais eloquente resultado da

própria tarefa que Wittgenstein assumiu: mostrar a saída para os enigmas da

filosofia. E a solução – ou dissolução – do enigma consiste precisamente em

encontrar o caminho que conduza para fora da filosofia: (T. 6.52 e 6.521)

O principal erro residia no empenhamento em encontrar de uma vez por todas

o remédio para a doença filosófica. E, de facto não há um método filosófico, mas

diferentes e variados métodos, como diferentes terapias. O que há de comum,

possivelmente na diversidade de métodos e terapias, e o que persiste como

estratégia e atitude ao longo do trabalho de Wittgenstein é a convicção de que

toda a Filosofia é “crítica da linguagem” (4.0031).

A “crítica” de Wittgenstein poderá ser considerada, como defende Stenius,

uma atitude filosófica com afinidades ou mesmo inspirações kantianas? É uma

questão que examinaremos brevemente, examinando os argumentos deste autor.

2. Stenius sintetiza o pensamento Kantiano nas seguintes teses13:

a) A tarefa da filosofia teórica consiste em deduções transcendentais que

tracem os limites do discurso teorético; não lhe compete especular

sobre o que transcende estes limites e que, por isso, não pode ser

conhecido.

b) O mundo da experiência possível é o mundo acessível à razão teórica, i.

é, aquilo que é imaginável e inteligível.

c) A nossa experiência tem uma ‘forma’, fundada na razão teórica, e um

conteúdo, baseado nas nossas sensações.

d) As proposições sintéticas são a priori – se se referem apenas à forma da

experiência – ou a posteriori se se referem também ao conteúdo.

e) Portanto, existem proposições sintéticas a priori.

13 Sigo o cap. XI – “Wittgenstein as a kantian philosopher” da obra Wittgenstein’s Tractatus. A Critical Exposition of the Main Lines of Thought.

29

f) As proposições ‘transcendentes’ (sobre Deus, a alma imortal, o mundo

como um todo, etc.) não podem ser conhecidas, mas apenas postuladas

pela razão prática (Kant), ou intuídas pela vontade (Schopenhauer).

g) A coisa em si é transcendente.

A tese b) está plenamente de acordo com a tese do Tractatus, com uma ligeira

modificação: o imaginável e inteligível é, para Wittgenstein, o ‘pensável’ e o

pensamento é a ‘imagem lógica da realidade’, ou, por outras palavras, o que pode

ser dito numa linguagem pictórica. Inteligível significa para Wittgenstein o que pode

ser descrito numa linguagem com sentido. A tarefa da filosofia consiste, portanto, em

indicar os limites do discurso, do que pode ser dito, e esta investigação mostrará a

‘lógica’ da linguagem, ou seja a ‘lógica do mundo’. Assim, as deduções

transcendentais kantianas são efectuadas, em Wittgenstein pela análise lógica da

linguagem.

A ‘forma da experiência’ (Kant) corresponde à ‘forma lógica da substância’ ou

a ‘estrutura interna da substância’, que se mostra na estrutura interna da linguagem.

Uma vez que a forma lógica da substância é independente de qualquer experiência,

é a priori; mas, como a forma lógica é a forma da linguagem, nada se pode dizer

com sentido sobre a forma. A tese d) transforma-se, assim, em Wittgenstein na

seguinte afirmação: a forma a priori da realidade só pode mostrar-se na linguagem,

mas não dizer-se em proposições com sentido. A tese e) será, portanto falsa. A

Matemática é um “método lógico” (T. 6.2), constituída por pseudo-proposições

(6.2), que não exprimem nenhum pensamento (6.21). Quanto à lei da causalidade,

não é propriamente uma lei, mas a forma de uma lei (6.32, cfr 6.321, 6.3211).

Em conclusão: para Stenius, a análise lógica da linguagem é uma réplica da

‘dedução transcendental’ em sentido kantiano, com o objectivo de indicar a forma

a priori da experiência, que se mostra em toda a linguagem com sentido, mas não

pode ser dita. O Tractatus poderia intitular-se “Crítica da Linguagem Pura”. E o

sistema filosófico de Wittgenstein pode designar-se como um “Linguismo

Crítico”, “Linguismo Transcendental” ou mesmo “Idealismo Linguístico”.

Também para Wittgenstein, a forma da experiência é ‘subjectiva’ no sentido

transcendental: o sujeito metafísico é o sujeito que emprega e compreende a

30

linguagem e distingue-se do sujeito empírico, parte do mundo que pode ser

descrito pela linguagem. Os limites do mundo do sujeito metafísico são

determinados pelos limites da sua linguagem. (T. 5.6 ss.)

Todas as questões que, segundo Kant, não podem ser respondidas pela razão

teórica, são para Wittgenstein sem sentido, ou melhor, não são propriamente

problemas (T. 4.003). Sempre que uma resposta é inexprimível, também a

pergunta é impossível de exprimir. O enigma não existe (T. 6.5). A tese f) de Kant

assume no pensamento de Wittgenstein outra forma: o inexprimível existe (T

6.522), mostra-se a si mesmo, é o místico, que está para além dos limites da

linguagem com sentido. A “coisa em si”, existindo independentemente da forma

da experiência, ocorre em Kant, e particularmente em Schopenhauer, como um

símbolo do transcendente inalcançável. No Tractatus encontramos alguma

reminiscência desta idéia.

3. Entre as muitas leituras que se podem fazer do Tractatus, esta aproximação

com o «idealismo transcendental» kantiano é uma delas. As afinidades apontadas

por Stenius são flagrantes e constituem uma grelha de interpretação plausível.

Sabemos, no entanto, que Wittgenstein não recebeu a influência de Kant em

directo, mas possivelmente através da leitura de Schopenhauer que tanto o atraíra

na sua juventude. Não se pode, por isso, considerar que estes pontos convergentes

se baseiem realmente numa proximidade filosófica entre Kant e Wittgenstein. A

diferença de estilos de pensar, de metas do trabalho filosófico não pode deixar de

ser tida em conta.

Mas, por outro lado, é natural olhar para a “crítica da linguagem pura” de

Wittgenstein, como uma transformação da filosofia transcendental, como

observamos já, seguindo a obra de Apel. Esta «transformação» não foi explícita e

intencionalmente tematizada por Wittgenstein. O seu pensamento confirma, no

entanto, que a idéia de «limite» - do inteligível, do exprimível, do sentido – foi

emergindo na filosofia como um tópico central. As dificuldades e aporias da

investigação dos «limites» vão ressurgindo de uma forma ou de outra, consoante a

problemática específica abordada – o alcance do conhecimento racional e teórico,

a linguagem com sentido, a experiência possível. Neste enquadramento, a

31

interpretação do Tractatus em termos do transcendentalismo kantiano, faz sentido,

na medida em que mostra as sintonias e a continuidade de problemas filosóficos

afins.

A resposta definitiva á pergunta que serve de título ao referido capítulo de

Stenius – “Foi Wittgenstein um Filósofo Kantiano?” – permanecerá, no entanto

adiada. O que importa não é fazer um levantamento doxográfico das possíveis

fontes do pensamento wittgensteiniano, mas apreender os fios condutores dos

problemas e argumentos filosóficos na sua dimensão temporal e histórica.

32

6. A semântica do Eu

1. Stenius não é o único autor a encontrar afinidades entre o pensamento

kantiano e o de Wittgenstein. A argumentação de Kant nos Paralogismos,

contra a evidência do cogito e a fundação da nossa própria identidade através do

tempo na autoconsciência, revela também nítidas afinidades com a

argumentação de Wittgenstein contra o solipsismo, como observa Hacker14.

Recapitulemos brevemente o itinerário wittgensteiniano no que diz respeito

ao problema do Eu e da sua expressabilidade. No Tractatus, os limites da

linguagem são os limites transcendentais do mundo, e como a Linguagem é a

minha linguagem, os seus limites são os limites do meu mundo. O Ego referido

aqui pelo pronome meu, é o sujeito metafísico que, em certo sentido não existe,

porque é transcendental, não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo

(T. 5.632). Aqui surge a distinção fundamental entre o sujeito metafísico e o

ego empírico. No livro “O mundo tal como o encontrei”, há um ego que tem

de ser descrito, mas sobre o ego metafísico nada se pode mencionar. Isto

significa que o “solipsismo” deve, em certo sentido ser considerado

verdadeiro. O que Wittgenstein entende aqui por “solipsismo”, pode ser

designado por “idealismo”, porque se trata precisamente da viragem linguística

do idealismo kantiano.

2. Depois do Tractatus, as observações de Wittgenstein sobre a gramática

do “eu” têm como horizonte de fundo os pressupostos da concepção da

consciência como auto-representação: o pronome da primeira pessoa, no seu

uso corrente, não refere algo misterioso e oculto que habita em nós e é

invisível para os outros.

“... a idéia de que o verdadeiro eu vive no corpo está relacionada com a

gramática peculiar da palavra “eu”, e com os equívocos cuja origem é da

responsabilidade da gramática”, escreve Wittgenstein no Livro Azul, e esbate

esta miragem, examinando dois casos no uso do pronome, como objecto e

14 Cfr Hacker – “The Refutation of Solipsism”, pp. 139-141, in Canfield, vol 12.

33

como sujeito. Exemplo do primeiro caso - “Eu cresci doze centímetros” - , do

segundo – “Eu vejo isto”. Aqui, temos a clara intuição de que não o

empregamos por reconhecermos uma determinada pessoa através das suas

características corporais; “e isto cria a ilusão de que usamos esta palavra para

nos referirmos a algo incorpóreo, que, todavia, tem a sua morada no nosso

corpo. De facto, isto parece ser o verdadeiro ego, aquele do qual se disse,

“Cogito, ergo sum”. «Não haverá, nesse caso, um espírito, mas apenas um

corpo?» Resposta: a palavra «espírito» tem sentido, isto é, tem o uso na nossa

linguagem(...)”15.

No artigo citado, Hacker mostra a proximidade entre o argumento de

Wittgenstein e um texto da Crítica, que exprime bem a insistência com que

Kant defende o carácter originário, inderivável da auto-consciência

transcendental, que precede qualquer pensamento determinado. São estas

características que conduzem à confusão cartesiana16. O fio condutor da

argumentação kantiana no terceiro paralogismo consiste em mostrar que a

evidência sobre a qual assentam as provas da psicologia racional,

nomeadamente a unidade da apercepção, não só não exlcui, como se pode

conciliar com uma multiplicidade de «eus» numericamente distintos mas

qualitativamente idênticos17. A semelhança dos argumentos, de que se servem

Kant e Wittgenstein para denunciar a ilusão do cogito cartesiano, é patente18.

O exame da gramática do «eu» visa mostrar que o uso do pronome da

primeira pessoa não refere um ego cartesiano, nem exige a identificação do

objecto designado; portanto, o pronome «eu» não é, de modo algum, um nome

nem uma expressão referencial. A dificuldade em aceitar esta idéia, vem da

herança do pensamento cartesiano, onde o pronome designa o que há de mais

claro e evidente, a consciência imediata do próprio pensar, da mente, do self.

Esta idéia deu origem às objecções e dificuldades de pensar a consciência

como o que acompanha todas as representações, a impossibilidade de ver o

próprio «eu» como um objecto para mim, e as consequentes críticas de Hume,

15 Livro Azul, p. 119. 16 Cfr Crítica, p. 369 B 427. 17 Cfr ibidem, p. 343, A 363. 18 Cfr Hacker, art. cit. p. 141. O autor refere dois textos de “Notes for lectures”, p. 300 e 307.

34

perplexo com a unidade deste «eu» que não passa realmente de um feixe de

representações.

Atribuir ao pronome da primeira pessoa uma relação referencial unívoca

conduz inevitavelmente à admissão da linguagem privada e à consideração de

todos os fenómenos psíquicos como factos internos, acontecimentos mentais

localizáveis no tempo, referentes de todas as proposições relativas ao próprio

«eu».

A terapia dos erros categoriais induzidos pela gramática do «eu», consiste

na batalha de Wittgenstein em duas grandes frentes: a refutação do solipsismo,

consequência da tese do “acesso privilegiado”ao núcleo do próprio «eu», e a

rejeição da linguagem privada, condição e principal responsável pelo

solipsismo. No fundo, a refutação do solipsismo está implicitamente

pressuposta na rejeição da linguagem privada; e esta última assenta na

correcção da perspectiva atomística e fenomenista do “eu” e na apresentação

de uma perspectiva organicista do ser humano19.

3. Interessa sublinhar a repercussão de Wittgenstein – e nomeadamente das

Investigações Filosóficas – na continuação da transformação da filosofia

transcendental em filosofia da linguagem: a inflexão pragmatista constitui um

segundo passo na adopção da linguagem como locus privilegiado para a

compreensão da tarefa filosófica. A dimensão social e pragmática da linguagem

substitui a sua consideração logicista ou meramente epistemológica e torna-se

condição imprescindível para que a semiótica transcendental possa assumir o

lugar metodológico de uma filosofia primeira. A teoria do significado tem de

pressupor a natureza sócio-cultural do processo semiótico e a função

comunicativa da linguagem. Para compreender a linguagem como fenómeno

humano e como sistema simbólico é imprescindível integrar o sujeito no

contexto cultural, social e na comunidade na qual vive. Deve-se, em grande

19 Para uma exploração mais detalhada da argumentação wittgensteiniana cfr Couto Soares, Mª Luísa, “A Semântica do Eu”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humana, n. 9, 1996, pp. 35-47. Em Hacker, “The Refutation of Solipsism”, encontra-se uma explanação do percurso wittgensteiniano deste tópico, desde os primeiros escritos depois do Tractatus até às Investigações Filosóficas e um exame dos vários argumentos evocados por Wittgenstein.

35

parte, ao trabalho filosófico de Wittgenstein a reorientação da compreensão do

conhecimento e da linguagem tendo em conta fundamentalmente o seu

carácter comunitário e prático, em flagrante contraste com a concepção

fundacionalista do individualismo cartesiano. Isto pressupõe uma

transformação do conceito de sujeito transcendental, no sentido de uma

ampliação do eu para a comunidade iintersubjectiva. Assim o exprime Apel:

“(...) o conceito de sujeito transcendental já não pode ser concebido em

termos da unidade de uma consciência em geral, auto-suficiente e terminada.

Deve, sim, adaptar o pensamento da comunidade de comunicação como

sujeito de processos de alcançar uma compreensão sobre o significado. A

possibilidade de chegar a uma compreensão sobre o significado em geral, no

entanto, pressupõe já a possibilidade de formar um consenso sobre a verdade.

(...) O sujeito definitivo do conhecimento intersubjectivamente válido é

idêntico àquela comunidade ideal de comunicação que está sempre já

contrafacticamente antecipada em qualquer comunidade que alcança uma

compreensão sobre o significado e a verdade e que, além disso está, contudo,

sempre para se realizar”20

A transformação da filosofia projectada por Apel indica um novo

paradigma como filosofia fundamental: através da expansão transcendental-

pragmática da onto-semântica, Apel sugere que a semiótica transcendental,

incorporando a semântica e a pragmática, ocupem o lugar da prima philosophia21.

20 Apel, K.-O. – Understanding and Explanation. A Transcendental-Pragmatic Perspective, p. 239. 21 Cfr ibidem, p. 242.

36

II. A Tradição Analítica

1. Não se pode compreender a passagem da filosofia moderna, - desde o

cogito cartesiano até ao transcendentalismo kantiano – para a Crítica da Linguagem,

sem ter em conta Frege, considerado o pioneiro da filosofia da linguagem

contemporânea e o iniciador da tradição analítica. A sua rejeição da primazia

atribuída à epistemologia22 e ao problema do conhecimento na arquitectónica do

pensamento em geral, a crítica ao psicologismo e a defesa da objectividade e

universalidade das leis da lógica, constituem pedras basilares na reconstituição da

estrutura e natureza do pensar, para o qual a única via de acesso é a linguagem. Se

Frege se interessa pela linguagem, é simplesmente porque esta reflecte o

pensamento: o seu interesse centra-se numa filosofia da mente – e não das mentes –

e é isso que o levará a libertar-se de todos os elementos linguísticos que sejam

irrelevantes para a expressão do pensamento e de todos os factores subjectivos,

psicológicos, dos processos de conhecimento. Não é o sujeito empírico que

interessa a Frege, mas, de um modo geral, o sujeito transcendental: como afirma

em “Der Gedanke”: “nem a lógica nem as matemáticas têm a tarefa de investigar

as mentes e os conteúdos mentais próprios dos indivíduos singulares. A sua tarefa

poderia representar-se melhor como a investigação da mente; da mente, e não das

mentes”.

2. A oposição ao psicologismo é constante nas obras de Frege, que rejeita

qualquer tentativa de explicação, em termos psicológicos, das leis lógicas que

estruturam todos os raciocínios, e da teoria do significado que releva da

concepção objectiva do sentido. Para Frege não é lícita qualquer interferência dos

processos psicológicos do pensar nas leis do pensamento puro, que constituem

uma espécie de bagagem comum a toda a humanidade, transmitida de geração em

geração23. A lógica e a filosofia da linguagem de origem fregeana desvinculam-se

totalmente dos processos mentais individuais e subjectivos, irrelevantes para a

explicação dos significados.

22 Cfr Dummett, M. – The Interpretation of Frege’s Philosophy, p. 61. 23 Cfr Kleine Schriften, p. 146.

37

Como lógico e matemático, Frege considerava que estas disciplinas não

têm como objectivo a investigação do pensar como processo subjectivo, do

pensar individual e suas leis psicológicas e, em certa medida, empíricas. O que

pode ser Verdadeiro ou Falso são os pensamentos que são independentes das

mentes individuais, os pensamentos não são representações que, como as

sensações ou as dores, pertencem ao fluxo interno da consciência individual. A

sua tarefa poderia talvez representar-se como a investigação da mente, não das

mentes. Frege comenta algumas passagens de Kant, nas quais se mostra o absurdo

de misturar e confundir a lógica com questões sobre como é que nós pensamos.

"Em lógica - escreve Kant, não queremos saber como é o entendimento ,

como pensa e como é que se processa o seu pensamento, mas como é que deveria

proceder ao pensar. A lógica deve ensinar-nos o uso correcto do entendimento, isto é,

como é que deve estar de acordo consigo mesmo (mit sich selbst übereinstimmenden

Gebrauch des Verstandes)"24.

3. Esta tarefa filosófica passa, segundo o programa de Frege, por uma

análise e uma depuração da linguagem. Por isso mesmo, Frege é justamente

considerado o grande inspirador, e mesmo "o avô" da tradição analítica que se

caracteriza, em primeiro lugar pela convicção de que uma análise filosófica da

linguagem pode conduzir a uma explicação filosófica do pensamento, e em

segundo lugar, a convicção de que esse é o único modo de alcançar uma

explicação global. Dois princípios gémeos, que nortearam todo o trabalho

filosófico, quer dos positivistas lógicos, quer de Wittgenstein, quer da filosofia

postcarnapiana dos Estados Unidos, tal como Quine, Davidson, e outros autores

da filosofia analítica contemporânea. A precedência da linguagem em relação ao

pensamento marcou uma das vias mais frequentemente percorridas pelos grandes

analíticos de origem anglo-saxónica. No entanto, esta primazia atribuída à

linguagem em relação ao pensamento, não é compartilhada por alguns autores

que, também na esteira de Frege, pretendem que a linguagem só pode ser

24 Kant, Logic, trad. Robert S. Hartman e Wolfgang Schwarz, Indianapolis and New York, 1974, p. 16

38

explicada através de conceitos de vários tipos de pensamentos, que podem ser

considerados independentemente da sua expressão linguística25.

Frege está numa posição peculiar na ordem a atribuir á relação linguagem-

pensamento: não há dúvida que a linguagem espelha o pensamento e é, portanto,

através das expressões linguísticas que se torna possível analisá-lo. Mas, na maior

parte dos casos, a linguagem é um espelho que deforma o pensamento, e a atitude

de Frege será sempre cautelosa, desmistificando um excesso de confiança na

possibilidade de encontrar na linguagem um reflexo adequado e autêntico do

pensamento. É sintomático desta sua atitude, o que Frege escreve a Husserl em

Novembro de 1906: "A tarefa essencial do lógico consiste em libertar-se da

linguagem"26.

Estes sentimentos ambivalentes em relação à linguagem, que se manifestarão

ao longo de toda a sua vida e obra, não impedem de encontrar em Frege correntes

de fundo que levam à investigação do pensamento através da análise da

linguagem, e de reconhecer na sua obra a fonte de inspiração da "viragem

linguística" que constitui o prolongamento natural do seu trabalho filosófico27.

Apesar das ambivalências no pensamento de Frege, não há dúvida que nele

encontramos as origens da chamada "viragem linguística", se bem que por vezes,

essa raíz não seja claramente percebida pelo próprio Frege. O seu interesse residiu,

sobretudo na «lógica», entendida como o ramo da filosofia que se ocupa do

pensamento – não dos processos de pensar – na sua total independência em

relação à apreensão e expressão do mesmo. Neste sentido, pode dizer-se que a

lógica tal como é entendida por Frege não tem nada a ver com a linguagem, e esta

torna-se mesmo um obstáculo para uma clara compreensão dos pensamentos28.

No entanto, como observa Dummett, mesmo que Frege não se interesse

directamente pela filosofia da linguagem, o seu trabalho é do máximo interesse e

relevância para os filósofos da linguagem posteriores. Porque, embora a filosofia

do pensamento possa prescindir do recurso á linguagem, a investigação sobre o

25 Cfr Dummett, M. Les origines de la philosophie analytique, Gallimard, 1991, p.13. Dummett dá como exemplo desta nova orientação o livro de Gareth Evans, The Varieties of References. 26 G. Frege - Wissenschaftlicher Briefwechsel. 27 Cfr Dummett, ob. cit., p. 17. 28 Cfr Frege, “Der Gedanke”, nota 4.

39

modo como exprimimos os pensamento através da linguagem, apresenta-se

indubitavelmente, como uma legítima estratégia filosófica. E Frege insiste

reiteradamente que o pensamento só se torna visível e acessível através da sua

expressão linguística29.

De qualquer modo, na sua filosofia estão em gérmen os princípios

orientadores da tradição analítica, nas suas diversas manifestações: Frege foi

pioneiro na elucidação do que são os pensamentos e na explicação dos

significados das proposições e das palavras que as constituem. Todos aqueles que

adoptaram como princípio a análise do significado linguístico como modo de

acesso a uma análise dos pensamentos, encontram em Frege os fundamentos do

seu estilo filosófico e do seu modo de investigação.

No programa de Frege há um aspecto que não ocorre geralmente nos diversos

desenvolvimentos da filosofia analítica: a tradução de "proposições filosoficamente

interessantes”. No Tractatus, para não ir mais longe, não se propõe essa tradução.

A terapia proposta por Wittgenstein consiste em mostrar o sem sentido de tais

proposições, e, portanto, libertar-se simplesmente de tais proposições, negando-

lhes mesmo o estatuto de «proposição». Esta eliminação seria o resultado do

reconhecimento das nossas tendências intelectuais viciadas, que nos levam a «ver»

de uma forma pouco clara e distorcida e a criar mitos na nossa mente que é

necessário desmascarar. De qualquer modo, não há dúvida que o Tractatus

apresenta afinidades profundas e algumas raízes no pensamento de Frege.

1. Funções significativas: a distinção entre sentido e referência (Sinn

und Bedeutung de Frege).

29 Cfr Dummett, M – The Interpretation of Frege’s Philosophy, cap. 3, pp. 39-41. Neste capítulo Dummett discute o papel de Frege na história da filosofia analítica e a consideração do seu pensamento como uma filosofia da linguagem.

40

Duas noções fundamentais para considerar a linguagem na sua dimensão

intencional ou relação com o mundo e na sua dimensão expressiva, como locus da

compreensão e do pensamento: a referência diz respeito á capacidade transitiva de

todo o signo como algo que está por um outro, algo que visa outro que não o

próprio signo; o sentido diz respeito à dimensão cognitiva do uso dos signos,

enquanto meios de expressão e de compreensão.

Frege é o introdutor destas duas noções adoptadas por toda a Filosofia

Analítica e exploradas com diversos matizes. Torna-se imprescindível uma

apresentação relativamente detalhada do seu pensamento.

1. A distinção entre sentido e referência é explorada por Frege no seu

conhecido ensaio “Über Sinn und Bedeutung”, mas encontram-se nas suas obras

anteriores inúmeros prenúncios desta teoria. Na Begriffschrift, Frege refere-se muitas

vezes aos sinais e seus designata e declara expressamente que é do conteúdo (Inhalt),

que se ocupa a conceptografia; este pode ser expresso de vários modos, que dão

origem a ligeiras variações de sentido. O símbolo de igualdade traduz

precisamente o facto de o mesmo conteúdo poder ser determinado de modos

diferentes, expressos por diferentes nomes que designam a coisa, exprimindo cada

um um aspecto particular diferente (Begriffschrift, § 8).

É precisamente o problema do valor cognitivo das proposições de

identidade que abre o ensaio “Über Sinn und Bedeutung”: a possibilidade de

reconhecer o mesmo objecto sob várias designações é que fundamenta o alcance

cognitivo dos juízos de identidade. Esta não é uma mera relação entre signos, nem

poderia ser uma relação entre objectos, uma vez que não há dois objectos

idênticos. É necessário portanto reconhecer que, entre o signo e o seu referentes

(o objecto designado), se dá o sentido, que corresponde à multiplicidade de modos

de dar-se, de aspectos do próprio objecto:

“Um nome próprio (palavra, sinal, combinação de sinais, expressão)

exprime (ausdrückt) um sentido (Sinn) e refere-se a ou denota (bedeutet, bezeichnet)

uma referência (Bedeutung). Por meio de um sinal, exprimimos o seu sentido e

designamos a sua referência” (SuB, p. 144).

41

A multiplicidade de sentidos é a manifestação do carácter polifacetado do

próprio objecto: o sentido é apresentado como os lados (Seiten) do objecto. A

distinção não se fundamenta, primeiramente, na variedade dos nomes, na

polissemia, mas nas próprias coisas. Não são modos de designar meramente

arbitrários, não partem da iniciativa do sujeito semântico e da sua capacidade

simbólica, mas apresentam-se como dados, modos de dar-se objectivos que podem ser

captados, apreendidos. Tal como os conceitos, – que sendo sempre insaturados, e

representando aspectos parciais de um objecto – os sentidos “não brotam na alma

como os frutos na árvore”, segundo uma expressão gráfica de Frege que sublinha

o seu carácter real, objectivo e autónomo em relação aos processos de

significação.

