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Centro de Estudos Sociais
Universidade de Coimbra
União Europeia
e-cadernos ces PROPRIEDADE E EDIÇÃO
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS
- LABORATÓRIO ASSOCIADO
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
www.ces.uc.pt
COLÉGIO DE S. JERÓNIMO
APARTADO 3087
3001-401 COIMBRA
PORTUGAL
E-MAIL: [email protected]
TEL: +351 239 855570
FAX: +351 239 855589
CONSELHO DE REDAÇÂO DOS E-CADERNOS CES
MARTA ARAÚJO (Directora)
ANA CORDEIRO SANTOS CECÍLIA MACDOWELL SANTOS JOSÉ MANUEL MENDES LAURA CENTEMERI MARIA JOSÉ CANELO MATHIAS THALER
SILVIA RODRÍGUEZ MAESO
AUTORES
BRUNO MONTEIRO
CLARA SARMENTO
ANABELA MARISA AZUL
HÉLDER RAPOSO
VERA BORGES
ELENA BRUGIONI
ISABEL ESTRADA CARVALHAIS
DESIGN GRÁFICO DOS E-CADERNOS CES
DUPLO NETWORK, COIMBRA
www.duplonetwork.com
PERIODICIDADE
TRIMESTRAL
VERSÃO ELECTRÓNICA
ISSN 1647-0737
© CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS, UNIVERSIDADE COIMBRA, 2010
DEBATES CONTEMPORÂNEOS:
JOVENS CIENTISTAS SOCIAIS NO CES
(III, IV E V CICLOS ANUAIS)
ORGANIZAÇÃO
Marta Araújo, Laura Centemeri, Marisa Matias e Ana Cordeiro Santos
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS
2010
Índice
Introdução ................................................................................................................. 5
Bruno Monteiro - A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas
gestionárias numa fábrica de mobiliário .................................................................. 11
Clara Sarmento - A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e
representações do moliceiro ................................................................................... 37
Anabela Marisa Azul - Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à
sustentabilidade do sobreiro em Portugal ................................................................ 70
Hélder Raposo - Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas:
pistas para um breve ensaio teórico ........................................................................ 91
Vera Borges - Trabalho, género, idade e arte: estudos empíricos sobre o teatro e a
dança .................................................................................................................... 110
Elena Brugioni - Tradução, Diferença, Excepção. Apontamentos para uma reflexão
em torno da língua nas literaturas africanas homoglotas: o “exemplo” de Mia Couto
.............................................................................................................................. 128
Isabel Estrada Carvalhais - A União Europeia e o “Outro” – Tensões e
compromissos da lógica subjacente à sua gestão da imigração de países terceiros
.............................................................................................................................. 144
Agradecimentos
Gostaríamos de expressar o nosso agradecimento a todos os investigadores que
participaram nos Ciclos Anuais de Jovens Cientistas Sociais, a todos os
investigadores que comentaram as conferências e aos que, anonimamente,
aceitaram rever e comentar os textos aqui publicados. Finalmente, o nosso
agradecimento à Fundação para a Ciência e a Tecnologia pelo apoio concedido à
realização das conferências.
5
Introdução
Em 2005, o CES deu início a um projecto a que designou Ciclo Anual Jovens
Cientistas Sociais. Colocar em diálogo os trabalhos e as experiências desses jovens
oriundos de outros centros de investigação e universidades com aquele
desenvolvido pelos investigadores do Centro de Estudos Sociais, foi o objectivo
primacial deste projecto. A sua consolidação ao longo dos últimos anos abriu novas
portas. O objectivo do ciclo manteve-se, mas as disciplinas foram alargadas para lá
das ciências sociais, ainda que estas tenham continuado a ser o campo privilegiado
de análise. O modelo também se manteve, mas passaram a ser incluídos - ainda
que com menor peso, e apenas a partir da edição 2009-2010 - jovens cientistas do
Centro de Estudos Sociais, desta feita comentados por investigadores de outros
centros de investigação e universidades. A linha orientadora permanece: divulgar o
trabalho de jovens investigadores, promover a colaboração inter-institucional,
reforçar a visibilidade dos trabalhos desenvolvidos no domínio das ciências sociais,
ampliar o seu carácter transdisciplinar e interdisciplinar e favorecer o diálogo com
outros actores e com outros saberes, em consonância com o trabalho que tem vindo
a ser desenvolvido no Centro de Estudos Sociais. Em suma, conhecimento situado,
diálogo e cruzamento de experiências continuaram a ser os fios condutores desta
trajectória, procurando sempre o reforço da visibilidade das ciências sociais e
humanas.
A publicação que aqui apresentamos reúne textos dos ciclos realizados entre
2007 e 2010 (Ciclos Anuais III, IV e V). Os sete contributos passaram por um
rigoroso processo de arbitragem científica, pelo que os textos aqui reproduzidos não
só beneficiaram dos comentários que os autores receberam nas suas
apresentações, mas também das críticas e sugestões dos avaliadores anónimos.
Organização deste número
Os contributos aqui apresentados enquadram-se disciplinarmente na Sociologia,
Cultura Portuguesa, Estudos Literários, Ciência Política e na Ecologia. Não se trata
apenas de um conjunto de textos que nos permitem problematizar, a partir de
6
diferentes perspectivas teóricas, vários objectos de estudo e processos, mas
também de textos que incidem sobre diferentes unidades de análise, sejam eles o
texto literário ou a vida numa fábrica. Parte-se igualmente de ‘geografias’ distintas,
dos ecossistemas da Ria de Aveiro ou do agro-silvo-pastoril do montado português
até ao contexto europeu. Partilham-se reflexões em torno de domínios profissionais
distintos, neste caso concretizados nos campos da clínica médica ou das artes
performativas. Não sendo possível, nem neste caso desejável, encontrar um fio
condutor que nos permita ler o conjunto dos textos aqui apresentados – essa
linearidade seria a antítese dos pressupostos associados à organização destes
ciclos anuais – é, contudo, possível encontrar pontos de contacto entre os vários
contributos. Diferentes processos de incorporação e práticas de inscrição aparecem
ao longo dos textos, assim como diferentes leituras de vulnerabilidade e de
incerteza, de padronização ou de ‘exemplaridade’.
Bruno Monteiro apresenta-nos um detalhado estudo de caso que problematiza
os efeitos da modernização e das novas tecnologias nas vivências e incorporações
dos operários de uma fábrica de móveis em Portugal. Num contexto marcado pela
introdução e dominação de novas estratégias empresariais orientadas para a
maximização da produtividade e da redução dos ‘custos com pessoal’, é na
realidade da fábrica enquanto universo existencial e configuração de poder, que
encontramos os dilemas dos operários ante a transformação profunda do processo
produtivo e as implicações daí decorrentes. Partindo de uma perspectiva ‘incarnada’
e contextualizada do mundo social, Bruno Monteiro mostra-nos como o ‘saber de
cor’ dos operários desta fábrica resiste e é posto à prova; ele leva-nos aos
meandros do ‘aprender a arte’ de ser marceneiro e às transformações impostas
(‘hoje as pessoas sabem mais de máquinas’), às hierarquias e solidariedades dos
trabalhadores no interior da fábrica ou ao diluir progressivo do trabalho artesanal. O
texto percorre ainda as contradições entre o discurso gestionário e a ‘economia
moral do chão da fábrica’, as narrativas de ‘perda de amor ao trabalho’, a
manifestação da condição operária no próprio corpo dos operários e o entendimento
de processos que vão da submissão a uma experiência progressiva de
despossessão.
Tendo como referencial o barco moliceiro e suas inscrições, Clara Sarmento
confronta-nos com um processo de invenção e reinvenção da cultura portuguesa no
contexto da região de Aveiro. Ao longo de um século, é possível verificar que essas
inscrições e textos pintados nos barcos são o produto de redes de circunstância,
traduzindo uma dialéctica entre o discurso oficial e a sua função social, económica e
simbólica, e gerando um imaginário histórico que se constitui como ‘inventário’. De
7
‘ferramenta agrícola’ a atracção turística, a função do moliceiro alterou-se
profundamente nas últimas décadas. A ‘tradição’ foi sistematicamente adaptada às
diferentes realidades sociais e às novas funções económicas. Partindo de cinco
categorias de inscrições – jocosas, religiosas, sociais, históricas e lúdicas –, Clara
Sarmento mostra como os painéis do moliceiro se configuram num álbum de
imagens que expressam uma visão do mundo que reflecte o controlo social e
político, e de uma forma mais vincada durante a vigência do Estado Novo. A autora
sugere ainda que a autenticidade encenada pode ocasionalmente levar ao
renascimento cultural das tradições, à renovação da identidade local ou até mesmo
à invenção de novas tradições e identidades. Através de painéis onde só ‘cabe’ o
povo ou a burguesia, este texto ilustra ainda ‘espaços de negociação’ entre valores
culturais e ideológicos, entre dominação e subordinação, não sem laivos de
contestação.
Anabela Marisa Azul propõe-nos uma caracterização do sobreiro e do montado
do sobro em Portugal. O conceito de vulnerabilidade atravessa toda a análise da
autora, dado o aumento do declínio e da morte súbita do sobreiro em Portugal nos
últimos anos, ainda que o montado seja considerado um exemplo de sucesso no
uso sustentável do solo na Europa. Com efeito, o montado combina um alto nível de
produção e conservação, justamente considerados como exemplares à luz dos
actuais padrões ecológicos e ecossistémicos. Como mostra a autora, trata-se de
uma vulnerabilidade que resulta de factores que vão das alterações no uso do solo,
ao estabelecimento e aumento da agressividade de agentes patogénicos, ou mesmo
a situações de stress hídrico. Paradoxalmente ou não, o texto revela-nos como as
novas dimensões socioecológicas da paisagem – o turismo, a caça associativa ou a
exploração de produtos silvestres –, correntemente mais associadas a um uso
extensivo do território, nem sempre jogam a favor da redução do risco, da incerteza
ou da imprevisibilidade. Na proposta apresentada, Anabela Marisa Azul sustenta
que apenas uma análise profunda das inter-relações entre os agentes ecológicos,
económicos, sociais e ambientais, associada a uma identificação das condições de
vulnerabilidade e de sustentabilidade, pode ajudar a compreender o fenómeno
estudado. Para tal, mobilizar o diálogo entre a ciência e outros saberes, assim como
favorecer contextos que permitam modos de actuação colectiva, são parte da
resposta que permite salvaguardar a resiliência do ecossistema em causa.
O ensaio de Hélder Raposo debruça-se sobre a ‘suposta’ padronização das
práticas médicas a partir da análise da emergência e da consolidação da Medicina
Baseada na Prova. O autor problematiza as dinâmicas de reconfiguração da
profissão médica, num contexto de crescente importância da dimensão científica na
8
organização e na prestação dos cuidados de saúde. Entre defensores e críticos
desta tendência, o autor procura mostrar os limites de um modelo que tem como
objectivo conferir mais objectividade e validade aos processos de decisão clínica
através de critérios epidemiológicos, entendido como requisito fundamental para a
eficiência e eficácia dos recursos e investimentos em saúde. Hélder Raposo
questiona igualmente as narrativas de esvaziamento de autoridade e de perda de
autonomia no julgamento clínico, assim como as referentes ao processo de
proletarização e desprofissionalização da prática médica. Para o demonstrar recorre
a casos específicos, contrapondo à crescente ênfase na padronização médica o
carácter dinâmico e processual da produção e implementação de padrões. Não
ignorando as pretensões universalizantes, o autor sustenta que o ‘local conta’.
Levando em consideração a tendência para a padronização, para o reforço dos
protocolos e das guidelines e, ao mesmo tempo, a proliferação de novos discursos,
racionalidades e práticas regulatórias, o texto propõe um procedimento negociado
de padrões que interrogue a capacidade da homogeneidade de superar diferenças.
Será o protagonismo crescente das dimensões técnicas e tecnológicas
‘canibalizador’ da renovação médica que decorre das práticas quotidianas?
Ainda no domínio da análise de práticas profissionais, Vera Borges leva-nos
para o terreno das artes performativas. Partindo de um estudo sobre actores e
bailarinos, procura perceber se género e idade são factores explicativos da sua
situação profissional. Levando em linha de conta as estratégias de formação
associadas a cenários de forte incerteza de inserção profissional, que podem
atravessar carreiras inteiras, preocupa à autora delinear os efeitos da idade e do
género na capacidade de permanecer ou não no mercado de trabalho. O inquérito
foi a metodologia escolhida para aferir sobre o trabalho no mundo das artes,
independentemente da relação exclusiva, ou não, dos inquiridos com o teatro ou
com a dança. Os dados parecem confirmar, mesmo em realidades sociais bastante
diferenciadas, que a idade é o ‘filho imperfeito’ para as mulheres, seja pelo factor
envelhecimento no caso do teatro (o rareamento de papéis disponíveis afigura-se
determinante), seja pelo factor ‘desfavorecimento’ no caso da dança
(independentemente do maior número de mulheres, as condições de trabalho
tendem a ser menos satisfatórias). Contudo, e como bem mostra Vera Borges, a
dimensão explicativa mais relevante nas artes performativas é a incerteza como
estado permanente: por um lado, ‘alimenta’ até certo ponto a ‘chama’ criativa – pelas
opções ‘forçadas’ que dela decorrem; por outro, é também ela que elimina,
selecciona trajectórias de vida de homens e mulheres e de novos e velhos. Nesta
óptica, as artes performativas não ficam longe de outros mundos do trabalho e os
9
trabalhadores performativos aproximam-se de outras categorias profissionais
caracterizadas pela precariedade. O teatro e a dança são, deste modo, palcos
privilegiados para analisar dilemas sociais e económicos dos tempos que correm.
‘A escrita é uma casa que visito mas onde não quero morar’, diz Mia Couto.
Elena Brugioni leva-nos a esse mundo feito por quem o frequenta e a reinventa.
Este texto propõe um itinerário crítico pela obra de Mia Couto e reflecte sobre a
língua enquanto meio de representação estética e política. A escrita do autor
configura, no entender de Elena Brugioni, uma prática de desconstrução institucional
e ‘instrucional’ da língua portuguesa. Um ‘português outro’ ou uma língua libertada
do ‘pacto exclusivo com uma única nação’ tornam a escrita de Mia Couto, na opinião
da autora, um exercício de ‘subversão linguística’ – que pode ser entendida numa
linha mais vasta de intervenção que caracteriza genericamente as literaturas
africanas homoglotas no período pós-independência. Esta acaba por configurar-se,
também, na construção de uma ‘moçambicanidade’ literária. Sendo identificáveis
modalidades de desconstrução e descolonização na sua obra, ela não pode ser
esvaziada do seu carácter individual e criativo – ‘as sabedorias que ganhamos
apenas se de nós mesmos nos soubermos apagar’, parecem ilustrá-lo. Couto leva a
língua até um ‘desmaio gramatical, em que o português perde todos os sentidos’. É
neste contexto que a tradução é um conceito tão importante para compreender a
obra deste autor e a forma como usa a sua escrita. A lógica da autenticidade
linguística e cultural saem neutralizadas na sua obra, configurando-se como um acto
de manipulação que, apesar de ‘acontecer’ na língua, a ultrapassa. O texto literário
é, a partir desta perspectiva, um lugar de enunciação da diferença por excelência,
um exercício de descolonização simbólica, em que a partilha do idioma se assume
como o derradeiro ‘rasto do império’. À língua pode-se-lhe levantar as saias e
experimentar a pele, abrindo todo um campo de recepção da obra literária que é
marcado por dicotomias e enunciações que suscitam reacções diferenciadas, mas
nunca inócuas.
Isabel Estrada Carvalhais leva-nos ao centro da ‘visão institucional’ europeia em
matéria de gestão da imigração, para desvendar as tensões e os compromissos que
lhe estão subjacentes. A ‘máquina’ europeia trata da questão migratória como uma
técnica de gestão de fluxos de entradas e de saídas, mas é atravessada por tensões
éticas não resolvidas. O predomínio de uma lógica liberal nunca permitiu
verdadeiramente ultrapassar a tensão entre o compromisso com os direitos
humanos e as premissas de funcionamento de uma sociedade capitalista. É assim
que, na perspectiva da autora, se compreende a manutenção de uma relação
complexa e difícil com o ‘outro’, o imigrante, e a incapacidade de o ver como parte
10
integrante de um ‘Eu’ plural. Os discursos políticos oficiais produzidos no seio das
instituições europeias têm, por isso, revelado incapacidade de gerir essa tensão,
prevalecendo muitas vezes uma ‘ética burguesa obediente’. A ‘fractura colonial’
permanece, mesmo que as histórias concretas dos países com o seu passado
colonizador se tenham transfigurado. É também por tudo isto que continua a ser
difícil responder à pergunta do que é ‘ser-se europeu’ ou se perpetua a não reflexão
sobre as consequências das opções da UE em matéria de gestão dos fluxos
migratórios. Afinal, o que nos dizem elas? Isabel Estrada Carvalhais mostra ainda
que, numa Europa que enfrenta o desafio do declínio populacional, a manutenção
de um modelo que separa a ‘imigração que se quer’ da ‘imigração que não se quer’
apenas alimenta um cenário onde a imigração ‘ilegal’ continua a sair ‘mais barata’ –
tem o custo da aceitação pública, mas evita os da integração e da cidadania.
Marta Araújo
Laura Centemeri
Marisa Matias
Ana Cordeiro Santos
e-cadernos CES, 10, 2010: 11-36
11
A CONTESTAÇÃO PELO CORPO. A REALIDADE PROSAICA DAS POLÍTICAS GESTIONÁRIAS
NUMA FÁBRICA DE MOBILIÁRIO
BRUNO MONTEIRO
INSTITUTO DE SOCIOLOGIA, UNIVERSIDADE DO PORTO
Resumo: O esforço de explicar e compreender os efeitos que a “modernização” e as “novas tecnologias” têm sobre os diferentes operários exige encarar a fábrica como universo existencial e como configuração de poder. Este artigo procura, primeiro, explorar as condições de possibilidade e os processos específicos de aquisição, conservação e transmissão de uma maneira de ser, ver e fazer particular à “arte”, um “saber de cor” intuitivo e incorporado que resiste às tentativas de explicação intelectualistas. Depois, é prestada uma atenção particular à interrogação sociológica das experiências de contra-socialização e des-envolvimento que podem representar as “mudanças”, mesmo aquelas na aparência puramente técnicas e organizacionais, trazidas pelas “novas” políticas gestionárias. Palavras-chave: etnografia, incorporação, operariado, fábrica, mudança tecnológica e organizacional.
INTRODUÇÃO
A conjuntura económica mais recente da indústria do mobiliário – a contracção do poder
de compra dos clientes; a letargia do mercado nacional, muito por culpa da
“desaceleração” do sector da construção civil; a intensificação da concorrência
internacional; e, por tudo isto, a multiplicação de falências – confere uma pertinência
inaudita a estratégias empresariais orientadas para a maximização da “produtividade” e a
redução dos “custos com pessoal”, destinadas a contrariar a “elevada fragmentação”
deste sector produtivo, pulverizado em pequenas empresas de “cariz familiar, com pouco
acesso a capitais”, entravadas em termos tecnológicos e gestionários (cf. Relatório
Indústria do mobiliário, AEP, Janeiro de 2005, 4)1. Estas tendências gerais de
1 O sector das madeiras e do mobiliário atravessa, segundo os representantes de associações patronais, um
período de rápida e intensa transformação. Desde 1994, desapareceram 30 a 40 por cento das empresas e
Bruno Monteiro
12
reestruturação do espaço económico da indústria do mobiliário são refractadas pela
configuração de relações de poder específica de cada empresa. Na medida em que
“cada particularidade contém uma generalidade, cada regime de fábrica particular é o
produto de forças gerais operando a um nível societal ou global” (Burawoy, 1985: 18). A
partir deste ponto de vista teórico-metodológico, uma empresa pode ser entendida como
uma caixa-de-ressonância que, pelo seu funcionamento como espaço social englobado,
retraduz nos termos específicos da sua legalidade interna os condicionamentos históricos
e socioeconómicos englobantes. Esta pesquisa sociológica escolheu uma fábrica de
mobiliário no Noroeste português – a empresa K.2 – como posto de observação
socioterritorial dos processos de desestruturação e reestruturação económicas que estão
em curso neste segmento industrial.
A gerência da empresa K. procurou corresponder, especialmente a partir de 2005,
coincidindo com a chegada de um novo gerente, aos constrangimentos e às solicitações
do “mercado” através de um processo de ”modernização” quer do sistema técnico da
produção, quer dos dispositivos de regulamentação utilizados pelos agentes da
administração. Na empresa K., localizada no seio de uma região industrial tradicional, o
advento deste inédito modo de organização empresarial passou pela elevação do ritmo
de trabalho, permitida pelo incremento de mecanização em diversos segmentos do
processo produtivo e pela introdução de novos materiais (convenientes aos novos
cerca de 50 por cento da mão-de-obra do sector. Apesar do presidente da associação industrial do sector, considerar “ainda não se ter alcançado um grau de concentração suficiente”, actualmente o sector “está melhor em termos tecnológicos, mais inovador, com um menor número de empresas”, demonstrando-o numa “melhoria da produtividade” (Madeiras: sector solicita novo estudo sobre competitividade portuguesa, Jornal
de Notícias, 25 de Junho de 2008). “A saturação do mercado interno, potenciada pela quase paralisação da construção civil, o grande motor do mobiliário, está a lançar o caos no sector. As quedas no volume de vendas, ao nível do mercado interno, atingem já os 50%. Números preocupantes, se se tiver em conta que apenas 10% das empresas têm capacidade exportadora” (“Mil empresas de mobiliário abrem falência em cada ano - Crise na construção e China constituem as principais ameaças ao sector”, Diário de Notícias, suplemento Negócios, 23 de Maio de 2005). Ernesto Romano, à altura director-geral desta associação empresarial, adverte para os problemas causados por esses “inimigos” das empresas portuguesas” que são a concorrência chinesa e dos países de Leste, esclarecem-se as razões de “este ser um sector onde têm fechado várias fábricas nos últimos anos” (segundo o título da notícia “mil (…) em cada ano”). Nesta notícia, de 2005, afirmava-se ainda que “o cariz quase familiar de muitas delas [das empresas de mobiliário] é um dos entraves à expansão para o exterior” e que “a estratégia de produtos a baixo preço será o fim de muitas empresas do sector”. 2 A empresa K. dedica-se ao fabrico de mobiliário habitacional, reunindo as sucessivas fases do processo de
produção: fabricação mecanizada de componentes pelos “maquinistas”; montagem semi-artesanal por marceneiros; acabamento e envernizamento; expedição para os revendedores, que comercializam, para o público, os seus móveis. A empresa tem 35 trabalhadores, está relativamente bem equipada em termos tecnológico, e possui uma gerência profissional e não exclusivamente familiar – características relativamente raras no âmbito local. O recenseamento industrial dedicado ao sector do mobiliário no Concelho Y contabilizava, em 2005, 1166 empresas, 258 delas na Freguesia Z, onde está situada a empresa K. No geral, tratam-se de micro-empresas (em média, cada qual conta com 8 trabalhadores; 851 empresas têm 10 ou menos trabalhadores), extremamente voláteis (436 foram criadas nos dez anos anteriores à realização do estudo), com uma estrutura produtiva tradicional (como evidencia a reduzida presença de trabalhadores administrativos – 827 num total contabilizado de 8439 – e a subcontratação generalizada dos serviços de gestão financeira – 973 empresas estão nessa situação) e dedicados sobretudo à revenda e à subcontratação (912 empresas afirmam dedicar-se à revenda, 836 empresas não têm exposição própria, 742 fazem móveis por medida).
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
13
“estilos” de “linhas direitas” do mobiliário contemporâneo); pela redução de porosidades
no tempo de trabalho (e. g. fixação do trabalhador ao posto de trabalho por via de regras
a proibirem as deslocações e as conversas, eventualmente sujeitas a “multas” ou
“castigos”); pela intensificação da vertente disciplinar dos dispositivos de controlo
hierárquico dirigidos à vigilância dos corpos e dos discursos operários na fábrica (mesmo
que à custa da relativa erosão da vertente pessoal baseada nos “favores” e “respeito”
mútuos entre trabalhadores e encarregados); e pela crescente racionalização e
formalização dos processos de trabalho (e.g.: instruções de produção escritas) e por
novas políticas de gestão da produção (zero stocks, just-in-time). Para ultrapassar os
limites definidos pelo economicismo e pelo tecnologismo, a investigação sociológica
deste novo “regime de fábrica”3 deve ser capaz de interrogar a “experiência vivida” da
fábrica (Estanque, 2000: 77).
Todo e qualquer processo de produção define os operários objectivamente, por força
da sua inclusão material no espaço físico e social da fábrica e em razão da natureza do
trabalho realizado, e contribui para moldar a sua subjectividade, mediante a experiência e
interpretação desse espaço e desse trabalho (Burawoy, 1985: 8). É indispensável não
separar a objectivação da subjectividade e a subjectivação da objectividade (Bourdieu
1989) no estudo dos locais de trabalho. Este artigo procura, primeiro, explorar as
condições de possibilidade e os processos específicos de aquisição, conservação e
transmissão de uma maneira de ser, estar e fazer particular à “arte”, um “saber de cor”
intuitivo e incorporado que resiste às tentativas de explicação intelectualistas. Depois,
procura compreender o modo como foi sendo quotidianamente recomposto, em paralelo
com a reorganização das técnicas patronais de vigilância e controlo do processo de
trabalho, o modo de coesão e de resistência do grupo operário e realizado o trabalho
individual e colectivo de memorização das relações de oposição e de concertação no
chão da fábrica. Por fim, tentar-se-á interrogar sociologicamente as experiências de
“contra-socialização” e “des-envolvimento” (Suaud 2009) que podem representar as
“mudanças” trazidas pelas “novas” políticas gestionárias, mesmo aquelas na aparência
puramente “técnicas” ou “formais”.
3 A noção de “regime de fábrica” compreende as duas dimensões da “política da produção”: as “relações de
produção”, ou seja, “a organização do trabalho tem efeitos políticos e ideológicos – quer dizer, conforme os homens e as mulheres transformam matérias-primas em coisas úteis, eles também reproduzem relações sociais particulares bem como uma experiência dessas relações”; e as “relações na produção”, “ao lado da organização do trabalho – isto é, o processo de trabalho – existem mecanismos de produção que regulam as relações de produção” (Burawoy, 1985: 7-8).
Bruno Monteiro
14
1. OFÍCIO DE SOCIÓLOGO, MÉTODO ETNOGRÁFICO
Compreender a contextura quotidiana da experiência social exige admitir a relevância da
carnalidade como dimensão mediadora na aquisição, transmissão e activação das
disposições a ver, estar e fazer específicas do operariado. Uma sociologia carnal, que
ambiciona situar-se no ponto de produção das práticas e dos agentes, implica da parte do
investigador uma “imersão tão profunda e tão duradoura quanto possível no cosmos a ser
investigado, a submissão às suas temporalidades e contingências específicas, a
aquisição das disposições incorporadas que ele exige e estimula, de maneira que
possamos compreendê-lo através da compreensão pretética que define a relação nativa
com o mundo – não como uma mundo entre outros mas como ‘lar’” (Wacquant 2005:
466). A etnografia sociológica realizada pelo autor ao longo de 2007 e 2008, envolveu a
observação participante na empresa K. (salientando-se a experiência como operador de
máquina durante 14 semanas) e a realização de entrevistas semi-estruturadas
aprofundadas a 35 operários da indústria do mobiliário (com uma duração entre os 60 e
os 300 minutos cada)4. Entendida como modo de pensamento sociológico em acto, esta
estratégia de pesquisa foi teoricamente orientada para o estudo das repercussões
silenciosas e aparentemente “naturais” das dinâmicas de (re)estruturação da fábrica
como lugar de socialização e de sociabilidade do operariado.
Uma sociologia dos processos de “afinação do corpo” (Goffman 1989: 125), esse
ajustamento tácito às asperidades e subtilidades do trabalho manual e aos ritmos ínfimos
e íntimos da vida em comum de um grupo de homens, permite desafiar o efeito de
evidência do mundo da vida, submetendo-o a um questionamento sociológico metódico.
A observação minuciosa da experiência vivida da fábrica, no fundamental constituída pelo
envolvimento prático e implícito nos acontecimentos do quotidiano fabril, o registo das
reacções às injunções invisíveis e às interdições silenciosas do local físico e social que é
a fábrica, sujeitando inclusive a sensibilidade, os pressentimentos e as emoções do
próprio investigador a um trabalho de descrição e reflexão, permite problematizar a
“naturalidade” de um modo de presença no mundo quotidianamente inquestionado (vd.
Katz e Csordas, 2003; Howes, 1990). Desta maneira, é possível trazer para o espaço
teórico de inquirição da sociologia toda essa dimensão tácita da fábrica que compreende
os barulhos e os odores, a comoção e o entendimento implícito entre colegas, os gestos
e as palavras na aparência mais insignificantes e rotineiras, aspectos que, precisamente,
4 As entrevistas foram conduzidas nas residências dos entrevistados, durante a semana à noite, depois do
trabalho, ou no fim-de-semana. Embora tenhamos realizado entrevistas a casais, as entrevistas consideradas para análise neste artigo dizem respeito, todas elas, a homens, operários especializados em diferentes segmentos do processo de trabalho (maquinistas, marceneiros, estofadores, etc.) e provenientes de distintos estádios etários entre os 16 e os 63 anos.
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
15
tendem a ser sistematicamente ignorados e desprezados por uma certa perspectiva des-
incarnada e des-contextualizada do mundo social.
Sob a função de comando da teoria e dirigido para as experiências concretas dos
indivíduos e grupos, “a observação participante pode examinar o macro-mundo através
do modo como este molda e, por sua vez, é moldado e condicionado pelo micro-mundo,
o mundo quotidiano da interacção face a face” (Burawoy, 1991: 6). No trabalho de
reconstrução teórica realizado a partir da observação participante, o método de caso
alargado surge como modo de articular a “compreensão” e a “explicação”, a dimensão
hermenêutica e científica da ciência social.5 O método de caso alargado procura,
precisamente, fazer “emergir generalizações através da teoria reconstruída”,
estabelecendo teoricamente a “significação societal” do contexto particular de observação
etnográfica (idem: 281). Aqui, desde logo, a análise sociológica da fábrica deve precisar o
seu posicionamento específico no âmbito e na conjuntura do espaço económico da
indústria do mobiliário. Enquanto “totalidade expressiva”, cada contexto social particular
refracta peculiarmente as dinâmicas estruturais que atravessam a situação sócio-histórica
englobante; o método de caso alargado esforça-se por “expor as macro fundações de
uma micro-sociologia” e por “perceber como essas micro situações são moldadas por
estruturas mais vastas” (ibidem: 282). Neste sentido, é indispensável, por um lado,
realizar a sua localização no circuito espacial de quadros de interacção relevantes para a
condição operária contemporânea. Efectivamente, a fábrica integra-se numa série de
locais territorialmente dispersos - a habitação familiar, o café, a equipa de futebol, etc. -
que colaboram simultaneamente para definir um modo de ser, estar e fazer. Por outro
lado, é necessário perceber a relevância da fábrica como espaço de socialização nos
trajectos e nos projectos singulares e colectivos do operariado.
2. “SABER DE COR”: INCORPORAÇÃO E SENSO PRÁTICO NA FÁBRICA.
“Aprender a arte”, professar a profissão, significa envolvermo-nos implicitamente num
trabalho de conversão e implicarmo-nos numa adesão subtil ao ethos colectivamente
transmitido e sancionado na fábrica (o “jeito”, a “pranta” e a “fama”). A incorporação
paulatina de esquemas práticos de acção, de visão e de percepção do mundo fabril, a
aquisição de uma competência social (“artista”) ao longo de uma trajectória “como
homem e como trabalhador”, é vulgarmente descrita recorrendo às expressões “ganhar
calo” e “ganhar corpo”. Pela mesma ordem de ideias, a inabilidade técnica e o
desajustamento ético são sancionados negativamente pelo insulto e ironia (“sapateiro”,
5 A “compreensão” é “a participação virtual ou actual nas situações sociais através de um diálogo real ou
construído entre participante e observador”; a “explicação” é “uma realização de um observador ou leigo [outsider] e diz respeito ao diálogo entre a teoria e os dados” (Burawoy, 1991: 3).
Bruno Monteiro
16
“carrejão” ou “serviçal”) ou pela inversão e estigmatização dos sinais físicos e morais que
constituem os mais seguros índices de grandeza e pureza oficinal (“lingrinhas”, “meio
homem”, “cachopo”, “bufo”, “boca suja”). “Aprender a arte” envolve uma pedagogia
inconsciente e mimética (“adquirindo a prática”, “aprendendo a ver”, “está tudo envolvido
(…) estamos a trabalhar e eu estou a ver aquele a trabalhar e estou a ver como ele faz”).
A aquisição, transmissão e sanção pelo colectivo de trabalho de uma “maneira de fazer
as coisas bem-feitas”, estruturada pelos princípios de classificação das coisas e dos
homens que compõem um idioma ocupacional, vincula insensivelmente todo um universo
de virtudes masculinas e artísticas directamente à destreza e postura corporal.
É sobretudo à margem de qualquer propósito deliberado, pela reiteração de
experiências quotidianas nos lugares comuns, que todo um sistema de propensões a
sentir, a fazer e a ver gradualmente se sedimenta nos corpos, gravando as marcas de
uma relação específica de revelação do mundo nos comportamentos e discursos
operários. É a partir desta “inclusão material – frequentemente despercebida e denegada
– e daquilo que ela implica, quer dizer, a incorporação das estruturas sociais sob a forma
de estruturas disposicionais, de possibilidades objectivas sob a forma de esperanças e de
antecipações, que eu adquiro um conhecimento e uma mestria [maîtrise] prática do
espaço englobante” (Bourdieu, 2003: 189). A “maneira de trabalhar” vai sendo
paulatinamente adquirida ao longo de uma imersão prolongada num universo de
incitamentos e constrangimentos, implicando posturas, gestos, atitudes que “a gente dia-
a-dia vai ganhando” ou “apanhando”, numa aprendizagem difusa sem a participação de
instâncias intencionalistas (“nem te lembras, nem te passa pela cabeça”). A experiência
pessoal dos processos objectivos de recomposição do espaço social da fábrica e da
comunidade compreende uma cadeia de processos de incorporação e de efeitos de
somatização que torna falaciosos dualismos que oponham irredutivelmente “objectivo” e
“subjectivo”, “singular” e “colectivo”, “corpo” e “mente”.
“Só mesmo experimentando fazer, mandando-te experimentar, tu vais
experimentando, avisando-te como tu fazes a maneira certa, dizendo: ‘mexe aqui,
não mexas ali’ e com o tempo tu é como se não decorasses aquilo, aquilo é como
se fosse automático, como se chegasses lá, tipo, não preciso de olhar para o
apertador, nem para o calcador, nem para a orla para metê-la no sítio. Sou capaz
de estar a falar para uma pessoa e afinar a orladora toda sozinho, na boa, ir ter pelo
rasgo, apertar o rasgo com a largura certa, meter o calcador certo e metê-la no sítio
certo para não falhar a medida, sou capaz de pôr isso tudo assim, sei lá, é como se
fosse o nosso corpo automático, já está tão habituado aquilo que chega ali, tse, tse,
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
17
já está feito, assim a falar para uma pessoa na boa. Nem em todas, há trabalhos
que não se faz tantas vezes, por exemplo, o orlador trabalha todos os dias, todo o
dia, agora há trabalhos que eu faço, tipo, há puxadores de linhas que já saíram há
algum tempo, há frisos da fresadora, há coisas que são aparelhadas que é preciso
ter mais cuidado e não temos tanto calo porque não fazemos aquilo diariamente, é
só mesmo semanalmente ou de quinze em quinze dias. (…) É como se eu não
precisasse… a minha cabeça não precisasse de pensar no que ia fazer, não
precisa-se de dizer: ‘agora mexo aqui, depois mexo acolá e eu ando aqui e empurro
isto para ali’, agora já não preciso de pensar nisso, chego lá e… é como se fosse
mesmo automático, estás ver? Como se fosse eu a própria máquina, eu faço aquilo
mesmo assim e fica sempre bem. (…)
Como eu te disse, [ganha-se] aquela cena do automático, estás a ver? Nós
chegamos lá, nós agarramos uma placa sempre assim quando se vai à frente, o U.
ao princípio agarrava assim [muda a disposição do gesto que faz com os braços].
Só fazes assim e já vês que cansa aqui e o caralho, enquanto assim [muda para a
posição inicial] estás sempre normalmente. (…) É como tu na primária aprendes a
escrever e agora escreves sempre da mesma maneira, tu não pensas na letra que
vais desenhar, como é que vais fazer uma letra, tu chegas aí para escrever o teu
nome e escreves, não é? Mesmo sem olhar, é como uma comparação isto, nós
ganhamos aquele ritmo mesmo, aquela coisa que nos leva da mesma maneira,
ganhamos aquela maneira que é a maneira mais fácil, menos cansativa e fazemos
aqui… fazemos daquela maneira. Funciona como, por exemplo, trabalharmos mais
depressa, não estarmos ali a pensar: ‘espera aí, agora vou pegar na placa, vou
levantá-la assim, virá-la para a esquerda, puxá-la para a direita e vou empurrá-la
para a colocar no sítio’, agora tu não pensas nisso, tu chegas lá pegas e empurras,
está feito, é isso. É mesmo com o tempo.” (F., maquinista, 21 anos, trabalha desde
os 16)
A iniciação ao ofício é realizada de modo prático, adquirindo, por incorporação
directa, um controlo prático dos esquemas corporais, emocionais, visuais e mentais. É
esta aquisição de uma competência corporal infra-consciente que define o agente
conhecido e reconhecido em qualquer universo social. Tornar-se trabalhador fabril
significa apropriar-se, por impregnação progressiva, visceralmente, da memória colectiva
da oficina. A assimilação é realizada através de uma disciplina, todo um “trabalho de
conversão ginástica, perceptiva, emocional e mental, que se efectua de um modo prático
e colectivo, com base numa pedagogia implícita e mimética que, pacientemente, redefine,
Bruno Monteiro
18
um a um, todos os parâmetros da existência” (Wacquant, 2002: 23). A exposição
constante às imputações banais da própria materialidade do lugar, ao barulho das
máquinas, à rugosidade própria dos objectos, aos ritmos e aos tempos habituais, esse
envolvimento anódino na fábrica, significa uma “mundanização” específica do aprendiz,
abrindo um modo de relacionamento particular com o que surge como relevante. As
reiteradas “chamadas de atenção” dos companheiros, as suas correcções e incentivos,
as suas censuras e elogios, que não são frequentemente mais do que insinuações (“meia
palavra basta”), resmoneios, esgares ou “tiques”, acabam por realizar um adestramento
contínuo e invisível, afastado de qualquer intenção deliberada ou premeditação explícita,
de maneira a interiorizar uma série de disposições inseparavelmente físicas e mentais.
Na “cumplicidade ontológica” entre a história incorporada e a história objectivada
funda-se “a relação dóxica com o mundo natal, essa espécie de empenhamento
ontológico que o senso prático instaura, uma relação de pertença e posse na qual o
corpo apropriado pela história se apropria, de maneira absoluta e imediata, das coisas
habitadas por essa história” (Bourdieu, 1989: 83). Na expressão de B, encarregado de 25
anos, “as pessoas já estão habituadas àquilo, já acham que é o normal ou até acham que
aquilo deve ser assim”. A experiência ordinária do mundo fabril funda-se na existência de
uma relação de pertença e de posse entre as condições de trabalho imediatamente
enfrentadas na oficina e os homens gerados em condições de existência que tornaram
inevitáveis, aceitáveis ou desejáveis as vicissitudes inerentes ao ofício. A persistência
deste encontro bem-sucedido é que garante que “as coisas são como são e como devem
ser”.
3. A DUPLA VERDADE DO TRABALHO OU A PAIXÃO E DESILUSÃO NO CHÃO DA FÁBRICA
“É a realidade, é o que nós temos, é o que nós somos”, disse-me um maquinista com 52
anos. A exposição precoce e reiterada ao universo social da “arte” possibilita uma
remodelação incessante do “corpo vivido” para o compatibilizar com as estipulações
temporais, físicas e cognitivo-emocionais específicas da fábrica. A concordância entre
vocação subjectiva e missão objectiva ajuda a explicar o “gosto” em cumprir aquilo para
que se nasceu (“isto nasce com a gente”), exercitando um “jeito” que oscila entre o dom e
o destino, expressando, como num movimento de criação a partir de si, uma “paixão” ou
“motivação” congénitas (“isso já vem com as pessoas”). O “orgulho” da “obra bem feita” e
“bem acabada”, o “gosto de trabalhar” e a “paixão pela arte”, estão intimamente ligados a
essa “maneira de trabalhar” fundamentalmente “artesanal” (por oposição a “industrial”),
na qual se “trabalhava as coisas com as mãos”, que foi “adquiri[da] ao longo dos anos”. O
“verdadeiro marceneiro”, como diz um marceneiro, é aquele que tem “paixão” pela arte e
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
19
a propensão necessária para reconhecer imediatamente o “valor” do trabalho. Ainda que
a devoção ao ofício signifique renúncia, despojamento e abdicação de si (“é trabalhar e
calar”, “o trabalho sai do corpo”, “tem que se vergar o fio”, “não se pode arrebitar cabelo”),
a lógica da arte realiza uma autovalorizarão e autojustificação do trabalho do operário ao
reconstituir em termos de “responsabilidade”, “respeito” e “orgulho” as exigências das
condições objectivas do quotidiano fabril e ao enfatizar o “gosto” e o “sacrifico” como
propriedades redentoras (“nunca falhei”, “gosto de cumprir”).
No entanto, a “paixão pela arte”, o investimento afectivo e a devoção sensual ao
trabalho que naturaliza ou eufemiza a elevada violência da fábrica, é sempre precária e
provisória. A adesão voluntarista ao trabalho, o envolvimento cooperativo na fábrica e,
em particular, o consenso em relação ao valor da “arte” e do “artista”, à legitimidade do
regime de poder oficinal e à hierarquia de prestígio no ofício, estão vinculados à
manutenção das condições históricas e sociais que asseguram a inquestionabilidade ou
plausibilidade da reprodução social da “arte”, em particular aquelas relacionadas com a
ordem do poder no âmbito da fábrica. O desaparecimento das condições de felicidade na
aquisição e activação de maneiras de ser, estar e fazer associadas ao regime da “arte”,
especialmente pelo que implicam de desvalorização da relevância económica, cultural e
simbólica da figura do “artista”, é vivido como uma experiência de negação individual e
colectiva. “Eu até pergunto: ‘Mas para quê é que eu andei a aprender tantas coisas?’”
(nota de campo 11 de Maio de 2007). O amplo reportório de acções individuais e
colectivas de contestação e resistência destes operários, pondo em acção múltiplas
variantes de descomprometimento conflitual e de tácticas de deflexão e inversão da
dominação, normalmente relacionadas com o domínio da “infra-política” (cf. Scott, 1990),
constitui um domínio fundamental de expressão das vivências da fábrica (analisado
pormenorizadamente em Monteiro, no prelo). Neste artigo, concentrar-me-ei em inquirir
sociologicamente sobre os modos incorporados de experiência operária das
transformações sociais da fábrica, com expressões técnicas e institucionais, ocorridas
simultaneamente a mais vastos e recentes processos de desestruturação e
reestruturação económicas.
Tradicionalmente caracterizada pela dureza e subordinação nas condições de
trabalho (“chegamos a ir trabalhar noites inteiras, chegamos a trabalhar trinta e seis ou
quarenta horas seguidas”), a indústria do mobiliário passa por um processo de
reestruturação apoiado, indissociavelmente, na introdução de novos métodos de
organização do trabalho e na introdução de procedimentos de trabalho progressivamente
mais formalizados e mecanizados. Levada a cabo em graus variáveis de intensidade
através do conjunto de empresas que compõem a economia local do mobiliário, a
Bruno Monteiro
20
aplicação desta “política de produção” corresponde a exigências de “competitividade” e
“produtividade” resultantes das injunções de um mercado altamente competitivo. Para
muitos operários, estas mudanças na organização do trabalho representaram, por um
lado, o advento de uma “forma de trabalhar mais rígida”, evidente na “sobrecarga” e na
“pressão”, que advêm da intensificação dos ritmos de trabalho, e na desestruturação das
modalidades de apropriação pessoal e colectiva do trabalho (“andar na brincadeira”,
“fazer de conta que se trabalha”, “pôr o trabalho à minha maneira”), que resulta da
extensão dos procedimentos hierárquicos de vigilância e controlo da acção produtiva dos
operários. Por outro lado, significaram a concretização de uma política gestionária que
“não tem reconhecimento do valor das pessoas”, convertendo as relações de dominação
de índole paternalista, fortemente pessoalizadas (“dar a cara”, “dar a palavra”, “não
deixava ninguém ficar mal”) e remetendo, ao menos metaforicamente, para a
reciprocidade entre “patrões” e “empregados”, em relações de dominação orientadas pelo
cálculo económico e por critérios técnicos (“só olham para o relógio”, “só pensam em
números”, “agora é só contratos”).
Quando “as máquinas fazem quase tudo”, os marceneiros tornam-se simples
“montadores de móveis”. A entrada na empresa e a progressão na “carreira” oficinal
passam também a depender da posse de outros recursos para além das “mãos”, do
“saber”, da “antiguidade”, da “fama” ou da “experiência” no ofício. A formação
profissional, os títulos escolares e a “juventude” (presumido índice de uma “maior
capacidade de adaptação”, da posse de “menos vícios” e de “menos burrice”) são
referências alternativas que disputam o monopólio do regime da “arte” e do “artista”. A
introdução de procedimentos de admissão formalizados (“entrevistas”, “currículos”)
reforça critérios que não são facilmente compatibilizáveis com a lógica das redes de
interconhecimento (as “amizades” e os “conhecimentos”) e que diminuem a importância
relativa da “fama” (ou da “má fama” como capital simbólico negativo) adquirida ao longo
de uma trajectória passada “ao banco”. A economia moral e sensual pela qual eram
garantidas e justificadas as margens de liberdade anteriormente existentes, por reduzidas
que fossem na realidade, vê agora serem ameaçadas as suas próprias condições de
possibilidade.
