Filosofia e Linguagem. Logos e Praxis
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MARIA LUÍSA PERES COUTO SOARES
PROFESSORA AUXILIAR DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
FILOSOFIA E LINGUAGEM
LOGOS E PRAXIS
LISBOA 2004
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- Quando utilizo uma palavra – disse Humpty Dumpty, num tom desdenhoso -, ela significa exactamente o que eu quero que ela signifique, nem mais, nem menos.
- A questão está em saber – disse Alice – se tu podes fazer que as palavras tenham significados diferentes.
- A questão está em saber – disse Humpty Dumpty – quem deverá ser o mestre, é só isso.”
LEWIS CARROLL
Alice do outro lado do espelho
O símbolo pode dizer ao Homem,
como dizia a esfinge de Emerson: «Dos teus olhos, sou eu o olhar»
CHARLES SANDERS PEIRCE
Le mot, qu’on le sache, est un être vivant… le mot est le verbe, et le verbe est Dieu
VICTOR HUGO
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Introdução
I. Filosofia Transcendental e Crítica da Linguagem.
1. Linguagem e Pensamento. A conaturalidade entre o pensar e o dizer. Homo
Loquens.
2. “A viragem linguística” (Linguistic turn). As origens da Crítica da
Linguagem. A análise linguística como campo e modo do filosofar.
3. A radicalização da crítica no Tractatus.
4. A Linguagem como medium universal.
5. Wittgenstein, um filósofo kantiano?
6. A Semântica do «Eu».
II. A Tradição Analítica
1. Funções significativas: a distinção entre sentido e referência (Sinn und
Bedeutung de Frege).
2. O sentido dos nomes próprios.
3. A referência do conceito.
4. Sentido e Referência das proposições: Sinn und Bedeutung e Der Gedanke
5. Aporias do sentido
6. O que é pensar? A apreensão do sentido? Pensar e conhecer.
III. Semântica e Pragmática
1. A estrutura do acto de julgar.
2. Asserção e predicação.
3. Impasses da noção de correspondência.
4. Juízos de existência. A semântica da existência.
5. A Sprachkritik de Brentano: as ficções da linguagem.
6. Dimensão pragmática da linguagem. Os actos de fala.
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INTRODUÇÃO
Uma das tarefas da filosofia consiste em optar por um ponto de partida, como
considerava Granger. Mas a procura de um ponto de partida faz parte já do
filosofar. E prescindir de um ponto de partida fixo constitui também uma opção
possível e pode ser um modo de pensar enriquecedor e fecundo.
Estas observações são pertinentes na medida em que a Filosofia da
Linguagem, hoje em dia, está em grande parte dominada pela Filosofia Analítica,
que dificilmente se deixa circunscrever ou enquadrar numa caracterização definida.
Dummett1 assinala o cunho anti-sistemático e polifacetado do movimento
analítico, e aponta apenas três princípios básicos, comuns a toda a escola analítica:
o propósito da filosofia é o de analizar a estrutura do pensamento; este desideratum
distancia-se duma abordagem psicológica dos processos de pensamento e o único
método consiste na análise da linguagem. Isto é muito e é pouco. É muito porque
se pode ver nestes três princípios a mesma persistência em encontrar uma
metodologia sistemática dos grandes pensadores desde Descartes, Spinoza a
Husserl. É pouco, porque partindo destes princípios, cabe uma grande variedade
de modos de praticar a filosofia: basta pensarmos em autores tão diferentes como
Carnap ou Goodman, e Austin, Ryle ou Searle.
Ao elaborar este Programa não se procurou reconstituir a gênese da analítica
contemporânea, nem seguir estritamente uma «metodologia» específica e restritiva.
As grandes questões fundamentais – como pode a linguagem exprimir o
pensamento e reflectir ou actuar sobre o mundo? – são sem dúvida aquelas das
quais se têm ocupado de uma forma ou outra os grandes autores da escola
analítica. No entanto, a filosofia analítica é um exercício de análise que muitas
vezes ignora os seus próprios pressupostos, na opinião de Rorty. Entre esses
pressupostos está precisamente a problemática epistemológica, que esteve na base
1 Truth and other enigmas, “Can Analytical Philosophy be systematic and ought it to be?”, p. 441.
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do neopositivismo lógico e no seu propósito de construir uma linguagem ideal que
traduzisse com toda a precisão o pensamento científico. Foi este ideal que norteou
também o trabalho de Frege, de Wittgenstein (no Tractatus). Mas originariamente
esta intenção obedecia à pretensão de resolver as profundas dificuldades dos
problemas epistemológicos. Segundo Rorty, “a coisa mais importante que
aconteceu na filosofia nos últimos trinta anos não é a própria viragem Linguística,
mas sim o início de uma radical reformulação de certas dificuldades
epistemológicas que perturbaram os filósofos desde Platão e Aristóteles”2.
A crítica neopositivista, baseada no critério empirista de sentido anula-se a si
mesma, como foi recorrentemente apontado pelos grandes objectores ao
verificacionismo (desde Popper, Wittgenstein, até Quine). As expectativas criadas
pela viragem Linguística seriam um logro, se a própria filosofia analítica posterior
não tivesse, ela própria, denunciado os pressupostos neopositivistas, libertando-se
deles para recuperar os grandes problemas da ontologia e da metafísica. A analítica
de raiz positivista, com a pretensão de ocupar o lugar da ontologia, contém em si
mesma os gérmenes da sua destruição: a filosofia e a metafísica liquidada e expulsa
pela porta volta a entrar pela janela. Rorty reconhece que a viragem Linguística
tem diante de si dois horizontes possíveis: a promessa de um verdadeiro e
renovador trabalho analítico e, simultaneamente, a sua autodissolução e o suicídio
da própria filosofia3.
Não partilhamos do prognóstico que anuncia o fim da Filosofia. Também na
dinâmica do pensar nada se cria, nada morre, tudo se transforma. Depois de
momentos agonizantes, os grandes temas ontológicos e metafísicos retornam
como a Fênix renascida. O panorama filosófico dos últimos anos confirma-o: a
crítica devastadora do discurso metafísico coexiste com a renovação das grandes
tradições do pensamento e das suas interrogações fundamentais. Os impasses
provocados por uma demarcação extrema entre os saberes filosóficos e científicos,
que conduziram à tentativa de eliminação dos primeiros, são superados pela
transformação da própria noção do sentido. Recupera-se a contextualização num
horizonte antropológico mais amplo, que integra o uso e o carácter social e
2 Cfr Rorty, The Lihnguistic Turn, p. 39. 3 Cfr ibidem, p. 35.
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dinâmico do processo de significação, e a sua relação expressiva da complexidade
do mental: a analítica encontra o seu prolongamento na pragmática e na filosofia
da mente. Ao mesmo tempo, a construção de sistemas lógicos e de linguagens
formalizadas veio trazer de novo à boca de cena problemas filosóficos
tradicionais, dando-lhe novas formas (pense-se, por exemplo, nos pressupostos
ontológicos de um sistema formal, na discussão do estatuto de entidades
abstractas, na análise dos juízos de existência e suas implicações metafísicas, no
problema das modalidades, etc.).
As questões que renascem da análise lógico-semântica da linguagem
ultrapassam as margens estritas da Filsofia da Linguagem e ramificam-se em
múltiplas e variadas áreas e disciplinas filosóficas. Além disso, permitem retomar o
fio das grandes tradições do pensamento, desde Platão, Aristóteles até à Filosofia
Moderna e Contemporânea.
Voltando ao problema inicial, o do «estilo»: optamos por orientar-nos pelas
seguintes directrizes: uma perspectiva anti-historicista que vise os problemas e
argumentos no contexto alargado de um diálogo entre pensadores, mais do que na
sua delimitação temporal; uma orientação analítica, mas também interpretativa;
uma intenção descritiva e compreensiva.
Em toda a tradição filosófica, desde o Crátilo de Platão, ou a Metafísica de
Aristóteles até aos autores contemporâneos, há um «comércio» constante entre
Filosofia e Linguagem. O que se pretende é mostrar que benefícios pode tirar a
interrogação filosófica desse «comércio».
!!!!!
A Filosofia da Linguagem ocupou um lugar central na reflexão filosófica do
século XX, sobretudo a partir dos anos 30, dando origem a uma nova orientação
no modo de pensar e argumentar os problemas: a linguagem não é perspectivada
como “objecto” da filosofia, mas assume o papel de ponto de partida e condição
de todo o pensamento e discurso com sentido. Nisto consistiu a grande
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transformação da filosofia – a «viragem linguística» - que trouxe a linguagem para
o lugar de philosophia prima, enquanto Crítica da Linguagem Pura.
Na primeira parte deste Programa, tratar-se-á desta passagem da Filosofia
Transcendental kantiana para a Filosofia Analítica, que se pode caracterizar de um
modo geral por uma mudança do centro de gravidade da problemática filosófica: o
conhecimento, sua possibilidade e alcance é substituído pela linguagem como
fenômeno tipicamente humano onde se reflectem o funcionamento da mente e os
seus processos.
O locus principal desta passagem é o Tractatus de Wittgenstein, que
radicaliza a crítica kantiana, transformando-a num «linguismo transcendental».
Trata-se de averiguar das condições de possibilidade de todo o discurso, ou dos
limites de toda a linguagem com sentido. Esta tarefa assenta na base de uma
aporia incontornável, que põe em causa o estatuto das próprias proposições do
Tractatus: pretender traçar os limites da linguagem leva a ultrapassar esses próprios
limites, produzindo um discurso que infringe as próprias regras do sentido
pressupostas. O impasse final do Tractatus simboliza o problema crucial da
possibilidade de uma semântica total focada exclusivamente na dimensão
representativa da linguagem.
A II parte explora alguns dos principais tópicos de uma semântica
filosófica: como medium entre pensamento e mundo, a linguagem tem o privilégio
de ser a via de acesso ao pensamento e ao mesmo tempo um espelho do mundo.
Para desempenhar esta função de apresentação da realidade, de ser imagem dos
factos, o processo de significação pressupõe uma dimensão cognitiva e prática da
parte de sujeito que usa os signos. A capacidade de significar não se reduz à mera
capacidade mimética de reproduzir, representar, mas implica capacidades
heurísticas e o dom peculiar de intencionar, sem os quais qualquer palavra ou signo
permaneceria mudo e opaco e perderia a sua dimensão transitiva e, com ela toda a
sua transparência.
A semântica de Frege encara a linguagem como o único meio de acesso ao
pensamento, conferindo-lhe visibilidade. De outro modo, os nossos processos
mentais permaneceriam incognoscíveis, impossíveis de analisar. Só a análise
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linguística permite a elucidação do que significa pensar, raciocinar. A distinção
entre sentido e referência, introduzida por Frege, permite responder a duas
questões fundamentais respeitantes ao processo de significação: por um lado, a
dimensão cognitiva do emprego da linguagem que explica como é que um sujeito
sabe usar os nomes, as proposições e reconhece o que estes designam; por outro lado,
a capacidade de referir, através dos signos linguísticos, objectos de pensamento
determinados. O sentido, que no caso das proposições, é precisamente o
pensamento expresso, traduz mediação entre o signo e o seu referente através dos
processos cognitivos do sujeito locutor: um nome tem sentido porque apresenta
um critério de identificação do objecto designado, um predicado porque permite
determinar quais os objectos que caem sob o conceito correspondente, a
proposição porque exprime um pensamento que tem por referência um dos
valores de verdade. Em qualquer dos casos, o sentido apresenta-se como uma seta
que indica a direcção do signo para o seu referente, o elemento extra-linguístico
visado pela linguagem. Assim se traduz semanticamente a dupla relação da
linguagem com a mente e com a realidade extramental – uma proposição exprime
um pensamento (o seu sentido) e designa um valor de verdade ( a sua referência).
A noção de sentido garante a objectividade do pensamento, que não se encerra no
domínio da subjectividade, mas alcança um estatuto intersubjectivo independente
dos actos psicológicos do pensar e do julgar. Pensar, para Frege, significa
apreender, captar um sentido. O pensamento não é um mero produto mental, mas
algo que transcende a consciência do sujeito e que se lhe apresenta como algo de
real.
Ao estabelecer a distinção entre o conteúdo do juízo e a asserção, Frege
introduz já uma nota importante para as novas teorias do juízo: o acento posto na
força assertiva prenuncia a dimensão pragmática do julgar, que não é a mera síntese
de representações, mas a afirmação ou a negação de algo (como verdadeiro ou
falso). O modelo da linguagem como espelho ou imagem do real não dá conta da
especificidade do acto de julgar, forma germinal de todo o pensar: a reformulação
da teoria do juízo de Brentano mostra precisamente a peculiaridade do juízo como
posição, que releva de um acto espontâneo do sujeito. A revisão brentaniana da
noção do juízo vai a par da sua reformulação crítica da verdade como
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correspondência, e da linguagem como “imagem” da realidade, duas concepções
que se sustentam mutuamente.
O breve exame da teoria do juízo de Brentano e da sua Sprachkritik servirá
de ponte para a consideração da dimensão pragmática da linguagem. O carácter
refigurativo, o discurso como representação mimética da realidade não recobre
toda a complexidade dos processos da linguagem. Com Brentano fica claro que
qualquer acto judicativo pressupõe uma posição, uma afirmação (ou negação) de
existência. Isto significa que a análise do juízo deve focar o acto de julgar e não a
sua expressão Linguística abstracta através de uma proposição. A própria idéia de
significado proposicional é uma abstracção que violenta a realidade psicológica e
linguística. Não há nenhum correlato real ou quase-real do juízo, como as
proposições em si ou os pensamentos enquanto realidades autónomas a serem
apreendidas: para Brentano, real, é apenas o sujeito do juízo e o seu acto de julgar.
As frases não têm vida própria, não são entidades linguísticas ou objectos
abstractos que possam ser examinados em si mesmos. O modelo da linguagem-
espelho, no qual as proposições expressas numa frase são consideradas como
objecto de referência, dos quais se deve tentar analisar a estrutura, além de
demasiado simplista, é enganador porque não é assim que funciona a linguagem. A
revisão crítica de Wittgenstein e a sua sugestiva noção de jogo de linguagem
mostram que esta toma a forma de comportamento, actividade, especificamente
prática e social: a semântica colapsa na pragmática, de contrário origina
«mitologias» totalmente transviadas.
A pragmática – que encontrará expressão emblemática na noção de
performativo, introduzida por Austin – lida precisamente com o funcionamento da
linguagem no contexto. Esta perspectiva assinala um nítido contraste com a
tradição, pois a sintaxe e a semântica sempre pretenderam dar uma visão da
linguagem em abstracto, sem ter em conta os contextos situacionais: a primeira
pretende averiguar se uma série de palavras constitui uma frase gramaticalmente
correcta, a segunda, ocupa-se do significado de uma proposição-tipo, abstraindo
de qualquer emprego concreto e particular. De facto, na prática linguística, não há
lugar nem para uma abordagem do significado de proposições em si mesmas
consideradas, fora do contexto de uso, nem se pode esquecer que os factores
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práticos e sociais se interpenetram com os factores puramente semânticos, que
determinam o significado das palavras e proposições.
O nosso percurso partirá, portanto, do problema da possibilidade da
semântica, como discurso de segunda ordem sobre o processo de significação,
para a pragmática, e contextualização da linguagem no enquadramento prático e
social. Nem a imagem da linguagem como espelho ou imagem, nem o modelo do
jogo pode dar conta do funcionamento da linguagem em exclusivo. Ambas
remetem uma para a outra, numa rede complexa que releva de um contexto
interdisciplinar: um estudo sobre a linguagem não pode eximir-se das
interferências psicológicas, antropológicas e ontológicas. Por isso o diálogo entre
Filosofia e Linguagem constitui um programa com amplos horizontes e
proporciona um campo sem limites para a investigação filosófica.
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1. Linguagem e Pensamento. A conaturalidade entre o pensar e o dizer.
Homo Loquens.
1. Não é novo o interesse filosófico pela linguagem. Já no Fédon, Platão propõe
estudar a linguagem como espelho da realidade, para que a sua mente não ficasse
cega pela visão directa das próprias coisas, como acontece com um desavisado
observador de um eclipse do sol. A idéia da linguagem como espelho é recorrente
até à modernidade, adoptando formas muito diversas, desde a kantiana, em que a
linguagem reflecte o pensamento, mas não a realidade que permanece
incognoscível, até ao isomorfismo estrutural entre linguagem e mundo do
atomismo lógico e da teoria pictórica do Tractatus.
O fio condutor nos primórdios da ontologia antiga é o logos, termo que designa
simultaneamente o pensamento e a linguagem, a ratio e a oratio exprimindo a
estreita conexão entre ambos. Como assinala Heidegger, a distinção terminológica
entre as duas dimensões – logos como ratio e logos como oratio – é muito mais tardia
e a sua completa separação surge apenas com o racionalismo moderno.
Originariamente o homo sapiens é simultaneamente homo loquens, a capacidade de
pensar coincide com uma capacidade de simbolizar e de significar.
Numa primeira aproximação ao binómio Pensamento/Linguagem,
detectamos esta conaturalidade entre o pensar e o dizer, as duas faces do logos que
se evidenciam na própria articulação da razão e da linguagem. A estrutura lógica
desta última não é apenas uma manifestação evidente do pensar, é o pensar,
enquanto forma configuradora da linguagem. Há, no entanto, uma certa assimetria
entre linguagem e pensamento: não se pode negar em absoluto a possibilidade de
um pensamento não articulado, não expresso verbalmente; mas o que não é
concebível é uma linguagem humana que não seja ela própria também
pensamento.
Sendo uma poiesis essencial, internamente vinculada à praxis do pensamento, a
linguagem confere uma dimensão fáctica e uma visibilidade ao pensamento: este é
invisível, intocável, é a linguagem que, como uma veste – segundo a metáfora de
Frege – lhe dá visibilidade. Esta relação íntima torna-se patente na intrínseca
inteligibilidade da linguagem: entendemos o que lemos num livro antigo e
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poeirento, ou numa inscrição antiga, como entendemos uma frase totalmente
nova e inesperada e somos capazes de exprimir novos pensamentos com palavras
velhas.
Não se identificando totalmente com o pensamento, pois lhe confere o seu
aspecto mundano, fáctico, visível, a linguagem não se reduz tão-pouco a uma
forma externa, sobreposta, mas é também, formalmente, pensamento e tem, por
isso, uma certa dimensão transcendental. Por esta razão, olhar, reparar nos modos
de dizer, permite ver e apreender os modos de pensar (o modus significandi
corresponde ao modus cognoscendi, como o exprime Tomás de Aquino). Aqui se
pode fundar uma exploração de todos os problemas do conhecimento recorrendo
à via da análise linguística, como meio privilegiado para a elucidação dos processos
do pensar: a filosofia da linguagem e o problema da significação ocuparão o lugar
inaugural e principial de toda a filosofia, produzindo uma viragem radical da
centralidade do sujeito e da consciência para a estrutura linguística. O novo
programa da «viragem linguística» (linguistic turn) adopta este axioma fundamental:
a única via para a análise do pensamento passa pela análise da linguagem.
2. No Crátilo, Platão propõe para exame a definição do nome como mimesis da
coisa real, definição que repercutirá em toda a concepção da linguagem como
reflexo exacto da realidade, que encontra a sua expressão na teoria pictórica do
Tractatus. Neste sentido, ocorre pensar num outro aspecto da linguagem, o da sua
relação com o mundo: ela surge-nos como um plano mediador, uma via de acesso
entre pensamento e mundo, um espelho no qual se reflectem as coisas. Se
pudermos confiar neste isomorfismo entre as palavras e as coisas, a estrutura da
linguagem parece poder servir como uma pauta adequada para a reflexão
metafísica e ontológica. Poderá a análise da linguagem constituir também a via
mais indicada para a solução dos problemas metafísicos? Austin nota com
perspicácia que a análise da linguagem poderá ser a primeira palavra em metafísica,
mas não é a última. De facto, toda a reflexão metafísica inclui também a tarefa
crítica das próprias condições do pensamento e, neste caso, assumirá a crítica da
linguagem.
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Uma crítica da linguagem pode traduzir-se em dois tipos de procedimentos: 1.
a análise lógico-linuística como versão de uma investigação transcendental sobre
as condições de possiilidade do dizer com sentido (O Tractatus é o exemplo desta
radicalização da filosofia transcendental kantiana numa espécie de “linguismo
transcendental”, segundo a leitura proposta por Stenius). 2. a luta contra as
ambiguidades, vaguezas, disformidades induzidas pela linguagem que, se por um
lado exprime o pensamento e representa a realidade, também mascara o primeiro
e deturpa a segunda. As atitudes de suspeita para com os mitos e
pseudoproblemas que nascem dos mal-entendidos linguísticos são comuns a
Frege, Brentano, Wittgenstein. O ideal da linguagem rigorosa e perfeita norteou
todo o trabalho de Frege e absorveu a atenção de Wittgenstein no Tractatus. A
pretensa conaturalidade entre o dizer e o pensar encontra-se obstruída no uso
corrente da linguagem e dificulta a compreensão dos problemas a tal ponto que,
como escreverá Frege, “em grande parte, todo o trabalho do filósofo consiste em
lutar com a linguagem”.
3. O interesse filosófico pela linguagem não se limita ao facto de esta ser uma
via de acesso ao pensamento, e permitir por isso a elucidação de problemas no
âmbito da epistemologia, filosofia da mente e mesmo metafísica. O fenómeno da
linguagem é revelador da peculiaridade do ser humano enquanto tal. Este é
constitutivamente um animal symbolicum, não só por revelar as competências
linguísticas próprias, mas porque toda a praxis linguística constitui o seu habitat
natural. Não faz sentido estabelecer uma separação entre linguagem-mundo-
pensamento, interpondo barreiras artificiais e isolando três domínios distintos e
autónomos. Os signos linguísticos pertencem ao nosso mundo, como quaisquer
outros factos, e incarnam formalmente os pensamentos. Daí que o interesse pela
linguagem não se pode reduzir simplesmente ao interesse pelos signos como algo
que se sobrepõe às coisas do mundo e por vezes as ocultam; nem se pode ver
nesse interesse pelas palavras um sintoma de crise ou decadência da filosofia, que,
desatenta às coisas reais tal como são, se deixa prender às palavras que as
significam.
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Embora o objectivo central deste Programa seja o de proceder à elucidação do
pensamento e modos de conhecer através do que revela a análise linguística, não
se pode deixar de ter presente o horizonte antropológico mais amplo e abarcante
do fenómeno da linguagem: nele se revela de um modo privilegiado a dinâmica
inter-subjectiva e social do ser humano.
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2.“A viragem linguística” (Linguis t i c turn). As origens da Crítica da
Linguagem. A análise linguística como campo e modo do filosofar.
1.“O que distingue a filosofia analítica nos seus diversos aspectos de
outras correntes filosóficas, é em primeiro lugar a convicção de que uma análise
filosófica da linguagem pode conduzir a uma explicação filosófica do pensamento,
e em segundo lugar a convicção que esse é o único modo de alcançar uma
explicação global”4
Antecedendo, em parte a corrente analítica, os representantes do Círculo
de Viena defendiam já a ideia que a análise lógica da linguagem é o instrumento
imprescindível para discernir o sentido das proposições e este por sua vez define-
se em termos de verificabilidade. Wittgenstein não se pode considerar um
partidário do verificacionismo, mas representa bem os dois princípios acima
mencionados. Exemplo flagrante da primazia atribuída à análise da linguagem, é
Frege, que muitos consideram o pai da filosofia analítica. Nos Fundamentos da
Aritmética, Frege propõe uma questão epistemológica – como podemos determinar
o sentido de proposições que contêm a expressão de números? – e responderá
através de uma investigação sobre a linguagem.
No entanto, a atitude de Frege em relação à linguagem é ambivalente: se
por um lado ela espelha o pensamento, também o deforma e mascara. É
necessário manter uma certa cautela e desmitificar o excesso de confiança na
possibilidade de encontrar na linguagem o reflexo adequado e autêntico do
pensamento. Em carta a Husserl, Frege adverte: “A tarefa essencial do lógico
consiste em libertar-se da linguagem”.
De qualquer modo o trabalho de Frege constitui uma fonte de inspiração
para a viragem linguística: três aspectos estão na raíz deste novo modo de proceder
para tratar dos problemas filosóficos.
1) Em primeiro lugar a convicção de que a estrutura do pensamento deve
reflectir-se na estrutura da proposição e, sem o recurso à expressão linguística não
4 Dummett, M – La Philosophie Analytique, p. 13.
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encontraríamos qualquer meio para compreender o que exprime o pensamento.
Faz parte da essência do pensamento ser exprimível linguisticamente, se bem que
Frege não identifique radicalmente pensamento e sentido; hipoteticamente pode
pensar-se na existência de pensamento em si, não expresso linguisticamente. No
entanto, não há outra via para aceder ao pensamento que não seja a da análise
linguística. Todos aqueles que adoptarem como princípio a análise do significado
linguístico como modo de acesso a uma análise dos pensamentos, encontram em
Frege os fundamentos do seu estilo filosófico e do seu modo de investigação.
2) É ao pensamento, e não à proposição, que se deve atribuir o verdadeiro e
o falso; o valor de verdade constitui a referência da proposição, mas é em primeiro
lugar o seu sentido que tem originariamente esse referente. A tensão entre o
sentido – como modo de dar-se o referente – e a necessidade do próprio conceito
de referente para explicar o conceito de sentido, torna ambivalente o lugar da
análise do significado como via de acesso à compreensão e apreensão do referente
das proposições. Frege admite a possibilidade de apreender um pensamento sem
recorrer à sua expressão linguística; como se dá essa apreensão do pensamento,
apreender um sentido, a não ser como o sentido de uma expressão à qual se pode
atribuir um referente?
3) A perspectiva segundo a qual seria possível apreender os pensamentos na
sua «nudez», desprovidos da «veste» linguística, entra em conflito com o conceito
do sentido de uma expressão. Um sentido que não possa ser captado é uma pura
ilusão, uma quimera; se de facto é possível apreender um pensamento em si
mesmo, deveríamos ser capazes de dizer o que significa apreender esse
pensamento, de contrário, é difícil conciliar essa viabilidade de acesso com a
impossibilidade de o explicar. Apesar das ambivalências com que Frege trata a
relação entre pensamento e linguagem, admitindo que a expressão simbólica do
primeiro não é absolutamente necessária para que exista um pensamento, a praxis
do trabalho de Frege origina indubitavelmente uma nova orientação para a análise
linguística como sendo a via adequada para uma análise do pensamento, e a única
que permite dar uma explicação da sua estrutura e configuração lógica.
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2. Um outro aspecto fundamental justifica que se fale de uma autêntica
«viragem»: os pensamentos deixam de ser considerados como eventos ou
processos localizados na consciência e passam a ter um estatuto objectivo, uma
existência própria como entidades intemporais, imutáveis e autónomas do próprio
acto psicológico de pensar. Esta «expulsão» dos pensamentos do âmbito da
consciência coincide com todo o «movimento para a objectividade» cujos
antecedentes se podem encontrar nitidamente em Bolzano (as proposições em si),
e tem como consequência prática a rejeição de qualquer forma de psicologismo. A
lógica e as teorias do pensamento e da significação estão fora do campo da
psicologia e não relevam em nada das leis fácticas dos processos psíquicos:
Husserl, Frege são os principais campeões na luta contra o psicologismo, que se
continuará em Wittgenstein na crítica aos processos mentais, internos e, de um
modo indirecto na concepção do sentido como uso. Dummett aponta a herança
fregeana de Wittgenstein, ao afirmar que a tese da objectividade do sentido é uma
antecipação da doutrina de Wittgenstein segundo a qual o significado é o uso.
3. O alcance desta projecção do pensamento fora da consciência é claro:
toda a investigação que pretenda compreender o que é pensar, explicar os
processos do conhecimento, não tem as suas raízes numa filosofia da consciência,
ou na genealogia psicológica dos conceitos, mas na teoria do significado e da
expressão linguística, porque é este o locus próprio do pensamento. A análise da
linguagem não termina na fisicalidade e na facticidade dos signos, mas é de facto
uma análise do pensamento. É fácil antever como a filosofia analítica conduzirá
naturalmente á filosofia da mente.
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3. A radicalização da cr í t i ca no Tractatus . Filosofia Transcendental e
Analítica da Linguagem.
1. A «viragem linguística» constituiu uma certa transformação da filosofia, não
quanto aos seus problemas, argumentos, teorias, mas quanto ao modo de tratar
dos mesmos. O interesse central pela linguagem, que tem monopolizado a atenção
filosófica nos últimos anos não significa desinteresse pelas grandes questões da
filosofia, mas traduz a convicção de que a linguagem proporciona a chave para
resolver (ou, em certos casos, dissolver) os grandes enigmas. A nova orientação do
modo de pensar pressuposta no linguistic turn, pode considerar-se, de certo modo,
como uma réplica da «revolução copernicana» e o confronto destas duas viragens
mostra o papel mediador da filosofia transcendental no processo de
transformação da metafísica. O aspecto central desta viragem de uma crítica do
conhecimento qua análise da consciência para uma crítica do conhecimento qua
análise da linguagem reside precisamente na transformação do problema do valor
de verdade: este já não se identifica com o problema da evidência ou da certeza
para uma consciência solitária em sentido cartesiano, nem tão pouco na validade
objectiva para uma «consciência em geral», em sentido kantiano, mas sim com o
problema de uma formação intersubjectiva de consenso, em virtude do acordo
linguístico. Em continuidade com o problema transcendental kantiano – a reflexão
sobre as condições de possibilidade e validade do conhecimento – a linguagem
constituiria agora o tema e o meio da reflexão transcendental, em lugar da própria
consciência.5
Apel aponta essa posição mediadora do pensamento kantiano:
“A mudança fundamental da relação entre a filosofia e a linguagem que
distingue o século XX do XIX, e talvez até de toda a tradição, consiste em que a
linguagem já não é tratada simplesmente como objecto da filosofia, mas pela
primeira vez, é considerada como condição de possibilidade da filosofia. Neste sentido,
a “filosofia da linguagem” não é já uma filosofia de ligação, como a “filosofia da
natureza, “a filosofia do direito”, a “filosofia da sociedade”, etc.;(...) hoje em dia a
5 Cfr. Apel, La Transformación de la Filosofía, tomo I, p.298.
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“filosofia da linguagem” é considerada (...) como philosophia prima; quer dizer,
assim como a crítica do conhecimento segundo o procedimento de Kant, e de
certo modo como a sua radicalização em crítica da linguagem, ocupou o lugar da
ontologia.”6.
2. O Tractatus presta-se a múltiplas e diversas leituras: a primeira recepção da
obra de Wittgenstein por Russell e os representantes do Círculo de Viena
adoptou-o como a magna carta do empirismo e essas primeiras versões
encobriram certamente o pensamento originário de Wittgenstein. Outras leituras
mais atentas e livres dos compromissos neopositivistas, reconheceram a estreita
vinculação do Tractatus a uma atitude transcendental e até a sua filiação kantiana. É
claro que a influência de Kant não vem directamente dos seus escritos, mas
provavelmente das leituras de Schopenhauer que tanto marcaram Wittgenstein na
sua juventude. Ao contrário dos pensadores neopositivistas, Wittgenstein foi até
certo ponto um filósofo kantiano, se bem que, como tantos outros, transformou o
sistema de Kant numa forma peculiar de transcendentalismo, que Stenius
denomina como “linguismo transcendental”7.
Nos dois casos, na filosofia transcendental de Kant e na crítica da linguagem
de Wittgenstein, estabelece-se ou aponta-se um limite: o limite da experiência
possível e do que é acessível à razão teórica, o limite da linguagem com sentido.
Para além desse limite, fica a aparência transcendental originada pelo uso ilegítimo
da razão, ou o sem sentido que se mostra nas proposições, mas que não pode ser
dito. Para traçar este limite, é necessário determinar as condições de possibilidade
da experiência (Kant), e as condições de possibilidade do dizer com sentido
(Wittgenstein). É a exigência da determinação do sentido – do sentido do nosso
próprio conhecimento e da sua expressão linguística – que move todo o processo
crítico.