O problema que levanta a formulação de Frege é a reconciliação de duas

facetas envolvidas na noção de sentido: por um lado, algo de objectivo,

independente, atemporal, que garante a comunicabilidade entre diferentes

locutores, por outro lado é o sentido que constitui o valor cognitivo da linguagem,

o que permite re-conhecer e identificar o objecto designado. Pela sua dimensão

objectiva, o sentido apreende-se como algo pre-existente, autónomo, como um

planeta; mas o sentido do sentido é justamente esse apreender por parte de uma

mente. A noção fregeana de sentido oscila com um movimento pendular entre o

lado subjectivo ( o modo do reconhecimento) e o lado objectivo (o modo de dar-se do

objecto); a consideração dos casos particulares do sentido dos nomes próprios,

dos predicados e das frases assertivas, constituirá o mote para explorar mais

detalhadamente as aporias do sentido.

2. A referência constitui o terceiro elemento da teoria do significado e

exprime o carácter essencialmente transitivo de todo o sinal. A sua capacidade de

referir é a própria razão de ser do signo, que remete, de um modo ou de outro,

para um algo diferente de si mesmo. A referência é aquilo de que se fala, e significa a

possibilidade de a linguagem se relacionar com o real, o visado ou intencionado por

ela. Frege afirma reiteradamente que quando falamos estamos, de facto a referir-

nos ao mundo real, aos objectos designados pelos nomes que empregamos, e não

a um mundo de representações internas, mediação intransponível entre o eu e o

42

mundo. Em SuB, Frege explicita o seu realismo semântico, rejeitando qualquer

forma de representacionismo: “Seria positivamente entender mal o sentido da frase ‘A

lua é menor do que a Terra’ admitir-se que é a representação da lua o que está em

questão. Se isso é o que queria o locutor, ele deveria usar a expressão ‘A minha

representação da lua’”.

A praxis linguística está direccionada para algo que transcende a própria

linguagem, algo de real, externo ao próprio processo interno da compreensão,

captação e expressão do significado. A referência é precisamente o correlato extra-

linguístico, não é um ingrediente do significado; isto significa a garantia do alcance

realista do uso da linguagem e simultaneamente a compreensão da significação

não como um mero processo de associação de uma expressão com algo do

mundo externo, mas como um processo que envolve a compreensão do

significado. Considerar a referência como um elemento extra-linguístico é

condição fundamental para uma semântica que reserve sempre, em qualquer acto

linguístico, um papel próprio ao sentido como valor cognitivo.

O realismo semântico de Frege não envolve, no entanto, qualquer

compromisso ontológico: não se trata da existência do referente, mas da nossa

intenção ao falar ou ao pensar. A pressupocição da referência não implica nem envolve a

posição da existência. A referência não indica nem determina, de modo nenhum, a

existência, é um atributo próprio de todo o sinal que tem a propriedade de indicar.

Mesmo no caso de faltar esse algo, o sinal não deixa de possuir como próprio o

carácter referencial.

Enquanto objecto real, do qual se fala, a referência apresenta-se-nos como

um ponto fixo, um centro de gravidade para o qual convergem os múltiplos e

possíveis sentidos. Entendida como semantic role, a função semântica na relação

proposição-valor de verdade, a referência apresenta-se como o que importa ou o

que conta para a apreensão da verdade, sendo a verdade considerada em termos

de contextualidade semântica.

43

2. O sentido dos nomes próprios

1. No ensaio Sinn und Bedeutung, Frege define o sentido de um nome

próprio como um modo de dar-se do objecto, a expressão de uma das suas

propriedades, atributos, de um dos conceitos sob os quais cai esse objecto. “O

discípulo de Platão”, “O mestre de Alexandre Magno”, ou “Aristóteles” são

nomes próprios que exprimem vários sentidos de um mesmo referente.

A atribuição de sentido ao nome próprio não é uma questão pacífica nem

irrelevante, tendo em conta as implicações epistémicas e ontológicas que a tese

acarreta. A caracterização da categoria linguística do nome é absorvida pela

elucidação da noção de objecto: um nome próprio é a expressão – simples ou

complexa, sempre singular e precedida do artigo definido – que designa um

objecto. A convicção fundamental de Frege é a de que com o uso das expressões

que denominou nomes próprios estamos a apontar, designar objectos determinados.

O uso ontológico que Frege faz do termo objecto é, pois correlativo do emprego

do termo linguístico nome próprio: este está sempre em vez de um objecto, que é

o seu referente.

A questão que se põe será a de saber em que domínio – no linguístico, no

lógico ou no ontológico – é que devemos procurar o primeiro princípio de

classificação: o critério para decidir se algo é um objecto assenta no facto de ser

designado por um nome próprio, ou, pelo contrário, um signo ou expressão é um

nome próprio precisamente porque o seu referente é um objecto? Para Frege, o

que distingue o nome próprio de outras expressões linguísticas é o facto de

constituirem expressões completas, com a capacidade de designar ou referir, por si

só um objecto determinado. A completude do nome traduz o carácter igualmente

completo, saturado, do objecto, em contraste com as realidades incompletas,

insaturadas, ou quase-entidades, dos conceitos e relações que se exprimem através

de expressões insaturadas – termos conceptuais ou expressões relacionais.

A relação semântica entre o nome e o designatum é intuitiva e não exige

grande esforço de argumentação sustentar que o nome tem um referente –

pressuposto ou real. O que se torna problemático é explicar que tenha um sentido.

44

2. O sentido é o conhecimento e re-conhecimento da referência, não se

limita ao mero facto de um sinal ter uma referência. Como via de acesso à

referência, constitui o valor cognitivo, o conteúdo informativo. Isto mostra bem

como Frege associa sentido a conhecimento: o sentido é um ingrediente da

significação, que é aquilo que uma pessoa sabe quando compreende o significado

de uma palavra. Ao captar o sentido, não sabemos apenas que o nome está

associado a um objecto particular como seu referente, mas relacionamos o nome

com um modo particular de identificar um objecto como referente desse nome. O

critério de identificação do referente forma parte do sentido de um nome próprio.

Dois nomes podem ter o mesmo referente e sentidos diferentes, porque com eles

estão associados métodos diferentes de identificar algum objecto como referente

de ambos.

Considerado como o modo de determinar a referência, o sentido tem uma

certa flexibilidade, na medida em que cada um pode corresponder a diferentes

modos de determinar a referência, podendo até o sentido variar com o tempo.

Neste caso, o referente é o único que se mantém invariante, objectivo e

participável por vários locutores; o sentido perderia então o seu carácter objectivo,

comum a várias mentes e ficaria relativizado ao modo individual de captar e

determinar o objecto designado.

A noção fregeana de nome próprio abrange também as descrições

definidas – expressões complexas referenciais. Estas podem introduzir ou dar um

sentido do nome, indicando uma via para o conhecimento do seu significado.

Daqui não se infere que o nome seja o feixe de uma família de descrições. Estas

são possíveis vias ou trajectórias para o conhecimento do referente do nome.

Neste sentido é discutível que se possa assimilar a semântica de Frege à de Russell,

no que diz respeito aos nomes próprios como abreviaturas de descrições definidas

A melhor via para a noção fregeana de sentido é a sua conexão com o

conteúdo informativo, o valor cognitivo. O sentido de um nome é o conhecimento que o

locutor tem ao empregá-lo na prática linguística. Sendo, em última análise,

determinado pela referência, há sentidos dados, comuns, objectivos, dos quais

várias mentes individuais podem participar. O interesse de Frege em salientar o

lado objectivo está de acordo com as preocupações fundamentais de desinfectar a

45

Lógica de qualquer forma de psicologismo e apresentar uma teoria da linguagem

ideal.

46

3. A referência do conceito

1. O que é um conceito? Frege não o define, mas apresenta-o como o

referente de um predicado. O referente, e não o sentido. O modelo semântico da

distinção entre sentido e referência, introduzido no célebre ensaio de Frege,

aplica-se a todos os níveis do discurso – nomes, predicados, expressões relacionais

e proposições. Enquanto os nomes e as proposições são expressões saturadas, isto

é referem um objecto, os predicados e expressões relacionais são insaturadas, isto é,

contêm lugares vazios que devem ser preenchidos por nomes de objectos, no caso

dos predicados, ou argumentos, no caso das funções.

A atribuição de referência aos predicados e expressões relacionais é uma

das teses mais controversas de todo o pensamento fregeano. Considerar o

conceito – e não a sua extensão ou a respectiva classe – como o referente de um

predicado, parece inconsistente com o extensionalismo lógico de Frege; no

entanto, essa concepção do conceito como referente traduz bem o realismo

fregeano, nomeadamente no que diz respeito a este elemento central de toda a sua

obra, uma das pedras basilares de toda a sua estrutura.

O conceito é, sem dúvida, um elemento um tanto enigmático, oscilando

entre o âmbito do sentido e o da referência; por um lado, serve de eixo central da

rotação semântica do sentido à volta da referência, por outro lado situa-se

claramente como o referente das expressões incompletas. A sua ambivalência

dificulta a aplicação unívoca do par sentido/referência a todos os tipos de

expressões (nomes próprios, proposições e predicados, expressões relacionais e

funcionais). Segundo Dummett, todo o problema reside no facto de, em relação

aos nomes, Frege se ver na necessidade de defender que estes têm um sentido,

enquanto, em relação aos predicados, ter de provar que estes têm uma referência.

A própria concepção fregeana da linguagem como uma praxis consciente,

intelectual, justifica que estas expressões incompletas tenham um sentido, o

elemento cognitivo presente em qualquer acto linguístico. Mas atribuir-lhes uma

referência, parece bastante problemático. O que significa, no caso de um

predicado, afirmar que este tem uma referência ou um referente?

47

2. Frege emprega indistintamente os termos referência e referente, mas

poderíamos considerar que o primeiro termo significa o próprio processo

semântico de referir, enquanto o segundo é o correlato propriamente dito, ou o

próprio complemento directo do acto transitivo de referir. Neste sentido, atribuir

aos predicados uma referência pode ser entendido como a sua capacidade para

designar algo, o que é próprio de qualquer sinal, independentemente de qualquer

envolvimento de compromisso ontológico. Atribuir-lhe um referente implica já

considerar um correlato extra-linguístico, de algum modo existente. Tal como no

modelo nome próprio-referente, também na relação predicado-referente haveria

algo pelo qual, ou em vez do qual está o termo predicativo, como seu

representante. Nestes termos, a atribuição de um referente às expressões

incompletas adquire as proporções de um paradoxo, ou de um excesso metafísico,

como sugere Dummett30.

A semântica dos termos conceptuais levanta duas questões: 1º qual o

modelo de relação semântica entre predicados e seus referentes? Poderá este ser

analogado ao modelo proposto para o caso dos nomes próprios? 2º qual o

estatuto ontológico desses referentes dos termos conceptuais, admitindo que se trata

de um correlato extra-linguístico?

Se considerarmos a noção de referência fundamentalmente como função

semântica (semantic role), o modelo, transferido do caso dos nomes para o dos

predicados levaria apenas a admitir que a referência de um predicado é a sua

função semântica, isto é, a referência de dois predicados seria a mesma, se

puderem ser substituídos numa frase, sem alteração do seu valor de verdade. E a

questão não constituiria mais problema.

O que se torna problemático e mesmo paradoxal, é a atribuição aos

predicados de uma referência, tendo em mente o protótipo nome-portador; neste

caso a referência do predicado deverá ser algo extra-linguístico, representado pelo

termo predicativo, numa relação análoga à do nome-objecto. A elucidação deste

modelo referencial para os predicados conduz-nos ao conhecido paradoxo da

30 Frege, Philosophy of Language, p. 204.

48

insaturação. Esta noção aplica-se a expressões linguísticas quando estas contêm

pelo menos um lugar vazio onde é possível introduzir outro sinal (nome ou

expressão) que tem o efeito de completar a expressão inicial. Expressões de funções,

conceitos e relações são insaturadas porque têm um lugar vazio, a ser preenchido

pelo nome de um ou mais objectos. A insaturação parece, assim, coincidir com a

perspectiva tradicional da predicabilidade dos conceitos: estes envolvem uma

referência aos seus inferiores (indivíduos, singulares).

O alcance da noção de insaturação em Frege não se restringe, no entanto,

ao domínio da semântica: embora se exprima no carácter incompleto de certas

expressões linguísticas, Frege considera que a insaturação linguística não é senão o

reflexo da própria realidade, portanto deverá atribuir-se prioritariamente ás

próprias funções e conceitos propriamente ditos, e não apenas às suas respectivas

expressões.

3. A questão do estatuto ontológico do conceito levar-nos-ia a uma análise

do problema do nominalismo ou realismo fregeanos, não para decidir da posição

de Frege face à reiterada querela dos universais, mas para comprovar como a

resposta a dar á questão do estatuto ontológico dos conceitos e funções serve

como que de catapulta que projecta todo o pensamento fregeano em sistemas

completamente opostos: ora numa espécie de transcendentalismo, ora num

realismo de tipo platónico, ora num puro nominalismo31.

Fazendo um breve balanço da orientação geral do pensamento de Frege no

que respeita ao conceito, pode afirmar-se o seguinte: não sendo o termo de um

processo mental, algo que nasce no entendimento como as folhas nas árvores, o

conceito é tão real como os objectos, constituindo com estes, duas partes

heterogéneas da realidade. Uma dessas partes (o conceito), é sempre insaturada,

incompleta e pode ser saturada pela outra, a dos objectos. Este carácter objectivo,

realista, do conceito, apreende-se através da linguagem, cuja estrutura mostra bem

esses dois elementos complementares através das duas categorias linguísticas –

nomes próprios, e predicados, expressões funcionais e relacionais. A sua definição

31 Para uma discussão destas teses cfr Couto Soares, L. – Conceito e Sentido em Frege, pp. 241-252.

49

como o referente do predicado, significa precisamente que o conceito (como as

funções e relações) constitui uma dimensão formal da própria realidade, não

isolável, nem separável, mas tão real e objectiva como o domínio dos próprios

objectos.

50

4. Sentido e Referência das proposições: Sinn und Bedeutung e Der

Gedanke

1. Como foi referido, Frege trata em SuB exclusivamente da semântica dos

nomes próprios e se, depois das páginas dedicadas ao caso dos nomes (nomes de

objectos) estritamente falando, passa à consideração das frases completas, isso

significa precisamente que estas são também consideradas como nomes próprios.

Qual neste caso, o seu sentido e a sua referência? Frege pretende utilizar para as

frases assertivas o mesmo modelo semântico triádico do sinal-sentido-referência,

que utilizara para os nomes. E como toda a frase completa contém um

pensamento, que consiste, não no acto subjectivo de pensar, mas sim no seu

conteúdo objectivo, a argumentação de Frege partirá da pressuposição de que o

pensamento seja a sua referência. Com um argumento indirecto, prova-se que

alternando uma parte da frase por outra que possua a mesma referência, o

pensamento modifica-se, mas não a sua referência.

A questão seguinte, obviamente será a de saber se a frase tem referência

(Bedeutung), ou se tem apenas sentido (Sinn). A argumentação de Frege pode

esquematizar-se em três afirmações principais:

1) estamos interessados na referência de partes da frase; o exemplo de

Frege é: "Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em

Ítaca". No caso da poesia só interessa o sentido, não nos interessaria

tão pouco a referência de uma parte da frase; "a questão da verdade,

far-nos-ia abandonar o encanto estético por uma atitude de investigação

científica".

2) No entanto, quando se trata da ciência, não nos satisfaz o sentido, e por

isso perguntamos pela sua referência. Porquê? Porque não nos basta o

pensamento?

3) Porque nos interessa o seu valor de verdade. É a preocupação pela

verdade que "nos dirige do sentido para a referência" Como é o

interesse pelo valor de verdade de um pensamento, que nos leva a

perguntar pela referência de uma frase, Frege conclui imediatamente

que a referência de uma frase é o seu valor de verdade.

51

A argumentação um tanto artificiosa, bem como a sua rápida conclusão

estão justificadas pela pretensão de Frege de impor uma total univocidade do par

sentido-referência, tanto para a semântica dos nomes, como para a semântica das

frases, englobando assim todas as expressões completas sob a designação de

nomes próprios. Assim, tal como um nome designa ou refere um objecto, também

uma frase completa tem por referência um objecto, que neste caso será o seu valor

de verdade, o verdadeiro ou o falso.

O principal motivo da distinção, na semântica das frases entre sentido e

referência, como relação entre pensamento e valores de verdade, é o de preservar

a peculiaridade do verdadeiro, não como uma parte do pensamento, mas como

algo de completo, "subsistente" por si mesmo, independente do pensamento que a

ele se refere. Daí a identificação, aparentemente estranha, mas congruente dentro

do pensamento fregeano, do verdadeiro e do falso com objectos. Os objectos de

Frege são, ontologicamente, "entidades" completas, independentes, do ponto de

vista lógico, sujeitos de predicação e nunca predicados de outros, e as suas

expressões são também completas, saturadas, do ponto de vista semântico são

nomes próprios. No próprio escrito SuB, Frege defende esta independência do

verdadeiro em relação ao pensamento, esclarecendo que verdadeiro ou falso não

são predicados: a relação do pensamento com o verdadeiro não pode ser

analogada à relação do sujeito com o predicado, embora a linguagem corrente

possa aparentemente induzir nesse sentido. "Um valor de verdade não pode ser

parte de um pensamento, tal como não o pode ser o sol, posto que ele não é um

sentido, mas um objecto", afirma Frege.

O caso particular do discurso indirecto é examinado neste ensaio de Frege: para

evitar que nos casos de orações introduzidas por «crê que...» «diz que...», etc., se viole o

princípio da substituibilidade salva veritate, Frege introduz a noção de referência indirecta.

As palavras na oração subordinada deste tipo não têm a sua referência usual, mas referem

o seu sentido usual, e têm assim referência indirecta. Esta é a solução fregeana para os

contextos intencionais, enunciados através dos quais atribuímos atitudes proposicionais.

Como num mesmo contexto, a referência de uma expressão nunca coincide com

o seu sentido, isto obriga a introduzir também sentidos indirectos: na oração: «João crê

52

que Platão é o autor do Banquete», «Platão» tem como referência o seu sentido usual (um

modo de dar-se de Platão), e como sentido algo diferente do seu sentido usual, portanto

um sentido indirecto. Uma vez que os operadores de opacidade («julgar que...», «crer que...»,

etc.) podem reiterar-se indefinidamente, a teoria fregeana obrigaria a postular a existência

de sucessivos modos de dar-se, «encapsulados uns nos outros ad infinitum.

Mas deste modo salvaguarda Frege a distinção entre sentido e referência das

frases e, o que mais lhe interessa, a identificação da referência com o seu valor de

verdade.

2. Esta mesma distinção é mais elaborada e detalhada por Frege em “Der

Gedanke”. Aí distingue:

1) A apreensão de um pensamento (pensar, acto de pensar);

2) O conhecimento da verdade de um pensamento (o acto de julgar);

3) A expressão deste juízo (a asserção).

Na frase assertórica devem distinguir-se o conteúdo, que pode ser o

mesmo numa frase afirmativa e numa interrogativa, da asserção propriamente dita.

O primeiro é um pensamento ou pelo menos contém um pensamento; um

pensamento é para Frege algo em relação ao qual se levanta a questão da verdade

é possível exprimir um pensamento, porém, sem afirmar a sua verdade. O

pensamento é a apreensão de um facto como verdadeiro. Pensar não consiste por

isso em produzir pensamentos, mas em apreendê-los na sua estreita conexão com

a verdade. Essa é a tarefa da ciência que não consiste na criação, mas na

descoberta de pensamentos verdadeiros.

Um pensamento, conclui Frege, não pertence nem ao meu mundo interno

(recorde-se o exemplo do teorema de Pitágoras, que não é o meu teorema, mas

sim um teorema universalmente captável), nem ao mundo externo, o mundo das

coisas perceptíveis pelos sentidos.

Torna-se necessário provar a "existência" desse terceiro mundo dos

pensamentos, provar que algo como os conceitos e os pensamentos, tem alguma

forma de existência.

O que pertence a este domínio não pode ser percebido pelos sentidos, tal

como as ideias ou representações subjectivas, mas tal como as coisas do mundo

53

externo, não necessitam de um portador nem de pertencer ao conteúdo da sua

consciência. O paralelismo entre os pensamentos e os objectos físicos induz a uma

"ontologização" dos objectos abstractos, entre os quais se encontrariam os

pensamentos, e a pressupor a admissão tácita de um mundo de ideias, para além

do mundo da consciência e do mundo de objectos físicos. O texto fregeano

parece remeter inquestionavelmente para uma perspectiva platónica ou

platonizante. Note-se, porém, que Frege não introduz a noção de pensamento

assimilando-o a "objectos abstractos" - um pensamento, na "ontologia" de Frege

não é nunca um "objecto", a analogia proposta por Frege não pretende ser uma

introdução nem à sua noção de pensamento nem à de "objectos abstractos" e não

o compromete, portanto, decididamente com um mundo de ideias platónicas,

como tantas vezes tem sido sugerido.

Por outro lado, a afirmação de Frege de que não bastam as impressões

sensíveis para termos um conhecimento objectivo do mundo externo, mas é

necessária uma outra fonte de conhecimento não sensível que nos permita o

acesso ao mundo externo, tem levado alguns comentadores a uma aproximação da

célebre frase kantiana "intuições sem conceitos são cegas" que sintetiza

emblematicamente a rejeição de um puro empirismo. Aproximação um tanto

forçada, tendo em conta os diferentes enquadramentos epistemológicos e lógicos

de Kant e Frege. Não me vou aqui deter no exame das possíveis influências de

Kant no pensamento de Frege, nem numa releitura de certos textos fregeanos

para detectar a sua interpretação da epistemologia kantiana32.

3. A reiterada pergunta - o que é pensar? - surge no horizonte como uma

das questões "misteriosas" ou um enigma que recorrentemente persegue toda a

investigação filosófica. Entre a actividade do sujeito pensante e o mundo de

pensamentos que pode ser por este captado há um hiato por suturar. Entre o

pensamento linguisticamente expresso, tornado perceptível, revestido com a

32 A exposição de Frege sobre a natureza das verdades matemáticas - Os Fundamentos da Aritmética (1884) – parte da distinção kantiana entre verdades sintéticas e analíticas, e introduz um novo conceito de analiticidade diferente do de Kant em aspectos substanciais: a definição de Frege não se restringe a proposições da forma sujeito-predicado; contrariamente a Kant, Frege considera que nem todas as verdades analíticas são triviais.

54

roupagem da palavra, e o pensamento inexpresso, parece surgir uma fronteira que

faz lembrar a distinção wittgensteiniana entre o dizer e o mostrar. Como uma

auréola que rodeia toda a coisa pensada e dita, há algo que sugere o "místico", algo

que se mostra e por isso se capta, mas o captar significa também contornar, traçar

fronteiras, aprisionar, estabelecer limites. O limite, neste caso não significa

negatividade, mas é precisamente o que dá a forma.

Frege desencadeia problemas que ultrapassam o próprio âmbito do seu

pensamento e para os quais não só não apresenta soluções, como procura

contorná-los, remetendo-se para o peculiar estilo analítico que desde sempre

adoptou. O problema que sempre o ocupou foi o da fundamentação da aritmética,

que, no entanto o conduziu irremediavelmente a outras questões filosóficas que

estão formuladas, ou pelo menos implícitas, na obra de Frege e constituem parte

da herança que legou à posteridade.

55

5. Aporias do sentido

1. Não há dúvida que aquilo que Frege denominou algumas vezes como o

"reino dos sentidos" constitui uma zona problemática da realidade, nada fácil de

descrever, de caracterizar ou de localizar: um sentido pode ser captado, expresso e

comunicado a outra pessoa, no caso de se tratar de um pensamento, pode ser-lhe

atribuído um valor de verdade. Frege não quis, ao descrever estas noções

fundamentais, que pudessem ser identificadas com imagens mentais, ideias

(subjectivas, individuais) ou representações, para evitar que o mundo dos

pensamentos e dos sentidos ficasse encerrado na incomunicabilidade que Frege

atribuía àquelas. Por isso, defende a tese de que os pensamentos e os sentidos em

geral são entidades atemporais, que não estão submetidas a um processo de

mudança. Frege pretende com isto salientar que a verdade de um pensamento não

pode estar condicionada ou dependente da sua apreensão por algum sujeito

pensante. Se assim fosse, supondo que ninguém está a pensar num dado

momento, nesse mesmo momento nada haveria de verdadeiro.

O que Frege queria garantir era a fundamentação lógica e ontologicamente

válida para todos os tempos, para todas as mentes pensantes e independentemente

das circunstâncias em que fossem pensadas, de uma série de verdades que para ele

constituíam um background de conhecimento científico do qual toda a humanidade

podia participar. Esses pensamentos podem ser expressos na linguagem e

constituem os sentidos de algumas frases assertivas. Alguns textos,

particularmente "Der Gedanke" sugerem, pela sua terminologia uma interpretação

segundo a qual os sentidos são apreendidos directamente, associando as palavras

com os seus respectivos sentidos, através de uma faculdade de intuição intelectual.

Apreender o sentido das palavras e as frases seria, assim visionar essas entidades

lógicas (conceitos e pensamentos) e relacioná-las com a linguagem. Esta

perspectiva, no entanto não condiz absolutamente nada com a análise da

linguagem que Frege leva a efeito meticulosamente, como processo de elucidação

das noções cardeais da sua lógica filosófica. Dummett considera que esta

terminologia (os sentidos como entidades eternas, imutáveis, objectivas) é apenas

56

um modo de falar ("a harmless manner of speaking"), com a qual Frege pretende

simplesmente sublinhar a comunicabilidade do sentido, contra a alegada

incomunicabilidade do tone, do elemento subjectivo, da linguagem. Todas as

teorias fundamentais da lógica filosófica de Frege estão muito mais de acordo com

uma interpretação do sentido como algo que pode ser concebido como sentido de

uma expressão real; não possuímos outra faculdade para apreender sentidos, para

além da capacidade de aprender a utilizar palavras e frases. O sentido só pode ser

concebido como sentido de uma palavra ou frase, tal como a direcção o é de uma

linha.

Mesmo que Frege tenha aderido à primeira interpretação de sentido, essa

teoria não o levou a tentar analisar os sentidos por outra via que não fosse a da

linguagem. Se os considerou como um reino de "entidades independentes,

separadas", foi porque, embora seguindo sempre a via da análise da linguagem,

Frege não subscreveria nunca, em última análise uma teoria em que a linguagem se

explicasse a si mesma, ou em que o significado, o sentido fosse determinado pelo

uso.

2. Só esta íntima conexão entre sentido e linguagem – tal como a direcção

de uma linha – poderá dar um esboço de resposta às questões epistémicas que a

objectivação do pensamento suscita e ao seu estatuto quase paradoxal. Como se

pode compreender a relação de um sujeito que pensa com o pensado?

O pensamento não pertence ao conteúdo da consciência do ser pensante.