A produção de “mobília de série”, para lá das necessárias mudanças técnicas que
trouxe a introdução de máquinas automáticas e a formalização dos procedimentos
produtivos, implicou alterações na “carreira de marceneiro” e nas relações de força no
chão da fábrica. Actualmente, a socialização assente no contexto imediato de trabalho e
nas formas colectivas de transmissão e sanção do saber oficinal ocorre num momento
mais tardio da trajectória biográfica e passa a exigir um período de aprendizagem mais
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
21
curto em relação ao “aprender lentamente” que o significava “aprender a arte”, em que se
podia permanecer como aprendiz ao longo de toda a adolescência. Mesmo afirmando
que “a teoria é uma coisa, a prática é outra” e que “pode vir quem vier, a formação que
tire, se chegar à nossa beira eles não sabem trabalhar” (N., 47 anos, maquinista, a
trabalhar desde os 10), esta insistência deixa adivinhar a intuição de uma progressiva
subalternização relativamente às formas institucionalmente consagradas e valorizadas de
“formação”, fundamentalmente assente no “papel e caneta” (“os novos agora querem um
diploma qualquer”). “Eu penso que aquilo [formação profissional] é mais na teoria,
porque, na prática, eles não devem saber fazer nada, penso eu…” (R., marceneiro, 36
anos, trabalha desde os 14). No processo de trabalho imediato, o trabalhador tornou-se
mais facilmente substituível e relativamente supérfluo (“hoje em dia, elas [as máquinas]
dão trabalho a acertar, depois trabalhar nelas, qualquer um trabalha nelas”; “o
maquinismo usa menos pessoal, uma máquina faz muita coisa e antigamente para fazer
essa coisa era preciso seis homens enquanto agora um homem só com a máquina faz
tudo”).
Nota de campo 10 de Março de 2007 - M. C. [que é gerente na Empresa K] falou-
me hoje das mudanças que houve nas fábricas ao longo dos últimos anos: “Nós
não temos bem marceneiros, temos mais montadores. As peças colam-se,
encaixam. É como um lego. Antes era preciso fazer os malhetes à mão, cortar tudo
conforme os móveis. Agora, já chega tudo pronto, é só montar o móvel. Antes era
preciso 5, 4 anos, ou 2, conforme a capacidade de cada um, para aprender a arte.
Agora, em meio ano fica-se a saber tudo. E estas pessoas [marceneiro] pensam,
‘Fogo! Agora eles não precisam de mim! Eu, que ganho bem, que julgava que
estava como queria, afinal não. Não sou preciso para nada!’. E isto ainda é pior
para os maquinistas. Tu é que não sabes. Antes era preciso um bom tupiador, um
bom maquinista, que soubesse como usar os moldes, fazê-los, como se segura na
peça, como se abrem rasgos certinhos. Nós [Empresa K] nem estamos muito
avançados, com máquinas de ponta, que as nossas ainda são modernas [i.e. ainda
servem]. Mas agora, com a CNC, tu podes meter tudo no computador, que a
máquina faz tudo e tu até podes tar ali de braços cruzados, ela faz tudo. E agora
eles pensam, ‘Tou acabado. Vem para aqui um puto novo e tira-me o lugar…’. Eles
não se habituam, nem sequer têm pachorra para aprender tudo. Eles vêm malta
nova aí a chegar e nem sabem para onde se hão-de virar. Isto antes era quase
artesanal, agora já não é bem assim”.
Bruno Monteiro
22
“Já são as máquinas que trabalham mais, já não se trabalha tanto com o corpo” (M.,
maquinista de 44 anos, a trabalhar desde os 12). As opções na introdução de certos
dispositivos técnicos de produção, controlo e vigilância obedecem a princípios de
selecção que não são exclusivamente tecnológicos, mas que estão relacionados com
“escolhas” que “reflectem as intenções (impactos desejados) dos criadores [designers] –
intenções que reflectem a ideologia (frequentemente inarticulada e pré-reflexiva) e, desta
maneira, a posição social dos criadores” (Noble, 1979: 320).6 Torna-se mais saliente a
relativa obsolescência e superfluidade das técnicas do corpo “artísticas”, que dominavam
a execução e apreciação da “obra”. “Hoje em dia, as pessoas sabem mais de máquinas
do que de marcenaria, praticamente é assim.” (R., marceneiro de 36 anos, a trabalhar
desde os 14). A “transformação impressionante” do sector do mobiliário, diminuindo a
relevância da memória oficinal colectivamente partilhada e fisicamente incorporada pelos
trabalhadores no contributo para o processo de trabalho (“já agora existe maquinaria, já
agora existe material que praticamente não precisa das pessoas [trabalhadores]”), parece
acentuar a situação de desequilíbrio nas relações de poder.
“Os patrões não querem saber se tu tiveres algum problema, só olham para o
relógio, chegaste atrasado, não querem saber do problema que tu tiveste, não
querem saber do problema que tiveste, pá, eles não querem saber disso, só
querem saber que cumpriu o horário mais nada, não cumpriste o horário levas
castigo. (…) [Os patrões] não dão valor, não dão valor ao empregado, só querem
saber… só ver números, dividendos ao fim do mês, ao fim do ano, a firma produziu
mais xis sim senhora a firma está em alta. De quem é o valor? É do gerente. Os
empregados não têm valor, nem têm valor, nem, nem… (…) Eles não vêem isso, só
vêem dividendos para eles e mais nada, por isso é que a gente, às vezes, tem
conflitos com o gerente por causa disso, a gente fica revoltada porque eles… falam
com este, falam com aquele e, quer dizer, o valor é só deles? E eu, eu sou contra
isso porque eu acho que… Eu tenho uma maneira de ser, tentar ser o mais correcto
6 A investigação de David Noble mostra que o desenvolvimento tecnológico é um processo social “fundado no
histórico e no concreto” (1979: 320), que reflecte portanto “as particularidades do seu pano de fundo [setting]: o tempo, o lugar, os sonhos e propósitos e as relações entre pessoas” (idem: 318). Nesta perspectiva, para compreender as escolhas tecnológicas é preciso identificar o grupo social que comanda a sua concepção e aplicação, explicando o modo como estes agentes são capacitados com essa competência e o modo como chegam a realizá-la. Ao mesmo tempo, obriga a enxertá-las no contexto da sua concepção e aplicação, ou seja, examinar de perto as estratégias mobilizadas e as relações de conflito e conivência associadas a uma determinada estrutura social ou institucional. São as próprias entrevistas e as notas de campo relativas às conversas que mantive com gerentes e patrões da indústria do mobiliário que parecem indicar a existência de uma estratégia gestionária deliberada, dirigida contra o que é visto como “falta de profissionalismo” e de “organização” de trabalhadores com “vícios” e “manhosos” (entrevista a A. C., sócio-gerente de uma empresa de cadeiras com cerca de 80 trabalhadores), motivada pelas novas condições do “mercado” e facultada pelo contacto na formação académica ou profissional com versões vulgarizadas de técnicas de gestão “modernas”.
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
23
possível e acho que ele não é…Só o valor é que é dele, e quem fez a obra? E
quem pintou? Quem embalou? O quê? Essas pessoas não têm valor? Essas
pessoas não têm valor?! Isso é que é complicado numa empresa, o operário nunca
tem valor! Praticamente, isto é, mais ou menos, o que se passa nos outros lados,
mais, actualmente, [por]que eles dizem que há crise. Agora ainda mais, os patrões
não dão valor. Antigamente, o patrão ainda chegava ao fim do ano: ‘o ano correu
bem, sim senhora, vamos fazer um jantar, a firma paga’, ‘sim senhora’, fazia-se o
jantar todos juntos, ‘ao fim damos xis a cada empregado’, uma graça, agora
acabou. (…) Agora… acho que lá que não tem reconhecimento do valor das
pessoas, isso aí é que me revolta mais, não ter reconhecimento do valor da pessoa.
Eles não reconhecem o valor da pessoa, se cometeres um erro és logo posto na
cruz, [e] se fizeres quinhentas coisas bem não és reconhecido, o que me revolta
mais é isso. Isso não motiva as pessoas, não é?, quando não se reconhece o valor
da pessoa não há motivação…” (R., marceneiro, 36 anos, a trabalhar desde os 14)
A organização real da produção contrasta fortemente com os apelos e promessas do
discurso gestionário (“somos uma equipa”). “Há muitas firmas que querem uma amizade,
uma amizade, mas eles não humanizam nada, eles estão pouco se lixando para os
empregados, quando não estiver bem é uma cartinha, muda de ares ou muda de
emprego” (J., 36 anos, polidor). O desencantamento perante o trabalho é resultante da
repetição das “desfeitas” e das “chancadas”, expressões da decepção perante as
demissões da benevolência do patronato (“não se lembram”, “não querem saber da tua
vida”), que ao invés de corresponder às “aflições” e “sacrifícios” operários, encontra na
“crise” uma ocasião para perversamente realizar a “ganância”.
As práticas de gestão empresarial que enfatizam a “participação”, a “produtividade”, a
“flexibilidade”, a “iniciativa” e a “formação” dos operários atribuem e transferem para eles
a responsabilidade e autonomia na exibição e concretização destes atributos. Na medida
em que correspondem a expectativas e suposições de uma argumentação que é, na
aparência, puramente tecnicista ou exclusivamente individual (“competências”), que
parecem portanto excluir os efeitos mais evidentes da dominação social, os desvios a
estas provas de aptidão profissional e pessoal constituem signos da incapacidade,
inabilidade ou relutância individual em conformar-se aos modos de acção interiorizados
a-propositados e aos dispositivos exteriorizados que caracterizam uma empresa
“moderna”. Largamente assimiladas pelos próprios operários, especialmente pelos mais
jovens, que, ao longo de percursos escolares tendencialmente mais prolongados,
adquiriram uma deferência relativamente acrescida aos procedimentos escritos, a
Bruno Monteiro
24
incapacidade ou renitência em mostrar-se “participativo”, “produtivo”, “flexível”,
“empreendedor” ou “formado” não são senão percebidas como consequências da
autocondenação dos operários. Na economia moral do chão da fábrica, todavia, é
possível observar, na forma larvar e subterrânea das “intrigas de denúncia”, o surgimento
de narrativas apócrifas, anedotas agressivas e estórias blasfemas, que imputam a estas
mudanças à “cobiça” patronal. No entanto, ao serem transferidas da ordem do poder para
a ordem da personalidade (“não sabem”, “não percebem”, “é mais difícil para eles para
perceberem”), esses comportamentos e atitudes são, de um modo geral, lidas como
“reacções” passivas e transfiguradas em “problemas” pessoais.
Nota de campo de 2 de Junho de 2007 – [Fui a casa do Neca; lá, além de nós os
dois, da esposa e da sogra dele, estava o seu irmão Zeferino, maquinista, e com
cerca de 40 anos] “Ele [gerente] não quer pessoas, quer máquinas. Quando um
gajo der o tilt já sabe, é pegar nas malas e ir embora. É o que ele [João] diz: ‘Eu
tenho os compromissos com os clientes, quero lá saber dos teus problemas’. Ele
não compreende mais nada… Só lhe interessam os compromissos com os
clientes… Este mês tive de faltar, por causa de levar os meus filhos ao hospital. E
já sei, para ele é ‘Não me interessam os teus problemas, quero lá saber se morreu
alguém da tua família, quero é que venhas trabalhar’” (Declarações de Z.,
maquinista, em casa de um colega em comum).
Nestas circunstâncias, o “amor ao trabalho” é não só supérfluo como insensato. “Não
se pode estar a ganhar amor ao trabalho, se eu ganho amor ao trabalho, levo um
pontapé no cu e vou dar uma volta!”. Além disso, a lógica de reprodução do capital de
bondade e de confiança (vd. Sigaud, 1996) vê-se ultimamente ameaçada pelas
alterações estruturais do sistema económico e pelas mudanças na correlação de forças
interna à fábrica. O pressentimento de impessoalidade nas relações de dominação,
motivado pelas mudanças organizacionais na empresa (os “engenheiros”, as “fichas”, o
“controlo numérico”), pelas mudanças nas relações laborais (“contratos”, “entrevistas”) e
pela preponderância de entidades e mecanismos abstractos e anónimos (a “crise”, os
“juros”, “o centro de emprego disse-me para lá ir”, “reclamas, recebes uma cartinha de
lá”), contrasta com um estilo de dominação pessoal, fundado na honra e prestígio
paternalistas de “bom patrão” e na gratidão ou dívida moral dos operários. Foi o
desmantelamento deste mecanismo de conversão das graças patronais em gratidão
operária, desmantelamento simultâneo à formalização das relações laborais e à inovação
técnica do processo de trabalho em curso nos últimos anos, que acompanhou a ruptura
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
25
das afiliações com os homens e as coisas e para a erosão de sentimentos de pertença a
um determinado mundo da vida.
Esta tendência parece extravasar igualmente para o domínio das relações entre
companheiros de trabalho, enfraquecendo a coerção moral relativamente a noções de
pureza e perigo e deteriorando a convivência na fábrica (“não gosto de dar confiança ao
pessoal”, “há gente perigosa dentro da fábrica”, “só tão bem é a foder os outros”, “gosta
de estar sozinho, é mais fechadinho, (…) esse fica de lado porque quer, não quer dar
confiança, não vem para a nossa beira”). Por isso é que, quando ocorrem, estas
mudanças são frequentemente vividas como desonra e vergonha ou como despossessão
e enfraquecimento individual: por um lado, privação da “força moral”, como a coragem, a
frontalidade e outros sentimentos honrados afins, por outro lado, generalização do
“medo”, “do rabo no meio das pernas” e do “calar e comer”. O desmoronamento das
obrigações morais e da interdependência entre patrões, operários e os actos de trabalho,
ameaça a reprodução das virtudes, a ocultação dos interesses económicos de patrões e
operários (realizada pela sua transformação em relações de dependência e coerção
recíprocas), e a preservação do estatuto e prestígio pessoais apoiados nessa economia
da grandeza artística e masculina.
A perda de “amor ao trabalho”, ou a redução do trabalho ao estatuto de simples
expediente de sobrevivência, é vivida como uma violência contra si mesmo porquanto
representa a cessação de uma maneira de fazer que é também e sobretudo uma maneira
de ser. A conivência afectiva e sensorial entre espaço fabril e trabalhador-em-acção é
desarticulada por mudanças objectivas na organização do trabalho, nas formas
interpessoais, e sistema de oportunidades e constrangimentos económicos e culturais e
passa a constituir, tanto para aqueles que são colocados numa relação puramente
oportunista com o trabalho (“até me orientar”, “até arranjar melhor”, “quero é meter umas
massas ao bolso”), como para aqueles que são percebidos como não mais possuindo as
prerrogativas necessárias para realizarem plenamente esse envolvimento (“somos postos
de lado”), uma relação impessoalizada e geradora de sofrimento pessoal.
A ambiguidade e contradição manifestas no “gosto pelo trabalho” devem-se menos à
ignorância da exploração e dominação do que à sua vinculação a condições objectivas
de produção e conservação da grandeza do estatuto de “artista” que são elas próprias
contraditórias. A mudança de uma oficina “debaixo da casa” para uma fábrica “moderna”,
oferecendo condições ambientais inegavelmente mais qualificadas, é todavia descrita,
por um marceneiro, como equivalendo a “perder a liberdade”. “Era a convivência que eu
tinha, tinha a liberdade toda, fui para ali, vamos supor que eu perdi a liberdade (…), é
uma coisa fria, estava ali, por exemplo, quatro horas que eu ia para lá para mim
Bruno Monteiro
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representavam seis…” (T., marceneiro, 32 anos, a trabalhar desde os 12). As antinomias
do “gosto” fazem com que seja possível preferirmos um trabalho mais duro ou um
ambiente mais hostil que assegure o “valor” do operário, economicamente na forma de
uma “ordenado de homem” (nunca um “meio ordenado”) e simbolicamente como
contínua restituição da integridade pessoal e afirmação colectiva da “arte”.
“Eu cansava-me muito mais, trabalhava muito mais e era muito mais prejudicial à
saúde onde eu trabalhava do que agora, mas eu gostava mais de trabalhar onde
trabalhava, percebes? Porque eu fazia coisas… fazia coisas com as mãos. Eu
trabalhava… eu trabalhava a madeira com as mãos e hoje não, eu trabalho a
madeira com as máquinas, é completamente diferente, percebes? A gente faz as
coisas na máquina e antes eu fazia muitas coisas com as mãos, sabia o que era
trabalhar com uma garlopa ou com um gaipira ou com um raspador ou com o
martelo ou… essas coisas todas e, e lá não, lá a gente faz o trabalho nas máquinas
e as máquinas, máquinas, é tudo máquinas, percebes? Dava-me mais gozo
trabalhar como eu trabalhava do que trabalhar como trabalho agora, mas
reconheço que para a saúde ah… que é muito melhor trabalhar assim, muito
melhor…” (M., maquinista, 44 anos, a trabalhar desde os 12 anos).
A introdução de um regime de fábrica de novo tipo, quando ocorre a precarização
económica e social do operariado, vem perturbar as tradicionais “modalidades de
constituição da estima de si” dos operários (Pialoux, 1996: 14), fortemente apoiados na
auto-suficiência moral e física (“não gosto de me vergar ao patrão”, “enquanto tiver força,
não me falta onde trabalhar”, “sei bem o que valho como artista”) e relacionadas com
variadas formas de resistência às coacções produtivistas que procedem da hierarquia
administrativa e da cadência do processo de trabalho. Em resultado das transformações
das condições dentro e fora da fábrica, reduzem-se as margens de manobra que
permitiam o surgimento tanto dessas maneiras visíveis e invisíveis de desafiar e pôr em
causa a dominação, como dos rituais operários de sociabilidade e de actualização dos
recursos identitários fundamentais ao nível individual e colectivo enquanto fundamentais
qualidades humanas: a “força física”, o álcool, o “orgulho”, a “responsabilidade” enquanto
obrigação e garantia de virtudes, a “vaidade” e o “gosto” no trabalho “bem feito”, a
“pranta”. A manutenção da imagem de si e a defesa contra a desumanização do trabalho
industrial (“não somos pretos”, “não somos bestas de carga”) são comprometidas e,
dessa maneira, acrescida a probabilidade do trabalho ser cada vez mais experimentado
sob o registo da ofensa, da desmotivação e da desilusão. O sentido de si e a auto-estima
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
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individuais são irremediavelmente afectados na medida em que são confrontados com
situações objectivas que denegam e vilipendiam o valor dos seus portadores (“a gente
sente-se acabado”) ou invalidam as possibilidades de realização da “necessidade
existencial” (Pollak e Heinich, 1986: 3) de conferir coerência e continuidade a uma
história pessoal, preservando-a e reafirmando-a no meio de um momento de ruptura com
o mundo habitual.
4. A CONTESTAÇÃO PELO CORPO. UMA INVESTIGAÇÃO SOCIOLÓGICA DA DOR COMO
TRANSCRIÇÃO OCULTA.
Estes operários do mobiliário reportam-se às dimensões tecnológica e organizacional das
mudanças verificadas nas fábricas para salientarem as implicações dessa transformação
na vivência quotidiana das relações sociais na produção e para evidenciarem as suas
repercussões emocionais e viscerais, esforçando-se, neste caso, para pôr em palavras
uma experiência geralmente inefável. Os processos de precarização social do
operariado, especialmente dos segmentos entretanto submetidos a uma maior usura do
capital corporal e incorporado (“é uma questão de força, energia, porque as pessoas mais
velhas já começam a ter problemas”) e colocados perante a desvalorização,
desadequação ou impossível reconversão dos esquemas de acção, percepção e
apreciação do universo fabril (“não evoluiu, ficou sempre naquilo, bloqueou”, “nem todas
têm a mesma capacidade para acompanharem a mudança”), inibem, dificultam ou
impedem o acesso a formas subjectivas socialmente mediadas e actualizadas que são
reconhecidas como confirmatórias da dignidade viril e oficinal (“ser alguém”).
Este processo torna manifesto o modo como “a formação do sentimento, da
consciência e do hábito social dos indivíduos” é relacionada com as estruturas sociais e o
nível de integração social (Elias, 2004: 255). A desvalorização objectiva do “valor” dos
operários é interiorizada e vivida em termos de contínua inferiorização social e da perda
das possibilidades de afirmação de si. A intensificação dos ritmos e da disciplina no
processo de trabalho (“colocou-lhe tempos”, “é aquela pressão, ‘vou-te pressionar, vou-te
apertar, vou berrar contigo, vou-te chamar nomes!’”) juntamente com a gradual
amplificação da dissonância existente entre o espaço das posições e o espaço das
disposições (“ele não desenvolve, bloqueou, foram muitos anos a fazer o mesmo”) geram
uma situação em que a sensibilidade humana colapsa para dentro de uma forma
empobrecida de existência. A “complicação da vida” surge por força do contacto reiterado
com “terrenos de negação que persistem fisiologicamente através de uma experiência
constante de dor e tensão” (Charlesworth, 2007: 13). O “medo” e a angústia ampliados a
todos os pequenos nadas da vida, a incessante vigilância sobre a dureza e a hostilidade
Bruno Monteiro
28
do meio circundante (“ficava logo preocupado”) ou, então, a busca de des-absorção e
desimplicação relativamente a uma realidade impositiva (“até parece que não quer
saber”), estão relacionados com a desestruturação da existência e a deterioração da
relação com o mundo dos agentes sociais colocados em determinadas situações sociais
(“mudou para um sistema diferente (…) e dizem que o homem não dava rendimento”).
Da submissão a uma experiência progressiva de despossessão, que inverte o rito de
instituição e a investidura “como homem e como artista”, outrora realizado ao longo da
trajectória biográfica, é salientada a natureza de despojamento, insulto e conspurcação
que ela assume para os operários (“cagar na cara a um homem”, “correu-nos como
cães”, “usa-nos como chiclas”, “calca os empregados”). Ao impedir a manutenção e
reprodução dos modos de apropriação mimética, de aquisição pessoal e de incorporação
física do universo de virtudes que esses mesmos trabalhadores representam em forma
viva, o “novo sistema de fazer móveis” define os contornos de uma situação de privação.
Pela implosão destas modalidades práticas e ante-predicativas da ética, estética e
técnica sensualmente condensadas na carne dos trabalhadores, que são constitutivas do
quotidiano operário e quotidianamente re-constituídas, a mediação carnal da existência
torna-se objecto de experiência para o sujeito que ela mesma fundamenta, objectifica-se,
de maneira que o corpo constitui o nexo pelo qual se revela e em que se inscreve a
vivência da negação e frustração económica e simbólico-cultural de um determinado
grupo social.
“Hoje para dar, tem de ser bem espremido” (N., maquinista, 47 anos). Para “espremer
o lucro” é preciso, simultaneamente, elevar o nível de intolerância à superfluidade e ao
“desperdício” e intensificar o ritmo de trabalho, o “andamento”. Este “novo sistema de
gestão” e este “novo sistema de fazer obra” adquire uma concreção que implica
integralmente, “a nível psicológico e a nível físico”, os agentes que neles participam. O
advento dessa “meia ditadura” ao chão da fábrica (na expressão usada por R.,
marceneiro, 36 anos, a trabalhar desde os 14) representou também a imposição de
novas “regras sem lógica” envolvidas no discurso da maior eficiência e racionalidade do
processo de trabalho. Estas novas modalidades de enquadramento dos trabalhadores
revelam a mesma violência das relações de poder paternalistas (“o patrão anda lá
sempre a berrar e a humilhar”), mas solicitam uma inédita rede de compulsões inspiradas
pelo rigorismo e pelo cálculo. A transição mais ou menos súbita para novas formas de
gestão da mão-de-obra e de organização da produção compreende “diferenças que
muitas pessoas sentem e vêem” no “convívio” e no “ambiente de trabalho”, em casa
(“neste momento não tenho vida nem para mim, nem para os meus amigos, namorada,
família, não tenho tempo para nada”) e nos cafés (“ninguém me atura”) - mas também no
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
29
próprio corpo e mente (“cansaço”, “é à base do suor das pessoas”, “ataca muito o
psicológico”).
“Ó pá, cada vez mais empresas estão a fechar, a reduzir pessoal, a reduzir
ordenados, ah… devido a uma quebra da produção que houve, fala-se numa
quebra de mais de metade… Pela experiência que tenho, pelo dia-a-dia e porque
também vou falando com outras pessoas, ah… cada vez isso começa a ser com
mais força. E aquilo que nos está a acontecer [na Empresa K] é a redução do
horário e cada vez estamos sujeitos a um stress, a uma pressão maior, não é?
Porque a procura [de emprego] aumenta quando há mais desemprego, então isto
leva a que as pessoas novas que entram tenham ordenados mais baixos e começa-
-se a notar uma pressão por parte da entidade. Não estou a falar por experiência
própria, mas é aquilo que oiço, por exemplo… Para o meu pai, para pessoas de
mais alguma idade, já começam a ter aquela pressão de dizer: ‘se não estás bem,
põe-te!’, ‘se queres ir embora, vai!’, ‘a porta de saída é aquela!’, e… e sempre esse
tipo de… e eu acho que cada vez vai ser pior. [Mas é assim para toda a gente, em
todo o lado?]
O desemprego para as pessoas que têm, em média, 50 anos está… está a mesmo
a aparecer, porquê? Porque essas pessoas não têm disponibilidade ou vida para
terem formações, para terem um curso, normalmente, rejeitam quando os patrões…
assim o querem, não é?, e então é mais um motivo que as pessoas dão para que
eles possam usar… Por exemplo, isso é muito fácil, começam [os patrões],
começam ‘ah, você não está disposto a fazer um esforço pela empresa, nós
estamos aqui a tentar ajudá-lo… com a sua formação e para o seu futuro’, mas a
gente sabe que não é nada… Se é vantajoso para uma empresa que esteja, por
exemplo, certificada, dizer que os empregados estão formados nisto ou naquilo,
para estatísticas e não sei quê, isso começa a acontecer, não é? Mas uma pessoa
com cinquenta anos, que trabalhe, por exemplo, oito horas por dia, ou seja dez ou
seja aquilo que for, que chegue a casa é claro que não tem aquela disponibilidade
de ir para uma formação… Eu vou e custa-me, não é?, uma pessoa chega a casa
às oito horas, nem janta, é tomar banho, um gajo vai directo, sai de lá às onze, é
um bocado complicado! E fazer isso uma semana aguenta-se, uma ou duas
semanas, agora quando é meses, meses seguidos, faz-se uma formação de 90
horas e dá quase três meses. Aquilo é uma rotina, é uma rotina que tu… É possível
as pessoas conseguirem, mas vão ter que tirar tempo noutros sítios, vão ter que…
Outras pessoas pagam por causa desse desgaste, desse stress. Aliás nós
Bruno Monteiro
30
tínhamos um caso lá na empresa que… um homem tinha cinquenta anos e o stress
dele era tal… que andava sempre stressado e então… era o mundo a fugir-lhe
pelas mãos e ele a ficar cada vez mais… a ficar mais desgastado e… aconteceu
essa situação que o meu gerente mandou-o embora, não é?, mesmo por causa
disso. [Podes explicar-me essa história melhor?]
O senhor chamava-se senhor L., ele veio embora de uma empresa lá vizinha,
estava lá há trinta anos e… por esse motivo, por causa da idade, de ele trabalhar lá
há muitos anos, começaram a… ele depois começar a ter lá alguns problemas, ele
começou a faltar, mas… Foram as pessoas que começaram a pressioná-lo, por
exemplo, pô-lo a fazer outras funções e… funções que, normalmente, são os
aprendizes que fazem e, isso é duro, não é?, para uma pessoa quando tem 30
anos de uma casa e que está num patamar que tenha o seu ordenado, que tenha
as suas coisas, que tenha tudo e comece cada vez mais a diminuir, a cortar… E
esse homem tomou a atitude de sair, e veio para a nossa beira. Estava lá bem, mas
depois com os problemas que ele começou a ter… [Que tipo de problemas?]
Do género, ele começou… a estar sempre preocupado porque nós não
trabalhamos pela folha, trabalhamos à peça. Ele estava sempre a fazer as contas e,
e… a ver quanto este ganha, quanto aquele ganha, quando ele ia receber, estava
sempre preocupado com as horas, com o transporte, com o almoço, estava sempre
a tentar negociar comigo, se eu… dava mais isto, mais aquilo, ‘ah, se me ajudasse
aqui, se me ajudasse ali’, eu dentro daquilo que era possível tentava ajudá-lo, não
é? Até mesmo os próprios funcionários tentavam ajudar, mas ele pensava que
estava toda a gente contra ele, que fui eu ou que foi o gerente ou… As pessoas
tentavam ajudá-lo, diziam-lhe as coisas, ‘faça assim…’, tentavam explicar, e ele:
‘não, eu faço assim porque acho melhor!’, e não era nada melhor, então começou a
ter problemas. Começou bem mas depois começou a complicar para ele. Por causa
desse tipo de situações. [Mas porquê?]
Não consigo perceber! Ele… penso que aquilo que ele começou a pensar que
estava a funcionar mal foi por uma situação… Normalmente, as pessoas tinham
direito a dois, três dias de férias à escolha e esses dias nunca foram descontados e
na altura foram, então… mas ele estava lá há pouco tempo e não sabia… então a
partir daí começou ‘já estão a começar, já estão a fazer isto, já estão a fazer aquilo’,
e… (…) E assim com pequenos conflitos, e acho que só foi mau para ele, porque
ele estava ali numa empresa… uma empresa normal, as coisas estão todas legais,
tinha a sua própria roupa, tinha… tinha tudo. Almoçava lá e tudo! Pronto, começou
a complicar-se a ele próprio… Começou-se a falar que ele tomava medicamentos e
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
31
tudo. Começou-se a falar não! Depois descobrimos que ele tomava medicamentos
para… porque teve um esgotamento e depois… Ele estava constantemente
alterado porque… ele, às vezes, parava com a medicação um dia ou dois e… e eu
dava com ele completamente parado, a falar sozinho, mesmo a… mesmo com
problemas. Acho que para bem dele, e para nosso bem que estávamos ali a tentar
ajudá-lo e ainda estávamos a ser acusados… tivemos que pôr um ponto final nisso.
[O que é que foi feito?]
O senhor A. trabalha à maneira dele, trabalha mal, mas… mas é assim, é um
homem que desde que veio para a minha secção tem melhorado… eu costumo
dizer isso a ele e ele concorda… parece-me que não é preciso de fazer pressão…
É um homem que está ali, está a fazer um trabalho de ajudante, desenrasca. Se eu
detecto algum problema, ele fica logo preocupado, se foi ele, se não foi, e… porque
ele é outra pessoa do género, passa a vida preocupado com tudo, se acontecer
alguma coisa de mal tem medo que ele [seja] o primeiro a ser… a ser prejudicado.
(…) Antes só chorava, isso é uma coisa que não pode acontecer, não é?, um
homem não pode fraquejar, nem chorar em frente a um superior que seja mais
fodido… que tenha uma forma de trabalhar diferente da minha, não é? Porque é
assim, se calhar, ele dantes chorava de nervos, mas para a outra pessoa [refere-se
ao outro encarregado], que eu conheço bem, aquilo era uma brincadeira, percebes?
Pôr o homem a chorar era uma brincadeira, coisas que…é impensável da minha
parte fazer isso. [Como é que isso aconteceu?]
Ele foi para lá [para a secção de produção] porque chegou a um ponto em que eles
iam… em que o meu superior começou a pensar e colocou-lhe tempos e tudo para
fazer ele desistir… Uma solução era ele ir-se embora, mas como foi preciso um
ajudante de maquinista na minha secção, eu então, por conhecer o homem e por
ter algum respeito por ele, pedi para que ele viesse para a minha beira. Porque ele
ia lá, de vez em quando, ajudar. Ele como já tinha um conhecimento mínimo
daquele trabalho e é um trabalho fácil, que é de moço, ah… lá foi desenrascando.
Ele vinha embora, se não fosse eu a falar para ele ficar… Porque ele era mais lento
do que os outros e… estava a não dar produção… (…) E então, e assim, qual era a
solução, era ele [o encarregado] começar a descobrir as partes piores [na secção],
então como o homem se mantinha sem mudar, há que usar outra táctica que é a
pressão, ‘vou-te pressionar, vou-te apertar, vou berrar contigo, vou-te chamar
nomes!’, que isso aconteceu várias vezes, coisa que eu nunca fiz, nem à minha
frente admito que se faça… E foi por aí, depois foram acusá-lo ao gerente, o
gerente, claro, ficou do lado do encarregado. E as coisas começaram-se a
Bruno Monteiro
32
complicar, ao homem foram-lhe postos tempos, o homem começou a bloquear,
chorava e… até mesmo… chegou-se a dizer que ia embora, e ele próprio chegou a
dizer que ia embora. E é como eu digo, como eu tenho algum respeito já por ele,
disse: ‘vamos experimentar pô-lo à minha beira, vamos ver como ele se porta,
senão der, não dá…’ Ele agora anda ali muito mais bem-disposto. É um homem,
por exemplo, que deixou de ter problemas das tensões. Contou-me isso, que
nestes últimos sete meses, tem tido um controlo normal. Antes tinha problemas de
tensões. Tomava medicação e tudo, por causa disso. Ele vai, semanalmente, ao
posto médico fazer, fazer o controlo. E isto foi dito por ele e pelo filho dele que
trabalha lá, connosco.
Ele, um dia chegou lá, foi quando foi a altura dos aumentos, foi agora em Maio ou
Abril, chegou lá e disse-me: ‘olhe, é assim, eu tive um aumento bom, não sei se o
chefe teve alguma coisa a ver com isto, mas eu também fico contente por duas
coisas, primeiro porque fui aumentado, e depois porque ainda hoje foi ao médico e
o médico deu-me os parabéns, porque eu tenho as tensões boas, e isto tem a ver
consigo!’, prontos. Ele deu a opinião dele sobre aquela situação, que achava que
eu tinha alguma coisa a ver com isso. Não sei se é verdade, pode ser, ajuda
sempre, mas…
E até uma vez, uma senhora veio ter comigo, que era a mulher dele e eu nem
sequer fazia ideia, e ela veio-me agradecer… Veio-me dizer que o marido não tem
nada a ver, que… que está sempre a falar bem de mim e que… e que está mais
alegre, e o caralho, e queria-me agradecer porque antes em casa ninguém o
aturava, ele estava sempre a chorar em casa, sempre… Que agora já está uma
pessoa diferente. Que ele… está muito mais aberto para ela, mais amigável, está
muito mais calmo, muito mais… muito bem-disposto. Ele é como outra pessoa,
quando não tem problemas tudo lhe corre bem, não é?, quando lhe corre mal é
porque tem algum problema. E foi isso, foi isso. Que inclusive, agora, fui convidado
para o casamento do filho, nem estava à espera… [risos] ele, por acaso, trabalha
comigo e tudo, mas o filho dele está numa secção que não é a minha, mas
convidou-me a mim, ao P. [outro encarregado] e ao encarregado dele não, que era
o encarregado do pai, percebes?” (B., 25 anos, encarregado, trabalha desde os 14)
O homem que “chora de nervos” demonstra a presença imanente de uma relação
diminuída com as possibilidades de resposta das solicitações quotidianas da existência e
a improbabilidade de dominação sobre o tempo, especialmente a incapacidade de
antecipação e planeamento do futuro. Em sentido contrário, a recuperação das condições
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
33
que tornam viável o “respeito” em relação a si próprio e plausível a exigência de
“respeito” dos outros perante si, possibilita a reabilitação da “boa disposição”, da “calma”,
da “abertura”, e de uma relação “amigável” com a existência (“andar de bem com a vida”).
As “tensões” constituem um índice pelo qual se avalia o grau de interiorização de tensões
originadas pelas assimetrias sociais, pelo estado das relações de poder ou pelas
discrepâncias surgidas de desajustamentos estruturais produzidos ao longo de uma
trajectória singular ou colectiva. “As circunstâncias económicas e sociais afectam a saúde
através dos efeitos fisiológicos dos seus significados emocionais e sociais e através de
efeitos directos das circunstâncias materiais” (Marmot e Wilkinson, 2001: 1233). O
enfraquecimento das afiliações sociais associado à privação relativa, resultante dos
constrangimentos materiais decorrentes da posição subalterna ocupada na estrutura
socioeconómica e da experiência de subordinação ou despromoção na hierarquia de
estatuto social, “mete-se debaixo da pele” (idem: ibidem).
A penibilidade das condições de trabalho e a degradação do convívio na fábrica, a
consciência do desgaste prematuro do corpo e a antecipação do envelhecimento (“a
maior parte deles [polidores] é isso, 45, 50, 55 anos eles estão todos cancerosos”, “a arte
que nós temos sei que daqui a meia dúzia de anos vai dar-nos cabo da saúde”), a
vulnerabilização objectiva e subjectiva dos operários (“ninguém dá valor a um homem”,
“um gajo desanima”), tudo isto são factores que influem no reforço do sentimento de
destituição e de impotência que irradia no conjunto das suas condições de existência.
“Nós temos que ganhar dinheiro, tenho as contas para pagar, tenho o carro, tenho a
casa, eu para mudar de ares não sei se vai ganhar um ordenado…”. Os “compromissos”,
as “despesas” e os “encargos” associado à aquisição de casa e viatura próprias, os
“gastos” com a educação dos filhos e com as “coisinhas que se vão comprando para se
ter” acabam por determinar uma atitude de consentimento não consentido (“que remédio
aceitarem”) e frequentemente vivido perplexa ou indignadamente.
Embora amplificado segundo as linhas da morfologia interna do grupo operário, a
rarefacção e fragilização na generalidade das posições operárias corresponde a
experiências pessoais de inferioridade e descrédito. Nesta conjuntura, a privação de
acesso às formas reconhecidas de ser surge associada à concentração cumulativa de
características pessoais negativamente percebidas (especialmente traços linguísticos,
aparência física, consumos alimentares). Ambas são correlativas da situação objectiva de
privação em termos de recursos materiais e simbólicos (“ter”) e da ocupação de uma
posição na estrutura socioprofissional (“estar no pó”, “trabalhar no serrim”) que inviabiliza
ou inibe a solicitação de “respeito”. Nestas condições, é supérfluo o investimento em
formas interpessoais de distinção (“não vale a pena estar com grandes ambições”), que
Bruno Monteiro
34
só podem ser vistas como actos de ostentação e de “sair fora das medidas” (“ter a mania
das grandezas”, “pensa que tem o rei na barriga”, “é um armante”), e diminuem as
possibilidades de adquirir reconhecimento social (“ser alguém na vida”). É toda uma
vivência empobrecida relacional e pessoalmente que envolve estes agentes (“isto não é
para quem quer, é para quem pode”).
Para numerosos operários, esta experiência assume os contornos de uma
redução ontológica ou uma amputação das significâncias sociais, quer dizer, emerge
como intuição não-explícita e não-codificada da posse e possibilidade de consumar
gestos e posturas que constituem, simultaneamente, uma indicação da “evidência
[markedness]” possuída e uma “pretensão” relativamente ao “valor” e ao
“reconhecimento”. “Através dos padrões da sua incorporação, as pessoas irradiam
significâncias e exercitam o seu valor diferencial” (Charlesworth et al., 2007: 57).
Engendrada pela precarização das posições sociais do operariado, esta é uma realidade
que é frequentemente descrita em termos de empobrecimento, irrealização e perda na
relação individual com o trabalho, com o futuro, com a intersubjectividade e com a
existência (“sem motivação”, “não ter ânimo” ou “andar desanimado”, “não guardam
respeito”, “não reconhecem o valor”, “isto agora não é futuro para ninguém”, “perdi o
amor aos patrões”, “perder o gosto”). Promove-se, paralelamente, uma reinvenção em
termos exclusivamente utilitaristas desses relacionamentos (“a maioria não trabalha por
gosto, só tá aí porque tem que trabalhar”, “hoje é só o dinheiro, querem lá saber, é bota
pá frente”). “Estou desanimado porque não dão valor, não dão valor à gente” (A., 63
anos, maquinista, antigo marceneiro). Estes indícios de desagregação das afiliações
pessoais e das formas interpessoais de decência colectiva e disposições solidarísticas
denunciam uma transformação, quer nos relacionamentos entre os agentes sociais
economicamente inseguros, quer no modo como eles se vêem a si mesmos, que não
pode deixar de ser vivida como particularmente violenta e humilhante.
O exercício de relatar a diminuição da auto-estima e a dissolução identitária através
de “idiomas locais de sofrimento”, na forma de emoções, angústias e (pre-)sentimentos,
constitui uma manifestação e um modo de “articular o sofrimento social e narrar
transformações pessoais e colectivas” (Kirmayer et al., 2000: 613). Precisamente porque
todos “estes acontecimentos danosos não estão codificados como conhecimento
declarativo mas antes ‘inscritos’ no corpo, ou então, constituídos no decurso de relações
sociais, papeis, práticas e instituições persistentes” (idem: ibidem) é que as formas de
violência exercidas sobre a continuidade pessoal e colectiva do operariado são anónimas
e impessoais aos olhos dos operários e a sua verbalização é difícil, hesitante e precária.
É desta realidade que surge a necessidade e a justificação da inclusão no programa de
A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário
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investigação científica da sociologia das classes sociais a observação, descrição e
explicação das irradiações e expressões corporais dos operários.
BRUNO MONTEIRO
Sociólogo, investigador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto e colaborador
do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Actualmente,
encontra-se a concluir o seu doutoramento sobre “a incorporação da vocação militante”,
ou seja, os modos socialmente diferenciados como, ao longo da segunda metade do
século XX, indivíduos provenientes de distintos grupos sociais – operariado,
“intelectualidade” e burguesia” – adquiriram uma propensão e uma aptidão a intervir
politicamente.
Contacto: [email protected]
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e-cadernos CES, 10, 2010: 37-69
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A CULTURA POPULAR PORTUGUESA E O DISCURSO DO PODER: PRÁTICAS E
REPRESENTAÇÕES DO MOLICEIRO
CLARA SARMENTO
CENTRO DE ESTUDOS INTERCULTURAIS
INSTITUTO SUPERIOR DE CONTABILIDADE E ADMINISTRAÇÃO, INSTITUTO POLITÉCNICO DO PORTO
Resumo: O presente ensaio estuda um objecto e o discurso por ele evocado, enquanto representação, invenção e re-invenção da cultura popular de uma região portuguesa. Contudo, pretende também ver através do objecto, isto é, “atravessar a [sua] opacidade inoportuna”, tal como propõe Michel Foucault em A Arqueologia do Saber. Esse objecto é o barco moliceiro da Ria de Aveiro que, mais do que um caso de tradição versus modernidade, constitui uma representação da identidade cultural de uma comunidade intimamente ligada ao ecossistema lagunar. Os painéis do barco moliceiro são assim representações simbólicas intersemióticas dos valores, práticas e representações partilhadas pela comunidade local. Os textos icónicos e escritos patentes em cada barco são produto de uma rede de circunstâncias políticas, ideológicas, sociais e económicas, dificilmente reconhecidas mesmo por aqueles que desenham, pintam e escrevem (e vivem) sob a sua influência. Ao longo do século XX, o moliceiro e seus painéis participaram numa complexa dialéctica entre as representações do discurso oficial e a sua real função social, económica e simbólica, gerando todo um imaginário histórico, todo um “inventário” (cf. Gramsci) que motivou, contextualizou e sustentou esta forma única de arte popular. Palavras-chave: Ria de Aveiro, barco moliceiro, cultura popular, poder, discurso, representação.
1. O BARCO MOLICEIRO: MEIO-AMBIENTE, PRÁTICAS E METODOLOGIAS
O barco moliceiro tem como campo de acção a Ria de Aveiro, amplo estuário do rio
Vouga que se estende ao longo da Beira Litoral portuguesa, entre Espinho e o Cabo
Mondego ou, em termos mais amplos, numa zona geográfica situada a sul do Porto e a
norte de Coimbra.1 A área ocupada pelo estuário é de aproximadamente 66 quilómetros
1 Com quarenta e sete quilómetros de extensão, a Ria de Aveiro atinge uma largura máxima de sete
quilómetros, apesar do seu progressivo assoreamento. A profundidade varia entre um e dois metros e pode elevar-se nas cales até quatro a seis metros. Abrange uma superfície líquida calculada em seis mil hectares, que se ramifica pelos braços principais de Ovar (em direcção ao Norte), Mira (voltado a Sul), Murtosa (a
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quadrados, na maré baixa, e de 83 quilómetros quadrados, na maré alta, o que faz da Ria
de Aveiro o maior estuário lagunar costeiro do país. A laguna é separada e protegida do
Atlântico por uma extensa barreira arenosa, hoje em dia densamente populada, onde
coexistem o turismo sazonal, a pecuária e a agricultura.
De fundo plano e pequeno calado, o barco moliceiro é construído em madeira de
pinho. Apresenta bordos largos e baixos, quase à flor da água, e uma inconfundível proa
muito recurvada, em meia-lua, acabando numa ré também ligeiramente arqueada. Os
meios de propulsão tradicionais são a vela (de formato trapezoidal, em lona), a vara ou a
sirga. Hoje em dia, é frequente acrescentar-lhe um motor fora de bordo. Apesar de as
primeiras referências documentadas sobre o barco moliceiro datarem da primeira metade
do século dezoito, isso não significa que os moliceiros não existissem anteriormente;
significa apenas que este artefacto popular e as práticas a ele associadas não haviam
sido até então reconhecidos pelas autoridades políticas e religiosas, i.e., letradas.
O barco moliceiro é o tipo de embarcação destinado à colheita e transporte da
vegetação da Ria de Aveiro, ocupação conhecida pelo termo popular de “apanha do
moliço” e serve também para o transporte de mercadorias, bens, pessoas e gado. O
“moliço”, nome vulgar que abrange, sem distinção de espécies, as plantas que
constituem a vegetação submersa da Ria, é utilizado como fertilizante na transformação
das dunas em terra de cultura, no contexto de uma agricultura de subsistência,
escassamente mecanizada, organizada em minifúndios familiares. Contudo, é importante
realçar que, acima de tudo, este tipo de barco foi concebido para um tipo de agricultura
praticado num ecossistema peculiar – a laguna – que é, ao mesmo tempo, rio e mar, terra
e água. Os moliceiros são ferramentas agrícolas, tal como o carro de bois ou a charrua.
Figura 1: Barco Moliceiro na Ria de Aveiro (2002).
Nordeste) e Vagos (a Sudeste). Além destes, existe uma infinidade de braços secundários em ligação com os rios Vouga e Águeda, formando um extenso labirinto com as suas ilhas, canais, valas e esteiros que penetram por toda a região.
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
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O termo moliceiro é também tradicionalmente associado àqueles que trabalham a
bordo da embarcação: o proprietário do barco e/ou um ou mais trabalhadores
assalariados (“camaradas”) e/ou um aprendiz (“moço”), organizados numa hierarquia
muito informal. O proprietário do barco tanto pode ser um agricultor a recolher algas para
as suas terras, como um vendedor profissional de moliço. No entanto, estamos
essencialmente a falar de uma população de camponeses pobres, obrigados a
complementar o seu rendimento com a pesca ocasional na Ria, a agricultura em pequena
escala e a criação de algum gado, juntamente com outras ocupações sazonais ou
temporárias. A maioria dos proprietários tem apenas um moliceiro, que geralmente troca
de dono diversas vezes durante as duas décadas de duração média do barco. Contudo,
sempre ocorreram excepções, como no caso dos pequenos e médios proprietários
agrícolas, que podiam manter o barco na sua posse indefinidamente, ou mesmo adquirir
até uma dezena de moliceiros, operados por assalariados. Aqueles que trabalhavam
directamente nos moliceiros faziam-no porém em condições de extrema precariedade.
Não surpreende, portanto, que a emigração maciça ocorrida na região durante as
décadas de 60 e 70 tenha levado consigo a maioria dos trabalhadores-moliceiros, o que
sentenciou o fim da indústria tradicional do moliço.