O pensamento wittgensteiniano apresenta-se, assim, como uma forma radical
da análise transcendental, a crítica do pensamento através da clarificação das suas
6 Die Idee der Sprache in der Tradition des Humanismus von Dante bis Vico. Bouvier, Bonn, 1975, p. 22. 7 Stenius, E. Wittgenstein’s Tractatus. A critical Exposition of its Main Lines of Thought, Oxford, Blackwell, 1964. Cfr sobretudo cap. XI.
21
condições de sentido, que são dadas pelas exigências lógicas do dizer com sentido.
O limite marca a fronteira entre o dizer e o mostrar, (“O que se pode mostrar não se
pode dizer” T. 4.1212), que se pode aproximar da fronteira kantiana entre o que se
pode pensar (denken), mas não conhecer (erkennen).
A Filosofia é a actividade crítica que consiste essencialmente em elucidar
proposições (T. 4.112). O seu resultado não é um corpo de «proposições
filosóficas», mas o contínuo esclarecimento da nossa linguagem. Compete-lhe
“delimitar o que é pensável, e assim o impensável”.
“Ela deve delimitar o impensável, do interior, através do pensável” (4.114).
Deste modo, “ela denotará o indizível, ao representar claramente o que é
dizível” (4.115).
O indizível é o transcendental, o que se mostra ao dizer o dizível.
3. A Lógica do Tractatus é transcendental, não é uma doutrina, mas um
“espelho cuja imagem é o mundo” (6.13). Ela “trata de cada possibilidade e todas
as possibilidades são os seus factos” (2.0121).
A dimensão transcendental, possibilitante da corrrespondência entre a figura
linguística e os factos, é a forma lógica. Na Dedução Transcendental, Kant
demonstra que as formas a priori da subjectividade transcendental são as formas
dos objectos enquanto tais. Pois bem, na análise wittgensteiniana mostra-se que a
forma lógica é a forma da realidade (2.18). O que possibilita este isomorfismo não
é uma realidade de facto, mas uma exigência de jure. A forma lógica não é
representável nem dizível – “o que se exprime na linguagem, nós não podemos
exprimir através dela” (4.121).
O dizível corresponde à realidade total, o mundo (2.063), o fáctico que é
constituído por «estados de coisas» e cuja substância são os objectos simples.
Estes são exigidos transcedentalmente pela própria lógica: não nos são dados nem
na experiência, nem na percepção, nem em qualquer outro modo de
conhecimento ou acesso. São requeridos de uma forma a priori pela própria
concepção da análise, que os contém já implicitamente: “Parece que a ideia do
SIMPLES se encontra já na de complexo e na de análise, de tal modo que
chegámos a esta ideia com total independência de exemplos de objectos simples,
22
ou de proposições que os mencionem, e compreendemos a existência do objecto
simples - a priori – como uma necessidade lógica”8. Esta exigência é precisamente
a exigência da determinação do sentido (3.23).
O solipsismo peculiar de Wittgenstein é a consequência última, paradoxal, das
teses sobre a lógica da linguagem: os limites da nossa linguagem são os limites do
próprio «eu». Limites totalmente impossíveis de transcender, não há modo de ir
«para além» da linguagem, nem mesmo de dizer o que não podemos pensar (5.61).
É a própria Lógica, que enche o mundo, que determina os seus limites e estes
limites expulsam o «sujeito metafísico» porque este não pertence ao mundo, mas é
um limite do mundo (5.632).
Comenta Apel: “Aqui se manifesta de forma extrema o carácter de caso limite
da filosofia transcendental wittgensteiniana da linguagem. Na medida em que o
sujeito é absolutamente idêntico com o projecto mundano formal da linguagem
pura transcendental, cai toda a reflexividade, toda a retroreferencialidade do
sujeito sobre o seu projecto mundano da linguagem. Tudo se passa como se não
existisse em absoluto sujeito algum. Só há factos reais tal como se dão sempre já
figurados através da linguagem. (…)
“Isto descobre-nos a verdadeira razão pela qual, para a filosofia transcendental
do primeiro Wittgenstein, não pode dar-se nenhum discurso com sentido da
linguagem sobre si mesma e sobre a sua relação com o mundo (…) A linguagem
só refigura estados de coisas permanentes, mas ao mesmo tempo não oferece
também na representação do mundo a relação do homem consigo mesmo, isto é,
com as suas possibilidades existenciais, nem portanto a índole do seu projecto do
mundo”9
A auto-limitação da filosofia transcendental como actividade crítica dá-se na
passagem de uma dimensão estritamente transcendental – o pensamento – a uma
dimensão quase transcendental – a linguagem – na qual se exclui da esfera do
sentido qualquer momento reflexivo. O pensamento enquanto tal perde
completamente a sua autonomia em relação à sua própria expressão proposicional,
ou seja o pensar coincide literalmente com o dizer. A possibilidade de uma filosofia
8 Notebooks (1914-1916), p. 60. 9 La Transformación de la Filosofía, tomo I, p.233..
23
transcendental dissolve-se, pois é inviável conciliá-la com esta forma radicalizada
de crítica da própria linguagem: ao pretender assumir ela própria a atitude
transcendental, redu-la a uma posição paradoxal, impossível de sustentar.
24
4. A Linguagem como medium universal
1. A ideia fundamental do Tractatus, a de traçar um limite entre o que se
pode dizer com sentido e o que não pode ser dito, sem sair da própria linguagem,
resulta num paradoxo que não é senão a réplica do paradoxo do conhecimento
transcendental. A íntima ligação entre os dois problemas é claramente apontada
por Wittgenstein: “O limite da linguagem mostra-se na impossibilidade de
descrever o facto que corresponde a uma proposição... sem repetir a mesma
proposição.
“Trata-se aqui exactamente da solução kantiana ao problema da filosofia”10
O «paradoxo do conhecimento transcendental» reapresenta-se na dimensão
linguística: a impossibilidade de transcender os limites da linguagem e de dizer
algo sobre a realidade independentemente da sua própria refiguração na
linguagem, conduz à inefabilidade da semântica, ou seja a inexpressabilidade das
relações significativas que constituiriam a mediação entre a linguagem e a
realidade.
Pelo menos no Tractatus, a inefabilidade da semântica é manifestamente
defendida por Wittgenstein como consequência da sua adopção da ideia da
linguagem como o medium universal, o limite para além do qual nada pode ser
pensado nem dito (Cfr. 4.12). As relações semânticas, o que correlaciona a
linguagem com o mundo é relegado para aquilo que pode ser mostrado, mas não
pode ser dito.
Todo o itinerário filosófico de Wittgenstein pode ser visto como uma Crítica
da Linguagem, num prolongamento da tarefa, assumida desde o Tractatus, de
mostrar os limites da linguagem e a simples falta de sentido dos vãos esforços do
entendimento ao chocar com estas fronteiras (Cfr Investigações, 119). Hintikka
propõe esta leitura de toda a filosofia de Wittgenstein: o intuito sempre perseguido
de limitar o domínio do pensável, torna a sua filosofia não só análoga, mas
intrinsecamente semelhante à de Kant11.
10 Vermichte Bemerkungen, p. 27. 11 Para este tema da linguagem como medium universal e a inefabilidade da semântica, cfr Hintikka, M.B. e J. – Investigating Wittgenstein, cap.I.
25
2. Interessa-nos apenas apontar algumas das teses do Tractatus
representativas da linguagem como medium universal e da inefabilidade da
semântica.
a) De acordo com 4.022, o sentido de uma proposição apenas
pode ser mostrado. O que é o sentido de uma proposição? Em
4.2, Wittgenstein define-o como “a sua concordância ou a
sua não-concordância com as possibilidades da existência e
da não existência de estados de coisas”. Estas relações de
concordância ou não-concordância são exactamente as
relações semânticas, e não é possível exprimir
linguisticamente as relações de “projecção” que estabelecem
a conexão de uma proposição com os factos atómicos.
b) A relação dos nomes com os objectos simples, que são os
seus significados, é também inexprimível. A existência de um
objecto apenas pode ser mostrada através do uso do
respectivo nome na linguagem. Isto significa que o conceito
de existência individual é inefável (Cfr 5.61)
c) O mundo como um todo é também inexprimível porque são
inexprimíveis os seus limites (5.61). Como a ética e a estética
tratam do mundo como um todo, são transcendentais
(6.421), pertencem ao domínio do que se pode mostrar, não
dizer.
d) As formas lógicas (as formas da representação) incluem-se
neste domínio do inefável. Sobre o estatuto transcendental de
toda a lógica e nomeadamente o carácter místico da forma
lógica, condição possibilitante de todo o dizer com sentido,
podem citar-se numerosas passagens do Tractatus (2.172, 2.22,
2.181, 2.174; sobre o estatuto das tautologias e contradições,
4.461).
26
e) A impossibilidade de uma filosofia do sujeito ou o
desvanecimento do «eu» na coincidência absoluta com a
forma a priori da linguagem.
3. Até que ponto o «segundo modo de pensar» de Wittgenstein se mantém
dentro dos limites da linguagem, apesar da sua reformulação das principais
teses do Tractatus? Seguindo Hintikka, a tese da inefabilidade da semântica é
mantida ao longo de todo o pensamento de Wittgenstein. Significa isto que o
impasse de uma Crítica da Linguagem se mantém, e o carácter paradoxal de
uma «reflexão» sobre a linguagem constituirá um obstáculo intransponível para
a possibilidade de tratar do «fenómeno humano da linguagem»?
A questão exige uma exploração do próprio «estilo» filosófico de
Wittgenstein e um exame do significado e alcance do seu «pragmatismo». Creio
que, embora seja indubitável que todo o pensamento de Wittgenstein
permanecerá sempre profundamento enraizado na linguagem – linguagem
como praxis peculiarmente humana, linguagem como a única expressão do
mundo e do homem – o intuito inicial de uma radicalização da crítica da
linguagem se transformou numa «fenomenologia» e numa hermenêutica das
formas de vida, da cultura, da história humana, configuradas pela prática da
linguagem em sentido amplo e geral.
Como síntese, voltamos a remeter para Apel: “em contra-posição ao ideal
logístico de uma linguagem simbólica que produza estados de coisas
subsistentes, a linguagem real tem em todo o momento que representar na
concepção do mundo uma relação do homem consigo mesmo. De outro
modo não teria absolutamente nada que pudesse representar como «algo».
Nesta relação pré-reflexiva do discurso humano consigo mesmo é onde deve
encontrar-se – pode pensar-se – a possibilidade de uma superação do
paradoxo do Tractatus.12
12 Apel, La Trasnformación de la filosofía, tomo I, p. 236.
28
5. Wittgenstein um filósofo kantiano?
1. O impasse final do Tractatus, no entanto, é o mais eloquente resultado da
própria tarefa que Wittgenstein assumiu: mostrar a saída para os enigmas da
filosofia. E a solução – ou dissolução – do enigma consiste precisamente em
encontrar o caminho que conduza para fora da filosofia: (T. 6.52 e 6.521)
O principal erro residia no empenhamento em encontrar de uma vez por todas
o remédio para a doença filosófica. E, de facto não há um método filosófico, mas
diferentes e variados métodos, como diferentes terapias. O que há de comum,
possivelmente na diversidade de métodos e terapias, e o que persiste como
estratégia e atitude ao longo do trabalho de Wittgenstein é a convicção de que
toda a Filosofia é “crítica da linguagem” (4.0031).
A “crítica” de Wittgenstein poderá ser considerada, como defende Stenius,
uma atitude filosófica com afinidades ou mesmo inspirações kantianas? É uma
questão que examinaremos brevemente, examinando os argumentos deste autor.
2. Stenius sintetiza o pensamento Kantiano nas seguintes teses13:
a) A tarefa da filosofia teórica consiste em deduções transcendentais que
tracem os limites do discurso teorético; não lhe compete especular
sobre o que transcende estes limites e que, por isso, não pode ser
conhecido.
b) O mundo da experiência possível é o mundo acessível à razão teórica, i.
é, aquilo que é imaginável e inteligível.
c) A nossa experiência tem uma ‘forma’, fundada na razão teórica, e um
conteúdo, baseado nas nossas sensações.
d) As proposições sintéticas são a priori – se se referem apenas à forma da
experiência – ou a posteriori se se referem também ao conteúdo.
e) Portanto, existem proposições sintéticas a priori.
13 Sigo o cap. XI – “Wittgenstein as a kantian philosopher” da obra Wittgenstein’s Tractatus. A Critical Exposition of the Main Lines of Thought.
29
f) As proposições ‘transcendentes’ (sobre Deus, a alma imortal, o mundo
como um todo, etc.) não podem ser conhecidas, mas apenas postuladas
pela razão prática (Kant), ou intuídas pela vontade (Schopenhauer).
g) A coisa em si é transcendente.
A tese b) está plenamente de acordo com a tese do Tractatus, com uma ligeira
modificação: o imaginável e inteligível é, para Wittgenstein, o ‘pensável’ e o
pensamento é a ‘imagem lógica da realidade’, ou, por outras palavras, o que pode
ser dito numa linguagem pictórica. Inteligível significa para Wittgenstein o que pode
ser descrito numa linguagem com sentido. A tarefa da filosofia consiste, portanto, em
indicar os limites do discurso, do que pode ser dito, e esta investigação mostrará a
‘lógica’ da linguagem, ou seja a ‘lógica do mundo’. Assim, as deduções
transcendentais kantianas são efectuadas, em Wittgenstein pela análise lógica da
linguagem.
A ‘forma da experiência’ (Kant) corresponde à ‘forma lógica da substância’ ou
a ‘estrutura interna da substância’, que se mostra na estrutura interna da linguagem.
Uma vez que a forma lógica da substância é independente de qualquer experiência,
é a priori; mas, como a forma lógica é a forma da linguagem, nada se pode dizer
com sentido sobre a forma. A tese d) transforma-se, assim, em Wittgenstein na
seguinte afirmação: a forma a priori da realidade só pode mostrar-se na linguagem,
mas não dizer-se em proposições com sentido. A tese e) será, portanto falsa. A
Matemática é um “método lógico” (T. 6.2), constituída por pseudo-proposições
(6.2), que não exprimem nenhum pensamento (6.21). Quanto à lei da causalidade,
não é propriamente uma lei, mas a forma de uma lei (6.32, cfr 6.321, 6.3211).
Em conclusão: para Stenius, a análise lógica da linguagem é uma réplica da
‘dedução transcendental’ em sentido kantiano, com o objectivo de indicar a forma
a priori da experiência, que se mostra em toda a linguagem com sentido, mas não
pode ser dita. O Tractatus poderia intitular-se “Crítica da Linguagem Pura”. E o
sistema filosófico de Wittgenstein pode designar-se como um “Linguismo
Crítico”, “Linguismo Transcendental” ou mesmo “Idealismo Linguístico”.
Também para Wittgenstein, a forma da experiência é ‘subjectiva’ no sentido
transcendental: o sujeito metafísico é o sujeito que emprega e compreende a
30
linguagem e distingue-se do sujeito empírico, parte do mundo que pode ser
descrito pela linguagem. Os limites do mundo do sujeito metafísico são
determinados pelos limites da sua linguagem. (T. 5.6 ss.)
Todas as questões que, segundo Kant, não podem ser respondidas pela razão
teórica, são para Wittgenstein sem sentido, ou melhor, não são propriamente
problemas (T. 4.003). Sempre que uma resposta é inexprimível, também a
pergunta é impossível de exprimir. O enigma não existe (T. 6.5). A tese f) de Kant
assume no pensamento de Wittgenstein outra forma: o inexprimível existe (T
6.522), mostra-se a si mesmo, é o místico, que está para além dos limites da
linguagem com sentido. A “coisa em si”, existindo independentemente da forma
da experiência, ocorre em Kant, e particularmente em Schopenhauer, como um
símbolo do transcendente inalcançável. No Tractatus encontramos alguma
reminiscência desta idéia.
3. Entre as muitas leituras que se podem fazer do Tractatus, esta aproximação
com o «idealismo transcendental» kantiano é uma delas. As afinidades apontadas
por Stenius são flagrantes e constituem uma grelha de interpretação plausível.
Sabemos, no entanto, que Wittgenstein não recebeu a influência de Kant em
directo, mas possivelmente através da leitura de Schopenhauer que tanto o atraíra
na sua juventude. Não se pode, por isso, considerar que estes pontos convergentes
se baseiem realmente numa proximidade filosófica entre Kant e Wittgenstein. A
diferença de estilos de pensar, de metas do trabalho filosófico não pode deixar de
ser tida em conta.
Mas, por outro lado, é natural olhar para a “crítica da linguagem pura” de
Wittgenstein, como uma transformação da filosofia transcendental, como
observamos já, seguindo a obra de Apel. Esta «transformação» não foi explícita e
intencionalmente tematizada por Wittgenstein. O seu pensamento confirma, no
entanto, que a idéia de «limite» - do inteligível, do exprimível, do sentido – foi
emergindo na filosofia como um tópico central. As dificuldades e aporias da
investigação dos «limites» vão ressurgindo de uma forma ou de outra, consoante a
problemática específica abordada – o alcance do conhecimento racional e teórico,
a linguagem com sentido, a experiência possível. Neste enquadramento, a
31
interpretação do Tractatus em termos do transcendentalismo kantiano, faz sentido,
na medida em que mostra as sintonias e a continuidade de problemas filosóficos
afins.
A resposta definitiva á pergunta que serve de título ao referido capítulo de
Stenius – “Foi Wittgenstein um Filósofo Kantiano?” – permanecerá, no entanto
adiada. O que importa não é fazer um levantamento doxográfico das possíveis
fontes do pensamento wittgensteiniano, mas apreender os fios condutores dos
problemas e argumentos filosóficos na sua dimensão temporal e histórica.
32
6. A semântica do Eu
1. Stenius não é o único autor a encontrar afinidades entre o pensamento
kantiano e o de Wittgenstein. A argumentação de Kant nos Paralogismos,
contra a evidência do cogito e a fundação da nossa própria identidade através do
tempo na autoconsciência, revela também nítidas afinidades com a
argumentação de Wittgenstein contra o solipsismo, como observa Hacker14.
Recapitulemos brevemente o itinerário wittgensteiniano no que diz respeito
ao problema do Eu e da sua expressabilidade. No Tractatus, os limites da
linguagem são os limites transcendentais do mundo, e como a Linguagem é a
minha linguagem, os seus limites são os limites do meu mundo. O Ego referido
aqui pelo pronome meu, é o sujeito metafísico que, em certo sentido não existe,
porque é transcendental, não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo
(T. 5.632). Aqui surge a distinção fundamental entre o sujeito metafísico e o
ego empírico. No livro “O mundo tal como o encontrei”, há um ego que tem
de ser descrito, mas sobre o ego metafísico nada se pode mencionar. Isto
significa que o “solipsismo” deve, em certo sentido ser considerado
verdadeiro. O que Wittgenstein entende aqui por “solipsismo”, pode ser
designado por “idealismo”, porque se trata precisamente da viragem linguística
do idealismo kantiano.
2. Depois do Tractatus, as observações de Wittgenstein sobre a gramática
do “eu” têm como horizonte de fundo os pressupostos da concepção da
consciência como auto-representação: o pronome da primeira pessoa, no seu
uso corrente, não refere algo misterioso e oculto que habita em nós e é
invisível para os outros.
“... a idéia de que o verdadeiro eu vive no corpo está relacionada com a
gramática peculiar da palavra “eu”, e com os equívocos cuja origem é da
responsabilidade da gramática”, escreve Wittgenstein no Livro Azul, e esbate
esta miragem, examinando dois casos no uso do pronome, como objecto e
14 Cfr Hacker – “The Refutation of Solipsism”, pp. 139-141, in Canfield, vol 12.
33
como sujeito. Exemplo do primeiro caso - “Eu cresci doze centímetros” - , do
segundo – “Eu vejo isto”. Aqui, temos a clara intuição de que não o
empregamos por reconhecermos uma determinada pessoa através das suas
características corporais; “e isto cria a ilusão de que usamos esta palavra para
nos referirmos a algo incorpóreo, que, todavia, tem a sua morada no nosso
corpo. De facto, isto parece ser o verdadeiro ego, aquele do qual se disse,
“Cogito, ergo sum”. «Não haverá, nesse caso, um espírito, mas apenas um
corpo?» Resposta: a palavra «espírito» tem sentido, isto é, tem o uso na nossa
linguagem(...)”15.
No artigo citado, Hacker mostra a proximidade entre o argumento de
Wittgenstein e um texto da Crítica, que exprime bem a insistência com que
Kant defende o carácter originário, inderivável da auto-consciência
transcendental, que precede qualquer pensamento determinado. São estas
características que conduzem à confusão cartesiana16. O fio condutor da
argumentação kantiana no terceiro paralogismo consiste em mostrar que a
evidência sobre a qual assentam as provas da psicologia racional,
nomeadamente a unidade da apercepção, não só não exlcui, como se pode
conciliar com uma multiplicidade de «eus» numericamente distintos mas
qualitativamente idênticos17. A semelhança dos argumentos, de que se servem
Kant e Wittgenstein para denunciar a ilusão do cogito cartesiano, é patente18.
O exame da gramática do «eu» visa mostrar que o uso do pronome da
primeira pessoa não refere um ego cartesiano, nem exige a identificação do
objecto designado; portanto, o pronome «eu» não é, de modo algum, um nome
nem uma expressão referencial. A dificuldade em aceitar esta idéia, vem da
herança do pensamento cartesiano, onde o pronome designa o que há de mais
claro e evidente, a consciência imediata do próprio pensar, da mente, do self.
Esta idéia deu origem às objecções e dificuldades de pensar a consciência
como o que acompanha todas as representações, a impossibilidade de ver o
próprio «eu» como um objecto para mim, e as consequentes críticas de Hume,
15 Livro Azul, p. 119. 16 Cfr Crítica, p. 369 B 427. 17 Cfr ibidem, p. 343, A 363. 18 Cfr Hacker, art. cit. p. 141. O autor refere dois textos de “Notes for lectures”, p. 300 e 307.
34
perplexo com a unidade deste «eu» que não passa realmente de um feixe de
representações.
Atribuir ao pronome da primeira pessoa uma relação referencial unívoca
conduz inevitavelmente à admissão da linguagem privada e à consideração de
todos os fenómenos psíquicos como factos internos, acontecimentos mentais
localizáveis no tempo, referentes de todas as proposições relativas ao próprio
«eu».
A terapia dos erros categoriais induzidos pela gramática do «eu», consiste
na batalha de Wittgenstein em duas grandes frentes: a refutação do solipsismo,
consequência da tese do “acesso privilegiado”ao núcleo do próprio «eu», e a
rejeição da linguagem privada, condição e principal responsável pelo
solipsismo. No fundo, a refutação do solipsismo está implicitamente
pressuposta na rejeição da linguagem privada; e esta última assenta na
correcção da perspectiva atomística e fenomenista do “eu” e na apresentação
de uma perspectiva organicista do ser humano19.
3. Interessa sublinhar a repercussão de Wittgenstein – e nomeadamente das
Investigações Filosóficas – na continuação da transformação da filosofia
transcendental em filosofia da linguagem: a inflexão pragmatista constitui um
segundo passo na adopção da linguagem como locus privilegiado para a
compreensão da tarefa filosófica. A dimensão social e pragmática da linguagem
substitui a sua consideração logicista ou meramente epistemológica e torna-se
condição imprescindível para que a semiótica transcendental possa assumir o
lugar metodológico de uma filosofia primeira. A teoria do significado tem de
pressupor a natureza sócio-cultural do processo semiótico e a função
comunicativa da linguagem. Para compreender a linguagem como fenómeno
humano e como sistema simbólico é imprescindível integrar o sujeito no
contexto cultural, social e na comunidade na qual vive. Deve-se, em grande
19 Para uma exploração mais detalhada da argumentação wittgensteiniana cfr Couto Soares, Mª Luísa, “A Semântica do Eu”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humana, n. 9, 1996, pp. 35-47. Em Hacker, “The Refutation of Solipsism”, encontra-se uma explanação do percurso wittgensteiniano deste tópico, desde os primeiros escritos depois do Tractatus até às Investigações Filosóficas e um exame dos vários argumentos evocados por Wittgenstein.
35
parte, ao trabalho filosófico de Wittgenstein a reorientação da compreensão do
conhecimento e da linguagem tendo em conta fundamentalmente o seu
carácter comunitário e prático, em flagrante contraste com a concepção
fundacionalista do individualismo cartesiano. Isto pressupõe uma
transformação do conceito de sujeito transcendental, no sentido de uma
ampliação do eu para a comunidade iintersubjectiva. Assim o exprime Apel:
“(...) o conceito de sujeito transcendental já não pode ser concebido em
termos da unidade de uma consciência em geral, auto-suficiente e terminada.
Deve, sim, adaptar o pensamento da comunidade de comunicação como
sujeito de processos de alcançar uma compreensão sobre o significado. A
possibilidade de chegar a uma compreensão sobre o significado em geral, no
entanto, pressupõe já a possibilidade de formar um consenso sobre a verdade.
(...) O sujeito definitivo do conhecimento intersubjectivamente válido é
idêntico àquela comunidade ideal de comunicação que está sempre já
contrafacticamente antecipada em qualquer comunidade que alcança uma
compreensão sobre o significado e a verdade e que, além disso está, contudo,
sempre para se realizar”20
A transformação da filosofia projectada por Apel indica um novo
paradigma como filosofia fundamental: através da expansão transcendental-
pragmática da onto-semântica, Apel sugere que a semiótica transcendental,
incorporando a semântica e a pragmática, ocupem o lugar da prima philosophia21.
20 Apel, K.-O. – Understanding and Explanation. A Transcendental-Pragmatic Perspective, p. 239. 21 Cfr ibidem, p. 242.
36
II. A Tradição Analítica
1. Não se pode compreender a passagem da filosofia moderna, - desde o
cogito cartesiano até ao transcendentalismo kantiano – para a Crítica da Linguagem,
sem ter em conta Frege, considerado o pioneiro da filosofia da linguagem
contemporânea e o iniciador da tradição analítica. A sua rejeição da primazia
atribuída à epistemologia22 e ao problema do conhecimento na arquitectónica do
pensamento em geral, a crítica ao psicologismo e a defesa da objectividade e
universalidade das leis da lógica, constituem pedras basilares na reconstituição da
estrutura e natureza do pensar, para o qual a única via de acesso é a linguagem. Se
Frege se interessa pela linguagem, é simplesmente porque esta reflecte o
pensamento: o seu interesse centra-se numa filosofia da mente – e não das mentes –
e é isso que o levará a libertar-se de todos os elementos linguísticos que sejam
irrelevantes para a expressão do pensamento e de todos os factores subjectivos,
psicológicos, dos processos de conhecimento. Não é o sujeito empírico que
interessa a Frege, mas, de um modo geral, o sujeito transcendental: como afirma
em “Der Gedanke”: “nem a lógica nem as matemáticas têm a tarefa de investigar
as mentes e os conteúdos mentais próprios dos indivíduos singulares. A sua tarefa
poderia representar-se melhor como a investigação da mente; da mente, e não das
mentes”.
2. A oposição ao psicologismo é constante nas obras de Frege, que rejeita
qualquer tentativa de explicação, em termos psicológicos, das leis lógicas que
estruturam todos os raciocínios, e da teoria do significado que releva da
concepção objectiva do sentido. Para Frege não é lícita qualquer interferência dos
processos psicológicos do pensar nas leis do pensamento puro, que constituem
uma espécie de bagagem comum a toda a humanidade, transmitida de geração em
geração23. A lógica e a filosofia da linguagem de origem fregeana desvinculam-se
totalmente dos processos mentais individuais e subjectivos, irrelevantes para a
explicação dos significados.
22 Cfr Dummett, M. – The Interpretation of Frege’s Philosophy, p. 61. 23 Cfr Kleine Schriften, p. 146.
37
Como lógico e matemático, Frege considerava que estas disciplinas não
têm como objectivo a investigação do pensar como processo subjectivo, do
pensar individual e suas leis psicológicas e, em certa medida, empíricas. O que
pode ser Verdadeiro ou Falso são os pensamentos que são independentes das
mentes individuais, os pensamentos não são representações que, como as
sensações ou as dores, pertencem ao fluxo interno da consciência individual. A
sua tarefa poderia talvez representar-se como a investigação da mente, não das
mentes. Frege comenta algumas passagens de Kant, nas quais se mostra o absurdo
de misturar e confundir a lógica com questões sobre como é que nós pensamos.
"Em lógica - escreve Kant, não queremos saber como é o entendimento ,
como pensa e como é que se processa o seu pensamento, mas como é que deveria
proceder ao pensar. A lógica deve ensinar-nos o uso correcto do entendimento, isto é,
como é que deve estar de acordo consigo mesmo (mit sich selbst übereinstimmenden
Gebrauch des Verstandes)"24.
3. Esta tarefa filosófica passa, segundo o programa de Frege, por uma
análise e uma depuração da linguagem. Por isso mesmo, Frege é justamente
considerado o grande inspirador, e mesmo "o avô" da tradição analítica que se
caracteriza, em primeiro lugar pela convicção de que uma análise filosófica da
linguagem pode conduzir a uma explicação filosófica do pensamento, e em
segundo lugar, a convicção de que esse é o único modo de alcançar uma
explicação global. Dois princípios gémeos, que nortearam todo o trabalho
filosófico, quer dos positivistas lógicos, quer de Wittgenstein, quer da filosofia
postcarnapiana dos Estados Unidos, tal como Quine, Davidson, e outros autores
da filosofia analítica contemporânea. A precedência da linguagem em relação ao
pensamento marcou uma das vias mais frequentemente percorridas pelos grandes
analíticos de origem anglo-saxónica. No entanto, esta primazia atribuída à
linguagem em relação ao pensamento, não é compartilhada por alguns autores
que, também na esteira de Frege, pretendem que a linguagem só pode ser
24 Kant, Logic, trad. Robert S. Hartman e Wolfgang Schwarz, Indianapolis and New York, 1974, p. 16
38
explicada através de conceitos de vários tipos de pensamentos, que podem ser
considerados independentemente da sua expressão linguística25.
Frege está numa posição peculiar na ordem a atribuir á relação linguagem-
pensamento: não há dúvida que a linguagem espelha o pensamento e é, portanto,
através das expressões linguísticas que se torna possível analisá-lo. Mas, na maior
parte dos casos, a linguagem é um espelho que deforma o pensamento, e a atitude
de Frege será sempre cautelosa, desmistificando um excesso de confiança na
possibilidade de encontrar na linguagem um reflexo adequado e autêntico do
pensamento. É sintomático desta sua atitude, o que Frege escreve a Husserl em
Novembro de 1906: "A tarefa essencial do lógico consiste em libertar-se da
linguagem"26.
Estes sentimentos ambivalentes em relação à linguagem, que se manifestarão
ao longo de toda a sua vida e obra, não impedem de encontrar em Frege correntes
de fundo que levam à investigação do pensamento através da análise da
linguagem, e de reconhecer na sua obra a fonte de inspiração da "viragem
linguística" que constitui o prolongamento natural do seu trabalho filosófico27.
Apesar das ambivalências no pensamento de Frege, não há dúvida que nele
encontramos as origens da chamada "viragem linguística", se bem que por vezes,
essa raíz não seja claramente percebida pelo próprio Frege. O seu interesse residiu,
sobretudo na «lógica», entendida como o ramo da filosofia que se ocupa do
pensamento – não dos processos de pensar – na sua total independência em
relação à apreensão e expressão do mesmo. Neste sentido, pode dizer-se que a
lógica tal como é entendida por Frege não tem nada a ver com a linguagem, e esta
torna-se mesmo um obstáculo para uma clara compreensão dos pensamentos28.
No entanto, como observa Dummett, mesmo que Frege não se interesse
directamente pela filosofia da linguagem, o seu trabalho é do máximo interesse e
relevância para os filósofos da linguagem posteriores. Porque, embora a filosofia
do pensamento possa prescindir do recurso á linguagem, a investigação sobre o
25 Cfr Dummett, M. Les origines de la philosophie analytique, Gallimard, 1991, p.13. Dummett dá como exemplo desta nova orientação o livro de Gareth Evans, The Varieties of References. 26 G. Frege - Wissenschaftlicher Briefwechsel. 27 Cfr Dummett, ob. cit., p. 17. 28 Cfr Frege, “Der Gedanke”, nota 4.