O pensamento não é noema. Apesar disso, Frege tem de reconhecer que deve

haver algo na consciência que é alcançado no pensamento. Como é que esse algo

(something in his consciousness), algo do sujeito (subjectual) se relaciona, ou se refere

ao pensamento? Qual a relação entre o pensado (enquanto conteúdo de

consciência) e pensamento (enquanto algo fora de nós, fora das consciências)?

Para Frege, esta relação consiste simplesmente em que o pensador ou o ser

pensante capta, apreende, vê ou entra em relação com o pensamento. Mas nada

mais nos diz sobre esta relação: persiste o problema de saber como é que um

pensamento pode existir, pre-existir enquanto pensamento, sem ter sido jamais

57

pensado? E como é que um ser pensante vê e reconhece um pensamento que

jamais viu, e que não procede do seu próprio acto de pensar?

A dificuldade parece provir da preocupação fregeana (sempre guiada pelo

seu antipsicologismo e anti-representacionismo), por des-subjectivizar, ou melhor,

des-mentalizar os pensamentos, para lhes assegurar uma objectividade estável,

evitar a sua redução a imagens mentais individuais e incomunicáveis, e sobretudo

garantir o carácter permanente, eterno, imutável da verdade. Para isso, Frege

julgou necessário rodear os pensamentos de uma fronteira protectora de qualquer

interferência da psicologia ou epistemologia. E localizou-os num mundo de

objectividades independentes de qualquer consciência que os apreendesse. Dando

assim origem a uma situação impossível de sustentar, a do pensamento nunca

pensado, pensamento anterior a qualquer pensamento que o pense. Esta ideia de

um pensamento nunca pensado, ou um pensamento-em-si é como um pau de

ferro...

3. A relação entre pensamento e linguagem é recorrentemente explorada

nos escritos de Frege. Mas, dado o estatuto do pensamento, até que ponto é

importante a expressão linguística para pensar? Se o sujeito vê, capta, apreende o

pensamento porque necessita da sua expressão linguística? Frege parece dar a

seguinte resposta: "Sabemos que podemos ter várias expressões para o mesmo

pensamento. A conexão de um pensamento com uma frase particular não é

necessária, mas que um pensamento do qual temos consciência esteja conectado

com uma ou outra frase é necessário para nós, seres humanos"33. Este facto diz

respeito à nossa capacidade de apreender um pensamento e não ao próprio

pensamento: "Não há contradição em supor que existam seres que possam captar

os mesmos pensamentos como nós captamos sem necessidade de os revestir

numa forma que possam ser percebidos pelos sentidos. Mas no entanto, para nós,

homens existe esta necessidade"34.

Trata-se da própria condição do modo humano de conhecer e de pensar,

que obriga necessariamente a recorrer também sempre à componente sensível,

33 Nachgelassene, 288. 34 Ibidem, 288.

58

perceptível que reaparece agora na forma de linguagem como mediação inevitável

para o pensar. Os pensamentos serão captados, apreendidos, mas ao serem

pensados por um ser da condição humana, são também articulados em linguagem,

de contrário permaneceriam puros pensamentos inexpressos, silenciosos, mudos

perante a nossa própria capacidade de pensar. Frege é bem explícito: não é o

pensamento (Gedanke) enquanto pensamento que carece em absoluto da sua

expressão linguística; é a capacidade humana de pensar, com a qual captamos o

pensamento, que para pensar necessita de articular o pensamento numa

linguagem. Mas de facto, o pensamento está contingentemente conectado com as

suas próprias expressões características, em especial com a linguagem. Esta é, no

entanto, a poiesis primordial, a actividade genuinamente mais humana, e confere

uma dimensão fáctica ao pensamento: é uma poiesis essencial e internamente

vinculada à praxis do pensamento que, sem identificar-se plenamente com ela, lhe

dá vida, penetrando-a até ao fundo. Daí o carácter intrinsecamente inteligível da

linguagem, que permite a compreensão de um livro poeirento enterrado numa

biblioteca, uma antiga inscrição caldeia ou a frase balbuciada por qualquer criança.

É possível que se dê pensamento não expresso em linguagem, o que não se

poderá dar é linguagem humana que não seja também pensamento.

59

6. Estilos de pensamento

1. A questão recorrente – o que é pensar? – volta de novo a surgir no

horizonte. A análise fregeana do estatuto dos pensamentos assenta numa metáfora

do pensar como uma espécie de tacto, ao descrevê-lo como um apreender (fassen).

Mas, ao mesmo tempo, refere-se a uma espécie de «olho mental», que nos dá uma

visão intelectual. Trata-se de um contacto directo, imediato, ou de uma visão

intelectual que parece reformular alguns dos problemas suscitados pelo termo

intuição.

O que está em causa é saber se a mera apreensão, o contacto directo da

consciência com o seu objecto – neste caso a apreensão do sentido - constitui de

facto uma forma de saber, de conhecer, ou se, pelo contrário, se encontra apenas

no limiar de qualquer processo cognitivo, ou mesmo fora dele. A questão é

recorrente em toda a filosofia do conhecimento, e tem originado diferentes

resoluções, pautadas por duas metáforas originárias que exprimem dois modelos

cognitivos: a metáfora da visão e a do tacto. A concepção fregeana oscila entre

estas duas metáforas. Ver conota simples apreensão, abertura à luz que irradia o

próprio objecto que se dá, se presentifica, mantendo-se sempre à distância. Tactear,

«agarrar» conota uma certa actividade «manipuladora» de tomar posse, de

apoderar-se e dominar o que se dá a conhecer. O primeiro é um sentido da

distância, o segundo um sentido de contacto, empregando a conhecida distinção

aristotélica.

Não nos propomos aqui responder às difíceis aporias epistemológicas que

têm a sua origem neste par de noções fugidias, se bem que inevitáveis, nem

formular uma teoria do conhecimento que pretenda resolver de um modo

definitivo essas questões. O que importa é ver como as diferentes posições

assumidas vão provocar diferentes atitudes em relação ao modo e estilo de pensar

em filosofia. Não apenas por uma questão de método, mas porque impõem um

certo estilo aos modos de proceder e de pensar: se se concede um papel

privilegiado à intuição no processo cognitivo, esta pode inspirar uma filosofia do

singular, assente numa dimensão experiencial apta para o apreender e assimilar; ou

60

uma teoria das ideias de raíz platonizante que atribui um papel preponderante à

capacidade de ver as essências, de um olhar que não se deixa aprisionar pelas

particularidade, mas que acede directamente ao que há de mais geral, ao universal

que recobre a experiência do particular. Se, no entanto, a intuição é relegada do

âmbito do conhecimento propriamente dita, por ser alvo das suspeitas

racionalistas, o estilo que domina o pensar será preponderantemente analítico,

discursivo.

2. Para muitos, a palavra intuição não é muito prestigiada. "Um subterfúgio

(shuffle) desnecessário", dizia Wittgenstein. As objecções ao recurso à intuição,

provêm geralmente do estilo e do modo analítico de pensar, e invocam vários

argumentos que salientam o carácter estrutural e complexo de todo o

conhecimento justificado. Em primeiro lugar, o carácter analítico de toda a

explicação, é algo mais do que a mera percepção de unidades ou sínteses à qual

está ligada a intuição. Nesta está ausente qualquer estrutura, apenas nos

apercebemos de uma unidade, essa sim, estruturada; este carácter simples do acto

intuitivo não permite formular uma teoria da intuição, e a variedade de sentidos

com que a palavra é usada na linguagem corrente, é bem prova disso; falar de

intuição é falar dessa grande variedade de expressões metafóricas, um tanto vagas,

que se empregam para traduzir uma forma de conhecimento não conceptual nem

judicativo. O recurso à intuição, no contexto da análise conceptual, significaria

sempre uma cedência ao psicologismo: o acto intuitivo não é um objecto teorético

que se apresente à filosofia, mas uma certa forma de apreensão cujo estudo

pertence à psicologia.

Schlick formula a mais severa crítica à evidência da intuição, assinalando-a

como um processo essencialmente diferente do conhecimento35: uma coisa é a

experiência intuitiva, directa e imediata, pela qual tomo consciência de um

conteúdo - esta mancha de cor - outra coisa é conhecer, saber o que é a essência da

cor, saber o que é o vermelho. Na intuição, observa Schlick, o objecto é

35 Cfr General Theory of Knowledge…

61

simplesmente dado, não compreendido. A intuição é mera experiência, um

contacto com o objecto dado, mas esta apreensão directa não envolve ainda

conhecimento nem compreensão. Poderia ter experiências - da dor, do prazer, da

cor ou do som - sem saber o que são, sem as compreender.

A objecção de Schlick às filosofias da intuição, poderia aplicar-se, de certo

modo à identificação do acto de pensar com uma mera apreensão ou contacto

directo com o objecto pensado. É necessário ter em conta uma distinção

fundamental entre Kennen (correspondente a acquaintance) e Erkennen (re-

conhecimento): é a confusão entre estas duas noções bem distintas que está na

raíz de toda a filosofia da intuição. O conhecimento propriamente dito implica

reconhecimento (Erkennen), não basta «tocar» as coisas para as conhecer, é

necessário pensar, o que significa movimentar-se intelectualmente, relacionar,

ordenar, comparar. "A ciência - escreve Schlick - não nos «põe em contacto» (make

us acquainted) com os objectos; ensina-nos a compreender, a abarcar tudo o que já

conhecemos (what we are acquainted), e isso é que significa saber. Conhecimento

(Acquaintance) e saber (knowledge) são conceitos tão fundamentalmente diferentes

que até o discurso corrente possui duas palavras para os designar.

O processo cognitivo, segundo Schlick, estabelece uma relação entre vários

objectos, uma conexão com algo de complexo, e não se pode identificar de modo

algum com a apreensão (grasping) de um objecto simples e único. Por isso, para

Schlick o «Eu sou» exprime apenas um facto, não conhecimento. O «ego sum»

cartesiano, a existência dos conteúdos da consciência, não necessita de qualquer

fundamento. Não se trata de conhecimento, mas de um conjunto de factos que

existem apenas, não requerem nenhuma confirmação através da auto-evidência;

não são certos nem incertos, são simplesmente, dão-se como mera facticidade. Não

faz qualquer sentido procurar uma garantia da sua existência, da qual temos apenas

experiência, mas não conhecimento. Este exige, não apenas a percepção ou

experiência de si mesmo, mas o juízo que envolve relacionação, identificação,

incorporação dessa percepção em experiências anteriores, e compreensão de uma

estrutura complexa. Schlick rejeita terminantemente a perspectiva segundo a qual

o conhecimento é uma espécie de representação intuitiva que refigura ou retrata as

coisas na consciência. Se o processo cognitivo fosse deste tipo não poderia trazer

62

os seus objectos à consciência sem os alterar, e falharia radicalmente o seu

desideratum, o de manter as coisas inalteráveis tal como são em si mesmas.

Conhecer consiste num acto que, efectivamente deixa as coisas intocáveis e

inalteráveis: a diferença entre a imagem ou representação e o signo ou designação

radica precisamente no facto de a primeira ser totalmente incapaz de refigurar um

objecto tal como é, visto que se trata sempre de uma imagem a partir de uma certa

perspectiva ou posição, de uma representação de um sujeito; o signo, pelo

contrário, designa o objecto deixando-o tal como é. O conhecimento intuitivo não

pode nunca realizar o seu último objectivo, dar-nos as coisas exactamente como

são em si mesmas.

3. O estilo do pensamento de Wittgenstein depois do Tractatus procede do

reconhecimento dos impasses e ilusões de uma visão iintuitiva e total e da

inviabilidade da análise. Por isso, ele representa o início de uma outra

«transformação» do pensamento filosófico.

O método de investigação assente na convicção da possibilidade de uma

análise última, intimamente conectada com os pressupostos do Tractatus, é

claramente posto de lado por Wittgenstein, que nas Investigações compara este estilo

de pensar a alguém que tentasse encontrar a autêntica alcachofra arrancando-lhe,

uma a uma, todas as folhas36. Nalguns casos, os mal-entendidos poderão dissipar-

se com uma substituição de uma forma de expressão por outra, designando este

processo como uma «análise» das nossas formas de expressão37. Mas isto pode

criar em nós o mito de uma clarificação total, “uma forma perfeitamente

decomposta da expressão” – uma das teses em que assentava toda a lógica do

Tractatus. Esse «sonho da análise» é totalmente ilusório: julgamos que as nossas

formas de expressão estão essencialmente por analisar, como se houvesse nelas

algo oculto que necessitasse de ser esclarecido, reconduzido a um estado de

exactidão perfeita38. Não é essa a meta da «investigação gramatical»: esta não

pressupõe conceitos absolutamente determinados, com fronteiras nítidas e

36 Cfr § 164. 37 Cfr § 90. 38 Cfr § 91.

63

exactas, mas move-se no terreno impreciso e vago da prática linguística e do uso

corrente de expressões que cumprem a sua finalidade tal como se dão. O próprio

conceito de jogo é um «conceito de contornos esfumados», uma «imagem difusa»

que não é possível substituir por uma nítida; mas é muitas vezes a difusa que mais

precisamos39. A ideia de que toda a proposição deve ter um sentido definido não

passa de um preconceito que impede uma visão clara, como um par de óculos

sobre o nariz, através dos quais vemos tudo, sem que nos ocorra nunca tirá-los40.

Esta foi a prisão do ideal analítico que condicionou toda a visão do mundo à luz

da lógica do Tractatus: o que Wittgenstein propõe é fazer rodar completamente o

eixo da investigação, tomando como ponto de referência as nossas necessidades

reais41. Para tal, não é a exactidão total que se deve procurar, expressa numa visão

intuitiva terminal (Einsichtt), mas uma visão de conjunto (Übersicht) – “não

ambiciono exactidão, mas uma visão sinóptica”.

O primeiro ideal perseguido no Tractatus consistia em alcançar uma visão

sub specie aeternitate – uma visão atemporal do todo, gloriosa, omnisciente e

definitiva, que revelasse o que é o mundo, não o como é o mundo. Ver o todo

significa ver a totalidade de conexões de cada objecto, a plena verdade das coisas

que só a lógica pode proporcionar, numa perspectiva à distância, de fora, com o

mundo todo como horizonte, na qual cada objecto é visto em conjunto com espaço

e tempo, e não no espaço e tempo42.

A visão sinóptica, panorâmica, que Wittgenstein procurará mais tarde,

exige situar-se dentro do mundo, no meio dos conceitos e suas expressões, ao

mesmo nível, em vez de fora deles, ou de algum modo, transcendendo-os. E é no

meio do labirinto das ruas de uma cidade e dos caminhos tortuosos de uma

floresta, que o filósofo tentará traçar «esboços paisagísticos» que exprimam os

enredados processos, múltiplos e variados, da nova maneira de ver e de pensar.

39 Cfr § 71. 40 Cfr § 103. 41 Cfr § 108. 42 Cfr Notebooks, 7.10.16.

64

TEXTO DE APOIO

Gottlob Frege O Pensamento: uma investigação lógica.

Tradução de “Der Gedanke” in Kleine Schriften, Hildesheim, G. Olms Verlag, 1990.

Assim como a palavra «belo» reenvia para a estética e a palavra «bom» para

a ética, a palavra «verdadeiro» reenvia para a lógica. Efectivamente, todas as

ciências têm a verdade como objectivo; mas a lógica trata-a de um modo

totalmente diferente. Ela reporta-se à verdade um pouco como a física se reporta

ao peso ou ao calor. Descobrir verdades é tarefa de todas as ciências, mas é à

lógica que compete conhecer as leis do ser verdadeiro. Emprega-se a palavra «lei»

num duplo sentido. Se falarmos de leis morais ou políticas, queremos dizer

prescrições que devem ser seguidas, com as quais nem sempre os acontecimentos

estão de acordo. As leis da natureza constituem o elemento geral dos

acontecimentos naturais, às quais estes sempre se adequam. É mais neste sentido

que falo de leis do ser verdadeiro. Com certeza que não se trata aqui de um

acontecimento, mas de um ser. Destas leis que regem o ser verdadeiro nascem

prescrições para a opinião, o pensamento, o juízo, o raciocínio. Assim, pode

também falar-se de leis do pensamento. Mas há aqui o perigo de confundir coisas

diferentes. A expressão «leis do pensamento» é talvez assimilada a «leis da

natureza», entendendo-as como o aspecto geral dos eventos psíquicos do

pensamento. Uma lei do pensamento seria, neste sentido, uma lei psicológica. E

assim poder-se-ia pensar que a lógica trata doprocesso psíquico do pensamento e

das leis psicológicas às quais se submete. A tarefa da lógica seria, neste caso, mal

compreendida, pois a verdade não teria o lugar que lhe é devido. O erro e o

65

preconceito têm a sua causa, tal como o conhecimento correcto. A opinião falsa e

a opinião verdadeira ocorrem, uma e outra, segundo leis psicológicas. Uma

derivação a partir destas leis ou uma explicação dos processos psíquicos, que

conduzem a uma asserção, nunca podem substituir uma prova do objecto a que se

refere a asserção. Poderão as leis lógicas ter também um papel nestes processos

psíquicos? Não quero discutir isso, mas quando se trata da verdade, não basta a

possibilidade. É possível que algum elemento não lógico tome parte no processo,

desviando a opinião do caminho da verdade. Só poderemos decidir isso depois de

ter discernido as leis do ser verdadeiro; mas provavelmente, poderemos então

dispensar a derivação e explicação dos processos psíquicos pelas suas leis naturais,

se for importante decidir se a opinião à qual estes conduzem, é justificada. Para

eliminar qualquer confusão e evitar que a fronteira entre a psicologia e lógica se

apague, atribuo à lógica a tarefa de descobrir as leis do ser verdadeiro, e não as da

asserção ou do pensamento. O significado da palavra «verdadeiro» será explicado

pelas leis do verdadeiro.

Mas primeiro tentarei traçar aproximadamente os contornos do que

entendo por verdadeiro nesta conexão. Deste modo serão excluídos outros usos

desviados desta palavra. Não se empregará aqui o termo no sentido de «veraz» ou

«sincero», nem no sentido que lhe é dado em questões de arte, quando se trata da

verdade na arte, quando a verdade é considerada o objectivo da arte, ou quando se

fala da verdade de uma obra de arte ou de um sentimento verdadeiro. A palavra

«verdadeiro» é também confrontada com uma outra palavra para significar que

esta deve ser tomada no seu sentido próprio, não adulterado. Este emprego está

também fora do caminho que seguimos aqui; o que trataremos é da verdade cujo

reconhecimento constitui o objectivo da ciência.

A palavra «verdadeiro», gramaticalmente aparece como um qualificativo.

Por isso, convida-nos a delimitar mais estreitamente a esfera na qual a verdade

pode ser afirmada, e na qual, sobretudo, se põe a questão da verdade. Deparamo-

nos com a verdade afirmada de quadros, representações, proposições e

pensamentos. É chamativo que esta enumeração reuna coisas visíveis e audíveis e

coisas não perceptíveis pelos sentidos. Isto indica que se dão desvios de sentido.

Com efeito! Um quadro, enquanto perceptível pela vista e pelo tacto, é realmente

66

verdadeiro? E uma pedra, uma folha, não são verdadeiras? É evidente que não

chamaríamos a um quadro verdadeiro, a menos que houvesse aí uma intenção. O

quadro deve representar alguma coisa. A representação não

é tão-pouco verdadeira em si mesma, mas só tendo em conta uma intenção, uma

ideia que deva conformar-se a qualquer coisa. Pode-se, portanto pressupôr que a

verdade consiste na correspondência de um quadro com aquilo que pretende

representar. A correspondência é uma relação. Mas o emprego da palavra

«verdadeiro» contradi-lo, pois não é nenhum termo relativo, não contém qualquer

referência a uma outra coisa à qual algo deva corresponder. Se eu não souber que

um determinado quadro pretende representar a catedral de Colónia, não sei com

que o devo comparar para decidir da sua verdade. Uma correspondência, além

disso, só pode ser perfeita se as coisas correspondentes coincidirem e não forem

duas coisas distintas. Diz-se que é possível estabelecer a autenticidade de uma nota

de banco, comparando-o estereoscopicamente com uma nota autência. Mas seria

ridículo tentar comparar estereoscopicamente uma peça de ouro com uma nota de

vinte marcos. Só seria possível comparar uma ideia com uma coisa se a coisa fosse

também uma representação (Vorstellung ). E se a primeira correspondesse

perfeitamente á segunda, coincidiriam. Ora, isso é precisamente o que não se

pretende quando se define a verdade como a correspondência de uma

representação com alguma coisa de real. Pois é essencial que o objecto real e a

representação sejam diferentes. E então, não há correspondência completa nem

verdade completa. Nada seria absolutamente verdadeiro; o que é apenas meia

verdade não é verdade. A verdade não pode tolerar o mais ou o menos. Ou pode?

Não se poderia admitir que se dá a verdade no caso de existir uma

correspondência sob determinado aspecto? Mas qual? Que deveríamos fazer para

decidir se algo é verdadeiro? Teríamos que investigar se é verdade que, por

exemplo, uma representação e um objecto real se correspondem no referido

aspecto. E então enfrentar-nos-íamos com uma questão do mesmo género da

precedente, e o jogo poderia recomeçar. Portanto, a tentativa de explicar a verdade

como correspondência fracassa. E qualquer outra tentativa de definir a verdade

fracassa também. Com efeito, numa defeinição, apresentaria algumas

características próprias do verdadeiro, e na sua aplicação a qualquer caso

67

particular, tratar-se-ia sempre de saber se é verdade que essas características se

dão. Assim cai-se num círculo. Por conseguinte, parece que o conteúdo da palavra

«verdadeiro» é único e indefinível.

Quando se diz de um quadro que é verdadeiro, não se está a enunciar

propriamente uma propriedade pertencente apenas a este quadro,

independentemente do resto das coisas, mas pelo contrário, sempre se tem em

vista uma outra coisa, e pretende-se dizer que o quadro corresponde, de certo

modo a essa coisa. "A minha representação corresponde à catedral de Colónia" é

uma proposição e está em causa a verdade desta proposição. Assim, o que

impropriamente se designa por verdade de um quadro ou de uma representação, é

reconduzido à verdade das proposições. A que é que se chama uma proposição?

Uma série de sons; mas só se tiverem sentido, o que não significa que qualquer

série de sons com sentido seja uma proposição. Quando dizemos que uma

proposição é verdadeira, pensamos propriamente no seu sentido. Daqui se segue

que a questão da verdade se põe em geral, ela diz respeito ao sentido da

proposição. O sentido de uma proposição é uma representação? De qualquer

modo, ser verdadeiro não consiste na correspondência deste sentido com qualquer

outra coisa, caso contrário a questão da verdadereiterar-se-ia até ao infinito.

Sem pretender dar uma definição, chamo pensamento (Gedanke) algo sobre

o qual se pode pôr a questão da verdade. Incluo também entre os pensamentos o

que é falso, tanto como o que é verdadeiro43. Direi, portanto: o pensamento é o

sentido de uma proposição, sem com isto querer afirmar que o sentido de cada

proposição é um pensamento. O pensamento, imperceptível aos sentidos em si

mesmo, resveste-se com a roupagem sensível da proposição e torna-se assim

compreensível. Dizemos que a proposição exprime um pensamento.

O pensamento é algo imaterial e todas as coisas sensíveis e materiais são

excluídas do domínio no qual se levanta a questão da verdade.A verdade não é

43 De modo semelhante, tem-se dito que “um juízo é algo que é ou verdadeiro ou falso”. De facto, emprego o termo ‘pensamento’ mais ou menos no sentido que ‘juízo’ tem nos escritos de lógica. Espero que se tornará claro por que é que escolho ‘pensamento’. Essa explicação foi objecto de algumas críticas pelo facto de fazer uma divisão entre juízos verdadeiros e falsos – talvez a menos significativas de todas as divisões entre juízos. Mas não compreendo que seja um erro lógico o facto de apresentar uma divisão no curso da explicação. Quanto ao carácter significativo da divisão, veremos talvez que temos de a manter com alguma consideração e, como disse, é a palavra ‘verdadeiro’ que indica a direcção da lógica.

68

uma propriedade que corresponde a um género particular de impressões sensíveis.

Distingue-se, portanto daquelas propriedades que designamos com as palavras

«vermelho», «amargo», »cheirando a lilaz». Mas não vemos nós que o sol nasce e

ao mesmo tempo que isso é verdade? O facto de o sol nascer não é um objeto que

envie raios até aos nossos olhos, não é uma coisa visível como o próprio sol.

Vemos que é verdade que o sol nasceu a partir de impressões sensíveis. Mas o

facto de ser verdadeiro não é uma propriedade perceptível pelos sentidosTambém

reconhecemos que uma coisa é magnética na base de impressões sensíveis, se bem

que esta propriedade, tal como a verdade, não corresponde a um tipo particular de

impressões sensíveis. Neste aspecto estas propriedades têm algo em comum. Mas,

para reconhecer que um corpo tem propriedades magnéticas, necessitamos das

impressões sensíveis. Enquanto, se descubro ser verdade que neste momento não

sinto qualquer cheiro, não o faço a partir de impressões sensíveis.

Pode, todavia, dar-se o caso de pensar que não podemos reconhecer que

uma coisa tem uma certa propriedade sem ao mesmo tempo pensar que é verdade

que essa coisa tem essa propriedade. Assim a cada propriedade de uma coisa está

ligada uma propriedade de um pensamento, nomeadamente a de ser verdadeiro.

Note-se também que a proposição «sinto um cheiro a violeta» tem o mesmo

conteúdo que a proposição «é verdade que sinto um cheiro a violeta». Parece,

portanto, que nada se acrescentou ao pensamento com a atribuição da

propriedade de ser verdadeiro. E, no entanto, não é um resultado de grande

importância, quando um cientista, depois de uma longa hesitação e uma penosa

investigação pode finalmente dizer «a minha suposição é verdadeira"? O

significado da palavra «verdadeiro»parece ser único no seu género. Não estaremos

aqui a lidar com algo que não pode de modo algum, no sentido usual, ser

denominado como propriedade? Apesar desta dúvida, quero exprimir-se segundo

o sentido habitual, como se a verdade fosse uma propriedade, até encontrar algo

mais exacto.

Afim de elaborar mais precisamente o que chamo «pensamento»,

distinguirei vários tipos de proposições44. Não se pretenderá negar sentido a uma

44 Não emprego a palavra "proposição exactamente no sentido gramatical, que inclui também as proposições subordinadas. Uma proposição subordinada, tomada separadamente, não tem

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frase imperativa, mas este sentido não é do género que possa levantar a questão da

verdade.Por isso não chamarei pensamento ao sentido de uma proposição

imperativa. Do mesmo modo serão excluídas as frases que exprimem desejos ou

pedidos. Só estão em causa as proposições nas quais comunicamos ou afirmamos

algo. Mas não incluo incluo nestas as exclamações, nas quais damos livre curso aos

nossos sentimentos, nemgemidos, suspiros, risos, a menos que por convenção

particular, elas comuniquem algo. Mas que dizer das proposições interrogativas?