A função do moliceiro tem-se alterado profundamente nas últimas décadas. De
instrumento indispensável para a economia de toda a região, passou a ser uma simples
atracção turística, um símbolo a preservar consoante a boa vontade e as possibilidades
financeiras dos proprietários. A poluição, a evolução económica e a emigração afastaram
as pessoas deste estilo de vida peculiar. Os fertilizantes químicos substituíram as algas,
anteriormente usadas para a fertilização dos solos arenosos, a indústria do sal perdeu
grande parte da sua importância e as estradas tiraram o lugar do moliceiro como principal
meio de transporte das populações do litoral. Dos cerca de mil moliceiros registados na
Capitania do Porto de Aveiro em 1935, sobrevivem hoje menos de quatro dezenas. A
construção naval quase cessou, devido à grande vaga de emigração de finais de 60 e da
década de 70, mas a partir de meados da década de 80 os moliceiros ressurgiram como
símbolos culturais. As autarquias e outras entidades locais públicas e privadas estão a
encomendar, com uma frequência crescente, novos moliceiros aos artesãos
sobreviventes, para serem utilizados no turismo e em visitas guiadas pela Ria, para
exposição em museus locais e internacionais, ou para exibição pública num canal
aveirense, como exemplo de património cultural.2 A tradição do moliceiro não está
2 Contudo, a crise económica actual forçou as autoridades locais não só a cancelar ou a diminuir as
encomendas, mas também atrasou o pagamento de muitas delas. Durante o ano optimista de 1998 (o ano da Expo98) a Câmara Municipal de Aveiro encomendou cerca de 25 novos moliceiros, mas esse projecto está actualmente suspenso.
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destinada a desaparecer, pois a embarcação foi adaptada a uma nova realidade social e
económica, assegurando, assim, a sua sobrevivência e até eventual crescimento em
número. Caso contrário, se os moliceiros e seus proprietários tivessem persistido em
trabalhar apenas num tipo de actividade rural já obsoleta, a embarcação estaria
sentenciada a uma morte inevitável.
A característica mais original do moliceiro é o conjunto de quatro painéis distintos que
lhe adornam a proa e a popa, com pinturas características em cores vivas (azul, amarelo,
verde, vermelho, preto, branco), legendadas por uma frase escrita à mão. Os painéis da
proa acompanham a curvatura do “bico”, enquanto os da popa apresentam-se sob uma
forma mais ao menos rectangular. Ambos possuem uma cercadura brilhante de várias
faixas coloridas, constituídas por flores e figuras geométricas. Existe uma grande
variedade nos temas expostos nos painéis de um moliceiro, em estilos que vão desde o
traço mais tosco e grosseiro, até imagens de cuidada elaboração. O decorador, ao
mesmo tempo construtor ou “entendido” na arte, chamado para o efeito, realiza as
pinturas espontaneamente ou por sugestão dos proprietários das embarcações. Nesse
caso, alvitra-se um tema ou um mote predilecto, que o decorador ilustra consoante a sua
imaginação e talento.
O estudo de mais de quinhentos painéis, registados durante períodos regulares de
trabalho de campo entre 1988 e 2004, confirmou a existência de cinco grupos principais
de imagens e inscrições, com várias subcategorias: Jocosos (eróticos, sátira às
instituições, a figuras típicas e ao trabalho); Religiosos (cristológicos, marianos,
hagiográficos e votivos); Sociais (retratando o trabalho; varinas e varinos; mestres
moliceiros, barqueiros e pintores; apelos ecológicos e de celebração do património; festas
e cerimónias; declarações e sentenças); Históricos (imagens de monarcas e personagens
da História; Descobrimentos; escritores; soldados e cavaleiros); e Lúdicos (com
referências a contos populares, televisão, cinema e futebol).
Figura 2: Painéis de Moliceiros (finais da década de 90).
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
41
As comunidades isoladas e dispersas, como a dos agricultores-moliceiros,
desenvolvem geralmente os seus próprios códigos, mitos, heróis e padrões sociais. No
presente caso, essas comunidades criaram um objecto cultural distinto, que usa códigos
pictóricos e linguísticos em simultâneo, sistemas semióticos coexistentes que criam um
fenómeno sem paralelo na cultura portuguesa. Este fenómeno simboliza tanto o confronto
como o compromisso entre a comunidade e o mundo exterior. Neste caso, “uma
população que pinta os seus barcos e os lança nas águas de uma lagoa, cria um álbum
de imagens através do qual expressa a sua visão do mundo” (Rivals, 1988: 254).
A primeira etapa da pesquisa para esta investigação consistiu num trabalho de
campo participativo, levado a cabo na Ria de Aveiro entre 1988 e 2004. Procedeu-se ao
registo fotográfico das embarcações e realizaram-se entrevistas com os construtores e
pintores sobreviventes, bem como com antigos operários da indústria artesanal do
moliço. As imagens dos barcos e das práticas envolventes anteriores aos anos 80 foram
obtidas em colecções e museus públicos e privados, nacionais e locais. A etapa seguinte
consistiu na pesquisa sobre as embarcações em museus, arquivos, jornais, paróquias,
câmaras municipais e outras instituições relevantes, nacionais e locais. O principal foco
desta pesquisa incidiu na iconografia, documentação turística, mapas, jornais e
regulamentos locais, livros escolares e literatura popular. Os Livros de Registo de
Embarcações – uma colecção de livros manuscritos existente nos arquivos da Capitania
do Porto de Aveiro que cobre praticamente todo o século vinte (entre 1914 e 1998) –
tiveram grande importância para o projecto, tal como teve a correspondência oficial entre
as autoridades locais e o poder central, durante o período compreendido entre a década
de 40 e 1974, preservada nos Arquivos Histórico e Municipal de Aveiro. Além destas
fontes, também os vários trabalhos publicados a partir de finais do século dezanove,
relacionados com o moliceiro e a Ria de Aveiro, foram avaliados criticamente.
2. CONDICIONANTES HISTÓRICAS E IDEOLÓGICAS DA CULTURA POPULAR PORTUGUESA
Entre Maio de 1933 e Abril de 1974, Portugal viveu sob um regime autoritário conhecido
como Estado Novo, inspirado nas ideologias fascistas e chefiado por António de Oliveira
Salazar (1889-1970). Este regime substituiu a sequência desordenada de governos que
sucederam à Primeira República de Outubro de 1910 e a uma breve ditadura militar,
entre 1926 e 1933.
Oficialmente neutro durante a II Guerra Mundial, apesar das óbvias simpatias
fascistas, o Portugal de Salazar empenhava-se na salvaguarda das colónias (o que
resultou numa trágica guerra colonial entre 1961 e 1974) e na neutralização de qualquer
tipo de oposição em território nacional. A tentativa de Salazar de organizar a nação, em
Clara Sarmento
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termos espaciais, ideológicos e sociais, torna-se evidente em três momentos diferentes
mas complementares: na constante descrição laudatória das províncias metropolitanas e
ultramarinas e suas características vagas, artificiais mas distintivas; na generalização das
crenças e costumes do colectivo “povo”; na rigorosa distribuição, divisão e hierarquização
dos papéis sociais. Nada é deixado ao livre arbítrio do actor social, tudo é
predeterminado e aceite com alegria singela, espírito de sacrifício e honrada resignação.
As ideologias autoritárias tendem a ser simplificadas de forma a transmitir princípios
claros e inquestionáveis, em que o exercício do poder é apresentado como algo natural e
legítimo, e qualquer desejo de resistência como sendo fútil e inútil. De acordo com os
princípios autoritários, o dever de obedecer é tão simples e inevitável como um fenómeno
natural; como tal, os discursos políticos ideologicamente orientados valem não tanto pelo
conteúdo concreto das suas ideias mas, sobretudo, pela sua função disciplinadora. É o
que se passa com a paradigmática alocução de Oliveira Salazar, durante as
comemorações do décimo aniversário da Revolução Nacional, em 26 de Maio de 1936,
quando define as “verdades indiscutíveis” estabelecidas pela sua nova ordem:
Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos restituir o
conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a
Pátria e a sua história; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não
discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu
dever (Mattoso, 1994: 291 ss).
Assim, “Deus”, “Pátria”, “Autoridade”, “Família”, “Trabalho”, velhas bandeiras dos
discursos político-ideológicos das direitas autoritárias e conservadoras, foram
transformados em dogmas do Estado Novo.
Apesar de a ideologia poder apresentar-se como um conjunto de ideias coerentes,
surge mais frequentemente como uma compilação de princípios dispersos, provenientes
do senso-comum, sob uma variedade de formas e representações. Por isso, vale a pena
levar a cabo um estudo específico das formas de organização cultural que mantêm o
mundo ideológico em movimento dentro de um determinado país, bem como examinar a
forma como tudo isto funciona na prática real. As práticas e textos da cultura popular
operam dentro daquilo a que Gramsci chama de compromisso de equilíbrio entre poder e
consentimento – por outras palavras, dentro da hegemonia. Todas as relações de
hegemonia são, necessariamente, educacionais e ocorrem entre os vários grupos que
constituem a sociedade. O Estado exige consentimento mas também educa no sentido
desse consentimento. É o grande educador, cujo principal objectivo (pelo menos, de
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
43
acordo com o seu discurso institucional) é criar uma civilização mais elevada e moldar a
cultura e os valores morais das massas populares, de acordo com a necessidade de
constante desenvolvimento da nação. O Estado, de acordo com Gramsci, é todo o
complexo de práticas e actividades teóricas que as classes dominantes utilizam, não
apenas para justificarem e manterem o seu poder, mas também para exercerem a sua
hegemonia e ganharem o consentimento das classes subalternas (Gramsci, 1971).
Como tal, os grupos dominados têm de ser persuadidos a aceitar que a sua
condição, as suas expectativas e dificuldades são inalteráveis e inevitáveis. Uma vez
convencidos de que nada pode ser feito para melhorar a sua situação, que permanecerá
eternamente imutável, as críticas e as aspirações dos grupos dominados acabarão
eventualmente por extinguir-se. Como afirma Pierre Bourdieu: “Toda a ordem
estabelecida tende a produzir (em graus muito diferentes e com meios muito diversos) a
naturalização da sua própria arbitrariedade” (1977: 164). Numa nação que deseja
regenerar e educar o espírito da época de acordo com essas verdades inquestionáveis, a
educação ideologicamente orientada, tanto impositiva como formativa e repressiva, é –
como veremos adiante – um dever sagrado de cada professor do sistema público de
ensino, um sistema estrategicamente purgado de todo e qualquer elemento subversivo
indesejado.
Durante os longos anos da ditadura, a cultura e as tradições portuguesas – genuínas,
ideologicamente orientadas pelo Estado Novo ou até inventadas – foram utilizadas para
inculcar no povo determinados valores e normas de comportamento, através da
reiteração, do exemplo e da instrução, de forma a enfrentar a ameaça de um mundo em
evolução. Estas práticas exploravam uma base ideológica artificial mas muito eficaz,
seleccionando um passado histórico conveniente ou um presente etnográfico. A cultura
popular tradicional, na sua forma “folclórica” ideal, era vista como o meio perfeito para o
Estado Novo reorganizar a sociedade. O resultado deste trabalho de domesticação,
denominado “folclore”, era extremamente útil para a estratégia ideológica do Estado
Novo. Esta estratégia discursiva seria alegadamente capaz de combater os perigos da
classe operária liberal e dos costumes urbanos com um modelo de celebração da vida
rural, que reduzia o conceito de “povo” a “camponês”, em que os lavradores, pescadores
ou artesãos eram os principais actores sociais. Esta estratégia redutiva era levada a cabo
com a colaboração voluntária dos etnógrafos próximos do regime que, nos anos 30 e 40,
não hesitaram em recorrer à apologia sistemática do primitivismo plebeu, do
analfabetismo, da humildade miserabilista e da docilidade bovina, como sendo as
características ideais do “bom povo português” (Silva, 1994: 112).
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A noção de “arte popular pura”, que caracterizava a vida quotidiana no ponto de vista
ingénuo e a-crítico dos etnógrafos do século dezanove, ia de encontro ao ideal de uma
nação rica em folclore e costumes pitorescos do regime de Salazar. A arte popular seria
uma forma de auto-celebração criada pelo “bom povo” – na sua maioria camponeses ou
pescadores profundamente religiosos, com vidas austeras e humildes. A exaltação do
artesanato, dos costumes tradicionais e dos meios de transporte rudimentares reflectia
um estilo de vida muito semelhante às condições de mera subsistência que o regime na
verdade proporcionava ao mundo rural português.
Durante o período do Estado Novo, formas de arte popular como os painéis do
moliceiro também faziam eco da mitologia oficial como consequência mais ou menos
directa da influência dos canais institucionais de educação e propaganda. Os
estereótipos ideologicamente orientados, enquanto parte da memória colectiva, eram
apropriados e reproduzidos pelas populações, que os adaptavam de acordo com a sua
experiência de vida e senso comum. No que à cultura do moliceiro diz respeito, o controlo
do Estado era exercido de forma quer directa quer indirecta: directamente, através da
supervisão, regulação, censura, manipulação e propaganda, principalmente por parte dos
representantes locais do poder central; e indirectamente, pela influência e ideologia do
ensino primário (universal e obrigatório) controlado pelo Estado.
Entre 1957 e 1964 – os anos mais repressivos do regime – até os painéis do
moliceiro, juntamente com a própria embarcação, tinham de ser registados (com
transcrição e descrição de frases e imagens) na Capitania local. Esta era uma forma
directa de controlo por parte do Estado, também usada para evitar mensagens
subversivas ou imagens chocantes em termos morais e políticos. Isto mostra como
qualquer veículo de comunicação e criatividade, incluindo a arte popular, era sujeito à
supervisão política e/ou à “censura oficial”, uma instituição que prevaleceu durante a
Segunda República e se manteve, sem interrupções, durante quase cinquenta anos,
entre Maio de 1926 e Abril de 1974.
Os coloridos moliceiros, excelentes símbolos do folclore local, inspiraram uma série
de eventos politicamente orientados, onde a cultura popular se transforma em
“entretenimento cultural” para consumo de um público externo, não-local. Os moliceiros
desde sempre haviam participado nos festivais religiosos populares ou “romarias”.
Inicialmente, serviam apenas de meio de transporte mas, nos anos 50, o seu papel
começou a mudar. Ao longo do século vinte, os artigos da imprensa local sobre as
festividades populares reflectiram as diversas (r)evoluções ideológicas, políticas e sociais
em curso. Durante as primeiras décadas do século, e ainda sob a influência dos
Românticos, emergiu um fascínio genuíno pela “beleza e ingenuidade” da cultura popular
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
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portuguesa. Com a implantação da República em 1910, e durante o período de
instabilidade política que se lhe sucedeu, as facções rivais locais apoderaram-se das
festividades populares e usaram-nas como armas políticas, acusando-se mutuamente de
mau planeamento, gestão e propaganda, em artigos profundamente sensacionalistas.
Mais tarde, quando o Estado Novo começou a reorganizar (isto é, a “normalizar”) a
nação, os poderes locais também manipularam as festividades populares, transformando-
as em celebrações artificiais do chamado “folclore”. Após uma limpeza moralizadora que
extinguiu quaisquer vestígios de práticas ancestrais,3 as autoridades católicas passaram
a exercer um controlo apertado sobre o aspecto religioso destes eventos.
Consequentemente, os artigos na imprensa criticavam as alegadas “práticas imorais
pagãs” e enfatizavam o crescente elitismo destas festividades modernas, “altamente
civilizadas e ordeiras”, que atraíam turistas e visitantes da classe média, vindos de todo o
país. Os seus actores e proprietários originais, a população local, tornaram-se
personagens secundárias, que actuavam para prazer dos visitantes.
Em Março de 1954, a Ria de Aveiro recebeu o primeiro Concurso de Painéis de
Moliceiros – criado, supervisionado e avaliado exclusivamente por representantes locais
do poder político – no qual os três barcos decorados da forma mais “típica” (isto é:
decorados com cenas idílicas da vida rural e frases inofensivas e cheias de erros)
recebiam grande atenção oficial e propaganda, e uma modesta recompensa monetária.
De acordo com Gramsci, esta estratégia de premiar as actividades individuais ou grupais
consideradas pelas autoridades como merecedoras de louvor e distinção, tem de ser
integrada no conjunto de acções “civilizadoras” do Estado, uma estratégia que é sempre
de pronto publicitada nos meios de comunicação oficial.
Figura 3
3 Tal como banhar em vinho tinto a imagem de madeira de um santo padroeiro local (S. Paio da Torreira), de
forma a obter protecção contra as maleitas. Esse vinho “sagrado” era posteriormente consumido em grandes quantidades, com previsíveis consequências.
Os 3 vencedores do 1º Concurso de Painéis de Moliceiros, Março 1954
(Fonte: Centro Português de Fotografia).
Quatro moliceiros a concurso, Abril 1962 (Fonte: Centro Português de Fotografia).
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O facto de existir um controlo indirecto, por parte do Estado Novo, da cultura do
moliceiro, através da educação e de uma ideologia orientada pela escola, requer alguma
contextualização. A República procurara, com escasso êxito, dignificar o ensino primário
e seus agentes; o Estado Novo agiu de modo inverso, desvalorizando com sucesso o
ensino primário. O ensino obrigatório foi, inclusive, reduzido pelo Estado Novo de quatro
para três anos, uma situação que se manteve até ao princípio dos anos 60. Os
professores primários (na sua maioria mulheres com baixas remunerações) eram
utilizados como veículos de doutrinação política e religiosa. O Estado Novo desvalorizou
a função educativa da escola, em favor de funções mais ideológicas e disciplinadoras. A
escola tornara-se uma ferramenta nas mãos do Estado, usada para ensinar virtudes em
detrimento de práticas ou conhecimentos úteis. Torna-se obrigatória a suspensão do
crucifixo sobre a cadeira do professor nas escolas do ensino primário público. É
igualmente obrigatório o canto coral, destinado a exaltar as glórias portuguesas, a
dignidade do trabalho e o amor à pátria. Sublinha-se a importância de instruir os alunos
sobre as colónias portuguesas, pois o Estado considerava que, se incutisse em todos a
noção exacta do valor do império ultramarino, a nação adoptaria uma atitude interna e
externa de defesa dos valores coloniais.
O livro de leitura oficial consistia num volume único, a nível nacional, um por cada
ano, e continha textos para leitura, uma secção de aritmética e uma longa secção de
doutrina católica – apesar de muitos dos textos para leitura consistirem já em orações ou
textos devocionais. O livro de leitura da quarta classe era um pouco diferente, em termos
de formato, dos outros três, mas com uma orientação ideológica semelhante e uma
mensagem política ainda mais forte, em lugar da doutrina religiosa elementar. Estes
livros, inspirados pelos manuais escolares italianos do período de Mussolini, eram
voltados para a criação de uma mentalidade colectiva nacionalista e católica. Publicados
pelo Ministério da Educação, sob rígida supervisão do governo, permaneceram
inalterados durante décadas, excluindo pequenas alterações a nível formal em meados
da década de 60 (Ministério da Educação Nacional, 1958a; 1958b; 1968).
Figura 4
Livro de Leitura da 1ª Classe (anos 50)
Livro de Leitura da 3ª Classe (anos 50)
Livro de Leitura da 4ª Classe (anos 60)
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
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Na maior parte dos casos, o único contacto com o objecto livro ao longo de toda uma
vida ocorria com o livro de leitura da escola primária, cujo valor e influência eram,
naturalmente, enormes. Facto que se torna ainda mais marcante se, para além de único
livro de toda uma vida, este é também efectivamente o “livro único”, que espelha a única
mundividência e ideologia admissíveis pelo regime. Veiculava-se um saber mnemónico,
maniqueísta, rigidamente categorizado, em que o mundo era apresentado à criança de
um modo pré-estabelecido, perfeitamente ordenado, de forma definitiva e inquestionável.
Esta forma de ensino era ainda mais eficaz porque reforçada por ilustrações atraentes,
de linha clara, pormenorizadas e de cores alegres. Este sistema de ensino actuou até
1974, mas a sua influência indirecta perdura até à actualidade, uma vez que os
educandos de então são os educadores de hoje, reproduzindo ainda e, muitas vezes, de
forma passiva e a-crítica os ensinamentos colhidos na infância, tão cómodos e atraentes
pela sua simplicidade, guias de um universo sem dúvidas nem opções. Assim, a ideologia
do Estado Novo influenciou (e ainda influencia, sob uma ténue aparência de progresso)
não só o meio cultural em torno do moliceiro, mas também toda a cultura portuguesa em
geral.
Os livros do ensino primário situavam os seus textos em cenários rurais, sempre
dentro de Portugal. Mesmo que o tema não estivesse directamente relacionado com o
mundo rural, a ilustração contígua encarregava-se de estabelecer a ligação. São
estratégica e cuidadosamente evitadas quaisquer referências laudatórias à transição do
universo rural para o urbano ou do agrícola para o industrial. O conjunto de texto e
imagem é complementado por provérbios e lendas tradicionais, que representam o saber
oral e a memória colectiva da sociedade camponesa, e por símbolos patrióticos e
religiosos.
Para Eric Hobsbawm, as tradições inventadas após a Revolução Industrial
classificam-se em três categorias: aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão
social; aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, estatutos ou relações de
autoridade; e aquelas cujo propósito principal é a inculcação de ideias, sistemas de
valores e padrões de comportamento (1983: 17). Estas três categorias estão claramente
patentes na realidade sócio-cultural apresentada nos livros de leitura do Estado Novo,
onde a História, como diz Claude Lévi-Strauss (1986: 167), substitui a Mitologia,
cumprindo a mesma função. Sabiamente guiada pela autoridade-autor e pelo mestre-
mediador, ao aprender a ler, a criança aprendia simultaneamente a ordem oficial do
mundo: “O Estado Novo ofereceu à Nação uma nova versão da sua glória passada,
(re)criando momentos e personalidades de acordo com a interpretação oficial da História,
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forjando uma nova era e restaurando a mítica era dourada que serviu de modelo a cada
celebração” (Paulo, 1994: 91).
Em comunidades piscatórias e agrícolas pobres como as da Ria de Aveiro, a taxa de
iliteracia era extraordinariamente elevada. Nas comunidades piscatórias, a escola
desempenhava o papel de uma mera exigência burocrática, pois a frequência do ensino
obrigatório era a única forma de os pescadores poderem exercer legalmente a sua
actividade. No que diz respeito à comunidade moliceira, tripulação, construtores e
decoradores eram analfabetos ou apenas capazes de assinar o próprio nome, aquando
da requisição das licenças ou do registo das embarcações na Capitania. Dado o
baixíssimo nível de escolaridade da maioria da população lagunar, os painéis legendados
(com uma ortografia muito discutível) eram tradicionalmente obra dos poucos artistas
“letrados” da região. Estes decoradores adquiriam a sua escassa educação na escola
primária e não constituíam uma excepção à regra da influência dos livros escolares na
sua visão do mundo, pois esses livros (assim como os livros em geral) eram relíquias
raramente reencontradas após o abandono da escola, e o poder visual e verbal das suas
mensagens tornava-se assim irresistível.
Os livros escolares exerceram uma influência óbvia sobre os símbolos e imagens que
os decoradores populares escolhiam para o moliceiro, como fica provado pela
observação de alguns painéis, principalmente históricos e religiosos, em particular
aqueles que representam personagens históricas como o rei D. Dinis, o Santo
Condestável D. Nuno Álvares Pereira, o Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro
Álvares Cabral e o poeta Camões. Todas estas personagens históricas encontram-se aí
retratadas de forma solene e estática, com talento e pormenor variável, mas seguindo
sempre o mesmo modelo. Ainda é possível notar a influência da imagem que ilustra o
texto “Camões” (no livro de leitura da quarta classe) em vários painéis históricos
representando o famoso escritor português, adoptado pelo regime como símbolo de uma
tradição cultural gloriosa.
Figura 5
Imagem do Livro de Leitura da 3ª classe (anos 50)
“Todo o mar é nosso” (anos 80)
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
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“O Príncipe dos Poetas” (anos 80)
Texto “Camões”, Livro de Leitura da 4ª classe (anos 60)
A glória, fé, engenho e sabedoria destas personagens históricas são simbolizados,
tanto nos painéis como nos livros de leitura, através de motivos iterativos como o livro
(Os Lusíadas de Camões), a espada, a bandeira, a caravela, o castelo, o mapa, a
bússola e o astrolábio. A Cruz de Cristo, presente nas velas dos navios dos
Descobrimentos, surge também na ilustração de capa do livro de leitura da quarta classe.
A Cruz – omnipresente na iconografia do Estado Novo e, consequentemente, nos seus
livros escolares (e também, como já mencionado, nas próprias salas de aula) – era
representada como companheira e fonte de inspiração do herói. A Cruz de Cristo e a
bandeira nacional são motivo transversal a quase todas as categorias de painéis,
excepção naturalmente feita para os jocosos, dada a reverência com que é encarada.
Os painéis Religiosos davam preferência às figuras maternais protectoras da Virgem
Maria, assim como da Rainha Santa Isabel e de Santa Joana Princesa de Aveiro,
também por influência dos livros escolares. Os textos destes livros apresentam as figuras
femininas não como heroínas, mas como companheiras de heróis e/ou como
personificação de virtudes cristãs de fé, resignação e caridade. Em geral, as mulheres
eram associadas à religião e às virtudes católicas. A Rainha Santa Isabel e Santa Joana
eram tema de vários textos, nos quais a sua santidade e milagres eram descritos como
factos históricos reais e inquestionáveis. O culto da Virgem era cuidadosamente
reforçado, não só na secção de leitura dos livros, mas também na longa secção de
“Doutrina Cristã” (na realidade, Católica). Estes ensinamentos eram – e ainda são –
reproduzidos e ilustrados em muitos dos mais artisticamente decorados painéis de
moliceiros.
Clara Sarmento
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Figura 6
“Caridade e amor, Rainha da Paz” (anos 90)
“A Virgem”, Livro de Leitura da 1ª Classe (anos 50)
Santa Joana Princesa de Aveiro (anos 90)
Morte e milagre de Santa Joana de Aveiro, Livro de Leitura da 3ª Classe (anos 50)
Alguns textos moralistas eram directamente transferidos dos livros escolares para os
painéis do moliceiro, devido quer ao seu impacto ideológico, quer ao facto de os
decoradores concordarem efectivamente com a mensagem inerente. O painel com a
legenda “Uma boa acção”, por exemplo, representando um jovem a transportar o feixe de
lenha de uma senhora idosa, copia não só a imagem mas também o título do texto
homónimo “Uma boa acção”, do livro de leitura da quarta classe, além de inspirar outros
painéis, como era visível ainda na década de 80.
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
51
Figura 7
“Uma Boa Acção”, Livro de Leitura da 4ª Classe (anos 60)
“Uma Boa Acção” (anos 80)
“Quem me dera ser nova” (Início da década de 60;
Fonte: Arquivo Municipal de Aveiro)
De forma semelhante, o texto intitulado “Dois Portugueses” recorda a noção de “uma
grande Nação unida” (“Portugal vai desde o Minho a Timor”), já que as colónias eram
vistas como meras províncias ultramarinas, de forma a contornar as críticas da
comunidade internacional. Isto originou o aparecimento de painéis com os dizeres: “A cor
do sangue é igual”, “Ambos somos filhos de Deus” e “Diferentes na cor, mas somos
iguais na pátria”, onde diferentes raças veneram a Cruz e a bandeira portuguesa em
perfeita igualdade.
Figura 8
“Diferentes na cor, mas somos iguais na pátria” (início da década de 70)
“Dois Portugueses”, Livro de Leitura da 4ª Classe (anos 60)
Apesar de estas mensagens ideológicas surgirem em livros destinados a crianças
entre os sete e os dez anos, tal não significa que se deva encarar os moliceiros e a sua
arte como produto de mentes pueris. Na verdade, os seus autores mais não fazem do
que reter, reproduzir e, por vezes, adaptar os parcos conhecimentos doutrinários
Clara Sarmento
52
apreendidos na escola primária e que o contexto social, económico, cultural e religioso
envolvente se encarregou de perpetuar.
3. A DISCRETA ARTE DA SUBVERSÃO
Contudo, mesmo sob a capa da hegemonia, o contestatário pode sempre ocultar o
desafio e a sátira e fazer passar a sua mensagem dúplice com relativa imunidade. Por
isso, as autoridades não descuravam estes potenciais meios de comunicação (logo, de
subversão) popular e supervisionavam-nos activamente. As pinturas do moliceiro eram o
principal meio não autorizado e anónimo através do qual a população local podia
expressar-se, um facto que incentivava a paródia, o grotesco e as mensagens
subversivas, como contra-celebração dos valores oficiais.
Os artistas anónimos do moliceiro desenvolveram os seus próprios códigos, mitos,
heróis e padrões sociais. O isolamento, as condições análogas e a dependência mútua
entre subordinados favoreceram o desenvolvimento de uma cultura local, apoiada numa
forte imagética de “nós versus eles”. Em termos subversivos, quando tal ocorre, o objecto
em si torna-se numa força poderosa de coesão social, visto que todas as experiências
subsequentes são mediadas por uma visão partilhada do mundo. O resultado prático é
que essa cultura popular – da qual estes painéis fazem parte – alcança o anonimato da
propriedade colectiva e é assim constantemente ajustada, revista, truncada ou até
mesmo ignorada. A multiplicidade de autores confere-lhe protecção e, quando deixa de
corresponder aos interesses comuns, desaparece: assim os painéis são modificados,
pintados de novo, reescritos ou pura e simplesmente apagados.
As pinturas do moliceiro tendiam a ser vistas como o produto de um modo de vida
local, rude, simples, ingénuo e pitoresco. Durante quase um século, estas palavras foram
repetidas em ensaios e etnografias, guiadas por preconceitos culturais, para caracterizar
a arte do moliceiro. De facto, os erros ortográficos, juntamente com imagens simples e
directas em cenários rurais, parecem provar que essa arte era (e é) produto de uma
comunidade ignorante e centrada sobre si própria. No entanto, muitas vezes, ao encenar
ostensivamente a sua própria ignorância, os actores sociais estão a utilizar criativamente
os estereótipos designados para os estigmatizar. Sendo “superiormente” considerados
ignorantes pelo poder político e científico, e sabendo que uma crítica directa teria sérias
consequências, os pintores de moliceiros escondem a crítica por detrás da máscara da
ignorância, para desviar a atenção das autoridades. O que levou Eric Hobsbawm a
afirmar: “A recusa de compreender é uma forma de luta de classes” (1973: 13).
A simbologia épica, por exemplo, é não só reproduzida mas também adaptada pelo
moliceiro aos heróis locais, que são os mestres barqueiros e moliceiros, tradicionalmente
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
53
retratados a cavalo, em pose guerreira, quando não acompanhados de espada e escudo,
e com bandeira e castelo por cenário, numa original e irreverente transposição da gesta
nacional para a gesta local da sobrevivência quotidiana.
Figura 9
Celebração de construtor naval local (2001)
Camponês em cavalo branco (1955; Fonte: Centro Português de Fotografia)
Por outro lado, textos visivelmente políticos, tal como “O Estado Novo”, “O Chefe de
Estado” e “O Governo da Nação”, uma presença previsível nos livros de leitura, louvando
Salazar e as virtudes do seu regime, não tinham qualquer influência nos painéis e
inscrições do moliceiro, embora algumas etnografias da época tentassem negar esse
facto (Lage, Ferreira e Chaves, 1940: 72).4 A História antiga, o passado longínquo, pleno
de heróis semi-lendários, é passível de celebração popular, como uma “idade de ouro” e
abundância, tal como o passado mítico de reis, rainhas, princesas e cavaleiros da
tradição oral. Torna-se, porém, impossível celebrar a história mitificada contemporânea,
que a realidade circundante de pobreza demonstrava ser uma mera ficção. Os moliceiros
ignoravam as questões políticas (até mesmo questões maiores, tal como a guerra
colonial); não criticavam as autoridades, mas também não as louvavam. De facto, e
citando James C. Scott, “a especificidade da expressão cultural do grupo dependente é
criada em grande parte pelo facto de, pelo menos nesta área, o processo de selecção
cultural ser relativamente democrático” (1990: 157). Os grupos subordinados decidem a
que aspectos dar ênfase, adoptam-nos para uso próprio e criam assim novos artefactos e
práticas culturais que respondem às suas necessidades e sentimentos. O que resta,
então, dentro da cultura popular depende em grande parte daquilo que a comunidade
4 Ver a referência aos painéis do moliceiro no texto de 1940 de Luís de Pina, “Arte Popular”, inserido no livro
de Francisco Lage “Vida e Arte do Povo Português”, publicado e supervisionado pelo Secretariado da Propaganda Nacional: “Mas o artista actualiza as suas criações e, por isso, já aparecem alusões políticas e sociais: bustos de Salazar, legionários, filiados na Mocidade Portuguesa. Actualiza e moderniza os seus tipos, agrupa figuras, sofre a influência da política internacional” (Pina, 1940: 69-81). Contudo, não se localizou nas fontes consultadas quaisquer representações de Salazar, de legionários ou de filiados na Mocidade Portuguesa (excepção para uma curiosa ocorrência que mistura um jovem da Mocidade com o retrato do rei D. Manuel II), que seriam decerto as primeiras a ser reproduzidas e divulgadas, caso tivessem realmente existido.
Clara Sarmento
54
decide aceitar e transmitir. Isto não significa que as práticas culturais não sejam
afectadas pela cultura dominante; contudo, a eficácia desse controlo é menor.
Na generalidade, os livros de leitura do Estado Novo veiculam o estereótipo da
mulher enquanto mãe e dona de casa, uma “nobre missão” a que as raparigas estavam
predestinadas desde a infância. Segundo a ideologia dominante, as mulheres
sacrificavam com alegria as suas vidas, trabalhando arduamente no lar e no campo,
tendo os filhos como única e exclusiva recompensa. Existe até um texto no livro de leitura
da segunda classe, onde um irmão agradecido exclama, na derradeira e memorável
frase: “Como são lindas as meninas que sabem coser”. A agricultura era a única
actividade fora do lar que os livros permitiam e celebravam para a mulher.
Mas, no contexto real de trabalho do moliceiro, tais estereótipos de género não
funcionavam exactamente como pretendiam os discursos e representações oficiais. Para
garantir a subsistência familiar, a mulher sempre teve (e tem) de trabalhar fora do lar,
sendo o trabalho doméstico e a educação dos filhos um elemento quase residual no duro
acumular de tarefas do quotidiano. A mulher do povo, tal como é representada nos
painéis do moliceiro, é a lavradeira, a pescadeira, a varina, sempre no seu ambiente de
trabalho exterior, sem qualquer figuração de crianças nem referências ao lar ou à
maternidade (excepção para os painéis jocosos que satirizam o motivo da noiva grávida).
Ao contrário das cenas familiares dos livros de leitura, que representam maioritariamente
famílias do meio rural, com as hierarquias simbolizadas através do código corporal (o
homem mais alto do que a mulher, por exemplo), os pares dos painéis dos moliceiros têm
códigos corporais semelhantes, na acção e nas dimensões, pois homens e mulheres são
igualmente actuantes e relevantes no trabalho quotidiano.
Figura 10
“A Varina da Murtosa” (anos 80)
“A Rainha das Varinas” (anos 60)
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
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“O aniversário da Mãe”,
Livro de Leitura da 3ª Classe (anos 50)
Pescador e Varina: “Já vendestes, Rosa?” (anos 50)
Homem e Mulher: “Não ha bacalhao”
(inícios dos anos 70)
De modo semelhante aos livros de leitura, o universo referencial espácio-temporal
dos moliceiros está confinado à aldeia, ao meio rural, à comunidade camponesa, à
família e ao trabalho. Destaca-se a ideia de que o trabalho duro, ao ar livre, é salutar, se
bem que os painéis por vezes lamentem a miséria, dificuldades e perigos da vida no
campo e no mar. A imagem institucionalizada do camponês trabalhador e sacrificado é
celebrada em sérios painéis sobre o trabalho, mas também pode ser fortemente
satirizada em painéis jocosos. O respeito devido à faina agrícola é, nesta região tão
próxima do mar, claramente superado pela celebração quase épica do pescador, do
homem do mar. O pescador de alto mar nunca é satirizado, numa visão próxima da –
mas não motivada pela – retórica do regime, que pretende representar o pescador da
faina maior como legítimo herdeiro dos marinheiros dos Descobrimentos, um simples
artifício retórico, dado que na realidade aqueles viviam em condições miseráveis.
De facto, a supervisão ideológica por parte das autoridades centrais e locais não era
completamente eficaz. Os pintores dos moliceiros, por exemplo, sempre privilegiaram a
taberna como cenário para os painéis jocosos que satirizam a figura típica do bêbado
local, com um tom humorístico que expõe o ridículo da realidade, ao invés de seguir o
discurso moralista oficial. A taberna, o inimigo visado pelo código moral do regime, é na
realidade um espaço de convívio há muito instituído na prática social, imune à retórica do
regime. Mas há que ter em atenção a especificidade da taberna no contexto português:
apesar de a taberna – tal como o mercado de Bakhtin (1984: 145-95) – ser geralmente
considerado um espaço de discurso anti-hegemónico (Scott, 1990: 122), devido à sua
relativa distância da vigilância oficial e ao facto de ser o principal local de reunião não-
autorizado das classes trabalhadoras, ela não pode ser vista como um espaço de
resistência aberta ou organizada, no Portugal pré-democrático.
Clara Sarmento
56
A comunidade popular critica a taberna somente quando esta é frequentada em
excesso (apenas por homens) e deste excesso advém a incapacidade mais ou menos
permanente para o trabalho, como no caso dos alcoólicos indigentes locais. E, mesmo
neste caso, o comentário do moliceiro é sempre feito em tom jocoso, pois os marcadores
comportamentais fundamentados em dicotomias de lícito/ilícito, bem/mal e
permitido/proibido, com base na autoridade religiosa, estatal e paternal (“Deus, Pátria e
Família”), são complementados com noções relativizantes muito pragmáticas e
permeáveis, que subsistem há décadas.
Figura 11
4. A (RE)INVENÇÃO CONTEMPORÂNEA DA TRADIÇÃO: A CULTURA POPULAR COMO PRODUTO
SIMBÓLICO
À medida que a agricultura tradicional vai lentamente desaparecendo, a geografia mental
da comunidade agrícola-moliceira da Ria de Aveiro também muda, de um espaço
agrícola centenário para uma mera paisagem rural, onde os antigos espectadores
também se tornaram actores. A difusão em massa de uma iconografia virada para o
turismo na Ria de Aveiro converte as representações individuais em representações
colectivas, e estas estão direccionadas para os grupos sociais dominantes. Contudo,
como em todas as mensagens polissémicas, há um fragmento de interpretação individual
que prevalece e que diferencia os espectadores directos dos espectadores indirectos, de
acordo com a sua origem cultural. Aos espectadores individuais é permitido participar
num sistema cultural, histórico, social e económico, mas a sua interpretação da
paisagem, tanto real como figurativa, deverá ser consciente e criticamente inserida numa
relação que lhes foi imposta pelo facto de os residentes permanentes se terem tornado
“Damos de beber à dor” (início da década de 80)
“Não há pipo que resista” (finais dos anos 70)
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
57
parte do sector terciário e estarem, agora, em minoria, em grande parte da região da Ria
de Aveiro.
Hoje em dia, a cultura popular e as suas produções estão cada vez mais atentas ao
mercado e às regras da procura e da competitividade, e isto aplica-se tanto às produções
utilitárias como às não-utilitárias. Este processo de refuncionalização é controlado à
distância pela procura de uma massa heterogénea que, no geral, busca produtos que são
vagamente simbólicos de um certo Portugal tradicional. Sem querer advogar aqui a
procura dos “elementos fundamentais da cultura portuguesa” (Dias, 1961: 97-119) na
“alma” dos objectos concebidos pelo povo, o produto artesanal está contudo sujeito a
tornar-se num objecto de consumo que, muitas vezes, já não pode ser mais considerado
como expressão de uma comunidade. O anonimato do mercado e a necessidade de
ganhar a vida podem moldar e transformar os artesãos, enquanto estes moldam e
transformam as suas próprias criações. No caso dos moliceiros, por exemplo, durante as
duas últimas décadas, houve uma clara inflação no número de painéis jocosos de cariz
erótico, cuja originalidade e humor fácil são muito atractivos para os turistas.
Tradicionalmente, contudo, estes temas eram minoritários e menos explícitos, se bem
que numerosos. Nos painéis tradicionais registados ao longo do século XX, o efeito
cómico era, regra geral, resultado de trocadilhos verbais e maliciosos jogos de palavras.
Recorrendo a imagens cada vez mais explícitas e elaboradas, os actuais painéis jocosos
eróticos atraem a atenção de fotógrafos amadores e profissionais que, por seu turno,
divulgam as suas imagens a outros potenciais visitantes e aos meios de comunicação
social, todos eles fontes de lucro para a região.
Figura 12: Painéis jocosos eróticos (2003-2004)
Quando a economia de mercado – base do poder económico que substituiu a
hegemonia ideológica – não compreende a própria cultura, o património cultural torna-se
externamente determinado e dependente das imagens que os outros criam e transmitem.
Clara Sarmento
58
Assim, os objectos culturalmente moldados (como os moliceiros) tornam-se objectos de
consumo que, apesar de aclamados, são parte de um contexto comercial alheio à
realidade que os criou e perde-se a possibilidade de compreender as suas funções e
significados.
A procura de objectos genuínos pode resultar numa autenticidade encenada, onde os
objectos culturais são produzidos e aceites como autênticos ou, pelo menos, como
razoavelmente similares à situação pré-massificação. Eric Hobsbawm considera que as
tradições inventadas são uma tentativa de criar uma ligação de continuidade com o
passado e com a identidade de uma comunidade (1983: 9). O conceito de “tradicional” é
frequentemente associado ao conceito de “autêntico”, o que nem sempre é correcto, pois
a manutenção da autenticidade é um fenómeno directamente ligado ao processo de
continuidade e mudança, base de qualquer cultura. Contudo, esta autenticidade
encenada pode ocasionalmente levar ao renascimento cultural das tradições, à
renovação da identidade local e até à invenção de novas tradições e identidades.
Tomemos, de novo, o exemplo das festas populares. A celebração dos moliceiros e
dos seus painéis nunca foi uma prática popular genuína. Pelo contrário, é uma tradição
recentemente inventada, que é explorada, mesmo na actualidade, pelo poder político e
especialmente pelo poder económico e comercial, que artificialmente multiplica razões e
ocasiões para tais celebrações, orientadas para o lucro e o turismo. Na realidade, no
início, os proprietários das embarcações estavam até muito relutantes em participar
nessas regatas e concursos e tiveram de ser pressionados com prémios de presença, de
modo a participarem em número satisfatório na vistosa parada de barcos, ao longo do
canal central de Aveiro. Esta atitude alterou-se profundamente no presente, pois os
prémios monetários são agora uma das poucas formas que resta aos proprietários de
retirarem algum lucro das suas embarcações.
Com efeito, a verdadeira importância destes eventos reside não tanto na estratégia
de conservação das marcas do passado, mas sobretudo no estímulo dado, por seu
intermédio, à recuperação da dimensão mais genuína da festa, o da celebração colectiva,
em que todos são potenciais protagonistas. Durante as festas, regatas e romarias, os
papéis confundem-se e é cada vez mais difícil distinguir os turistas dos locais, pois estes
podem comportar-se como turistas no seu próprio espaço. Muitas das pessoas que
deambulam pelas margens tomaram directa ou indirectamente parte na construção e
pintura dos barcos que participam nas festas, num duplo processo de exploração turística
do espaço. O cruzamento de códigos e práticas culturais, ainda que efémero, dilui as
fronteiras que separam a “cultura erudita” da “cultura popular”, numa dessacralização dos
critérios convencionais de legitimação estética.
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
59
Na presente conjuntura, não poderemos falar tanto de uma “ressurreição” mas antes
de uma “metamorfose” do moliceiro, pois as condições de vida anteriores não foram
recuperadas, nem o moliço, que deu o nome à embarcação, tem qualquer papel neste
novo contexto social. O moliceiro ressurge no Portugal democrático de finais da década
de oitenta, como objecto cultural desfrutável pelos turistas, independentemente da sua
função original. O moliceiro foi restaurado devido às suas linhas elegantes e decoração
única, tal como qualquer outro barco seria restaurado se a sua aparência estética o
justificasse. A metamorfose do moliceiro dá-se a nível funcional, de significado, enquanto
elemento de toda uma estrutura sócio-económica, mantendo-se a sua forma distintiva, o
objecto em si.
Em geral, na actual recuperação dos moliceiros para fins turísticos, os pintores
modernos tendem a imitar ou até a reproduzir as imagens tradicionais. Tentam encenar o
passado no presente, exageram o seu tradicionalismo enquanto reinventam a tradição.
Sobreviveram os exemplos históricos dos grandes reis, guerreiros e navegadores,
juntamente com a celebração neo-épica dos pescadores de alto mar e da faina maior.
Hoje em dia, estes são até representados em maior proporção, se comparados com os
seus homólogos das décadas de 1950 e 1960. Luís de Camões, por exemplo, o poeta
nacional exaltado pelo Estado Novo, é mais representado hoje do que então. Durante o
trabalho de campo que sustenta este ensaio, encontrámos variados exemplos de painéis
tradicionais renovados, cujas legendas e imagens ainda ecoam velhas ideologias: “Que
Deus vos guie pescadores”; “Deus e Pátria!” (um soldado a cavalo com bandeira
nacional); “Todo o mar é nosso!!” (Infante D. Henrique); “Numa mão a pena noutra a
espada” (Luís de Camões); “Velhos tempos na Terra Nova” (pesca de bacalhau à linha,
num dóri, entre icebergues).
Figura 13
“Que Deus vos guie pescadores” (2002)
“Velhos Tempos na Terra Nova” (1999)
Clara Sarmento
60
Os pintores dos moliceiros contemporâneos reproduzem estes símbolos
ideologicamente orientados, como se fossem testemunhos de um paraíso rural perdido,
numa tentativa de fazer reviver aquilo que consideram ser popular, português, genuíno,
tradicional, sem se aperceberem – ou aparentando não se aperceberem – que tais
imagens e mensagens estão deslocadas no espaço e no tempo. O contexto ideológico
circundante alterou-se e aquilo que em tempos era visto como “genuíno” não era uma
reprodução fiel da realidade, mas sim uma representação autorizada e doutrinada pelo
Estado.