39
modo como exprimimos os pensamento através da linguagem, apresenta-se
indubitavelmente, como uma legítima estratégia filosófica. E Frege insiste
reiteradamente que o pensamento só se torna visível e acessível através da sua
expressão linguística29.
De qualquer modo, na sua filosofia estão em gérmen os princípios
orientadores da tradição analítica, nas suas diversas manifestações: Frege foi
pioneiro na elucidação do que são os pensamentos e na explicação dos
significados das proposições e das palavras que as constituem. Todos aqueles que
adoptaram como princípio a análise do significado linguístico como modo de
acesso a uma análise dos pensamentos, encontram em Frege os fundamentos do
seu estilo filosófico e do seu modo de investigação.
No programa de Frege há um aspecto que não ocorre geralmente nos diversos
desenvolvimentos da filosofia analítica: a tradução de "proposições filosoficamente
interessantes”. No Tractatus, para não ir mais longe, não se propõe essa tradução.
A terapia proposta por Wittgenstein consiste em mostrar o sem sentido de tais
proposições, e, portanto, libertar-se simplesmente de tais proposições, negando-
lhes mesmo o estatuto de «proposição». Esta eliminação seria o resultado do
reconhecimento das nossas tendências intelectuais viciadas, que nos levam a «ver»
de uma forma pouco clara e distorcida e a criar mitos na nossa mente que é
necessário desmascarar. De qualquer modo, não há dúvida que o Tractatus
apresenta afinidades profundas e algumas raízes no pensamento de Frege.
1. Funções significativas: a distinção entre sentido e referência (Sinn
und Bedeutung de Frege).
29 Cfr Dummett, M – The Interpretation of Frege’s Philosophy, cap. 3, pp. 39-41. Neste capítulo Dummett discute o papel de Frege na história da filosofia analítica e a consideração do seu pensamento como uma filosofia da linguagem.
40
Duas noções fundamentais para considerar a linguagem na sua dimensão
intencional ou relação com o mundo e na sua dimensão expressiva, como locus da
compreensão e do pensamento: a referência diz respeito á capacidade transitiva de
todo o signo como algo que está por um outro, algo que visa outro que não o
próprio signo; o sentido diz respeito à dimensão cognitiva do uso dos signos,
enquanto meios de expressão e de compreensão.
Frege é o introdutor destas duas noções adoptadas por toda a Filosofia
Analítica e exploradas com diversos matizes. Torna-se imprescindível uma
apresentação relativamente detalhada do seu pensamento.
1. A distinção entre sentido e referência é explorada por Frege no seu
conhecido ensaio “Über Sinn und Bedeutung”, mas encontram-se nas suas obras
anteriores inúmeros prenúncios desta teoria. Na Begriffschrift, Frege refere-se muitas
vezes aos sinais e seus designata e declara expressamente que é do conteúdo (Inhalt),
que se ocupa a conceptografia; este pode ser expresso de vários modos, que dão
origem a ligeiras variações de sentido. O símbolo de igualdade traduz
precisamente o facto de o mesmo conteúdo poder ser determinado de modos
diferentes, expressos por diferentes nomes que designam a coisa, exprimindo cada
um um aspecto particular diferente (Begriffschrift, § 8).
É precisamente o problema do valor cognitivo das proposições de
identidade que abre o ensaio “Über Sinn und Bedeutung”: a possibilidade de
reconhecer o mesmo objecto sob várias designações é que fundamenta o alcance
cognitivo dos juízos de identidade. Esta não é uma mera relação entre signos, nem
poderia ser uma relação entre objectos, uma vez que não há dois objectos
idênticos. É necessário portanto reconhecer que, entre o signo e o seu referentes
(o objecto designado), se dá o sentido, que corresponde à multiplicidade de modos
de dar-se, de aspectos do próprio objecto:
“Um nome próprio (palavra, sinal, combinação de sinais, expressão)
exprime (ausdrückt) um sentido (Sinn) e refere-se a ou denota (bedeutet, bezeichnet)
uma referência (Bedeutung). Por meio de um sinal, exprimimos o seu sentido e
designamos a sua referência” (SuB, p. 144).
41
A multiplicidade de sentidos é a manifestação do carácter polifacetado do
próprio objecto: o sentido é apresentado como os lados (Seiten) do objecto. A
distinção não se fundamenta, primeiramente, na variedade dos nomes, na
polissemia, mas nas próprias coisas. Não são modos de designar meramente
arbitrários, não partem da iniciativa do sujeito semântico e da sua capacidade
simbólica, mas apresentam-se como dados, modos de dar-se objectivos que podem ser
captados, apreendidos. Tal como os conceitos, – que sendo sempre insaturados, e
representando aspectos parciais de um objecto – os sentidos “não brotam na alma
como os frutos na árvore”, segundo uma expressão gráfica de Frege que sublinha
o seu carácter real, objectivo e autónomo em relação aos processos de
significação.
O problema que levanta a formulação de Frege é a reconciliação de duas
facetas envolvidas na noção de sentido: por um lado, algo de objectivo,
independente, atemporal, que garante a comunicabilidade entre diferentes
locutores, por outro lado é o sentido que constitui o valor cognitivo da linguagem,
o que permite re-conhecer e identificar o objecto designado. Pela sua dimensão
objectiva, o sentido apreende-se como algo pre-existente, autónomo, como um
planeta; mas o sentido do sentido é justamente esse apreender por parte de uma
mente. A noção fregeana de sentido oscila com um movimento pendular entre o
lado subjectivo ( o modo do reconhecimento) e o lado objectivo (o modo de dar-se do
objecto); a consideração dos casos particulares do sentido dos nomes próprios,
dos predicados e das frases assertivas, constituirá o mote para explorar mais
detalhadamente as aporias do sentido.
2. A referência constitui o terceiro elemento da teoria do significado e
exprime o carácter essencialmente transitivo de todo o sinal. A sua capacidade de
referir é a própria razão de ser do signo, que remete, de um modo ou de outro,
para um algo diferente de si mesmo. A referência é aquilo de que se fala, e significa a
possibilidade de a linguagem se relacionar com o real, o visado ou intencionado por
ela. Frege afirma reiteradamente que quando falamos estamos, de facto a referir-
nos ao mundo real, aos objectos designados pelos nomes que empregamos, e não
a um mundo de representações internas, mediação intransponível entre o eu e o
42
mundo. Em SuB, Frege explicita o seu realismo semântico, rejeitando qualquer
forma de representacionismo: “Seria positivamente entender mal o sentido da frase ‘A
lua é menor do que a Terra’ admitir-se que é a representação da lua o que está em
questão. Se isso é o que queria o locutor, ele deveria usar a expressão ‘A minha
representação da lua’”.
A praxis linguística está direccionada para algo que transcende a própria
linguagem, algo de real, externo ao próprio processo interno da compreensão,
captação e expressão do significado. A referência é precisamente o correlato extra-
linguístico, não é um ingrediente do significado; isto significa a garantia do alcance
realista do uso da linguagem e simultaneamente a compreensão da significação
não como um mero processo de associação de uma expressão com algo do
mundo externo, mas como um processo que envolve a compreensão do
significado. Considerar a referência como um elemento extra-linguístico é
condição fundamental para uma semântica que reserve sempre, em qualquer acto
linguístico, um papel próprio ao sentido como valor cognitivo.
O realismo semântico de Frege não envolve, no entanto, qualquer
compromisso ontológico: não se trata da existência do referente, mas da nossa
intenção ao falar ou ao pensar. A pressupocição da referência não implica nem envolve a
posição da existência. A referência não indica nem determina, de modo nenhum, a
existência, é um atributo próprio de todo o sinal que tem a propriedade de indicar.
Mesmo no caso de faltar esse algo, o sinal não deixa de possuir como próprio o
carácter referencial.
Enquanto objecto real, do qual se fala, a referência apresenta-se-nos como
um ponto fixo, um centro de gravidade para o qual convergem os múltiplos e
possíveis sentidos. Entendida como semantic role, a função semântica na relação
proposição-valor de verdade, a referência apresenta-se como o que importa ou o
que conta para a apreensão da verdade, sendo a verdade considerada em termos
de contextualidade semântica.
43
2. O sentido dos nomes próprios
1. No ensaio Sinn und Bedeutung, Frege define o sentido de um nome
próprio como um modo de dar-se do objecto, a expressão de uma das suas
propriedades, atributos, de um dos conceitos sob os quais cai esse objecto. “O
discípulo de Platão”, “O mestre de Alexandre Magno”, ou “Aristóteles” são
nomes próprios que exprimem vários sentidos de um mesmo referente.
A atribuição de sentido ao nome próprio não é uma questão pacífica nem
irrelevante, tendo em conta as implicações epistémicas e ontológicas que a tese
acarreta. A caracterização da categoria linguística do nome é absorvida pela
elucidação da noção de objecto: um nome próprio é a expressão – simples ou
complexa, sempre singular e precedida do artigo definido – que designa um
objecto. A convicção fundamental de Frege é a de que com o uso das expressões
que denominou nomes próprios estamos a apontar, designar objectos determinados.
O uso ontológico que Frege faz do termo objecto é, pois correlativo do emprego
do termo linguístico nome próprio: este está sempre em vez de um objecto, que é
o seu referente.
A questão que se põe será a de saber em que domínio – no linguístico, no
lógico ou no ontológico – é que devemos procurar o primeiro princípio de
classificação: o critério para decidir se algo é um objecto assenta no facto de ser
designado por um nome próprio, ou, pelo contrário, um signo ou expressão é um
nome próprio precisamente porque o seu referente é um objecto? Para Frege, o
que distingue o nome próprio de outras expressões linguísticas é o facto de
constituirem expressões completas, com a capacidade de designar ou referir, por si
só um objecto determinado. A completude do nome traduz o carácter igualmente
completo, saturado, do objecto, em contraste com as realidades incompletas,
insaturadas, ou quase-entidades, dos conceitos e relações que se exprimem através
de expressões insaturadas – termos conceptuais ou expressões relacionais.
A relação semântica entre o nome e o designatum é intuitiva e não exige
grande esforço de argumentação sustentar que o nome tem um referente –
pressuposto ou real. O que se torna problemático é explicar que tenha um sentido.
44
2. O sentido é o conhecimento e re-conhecimento da referência, não se
limita ao mero facto de um sinal ter uma referência. Como via de acesso à
referência, constitui o valor cognitivo, o conteúdo informativo. Isto mostra bem
como Frege associa sentido a conhecimento: o sentido é um ingrediente da
significação, que é aquilo que uma pessoa sabe quando compreende o significado
de uma palavra. Ao captar o sentido, não sabemos apenas que o nome está
associado a um objecto particular como seu referente, mas relacionamos o nome
com um modo particular de identificar um objecto como referente desse nome. O
critério de identificação do referente forma parte do sentido de um nome próprio.
Dois nomes podem ter o mesmo referente e sentidos diferentes, porque com eles
estão associados métodos diferentes de identificar algum objecto como referente
de ambos.
Considerado como o modo de determinar a referência, o sentido tem uma
certa flexibilidade, na medida em que cada um pode corresponder a diferentes
modos de determinar a referência, podendo até o sentido variar com o tempo.
Neste caso, o referente é o único que se mantém invariante, objectivo e
participável por vários locutores; o sentido perderia então o seu carácter objectivo,
comum a várias mentes e ficaria relativizado ao modo individual de captar e
determinar o objecto designado.
A noção fregeana de nome próprio abrange também as descrições
definidas – expressões complexas referenciais. Estas podem introduzir ou dar um
sentido do nome, indicando uma via para o conhecimento do seu significado.
Daqui não se infere que o nome seja o feixe de uma família de descrições. Estas
são possíveis vias ou trajectórias para o conhecimento do referente do nome.
Neste sentido é discutível que se possa assimilar a semântica de Frege à de Russell,
no que diz respeito aos nomes próprios como abreviaturas de descrições definidas
A melhor via para a noção fregeana de sentido é a sua conexão com o
conteúdo informativo, o valor cognitivo. O sentido de um nome é o conhecimento que o
locutor tem ao empregá-lo na prática linguística. Sendo, em última análise,
determinado pela referência, há sentidos dados, comuns, objectivos, dos quais
várias mentes individuais podem participar. O interesse de Frege em salientar o
lado objectivo está de acordo com as preocupações fundamentais de desinfectar a
46
3. A referência do conceito
1. O que é um conceito? Frege não o define, mas apresenta-o como o
referente de um predicado. O referente, e não o sentido. O modelo semântico da
distinção entre sentido e referência, introduzido no célebre ensaio de Frege,
aplica-se a todos os níveis do discurso – nomes, predicados, expressões relacionais
e proposições. Enquanto os nomes e as proposições são expressões saturadas, isto
é referem um objecto, os predicados e expressões relacionais são insaturadas, isto é,
contêm lugares vazios que devem ser preenchidos por nomes de objectos, no caso
dos predicados, ou argumentos, no caso das funções.
A atribuição de referência aos predicados e expressões relacionais é uma
das teses mais controversas de todo o pensamento fregeano. Considerar o
conceito – e não a sua extensão ou a respectiva classe – como o referente de um
predicado, parece inconsistente com o extensionalismo lógico de Frege; no
entanto, essa concepção do conceito como referente traduz bem o realismo
fregeano, nomeadamente no que diz respeito a este elemento central de toda a sua
obra, uma das pedras basilares de toda a sua estrutura.
O conceito é, sem dúvida, um elemento um tanto enigmático, oscilando
entre o âmbito do sentido e o da referência; por um lado, serve de eixo central da
rotação semântica do sentido à volta da referência, por outro lado situa-se
claramente como o referente das expressões incompletas. A sua ambivalência
dificulta a aplicação unívoca do par sentido/referência a todos os tipos de
expressões (nomes próprios, proposições e predicados, expressões relacionais e
funcionais). Segundo Dummett, todo o problema reside no facto de, em relação
aos nomes, Frege se ver na necessidade de defender que estes têm um sentido,
enquanto, em relação aos predicados, ter de provar que estes têm uma referência.
A própria concepção fregeana da linguagem como uma praxis consciente,
intelectual, justifica que estas expressões incompletas tenham um sentido, o
elemento cognitivo presente em qualquer acto linguístico. Mas atribuir-lhes uma
referência, parece bastante problemático. O que significa, no caso de um
predicado, afirmar que este tem uma referência ou um referente?
47
2. Frege emprega indistintamente os termos referência e referente, mas
poderíamos considerar que o primeiro termo significa o próprio processo
semântico de referir, enquanto o segundo é o correlato propriamente dito, ou o
próprio complemento directo do acto transitivo de referir. Neste sentido, atribuir
aos predicados uma referência pode ser entendido como a sua capacidade para
designar algo, o que é próprio de qualquer sinal, independentemente de qualquer
envolvimento de compromisso ontológico. Atribuir-lhe um referente implica já
considerar um correlato extra-linguístico, de algum modo existente. Tal como no
modelo nome próprio-referente, também na relação predicado-referente haveria
algo pelo qual, ou em vez do qual está o termo predicativo, como seu
representante. Nestes termos, a atribuição de um referente às expressões
incompletas adquire as proporções de um paradoxo, ou de um excesso metafísico,
como sugere Dummett30.
A semântica dos termos conceptuais levanta duas questões: 1º qual o
modelo de relação semântica entre predicados e seus referentes? Poderá este ser
analogado ao modelo proposto para o caso dos nomes próprios? 2º qual o
estatuto ontológico desses referentes dos termos conceptuais, admitindo que se trata
de um correlato extra-linguístico?
Se considerarmos a noção de referência fundamentalmente como função
semântica (semantic role), o modelo, transferido do caso dos nomes para o dos
predicados levaria apenas a admitir que a referência de um predicado é a sua
função semântica, isto é, a referência de dois predicados seria a mesma, se
puderem ser substituídos numa frase, sem alteração do seu valor de verdade. E a
questão não constituiria mais problema.
O que se torna problemático e mesmo paradoxal, é a atribuição aos
predicados de uma referência, tendo em mente o protótipo nome-portador; neste
caso a referência do predicado deverá ser algo extra-linguístico, representado pelo
termo predicativo, numa relação análoga à do nome-objecto. A elucidação deste
modelo referencial para os predicados conduz-nos ao conhecido paradoxo da
30 Frege, Philosophy of Language, p. 204.
48
insaturação. Esta noção aplica-se a expressões linguísticas quando estas contêm
pelo menos um lugar vazio onde é possível introduzir outro sinal (nome ou
expressão) que tem o efeito de completar a expressão inicial. Expressões de funções,
conceitos e relações são insaturadas porque têm um lugar vazio, a ser preenchido
pelo nome de um ou mais objectos. A insaturação parece, assim, coincidir com a
perspectiva tradicional da predicabilidade dos conceitos: estes envolvem uma
referência aos seus inferiores (indivíduos, singulares).
O alcance da noção de insaturação em Frege não se restringe, no entanto,
ao domínio da semântica: embora se exprima no carácter incompleto de certas
expressões linguísticas, Frege considera que a insaturação linguística não é senão o
reflexo da própria realidade, portanto deverá atribuir-se prioritariamente ás
próprias funções e conceitos propriamente ditos, e não apenas às suas respectivas
expressões.
3. A questão do estatuto ontológico do conceito levar-nos-ia a uma análise
do problema do nominalismo ou realismo fregeanos, não para decidir da posição
de Frege face à reiterada querela dos universais, mas para comprovar como a
resposta a dar á questão do estatuto ontológico dos conceitos e funções serve
como que de catapulta que projecta todo o pensamento fregeano em sistemas
completamente opostos: ora numa espécie de transcendentalismo, ora num
realismo de tipo platónico, ora num puro nominalismo31.
Fazendo um breve balanço da orientação geral do pensamento de Frege no
que respeita ao conceito, pode afirmar-se o seguinte: não sendo o termo de um
processo mental, algo que nasce no entendimento como as folhas nas árvores, o
conceito é tão real como os objectos, constituindo com estes, duas partes
heterogéneas da realidade. Uma dessas partes (o conceito), é sempre insaturada,
incompleta e pode ser saturada pela outra, a dos objectos. Este carácter objectivo,
realista, do conceito, apreende-se através da linguagem, cuja estrutura mostra bem
esses dois elementos complementares através das duas categorias linguísticas –
nomes próprios, e predicados, expressões funcionais e relacionais. A sua definição
31 Para uma discussão destas teses cfr Couto Soares, L. – Conceito e Sentido em Frege, pp. 241-252.
49
como o referente do predicado, significa precisamente que o conceito (como as
funções e relações) constitui uma dimensão formal da própria realidade, não
isolável, nem separável, mas tão real e objectiva como o domínio dos próprios
objectos.
50
4. Sentido e Referência das proposições: Sinn und Bedeutung e Der
Gedanke
1. Como foi referido, Frege trata em SuB exclusivamente da semântica dos
nomes próprios e se, depois das páginas dedicadas ao caso dos nomes (nomes de
objectos) estritamente falando, passa à consideração das frases completas, isso
significa precisamente que estas são também consideradas como nomes próprios.
Qual neste caso, o seu sentido e a sua referência? Frege pretende utilizar para as
frases assertivas o mesmo modelo semântico triádico do sinal-sentido-referência,
que utilizara para os nomes. E como toda a frase completa contém um
pensamento, que consiste, não no acto subjectivo de pensar, mas sim no seu
conteúdo objectivo, a argumentação de Frege partirá da pressuposição de que o
pensamento seja a sua referência. Com um argumento indirecto, prova-se que
alternando uma parte da frase por outra que possua a mesma referência, o
pensamento modifica-se, mas não a sua referência.
A questão seguinte, obviamente será a de saber se a frase tem referência
(Bedeutung), ou se tem apenas sentido (Sinn). A argumentação de Frege pode
esquematizar-se em três afirmações principais:
1) estamos interessados na referência de partes da frase; o exemplo de
Frege é: "Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em
Ítaca". No caso da poesia só interessa o sentido, não nos interessaria
tão pouco a referência de uma parte da frase; "a questão da verdade,
far-nos-ia abandonar o encanto estético por uma atitude de investigação
científica".
2) No entanto, quando se trata da ciência, não nos satisfaz o sentido, e por
isso perguntamos pela sua referência. Porquê? Porque não nos basta o
pensamento?
3) Porque nos interessa o seu valor de verdade. É a preocupação pela
verdade que "nos dirige do sentido para a referência" Como é o
interesse pelo valor de verdade de um pensamento, que nos leva a
perguntar pela referência de uma frase, Frege conclui imediatamente
que a referência de uma frase é o seu valor de verdade.
51
A argumentação um tanto artificiosa, bem como a sua rápida conclusão
estão justificadas pela pretensão de Frege de impor uma total univocidade do par
sentido-referência, tanto para a semântica dos nomes, como para a semântica das
frases, englobando assim todas as expressões completas sob a designação de
nomes próprios. Assim, tal como um nome designa ou refere um objecto, também
uma frase completa tem por referência um objecto, que neste caso será o seu valor
de verdade, o verdadeiro ou o falso.
O principal motivo da distinção, na semântica das frases entre sentido e
referência, como relação entre pensamento e valores de verdade, é o de preservar
a peculiaridade do verdadeiro, não como uma parte do pensamento, mas como
algo de completo, "subsistente" por si mesmo, independente do pensamento que a
ele se refere. Daí a identificação, aparentemente estranha, mas congruente dentro
do pensamento fregeano, do verdadeiro e do falso com objectos. Os objectos de
Frege são, ontologicamente, "entidades" completas, independentes, do ponto de
vista lógico, sujeitos de predicação e nunca predicados de outros, e as suas
expressões são também completas, saturadas, do ponto de vista semântico são
nomes próprios. No próprio escrito SuB, Frege defende esta independência do
verdadeiro em relação ao pensamento, esclarecendo que verdadeiro ou falso não
são predicados: a relação do pensamento com o verdadeiro não pode ser
analogada à relação do sujeito com o predicado, embora a linguagem corrente
possa aparentemente induzir nesse sentido. "Um valor de verdade não pode ser
parte de um pensamento, tal como não o pode ser o sol, posto que ele não é um
sentido, mas um objecto", afirma Frege.
O caso particular do discurso indirecto é examinado neste ensaio de Frege: para
evitar que nos casos de orações introduzidas por «crê que...» «diz que...», etc., se viole o
princípio da substituibilidade salva veritate, Frege introduz a noção de referência indirecta.
As palavras na oração subordinada deste tipo não têm a sua referência usual, mas referem
o seu sentido usual, e têm assim referência indirecta. Esta é a solução fregeana para os
contextos intencionais, enunciados através dos quais atribuímos atitudes proposicionais.
Como num mesmo contexto, a referência de uma expressão nunca coincide com
o seu sentido, isto obriga a introduzir também sentidos indirectos: na oração: «João crê
52
que Platão é o autor do Banquete», «Platão» tem como referência o seu sentido usual (um
modo de dar-se de Platão), e como sentido algo diferente do seu sentido usual, portanto
um sentido indirecto. Uma vez que os operadores de opacidade («julgar que...», «crer que...»,
etc.) podem reiterar-se indefinidamente, a teoria fregeana obrigaria a postular a existência
de sucessivos modos de dar-se, «encapsulados uns nos outros ad infinitum.
Mas deste modo salvaguarda Frege a distinção entre sentido e referência das
frases e, o que mais lhe interessa, a identificação da referência com o seu valor de
verdade.
2. Esta mesma distinção é mais elaborada e detalhada por Frege em “Der
Gedanke”. Aí distingue:
1) A apreensão de um pensamento (pensar, acto de pensar);
2) O conhecimento da verdade de um pensamento (o acto de julgar);
3) A expressão deste juízo (a asserção).
Na frase assertórica devem distinguir-se o conteúdo, que pode ser o
mesmo numa frase afirmativa e numa interrogativa, da asserção propriamente dita.
O primeiro é um pensamento ou pelo menos contém um pensamento; um
pensamento é para Frege algo em relação ao qual se levanta a questão da verdade
é possível exprimir um pensamento, porém, sem afirmar a sua verdade. O
pensamento é a apreensão de um facto como verdadeiro. Pensar não consiste por
isso em produzir pensamentos, mas em apreendê-los na sua estreita conexão com
a verdade. Essa é a tarefa da ciência que não consiste na criação, mas na
descoberta de pensamentos verdadeiros.
Um pensamento, conclui Frege, não pertence nem ao meu mundo interno
(recorde-se o exemplo do teorema de Pitágoras, que não é o meu teorema, mas
sim um teorema universalmente captável), nem ao mundo externo, o mundo das
coisas perceptíveis pelos sentidos.
Torna-se necessário provar a "existência" desse terceiro mundo dos
pensamentos, provar que algo como os conceitos e os pensamentos, tem alguma
forma de existência.
O que pertence a este domínio não pode ser percebido pelos sentidos, tal
como as ideias ou representações subjectivas, mas tal como as coisas do mundo
53
externo, não necessitam de um portador nem de pertencer ao conteúdo da sua
consciência. O paralelismo entre os pensamentos e os objectos físicos induz a uma
"ontologização" dos objectos abstractos, entre os quais se encontrariam os
pensamentos, e a pressupor a admissão tácita de um mundo de ideias, para além
do mundo da consciência e do mundo de objectos físicos. O texto fregeano
parece remeter inquestionavelmente para uma perspectiva platónica ou
platonizante. Note-se, porém, que Frege não introduz a noção de pensamento
assimilando-o a "objectos abstractos" - um pensamento, na "ontologia" de Frege
não é nunca um "objecto", a analogia proposta por Frege não pretende ser uma
introdução nem à sua noção de pensamento nem à de "objectos abstractos" e não
o compromete, portanto, decididamente com um mundo de ideias platónicas,
como tantas vezes tem sido sugerido.
Por outro lado, a afirmação de Frege de que não bastam as impressões
sensíveis para termos um conhecimento objectivo do mundo externo, mas é
necessária uma outra fonte de conhecimento não sensível que nos permita o
acesso ao mundo externo, tem levado alguns comentadores a uma aproximação da
célebre frase kantiana "intuições sem conceitos são cegas" que sintetiza
emblematicamente a rejeição de um puro empirismo. Aproximação um tanto
forçada, tendo em conta os diferentes enquadramentos epistemológicos e lógicos
de Kant e Frege. Não me vou aqui deter no exame das possíveis influências de
Kant no pensamento de Frege, nem numa releitura de certos textos fregeanos
para detectar a sua interpretação da epistemologia kantiana32.
3. A reiterada pergunta - o que é pensar? - surge no horizonte como uma
das questões "misteriosas" ou um enigma que recorrentemente persegue toda a
investigação filosófica. Entre a actividade do sujeito pensante e o mundo de
pensamentos que pode ser por este captado há um hiato por suturar. Entre o
pensamento linguisticamente expresso, tornado perceptível, revestido com a
32 A exposição de Frege sobre a natureza das verdades matemáticas - Os Fundamentos da Aritmética (1884) – parte da distinção kantiana entre verdades sintéticas e analíticas, e introduz um novo conceito de analiticidade diferente do de Kant em aspectos substanciais: a definição de Frege não se restringe a proposições da forma sujeito-predicado; contrariamente a Kant, Frege considera que nem todas as verdades analíticas são triviais.
54
roupagem da palavra, e o pensamento inexpresso, parece surgir uma fronteira que
faz lembrar a distinção wittgensteiniana entre o dizer e o mostrar. Como uma
auréola que rodeia toda a coisa pensada e dita, há algo que sugere o "místico", algo
que se mostra e por isso se capta, mas o captar significa também contornar, traçar
fronteiras, aprisionar, estabelecer limites. O limite, neste caso não significa
negatividade, mas é precisamente o que dá a forma.
Frege desencadeia problemas que ultrapassam o próprio âmbito do seu
pensamento e para os quais não só não apresenta soluções, como procura
contorná-los, remetendo-se para o peculiar estilo analítico que desde sempre
adoptou. O problema que sempre o ocupou foi o da fundamentação da aritmética,
que, no entanto o conduziu irremediavelmente a outras questões filosóficas que
estão formuladas, ou pelo menos implícitas, na obra de Frege e constituem parte
da herança que legou à posteridade.
55
5. Aporias do sentido
1. Não há dúvida que aquilo que Frege denominou algumas vezes como o
"reino dos sentidos" constitui uma zona problemática da realidade, nada fácil de
descrever, de caracterizar ou de localizar: um sentido pode ser captado, expresso e
comunicado a outra pessoa, no caso de se tratar de um pensamento, pode ser-lhe
atribuído um valor de verdade. Frege não quis, ao descrever estas noções
fundamentais, que pudessem ser identificadas com imagens mentais, ideias
(subjectivas, individuais) ou representações, para evitar que o mundo dos
pensamentos e dos sentidos ficasse encerrado na incomunicabilidade que Frege
atribuía àquelas. Por isso, defende a tese de que os pensamentos e os sentidos em
geral são entidades atemporais, que não estão submetidas a um processo de
mudança. Frege pretende com isto salientar que a verdade de um pensamento não
pode estar condicionada ou dependente da sua apreensão por algum sujeito
pensante. Se assim fosse, supondo que ninguém está a pensar num dado
momento, nesse mesmo momento nada haveria de verdadeiro.
O que Frege queria garantir era a fundamentação lógica e ontologicamente
válida para todos os tempos, para todas as mentes pensantes e independentemente
das circunstâncias em que fossem pensadas, de uma série de verdades que para ele
constituíam um background de conhecimento científico do qual toda a humanidade
podia participar. Esses pensamentos podem ser expressos na linguagem e
constituem os sentidos de algumas frases assertivas. Alguns textos,
particularmente "Der Gedanke" sugerem, pela sua terminologia uma interpretação
segundo a qual os sentidos são apreendidos directamente, associando as palavras
com os seus respectivos sentidos, através de uma faculdade de intuição intelectual.
Apreender o sentido das palavras e as frases seria, assim visionar essas entidades
lógicas (conceitos e pensamentos) e relacioná-las com a linguagem. Esta
perspectiva, no entanto não condiz absolutamente nada com a análise da
linguagem que Frege leva a efeito meticulosamente, como processo de elucidação
das noções cardeais da sua lógica filosófica. Dummett considera que esta
terminologia (os sentidos como entidades eternas, imutáveis, objectivas) é apenas
56
um modo de falar ("a harmless manner of speaking"), com a qual Frege pretende
simplesmente sublinhar a comunicabilidade do sentido, contra a alegada
incomunicabilidade do tone, do elemento subjectivo, da linguagem. Todas as
teorias fundamentais da lógica filosófica de Frege estão muito mais de acordo com
uma interpretação do sentido como algo que pode ser concebido como sentido de
uma expressão real; não possuímos outra faculdade para apreender sentidos, para
além da capacidade de aprender a utilizar palavras e frases. O sentido só pode ser
concebido como sentido de uma palavra ou frase, tal como a direcção o é de uma
linha.
Mesmo que Frege tenha aderido à primeira interpretação de sentido, essa
teoria não o levou a tentar analisar os sentidos por outra via que não fosse a da
linguagem. Se os considerou como um reino de "entidades independentes,
separadas", foi porque, embora seguindo sempre a via da análise da linguagem,
Frege não subscreveria nunca, em última análise uma teoria em que a linguagem se
explicasse a si mesma, ou em que o significado, o sentido fosse determinado pelo
uso.
2. Só esta íntima conexão entre sentido e linguagem – tal como a direcção
de uma linha – poderá dar um esboço de resposta às questões epistémicas que a
objectivação do pensamento suscita e ao seu estatuto quase paradoxal. Como se
pode compreender a relação de um sujeito que pensa com o pensado?
O pensamento não pertence ao conteúdo da consciência do ser pensante.
O pensamento não é noema. Apesar disso, Frege tem de reconhecer que deve
haver algo na consciência que é alcançado no pensamento. Como é que esse algo
(something in his consciousness), algo do sujeito (subjectual) se relaciona, ou se refere
ao pensamento? Qual a relação entre o pensado (enquanto conteúdo de
consciência) e pensamento (enquanto algo fora de nós, fora das consciências)?