Numa questão empregamos uma frase incompleta, que só obtém um verdadeiro

sentido quando acrescentamos a resposta ao que é perguntado. As perguntas (nas

quais figura um pronome interrogativo), ficarão aqui fora da nossa consideração.

Outrotanto não se passa com as proposições interrogativas completas. Esperamos

ouvir um «sim» ou um «não». A resposta «sim» significa o mesmo que uma

proposição afirmativa, pois com ela, o pensamento que estava já contido na

proposição interrogativa é apresentado como verdadeiro. Assim, é possível, para

cada proposição interrogativa construir uma afirmativa correspondente. Uma

exclamação não pode ser considerada, por este motivo, como uma comunicação,

visto que não se pode formar nenhuma proposição interrogativa correspondente.

As proposições interrogativas e as afirmativas contêm o mesmo pensamento; mas

as afirmativas contêm algo mais: a asserção. A proposição interrogativa também

contém algo mais, a pergunta. Portanto, numa proposição afirmativa é necessário

distinguir duas coisas: o conteúdo que ela tem em comum com a correspondente

proposição interrogativa, e a asserção. A primeira é o pensamento, ou pelo menos

contém o pensamento. É possível, portanto, exprimir o pensamento sem o

afirmar como verdadeiro. Numa proposição afirmativa, os dois elementos estão

tão intimamente ligados que é fácil passar por alto a sua independência. Podemos,

assim distinguir:

1. a apreensão de um pensamento - pensar

2. o reconhecimento da verdade de um pensamento - julgar45

sempre um sentido sobre o qual se possa pôr a questão da verdade, enquanto o complexo proposicional ao qual pertence, tem esse sentido. 45 Parece-me que pensamento e juízo não têm sido distinguidos adequadamente até agora. Talvez a linguagem seja enganadora. Na verdade não temos nas proposições afirmativas nenhum elemento correspondente á asserção, mas o facto de algo estar a ser afirmado radica na forma assertórica. Em

70

3. a manifestação deste juízo - asserção

Quando formulamos uma questão, realizamos o primeiro acto. Em

qualquer processo científico é possível distinguir estas etapas: primeiro apreende-

se um pensamento, que pode ser expresso por uma proposição interrogativa; e,

depois de uma investigação adequada, este pensamento é finalmente reconhecido

como verdadeiro. O reconhecimento da verdade é expresso numa proposição

afirmativa. Não é necessário para tal, empregar o termo "verdadeiro". E mesmo

quando o empregamos a força propriamente assertiva não reside neste, mas na

forma da proposição afirmativa; se a proposição perder a sua força afirmativa, o

termo "verdadeiro" não lha pode devolver. É o que acontece quando não estamos

a falar seriamente. Assim como o trovão do teatro não é senão um pseudo-trovão,

e o combate do teatro não é senão um pseudo-combate, assim a afirmação do

teatro não é senão uma pseudo-afirmação. É um mero jogo ou fantasia. Ao

representar, o actor não afirma nada, nem mente, mesmo que diga algo

convencido da falsidade das suas palavras. No caso da poesia, os pensamentos

expressos, apesar de ocorrerem na forma de uma proposição afirmativa, não são

apresentados como verdadeiros, embora possam solicitar o juízo e o assentimento

da parte do auditor. Portanto, é sempre necessário averiguar se o que é

apresentado na forma de uma proposição afirmativa, contém de facto uma

asserção. A resposta será negativa se faltar a necessária seriedade. É irrelevante,

neste caso, o emprego do termo "verdadeiro". Esta é a razão pela qual nada se

acrescenta a um pensamento quando se lhe atribui a propriedade de verdadeiro.

Uma proposição afirmativa contém, além de um pensamento e a asserção,

uma terceira componente, à qual não diz respeito a afirmação. Esta deve actuar

sobre o sentimento, o estado de ânimo do ouvinte, ou despertar a sua imaginação.

Trata-se, por exemplo, de palavras como «infelizmente» e «graças a Deus». Estes

elementos das frases ocorrem com mais frequência na poesia, mas estão

praticamente ausentes na prosa. Na matemática, física, química são mais raras do

alemão temos a vantagem de as proposições principais e as subordinadas se distinguirem pela ordem das palavras. A este respeito, deve-se notar que uma oração subordinada podem conter também uma asserção, e muitas vezes nem a oração principal nem a subordinada exprimem um pensamento completo por si mesmas mas só a frase complexa.

71

que numa exposição histórica. As chamadas humanidades estão mais próximas da

poesia e são, por isso, menos científicas do que as ciências rigorosas, tanto mais

áridas quanto mais exactas. A ciência rigorosa, com efeito, visa a verdade e só a

verdade. Por isso, nenhum dos elementos de uma proposição que estão fora do

alcance da força assertiva pertence à exposição científica, mas são por vezes

difíceis de evitar, mesmo vendo o perigo que envolvem. Quando se trata de

abordar o que o pensamento não pode apreender, através de tentativas, estes

elementos justificam-se plenamente. Quanto mais exacta for uma exposição

científica, menos se fará notar a nacionalidade do seu autor e mais fácil será a sua

tradução. Em contrapartida, os elementos da linguagem para os quais quero

chamar a atenção, tornam muito difícil a tradução da poesia, senão mesmo

impossível quase sempre uma perfeita tradução. Com efeito, as línguas

distinguem-se sobretudo por estes elementos que constituem, em grande parte, o

valor poético.

Não faz nenhuma diferença para o pensamento que eu empregue a palavra

«cavalo», ou «corcel» ou «ginete» ou «égua». A força assertiva não diz respeito

àquilo em que estas palavras diferem. O que se designa por tonalidade, perfume,

luminosidade numa poesia, o que se exprime pela cadência e pelo ritmo, não

pertence ao pensamento.

Muitos dos aspectos da linguagem têm a função de ajudar a compreensão

do ouvinte, como por exemplo a acentuação de parte de uma frase pela entoação

ou a construção. Pensemos em palavras como «ainda» ou «já». Na proposição

«Alfredo ainda não chegou», dizemos que »Alfredo não chegou» e, ao mesmo

tempo sugerimos que se espera a sua chegada, mas sugere-se simplesmente; Não

se pode dizer que o sentido da proposição seja falso pelo facto da chegada de

Alfredo não ser esperada. A palavra «mas» difere da palavra «e», significando que o

que se segue está em oposição com o que se poderia esperar segundo o que foi

dito anteriormente. Estas sugestões no discurso não constituem qualquer

diferença no pensamento. Pode-se transformar uma proposição passando o verbo

da forma activa para a forma passiva, enquanto o objecto no acusativo passa para

sujeito. Da mesma forma, o dativo pode mudar para nominativo, substituindo ao

mesmo tempo «dar» por «receber». Certamente que estas transformações não são

72

equivalentes em todos os aspectos, mas elas não afectam o pensamento, não

afectam o que é verdadeiro ou falso. Se, de uma maneira geral, afirmássemos a

inadmissibilidade destas transformações, então impediríamos toda e qualquer

investigação lógica mais profunda. É tão importante negligenciar as distinções que

não afectam o cerne da questão, como fazer distinções que dizem respeito ao que

é essencial. Mas o que é essencial depende da finalidade que se tem em vista. A

quem interessa a beleza da linguagem, o que é indiferente para um lógico, pode

parecer justamente como o mais importante.

Assim, muitas vezes o conteúdo de uma frase ultrapassa o pensamento que

ela exprime. Mas também acontece frequentemente o contrário: as meras palavras

, que podem ser captadas na escrita ou no gramogone, não bastam para exprimir o

pensamento. O tempus praesens emprega-se de dois modos diferentes: em primeiro

lugar para dar uma indicação temporal, em segundo lugar para elimiar qualquer

restrição de tempo, quando a intemporalidade ou a eternidade fazem parte

integrante do pensamento. Pense-se, por exemplo nas leis da matemática. Não se

diz nunca qual dos casos é que ocorre, mas isso tem de se adivinhar. Se o praesens

dá uma indicação temporal, é necessário saber quando é que a frase foi empregue,

para apreender correctamente o seu pensamento. O tempo do uso da frase é,

portanto, parte da expressão do pensamento. Se alguém quiser dizer hoje o

mesmo que exprimiu ontem empregando a palavra «hoje», tem que a substituir

por «ontem». Se bem que o pensamento seja o mesmo, a sua expressão verbal

deve ser diferente, para compreender a modificação de sentido produzida pela

diferença dos momentos em que se fala. Dá-se o mesmo caso com palavras como

«aqui», «lá». Em todos estes casos, a mera expressão verbal apresentada na escrita,

não é a expressão completa do pensamento; para a sua correcta compreensão, é

necessário conhecer certas condições que acompanham o seu emprego, que

servem para a expressão do pensamento. Podem incluir-se também aqui o apontar

com o dedo, gestos com as mãos, olhares. A mesma palavra «eu» como parte de

um enunciado, exprime pensamentos diferentes na boca de pessoas diferentes, e

pode dar-se o caso de umas serem verdadeiras, outras falsas.

A ocorrência da palavra «eu» numa proposição dá lugar a várias questões.

73

Considere-se o seguinte caso. O Dr. Gustav Lauben diz: «Eu fui

ferido».Leo Peter ouve-o e conta alguns dias mais tarde: «O Dr. Gustav Lauben

foi ferido». Esta proposição exprime o mesmo pensamento que o que foi

pronunciado pelo Dr Lauben? Suponhamos que Rudolf Lingens esteve presente

quando o Dr Lauben falou, e que compreende agora o relato de Leo Peter. Se se

tratar realmente do mesmo pensamento pronunciado pelo Dr Lauben e por Leo

Peter, Rudolf Lingens, que tem um conhecimento perfeito da língua alemã e que

se recorda do que o Dr Lauben disse na sua presença, deverá saber imediatamente,

ao ouvri Leo Peter, que se trata da mesma coisa. Mas o conhecimento da língua

alemã é algo de diferente quando se trata de nomes próprios. Pode acontecer que

só poucas pessoas associem um pensamento particular com a proposição «O Dr

Lauben foi ferido». Neste caso, para compreender completamente a proposição, é

necessário conhecer o vocábulo «Dr. Gustav Lauben». Se Leo Peter e Rudolph

Lingens entendem os dois que o«Dr Lauben é o mesmo e único médico que mora

numa casa bem conhecida de ambos, então compreendem do mesmo modo a

proposição »o Dr. Gustav Lauben foi ferido», associando-lhe o mesmo

pensamento. Mas pode acontecer que Rudolph Lingens não conheça

pessoalmente o Dr Lauben e não saiba que foi o próprio Dr Lauben que disse

recentemente «Eu fui ferido». Neste caso, Rudolph Lingens não pode saber que se

trata do mesmo acontecimento. Direi por isso neste caso: o pensamento expresso

por Leo Peter não é o mesmo que o que foi dito pelo Dr Lauben.

Suponhamos, além disso, que Herbert Garner sabe que o Dr. Gustav

Lauben nasceu a 13 de Setembro de 1875 em N.N. e que isto não se aplica a

nenhuma outra pessoa; em contrapartida, ele não sabe onde mora agora o Dr.

Lauben, nem nada mais a seu respeito. Por outro lado, Leo Peter não sabe que o

Dr. Lauben nasceu a 13 de Setembro de 1875 em N.N. Sendo assim, Hervert

Garner e Leo Peter ao empregar o nome próprio «Dr Gustav Lauben» não falam a

mesma linguagem, porque, embora de facto se refiram à mesma pessoa com este

nome, não sabem que o fazem. Herbert Garner não associa á proposição »o Dr.

Lauben foi ferido» o pensamento que Leo Peter quis exprimir com ela. Para evitar

o inconvniente de Herbert Garner e Leo Peter não falarem a mesma linguagem,

admitirei que Leo Peter emprega o nome próprio «Dr Lauben» e Herbert Garner,

74

por seu lado, emprega o nome próprio «Gustav Lauben». Ora é possível que

Herbert Garner considere verdadeiro o sentido da proposição «O Dr Lauben foi

ferido», enquanto, enganado por falsas informações, pense ser falso o sentido da

proposição «Gustav Lauben foi ferido».Tendo em conta estas suposições, os dois

pensamentos são diferentes.

Sendo assim, com um nome próprio, o seu significado depende de como o

que quer que seja que ele refere nos é apresentado. Isso pode dar-se de diferentes

modos, e a cada um desses modos corresponde um sentido particular de uma

proposição que contenha um nome próprio. Claro que os diferentes pensamentos

resultantes da mesma proposição, coincidem quanto ao seu valor de verdade; se

um for verdadeiro, todos serão verdadeiros, se um for falso, todos serão falsos. É

necessário, no entanto, reconhecer a sua diversidade. Deve-se requerer

expressamente que, a cada nome próprio esteja associado um só modo segundo o

qual se dá o que este nome refere. Muitas vezes não tem importância que este

requisito seja ou não respeitado; mas nem sempre é assim.

Cada pessoa é apresentada a si mesma de um modo particular e originário,

totalmente diferente do modo como é apresentado a qualquer outro. Assim,

quando o Dr Lauben pensa que foi ferido, fundamenta-se cetamente neste modo

originário no quel ele se apresenta a si mesmo. E só o próprio Dr Lauben é capaz

de apreender este pensamento assim determinado. Mas ele deseja comunicá-lo a

alguém. Não pode comunicar um pensamento que só ele próprio é capaz de

apreender. Se ele diz « «eu fui ferido», deve empregar o «eu» num sentido que os

outros possam também compreender, por exemplo no sentido de «aquele que vos

fala neste instante»; deste modo ele faz com que as condições associadas ao seu

emprego sirvam para a expressão do pensamento46.

46 Não estou aqui na feliz situação de um mineralogista que mostra aos seus ouvintes um cristal de rocha. Não posso pôr um pensamento nas mão dos meus leitores, pedindo-lhes que o examinem minuciosamente de todos os lados. Tenho de me contentar com apresentar ao leitor um pensamento, em si mesmo imaterial, revestido de uma forma linguística sensível. O carácter figurativo da linguagem levanta dificuldades. O sensível impõe-se sempre e torna a expressão metafórica e, por isso, imprópria. Daí nasce um conflito com a linguagem e eu vejo-me obrigado a ocupar-me ainda da linguagem, embora este não seja propriamente o meu problema. Espero ter conseguido tornar claro aos meus leitores o que quero dizer com pensamento.

75

Todavia há aqui uma dúvida. É de facto o mesmo pensamento o que

primeiro exprimiu aquele e agora exprime este?

A pessoa que não teve ainda contacto com a filosofia só conhece o que

pode ver, tocar, em suma, perceber pelos sentidos: árvores, pedras, casas, e está

convencida que qualquer outra pessoa pode ver e tocar a mesma árvore, a mesma

pedra que ela vê ou toca. É evidente que nenhum pensamento se inclui nestas

coisas. Poderá um pensamento relacionar-se com as pessoas do mesmo modo que

uma árvore?

Até o não filósofo reconhece facilmente um mundo interno diferente do

mundo externo, um mundo de impressões sensíveis, de criações da sua

imaginação, de sensações, de emoções, de sentimentos e disposições, um mundo

de inclinações, desejos e decisões. Brevemente, reunirei tudo isto, à excepção das

decisões, sob a designação de "representação".

Os pensamentos pertencerão a este mundo interno? São representações?

Não são, evidentemente decisões. Em que é que se distinguem as representações

das realidades do mundo externo?

Em primeiro lugar: as representações não podem ser vistas nem tocadas,

nem cheiradas ou saboreadas ou ouvidas.

Dou um passeio com um amigo. Vejo um prado verde e tenho então uma

impressão sensível do verde. Tenho-a, mas não a vejo.

Em segundo lugar: as representações são algo que se tem. Uma pessoa tem

sensações, sentimentos, disposições, inclinações, desejos. Uma representação que

alguém tem, pertence ao conteúdo da sua consciência.

O campo e as suas rãs, o sol que as ilumina, estão aí, mesmo que eu não as

olhe; mas a impressão sensível do verde só existe em mim; sou o seu portador.

Parece-nos absurdo pensar que uma dor, uma disposição, um desejo possam

vagabundear pelo mundo independentemente de um portador. É impossível uma

experiência sem alguém que a experimente. O mundo interno pressupõe a pessoa

a quem pertence esse mundo interno.

Em terceiro lugar: as representações têm necessidade de um portador.

Enquanto as coisas do mundo externo são independentes.

76

O meu companheiro e eu estamos convencidos que vemos os dois o

mesmo prado; mas cada um de nós tem uma impressão sensível particular do

verde. Vejo um morango entre as folhas verdes do morangueiro. O meu

companheiro que é daltónico se apercebe do verde. A impressão de cor que ele

recebe do morango não se distingue sensivelmente daquela que recebe da folha.

Será que o meu companheiro vê a folha verde como vermelha, ou vê o morango

vermelho como verde? Ou v~e ambas cores como uma só cor, que eu próprio

não conheço de todo? Estas questões são irresolúveis, realmente não têm sentido.

Pois quando a palavra «vermelho» não significa uma propriedade das coisas, mas

caracteriza supostamente impressões sensíveis pertencentes à minha consciência,

só é aplicável no domínio da minha consciência; neste caso é impossível comparar

a minha impressão sensível com a de outra pessoa. Seria necessário, para isso

reunir numa mesma consciência uma impressão sensível pertencente a uma

consciência e uma impressão sensível pertencente a outra consciência. Mesmo que

fosse possível fazer desaparecer uma representação de uma consciência e, fazê-la

surgir ao mesmo tempo noutra consciência, permaneceria de pé a questão de saber

se se trata da mesma representação. É de tal modo essencial a cada uma das

minhas representações o facto de serem o conteúdo da minha consciência, que

qualquer representação de outra pessoa, enquanto tal, é diferente da minha. Mas

não seria possível que as minhas representações, todo o conteúdo da minha

consciência fosse ao mesmo tempo o conteúdo de uma consciência mais ampla,

talvez divina? Sem dúvida, mas só se eu próprio fizesse parte da consciência

divina. Mas seriam elas, nesse caso, as minhas representações? Seria eu o seu

portador? Esta hipótese ultrapassa de tal forma os limites do entendimento

humano, que é aconselhável prescindir da sua consideração. De qualquer modo, é

impossível ao ser humano, comparar as representações de outra pessoa com as

suas próprias. Eu colho o morango, seguro-o entre os meus dedos. Agora o meu

companheiro também o vê, o mesmo morango; mas cada um de nós tem a sua

própria representação. Nenhuma outra pessoa tem a minha representação, embora

muitas pessoas possam ver a mesma coisa. Nenhuma outra pessoa tem a minha

dor. Alguén pode sentir simpatia para comigo; mas, mesmo assim, a minha dor

77

pertence-me a mim e a sua simpatia pertence-lhe a ele. Nem ele tem a minha dor,

nem eu a sua simpatia.

Em quarto lugar: cada representação tem apenas um portador; dois

homens não podem ter a mesma representação.

Doutro modo, a representação existiria independentemente desta ou

daquela pessoa. Aquela tília é uma representação minha? Ao empregar nesta

pergunta a expressão «aquela tília», antecipo já a resposta; pois com esta expressão

quero referir-me a algo que eu vejo e que outros podem também olhar e tocar.

Temos então duas possibilidades. Se a minha intenção é preenchida quando me

refiro a alguma coisa com a expressão «aquela tília», então o pensamento expresso

na proposição «aquela tília é uma representação minha» deve evidentemente ser

negado. Se, pelo contrário, a minha intenção falhar, se eu apenas penso ver sem

realmente ver, se por isso a referência de «aquela tília» for vazia, então estou

perdido, embora sem o saber nem querer, no domínio da poesia. Neste caso nem

o conteúdo da proposição « aquela tília é representação minha», nem o conteúdo

da proposição «aquela tília não é representação minha» são verdadeiros; nos dois

casos, tenho um afirmação à qual lhe falta o objecto. Portanto, a única solução

será recusar responder á pergunta, pela simples razão que o conteúdo da

proposição «aquela tília é uma representação minha» não passa de poesia. Claro

que tenho uma representação, mas não é a ela que me refiro com as palavras

«aquela tília». Poderia dar-se o caso de alguén pretender designar efectivamente

uma das suas representações com as palavras «aquela tília»; esse alguém seria então

o portador daquilo que quer designar com estas palavras; mas não veria aquela

tília, nem mais ninguém a poderia ver nem ser seu portador.

Volto agora à questão: o pensamento é uma representação? Se o

pensamento que eu exprimo no teorema de Pitágoras pode ser reconhecido tanto

por outros como por mim próprio, não pertence ao conteúdo da minha

consciência, não sou o seu portador; e, no entanto, posso reconhecê-lo como

sendo verdadeiro. Se não fosse o mesmo pensamento que tanto eu como qualquer

outro consideramos como o conteúdo do teorema de Pitágoras, não se deveria

dizer "o teorema de Pitágoras", mas "o meu teorema de Pitágoras", "o seu

teorema de Pitágoras". E seriam diferentes; porque o sentido pertence

78

necessariamente à própria proposição. O meu pensamento seria então o conteúdo

da minha consciência e o pensamento do outro seria o conteúdo da sua

consciência. Poderia dar-se o caso de o sentido do meu teorema de Pitágoras ser

verdadeiro, enquanto o sentido do outro falso? Afirmei que a palavra "vermelho"

só se emprega na esfera da minha consciência, se não se refere a uma propriedade

das coisas, mas caracteriza uma das minhas impressões sensíveis. Sendo assim, as

palavras "verdadeiro" e "falso", tal como as entendo, também poderiam ser

empregues apenas no domínio da minha consciência, se não dizem respeito a

alguma coisa da qual não sou o portador, mas têm por finalidade caracterizar o

conteúdo da minha consciência. Assim, a verdade restringir-se-ia ao conteúdo da

minha consciência e seria duvidoso que algo de semelhante ocorresse em qualquer

outra consciência.

Se todos os pensamentos tivessem necessidade de um portador, e

pertencessem ao conteúdo da sua consciência, então cada pensamento seria desse

mesmo portador, e não existiria ciência comum a vários indivíduos, na qual

pudessem trabalhar em conjunto. Talvez eu tenha a minha ciência, nomeadamente

um conjunto de pensamentos de que sou portador, e outra pessoa tenha a sua.

Cada um de nós ocupar-se-ia dos conteúdos da sua própria consciência. Não seia

possível, neste caso, qualquer contradição entre as duas ciências, e seria totalmente

inútil discutir a questão da verdade, tão inútil ou mesmo ridícula como se dois

homens discutissem para saber se uma nota de dez marcos é autêntica, estando

cada um a pensar na nota que tem no seu bolso e compreendendo a palavra

"autêntico" num sentido próprio, pessoal. Se alguém considera que os

pensamentos são representações, o que reconhece como verdadeiro será, na sua

perspectiva, o conteúdo da sua consciência e não diria respeito a mais ninguém. E

se me ouvisse defender a opinião que o pensamento não é representação, não a

poderia discutir, pois, na realidade, isso não lhe diria respeito.

Daqui parece resultar que os pensamentos não são nem coisas do mundo

externo nem representações.

É necessário admitir um terceiro domínio. O que lhe pertence, assemelha-

se às representações, enquanto não pode ser percebido pelos sentidos, mas

também às coisas enquanto não tem necessidade de um portador, do qual fosse o

79

conteúdo de consciência. Tal é o caso, por exemplo, do pensamento expresso no

teorema de Pitágoras, intemporalmente verdadeiro, verdadeiro

independentemente do facto de alguém o considerar como verdadeiro. Não

necessita de nenhum portador. É verdadeiro, não quando é descoberto pela

primeira vez, mas como um planeta já em interacção com outros planetas mesmo

antes de ser observado por alguém47.

Mas julgo ouvir uma objecção singular. Admiti várias vezes que esta

mesma coisa que vejo pode ser observada por outra pessoa. Como seria isso

possível se tudo fosse apenas um sonho? Se eu tivesse apenas sonhado que

passeava na companhia de outra pessoa, se tivesse apenas sonhado que o meu

companheiro viu o prado verde como eu vi, se tudo fosse mero teatro

representado na cena da minha consciência, então seria duvidosa a existência de

qualquer coisa do mundo externo. Talvez o domínio das coisas seja vazio e não

vejo nem coisas nem homens, mas tenho apenas representações das quais sou o

portador. Sendo uma representação algo que, tal como o meu sentimento de

fadiga, não pode existir independentemente, tão-poouco pode ser um homem,

nem olhar o mesmo campo verde comigo, nem ver o morango que seguro na

mão. É completamente incrível que eu tenha apenas o meu mundo interno, em

vez de tudo o que me rodeia, onde julgo mover-me e actuar. E, no entanto seria

esta a consequência inevitável da proposição segundo a qual só a minha

representação pode ser objecto da minha consciência. O que é que se seguiria a

esta proposição, se fosse verdadeira? Existiriam outros seres humanos? É possível,

mas nada saberia àcerca deles. Porque um homem não pode ser uma

representação minha e, se a proposição for verdadeira, tão-pouco poderá ser

objecto da minha consciência. Assim ficariam destituídas de qualquer fundamento

todas as considerações em que admitia que algo pudesse ser tanto um objecto para

outra pessoa como para mim próprio; pois mesmo que se desse essa possibilidade,

eu nada saberia sobre isso. Ser-me-ia impossível distinguir entre aquilo de que sou

o portador e aquilo de que não sou o portador.Ao julgar que algo não é uma

47 Alguém vê uma coisa, tem uma ideia, apreende ou pensa um pensamento. Quando se apreende ou pensa um pensamento, este não é criado, mas apenas apenas passa a estar numa certa relação com o que já existia – uma relação diferente da de ver uma coisa ou ter uma ideia.

80

representação minha, estaria já a torná-lo objecto do meu pensamento e, portanto,

da minha representação. Nesta perspectiva, existe um campo verde? Talvez, mas

não seria visível para mim. Se um campo não é uma representação minha não

pode, segundo a nossa proposição, ser objecto da minha consciência. Mas se for

uma representação minha, então será invisível, pois as representações não são

visíveis. Posso, na verdade, ter a representação de um prado verde, mas ele não é

verde, visto que não há representações verdes. Continuando com este argumento,

existe um projéctil que pese 100Kg? Talvez; mas nada posso saber dele. Se um

projéctil não for uma representação minha, de acordo com a nossa proposição,

não pode ser objecto da minha consciência, do meu pensamento. Mas se um

projéctil fosse uma representação minha, não teria peso. Posso ter uma

representação de um projéctil pesado. Esta contém, como representação parcial, a

de peso. Mas esta representação parcial não é propriedade da representação

completa, como tão-pouco a Alemanha é uma propriedade da Europa. Portanto,

segue-se o seguinte:

Ou a proposição, segundo a qual só a representação pode ser objecto da

minha consciência, é falsa, ou tudo o que sei e conheço se limita ao domínio das

minhas representações, à cena da minha consciência. Neste caso, não teria senão

um mundo interno e eu nada saberia dos outros seres humanos.