Os actuais pintores, alguns deles com educação secundária ou até licenciados em
Artes Visuais, parecem colocar de lado as técnicas artísticas que dominam, enquanto
tentam criar pinturas mais popularizantes do que propriamente populares, na tentativa de
obter o prestigiante (e lucrativo) estatuto de “artesão”. Existe até uma reputada pintora de
moliceiros que é professora de Educação Visual numa escola secundária da região. O
diálogo entre o artista e os seus materiais torna-se não só numa forma de elevação mas
também de rebelião contra a pobreza, ao transformar um objecto aparentemente sem
valor (um barco de madeira que recolhe algas) numa delicada obra de arte. Existe uma
razoável recompensa pecuniária para estes talentos pseudo-amadores reconhecidos pela
comunidade, se bem que, no presente, estes amadores tenham já sido engolidos pela
máquina turística estabelecida em redor do moliceiro. De facto, a pressão para construir
novos barcos e para renovar os painéis a tempo dos numerosos festivais de Verão, bem
como o interesse na captação de turistas facilmente atraídos pelo desenho “perfeito”,
levou à procura crescente de novos artistas. Por sua vez, estes, cada vez menos
populares e mais qualificados, têm muitas vezes dificuldade em resistir a uma declarada
exibição das suas capacidades técnicas e artísticas.
De entre os novos temas que foram introduzidos nos painéis modernos, a figura
feminina é hoje, e mais do que nunca, representada de uma forma dúplice. A diferença
entre a mulher local (pescadeira, varina ou camponesa) e a “outra” mulher (a mulher do
cinema e da televisão, da cidade, ou seja, a moderna mulher urbana) denota-se nas suas
roupagens e funções. No primeiro caso, trabalho e roupas de trabalho (lenço na cabeça,
blusa, saia rodada, avental, pés descalços); no segundo caso, lazer e roupagens de lazer
(sugestivos vestidos, saltos altos, longos cabelos, fato de banho, roupa interior, nudez
parcial ou integral). As varinas e pescadeiras continuam a ser fortes, cheias de espírito e
resposta cortante, subservientes ao homem em teoria mas poderosas na prática, numa
inversão da ordem social tradicional, em muito auxiliada pela emigração massiva dos
seus companheiros nas décadas de 60 e 70. Estas mulheres trabalham num contexto
incessante de pobreza e duro labor generalizado, longe dos estereótipos
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
61
comportamentais burgueses. A mulher “outra”, por seu turno, nunca surge em painéis
laudatórios como os que celebram as varinas e pescadeiras. Pelo contrário, as mulheres
urbanas e ociosas são objecto de painéis extremamente maliciosos, onde são satirizadas
na sua sofisticação e indolência. Estas mulheres são representadas nas suas camas e
aposentos, reclinadas a ver televisão, tomando banhos de sol na praia ou caminhando
pelos espaços onde os outros (os locais) trabalham.
Ainda ecoando as lições do Estado Novo, as mulheres modernas (então sinónimo de
“imorais”) são representadas em situações eróticas, onde são respectivamente objecto e
sujeito de desejo sexual e de encontros sexuais. Mas, hoje em dia, as mulheres são na
verdade semelhantes aos homens no que toca a demonstrar as suas intenções e
consciência sexual: em painéis que satirizam o preservativo, por exemplo, são as
mulheres que instruem os homens ignorantes no seu uso. Quando representadas como
varinas ou camponesas, o discurso pode tornar-se poético ou laudatório, mas a sátira
prevalece sempre na representação da mulher nos painéis do moliceiro, com réplicas
espirituosas e comentários cheios de malícia, tradicionalmente formulados por mulheres.
Em numerosos painéis jocosos-eróticos, a simbologia e o vocabulário da produção
(trabalho) estão plenos de alusões à simbologia e ao vocabulário da reprodução (sexo).
Isto é bem visível nas diversas metáforas em que as mulheres são referidas como peixe
ou boa pescaria e nas imagens dúbias de homens e mulheres em contexto de trabalho
(pesca, caça, recolha de moliço, lavoura) que, assim, se transforma em contexto de
prazer. Nos painéis jocosos eróticos, o artista hiper-enfatiza o corpo feminino,
representando a mulher de forma carnavalesca, com formas exageradas e vestes
sugestivas, multicoloridas, com predomínio do vermelho.
Figura 14
“Fisga Manel que ha bom peixe!” (finais dos anos 80)
“Queres fazer um intervalo?” (1998)
Clara Sarmento
62
Nos painéis sobre a vida quotidiana e o trabalho, notamos uma tendencial
carnavalização Bakhtiniana (1984: 4-11) na inversão dos painéis do homem e dos
animais domésticos. O burro é frequentemente representado com características
humanas, como agricultor, mau estudante, espertalhão e, especialmente, como político.
Invertem-se papéis e posições em cena, com um homem a carregar um burro às costas,
ou a puxar uma carroça, cujas rédeas o animal segura. No imaginário popular, a inversão
representa o desejo mais ou menos secreto de inverter também a ordem social de eterna
pobreza e sujeição. No contexto pós-Estado Novo, qualquer necessidade de resistência
que possa ainda subsistir no moliceiro toma a forma de pesada sátira e é dirigida contra
as autoridades que, actualmente, dificultam a outrora livre e descuidada exploração (leia-
se delapidação) dos recursos da Ria e – acima de tudo – contra os eternos bodes
expiatórios do Portugal democrático: os políticos.
Figura 15
“Qual de nós pecou mais?” (1998)
“É tradição não ha balão” (2002)
A autoridade policial, por exemplo, é sempre satirizada. Tal como os padres e os
monges, pela sua alegada luxúria disfarçada de virtude (um painel jocoso representa uma
rapariga em roupas ligeiras e um padre no confessionário com a legenda “Qual de nós
pecou mais?”), se bem que a religião em si nunca seja satirizada em circunstância
alguma. Todas as profissões são celebradas pois todo o trabalho é honroso; mas todas
as profissões podem ser tema de caricatura, excepção para os mestres moliceiros,
construtores ou pintores, e para os pescadores de alto-mar, pelo seu prestígio na
comunidade e pelos perigos que enfrentam. A única profissão desonrosa, a única cujos
actores são invariavelmente representados como animais, parece ser a da política. Nesta
disputa simbólica, o vencedor é sempre a voz do povo, tal como ela é expressa pela voz
do moliceiro, através da sátira, da crítica e do lamento, graças à liberdade de expressão
garantida pela democracia.
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
63
Tendo em conta estes exemplos, conclui-se que a resistência (sob a forma de sátira)
é muito mais forte e declarada na actualidade e é direccionada para os outrora
reverenciados e todo-poderosos agentes da igreja e da autoridade, bem como para os
agentes de um regime democrático que, ironicamente, deu ao povo a liberdade de
expressão. Esta recente liberdade não disciplinou o humor ácido do moliceiro, bem pelo
contrário, como se verifica através das diversas representações de mulheres, sexo,
políticos, clérigos e agentes policiais, nos painéis do moliceiro.
Figura 16
Representação satírica de António Guterres (2002)
Representação satírica de Mário Soares (2002)
Deputado representado como burro (anos 90)
Raramente registámos painéis que documentem vivências de classe média: o painel
retrata o povo/trabalhador nas suas actividades quotidianas, ou a realeza/nobreza
Clara Sarmento
64
inspirada no imaginário popular. Hoje em dia, o grande veículo de elevação e de
normalização social é a televisão, e a sua influência é visível não só em alguns painéis
que ilustram efectivamente aparelhos de TV, mas também nas novas personagens e
acontecimentos que vão surgindo nos painéis: jogadores de futebol como Figo e Jardel; a
diva do fado Amália; o “menino Tonecas”, personagem infantil de uma popular sitcom;
políticos como Mário Soares e António Guterres e as crises e escândalos que tiveram de
enfrentar; a disputa entre o autarca Rui Rio e o dirigente desportivo Pinto da Costa; a
entrada de Portugal na União Europeia em 1986 e a prosperidade ilusória dos fundos
comunitários na década de 90; o Euro (e a sua potencialmente cómica designação prévia
“Ecu”); a exposição universal de Lisboa EXPO98; o célebre reality-show Big Brother; a
loucura nacional dos campeonatos europeu e mundial de futebol de 2004 e 2006; a
rivalidade entre equipas de futebol, entre muitos outros. Uma notícia reiterada ou
polémica (como as touradas ilegais de Barrancos, a morte do apresentador Fernando
Pessa, ou a comunidade nudista brasileira da Colina do Sol) pode gerar imediatamente
um novo painel, para rápido consumo e logo substituído, pela simples razão de ter
aparecido na televisão.
Figura 17
Alusão satírica à disputa entre Rui Rio e Pinto da Costa (2006)
“Viva a nossa Seleção!” (2004)
“Queremos Ecu!!!” (inícios da década de 90)
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
65
Todos estes eventos, assuntos e personagens são democraticamente oferecidos ao
povo através da televisão, item obrigatório em qualquer casa portuguesa actual (99% dos
lares, mesmo os mais pobres, possui televisão, de acordo com o último Censo). À
excepção dos painéis relacionados com o futebol e de homenagem a personalidades
públicas recém-falecidas, todos os outros exemplos são representados com traços
intencionalmente grotescos e sujeitos a observações muito mordazes. A televisão funde
imagens e palavras, tal como o painel de um moliceiro, e torna-se assim numa irresistível
fonte de inspiração para os pintores, principalmente quando a realidade imediata esgotou
os motivos de sátira. Contudo, a selecção nacional de futebol, tal como as equipas locais,
são símbolos reverenciados, encarados como orgulhosos representantes da identidade
de uma nação, cidade, vila ou região, e são, por isso, assuntos intocáveis e como tal
retratados. A saga nacional dos Descobrimentos, sistematicamente celebrada pelo
Estado Novo, encontrou no futebol um sucessor adequado, se bem que inesperado:
ambos criam uma sensação ilusória de orgulho patriótico e desviam a atenção da
verdadeira situação do país. Ao representar, comentar ou satirizar todos estes tópicos, a
moderna cultura do moliceiro ilustra, de forma muito lúcida, o imenso poder dos meios de
comunicação social.
Figura 18
“O cheiro da vida real – Big Bráder” (2002)
Alusão satírica à comunidade nudista brasileira da Colina do Sol” (2000)
Alusão satírica às touradas ilegais de Barrancos (2003)
Clara Sarmento
66
CONCLUSÃO
A cultura popular pode ser usada como uma alegoria e convertida em herança histórica,
étnica e ética, de que o “povo”, esse personagem tão indefinido, asseguraria em
exclusivo a custódia. Com efeito, desde o início, o conceito de “cultura popular” sofre de
uma profunda ambiguidade semântica resultante da multiplicidade de significados
inerente a cada uma das duas palavras que o compõem. As culturas populares tendem a
ser caracterizadas como representando os costumes de grupos sociais subalternos, em
constante desafio ao poder. Mas as culturas populares são bem mais do que uma forma
permanente e sistemática de resistência. Funcionam também em repouso, exprimindo as
diversas formas como os grupos sociais convivem no quotidiano com a dominação
(Grignon e Passeron, 1989).
Por tal, alguns objectos de cultura popular, como o barco moliceiro e seus painéis,
são rearticulados de modo a produzir significados oposicionais, criando formas de
resistência simbólica. A cultura popular é marcada pela tentativa das classes dominantes
alcançarem a hegemonia e pelas formas de oposição a essa tentativa. Este processo de
formação da cultura popular não consiste simplesmente na imposição de uma cultura de
massas que coincide com a ideologia dominante, nem na criação de culturas de oposição
espontâneas. Este processo cultural é antes um espaço de negociação entre ambas,
onde os valores culturais e ideológicos, tanto dominantes como subordinados, se cruzam
em trocas diversas e permanentes.
Textos e imagens, tais como os dos livros escolares inspirados pelo fascismo que
analisámos, exploram a cultura popular e as verdades ideologicamente orientadas, com
vista a estabelecer a posição e os papéis sociais imutáveis do indivíduo no território local
e nacional. Ainda assim, dentro dos discursos hegemónicos, podemos observar
resistência e aceitação, um facto que resulta em articulação; ou seja, resulta numa
negociação entre a cultura dominante e a cultura subordinada, utilizando os conceitos de
António Gramsci. Nos seus Cadernos do Cárcere, Gramsci fornece outra pista essencial
para qualquer estudo sério e abrangente da cultura popular, quando afirma que “o ponto
de partida da elaboração crítica é a consciência daquilo que se é realmente, é ‘conhecer-
se a si mesmo’ enquanto produto do processo histórico que depositou no indivíduo toda
uma infinidade de traços, sem deixar um inventário” (1971: 54).
É precisamente esta a lição que a história dos moliceiros ensina – os textos icónicos
e escritos patentes em cada barco são produto de uma rede de circunstâncias políticas,
ideológicas, sociais e económicas, dificilmente detectáveis e em geral demasiado
distantes ou comummente aceites para serem reconhecidos de forma crítica, mesmo por
aqueles que desenham, pintam, escrevem e vivem sob a sua influência. Contudo, é esse
A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro
67
inventário invisível de Gramsci que constitui a fonte de inspiração para os painéis
tradicionais e permite a sua organização em categorias, com um conjunto de regras pré-
estabelecidas e tacitamente seguidas em cada nova ocorrência. Hoje em dia, há novos
assuntos que são adicionados todos os dias, como resultado do poder volátil dos media,
apesar de o artista popular – porta-voz da comunidade – escolher que assuntos devem
ser ignorados e que assuntos devem ser reproduzidos e assim perpetuados.
A intensa busca pelas origens da genuína cultura portuguesa inspirou a maior parte
do discurso pseudo-científico que, ao longo do século XX, tentou transformar a narrativa
das tradições populares numa descrição e justificação da própria identidade nacional.
Desta forma, esta breve história cultural dos moliceiros também confirma que os meios
institucionais de instrução e propaganda, as representações oficiais da realidade e as
fontes documentais em geral devem ser criteriosamente avaliadas quando se estuda a
cultura de um país dominado pela censura e pelos poderes hegemónicos durante
décadas. Os recursos poéticos e políticos são utilizados em conjunto de forma a construir
e preservar a alegoria da tradição como guardiã da verdadeira identidade nacional,
juntamente com o mito das origens gloriosas que legitimam o prestígio auto-proclamado
de posteriores autoridades governantes, bem como outras verdades manipuladas, muitas
vezes ainda repetidas no presente.
Mais do que testemunhos de “tradição” ou “resistência”, objectos como o barco
moliceiro são actualmente considerados como representantes da identidade e do
património cultural de uma comunidade local, intimamente ligada a um ecossistema
específico, como é a Ria de Aveiro. No caso presente, os painéis do moliceiro são
representações simbólicas inter-semióticas dos valores, práticas e representações
partilhadas pela comunidade. Mas, hoje em dia, o moliceiro participa também de uma
lucrativa estrutura económica e turística organizada em redor do objecto-barco, que
perdeu entretanto quase toda a sua antiga função social e económica e foi reinventado
enquanto símbolo cultural distintivo da região turística da Ria de Aveiro, reconhecido
nacional e internacionalmente. Trata-se aqui, contudo, de uma metamorfose e não de
uma ressurreição do objecto cultural, com novas funções dentro de um novo contexto,
orientado pelas exigências do sector terciário.
Em conclusão, este texto estudou um barco com características únicas que, de início,
estava estreitamente ligado a uma comunidade e a uma economia local. Mais tarde, ao
longo do século XX, o moliceiro e seus painéis participaram numa complexa dialéctica
entre as representações do discurso oficial e a sua real função social, económica e
simbólica. Contudo, os actuais agentes do turismo e da economia de mercado não
podem dissociar-se do imaginário histórico – ou do inventário – que motivou,
Clara Sarmento
68
contextualizou e sustentou esta forma de cultura popular durante séculos, sob pena de
estenderem a Portugal os teatros etnográficos e os museus de práticas perdidas em que
tantas outras culturas foram já transformadas.
CLARA SARMENTO
Doutorada em Cultura Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Professora Coordenadora no Instituto Superior de Contabilidade e Administração do
Porto do Instituto Politécnico do Porto (ISCAP-IPP). Directora do Mestrado em Tradução
e do Centro de Estudos Interculturais (www.iscap.ipp.pt/~cei) do ISCAP-IPP. Vencedora
do American Club of Lisbon Award for Academic Merit e do Prémio CES para Jovens
Cientistas Sociais de Língua Oficial Portuguesa.
Contacto: [email protected]
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70
DIÁLOGOS E MODOS DE ACTUAÇÃO COLECTIVA COM VISTA À SUSTENTABILIDADE DO
SOBREIRO EM PORTUGAL1
ANABELA MARISA AZUL
CENTRO DE ECOLOGIA FUNCIONAL, UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Resumo: Neste texto procura-se caracterizar o sobreiro e o montado de sobro em Portugal, numa perspectiva de analisar as inter-relações entre os agentes ecológicos, económicos, sociais e ambientais, incluindo-se uma breve síntese histórica, com vista a identificar quais as condições associadas à vulnerabilidade e à sustentabilidade ecológica do sobreiro. A propósito do declínio, morta súbita, e desenvolvimento do sobreiro em Portugal, procura-se, também, reflectir sobre o valor da biodiversidade do montado, e analisar em que medida a conservação da biodiversidade associada ao sobreiro congrega o diálogo entre ciência e outros saberes, e a construção de modos de actuação colectiva, entre conhecimento, agentes e sociedade, no sentido de uma sustentabilidade plural. Palavras-chave: sobreiro, montado, sustentabilidade, diálogo, actuação colectiva.
Nas condições tão frequentemente ingratas de solo e de clima do nosso País, o sobreiro é uma árvore preciosa... Nenhuma árvore dá mais exigindo tão pouco.
Joaquim Vieira de Natividade, 1950
O retorno a uma atitude de questionamento e debate permanente aberto sobre o sentido e a aplicação dos diferentes saberes é hoje uma necessidade urgente.
Boaventura de Sousa Santos et al. (2004: 5)
INTRODUÇÃO
O montado2 de sobro é reconhecido como um exemplo de sucesso de uso do solo
1 Este artigo apoia-se na investigação realizada no âmbito do projecto Ciência Viva, “O Montado: da
biodiversidade aos serviços do ecossistema” (CV, 16867), financiado pelo Programa Operacional Factores de Competitividade (COMPETE), com o investigador principal Anabela Marisa Azul, e reúne informação procedente de investigação científica no domínio da taxonomia e ecologia de fungos micorrízicos associados ao sobreiro em áreas de montado, resultante de vários projectos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), devidamente identificados ao longo do texto. 2 Povoamento aberto de sobreiro e/ou azinheira (onde também poderão estar presentes outros carvalhos,
oliveiras, e/ou pinheiros manso e bravo), com uma densidade de 60 a 100 árvores por hectare e um a dois estratos de vegetação em sob-coberto. No texto o termo montado refere-se ao montado de sobro (sobreiro).
Anabela Marisa Azul
71
sustentável na Europa, por combinar dois aspectos fundamentais: produção e
conservação, com repercussões positivas aos níveis ecológico, económico, social e
ambiental. Não obstante, assistimos, desde as duas últimas décadas, ao agravamento do
declínio e morte súbita do sobreiro em Portugal. São vários, complexos, e ainda não
totalmente compreendidos, os factores implicados no seu declínio. Modificações
profundas no uso do solo do sob-coberto do montado no decorrer da segunda metade do
século XX, o estabelecimento e aumento da agressividade de agentes patogénicos, e o
stress hídrico, são apontados como factores intimamente associados à vulnerabilidade do
sobreiro. Esta situação de vulnerabilidade expõe, por um lado, a necessidade de
conhecer novos parâmetros biológicos e ecológicos que possam influenciar a vitalidade
do sobreiro; por outro lado, a urgência do diálogo entre ciência e outros saberes, e a
construção de modos de actuação colectiva, entre conhecimento, agentes e sociedade,
para mitigar o declínio e promover o desenvolvimento sustentável do sobreiro.
Tradicionalmente, o montado está associado uma exploração do tipo agro-silvo-
pastoril3, onde a cortiça e a actividade silvopastoril representam os produtos com maior
valor económico. No entanto, são múltiplos os produtos que resultam da hierarquização
de espaços e de usos do montado, como vem descrito adiante.
Paralelamente aos múltiplos produtos tradicionais, emergem novos níveis de
utilização do montado, por incorporação de valores de dimensões social e ecológica,
nomeadamente o turismo, a caça associativa e a conservação da biodiversidade4,
integrada nos serviços dos ecossistemas5. A conservação da biodiversidade do montado
abre caminho para um conjunto de questões de particular relevância e interesse: que
futuro se pretende para o sobreiro e o montado em Portugal? Qual o valor da
biodiversidade enquanto contributo para mitigar o declínio e morta súbita do sobreiro? Em
que medida a biodiversidade associada ao sobreiro congrega o diálogo entre ciência e
3 Normalmente seguindo um regime de rotação de culturas de 9 anos, com um período de 6-8 anos de
actividade silvopastoril extensiva (gado ovino e bovino e/ou porco preto), seguido de um período de 1 a 2 anos de cultivo de cereais (trigo no primeiro ano; aveia, centeio, ou cevada, no segundo ano). O período de produção de cereais é decidido em função da qualidade do solo e corresponde à fracção menos importante da exploração do montado. No entanto, a actividade agrícola representa uma estratégia eficaz no controlo do crescimento do mato e da compactação do solo (Pinto-Correia, 1993). 4 O tema de conservação da biodiversidade nasce com o estudo dos ecossistemas a partir da década de 40
no século XX (e.g., Fisher, 1943), com o intuito de compreender melhor as relações entre os seres vivos e o meio envolvente. Rapidamente é acolhido na comunidade científica mundial e em compromissos internacionais. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida por Cimeira da Terra, realizada no Rio de Janeiro em 1992, no Brasil, representa o primeiro compromisso global para conservação da biodiversidade e a sustentabilidade. Nas últimas duas décadas assiste-se a um debate crescente à volta da conservação da biodiversidade, aos níveis local, nacional e global. 5 Os serviços dos ecossistemas representam os serviços e os processos decorrentes do funcionamento dos
ecossistemas e incluem, nomeadamente, a conservação da diversidade biológica, a regulação dos ciclos de nutrientes e recursos hídricos, e o sequestro de carbono (Pereira et al., 2009).
Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal
72
outros saberes, e a construção de modos de actuação colectiva no sentido da
sustentabilidade?
O amplo acolhimento da biodiversidade e do mundo natural destaca-se nas agendas
políticas aos níveis local, nacional e global, mas gera desafios de natureza muito diversa.
Por outro lado, o diálogo e a construção de modos de actuação colectiva, numa
perspectiva de promover equilíbrios dinâmicos entre o mundo natural e o bem-estar das
pessoas, são complexos, mas indeclináveis, sobretudo perante os actuais cenários de
risco, incerteza e imprevisibilidade, e em especial os que estão relacionados com o uso
indiscriminado e indisciplinado dos recursos naturais. É precisamente sobre o valor da
biodiversidade do montado, enquanto contributo para o diálogo e a actuação colectiva no
sentido da sustentabilidade, que incide a terceira análise no texto; nela tomaremos como
vector de análise Santos et al. (2004).
De seguida, far-se-á a caracterização do sobreiro e do montado em Portugal, numa
perspectiva de analisar as inter-relações entre os agentes ecológicos, económicos,
sociais e ambientais, incluindo uma breve referência à história no tempo e no espaço, e
às influências políticas e legais, com vista a identificar factores associados à
vulnerabilidade e à sustentabilidade ecológica do sobreiro. Na segunda parte do texto é
apresentado o caso de estudo de uma investigação científica que envolveu a colaboração
activa entre cientistas, de Ciências Biológicas e de Ciências Agrárias e Ambientais, e
proprietários de montado. O estudo em causa incidiu principalmente sobre fungos
mutualistas do solo, com o intuito de analisar, por um lado, quais os impactes do uso do
solo na biodiversidade do montado; por outro, quais as potenciais implicações da
biodiversidade do solo para a vitalidade do sobreiro e sustentabilidade ecológica. Na
terceira parte do texto, procura-se reflectir sobre o desenvolvimento do sobreiro em
Portugal, e analisar em que medida a conservação da biodiversidade do montado
congrega o diálogo entre ciência e outros saberes, e a construção de modos de actuação
colectiva entre conhecimento, agentes e sociedade, para a sustentabilidade.
1. O SOBREIRO E O MONTADO EM PORTUGAL
1.1. PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
O sobreiro6 (Quercus suber L.) ocupa uma mancha superior a 736 700 hectares em
Portugal continental, maioritariamente em montado, associado a uma exploração
extensiva do tipo agro-silvo-pastoril. A distribuição actual do sobreiro está intimamente
6 Árvore da família Fagaceae, que se distingue pela presença de cortiça a envolver o tronco e ramos. No
presente estende-se por uma área de 2.2 x106 hectares, na Europa (Portugal, Espanha, França e Itália) e
norte de África (Marrocos, Argélia e Tunísia). Em Portugal continental, predomina nas regiões Alentejo (72%) e Lisboa e Vale do Tejo (21%), e em algumas zonas do Algarve, Beira Interior e Trás-os-Montes (DGRF, 2007a).
Anabela Marisa Azul
73
relacionada, por um lado, com as adaptações ecofisiológicas do sobreiro ao clima
Mediterrânico7 e balanço das condições geomorfológicas e hídricas do solo8; por outro,
com a hierarquização de espaços e de usos, incorporada na grande exploração
fundiária9.
Tradicionalmente são múltiplos os produtos obtidos a partir do montado10, embora a
cortiça11 represente o produto com maior valor económico. Portugal é o líder mundial de
produção de cortiça12, e, simultaneamente, o maior exportador13 e importador14 mundial.
A produção de cortiça é proveniente de pequenos e médios produtores florestais e
corresponde a cerca de 30% do total das exportações portuguesas de produtos
associados à floresta (DGRF, 2007c). O sector da cortiça está, sobretudo, associado às
rolhas e indústria vinícola (que absorve 66% da cortiça produzida, INE, 2009), e ao sector
da construção civil (que absorve 21% da cortiça produzida, INE, 2009). No entanto,
crescem as múltiplas e diversificadas aplicações da cortiça, e em novos sectores da
indústria, como a automóvel, a aeronáutica, ou a farmacêutica (Pereira, 2007). A
valorização do sector da cortiça tem estado na agenda política nacional15. Desde um
ponto de vista socioeconómico, existem cerca de 700 empresas a operar no sector da
cortiça16, distribuídas por dez distritos.
Segue-se a componente silvopastoril, que representa o segundo produto com maior
valor económico a partir do montado (INE, 2009), e da qual se destacam a exploração
7 O clima mediterrânico apresenta amplitudes térmicas elevadas e um período mínimo de seca durante dois
meses. Na região Sul de Portugal continental, a precipitação média anual é cerca de 570 mm/ano. 8 Sobre estes temas veja-se os textos de Teresa Soares David et al. (2007) e de António Gouveia e Helena
Freitas (2009). 9 Da qual resulta uma paisagem em mosaico muito diversificada, normalmente com um povoamento rural
concentrado em montes e aldeias compactas. 10
Principalmente a cortiça, carne, madeira, bolota, cereais, forragens, frutos silvestres, apicultura, plantas medicinais, cogumelos, e a caça. 11
Corresponde a um tecido secundário, produzido continuamente pela árvore, e resulta da acumulação de suberina e outros compostos (como a celulose, taninos, lenhina, ceras e outros polissacáridos) na parede celular da célula. A estrutura e composição química da cortiça conferem-lhe propriedades físicas, mecânicas, térmicas, viscoelásticas, e acústicas, únicas (Pereira, 2007). 12
A produção de cortiça em Portugal correspondente a 52% da produção mundial de cortiça em bruto (INE, 2009). 13
Cerca de 90% da cortiça transformada é destinada ao mercado internacional, com mais de 150 mil toneladas de cortiça exportada por ano. Em 2009 as exportações do sector ascenderam aos 698,3 milhões de euros, o equivalente a 144,8 mil toneladas de produtos de cortiça exportados (INE, 2009). O valor económico gerado pelas exportações do sector da cortiça representa aproximadamente 0,7% do Produto Interno Bruto e 2,2% do valor das exportações totais portuguesas (DGRF, 2007c). O sector da cortiça tem-se mantido em expansão desde 1990 (DGRF, 2007c). No entanto, o valor da exportação registou decréscimos nos últimos anos devidos a uma diminuição da produção e do preço (DGRF, 2007c). 14
A importação tem como destino a transformação e posterior exportação sob a forma de produtos de consumo final. Em 2009 foram importados 41 milhares de toneladas de cortiça, a maioria de Espanha (INE, 2009). 15
Na estratégia de apoio à Internacionalização dos Produtos de Base Florestal foi estabelecido o objectivo de aumentar a exportação da cortiça em 7%, em 2011. 16
Com a fracção maior de emprego nos distritos de Aveiro (Concelho de Santa Maria da Feira) e Setúbal: 75% e 12%, respectivamente (INE, 2009).
Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal
74
extensiva do porco alentejano17 e de gado bovino e ovino. A exploração silvopastoril no
montado conta, ainda, com o aumento crescente de produção de carne e seus derivados,
e de queijo, como resultado de estratégias de Denominação de Origem Protegida e
Indicação Geográfica Protegida (MADRP, 2007b).
A par dos produtos tradicionais do montado, emergem novos níveis de utilização do
território e, com eles, a redefinição da paisagem por incorporação de valores de
dimensão social e ecológica, que adquirem valor económico crescente, como é o caso do
turismo, as zonas de caça associativa e a exploração de produtos silvestres (e.g., frutos e
cogumelos), previstos no Plano Estratégico Nacional de Desenvolvimento Rural (MADRP,
2007a). Estas novas dimensões socioecológicas da paisagem apoiam-se, sobretudo, em
motivações de carácter social e cultural, e ocupam, ainda, uma posição marginal (Pinto-
Correia, 2010; Pinto-Correia et al., 2011b; Surová et al., 2011), e com financiamento
intimamente dependente do Estado.
Mais recentemente, surge a valorização do montado associada aos serviços dos
ecossistemas, por redefinição da importância atribuída aos processos que ocorrem na
natureza, e que oferecem, entre outros, os serviços de protecção biológica, ecológica e
ambiental (Pereira et al., 2009). Nesta perspectiva, o montado, em regime de exploração
extensiva, contribui para preservar habitats, manter índices de diversidade biológica
elevados18, assegurar a regeneração natural do sobreiro19, controlar a competição intra-
específica20, e regular os processos biogeoquímicos do solo.
O montado pode ser considerado um ecossistema complexo, reconhecido como um
exemplo de sucesso de uso do solo sustentável na Europa, e classificado pela Agência
Europeia do Ambiente como um sistema agrícola de «elevado valor natural»21. Não
obstante, assiste-se, desde as duas últimas décadas, ao agravamento do declínio e
morte súbita do sobreiro (DGRF, 2006; MADRP, 2007c; Ribeiro e Surovy, 2008). Admite-
se que modificações profundas no uso do solo em sob-coberto, o stress hídrico, e o
estabelecimento e aumento da agressividade de agentes patogénicos, representam
factores importantes para o quadro de vulnerabilidade do sobreiro a que assistimos hoje.
Estudos realizados nas áreas das Ciências Agrárias e Ambientais e Ciências Biológicas
revelam que as alterações no uso do solo ao longo do século XX conduziram à
17
O porco alentejano representa um dos produtos mais característicos do montado em Portugal; a sua produção tem vindo a subir, mas está ainda abaixo do potencial produtivo. As bolotas alimentam o porco alentejano; as pastagens naturais, forragens e restolhos das colheitas, alimentam o gado bovino e ovino. 18
Desde os níveis tróficos mais baixos, como as comunidades de fungos e invertebrados (Azul et al., 2011), aos níveis tróficos mais altos, incluindo várias espécies de aves de rapina e mamíferos protegidos (Pereira et al., 2009). 19
Sobre este tema veja-se o texto de Josep Pons e de Juli G. Pausas (2006). 20
Sobre este tema veja-se o texto de António Gouveia e Helena Freitas (2008). 21
Sobre este tema veja-se o texto de Maria Luisa Paracchini et al. (2008).
Anabela Marisa Azul
75
simplificação da paisagem (Pinto-Correia, 1993), à perda de diversidade biológica
(Pereira et al., 2009), à redução de reservas de água (Pereira et al., 2009), à sobre-
exploração do solo (Hector et al., 1999; Da Silva et al., 2009; Azul, 2002; Azul et al.,
2009a), ao aumento do risco de incêndios de grandes proporções (Silva e Catry 2006;
Catry et al., 2006; 2009; Moreira et al., 2010), e ao aumento de incidência de doenças22
(Brasier, 1996; Brasier e Scott, 2008).
Ainda assim, a área ocupada pelo sobreiro em Portugal tem vindo a aumentar cerca
de 2 000 hectares por ano desde 1956, a partir de uma área estimada em 637 000
hectares (Nogueira, 1990), e subiu para cerca 3 500 hectares por ano a partir de 198023.
Seguidamente apresenta-se uma breve síntese da história do sobreiro e do montado
em Portugal, com vista a interpretar melhor quais as inferências decorrentes da evolução
no tempo e no espaço, para a vulnerabilidade e declínio do sobreiro.
1.2. BREVE SÍNTESE HISTÓRICA
O sobreiro é uma árvore nativa da bacia do Mediterrâneo, no período Terciário (Magri et
al., 2007)24. Os bosques abertos de sobreiro e outros carvalhos, que viriam dar origem ao
ecossistema montado, começaram a ser desenhados, primeiro na transição do
Quaternário para o Neolítico25, depois durante os períodos de romanização, de invasão
dos bárbaros e dos muçulmanos, e da reconquista (Fonseca, 2004). O montado como
sistema agro-silvo-pastoril teve origem nos séculos XII, XIII, XV e XVI, e a sua história
está intimamente associada com a formação e consolidação do território de Portugal
22
Estudos em modelação ecológica advertem que as alterações climáticas previstas para a bacia do Mediterrâneo constituem um factor de risco efectivo para a sustentabilidade do sobreiro, e outros carvalhos, por favorecerem o estabelecimento e a agressividade de agentes patogénicos do solo (Brasier e Scott, 2008). 23
Como resultado de medidas agro-ambientais financiadas pela União Europeia. Sobre este tema veja-se os textos da Direcção Geral de Florestas (1985, 2001). 24
Entre os períodos Oligoceno e Mioceno há cerca de 15-25 milhões de anos. Trabalhos de paleoecologia indicam que no início do Miocénico predominava numa grande parte na Península Ibérica a floresta laurissilva devido a um macrobioclima tropical. O loureiro (Laurus nobilis L.), o azereiro (Prunus lusitanica L.), o azevinho (Ilex aquifolium L.), o teixo (Taxus baccata L.) são algumas espécies que reportam a floresta laurissilva do passado. A partir do Miocénico médio ocorreram cataclismos climáticos e geológicos que desencadearam grandes transformações na paisagem. Destacam-se os movimentos tectónicos alpinos (há 5,3-1,8 milhões de anos) de onde resultou o relevo do território português, a formação da bacia do Mediterrâneo (há 7,2-5,3 milhões de anos), a transição do macrobioclimatropical para o clima mediterrânico, e as glaciações (há 1,8 milhões de anos – 10 000 anos). O maqui mediterrânico com flora adaptada a períodos de secura domina na Península Ibérica desde o final do Terciário. São exemplos de flora nativa o sobreiro, a azinheira, outros carvalhos (Quercus sp.), os medronheiros (Arbutus sp.), as estevas (Cistus sp.), as murtas (Myrtus sp.), os zambujeiros (Olea sp.), alguns pinheiros (Pinus sp.), e as palmeiras-das-vassouras (Chamaerops sp.). 25
O período de transição para o Neolítico no território nacional continental iniciou-se há 7500 a 4000 anos. Durante esse período a agricultura itinerante consistia na queima de pequenas áreas de floresta e mato, seguida de mobilização superficial do solo. Os solos eram cultivados durante o período fértil possível e depois eram abandonados, o que contribuía para o restabelecimento da vegetação natural. O controlo do avanço das espécies lenhosas (arbustos e árvores) era feito pela herbivoria dos animais domésticos. Estes ciclos rotativos de uso do solo foram desenhando a paisagem e os bosques pristinos de Querci foram sendo
progressivamente substituídos por mosaicos seminaturais não arbóreos, como os prados, e por bosques abertos do tipo montado.
Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal
76
continental26. Joaquim Vieira de Natividade (1950) apresenta-nos um sumário
relativamente à trajectória do sobreiro e paisagem que lhe está associada ao longo dos
últimos oito séculos:
Nos territórios entre o Douro e o Minho, mais férteis e já densamente povoados
antes de se constituir a nacionalidade, os núcleos florestais fragmentaram-se
corroídos pela cultura agrícola. O mais intensivo aproveitamento da terra, o
incessante parcelamento da propriedade, expulsam o sobreiro das regiões mais
férteis como espécie de pouca valia, e onde aliás ela não pôde competir com as
outras quercíneas de mais rápido crescimento e tidas então em maior apreço. Nas
regiões montanhosas e mais agrestes do Minho, da Beira Alta e da Beira Baixa, a
floresta natural, abrigo de animais daninhos que ameaçam as culturas, ou reduto de
feras temidas pelo próprio homem, e que dizimam os rebanhos e constituem
impedimento ao pastoreio, desaparece a pouco e pouco pela acção destruidora do
fogo, do homem e dos gados. Os terrenos baldios, cobertos por uma vegetação
pobre que substitui a floresta clímace, estendem-se hoje ainda por centenas de
milhar de hectares... No centro do País, e mais particularmente no Alentejo, se bem
que lutas frequentes numa época anterior à constituição da nacionalidade hajam
reduzido a área suberícola, a floresta natural, mercê da menor densidade da
população, do clima mais árido, da forma por que se realizou o povoamento, e
graças também à protecção dispensada aos arvoredos pelas nossas leis agrárias,
pôde atravessar, não sem graves danos, minguando-se, fragmentando-se e
degradando-se, um longo período de sete séculos. Só a partir do começo do século
XVIII a valorização da cortiça revelou que imprevista riqueza constituíam os
montados de sobro, e só então a subericultura portuguesa, verdadeiramente,
nasceu (Natividade, 1950: 37-39).
Entre as circunstâncias que influenciaram a hierarquização de espaços e de usos do
montado destacam-se, a transumância controlada pelo Conselho de Mesta entre a
Cordilheira Central e o Alentejo, desde a Idade Média até ao século XIX (Ferreira, 2001);
o início da exploração de cortiça, no século XVIII27; o desenvolvimento de técnicas de
26
Sobre este tema veja-se o texto de Teresa Pinto-Correia e Ana Fonseca (2009). 27
Sobre este tema veja-se a obra Subericultura de Joaquim Vieira de Natividade. Refira-se apenas que a exploração de cortiça foi um processo lento, que só avançou verdadeiramente no século XX. No início da década de 30, a política do Estado Novo, desencorajadora da entrada de novos investimentos estrangeiros, acabou por contribuir para o desenvolvimento da subericultura. Mas só na década de 40 e 50 a cortiça é reconhecida como produto estratégico. Sobre a subericultura no século XX, veja-se Ignacio García Pereda (2009).
Anabela Marisa Azul
77
desbaste selectivo do sobreiro para aproveitamento agrícola em sob-coberto, no século
XVIII; e a recuperação da área de montado, sobretudo no Alentejo, no século XIX28.
Mas é no decorrer do século XX que ocorrem as transformações mais profundas na
paisagem do montado. Denise de Brum Ferreira (2001) apresenta-nos uma sinopse do
contexto socioeconómico e político no Alentejo interior durante o século XX, onde expõe
três fases de pressão que conduziram a uma situação de exploração do montado
dependente de políticas agrárias: a primeira, a Lei dos Cereais de Elvino de Brito; a
segunda, durante a Campanha de Trigo entre 1929 e 1935 (com prolongamento até final
da 2ª Guerra Mundial); e a terceira, a Reforma Agrária entre 1975 e 1979. De facto, o
montado, com a sua paisagem hierarquizada de espaços e de usos, quase desapareceu
por completo na segunda metade do século XX, evoluindo para duas situações de
vulnerabilidade, a que Teresa Pinto-Correia (1993) denomina por «intensificação» e
«extensificação» do montado. A «intensificação» do montado refere-se à situação
decorrente da Campanha do Trigo nas décadas de 30, 40 e 50, da qual resultou a
desarborização do sobreiro, e o desequilíbrio sobre os três vértices de exploração
extensiva: árvores, culturas arvenses e pastagens. A «extensificação» do montado,
reporta-se ao abandono das práticas de cultivo em sob-coberto e aos processos naturais
de regressão ecológica subsequentes29, também eles indutores de vulnerabilidades pelo
aumento da competição por nutrientes do solo e água, e pela reintrodução do fogo como
agente modelador da paisagem.
Esgotado o modelo do cultivo de cereais, e deslocados os objectivos políticos para a
indústria urbana, inicia-se um novo ciclo através da implementação do Plano de
Povoamento Florestal30 e do Plano de Fomento Suberícola31, e, depois, novas
redefinições no uso da terra decorrentes da Política Agrícola Comum32. Estas
28
Como consequência de metamorfoses na paisagem rural. Entre as metamorfoses, realçam-se o recuo do maqui mediterrânico, os arroteamentos, o progresso do caminho-de-ferro, a densificação da rede de estradas, alterações demográficas, e as primeiras leis proteccionistas para as culturas de cereais (Ferreira, 2001). A arborização contribuiu para o crescimento de uma área de 370 000 hectares de sobreiros e azinheiras em 1887 para 868 850 hectares em 1902 (Vieira apud Ferreira, 2001: 181). 29
Áreas de montado com estrato essencialmente arbóreo e herbáceo e/ou sistemas silvopastoris com arbustos artificialmente mantidos em baixas densidades, foram progressivamente colonizadas por vegetação arbustiva nativa, atingindo o estrato arbustivo uma densidade de ocupação de 85 a 95%, com arbustos com 1,5 a 2 m de altura. 30
No início do século XX foi instituído o Regime Florestal (Lei n.º 1971, de 5 de Junho de 1938) na tentativa de responder às necessidades de arborização de grandes extensões de terrenos incultos, e travar o declínio da floresta portuguesa e fenómenos erosivos do solo, por uso indiscriminado e indisciplinado dos baldios serranos. Numa primeira fase (1938-1944), o Plano de Povoamento Florestal consistiu na arborização de 287 mil hectares de terrenos incultos, cerca de 97% dos quais com pinheiro-bravo, quase em exclusivo na região Norte e Centro, e a restante percentagem com sobreiro, nas bacias do Tejo e do Sado e algumas zonas de Trás-os-Montes. Na segunda fase (1945-1986), o Plano de Povoamento Florestal reorienta-se para a propriedade privada, promovendo o reinício da arborização com sobreiro e azinheira e a pecuária extensiva do sul do país (Baptista, 1993). 31
Lei n.º 2069, de 1954, orientada para a propriedade privada e impulsiona a retoma suberícola em alguns territórios do Sul. 32
Com a entrada no Mercado Comum, e os acordos de comércio mundiais, verificou-se um decréscimo nos
Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal
78
circunstâncias, resultantes de influências políticas, vieram também revelar-se
simplificadoras da paisagem tradicional do montado, não apenas pelos impactes directos
na perda da biodiversidade e da resiliência do solo, mas também pela introdução de
novas vulnerabilidades, designadamente os incêndios recorrentes e de grandes
dimensões33, a dispersão massiva de espécies exóticas34, e o estabelecimento e
expansão de novos agentes patogénicos35, como a Phytophthora e o nemátodo da
madeira do pinheiro.
São também pontos de interesse, indissociáveis da história, o plano legal para o
sobreiro e o montado. Portugal possui o plano legislativo mais antigo36 e completo para
proteger o sobreiro, que inclui um conjunto de leis e medidas para defender a árvore, a
cortiça, o solo arborizado e o subericultor (ver Mendes, 2002). O montado está
legalmente protegido em Portugal (Decreto-Lei nº 169/200137) e na Europa (Directiva
92/43/CEE38). No passado, o território ocupado pelo montado circunscrevia-se ao
pastoreio, à caça e a actividades colectoras, e não estava dependente da propriedade.
No presente, a realidade é bem distinta e a área ocupada pelo sobreiro representa a
componente da floresta portuguesa onde a propriedade privada individual e não industrial
tem mais peso. Não é o propósito desta reflexão incidir sobre a função reguladora da
propriedade, a herança de estruturas patrimoniais fundiárias, a tendência neo-
patrimonialista na sequência da crescente demissão do Estado-Providência, as
expectativas em torno do valor do património fundiário ou, ainda, as consequências das
políticas europeias de subsídios desligadas da mobilização produtiva dos recursos39. No
entanto, existem condições legais e políticas, como foi exposto, cuja complexidade
preços agrícolas, só parcialmente compensado pela introdução ou aumento de subsídios. Esta condição conduziu à redefinição de novos modelos de exploração do montado, nomeadamente a conversão do uso multifuncional para regadio, a intensificação da actividade silvopastoril, por aumento do encabeçamento do gado, e a conversão do montado para floresta de produção, através da introdução de monoculturas de espécies arbóreas de crescimento rápido, como é o caso do eucalipto e do pinheiro. A floresta de produção oferece a possibilidade de rentabilidade a curto prazo e o absentismo do proprietário. 33
O fogo faz parte da história dos ecossistemas mediterrânicos, mas coloca em risco o bem-estar das pessoas (Silva et al., 2010) e potencia o estabelecimento e dispersão de espécies exóticas com capacidade de invasão. Em Portugal existe o Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios (Resolução do Conselho de Ministros nº 65/2006), que visa, entre outras medidas, desenvolver um programa de fogo controlado. As equipas de fogo controlado actuam no terreno desde 2009, sobretudo na região Norte e Centro, e em áreas de floresta de produção (ver http://www.afn.min-agricultura.pt/portal/dudf/gauf). Sobre este tema evoca-se prudência por ser limitado o conhecimento sobre quais os impactes da temperatura do fogo na biota do solo. 34
Veja-se o trabalho de Luís Carvalho et al., 2010. 35
Para a Phytophthora veja-se o trabalho de Brasier e Scott (2008), para o nemátodo da madeira do pinheiro veja-se http://www.afn.min-agricultura.pt/portal/pragas-doencas/. 36
O documento mais antigo refere-se à protecção do fruto, a bolota, e data de 1209 (Costumes e Foros de Castelo Rodrigo, apud Fonseca, 2004). 37
Decreto-Lei n.o 169/2001, de 25 de Maio, que define as regras para a protecção do sobreiro e da azinheira e os povoamentos destas espécies, nomeadamente os sistemas com aproveitamento agro-silvo-pastoril conhecidos por «montados». 38
Directiva 92/43/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1992, relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens. O.J. European Commission, L206(7). 39
Sobre estes temas veja-se a obra A Política Agrária do Estado Novo de Fernando Oliveira Baptista (1993).
Anabela Marisa Azul
79
causa/efeito importa analisar para compreender melhor em que medida as suas
influências poderão ter contribuído para a diminuição da resiliência do montado e o
declínio do sobreiro.
2. ESTUDO DE CASO SOBRE O DIÁLOGO CIÊNCIA–SOCIEDADE: MICORRIZAS NO MONTADO
Reporta-se o contributo de uma investigação multidisciplinar, transdisciplinar e integrada,
entre ciência e outros saberes, desenvolvida em áreas de montado na região do
Alentejo40. O caso aqui apresentado incidiu principalmente sobre o estudo das
micorrizas41 do sobreiro e teve por base dois objectivos principais, primeiro, caracterizar a
comunidade de fungos micorrízicos em áreas de montado com diferentes usos do solo;
segundo, analisar quais os impactes do uso do solo na composição e estrutura da
comunidade daqueles mutualistas, com vista a compreender quais as potenciais
implicações da biodiversidade do solo para o estado fitossanitário da árvore e
sustentabilidade ecológica.