Para Frege, esta relação consiste simplesmente em que o pensador ou o ser
pensante capta, apreende, vê ou entra em relação com o pensamento. Mas nada
mais nos diz sobre esta relação: persiste o problema de saber como é que um
pensamento pode existir, pre-existir enquanto pensamento, sem ter sido jamais
57
pensado? E como é que um ser pensante vê e reconhece um pensamento que
jamais viu, e que não procede do seu próprio acto de pensar?
A dificuldade parece provir da preocupação fregeana (sempre guiada pelo
seu antipsicologismo e anti-representacionismo), por des-subjectivizar, ou melhor,
des-mentalizar os pensamentos, para lhes assegurar uma objectividade estável,
evitar a sua redução a imagens mentais individuais e incomunicáveis, e sobretudo
garantir o carácter permanente, eterno, imutável da verdade. Para isso, Frege
julgou necessário rodear os pensamentos de uma fronteira protectora de qualquer
interferência da psicologia ou epistemologia. E localizou-os num mundo de
objectividades independentes de qualquer consciência que os apreendesse. Dando
assim origem a uma situação impossível de sustentar, a do pensamento nunca
pensado, pensamento anterior a qualquer pensamento que o pense. Esta ideia de
um pensamento nunca pensado, ou um pensamento-em-si é como um pau de
ferro...
3. A relação entre pensamento e linguagem é recorrentemente explorada
nos escritos de Frege. Mas, dado o estatuto do pensamento, até que ponto é
importante a expressão linguística para pensar? Se o sujeito vê, capta, apreende o
pensamento porque necessita da sua expressão linguística? Frege parece dar a
seguinte resposta: "Sabemos que podemos ter várias expressões para o mesmo
pensamento. A conexão de um pensamento com uma frase particular não é
necessária, mas que um pensamento do qual temos consciência esteja conectado
com uma ou outra frase é necessário para nós, seres humanos"33. Este facto diz
respeito à nossa capacidade de apreender um pensamento e não ao próprio
pensamento: "Não há contradição em supor que existam seres que possam captar
os mesmos pensamentos como nós captamos sem necessidade de os revestir
numa forma que possam ser percebidos pelos sentidos. Mas no entanto, para nós,
homens existe esta necessidade"34.
Trata-se da própria condição do modo humano de conhecer e de pensar,
que obriga necessariamente a recorrer também sempre à componente sensível,
33 Nachgelassene, 288. 34 Ibidem, 288.
58
perceptível que reaparece agora na forma de linguagem como mediação inevitável
para o pensar. Os pensamentos serão captados, apreendidos, mas ao serem
pensados por um ser da condição humana, são também articulados em linguagem,
de contrário permaneceriam puros pensamentos inexpressos, silenciosos, mudos
perante a nossa própria capacidade de pensar. Frege é bem explícito: não é o
pensamento (Gedanke) enquanto pensamento que carece em absoluto da sua
expressão linguística; é a capacidade humana de pensar, com a qual captamos o
pensamento, que para pensar necessita de articular o pensamento numa
linguagem. Mas de facto, o pensamento está contingentemente conectado com as
suas próprias expressões características, em especial com a linguagem. Esta é, no
entanto, a poiesis primordial, a actividade genuinamente mais humana, e confere
uma dimensão fáctica ao pensamento: é uma poiesis essencial e internamente
vinculada à praxis do pensamento que, sem identificar-se plenamente com ela, lhe
dá vida, penetrando-a até ao fundo. Daí o carácter intrinsecamente inteligível da
linguagem, que permite a compreensão de um livro poeirento enterrado numa
biblioteca, uma antiga inscrição caldeia ou a frase balbuciada por qualquer criança.
É possível que se dê pensamento não expresso em linguagem, o que não se
poderá dar é linguagem humana que não seja também pensamento.
59
6. Estilos de pensamento
1. A questão recorrente – o que é pensar? – volta de novo a surgir no
horizonte. A análise fregeana do estatuto dos pensamentos assenta numa metáfora
do pensar como uma espécie de tacto, ao descrevê-lo como um apreender (fassen).
Mas, ao mesmo tempo, refere-se a uma espécie de «olho mental», que nos dá uma
visão intelectual. Trata-se de um contacto directo, imediato, ou de uma visão
intelectual que parece reformular alguns dos problemas suscitados pelo termo
intuição.
O que está em causa é saber se a mera apreensão, o contacto directo da
consciência com o seu objecto – neste caso a apreensão do sentido - constitui de
facto uma forma de saber, de conhecer, ou se, pelo contrário, se encontra apenas
no limiar de qualquer processo cognitivo, ou mesmo fora dele. A questão é
recorrente em toda a filosofia do conhecimento, e tem originado diferentes
resoluções, pautadas por duas metáforas originárias que exprimem dois modelos
cognitivos: a metáfora da visão e a do tacto. A concepção fregeana oscila entre
estas duas metáforas. Ver conota simples apreensão, abertura à luz que irradia o
próprio objecto que se dá, se presentifica, mantendo-se sempre à distância. Tactear,
«agarrar» conota uma certa actividade «manipuladora» de tomar posse, de
apoderar-se e dominar o que se dá a conhecer. O primeiro é um sentido da
distância, o segundo um sentido de contacto, empregando a conhecida distinção
aristotélica.
Não nos propomos aqui responder às difíceis aporias epistemológicas que
têm a sua origem neste par de noções fugidias, se bem que inevitáveis, nem
formular uma teoria do conhecimento que pretenda resolver de um modo
definitivo essas questões. O que importa é ver como as diferentes posições
assumidas vão provocar diferentes atitudes em relação ao modo e estilo de pensar
em filosofia. Não apenas por uma questão de método, mas porque impõem um
certo estilo aos modos de proceder e de pensar: se se concede um papel
privilegiado à intuição no processo cognitivo, esta pode inspirar uma filosofia do
singular, assente numa dimensão experiencial apta para o apreender e assimilar; ou
60
uma teoria das ideias de raíz platonizante que atribui um papel preponderante à
capacidade de ver as essências, de um olhar que não se deixa aprisionar pelas
particularidade, mas que acede directamente ao que há de mais geral, ao universal
que recobre a experiência do particular. Se, no entanto, a intuição é relegada do
âmbito do conhecimento propriamente dita, por ser alvo das suspeitas
racionalistas, o estilo que domina o pensar será preponderantemente analítico,
discursivo.
2. Para muitos, a palavra intuição não é muito prestigiada. "Um subterfúgio
(shuffle) desnecessário", dizia Wittgenstein. As objecções ao recurso à intuição,
provêm geralmente do estilo e do modo analítico de pensar, e invocam vários
argumentos que salientam o carácter estrutural e complexo de todo o
conhecimento justificado. Em primeiro lugar, o carácter analítico de toda a
explicação, é algo mais do que a mera percepção de unidades ou sínteses à qual
está ligada a intuição. Nesta está ausente qualquer estrutura, apenas nos
apercebemos de uma unidade, essa sim, estruturada; este carácter simples do acto
intuitivo não permite formular uma teoria da intuição, e a variedade de sentidos
com que a palavra é usada na linguagem corrente, é bem prova disso; falar de
intuição é falar dessa grande variedade de expressões metafóricas, um tanto vagas,
que se empregam para traduzir uma forma de conhecimento não conceptual nem
judicativo. O recurso à intuição, no contexto da análise conceptual, significaria
sempre uma cedência ao psicologismo: o acto intuitivo não é um objecto teorético
que se apresente à filosofia, mas uma certa forma de apreensão cujo estudo
pertence à psicologia.
Schlick formula a mais severa crítica à evidência da intuição, assinalando-a
como um processo essencialmente diferente do conhecimento35: uma coisa é a
experiência intuitiva, directa e imediata, pela qual tomo consciência de um
conteúdo - esta mancha de cor - outra coisa é conhecer, saber o que é a essência da
cor, saber o que é o vermelho. Na intuição, observa Schlick, o objecto é
35 Cfr General Theory of Knowledge…
61
simplesmente dado, não compreendido. A intuição é mera experiência, um
contacto com o objecto dado, mas esta apreensão directa não envolve ainda
conhecimento nem compreensão. Poderia ter experiências - da dor, do prazer, da
cor ou do som - sem saber o que são, sem as compreender.
A objecção de Schlick às filosofias da intuição, poderia aplicar-se, de certo
modo à identificação do acto de pensar com uma mera apreensão ou contacto
directo com o objecto pensado. É necessário ter em conta uma distinção
fundamental entre Kennen (correspondente a acquaintance) e Erkennen (re-
conhecimento): é a confusão entre estas duas noções bem distintas que está na
raíz de toda a filosofia da intuição. O conhecimento propriamente dito implica
reconhecimento (Erkennen), não basta «tocar» as coisas para as conhecer, é
necessário pensar, o que significa movimentar-se intelectualmente, relacionar,
ordenar, comparar. "A ciência - escreve Schlick - não nos «põe em contacto» (make
us acquainted) com os objectos; ensina-nos a compreender, a abarcar tudo o que já
conhecemos (what we are acquainted), e isso é que significa saber. Conhecimento
(Acquaintance) e saber (knowledge) são conceitos tão fundamentalmente diferentes
que até o discurso corrente possui duas palavras para os designar.
O processo cognitivo, segundo Schlick, estabelece uma relação entre vários
objectos, uma conexão com algo de complexo, e não se pode identificar de modo
algum com a apreensão (grasping) de um objecto simples e único. Por isso, para
Schlick o «Eu sou» exprime apenas um facto, não conhecimento. O «ego sum»
cartesiano, a existência dos conteúdos da consciência, não necessita de qualquer
fundamento. Não se trata de conhecimento, mas de um conjunto de factos que
existem apenas, não requerem nenhuma confirmação através da auto-evidência;
não são certos nem incertos, são simplesmente, dão-se como mera facticidade. Não
faz qualquer sentido procurar uma garantia da sua existência, da qual temos apenas
experiência, mas não conhecimento. Este exige, não apenas a percepção ou
experiência de si mesmo, mas o juízo que envolve relacionação, identificação,
incorporação dessa percepção em experiências anteriores, e compreensão de uma
estrutura complexa. Schlick rejeita terminantemente a perspectiva segundo a qual
o conhecimento é uma espécie de representação intuitiva que refigura ou retrata as
coisas na consciência. Se o processo cognitivo fosse deste tipo não poderia trazer
62
os seus objectos à consciência sem os alterar, e falharia radicalmente o seu
desideratum, o de manter as coisas inalteráveis tal como são em si mesmas.
Conhecer consiste num acto que, efectivamente deixa as coisas intocáveis e
inalteráveis: a diferença entre a imagem ou representação e o signo ou designação
radica precisamente no facto de a primeira ser totalmente incapaz de refigurar um
objecto tal como é, visto que se trata sempre de uma imagem a partir de uma certa
perspectiva ou posição, de uma representação de um sujeito; o signo, pelo
contrário, designa o objecto deixando-o tal como é. O conhecimento intuitivo não
pode nunca realizar o seu último objectivo, dar-nos as coisas exactamente como
são em si mesmas.
3. O estilo do pensamento de Wittgenstein depois do Tractatus procede do
reconhecimento dos impasses e ilusões de uma visão iintuitiva e total e da
inviabilidade da análise. Por isso, ele representa o início de uma outra
«transformação» do pensamento filosófico.
O método de investigação assente na convicção da possibilidade de uma
análise última, intimamente conectada com os pressupostos do Tractatus, é
claramente posto de lado por Wittgenstein, que nas Investigações compara este estilo
de pensar a alguém que tentasse encontrar a autêntica alcachofra arrancando-lhe,
uma a uma, todas as folhas36. Nalguns casos, os mal-entendidos poderão dissipar-
se com uma substituição de uma forma de expressão por outra, designando este
processo como uma «análise» das nossas formas de expressão37. Mas isto pode
criar em nós o mito de uma clarificação total, “uma forma perfeitamente
decomposta da expressão” – uma das teses em que assentava toda a lógica do
Tractatus. Esse «sonho da análise» é totalmente ilusório: julgamos que as nossas
formas de expressão estão essencialmente por analisar, como se houvesse nelas
algo oculto que necessitasse de ser esclarecido, reconduzido a um estado de
exactidão perfeita38. Não é essa a meta da «investigação gramatical»: esta não
pressupõe conceitos absolutamente determinados, com fronteiras nítidas e
36 Cfr § 164. 37 Cfr § 90. 38 Cfr § 91.
63
exactas, mas move-se no terreno impreciso e vago da prática linguística e do uso
corrente de expressões que cumprem a sua finalidade tal como se dão. O próprio
conceito de jogo é um «conceito de contornos esfumados», uma «imagem difusa»
que não é possível substituir por uma nítida; mas é muitas vezes a difusa que mais
precisamos39. A ideia de que toda a proposição deve ter um sentido definido não
passa de um preconceito que impede uma visão clara, como um par de óculos
sobre o nariz, através dos quais vemos tudo, sem que nos ocorra nunca tirá-los40.
Esta foi a prisão do ideal analítico que condicionou toda a visão do mundo à luz
da lógica do Tractatus: o que Wittgenstein propõe é fazer rodar completamente o
eixo da investigação, tomando como ponto de referência as nossas necessidades
reais41. Para tal, não é a exactidão total que se deve procurar, expressa numa visão
intuitiva terminal (Einsichtt), mas uma visão de conjunto (Übersicht) – “não
ambiciono exactidão, mas uma visão sinóptica”.
O primeiro ideal perseguido no Tractatus consistia em alcançar uma visão
sub specie aeternitate – uma visão atemporal do todo, gloriosa, omnisciente e
definitiva, que revelasse o que é o mundo, não o como é o mundo. Ver o todo
significa ver a totalidade de conexões de cada objecto, a plena verdade das coisas
que só a lógica pode proporcionar, numa perspectiva à distância, de fora, com o
mundo todo como horizonte, na qual cada objecto é visto em conjunto com espaço
e tempo, e não no espaço e tempo42.
A visão sinóptica, panorâmica, que Wittgenstein procurará mais tarde,
exige situar-se dentro do mundo, no meio dos conceitos e suas expressões, ao
mesmo nível, em vez de fora deles, ou de algum modo, transcendendo-os. E é no
meio do labirinto das ruas de uma cidade e dos caminhos tortuosos de uma
floresta, que o filósofo tentará traçar «esboços paisagísticos» que exprimam os
enredados processos, múltiplos e variados, da nova maneira de ver e de pensar.
39 Cfr § 71. 40 Cfr § 103. 41 Cfr § 108. 42 Cfr Notebooks, 7.10.16.
64
TEXTO DE APOIO
Gottlob Frege O Pensamento: uma investigação lógica.
Tradução de “Der Gedanke” in Kleine Schriften, Hildesheim, G. Olms Verlag, 1990.
Assim como a palavra «belo» reenvia para a estética e a palavra «bom» para
a ética, a palavra «verdadeiro» reenvia para a lógica. Efectivamente, todas as
ciências têm a verdade como objectivo; mas a lógica trata-a de um modo
totalmente diferente. Ela reporta-se à verdade um pouco como a física se reporta
ao peso ou ao calor. Descobrir verdades é tarefa de todas as ciências, mas é à
lógica que compete conhecer as leis do ser verdadeiro. Emprega-se a palavra «lei»
num duplo sentido. Se falarmos de leis morais ou políticas, queremos dizer
prescrições que devem ser seguidas, com as quais nem sempre os acontecimentos
estão de acordo. As leis da natureza constituem o elemento geral dos
acontecimentos naturais, às quais estes sempre se adequam. É mais neste sentido
que falo de leis do ser verdadeiro. Com certeza que não se trata aqui de um
acontecimento, mas de um ser. Destas leis que regem o ser verdadeiro nascem
prescrições para a opinião, o pensamento, o juízo, o raciocínio. Assim, pode
também falar-se de leis do pensamento. Mas há aqui o perigo de confundir coisas
diferentes. A expressão «leis do pensamento» é talvez assimilada a «leis da
natureza», entendendo-as como o aspecto geral dos eventos psíquicos do
pensamento. Uma lei do pensamento seria, neste sentido, uma lei psicológica. E
assim poder-se-ia pensar que a lógica trata doprocesso psíquico do pensamento e
das leis psicológicas às quais se submete. A tarefa da lógica seria, neste caso, mal
compreendida, pois a verdade não teria o lugar que lhe é devido. O erro e o
65
preconceito têm a sua causa, tal como o conhecimento correcto. A opinião falsa e
a opinião verdadeira ocorrem, uma e outra, segundo leis psicológicas. Uma
derivação a partir destas leis ou uma explicação dos processos psíquicos, que
conduzem a uma asserção, nunca podem substituir uma prova do objecto a que se
refere a asserção. Poderão as leis lógicas ter também um papel nestes processos
psíquicos? Não quero discutir isso, mas quando se trata da verdade, não basta a
possibilidade. É possível que algum elemento não lógico tome parte no processo,
desviando a opinião do caminho da verdade. Só poderemos decidir isso depois de
ter discernido as leis do ser verdadeiro; mas provavelmente, poderemos então
dispensar a derivação e explicação dos processos psíquicos pelas suas leis naturais,
se for importante decidir se a opinião à qual estes conduzem, é justificada. Para
eliminar qualquer confusão e evitar que a fronteira entre a psicologia e lógica se
apague, atribuo à lógica a tarefa de descobrir as leis do ser verdadeiro, e não as da
asserção ou do pensamento. O significado da palavra «verdadeiro» será explicado
pelas leis do verdadeiro.
Mas primeiro tentarei traçar aproximadamente os contornos do que
entendo por verdadeiro nesta conexão. Deste modo serão excluídos outros usos
desviados desta palavra. Não se empregará aqui o termo no sentido de «veraz» ou
«sincero», nem no sentido que lhe é dado em questões de arte, quando se trata da
verdade na arte, quando a verdade é considerada o objectivo da arte, ou quando se
fala da verdade de uma obra de arte ou de um sentimento verdadeiro. A palavra
«verdadeiro» é também confrontada com uma outra palavra para significar que
esta deve ser tomada no seu sentido próprio, não adulterado. Este emprego está
também fora do caminho que seguimos aqui; o que trataremos é da verdade cujo
reconhecimento constitui o objectivo da ciência.
A palavra «verdadeiro», gramaticalmente aparece como um qualificativo.
Por isso, convida-nos a delimitar mais estreitamente a esfera na qual a verdade
pode ser afirmada, e na qual, sobretudo, se põe a questão da verdade. Deparamo-
nos com a verdade afirmada de quadros, representações, proposições e
pensamentos. É chamativo que esta enumeração reuna coisas visíveis e audíveis e
coisas não perceptíveis pelos sentidos. Isto indica que se dão desvios de sentido.
Com efeito! Um quadro, enquanto perceptível pela vista e pelo tacto, é realmente
66
verdadeiro? E uma pedra, uma folha, não são verdadeiras? É evidente que não
chamaríamos a um quadro verdadeiro, a menos que houvesse aí uma intenção. O
quadro deve representar alguma coisa. A representação não
é tão-pouco verdadeira em si mesma, mas só tendo em conta uma intenção, uma
ideia que deva conformar-se a qualquer coisa. Pode-se, portanto pressupôr que a
verdade consiste na correspondência de um quadro com aquilo que pretende
representar. A correspondência é uma relação. Mas o emprego da palavra
«verdadeiro» contradi-lo, pois não é nenhum termo relativo, não contém qualquer
referência a uma outra coisa à qual algo deva corresponder. Se eu não souber que
um determinado quadro pretende representar a catedral de Colónia, não sei com
que o devo comparar para decidir da sua verdade. Uma correspondência, além
disso, só pode ser perfeita se as coisas correspondentes coincidirem e não forem
duas coisas distintas. Diz-se que é possível estabelecer a autenticidade de uma nota
de banco, comparando-o estereoscopicamente com uma nota autência. Mas seria
ridículo tentar comparar estereoscopicamente uma peça de ouro com uma nota de
vinte marcos. Só seria possível comparar uma ideia com uma coisa se a coisa fosse
também uma representação (Vorstellung ). E se a primeira correspondesse
perfeitamente á segunda, coincidiriam. Ora, isso é precisamente o que não se
pretende quando se define a verdade como a correspondência de uma
representação com alguma coisa de real. Pois é essencial que o objecto real e a
representação sejam diferentes. E então, não há correspondência completa nem
verdade completa. Nada seria absolutamente verdadeiro; o que é apenas meia
verdade não é verdade. A verdade não pode tolerar o mais ou o menos. Ou pode?
Não se poderia admitir que se dá a verdade no caso de existir uma
correspondência sob determinado aspecto? Mas qual? Que deveríamos fazer para
decidir se algo é verdadeiro? Teríamos que investigar se é verdade que, por
exemplo, uma representação e um objecto real se correspondem no referido
aspecto. E então enfrentar-nos-íamos com uma questão do mesmo género da
precedente, e o jogo poderia recomeçar. Portanto, a tentativa de explicar a verdade
como correspondência fracassa. E qualquer outra tentativa de definir a verdade
fracassa também. Com efeito, numa defeinição, apresentaria algumas
características próprias do verdadeiro, e na sua aplicação a qualquer caso
67
particular, tratar-se-ia sempre de saber se é verdade que essas características se
dão. Assim cai-se num círculo. Por conseguinte, parece que o conteúdo da palavra
«verdadeiro» é único e indefinível.
Quando se diz de um quadro que é verdadeiro, não se está a enunciar
propriamente uma propriedade pertencente apenas a este quadro,
independentemente do resto das coisas, mas pelo contrário, sempre se tem em
vista uma outra coisa, e pretende-se dizer que o quadro corresponde, de certo
modo a essa coisa. "A minha representação corresponde à catedral de Colónia" é
uma proposição e está em causa a verdade desta proposição. Assim, o que
impropriamente se designa por verdade de um quadro ou de uma representação, é
reconduzido à verdade das proposições. A que é que se chama uma proposição?
Uma série de sons; mas só se tiverem sentido, o que não significa que qualquer
série de sons com sentido seja uma proposição. Quando dizemos que uma
proposição é verdadeira, pensamos propriamente no seu sentido. Daqui se segue
que a questão da verdade se põe em geral, ela diz respeito ao sentido da
proposição. O sentido de uma proposição é uma representação? De qualquer
modo, ser verdadeiro não consiste na correspondência deste sentido com qualquer
outra coisa, caso contrário a questão da verdadereiterar-se-ia até ao infinito.
Sem pretender dar uma definição, chamo pensamento (Gedanke) algo sobre
o qual se pode pôr a questão da verdade. Incluo também entre os pensamentos o
que é falso, tanto como o que é verdadeiro43. Direi, portanto: o pensamento é o
sentido de uma proposição, sem com isto querer afirmar que o sentido de cada
proposição é um pensamento. O pensamento, imperceptível aos sentidos em si
mesmo, resveste-se com a roupagem sensível da proposição e torna-se assim
compreensível. Dizemos que a proposição exprime um pensamento.
O pensamento é algo imaterial e todas as coisas sensíveis e materiais são
excluídas do domínio no qual se levanta a questão da verdade.A verdade não é
43 De modo semelhante, tem-se dito que “um juízo é algo que é ou verdadeiro ou falso”. De facto, emprego o termo ‘pensamento’ mais ou menos no sentido que ‘juízo’ tem nos escritos de lógica. Espero que se tornará claro por que é que escolho ‘pensamento’. Essa explicação foi objecto de algumas críticas pelo facto de fazer uma divisão entre juízos verdadeiros e falsos – talvez a menos significativas de todas as divisões entre juízos. Mas não compreendo que seja um erro lógico o facto de apresentar uma divisão no curso da explicação. Quanto ao carácter significativo da divisão, veremos talvez que temos de a manter com alguma consideração e, como disse, é a palavra ‘verdadeiro’ que indica a direcção da lógica.
68
uma propriedade que corresponde a um género particular de impressões sensíveis.
Distingue-se, portanto daquelas propriedades que designamos com as palavras
«vermelho», «amargo», »cheirando a lilaz». Mas não vemos nós que o sol nasce e
ao mesmo tempo que isso é verdade? O facto de o sol nascer não é um objeto que
envie raios até aos nossos olhos, não é uma coisa visível como o próprio sol.
Vemos que é verdade que o sol nasceu a partir de impressões sensíveis. Mas o
facto de ser verdadeiro não é uma propriedade perceptível pelos sentidosTambém
reconhecemos que uma coisa é magnética na base de impressões sensíveis, se bem
que esta propriedade, tal como a verdade, não corresponde a um tipo particular de
impressões sensíveis. Neste aspecto estas propriedades têm algo em comum. Mas,
para reconhecer que um corpo tem propriedades magnéticas, necessitamos das
impressões sensíveis. Enquanto, se descubro ser verdade que neste momento não
sinto qualquer cheiro, não o faço a partir de impressões sensíveis.
Pode, todavia, dar-se o caso de pensar que não podemos reconhecer que
uma coisa tem uma certa propriedade sem ao mesmo tempo pensar que é verdade
que essa coisa tem essa propriedade. Assim a cada propriedade de uma coisa está
ligada uma propriedade de um pensamento, nomeadamente a de ser verdadeiro.
Note-se também que a proposição «sinto um cheiro a violeta» tem o mesmo
conteúdo que a proposição «é verdade que sinto um cheiro a violeta». Parece,
portanto, que nada se acrescentou ao pensamento com a atribuição da
propriedade de ser verdadeiro. E, no entanto, não é um resultado de grande
importância, quando um cientista, depois de uma longa hesitação e uma penosa
investigação pode finalmente dizer «a minha suposição é verdadeira"? O
significado da palavra «verdadeiro»parece ser único no seu género. Não estaremos
aqui a lidar com algo que não pode de modo algum, no sentido usual, ser
denominado como propriedade? Apesar desta dúvida, quero exprimir-se segundo
o sentido habitual, como se a verdade fosse uma propriedade, até encontrar algo
mais exacto.
Afim de elaborar mais precisamente o que chamo «pensamento»,
distinguirei vários tipos de proposições44. Não se pretenderá negar sentido a uma
44 Não emprego a palavra "proposição exactamente no sentido gramatical, que inclui também as proposições subordinadas. Uma proposição subordinada, tomada separadamente, não tem
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frase imperativa, mas este sentido não é do género que possa levantar a questão da
verdade.Por isso não chamarei pensamento ao sentido de uma proposição
imperativa. Do mesmo modo serão excluídas as frases que exprimem desejos ou
pedidos. Só estão em causa as proposições nas quais comunicamos ou afirmamos
algo. Mas não incluo incluo nestas as exclamações, nas quais damos livre curso aos
nossos sentimentos, nemgemidos, suspiros, risos, a menos que por convenção
particular, elas comuniquem algo. Mas que dizer das proposições interrogativas?
Numa questão empregamos uma frase incompleta, que só obtém um verdadeiro
sentido quando acrescentamos a resposta ao que é perguntado. As perguntas (nas
quais figura um pronome interrogativo), ficarão aqui fora da nossa consideração.
Outrotanto não se passa com as proposições interrogativas completas. Esperamos
ouvir um «sim» ou um «não». A resposta «sim» significa o mesmo que uma
proposição afirmativa, pois com ela, o pensamento que estava já contido na
proposição interrogativa é apresentado como verdadeiro. Assim, é possível, para
cada proposição interrogativa construir uma afirmativa correspondente. Uma
exclamação não pode ser considerada, por este motivo, como uma comunicação,
visto que não se pode formar nenhuma proposição interrogativa correspondente.
As proposições interrogativas e as afirmativas contêm o mesmo pensamento; mas
as afirmativas contêm algo mais: a asserção. A proposição interrogativa também
contém algo mais, a pergunta. Portanto, numa proposição afirmativa é necessário
distinguir duas coisas: o conteúdo que ela tem em comum com a correspondente
proposição interrogativa, e a asserção. A primeira é o pensamento, ou pelo menos
contém o pensamento. É possível, portanto, exprimir o pensamento sem o
afirmar como verdadeiro. Numa proposição afirmativa, os dois elementos estão
tão intimamente ligados que é fácil passar por alto a sua independência. Podemos,
assim distinguir:
1. a apreensão de um pensamento - pensar
2. o reconhecimento da verdade de um pensamento - julgar45
sempre um sentido sobre o qual se possa pôr a questão da verdade, enquanto o complexo proposicional ao qual pertence, tem esse sentido. 45 Parece-me que pensamento e juízo não têm sido distinguidos adequadamente até agora. Talvez a linguagem seja enganadora. Na verdade não temos nas proposições afirmativas nenhum elemento correspondente á asserção, mas o facto de algo estar a ser afirmado radica na forma assertórica. Em
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3. a manifestação deste juízo - asserção
Quando formulamos uma questão, realizamos o primeiro acto. Em
qualquer processo científico é possível distinguir estas etapas: primeiro apreende-
se um pensamento, que pode ser expresso por uma proposição interrogativa; e,
depois de uma investigação adequada, este pensamento é finalmente reconhecido
como verdadeiro. O reconhecimento da verdade é expresso numa proposição
afirmativa. Não é necessário para tal, empregar o termo "verdadeiro". E mesmo
quando o empregamos a força propriamente assertiva não reside neste, mas na
forma da proposição afirmativa; se a proposição perder a sua força afirmativa, o
termo "verdadeiro" não lha pode devolver. É o que acontece quando não estamos
a falar seriamente. Assim como o trovão do teatro não é senão um pseudo-trovão,
e o combate do teatro não é senão um pseudo-combate, assim a afirmação do
teatro não é senão uma pseudo-afirmação. É um mero jogo ou fantasia. Ao
representar, o actor não afirma nada, nem mente, mesmo que diga algo
convencido da falsidade das suas palavras. No caso da poesia, os pensamentos
expressos, apesar de ocorrerem na forma de uma proposição afirmativa, não são
apresentados como verdadeiros, embora possam solicitar o juízo e o assentimento
da parte do auditor. Portanto, é sempre necessário averiguar se o que é
apresentado na forma de uma proposição afirmativa, contém de facto uma
asserção. A resposta será negativa se faltar a necessária seriedade. É irrelevante,
neste caso, o emprego do termo "verdadeiro". Esta é a razão pela qual nada se
acrescenta a um pensamento quando se lhe atribui a propriedade de verdadeiro.
Uma proposição afirmativa contém, além de um pensamento e a asserção,
uma terceira componente, à qual não diz respeito a afirmação. Esta deve actuar
sobre o sentimento, o estado de ânimo do ouvinte, ou despertar a sua imaginação.
Trata-se, por exemplo, de palavras como «infelizmente» e «graças a Deus». Estes
elementos das frases ocorrem com mais frequência na poesia, mas estão
praticamente ausentes na prosa. Na matemática, física, química são mais raras do
alemão temos a vantagem de as proposições principais e as subordinadas se distinguirem pela ordem das palavras. A este respeito, deve-se notar que uma oração subordinada podem conter também uma asserção, e muitas vezes nem a oração principal nem a subordinada exprimem um pensamento completo por si mesmas mas só a frase complexa.
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que numa exposição histórica. As chamadas humanidades estão mais próximas da
poesia e são, por isso, menos científicas do que as ciências rigorosas, tanto mais
áridas quanto mais exactas. A ciência rigorosa, com efeito, visa a verdade e só a
verdade. Por isso, nenhum dos elementos de uma proposição que estão fora do
alcance da força assertiva pertence à exposição científica, mas são por vezes
difíceis de evitar, mesmo vendo o perigo que envolvem. Quando se trata de
abordar o que o pensamento não pode apreender, através de tentativas, estes
elementos justificam-se plenamente. Quanto mais exacta for uma exposição
científica, menos se fará notar a nacionalidade do seu autor e mais fácil será a sua
tradução. Em contrapartida, os elementos da linguagem para os quais quero
chamar a atenção, tornam muito difícil a tradução da poesia, senão mesmo
impossível quase sempre uma perfeita tradução. Com efeito, as línguas
distinguem-se sobretudo por estes elementos que constituem, em grande parte, o
valor poético.