É estranho como, segundo estas considerações, as oposições se invertem

umas nas outras. Pensemos por exemplo num especialista da fisiologia dos

sentidos. Como convém a um investigador das ciências, está longe de pensar que

as coisas que julga ver e tocar, não são senão representações suas. Pelo contrário,

ele crê que nas impressões sensíveis encontra os testemunhos mais seguros das

coisas que existem totalmente independentes dos seus sentimentos,

representações, pensamentos, coisas que não têm qualquer necessidade da sua

consciência. Está tão longe de considerar as fibras nervosas ou as células

ganglionares como um conteúdo da sua consciência, que se inclinará, pelo

contrário, a pensar que a sua consciência é que depende das fibras nervosas e das

células ganglionares. Defende que os raios luminosos que se refractam nos olhos,

encontram as terminações do nervo óptico e produzem uma modificação, um

estímulo. Algo se transmite através das fibras nervosas às células ganglionares.

81

Outros processos se sucedem no sistema nervoso que dão origem a impressões de

cor e estas associam-se para produzir talvez o que chamamos a representação de

uma árvore. Entre a árvore e a minha representação insere-se uma série de

processos físicos, químicos, fisiológicos. Estes processos estão imediatamente

conectados com a minha consciência, mas, segundo parece, são apenas processos

internos do meu sistema nervoso; e cada espectador da árvore tem os seus

próprios processos particulares no seu sistema nervoso particular. Ora, os raios

luminosos, antes de penetrarem nos meus olhos, podem ser reflectidos por um

espelho e serem projectados como se viessem de um lugar por trás do espelho. Os

efeitos sobre os nervos ópticos e tudo o que se segue produzir-se-ão exactamente

como se os raios tivessem partido de uma árvore situada detrás do espelho e se

tivessem propagado em linha recta até ao olho. Deste modo obter-se-á finalmente

uma representação da árvore, embora não exista nenhuma árvore tal como se nos

representa. Também uma luz refractada pode produzir, por intermédio do olho e

do sistema nervoso, uma representação à qual não corresponde nada. O estímulo

do nervo óptico nem precisa realmente de ser provocado pela luz. Quando cai um

raio nas proximidades, julgamos ver chamas, embora tenha sido impossível ver o

próprio raio. O nervo óptico é de algum modo estimulado pela corrente eléctrica

produzida no nosso corpo a seguir ao relâmpago. Se o nervo óptico for

estimulado por este meio, como seria estimulado por raios luminosos

provenientes de chamas, julgaríamos então ver chamas. Depende apenas da

estimulação do nervo óptico, é indiferente a sua origem.

Podemos dar mais um passo. Realmente, esta estimulação do nervo óptico

não se dá imediatamente, mas é apenas uma suposição. Julgamos que uma coisa

independente de nós estimula um nervo e dá origem a uma impressão sensível;

mas, estritamente falando, nós experimentamos apenas o fim deste processo, que

irrompe na nossa consciência. Não poderia esta impressão sensível, esta sensação

que atribuímos a uma excitação nervosa, ter outras causas, tal como a própria

excitação nervosa pode ter a sua origem de várias maneiras? Se chamamos ao que

se dá à nossa consciência representação, então só experimentaremos realmente

representações, não as suas causas. E se o cientista quiser rejeitar tudo o que é

mera hipótese, só lhe restam representações; tudo se reduz a representações, até

82

os raios luminosos, as fibras nervosas e as células ganglionares das quais partiu.

Assim arruina afinal os fundamentos da sua própria construção. Tudo é

representação? Tudo precisa de um portador, sem o qual nada existiria?

Considerei-me a mim mesmo como portador das minhas representações, mas não

sou eu também uma representação? Parece-me que estou numa cadeira longa, que

vejo duas pontas de botas engraxadas, a parte da frente de umas calças, um casaco,

botões, parte de um jaquetão, sobretudo as mangas, duas mãos, alguns pêlos de

barba, o contorno indistinto de um nariz. Eu próprio sou toda esta associação de

impressões visuais, este conjunto de representações? Parece-me que vejo também

uma cadeira. É uma representação. Na verdade, não me distingo radicalmente

dela; não serei eu próprio uma mera associação de impressoes sensíveis, uma

representação? Mas onde está então o portador destas representações? Como

posso eu isolar uma das minhas representações para a instituir como portadora

das outras? Porque terá de ser a representação que arbitrariamente chamo eu? Não

poderia do mesmo modo escolher a representação a que sou tentado chamar

cadeira? Sobretudo, para que é necessário um portador das representações? Esse

portador seria sempre essencialmente diferente das representações que alguém

tem, seria um ser independente sem necessidade de qualquer portador alheio. Se

tudo for representação, não haverá nenhum portador das representações. E assim,

uma vez mais, tenho a experiência de uma transformação de proposições nas suas

opostas. Se não há nenhum portador de representações, não há tão-pouco

qualquer representação; pois as representações necessitam de um portador, sem o

qual não podem existir. Se não houver monarca, não há súbditos. A dependência

que sou induzido a atribuir à sensação, em contraste com aquele que sente,

desaparece se deixar de haver um possuidor. Neste caso, o que eu chamava

representações, passarão a ser objectos independentes. E não há nenhuma razão

para conceder uma posição especial a esse objecto a que chamo eu.

Mas será isto possível? Poderá dar-se uma experiência sem alguém que a

experimente? Que seria todo este jogo sem um espectador? Poderá haver uma dor

sem alguém que sinta essa dor? Ser sentido está necessariamente ligado com a dor,

e alguém que a sinta está necessariemtne ligado com o ser sentido. Mas então há

algo que não é uma representação minha e, no entanto, pode ser objecto da minha

83

consciência, do meu pensamento: eu próprio sou dessa natureza. Ou poderei eu

ser parte do conteúdo da minha consciência, enquanto uma outra parte será talvez

uma representação da Lua? Terá isto lugar quanto julgo que eu estou a olhar para a

Lua? Então esta primeira parte teria uma consciência, e parte do conteúdo dessa

consciência seria de novo eu próprio. E assim por diante. Contudo é certamente

inconcebível que eu esteja dentro de mim mesmo deste modo como numa infinita

cadeia de caixas, pois então não haveria apenas um eu, mas uma infinidade deles.

Eu não sou uma representação minha; e quando afirmo algo sobre mim mesmo,

por exemplo que não estou a sentir nenhuma dor neste momento, o meu juízo diz

respeito a slgo que não é um conteúdo da miinha consciência, não é uma

representação minha, nomeadamente eu próprio. Portanto, aquilo sobre o qual

afirmo algo não é necessariamente uma representação. Talvez alguém possa

objectar: se penso que não tenho nenhuma dor neste momento, a palavra “eu”

não corresponde a algo no conteúdo da minha consciência? E não é isso uma

representação? É possível. Uma determinada representação na miinha consciência

pode estar associada à representação da palavra “eu”. Mas neste caso esta é uma

representação entre outras, e eu não sou o seu possuidor como o sou das outras

representações. Tenho uma representação de mim próprio, mas não sou idêntico a

ela. O que é conteúdo da minha consciência, a minha representação, deverá ser

claramente distinto do que é um objecto do meu pensamento. Assim, a tese

segundo a qual todo o que pertence ao conteúdo da minha consciência pode ser

objecto do meu conhecimento, do meu pensamento, é falsa.

Parece-me perfeitamente óbvio reconhecer outro homam como um

possuidor independente de representações. Tenho uma representação dele, mas

não a confundo com ele próprio. E se afirmo alguma coisa sobre o meu irmão,

não o afirmo àcerca da representação que tenho do meu irmão.

O doente que tem uma dor é dono dessa dor, mas o médico que o está a

tratar e reflecte sobre a causa dessa dor não é o possuidor da dor. Não imagina

que possa aliviar a dor anestesiando-se a si próprio. Na mente do médico poderá

haver uma representação correspondente à dor do doente, mas não é a dor, e não

é isso que o médico está a tentar eliminar. O médico poderá consultar outro

médico. É necessário então distinguir: primeiro, a dor cujo possuidor é o doente;

84

segundo, a representação desta dor do primeiro médico; terceiro a representação

da dor do segundo médico. Esta última representação pertence de facto ao

conteúdo da consciência do segundo médico, mas não é o objecto da sua reflexão;

é antes uma ajuda para a reflexão, tal como um desenho. Os dois médicos um

objectivo comum de pensamento a dor do doente, que eles próprios não

possuem. Assim se pode ver que não só uma coisa, mas também uma

representação pode ser um objecto comum do pensamento de pessoas que não

têm a representação.

Parece-me que deste modo a questão se torna inteligível. Se o homem não

pudesse pensar nem captar como objecto do seu pensamento, algo de que ele não

é o possuidor, teria um mundo interno, mas não um mundo externo. Não poderá

isto radicar num erro? Estou convencido que a representação que associo ás

palavras “o meu irmão” corresponde a algo que não é representação miinha e

sobre o qual posso dizer alguma coisa. Não poderei estar enganado nisto? Tais

erros acontecem. Contra a nossa vontade, caímos na ficção. É verdade! O passo

com o qual conquisto um mundo exterior para mim próprio expõe-me ao risco de

cometer um erro. Aqui manifesto-me contra uma outra diferença entre o meu

mundo interno e o mundo externo. Não posso duvidar que tenho uma impressão

visual de verde, mas não é assim tão certo que veja uma folha de lima. Portanto,

contrariamente às opiniões mais generalizadas, encontramos certeza no mundo

interno, enquanto a dúvida nunca nos abandona nas nossas excurões pelo mundo

externo. Mas em muitos casos é, no entanto, difícil distinguir a probabilidade da

certeza, por isso podemos presumir que fazemos juízos sobre as coisas do mundo

externo. E temos de admitir esta presunção mesmo correndo o risco de errar, se

não quisermos expor-nos a perigos muito maiores.

Como resultado destas últimas considerações, comprovo o seguinte: nem

tudo o que pode ser objecto do meu conhecimento é uma representação. Sendo

possuidor de representações, eu próprio não sou uma representação. Nada me

impede de reconhecer outros homens como possuidores de representações, tal

como eu próprio. E, dada a possibilidade, a probabilidade é muito grande, tão

grande que na minha opinião jã não se pode distinguir da certeza. De outro modo,

haveria uma ciência da história? Não seriam nulas todas as teorias morais, todas as

85

leis? Que restaria da religião? As próprias ciências naturais só poderiam ser

consideradas meras fábulas, como a astrologia e a alquimia. As reflexões que

expus, pressupondo que existem homens além de mim, que podem tomar a

mesma coisa como objecto da sua consideração, do seu pensamento, mantêm-se

seguras, com toda a sua força.

Nem tudo é representação. Assim, posso admitir que o pensamento é

independente de mim, e os outros poderão apreendê-lo tal como eu. Posso

admitir a existência de uma ciência na qual trabalham e investigam muitas pessoas.

Não somos portadores dos pensamentos como o somos das nossas

representações. Não temos um pensamento do mesmo modo que temos uma

impressão sensível, mas tão-pouco vemos um pensamento como vemos uma

estrela. Será oportuno escolher uma expressão particular e a palavra "apreender"

parece ser a mais adequada48. Uma capacidade mental peculiar, o poder de pensar,

deve corresponder à apreensão do pensamento. Pensar não é produzir

pensamentos, mas apreendê-los. O que designei por pensamento relaciona-se

estreitamente com a verdade. O que considero como verdadeiro, julgo-o como

verdadeiro independentemente do facto de o reconhecer como verdadeiro e do

facto de pensá-lo. O facto de alguém pensar não tem nada a ver com a verdade

desse pensamento. "Factos, factos, factos!" grita o cientista quando pretende

insistir na necessidade de um fundamento certo para a ciência. O que é um facto?

Um facto é um pensamento que é verdadeiro. Mas o cientista não admitirá que o

fundamento certo da ciência seja algo que depende dos estados de consciência

variáveis dos homens. O trabalho da ciência não consiste numa criação, mas numa

descoberta de pensamentos verdadeiros. O astrónomo pode empregar uma

verdade matemática no estudo de acontecimentos passados há muito tempo, que

se deram quando não havia ainda ninguém na terra que tivesse reconhecido essa

verdade. Pode fazê-lo porque a verdade de um pensamento é intemporal. Esta

verdade não surge com a sua descoberta.

48 A expressão ‘apreender’ é tão metafórica como ‘conteúdo de consciência’. A natureza da linguagem não nos permite nada mais. O que seguro na minha mão pode certamente ser considerado como o conteúdo da minha mão; mas é o conteúdo da minha mão de um modo totalmente diferente e mais estranho do que o são os ossos e os músculos que constituem a mão e a cujas tensões está sujeita.

86

Nem tudo é representação. Se assim fosse, a psicologia conteria em si

própria todas as ciências, ou pelo menos seria juíz supremo sobre todas as

ciências. Se assim fosse, a psicologia regeria a lógica e as matemáticas. Mas

subordiná-las à psicologia seria o maior equívoco com respeito às matemáticas.

Nem a lógica nem as matemáticas têm a tarefa de investigar as mentes e os

conteúdos de consciência dos quais o homem individual é portador. Talvez se

pudesse atribuir-lhes de preferência a investigação da mente: da mente, não das

mentes.

A apreensão de um pensamento pressupõe alguém que o apreenda, que

pensa. Este alguém é portador do acto de pensar, mas não do pensamento. Se

bem que o pensamento não pertença ao conteúdo da consciência do homem que

pensa, é, no entanto necessário que na consciência alguma coisa vise o

pensamento. Alguma coisa, que não deve confundir-se com o próprio

pensamento. Por exemplo, Algol em si mesmo é diferente da representação que

alguém possa ter de Algol.

O pensamento não pertence nem ao mundo interno como uma

representação, nem ao mundo externo das coisas materiais, perceptíveis.

Esta consequência, embora concludente a partir do exposto, talvez não seja

aceite sem oposição. Penso que, a algumas pessoas parecerá impossível obter

informação sobre algo que não pertence ao mundo interno, a não ser através da

percepção sensível. De facto, a percepção sensível é geralmente considerada a

fonte mais certa, até a única fonte de conhecimento sobre tudo aquilo que não

pertence ao mundo interno. De qualquer modo dois homens não têm as mesmas

impressões sensíveis, enbora possam ter semelhantes. As impressões sensíveis por

si só não nos revelam o mundo externo. Talvea exista um ser que tenha só

impressões sensíveis sem ver nem tocas as coisas. Ter impressões sensíveis não é

ver as coisas. Como é possível eu ver a árvore exactamente no local onde a vejo?

É evidente que depende das impressões sensívels e no modo particular como se

dão, porque vejo com dois olhos. Em cada uma das duas retinas origina-se, no

sentido físico, uma imagem particular. Outra pessoa vê a árvore no mesmo local.

Tem também duas imagens retinianas mas estas diferem das minhas. Temos que

presumir que estas imagens retinianas determinam as nossas impressões. Em

87

consequência as impressões visuais que temos, não só não são as mesmas, mas são

bem diferentes uma da outra. E no entanto, movemo-nos no mesmo mundo

externo. Ter impressões visuais é certamente necessário para ver coisas, mas não

suficiente. O que é precisa acrescentar não é algo sensível. E é isto precisamente o

que nos abre o mundo externo; de facto sem este factor não sensível cada um

permaneceria fechado no seu mundo interno. Talvez, dado que o factor decisivo

reside no não-sensível, em algo não sensível, mesmo sem a cooperação das

impressões sensíveis, isso possa conduzir-nos para fora do mundo interno e

permitir-nos captar pensamentos. Além do mundo interno, teríamos que

dsintinguir o mundo externo próprio das coisas sensíveis, perceptíveis e o

domínio do que é perceptível não sensivelmente. Precisamos de algo não sensível

para reconhecer estes dois domínios; para a percpeção sensível das coisas,

necessitamos também de impressões sensíveis, e estas pertencem inteiramente ao

mundo interno. Assim a distinção entre os modos como uma coisa e um

pensamento são dados consiste em algo que não pertence a nenhum destes

domínios, mas ao mundo interno. Portanto não posso achar esta distinção tão

grande que em função dela, se tornasse impossível que se desse um pensamento

que não pertencesse ao mundo interno.

É certo que o pensamento não é aquilo que habitualmente chamamos real.

O mundo do real é um mundo no qual uma coisa actua sobre outra, a modifica,

recebe ela mesma reacções e é por sua vez alterada. Tudo isto se processa no

tempo. É difícil admitir como real o que é intemporal e inalterável. O pensamento

sofre alterações ou é intemporal? O pensamento que exprimimos com o teorema

de Pitágoras é, sem dúvida, intemporal, eterno, inalterável. Mas não haverá

pensamentos que hoje são verdadeiros e falsos dentro de seis meses? Por exemplo

o pensamento que esta árvore está coberta de folhas verdes, daqui a seis meses

será falso. Não; não se trata do mesmo pensamento. As palavras "esta árvore está

coberta de folhas verdes", por si só não bastam para a sua expressão, porque o

momento em que se empregam faz parte integrante do pensamento. Sem a

determinação do tempo dado no momento em que se empregam as palavras, não

se dá um pensamento completo: ou seja, não há pensamento nenhum. Só a

proposição contendo a determinação temporal, completa em tudo, pode exprimir

88

um pensamento. E se for verdadeira, não é verdadeira apenas hoje ou amanhã,

mas é verdadeira independentemente do tempo. O tempo presente em 'é

verdadeiro' não se refere ao tempo do locutor, mas a um tempo da

intemporalidade, se é permitida a expressão. Quando empregamos a simples

forma afirmativa, evitando a palavra 'verdadeiro', é necessário distinguir duas

coisas: a expressão do pensamento e a asserção. A determinação do tempo que a

proposição pode conter pertence apenas à expressão do pensamento, enquanto a

verdade, cujo reconhecimento reside na forma da proposição afirmativa, é

intemporal. É verdade que os mesmos termos, devido à instabilidade da

linguagem, podem adquirir outro sentido com o passar do tempo, e exprimir

outro pensamento. Mas esta mudança diz respeito apenas ao aspecto linguístico.

E no entanto, que valor poderia haver para nós no que é eternamente

inalterável, que está para além de qualquer realidade efectiva e não exerce qualquer

efeito sobre nós? Algo sem qualquer tipo de efectividade seria para nós

completamente irreal e inacessível. O própio intemporal, se é alguma coisa para

nós, deverá de algum modo estar implicado na temporalidade. O que seria um

pensamento para mim se nunca o tivesse apreendido? Ao apreender um

pensamento, estabeleço uma relação mútua com ele. Pode acontecer que pense

hoje algo que não pensei ontem. Deste modo a temporalidade estrita é certamente

anulada. Mas estamos inclinados a distinguir entre propriedades essenciais e

inessenciais, e a reconhecer como intemporal tudo aquilo que só é alterado nas

suas propriedades inessenciais. Uma propriedade de um pensamento será

inessencial se consistir, ou for uma consequência do facto de esse pensamento ser

apreendido por um pensador.

Como actua um pensamento? Pelo próprio facto de ser apreendido e

tomado como verdadeiro. É um processo no mundo interno de um ser pensante

que pode ter consequências neste mundo interno, e estas, penetrando na esfera da

vontade, manifestar-se-ão no mundo externo. Se eu apreender o pensamento que

enunciamos no teorema de Pitágoras, a consequência pode ser que eu admita a sua

verdade e que a aplique tomando uma decisão que dê origem às acelerações da

massa. Assim as nossas acções são habitualmente preparadas pelo pensamento e

juízo. Deste modo, os pensamentos podem ter uma influência mediata sobre os

89

movimentos da massa. A acção de uma pessoa sobre outra é, em geral mediatizada

pelos pensamentos. Alguém comunica um pensamento. Como ocorre isto?

Originando modificações no mundo externo comum que, apreendidas por outra

pessoa, são a ocasião para apreender um pensamento e tomá-lo por verdadeiro.

Os grandes acontecimentos da história mundial poderiam alguma vez ter ocorrido

sem a comunicação de pensamentos? E no entanto inclinamo-nos a considerar os

pensamentos como irreais porque parecem não ter qualquer influência sobre os

acontecimentos, enquanto o pensar, o julgar, o expirmir, o compreender, todos

estes actos, são factos da vida humana. Um martelo parece muito mais real, se

comparado com um pensamento. O processo de empunhar um martelo é bem

diferente de comunicar um pensamento. O martelo produz uma transmissão de

força para outro, é agarrado, submetido a uma pressão, a sua densidade altera-se

assim como a posição de algumas das suas partes. Nada disto acontece com o

pensamento. Ao comunicar um pensamento, este não deixa de estar sob o

domínio de quem o comunica; no fundo o homem não tem qualquer poder sobre

o pensamento.

Quando se apreende um pensamento, este apenas produz modificações no

mundo interno de quem o apreende, contudo permanece intocável na sua

verdadeira essência; estas modificações só afectam propriedades inessenciais. Falta

aqui algo que observamos em qualquer acontecimento natural: a acção recíproca.

Os pensamentos não são de modo nenhum irreais, mas a sua realidade é de

natureza completamente diferente da realidade das coisas. E a sua efectividade tem

origem no acto de quem pensa, sem o qual seriam totalmente inúteis, pelo menos

tanto quanto posso ver. E, no entanto, quem pensa não cria os pensamentos, mas

tem que tomá-los como são. Podem ser verdadeiros sem serem apreendidos, e

mesmo então não são totalmente irreais, se pelo menos puderem ser apreendidos,

tornando-se, assim, eficazes.

90

III. Semântica e Pragmática

1. Um dos desafios que se apresentam à epistemologia contemporânea é o

de reformular uma teoria do juízo e da proposição que reconcilie duas noções que

a modernidade tem pensado de forma disjuntiva – a de verdade e a de sentido.

Esta disjunção pode rever-se na bipolarização entre as noções de correspondência

e coerência que representam duas fortes alternativas para formular uma teoria da

verdade. No entanto, a própria controvérsia entre correspondencionalistas e

coerentistas, é reveladora das aporias que nenhuma das duas noções logram

resolver cabalmente. A lição a tirar é talvez a da necessidade de recorrer a uma

outra dimensão – prática, espontânea, reflexiva – para sair do impasse. A

semântica da verdade parece ser inseparável da pragmática. A conclusão que

alguns tiram do argumento de infinito regresso proposto por Frege para mostrar a

impossibilidade de definir verdade em termos de correspondência, é precisamente

esta: uma teoria da verdade tem de admitir a espontaneidade do juízo.

2. Com efeito, autores como Frege, Wittgenstein, Austin, Tugendhat,

pensam a estrutura da enunciação partindo precisamente de um conteúdo

proposicional sobre o qual recai uma força assertiva associável ao assentimento,

noções relevantes para a compreensão da semântica da verdade. Este acento

tónico na dimensão pragmática e reflexiva do acto de julgar e sua expressão

linguística encontra-se antecipado na teoria do juízo evidente de Brentano,

entendido como posição e não síntese predicativa e como locus privilegiado da

verdade. Arquitectonicamente fundada nas noções de assentimento, força

assertiva e evidência, esta reformulação preludia a actual pragmática e a exploração

do carácter performativo da linguagem.

91

3. A Sprachkritik brentaniana acentua precisamente a intervenção da prática

linguística e do uso dos termos pelo locutor, para a realização efectiva de qualquer

acto judicativo. A dimensão prática revela-se na própria expressão proposicional,

que não se limita a significar algo, mas determina a própria realidade: a asserção é

um acto de fala e todas as proposições declarativas têm, nesta perspectiva, um

carácter pragmático, que os signos linguísticos não podem senão mostrar, exprimir. O

juízo como posição excede a própria materialidade e factualidade da linguagem,

exibindo o carácter intensional.

A Crítica da Linguagem de Brentano permite-lhe elucidar as noções de

juízo, asserção (e negação), verdade e evidência, libertando-as da camisa de forças

imposta até então pela concepção da linguagem como “imagem” ou espelho do

pensamento. A relevância desta crítica é imprescindível para evitar equívocos

sérios no modo de entender o nosso próprio aparato conceptual e as nossas

categorias linguísticas. Na sua Sprachkritik, Brentano diagnosticou a principal causa

dos problemas da semântica: a convicção de que entre palavras e conceitos

existiria um ordenamento simétrico exacto e rigoroso. Esta convicção fomenta a

procura do significado de cada palavra em «algo» que está aí, como um objecto por

ela designado. A denúncia reiterada de Brentano do erro de pensar que a

linguagem é uma cópia exacta do pensamento está em perfeita sintonia com as

críticas que, nos últimos anos, autores muito diversos, têm dirigido contra as teses

tradicionais da semântica, chamando a atenção para o carácter comunicacional da

linguagem e para a inviabilidade de deduzir as formas de pensamento a partir das

suas expressões linguísticas.

4. Interessar-nos-á destacar e caracterizar algumas noções estreita e

familiarmente ligadas ao problema da verdade, que indiciam precisamente uma

dimensão, não estritamente cognitiva, mas antropológica, na medida em que não

convocam apenas o entendimento ou a razão, mas o sujeito de acção espontânea.

Nomeadamente, as noções de asserção (negação), afirmação de existência,

convicção, assentimento, crença. As respectivas «gramáticas», exploradas através

de uma analítica aproximada de uma fenomenologia da prática linguística,

92

permitem a visão panorâmica (empregando a expressão wittgensteiniana) da rede

de conexões entre diversos binómios que se entrecruzam – linguagem e mundo da

vida, linguagem-uso, linguagem-acção.

5. O breve exame da reformulação da teoria do juízo em Brentano e da sua

revisão da noção de verdade como correspondência apresentar-se-á como uma

antecipação da concepção dos actos de fala introduzida por Austin e explorada

por Searle. A convicção de que a linguagem não é apenas enunciação, descrição,

mas releva de uma dimensão prática e é, em sentido próprio acção, tem as suas

raízes no pensamento de Wittgenstein e norteia a pragmática contemporânea. Não

se trata de substituir a semântica pela pragmática, mas de reconhecer que a

primeira não é viável se não tiver em conta os contextos do uso e das práticas

sociais. O que caracteriza a pragmática é o facto de ter em conta os contextos

linguísticos e extra-linguístico, assim como a intenção do locutor e o efeito que

produz – duas idéias mestras antecipadas na crítica linguística de Brentano.

Considera, portanto, factores extra-linguísticos e formas de produzir significado

que não estão contidos no domínio da semântica, acrescentando ao estudo da

linguagem a sua perspectiva particular. Uma das propostas básicas, preconizadas,

entre outros por Grice, foi a de que a pragmática trataria o problema do

significado prescindindo das condições de verdade. Não há dúvida que parte do

significado veritativo depende de factores de natureza pragmática. Mas a questão

que se põe é a de saber até que ponto o êxito (poderíamos dizer talvez o

preenchimento) de uma locução não depende em boa parte do carácter representativo, e

não requere o significado literal da expressão?