Numa primeira fase da investigação, foi efectuado o estudo das micorrizas em
montados distribuídos ao longo da mancha com melhor produção de cortiça, entre Ponte
de Sôr, Mora, Coruche, Montemor-o-Novo, Alcácer do Sal, Serra de Grândola e Santiago
do Cacém, onde foram seleccionadas áreas com e sem mortalidade do sobreiro. Para
além dos fungos micorrízicos, o estudo incluiu, por um lado, a avaliação de parâmetros
climáticos e edáficos, e a vegetação companheira (incluindo a regeneração natural de
sobreiro); por outro, a história42 do uso do solo em sob-coberto desde meados do século
XX, a avaliação dos produtos com expressão económica, e as motivações dos
proprietários para as estratégias de gestão adoptadas. Os resultados revelaram que a
composição e estrutura da comunidade de fungos micorrízicos associada ao sobreiro é
40
Este caso de estudo apoia-se numa investigação realizada no âmbito de um projecto de investigação de pós-doutoramento na área das Ciências Biológicas, especialidade Ecologia, na Universidade de Coimbra, com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT): Diversidade dos fungos ectomicorrízicos em ecossistemas de Montado com diferentes usos do solo e em condições fitossanitárias distintas - Implicações para o funcionamento do ecossistema (SFRH7 BPD/ 5560/ 2001); e dois projectos de investigação, com o Investigador Principal a Professora Helena Freitas, também apoiados pela FCT: Sistemas de uso do solo e a diversidade de fungos micorrízicos em ecossistemas de Montado – exemplos da região Alentejo (PRAXIS/P/AGR/11165/1998), e Sistemas de uso do solo e a diversidade de fungos micorrízicos em ecossistemas de montado (POCTI/AGG/ 42349/ 2001). 41
As micorrizas são associações entre fungos e raízes das plantas. Em condições naturais, a maior parte das plantas forma micorrizas, sendo que a associação é considerada benéfica para o fungo e para a planta. As micorrizas são essenciais para a estabilidade, conservação e produtividade de todos os ecossistemas terrestres. Os benefícios da associação micorrízica na nutrição mineral reflectem-se na vitalidade das plantas e na manutenção do equilíbrio do solo, prevenindo a colonização por fungos parasitas oportunistas e diminuindo a susceptibilidade do solo a fenómenos de erosão e desertificação. Na última década assiste-se a um interesse crescente da comunidade científica pelo conhecimento das micorrizas nos ecossistemas naturais, no sentido de conhecer a diversidade real deste grupo de seres vivos, e de compreender melhor o seu papel na protecção e produtividade do solo, e influência na dinâmica das comunidades vegetais. 42
Dados obtidos a partir de inquéritos e entrevistas efectuadas aos proprietários. Este estudo foi feito em colaboração com Ana Fonseca e Teresa Pinto Correia no âmbito de um dos projectos de investigação mencionados antes (Praxis/P/AGR/11165/1998). Veja-se parte do inquérito e resultados em Azul et al., 2010.
Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal
80
bastante diversificada (Azul, 2002), e que é possível estabelecer uma relação entre a
biodiversidade do solo, as práticas de gestão e o estado fitossanitário da árvore (Azul et
al., 2010; 2011). A diversidade e a abundância de fungos micorrízicos foram mais
elevadas em áreas de montado com exploração silvopastoril em regime extensivo, e, em
especial, nas situações cuja opção passa por manter espécies arbustivas autóctones
numa densidade não superior a 50% da cobertura vegetal total. Em contrapartida, a
diversidade e a abundância dos mesmos mutualistas do solo, foram substancialmente
inferiores em áreas de montado com uma mortalidade de sobreiro superior a 0,3 árvores
por hectare, e em montados em situação de abandono do uso do solo em sob-coberto há
mais de 15 anos. O estudo das micorrizas incidiu em diagnósticos a partir das raízes de
sobreiro e envolveu metodologias clássicas e moleculares. Esta opção veio a revelar-se
importante para obter conhecimento científico sobre a estrutura versus função das
micorrizas em condições naturais. No entanto, levantou algumas limitações no que diz
respeito à divulgação dos resultados junto dos produtores e proprietários do montado.
Deste modo, sentiu-se necessidade de repensar estratégias e metodologias com vista a
desenvolver investigação científica e, paralelamente, integrar o diálogo numa perspectiva
de construir conhecimento e modos de actuação colectiva. Pelo interesse sob o ponto de
vista ecológico, e pelo valor económico crescente, levantou-se a questão de incorporar os
macrofungos43 nos parâmetros de análise de biodiversidade do solo.
A segunda fase de investigação incidiu nos impactes das práticas associadas ao
controlo da densidade de mato na biodiversidade do solo44, e na avaliação dos
macrofungos (e macrofauna) como parâmetros de análise de biodiversidade. O estudo
decorreu em parcelas experimentais estabelecidas na herdade Freixo do Meio45 e
43
A maioria dos fungos que formam micorrizas com o sobreiro produz macrofungos, conhecidos por cogumelos. O estudo das comunidades de fungos do solo com base na frutificação oferece algumas limitações, nomeadamente a fenologia do fungo (tempo e periodicidade da frutificação) e as condições climatéricas. Por outro lado, a presença das frutificações não reflecte, obrigatoriamente, o que se passa ao nível da raiz. Estabelecer correlações com significado ecofisiológico requer estudos continuados no tempo. Para o caso dos cogumelos, recomenda-se que a monitorização seja efectuada ao longo de um período mínimo de 4-5 anos. 44
Foram considerados como parâmetros de análise de biodiversidade os macrofungos e a macrofauna. 45
Localizada na Freguesia de Lavre, Concelho de Montemor-o-Novo, gere 670 hectares de montado misto de sobro e azinheira, e foi uma das herdades cuja opção de gestão revelou contribuir para a sustentabilidade ecológica do sobreiro (Azul, 2002; Azul et al., 2009a). A propriedade representa uma exploração com carácter
empresarial, totalmente convertida a produção biológica desde 2001. Os principais produtos de exploração são a cortiça e a componente silvopastoril, que inclui a produção de porco preto de raça alentejana, borrego raça merino, cabrito raça serpentina, gado bovino raça Barrosã e peru preto. Todas as raças são autóctones e existe um acompanhamento e registo genealógico dos reprodutores. Outros rendimentos complementares resultam de uma actividade agro-silvo-pastoril extensiva (madeira, lã, ovos, azeite, hortícolas, frutos, cogumelos silvestres, leguminosas, e alguns produtos transformados derivados), também a caça associativa, turismo rural e educação ambiental. A história do uso do solo em sob-coberto na herdade Freixo do Meio foi variando desde o início da exploração da propriedade, na segunda metade do século XX. No entanto, predominou uma gestão agro-silvo-pastoril seguindo o sistema tradicional de rotação de culturas. A gestão incluía o controlo artificial do crescimento do mato durante os períodos de actividade silvopastoril, que até 1970 era manual (ou através do pastoreio), e depois passou a ser mecânico, com corte seguido de
Anabela Marisa Azul
81
envolveu a análise das três práticas mais comuns. São elas o pastoreio, o corte mecânico
sem mobilização do solo, e o corte mecânico seguido de mobilização do solo.
O corte mecânico sem mobilização do solo revelou ser a estratégia que induz níveis
inferiores de perturbação na biodiversidade do solo e contribuir para a resiliência do
ecossistema. Em contrapartida, o corte mecânico seguido de mobilização do solo revelou
conduzir a uma redução significativa dos índices de biodiversidade do solo. Outro dado
importante foi a indicação de que a estratégia de corte mecânico sem mobilização do solo
contribui para a recuperação dos índices de biodiversidade do solo para valores próximos
da situação controlo46 num período de três anos após o corte (Azul et al., 2009a; Azul et
al., 2011; Mendes et al., 2011). Desta análise verificou-se, também, que os cogumelos (e
macrofauna) representam parâmetros de análise passíveis de serem quantificados e
replicados. Esta informação representa um dado importante para mitigar os impactes da
exploração do montado e proteger a sustentabilidade ecológica do sobreiro, assumindo
particular interesse no diálogo e actuação com diferentes actores do montado. Ainda
numa perspectiva de congregar o diálogo entre ciência e outros saberes, e promover o
conhecimento sobre o montado, a diversidade biológica e os processos que ocorrem no
mundo natural com vista a sustentabilidade, têm sido desenvolvidos projectos de
investigação-acção desde as idades mais jovens (Azul et al., 2007; Azul et al., 2009a, b;
Azul 2009).
São temas de investigação científica em curso a interacção entre mutualistas e
antagonistas do sobreiro e suas consequências para o estado de vitalidade do sobreiro,
assim como o diagnóstico de outros organismos cujo efeito no declínio não foi ainda
avaliado (Costa, 2011), em particular a flora associada ao sobreiro (que poderá actuar
como reservatório de pragas e doenças e/ou suprimir o efeito desses antagonistas) e
bactérias endofíticas (que poderão ser patogénicas e/ou promover o seu crescimento e
estado fitossanitário).
mobilização do solo. Entre 1975 e 1990 foram efectuadas rotações de culturas de trigo/ aveia/ forragem/ tremoço, entre ciclos de 4 a 5 anos. A partir de 1990, iniciou-se um período de gestão centrada na conservação dos recursos naturais (abandonaram-se as lavouras, diminuiu-se a produção de cereais e forragens, e efectuaram-se planos cuidados de adubação do solo). Nos últimos 20 anos, foram abandonados os cultivos de cereais e o sob-coberto do montado passou a ser ocupado essencialmente com pastagens naturais. O controlo do mato continuou a ser mecânico com corte à superfície do solo, intercalando zonas com e sem mobilização do solo. A composição florística do sob-coberto foi sempre idêntica, alternando-se plantas arbustivas e herbáceas nativas em função do momento no ciclo de culturas. O coberto arbóreo do montado também sofreu alterações desde o início da exploração; até 1990 eram efectuadas podas regulares com machado (em dias secos de Inverno), desde 1990 não se efectuam podas. A cortiça é extraída em períodos de 9 anos de intervalo, desde o início de Junho até meados de Agosto. A mortalidade do sobreiro é baixa em toda a herdade. Nos últimos 10 anos a empresa tem assumido como missão a sustentabilidade ecológica do montado. A herdade Freixo do Meio acolhe iniciativas múltiplas, desde a investigação científica em múltiplos domínios e em parceria com várias instituições, encontros entre produtores e proprietários, programas de educação ambiental, e feiras do montado abertas à comunidade (ver http://www.herdadedofreixodomeio.com/). 46
Sem qualquer intervenção no controlo da densidade do mato durante o período de estudo.
Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal
82
3. PERSPECTIVAS PARA O DESENVOLVIMENTO DO SOBREIRO EM PORTUGAL: ALGUMAS
PROPOSTAS
Continuam por se compreender todos os factores e circunstâncias implicados no declínio
e morte súbita do sobreiro. Porém, existe uma base de conhecimento científico e saberes
práticos sobre as condições que podem inferir na vulnerabilidade e sustentabilidade
ecológica do montado. Da caracterização e síntese histórica, e do caso de estudo
mencionado atrás, sobressaem resultados a dois níveis: por um lado, o montado como
um ecossistema complexo, produto de um trabalho social com identidade natural e
cultural; por outro, o potencial valor da biodiversidade do solo, associada à
hierarquização de usos e de espaços no montado, como contributo para a vitalidade do
sobreiro e a resiliência do ecossistema montado. Sobressai, também, que o
desenvolvimento do sobreiro em Portugal não depende exclusivamente de circunstâncias
ecológicas e ambientais, e que mitigar o declínio e promover a sustentabilidade, passa,
indubitavelmente, pelo diálogo entre ciência e outros saberes, e a construção de modos
de actuação colectiva, entre conhecimento, agentes e sociedade.
Um argumento que tem vindo a afirmar-se como estratégia para promover a
sustentabilidade do sobreiro é a conservação da biodiversidade do montado, seja pelo
reconhecimento da sua importância a um nível estrutural e funcional, seja pela atribuição
de valor económico aos serviços prestados pelos ecossistemas. Será que se nos
fixarmos no valor da biodiversidade do montado como fonte de matéria-prima para novos
produtos, por incorporação de valores de dimensão social e ecológica, o balanço para o
sobreiro poderá traduzir-se em processos promotores de equilíbrios dinâmicos para o
ecossistema?
É, hoje, indiscutível que a biodiversidade «constitui um importante recurso para a
humanidade, não só pelo seu valor utilitário como pelo seu valor estético»; e que
«diferentes formas de interacção e compreensão da natureza irão produzir diferentes
corpos de saber sobre a natureza» (Santos et al., 2004). Porém, o amplo acolhimento da
biodiversidade e dos serviços proporcionados pelos ecossistemas gera controvérsias47 e
desafios de natureza diversa (Fitter et al., 2010). Desde logo o conceito, tal como foi
definido pela Convenção sobre a Diversidade Biológica48 (1992), apresenta limitações,
primeiro por não considerar índices de biodiversidade e dinâmicas no tempo e no espaço;
segundo, por não incluir vínculos inter-relacionais entre a própria diversidade (Hamilton,
47
Sobre as controvérsias em torno da biodiversidade veja-se Santos et al., 2004. Sobre os desafios associados os serviços dos ecossistemas veja-se Fitter et al., 2010. 48
Biodiversidade ou diversidade biológica segundo a Convenção sobre Diversidade Biológica significa a “variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas” (Convenção sobre Diversidade Biológica, artigo 2; 1992).
Anabela Marisa Azul
83
2005). Por outro lado, o discurso sobre a biodiversidade representa «um discurso onde
se cruzam diferentes conhecimentos, culturas e estratégias políticas», que é utilizado
muitas vezes para autorizar e legitimar decisões retoricamente idílicas na promoção da
sustentabilidade, mas que na prática são impulsionadoras de esterilidade (Santos et al.,
2004). A propósito do declínio do montado, a morta súbita do sobreiro e o valor
económico crescente dos serviços dos ecossistemas, procura-se analisar, aqui, em que
medida a biodiversidade do montado congrega o objectivo de diálogo, de actuação
colectiva e de sustentabilidade, para o desenvolvimento do sobreiro em Portugal.
São vários os exemplos que indiciam o contributo da biodiversidade do montado para
o diálogo entre ciência e outros saberes, não apenas pelo diagnóstico dos elevados
índices de diversidade biológica, mas também pelo reconhecimento da relevância das
inter-relações entre os agentes ecológicos, económicos, sociais e ambientais, para a
sustentabilidade do sobreiro49. Neste texto referiu-se o caso de estudo de fungos
mutualistas do solo associados ao sobreiro, realizado em áreas de montado com e sem
sintomas de declínio, ao longo da mancha com melhor produção de cortiça, e que
envolveu o diálogo entre investigadores e proprietários. O estudo contribuiu, por um lado,
para reconhecer a importância da biodiversidade do solo para a vitalidade do sobreiro e
resiliência do montado; por outro, para criar e desenvolver estratégias de actuação
colectiva entre investigadores e proprietários com vista a uma sustentabilidade plural. Os
trabalhos de investigação multidisciplinares, transdisciplinares e integrados multiplicam-
se50 e corroboram a importância da biodiversidade para a sustentabilidade ecológica.
Mas, a biodiversidade do montado contribui, de igual modo, para o debate aos níveis
político e económico sobre o futuro que se deseja para o sobreiro em Portugal, também
pelos actuais cenários de risco, incerteza e imprevisibilidade, associados ao uso
indiscriminado e indisciplinado dos recursos naturais, e às alterações climáticas. Nas
últimas décadas a estratégia política nacional passou pela legitimação e promoção do
associativismo florestal, como forma de redefinir novas dinâmicas da floresta em
Portugal. No presente, existem cerca de cinquenta Associações de Proprietários e
Produtores Florestais com acção relevante nas zonas de produção suberícola. Estas
associações incorporam técnicos florestais que actuam junto dos associados com um
49
No domínio de diálogo entre ciência, destaca-se uma iniciativa recente na investigação científica, que reúne investigadores de diferentes áreas e com o objectivo estudar vários parâmetros-resposta do sobreiro a factores ambientais, a sensibilidade do sobreiro a pragas e a doenças, e os mecanismos envolvidos na formação de cortiça. Concurso de projectos financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia em 2009 (ver http://alfa.fct.mctes.pt/apoios/projectos/concursos/est/). No final do estudo pretende-se criar um chip que possa ser útil, também a outros Quercus, como a azinheira e os carvalhos, com igual importância na
Europa, ao nível ambiental e económico. 50
Sobre este tema veja-se o texto de Teresa Pinto-Correia et al. (2011).
Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal
84
discurso unificador entre a exploração e a sustentabilidade do sobreiro e do montado51. É
disso exemplo a iniciativa internacional de Certificação Florestal do Montado52, que visa
constituir um factor de competitividade e estratégia para promover a sustentabilidade do
mundo rural, desde os pontos de vista ecológico, económico, social, e ambiental. A juntar
a estas iniciativas de redefinição do uso do montado, por incorporação do valor da
conservação da biodiversidade, acrescem, também, em número e dimensão, iniciativas
privadas, organizadas em consórcios, com o compromisso de incluírem medidas
voluntárias de mitigação dos impactes das actividades de exploração na biodiversidade,
e, assim, salvaguardar equilíbrios dinâmicos nos ecossistemas53.
Outros exemplos chegam da sociedade civil, em resposta à degradação do montado
(Marta-Pedroso et al., 2007) ou de áreas do território tradicionalmente ocupadas pelo
sobreiro (WWF, 2007; Regato e Salman, 2008). Dois exemplos de particular interesse
são o Programa Castro Verde Sustentável54, por integrar a conservação da
biodiversidade com gestão agrícola, ecoturismo, educação ambiental e investigação
científica; e a Área Protegida Privada da Faia Brava55, não apenas por ser a primeira área
protegida privada em Portugal, mas, também, por conduzir a redefinição da paisagem
orientada para a restauração ecológica e reintegração socioecológica e económica após
o abandono das práticas agrícolas e/ou silvopastoris tradicionais nas últimas décadas56.
51
Os sectores da cortiça e a actividade silvopastoril representam produtos com valor acrescentado, exterior ao ecossistema, por não dependerem directamente da sustentabilidade do montado. Mas também ao nível destes sectores emerge a definição de estratégias de produção intersectadas com a biodiversidade do montado. 52
O processo de certificação do sobreiro partiu de uma estratégia de dimensão internacional Forest Stewardship Council (ver http://www.fsc.org/; http://www.fscportugal.org/) contou com a WWF como entidade facilitadora (ver http://wwf.panda.org/mediterranean/). Em 2005 foram certificados 912 hectares de montado de sobro do Alentejo pelo FSC, actualmente existem cerca de 52 mil hectares de montado certificado. Desde 2010, estão no mercado as rolhas de cortiça FSC. 53
Por exemplo a iniciativa europeia Business and Biodiversity (B&B), desenvolvida originalmente pelo Instituto da Conservação da Natureza e Biodiversidade (em 2007), que no presente conta com 50 empresas aderentes (ver http://www.icnb.pt). 54
Programa desenvolvido pela organização não-governamental, a Liga para a Protecção da Natureza (LPN), em parceria com a Câmara Municipal de Castro Verde, Associação de Agricultores do Campo Branco e outras entidades da região. A LPN é proprietária de várias herdades no concelho de Castro Verde, adquiridas parcialmente com donativos de cidadãos e empresas, na segunda metade da década de 90 do século XX. Esta iniciativa da LPN conta com a participação activa de cientistas e surgiu como resposta à ameaça da florestação com eucalipto numa área que no passado foi montado e durante a Campanha do Trigo uma estepe cerealífera. A introdução do eucalipto é indesejável pelos impactes negativos na biodiversidade e recursos edáficos, e por ser uma região com solos empobrecidos. 55
A Área Protegida Privada Faia Brava, em Figueira de Castelo Rodrigo (Portaria n.º 1181/2009 de 07 de Outubro, n.º 7 do artigo 5.º), está sob a responsabilidade da Associação Transumância e Natureza (ver http://www.atnatureza.org). A Faia Brava está integrada na Zona de Protecção Especial do Vale do Côa (Decreto-Lei n.º 384-B/99, de 23 de Setembro) e no Parque Arqueológico do Vale do Côa (Decreto-Lei n.º 117/97, de 14 de Maio). A designação desta área protegida coincide com o Ano Internacional da Biodiversidade 2010. 56
A redefinição de valor da função atribuída à identidade da paisagem em áreas abandonadas do território adquire expressão crescente na Europa (ver http://rewildingeurope.com). Ao aumento da importância deste nível de utilização do território associa-se, claramente, um decréscimo da importância da propriedade da terra enquanto meio de regulação e de captação de benefícios económicos. A compatibilização entre estas novas formas de utilização não é, porém, isenta de desafios. Quando a sua dimensão aumenta, a um patamar de indiferença, seguir-se-ão, necessariamente, questões relacionadas com a gestão e estratégia de
Anabela Marisa Azul
85
Em ambas as situações, estamos perante novas dinâmicas de exploração da natureza,
que possibilitam às pessoas sentirem-se, simultaneamente, utilizadores e agentes
actuantes na promoção da sustentabilidade. Ostrom e Nagendra (2006) defendem que
estas novas dinâmicas e formas de actuação colectiva aumentam a eficácia e
efectividade na gestão e protecção dos recursos naturais, pelas pessoas se sentirem
parte integrante dos processos e não meramente seguidores passivos de uma autoridade
que impõe regras. De facto, as pessoas podem ser agentes pelo seu contributo em
actividades de recuperação, de inventariação, de monitorização, de decisão de
estratégia, ou outra. Em última análise, a actuação colectiva pode exercer um contributo
importante na transformação da paisagem com impacto directo no aumento da floresta
nativa57. Estes novos modos de actuação colectiva oferecem, ainda, vantagem para o
Estado, pela acção directa no território em defesa do património natural. Não quer isto
dizer menor responsabilidade para o Estado, ou a direcção numa política isenta e
ausente de estratégia. Pelo contrário, a soberania do Estado assume papel essencial,
nomeadamente para o desenvolvimento de medidas concertadas entre apoios
estruturais, na estabilidade económica, e a continuidade na investigação científica e no
desenvolvimento de um plano no quadro legal58 e educativo. Relativamente a este último,
são de referir iniciativas crescentes na área da promoção e divulgação do conhecimento
científico59. Porque não está em causa única e exclusivamente o compromisso de
conservação da biodiversidade, ou do equilíbrio e identidade dos ecossistemas, ou do
desenvolvimento sustentável do sobreiro, mas também o bem-estar das pessoas.
Em suma, é inadiável reconhecer que os desafios para mitigar o declínio do sobreiro
e promover a sua sustentabilidade passam, impreterivelmente, por uma interpretação
integrada entre o conhecimento científico e outros saberes, e pela acção conjunta entre
os agentes ecológicos, ambientais, económicos e sociais. O argumento conservação da
biodiversidade impele para um investimento continuado no conhecimento dos processos
desenvolvimento. 57
Em Portugal as florestas seminaturais correspondem apenas a 4% da floresta (DGRF, 2007b). A distribuição das florestas seminaturais é muito dispersa e a manutenção está maioritariamente a cargo do Estado. Está entre os objectivos do Plano de Desenvolvimento Sustentável da Floresta Portuguesa (PDSFP) o aumento da área do território ocupada por flora nativa (DGRF, 2007b), nomeadamente espécies de Quercus, entre elas o sobreiro, por via de imposição legislativa (Resolução do Conselho de Ministros nº 114/2006 de 15-09-2006) e regulamentar (definida a nível central ou regional), e de incentivos e desincentivos económicos (ver em http://www.afn.min-agricultura.pt/portal/gestao-florestal/ppf/enf). 58
A legislação nacional apresenta um vazio legal relativamente à protecção da natureza no que diz respeito às novas redefinições do território, nomeadamente programas de reflorestação, gestão cinegética, e melhoramento de habitats. Recentemente foi estabelecido um Regulamento dirigido ao regime de «Gestão Multifuncional» e da «Promoção da Competitividade Florestal», integrado no Programa de Desenvolvimento Rural do Continente (Portaria n.º 821/2008 de 8 de Agosto). Este regulamento não contempla, por exemplo, para o caso da «produção de cogumelos silvestres», medidas de protecção relativamente ao uso inóculo de fungos de espécies exóticas. 59
Sobre este tema veja-se http://www.cienciaviva.pt/home/; http://ccvfloresta.com/
Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal
86
que ocorrem na natureza; ao mesmo tempo contribui para novas redefinições e
posicionamentos sociais, no sentido de uma sustentabilidade plural.
ANABELA MARISA AZUL
Investigadora Auxiliar do Centro de Ecologia Funcional, Departamento de Ciências da Vida,
Universidade de Coimbra. Licenciada em Biologia e Doutorada em Ecologia, desenvolve a sua
investigação em Interacções Bióticas, no domínio da Taxonomia, Ecologia e Biotecnologia de
Fungos. Paralelamente debruça-se sobre estratégias para a promoção da cultura científica e o
desenvolvimento de redes de conhecimento na área da Micologia.
Contacto: [email protected]
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OS IMPERATIVOS DA PADRONIZAÇÃO NO CONTEXTO DAS PRÁTICAS MÉDICAS: PISTAS
PARA UM BREVE ENSAIO TEÓRICO
HÉLDER RAPOSO
ESCOLA SUPERIOR DE TECNOLOGIA DA SAÚDE DE LISBOA, INSTITUTO POLITÉCNICO DE LISBOA
Resumo: Este texto procura ensaiar uma reflexão sociológica que, mobilizando contributos provenientes de vários domínios disciplinares, seja capaz de problematizar a emergência das dinâmicas de reconfiguração da profissão médica, bem como os significados subjacentes ao desenvolvimento das lógicas de regulação e padronização no interior deste campo. Resgatando a abordagem sociológica das generalizações interpretativas e dos enquadramentos que tendem a perpetuar a obstinação com a questão do aumento ou da perda do poder profissional, exploram-se em alternativa outros enfoques que propiciem pistas de reflexão e de trabalho sobre a dimensão contextual e situada dos conhecimentos padronizados no contexto das práticas profissionais concretas. Palavras-chave: medicina baseada na prova, padronização, regulação, profissão médica, prática clínica.
INTRODUÇÃO
O acentuado protagonismo que a expressão evidence-based medicine – medicina
baseada na prova1 – actualmente assume no campo da saúde em geral, e na medicina
em particular, constitui um importante indicador de mudanças substantivas que estão na
base de múltiplas reconfigurações (epistemológicas, profissionais, organizativas,
institucionais, políticas, etc.) que, no seu conjunto, apontam para a redobrada importância
da dimensão científica na organização e na prestação dos cuidados de saúde. Esta nova
terminologia tem subjacente a preocupação com a enorme diversidade da prática clínica
1 Para efeitos de tradução da palavra evidence, utilizo aqui a noção de prova em detrimento da de evidência,
embora esta última se tenha vulgarizado e se tenha tornado de uso corrente. Sobre as razões dessa utilização mais vulgarizada, é interessante considerar os argumentos avançados pelo Director do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência (CEMBE), António Vaz Carneiro: “A palavra ‘evidência’ é uma tradução etimologicamente incorrecta da palavra inglesa ‘evidence’. De facto, a tradução deveria ser ‘provas’, devendo neste caso a designação de Evidence-Based Medicine ser ‘Medicina Baseada nas Provas’. Como achámos que se perderia a vantagem da conotação directa com a designação anglo-saxónica de EBM, optámos pela palavra ‘evidência’ reconhecendo os problemas que esta posição gera” (Carneiro et al., 2007: 2).
Hélder Raposo
92
o que tem, aliás, feito da constatação relativa à persistente variação da medicina (Berg e
Mol, 1998) um dos principais problemas a ultrapassar2 (Weisz et al., 2007: 708) até
porque essa mesma diversidade é entendida como geradora de problemas não só ao
nível da própria qualidade dos cuidados de saúde, mas também, e sobretudo, ao nível do
controlo e da racionalização dos custos (Timmermans e Kolker, 2004; Weisz et al., 2007).
Nesse sentido, pode-se entender o desenvolvimento da medicina baseada na prova
(MBP) como uma estratégia que está especificamente orientada para a tentativa de
aplicar de forma mais uniforme e padronizada as provas científicas decorrentes da
utilização das análises populacionais a vários aspectos da prática médica, como a
validação das terapêuticas (Marks, 1997) ou as recomendações clínicas (Timmermans,
Berg, 2003). Daqui resulta, portanto, que a MBP é entendida pelos seus promotores
(Raposo, 2010) como uma nova metodologia que, para além de permitir conferir maior
objectividade e validade aos processos de decisão clínica através de critérios
epidemiológicos,3 é perspectivada como tendo a vantagem suplementar de se constituir
como um requisito indispensável na promoção da eficácia e eficiência dos recursos e
investimentos em saúde, na avaliação de tecnologias e na própria alocação dos recursos,
sempre com base em estimativas probabilísticas de custo/benefício, que constituem hoje,
e cada vez mais, uma ferramenta indispensável para a implementação de políticas de
base mais managerialista.4
Com efeito, trata-se de uma orientação que se enquadra num contexto político-
ideológico mais geral, e que é fortemente marcado por uma lógica de intervenção política
pautada por princípios directamente alicerçados na Nova Gestão Pública (NGP) dos
serviços administrativos, o que no caso da saúde se traduz na implementação de
reformas políticas centradas na redução dos custos e na melhoria dos resultados
económicos. Estes princípios da NGP configuram uma linha de intervenção política que é
cada vez mais transversal a vários sectores da administração pública e a vários espaços
geográficos, o que significa, tal como detalhadamente salientado por Carvalho (2009) e
por Correia (2009) relativamente ao caso português, que opções como a
empresarialização dos hospitais públicos são coerentes com a implementação de
2 O trabalho, hoje clássico e seminal, do epidemiologista Archie Cochrane (1972/1999) apresenta os
princípios subjacentes à medicina baseada na prova, pondo já a ênfase na importância das revisões sistemáticas dos ensaios clínicos randomizados, para que os profissionais possam ter acesso a informação de qualidade sobre as provas que suportam, ou refutam, as opções terapêuticas, evitando assim o mau uso das técnicas e recursos disponíveis. 3 Uma exploração mais aprofundada sobre a importância da quantificação e da prova estatística no
pensamento biomédico pode ser encontrada em Raposo (2009). De resto, a importância da quantificação na demonstração de resultados é, igualmente, um princípio de incontornável importância nas avaliações e decisões managerialistas no campo da saúde. 4 Sobre a delimitação da natureza teórica deste conceito, e em particular no que este tem de mais específico
em relação à designação de gerencialismo, é esclarecedora a fundamentação de Carvalho (2009: 42-52). Agradeço a precisão deste reparo a Tiago Correia.
Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico
93
princípios organizacionais que procuram corrigir, através de modelos de gestão privada,
as ineficiências e desperdícios do sector público. Tal assim é que alguns autores
(Timmermans e Kolker, 2004; Weisz et al., 2007) têm associado a intensa expansão e
desenvolvimento da produção de guidelines – ou normas de orientação clínica – à
importância atribuída por parte dos políticos e dos gestores à redução dos custos e ao
controlo dos constrangimentos financeiros, dado que os critérios de investimentos nos
cuidados de saúde passam a estar vinculados à demonstração de resultados que
sustentem quais as opções (tecnologias, medicamentos ou outros recursos terapêuticos)
mais eficazes, benéficas e rentáveis.
Ora se estas reformas políticas5 no campo da saúde foram frequentemente
promovidas e implementadas sem o envolvimento directo da profissão médica, indo não
só contra os seus interesses corporativos mais estabelecidos, mas também fazendo
entrar em cena novos actores, como os doentes, os gestores e outras categorias de
profissionais de saúde (Tousijn, 2000), será que este mesmo contexto é limitador da
autonomia clínica e do tradicional poder profissional da medicina? E será também
plausível considerar que os novos equilíbrios nas relações entre o Estado, o capital e as
profissões instauraram inelutavelmente um enquadramento que restringe e subordina a
autoridade do ethos profissional da medicina nas organizações de saúde, precipitando,
assim, um processo de esvaziamento da autoridade e autonomia do julgamento clínico e,
em última instância, de proletarização e desprofissionalização?
Neste texto, mais do que tentar corroborar ou infirmar estas interrogações genéricas,
procurar-se-á, isso sim, ensaiar uma reflexão sociológica que, mobilizando contributos
provenientes de vários domínios disciplinares da sociologia (em particular a sociologia
das profissões, da saúde, do conhecimento e os estudos sociais da ciência), seja capaz
de ultrapassar o âmbito mais redutor e maniqueísta destas questões, dado que o carácter
categórico das suas formulações secundariza e negligencia outros enfoques que
problematizam a emergência de várias dinâmicas de reconfiguração da profissão médica,
bem como os significados subjacentes ao desenvolvimento das lógicas de regulação e
padronização. Assim, pelo seu carácter fundamentalmente teórico e de perscrutação
analítica,6 o que através deste texto se procurará discutir são, por um lado, as razões e
os interesses estratégicos (designadamente no interior da profissão médica) da crescente
5 Para uma contextualização panorâmica desta temática, remete-se o leitor interessado para Carvalho (2009),
em particular o capítulo 1. 6 As pretensões deste texto confinam-se ao ensaio de algumas explorações teóricas decorrentes de uma
investigação de doutoramento mais vasta, e ainda em fase de desenvolvimento, sobre a medicina baseada na prova em Portugal. Optou-se por não apresentar informações empíricas entretanto obtidas através da investigação, na medida em que esse processo ainda decorre, mas também porque o que entretanto já se recolheu carece ainda de um grau de sistematicidade que seja adequado a exercícios de natureza diferente da que aqui é trabalhada.
Hélder Raposo
94
ênfase na padronização e o empenho na racionalização da Medicina, e por outro,
compreender o carácter dinâmico e processual da produção e implementação de
padrões, chamando a atenção não só para o seu carácter adaptativo e contingente, mas
também, para a dimensão contextual e situada desses conhecimentos na prática
profissional concreta, o que nos deverá alertar para o facto de que, não obstante estas
pretensões de universalidade e uniformização, a dimensão local põe em evidência o
carácter plástico e recontextualizado que a mobilização e a “construção” desse
conhecimento sempre implica no contexto das diversas práticas profissionais (Caria,
2005).
Previamente, no entanto, considera-se pertinente desenvolver um conjunto de
considerações críticas relativamente a alguns pressupostos que têm ainda alguma
ressonância, sobretudo no campo da sociologia das profissões. Ao fazê-lo, pretende-se
justificar e delimitar melhor a natureza dos questionamentos e da reflexão deste trabalho,
até porque contrariamente às interpretações mais convencionais que vaticinam cenários
de inexorável ocaso do poder profissional da medicina, estamos hoje na presença de
fenómenos bem mais complexos e heterogéneos, desde logo porque não têm deixado de
se verificar situações de reforço do poder profissional de alguns segmentos da profissão
médica, que passam, justamente, a assumir novas formas de protagonismo por via da
assumpção de papéis regulatórios que recolocam noutros termos a questão mais global
do profissionalismo médico, bem como a própria natureza das reconfigurações científicas
no interior da profissão.
1. DINÂMICAS ACTUAIS DO PODER PROFISSIONAL DA MEDICINA: NOVAS RESPOSTAS PARA
“VELHAS” QUESTÕES
É consensual nos exercícios de revisão de literatura no campo da sociologia das
profissões, reconhecer o impacto que as perspectivas teóricas do paradigma do poder
assumiram neste domínio disciplinar, dado que estas constituíram um importante ponto
de viragem face às perspectivas anteriormente consagradas, designadamente as teses
funcionalistas. Em particular, esta corrente inaugurou e desenvolveu novas problemáticas
sociológicas a partir de algumas premissas críticas, problematizadoras e até
contestatárias quanto aos privilégios materiais e simbólicos resultantes de situações de
poder e monopólio profissionais mantidos por algumas profissões, como tem sido o caso,
recorrentemente estudado, da medicina (Rodrigues, 1997; Gonçalves, 2007).7 No
entanto, embora as principais análises críticas relativamente à dominância do poder
7 Sem pretensões de exaustividade, apenas se indicam estas duas referências, dado que são ilustrações
esclarecedoras e acessíveis acerca desta perspectiva no âmbito mais alargado das correntes e problemáticas fundamentais deste campo disciplinar.
Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico
95
profissional tenham contribuído de forma decisiva para pôr em evidência o modo como as
profissões utilizam o respectivo poder para construir e defender os seus interesses e
prerrogativas, assim como para obter o reconhecimento social, não deixa de ser
igualmente importante constatar como no decurso das últimas décadas se têm vindo a
verificar várias transformações que alteraram o sentido de muitas dessas interpretações,
sobretudo no que diz respeito à profissão médica. Assim, fenómenos como a tendência
para as superespecializações no interior da medicina e respectiva perda de capacidade
colectiva de negociação; a constante emergência de novos grupos ocupacionais no
campo da saúde a desenvolverem estratégias de profissionalização; a ampliação de
atitudes críticas e cépticas face à autoridade profissional, muitas vezes vinculadas a um
maior escrutínio público das profissões; o crescente envolvimento dos governos no
financiamento e na regulação dos cuidados de saúde, ou o desenvolvimento das
actividades profissionais em organizações burocráticas e o consequente assalariamento
desses grupos, constituem exemplos representativos de algumas implicações com
consequências substantivas na alteração da autonomia na profissão médica (Tousijn,
2000; Timmermans e Kolker, 2004).
É, justamente, neste quadro de entendimento relativo à erosão do prestígio, do
monopólio e de outros privilégios de poder profissional, que adquirirem protagonismo
algumas teses – nomeadamente as da proletarização e desprofissionalização –, cujos
enfoques se destacam por preconizarem, no seu essencial, o crescente declínio de
competências e qualificações e da autonomia do trabalho dos profissionais, resultante
dos esforços administrativos e burocráticos para melhorar o controlo sobre o processo
produtivo. Nestas teses, a ênfase é colocada na fragmentação, desqualificação e
rotinização provocadas pela acção do poder burocrático-administrativo. Nessa medida,
entende-se que os profissionais, por força do assalariamento, se transformam em
trabalhadores especializados incapazes de escolher os seus próprios projectos ou tarefas
e são forçados a trabalhar a ritmos e com procedimentos institucionalizados que são
claramente tributários da lógica e dos critérios de eficácia e de eficiência da gestão
privada das organizações.
Todavia, e evitando resvalar em alguns dos radicalismos destas teses, principalmente
quando vaticinam cenários de inelutável declínio do poder profissional, torna-se
importante salientar que a erosão da “tradicional” dominância da profissão médica
assume visibilidade nalgumas dimensões, embora noutras até se tenda a verificar a
emergência de novas dinâmicas que são indicativas do reforço de novas dimensões de
poder, como acontece, nomeadamente, com a gradual tendência de auto-regulação em
matéria científica em algumas áreas da medicina, o que significa que o impacto das
Hélder Raposo
96
actuais lógicas de produção de guidelines baseada em novos modos de produção da
prova científica, apontam para a emergência de novos papéis profissionais. Tal significa,
portanto, que se a um nível individual8 se pode admitir como plausível alguma erosão da
autonomia médica, sujeita que está a mais constrangimentos e formas de escrutínio
público, a um nível colectivo essa autonomia até se tende a reforçar por via de novos
papeis regulatórios, como a definição e produção de padrões, guidelines e protocolos
(Tousijn, 2000).
Neste sentido, torna-se relevante relembrar o potencial heurístico de algumas
dimensões de análise importantes, como sejam as relativas ao carácter heterogéneo,
internamente estratificado e divergente das profissões, dado que permitem evitar quadros
de leitura muito dicotómicos, simplificadores e apriorísticos quanto à interpretação da
dinâmica das profissões.
Sob este ponto de vista, e como bem lembra Rodrigues,
As profissões estão longe de ser blocos homogéneos, comunidades cujos membros
partilham identidades, valores e interesses por força dos processos de socialização
sofridos nas instituições de formação. Dentro das profissões existem segmentos ou
grupos constituídos a partir da diversidade das instituições de formação, de
recrutamento e das actividades desenvolvidas por membros do mesmo grupo
ocupacional, pelo uso de diferentes técnicas e metodologias, pelo tipo de clientes e
pela diversidade do sentido de missão, sendo que tais diferenças podem até
corporizar diferentes associações de interesses no interior do próprio grupo. Tais
segmentos tendem a tomar o carácter de movimento social, desenvolvem
identidades distintivas, um sentido de passado e futuro específicos, organizam as
suas actividades e desenvolvem interacções por forma a garantir uma posição
institucional. Com estas interacções, que assumem a maior parte das vezes a
forma de conflitos, ocorrem mudanças, avanços, redefinindo-se novas posições e
relações dentro do grupo e fora dele, que são parte fundamental nos processos de
profissionalização. (Rodrigues, 1997:19)
Assim sendo, o que especificamente se pretende argumentar é que face à
constatação da heterogeneidade da profissão médica, torna-se bastante frágil qualquer
sustentação teórica ancorada em pressupostos de elevada generalização quanto ao
8 À semelhança do que fiz notar na nota 4, também aqui agradeço a observação de Tiago Correia sobre as
dinâmicas da autonomia médica, no sentido em que podem ocorrer em simultâneo tendências de reforço e enfraquecimento dessa autonomia. Neste argumento procura-se justamente dar conta do modo como alguns (poucos) médicos usam as regras do mercado para o reforço da sua posição em termos individuais e autónomos à profissão (cf. Stoleroff e Correia, 2008; Correia, 2009).
Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico
97
significado das reconfigurações profissionais da medicina, o que significa que as leituras
construídas em torno da ideia de que a medicina é hoje passiva e refém de um maior
controlo administrativo se tornam problemáticas e, sobretudo, desfasadas face à
diversidade de situações empíricas potencialmente observáveis. Nesta acepção, pode-se
até considerar que o principal mérito analítico que daqui decorre reside, precisamente, na
consideração de que a profissão médica se tem vindo não só a fragmentar, em grande
medida devido à acentuação da tendência de especialização – em que algumas das
especialidades praticamente se tornam elas próprias profissões (Tousijn, 2000) –, mas
também a estratificar-se internamente, facto que propicia a constituição e o
desenvolvimento de diferentes papéis profissionais, alguns deles directamente
conectados à investigação e, principalmente, à gestão (Freidson, 1986; Tousijn, 2000).
Em grande medida, daqui resultam algumas importantes diferenciações internas e
segmentações hierárquicas que traduzem a afirmação de elites médicas ligadas à
investigação clínica de base epidemiológica, ou seja, de grupos com um perfil mais
académico e com ligações institucionais de carácter internacional, o que lhes confere
conhecimento e legitimidade para definirem e estabelecerem as bases dos padrões e dos
guidelines. É, aliás, também nesse sentido que Freidson (1986) argumenta, dado que na
sua preocupação analítica com o papel da autonomia clínica em contextos
crescentemente burocratizados considera que, em última instância, são os médicos que
produzem e formulam os padrões.
É certo que entre a comunidade médica esta questão é bastante controversa e
geradora de clivagens importantes, na medida em que o desenvolvimento de protocolos e
de guidelines, com base na “melhor” evidência disponível, reactualiza com uma acuidade
bastante notória discussões que conduzem à confrontação de distintos entendimentos
relativamente aos fundamentos da própria medicina. Sobretudo para os que se inscrevem
na tradição do humanismo médico, a natureza das críticas que desenvolvem orienta-se
para a problematização da especificidade das relações terapêuticas e das respectivas
dimensões da experiência humana que lhe estão subjacentes, o que significa que face à
perspectiva da crescente utilização dos protocolos e guidelines, e do lugar central que os
mesmos ocupam no âmbito do trabalho clínico, tendem a multiplicar-se posições
contestatárias que, em termos substantivos, sustentam que a MBP promove a erosão da
autoridade da arte médica ao desvalorizar a autonomia dos médicos ao nível das suas
faculdades de julgamento clínico; que esta enfatiza obsessivamente a quantificação e a
objectividade em detrimento da experiência clínica; que empobrece o ethos humanitário
da medicina; que desvaloriza a incerteza; que sobrepõe a racionalização económica da
prestação dos cuidados de saúde à autonomia profissional; e que dilata a plasticidade do
Hélder Raposo
98
próprio conceito de MBP, o que o torna facilmente apropriável para outros actores no
campo da saúde (governos, seguradoras, indústrias farmacêuticas) que aí encontram
legitimação para promoverem novos critérios de financiamento e de racionalização
económica baseados em análises de custo-benefício.
Claro que não obstante tratar-se de um debate em nada despiciendo, até porque
coloca em destaque aspectos directamente relacionados com as transformações da
própria natureza do conhecimento médico, agora mais estruturalmente baseado na
epidemiologia (Timmermans e Kolker, 2004; Raposo, 2009), o que, no entanto, assume
uma pertinência redobrada na linha de argumentação deste texto, é a questão relativa ao
modo como se desenvolvem novos equilíbrios e dinâmicas de reforço e legitimação do
profissionalismo médico. E isto no sentido em que alguns segmentos da profissão
médica, mais do que incorporarem a abordagem managerialista, “colonizam-na”
activamente, dado que se vão tornando bem-sucedidos no desenvolvimento de um papel
regulatório que não só transforma a produção do conhecimento, como viabiliza um
reforço importante no poder profissional por via da produção e disseminação do mesmo a
uma escala organizacional cada vez mais consolidada (Kuhlmann, 2006). Verifica-se,
assim, que através da acentuação da procura de maior certeza médica, estabelecem-se
novas configurações de profissionalismo médico, pois apesar de o processo de produção
e formulação de guidelines poder envolver vários actores, alguns dos quais externos ao
campo médico (Timmermans e Epstein, 2010), uma parte muito importante do
protagonismo deste processo é assumido pelos profissionais médicos (Timmermans e
Kolker, 2004).
Tal significa, portanto, que mais do que a simples intrusão das prerrogativas
provenientes da gestão, adquirem proeminência os critérios e o conhecimento de base
epidemiológica, o que faz com que passe a ser mobilizada uma constelação de
conhecimentos específicos que permitem proceder a sofisticadas avaliações
metodológicas relacionadas com o design das investigações, bem como com os
resultados estatísticos, o que é um aspecto de grande importância, atendendo às
dificuldades que uma parte substancial dos clínicos tem em dominar conceitos e
princípios epidemiológicos (Timmermans e Kolker, 2004: 185).
De resto, a ênfase neste tipo de conhecimento torna-se, em alguns contextos, de tal
forma estratégica que a abordagem da MBP se torna num discurso de poder cuja retórica
ao ser mobilizada se transforma num instrumento de reforço da autoridade profissional,
sobretudo junto de actores provenientes da burocracia administrativa (Geltzer, 2009).