Não faz nenhuma diferença para o pensamento que eu empregue a palavra
«cavalo», ou «corcel» ou «ginete» ou «égua». A força assertiva não diz respeito
àquilo em que estas palavras diferem. O que se designa por tonalidade, perfume,
luminosidade numa poesia, o que se exprime pela cadência e pelo ritmo, não
pertence ao pensamento.
Muitos dos aspectos da linguagem têm a função de ajudar a compreensão
do ouvinte, como por exemplo a acentuação de parte de uma frase pela entoação
ou a construção. Pensemos em palavras como «ainda» ou «já». Na proposição
«Alfredo ainda não chegou», dizemos que »Alfredo não chegou» e, ao mesmo
tempo sugerimos que se espera a sua chegada, mas sugere-se simplesmente; Não
se pode dizer que o sentido da proposição seja falso pelo facto da chegada de
Alfredo não ser esperada. A palavra «mas» difere da palavra «e», significando que o
que se segue está em oposição com o que se poderia esperar segundo o que foi
dito anteriormente. Estas sugestões no discurso não constituem qualquer
diferença no pensamento. Pode-se transformar uma proposição passando o verbo
da forma activa para a forma passiva, enquanto o objecto no acusativo passa para
sujeito. Da mesma forma, o dativo pode mudar para nominativo, substituindo ao
mesmo tempo «dar» por «receber». Certamente que estas transformações não são
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equivalentes em todos os aspectos, mas elas não afectam o pensamento, não
afectam o que é verdadeiro ou falso. Se, de uma maneira geral, afirmássemos a
inadmissibilidade destas transformações, então impediríamos toda e qualquer
investigação lógica mais profunda. É tão importante negligenciar as distinções que
não afectam o cerne da questão, como fazer distinções que dizem respeito ao que
é essencial. Mas o que é essencial depende da finalidade que se tem em vista. A
quem interessa a beleza da linguagem, o que é indiferente para um lógico, pode
parecer justamente como o mais importante.
Assim, muitas vezes o conteúdo de uma frase ultrapassa o pensamento que
ela exprime. Mas também acontece frequentemente o contrário: as meras palavras
, que podem ser captadas na escrita ou no gramogone, não bastam para exprimir o
pensamento. O tempus praesens emprega-se de dois modos diferentes: em primeiro
lugar para dar uma indicação temporal, em segundo lugar para elimiar qualquer
restrição de tempo, quando a intemporalidade ou a eternidade fazem parte
integrante do pensamento. Pense-se, por exemplo nas leis da matemática. Não se
diz nunca qual dos casos é que ocorre, mas isso tem de se adivinhar. Se o praesens
dá uma indicação temporal, é necessário saber quando é que a frase foi empregue,
para apreender correctamente o seu pensamento. O tempo do uso da frase é,
portanto, parte da expressão do pensamento. Se alguém quiser dizer hoje o
mesmo que exprimiu ontem empregando a palavra «hoje», tem que a substituir
por «ontem». Se bem que o pensamento seja o mesmo, a sua expressão verbal
deve ser diferente, para compreender a modificação de sentido produzida pela
diferença dos momentos em que se fala. Dá-se o mesmo caso com palavras como
«aqui», «lá». Em todos estes casos, a mera expressão verbal apresentada na escrita,
não é a expressão completa do pensamento; para a sua correcta compreensão, é
necessário conhecer certas condições que acompanham o seu emprego, que
servem para a expressão do pensamento. Podem incluir-se também aqui o apontar
com o dedo, gestos com as mãos, olhares. A mesma palavra «eu» como parte de
um enunciado, exprime pensamentos diferentes na boca de pessoas diferentes, e
pode dar-se o caso de umas serem verdadeiras, outras falsas.
A ocorrência da palavra «eu» numa proposição dá lugar a várias questões.
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Considere-se o seguinte caso. O Dr. Gustav Lauben diz: «Eu fui
ferido».Leo Peter ouve-o e conta alguns dias mais tarde: «O Dr. Gustav Lauben
foi ferido». Esta proposição exprime o mesmo pensamento que o que foi
pronunciado pelo Dr Lauben? Suponhamos que Rudolf Lingens esteve presente
quando o Dr Lauben falou, e que compreende agora o relato de Leo Peter. Se se
tratar realmente do mesmo pensamento pronunciado pelo Dr Lauben e por Leo
Peter, Rudolf Lingens, que tem um conhecimento perfeito da língua alemã e que
se recorda do que o Dr Lauben disse na sua presença, deverá saber imediatamente,
ao ouvri Leo Peter, que se trata da mesma coisa. Mas o conhecimento da língua
alemã é algo de diferente quando se trata de nomes próprios. Pode acontecer que
só poucas pessoas associem um pensamento particular com a proposição «O Dr
Lauben foi ferido». Neste caso, para compreender completamente a proposição, é
necessário conhecer o vocábulo «Dr. Gustav Lauben». Se Leo Peter e Rudolph
Lingens entendem os dois que o«Dr Lauben é o mesmo e único médico que mora
numa casa bem conhecida de ambos, então compreendem do mesmo modo a
proposição »o Dr. Gustav Lauben foi ferido», associando-lhe o mesmo
pensamento. Mas pode acontecer que Rudolph Lingens não conheça
pessoalmente o Dr Lauben e não saiba que foi o próprio Dr Lauben que disse
recentemente «Eu fui ferido». Neste caso, Rudolph Lingens não pode saber que se
trata do mesmo acontecimento. Direi por isso neste caso: o pensamento expresso
por Leo Peter não é o mesmo que o que foi dito pelo Dr Lauben.
Suponhamos, além disso, que Herbert Garner sabe que o Dr. Gustav
Lauben nasceu a 13 de Setembro de 1875 em N.N. e que isto não se aplica a
nenhuma outra pessoa; em contrapartida, ele não sabe onde mora agora o Dr.
Lauben, nem nada mais a seu respeito. Por outro lado, Leo Peter não sabe que o
Dr. Lauben nasceu a 13 de Setembro de 1875 em N.N. Sendo assim, Hervert
Garner e Leo Peter ao empregar o nome próprio «Dr Gustav Lauben» não falam a
mesma linguagem, porque, embora de facto se refiram à mesma pessoa com este
nome, não sabem que o fazem. Herbert Garner não associa á proposição »o Dr.
Lauben foi ferido» o pensamento que Leo Peter quis exprimir com ela. Para evitar
o inconvniente de Herbert Garner e Leo Peter não falarem a mesma linguagem,
admitirei que Leo Peter emprega o nome próprio «Dr Lauben» e Herbert Garner,
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por seu lado, emprega o nome próprio «Gustav Lauben». Ora é possível que
Herbert Garner considere verdadeiro o sentido da proposição «O Dr Lauben foi
ferido», enquanto, enganado por falsas informações, pense ser falso o sentido da
proposição «Gustav Lauben foi ferido».Tendo em conta estas suposições, os dois
pensamentos são diferentes.
Sendo assim, com um nome próprio, o seu significado depende de como o
que quer que seja que ele refere nos é apresentado. Isso pode dar-se de diferentes
modos, e a cada um desses modos corresponde um sentido particular de uma
proposição que contenha um nome próprio. Claro que os diferentes pensamentos
resultantes da mesma proposição, coincidem quanto ao seu valor de verdade; se
um for verdadeiro, todos serão verdadeiros, se um for falso, todos serão falsos. É
necessário, no entanto, reconhecer a sua diversidade. Deve-se requerer
expressamente que, a cada nome próprio esteja associado um só modo segundo o
qual se dá o que este nome refere. Muitas vezes não tem importância que este
requisito seja ou não respeitado; mas nem sempre é assim.
Cada pessoa é apresentada a si mesma de um modo particular e originário,
totalmente diferente do modo como é apresentado a qualquer outro. Assim,
quando o Dr Lauben pensa que foi ferido, fundamenta-se cetamente neste modo
originário no quel ele se apresenta a si mesmo. E só o próprio Dr Lauben é capaz
de apreender este pensamento assim determinado. Mas ele deseja comunicá-lo a
alguém. Não pode comunicar um pensamento que só ele próprio é capaz de
apreender. Se ele diz « «eu fui ferido», deve empregar o «eu» num sentido que os
outros possam também compreender, por exemplo no sentido de «aquele que vos
fala neste instante»; deste modo ele faz com que as condições associadas ao seu
emprego sirvam para a expressão do pensamento46.
46 Não estou aqui na feliz situação de um mineralogista que mostra aos seus ouvintes um cristal de rocha. Não posso pôr um pensamento nas mão dos meus leitores, pedindo-lhes que o examinem minuciosamente de todos os lados. Tenho de me contentar com apresentar ao leitor um pensamento, em si mesmo imaterial, revestido de uma forma linguística sensível. O carácter figurativo da linguagem levanta dificuldades. O sensível impõe-se sempre e torna a expressão metafórica e, por isso, imprópria. Daí nasce um conflito com a linguagem e eu vejo-me obrigado a ocupar-me ainda da linguagem, embora este não seja propriamente o meu problema. Espero ter conseguido tornar claro aos meus leitores o que quero dizer com pensamento.
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Todavia há aqui uma dúvida. É de facto o mesmo pensamento o que
primeiro exprimiu aquele e agora exprime este?
A pessoa que não teve ainda contacto com a filosofia só conhece o que
pode ver, tocar, em suma, perceber pelos sentidos: árvores, pedras, casas, e está
convencida que qualquer outra pessoa pode ver e tocar a mesma árvore, a mesma
pedra que ela vê ou toca. É evidente que nenhum pensamento se inclui nestas
coisas. Poderá um pensamento relacionar-se com as pessoas do mesmo modo que
uma árvore?
Até o não filósofo reconhece facilmente um mundo interno diferente do
mundo externo, um mundo de impressões sensíveis, de criações da sua
imaginação, de sensações, de emoções, de sentimentos e disposições, um mundo
de inclinações, desejos e decisões. Brevemente, reunirei tudo isto, à excepção das
decisões, sob a designação de "representação".
Os pensamentos pertencerão a este mundo interno? São representações?
Não são, evidentemente decisões. Em que é que se distinguem as representações
das realidades do mundo externo?
Em primeiro lugar: as representações não podem ser vistas nem tocadas,
nem cheiradas ou saboreadas ou ouvidas.
Dou um passeio com um amigo. Vejo um prado verde e tenho então uma
impressão sensível do verde. Tenho-a, mas não a vejo.
Em segundo lugar: as representações são algo que se tem. Uma pessoa tem
sensações, sentimentos, disposições, inclinações, desejos. Uma representação que
alguém tem, pertence ao conteúdo da sua consciência.
O campo e as suas rãs, o sol que as ilumina, estão aí, mesmo que eu não as
olhe; mas a impressão sensível do verde só existe em mim; sou o seu portador.
Parece-nos absurdo pensar que uma dor, uma disposição, um desejo possam
vagabundear pelo mundo independentemente de um portador. É impossível uma
experiência sem alguém que a experimente. O mundo interno pressupõe a pessoa
a quem pertence esse mundo interno.
Em terceiro lugar: as representações têm necessidade de um portador.
Enquanto as coisas do mundo externo são independentes.
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O meu companheiro e eu estamos convencidos que vemos os dois o
mesmo prado; mas cada um de nós tem uma impressão sensível particular do
verde. Vejo um morango entre as folhas verdes do morangueiro. O meu
companheiro que é daltónico se apercebe do verde. A impressão de cor que ele
recebe do morango não se distingue sensivelmente daquela que recebe da folha.
Será que o meu companheiro vê a folha verde como vermelha, ou vê o morango
vermelho como verde? Ou v~e ambas cores como uma só cor, que eu próprio
não conheço de todo? Estas questões são irresolúveis, realmente não têm sentido.
Pois quando a palavra «vermelho» não significa uma propriedade das coisas, mas
caracteriza supostamente impressões sensíveis pertencentes à minha consciência,
só é aplicável no domínio da minha consciência; neste caso é impossível comparar
a minha impressão sensível com a de outra pessoa. Seria necessário, para isso
reunir numa mesma consciência uma impressão sensível pertencente a uma
consciência e uma impressão sensível pertencente a outra consciência. Mesmo que
fosse possível fazer desaparecer uma representação de uma consciência e, fazê-la
surgir ao mesmo tempo noutra consciência, permaneceria de pé a questão de saber
se se trata da mesma representação. É de tal modo essencial a cada uma das
minhas representações o facto de serem o conteúdo da minha consciência, que
qualquer representação de outra pessoa, enquanto tal, é diferente da minha. Mas
não seria possível que as minhas representações, todo o conteúdo da minha
consciência fosse ao mesmo tempo o conteúdo de uma consciência mais ampla,
talvez divina? Sem dúvida, mas só se eu próprio fizesse parte da consciência
divina. Mas seriam elas, nesse caso, as minhas representações? Seria eu o seu
portador? Esta hipótese ultrapassa de tal forma os limites do entendimento
humano, que é aconselhável prescindir da sua consideração. De qualquer modo, é
impossível ao ser humano, comparar as representações de outra pessoa com as
suas próprias. Eu colho o morango, seguro-o entre os meus dedos. Agora o meu
companheiro também o vê, o mesmo morango; mas cada um de nós tem a sua
própria representação. Nenhuma outra pessoa tem a minha representação, embora
muitas pessoas possam ver a mesma coisa. Nenhuma outra pessoa tem a minha
dor. Alguén pode sentir simpatia para comigo; mas, mesmo assim, a minha dor
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pertence-me a mim e a sua simpatia pertence-lhe a ele. Nem ele tem a minha dor,
nem eu a sua simpatia.
Em quarto lugar: cada representação tem apenas um portador; dois
homens não podem ter a mesma representação.
Doutro modo, a representação existiria independentemente desta ou
daquela pessoa. Aquela tília é uma representação minha? Ao empregar nesta
pergunta a expressão «aquela tília», antecipo já a resposta; pois com esta expressão
quero referir-me a algo que eu vejo e que outros podem também olhar e tocar.
Temos então duas possibilidades. Se a minha intenção é preenchida quando me
refiro a alguma coisa com a expressão «aquela tília», então o pensamento expresso
na proposição «aquela tília é uma representação minha» deve evidentemente ser
negado. Se, pelo contrário, a minha intenção falhar, se eu apenas penso ver sem
realmente ver, se por isso a referência de «aquela tília» for vazia, então estou
perdido, embora sem o saber nem querer, no domínio da poesia. Neste caso nem
o conteúdo da proposição « aquela tília é representação minha», nem o conteúdo
da proposição «aquela tília não é representação minha» são verdadeiros; nos dois
casos, tenho um afirmação à qual lhe falta o objecto. Portanto, a única solução
será recusar responder á pergunta, pela simples razão que o conteúdo da
proposição «aquela tília é uma representação minha» não passa de poesia. Claro
que tenho uma representação, mas não é a ela que me refiro com as palavras
«aquela tília». Poderia dar-se o caso de alguén pretender designar efectivamente
uma das suas representações com as palavras «aquela tília»; esse alguém seria então
o portador daquilo que quer designar com estas palavras; mas não veria aquela
tília, nem mais ninguém a poderia ver nem ser seu portador.
Volto agora à questão: o pensamento é uma representação? Se o
pensamento que eu exprimo no teorema de Pitágoras pode ser reconhecido tanto
por outros como por mim próprio, não pertence ao conteúdo da minha
consciência, não sou o seu portador; e, no entanto, posso reconhecê-lo como
sendo verdadeiro. Se não fosse o mesmo pensamento que tanto eu como qualquer
outro consideramos como o conteúdo do teorema de Pitágoras, não se deveria
dizer "o teorema de Pitágoras", mas "o meu teorema de Pitágoras", "o seu
teorema de Pitágoras". E seriam diferentes; porque o sentido pertence
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necessariamente à própria proposição. O meu pensamento seria então o conteúdo
da minha consciência e o pensamento do outro seria o conteúdo da sua
consciência. Poderia dar-se o caso de o sentido do meu teorema de Pitágoras ser
verdadeiro, enquanto o sentido do outro falso? Afirmei que a palavra "vermelho"
só se emprega na esfera da minha consciência, se não se refere a uma propriedade
das coisas, mas caracteriza uma das minhas impressões sensíveis. Sendo assim, as
palavras "verdadeiro" e "falso", tal como as entendo, também poderiam ser
empregues apenas no domínio da minha consciência, se não dizem respeito a
alguma coisa da qual não sou o portador, mas têm por finalidade caracterizar o
conteúdo da minha consciência. Assim, a verdade restringir-se-ia ao conteúdo da
minha consciência e seria duvidoso que algo de semelhante ocorresse em qualquer
outra consciência.
Se todos os pensamentos tivessem necessidade de um portador, e
pertencessem ao conteúdo da sua consciência, então cada pensamento seria desse
mesmo portador, e não existiria ciência comum a vários indivíduos, na qual
pudessem trabalhar em conjunto. Talvez eu tenha a minha ciência, nomeadamente
um conjunto de pensamentos de que sou portador, e outra pessoa tenha a sua.
Cada um de nós ocupar-se-ia dos conteúdos da sua própria consciência. Não seia
possível, neste caso, qualquer contradição entre as duas ciências, e seria totalmente
inútil discutir a questão da verdade, tão inútil ou mesmo ridícula como se dois
homens discutissem para saber se uma nota de dez marcos é autêntica, estando
cada um a pensar na nota que tem no seu bolso e compreendendo a palavra
"autêntico" num sentido próprio, pessoal. Se alguém considera que os
pensamentos são representações, o que reconhece como verdadeiro será, na sua
perspectiva, o conteúdo da sua consciência e não diria respeito a mais ninguém. E
se me ouvisse defender a opinião que o pensamento não é representação, não a
poderia discutir, pois, na realidade, isso não lhe diria respeito.
Daqui parece resultar que os pensamentos não são nem coisas do mundo
externo nem representações.
É necessário admitir um terceiro domínio. O que lhe pertence, assemelha-
se às representações, enquanto não pode ser percebido pelos sentidos, mas
também às coisas enquanto não tem necessidade de um portador, do qual fosse o
79
conteúdo de consciência. Tal é o caso, por exemplo, do pensamento expresso no
teorema de Pitágoras, intemporalmente verdadeiro, verdadeiro
independentemente do facto de alguém o considerar como verdadeiro. Não
necessita de nenhum portador. É verdadeiro, não quando é descoberto pela
primeira vez, mas como um planeta já em interacção com outros planetas mesmo
antes de ser observado por alguém47.
Mas julgo ouvir uma objecção singular. Admiti várias vezes que esta
mesma coisa que vejo pode ser observada por outra pessoa. Como seria isso
possível se tudo fosse apenas um sonho? Se eu tivesse apenas sonhado que
passeava na companhia de outra pessoa, se tivesse apenas sonhado que o meu
companheiro viu o prado verde como eu vi, se tudo fosse mero teatro
representado na cena da minha consciência, então seria duvidosa a existência de
qualquer coisa do mundo externo. Talvez o domínio das coisas seja vazio e não
vejo nem coisas nem homens, mas tenho apenas representações das quais sou o
portador. Sendo uma representação algo que, tal como o meu sentimento de
fadiga, não pode existir independentemente, tão-poouco pode ser um homem,
nem olhar o mesmo campo verde comigo, nem ver o morango que seguro na
mão. É completamente incrível que eu tenha apenas o meu mundo interno, em
vez de tudo o que me rodeia, onde julgo mover-me e actuar. E, no entanto seria
esta a consequência inevitável da proposição segundo a qual só a minha
representação pode ser objecto da minha consciência. O que é que se seguiria a
esta proposição, se fosse verdadeira? Existiriam outros seres humanos? É possível,
mas nada saberia àcerca deles. Porque um homem não pode ser uma
representação minha e, se a proposição for verdadeira, tão-pouco poderá ser
objecto da minha consciência. Assim ficariam destituídas de qualquer fundamento
todas as considerações em que admitia que algo pudesse ser tanto um objecto para
outra pessoa como para mim próprio; pois mesmo que se desse essa possibilidade,
eu nada saberia sobre isso. Ser-me-ia impossível distinguir entre aquilo de que sou
o portador e aquilo de que não sou o portador.Ao julgar que algo não é uma
47 Alguém vê uma coisa, tem uma ideia, apreende ou pensa um pensamento. Quando se apreende ou pensa um pensamento, este não é criado, mas apenas apenas passa a estar numa certa relação com o que já existia – uma relação diferente da de ver uma coisa ou ter uma ideia.
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representação minha, estaria já a torná-lo objecto do meu pensamento e, portanto,
da minha representação. Nesta perspectiva, existe um campo verde? Talvez, mas
não seria visível para mim. Se um campo não é uma representação minha não
pode, segundo a nossa proposição, ser objecto da minha consciência. Mas se for
uma representação minha, então será invisível, pois as representações não são
visíveis. Posso, na verdade, ter a representação de um prado verde, mas ele não é
verde, visto que não há representações verdes. Continuando com este argumento,
existe um projéctil que pese 100Kg? Talvez; mas nada posso saber dele. Se um
projéctil não for uma representação minha, de acordo com a nossa proposição,
não pode ser objecto da minha consciência, do meu pensamento. Mas se um
projéctil fosse uma representação minha, não teria peso. Posso ter uma
representação de um projéctil pesado. Esta contém, como representação parcial, a
de peso. Mas esta representação parcial não é propriedade da representação
completa, como tão-pouco a Alemanha é uma propriedade da Europa. Portanto,
segue-se o seguinte:
Ou a proposição, segundo a qual só a representação pode ser objecto da
minha consciência, é falsa, ou tudo o que sei e conheço se limita ao domínio das
minhas representações, à cena da minha consciência. Neste caso, não teria senão
um mundo interno e eu nada saberia dos outros seres humanos.
É estranho como, segundo estas considerações, as oposições se invertem
umas nas outras. Pensemos por exemplo num especialista da fisiologia dos
sentidos. Como convém a um investigador das ciências, está longe de pensar que
as coisas que julga ver e tocar, não são senão representações suas. Pelo contrário,
ele crê que nas impressões sensíveis encontra os testemunhos mais seguros das
coisas que existem totalmente independentes dos seus sentimentos,
representações, pensamentos, coisas que não têm qualquer necessidade da sua
consciência. Está tão longe de considerar as fibras nervosas ou as células
ganglionares como um conteúdo da sua consciência, que se inclinará, pelo
contrário, a pensar que a sua consciência é que depende das fibras nervosas e das
células ganglionares. Defende que os raios luminosos que se refractam nos olhos,
encontram as terminações do nervo óptico e produzem uma modificação, um
estímulo. Algo se transmite através das fibras nervosas às células ganglionares.
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Outros processos se sucedem no sistema nervoso que dão origem a impressões de
cor e estas associam-se para produzir talvez o que chamamos a representação de
uma árvore. Entre a árvore e a minha representação insere-se uma série de
processos físicos, químicos, fisiológicos. Estes processos estão imediatamente
conectados com a minha consciência, mas, segundo parece, são apenas processos
internos do meu sistema nervoso; e cada espectador da árvore tem os seus
próprios processos particulares no seu sistema nervoso particular. Ora, os raios
luminosos, antes de penetrarem nos meus olhos, podem ser reflectidos por um
espelho e serem projectados como se viessem de um lugar por trás do espelho. Os
efeitos sobre os nervos ópticos e tudo o que se segue produzir-se-ão exactamente
como se os raios tivessem partido de uma árvore situada detrás do espelho e se
tivessem propagado em linha recta até ao olho. Deste modo obter-se-á finalmente
uma representação da árvore, embora não exista nenhuma árvore tal como se nos
representa. Também uma luz refractada pode produzir, por intermédio do olho e
do sistema nervoso, uma representação à qual não corresponde nada. O estímulo
do nervo óptico nem precisa realmente de ser provocado pela luz. Quando cai um
raio nas proximidades, julgamos ver chamas, embora tenha sido impossível ver o
próprio raio. O nervo óptico é de algum modo estimulado pela corrente eléctrica
produzida no nosso corpo a seguir ao relâmpago. Se o nervo óptico for
estimulado por este meio, como seria estimulado por raios luminosos
provenientes de chamas, julgaríamos então ver chamas. Depende apenas da
estimulação do nervo óptico, é indiferente a sua origem.
Podemos dar mais um passo. Realmente, esta estimulação do nervo óptico
não se dá imediatamente, mas é apenas uma suposição. Julgamos que uma coisa
independente de nós estimula um nervo e dá origem a uma impressão sensível;
mas, estritamente falando, nós experimentamos apenas o fim deste processo, que
irrompe na nossa consciência. Não poderia esta impressão sensível, esta sensação
que atribuímos a uma excitação nervosa, ter outras causas, tal como a própria
excitação nervosa pode ter a sua origem de várias maneiras? Se chamamos ao que
se dá à nossa consciência representação, então só experimentaremos realmente
representações, não as suas causas. E se o cientista quiser rejeitar tudo o que é
mera hipótese, só lhe restam representações; tudo se reduz a representações, até
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os raios luminosos, as fibras nervosas e as células ganglionares das quais partiu.
Assim arruina afinal os fundamentos da sua própria construção. Tudo é
representação? Tudo precisa de um portador, sem o qual nada existiria?
Considerei-me a mim mesmo como portador das minhas representações, mas não
sou eu também uma representação? Parece-me que estou numa cadeira longa, que
vejo duas pontas de botas engraxadas, a parte da frente de umas calças, um casaco,
botões, parte de um jaquetão, sobretudo as mangas, duas mãos, alguns pêlos de
barba, o contorno indistinto de um nariz. Eu próprio sou toda esta associação de
impressões visuais, este conjunto de representações? Parece-me que vejo também
uma cadeira. É uma representação. Na verdade, não me distingo radicalmente
dela; não serei eu próprio uma mera associação de impressoes sensíveis, uma
representação? Mas onde está então o portador destas representações? Como
posso eu isolar uma das minhas representações para a instituir como portadora
das outras? Porque terá de ser a representação que arbitrariamente chamo eu? Não
poderia do mesmo modo escolher a representação a que sou tentado chamar
cadeira? Sobretudo, para que é necessário um portador das representações? Esse
portador seria sempre essencialmente diferente das representações que alguém
tem, seria um ser independente sem necessidade de qualquer portador alheio. Se
tudo for representação, não haverá nenhum portador das representações. E assim,
uma vez mais, tenho a experiência de uma transformação de proposições nas suas
opostas. Se não há nenhum portador de representações, não há tão-pouco
qualquer representação; pois as representações necessitam de um portador, sem o
qual não podem existir. Se não houver monarca, não há súbditos. A dependência
que sou induzido a atribuir à sensação, em contraste com aquele que sente,
desaparece se deixar de haver um possuidor. Neste caso, o que eu chamava
representações, passarão a ser objectos independentes. E não há nenhuma razão
para conceder uma posição especial a esse objecto a que chamo eu.
Mas será isto possível? Poderá dar-se uma experiência sem alguém que a
experimente? Que seria todo este jogo sem um espectador? Poderá haver uma dor
sem alguém que sinta essa dor? Ser sentido está necessariamente ligado com a dor,
e alguém que a sinta está necessariemtne ligado com o ser sentido. Mas então há
algo que não é uma representação minha e, no entanto, pode ser objecto da minha
83
consciência, do meu pensamento: eu próprio sou dessa natureza. Ou poderei eu
ser parte do conteúdo da minha consciência, enquanto uma outra parte será talvez
uma representação da Lua? Terá isto lugar quanto julgo que eu estou a olhar para a
Lua? Então esta primeira parte teria uma consciência, e parte do conteúdo dessa
consciência seria de novo eu próprio. E assim por diante. Contudo é certamente
inconcebível que eu esteja dentro de mim mesmo deste modo como numa infinita
cadeia de caixas, pois então não haveria apenas um eu, mas uma infinidade deles.
Eu não sou uma representação minha; e quando afirmo algo sobre mim mesmo,
por exemplo que não estou a sentir nenhuma dor neste momento, o meu juízo diz
respeito a slgo que não é um conteúdo da miinha consciência, não é uma
representação minha, nomeadamente eu próprio. Portanto, aquilo sobre o qual
afirmo algo não é necessariamente uma representação. Talvez alguém possa
objectar: se penso que não tenho nenhuma dor neste momento, a palavra “eu”
não corresponde a algo no conteúdo da minha consciência? E não é isso uma
representação? É possível. Uma determinada representação na miinha consciência
pode estar associada à representação da palavra “eu”. Mas neste caso esta é uma
representação entre outras, e eu não sou o seu possuidor como o sou das outras
representações. Tenho uma representação de mim próprio, mas não sou idêntico a
ela. O que é conteúdo da minha consciência, a minha representação, deverá ser
claramente distinto do que é um objecto do meu pensamento. Assim, a tese
segundo a qual todo o que pertence ao conteúdo da minha consciência pode ser
objecto do meu conhecimento, do meu pensamento, é falsa.
Parece-me perfeitamente óbvio reconhecer outro homam como um
possuidor independente de representações. Tenho uma representação dele, mas
não a confundo com ele próprio. E se afirmo alguma coisa sobre o meu irmão,
não o afirmo àcerca da representação que tenho do meu irmão.
O doente que tem uma dor é dono dessa dor, mas o médico que o está a
tratar e reflecte sobre a causa dessa dor não é o possuidor da dor. Não imagina
que possa aliviar a dor anestesiando-se a si próprio. Na mente do médico poderá
haver uma representação correspondente à dor do doente, mas não é a dor, e não
é isso que o médico está a tentar eliminar. O médico poderá consultar outro
médico. É necessário então distinguir: primeiro, a dor cujo possuidor é o doente;
84
segundo, a representação desta dor do primeiro médico; terceiro a representação
da dor do segundo médico. Esta última representação pertence de facto ao
conteúdo da consciência do segundo médico, mas não é o objecto da sua reflexão;
é antes uma ajuda para a reflexão, tal como um desenho. Os dois médicos um
objectivo comum de pensamento a dor do doente, que eles próprios não
possuem. Assim se pode ver que não só uma coisa, mas também uma
representação pode ser um objecto comum do pensamento de pessoas que não
têm a representação.
Parece-me que deste modo a questão se torna inteligível. Se o homem não
pudesse pensar nem captar como objecto do seu pensamento, algo de que ele não
é o possuidor, teria um mundo interno, mas não um mundo externo. Não poderá
isto radicar num erro? Estou convencido que a representação que associo ás
palavras “o meu irmão” corresponde a algo que não é representação miinha e
sobre o qual posso dizer alguma coisa. Não poderei estar enganado nisto? Tais
erros acontecem. Contra a nossa vontade, caímos na ficção. É verdade! O passo
com o qual conquisto um mundo exterior para mim próprio expõe-me ao risco de
cometer um erro. Aqui manifesto-me contra uma outra diferença entre o meu
mundo interno e o mundo externo. Não posso duvidar que tenho uma impressão
visual de verde, mas não é assim tão certo que veja uma folha de lima. Portanto,
contrariamente às opiniões mais generalizadas, encontramos certeza no mundo
interno, enquanto a dúvida nunca nos abandona nas nossas excurões pelo mundo
externo. Mas em muitos casos é, no entanto, difícil distinguir a probabilidade da
certeza, por isso podemos presumir que fazemos juízos sobre as coisas do mundo
externo. E temos de admitir esta presunção mesmo correndo o risco de errar, se
não quisermos expor-nos a perigos muito maiores.
Como resultado destas últimas considerações, comprovo o seguinte: nem
tudo o que pode ser objecto do meu conhecimento é uma representação. Sendo
possuidor de representações, eu próprio não sou uma representação. Nada me
impede de reconhecer outros homens como possuidores de representações, tal
como eu próprio. E, dada a possibilidade, a probabilidade é muito grande, tão
grande que na minha opinião jã não se pode distinguir da certeza. De outro modo,
haveria uma ciência da história? Não seriam nulas todas as teorias morais, todas as
85
leis? Que restaria da religião? As próprias ciências naturais só poderiam ser
consideradas meras fábulas, como a astrologia e a alquimia. As reflexões que
expus, pressupondo que existem homens além de mim, que podem tomar a
mesma coisa como objecto da sua consideração, do seu pensamento, mantêm-se
seguras, com toda a sua força.