As dificuldades da semântica têm a sua origem precisamente no carácter

eminentemente social da teoria do significado. Esta é a conclusão que tira Putnam

no final do seu ensaio “Is semantics possible?”49 À pergunta de Putnam

poderíamos replicar com outra “Is pragmatics possible?” A falta de teorias e leis

exactas, de rigor matemático, o carácter escorregadio e impreciso são traços

comuns à semântica e às ciências sociais. Para responder às difíceis questões do

49 Cfr Mind, Language and Reality, Philosophical Papers, vol 2, p. 152.

93

complexo funcionamento dos signos e da sua aprendizagem, é necessário

encontrar um modelo geral e preciso do uso da linguagem. Mas isso está ainda

longe: o primeiro passo é o de libertar-nos de certas convicções tradicionais,

simplificações extremas que impedem ver onde reside verdadeiramente o

problema. E podemos considerar que esse primeiro passo já foi dado.

É certo que uma teoria semântica dos fenómenos linguísticos não dá conta

do processo de significação, e requer a perspectiva pragmática: o sentido literal em

si mesmo considerado, desencarnado do uso e do contexto, parece ser uma

objectivação pouco pertinente para a compreensão do funcionamento da

linguagem. Mas, por outro lado, o significado do locutor, a intenção de fala, por si

só, exigiria uma sistematização das regras e convenções que justificasse cabalmente

o processo da significação. As regras do uso pressupõem uma elucidação do uso das

regras. Não se trata aqui de um círculo vicioso, mas de uma circunvolução genuína

entre o literal e o intencional. No fundo, trata-se de redimensionar o carácter natural

e o convencional de todo o processo de significação.

94

1. A estrutura do acto de julgar

1. O termo «juízo» está carregado de equívocos: pode ser considerado

como o acto mental de julgar ou como o conteúdo desse mesmo acto e ser

absorvido pela psicologia filosófica, pela filosofia do conhecimento, no primeiro

caso, ou pela lógica e análise da linguagem, no segundo; pode ser analisado como

acto proposicional ou conteúdo proposicional, atendendo sobretudo ao problema

do «elo» que liga o sujeito ao predicado, o «vínculo proposicional», ou pode ser

considerado como acto posicional, concentrando o exame na dimensão

especificamente pragmática, inovadora e originária do acto judicativo. Estes e

outros equívocos poderão estar na origem da pouca atenção que as teorias do

juízo parecem despertar hoje no âmbito da filosofia analítica e da filosofia da

mente. A outra razão poderá estar na designada «viragem linguística» que privilegia

a expressão verbal dos juízos e explora sobretudo o problema do estatuto e

constituição da proposição.

Não há dúvida que a teoria do juízo desempenhou um papel central e

decisivo - pelo menos desde Descartes e, sobretudo a partir de Kant, em toda a

crítica do conhecimento. No entanto, não será excessivo afirmar que foi na escola

de Brentano que a existência de um «problema do juízo» é reconhecida na sua

especificidade: deve-se aos trabalhos de Brentano, Meinong, Husserl o

reconhecimento da diferença fundamental entre a esfera das representações - e do

pensar em geral - e a do juízo - expresso no seu carácter fundamental de posição

activa de uma objectividade.

É essa peculiaridade da reformulação da teoria do juízo em Brentano que

se pretende abordar, mostrando a evolução das suas perspectivas sobre a

dimensão apofântica, a crítica à adequatio, para terminar na primazia do juízo

evidente no qual se faz sobressair toda a força assertiva do próprio sujeito, actor e

critério último da verdade de todos os juízos.

95

A concepção do juízo de Brentano difere substancialmente de outras

teorias como as de Aristóteles, Kant ou Frege. Em confronto com Aristóteles,

Brentano defende que os juízos predicativos são um caso especial dos juízos

existenciais e corrige a tradicional teoria da verdade como correspondência, de raíz

aristotélica; em confronto com Kant, distingue radicalmente entre representações

e juízos, recusando unificar estes dois tipos de actos psíquicos na categoria do

"pensar"; e em confronto com Frege, Brentano rejeita que os juízos

pressuponham a existência de pensamentos completos ou proposições que são

apreendidas em si mesmas, antes que o juízo seja formulado.

2. Na Psychologie, depois de apresentar a estrutura básica dos fenómenos

psíquicos como intencionalidade ou direccionalidade para algo, Brentano divide os vários

modos da intencionalidade como um dirigir-se para, em três classes fundamentais

de comportamento psíquico: representação, juízo e interesse (amor, emoção):

falamos de representação quando algo simplesmente se nos apresenta, representar

em sentido lato é simplesmente o ter algo em presença; julgar pressupõe "uma

aceitação como verdadeiro ou rejeição como falso". Em confronto com o mero

ter algo presente, julgar significa tomar uma posição definida em relação ao

representado enquanto representado. Brentano sublinha que às duas classes -

representação e juízo - correspondem dois modos completamente diferentes de

ser consciente de um objecto e estes dois modos fundam uma radical distinção

entre representação e juízo. Em que consiste esse traço característico do juízo que

não permite confundi-lo nem assimilá-lo à representação? Ou como deverá

entender-se a intencionalidade do juízo? Precisamente como uma dimensão

"espontânea", natural, do psiquismo, pela qual se afirma ou nega algo ao mesmo

tempo que se dá o assentimento à correcção desse acto. As três notas específicas

do acto judicativo são exactamente posição-reflexão-evidência. O juízo é

posição, e não síntese predicativa. Para Brentano, como para Kant e para o

próprio S. Tomás de Aquino, "existe" não é um predicado real. Na crítica do

argumento ontológico, Kant afirma que "ser não é um predicado real, isto é, um

conceito de algo que pode ser acrescentado ao conceito de uma coisa; é apenas a

96

posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas."50 Brentano, no

entanto, criticará Kant por ter admitido logo a seguir que esta proposição

existencial é uma proposição categórica, considerando-a como sintética: para

Kant, assim como o "é" da cópula normalmente estabelece uma relação entre

conceitos, o "é" da proposição existencial coloca "o objecto que corresponde ao

meu conceito"51. Introduzir assim uma síntese entre objecto e conceito, constitui

para Brentano uma "monstruosa afirmação". A peculiaridade dos juízos

existenciais, para Kant, consiste no facto de a coisa concebida - objecto - ser

predicado do conceito. Nas proposições categóricas um conceito une-se a outro

conceito. Brentano contra-argumenta com o exemplo dos juízos negativos

existenciais, nos quais não haveria possibilidade de síntese entre o conceito e o

objecto: "Se não há outro conceito (a existência), tão-pouco há qualquer

predicação; o que equivale a dizer que não temos então nenhuma proposição

categórica"52.

3. A redutibilidade de todas as proposições categóricas – como também as

hipotéticas e disjuntivas - a proposições existenciais, constitui uma prova para a

refutação da teoria segundo a qual a diferença essencial entre juízo e representação

consiste no facto de os juízos terem como conteúdo uma conjunção de atributos.

Nas proposições existenciais o "é" ou "existe" substitui a cópula e mostra assim

que não envolve qualquer predicado. A combinação de vários elementos - sujeito

e predicado, antecedente e consequente, etc. - considerada essencial para a

natureza específica do juízo, não é senão uma questão de expressão linguística. De

facto não serve como carácter distintivo do juízo: não se poderia considerar que as

representações têm um conteúdo simples, enquanto os juízos têm um conteúdo

composto. Quanto ao conteúdo, não há qualquer distinção entre representação e

juízo. O mesmo objecto pode apresentar-se à consciência, quer esta o afirme ou

negue, ou não tenha qualquer certeza quanto á sua afirmação ou negação e

suspenda, portanto, qualquer juízo. Neste último caso poder-se-á falar apenas de

50 Crítica da Razão Pura, p. 504. Cfr Heidegger, M. Kants These über das Sein. 51 Crítica… p. 504. 52 Sobre la Existencia de Dios, pp. 82-83.

97

representação, nos dois primeiros casos, o objecto é simultaneamente

representado e afirmado ou negado. Todo o objecto que seja o conteúdo de uma

representação pode ser também o conteúdo de um juízo. Sendo assim, qual a

característica distintiva do juízo como fenómeno psíquico? Se o que o distingue da

representação não consiste no seu conteúdo, só pode radicar num tipo de relação

peculiar da consciência com o objecto imanente. Veremos que se trata de um

modo da intencionalidade radicalmente distinto do da mera representação ou

ligação de representações.

98

2. Asserção e predicação.

1. O problema do juízo em Brentano herda uma dissociação entre

predicação e asserção, que remonta a Descartes, o primeiro a defender que um

juízo é essencialmente uma tomada de posição com respeito a um conteúdo

conceptual. Tradicionalmente, o acto de julgar reúne indissociavelmente

predicação e asserção: Aristóteles não faz uma distinção explícita, mas considera

que os enunciados determinam alguma coisa enquanto alguma coisa. Afirmar

consiste em asserir a pertença de algo a algo, negar consiste em rejeitar essa

pertença. Unir o nome e o verbo sob a forma predicativa equivale forçosamente a

fazer uma asserção. A distinção das diferentes funções do verbo, é que leva

Aristóteles a sugerir que a asserção e a predicação constituem actos logicamente

distintos. Em Tomás de Aquino encontramos uma posição semelhante, ao definir

o juízo como a actividade pela qual o espírito reúne ou separa, afirmando ou

negando. É importante notar que o acto judicativo não é concebido como um

assentimento a uma síntese de conteúdos mentais, nem aderir ou rejeitar uma

proposição formulada no quadro de uma asserção, mas exprimir sob a forma

assertiva o modo de “pertença” que se dá entre as coisas e as suas características.

Com Descartes, e depois Hume, dá-se um corte radical entre a combinação

predicativa e o acto de julgar propriamente dito. Associar as ideias num conteúdo

predicativo é uma coisa, julgar que esta associação corresponde à realidade é outra.

Para Hume, o juízo é uma reacção de crença que diz respeito, não à ordenação das

idéias, mas à nossa “maneira de as conceber”.

A discussão sobre o carácter essencial do juízo é retomada por Frege,

Brentano e Husserl: o juízo predicativo consiste numa “composição” de

conceitos, ou num assentimento a um conteúdo proposicional? O problema

merece um exame detalhado sobre as diversas respostas e, sobretudo, a inflexão

que acentuará progressivamente o carácter pragmático do juízo como um acto

espontâneo do entendimento. Assinalaremos aqui apenas o contributo de Frege, e

a reformulação de Brentano que será recebida e criticada por Husserl.

Frege distingue entre o acto de julgar e a apreensão de um pensamento. A

expressão adequada de um juízo deveria permitir distinguir estes dois momentos –

99

o juízo e o pensamento, a força assertiva e o sentido. O mesmo conteúdo

proposicional pode ser comum a uma interrogação ou uma asserção. O juízo tem

um valor de verdade determinado, enquanto uma interrogação não pressupõe

nenhum valor de verdade determinado. São, portanto actos diferentes, mas têm

algo em comum e esse algo é precisamente o pensamento expresso na proposição.

Julgar consiste, segundo Frege, em reconhecer o valor de verdade de um

pensamento; distingue-se, assim, da mera formulação de um pensamento

hipotético ou de uma interrogação.

A crítica husserliana a Brentano afecta também a teoria do juízo de Frege:

para Husserl, o juízo é uma atitude assertiva que acompanha a predicação, regida

por intuições antecipativas ou concomitantes das formas das coisas, e não por

uma avaliação do sentido do enunciado. Rejeita, portanto, a concepção moderna

dos juízos como apreciações de conteúdos proposicionais nominalizados. A

postulação de estruturas mediadoras entre as palavras e as coisas é totalmente

supérflua. Na nossa relação com o mundo, o que nos interessa são as próprias

coisas e as suas propiedades, e não o que sobre elas dizemos.

Em Husserl, o juízo é uma actividade do entendimento que se constitui,

não sobre uma justaposição de representações, mas como uma peculiar “unidade

de consciência”, que liga as representações na consciência de um estado de coisas:

“Efectuar um juízo, e ser consciente de um estado de coisas nesta posição

sintética de algo como referido a algo, são uma e a mesma coisa”53. O acto

posicional pressupõe e exige o acto prévio ou subentendido da unidade da síntese.

A dimensão pragmática – a força assertiva da posição – é inseparável da dimensão

semântica – a consciência e a compreensão da unidade de um “estado de coisas”.

2. Detenhamo-nos na concepção brentaniana do juízo: ela ilustra bem a

separação entre predicação e posição, acentuando o carácter activo e espontâneo

do acto judicativo.

Na esteira de Descartes, Brentano distingue três classes fundamentais de

fenómenos psíquicos: representações (Vorstellungen), juízos (Urteilen) e emoções,

53 Cfr Logical Investigations, V, § 36.

100

interesse, amor/repulsa (Gemüt). Todos se caracterizam como intencionais, mas

distinguem-se como três modos diferentes de referência da consciência aos seus

objectos, ou três modos da intencionalidade. Para apreender a peculiaridade do

acto judicativo, é necessário distingui-lo da representação.

Juízo e representação constituem dois géneros qualitativos supremos, duas

“classes fundamentais” de fenómenos psíquicos, às quais correspondem dois

modos completamente diferentes de ser consciente de um objecto. Embora todo

o juízo pressuponha uma representação, é radicalmente distinto dela. Estão aqui

duas teses fundamentais que convém explanar:

1º o princípio segundo o qual todo o fenómeno psíquico (incluindo o

juízo) ou é uma representação ou se funda numa representação

2º o juízo funda-se numa representação (que é a sua matéria), mas não se

identifica de modo algum com a representação; constitui um outro modo de

relacionar-se com o objecto.

O sentido da 1ª tese parece óbvio: não pode haver crença, juízo, amor,

ódio, nem qualquer outro acto psíquico sem que o objecto intencional nos seja

apresentado, dado á consciência. Husserl subscreve este princípio brentaniano,

explicitando o seu significado e alcance54.

A segunda tese situa o juízo fora do âmbito da representação; Brentano

enfrenta-se com toda a tradição lógica depois de Aristóteles que atribui a diferença

entre uma representação e um juízo a uma compositio, uma complexidade intrínseca,

característica deste último. A diferença entre os dois fenómenos psíquicos

reportar-se-ia apenas aos respectivos conteúdos. Ora é evidente que a

complexidade se pode dar também na representação sem que se faça um juízo (ex.

«a montanha dourada»).

Assinalemos um aspecto importante da dualidade representação e juízo: ela

corresponde a dois pontos de vista segundo os quais se pode estabelecer uma

classificação de juízos, o da matéria e o da forma ou qualidade. Por forma ou

qualidade, entende Brentano o modo como se julga; não é a formulação

linguística, mas diz respeito a esse momento que constitui propriamente o juízo

54 Husserl, Logical Investigations V § 20.

101

enquanto tal55. A forma ou qualidade de juízo é o modo intencional sob o qual se

efectua um acto que tem por objecto algo dado exclusivamente na representação.

Não afecta, portanto, o conteúdo objectivo do acto intencional, que é o mesmo

objecto, ora representado, ora julgado, constituindo, portanto, a mesma matéria

num e no outro caso. Isto significa que, na concepção brentaniana, a matéria é por

essência da ordem da representação.

O que é que distingue um acto de pensar num objecto complexo – uma

montanha dourada – do acto de julgar? O que é que se dá no juízo, para além do

mero acto de pensar ou representar-se o objecto? O que é que constitui

verdadeiramente a essência do juízo do ponto de vista lógico?

Dois tipos de juízos exibem de modo indubitável a ausência de qualquer

síntese ou predicação: os juízos de existência (prädikatlos) e os impessoais

(subjektlos). A especificidade da relação intencional do acto judicativo com o seu

conteúdo ou objecto é patente nos juízos téticos, e não sintéticos; estes não só

confirmam a não essencialidade do seu carácter predicativo, como indicam

claramente o traço definitório do acto judicativo: este é fundamentalmente a

afirmação/aceitação como verdadeiro ou a negação/rejeição como falso de um

objecto representado. O juízo define-se fundamentalmente pelo seu carácter

posicional, e revela o carácter espontâneo da acção do sujeito. A dimensão

pragmática sobrepõe-se à dimensão semântica. Esta acentuação do acto de julgar

como posição, vai a par e passo com a revisão da concepção da verdade como

adequação: a verdade do juízo será reconduzida por Brentano à evidência, o único

e definitivo critério e medida da verdade.

Examinaremos algumas das dificuldades das teorias

correspondencionalistas da verdade.

55 Cfr Die Lehre vom richtigen Urteil, p. 103. Segundo Husserl, todo o acto mental apresenta uma estrutura interna caracterizada pelos três traços: qualidade, matéria e conteúdo intuitivo. Cfr o artigo de Barry Smith, “Husserl, Language, and the Ontology of the Act”, in Buzetti, D. e Ferriani, M. (eds), Speculative Grammar, universal Grammar, and Philosophical Analysis of Language, Amsterdam: John Benjamins, 1987, pp. 205-227.

102

3. Impasses da noção de correspondência

1. Entre as críticas à noção de correspondência, é de mencionar a que Frege

apresenta em Der Gedanke: nota Frege que a verdade se atribui habitualmente tanto

a imagens como a proposições e pensamentos. Poderá atribuir-se a uma imagem

(Bild), como simples objecto visível ou tangível? E, nesse caso, porque não será

também verdadeira uma pedra ou uma folha?. É evidente que só se diria de uma

imagem que é verdadeira se houvesse nela uma intenção (Absicht), a intenção de

representar algo. Mas de uma representação só diríamos que é verdadeira se

concordasse com algo, o que parece pressupor que a verdade consiste numa certa

concordância (Übereinstimmung) entre a imagem e o representado por ela56. No

entanto, Frege vê sérios obstáculos em aceitar uma versão da verdade como

concordância assim entendida. "Se eu não sei - escreve - que uma imagem deveria

representar a catedral de Colónia, tão-pouco sei com que devo comparar a imagem

para decidir sobre a sua verdade. Assim, uma concordância só pode ser perfeita se as

coisas concordantes coincidirem, isto é, quando não são coisas diferentes. (…)"57 Se se

definir a verdade como uma concordância da representação com algo de real, é

absolutamente essencial que o real seja distinto da representação, mas neste caso

não haveria concordância perfeita. Nada seria verdadeiro, e fracassa totalmente a

tentativa de explicar a verdade como uma adequação. E, do mesmo modo fracassa

qualquer tentativa de definir o verdadeiro: numa definição apresentam-se

determinadas características e na sua aplicação a um caso particular voltaria

sempre a questionar-se se essas características lhe pertenceriam. Estaríamos assim

continuamente em círculo. O argumento de Frege esquematiza-se nos seguintes

passos: 1. A tentativa de aplicar uma definição de verdadeiro conduz a um infinito

regresso. 2. Uma definição impossível de aplicar é absurda. Portanto, 3. a verdade

é indefinível.

56 Cfr "Der Gedanke", Kleine Schriften, p. 343. V. Texto de apoio no final da II Parte. 57 Ibidem, p. 343.

103

A circularidade do argumento deve-se ao facto de Frege considerar o

sentido de “verdadeiro” como parte constitutiva do acto de pensar (apreender,

captar) um pensamento completo. Por isso, deste impasse para encontrar uma

explicação satisfatória para a verdade como correspondência, ou mesmo qualquer

outra tentativa de a definir, Frege conclui que provavelmente o conteúdo da

palavra "verdadeiro" é completamente peculiar e indefinível58.

2. Também Brentano encontra sérias dificuldades na teoria tradicional da

verdade como mera adequação. Aponta várias objecções que o levarão

paulatinamente a reconduzir a noção de verdade à de evidência.

Dois contra-exemplos mostram a insuficiência do critério da adequação: os

juízos negativos e os universais, aos quais não corresponde qualquer correlato

objectivo do acto judicativo. Estes juízos podem, no entanto, ser evidentes, como

é o caso dos axiomas da geometria ou da aritmética. Mas a sua evidência não

reside na adequação. Pelo contrário, o conhecimento da adequação pressupõe a

evidência - esse é o argumento mais forte que leva Brentano a renunciar ao critério

tradicional da verdade. Qualquer juízo implica um conhecimento prévio tanto do

sujeito como do predicado, o que tornaria inútil o recurso posterior à adequação

como critério de verdade: o conhecimento prévio dessa afinidade exigiria uma

adequação anterior à adequação, o que levaria a um infinito regresso. A garantia da

verdade não radica na adequação, mas na evidência59, que constitui uma dimensão

intrínseca e a priori do juízo, condição de possibilidade do conhecimento a posteriori

exigido pela adequação. Esta exclui, portanto, a evidência, e a verdade só é

compatível com uma destas dimensões. Brentano opta definitivamente pela

evidência como critério e garantia da verdade de todos os juízos.

Entende-se bem a recusa da noção de correspondência como o reverso da

rejeição do não-real, e da clarificação da tese da intencionalidade: na sua primeira

formulação, (1ª Edição da Psicologia) esta pressupunha uma in-existência ou

58 Cfr ibidem, p. 344. Cfr Stepanians, M. – “Why Frege thought it to be “probable” that truth is indefinable?, Manuscrito, v. 26, n. 2, pp. 331-345, 2003, onde se discute o argumento do infinito regresso invocado por Frege. 59 Cfr Wahrheit und Evidenz, p. 137 e ss. Cfr Die Lehre vom richtigen Urteil, §42, p. 192.

104

presença intencional do objecto da representação, acentuando o carácter relacional

da consciência, e atribuindo supostamente, uma certa consistência aos seus

objectos, enquanto «seres de razão», objectos fictícios ou mesmo impossíveis;

deste modo, reforçava a concepção da verdade como correspondência - uma

relação da consciência a «algo» (etwas). Brentano concederia, deste modo, um

estatuto ontológico à esfera do não-real, do ser pensado, desejado, julgado, etc.

Mas, na 2ª Edição da Psychologie vom empirischen Standpunkt, Brentano afasta-se desta

primeira versão da sua tese da intencionalidade, negando qualquer estatuto

ontológico ao não-real, circunscrevendo a esfera do real aos seres individuais e

concretos, à facticidade. Em carta a Marty (2 de Setembro de 1906) 60, Brentano

apresenta várias razões para a «rejeição do não-real», sobretudo a de evitar os

absurdos «monstruosos» a que conduz esta concepção da in-existência de objectos

intencionais, que tem o seu expoente máximo na Gegenstand Theorie de Meinong,

designada por Ryle como a “selva meinongiana da subsistência”61.

A revisão da noção de in-existência intencional e a recondução do juízo ao

sujeito que julga, têm repercussões óbvias na teoria da verdade: não cabe, nesta

nova perspectiva recorrer à correspondência, relação entre o juízo e a realidade

como critério de verdade. A verdade releva do critério de evidência, e isso significa

que o locus da verdade se desloca da relação do conteúdo judicativo com a sua

referência ou objecto intencional, para o interior do próprio acto de julgar.

3. A teoria de Austin minimiza as dificuldades da noção de correspondência, e

contorna tanto a metafísica atomista como a linguagem ideal; a relação de

correspondência não se traduz num isomorfismo estrutural entre proposição e

facto, mas sim entre as palavras e o mundo, através de relações puramente

convencionais. Quando é que um enunciado é verdadeiro? pergunta Austin62

Instintivamente a resposta é. "Quando corresponde aos factos". Certamente a

resposta não está errada. "A teoria da verdade é uma série de truismos". E, no

entanto, pode ser, pelo menos, equívoca. Para que se dê comunicação, observa

60 A carta a Marty está publicada em Wahrheit und Evidenz e Die Abkehr vom Nichtrealen; o Apêndice é publicado na edição de 1911 de Psychologie vom empirischen Standpunkt. 61 Cfr Collected Papers I, Londres, 1971, p. 234. 62 "Truth",Proceedings of the Aristotelian Society, Supplement 24, p. 115.

105

Austin, deve haver algo mais do que meras "palavras" e "mundo". Outras

condições têm que ser satisfeitas. Austin propõe dois tipos de convenções para

que se realize efectivamente a comunicação:

1) convenções descritivas que correlacionam as palavras com os tipos de

situação, coisa, evento, etc.;

2) convenções demonstrativas que correlacionam as palavras com situações

específicas.

"Um enunciado diz-se verdadeiro quando o estado de coisas histórico com o

qual se correlaciona pelas convenções demonstrativas é de um tipo com o qual a

frase usada no enunciado está correlacionada pelas convenções descritivas"63. É

importante notar que a correlação entre as palavras (frases) e o tipo de situações, é

absoluta e puramente convencional. Somos totalmente livres para empregar qualquer

símbolo para descrever qualquer tipo de situação; a correlação não depende de

modo algum de um isomorfismo entre palavras e mundo.

Uma aproximação entre Brentano e Austin é proposta por Benoist64: a

partir do texto “Über den Begriff der Wahrheit” (1889), mostra como a teoria de

Brentano radica num profundo sentido do «real», embora se afaste decididamente

da noção verdade-correspondência. O aristotelismo renovado de Brentano leva-o,

como em Austin, a uma curiosa conciliação entre um forte sentido do realismo e

uma rejeição do paradigma da imagem ou semelhança. O que Benoist vê de

comum nos dois autores é a mesma vontade de dissipar o fantasma de uma idéia

de «real» que não passa de uma imagem da verdade.

No entanto, em Brentano a ideia de verdade regular-se-á cada vez mais

pela de evidência, e esta última não se encontra em nenhum juízo que não tenha

por objecto directo o próprio acto de julgar. O que tornará problemática a sua

referida atitude «realista», inspirada no aristotelismo, e o comprometerá mesmo

com um quase solipsismo. O critério último de verdade reside no juízo auto-

evidente que o sujeito faz sobre o seu próprio acto judicativo.No itinerário que vai

da verdade è evidência, tem particular interesse a análise brentaniana dos juízos de

63 Ibidem, p. 116. 64 “Brentano et la théorie réaliste de la vérité”, Phainomenon, 2004.

106

existência, porque ela nos permite captar o nexo peculiar entre existência e

reflexão.

107

4. Juízos de existência. A semântica da existência65

1. A noção de existência parece óbvia e familiar, mas ao mesmo tempo

provoca uma série de problemas. Na tradição filosófica, poderíamos traçar todo o

percurso do modo como o simples predicado “existe” foi alvo de múltiplas

interpretações, implícita ou explicitamente. Desde Platão e Aristóteles, a teoria da

predicação encontrou os diferentes sentidos do emprego da cópula no juízo –

mera predicação, identidade e existência. Frege e Russell denunciam a

ambiguidade do verbo ser pela sua multiplicidade de sentidos, pondo em causa

toda a metafísica e ontologia tradicionais, pela falta de discernimento desta

polissemia que afecta o próprio significado do verbo “ser”.