Noutros casos, pode inclusivamente constituir-se como uma oportunidade não só para a
reprofissionalização da medicina através da aproximação e incorporação de valores,
Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico
99
princípios e práticas organizacionais coerentes com a racionalidade gestionária, mas
principalmente para a profissionalização de alguns segmentos ocupacionais da profissão
médica – como os clínicos gerais – que historicamente foram objecto de uma
secundarização gerada na dinâmica das especializações, o que se traduziu em níveis
mais restritos de poder, dominância e prestígio no interior da profissão médica (Pickard,
2009).
Com efeito, e a título meramente ilustrativo, é interessante verificar – com base em
alguns elementos empíricos resultantes da recolha exploratória de um processo de
pesquisa empírica ainda em curso sobre o contexto médico nacional9 – quais as áreas
médicas que efectivamente parecem protagonizar uma ligação mais estreita com a
abordagem da MBP. Assim, se considerarmos especificamente as actividades de
formação e divulgação levadas a cabo pelo Centro de Estudos de Medicina Baseada na
Evidência (CEMBE),10 designadamente em termos de realização de vários cursos de pós-
graduação e de Educação Médica Contínua em vários hospitais e universidades
portuguesas, constata-se a existência de uma crescente procura que parece atestar a
importância estratégica conferida à MBP. Trata-se, de facto, de um dado muito revelador,
na medida em que das perto de 60 acções formativas asseguradas pelo CEMBE – entre
1999 e 2009 – que foram integradas no âmbito dos vários cursos de pós-graduação, a
larga maioria orientou-se para a gestão de serviços de saúde e também para as
auditorias clínicas, estas últimas promovidas pela Ordem dos Médicos. Em relação às
áreas médicas, embora exista alguma diversidade (em áreas como a reumatologia,
medicina dentária, genética clínica ou farmacoepidemiologia), é possível constatar que a
ligação mais estável e duradoura é, justamente, a que se verifica com a área da clínica
geral, ao ponto de existir um protocolo de colaboração entre o CEMBE e a Associação
Portuguesa de Médicos de Clínica Geral, e que se traduz particularmente num curso pós-
graduado de actualização que em 2010 contava já com a sua 7ª edição.
9 Reporto-me, tal como explicitado na nota 6, ao meu trabalho de doutoramento que se encontra em
desenvolvimento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e que tem como objecto de estudo a MBP em Portugal. 10
O CEMBE caracteriza-se por ser uma unidade estrutural da Faculdade de Medicina de Lisboa (com autonomia financeira, bem como ao nível da sua gestão e da investigação que desenvolve), que tem como finalidade o desenvolvimento da área científica designada por medicina baseada na evidência Foi criado em 1999 e tem como principais objectivos promover a divulgação de conhecimentos científicos, fazer investigação biomédica, formar e/ou colaborar na formação no âmbito da medicina baseada na evidência, prestar consultoria científica, bem como estabelecer os contactos nacionais e internacionais em matéria de disseminação e implementação de guidelines. Actualmente é composto por 32 membros (cerca de metade
com estatuto de consultores), sendo que na sua maioria são médicos de várias áreas de especialidade, apesar de também estarem vinculados a este Centro consultores de outras áreas, em particular a área da enfermagem e da educação médica.
Hélder Raposo
100
De facto, a par da indústria farmacêutica (sobretudo no âmbito da formação e da
consultoria científica), esta é a especialidade médica que de forma mais efectiva se tem
aproximado do CEMBE, o que é revelador da ênfase que tem sido concedida às
metodologias da MBP. É um aspecto que, sem dúvida, merece e justifica maior
indagação e problematização, até porque se trata de uma especialidade que, pelas suas
características intrínsecas, está muito alicerçada na relação terapêutica com o doente,
facto que poderia sugerir, no imediato, um maior privilégio da autonomia médica em
matéria de decisão clínica – num sentido mais próximo do ethos humanitário da medicina
– e não tanto na incorporação sistemática de normas de orientação clínica que decorrem
de metodologias científicas resultantes de evidência baseada em critérios de prova
estatística. Se, no fundo, se trata de uma estratégia profissional de maior visibilidade e
afirmação face a outras especialidades médicas mais prestigiadas científica e
simbolicamente, ou “apenas” de uma tentativa pragmática de encontrar instrumentos
eficazes que permitam uma melhor adaptação face à crescente complexidade em termos
de conhecimentos técnicos e volume de informação especializada com que os clínicos
têm de lidar na sua prática profissional quotidiana, ou até mesmo uma tentativa de
resposta às pressões managerialistas de demonstração de resultados e de
fundamentação das práticas, é algo que deverá ser explorado de forma mais substantiva
em fases mais adiantadas da investigação empírica a que atrás se aludiu.
2. DA PRODUÇÃO COLECTIVA DA PROVA À RECONTEXTUALIZAÇÃO PRÁTICA DA
PADRONIZAÇÃO
Relativamente à génese da cultura subjacente ao desenvolvimento dos guidelines
clínicos, trata-se de um processo que remete para uma longa história internacional,
marcada sobretudo pelo protagonismo norte-americano (Weisz et al., 2007). Esta liga-se,
fundamentalmente, à intensificação de múltiplas e complexas actividades que, no campo
da saúde, vão tornando o desenvolvimento de várias formas de padronização
(Timmermans e Berg, 2003) um imperativo que se vai traduzindo na viabilização das
condições necessárias para a aplicação de protocolos sobre as melhores práticas a
desenvolver nas diversas situações e circunstâncias. De facto, e justamente no âmbito da
realidade norte-americana, pode-se considerar que antes mesmo da “naturalização” dos
ensaios clínicos randomizados como a melhor forma para medir a eficácia das acções
médicas com base na investigação (Marks, 1997), e a partir desses resultados
sistematizar as melhores recomendações para a prática clínica, já era patente a
existência de um certo clima intelectual bastante propício à adesão a fortes convicções
relativamente à autoridade moral das provas científicas provenientes da investigação
Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico
101
clínica no campo terapêutico e, portanto, à assumpção de um novo perfil científico
(Marks, 2009).
No fundo, o que a pretexto desta referência aqui se procura salientar, é o modo como
a orientação para a padronização – que faz da demonstração de resultados baseados em
investigação científica de base epidemiológica um requisito indispensável – põe em
evidência não só a proliferação de novos discursos e racionalidades, associados à
transparência, eficácia e à regulação em detrimento dos julgamentos individuais e
idiossincráticos, mas também, e muito significativamente, uma importante mudança na
regulação da qualidade da prática médica. Trata-se de um processo efectivamente
complexo, na medida em que envolve múltiplos grupos de actores com níveis de elevada
interdependência, circunstância que em si mesma, e desde logo, evidencia o carácter
bastante desadequado e redutor da dicotomia convencional que põe em confronto
médicos e administradores (Weisz et al., 2007).
De facto, a autoridade moral associada a esta nova lógica da produção colectiva da
prova que envolve e implica uma alargada colaboração internacional, francamente
exponenciada pelas novas dinâmicas de interdependência da actual globalização, resulta
de amplas negociações colectivas que, principalmente desde a década de 1990, têm
aglutinado o envolvimento de vários tipos de organizações, sobretudo médicas. O
resultado mais marcante dos diversos empreendimentos na dinamização da criação de
consórcios de investigação ou na consolidação de políticas de desenvolvimento dos
guidelines, tem sido, manifestamente, o reforço e a difusão desta lógica regulatória, ao
ponto de os guidelines se terem tornado ubíquos, isto não obstante ser possível verificar
especificidades entre países, que são o resultado de complexas relações entre os
múltiplos actores envolvidos (Weisz et al., 2007: 711-712).
Para todos os efeitos, e sendo verdade que não há um padrão homogéneo na forma
como estas metodologias vão sendo disseminadas e aplicadas aos vários campos de
intervenção, o que para os objectivos da presente reflexão se justifica destacar como um
dado particularmente relevante e estruturador do actual panorama da medicina
contemporânea, prende-se com a ideia da emergência de uma nova forma de
objectividade, marcada pela produção colectiva da prova. Esta análise, condensada na
noção de “objectividade regulatória” (regulatory objectivity) (Cambrosio et al., 2006;
Cambrosio et al., 2009), mostra-nos como a circunstância histórica de a medicina
moderna do pós-guerra se ter tornado biomédica – ou seja, em mais estreita articulação e
interdependência com as novas áreas da biologia –, nos permite falar, hoje, em modos de
produção de convenções, normas e protocolos que tornam possível a objectividade na
prática clínica. Esse carácter colectivo da prova, baseado em sistemas de convenções
Hélder Raposo
102
tornados possíveis pelos estudos interlaboratoriais, ensaios clínicos multicêntricos,
consórcios internacionais de investigação, etc., é fundamental para procedimentos de
controlo de qualidade, recomendações clínicas ou guidelines práticos. Como referem os
autores mencionados,
Para a biomedicina, é menos importante chegar a uma verdade (analítica ou outra)
do que assegurar a compatibilidade entre diferentes laboratórios e hospitais. […] A
objectividade regulatória também reflecte os valores da globalização e do livre fluxo
informacional que tem conduzido à internacionalização da padronização desde a
Segunda Guerra Mundial. (Cambrosio et al., 2006: 195)11
Deste ponto de vista, parece não haver dúvida que as lógicas de regulação têm
marcado, e viabilizado, o desenvolvimento da biomedicina contemporânea, ao ponto de
não serem apenas o resultado de intervenções externas, mas também, e cada vez mais,
de práticas endógenas que reflectem as necessidades práticas de convenções e critérios
padronizados. Reflexo disso mesmo é a existência de múltiplos lugares – como
laboratórios, publicações, entidades financiadoras, indústrias, etc. – que ao articularem
materiais, instrumentos, conhecimentos, práticas, discursos e formas de regulação
através da multiplicidade dos contextos, asseguram, de facto, a existência de
compatibilidades e formas de normalização fundamentais para o desiderato da
padronização e racionalização do saber e da prática médica.
Há, todavia, um aspecto que a este respeito não pode ser negligenciado, e que se
prende com o facto de a criação dos padrões ser um processo negociado, e portanto
socialmente activo, que envolve diversos actores sociais do campo da saúde. Isto
significa que os padrões são locais, contingentes e resultado de construções complexas,
o que desmonta completamente o pressuposto de que estes seriam intrinsecamente
neutros e impermeáveis às circunstâncias específicas que enquadram o processo da
produção colectiva de convenções (Moreira, May e Bond, 2009). Aliás, através deste tipo
de enfoque é a própria natureza social da prova científica que subjaz aos padrões que
surge analiticamente equacionada, problematizando-se, assim, o entendimento positivista
e factual da mesma (Goldenberg, 2006). Por isso mesmo, ao ser considerada a
multiplicidade de factores não cognitivos que podem explicar a origem, transformação e
legitimação do conhecimento formal associado aos padrões e protocolos, torna-se mais
nítida a compreensão de que o estabelecimento da previsibilidade e da normalização que
estes postulam resulta de alianças complexas e heterogéneas no campo da regulação da
11
Tradução do autor.
Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico
103
saúde, razão pela qual Timmermans e Epstein argumentam que a objectividade e a
universalidade dos padrões são conquistas árduas, que podem ser frequentemente
sujeitas à contestação de outros actores (Timmermans e Epstein, 2010: 74).
Por esta mesma razão, questões como a produção da evidência científica associada
aos padrões e guidelines, a sua distribuição e a adopção destes nos contextos
institucionais concretos (Dopson e Fitzgerald, 2005) remetem, necessariamente, a
abordagem para níveis que discutem a heterogeneidade e a contingencialidade de
práticas e conhecimentos médicos que não são, efectivamente, desprovidos das suas
dimensões e dinâmicas sociais próprias. Isto significa, portanto, que para além da
questão da construção, há também que considerar o carácter problemático e não linear
da implementação das convenções regulatórias, na medida em que nesse processo se
estabelecem importantes dialécticas que são reveladoras do carácter dinâmico e
adaptativo dos padrões. Daí que se compreenda que alguns autores critiquem a
sobrevalorização de alguma literatura sociológica em relação ao impacto pretensamente
hegemónico das normas de orientação clínica na prática médica, dado que esta tende a
ser efectivamente mais complexa e confusa do que é sugerido por esta forma de
reducionismo teórico (Timmermans e Kolker, 2004: 187).
Sob este ponto de vista, atribuir pertinência analítica às dimensões resultantes do
conhecimento prático, tácito e proveniente da experiência, permite relativizar os efeitos
dos guidelines nas decisões clínicas, pois o modo como essas decisões são elaboradas
traduz a existência de uma articulação interactiva entre o conhecimento prático e
quotidiano e a componente mais formal do conhecimento padronizado.
Aliás, mais importante até do que a estrita questão da implementação e da aplicação,
que tende de certo modo a presumir uma adaptação passiva, importa reconhecer que as
decisões que são elaboradas no contexto das práticas profissionais são muito mais do
que meras manipulações situadas do conhecimento padronizado (Caria, 2005), uma vez
que esse conhecimento é recontextualizado através de formas de reflexividade
profissional que vão permitindo a sua tradução e adaptação aos contextos e às
circunstâncias heterogéneas. Existem, portanto, como sublinha Caria (2005) a propósito
do trabalho clínico dos veterinários, modalidades diferenciadas de recontextualização
profissional do conhecimento que são fortemente mediadas e moldadas pelos sentidos
contextuais resultantes das práticas concretas, circunstância que em si mesma é
elucidativa do efectivo protagonismo que os saberes tácitos, implícitos e intuitivos
assumem nas dinâmicas do julgamento clínico.
Alguns exemplos ilustrativos deste enfoque, embora com matrizes teóricas e
preocupações analíticas relativamente diversas (Berg, 1998; Bourret, 2005; Serra, 2007)
Hélder Raposo
104
dão conta disto mesmo, sobretudo ao colocarem em evidência o modo como a avaliação
e as decisões clínicas não raras vezes implicam reelaborações que estão directamente
vinculadas à experiência, aos conhecimentos tácitos e também à avaliação das
necessidades individuais dos doentes.
É, justamente, o que se verifica na discussão acerca das especificidades da medicina
do cancro genético (Bourret, 2005), designadamente quando se evidencia que a prática
médica se confronta com o desafio da gestão da incerteza, que resulta não só do estatuto
híbrido e liminar da doença e do doente, como também dos imperativos de uma nova
lógica de trabalho colaborativo e multidisciplinar e da própria complexidade biológica das
mutações genéticas associadas às patologias em causa. Estes aspectos implicam uma
permanente reinterpretação das recomendações e guidelines, o que significa que o
julgamento clínico não fica subsumido nas recomendações regulatórias dos guidelines e
das provas epidemiológicas que os sustentam. Há, pelo contrário, um trabalho de
constante reinterpretação e discussão colectiva entre pares, o que faz com que a
discussão e a definição negociada de critérios e regras se tornem numa tarefa
institucional explícita. Através de redes de colaboração, os grupos de peritos vão
reflexivamente produzindo e adaptando localmente as recomendações que,
conjunturalmente, melhor parecem responder às incertezas concretas do seu domínio
específico.
Também Berg (1998), através do seu trabalho sobre o uso de protocolos no campo
da oncologia (em particular na área do cancro da mama), converge em termos essenciais
neste entendimento, principalmente quando enfatiza que os protocolos criam novas
formas de diversidade nas práticas médicas. Assim, em lugar de uma pretensa
homogeneidade que supera as diferenças e instaura procedimentos uniformes que
preconizam instruções e procedimentos de acção e decisão para várias situações
específicas, o que se verifica é que os protocolos acabam por reconfigurar práticas e
imprimir novos critérios e problemas que mostram que, para uma nova disciplina de
práticas ser viável, há necessidade de desencadear um processo de construção activa de
negociações e adaptações contingentes. Neste sentido, em lugar de uma tradução
mecânica e linear, desencadeiam-se processos que conferem uma maior flexibilidade ao
conjunto de novas regras e padrões que se vão estabelecendo no âmbito das práticas,
aspecto que é, sem dúvida, revelador da importância do trabalho local – mesmo que
entretanto este tenda a tornar-se invisível – que é necessário para a sua implementação
e sobretudo para a viabilidade da sua relativa eficácia (Timmermans e Epstein, 2010: 83).
Também alusivo à importância das possibilidades de reconstrução do conhecimento
no contexto das práticas clínicas, é o trabalho de Serra (2007), dado que avança com
Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico
105
alguns elementos importantes que dão conta do modo como o conhecimento médico se
renova constantemente a partir das práticas médicas quotidianas. Centrando-se num dos
exemplos flagrantes de um modelo de medicina tecnocrática – neste caso a
transplantação hepática –, a autora argumenta que apesar de esta substituir a imagem do
médico clínico centrado no doente por um maior protagonismo da dimensão técnica e
tecnológica, tende, contudo, a prevalecer o primado da experiência clínica, o que conduz
frequentemente à secundarização de critérios mais padronizados – sobretudo de
natureza estatística. Verifica-se, assim, que não obstante os proclamados méritos dos
protocolos remeterem para um horizonte de padronização de procedimentos, as margens
de imprevisibilidade e o accionamento de saberes indeterminados – principalmente num
domínio que conjuga vários olhares construídos a partir de conhecimentos diversos e
específicos sobre uma mesma realidade –, acentuam lógicas de articulação e negociação
entre especialidades e entre profissionais de carácter fortemente contingente.
Assim sendo, embora estes exemplos estejam longe de esgotar o reportório de
trabalhos empíricos que problematizam alguns pressupostos mais maniqueístas
relativamente ao significado do processo de construção e negociação de padrões e ao
seu impacto na escala mais micro das práticas médicas, o que parece relevante fazer
notar – embora no âmbito deste pequeno texto tal não se concretize empiricamente12 – é,
sem dúvida, o carácter diverso da medicina, nomeadamente ao nível da heterogeneidade
das práticas e dos seus contextos institucionais concretos. Neste sentido, a consideração
da contextualidade social subjacente à realidade da MBP pode conduzir-nos, no quadro
de futuros aprofundamentos em termos de investigação empírica tendo em conta a
realidade portuguesa, precisamente ao questionamento das estratégias e mecanismos de
difusão desta metodologia, e da sua respectiva lógica regulatória, mas também do modo
como a mesma é adoptada e recontextualizada no âmbito concreto de algumas
especialidades médicas.
Nesta medida, a cultura e a prática científica das diferentes especialidades médicas
são efectivamente um elemento a considerar, dado que para além de darem uma
imagem da justa heterogeneidade da profissão médica, podem ser indicadoras de formas
distintas e diferenciadas de recepção, acolhimento, incorporação, adaptação ou recusa
dos princípios da MBP nas práticas profissionais concretas. Aferir quais as
12
A referência a estes exemplos específicos procura aqui reflectir a afinidade que as opções empíricas que se encontram a ser forjadas e desenvolvidas no âmbito da minha pesquisa empírica com eles estabelecem. Quer isto dizer que, não obstante algumas das opções e estratégias de investigação estarem ainda a ser limadas – particularmente no que diz respeito à definição dos critérios de escolha das especialidades médicas a estudar para melhor aferir o “impacto” dos padrões e das provas estatísticas nas práticas médicas concretas –, há, no entanto, uma clara convergência com a preocupação de se explorar as racionalidades de carácter reflexivo das práticas profissionais desenvolvidas no âmbito de algumas especialidades médicas no contexto nacional.
Hélder Raposo
106
especialidades médicas que melhor ilustram esta diversidade e determinar quais os
modos concretos de proceder a essa avaliação são aspectos que, por agora,
transcendem o enfoque mais limitado deste exercício de perscrutação teórica mas que
apontam, e vinculam, estas pistas de reflexão, para a necessidade de futuros avanços na
investigação empírica.
NOTAS FINAIS
Tal como se procurou salientar no decurso desta breve reflexão de carácter teórico, o
interesse em discutir, mesmo que de forma condensada, as razões e os interesses
estratégicos (designadamente em alguns sectores da profissão médica) da crescente
ênfase na padronização e o empenho na racionalização da medicina, bem como o
carácter dinâmico e processual da produção e implementação de padrões, justifica-se
pela necessidade de algumas clarificações e delimitações analíticas. Ou seja, tratando-se
a medicina de um domínio não unitário e heterogéneo, é importante não só evitar
generalizações interpretativas acerca da natureza das suas reconfigurações, mas
sobretudo encontrar enfoques de análise que consigam resgatar a abordagem
sociológica de alguns enquadramentos – marcados sobretudo pelas preocupações mais
ortodoxas do quadro da sociologia das profissões – que tendem a perpetuar a obstinação
com a questão do aumento ou da perda do poder profissional.
Um desses enfoques alternativos passa por conferir maior centralidade à análise das
diferentes bases científicas do conhecimento médico, agora mais estruturalmente
alicerçado na abordagem epidemiológica. Perceber que consequências resultam desta
transformação na produção do conhecimento, e dos novos poderes que daí decorrem, é
uma indagação de grande pertinência, desde logo porque a prova estatística passa a
definir o que conta como conhecimento válido, mas também porque habitualmente o
carácter contingente e socialmente construído de alguns processos cognitivos que estão
na base do conhecimento médico surgem “mascarados”.
Nesta acepção, o presente texto procurou, na sequência das considerações que se
foram sistematizando, identificar e contextualizar as condições que estão subjacentes a
uma cultura de racionalização e a um discurso da evidência. Por essa razão,
naturalmente que assumiu algum destaque o questionamento dos fundamentos e
pressupostos ideológicos dessa cultura de regulação marcada por modalidades de
normalização e produção de convenções. Através desse exercício tornou-se mais nítido o
modo como a actual biomedicina se desenvolve num contexto cada vez mais marcado
por novos colectivos de actores que mobilizam modalidades de regulação de carácter
transnacional ao nível da produção de convenções, critérios de normalização, sistemas
Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico
107
de classificação e padronização de modelos médicos. Trata-se, no fundo, de um
panorama que denota a importância assumida pela dimensão institucional ao nível da
produção e negociação colectiva quanto aos padrões e modelos de acção (convenções
biomédicas) indispensáveis à normalização das práticas.
Mas como também se viu, não obstante a importância de identificar os fundamentos
que suportam e alimentam os imperativos da padronização no contexto da MBP, o
desafio analítico de explorar o carácter adaptativo e contingente da padronização afigura-
se como uma orientação potencialmente fértil para a exploração e compreensão da
dimensão contextual e situada desses conhecimentos na prática profissional concreta.
Trata-se, portanto, de um aspecto que nos deverá alertar para o facto de que, apesar das
pretensões de universalidade e uniformização, a dimensão local põe em evidência o
carácter plástico e recontextualizado que a mobilização e a “construção” desse
conhecimento sempre implicam no contexto das diversas práticas profissionais.
São, em suma, questões que, pela sua pertinência e actualidade no âmbito da
agenda da investigação sociológica sobre esta temática, urgem ser exploradas de uma
forma mais substantiva nos novos trilhos a que este trabalho pode, potencialmente,
conduzir.
HÉLDER RAPOSO
Docente da área científica de Sociologia da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de
Lisboa (ESTeSL-IPL). Doutorando no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa (ICS-UL).
Contacto: [email protected]
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e-cadernos CES, 10, 2011: 110-127
110
TRABALHO, GÉNERO, IDADE E ARTE: ESTUDOS EMPÍRICOS SOBRE O TEATRO E A DANÇA
VERA BORGES1
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, UNIVERSIDADE DE LISBOA
Resumo: Este artigo analisa se existe uma relação sistemática entre o género, a idade e a situação profissional de actores e bailarinos a trabalhar em Portugal. Os resultados do inquérito realizado junto de 187 artistas são lidos à luz das actuais condições de trabalho nas artes e dos efeitos do género, da idade, das características de inserção profissional e do tipo de organização dos indivíduos no teatro e na dança. Em geral, a análise demonstra que os artistas desenvolvem importantes estratégias de formação que aparecem associadas a cenários de uma forte incerteza quanto ao seu futuro profissional e à sua permanência no mercado de trabalho artístico. A incerteza e o risco profissional atravessam as carreiras de actores e bailarinos de tal forma que as diferenças entre os domínios artísticos e o respectivo sucesso dos indivíduos são mínimas ou quase nulas. Palavras-chave: arte, género, idade, trabalho, profissão.
1. PONTO DE PARTIDA2
Nos últimos anos têm sido publicadas inúmeras pesquisas de carácter sociológico e
histórico, nacionais e internacionais, que analisam os efeitos da idade e do género na
situação profissional dos indivíduos que trabalham nas artes. Uma das pesquisas que
melhor compararam os domínios da música, do teatro e da dança foi desenvolvida por
Coulangeon, Ravet e Roarik (2005), que provaram que, com o passar do tempo, as
artes performativas tratam de forma diferenciada os mais novos e os mais antigos, os
1 Estou muito agradecida a Cícero Roberto Pereira, investigador associado do Instituto de Ciências Sociais,
pelas suas sugestões feitas ao longo da elaboração do artigo. Uma palavra de agradecimento para a equipa de especialistas, cujos comentários foram muito úteis. 2 Esta pesquisa foi inicialmente apresentada no III Ciclo Anual de Jovens Cientistas Sociais (2007-2008),
realizado em Coimbra no dia 12 de Março. O texto intitulou-se “Actores e actrizes no teatro: profissão e mercado de trabalho” e partia de uma questão levantada na tese de doutoramento a propósito do género e da idade dos artistas entrevistados na fase da pesquisa no terreno. Actualmente, os dados que constam deste artigo foram recolhidos com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projecto de pós-doutoramento entretanto desenvolvido.
Vera Borges
111
homens e as mulheres. O destaque que é aqui dado à literatura francesa passa em
grande medida pela potencialidade comparativa destes estudos, quer do ponto de vista
da démarche metodológica seguida, quer do ponto de vista da leitura dos resultados e do
perfil das populações estudadas. O que se deixa antever desde logo pela escolha do
título deste artigo, que se inspirou fortemente nas jornadas de estudos do
agrupamento de pesquisas Marché du travail e genre en Europe, intituladas «Travail,
genre et art», dirigidas por Buscatto, Marry e Naudier (2008), e ainda no seminário
apresentado por Ravet e Coulangeon no âmbito do workshop international «A profissão
como vocação», realizado em Lisboa, no Instituto de Ciências Sociais, em 2008, sob a
direcção de Delicado, Borges e Dix.
Assim, o presente artigo tem em conta os desafios teóricos e empíricos levantados
por estas pesquisas, realizadas em torno da profissão, do trabalho, do género e da
arte, e parte dos resultados de dois estudos empíricos efectuados junto de 122 actores
e 65 bailarinos para descrever em que condições trabalham hoje estes profissionais das
artes no nosso país. O objectivo é reflectir sobre o actual funcionamento destes
mundos artísticos e lançar os dados para uma análise sistemática da relação entre o
trabalho realizado nas artes (a tempo inteiro ou a tempo parcial), o género e a idade
dos artistas.
O artigo está organizado em três secções: em primeiro lugar, apresenta-se o contexto
teórico e empírico que inspira e sustenta esta reflexão e as pontes que existem entre as
investigações realizadas em contexto português e francês. Fora das artes procuram-se
estabelecer, de uma forma breve, alguns paralelos com outros mundos sociais, como a
engenharia, a advocacia, etc. Em terceiro lugar, seguem-se os principais resultados das
pesquisas desenvolvidas no teatro e na dança e na última parte apresentam-se as
principais conclusões e algumas perspectivas para as investigações futuras.
2. TRABALHO, GÉNERO, IDADE E ARTE
Em geral, as pesquisas sobre o trabalho que contemplam a temática do género têm tido
importantes desenvolvimentos. Em Portugal, Torres (2004) coordenou uma publicação
que incidiu sobre a condição dos homens e das mulheres entre a família e o trabalho.
Wall e Amâncio (2007) apresentaram as clivagens e as continuidades de género nas
atitudes face à família e, no mesmo volume, Aboim (2007: 35-91) descreveu o impacto do
trabalho profissional na vida familiar e nas carreiras das mulheres e dos homens. A
discussão dos efeitos do género nas profissões foi feita por exemplo na pesquisa de
Rodrigues (1999), que descreveu como se formam os novos universos de discurso
resultantes da entrada das mulheres engenheiras no mundo do trabalho. Caetano (2003)
Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança
112
assinalou a mudança na composição da profissão e considerou determinante o aumento
do número de mulheres inscritas na Ordem dos Advogados nos últimos vinte anos.
Apesar disso, Chaves (2010) assinalou ser notória a menor tendência das jovens
advogadas para exercerem a profissão. Por sua vez, Gonçalves (2006) analisou a
emergência dos economistas, acompanhada pelo fenómeno da feminização, que alterou
toda a dinâmica de organização destes profissionais. Machado (2003) considerou existir
um impacto forte da entrada das mulheres na evolução da profissão médica.
Em França, Buscatto e Marry (2009) estudaram a evolução do fenómeno da
feminização no século XX em diversos países e profissões superiores, analisando as
barreiras «duráveis» e «invisíveis» que fazem com que as mulheres qualificadas não
acedam a posições profissionais mais elevadas. A discussão realizada em torno da
temática do trabalho e do género com e sem a arte é antiga, como é vasta a literatura
sobre o assunto (Marry e Kieffer, 1998; Ferrand, 1993; Naudier, 2010; Cacouault-Bitaud e
Ravet, 2008; Giannini, 2005; Buscatto e Leontsini, 2011).
As investigações de cariz sociológico, realizadas nos mundos das artes,
principalmente nos domínios do teatro e da dança, descrevem como a idade e o género
podem ditar as regras do jogo em diferentes fases das trajectórias de carreira dos
indivíduos: por exemplo, Menger (1997) considera que a idade é uma «porta de entrada»
importante para as mulheres, em particular no caso do teatro e da televisão, pois, quanto
mais jovens, mais acumulam trabalhos de representação no teatro e contratos na
televisão. O que pode funcionar como uma vantagem inicial quando se comparam as
carreiras de dois indivíduos – homem e mulher – com talento semelhante (Menger, 2009).
No entanto, a idade acaba por se tornar um «filtro imperfeito», sobretudo no caso das
mulheres, que são penalizadas pela vida familiar e pela mesma razão que inicialmente
facilita a sua entrada no mercado de trabalho e que com o passar do tempo acaba por
produzir diferenças entre homens e mulheres artistas (Menger, 1997). No mesmo sentido,
Paradeise, que também liderou um estudo sobre o teatro em França, considerou que as
mulheres actrizes desaparecem de cena por volta dos 50 anos:
As mulheres – sobretudo entre os 30 e os 60 anos – encontram-se desfavorecidas
em relação aos homens: por um lado, em volume global, existem actualmente pelo
menos tantas actrizes como actores no mercado para menos papéis (duas em cada
dez estão numa produção de cinema ou televisão); por outro lado, em volume por
momento do ciclo de vida, a análise da sua distribuição no cinema e no teatro
mostra um grave deficit de papéis de «mulher madura» […]. Elas podem no entanto
manter-se no métier desenvolvendo esforços de auto-criação de emprego […],
Vera Borges
113
investindo na periferia do métier […] ou em actividades exteriores (Paradeise, 1998:
42-43).
Já a entrada no mercado de trabalho da dança clássica exige alguma idade, não
muita, apenas o tempo suficiente para se fazer formação específica, como ficou provado
na pesquisa de Rannou e Roarik (2006). A dança contemporânea (Sorignet, 2004) é
aparentemente mais aberta a todos; contudo, revela-se um espaço de desigualdades,
não tanto na entrada na profissão, mas, acima de tudo, nos momentos de construção
coreográfica, durante os ensaios, conforme é relatado na pesquisa de Saura (2009). No
domínio da música são vulgares as actuações ao vivo de músicos mais velhos do que em
qualquer outro mundo da arte citado, exemplo de que estes podem permanecer mais
tempo no mercado de trabalho (Coulangeon, Ravet e Roarik, 2005).
Por sua vez, a análise da tríade trabalho, género e arte, em Portugal, tem merecido a
atenção dos investigadores em literatura comparada, estudos feministas e história de
arte, nomeadamente através dos importantes contributos de Vicente (2005), Macedo
(2011) e Macedo e Rayner (2011). A primeira analisou de uma forma aprofundada as
mulheres artistas e os sentidos da criatividade artística no feminino desde o século XVI
ao século XX. Já Macedo (2011) entrou no universo conceptual e no trabalho da pintora
Paula Rego e a dupla Macedo e Rayner (2011) organizou uma antologia que reúne
textos de investigadores de diferentes áreas que articulam o género, a cultura visual e a
performance.
Dos trabalhos sociológicos desenvolvidos pela equipa do Observatório das
Actividades Culturais merece destaque a pesquisa de Gomes, Lourenço e Martinho
(2005) sobre as carreiras profissionais e as diferenças de género na produção de cinema.
Anteriormente, Conde, Martinho e Pinheiro (2003) reflectiram sobre as mulheres nas
principais orquestras portuguesas e mostraram que os efeitos de género têm aqui uma
explicação diferenciada de acordo com o contexto de cada orquestra. Conde apresentou
a vulnerabilidade da identidade dos artistas, retirando a este respeito idênticas
conclusões sobre as carreiras femininas nos diferentes mundos artísticos (Conde, 2009).
Ainda em terreno português, uma pesquisa recente seguiu e aprofundou a pista da
formação e da inserção dos artistas no mercado de trabalho e obteve resultados que
apontam a experiência em situação de trabalho, preferencialmente realizada durante o
período de aprendizagem formal, como o factor determinante do nível de sucesso de
homens artistas e mulheres artistas, novos e de gerações mais antigas (Borges e Pereira,
2011).
Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança
114
O estudo dos arquitectos a trabalhar em Portugal, realizado no Instituto de Ciências
Sociais por Cabral e Borges (2006 e 2010), considera que a aposta na formação formal
e a elevada frequência de cursos de formação, especialização e pós-graduações
universitárias são realizadas em grande medida pelas mulheres que têm uma posição
precária neste mercado, desenvolvendo a arquitectura a tempo parcial, ou numa posição
secundária no interior dos ateliers visitados. O investimento que as mulheres fazem na
formação mostra-se ineficaz e não altera a sua posição, desfavorecida, no mercado de
trabalho, funcionando apenas como factor cumulativo capaz de gerar empregabilidade
nas segundas profissões, como o ensino, ao qual as mulheres arquitectas acabam por
ficar ligadas.
Com efeito, a formação formal é cada vez mais um passo na profissionalização no
interior do mundo das artes, e as pesquisas americanas têm vindo a dar conta do
potencial que a educação artística confere aos indivíduos, desenvolvendo a sua
capacidade de responderem de maneira flexível adaptável às necessidades do mercado
e explorando a sua criatividade para a porem ao serviço de novos modelos de trabalho
(Caves, 2000). Por exemplo, no caso da dança, Montgomery e Robinson (2003)
mostraram que ter um curso superior de dança, alguma idade, geralmente menor do que
noutros domínios, e experiência de trabalho são condições favoráveis para conseguir um
emprego nesta área e obter rendimentos mais elevados, trate-se de bailarinos ou de
bailarinas.
No que respeita ainda a análise das condições de emprego de homens e de
mulheres nas artes, Buscatto (2007) descreve longamente o funcionamento do jazz
como sendo um mundo «masculino» pelo tipo de organização das suas redes sociais,
convenções musicais e normas de interacção, que deixam de fora as mulheres. Estes
factores explicam que, em França, apenas 8% dos 2000 músicos de jazz sejam mulheres
e menos de 4% instrumentistas. No mesmo sentido, as condições de emprego na
indústria cinematográfica descritas por Bielby e Bielby (1996) ilustram como
representações e estereótipos sociais tendem a excluir as mulheres do exercício de
actividades ligadas à representação, afastando-as para a escrita de textos (script girls)
especializados em assuntos «femininos», ou seja, as mulheres aparecem aqui como
responsáveis pela escrita de argumentos de filmes para mulheres.
Do lado das pesquisas que comparam as carreiras artísticas femininas e masculinas,
salientam-se os trabalhos sobre as artes plásticas (Pasquier, 1983) e a literatura
(Naudier, 2007). De novo as dificuldades em conciliar o trabalho e a vida familiar afectam
as perspectivas de carreira, as modalidades de profissionalização e a probabilidade da
consagração das mulheres quando comparadas com as carreiras dos homens.
Vera Borges
115
Nas pesquisas de Pasquier (1983), Moulin (1992), Menger (1997), Cabral e
Borges (2006) assinalam-se que a vida familiar pode penalizar as mulheres. Com
dificuldades em permanecer no mundo das artes algumas delas passam a desenvolver
actividades artísticas amadoras e «escolhem» as actividades consideradas menos
reputadas e até menos premiadas, como se pode ler no estudo sobre os arquitectos:
Há diferenças nos domínios de actividade em que trabalham, ocupando-se os
homens das construções mais importantes. Na mesma linha, as arquitectas
participam menos do que os arquitectos em concursos e são praticamente metade
deles a ganhar prémios. As arquitectas também acumulam menos actividades do
que os arquitectos e auferem, em média, rendimentos inferiores aos deles (Cabral
e Borges, 2010: 156).
As investigações que se ocupam da comparação dos rendimentos dos homens e das
mulheres, por exemplo, no cinema e na televisão (Bielby, 2009) concluíram que as
desvantagens dos jovens e das mulheres vão sendo acumuladas desde o início das
carreiras, uma vez que estes grupos trabalham frequentemente nas «margens da
indústria cinematográfica» e acabam por ficar com as «tarefas menores», como a
reescrita de uma pequena parte de um argumento. Voltando agora ao mundo das artes
performativas, as pesquisas concluem que, mesmo quando estão em maior número,
como acontece no domínio da dança (Rannou e Roarik, 2006; Borges e Pereira, 2011),
ou quando estão em número semelhante ao dos homens (Menger, 1997: 22), as
mulheres artistas têm condições de trabalho menos satisfatórias, aliadas a rendimentos
mais baixos (Paradeise, 1998: 42; Rannou e Roarik, 2006: 91).
Por fim, elencam-se algumas das pesquisas que abordam as diferentes práticas de
selecção das mulheres e dos homens na sua entrada em certos mundos da arte.
Recorda-se o interessante trabalho de Goldin e Rouse (2000) sobre a imparcialidade no
recrutamento dos indivíduos para as orquestras e o impacto das audições às «cegas» na
contratação das mulheres: o uso de uma «cortina» durante as audições evitou
comportamentos discriminatórios, quer para as mulheres, quer para os músicos de outras
nacionalidades. Algumas das orquestras estudadas prescindiram da cortina na última
fase do concurso, alegando que seria necessário avaliar a presença cénica dos
candidatos e o seu desempenho corporal. A pesquisa de Ravet (2007) analisou as
consequências de socializações diferenciadas que «orientam» as mulheres mais jovens
para as «práticas musicais femininas», como acontece com a escolha da harpa e do
piano, graças à emergência de vocações que têm associados factores familiares
Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança
116
específicos, como a socialização precoce das artistas e a exposição a condições sociais
propícias.
Em todas as pesquisas citadas parece desenhar-se um cenário mais ou menos
comum de condição desfavorável para as mulheres nas artes e para aqueles que têm
mais idade pelas características peculiares do teatro e da dança. As actrizes que
trabalham na televisão são muito chamadas pela sua juventude, mas a idade afecta o
número de contratos (Menger, 1997); os bailarinos e as bailarinas a partir de uma certa
idade, pela exigência física da dança clássica, sentem a reconversão como uma
mudança necessária na sua carreira (Baumol, Jeffri e Throsby, 2004).
Os resultados que se apresentam a seguir permitem que se discutam as questões do
género e da idade engendradas no seio destas profissões, mas mostram também que as
variáveis clássicas das ciências sociais são, nos dias de hoje, menos determinantes do
que outrora. É a incerteza do sucesso nas carreiras artísticas que, por um lado, alimenta
e «chama» os artistas para o teatro e a dança, mas, por outro lado, é essa incerteza que
elimina, selecciona, homens e mulheres, novos e velhos. À semelhança do que acontece,
hoje, em outros mundos produtivos e com os outros trabalhadores.
3. MÉTODOS E PARTICIPANTES
Este artigo utiliza os resultados de uma investigação realizada entre 2007 e 2009 e que
se centrou no estudo dos percursos profissionais e formativos de actores e bailarinos,
utilizando-se para o efeito um questionário on-line. No período de lançamento dos
questionários foram contactadas organizações ligadas à dança e ao teatro, como o
Fórum Dança e a REDE (associação de 23 estruturas para a dança contemporânea, que
facilitou a observação e a participação numa reunião de trabalho dos bailarinos
associados e dos investigadores, realizada no Espaço do Tempo em Montemor-O-Novo),
na Escola Superior de Dança, na Escola Superior de Teatro e Cinema e na associação
de trabalhadores a «recibos verdes», designada FERVE.
No que respeita aos participantes neste questionário, a amostra utilizada é de 187
indivíduos. Cerca de 35% dos artistas pertencem ao domínio da dança e 65% pertencem
ao teatro. Os artistas responderam a questões relativas ao início das carreiras, idade do
primeiro trabalho e tipo de recrutamento, formação geral e específica, evolução do
percurso, rendimentos, tempos de trabalho em diferentes sectores de actividade,
vantagens e desvantagens da profissão, caracterização da situação profissional actual e
dados como a mobilidade geográfica e a profissão dos pais.
A presente análise incidirá na compreensão do tipo de relação que existe entre o
género, a idade e a situação profissional dos indivíduos. A propósito desta última variável,
Vera Borges
117
convém esclarecer que foi solicitado aos inquiridos que descrevessem a sua situação na
profissão, tendo em conta o seguinte conjunto de respostas: actor/bailarino a tempo
inteiro; actor/bailarino a tempo parcial; trabalhador a tempo inteiro numa profissão
relacionada com o teatro/dança (como, por exemplo, o ensino e a direcção artística);
trabalhador a tempo parcial numa profissão relacionada com o teatro/dança (como, por
exemplo, o ensino e a direcção artística); trabalhador a tempo inteiro numa profissão que
nada tem a ver com o teatro/dança; trabalhador a tempo parcial numa profissão que nada
tem a ver com o teatro/dança; trabalhador-estudante; estudante.
4. RESULTADOS
Uma análise geral dos principais resultados sócio-demográficos deste questionário
mostra que pouco mais de metade dos inquiridos nestes dois estudos são mulheres (53,
6%). Em média, os inquiridos têm 29 anos: verificou-se que a idade média é de 30 anos
na dança e de 28 anos no teatro. Os bailarinos iniciam-se precocemente na profissão,
quer do ponto de vista da entrada na profissão, quer do ponto de vista das suas relações
contratuais de trabalho: com 18 anos, os bailarinos começam a fazer da dança um
trabalho e aos 19 anos estabelecem o seu primeiro contrato formal. Os actores começam
a fazer teatro profissional mais tarde, aos 21 anos, e o primeiro contrato de trabalho
surge, em média, dois anos depois.
O background familiar dos artistas no teatro e na dança difere. No teatro, os níveis de
escolaridade das mães, que, regra geral, têm o ensino básico e estão a desenvolver
trabalhos administrativos e não qualificados, são inferiores aos dos pais, que têm o
ensino intermédio e são técnicos de nível intermédio. Acresce que 24% dos actores têm
familiares próximos que exercem ou exerceram uma profissão artística.
A relativa heterogeneidade do recrutamento social dos actores contrasta com a
situação vivida na dança, cujos resultados acentuam a importância dos níveis de
escolaridade média e superior e das profissões intelectuais e científicas desenvolvidas
pelos pais e pelas mães dos bailarinos inquiridos. Cerca de 27% dos bailarinos assinalam
ter familiares próximos que exercem profissões artísticas; no entanto, essa situação não
determina a sua «inserção objectiva na profissão», ou seja, os seus rendimentos e o
tempo que estão envolvidos na realização da sua actividade artística.
A quantidade de familiares artistas relaciona-se negativamente com a percepção de
tempo de trabalho na profissão. Assim, quanto mais artistas os inquiridos disseram ter na
sua família, menos tempo de trabalho têm na profissão (Borges e Pereira, 2011).
No mesmo sentido, a «importância que os artistas atribuem aos contactos com os
colegas de profissão» para o sucesso da sua carreira está negativamente relacionada
Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança
118
com a inserção dos indivíduos na profissão: quando mais o contacto com colegas é visto
como importante, mais os indivíduos trabalham esporadicamente no teatro e na dança.
Já a «importância da participação em grupos profissionais» está positivamente
relacionada com a inserção na profissão: quanto mais os artistas consideram importante
a sua participação nesses grupos, mais os artistas trabalham a tempo inteiro na
profissão.
Quanto aos diferentes percursos formativos dos artistas, ressaltam as suas
importantes estratégias de formação: dois terços dos inquiridos afirmam ter concluído o
nível mais elevado de escolaridade geral (ensino superior) e 41,8% consideram ter
realizado um curso de formação específica. Cerca de 32% dos bailarinos e 27% dos
actores continuam a desenvolver um tipo de formação superior, realizando um mestrado
ou um curso de doutoramento. É também possível acrescentar que, durante a formação
mais longa que realizaram, dois terços dos artistas afirmaram ter exercido uma actividade
ligada às artes. Com efeito, os inquiridos estimam que a «experiência adquirida» a
trabalhar no interior de um grupo de teatro ou de dança e «ter jeito» para as artes foram
«extremamente importantes» para a aprendizagem da profissão. Por seu turno, a
experiência escolar foi considerada pelos inquiridos apenas um passo «importante» para
a sua inserção profissional no mercado das artes.
O facto de os actores e os bailarinos terem realizado uma formação longa não gera
diferenças quanto aos seus rendimentos médios mensais, estimados em cerca de 700
euros. As suas expectativas de integração no mercado de trabalho são mais elevadas
quando a formação inicial é longa. A maior parte dos inquiridos pensava que nesta altura
seria melhor remunerada e teria uma situação profissional mais estável. Pouco mais de
metade dos actores e bailarinos (53,5%) já pensaram deixar a profissão e 15,8%
abandonaram-na por um curto período de tempo.
No que diz respeito à questão inicialmente levantada neste artigo sobre se existiria
uma relação sistemática entre o género, a idade e a situação profissional dos artistas no
meio profissional, os principais resultados desta investigação permitem concluir que os
efeitos da idade e do género interagem muito mais no caso das actrizes do que no caso
dos actores, dos bailarinos e das bailarinas, como, aliás, se pode observar nos gráficos 1
e 2, que apresentam a relação idade, género e área de trabalho (no teatro N = 122 e na
dança N = 65) 3.
Na dança, as bailarinas inquiridas têm, em média, 29 anos e os bailarinos 32 anos.
3 No caso do teatro, a relação entre o género e os grupos de idade é marginalmente significativa: χ2 (1, N =
122) = 2,793, p < .09. No caso da dança, não há qualquer relação entre o género e os grupos de idade: χ2(1, N = 65) = 0.38, n. s
Vera Borges
119
No caso do teatro, as actrizes têm, em média, 27 anos e os homens 29. Parece, pois,
que na dança contemporânea – donde provém a maior parte dos artistas inquiridos que
assim se autoclassificaram – a exigência técnica não é propriamente incompatível com a
idade. Pina Bausch será sempre o exemplo de longevidade profissional.