Nem tudo é representação. Assim, posso admitir que o pensamento é
independente de mim, e os outros poderão apreendê-lo tal como eu. Posso
admitir a existência de uma ciência na qual trabalham e investigam muitas pessoas.
Não somos portadores dos pensamentos como o somos das nossas
representações. Não temos um pensamento do mesmo modo que temos uma
impressão sensível, mas tão-pouco vemos um pensamento como vemos uma
estrela. Será oportuno escolher uma expressão particular e a palavra "apreender"
parece ser a mais adequada48. Uma capacidade mental peculiar, o poder de pensar,
deve corresponder à apreensão do pensamento. Pensar não é produzir
pensamentos, mas apreendê-los. O que designei por pensamento relaciona-se
estreitamente com a verdade. O que considero como verdadeiro, julgo-o como
verdadeiro independentemente do facto de o reconhecer como verdadeiro e do
facto de pensá-lo. O facto de alguém pensar não tem nada a ver com a verdade
desse pensamento. "Factos, factos, factos!" grita o cientista quando pretende
insistir na necessidade de um fundamento certo para a ciência. O que é um facto?
Um facto é um pensamento que é verdadeiro. Mas o cientista não admitirá que o
fundamento certo da ciência seja algo que depende dos estados de consciência
variáveis dos homens. O trabalho da ciência não consiste numa criação, mas numa
descoberta de pensamentos verdadeiros. O astrónomo pode empregar uma
verdade matemática no estudo de acontecimentos passados há muito tempo, que
se deram quando não havia ainda ninguém na terra que tivesse reconhecido essa
verdade. Pode fazê-lo porque a verdade de um pensamento é intemporal. Esta
verdade não surge com a sua descoberta.
48 A expressão ‘apreender’ é tão metafórica como ‘conteúdo de consciência’. A natureza da linguagem não nos permite nada mais. O que seguro na minha mão pode certamente ser considerado como o conteúdo da minha mão; mas é o conteúdo da minha mão de um modo totalmente diferente e mais estranho do que o são os ossos e os músculos que constituem a mão e a cujas tensões está sujeita.
86
Nem tudo é representação. Se assim fosse, a psicologia conteria em si
própria todas as ciências, ou pelo menos seria juíz supremo sobre todas as
ciências. Se assim fosse, a psicologia regeria a lógica e as matemáticas. Mas
subordiná-las à psicologia seria o maior equívoco com respeito às matemáticas.
Nem a lógica nem as matemáticas têm a tarefa de investigar as mentes e os
conteúdos de consciência dos quais o homem individual é portador. Talvez se
pudesse atribuir-lhes de preferência a investigação da mente: da mente, não das
mentes.
A apreensão de um pensamento pressupõe alguém que o apreenda, que
pensa. Este alguém é portador do acto de pensar, mas não do pensamento. Se
bem que o pensamento não pertença ao conteúdo da consciência do homem que
pensa, é, no entanto necessário que na consciência alguma coisa vise o
pensamento. Alguma coisa, que não deve confundir-se com o próprio
pensamento. Por exemplo, Algol em si mesmo é diferente da representação que
alguém possa ter de Algol.
O pensamento não pertence nem ao mundo interno como uma
representação, nem ao mundo externo das coisas materiais, perceptíveis.
Esta consequência, embora concludente a partir do exposto, talvez não seja
aceite sem oposição. Penso que, a algumas pessoas parecerá impossível obter
informação sobre algo que não pertence ao mundo interno, a não ser através da
percepção sensível. De facto, a percepção sensível é geralmente considerada a
fonte mais certa, até a única fonte de conhecimento sobre tudo aquilo que não
pertence ao mundo interno. De qualquer modo dois homens não têm as mesmas
impressões sensíveis, enbora possam ter semelhantes. As impressões sensíveis por
si só não nos revelam o mundo externo. Talvea exista um ser que tenha só
impressões sensíveis sem ver nem tocas as coisas. Ter impressões sensíveis não é
ver as coisas. Como é possível eu ver a árvore exactamente no local onde a vejo?
É evidente que depende das impressões sensívels e no modo particular como se
dão, porque vejo com dois olhos. Em cada uma das duas retinas origina-se, no
sentido físico, uma imagem particular. Outra pessoa vê a árvore no mesmo local.
Tem também duas imagens retinianas mas estas diferem das minhas. Temos que
presumir que estas imagens retinianas determinam as nossas impressões. Em
87
consequência as impressões visuais que temos, não só não são as mesmas, mas são
bem diferentes uma da outra. E no entanto, movemo-nos no mesmo mundo
externo. Ter impressões visuais é certamente necessário para ver coisas, mas não
suficiente. O que é precisa acrescentar não é algo sensível. E é isto precisamente o
que nos abre o mundo externo; de facto sem este factor não sensível cada um
permaneceria fechado no seu mundo interno. Talvez, dado que o factor decisivo
reside no não-sensível, em algo não sensível, mesmo sem a cooperação das
impressões sensíveis, isso possa conduzir-nos para fora do mundo interno e
permitir-nos captar pensamentos. Além do mundo interno, teríamos que
dsintinguir o mundo externo próprio das coisas sensíveis, perceptíveis e o
domínio do que é perceptível não sensivelmente. Precisamos de algo não sensível
para reconhecer estes dois domínios; para a percpeção sensível das coisas,
necessitamos também de impressões sensíveis, e estas pertencem inteiramente ao
mundo interno. Assim a distinção entre os modos como uma coisa e um
pensamento são dados consiste em algo que não pertence a nenhum destes
domínios, mas ao mundo interno. Portanto não posso achar esta distinção tão
grande que em função dela, se tornasse impossível que se desse um pensamento
que não pertencesse ao mundo interno.
É certo que o pensamento não é aquilo que habitualmente chamamos real.
O mundo do real é um mundo no qual uma coisa actua sobre outra, a modifica,
recebe ela mesma reacções e é por sua vez alterada. Tudo isto se processa no
tempo. É difícil admitir como real o que é intemporal e inalterável. O pensamento
sofre alterações ou é intemporal? O pensamento que exprimimos com o teorema
de Pitágoras é, sem dúvida, intemporal, eterno, inalterável. Mas não haverá
pensamentos que hoje são verdadeiros e falsos dentro de seis meses? Por exemplo
o pensamento que esta árvore está coberta de folhas verdes, daqui a seis meses
será falso. Não; não se trata do mesmo pensamento. As palavras "esta árvore está
coberta de folhas verdes", por si só não bastam para a sua expressão, porque o
momento em que se empregam faz parte integrante do pensamento. Sem a
determinação do tempo dado no momento em que se empregam as palavras, não
se dá um pensamento completo: ou seja, não há pensamento nenhum. Só a
proposição contendo a determinação temporal, completa em tudo, pode exprimir
88
um pensamento. E se for verdadeira, não é verdadeira apenas hoje ou amanhã,
mas é verdadeira independentemente do tempo. O tempo presente em 'é
verdadeiro' não se refere ao tempo do locutor, mas a um tempo da
intemporalidade, se é permitida a expressão. Quando empregamos a simples
forma afirmativa, evitando a palavra 'verdadeiro', é necessário distinguir duas
coisas: a expressão do pensamento e a asserção. A determinação do tempo que a
proposição pode conter pertence apenas à expressão do pensamento, enquanto a
verdade, cujo reconhecimento reside na forma da proposição afirmativa, é
intemporal. É verdade que os mesmos termos, devido à instabilidade da
linguagem, podem adquirir outro sentido com o passar do tempo, e exprimir
outro pensamento. Mas esta mudança diz respeito apenas ao aspecto linguístico.
E no entanto, que valor poderia haver para nós no que é eternamente
inalterável, que está para além de qualquer realidade efectiva e não exerce qualquer
efeito sobre nós? Algo sem qualquer tipo de efectividade seria para nós
completamente irreal e inacessível. O própio intemporal, se é alguma coisa para
nós, deverá de algum modo estar implicado na temporalidade. O que seria um
pensamento para mim se nunca o tivesse apreendido? Ao apreender um
pensamento, estabeleço uma relação mútua com ele. Pode acontecer que pense
hoje algo que não pensei ontem. Deste modo a temporalidade estrita é certamente
anulada. Mas estamos inclinados a distinguir entre propriedades essenciais e
inessenciais, e a reconhecer como intemporal tudo aquilo que só é alterado nas
suas propriedades inessenciais. Uma propriedade de um pensamento será
inessencial se consistir, ou for uma consequência do facto de esse pensamento ser
apreendido por um pensador.
Como actua um pensamento? Pelo próprio facto de ser apreendido e
tomado como verdadeiro. É um processo no mundo interno de um ser pensante
que pode ter consequências neste mundo interno, e estas, penetrando na esfera da
vontade, manifestar-se-ão no mundo externo. Se eu apreender o pensamento que
enunciamos no teorema de Pitágoras, a consequência pode ser que eu admita a sua
verdade e que a aplique tomando uma decisão que dê origem às acelerações da
massa. Assim as nossas acções são habitualmente preparadas pelo pensamento e
juízo. Deste modo, os pensamentos podem ter uma influência mediata sobre os
89
movimentos da massa. A acção de uma pessoa sobre outra é, em geral mediatizada
pelos pensamentos. Alguém comunica um pensamento. Como ocorre isto?
Originando modificações no mundo externo comum que, apreendidas por outra
pessoa, são a ocasião para apreender um pensamento e tomá-lo por verdadeiro.
Os grandes acontecimentos da história mundial poderiam alguma vez ter ocorrido
sem a comunicação de pensamentos? E no entanto inclinamo-nos a considerar os
pensamentos como irreais porque parecem não ter qualquer influência sobre os
acontecimentos, enquanto o pensar, o julgar, o expirmir, o compreender, todos
estes actos, são factos da vida humana. Um martelo parece muito mais real, se
comparado com um pensamento. O processo de empunhar um martelo é bem
diferente de comunicar um pensamento. O martelo produz uma transmissão de
força para outro, é agarrado, submetido a uma pressão, a sua densidade altera-se
assim como a posição de algumas das suas partes. Nada disto acontece com o
pensamento. Ao comunicar um pensamento, este não deixa de estar sob o
domínio de quem o comunica; no fundo o homem não tem qualquer poder sobre
o pensamento.
Quando se apreende um pensamento, este apenas produz modificações no
mundo interno de quem o apreende, contudo permanece intocável na sua
verdadeira essência; estas modificações só afectam propriedades inessenciais. Falta
aqui algo que observamos em qualquer acontecimento natural: a acção recíproca.
Os pensamentos não são de modo nenhum irreais, mas a sua realidade é de
natureza completamente diferente da realidade das coisas. E a sua efectividade tem
origem no acto de quem pensa, sem o qual seriam totalmente inúteis, pelo menos
tanto quanto posso ver. E, no entanto, quem pensa não cria os pensamentos, mas
tem que tomá-los como são. Podem ser verdadeiros sem serem apreendidos, e
mesmo então não são totalmente irreais, se pelo menos puderem ser apreendidos,
tornando-se, assim, eficazes.
90
III. Semântica e Pragmática
1. Um dos desafios que se apresentam à epistemologia contemporânea é o
de reformular uma teoria do juízo e da proposição que reconcilie duas noções que
a modernidade tem pensado de forma disjuntiva – a de verdade e a de sentido.
Esta disjunção pode rever-se na bipolarização entre as noções de correspondência
e coerência que representam duas fortes alternativas para formular uma teoria da
verdade. No entanto, a própria controvérsia entre correspondencionalistas e
coerentistas, é reveladora das aporias que nenhuma das duas noções logram
resolver cabalmente. A lição a tirar é talvez a da necessidade de recorrer a uma
outra dimensão – prática, espontânea, reflexiva – para sair do impasse. A
semântica da verdade parece ser inseparável da pragmática. A conclusão que
alguns tiram do argumento de infinito regresso proposto por Frege para mostrar a
impossibilidade de definir verdade em termos de correspondência, é precisamente
esta: uma teoria da verdade tem de admitir a espontaneidade do juízo.
2. Com efeito, autores como Frege, Wittgenstein, Austin, Tugendhat,
pensam a estrutura da enunciação partindo precisamente de um conteúdo
proposicional sobre o qual recai uma força assertiva associável ao assentimento,
noções relevantes para a compreensão da semântica da verdade. Este acento
tónico na dimensão pragmática e reflexiva do acto de julgar e sua expressão
linguística encontra-se antecipado na teoria do juízo evidente de Brentano,
entendido como posição e não síntese predicativa e como locus privilegiado da
verdade. Arquitectonicamente fundada nas noções de assentimento, força
assertiva e evidência, esta reformulação preludia a actual pragmática e a exploração
do carácter performativo da linguagem.
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3. A Sprachkritik brentaniana acentua precisamente a intervenção da prática
linguística e do uso dos termos pelo locutor, para a realização efectiva de qualquer
acto judicativo. A dimensão prática revela-se na própria expressão proposicional,
que não se limita a significar algo, mas determina a própria realidade: a asserção é
um acto de fala e todas as proposições declarativas têm, nesta perspectiva, um
carácter pragmático, que os signos linguísticos não podem senão mostrar, exprimir. O
juízo como posição excede a própria materialidade e factualidade da linguagem,
exibindo o carácter intensional.
A Crítica da Linguagem de Brentano permite-lhe elucidar as noções de
juízo, asserção (e negação), verdade e evidência, libertando-as da camisa de forças
imposta até então pela concepção da linguagem como “imagem” ou espelho do
pensamento. A relevância desta crítica é imprescindível para evitar equívocos
sérios no modo de entender o nosso próprio aparato conceptual e as nossas
categorias linguísticas. Na sua Sprachkritik, Brentano diagnosticou a principal causa
dos problemas da semântica: a convicção de que entre palavras e conceitos
existiria um ordenamento simétrico exacto e rigoroso. Esta convicção fomenta a
procura do significado de cada palavra em «algo» que está aí, como um objecto por
ela designado. A denúncia reiterada de Brentano do erro de pensar que a
linguagem é uma cópia exacta do pensamento está em perfeita sintonia com as
críticas que, nos últimos anos, autores muito diversos, têm dirigido contra as teses
tradicionais da semântica, chamando a atenção para o carácter comunicacional da
linguagem e para a inviabilidade de deduzir as formas de pensamento a partir das
suas expressões linguísticas.
4. Interessar-nos-á destacar e caracterizar algumas noções estreita e
familiarmente ligadas ao problema da verdade, que indiciam precisamente uma
dimensão, não estritamente cognitiva, mas antropológica, na medida em que não
convocam apenas o entendimento ou a razão, mas o sujeito de acção espontânea.
Nomeadamente, as noções de asserção (negação), afirmação de existência,
convicção, assentimento, crença. As respectivas «gramáticas», exploradas através
de uma analítica aproximada de uma fenomenologia da prática linguística,
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permitem a visão panorâmica (empregando a expressão wittgensteiniana) da rede
de conexões entre diversos binómios que se entrecruzam – linguagem e mundo da
vida, linguagem-uso, linguagem-acção.
5. O breve exame da reformulação da teoria do juízo em Brentano e da sua
revisão da noção de verdade como correspondência apresentar-se-á como uma
antecipação da concepção dos actos de fala introduzida por Austin e explorada
por Searle. A convicção de que a linguagem não é apenas enunciação, descrição,
mas releva de uma dimensão prática e é, em sentido próprio acção, tem as suas
raízes no pensamento de Wittgenstein e norteia a pragmática contemporânea. Não
se trata de substituir a semântica pela pragmática, mas de reconhecer que a
primeira não é viável se não tiver em conta os contextos do uso e das práticas
sociais. O que caracteriza a pragmática é o facto de ter em conta os contextos
linguísticos e extra-linguístico, assim como a intenção do locutor e o efeito que
produz – duas idéias mestras antecipadas na crítica linguística de Brentano.
Considera, portanto, factores extra-linguísticos e formas de produzir significado
que não estão contidos no domínio da semântica, acrescentando ao estudo da
linguagem a sua perspectiva particular. Uma das propostas básicas, preconizadas,
entre outros por Grice, foi a de que a pragmática trataria o problema do
significado prescindindo das condições de verdade. Não há dúvida que parte do
significado veritativo depende de factores de natureza pragmática. Mas a questão
que se põe é a de saber até que ponto o êxito (poderíamos dizer talvez o
preenchimento) de uma locução não depende em boa parte do carácter representativo, e
não requere o significado literal da expressão?
As dificuldades da semântica têm a sua origem precisamente no carácter
eminentemente social da teoria do significado. Esta é a conclusão que tira Putnam
no final do seu ensaio “Is semantics possible?”49 À pergunta de Putnam
poderíamos replicar com outra “Is pragmatics possible?” A falta de teorias e leis
exactas, de rigor matemático, o carácter escorregadio e impreciso são traços
comuns à semântica e às ciências sociais. Para responder às difíceis questões do
49 Cfr Mind, Language and Reality, Philosophical Papers, vol 2, p. 152.
93
complexo funcionamento dos signos e da sua aprendizagem, é necessário
encontrar um modelo geral e preciso do uso da linguagem. Mas isso está ainda
longe: o primeiro passo é o de libertar-nos de certas convicções tradicionais,
simplificações extremas que impedem ver onde reside verdadeiramente o
problema. E podemos considerar que esse primeiro passo já foi dado.
É certo que uma teoria semântica dos fenómenos linguísticos não dá conta
do processo de significação, e requer a perspectiva pragmática: o sentido literal em
si mesmo considerado, desencarnado do uso e do contexto, parece ser uma
objectivação pouco pertinente para a compreensão do funcionamento da
linguagem. Mas, por outro lado, o significado do locutor, a intenção de fala, por si
só, exigiria uma sistematização das regras e convenções que justificasse cabalmente
o processo da significação. As regras do uso pressupõem uma elucidação do uso das
regras. Não se trata aqui de um círculo vicioso, mas de uma circunvolução genuína
entre o literal e o intencional. No fundo, trata-se de redimensionar o carácter natural
e o convencional de todo o processo de significação.
94
1. A estrutura do acto de julgar
1. O termo «juízo» está carregado de equívocos: pode ser considerado
como o acto mental de julgar ou como o conteúdo desse mesmo acto e ser
absorvido pela psicologia filosófica, pela filosofia do conhecimento, no primeiro
caso, ou pela lógica e análise da linguagem, no segundo; pode ser analisado como
acto proposicional ou conteúdo proposicional, atendendo sobretudo ao problema
do «elo» que liga o sujeito ao predicado, o «vínculo proposicional», ou pode ser
considerado como acto posicional, concentrando o exame na dimensão
especificamente pragmática, inovadora e originária do acto judicativo. Estes e
outros equívocos poderão estar na origem da pouca atenção que as teorias do
juízo parecem despertar hoje no âmbito da filosofia analítica e da filosofia da
mente. A outra razão poderá estar na designada «viragem linguística» que privilegia
a expressão verbal dos juízos e explora sobretudo o problema do estatuto e
constituição da proposição.
Não há dúvida que a teoria do juízo desempenhou um papel central e
decisivo - pelo menos desde Descartes e, sobretudo a partir de Kant, em toda a
crítica do conhecimento. No entanto, não será excessivo afirmar que foi na escola
de Brentano que a existência de um «problema do juízo» é reconhecida na sua
especificidade: deve-se aos trabalhos de Brentano, Meinong, Husserl o
reconhecimento da diferença fundamental entre a esfera das representações - e do
pensar em geral - e a do juízo - expresso no seu carácter fundamental de posição
activa de uma objectividade.
É essa peculiaridade da reformulação da teoria do juízo em Brentano que
se pretende abordar, mostrando a evolução das suas perspectivas sobre a
dimensão apofântica, a crítica à adequatio, para terminar na primazia do juízo
evidente no qual se faz sobressair toda a força assertiva do próprio sujeito, actor e
critério último da verdade de todos os juízos.
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A concepção do juízo de Brentano difere substancialmente de outras
teorias como as de Aristóteles, Kant ou Frege. Em confronto com Aristóteles,
Brentano defende que os juízos predicativos são um caso especial dos juízos
existenciais e corrige a tradicional teoria da verdade como correspondência, de raíz
aristotélica; em confronto com Kant, distingue radicalmente entre representações
e juízos, recusando unificar estes dois tipos de actos psíquicos na categoria do
"pensar"; e em confronto com Frege, Brentano rejeita que os juízos
pressuponham a existência de pensamentos completos ou proposições que são
apreendidas em si mesmas, antes que o juízo seja formulado.
2. Na Psychologie, depois de apresentar a estrutura básica dos fenómenos
psíquicos como intencionalidade ou direccionalidade para algo, Brentano divide os vários
modos da intencionalidade como um dirigir-se para, em três classes fundamentais
de comportamento psíquico: representação, juízo e interesse (amor, emoção):
falamos de representação quando algo simplesmente se nos apresenta, representar
em sentido lato é simplesmente o ter algo em presença; julgar pressupõe "uma
aceitação como verdadeiro ou rejeição como falso". Em confronto com o mero
ter algo presente, julgar significa tomar uma posição definida em relação ao
representado enquanto representado. Brentano sublinha que às duas classes -
representação e juízo - correspondem dois modos completamente diferentes de
ser consciente de um objecto e estes dois modos fundam uma radical distinção
entre representação e juízo. Em que consiste esse traço característico do juízo que
não permite confundi-lo nem assimilá-lo à representação? Ou como deverá
entender-se a intencionalidade do juízo? Precisamente como uma dimensão
"espontânea", natural, do psiquismo, pela qual se afirma ou nega algo ao mesmo
tempo que se dá o assentimento à correcção desse acto. As três notas específicas
do acto judicativo são exactamente posição-reflexão-evidência. O juízo é
posição, e não síntese predicativa. Para Brentano, como para Kant e para o
próprio S. Tomás de Aquino, "existe" não é um predicado real. Na crítica do
argumento ontológico, Kant afirma que "ser não é um predicado real, isto é, um
conceito de algo que pode ser acrescentado ao conceito de uma coisa; é apenas a
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posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas."50 Brentano, no
entanto, criticará Kant por ter admitido logo a seguir que esta proposição
existencial é uma proposição categórica, considerando-a como sintética: para
Kant, assim como o "é" da cópula normalmente estabelece uma relação entre
conceitos, o "é" da proposição existencial coloca "o objecto que corresponde ao
meu conceito"51. Introduzir assim uma síntese entre objecto e conceito, constitui
para Brentano uma "monstruosa afirmação". A peculiaridade dos juízos
existenciais, para Kant, consiste no facto de a coisa concebida - objecto - ser
predicado do conceito. Nas proposições categóricas um conceito une-se a outro
conceito. Brentano contra-argumenta com o exemplo dos juízos negativos
existenciais, nos quais não haveria possibilidade de síntese entre o conceito e o
objecto: "Se não há outro conceito (a existência), tão-pouco há qualquer
predicação; o que equivale a dizer que não temos então nenhuma proposição
categórica"52.
3. A redutibilidade de todas as proposições categóricas – como também as
hipotéticas e disjuntivas - a proposições existenciais, constitui uma prova para a
refutação da teoria segundo a qual a diferença essencial entre juízo e representação
consiste no facto de os juízos terem como conteúdo uma conjunção de atributos.
Nas proposições existenciais o "é" ou "existe" substitui a cópula e mostra assim
que não envolve qualquer predicado. A combinação de vários elementos - sujeito
e predicado, antecedente e consequente, etc. - considerada essencial para a
natureza específica do juízo, não é senão uma questão de expressão linguística. De
facto não serve como carácter distintivo do juízo: não se poderia considerar que as
representações têm um conteúdo simples, enquanto os juízos têm um conteúdo
composto. Quanto ao conteúdo, não há qualquer distinção entre representação e
juízo. O mesmo objecto pode apresentar-se à consciência, quer esta o afirme ou
negue, ou não tenha qualquer certeza quanto á sua afirmação ou negação e
suspenda, portanto, qualquer juízo. Neste último caso poder-se-á falar apenas de
50 Crítica da Razão Pura, p. 504. Cfr Heidegger, M. Kants These über das Sein. 51 Crítica… p. 504. 52 Sobre la Existencia de Dios, pp. 82-83.
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representação, nos dois primeiros casos, o objecto é simultaneamente
representado e afirmado ou negado. Todo o objecto que seja o conteúdo de uma
representação pode ser também o conteúdo de um juízo. Sendo assim, qual a
característica distintiva do juízo como fenómeno psíquico? Se o que o distingue da
representação não consiste no seu conteúdo, só pode radicar num tipo de relação
peculiar da consciência com o objecto imanente. Veremos que se trata de um
modo da intencionalidade radicalmente distinto do da mera representação ou
ligação de representações.
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2. Asserção e predicação.
1. O problema do juízo em Brentano herda uma dissociação entre
predicação e asserção, que remonta a Descartes, o primeiro a defender que um
juízo é essencialmente uma tomada de posição com respeito a um conteúdo
conceptual. Tradicionalmente, o acto de julgar reúne indissociavelmente
predicação e asserção: Aristóteles não faz uma distinção explícita, mas considera
que os enunciados determinam alguma coisa enquanto alguma coisa. Afirmar
consiste em asserir a pertença de algo a algo, negar consiste em rejeitar essa
pertença. Unir o nome e o verbo sob a forma predicativa equivale forçosamente a
fazer uma asserção. A distinção das diferentes funções do verbo, é que leva
Aristóteles a sugerir que a asserção e a predicação constituem actos logicamente
distintos. Em Tomás de Aquino encontramos uma posição semelhante, ao definir
o juízo como a actividade pela qual o espírito reúne ou separa, afirmando ou
negando. É importante notar que o acto judicativo não é concebido como um
assentimento a uma síntese de conteúdos mentais, nem aderir ou rejeitar uma
proposição formulada no quadro de uma asserção, mas exprimir sob a forma
assertiva o modo de “pertença” que se dá entre as coisas e as suas características.
Com Descartes, e depois Hume, dá-se um corte radical entre a combinação
predicativa e o acto de julgar propriamente dito. Associar as ideias num conteúdo
predicativo é uma coisa, julgar que esta associação corresponde à realidade é outra.
Para Hume, o juízo é uma reacção de crença que diz respeito, não à ordenação das
idéias, mas à nossa “maneira de as conceber”.
A discussão sobre o carácter essencial do juízo é retomada por Frege,
Brentano e Husserl: o juízo predicativo consiste numa “composição” de
conceitos, ou num assentimento a um conteúdo proposicional? O problema
merece um exame detalhado sobre as diversas respostas e, sobretudo, a inflexão
que acentuará progressivamente o carácter pragmático do juízo como um acto
espontâneo do entendimento. Assinalaremos aqui apenas o contributo de Frege, e
a reformulação de Brentano que será recebida e criticada por Husserl.
Frege distingue entre o acto de julgar e a apreensão de um pensamento. A
expressão adequada de um juízo deveria permitir distinguir estes dois momentos –
99
o juízo e o pensamento, a força assertiva e o sentido. O mesmo conteúdo
proposicional pode ser comum a uma interrogação ou uma asserção. O juízo tem
um valor de verdade determinado, enquanto uma interrogação não pressupõe
nenhum valor de verdade determinado. São, portanto actos diferentes, mas têm
algo em comum e esse algo é precisamente o pensamento expresso na proposição.
Julgar consiste, segundo Frege, em reconhecer o valor de verdade de um
pensamento; distingue-se, assim, da mera formulação de um pensamento
hipotético ou de uma interrogação.
A crítica husserliana a Brentano afecta também a teoria do juízo de Frege:
para Husserl, o juízo é uma atitude assertiva que acompanha a predicação, regida
por intuições antecipativas ou concomitantes das formas das coisas, e não por
uma avaliação do sentido do enunciado. Rejeita, portanto, a concepção moderna
dos juízos como apreciações de conteúdos proposicionais nominalizados. A
postulação de estruturas mediadoras entre as palavras e as coisas é totalmente
supérflua. Na nossa relação com o mundo, o que nos interessa são as próprias
coisas e as suas propiedades, e não o que sobre elas dizemos.
Em Husserl, o juízo é uma actividade do entendimento que se constitui,
não sobre uma justaposição de representações, mas como uma peculiar “unidade
de consciência”, que liga as representações na consciência de um estado de coisas:
“Efectuar um juízo, e ser consciente de um estado de coisas nesta posição
sintética de algo como referido a algo, são uma e a mesma coisa”53. O acto
posicional pressupõe e exige o acto prévio ou subentendido da unidade da síntese.
A dimensão pragmática – a força assertiva da posição – é inseparável da dimensão
semântica – a consciência e a compreensão da unidade de um “estado de coisas”.
2. Detenhamo-nos na concepção brentaniana do juízo: ela ilustra bem a
separação entre predicação e posição, acentuando o carácter activo e espontâneo
do acto judicativo.
Na esteira de Descartes, Brentano distingue três classes fundamentais de
fenómenos psíquicos: representações (Vorstellungen), juízos (Urteilen) e emoções,
53 Cfr Logical Investigations, V, § 36.
100
interesse, amor/repulsa (Gemüt). Todos se caracterizam como intencionais, mas
distinguem-se como três modos diferentes de referência da consciência aos seus
objectos, ou três modos da intencionalidade. Para apreender a peculiaridade do
acto judicativo, é necessário distingui-lo da representação.
Juízo e representação constituem dois géneros qualitativos supremos, duas
“classes fundamentais” de fenómenos psíquicos, às quais correspondem dois
modos completamente diferentes de ser consciente de um objecto. Embora todo
o juízo pressuponha uma representação, é radicalmente distinto dela. Estão aqui
duas teses fundamentais que convém explanar:
1º o princípio segundo o qual todo o fenómeno psíquico (incluindo o
juízo) ou é uma representação ou se funda numa representação
2º o juízo funda-se numa representação (que é a sua matéria), mas não se
identifica de modo algum com a representação; constitui um outro modo de
relacionar-se com o objecto.
O sentido da 1ª tese parece óbvio: não pode haver crença, juízo, amor,
ódio, nem qualquer outro acto psíquico sem que o objecto intencional nos seja
apresentado, dado á consciência. Husserl subscreve este princípio brentaniano,
explicitando o seu significado e alcance54.
A segunda tese situa o juízo fora do âmbito da representação; Brentano
enfrenta-se com toda a tradição lógica depois de Aristóteles que atribui a diferença
entre uma representação e um juízo a uma compositio, uma complexidade intrínseca,
característica deste último. A diferença entre os dois fenómenos psíquicos
reportar-se-ia apenas aos respectivos conteúdos. Ora é evidente que a
complexidade se pode dar também na representação sem que se faça um juízo (ex.
«a montanha dourada»).
Assinalemos um aspecto importante da dualidade representação e juízo: ela
corresponde a dois pontos de vista segundo os quais se pode estabelecer uma
classificação de juízos, o da matéria e o da forma ou qualidade. Por forma ou
qualidade, entende Brentano o modo como se julga; não é a formulação
linguística, mas diz respeito a esse momento que constitui propriamente o juízo
54 Husserl, Logical Investigations V § 20.
101
enquanto tal55. A forma ou qualidade de juízo é o modo intencional sob o qual se
efectua um acto que tem por objecto algo dado exclusivamente na representação.
Não afecta, portanto, o conteúdo objectivo do acto intencional, que é o mesmo
objecto, ora representado, ora julgado, constituindo, portanto, a mesma matéria
num e no outro caso. Isto significa que, na concepção brentaniana, a matéria é por
essência da ordem da representação.
O que é que distingue um acto de pensar num objecto complexo – uma
montanha dourada – do acto de julgar? O que é que se dá no juízo, para além do
mero acto de pensar ou representar-se o objecto? O que é que constitui
verdadeiramente a essência do juízo do ponto de vista lógico?
Dois tipos de juízos exibem de modo indubitável a ausência de qualquer
síntese ou predicação: os juízos de existência (prädikatlos) e os impessoais
(subjektlos). A especificidade da relação intencional do acto judicativo com o seu
conteúdo ou objecto é patente nos juízos téticos, e não sintéticos; estes não só
confirmam a não essencialidade do seu carácter predicativo, como indicam
claramente o traço definitório do acto judicativo: este é fundamentalmente a
afirmação/aceitação como verdadeiro ou a negação/rejeição como falso de um
objecto representado. O juízo define-se fundamentalmente pelo seu carácter
posicional, e revela o carácter espontâneo da acção do sujeito. A dimensão
pragmática sobrepõe-se à dimensão semântica. Esta acentuação do acto de julgar
como posição, vai a par e passo com a revisão da concepção da verdade como
adequação: a verdade do juízo será reconduzida por Brentano à evidência, o único
e definitivo critério e medida da verdade.