A filosofia analítica contemporânea herdou de Hume e Kant a convicção

de que “existe” não é um predicado, nem a existência uma propriedade. Hume

defendera no Tratado sobre a Natureza Humana que a idéia de existência, atribuída à

idéia de qualquer objecto percepcionado, não acrescenta nada a esta última,

porque qualquer coisa por nós pensada é pensada como existente. Brentano

retoma a tese de Hume para a sua teoria sobre os juízos existenciais, que não

consistem na ligação ou síntese de conceitos ou representações. A proposição “A

existe” não exprime a relação de dois conceitos, mas simplesmente um facto no

qual se crê.

Kant, como é bem sabido, reafirmará de modo muito mais retundante a

tese de Hume. Na célebre passagem da Crítica, mantém que “Ser não é

evidentemente um predicado real, quer dizer, um conceito de algo que se possa

acrescentar ao conceito de uma coisa. É simplesmente a posição de uma coisa, ou

de certas determinações em si mesmas”66.

A tese kantiana é recebida pela analítica contemporânea: é nítida a

semelhança com a terminologia e o tratamento de Frege, para quem a existência é

65 Não nos propomos expor aqui toda a problemática lógica, linguística e ontológica dos juízos de existência. Mas parece oportuno fazer uma referência sintética às análises do predicado ‘existe’, enquadrada no contexto desta III parte do Programa. 66 Cfr. B 626-627

108

um predicado de segundo nível, que não pode atribuir-se a objectos, mas só via

conceito67. Como entende Frege uma afirmação de existência? Afirmar a

existência não é senão a negação do número zero, ou da vacuidade de um

conceito. Isto significa que a existência é uma propriedade de um conceito (e não

de um objecto), uma propriedade de segundo nível. O predicado ‘existe’ deve ser

atribuído a um predicado de primeiro nível: “L. Sache existe” traduz-se, segundo

Frege como “Há pelo menos uma coisa que é idêntica a L. Sache”

(simbolicamente (! x) (x = L. Sache)). O exemplo mais ilustrativo de predicado de

segundo nível – uma expressão incompleta, cujo lugar vazio deve ser preenchido

com um predicado de primeiro nível – é o dos quantificadores. O existencial não

pode aplicar-se directamente a um termo singular, mas a um predicado de

primeiro nível.

2. A teoria fregeana da existência como predicado de segundo nível

recebeu uma enorme atenção na analítica contemporânea: a grande vantagem da

concepção de Frege é a de evitar os problemas que levantam as proposições

existenciais e as de negação de existência. Como adverte Ayer, se ‘existe’ fosse um

predicado e a existência uma propriedade, todas as proposições existenciais seriam

tautologias e as existenciais negativas contradições. Com efeito, se ‘existe’ for um

predicado, também ‘não existe’ será um predicado, com a paradoxal consequência

de que teríamos que predicar de algo a sua ‘não-existência’. Mas dizer que “os

dragões não existem” só tem sentido se os dragões existirem: o predicado ‘não

existe’ só pode ser predicado daquilo que ‘existe’.

A validade dos paradoxos das proposições existenciais se se considera a

existência como um predicado de primeiro nível foi objecto de discussão e de

propostas de solução: reconhecendo a peculiaridade do predicado ‘existe’, alguns

autores eliminam as objecções lógicas à consideração da existência como um

predicado (Pears68, Hintikka69), ou propõe admitir um sentido segundo o qual a

existência pode ser predicada de indivíduos (Geach70, Williams71).

67 Para um exame mais desenvolvido deste confronto, leia-se o meu artigo “A noção da Existência em Frege”, Análise n. 7. E Conceito e Sentido em Frege, pp. 252-257. 68 Cfr “Is Existence a Predicate?”, Philosophical Logic (ed. Strawson), Oxford, 1977, pp. 97-102.

109

A tese da existência como predicado de segundo nível está na raiz da teoria

das descrições definidas de Russell e na eliminação dos termos singulares por

Quine. O resultado final da reconstrução de Quine das proposições existenciais

(“Sócrates existe” traduz-se por “A propriedade de socratinizar encontra-se

instanciada pelo menos num caso”), é uma linguagem que, além dos

quantificadores, emprega apenas termos predicativos, gerais.

O que escapa nesta linguagem é um outro sentido de existência, que o

próprio Frege reconhece: o de actualidade (Wirklichkheit), a existência real no

espaço e no tempo, que se predica dos objectos. Este sentido da existência, que

Frege distingue claramente da existência como Es gibt, corresponde precisamente

aos problemas de que se ocupou tradicionalmente a ontologia filosófica.

Recuperá-lo ao nível lógico e linguístico constitui uma tarefa imprescindível para a

elaboração cabal de uma semântica da existência.

3. Merece destaque, nesta breve panorâmica da análise lógico-linguística do

predicado ‘existe’, a tese de Brentano sobre os juízos de existência, acima referida.

A convicção de que ‘existe’ não é um predicado é um pilar sobre o qual Brentano

assenta a sua crítica ao carácter predicativo do juízo para o apresentar como posição

(juízo afirmativo) ou rejeição de existência (juízo negativo). Todas as formas do

juízo assumem, assim, a forma de um juízo existencial.

A derivação do conceito de existência da reflexão sobre a experiência

interna tem como consequência a sua inexpressabilidade e a negação reiterada de

que possa ser considerada como qualquer forma de predicado. A semântica da

existência em Brentano é puramente negativa, na medida em que, de facto, não é

possível significar ou dizer «existência»; recorrendo à conhecida expressão de

Wittgenstein, ela mostra-se precisamente no simples acto reflexivo sobre a

afirmação.

69 Models for Modalities, 1969. 70 “What Actually Exists””, Proceedings of the Aristotelian Society, suppl. Vol. 42 (1968), pp. 7-16. 71 What is Existence?, Oxford, Clarendon Press, 1981.

110

O aspecto mais original da teoria do juízo de Brentano é a tese da

redutibilidade (Rückführbarkeit) de todos os juízos categóricos, hipotéticos e

disjuntivos a juízos existenciais72, tese que não é senão a consequência imediata da

sua concepção segundo a qual o traço essencial do juízo não é a composição ou

união entre conceitos, mas consiste fundamentalmente numa afirmação (aceitação

como verdadeiro) ou negação (rejeição como falso). Qualquer proposição

categórica pode traduzir-se, sem a menor alteração de sentido numa proposição

existencial73, na qual o "é" e o "não é" tomam o lugar da cópula e carecem de

qualquer significado (gänzlich bedeutungslos). A existência não é tão-pouco nenhuma

nota essencial nem um predicado traduzido pelo "é" do juízo existencial. A palavra

"ser" é um termo meramente cosignificativo (mitbezeichnend) e não tem de facto

qualquer valor predicativo.

Como afirmámos, Brentano reporta-se a Hume e a Kant na sua rejeição da

existência como predicado real. A sua posição, mais radical ainda do que a de

Kant, está orientada pela rejeição de qualquer forma de composição, predicação

ou ligação entre conceitos no juízo existencial. Por isso retira à existência qualquer

expressão e até qualquer forma de concepção. Poderá perguntar-se: o que entende

Brentano por existência? Segundo Heidegger, “o conceito de existência alcança-se

através da reflexão sobre o juízo, e é esta a razão pela qual Brentano considera

impossível que a existência seja um predicado”74.

A protoforma de todo o acto judicativo - como posição - dá-se

precisamente no juízo que acompanha a percepção interna. Esta é propriamente

um juízo, envolve uma afirmação perceptiva imediata (mesmo se errónea) que

constitui a forma mais genuína e originária do acto de julgar. Seria um equívoco

interpretar esta apreensão imediata como a atribuição de “existência” ao acto

72 Leibniz tinha já mostrado a possibilidade de converter todas as proposições categóricas em proposições existenciais, de um modo semelhante a Brentano. Cfr o texto Generales inquisitiones de analysi notionum et veritatum sect. 1132, de 1686, citado em McAlister, The Philosophy of Brentano, p. 21. 73 Cfr Psychology, pp. 213-215 e na p. 295, o Apêndice "On Genuine and Fictious Objects", redigido para a edição de 1911. (Cito pela tradução inglesa de Rancurello, Terrell e McAlister) Brentano propõe aqui uma reconversão das quatro formas categóricas tradicionalmente classificadas em A, E, I, O, em proposições existenciais. Neste esboço da "nova lógica" de Brentano, nenhum juízo afirmativo é universal, e nenhum juízo negativo é particular. Todos os universais são negativos e todos os particulares afirmativos. 74 Die Lehre vom Urteil im Psychologismus, p. 120

111

psíquico; "existe" não é o predicado deste juízo, como se resultasse da constatação

experiencial do dar-se desse mesmo fenómeno. Donde derivamos o conceito de

existência? Segundo Brentano, não se trata de uma ideia inata, um a priori, mas de

um juízo de experiência: “(...) a existência é derivada da experiência, mas da

experiência interna, e adquirimo-la só por referência ao juízo”75. Comenta

Heidegger: “O conceito em causa (a existência) não significa senão a relação de

um objecto com um juízo possível, que o aceita”76. A existência deriva-se da

reflexão sobre o juízo afirmativo. Pode dizer-se que um juízo afirmativo é

verdadeiro ou que o seu objecto existe; dizer que um juízo negativo é verdadeiro

ou que o seu objecto não existe. Nos dois casos diz-se precisamente a mesma

coisa77.

Brentano encontra a primeira sugestão da perspectiva correcta sobre a

existência em Aristóteles, e cita a passagem da Metafísica que se refere ao

conhecimento dos objectos simples com o termo percepção, recorrendo á metáfora

do tacto (thigein), para distinguir este modo de apreensão directa e imediata, de

outros modos de conhecimento nos quais se dá uma união ou separação78. Nesta

dimensão antepredicativa e pré-proposicional, vê Brentano um gérmen da

verdadeira compreensão do juízo de existência.

O seu itinerário irá levá-lo muito longe de Aristóteles: tomando a evidência

como critério e medida da verdade de um juízo, Brentano adopta como modelo o

juízo da percepção interna, no qual se dá uma total identidade entre o sujeito que

julga o seu próprio acto de julgar. Nenhum juízo de existência – nenhum juízo da

percepção externa – poderá ser evidente. Entre o juízo de existência e o juízo

evidente medeia uma distância insuperável, embora o primeiro represente o

arquétipo formal de todo o juízo, e o segundo o foco regulador pelo qual se

deverão reger todos os juízos com pretensão de verdade.

Em última análise, nenhuma existência propriamente dita me é dada como

evidente, a não ser a da própria existência do eu, dada na reflexão da consciência

75 Psychology, p. 210. 76 Heidegger ob.cit., p. 120. 77 Cfr Vom Ursprung sittlichen Erkenntnis, p. 60-61. 78 Cfr Psychology p. 212, nota. Brentano cita Metafísica ", 10, 1051b 17.

112

sobre si. Evidência-existência só poderão conciliar-se na autoposição do sujeito, o

verdadeiro e único arquétipo de qualquer conhecimento.

113

5. A Sprachkri t ik de Brentano: as ficções da linguagem

1. A correspondência entre linguagem e pensamento permite o exame do

juízo pela via da crítica linguística e da análise gramatical, via que Brentano

percorre antecipando algumas das principais posições da actual Filosofia

Analítica79. A sua Sprachkritik adopta a atitude de suspeita em relação à linguagem

corrente e à sua "mitologia", atitude que encontraremos nos principais

representantes da Filosofia Analítica, como Frege e Wittgenstein. Segundo

Brentano, a linguagem não é um produto mecânico do pensamento, nem se dá

entre ambos um estrito paralelismo80: a perspectiva comum adopta os

pressupostos de uma teoria representativa da significação, na qual as ideias,

pensamentos ou símbolos correspondem exactamente a elementos do mundo,

como imagens, modelos, ou mesmo mapas da realidade. A crítica de Brentano a

esta concepção enganadora da teoria da significação é particularmente relevante

no que diz respeito à teoria do juízo: a rejeição do modelo linguístico em termos

de sujeito-predicado como forma básica da expressão do juízo, radica na

concepção dos juízos existenciais, proposições sem sujeito, que consistem apenas na

aceitação/rejeição.

A análise semântica dos nomes, assente na distinção entre termos

categoremáticos e sincategoremáticos, detecta as "ficcções" da linguagem81:

termos que nada significam em si mesmos, e que pressupõem um contexto de fala

no qual adquirem sentido. A convicção de que cada elemento do discurso deve

referir algo, algum elemento do mundo, está enraizada na concepção representativa

da linguagem como imagem, modelo ou mapa do mundo real. Além dos artigos,

proposições, conjunções, advérbios, do "é" e "não é", todos os substantivos e

adjectivos que correspondem a conceitos indeterminados ou gerais são

79 Cfr Mayer-Hillebrand, F., Die Lehre vom richtigen Urteil, pp. VI-VII. 80 Cfr Die Lehre vom richtigen Urteil, §§ 12-14. 81 Cfr ibidem, §§ 16-17.

114

sincategoremáticos, são meramente cosignificativos (mitbedeutend). A partir destas

objectivações a linguagem opera com ficções que não são mais do que "formas

linguísticas abreviadas" (abgekürzte Sprachform). O binómio abstracto/concreto

depende simplesmente da diferente intencionalidade dos nossos actos

cognoscitivos: o nível abstracto corresponde à representação, o concreto dá-se no

julgar, um acto que realiza sempre uma concrescência, convocando para o real -

sempre individual e concreto - as ficções do nosso modo de representar. O juízo

concretiza-se materialmente em palavras, mas a sua realização exige a intervenção

da prática da linguagem, do uso dos termos pelo sujeito-que-julga. E o uso não

permite uma identificação total, interna, entre linguagem e pensamento, pois não

se dá um ordenamento simétrico entre o pensar e os signos: estes são uma cópia

imperfeita e inexacta do pensamento, não uma réplica em perfeito paralelismo ou

associação mecânica. A dimensão prática revela-se precisamente na expressão do

juízo, que não se limita a significar algo (como o nome), mas determina o real,

indica (zeigt). A dimensão pragmática do juízo constitui propriamente a asserção,

um acto de fala, (expressão que será empregue e explorada mais tarde por Austin,

embora não pareça ter tido conhecimento das teses de Brentano); todas as

proposições declarativas têm, nesta perspectiva, um carácter pragmático, que os

signos linguísticos não podem senão mostrar, exprimir. O juízo como posição excede

a própria materialidade e factualidade da linguagem, exibindo o carácter intensional.

2. A Sprachkritik de Brentano permite-lhe elucidar nomeadamente a noção

do juízo e da verdade, libertanto-a da camisa de forças imposta até então pela

concepção da linguagem como "imagem", espelho do pensamento82. A

importância e necessidade desta crítica da linguagem são imprescindíveis para

evitar equívocos sérios no modo de entender o nosso próprio aparato conceptual.

É precisamente por ter em conta o uso da linguagem, que Brentano

considera impossível estabelecer um paralelismo ou uma associação mecânica

entre o pensar e o falar: a linguagem não é uma cópia exacta e perfeita do

pensamento, e para aceder a este último é imprescindível ter em conta a dimensão

82 Cfr Srzednicki, J. - "Some elements of Brentano's Analysis of Language and their Ramifications", p. 444

115

intencional da actividade significativa, que ultrapassa o modelo representativo dos

signos como imagens das coisas reais. Isto é bem patente ao nível judicativo:

sendo o juízo o lugar da verdade, não se deixa captar perfeitamente na sua

expressão linguística, como uma ligação ou união de palavras. Basta pensar que

uma simples expressão linguística não é uma asserção, pois esta releva de uma

dimensão prática, de um acto do sujeito que fala, de uma intencionalidade

peculiar. Os elementos da proposição que traduzem esta dimensão são

precisamente as partículas cosignificativas “é” e “não é”, indicadores do carácter

assertivo do juízo, como posição de um todo que é dado pela representação. No

caso de uma afirmação, o juízo será sempre particular, a posição de algo de real,

portanto de carácter singular; no caso de uma negação, será sempre universal,

porque se trata de rejeitar todos os casos de uma pretensa realidade.

A incidência no carácter pragmático do juízo como um acto de posição, faz

ver as afinidades da análise linguística de Brentano com algumas das teses da

pragmática contemporânea. Nomeadamente, são nítidas as proximidades com

Austin, que considera a asserção, tal como a descrição ou a informação, como

actos de fala83.

Os dois princípios fundamentais da pragmática encontram-se já

pressupostos na Sprachkritik brentaniana:

1. O significado não reside apenas na relação dos signos com os

seus referentes (dimensão semântica), mas há que ter em

conta o contexto linguístico e extra-linguístico: situacional e

sócio-cultural.

2. O significado depende fundamentalmente da intenção e do

acto do locutor, portanto a própria linguagem deve ser

considerada como uma actividade humana, segundo regras.

Embora Brentano não tenha desenvolvido esta nova maneira de tratar a

linguagem, e possivelmente nem sequer se tenha dado conta das potencialidades

nela contidas, não há dúvida que a sua “psicologia descritiva” pressupõe uma

83 Cfr Austin, Philosophical Papers, p. 236.

116

crítica da linguagem que faça ver com nitidez as duas funções fundamentais, a da

linguagem como instrumento de comunicação e como veículo do pensamento. A

convicção de que, como actividades, os processos linguísticos só se compreendem

tendo em conta o seu carácter intencional, reconduz a teoria do significado à

realidade concreta do sujeito locutor nas diversas situações da prática linguística.

117

6. Dimensão Pragmática da Linguagem: os actos de fala

1. O carácter representativo da linguagem impôs-se e dominou a atenção

dos filósofos que se dedicaram aos problemas semânticos: a estrutura da

linguagem, em virtude do seu isomorfismo com a realidade e com o pensamento,

representa a primeira e revela o segundo. Compreender uma proposição significa

captar algo que se dá na realidade, aperceber-se de um facto, e ao mesmo tempo,

apreender o pensamento que nela se exprime. Os signos apresentam-se, assim,

como mediadores entre a mente e a realidade, pela sua dupla relação com o

sentido e a intenção de quem os emprega, e com a referência ou o visado pelo

próprio signo. Esta última direcção do signo para o significado, a relação

propriamente semântica, é que constitui a representatividade da linguagem,

espelho ou imagem do real. A sua função principal seria essencialmente a de

descrever, reproduzir os factos tal como estes se dão.

Austin observa, no início do seu How to do Things with Words, que a frase

não tem apenas a função de “descrever” um estado de coisas, ou de afirmar algum

facto, podendo ser sempre verdadeira ou falsa. Além de asserções, realizamos toda

a espécie de actos de fala, e há muitos outros modos de estes falharem, para lá de

poderem ser falsos. A observação de Austin vem na esteira do pensamento de

Wittgenstein, que considerou a linguagem como veículo de toda a rede de

actividades sociais, mais do que como um sistema de representação. “Não

perguntes pelo sentido, pergunta pelo uso”, advertiu Wittgenstein. Foi Austin o

primeiro a propor a primeira explicação sistemática do uso da linguagem, sem

identificar as duas noções – sentido e uso -, mas distinguindo cuidadosamente o

sentido (e a referência) das palavras, dos actos de fala realizados pelo locutor no

seu emprego. Os performativos - como denominar, advertir, avisar, prometer – não

são verdadeiros nem falsos, como os constatativos. A distinção entre estes dois tipos

de emprego das frases será, no entanto, ampliada pela distinção entre dizer algo e

aquilo que se faz ao dizer.

118

Os actos de fala, seja qual for o medium através do qual se realizam, são

intrinsecamente acções intencionais, e pressupõem um conjunto de intenções

intimamente entrelaçadas, que excedem a mera acção de emitir certos sons. Austin

distingue três níveis de acção: o de dizer algo, o que se faz ao dizer, e o que se faz

por dizer, designando-os por acto “locucionário”, “ilocucionário” e

“perlocucionário”84. Austin restringe a noção de significado ao sentido e

referência da frase, localizando a força de um acto ilocucionário no uso

convencional de uma expressão, que determina assim o tipo de acto efectuado

pelo locutor. Realizar um acto de fala consiste numa certa intenção comunicativa

ao usar certas palavras, e esse acto será bem sucedido, a intenção preenchida, se

for reconhecido pela audiência. Austin, no entanto, não considera a intenção, mas

sim a convenção, como um factor determinante para a realização bem sucedida de

um acto ilocucionário; Searle propõe-se explicar as forças ilocucionárias através de

“regras constitutivas” para o uso de recursos indicadores da força, como verbos

performativos. O problema das teorias “convencionalistas”, como aponta

Strawson, é que o mesmo acto ilocucionário pode realizar-se sem recorrer aos

meios linguísticos estipulados pelas regras constitutivas.

2. Exemplos das principais categorias de actos ilocucionários

comunicativos, são as afirmações, pedidos, promessas e desculpas. Combinando

as taxonomias de Austin e Searle, as quatro grandes categorias do ilocucionário,

são: “constatativos”, “directivos”, “comissivos”, e ... (aknowledgments)...

Constativos – afirmar, anunciar, responder, atribuir, classificar, confirmar,

conjecturar, negar, discordar, disputar, informar, predizer, etc.

Directivos – aconselhar, advertir, pedir, suplicar, proibir, ordenar, permitir,

requisitar, sugerir, avisar.

Comissivos – concordar, garantir, convidar, oferecer, prometer.

Expressivos – pedir desculpa, felicitar, agradecer, aceitar.

A correlação entre o tipo de acto ilocucionário e a atitude expressa, mostra

bem o hiato entre o convencional e o intencional. Em muitos casos – como

84 Cfr Austin, How to do things with words, p. 155.

119

responder, discutir, concordar – o acto e a atitude expressa pressupõem uma

circunstância social ou uma situação específica de conversação.

Para explicar como se dão os diferentes actos que se distinguem pelo tipo

de atitudes expressas, não é necessário evocar a noção de convenção. O acto pode

ser bem sucedido se o ouvinte reconhecer a atitude expressa, como uma crença,

no caso de uma afirmação ou um desejo no caso de um pedido. Não se requer

qualquer outro efeito no ouvinte, para que o performativo seja uma afirmação ou

um pedido, portanto o emprego de uma frase pode ser bem sucedido como um

acto de comunicação, apesar de não se dar no locutor a atitude que está a

exprimir: comunicar é simplesmente exprimir uma atitude, possuí-la de facto é

uma questão de sinceridade. Mas o ouvinte pode perfeitamente compreender o

emprego de uma frase sem ter em conta a sua sinceridade. A fronteira marca

precisamente a diferença entre um acto ilocucionário – exprimir, segundo as

regras convencionais, uma atitude de crença, ou de desejo – e o perlocucionário –

conseguir que o outro acredite que quem pronuncia a frase possui de facto a

atitude que está a exprimir. E esta diferença mostra bem o hiato entre o

intencional e o convencional, a possibilidade de comunicar, seguindo as regras do

uso, apesar de o que se comunica não corresponder à intenção do próprio locutor.

O bom êxito de um acto de comunicação (que Austin designava de felicity/infelicity)

não recobre o preenchimento da intenção; mais, pode mesmo dar-se um total

desfazamento entre a eficácia da comunicação e a atitude do locutor que a emite.

3. A teoria dos actos de fala torna-se particularmente relevante, para a

filosofia da linguagem, pelo facto de patentear a distinção entre o uso da

linguagem e o significado linguístico, que dá origem às questões sobre a natureza

do conhecimento linguístico, separando e isolando os problemas sobre as

capacidades em jogo na interacção comunicativa, dos problemas específicos sobre

o próprio conhecimento da linguagem. De modo paralelo, se distinguirmos entre a

referência do locutor e a referência linguística, a questão que se levanta é a de

saber até que ponto as expressões linguísticas podem referir independentemente

do seu uso pelo locutor para referir.

120

Restringir o significado ao sentido e referência de uma expressão

Linguística parece ser um tanto arbitrário; embora a força ilocucionária se distinga

do sentido e referência, a verdade é que o significado do emprego de uma

expressão só está completo com a inclusão da força ilocucionária. Por isso, Searle

critica a distinção de Austin entre o locucionárioa e ilocucionário, visto que

nenhuma expressão é completamente neutra: toda a frase tem uma força

ilocucionária potencial, entranhada no seu próprio sentido, e não é possível

especificar um acto locucionário que não determine a especificação de um acto

ilocucionário. Searle isola, no entanto, o sentido dos actos de fala completos, ao

afirmar que o significado de uma frase é totalmente determinado pelo significado

das suas partes, e ao distinguir entre o significado linguístico e o significado do

locutor. Esta última distinção é necessária para explicar os actos de fala indirectos,

as metáforas, e outras situações complexas nas quais o sentido literal não é

idêntico ao sentido do locutor. Apesar de tudo, Searle considera que uma análise

do significado não se pode separar em princípio de uma análise dos actos de fala85.

Embora se distingam conceptualmente o significado linguístico do significado do

locutor, estes estão inseparavelmente unidos no contexto de um acto de fala

particular. Se alguém emprega uma expressão metaforicamente, esta tem o sentido

metafórico que a intenção do locutor lhe confere, e não dois sentidos, um literal e

outro metafórico. O sentido literal dependerá da interpretação de alguém que não

capte o sentido com que o primeiro locutor a empregou. As palavras e as frases

não têm qualquer sentido independentemente do seu uso por algum locutor: as

palavras podem ter definições, as frases regras convencionais de emprego, mas só

os actos linguísticos têm sentido.

85 Cfr Speech Acts, p. 18.

121

TEXTOS DE APOIO

BRENTANO

Psycologie vom empirische standpunkt, II, pp. 38-81. (Excertos)

(...) É muito comum a opinião segundo a qual o juízo consiste numa

combinação ou separação que tem lugar no domínio da representação. O juízo

afirmativo e, de algum modo, o negativo são geralmente caracterizados, em

contraste com a mera representação, como processos de pensamento composto

ou associativo. Segundo esta interpretação, a diferença entre juízo e mera

representação, seria apenas uma diferença entre o conteúdo do juízo e o conteúdo

da representação.

Se pensarmos numa certa forma de união ou relação entre duas

propriedades, este pensamento seria um juízo, enquanto qualquer pensamento,

que não tenha esta relação como conteúdo, seria considerado uma mera

representação.

Mas esta idéia não é sustentável.