No teatro, as mulheres jovens têm um peso quantitativamente mais importante do
que as actrizes com mais idade. Ao focar a análise na inserção profissional das jovens
actrizes pode dizer-se que com isso são emitidos sinais importantes para os seus pares,
as entidades empregadoras e o público em geral: o primeiro é o sinal da
profissionalidade, pois, ao serem vistas ainda jovens no teatro, as actrizes «dizem» que
têm qualificação e um «saber-fazer». Neste mercado de trabalho prevalece a ideia de
que se aprende a representar no palco (Borges, 2011; Borges e Pereira, 2011) e é no
palco que se exercita a vocação teatral por excelência. O segundo sinal é o da
«transferibilidade», que acontece quando as actrizes conseguem juntar ao trabalho no
teatro a participação na televisão.
Teatro/idade/sexo (%)
Fonte: Inquérito aos actores (2009).
Dança/idade/sexo (%)
Fonte: Inquérito aos bailarinos (2009).
Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança
120
No entanto, com o passar do tempo, as actrizes beneficiam menos da sua
experiência profissional do que os actores e o peso da idade actua na sua participação
no teatro e no volume de trabalho que aí conseguem angariar. Será que as actrizes
com mais idade correm o risco de não terem trabalho? Ou na origem deste resultado
estão explicações espúrias que fazem com que por alguma razão que ultrapassa esta
investigação as mulheres com mais idade tenham tido menos acesso aos
questionários.
Na pesquisa desenvolvida no interior dos grupos de teatro portugueses (Borges,
2007) foram entrevistados 44 homens e 19 mulheres com 35 anos ou menos e 53
homens e 24 mulheres com 36 anos ou mais. Por que razões é que foram
encontradas menos actrizes a trabalhar nos grupos de teatro quando estas estão em
número mais elevado no mercado de trabalho? Os dados apresentados pelo Instituto
Nacional de Estatística indicam haver mais mulheres do que homens na profissão em
2001. Concretamente, 37% dos actores e encenadores são homens e 63% são
mulheres. Situação semelhante é vivida no mundo da dança. São mais as bailarinas do
que os bailarinos: 23% são homens e 77% são mulheres.
Em França, Menger demonstrou que as actrizes têm uma longevidade profissional
claramente inferior à dos homens: «a população das actrizes é mais jovem […] as
carreiras femininas são condensadas num tempo biográfico mais curto» (Menger, 1997:
23). Existirão menos papéis para as actrizes « maduras»? Existirá um risco de
abandono das carreiras por parte das actrizes de meia-idade?
Os testemunhos de cinco actrizes portuguesas com mais de 45 anos chamam a
atenção para o facto de a idade afectar as carreiras das mulheres no teatro e na
televisão: descreve-se a problemática saída das actrizes dos grupos de teatro depois de
vinte anos de colaboração permanente; assinala-se o «não ter cara» (expressão utilizada
por uma das entrevistadas) para iniciar, tarde, uma carreira na televisão.
Na verdade, poderá tratar-se do efeito da idade, que faz evoluir as carreiras das
mulheres de uma forma secundária e marginal, ao sabor das convenções estéticas que
circunscrevem o volume de emprego disponível para as actrizes mais velhas
(Borges, 2007).
Uma observação dos elencos que compõem os espectáculos de teatro das 39
estruturas apoiadas na Região de Lisboa e Vale do Tejo em 2010 permite avaliar a
distribuição de papéis para mulheres «mais maduras»: é possível reter o nome de
algumas actrizes mais velhas ligadas a tempo parcial às estruturas teatrais. A
observação dos espectáculos foi feita no âmbito do trabalho desenvolvido pela
comissão de acompanhamento dos grupos de teatro apoiados pelo Ministério da
Vera Borges
121
Cultura (cf. Borges, Costa e Graça, 2011). No conjunto de entrevistas realizadas pela
comissão, verificou-se que, em geral, a produção é feita por mulheres e que a maior
parte dos indivíduos que dirigem os grupos de teatro são homens. O abandono ou a
descontinuidade da actividade das actrizes no teatro podem ter a ver com a falta de
papéis nos textos escolhidos pelos grupos de teatro.
Quanto aos resultados relativos ao género, rendimentos e situação actual dos
artistas inquiridos no teatro e na dança: a relação do género, rendimentos nas artes e
situação profissional dos inquiridos não tem um impacto relevante para esta análise;
portanto, nos estudos empíricos realizados não se verificou propriamente um efeito do
género. Já a idade dos inquiridos está relacionada com a situação na profissão, pelo
que, quanto mais idade, mais os artistas inquiridos têm a percepção de estarem a
trabalhar a tempo inteiro na profissão. Se «os sistemas de salários dão sinais sobre a
visibilidade e a invisibilidade das competências, a sua legitimidade, no fim de contas,
sobre a verdade das relações de força na negociação» (Rannou e Roarik, 2006: 91),
então pode afirmar-se que aqui existe um efeito positivo que coloca homens e
mulheres na mesma posição face às profissões artísticas, afastando-se estes
resultados de algumas das conclusões de outros estudos citados na primeira secção
deste artigo.
Os rendimentos médios mensais brutos que os artistas, homens e mulheres, com
mais ou menos de 30 anos dizem auferir são muito modestos: em média, os salários
retirados do trabalho no teatro ou na dança variam entre 501 e 1000 euros mensais.
No caso das actrizes e dos actores, os rendimentos são ligeiramente reforçados pela
sua participação na televisão e no ensino.
O sector do audiovisual atrai as actrizes e os actores inexperientes e em início de
carreira e até aqueles que, não sendo actores ou actrizes, «tentam a sua sorte», o
que, em grande medida, gera o capital necessário para posterior reinvestimento na
arte.
No domínio do teatro, a interacção da idade com a situação profissional dos
artistas levanta algumas tendências que merecem atenção especial4. No caso dos
actores com mais de 30 anos, 58,3% têm a percepção de estarem a trabalhar a tempo
inteiro e 41,7% a tempo parcial. Os artistas com menos de 30 anos estão ligados ao
mundo teatral, desempenhando uma actividade relacionada com o teatro a tempo
inteiro (52,6%), depois a tempo parcial (24,6%), como, aliás, se pode ver no gráfico 3.
4 No caso do teatro, a relação entre os grupos de idade e a sua situação na profissão é significativa: χ2 (1,
N = 122) = 10,412, p < .05. No caso da dança, não existe relação entre os grupos de idade e a situação
profissional: χ2(2, N = 65) = 0.5, n. s.
Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança
122
Os actores mais jovens dividem-se entre a profissão e a formação: 22,8% são
trabalhadores-estudantes. Já anteriormente se avaliaram as carreiras dos actores e
dos encenadores e a evolução dos seus modos de formação entre o grupo de teatro e
a escola, discutindo-se a importância dos grupos enquanto entidades de ligação dos
jovens alunos com o mundo profissional (Borges, 2011). No mesmo sentido, provou-se
que a «inserção profissional objectiva» dos artistas no mercado passa, sem dúvida,
pela importância da experiência adquirida no teatro ou na dança enquanto estudam
(Borges e Pereira, 2011; a propósito da juventude e inserção profissional, v. Alves,
2008).
Idade e situação profissional no teatro
Fonte: Inquérito aos actores (2009).
No caso da dança, a situação vivida pelos bailarinos e bailarinas com mais de 30
anos é descrita pelos próprios como não sendo diferente da situação vivida pelos mais
jovens (v. gráfico 4). Metade dos bailarinos com menos de 30 anos trabalham a tempo
inteiro (52%) e 44% a tempo parcial. Pouco mais de 2/3 dos bailarinos com mais de 30
anos trabalham a tempo inteiro e 36% trabalham a tempo parcial.
Idade e situação profissional na dança
Fonte: Inquérito aos bailarinos (2009).
Vera Borges
123
As implicações destes resultados permitem deixar aqui breves reflexões e algumas
linhas de investigação que se podem continuar a explorar. Em primeiro lugar, as artes
do teatro e da dança têm estado sujeitas a um tipo de organização onde há muito se
descreve a precariedade do trabalho, desenvolvido por projecto ou por peça, e as
relações contratuais de trabalho estabelecidas com inúmeros empregadores. Mas as
artes não estão sozinhas nesta caminhada (v. como exemplo a pesquisa cuidada de
Freire, 2006, a propósito das possibilidades e condições de trabalho na vinha). O
interesse de pesquisas como esta, realizadas fora do universo artístico, está para lá da
curiosidade e uma reflexão conjunta destes temas ajuda a fazer uma leitura mais
ampla dos resultados e a lançar as bases de uma discussão alargada sobre o impacto
da instabilidade nas trajectórias individuais de carreira e os desafios à reorganização
colectiva do trabalho dentro e fora do universo artístico.
Depois, convém salientar que nos estudos empíricos aqui apresentados de uma
forma comparativa e mobilizando as variáveis clássicas das ciências sociais, como o
género, a idade e até a formação, estas pouco explicaram ou não explicaram as
desigualdades, pois neste momento o que caracteriza estes mundos do trabalho é a
profunda incerteza quanto ao futuro profissional de todos os inquiridos. Por fim,
importa perceber se, face aos riscos de ficarem sem trabalho, os artistas encontrarão
respostas na formação e qual será o efeito que esta pode ter quando realizada sem
ser de «costas» para o mercado, permitindo aos indivíduos o desenvolvimento de
actividades profissionais «derivadas», como o ensino e a animação, ou o
desenvolvimento de actividades profissionais «paralelas» e diferentes das actividades
artísticas mas capazes de assegurar trabalho para os mais jovens. Até que ponto a
segunda profissão ajudará o indivíduo a financiar a sua vocação artística? Acentuará a
incerteza estrutural das artes? Permitirá ao indivíduo continuar a investir o seu tempo
livre numa actividade considerada «libertadora», à semelhança da situação vivida nas
ciências (Borges e Delicado, 2010)?
CONCLUSÃO E PERSPECTIVAS
Vivem-se profundos dilemas sociais e económicos nos mundos das artes, em
particular no teatro e na dança, como acontece em mundos produtivos diversos, um
pouco por toda a parte. Neste artigo merece um olhar atento a juventude dos artistas
inquiridos – em média, não chegam aos 30 anos – e a sua «necessidade quase vital»
(expressão utilizada por um dos entrevistados) de ligação à arte para concretizar um
sonho, incrustado numa instabilidade que atravessa todas as fases da carreira dos
artistas, dos reputados aos mais desconhecidos, homens e mulheres, novos e antigos.
Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança
124
Além das razões económicas que estruturalmente afectam as artes performativas,
a favor da frágil e precária organização destas carreiras pode estar ainda o facto de no
teatro e na dança contemporânea a entrada parecer acessível. Apesar de os níveis de
formação serem elevados e os percursos formativos dos inquiridos articularem
interessantes linhas de formação mista, formal e informal (workshops e cursos
técnicos), estes não são mecanismos de selecção, ao contrário do que se passa em
certos mundos, como a música clássica ou a dança clássica.
O peso dos jovens no teatro e na dança e o volume de trabalho que parece ocupá-
los, mesmo que seja a tempo parcial, podem proporcionar um leque de oportunidades
de trabalho (serão reais?) que fazem com que espartilhem o seu tempo entre uma
actividade criadora e uma actividade de «suporte» do trabalho artístico. No caso do
teatro, os artistas com mais idade não têm uma situação profissional melhor do que os
mais jovens: todos vivem de forma instável e imprevisível a sua passagem pelas artes.
No caso da dança também não existe qualquer relação entre o género, a idade e a
situação profissional; por isso, qualquer que seja a idade de um bailarino ou de uma
bailarina, a sua posição na profissão é frágil. Nesta análise destaca-se o teatro e a
situação «nebulosa» das actrizes: com mais de 45 anos pode ser tarde de mais para
ser artista.
No futuro merece a nossa atenção o estudo da eficácia da formação nas artes
pelas implicações gerais que pode ter na definição das políticas públicas para o sector.
Em contexto português está ainda por estudar a percepção que os artistas têm das
dificuldades em construir a sua reputação num mercado cujas regras do jogo são a
imprevisibilidade e a força das vantagens cumulativas (Merton, 1988). Mas isso será
objecto de outra pesquisa.
VERA BORGES
Investigadora de pós-doutoramento do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa. Actualmente, a autora desenvolve a sua pesquisa em torno da reputação,
sucesso e risco das carreiras nas artes e em outros mundos do trabalho.
Contacto: [email protected]
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DA LÍNGUA NAS LITERATURAS AFRICANAS HOMOGLOTAS: O “EXEMPLO” DE MIA COUTO
ELENA BRUGIONI
CENTRO DE ESTUDOS HUMANÍSTICOS, UNIVERSIDADE DO MINHO
Resumo: Este artigo propõe um itinerário crítico em vista de uma reflexão que se prende com as relações subjacentes e apontadas pela língua como meio de representação estética e, logo, política. Analisando as fisionomias linguísticas e as problemáticas críticas contidas e apontadas pela escrita literária de Mia Couto, pretende-se reflectir em torno de alguns paradigmas teóricos e operacionais cruciais para repensar o que vem sendo definido como prática humanística. Palavras-chave: Mia Couto, língua portuguesa, literatura moçambicana, literaturas africanas homoglotas, teoria pós-colonial.
INTRODUÇÃO
Há como um terramoto no chão da escrita, uma linguagem em estado de transe,
[...]. Linguagem criadora de desordem, capaz de converter a língua num estado de
caos inicial, ela suporta um transtorno que é fundamental porque fundador de um
reinício. João Guimarães Rosa é um ensinador de ignorâncias de quanto
carecemos para entender um mundo que só é legível na margem dos códigos da
escrita (Mia Couto, 2005).
Um dos traços mais singulares da proposta literária de Mia Couto prende-se com um
conjunto de fisionomias linguísticas inéditas que configuram diferentes aspectos do
idioma português na sua condição de língua literária e, ao mesmo tempo, de elemento de
edificação do “projecto nacional” moçambicano (Couto, 2007b). As estratégias que se
detectam na escrita deste autor – e que de um ponto de vista fenomenológico parecem
responder a uma lógica de “provincianização” da língua (Chakrabarty, 2000) – sugerem
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uma prática estética e, logo, política que visa desconstruir a dimensão institucional e
instrucional – isto é, mediadora – da língua portuguesa no seu alcance de representação
cultural e identitária, configurando-a, simultaneamente, como lugar de inscrição de
instâncias culturais próprias do contexto representado – isto é, problematizado – nesta
literatura. Apresentando um português outro e, logo, uma língua libertada do “pacto
exclusivo com uma única nação” (Manifeste, 2007), a escrita de Mia Couto proporciona
uma reflexão crítica em torno das dinâmicas de intervenção literária e cultural da
contemporaneidade, configurando-se como um “exemplo”1 (Agamben, 1995) no que
concerne à questão linguística nas chamadas literaturas africanas homoglotas.2 As
solicitações que se apresentam através de uma análise da escrita deste autor constituem
pontos de partida para uma problematização em torno de paradigmas críticos cruciais do
que vem sendo definido como “pós-colonial no espaço-tempo de língua oficial
portuguesa” (Santos, 2001), configurando o texto literário como lugar seminal para um
itinerário teórico situado e “mundano”3 (Said, 2004) cujas implicações epistemológicas
contribuem para uma reflexão em torno da própria prática humanística. Por via de
categorias conceptuais tais como relação, tradução, diferença surge a possibilidade de
uma reflexão crítica que a partir de uma problematização da língua na escrita de Mia
Couto bem como nas chamadas literaturas africanas homoglotas, procura re-pensar as
instâncias teóricas e operacionais que pautam a prática humanística. Deste modo, língua,
representação, comunidade e excepção representam pontos-chave da reflexão
epistemológica que se pretende desenvolver, configurando-se como constelações críticas
matriciais para (re)pensar a literatura como lugar de problematização dos paradigmas de
leitura da contemporaneidade.
1 O recurso à categoria de “exemplo” tal como esta é teorizada por Giorgio Agamben (1995) pretende
evidenciar as relações que a fisionomia linguística da escrita de Mia Couto parece estabelecer com outras propostas literárias africanas homoglotas, contribuindo para a desconstrução de processos de recepção exotizantes e salientando, deste modo, a dimensão de “inclusão exclusiva” (Agamben, 1995: 26) que configura a escrita deste autor numa dimensão contextual alargada. Neste sentido, a escrita de Mia Couto é exemplar na medida em que: “exibe o seu pertencer ao caso normal” [tornando-se] um paradigma no sentido etimológico do termo”(Agamben, 1995: 27). 2 Com literaturas homoglotas [omeoglotte] entendem-se “todos os textos escritos fora da Europa em línguas
similares àquelas europeias e contudo não exactamente as mesmas. Por outras palavras, os ‘ingleses’ falados fora da Inglaterra, as variedades de Francês utilizadas em África a nas Caraíbas, o Espanhol dos Estados Unidos da América, o Português do Brasil, de Angola ou de Moçambique” (Centro di Studi sulle Letterature Omeoglotte dei Paesi Extraeuropei: http://www2.lingue.unibo.it/postcolonial_studies_centre/centrehistory.htm) [15/12/2010]. Veja-se também Albertazzi et al., 2004. 3 Mundano e/ou Mundanidade [Worldly / Worldliness] representam conceitos-chave da teorização crítica e
epistemológica de Edward Said; a este propósito o próprio Said salienta: “De um ponto de vista cultural, através do termo mundanidade pretende-se salientar que todos os textos e todas as representações estão no
mundo e são sujeitos as suas numerosas e heterogéneas realidades, contaminações e envolvimentos” (Said, 2004: 31-56; tradução minha).
Tradução, Diferença, Excepção.
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1. LÍNGUA: AMBIGUIDADE(S) E RELAÇÃO. TRADUÇÃO E DIFERENÇA
O português é o pilar mais forte para a construção da unidade nacional e esta é
uma situação contraditória: é preciso que este português seja um português nosso
uma coisa que é sentida como nossa e que nos diferencia dos outros que falam as
outras línguas portuguesas (Mia Couto apud Brugioni et al., 2010).
Na observação crítica da fisionomia linguística da escrita de Mia Couto um dos
pressupostos gerais a considerar é a ambiguidade funcional e simbólica da língua
portuguesa no contexto social, cultural e – obviamente – político moçambicano,
destacando-se como um dos elementos fulcrais para a inscrição da proposta literária
coutiana na dimensão fenomenológica de uma intervenção cultural “situada” (Hall, 1990).
Este aspecto torna-se particularmente emblemático uma vez que é relacionado com as
especificidades de um contexto como o moçambicano onde a língua portuguesa –
similarmente a outros contextos africanos4 – é caracterizada por um conjunto de
atribuições simbólicas, históricas, políticas e socioculturais problemáticas e, ao mesmo
tempo, específicas5. O carácter comunitário de cariz essencialista e hegemónico que tem
caracterizado o idioma de raiz europeia quer em época colonial quer no pós-
independência,6 constitui o elemento emblemático desta ambiguidade funcional e, logo,
simbólica que caracteriza a língua portuguesa, tornando a subversão linguística da
escrita deste autor numa proposta que coloca problemáticas contextuais e teóricas
relevantes. Por outras palavras, a feição diferencial que caracteriza a escrita de Mia
Couto, uma vez que observada na sua relação com o contexto em que se inscreve,
reveste-se de um sentido ulterior, apontando simultaneamente para dinâmicas de rotura e
continuidade no que diz respeito às práticas de intervenção cultural na chamada
colonialidade e, ao mesmo tempo, à urgência de pluralidade que se situa como um dos
imperativos culturais na construção de uma “moçambicanidade” literária (Matusse, 1998)
e, logo, de uma modernidade cultural. Ao mesmo tempo, este processo de inovação
linguística, frequentemente considerado como uma especificidade da escrita deste autor,
uma vez que é observado dentro do chamado cânone da literatura moçambicana7 ou
4 Refiro-me, por exemplo, à escolha da língua portuguesa como única língua oficial diferentemente de outras
nações africanas onde o idioma europeu partilha este estatuto político com outras línguas, habitualmente definidas como autóctones. Em Moçambique as línguas autóctones gozam do estatuto político de línguas nacionais. 5 Neste sentido, veja-se Gregório Firmino (2002).
6 Pense-se no debate ocorrido nas páginas das diferentes revistas culturais e literárias moçambicanas em
torno do uso da língua portuguesa na literatura moçambicana. 7 A este propósito veja-se: “José Craveirinha, ex-colonizar a literatura, um programa para a sociedade pós-
colonial” in Basto, 2006: 251-283.
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ainda relacionado com o que se poderá definir como perspectiva contextual interna8
adquire uma dimensão fenomenológica mais complexa. Por exemplo, situando a escrita
de Mia Couto num horizonte de perspectivação não apenas “lusófono”, a subversão
linguística que pauta a obra deste autor parece inscrever-se numa linha de intervenção
literária que tem caracterizado as literaturas africanas homoglotas no pós-independência,
apontando para as dinâmicas de “autoctonização e relexificação linguísticas” (Zabus,
2007) que se detectam em outras “literaturas africanas eurófonas” (idem). No que diz
respeito a um plano metodológico, o contraponto entre a escrita de Couto e as propostas
que surgem nas literaturas africanas de língua inglesa e francesa contribuiria para a
neutralização de uma especificidade frequentemente atribuída à escrita deste autor –
pelo menos nos contextos de língua portuguesa – e que determina a consolidação de
processos de exotização desta proposta literária. A este propósito, a categoria da
“Relação” (Glissant, 1990) constitui o conceito-chave através do qual é necessário ler a
escrita deste autor, quer numa perspectiva nacional moçambicana quer noutra
fundamentada numa perspectivação contextual mais abrangente. Aliás, o conceito de
Relação representa a instância crítica crucial para a observação desta literatura,
configurando-se simultaneamente como um contra-paradigma epistemológico refundador
para reposicionar a fisionomia linguística da escrita de Mia Couto e, logo, a sua recepção.
Por outro lado, numa perspectiva geral, uma operacionalização do conceito de Relação
no que concerne à crítica das literaturas africanas homoglotas proporcionaria um
itinerário teórico capaz de neutralizar as dicotomias que pautam o debate em torno das
opções linguísticas nas literaturas africanas, ainda hoje marcado por uma alternância
ideológica entre autenticidade e universalidade. Com efeito, no que diz respeito aos
contextos africanos pós-independência, a questão da língua que as diferentes literaturas
nacionais deviam utilizar tem representado um dos debates mais complexos e todavia
longe de se esgotar. As posições paradigmáticas e opostas tomadas por Chinua Achebe
(1975) e Ngugi wa Thiong’o (1987) têm determinado o surgir de duas linhas de
pensamento antitéticas ainda marcantes da questão linguístico-literária africana. Para
além das questões específicas que os diferentes posicionamentos estéticos e políticos
realçam, o debate em torno da escolha linguística nas literaturas africanas pós-
independência salienta especialmente a centralidade da língua na colonização europeia
em África e, por conseguinte, o seu papel matricial nos processos de edificação nacional
e de autodeterminação política e, logo, cultural. Ao mesmo tempo, a dicotomia entre o
autêntico [línguas autóctones] e o universal [línguas coloniais] que, em geral, fundamenta
8 Refiro-me obviamente a uma dimensão contextual africana ou ainda regional que se tornaria operacional
por via de um contraponto entre diferentes literaturas africanas homoglotas.
Tradução, Diferença, Excepção.
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as diferentes posições assumidas por Chinua Achebe e Ngugi wa Thiong’o –
permanecendo ainda central na crítica das literaturas africanas – não parece ilustrar a
situação linguístico-literária africana cuja complexidade requer um aparato epistemológico
que não permanece vinculado a um pensamento de cariz dicotómica e, logo, que se
funda numa desmontagem do cânone ocidental. Neste sentido, torna-se fundamental a
observação das “modalidades” (Ashcroft, 2001) que caracterizam as escolhas linguísticas
e, logo, uma problematização situada que se prende com as relações que estas opções
pretendem estabelecer no que diz respeito ao contexto em que se inscrevem. No que
concerne a opção de escrita na chamada língua colonial – tal como é o caso de Mia
Couto – a reflexão crítica prende-se forçosamente com as modalidades de desconstrução
– ou melhor, de descolonização (Zabus, 2007) – linguística levadas a cabo pelo autor,
sem porventura esquecer o carácter individual e criativo destas opções. A este propósito,
e procurando inviabilizar um equivoco marcante da recepção crítica da escrita deste
autor, é útil salientar que a língua desta escrita não constitui um elemento representativo
– isto é universal – da situação sociolinguística moçambicana (Gonçalves, 2000). Aliás,
as manipulações e as desconstruções que se detectam nesta literatura não são
determinadas por uma reprodução literária do português de Moçambique ou ainda dos
processos de autoctonização do idioma português no contexto moçambicano (idem). Ao
contrário, a fisionomia linguística da escrita de Couto situa-se na dimensão de uma
prática literária e cultural onde a dimensão fenomenológica da “tradução” parece
desempenhar um papel crucial. Para além de representar um lugar literário seminal na
escrita coutiana9, a tradução constitui uma prática cultural, linguística e obviamente
política central, apontando para instâncias cruciais no que diz respeito à relação
língua(s), identidade(s), contexto(s) e representação.
A escrita é uma casa que eu visito mas onde não quero morar. O que me instiga
são as outras línguas e linguagens, sabedorias que ganhamos apenas se de nós
mesmos nos soubermos apagar. Da minha língua materna eu aspiro esse momento
em que ela se desidioma, convertendo-se num corpo sem mando de estrutura ou
de regra. O que eu quero é este desmaio gramatical, em que o português perde
todos os sentidos. Neste momento de caos e perda, a língua é permeável a outras
razões, deixa-se mestiçar e torna-se mais fecunda. (Couto, 2009)
9 A literatura de Mia Couto é pautada por uma centralidade – implícita ou manifesta – da figura do tradutor e,
logo, da prática da tradução; entre os muitos casos pense-se, por exemplo, no romance O Último Voo do Flamingo (2000) onde tradução e tradutor excedem emblematicamente a dimensão linguística, apontando para dimensões de mediação, negociação e re-definição culturais e identitárias.
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Aliás, o trabalho de manipulação linguística cabe numa lógica de tradução na língua
portuguesa de determinantes linguístico-culturais específicas que, em última análise, não
visa reproduzir a “variedade em formação do português de Moçambique” (Gonçalves,
1996) mas sim utilizar o idioma do colonizador como “dispositivo de rotura e de
afastamento de uma língua dominante” (Basto, 2006: 266). Neste sentido, a tradução não
representa apenas uma prática linguística mas desempenha a função de uma prática
estética e política onde a negociação entre elementos linguísticos e culturais
heterogéneos é facultada pela inscrição na língua portuguesa de uma pluralidade de
repertórios específicos, facultando o surgir do que se poderia definir como “terceiro
código”10 (Zabus, 2007). Por conseguinte, a língua – portuguesa e literária – da escrita de
Mia Couto responde a uma alteridade traduzida – isto é, uma diferença – neutralizando a
lógica de autenticidade linguística e cultural subjacente à coexistência de diferentes
idiomas simbólica e politicamente conotados. O que surge por este trabalho de
manipulação que “acontece na língua mas a ultrapassa” (Leite, 2003) responde, numa
dimensão fenomenológica, a uma língua alheia – à norma europeia bem como à
moçambicana – edificada por via de um processo de tradução de idiomas, códigos,
registos e repertórios intrínseca e simbolicamente heterogéneos e configurando o texto
literário como lugar de enunciação da diferença.
2. RECEPÇÃO: AUTENTICIDADE E EXOTISMO
Tem gente que fica ofuscada com o seu exercício da língua [...]. E falam até que ele
inventou uma língua para falar sozinho. Os mais gramáticos chamam-lhe nomes
feios como logoteta, subvertor, desarrumador de regras. [...] Parece-me que, como
o adivinho diante do cesto de adivinhação, o Mia Couto organiza as palavras da
infância e paga o preço de ter passado pela poesia. [...] Passou-se para a prosa
mas ficou preso nas malhas das experiências primeiras: levantar as saias da língua
e experimentar-lhe a pele (Ana Paula Tavares, 2003).
A fisionomia singular da escrita de Mia Couto e, logo, a inscrição na língua
portuguesa de uma diferença tem suscitado reacções variadas e problemáticas,
contribuindo, ao mesmo tempo, para o surgir de um corpus crítico significativo. No que
diz respeito à recepção da obra de Couto em contexto português – ou, mais em geral,
10
A definição de terceiro código, formulada por Chantal Zabus (2007) e fundamentada na relação simbólica, política e contextual com a noção de Terceiro Mundo [Third World], torna-se uma categoria crítica e operacional particularmente significativa na medida em que permite salientar a dimensão de alteridade linguística, apontando simultaneamente para os processos de tradução que a determinam.
Tradução, Diferença, Excepção.
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europeu – esta é caracterizada por uma “obsessão”11 (Rothwell, 2004) linguística,
tornando-se o sintoma de uma recepção imperfeita que aponta de imediato para um
conjunto de relações de feição [neo-]colonial. Aliás, ensaios, artigos e textos que se
debruçam sobre os chamados miacoutismos, à procura da função logotética12 ou que
visam estabelecer relações imediatas entre idioma português, linguagem literária e
“variante moçambicana” constituem o corpus crítico quantitativamente mais significativo
surgido em torno da obra deste autor.13 Ao mesmo tempo, o paradigma subjacente à
recepção crítica da obra de Mia Couto não parece ser o que se prende com uma
abordagem do trabalho contextual de alcance possivelmente cultural e político apontado
por esta literatura, mas sim o que procura demonstrar as potencialidades do português
europeu salientadas pela escrita deste autor. No entanto, perspectivações críticas deste
género permanecem vinculadas a uma dicotomia epistemológica determinada pela
observação da fisionomia da escrita de Couto como um fenómeno disjunto do contexto
espaço/temporal no qual se inscreve, desembocando, por conseguinte, num processo de
exotização da diferença. Aliás, no que diz respeito ao horizonte de recepção da escrita de
Mia Couto, as estratégias de observação desta fisionomia linguística parecem repartidas
entre dinâmicas assimilantes e exóticas, salientando todas as peculiaridades de uma
recepção e de uma fortuna que não deixa de proporcionar ambiguidades e, logo de se
basear em equívocos crítico-teóricos significativos.14
Ao mesmo tempo, falando de fortuna ambígua não é apenas num horizonte de
recepção europeu que a escrita de Mia Couto se torna problemática, tendo suscitado,
desde logo, reacções controversas no próprio contexto moçambicano.
Mia Couto: Eu fui questionado, fui quase julgado. Havia várias contestações e uma
destas era a de que eu estava revelando uma fragilidade, estava demonstrando que
os moçambicanos, afinal, não sabem falar e escrever o bom português. Isto
derivava de um certo sentimento colonizante que se traduz no facto de que era
preciso demonstrar ao outro – o ex-colonizador – que eu era capaz de manejar este
instrumento que é a língua portuguesa. [...] Ao mesmo tempo, há uma nação que se
11
A obsessão pela fisionomia linguística da escrita de Mia Couto apontada por Phillip Rothwell fundamenta-se na observação da obra literária de Mia Couto como exercício linguístico, determinando o desfavorecimento de outras leituras da obra deste autor. 12
A definição de logoteta foi originariamente formulada em relação à escrita de Luandino Vieira e é da autoria de Salvato Trigo (1981); continua a representar uma formulação teórica recorrente sobretudo em relação a certos autores; para a designação de Mia Couto logoteta veja-se Fernanda Cavacas (2002). 13
Pense-se, por exemplo, na enorme quantidade de trabalhos académicos — tais como teses de mestrado e doutoramento — que abordam e analisam a fisionomia linguística da escrita deste autor; a este propósito veja-se o artigo de Fátima Mendonça “Mia Couto, le mal-aimé” (Mendonça, 2008b). 14
No que diz respeito à ambiguidade que parece caracterizar a recepção da obra de Mia Couto veja-se
Fátima Mendonça (Mendonça, 2008b).
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tem que formar e há que cortar laços e uma maneira importante ou melhor o campo
principal em que se tem que fazer isto é exactamente na língua do outro, a língua
portuguesa (Brugioni, 2010).
Ao contrário do contexto português, a recepção crítica moçambicana parece
questionar a dimensão da autenticidade linguística e cultural que a obra de Mia Couto
representa. Observando, por exemplo, o debate surgido em Maputo aquando da
publicação de Vozes Anoitecidas (Couto, 1986) algumas das intervenções críticas
ocorridas nas diferentes revistas literárias moçambicanas encaram a subversão
linguística da escrita de Mia Couto como uma operação sem “fundamento real: [que] nem
segue o povo nem a gramática banto” (Manjate, 1988: 44) salientando, deste modo, a
falta de legitimidade da operação criativa proposta pelo autor. Em geral, enquanto a
recepção portuguesa parece contribuir à definição de um “exótico pós-colonial” (Huggan,
2001) – que no caso dos contextos pós-coloniais de língua oficial portuguesa poderá
relacionar-se com o dispositivo ideológico luso-tropicalista – a moçambicana levanta
questões que se prendem com um certo essencialismo cultural fundamentado por um
conflito entre o que é “próprio” e que é do “outro” (Mendonça, 2008a) e encarando, por
vezes, o texto literário como o lugar de enunciação de uma moçambicanidade que se
pretende autêntica. Todavia, ambos os posicionamentos são pautados por uma
abordagem à literatura que subentende e, ao mesmo tempo, projecta uma noção
identitária reificada sem reconhecer à escrita literária em geral e mais em particular à de
Mia Couto a prerrogativa “mundana” – worldly – (Said, 2004) que, em rigor, esta literatura
parece propor e conter. No entanto, uma leitura mundana15 das subversões linguísticas
desta escrita torna-se o imperativo epistemológico matricial para desconstruir as
dicotomias que pautam a recepção exógena e endógena da obra de Mia Couto,
proporcionando deste modo uma prática crítica integrativa capaz de “resistir ao modelo
de pensamento dicotómico que todavia caracteriza o nosso tempo” (Said, 2004). Por
outras palavras, uma análise da recepção crítica da obra de Mia Couto pode representar
um ponto de partida para uma reflexão de mais amplo fôlego que se prende com as
dinâmicas de afirmação e recepção de propostas literárias e culturais que se inscrevem
num espaço de alteridade, convocando simultaneamente histórias, memórias e relações
inéditas cuja leitura parece sugerir uma reconfiguração do que por norma se define como
prática humanística. Por conseguinte, a representação como prática problematizante e
seminal do espaço literário surge como um desafio teórico e, logo, como um “dilema
15
Com leitura mundana pretendo apontar para as implicações epistemológicas do conceito de mundanidade formulado por Edward Said (2004).
Tradução, Diferença, Excepção.
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epistemológico” (Said, 2008) a partir do qual sobressai a necessidade de questionar os
paradigmas que edificam o léxico da nossa contemporaneidade.
3. LÍNGUA(S): LOGO-CENTRISMO E COMUNIDADE
Há séculos que o idioma lusitano é um filho mestiço de namoros feitos entre as
duas margens do Mediterrâneo (Mia Couto, 2007a)
Uma observação situada da diferença que caracteriza a escrita de Mia Couto
proporciona uma reflexão crítica crucial para a desconstrução das dicotomias epistémicas
que pautam a própria partilha do idioma português. Por outras palavras, uma leitura da
fisionomia linguística da escrita deste autor pode tornar-se o ponto de partida para
repensar sujeitos, contextos e relações subjacentes à própria ideia de lusofonia. Aliás, a
“comunidade imaginada” (Anderson, 1991) como construção ideológica edificada a partir
de uma sobreposição entre nação e império e, de certa forma, subjacente às
organizações internacionais de índole linguística – como, por exemplo, a Comunidade
dos Países de Língua Oficial Portuguesa [CPLP] – parece desempenhar o papel do
“império da geolinguística compensatória” (Almeida, 2006) revelando em diferentes
instâncias uma fenomenologia, sem dúvida, problemática. A este propósito, o “drama
bufo luso-brasileiro” (Santos, 2008) ocorrido aquando do Novo Acordo Ortográfico
representa um exemplo paradigmático de como a questão da língua, e logo a sua
partilha, revela todavia a persistência de uma dicotomia centro/periferias ou
colonizado/colonizador ainda marcante e por resolver. Ao mesmo tempo, a inscrição na
língua de valores como pertença, pátria e soberania é posto em causa pela complexidade
dos contextos envolvidos nestas construções comunitárias e mais ainda pelas relações
de poder que são vinculadas pela própria partilha linguística.
Todos nos lembramos como certos sectores da política portuguesa entraram em
pânico com a adesão de Moçambique à Commonwealth. O que se passava? Os
moçambicanos haviam traído a sua fidelidade ao idioma luso? As reacções de
algumas facções foram de tal modo excessivas que só podiam ser explicadas por
um sentimento de perda de um antigo império. A exemplo da síndrome do marido
traído que, não reconhecendo autonomia e maioridade na ex-mulher, sempre se
pergunta: com quem é que ela anda agora? Moçambique andaria, assim, com o
inglês. Não se apenas tratava de adultério mas ainda por cima que mau gosto, logo
um inglês, com todos os fantasmas históricos que isso comportava (Couto, 2009).
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No que diz respeito às relações que se vão estabelecendo entre diferentes contextos
e sujeitos envolvidos neste universo cartografado como lusófono estas apontam para
uma falta de descolonização simbólica que caracteriza a partilha do idioma como
derradeiro e indelével rasto do império. O que, numa perspectiva geral, é observado
segundo os princípios dicotómicos de inclusão/exclusão, no que diz respeito ao contexto
literário parece desembocar na construção de uma especificidade edificada a partir dos
processos típicos da assimilação ou ainda da exotização. Isto é, em termos de produção
e representação cultural, o paradigma lusófono ou melhor luso-cêntrico – que, numa
perspectiva literária convoca, de imediato, noções como cânone e património – parece
funcional a uma dialéctica domesticação/exotização de um conjunto de subversões que,
por outro lado, visam desconstruir as relações de poder veiculadas e apontadas pela
língua portuguesa. Em geral, este processo de recepção salienta a incapacidade de
encarar esta diferença – que em relação à língua poderá configurar-se como uma
difracção polifónica16 – na perspectiva de uma condição necessária e indispensável para
ultrapassar “os fantasmas e as fantasias” (Ribeiro e Ferreira, 2003) do império perdido.
Uma diferença que aliás constitui o pressuposto indispensável para a edificação de logo-
fonias que se situem para além da “utopia abortada” (Raharimanana, 2007) ou ainda do
“abuso” (idem) e, logo, que não representem “o último avatar de um novo colonialismo”
(Manifeste, 2007).
No entanto, o questionamento crítico e, logo, a reconfiguração epistemológica que se
prendem com a categoria de comunidade logo-cêntrica pode ser desenvolvido a partir
dos próprios textos literários que parecem oferecer configurações inéditas no que diz
respeito aos paradigmas que pautam a ideologia subjacentes a estas categorizações.
Aliás, uma lusofonia híbrida e mestiça ab horigem (Couto, 2007a) cabe naqueles
fenómenos de subversão que inviabilizam a ideia de uma comunidade que se
fundamenta no paradigma essencialista do “ser comum”. Num plano teórico, o que surge
por esta problematização do comunitário é uma noção de comunidade débil, inoperosa,
désœuvrée (Nancy, 1992) não fundamentada por valores de pertença ou homogeneidade
identitária mas que se mostra como “ser singular plural” (Nancy, 1995).
A diferença desta articulação crítica reside no carácter permanentemente
incompleto, não homogéneo, dinâmico, no sentido de sujeito a constantes
16
Com esta designação, edificada a partir de dois conceitos distintos e não imediatamente coerentes,
pretendo apontar para uma dimensão fenomenológica – por via da metáfora visual da difracção – convocando, ao mesmo tempo, a noção de polifonia tal como esta é conceitualmente definida por Bakhtin. Por via desta designação são chamadas em causa perspectivações crítico-conceituais diferenciadas que, em geral, visam salientar não apenas a transformação substancial e sistémica da língua, mas também a emblematicidade da sua configuração e percepção simbólica.
Tradução, Diferença, Excepção.
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transformações, da ideia de comunidade; ela portanto não encontra seu princípio na
construção, mas na incompletude, uma comunidade estruturada na falta, portanto
désœuvrée, inoperosa, sem obra. (Vecchi, 2010b)
Neste sentido, a ideologia subjacente à noção – conceptual e pragmática – de
lusofonia liberta-se do passado nostálgico e das suas projecções essencialistas,
configurando o conceito de comunidade como uma “articulação contínua de
singularidades” (Vecchi, 2010b) e o texto literário como “lugar político onde dar forma –
“figura” – à ideia de comunidade inoperosa” (idem). No caso do “espaço-tempo da língua
portuguesa” (Santos, 2001), a operacionalização da noção de comunidade inoperosa
passa forçosamente pela desconstrução do paradigma luso-tropicalista por norma
subjacente ao conceito de lusofonia como essência, apontando para um processo de
desmontagem ideológica do edifício imperial. Inviabilizando este dispositivo logo-tropical
o aparato conceptual subjacente à partilha linguística na sua dimensão simbólica e
pragmática configura-se como um espaço plural e imanente, onde as relações não são
reguladas pela lógica centro/periferias mas sim por uma multiplicidade de direcções
dentro de um espaço limiar, fragmentário e anti-hegemónico, reconstituindo a figura
comunitária como paradigma das traduções pós-coloniais.
4. ITINERÁRIOS CRÍTICOS E EPISTEMOLOGIAS
Sempre que aflora, de um modo ou do outro, a questão da língua, significa que se
está a impor uma série de outros problemas: a formação e a ampliação das classes
dirigentes, a necessidade de estabelecer relações mais íntimas e seguras entre os
grupos dirigentes e da massa popular-nacional, ou seja, de reorganizar a
hegemonia cultural (Gramsci, 2007).
Este percurso de reflexão sobre a fisionomia linguística na escrita de Mia Couto
proporciona solicitações crítico-teóricas e, logo, um léxico epistemológico que não se
torna operacional apenas para a leitura da obra literária deste autor mas configura-se
como o esboço de um itinerário crítico para a observação de algumas problemáticas
matriciais nas chamadas literaturas africanas homoglotas.
Em primeiro lugar, a questão da língua – que permanece central nas propostas
literárias africanas eurófonas – destaca-se como uma instância crucial no que diz respeito
às problematizações para as quais aponta e logo aos quadros teóricos que parece
sugerir. Destacando a categoria da tradução como praxis criativa e pressuposto
operacional subjacente às escritas literárias africanas homoglotas, uma constelação
Elena Brugioni
139
conceptual específicas parece surgir, proporcionando uma reflexão em torno de algumas
instâncias críticas complexas. Neste sentido, a reflexão teórica pode focar-se já não nas
fisionomias mais ou menos inéditas que pautam os diferentes regimes de escrita mas sim
na dimensão potencial que caracteriza a língua de um ponto de vista ontológico,
salientando especialmente relações problematizantes tais como escrita e oralidade ou
ainda voz e palavra numa perspectivação pós-colonial. Aliás, por via da noção de
tradução resolve-se a aparente dicotomia entre repertórios orais e textualidades escritas,
configurando o texto literário como lugar fundador de um terceiro código (Zabus, 2007),
fruto de uma prática de transformação forçosamente estruturada numa lógica de restos e
perdas, e fenomenologicamente marcada por uma fisionomia potencial e, ao mesmo
tempo, residuária. A “língua-resto” (Vecchi, 2004) que surge por via desta perspectivação
teórica configura-se como lugar onde “se perdeu por inteiro (...) a dialéctica entre anomia
e norma” (idem) respondendo ao uso de um “língua morta” (Agamben, 1982; 1998). A
perspectivação crítica que envolve a noção de língua morta não só permite sublinhar as
potencialidades da linguagem no discurso literário, inviabilizando um conjunto de
dicotomias epistemológicas marcantes especialmente no que diz respeito ao aparato
crítico das literaturas africanas homoglotas, mas possibilita a definição da língua como
excepção pós-colonial. Por outras palavras, tendo em conta o dispositivo ideológico
comunitário que a língua numa situação pós-colonial subentende e, simultaneamente,
desconstrói, o conceito de estado de excepção salienta a complexa rede de relações que
se estabelecem na língua no que diz respeito aos fenómenos de inclusão e exclusão que
ela própria produz e através dos quais é também observada. Procurando reflectir em torno
da relação língua/literatura/excepção destaca-se uma linha crítica contigua à que surge na
reconfiguração epistemológica específica para ler a literatura da guerra colonial:
A literatura da guerra colonial, como ocorre com as literaturas em processo de pós-
colonização, dá corpo (textual) e voz (narrativa ou poética) ao dispositivo da
excepção mostrando morfologicamente, ou seja, pela língua, o seu funcionamento,
expondo assim os mecanismos internos menos visíveis, portanto mais perigosos,
para tecer um véu ambíguo e impalpável – «um novo encoberto», para citar uma
definição de Margarida Ribeiro do luso-tropicalismo (Ribeiro, 2004: 151), ou o
«Encoberto do século XX» (Ana Calapez Gomes) – nos simulacros imperiais
(Vecchi, 2010a).
O desvendamento através da língua de fenómenos que nela se fundam para a
ultrapassar torna-se um dos pressupostos críticos matriciais no que diz respeito à uma
redefinição epistemológica em torno das literaturas africanas homoglotas, sugerindo a
Tradução, Diferença, Excepção.
140
desconstrução dos paradigmas dicotómicos através dos quais se observa a dimensão
linguística e os seus desdobramentos fenomenológicos e conceptuais. A configuração do
texto literário como lugar da excepção convoca um aparato crítico inédito e, ao mesmo
tempo, seminal para a observação da intervenção literária como uma prática cultural
situada – “topográfica” (Derrida, 1967) – e logo como um “espaço de construção e
negociação da diferença cultural” (Santos, 2001) cujas implicações desdobram-se em
dimensões sociais e políticas específicas. A este propósito, um itinerário crítico que se
debruça sobre a questão linguística a partir da sua fenomenologia literária constituída
neste estudo pela escrita de um autor como Mia Couto, configura-se como um “exemplo”
(Agamben, 1995) para uma reflexão crítica e, logo, política em torno dos discursos e das
performatividades que pautam o “pós-colonialismo no espaço-tempo de língua oficial
portuguesa” (Santos, 2001).
ELENA BRUGIONI
Investigadora Doutorada do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho
– CEHUM e bolseira de Pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia,
com o projecto “Provincianizando o Cânone. O questionamento das grandes narrativas
europeias em literaturas homoglotas” [SFRH/BPD/62885/2009], tendo por orientadores
Ana Gabriela Macedo (Universidade do Minho) e Roberto Vecchi (Università di Bologna).