Examinaremos algumas das dificuldades das teorias
correspondencionalistas da verdade.
55 Cfr Die Lehre vom richtigen Urteil, p. 103. Segundo Husserl, todo o acto mental apresenta uma estrutura interna caracterizada pelos três traços: qualidade, matéria e conteúdo intuitivo. Cfr o artigo de Barry Smith, “Husserl, Language, and the Ontology of the Act”, in Buzetti, D. e Ferriani, M. (eds), Speculative Grammar, universal Grammar, and Philosophical Analysis of Language, Amsterdam: John Benjamins, 1987, pp. 205-227.
102
3. Impasses da noção de correspondência
1. Entre as críticas à noção de correspondência, é de mencionar a que Frege
apresenta em Der Gedanke: nota Frege que a verdade se atribui habitualmente tanto
a imagens como a proposições e pensamentos. Poderá atribuir-se a uma imagem
(Bild), como simples objecto visível ou tangível? E, nesse caso, porque não será
também verdadeira uma pedra ou uma folha?. É evidente que só se diria de uma
imagem que é verdadeira se houvesse nela uma intenção (Absicht), a intenção de
representar algo. Mas de uma representação só diríamos que é verdadeira se
concordasse com algo, o que parece pressupor que a verdade consiste numa certa
concordância (Übereinstimmung) entre a imagem e o representado por ela56. No
entanto, Frege vê sérios obstáculos em aceitar uma versão da verdade como
concordância assim entendida. "Se eu não sei - escreve - que uma imagem deveria
representar a catedral de Colónia, tão-pouco sei com que devo comparar a imagem
para decidir sobre a sua verdade. Assim, uma concordância só pode ser perfeita se as
coisas concordantes coincidirem, isto é, quando não são coisas diferentes. (…)"57 Se se
definir a verdade como uma concordância da representação com algo de real, é
absolutamente essencial que o real seja distinto da representação, mas neste caso
não haveria concordância perfeita. Nada seria verdadeiro, e fracassa totalmente a
tentativa de explicar a verdade como uma adequação. E, do mesmo modo fracassa
qualquer tentativa de definir o verdadeiro: numa definição apresentam-se
determinadas características e na sua aplicação a um caso particular voltaria
sempre a questionar-se se essas características lhe pertenceriam. Estaríamos assim
continuamente em círculo. O argumento de Frege esquematiza-se nos seguintes
passos: 1. A tentativa de aplicar uma definição de verdadeiro conduz a um infinito
regresso. 2. Uma definição impossível de aplicar é absurda. Portanto, 3. a verdade
é indefinível.
56 Cfr "Der Gedanke", Kleine Schriften, p. 343. V. Texto de apoio no final da II Parte. 57 Ibidem, p. 343.
103
A circularidade do argumento deve-se ao facto de Frege considerar o
sentido de “verdadeiro” como parte constitutiva do acto de pensar (apreender,
captar) um pensamento completo. Por isso, deste impasse para encontrar uma
explicação satisfatória para a verdade como correspondência, ou mesmo qualquer
outra tentativa de a definir, Frege conclui que provavelmente o conteúdo da
palavra "verdadeiro" é completamente peculiar e indefinível58.
2. Também Brentano encontra sérias dificuldades na teoria tradicional da
verdade como mera adequação. Aponta várias objecções que o levarão
paulatinamente a reconduzir a noção de verdade à de evidência.
Dois contra-exemplos mostram a insuficiência do critério da adequação: os
juízos negativos e os universais, aos quais não corresponde qualquer correlato
objectivo do acto judicativo. Estes juízos podem, no entanto, ser evidentes, como
é o caso dos axiomas da geometria ou da aritmética. Mas a sua evidência não
reside na adequação. Pelo contrário, o conhecimento da adequação pressupõe a
evidência - esse é o argumento mais forte que leva Brentano a renunciar ao critério
tradicional da verdade. Qualquer juízo implica um conhecimento prévio tanto do
sujeito como do predicado, o que tornaria inútil o recurso posterior à adequação
como critério de verdade: o conhecimento prévio dessa afinidade exigiria uma
adequação anterior à adequação, o que levaria a um infinito regresso. A garantia da
verdade não radica na adequação, mas na evidência59, que constitui uma dimensão
intrínseca e a priori do juízo, condição de possibilidade do conhecimento a posteriori
exigido pela adequação. Esta exclui, portanto, a evidência, e a verdade só é
compatível com uma destas dimensões. Brentano opta definitivamente pela
evidência como critério e garantia da verdade de todos os juízos.
Entende-se bem a recusa da noção de correspondência como o reverso da
rejeição do não-real, e da clarificação da tese da intencionalidade: na sua primeira
formulação, (1ª Edição da Psicologia) esta pressupunha uma in-existência ou
58 Cfr ibidem, p. 344. Cfr Stepanians, M. – “Why Frege thought it to be “probable” that truth is indefinable?, Manuscrito, v. 26, n. 2, pp. 331-345, 2003, onde se discute o argumento do infinito regresso invocado por Frege. 59 Cfr Wahrheit und Evidenz, p. 137 e ss. Cfr Die Lehre vom richtigen Urteil, §42, p. 192.
104
presença intencional do objecto da representação, acentuando o carácter relacional
da consciência, e atribuindo supostamente, uma certa consistência aos seus
objectos, enquanto «seres de razão», objectos fictícios ou mesmo impossíveis;
deste modo, reforçava a concepção da verdade como correspondência - uma
relação da consciência a «algo» (etwas). Brentano concederia, deste modo, um
estatuto ontológico à esfera do não-real, do ser pensado, desejado, julgado, etc.
Mas, na 2ª Edição da Psychologie vom empirischen Standpunkt, Brentano afasta-se desta
primeira versão da sua tese da intencionalidade, negando qualquer estatuto
ontológico ao não-real, circunscrevendo a esfera do real aos seres individuais e
concretos, à facticidade. Em carta a Marty (2 de Setembro de 1906) 60, Brentano
apresenta várias razões para a «rejeição do não-real», sobretudo a de evitar os
absurdos «monstruosos» a que conduz esta concepção da in-existência de objectos
intencionais, que tem o seu expoente máximo na Gegenstand Theorie de Meinong,
designada por Ryle como a “selva meinongiana da subsistência”61.
A revisão da noção de in-existência intencional e a recondução do juízo ao
sujeito que julga, têm repercussões óbvias na teoria da verdade: não cabe, nesta
nova perspectiva recorrer à correspondência, relação entre o juízo e a realidade
como critério de verdade. A verdade releva do critério de evidência, e isso significa
que o locus da verdade se desloca da relação do conteúdo judicativo com a sua
referência ou objecto intencional, para o interior do próprio acto de julgar.
3. A teoria de Austin minimiza as dificuldades da noção de correspondência, e
contorna tanto a metafísica atomista como a linguagem ideal; a relação de
correspondência não se traduz num isomorfismo estrutural entre proposição e
facto, mas sim entre as palavras e o mundo, através de relações puramente
convencionais. Quando é que um enunciado é verdadeiro? pergunta Austin62
Instintivamente a resposta é. "Quando corresponde aos factos". Certamente a
resposta não está errada. "A teoria da verdade é uma série de truismos". E, no
entanto, pode ser, pelo menos, equívoca. Para que se dê comunicação, observa
60 A carta a Marty está publicada em Wahrheit und Evidenz e Die Abkehr vom Nichtrealen; o Apêndice é publicado na edição de 1911 de Psychologie vom empirischen Standpunkt. 61 Cfr Collected Papers I, Londres, 1971, p. 234. 62 "Truth",Proceedings of the Aristotelian Society, Supplement 24, p. 115.
105
Austin, deve haver algo mais do que meras "palavras" e "mundo". Outras
condições têm que ser satisfeitas. Austin propõe dois tipos de convenções para
que se realize efectivamente a comunicação:
1) convenções descritivas que correlacionam as palavras com os tipos de
situação, coisa, evento, etc.;
2) convenções demonstrativas que correlacionam as palavras com situações
específicas.
"Um enunciado diz-se verdadeiro quando o estado de coisas histórico com o
qual se correlaciona pelas convenções demonstrativas é de um tipo com o qual a
frase usada no enunciado está correlacionada pelas convenções descritivas"63. É
importante notar que a correlação entre as palavras (frases) e o tipo de situações, é
absoluta e puramente convencional. Somos totalmente livres para empregar qualquer
símbolo para descrever qualquer tipo de situação; a correlação não depende de
modo algum de um isomorfismo entre palavras e mundo.
Uma aproximação entre Brentano e Austin é proposta por Benoist64: a
partir do texto “Über den Begriff der Wahrheit” (1889), mostra como a teoria de
Brentano radica num profundo sentido do «real», embora se afaste decididamente
da noção verdade-correspondência. O aristotelismo renovado de Brentano leva-o,
como em Austin, a uma curiosa conciliação entre um forte sentido do realismo e
uma rejeição do paradigma da imagem ou semelhança. O que Benoist vê de
comum nos dois autores é a mesma vontade de dissipar o fantasma de uma idéia
de «real» que não passa de uma imagem da verdade.
No entanto, em Brentano a ideia de verdade regular-se-á cada vez mais
pela de evidência, e esta última não se encontra em nenhum juízo que não tenha
por objecto directo o próprio acto de julgar. O que tornará problemática a sua
referida atitude «realista», inspirada no aristotelismo, e o comprometerá mesmo
com um quase solipsismo. O critério último de verdade reside no juízo auto-
evidente que o sujeito faz sobre o seu próprio acto judicativo.No itinerário que vai
da verdade è evidência, tem particular interesse a análise brentaniana dos juízos de
63 Ibidem, p. 116. 64 “Brentano et la théorie réaliste de la vérité”, Phainomenon, 2004.
107
4. Juízos de existência. A semântica da existência65
1. A noção de existência parece óbvia e familiar, mas ao mesmo tempo
provoca uma série de problemas. Na tradição filosófica, poderíamos traçar todo o
percurso do modo como o simples predicado “existe” foi alvo de múltiplas
interpretações, implícita ou explicitamente. Desde Platão e Aristóteles, a teoria da
predicação encontrou os diferentes sentidos do emprego da cópula no juízo –
mera predicação, identidade e existência. Frege e Russell denunciam a
ambiguidade do verbo ser pela sua multiplicidade de sentidos, pondo em causa
toda a metafísica e ontologia tradicionais, pela falta de discernimento desta
polissemia que afecta o próprio significado do verbo “ser”.
A filosofia analítica contemporânea herdou de Hume e Kant a convicção
de que “existe” não é um predicado, nem a existência uma propriedade. Hume
defendera no Tratado sobre a Natureza Humana que a idéia de existência, atribuída à
idéia de qualquer objecto percepcionado, não acrescenta nada a esta última,
porque qualquer coisa por nós pensada é pensada como existente. Brentano
retoma a tese de Hume para a sua teoria sobre os juízos existenciais, que não
consistem na ligação ou síntese de conceitos ou representações. A proposição “A
existe” não exprime a relação de dois conceitos, mas simplesmente um facto no
qual se crê.
Kant, como é bem sabido, reafirmará de modo muito mais retundante a
tese de Hume. Na célebre passagem da Crítica, mantém que “Ser não é
evidentemente um predicado real, quer dizer, um conceito de algo que se possa
acrescentar ao conceito de uma coisa. É simplesmente a posição de uma coisa, ou
de certas determinações em si mesmas”66.
A tese kantiana é recebida pela analítica contemporânea: é nítida a
semelhança com a terminologia e o tratamento de Frege, para quem a existência é
65 Não nos propomos expor aqui toda a problemática lógica, linguística e ontológica dos juízos de existência. Mas parece oportuno fazer uma referência sintética às análises do predicado ‘existe’, enquadrada no contexto desta III parte do Programa. 66 Cfr. B 626-627
108
um predicado de segundo nível, que não pode atribuir-se a objectos, mas só via
conceito67. Como entende Frege uma afirmação de existência? Afirmar a
existência não é senão a negação do número zero, ou da vacuidade de um
conceito. Isto significa que a existência é uma propriedade de um conceito (e não
de um objecto), uma propriedade de segundo nível. O predicado ‘existe’ deve ser
atribuído a um predicado de primeiro nível: “L. Sache existe” traduz-se, segundo
Frege como “Há pelo menos uma coisa que é idêntica a L. Sache”
(simbolicamente (! x) (x = L. Sache)). O exemplo mais ilustrativo de predicado de
segundo nível – uma expressão incompleta, cujo lugar vazio deve ser preenchido
com um predicado de primeiro nível – é o dos quantificadores. O existencial não
pode aplicar-se directamente a um termo singular, mas a um predicado de
primeiro nível.
2. A teoria fregeana da existência como predicado de segundo nível
recebeu uma enorme atenção na analítica contemporânea: a grande vantagem da
concepção de Frege é a de evitar os problemas que levantam as proposições
existenciais e as de negação de existência. Como adverte Ayer, se ‘existe’ fosse um
predicado e a existência uma propriedade, todas as proposições existenciais seriam
tautologias e as existenciais negativas contradições. Com efeito, se ‘existe’ for um
predicado, também ‘não existe’ será um predicado, com a paradoxal consequência
de que teríamos que predicar de algo a sua ‘não-existência’. Mas dizer que “os
dragões não existem” só tem sentido se os dragões existirem: o predicado ‘não
existe’ só pode ser predicado daquilo que ‘existe’.
A validade dos paradoxos das proposições existenciais se se considera a
existência como um predicado de primeiro nível foi objecto de discussão e de
propostas de solução: reconhecendo a peculiaridade do predicado ‘existe’, alguns
autores eliminam as objecções lógicas à consideração da existência como um
predicado (Pears68, Hintikka69), ou propõe admitir um sentido segundo o qual a
existência pode ser predicada de indivíduos (Geach70, Williams71).
67 Para um exame mais desenvolvido deste confronto, leia-se o meu artigo “A noção da Existência em Frege”, Análise n. 7. E Conceito e Sentido em Frege, pp. 252-257. 68 Cfr “Is Existence a Predicate?”, Philosophical Logic (ed. Strawson), Oxford, 1977, pp. 97-102.
109
A tese da existência como predicado de segundo nível está na raiz da teoria
das descrições definidas de Russell e na eliminação dos termos singulares por
Quine. O resultado final da reconstrução de Quine das proposições existenciais
(“Sócrates existe” traduz-se por “A propriedade de socratinizar encontra-se
instanciada pelo menos num caso”), é uma linguagem que, além dos
quantificadores, emprega apenas termos predicativos, gerais.
O que escapa nesta linguagem é um outro sentido de existência, que o
próprio Frege reconhece: o de actualidade (Wirklichkheit), a existência real no
espaço e no tempo, que se predica dos objectos. Este sentido da existência, que
Frege distingue claramente da existência como Es gibt, corresponde precisamente
aos problemas de que se ocupou tradicionalmente a ontologia filosófica.
Recuperá-lo ao nível lógico e linguístico constitui uma tarefa imprescindível para a
elaboração cabal de uma semântica da existência.
3. Merece destaque, nesta breve panorâmica da análise lógico-linguística do
predicado ‘existe’, a tese de Brentano sobre os juízos de existência, acima referida.
A convicção de que ‘existe’ não é um predicado é um pilar sobre o qual Brentano
assenta a sua crítica ao carácter predicativo do juízo para o apresentar como posição
(juízo afirmativo) ou rejeição de existência (juízo negativo). Todas as formas do
juízo assumem, assim, a forma de um juízo existencial.
A derivação do conceito de existência da reflexão sobre a experiência
interna tem como consequência a sua inexpressabilidade e a negação reiterada de
que possa ser considerada como qualquer forma de predicado. A semântica da
existência em Brentano é puramente negativa, na medida em que, de facto, não é
possível significar ou dizer «existência»; recorrendo à conhecida expressão de
Wittgenstein, ela mostra-se precisamente no simples acto reflexivo sobre a
afirmação.
69 Models for Modalities, 1969. 70 “What Actually Exists””, Proceedings of the Aristotelian Society, suppl. Vol. 42 (1968), pp. 7-16. 71 What is Existence?, Oxford, Clarendon Press, 1981.
110
O aspecto mais original da teoria do juízo de Brentano é a tese da
redutibilidade (Rückführbarkeit) de todos os juízos categóricos, hipotéticos e
disjuntivos a juízos existenciais72, tese que não é senão a consequência imediata da
sua concepção segundo a qual o traço essencial do juízo não é a composição ou
união entre conceitos, mas consiste fundamentalmente numa afirmação (aceitação
como verdadeiro) ou negação (rejeição como falso). Qualquer proposição
categórica pode traduzir-se, sem a menor alteração de sentido numa proposição
existencial73, na qual o "é" e o "não é" tomam o lugar da cópula e carecem de
qualquer significado (gänzlich bedeutungslos). A existência não é tão-pouco nenhuma
nota essencial nem um predicado traduzido pelo "é" do juízo existencial. A palavra
"ser" é um termo meramente cosignificativo (mitbezeichnend) e não tem de facto
qualquer valor predicativo.
Como afirmámos, Brentano reporta-se a Hume e a Kant na sua rejeição da
existência como predicado real. A sua posição, mais radical ainda do que a de
Kant, está orientada pela rejeição de qualquer forma de composição, predicação
ou ligação entre conceitos no juízo existencial. Por isso retira à existência qualquer
expressão e até qualquer forma de concepção. Poderá perguntar-se: o que entende
Brentano por existência? Segundo Heidegger, “o conceito de existência alcança-se
através da reflexão sobre o juízo, e é esta a razão pela qual Brentano considera
impossível que a existência seja um predicado”74.
A protoforma de todo o acto judicativo - como posição - dá-se
precisamente no juízo que acompanha a percepção interna. Esta é propriamente
um juízo, envolve uma afirmação perceptiva imediata (mesmo se errónea) que
constitui a forma mais genuína e originária do acto de julgar. Seria um equívoco
interpretar esta apreensão imediata como a atribuição de “existência” ao acto
72 Leibniz tinha já mostrado a possibilidade de converter todas as proposições categóricas em proposições existenciais, de um modo semelhante a Brentano. Cfr o texto Generales inquisitiones de analysi notionum et veritatum sect. 1132, de 1686, citado em McAlister, The Philosophy of Brentano, p. 21. 73 Cfr Psychology, pp. 213-215 e na p. 295, o Apêndice "On Genuine and Fictious Objects", redigido para a edição de 1911. (Cito pela tradução inglesa de Rancurello, Terrell e McAlister) Brentano propõe aqui uma reconversão das quatro formas categóricas tradicionalmente classificadas em A, E, I, O, em proposições existenciais. Neste esboço da "nova lógica" de Brentano, nenhum juízo afirmativo é universal, e nenhum juízo negativo é particular. Todos os universais são negativos e todos os particulares afirmativos. 74 Die Lehre vom Urteil im Psychologismus, p. 120
111
psíquico; "existe" não é o predicado deste juízo, como se resultasse da constatação
experiencial do dar-se desse mesmo fenómeno. Donde derivamos o conceito de
existência? Segundo Brentano, não se trata de uma ideia inata, um a priori, mas de
um juízo de experiência: “(...) a existência é derivada da experiência, mas da
experiência interna, e adquirimo-la só por referência ao juízo”75. Comenta
Heidegger: “O conceito em causa (a existência) não significa senão a relação de
um objecto com um juízo possível, que o aceita”76. A existência deriva-se da
reflexão sobre o juízo afirmativo. Pode dizer-se que um juízo afirmativo é
verdadeiro ou que o seu objecto existe; dizer que um juízo negativo é verdadeiro
ou que o seu objecto não existe. Nos dois casos diz-se precisamente a mesma
coisa77.
Brentano encontra a primeira sugestão da perspectiva correcta sobre a
existência em Aristóteles, e cita a passagem da Metafísica que se refere ao
conhecimento dos objectos simples com o termo percepção, recorrendo á metáfora
do tacto (thigein), para distinguir este modo de apreensão directa e imediata, de
outros modos de conhecimento nos quais se dá uma união ou separação78. Nesta
dimensão antepredicativa e pré-proposicional, vê Brentano um gérmen da
verdadeira compreensão do juízo de existência.
O seu itinerário irá levá-lo muito longe de Aristóteles: tomando a evidência
como critério e medida da verdade de um juízo, Brentano adopta como modelo o
juízo da percepção interna, no qual se dá uma total identidade entre o sujeito que
julga o seu próprio acto de julgar. Nenhum juízo de existência – nenhum juízo da
percepção externa – poderá ser evidente. Entre o juízo de existência e o juízo
evidente medeia uma distância insuperável, embora o primeiro represente o
arquétipo formal de todo o juízo, e o segundo o foco regulador pelo qual se
deverão reger todos os juízos com pretensão de verdade.
Em última análise, nenhuma existência propriamente dita me é dada como
evidente, a não ser a da própria existência do eu, dada na reflexão da consciência
75 Psychology, p. 210. 76 Heidegger ob.cit., p. 120. 77 Cfr Vom Ursprung sittlichen Erkenntnis, p. 60-61. 78 Cfr Psychology p. 212, nota. Brentano cita Metafísica ", 10, 1051b 17.
112
sobre si. Evidência-existência só poderão conciliar-se na autoposição do sujeito, o
verdadeiro e único arquétipo de qualquer conhecimento.
113
5. A Sprachkri t ik de Brentano: as ficções da linguagem
1. A correspondência entre linguagem e pensamento permite o exame do
juízo pela via da crítica linguística e da análise gramatical, via que Brentano
percorre antecipando algumas das principais posições da actual Filosofia
Analítica79. A sua Sprachkritik adopta a atitude de suspeita em relação à linguagem
corrente e à sua "mitologia", atitude que encontraremos nos principais
representantes da Filosofia Analítica, como Frege e Wittgenstein. Segundo
Brentano, a linguagem não é um produto mecânico do pensamento, nem se dá
entre ambos um estrito paralelismo80: a perspectiva comum adopta os
pressupostos de uma teoria representativa da significação, na qual as ideias,
pensamentos ou símbolos correspondem exactamente a elementos do mundo,
como imagens, modelos, ou mesmo mapas da realidade. A crítica de Brentano a
esta concepção enganadora da teoria da significação é particularmente relevante
no que diz respeito à teoria do juízo: a rejeição do modelo linguístico em termos
de sujeito-predicado como forma básica da expressão do juízo, radica na
concepção dos juízos existenciais, proposições sem sujeito, que consistem apenas na
aceitação/rejeição.
A análise semântica dos nomes, assente na distinção entre termos
categoremáticos e sincategoremáticos, detecta as "ficcções" da linguagem81:
termos que nada significam em si mesmos, e que pressupõem um contexto de fala
no qual adquirem sentido. A convicção de que cada elemento do discurso deve
referir algo, algum elemento do mundo, está enraizada na concepção representativa
da linguagem como imagem, modelo ou mapa do mundo real. Além dos artigos,
proposições, conjunções, advérbios, do "é" e "não é", todos os substantivos e
adjectivos que correspondem a conceitos indeterminados ou gerais são
79 Cfr Mayer-Hillebrand, F., Die Lehre vom richtigen Urteil, pp. VI-VII. 80 Cfr Die Lehre vom richtigen Urteil, §§ 12-14. 81 Cfr ibidem, §§ 16-17.
114
sincategoremáticos, são meramente cosignificativos (mitbedeutend). A partir destas
objectivações a linguagem opera com ficções que não são mais do que "formas
linguísticas abreviadas" (abgekürzte Sprachform). O binómio abstracto/concreto
depende simplesmente da diferente intencionalidade dos nossos actos
cognoscitivos: o nível abstracto corresponde à representação, o concreto dá-se no
julgar, um acto que realiza sempre uma concrescência, convocando para o real -
sempre individual e concreto - as ficções do nosso modo de representar. O juízo
concretiza-se materialmente em palavras, mas a sua realização exige a intervenção
da prática da linguagem, do uso dos termos pelo sujeito-que-julga. E o uso não
permite uma identificação total, interna, entre linguagem e pensamento, pois não
se dá um ordenamento simétrico entre o pensar e os signos: estes são uma cópia
imperfeita e inexacta do pensamento, não uma réplica em perfeito paralelismo ou
associação mecânica. A dimensão prática revela-se precisamente na expressão do
juízo, que não se limita a significar algo (como o nome), mas determina o real,
indica (zeigt). A dimensão pragmática do juízo constitui propriamente a asserção,
um acto de fala, (expressão que será empregue e explorada mais tarde por Austin,
embora não pareça ter tido conhecimento das teses de Brentano); todas as
proposições declarativas têm, nesta perspectiva, um carácter pragmático, que os
signos linguísticos não podem senão mostrar, exprimir. O juízo como posição excede
a própria materialidade e factualidade da linguagem, exibindo o carácter intensional.
2. A Sprachkritik de Brentano permite-lhe elucidar nomeadamente a noção
do juízo e da verdade, libertanto-a da camisa de forças imposta até então pela
concepção da linguagem como "imagem", espelho do pensamento82. A
importância e necessidade desta crítica da linguagem são imprescindíveis para
evitar equívocos sérios no modo de entender o nosso próprio aparato conceptual.
É precisamente por ter em conta o uso da linguagem, que Brentano
considera impossível estabelecer um paralelismo ou uma associação mecânica
entre o pensar e o falar: a linguagem não é uma cópia exacta e perfeita do
pensamento, e para aceder a este último é imprescindível ter em conta a dimensão
82 Cfr Srzednicki, J. - "Some elements of Brentano's Analysis of Language and their Ramifications", p. 444
115
intencional da actividade significativa, que ultrapassa o modelo representativo dos
signos como imagens das coisas reais. Isto é bem patente ao nível judicativo:
sendo o juízo o lugar da verdade, não se deixa captar perfeitamente na sua
expressão linguística, como uma ligação ou união de palavras. Basta pensar que
uma simples expressão linguística não é uma asserção, pois esta releva de uma
dimensão prática, de um acto do sujeito que fala, de uma intencionalidade
peculiar. Os elementos da proposição que traduzem esta dimensão são
precisamente as partículas cosignificativas “é” e “não é”, indicadores do carácter
assertivo do juízo, como posição de um todo que é dado pela representação. No
caso de uma afirmação, o juízo será sempre particular, a posição de algo de real,
portanto de carácter singular; no caso de uma negação, será sempre universal,
porque se trata de rejeitar todos os casos de uma pretensa realidade.
A incidência no carácter pragmático do juízo como um acto de posição, faz
ver as afinidades da análise linguística de Brentano com algumas das teses da
pragmática contemporânea. Nomeadamente, são nítidas as proximidades com
Austin, que considera a asserção, tal como a descrição ou a informação, como
actos de fala83.
Os dois princípios fundamentais da pragmática encontram-se já
pressupostos na Sprachkritik brentaniana:
1. O significado não reside apenas na relação dos signos com os
seus referentes (dimensão semântica), mas há que ter em
conta o contexto linguístico e extra-linguístico: situacional e
sócio-cultural.
2. O significado depende fundamentalmente da intenção e do
acto do locutor, portanto a própria linguagem deve ser
considerada como uma actividade humana, segundo regras.
Embora Brentano não tenha desenvolvido esta nova maneira de tratar a
linguagem, e possivelmente nem sequer se tenha dado conta das potencialidades
nela contidas, não há dúvida que a sua “psicologia descritiva” pressupõe uma
83 Cfr Austin, Philosophical Papers, p. 236.
116
crítica da linguagem que faça ver com nitidez as duas funções fundamentais, a da
linguagem como instrumento de comunicação e como veículo do pensamento. A
convicção de que, como actividades, os processos linguísticos só se compreendem
tendo em conta o seu carácter intencional, reconduz a teoria do significado à
realidade concreta do sujeito locutor nas diversas situações da prática linguística.
117
6. Dimensão Pragmática da Linguagem: os actos de fala
1. O carácter representativo da linguagem impôs-se e dominou a atenção
dos filósofos que se dedicaram aos problemas semânticos: a estrutura da
linguagem, em virtude do seu isomorfismo com a realidade e com o pensamento,
representa a primeira e revela o segundo. Compreender uma proposição significa
captar algo que se dá na realidade, aperceber-se de um facto, e ao mesmo tempo,
apreender o pensamento que nela se exprime. Os signos apresentam-se, assim,
como mediadores entre a mente e a realidade, pela sua dupla relação com o
sentido e a intenção de quem os emprega, e com a referência ou o visado pelo
próprio signo. Esta última direcção do signo para o significado, a relação
propriamente semântica, é que constitui a representatividade da linguagem,
espelho ou imagem do real. A sua função principal seria essencialmente a de
descrever, reproduzir os factos tal como estes se dão.
Austin observa, no início do seu How to do Things with Words, que a frase
não tem apenas a função de “descrever” um estado de coisas, ou de afirmar algum
facto, podendo ser sempre verdadeira ou falsa. Além de asserções, realizamos toda
a espécie de actos de fala, e há muitos outros modos de estes falharem, para lá de
poderem ser falsos. A observação de Austin vem na esteira do pensamento de
Wittgenstein, que considerou a linguagem como veículo de toda a rede de
actividades sociais, mais do que como um sistema de representação. “Não
perguntes pelo sentido, pergunta pelo uso”, advertiu Wittgenstein. Foi Austin o
primeiro a propor a primeira explicação sistemática do uso da linguagem, sem
identificar as duas noções – sentido e uso -, mas distinguindo cuidadosamente o
sentido (e a referência) das palavras, dos actos de fala realizados pelo locutor no
seu emprego. Os performativos - como denominar, advertir, avisar, prometer – não
são verdadeiros nem falsos, como os constatativos. A distinção entre estes dois tipos
de emprego das frases será, no entanto, ampliada pela distinção entre dizer algo e
aquilo que se faz ao dizer.
118
Os actos de fala, seja qual for o medium através do qual se realizam, são
intrinsecamente acções intencionais, e pressupõem um conjunto de intenções
intimamente entrelaçadas, que excedem a mera acção de emitir certos sons. Austin
distingue três níveis de acção: o de dizer algo, o que se faz ao dizer, e o que se faz
por dizer, designando-os por acto “locucionário”, “ilocucionário” e
“perlocucionário”84. Austin restringe a noção de significado ao sentido e
referência da frase, localizando a força de um acto ilocucionário no uso
convencional de uma expressão, que determina assim o tipo de acto efectuado
pelo locutor. Realizar um acto de fala consiste numa certa intenção comunicativa
ao usar certas palavras, e esse acto será bem sucedido, a intenção preenchida, se
for reconhecido pela audiência. Austin, no entanto, não considera a intenção, mas
sim a convenção, como um factor determinante para a realização bem sucedida de
um acto ilocucionário; Searle propõe-se explicar as forças ilocucionárias através de
“regras constitutivas” para o uso de recursos indicadores da força, como verbos
performativos. O problema das teorias “convencionalistas”, como aponta
Strawson, é que o mesmo acto ilocucionário pode realizar-se sem recorrer aos
meios linguísticos estipulados pelas regras constitutivas.
2. Exemplos das principais categorias de actos ilocucionários
comunicativos, são as afirmações, pedidos, promessas e desculpas. Combinando
as taxonomias de Austin e Searle, as quatro grandes categorias do ilocucionário,
são: “constatativos”, “directivos”, “comissivos”, e ... (aknowledgments)...
Constativos – afirmar, anunciar, responder, atribuir, classificar, confirmar,
conjecturar, negar, discordar, disputar, informar, predizer, etc.
Directivos – aconselhar, advertir, pedir, suplicar, proibir, ordenar, permitir,
requisitar, sugerir, avisar.
Comissivos – concordar, garantir, convidar, oferecer, prometer.
Expressivos – pedir desculpa, felicitar, agradecer, aceitar.