Se afirmarmos que o conteúdo de um juízo consiste sempre num certo tipo

de combinação de várias características, seríamos certamente capazes de distinguir

os juízos dde algumas representações, mas não de todas. De facto acontece

obviamente que um acto de pensamento, que é apenas uma representação, tem

como conteúdo uma combinação de características que é completamente

semelhante, até perfeitamente idêntico àquele que num outro caso constitui o

objecto de um juízo. Se disser ‘Uma árvore é verde’, verde em combinação com

árvore forma o conteúdo do meu juízo. Mas poder-me-iam perguntar, “Alguma

árvore é verde?’. Quem não estiver familiarizado com o reino vegetal, e não

recordar bem as cores das folhas no outono, poderia suspender todo o juízo sobre

esta matéria. No entanto, compreendo a pergunta, e portanto deverei ter uma

representação de uma árvore vermelha. Vermelho combinado com árvore, tal

122

como verde, formaria o conteúdo de uma representação não acompanhada de

qualquer juízo. E alguém que só tivesse visto árvores com folhas vermelhas, e

nunca com folhas verdes, quando interrogado sobre árvores verdes,

provavelmente teria como conteúdo desta representação, não apenas uma

combinação de características semelhantes, mas exactamente a mesma que

formasse o conteúdo do juízo.

(...)

Mais ainda. Nem sequer é correcto dizer que há uma combinação ou

separação dos atributos representados em todos os juízos. A afirmação e a

negação, à semelhança do desejo ou aversão, não se referem sempre a

combinações ou conexões. Uma simples característica, objecto de uma

representação pode também ser afirmada ou negada.

Quando dizemos ‘A existe’, este enunciado não é, como muitos pensaram

e ainda pensam, uma predicação na qual a existência como predicado se combina

com ‘A’ como sujeito. O objecto afirmado não é a combinação de um atributo

‘existência’ com ‘A’, mas o próprio ‘A’. No mesmo caso, quando dizemos ‘A não

existe’, não há qualquer predicação da existência de ‘A’ de um modo negativo –

nenhuma negação da conjunção de um atributo ‘existência’ com ‘A’. Pelo

contrário, ‘A’ é o objecto que negamos.

(...)

Que nem todos os juízos se referem a uma conjunção de atributos

representados e que predicar um conceito de outro não é um elemento vital do

juízo, é uma verdade que os filósofos muitas vezes não conseguiram reconhecer

Mas nem sempre. Na sua crítica ao argumento ontológico para a existência de

Deus, Kant observou pertinentemente que numa proposição existencial, i. é, numa

proposição da forma ‘A existe’, a ‘existência’ não é um predicado real, i. é um

conceito de algo que pode ser acrescentado ao conceito de uma coisa. “É apenas –

diz ele – a posição de uma coisa ou de certas determinações, como existentes em

si mesmas”. Mas aqui, em vez de dizer que a proposição existencial não é de

modo algum uma proposição categórica, nem uma proposição analítica no sentido

kantiano, i.e. uma proposição na qual o predicado está incluído no sujeito, nem

sintética, na qual o sujeito não contém o predicado, Kant permitiu-se o equívoco

123

de classificá-la como uma proposição sintética. Pensou que assim como o ‘é’ da

cópula, normalmente relaciona dois conceitos um com o outro, o ‘é’ da

proposição existencial põe “o objecto em relação com o meu conceito”. “O

objecto – diz Kant – é sinteticamente acrescentado ao meu conceito”.

Wahrheit und Evidenz

O uso equívoco do termo “existente” Setembro 1904 (...) 23. Uma vez que só as coisas - no sentido estrito do termo – é que podem ser

pensadas (tenho em mente qualquer coisa tal que, se existe, é uma substância, um

acidente, ou um colectivo de ambos), acontece muitas vezes que as palavras que

são nomes no sentido gramatical não o são no sentido lógico. Uma palavra que seja

um nome só no sentido gramatical, não denota nada, do modo como a palavra

“homem” pode dizer-se que denota algo e indica que o locutor está a pensar num

homem. Mas uma palavra que seja um nome só no sentido gramatical indica um

pensamento ao qual corresponde outra palavra como um nome. “Necessário”, por

exemplo, indica que o locutor está a pensar em alguém que julga apodicticamente

(indica também, de certo modo, que o próprio locutor julga apodicticamente).

“Vazio” indica que está a pensar de modo negativo no que é satisfeito.

24. Mas se nem todos os nomes gramaticais são nomes lógicos, então a expressão

“existe”, que pode ser empregue com qualquer tipo de nome, é equívoca. É

sinsemântica em todos os seus usos, se bem que, de cada vez, num sentido

completamente diferente. Do modo semelhante, a palavra von em Alemão pode

ser empregue como “de” para indicar posse, ou para indicar algo que nos é

apresentado adiante de qualquer outra coisa, e também para indicar aristocracia ou

nobreza.

124

25. “Existe” tem o seu sentido estrito ou próprio, quando empregue em conexão

com nomes logicamente genuínos, como em “Deus existe” ou “Existe um

homem”. Nos outros usos, “existe” não deve ser tomado no seu sentido estrito.

“Existe um espaço vazio” é equivalente a “Não existem corpos físicos localizados

deste ou daquele modo”; “Existe algo que é objecto de pensamento” equivale a

“Existe algo que pensa”. Seria um grande erro interpretar “Existe” quando

empregue com nomes meramente gramaticais do mesmo modo como o

interpretamos em “Deus existe” e “Wexiste um homem”. Na verdade não existem

senão coisas, e “espaço vazio” e “objecto de pensamento” não designam coisas.

(...)

28. (...) Se “o existente” em sentido estrito, fosse um nome, não se pode dizer que

refira qualquer coisa directamente (...) Se “existente” fosse um nome em sentido

lógico, i. e. Uma palavra que designa uma coisa, uma coisa que é julgada

afirmativamente, é uma palavra relacional. Emprego-a para indicar que estou a

pensar em alguma coisa que corresponde ao meu pensamento (e também,

naturalmente, que estou a pensar em mim mesmo como pensando correctamente)

(...)

Linguagem Fragmento de 16 de Novembro de 1905

1. Todo aquele que afirma alguma coisa dá expressão àquilo que pensa. A

linguagem é, portanto primariamente um signo dos pensamentos, mas

indirectamente um signo do que se passa fora de nós.

2. Isto não significa, no entanto, que a cada som corresponda um pensamento ou

que a cada pensamento corresponda um som. Os sons individuais, e mesmo as

combinações de sons que constituem as palavras, muitas vezes não têm

significado por si mesmos; e muitas vezes são signos de uma multiplicidade de

pensamentos.

125

Assim, as sílabas individuais, as partículas, casus obliqui, não têm significado

por si mesmos.

Mas o mesmo não se pode dizer dos enunciados ou dos nomes

(substantivos, adjectivos).

Estes últimos designam objectos através de conceitos. Significam que os

conceitos estão a ser pensados e evocam os mesmos conceitos naquele que está a

ouvir.

3. Mas pode muito bem acontecer que uma palavra que tenha a forma gramatical

de um nome ou adjectivo, de facto não se refira a nada, e portanto não seja um

nome no sentido lógico.

Por exemplo: os abstracta («cor» e «pensar»), também os negattiva e modalida

(como «o necessário» e «o impossível»); de novo os objectiva («um objecto de

pensamento», «um objecto de amor»).

E «bom» ou «mau», como «verdade» e «falsidade», e outros termos

semelhantes. Em sentido estrito, não há nenhum conceito de bom ou belo ou

verdadeiro.

4. Não há tão-pouco um conceito de um ser de uma coisa. Erroneamente, supõe-

se que há e define-se assim: “Um ser é aquilo que é”. Mas o que se está a pensar

quando se diz “A é um ser” é o reconhecimento ou aceitação de A. E quando se

diz “A não é um ser” está-se a pensar numa negação ou rejeição de A. Se alguém

dissesse simplesmente “um ser”, estaria a pensar numa pessoa que aceita ou

reconhece algo. Mas este pensamento não é propriamente o conceito de ser, pois

se o fosse, a palavra “ser” teria de denotar aquele que afirma ou reconhece algo.

5. Mas há um conceito de coisa, embora não haja nenhum conceito do ser de uma

coisa, ou de uma coisa que tem ser. E o conceito de coisa aplica-se a tudo.

Pois tudo é uma coisa ou entidade – uma Usie.

(...)

126

Sprechen und Denken. (1905)

Manuscrito inédito El. 66 catalogado por F. Mayer-Hillebrand. Publicado com

uma tradução inglesa em Srzednicki, J. – Franz Brentano’s Analysis of Truth, pp. 116-

121.

A linguagem deveria exprimir o que pensamos. Nesse caso a elocução

corresponde ao pensamento. Por isso alguns pensam que, dada a veracidade, as

expressões e os pensamentos correspondem completamente, e, portanto também

parte a parte (haveria uma correlação unívoca entre partes do pensamento e partes

da elocução). Não é o caso, de modo algum. Dizemos palavras, i.e. despertamos

nos outros uma corrente de fenômenos físicos. Estes, pelo seu carácter, não são

equivalentes aos fenômenos psíquicos, mas bem diversos. Por isso a nossa arte

verbal permaneceria muito aquém se cada elemento do pensamento tivesse que

ser representado por um elemento do discurso. Para exprimir todos os elementos

do pensamento termos de empregar complicações de elementos do discurso.Por

exemplo, é claro que na palavra “árvore”, as letras “a”, “r”, “v” “o”, “e”, não estão

em vez de elementos particulares do pensamento. Mas este tipo de complicação,

que se tinha tornado necessária, levaria a uma prolixidade interminável e

prejudicaria enormemente o fluxo vivo do discurso, se por outro lado a

multiplicidade de elementos do pensamento não encontrasse expressão numa

mesma forma verbal. Que riqueza de elementos do pensamento se encontra, por

exemplo, no que se exprime pela pequena palavra “estado”!

Não são apenas as letras particulares que não têm significado em si

mesmas; há também palavras que por si mesmas não significam nada, por

exemplo, preposições, conjunções, advérbios, casus obliqui, de substantivos e

adjectivos. Só em conjunto com outras palavras e grases é que estas contribuem

para o significado do discurso. De certo modo, é mesmo possível afirmar que

todos os nomes e adjectivos só têm significado em relação com outros elementos

do discurso. Não se pode dizer que quem pronuncia a palavra “cavalo” comunica

com esta que tem a representação de um cavalo. Se não a tivesse ninguém diria

que ele mentia. Não se conduz nenhuma conversa pronunciando apenas nomes,

mas sim com frases completas. Se alguém invocasse o argumento que ao ouvir

127

um outro dizer um nome, poderia supor nessa base que o locutor tem a respectiva

representação, então deve observar-se que, até certo ponto, se poderá dizer algo

semelhante sobre as conjunções. Se alguém ouve por exemplo pronunciar “mas”,

poderia supor que o locutor tem uma representação de alguma oposição.

Poderíamos também selecionar aquelas palavras que, complementadas por um

signo afirmativo ou negativo, conduzem à expressão de um juízo, de tal modo que

os conceitos que constituem a sua base estão com elas associados pelo uso

linguístico, e seguindo Aristóteles, classifica-las como palavras que têm o seu

próprio significado. Este seria o respectivo conceito.

Mas temos que assinalar aqui uma limitação. Usamos uma linguagem que

não é obra nossa, mas que adoptamos como parte da tradição do nosso povo.

Este, no entanto, foi influenciado na construção da sua linguagem, tanto pelas

suas idéias falsas como pelas correctas. Por isso, mesmo quando nós próprios não

estamos enganados, não podemos deixar de adaptar-nos em certa medida a esses

erros. As pessoas tendem para concepções super-realistas. Pensam que se alguém

é saudável, então há nele a saúde. Se for grande, a grandeza existe nele, se julga, o

juízo ou o acto de julgar existe nele. Exprime-se impensadamente a idéia que ele é

saudável, dizendo que tem boa saúde, que algo tem um lugar, está num lugar ou

ocupa um lugar, em vez de dizer que algo está espacialmente localizado. Assim,

diz-se também, impensadamente, não só que existem coisas saudáveis, grandes,

com uma posição determinada, alguém que julga, mas também que existe a saúde,

a grandeza, o espaço e o juízo. E como ser saudável não é a saúde, ser grande não

é a grandeza, ter um determinado lugar não é o espaço, e julgar não é o juízo,

estritamente falando, acrescenta-se impropriamente uma quantidade de coisas

àquelas que de facto existem. (...)

O carácter equívoco de “é”, como de “há”, “existe”, etc. foi assinalado por

muitos que, no entanto não lograram compreende-lo totalmente. Por vezes

pensaram que num sentido “é” diz que algo tem um efeito, enquanto noutro

sentido pertence só àquelas coisas incapazes de produzir qualquer efeito. O que

está fora de dúvida é que quem diz que algo é, ou subsiste, ou existe ou é real, não

tem qualquer intenção de dizer se tem efeito ou não(wirke oder nicht). Fica também

128

por esclarecer se os dois casos de “é” são dois tipos que pertencem à mesma

espécie e têm um carácter comum, se atribuem ao que tem efeitos que é num

duplo sentido, enquanto o outro é só (usado) num dos dois sentidos, etc. Na

nossa opinião, como se vê claramente, dificilmente se pode negar o seguinte.

Quando “existe” (“há”) se conjuga gramaticalmente com o sujeito “beleza” ou

“espaço”, não desempenha o mesmo papel que o “é” conjugado com o sujeito

“(algo)belo” ou “espacial”, o “existe” não funciona do mesmo modo num caso e

no outro. É evidente que am cada caso funciona só de uma maneira. Não tiveram

em conta a conseqüência do facto de “beleza”, “grandeza”, “juízo”, “espaço”, etc.

não serem nomes reais com os seus conceitos correspondentes (...) De facto, pode

dizer-se que o preconceito de pensar que cada substantivo e adjectivo é um nome

genuíno e que pode ser tratado como tal, como se encontra em Aristóteles, é hoje

geralmente aceite e tem a ver (hindert) com a compreensão do verdadeiro carácter

da ambiguidade de “é”, “existe”, etc. ; dá ocasião a distinções entre existir e

subsistir, ser e ter um ser, etc., que são completamente arbitrárias e contrárias ao

uso da linguagem.

Se tomarmos uma palavra por um nome, quando de facto não é um nome,

se procurarmos o conceito designado por este suposto nome, quando de facto

nada se associa a essa palavra, naturalmente as nossas definições nunca poderão

concordar e as teorias sobre a origem dos conceitos deverão estar

irremediavelmente confundidas. Assim, os referidos conceitos dos supostos

nomes o exemplo de uma confusão polifacetada do importante facto psicológico,

a saber, que os nossos conceitos têm a sua origem em imagens. Com efeito, os

conceitos de ser, não ser, necessidade, possibilidade e até os conceitos de beleza,

grandeza, etc., não provêm de observações, mas só porque não há tais conceitos e

os respectivos substantivos não são nomes reais. O mesmo se passa com os

conceitos de tempo, o presente, o passado, o futuro e também os de algo

presente, passado, futuro. Estes exemplos bastam para mostrar que a Psicologia,

epistemologia e ontologia devem unir-se aqui em conjunto o mais solidamente

possível.

129

VI. BIBLIOGRAFIA

A Bibliografia está organizada do seguinte modo:

Na I Parte, além das obras citadas durante o curso, apresenta-se uma

bibliografia geral, respeitante aos tópicos essenciais deste Programa. Com estas

indicações bibliográficas pretende-se proporcionar informação suplementar ao que

é apresentado nas aulas para ampliar os horizontes de estudo e de investigação dos

alunos.

Em segundo lugar, apresentam-se bibliografias de Wittgenstein, Frege e

Brentano, os autores aos quais se prestou mais atenção no decorrer do Programa.

No que diz respeito a Wittgenstein tornar-se-ia impossível apresentar uma

bibliografia exaustiva. Remetemos para a mais actualizada que se encontra em

Ludwig Wittgenstein. Critical Assessments. A Wittgensteinian Bibliography. Edited by V. A.

and S. G. Shanker, Routledge, 1996.

A bibliografia de Frege inclui as obras e ensaios de Semântica e Filosofia da

Linguagem. Indicam-se as traduções existentes em diversas línguas.

De Brentano, indicamos apenas as obras relevantes para os tópicos

tratados no Programa e as respectivas traduções.

I. Bibliograifa Geral ALSTON, W. P. – Philosophy of Language, New Jersey, Prentice Hall, 1964.

ANSCOMBE, G. E. M. E GEACH, P. T. – Three Philosophers: Aristotle, Aquinas, Frege,

Oxford, Blackwell, 1961.

APEL, K.-O. – Transformation der Philosophie, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1976.

Tradução castelhana de Adela Cortina, Joaquin Chamorio e Jesus Conill,

Madrid, Taurus, 1985.

Understanding and Explanation. A Transcendental-Pragmatic Perspective, Cambridge

Mass. The MIT Press, 1984.

130

ARISTÓTELES – On Interpretation (Peri hermeneias), Loeb Classical Library, Harvard

University Press, Cambridge , Mass. London, vol I.

AUSTIN, J. –How to do things with words, Cambridge, Mass, Harvard University Press,

1962.

AYER, A. J. – Language, Truth and Logic, Harmondsworth: Penguin Books, 1978.

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BLACKBURN, S. – Spreading the World: Groundings in the Philosophy of Language,

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BOCHENSKI, I. M. – Formale Logik, München, Verlag K. Alber, 1956 (Trad. Esp.:

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BOLZANO, B. - Wissenschaftslehre, Stuttgart-Bad Cannstatt, F. Frommann Verlag,

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BUTLER, J. R. (ED.) – Analytical Philosophy, Oxford, 1962.

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REVISTAS

Das numerosas revistas que publicam ensaios sobre filosofia da linguagem,

destacamos as seguintes:

Disputatio

Mind

Nous

Philosophical Review

Philosophy and Phenomenological

Research

Teorema

Teoria

The Journal of Philosophy

135

II. OBRAS DE WITTGENSTEIN

Tractatus Logico-Philosophicus, London, Routledge, 1922 (trad. Port. Lisboa,

Fundação C. Gulbenkian, 1987.

Philosophical Investigations, Oxford, Blackwell, 1953. (trad. Port. Lisboa, Fundação

Gulbenkian, 1987.

The Blue and Brown Books (Preliminary Studies for the ‘Philosophical Investigations’), ed. E

prefácio de Rush Rhees, Oxford, Blackwell, 1958 (trad. Portuguesa, O Livro

Azul, Edições 70, 1992; O Livro Casstanho, Edições 70, 1992).

Notebooks 1914-1916, ed. Von Wright, G. H. e. Anscombe, G. E. M., Oxford,

Blackwell, 1961 (trad. Port. Edições 70, 2004).

Philosophische Bemerkungen, ed. Rush Rhess, Oxford, Blackwell, 1964.

Zettel, ed. Anscombe, G. E. M. E von Wright, G. H. Oxford, Blackwell, 1967

(trad. Port. Edições 70, 1989).

Philosophische Grammatik, ed. Rush Rhees, Oxford, Blackwell, 1969.

Über Gewißheit, ed. Anscombe, G. E. M. e von Wright, G. H. trad. Inglesa Oxford,

Blackwell, 1969 (trad. Port., Edições 70, 1990).

Vermischte Bemerkungen, ed. Von Wright, G. H., H. Nyman, trad. Inglesa Culture and

Value, trad. Winch, P. Oxford, Blackwell, 1980 (trad. Port. Edições 70,

1996).

Philosophical Occasions 1912-1951 Edited by James Klagge and Alfred Nordmann,

Indianapolis & Cambridge, Hackett Publishing Company, 1993.

Dictées de Wittgenstein à Waismann et pour Schlick, Direction Antonia Soulez, Paris,

PUF, 1997.

OBRAS SOBRE WITTGENSTEIN

ANSCOMBE, G. E. M. – An Introduction to Wittgenstein’s Tractatus, Hutchinson,

London, 1963.

136

BLACK, M. – A Companion to Wittgenstein’s Tractatus, Cambridge, Cambridge

University Press, 1966.

BLOCK, I. (ED.) – Perspectives on the Philosophy of Wittgenstein, Oxford, Blackwell,

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BOUVERESSE, J. – La rime et la raison, Paris, Editions de Minuit, 1973.

Le Mythe de l’Intériorité, Paris, Minuit, 1987, 2ªed.

Wittgenstein et les Problèmes de la Philosophie, Paris, PUF, pp. 261-312, 1994.

BOUVERESSE-QUILLOT, R. (DIR.) – Visages de Wittgenstein, Paris, Beauchesne, 1995

(édité avec le concours du Centre Culturel de Cerisy-la-Salle).

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Wittgenstein. Meaning and Mind, Part I: Essays, Part II: Exegesis §§ 243-427,

London, Blackwell, 1993.

Wittgenstein, Mind and Will, Oxford, Blackwell, 1996.

Wittgenstein’s Place in Twentieth-Century Analytic Philosophy, Oxford, Blackwell,

1996.

HINTIKKA, J. E M. – Investigating Wittgenstein, Oxford, Blackwell, 1986.

KENNY, A. – Wittgenstein, Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books Ltd., 1973.

The Wittgenstein Reader, Oxford, Blackwell, 1994.

KRIPKE, S. – Wittgenstein on Rules and private Language, Oxford, Blackwell, 1982.

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PEARS, D. – Wittgesntein, London, Fontana, 1971.

The False Prison. A Study of the Development of Wittgenstein’s Philosophy, Oxford,

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ZILHÃO, A. – Linguagem da Filosofia e Filosofia da Linguagem, Lisboa, Colibri, 1993.

III. OBRAS DE FREGE

138

Die Grundlagen der Arithmetik, eine logisch-mathematische Untersuchung über den Begriff der

Zahl, Breslau, 1884.

Funktion und Begriff, Jena, 1891.

Über Begriff und Gegenstand, Vierteljahrschrift für wissenschaftliche Philosophie, 16,

192-205 (1892).

Über Sinn und Bedeutung, Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik, 100, 25-

50 (1892).

Der Gedanke, Beiträge zur Philosophie des deutschen Idealismus, 1, nº 2 (1918), pp. 58-

77.

Logische Untersuchungen, Günther Patzig org.; Vandenhoeck and Ruprecht,

Göttingen, 1966.

Kleine Schriften (I. Angelelli org.), Darmstadt and Hildesheim, 1967.

Nachgelassene Schriften (H. Hermes, F. Kambartel and F. Kaulbach, org.), Hamburg,

1969.

Schriften zur Logik und Sprachphilosophie aus dem Nachlass, G. Gabriel (org.), Hamburg,

1971.

TRADUÇÕES

The Foundations of Arithmetic (J. L. Austin trad.), Oxford, Basil Blackwell, 1980.

Translations from the Philosophical Writings of Gottlob Frege (P. Geach and Max Black

orgs.), Oxford, Basil Blackwell, 1980 (3ª ed.).

Logical Investigations (P. T. Geach and R. H. Stoothoft trads.), Yale University Press,

1977.

"The Thought: a Logical Enquiry" (A. and M. Quinton trad.), Mind, LXV (1956),

pp. 289-311; reedit. in KLEMKE, Essays on Frege, pp. 507-35.

Posthumous Writings (Peter Long and Roger White trads.), Oxford, Basil Blackwell,

1979.

Les Fondements de l'arithmétique (Claude Imbert trad.), Paris, Ed. du Seuil, 1970.

Écrits logiques et philosophiques (Claude Imbert trad.), Paris, Ed. du Seuil, 1975.

139

Lógica e Filosofia da Linguagem (Prof. Paulo Alcoforado, org. e trad.), S. Paulo,

Editora Cultrix, 1978.

Os Fundamentos da Aritmética (trad., pref. E notas António Zilhão), Lisboa,

Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992.

OBRAS SOBRE FREGE

ANGELLELLI, I., Studies on Gottlob Frege and Traditional Philosophy, DORDRECHT,

D. Reidel Publishing Company, 1967.

BAKER, G. P. e HACKER, P. M. S., Frege: Logical Excavations, Oxford, 1984.

BELL, D., Frege's Theory of Judgement, Oxford, 1979.

BERGMENN, Gustav, "Frege's hidden nominalism", Philos. Review, 67, 1958, pp.

437-59; reedit. in KLEMKE, E.D., Essays on Frege, pp. 42-68.

CARL, Wolfgang, Frege's Theory of Sense and Reference. Its Origins and Scope, Cambridge

University Press, 1994.

CHURCH, A., "A Formulation of the Logic of Sense and Denotation", Structure,

Method and Meaning, Essays in honour of H. Sheffer, New York, 1951.

Introduction to Mathematical Logic, Vol. 1, Princeton, Princeton

University Press, 1956.

CURIIE, G., "Frege on thought", Mind, Vol. LXXXIX, 1980, pp. 234-48.

DUMMETT, M., - "Frege", The Encyclopedia of Philosophy, New York, Paul Edwards

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Truth and other enigmas, London and Cambridge, Massachussetts,

1978.

Frege, Philosophy of Language, London, Duckworth, 1981 (2ª ed.).

The Interpretation of Frege's Philosophy, Cambridge, Massachussetts

Harvard University Press, 1981.

Frege and Other Philosophers, Oxford, 1991.

FISK Milton, "A Paradox in Frege's Semantics", Philosophical Studies (1963), pp. 56-

63; Reedit. in KLEMKE, Essays on Frege, pp. 382-90.

FØLLESDALE, D., Husserl und Frege, Oslo, 1958.

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. IV. OBRAS DE FRANZ BRENTANO

Die Lehre vom richtigen Urteil, Francke Verlag, Berna, 1956.

Psychologie vom empirischen Standpunkt, I, Meiner Verlag, Leipzig, 1924, 2ª ed.

Psychologie vom empirischen Standpunkt, II: Von der Klassifikation der psychischen

Phänomene, Duncker & Humblot, Leipzig, 1874 e 1911 (2ª ed.).

Psychologie vom empirischen Standpunkt III: Vom sinnlichen und noetischen Bewusstsein,

Meiner Verlag, Hamburg, 1968, 2ª ed.

141

Psychology from an Empirical Standpoint, ed. Linda L. McAlister, trad. A. C.

Rancurello, D. B. Terrell e Linda L. McAlister, Routledge, London, 1995.

Psychologie du Point de Vue Empirique, trad. e prefácio de Maurice de Gandillac, Paris,

Aubier Editions Montaigne, 1947.

Versuch über die Erkenntnis, Hamburgo, Meiner Verlag, 1970 (3ª ed.): Kurzer Abriss

einer allgemeinen Erkenntinistheorie (pp. 145-157). Trad. cast. De Miguel García-

Baró: Breve Esbozo de una Teería General del Conocimiento, Madrid, Ediciones

Encuentro, 2001.

Vom Dasein Gottes, ed. A. Kastil, Hamburg, 1980.

Sobre la Existencia de Dios, trad. e prólogo de A. Millán Puelles, Madrid, Rialp, 1979.

Wahrheit und Evidenz, Hamburg, Felix Meiner, 1930.

The True and the Evident, trad. de R. Chisholm, London, Routledge & Kegan Paul,

1966.

OBRAS SOBRE BRENTANO

BENOIST, J. - Phénoménologie, sémantique, ontologie. Husserl et la tradition logique

autrichienne, Paris, PUF, 1997.

BRANDL, J. -"Brentano's Theory of Judgement" Stanford Encyclopedia of Philosophy

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