A correlação entre o tipo de acto ilocucionário e a atitude expressa, mostra
bem o hiato entre o convencional e o intencional. Em muitos casos – como
84 Cfr Austin, How to do things with words, p. 155.
119
responder, discutir, concordar – o acto e a atitude expressa pressupõem uma
circunstância social ou uma situação específica de conversação.
Para explicar como se dão os diferentes actos que se distinguem pelo tipo
de atitudes expressas, não é necessário evocar a noção de convenção. O acto pode
ser bem sucedido se o ouvinte reconhecer a atitude expressa, como uma crença,
no caso de uma afirmação ou um desejo no caso de um pedido. Não se requer
qualquer outro efeito no ouvinte, para que o performativo seja uma afirmação ou
um pedido, portanto o emprego de uma frase pode ser bem sucedido como um
acto de comunicação, apesar de não se dar no locutor a atitude que está a
exprimir: comunicar é simplesmente exprimir uma atitude, possuí-la de facto é
uma questão de sinceridade. Mas o ouvinte pode perfeitamente compreender o
emprego de uma frase sem ter em conta a sua sinceridade. A fronteira marca
precisamente a diferença entre um acto ilocucionário – exprimir, segundo as
regras convencionais, uma atitude de crença, ou de desejo – e o perlocucionário –
conseguir que o outro acredite que quem pronuncia a frase possui de facto a
atitude que está a exprimir. E esta diferença mostra bem o hiato entre o
intencional e o convencional, a possibilidade de comunicar, seguindo as regras do
uso, apesar de o que se comunica não corresponder à intenção do próprio locutor.
O bom êxito de um acto de comunicação (que Austin designava de felicity/infelicity)
não recobre o preenchimento da intenção; mais, pode mesmo dar-se um total
desfazamento entre a eficácia da comunicação e a atitude do locutor que a emite.
3. A teoria dos actos de fala torna-se particularmente relevante, para a
filosofia da linguagem, pelo facto de patentear a distinção entre o uso da
linguagem e o significado linguístico, que dá origem às questões sobre a natureza
do conhecimento linguístico, separando e isolando os problemas sobre as
capacidades em jogo na interacção comunicativa, dos problemas específicos sobre
o próprio conhecimento da linguagem. De modo paralelo, se distinguirmos entre a
referência do locutor e a referência linguística, a questão que se levanta é a de
saber até que ponto as expressões linguísticas podem referir independentemente
do seu uso pelo locutor para referir.
120
Restringir o significado ao sentido e referência de uma expressão
Linguística parece ser um tanto arbitrário; embora a força ilocucionária se distinga
do sentido e referência, a verdade é que o significado do emprego de uma
expressão só está completo com a inclusão da força ilocucionária. Por isso, Searle
critica a distinção de Austin entre o locucionárioa e ilocucionário, visto que
nenhuma expressão é completamente neutra: toda a frase tem uma força
ilocucionária potencial, entranhada no seu próprio sentido, e não é possível
especificar um acto locucionário que não determine a especificação de um acto
ilocucionário. Searle isola, no entanto, o sentido dos actos de fala completos, ao
afirmar que o significado de uma frase é totalmente determinado pelo significado
das suas partes, e ao distinguir entre o significado linguístico e o significado do
locutor. Esta última distinção é necessária para explicar os actos de fala indirectos,
as metáforas, e outras situações complexas nas quais o sentido literal não é
idêntico ao sentido do locutor. Apesar de tudo, Searle considera que uma análise
do significado não se pode separar em princípio de uma análise dos actos de fala85.
Embora se distingam conceptualmente o significado linguístico do significado do
locutor, estes estão inseparavelmente unidos no contexto de um acto de fala
particular. Se alguém emprega uma expressão metaforicamente, esta tem o sentido
metafórico que a intenção do locutor lhe confere, e não dois sentidos, um literal e
outro metafórico. O sentido literal dependerá da interpretação de alguém que não
capte o sentido com que o primeiro locutor a empregou. As palavras e as frases
não têm qualquer sentido independentemente do seu uso por algum locutor: as
palavras podem ter definições, as frases regras convencionais de emprego, mas só
os actos linguísticos têm sentido.
85 Cfr Speech Acts, p. 18.
121
TEXTOS DE APOIO
BRENTANO
Psycologie vom empirische standpunkt, II, pp. 38-81. (Excertos)
(...) É muito comum a opinião segundo a qual o juízo consiste numa
combinação ou separação que tem lugar no domínio da representação. O juízo
afirmativo e, de algum modo, o negativo são geralmente caracterizados, em
contraste com a mera representação, como processos de pensamento composto
ou associativo. Segundo esta interpretação, a diferença entre juízo e mera
representação, seria apenas uma diferença entre o conteúdo do juízo e o conteúdo
da representação.
Se pensarmos numa certa forma de união ou relação entre duas
propriedades, este pensamento seria um juízo, enquanto qualquer pensamento,
que não tenha esta relação como conteúdo, seria considerado uma mera
representação.
Mas esta idéia não é sustentável.
Se afirmarmos que o conteúdo de um juízo consiste sempre num certo tipo
de combinação de várias características, seríamos certamente capazes de distinguir
os juízos dde algumas representações, mas não de todas. De facto acontece
obviamente que um acto de pensamento, que é apenas uma representação, tem
como conteúdo uma combinação de características que é completamente
semelhante, até perfeitamente idêntico àquele que num outro caso constitui o
objecto de um juízo. Se disser ‘Uma árvore é verde’, verde em combinação com
árvore forma o conteúdo do meu juízo. Mas poder-me-iam perguntar, “Alguma
árvore é verde?’. Quem não estiver familiarizado com o reino vegetal, e não
recordar bem as cores das folhas no outono, poderia suspender todo o juízo sobre
esta matéria. No entanto, compreendo a pergunta, e portanto deverei ter uma
representação de uma árvore vermelha. Vermelho combinado com árvore, tal
122
como verde, formaria o conteúdo de uma representação não acompanhada de
qualquer juízo. E alguém que só tivesse visto árvores com folhas vermelhas, e
nunca com folhas verdes, quando interrogado sobre árvores verdes,
provavelmente teria como conteúdo desta representação, não apenas uma
combinação de características semelhantes, mas exactamente a mesma que
formasse o conteúdo do juízo.
(...)
Mais ainda. Nem sequer é correcto dizer que há uma combinação ou
separação dos atributos representados em todos os juízos. A afirmação e a
negação, à semelhança do desejo ou aversão, não se referem sempre a
combinações ou conexões. Uma simples característica, objecto de uma
representação pode também ser afirmada ou negada.
Quando dizemos ‘A existe’, este enunciado não é, como muitos pensaram
e ainda pensam, uma predicação na qual a existência como predicado se combina
com ‘A’ como sujeito. O objecto afirmado não é a combinação de um atributo
‘existência’ com ‘A’, mas o próprio ‘A’. No mesmo caso, quando dizemos ‘A não
existe’, não há qualquer predicação da existência de ‘A’ de um modo negativo –
nenhuma negação da conjunção de um atributo ‘existência’ com ‘A’. Pelo
contrário, ‘A’ é o objecto que negamos.
(...)
Que nem todos os juízos se referem a uma conjunção de atributos
representados e que predicar um conceito de outro não é um elemento vital do
juízo, é uma verdade que os filósofos muitas vezes não conseguiram reconhecer
Mas nem sempre. Na sua crítica ao argumento ontológico para a existência de
Deus, Kant observou pertinentemente que numa proposição existencial, i. é, numa
proposição da forma ‘A existe’, a ‘existência’ não é um predicado real, i. é um
conceito de algo que pode ser acrescentado ao conceito de uma coisa. “É apenas –
diz ele – a posição de uma coisa ou de certas determinações, como existentes em
si mesmas”. Mas aqui, em vez de dizer que a proposição existencial não é de
modo algum uma proposição categórica, nem uma proposição analítica no sentido
kantiano, i.e. uma proposição na qual o predicado está incluído no sujeito, nem
sintética, na qual o sujeito não contém o predicado, Kant permitiu-se o equívoco
123
de classificá-la como uma proposição sintética. Pensou que assim como o ‘é’ da
cópula, normalmente relaciona dois conceitos um com o outro, o ‘é’ da
proposição existencial põe “o objecto em relação com o meu conceito”. “O
objecto – diz Kant – é sinteticamente acrescentado ao meu conceito”.
Wahrheit und Evidenz
O uso equívoco do termo “existente” Setembro 1904 (...) 23. Uma vez que só as coisas - no sentido estrito do termo – é que podem ser
pensadas (tenho em mente qualquer coisa tal que, se existe, é uma substância, um
acidente, ou um colectivo de ambos), acontece muitas vezes que as palavras que
são nomes no sentido gramatical não o são no sentido lógico. Uma palavra que seja
um nome só no sentido gramatical, não denota nada, do modo como a palavra
“homem” pode dizer-se que denota algo e indica que o locutor está a pensar num
homem. Mas uma palavra que seja um nome só no sentido gramatical indica um
pensamento ao qual corresponde outra palavra como um nome. “Necessário”, por
exemplo, indica que o locutor está a pensar em alguém que julga apodicticamente
(indica também, de certo modo, que o próprio locutor julga apodicticamente).
“Vazio” indica que está a pensar de modo negativo no que é satisfeito.
24. Mas se nem todos os nomes gramaticais são nomes lógicos, então a expressão
“existe”, que pode ser empregue com qualquer tipo de nome, é equívoca. É
sinsemântica em todos os seus usos, se bem que, de cada vez, num sentido
completamente diferente. Do modo semelhante, a palavra von em Alemão pode
ser empregue como “de” para indicar posse, ou para indicar algo que nos é
apresentado adiante de qualquer outra coisa, e também para indicar aristocracia ou
nobreza.
124
25. “Existe” tem o seu sentido estrito ou próprio, quando empregue em conexão
com nomes logicamente genuínos, como em “Deus existe” ou “Existe um
homem”. Nos outros usos, “existe” não deve ser tomado no seu sentido estrito.
“Existe um espaço vazio” é equivalente a “Não existem corpos físicos localizados
deste ou daquele modo”; “Existe algo que é objecto de pensamento” equivale a
“Existe algo que pensa”. Seria um grande erro interpretar “Existe” quando
empregue com nomes meramente gramaticais do mesmo modo como o
interpretamos em “Deus existe” e “Wexiste um homem”. Na verdade não existem
senão coisas, e “espaço vazio” e “objecto de pensamento” não designam coisas.
(...)
28. (...) Se “o existente” em sentido estrito, fosse um nome, não se pode dizer que
refira qualquer coisa directamente (...) Se “existente” fosse um nome em sentido
lógico, i. e. Uma palavra que designa uma coisa, uma coisa que é julgada
afirmativamente, é uma palavra relacional. Emprego-a para indicar que estou a
pensar em alguma coisa que corresponde ao meu pensamento (e também,
naturalmente, que estou a pensar em mim mesmo como pensando correctamente)
(...)
Linguagem Fragmento de 16 de Novembro de 1905
1. Todo aquele que afirma alguma coisa dá expressão àquilo que pensa. A
linguagem é, portanto primariamente um signo dos pensamentos, mas
indirectamente um signo do que se passa fora de nós.
2. Isto não significa, no entanto, que a cada som corresponda um pensamento ou
que a cada pensamento corresponda um som. Os sons individuais, e mesmo as
combinações de sons que constituem as palavras, muitas vezes não têm
significado por si mesmos; e muitas vezes são signos de uma multiplicidade de
pensamentos.
125
Assim, as sílabas individuais, as partículas, casus obliqui, não têm significado
por si mesmos.
Mas o mesmo não se pode dizer dos enunciados ou dos nomes
(substantivos, adjectivos).
Estes últimos designam objectos através de conceitos. Significam que os
conceitos estão a ser pensados e evocam os mesmos conceitos naquele que está a
ouvir.
3. Mas pode muito bem acontecer que uma palavra que tenha a forma gramatical
de um nome ou adjectivo, de facto não se refira a nada, e portanto não seja um
nome no sentido lógico.
Por exemplo: os abstracta («cor» e «pensar»), também os negattiva e modalida
(como «o necessário» e «o impossível»); de novo os objectiva («um objecto de
pensamento», «um objecto de amor»).
E «bom» ou «mau», como «verdade» e «falsidade», e outros termos
semelhantes. Em sentido estrito, não há nenhum conceito de bom ou belo ou
verdadeiro.
4. Não há tão-pouco um conceito de um ser de uma coisa. Erroneamente, supõe-
se que há e define-se assim: “Um ser é aquilo que é”. Mas o que se está a pensar
quando se diz “A é um ser” é o reconhecimento ou aceitação de A. E quando se
diz “A não é um ser” está-se a pensar numa negação ou rejeição de A. Se alguém
dissesse simplesmente “um ser”, estaria a pensar numa pessoa que aceita ou
reconhece algo. Mas este pensamento não é propriamente o conceito de ser, pois
se o fosse, a palavra “ser” teria de denotar aquele que afirma ou reconhece algo.
5. Mas há um conceito de coisa, embora não haja nenhum conceito do ser de uma
coisa, ou de uma coisa que tem ser. E o conceito de coisa aplica-se a tudo.
Pois tudo é uma coisa ou entidade – uma Usie.
(...)
126
Sprechen und Denken. (1905)
Manuscrito inédito El. 66 catalogado por F. Mayer-Hillebrand. Publicado com
uma tradução inglesa em Srzednicki, J. – Franz Brentano’s Analysis of Truth, pp. 116-
121.
A linguagem deveria exprimir o que pensamos. Nesse caso a elocução
corresponde ao pensamento. Por isso alguns pensam que, dada a veracidade, as
expressões e os pensamentos correspondem completamente, e, portanto também
parte a parte (haveria uma correlação unívoca entre partes do pensamento e partes
da elocução). Não é o caso, de modo algum. Dizemos palavras, i.e. despertamos
nos outros uma corrente de fenômenos físicos. Estes, pelo seu carácter, não são
equivalentes aos fenômenos psíquicos, mas bem diversos. Por isso a nossa arte
verbal permaneceria muito aquém se cada elemento do pensamento tivesse que
ser representado por um elemento do discurso. Para exprimir todos os elementos
do pensamento termos de empregar complicações de elementos do discurso.Por
exemplo, é claro que na palavra “árvore”, as letras “a”, “r”, “v” “o”, “e”, não estão
em vez de elementos particulares do pensamento. Mas este tipo de complicação,
que se tinha tornado necessária, levaria a uma prolixidade interminável e
prejudicaria enormemente o fluxo vivo do discurso, se por outro lado a
multiplicidade de elementos do pensamento não encontrasse expressão numa
mesma forma verbal. Que riqueza de elementos do pensamento se encontra, por
exemplo, no que se exprime pela pequena palavra “estado”!
Não são apenas as letras particulares que não têm significado em si
mesmas; há também palavras que por si mesmas não significam nada, por
exemplo, preposições, conjunções, advérbios, casus obliqui, de substantivos e
adjectivos. Só em conjunto com outras palavras e grases é que estas contribuem
para o significado do discurso. De certo modo, é mesmo possível afirmar que
todos os nomes e adjectivos só têm significado em relação com outros elementos
do discurso. Não se pode dizer que quem pronuncia a palavra “cavalo” comunica
com esta que tem a representação de um cavalo. Se não a tivesse ninguém diria
que ele mentia. Não se conduz nenhuma conversa pronunciando apenas nomes,
mas sim com frases completas. Se alguém invocasse o argumento que ao ouvir
127
um outro dizer um nome, poderia supor nessa base que o locutor tem a respectiva
representação, então deve observar-se que, até certo ponto, se poderá dizer algo
semelhante sobre as conjunções. Se alguém ouve por exemplo pronunciar “mas”,
poderia supor que o locutor tem uma representação de alguma oposição.
Poderíamos também selecionar aquelas palavras que, complementadas por um
signo afirmativo ou negativo, conduzem à expressão de um juízo, de tal modo que
os conceitos que constituem a sua base estão com elas associados pelo uso
linguístico, e seguindo Aristóteles, classifica-las como palavras que têm o seu
próprio significado. Este seria o respectivo conceito.
Mas temos que assinalar aqui uma limitação. Usamos uma linguagem que
não é obra nossa, mas que adoptamos como parte da tradição do nosso povo.
Este, no entanto, foi influenciado na construção da sua linguagem, tanto pelas
suas idéias falsas como pelas correctas. Por isso, mesmo quando nós próprios não
estamos enganados, não podemos deixar de adaptar-nos em certa medida a esses
erros. As pessoas tendem para concepções super-realistas. Pensam que se alguém
é saudável, então há nele a saúde. Se for grande, a grandeza existe nele, se julga, o
juízo ou o acto de julgar existe nele. Exprime-se impensadamente a idéia que ele é
saudável, dizendo que tem boa saúde, que algo tem um lugar, está num lugar ou
ocupa um lugar, em vez de dizer que algo está espacialmente localizado. Assim,
diz-se também, impensadamente, não só que existem coisas saudáveis, grandes,
com uma posição determinada, alguém que julga, mas também que existe a saúde,
a grandeza, o espaço e o juízo. E como ser saudável não é a saúde, ser grande não
é a grandeza, ter um determinado lugar não é o espaço, e julgar não é o juízo,
estritamente falando, acrescenta-se impropriamente uma quantidade de coisas
àquelas que de facto existem. (...)
O carácter equívoco de “é”, como de “há”, “existe”, etc. foi assinalado por
muitos que, no entanto não lograram compreende-lo totalmente. Por vezes
pensaram que num sentido “é” diz que algo tem um efeito, enquanto noutro
sentido pertence só àquelas coisas incapazes de produzir qualquer efeito. O que
está fora de dúvida é que quem diz que algo é, ou subsiste, ou existe ou é real, não
tem qualquer intenção de dizer se tem efeito ou não(wirke oder nicht). Fica também
128
por esclarecer se os dois casos de “é” são dois tipos que pertencem à mesma
espécie e têm um carácter comum, se atribuem ao que tem efeitos que é num
duplo sentido, enquanto o outro é só (usado) num dos dois sentidos, etc. Na
nossa opinião, como se vê claramente, dificilmente se pode negar o seguinte.
Quando “existe” (“há”) se conjuga gramaticalmente com o sujeito “beleza” ou
“espaço”, não desempenha o mesmo papel que o “é” conjugado com o sujeito
“(algo)belo” ou “espacial”, o “existe” não funciona do mesmo modo num caso e
no outro. É evidente que am cada caso funciona só de uma maneira. Não tiveram
em conta a conseqüência do facto de “beleza”, “grandeza”, “juízo”, “espaço”, etc.
não serem nomes reais com os seus conceitos correspondentes (...) De facto, pode
dizer-se que o preconceito de pensar que cada substantivo e adjectivo é um nome
genuíno e que pode ser tratado como tal, como se encontra em Aristóteles, é hoje
geralmente aceite e tem a ver (hindert) com a compreensão do verdadeiro carácter
da ambiguidade de “é”, “existe”, etc. ; dá ocasião a distinções entre existir e
subsistir, ser e ter um ser, etc., que são completamente arbitrárias e contrárias ao
uso da linguagem.
Se tomarmos uma palavra por um nome, quando de facto não é um nome,
se procurarmos o conceito designado por este suposto nome, quando de facto
nada se associa a essa palavra, naturalmente as nossas definições nunca poderão
concordar e as teorias sobre a origem dos conceitos deverão estar
irremediavelmente confundidas. Assim, os referidos conceitos dos supostos
nomes o exemplo de uma confusão polifacetada do importante facto psicológico,
a saber, que os nossos conceitos têm a sua origem em imagens. Com efeito, os
conceitos de ser, não ser, necessidade, possibilidade e até os conceitos de beleza,
grandeza, etc., não provêm de observações, mas só porque não há tais conceitos e
os respectivos substantivos não são nomes reais. O mesmo se passa com os
conceitos de tempo, o presente, o passado, o futuro e também os de algo
presente, passado, futuro. Estes exemplos bastam para mostrar que a Psicologia,
epistemologia e ontologia devem unir-se aqui em conjunto o mais solidamente
possível.
129
VI. BIBLIOGRAFIA
A Bibliografia está organizada do seguinte modo:
Na I Parte, além das obras citadas durante o curso, apresenta-se uma
bibliografia geral, respeitante aos tópicos essenciais deste Programa. Com estas
indicações bibliográficas pretende-se proporcionar informação suplementar ao que
é apresentado nas aulas para ampliar os horizontes de estudo e de investigação dos
alunos.
Em segundo lugar, apresentam-se bibliografias de Wittgenstein, Frege e
Brentano, os autores aos quais se prestou mais atenção no decorrer do Programa.
No que diz respeito a Wittgenstein tornar-se-ia impossível apresentar uma
bibliografia exaustiva. Remetemos para a mais actualizada que se encontra em
Ludwig Wittgenstein. Critical Assessments. A Wittgensteinian Bibliography. Edited by V. A.
and S. G. Shanker, Routledge, 1996.
A bibliografia de Frege inclui as obras e ensaios de Semântica e Filosofia da
Linguagem. Indicam-se as traduções existentes em diversas línguas.
De Brentano, indicamos apenas as obras relevantes para os tópicos
tratados no Programa e as respectivas traduções.
I. Bibliograifa Geral ALSTON, W. P. – Philosophy of Language, New Jersey, Prentice Hall, 1964.
ANSCOMBE, G. E. M. E GEACH, P. T. – Three Philosophers: Aristotle, Aquinas, Frege,
Oxford, Blackwell, 1961.
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Tradução castelhana de Adela Cortina, Joaquin Chamorio e Jesus Conill,
Madrid, Taurus, 1985.
Understanding and Explanation. A Transcendental-Pragmatic Perspective, Cambridge
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130
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BOLZANO, B. - Wissenschaftslehre, Stuttgart-Bad Cannstatt, F. Frommann Verlag,
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REVISTAS
Das numerosas revistas que publicam ensaios sobre filosofia da linguagem,
destacamos as seguintes:
Disputatio
Mind
Nous
Philosophical Review
Philosophy and Phenomenological
Research
Teorema
Teoria
The Journal of Philosophy
135
II. OBRAS DE WITTGENSTEIN
Tractatus Logico-Philosophicus, London, Routledge, 1922 (trad. Port. Lisboa,
Fundação C. Gulbenkian, 1987.
Philosophical Investigations, Oxford, Blackwell, 1953. (trad. Port. Lisboa, Fundação
Gulbenkian, 1987.
The Blue and Brown Books (Preliminary Studies for the ‘Philosophical Investigations’), ed. E
prefácio de Rush Rhees, Oxford, Blackwell, 1958 (trad. Portuguesa, O Livro
Azul, Edições 70, 1992; O Livro Casstanho, Edições 70, 1992).
Notebooks 1914-1916, ed. Von Wright, G. H. e. Anscombe, G. E. M., Oxford,
Blackwell, 1961 (trad. Port. Edições 70, 2004).
Philosophische Bemerkungen, ed. Rush Rhess, Oxford, Blackwell, 1964.
Zettel, ed. Anscombe, G. E. M. E von Wright, G. H. Oxford, Blackwell, 1967
(trad. Port. Edições 70, 1989).
Philosophische Grammatik, ed. Rush Rhees, Oxford, Blackwell, 1969.
Über Gewißheit, ed. Anscombe, G. E. M. e von Wright, G. H. trad. Inglesa Oxford,
Blackwell, 1969 (trad. Port., Edições 70, 1990).
Vermischte Bemerkungen, ed. Von Wright, G. H., H. Nyman, trad. Inglesa Culture and
Value, trad. Winch, P. Oxford, Blackwell, 1980 (trad. Port. Edições 70,
1996).
Philosophical Occasions 1912-1951 Edited by James Klagge and Alfred Nordmann,
Indianapolis & Cambridge, Hackett Publishing Company, 1993.
Dictées de Wittgenstein à Waismann et pour Schlick, Direction Antonia Soulez, Paris,
PUF, 1997.
OBRAS SOBRE WITTGENSTEIN
ANSCOMBE, G. E. M. – An Introduction to Wittgenstein’s Tractatus, Hutchinson,
London, 1963.
136
BLACK, M. – A Companion to Wittgenstein’s Tractatus, Cambridge, Cambridge
University Press, 1966.
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Le Mythe de l’Intériorité, Paris, Minuit, 1987, 2ªed.
Wittgenstein et les Problèmes de la Philosophie, Paris, PUF, pp. 261-312, 1994.
BOUVERESSE-QUILLOT, R. (DIR.) – Visages de Wittgenstein, Paris, Beauchesne, 1995
(édité avec le concours du Centre Culturel de Cerisy-la-Salle).
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Publishing, Inc., 1986, vol 12 Persons.
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Oxford University Press, 1979. Trad. Fr.: Les Voix de la Raison. Wittgenstein, le
scepticisme, la moralité et la tragédie, Paris, Seuil, 1996
COMMETTI, J.-P. – Philosopher avec Wittgenstein, Paris, PUF, 1996.
COPI, I. M. E BEARD, R. W. (EDS) – Essays on Wittgenstein’s Tractatus, Londoon,
Routledge and Kegan, 1966.
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FANN, K. T. – Ludwig Wittgenstein: The Man and his Philosophy, New York, Dell,
1967.
Wittenstein’s Conception of Philosophy, Oxford, Blackwell, 1969.
FINCH, H. L. – Wittgenstein, Rockport, Massachussetts, Element Books Inc., 1995.
GARGANI, A. – Wittgenstein, Lisboa, Edições 70, 1988.
GENOVA, J. – Wittgenstein. A Way of Seeing, London and New York, Routledge,
1995.
GLOCK, H. – A Wittgenstein Dictionary, Oxford, Blackwell, 1996.
GRIFFITHS, P. – Wittgenstein Centenary Essays, Cambridge, Cambridge University
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HACKER, P. M. S. – Insight and Illusion. Themes in the Philosophy of Wittgenstein, Oxford,
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Wittgenstein. Meaning and Mind, Part I: Essays, Part II: Exegesis §§ 243-427,
London, Blackwell, 1993.
Wittgenstein, Mind and Will, Oxford, Blackwell, 1996.
Wittgenstein’s Place in Twentieth-Century Analytic Philosophy, Oxford, Blackwell,
1996.
HINTIKKA, J. E M. – Investigating Wittgenstein, Oxford, Blackwell, 1986.
KENNY, A. – Wittgenstein, Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books Ltd., 1973.
The Wittgenstein Reader, Oxford, Blackwell, 1994.
KRIPKE, S. – Wittgenstein on Rules and private Language, Oxford, Blackwell, 1982.
LUCKHARDT, C. G. (ED.) – Wittgenstein: Sources and Perspectives, New York, Ithaca,
1979.
MARQUES, A. – O Interior. Linguagem e Mente em Wittgenstein, Lisboa, Gulbenkian,
2003.
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MOUNCE, H. O. – Wittgenstein’s Tractatus. An Introduction, Oxford, Blackwell, 1981.
PEARS, D. – Wittgesntein, London, Fontana, 1971.
The False Prison. A Study of the Development of Wittgenstein’s Philosophy, Oxford,
Clarendon Press, 1988 (2 vols).
SCHULTE, J. – Eperience & expression. Wittgenstein’s Philosophy of Psychology, Oxford,
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STENIUS, E. – Wittgenstein’s Tractatus, Oxford, Blackwell, 1960.
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ZILHÃO, A. – Linguagem da Filosofia e Filosofia da Linguagem, Lisboa, Colibri, 1993.
III. OBRAS DE FREGE
138
Die Grundlagen der Arithmetik, eine logisch-mathematische Untersuchung über den Begriff der
Zahl, Breslau, 1884.
Funktion und Begriff, Jena, 1891.
Über Begriff und Gegenstand, Vierteljahrschrift für wissenschaftliche Philosophie, 16,
192-205 (1892).
Über Sinn und Bedeutung, Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik, 100, 25-
50 (1892).
Der Gedanke, Beiträge zur Philosophie des deutschen Idealismus, 1, nº 2 (1918), pp. 58-
77.
Logische Untersuchungen, Günther Patzig org.; Vandenhoeck and Ruprecht,
Göttingen, 1966.
Kleine Schriften (I. Angelelli org.), Darmstadt and Hildesheim, 1967.
Nachgelassene Schriften (H. Hermes, F. Kambartel and F. Kaulbach, org.), Hamburg,
1969.
Schriften zur Logik und Sprachphilosophie aus dem Nachlass, G. Gabriel (org.), Hamburg,
1971.
TRADUÇÕES
The Foundations of Arithmetic (J. L. Austin trad.), Oxford, Basil Blackwell, 1980.
Translations from the Philosophical Writings of Gottlob Frege (P. Geach and Max Black
orgs.), Oxford, Basil Blackwell, 1980 (3ª ed.).
Logical Investigations (P. T. Geach and R. H. Stoothoft trads.), Yale University Press,
1977.
"The Thought: a Logical Enquiry" (A. and M. Quinton trad.), Mind, LXV (1956),
pp. 289-311; reedit. in KLEMKE, Essays on Frege, pp. 507-35.
Posthumous Writings (Peter Long and Roger White trads.), Oxford, Basil Blackwell,
1979.
Les Fondements de l'arithmétique (Claude Imbert trad.), Paris, Ed. du Seuil, 1970.
Écrits logiques et philosophiques (Claude Imbert trad.), Paris, Ed. du Seuil, 1975.
139
Lógica e Filosofia da Linguagem (Prof. Paulo Alcoforado, org. e trad.), S. Paulo,
Editora Cultrix, 1978.
Os Fundamentos da Aritmética (trad., pref. E notas António Zilhão), Lisboa,
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992.
OBRAS SOBRE FREGE
ANGELLELLI, I., Studies on Gottlob Frege and Traditional Philosophy, DORDRECHT,
D. Reidel Publishing Company, 1967.
BAKER, G. P. e HACKER, P. M. S., Frege: Logical Excavations, Oxford, 1984.
BELL, D., Frege's Theory of Judgement, Oxford, 1979.
BERGMENN, Gustav, "Frege's hidden nominalism", Philos. Review, 67, 1958, pp.
437-59; reedit. in KLEMKE, E.D., Essays on Frege, pp. 42-68.
CARL, Wolfgang, Frege's Theory of Sense and Reference. Its Origins and Scope, Cambridge
University Press, 1994.
CHURCH, A., "A Formulation of the Logic of Sense and Denotation", Structure,
Method and Meaning, Essays in honour of H. Sheffer, New York, 1951.
Introduction to Mathematical Logic, Vol. 1, Princeton, Princeton
University Press, 1956.
CURIIE, G., "Frege on thought", Mind, Vol. LXXXIX, 1980, pp. 234-48.
DUMMETT, M., - "Frege", The Encyclopedia of Philosophy, New York, Paul Edwards
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Truth and other enigmas, London and Cambridge, Massachussetts,
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Frege, Philosophy of Language, London, Duckworth, 1981 (2ª ed.).
The Interpretation of Frege's Philosophy, Cambridge, Massachussetts
Harvard University Press, 1981.
Frege and Other Philosophers, Oxford, 1991.
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Phänomene, Duncker & Humblot, Leipzig, 1874 e 1911 (2ª ed.).
Psychologie vom empirischen Standpunkt III: Vom sinnlichen und noetischen Bewusstsein,
Meiner Verlag, Hamburg, 1968, 2ª ed.
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Psychology from an Empirical Standpoint, ed. Linda L. McAlister, trad. A. C.
Rancurello, D. B. Terrell e Linda L. McAlister, Routledge, London, 1995.
Psychologie du Point de Vue Empirique, trad. e prefácio de Maurice de Gandillac, Paris,
Aubier Editions Montaigne, 1947.
Versuch über die Erkenntnis, Hamburgo, Meiner Verlag, 1970 (3ª ed.): Kurzer Abriss
einer allgemeinen Erkenntinistheorie (pp. 145-157). Trad. cast. De Miguel García-
Baró: Breve Esbozo de una Teería General del Conocimiento, Madrid, Ediciones
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Sobre la Existencia de Dios, trad. e prólogo de A. Millán Puelles, Madrid, Rialp, 1979.
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The True and the Evident, trad. de R. Chisholm, London, Routledge & Kegan Paul,
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OBRAS SOBRE BRENTANO
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