Contacto: [email protected]
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A UNIÃO EUROPEIA E O «OUTRO» – TENSÕES E COMPROMISSOS DA LÓGICA
SUBJACENTE À SUA GESTÃO DA IMIGRAÇÃO DE PAÍSES TERCEIROS1
ISABEL ESTRADA CARVALHAIS
ESCOLA DE ECONOMIA E GESTÃO E
NÚCLEO DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS,
UNIVERSIDADE DO MINHO
Resumo2: O texto questiona a lógica que orienta a praxis da União Europeia na gestão da
imigração de países-terceiros. Da natureza liberal dessa lógica ressalta uma tensão entre o compromisso com os Direitos Humanos e as premissas do funcionamento capitalista, tensão que marca a relação da Europa com o imigrante enquanto uma das possíveis faces do ‘Outro’. O texto identifica a presença dessa lógica na operacionalização de diversos conceitos que sustentam os discursos políticos produzidos no contexto institucional da UE. Nessa operacionalização, evidencia-se uma fricção entre duas heranças constitutivas da matriz do pensamento e da acção da Europa, em particular do seu espaço comunitário: a herança de uma ética humanista e a herança de uma ética burguesa. Em face desta ambivalência na relação com o ‘Outro’, a legitimidade de práticas e de discursos políticos sobre a gestão da imigração surge necessariamente como incompleta e fragilizada. Palavras-chave: União Europeia, lógica liberal, direitos humanos, imigração.
INTRODUÇÃO
O presente texto visa analisar e propor alguns tópicos de reflexão em torno da lógica que
orienta a praxis política da União Europeia em matéria de tratamento de questões
migratórias, em concreto no tocante ao modo como controla e gere (ou pelo menos
procura controlar e gerir) as entradas de fluxos de imigrantes vindos de países-terceiros.
Consideramos estarem neste duplo esforço de análise e de reflexão, duas tarefas
essenciais (e todavia em falta) da própria construção do projecto europeu enquanto
projecto que pretende ser não apenas económico mas também social, político e cultural
1 Este texto tem a sua origem num outro publicado em Cabecinhas e Cunha (2008), tendo sido entretanto
substancialmente actualizado e desenvolvido. 2 Texto financiado pela FCT [Ref.ª FEDER/POCI 2010].
Isabel Estrada Carvalhais
144
(Delanty, 1995; Christiansen, Jorgensen, Wiener, 2001; Barnavi, 2002; Bruter, 2005). De
facto, só a compreensão da lógica que se encontra a montante da praxis política da
União Europeia em diversas matérias e no que para o caso nos importa, em matéria de
imigração, poderá trazer verdadeira luz sobre o porquê das opções que a
institucionalidade europeia tem feito nesse âmbito.
Parece-nos igualmente que análises como aquela que aqui sugerimos, podem e
devem ser entendidas como exercícios integrados no processo mais amplo de reflexão
crítica sobre a relação que a União Europeia tenciona efectivamente construir com a sua
diversidade de povos e de expressões culturais.
Na primeira parte do texto, partiremos para a identificação da lógica em causa,
reconhecendo-a como uma lógica liberal de condição binária. Essa condição binária
traduz-se pelo seu repartir entre uma ética burguesa obediente ao Capitalismo (e por isso
colonial e colonizadora3), e uma ética humanista pela qual a lógica liberal estabelece o
seu apego a um conjunto de direitos tidos como humanos universais, entre os quais
figura o direito à liberdade de circulação. Embora não coincidentes, a ética burguesa e a
ética humanista reforçam em conjunto a lógica liberal no que esta representa de
compromisso com o Capitalismo, e nesse sentido a condição binária daquela, embora
existindo, está longe de se traduzir num paradoxo dramático. No caso concreto da
liberdade de circulação, a sua elevação ao estatuto de direito básico do indivíduo, faz-se
muito por força da própria agenda liberal que acompanha os interesses de funcionamento
das economias capitalistas.
Mas como também procuraremos argumentar, ainda na primeira parte do texto, a
dimensão humanista da lógica liberal possui uma autonomia que a não reduz a mero
instrumento do Capitalismo, radicando tal autonomia pelo menos parcialmente, na
genuína convicção de milhões de pessoas (que não apenas de sociedades ocidentais,
diga-se) sobre a efectiva existência de Direitos Humanos básicos e universais nos quais
se inscreve também a liberdade de circulação.
Na segunda parte do texto, procuraremos ver como essa lógica liberal está afinal
presente nas opções políticas da União Europeia (amplamente avalizadas pelos seus
estados-membros) que marcam a sua relação com o ‘Outro’ na forma de imigrante de
países terceiros. Em concreto, olharemos para pilares estruturantes da linguagem mais
recente da União em matéria de controlo das suas fronteiras, linguagem essa em que se
incorpora a externalização de responsabilidades de controlo de fronteiras; o combate à
3 Entendemos separar colonial enquanto atitude, de colonizadora enquanto prática, uma vez que a primeira
pode implicar a ocorrência da segunda, mas não necessita desta para seguir existindo.
A União Europeia e o «Outro»
145
imigração ilegal e terrorismo, a defesa da migração circular e das políticas de retorno
voluntário, entre outros conceitos.
1. A DUPLA FACE DA LÓGICA LIBERAL NA ORIENTAÇÃO DA ACÇÃO POLÍTICA
Acreditando que a acção política é a um tempo agente e produto dos sistemas de
crenças, valores e mundivisões (no sentido de concepções amplas e integrantes da vida)
de uma dada sociedade, será então de esperar que diferentes sistemas conduzam a
diferentes acções políticas – diferentes não tanto num sentido material, mas sobretudo
num sentido intencional, ou seja, do que deliberadamente se pretende com a sua
implementação. Do mesmo modo, diferentes acções políticas irão estimular a
(des)continuidade dos sistemas que as alimentam intrinsecamente.
Mas mais do que sistemas, parece-nos útil falar em lógica. Adopta-se aqui este termo
para com ele traduzir a ideia de ‘sentido’ das coisas e de ‘sentido’ que acompanha o
‘fazer das coisas’, logo, de sentido do próprio sistema e da sua vitalidade comunicacional.
Neste caso, a palavra lógica que por diversas vezes utilizaremos, tenta traduzir a ideia de
sentido dos valores e de sentido que acompanha o ‘fazer’, o seguir, o abandonar, o
recuperar, o transformar desses mesmos valores. Há por conseguinte uma profunda
condição valorativa no termo tal como o utilizamos, ainda que não caiba explorar neste
texto todas as implicações hermenêuticas daí resultantes.
Se diferentes lógicas conduzem à produção de diferentes praxis políticas, é razoável
também assumir que diferentes opções políticas terão diferentes impactos sobre a
qualidade das relações que se estabelecem numa sociedade, e para o que nos interessa,
das suas relações interculturais enquanto espaços de crescimentos e de enriquecimentos
mútuos (Cox e Blake 1991; Martin e Nakayama, 1999; Martin e Nakayama, 2010). Assim
sendo, será legítimo perguntar:
O que dizem as opções políticas da União Europeia em matéria de gestão de fluxos
imigratórios de países terceiros, sobre a lógica que lhes subjaz – e que em última
instância também subjaz ao contributo político da União para formar uma espécie de
património mais ou menos estabelecido de ideias em torno da identidade europeia, da
pertença europeia, da cultura europeia, do sentido europeu, enfim, do ‘ser-se europeu’?
E sendo que as opções políticas têm impactos sobre o tipo e as qualidades das
relações que uma sociedade constrói com os múltiplos ‘Outros’ que a habitam, de que
tipo é e que qualidades assume a relação que a União Europeia constrói consigo mesma
na forma do seu ‘Outro’ imigrante, em face das opções políticas que tem assumido em
matéria de imigração?
Isabel Estrada Carvalhais
146
Mas antes de partirmos para a tentativa de resposta às questões estruturantes deste
texto, e que serão objecto das secções subsequentes, importa determinar qual então o
princípio orientador da lógica europeia.
Como o texto mostrará mais adiante, há toda uma praxis em curso relativa ao modo
como a União Europeia concebe a gestão da presença de imigrantes de países terceiros,
que é em si reveladora de uma dada lógica de acção que no texto identificamos, entre
outras qualidades, como securitária. O que esta secção do texto pretende é identificar os
princípios que norteiam essa lógica securitária e que serão em última instância os
princípios responsáveis pela existência daquela como trivial, ou seja, como natural e não
como uma lógica recente ou estranha à própria Europa.
Temos consciência de que o esforço analítico para a identificação desses princípios
pode muito facilmente enveredar pela exploração da possibilidade (pós)colonial. Na
verdade, não negamos que a Europa e os seus estados ainda sofrem o peso da ‘fractura
colonial’ (Stora, 1999; Blanchard et al., 2005; Laforcade, 2006) resultante da tensão que
foram construindo entre o seu ‘eu’ e o ‘Outro’ – o escravo, o colonizado, o descoberto, o
conquistado, enfim, o imigrante. Mudaram-se os espaços dessa tenção (hoje a mesma
ocorre predominantemente no próprio espaço europeu enquanto espaço de sociedades
receptoras de “comunidades imigrantes”) e mudaram-se é certo, muitos aspectos da
linguagem (legal, política, social e cultural) em que o diálogo entre esse ‘eu’ e o ‘outro’ se
foram historicamente operacionalizando (o espaço dos impérios, das suas colónias e
ultramares). Mas, nem tudo mudou e nesse sentido parece-nos correcto afirmar que há
uma persistência da lógica colonial no modo como a Europa se relaciona com o seu
imigrante (e até com o seu cidadão que ela insiste todavia em perceber como ‘imigrante’
em razão da origem étnica, nacional, religiosa) e que aliás está na base da forma
autocentrada e confusa como a Europa entende a multiculturalidade, não como condição
natural da sua própria identidade, mas como traço externo adicionado pela presença do
‘Outro’ ao seu espaço.
Contudo, sublinhar o peso da fractura colonial na explicação das dinâmicas da
institucionalidade europeia em matéria de gestão de fluxos imigratórios, configurar-se-ia
como manobra argumentativa algo redutora do significado dessas mesmas dinâmicas.
Países como a Suécia, Finlândia ou Dinamarca, não têm a mesma história colonial da
França, Portugal, Holanda ou Reino Unido. E no entanto, todos eles têm sustentado de
forma mais ou menos activa, mais ou menos empenhada, mas sempre politicamente
legitimante, a leitura securitária que a Europa tem vindo a desenvolver sobre a imigração
de países terceiros, desde pelo menos os anos setenta quando se inicia o fim do ciclo de
expansão económica que aquela conhecera no pós-Segunda Guerra Mundial (Messina,
A União Europeia e o «Outro»
147
2007). Aliás, paradigmático de tudo quanto acabamos de dizer, é o caso da Alemanha
que não tende a experiência histórica de potência colonizadora na acepção e dimensão
de outros países, incorporou na construção do seu projecto político e da sua identidade
colectiva, o traço colonial no que este comporta de entendimento da relação com o Outro
como hierarquicamente superior e dominante.
O sentido de persistência do ‘colonial’ deve pois ser lido numa acepção mais ampla
que se desprende das histórias concretas de países com passado colonizador, e que se
ancora outrossim numa postura de superioridade cultural da Europa face ao resto do
mundo, independente dos tempos colonizadores em que essa superioridade foi tanto
fonte legitimadora como produto legitimado. É esta postura que está em nosso ver a
montante da própria iniciativa colonizadora e não o contrário, e que explica em última
instância a lógica binária (Hajjat, 2005) que contamina o modo como a Europa, quer na
sua versão comunitária de União, quer nas suas diversas existências nacionais, pensa a
integração como um movimento unilateral de conformação do Outro ao seu ‘Eu’.
Esta postura ‘civilizacional’ complexifica extraordinariamente a análise ao perfil da
Europa como herdeira de uma de ética humanista por um lado, e de uma ética burguesa
e colonizadora por outro.
Na verdade, as duas são lados de uma só face. Ou seja, a ética burguesa e
colonizadora mais não é do que ética liberal, defensora da conquista de mercados e da
liberdade de movimento de bens e pessoas. Logo, a ética liberal é simultaneamente ética
burguesa que legitima o comportamento expansionista (e por isso também colonizador)
do Capitalismo, e ética humanista que defende liberdades fundamentais como a
liberdade de acção (logo de circulação) e de pensamento4. Por outras palavras, a ética
burguesa que vê como correcta a conquista de mercados (embora no contexto pós-
moderno tenha substituído o termo ‘conquista’ pelo de ‘globalização’ dos mesmos), é
também ética humanista na medida em que os direitos que defende, essenciais ao
sucesso da globalização dos mercados, são direitos tidos como basilares à dignidade
humana.
O paradoxo liberal (Hollifield, 1992) consubstanciado no desfasamento entre, por um
lado, a consagração da livre circulação de pessoas e bens - elevado ao estatuto de
vértice da própria ideia de Cidadania Europeia (Carvalhais, 2010: 82-85) - e por outro, a
4 Entendemos aqui como fundamental para a interpretação da liberdade de circulação como Direito Humano
consagrado, a leitura dos artigos 3.º e 13.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No primeiro lê-se que ‘[T]odo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal’ e no ponto 1 do 13.º lê-se que ‘[T]oda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado’ (sem que todavia haja aqui referência à necessidade de o indivíduo ser nacional do estado escolhido), e no seu ponto 2 ‘Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.’
Isabel Estrada Carvalhais
148
caminhada progressiva para políticas de imigração cada vez mais restritivas (Tushnet,
1995) como padrão mundial no qual a União se inclui não parece pois tão ‘paradoxal’
quando visto à luz da dualidade que acompanha a lógica aqui descrita.
Quem assim o demonstra é o próprio Capitalismo. Este funda-se no princípio da livre
circulação, é certo, mas por nenhum instante ele nos diz ter perdido de vista o critério da
utilidade da mesma. O Capitalismo é por assim dizer selectivamente liberal e nesse
sentido apenas selectivamente humanista no que este conceito remete para a defesa de
Direitos Humanos. O problema que resulta do não-reconhecimento do Capitalismo como
selectivamente liberal está pois em frequentemente associá-lo a uma ética humanista que
aquele afinal não tem de possuir pelos seus cânones de funcionamento. Por outro lado,
uma vez compreendida esta (não) relação entre Capitalismo e a ética humanista, o
paradoxo liberal atrás enunciado deixa afinal de ser estranho ao Capitalismo, para ser
apenas uma tensão de aparentes contrários que serve os propósitos económicos deste,
como aliás pretendemos demonstrar mais adiante.
No entanto, reduzir a lógica liberal ao mero interesse que esta tem para os propósitos
da acção capitalista, seria excessivo pois corresponderia a afirmar que qualquer
dimensão humanista dessa mesma lógica não cumpriria mais do que uma função
utilitarista na perspectiva do Capitalismo e cínica na perspectiva dos Direitos Humanos.
Poder-se-ia aqui argumentar que o problema desta última afirmação está desde logo
na expressão ‘Direitos Humanos’, ou melhor, na ausência de problematização da mesma,
e consequentemente nos limites que a sua avaliação como ‘universais’ apresenta
enquanto produtos geoculturais (Wallerstein, 1995: 145-161). Explorando essa via,
desembocaríamos quase de imediato na constatação de que os Direitos Humanos são
tudo menos expressão pacífica, merecedores por isso, não só de sérias reservas
(Wallerstein, 1997: 186), mas de um questionamento efectivo – por via, por exemplo, de
uma hermenêutica diatópica (Santos, 1997: 21-23) que não esquecesse o círculo de
princípios operacionalizadores do diálogo intercultural consubstanciados em direitos de
comunicação, expressão e informação (Habermas apud Cohen e Arato, 1992). Não
sabemos em que máximo denominador comum (Santos, 1997) assentaria a definição de
dignidade humana num cenário ideal de uma hermenêutica diatópica bem suportada por
uma ética procedimental orientadora da acção comunicativa em que aquela se exercitaria
(Carvalhais, 2004: 137-144). Sabemos sim qual a definição que hoje prevalece de
dignidade humana e de Direitos Humanos, a qual reflecte a interpretação cultural das
sociedades ocidentais. Podemos não concordar com tal definição, mas é a prevalecente.
Ora, pese embora se possa até dizer que a dimensão humanista da lógica liberal aqui
referida nasce apenas enquanto dimensão ‘operacionalizadora’ de um cinismo ocidental
A União Europeia e o «Outro»
149
ao serviço do Capitalismo, a verdade é que esse facto não consegue por si só aniquilar a
profunda crença de milhões de pessoas na ideia de Direitos Humanos, e nos quais
suportam a sua noção de dignidade humana. Há pois, em nosso entender, uma
dimensão humanista genuína que acompanha a lógica liberal, que resulta, se mais não
for, das próprias percepções e convicções dos indivíduos sobre à efectiva validade (moral
e legal) dos Direitos Humanos actualmente consagrados como constitutivos da dignidade
humana.
Voltamos a frisar porém que estamos conscientes de que expressões como ‘direitos
basilares da dignidade humana’, ou simplesmente Direitos Humanos, estão bem longe de
resguardadas de acesos debates e dissenso5.
Paralelamente, há um outro aspecto que convém frisar e que denuncia aliás a forte
tentação do vício ‘colonial’ na estruturação dos próprios argumentos que o procuram
denunciar. A lógica liberal sustentada em princípios como o da livre circulação de bens e
pessoas também conheceu o seu processo de globalização e hoje de modo algum se
reduz à geografia dos estados desenvolvidos (que quase sempre acumulam a posição de
centros económicos com a de receptores de imigrantes). Quer os estados pós-coloniais
nascidos dos processos de descolonização, quer os estados pós-soviéticos saídos da
implosão nos anos noventa do império soviético, são estados liberais no sentido de
estados que abraçaram a defesa da liberdade de circulação. Frequentemente argumenta-
se que o fazem por necessidade económica como se esse fosse um argumento válido
que distinguisse a sua conformação a esse princípio estruturante da lógica liberal, da
conformação feita pelos estados ditos centrais. Porém, trata-se de um falso argumento,
na medida em que toda a conformação à liberdade de movimento, como cremos ter
explicitado, é a um tempo utilitarista e a outro, genuinamente apoiada pela crença quer
na existência de Direitos Humanos fundamentais, quer na consagração da liberdade de
circulação como um desses direitos. Ora, o que sucede é que, à semelhança aliás de
outros processos, quando finalmente o ‘Outro’ (mesmo que geograficamente europeu,
mas não aceite plenamente como tal, como no caso dos Países de Leste) está em
condições de abraçar aquele que tem sido desde pelo menos o século dezassete, um
5 A simples ideia de que possa existir uma hierarquia de direitos dentro dos Direitos Humanos, logo, que haja
lugar a direitos basilares está longe de consensual (Fassin, 2010a). Da mesma forma, não é pacífica nem tão pouco universal – embora sendo hegemónica (Fassin, 2010b: 201) – a ideia do direito à vida como direito cimeiro dos Direitos Humanos. E nem tão pouco é linear o impacto que a consagração contemporânea de uma razão humanitarista (assente desde logo no princípio da ingerência que norteia a acção de organizações internacionais como a ONU) tem sobre a efectiva protecção da vida humana e em última instância até sobre os próprios Direitos Humanos (Fassin e Pandolfi, 2010c). Igualmente, está longe de resolvida a tensão gerada entre o princípio da justiça judicial que acompanha a defesa do direito à vida como Direito Humano cimeiro, e que beneficia quem o invoca, e o princípio de justiça social refém da incapacidade de quem não tem meios para tal invocação judicial (Ferraz, 2009: 33-45). Eis pois muito resumidamente algumas das questões mais actuais que se levantam em torno da problemática dos Direitos Humanos.
Isabel Estrada Carvalhais
150
princípio matricial da cultura económica e política da Europa (e do Ocidente em geral),
esta como que desvaloriza o princípio, enfatizando em contraste princípios de segurança
individual e colectiva. Esta dissintonia entre a defesa da liberdade de movimento pelos
países de perfil emigratório, e a defesa de políticas cada vez mais fechadas por parte dos
estados de perfil imigratório (Vertovec e Cohen, 1999) que se afirmam todavia fiéis à livre
circulação e que a operacionalizam em projectos como o do espaço livre da União, é
claramente um foco de tensão política que em termos práticos resulta no arremessar de
milhões de migrantes para a esfera da clandestinidade.
Finalmente, uma outra reflexão se impõe aqui a propósito desta dissintonia entre a
defesa da liberdade de circulação e as políticas imigratórias restritivas dos estados. Esta
dissintonia é em boa verdade inerente ao próprio Estado Moderno capitalista, uma vez
que aquela traduz o confronto de uma vontade do Mercado com uma vontade do Estado
Soberano na preservação das suas fronteiras. O Estado Moderno forma-se e consolida-
se tendo pois sempre presente esta contradição entre a necessidade de expansão das
suas bases de apoio económico, social e político-administrativo, por um lado (Gamble,
1981), e o princípio da conservação de território e de defesa de fronteiras, por outro.
2. OS EFEITOS DOS PARADOXOS
Iniciámos o ponto anterior colocando duas questões:
O que dizem as opções políticas da União Europeia em matéria de gestão de fluxos
migratórios de países terceiros, sobre a lógica que lhes subjaz - e que em última instância
também subjaz ao contributo político da União para a formação de uma espécie de
património mais ou menos estabelecido de ideias em torno do ‘ser-se europeu’ (da
identidade, da pertença e da cultura europeias)?
E sendo que as opções políticas têm impactos sobre o tipo e as qualidades das
relações que uma sociedade constrói com os múltiplos ‘Outros’ que a habitam, de que
tipo é e que qualidades assume a relação que a União Europeia constrói consigo mesma
na forma do seu ‘Outro’ imigrante, em face das opções políticas que tem assumido em
matéria de imigração?
Esta secção tratará agora de responder em simultâneo às duas questões, tentando
demonstrar de que modo as respostas da União Europeia são exemplificativas de uma
lógica securitária, que se funda afinal numa lógica liberal, binária-colonial (Eu vs. o
Outro), e fundada num princípio matricial de superioridade cultural.
Segundo a Declaração do Conselho Europeu de Estrasburgo de 1992, a evolução
para uma política comum de imigração pressupõe o respeito por princípios básicos tais
como o respeito integral pelos Direitos Humanos e o respeito pelo primado do Direito
A União Europeia e o «Outro»
151
(ponto xvi). Por sua vez, o edifício jurídico-institucional da União em matéria de Direitos
Humanos apresenta-se como um dos mais completos e sólidos a nível internacional, não
parecendo credível que possa em simultâneo albergar lógicas que contrariem os
respeitos atrás enunciados e que fragilizem as suas fundações. Da estrutura desse
edifício fazem parte a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais de 1950 e seus protocolos adicionais; a Carta Social Europeia de 1961; a
Declaração Comum do Conselho, Comissão e Parlamento sobre a defesa dos Direitos
Fundamentais (Declaração de Copenhaga de 1977); a Declaração Comum do Conselho,
Comissão e Parlamento contra o Racismo e a Xenofobia, de 1986; a Carta Comunitária
dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores de 1989, a que inicialmente não
adere o Reino Unido, assinando-a posteriormente em 1998; a Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia (de Nice a Estrasburgo)6; e o próprio Tratado de Lisboa
que no ponto 8 do seu artigo 1.º estabelece como redacção do n.º 1 do artigo 6.º do
Tratado da União Europeia o seguinte:
A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta
dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, com as
adaptações que lhe foram introduzidas em [12 de Dezembro de 2007], em
Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados.
A tudo isto acresce a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e a
jurisprudência de um outro tribunal que não fazendo parte da institucionalidade
comunitária, é basilar na regulação internacional dos Direitos Humanos, o Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem.
Paralelamente, a compreensão política da União Europeia sobre como deve ser feita
a gestão dos fluxos imigratórios segue há várias décadas uma clara lógica securitária,
que parece ter atingido uma nova etapa da sua expansão e expressão no pós-11 de
Setembro. A lógica securitária funciona tanto melhor quanto menor for a capacidade
individual de se questionar sobre dois comportamentos recorrentes:
a) Por um lado, o acomodar ao julgamento apriorístico de todo aquele que não
corresponda aos critérios de identificação cultural que lhe permitiria ser mais rapidamente
reconhecido como ‘europeu’, como sendo potencialmente ameaçador (ainda que em
diferentes graus de perigosidade);
6 Aquando da sua adopção em Nice, em Dezembro de 2000, a Carta assumia-se ainda como um
compromisso político, ou um modelo de intenções. Com a sua proclamação conjunta entre Parlamento Europeu, Conselho e Comissão, em Estrasburgo a 12 de Dezembro de 2007, a carta passa todavia a ter um carácter juridicamente vinculativo.
Isabel Estrada Carvalhais
152
b) Por outro lado, a interiorização da ideia de que há uma necessidade inegociável de
vigilância do ‘estrangeiro’, do ‘imigrante’ enquanto categoria do ‘Outro’.
O discurso comunitário é pródigo em se expressar por meio de uma linguagem que
serve os propósitos securitários e os dois comportamentos atrás enunciados através do
recurso frequente a termos como ‘crime organizado’ e ‘terrorismo’, ao mesmo tempo que
se mescla de expressões mais suaves, como ‘cidadãos em condição irregular’. Que esse
jogo é parte integrante do sucesso relativo do modo como gere a presença do estrangeiro
sem ferir os compromissos não apenas jurídicos e políticos mas também civilizacionais
com os Direitos Humanos, não suscitará dúvida. Mas é este um jogo sustentável no longo
prazo?
3. IMIGRAÇÃO ILEGAL E A POLÍTICA DE PREVENÇÃO DE CENÁRIOS DE RISCO
Em 2005, o Livro Verde Uma nova solidariedade entre gerações face às mutações
demográficas sublinhava:
A Europa conhece hoje alterações demográficas sem precedentes pela sua escala
e gravidade. Em 2003, o crescimento natural da população foi apenas de 0.04% ao
ano; nos novos estados-membros, à excepção de Chipre e de Malta, registou-se
mesmo um declínio demográfico. Em vários países, a imigração tornou-se crucial
para assegurar um crescimento da população. Por todo o lado, a taxa de
fecundidade é inferior ao limiar de renovação de gerações (cerca de 2,1 crianças
por mulher) […] (COM(2005)94final, p.2).
Em 2004, o Conselho Europeu sublinhava o inevitável declínio demográfico da
Europa, que nem já a imigração em larga escala poderá inverter. Tudo isto volta a ser
reafirmado em 2006 numa Comunicação da Comissão Europeia intitulada ‘O Futuro
Demográfico da Europa – do desafio à oportunidade’ (COM(2006)571final). Na mesma
linha se orientou uma Comunicação de 2002 da Comissão ao Conselho e ao Parlamento
Europeu intitulada “Resposta da Europa ao Envelhecimento da População Mundial:
Promover o Progresso Económico e Social num Mundo em Envelhecimento –
Contribuição da Comissão Europeia para a II Assembleia Mundial sobre o
Envelhecimento" (COM(2002)0143).
Em paralelo, num artigo do Eurobusiness podia ler-se em 2006 que com excepção da
França, actualmente os grandes estados da UE como a Alemanha, Espanha e a Grã-
A União Europeia e o «Outro»
153
Bretanha, dependem da imigração para manter a sua estabilidade demográfica7
(Eurobusiness, 2006). Já um relatório de 2009 do Eurostat apontava para o facto de as
taxas de mortalidade na Bulgária, Hungria e Letónia serem agora superiores às taxas de
natalidade. Simultaneamente, Hungria e Letónia têm estado entre os países com as mais
baixas taxas de natalidade (9,6 por mil habitantes) a que se juntaram países como a
Alemanha (7,9), Áustria (9,1), Portugal (9,4) e Itália (9,5). Por sua vez, as maiores
quebras populacionais registaram-se para igual período de 2009, na Letónia e Hungria,
mas também na Bulgária, Lituânia e Alemanha. Os países de Leste a que se junta a
Polónia, parecem ser aliás os que mais forte e rapidamente sentem os efeitos do declínio
demográfico. No entanto, o problema é transversal, e países como Malta, Portugal,
Espanha, Dinamarca e Grã-Bretanha são igualmente apontados como estando a braços
com dificuldades decorrentes do seu envelhecimento geracional.
Na mesma linha de análise, as previsões do Eurostat apontam para que apenas seja
possível manter o ritmo de crescimento da população europeia, se a taxa de população
imigrante no espaço comunitário, que ronda actualmente os 3,3%, não diminuir. Todavia,
como o relatório de 2009 sublinha:
De acordo com as projecções populacionais do EUROPOP2008, a imigração para a
Europa dos 27, poderá desacelerar ainda mais nos próximos anos. Estima-se que a
taxa líquida de imigração [imigração menos emigração] caia dos actuais 3,3 por mil
habitantes, para 1,6 por volta do ano 2060.” (Eurostat, 2009: 225)
Poderíamos continuar a listar exemplos e argumentos sobre, por um lado, o declínio
demográfico da Europa e em particular do espaço comunitário aqui em análise, e por
outro lado, a dependência da União em relação aos fluxos imigratórios. Fica claro porém,
que a sustentabilidade económica da União Europeia (e da Europa em geral) bem como
dos seus sistemas de protecção social, depende e muito da imigração. E sendo ela que
em certa medida já hoje impede um declínio demográfico ainda mais acelerado da
população europeia, a defesa de políticas de imigração-zero nunca poderia ser senão
ridícula.
7 Na União, a média de filhos por mulher ronda os 1,52%, valor insuficiente para manter a população nos
valores actuais e assim evitar o declínio demográfico. Sendo que na origem deste fenómeno estão alterações do comportamento das famílias resultantes em boa parte da necessidade de conciliação entre vida profissional das mulheres e a vida familiar, o Parlamento Europeu tomou em 2004 uma resolução no sentido de incentivar os estados e as instituições a adoptar medidas visando a promoção dessa mesma conciliação. A Resolução do Parlamento Europeu sobre a conciliação entre vida profissional, familiar e privada (2003/2129(INI)) não passa todavia de um manifesto de apelos que se limita a constatar o óbvio e a sublinhar a importância de um empenho activo dos governos e das sociedades na criação de fórmulas que permitam às famílias não apenas crescer, mas sobretudo crescer bem, em harmonia e respeito geracionais.
Isabel Estrada Carvalhais
154
A lógica securitária bem-sucedida é pois aquela que não compromete a sua
legitimidade em face das opiniões públicas, ou seja, é a que não deixa de reconhecer
tanto a importância como a inevitabilidade da imigração. Mas enquanto que o
reconhecimento da importância da imigração se faz sobretudo por via de estratégias
governamentais que visam o brain gain para os Estados e para a União (em
conformidade com os objectivos da Agenda de Lisboa) (Carvalhais, 2011); a forma como
essa mesma lógica faz o reconhecimento da inevitabilidade da imigração, concretiza-se
de modo bem diferente.
Por outras palavras, à importância e à inevitabilidade da imigração associam-se
diferentes estados de alma que se resumem à imigração que se quer e à imigração que
se não quer. De um lado está a que se deseja, desde logo pelos seus benefícios
económicos os quais de certo modo também ajudam a diminuir os custos de um eventual
maior distanciamento cultural que se possa ter em relação ao imigrante que interessa
aceitar. Do outro lado, está a imigração que se não deseja, em face da disparidade entre
os poucos benefícios económicos que as suas baixas qualificações podem proporcionar,
em contraste com os eventuais altos custos políticos e sociais que tendem a ser tanto
maiores quanto maior for a distância cultural percebida pelas comunidades receptoras em
relação a essa imigração.
A leitura europeia sobre a ‘inevitabilidade’ da imigração que não se deseja, faz-se
pois por via da avaliação das compatibilidades entre a imigração e a sua capacidade de
enquadramento às exigências do Mercado. Daqui decorre a necessidade de combate à
imigração ilegal. Por outras palavras, há que combater a imigração que não se deseja e a
forma de o fazer é, em primeiro lugar, certificar-se de que esta se mantém na esfera do
ilegal, (pois não se pode combater o que é legal), para de seguida se combatê-la, agora
sim legitimamente, sob o pretexto da ilegalidade. A aplicação de sistemas de quotas para
a entrada de imigrantes, as medidas de favorecimento da imigração altamente
especializada, ou a imposição de faseamentos no acesso de imigrantes dos Estados-
membros dos alargamentos de 2004 e de 2007 aos mercados laborais da anterior Europa
a 15, são por isso, à sua maneira, faces da mesma moeda, isto é, expressões de uma
mesma lógica que norteia a leitura da União sobre a presença do Outro.
Actualmente, os problemas da União com a imigração parecem pois residir, por um
lado, no perfil dos imigrantes que buscam o seu espaço8, e por outro lado, na ilegalidade
8 Recorde-se a este propósito as declarações do primeiro ministro da Baviera, Horst Seehofer em Outubro de
2010 a propósito das dificuldades de inserção das comunidades islâmicas na Alemanha e a consequente necessidade de limitar a entrada de populações muçulmanas, Segundo o Wall Street Journal, para Seehofer, imigrantes de círculos culturais como a Turquia, os países árabes têm maior dificuldade em se adaptar ao estilo de vida alemão, pelo que os alemães não necessitam de nenhuma imigração adicional vinda de outros círculos culturais (Wall Street Journal, 12.10, 2010: 6). Estas afirmações originalmente feitas à Revista Focus,
A União Europeia e o «Outro»
155
que acompanha grande parte dos fluxos imigratórios. Portanto, o ónus é colocado
sempre do lado de lá, do lado do imigrante. A União não combate a imigração (até
porque em honestidade não pode dizer que a dispensa, a não ser por recurso a discursos
populistas e xenófobos), combate sim a imigração desajustada às suas necessidades
económicas, tornando-o num combate à imigração ilegal. Imigração ilegal cujos números
o Comité da Migração, Refugiados e População da Assembleia Parlamentar do Conselho
da Europa estima possam ascender, na hipótese mais conservadora, aos 5,5 milhões
apenas na União Europeia (Doc. 11350, 2007). Ocorre porém que a imigração ilegal só
tem a expressão que tem precisamente porque as vias da legalidade são
deliberadamente dificultadas e reduzidas pelos Estados-membros, com o beneplácito dos
seus mercados empregadores, e o estímulo político-jurídico da institucionalidade
europeia.
A preocupação com os fluxos ilegais, sendo uma preocupação legítima alicerçada
desde logo nos compromissos jurídicos e éticos da União com o respeito pelos Direitos
Humanos, é por isso também uma preocupação que esconde nos seus interstícios
políticos uma inquietante verdade: que os instrumentos que lidam com a imigração ilegal
são bem mais baratos e politicamente menos custosos do que os instrumentos
necessários para lidar com a imigração legal, sendo por isso preferíveis os primeiros aos
segundos.
A imigração ilegal implica investimento em recursos humanos, recursos de elevada
complexidade tecnológica e comunicacional (investimento na formação policial;
desenvolvimento de dispositivos e de linguagens que realizam a identificação biométrica
dos indivíduos, que operacionalizam diversas redes de cruzamento de informação, etc.)9.
Mas a imigração legal implica algo bem mais complexo e dispendioso: saber como
integrar no longo prazo o imigrante entretanto transformado em residente não-nacional, e
posteriormente em cidadão, e como desenvolver nas sociedades receptoras uma cultura
de verdadeiro respeito intercultural10. Por outras palavras, a União e os seus Estados-
membros reconhecem a necessidade económica da imigração, contudo, revelam
dificuldades no que respeita a saber como (con)viver com aquela, porque o investimento
estimularam um acesso debate na sociedade alemã, nele se destacando também a afirmação de Ângela Merkel dias mais tarde, sobre o fracasso do modelo multicultural alemão. 9 Sobre o Reforço dos sistemas de vigilância (desenvolvimento do VIS no sentido de incluir parâmetros
biométricos sobre imigrantes, legais e ilegais, veja-se a Regulação do Conselho 1987/2006 sobre o estabelecimento, operacionalização e uso de uma segunda geração do Sistema de Informação de Schengen-SIS II, bem como os documentos relativos à sua operacionalização, nomeadamente, a Decisão da Comissão (2008/333/CE) que adopta o Manual SIRENE e outras medidas de execução para o SIS-II; e Decisão da Comissão (2010/261/UE) que prevê a organização da segurança do SIS II Central e da sua infra-estrutura de comunicação, estabelecendo um plano de segurança para ambos. 10
Mais correcto seria aliás dizer: como integrar-se, na medida em que deveria ser à luz desta reflexividade
que a Europa deveria entender a multiculturalidade como traço constitutivo da sua identidade, e não como traço a que se obriga como corpo estranho.
Isabel Estrada Carvalhais
156
político que se lhes exige é elevado, sendo mais fácil apostar numa política de gestão
selectiva da imigração, remetendo para o universo da ilegalidade todos os restantes
fluxos não atractivos, seja do ponto de vista económico, seja do ponto de vista dos
desafios culturais que estes representam.
O secretário-geral da OCDE, Angel Gurría, alertava no início de 2008 para a
necessidade da integração dos imigrantes dever ser encarada como uma prioridade das
nossas sociedades. Mas o custo político que os governantes antecipam no curto prazo,
parece-lhes sempre excessivo. Daí que em Portugal, como um pouco por toda a Europa,
a integração esteja longe de ser uma prioridade efectiva (não apenas nominal) das
agendas políticas. Tal é tanto mais evidente quanto mais se adensa actualmente o
cenário de crise económica. Pelo contrário, em momento algum se desaceleraram os
múltiplos esforços nacionais e comunitários no sentido de controlar a imigração
indesejada, por via da manutenção dos entraves políticos e jurídicos que garantem a
manutenção da sua ilegalidade11.
Tudo isto poderia resumir-se à situação caricata de um continente envelhecido que
vê potencialmente como ilegal qualquer pessoa que queira nele trabalhar e que lhe
pareça desajustado às suas expectativas culturais e sociais; um continente que se
autodefine portanto como produto escasso, raro, logo de acesso restrito. Todavia, a sua
insistência em apresentar a imigração ilegal e a criminalidade como duas faces de uma
mesma moeda, resulta em muito mais do que uma simples caricatura. Resulta desde
logo num forte estigma pendendo sobre o quotidiano de milhões de pessoas que
procuram sobreviver no espaço clandestino a que as sociedades receptoras as confinam.
Ao sublinhar-se os perigos que podem advir para a segurança europeia dos espaços
de intercepção entre os mundos da imigração ilegal e da criminalidade, justifica-se o
combate à imigração ilegal como sendo também o combate à criminalidade e até mesmo
ao terrorismo que aí se pode alojar, pelo que o léxico político relativo à imigração ilegal
não está completo sem a presença das palavras criminalidade e terrorismo (Buzan e
Waever, 2003; Bigo, 2004).
Curiosamente, ao mesmo tempo que a exploração da ameaça terrorista e da
criminalidade legitima todas as medidas de força no combate à imigração ilegal, verifica-
11
Lembremo-nos da aprovação pela União Europeia em 2008, de um Pacto de Imigração e Asilo, no seguimento da proposta apresentada por Sarkozy no decurso da presidência francesa do Conselho no segundo semestre desse ano. O pacto de Imigração e Asilo aprovado trouxe consigo o reforço da ideia de uma política de imigração comum centrada na "protecção das fronteiras externas" e no "afastamento efectivo dos estrangeiros ilegais" através do reforço dos poderes policiais e dos patrulhamentos terrestre, marítimo e aéreo. Por outro lado, o mesmo pacto introduziu em definitivo o conceito de Cartão Azul, um cartão que visa de certo modo reproduzir na União os princípios orientadores das políticas imigratórias do Canadá, Suíça, Austrália e, em menor grau, norte-americanas, que claramente tendem a privilegiar a entrada e legalização de imigrantes altamente qualificados.
A União Europeia e o «Outro»
157
se em simultâneo uma preocupação em frisar a concordância de todas elas com a estrita
observância dos Direitos Humanos, bem como em desdramatizar a linguagem que
acompanha as práticas exercidas no tratamento dos imigrantes ilegais. Os voos
conjuntos, por exemplo, não são voos de deportação, mas voos de repatriamento ou de
recondução de cidadãos não-europeus em situação irregular aos seus países de origem
ou outros que os possam acolher12. Ora, ao recriar-se a realidade das expulsões, através
de uma linguagem moderada em que o ilegal passa a designar-se por cidadão irregular, e
em que a expulsão é apenas uma recondução orientada, uma realocação de fluxos, a
União revela como que uma preocupação em instruir as opiniões públicas sobre a
legitimação moral dessas suas práticas, preocupação essa que faz mais sentido, parece-
nos, precisamente num contexto em que haja dúvidas quanto à concordância de tais
práticas com a integridade dos Direitos Humanos.
Desdramatiza-se a linguagem das práticas sobre o que se combate (a imigração
ilegal), garante-se a sua aceitação como moralmente razoáveis junto das opiniões
públicas, ao mesmo tempo que se radicaliza a linguagem do que se combate, reforçando
a associação da imigração à ilegalidade e por essa via ao crime e ao terrorismo.
4. MIGRAÇÃO CIRCULAR E POLÍTICA DE RETORNO VOLUNTÁRIO
Em Novembro de 2006, uma proposta conjunta do Reino Unido, França, Alemanha,
Espanha, Polónia e Itália, submetida à presidência finlandesa do Conselho, e que teve na
sua origem um documento conjunto de Sarkozy e Schäuble apresentado em Outubro de
2006 durante uma reunião informal em Stradford-upon-Avon dos ministros da
administração interna dos seis maiores estados-membros (Reino Unido, Alemanha,
Polónia, Itália, Espanha e França), recuperava a ideia de promoção da migração
temporária e circular que já em 2005 surgia, ainda que pouco evidenciada, numa
Comunicação da Comissão intitulada ‘Migração e Desenvolvimento’ (COM(2005) 621
final). Nessa comunicação podia então ler-se que a União e os países de origem
deveriam “definir e apoiar os projectos que favoreçam a circulação legal dos estudantes,
dos investigadores e dos trabalhadores, a título permanente ou temporário” (idem: 7).
O conceito de migração temporária circular parece-nos um claro renascer das
políticas de gastarbeiter, tão em voga na Europa do Pós-Segunda Guerra Mundial, em
12
Prevista no Pacto de Imigração e Asilo ratificado pelos 27 Estados-membros em Outubro de 2008, como uma medida necessária no combate organizado à imigração ilegal, a ideia dos voos conjuntos tivera já em 2004 uma expressão através da Decisão 2004/573 do Conselho sobre a criação de voos conjuntos ou comuns para afastamento de imigrantes ilegais. Entretanto, nas conclusões da presidência do Conselho relativas ao primeiro semestre de 2009, pode ler-se que: “O Conselho Europeu sublinha ainda que é necessário reforçar as operações de controlo fronteiriço coordenadas pela FRONTEX, dispor de regras claras para a participação das patrulhas conjuntas e o desembarque das pessoas socorridas, e fazer uma maior utilização dos voos conjuntos de retorno.” (11225/2/09 REV 2: p.14).
Isabel Estrada Carvalhais
158
particular ao longo das décadas de 50 e de 60, correspondentes aos períodos áureos da
reconstrução europeia. Senão veja-se a Comunicação da Comissão ao Parlamento, ao
Conselho, ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões, [COM(2007) 248
final, de Maio de 2007] sobre migração circular e parcerias de mobilidade entre a União e
países terceiros:
a migração circular está a ser crescentemente reconhecida como uma forma-chave
da migração que, se bem gerida, pode ajudar a conciliar a oferta e a procura
internacionais de mão-de-obra, contribuindo assim para uma alocação mais
eficiente dos recursos disponíveis e para o crescimento económico. No entanto […]
se não convenientemente desenhada e gerida, a migração que deveria ser circular
pode facilmente tornar-se permanente derrubando assim o seu objectivo. (p.8)
A migração circular surge portanto como um conceito que visa operacionalizar a
presença do imigrante económico temporariamente relevante e nesse sentido,
acreditamos não ser excessivo dizer que o mesmo conceito se aproxima da filosofia
subjacente às políticas do guestworker do século passado. Sendo certo que são cada vez
mais frequentes os trajectos de vida que se alicerçam na mobilidade transnacional dos
sujeitos (Ong, 1999), consideramos todavia que os mesmos só deveriam existir enquanto
livres opções de vida, que funcionassem como impulsionadores de novas cidadanias,
mais cosmopolitas e flexíveis, e não enquanto circuitos que têm de ser percorridos à
revelia da vontade dos sujeitos.
Uma política de migração circular só pode resultar nos seus propósitos se entre os
países envolvidos (na dupla condição de emissor-receptor) for concebida uma política de
retorno que permita o completar do ciclo de trânsito do migrante13. Ora, na União
Europeia, são vários os documentos que a par da leitura comum sobre migração circular,
nos permitem identificar a política comum em matéria de prioridades, linhas de acção e
procedimentos relativos ao retorno de imigrantes. À cabeça está o próprio Programa de
Haia de 2004 que se constitui como um ambicioso programa de objectivos relativos à
gestão dos fluxos migratórios na Europa, e que tem na segurança do espaço europeu
uma das traves mestras da sua estruturação. Mas antes mesmo do Programa de Haia,
poderíamos falar do Programa de Acção de Retorno lançado pelo Conselho em 2002; na
13
Os projectos de promoção de retornos voluntários e de gestão da circularidade são vários, envolvendo países terceiros situados em África, Marrocos à cabeça de vários projectos entretanto desenvolvidos mas também Egipto, Tunísia, entre outros; países dos Balcãs ocidentais (Albânia, Antiga República Jugoslava da Macedónia, a República do Montenegro, a República da Sérvia e a Bósnia-Herzegovina) e do Cáucaso Sul (Arménia, Azerbaijão), países da América Latina como a Colômbia, e países asiáticos como China, Coreia do Sul e Japão.
A União Europeia e o «Outro»
159
Directiva 2001/40/EC sobre o reconhecimento mútuo por parte da União e de estados
terceiros das decisões e procedimentos da União em matéria de expulsão de nacionais
de países terceiros; na Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento
Europeu relativa a uma Política Comunitária de Regresso de Residentes em situação
ilegal, de 14.10.2002. COM(2002)564; na Directiva 2003/110 sobre ‘Trânsito para a
Expulsão’ (no original ‘transit for expulsion’; na Decisão do Conselho 2004/191/EC que
estabelece os critérios e mecanismos práticos para compensação financeira dos estados-
membros, em virtude dos custos resultantes da sua conformação à anterior directiva); na
Decisão do Conselho 2004/573/EC sobre a organização de voos conjuntos de
recondução de cidadãos a países terceiros. Já posterior ao Programa de Haia aprovado
em Novembro de 2004, poder-se-ia listar como documentos de referência a Proposta da
Comissão para uma Directiva do Parlamento e do Conselho para estabelecimento de
regras e procedimentos comuns no retorno de nacionais de países terceiros em situação
ilegal (COM/2005/391); a Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento
Europeu sobre as acções prioritárias para dar resposta aos desafios da migração
(COM/2005/621 final) e ainda a Comunicação da Comissão ao Conselho e ao
Parlamento Europeu sobre as formas de facilitar a concretização de uma verdadeira
política europeia global na gestão dos fenómenos migratórios (COM(2006)735final).
Naturalmente, são muitas as inquietações sobre como a relação entre a migração
circular e a política de retorno voluntário se concretiza no terreno, sem comprometer o
respeito pelos Direitos Humanos. Como exemplo dessas inquietações, veja-se a já
referida proposta apresentada à presidência finlandesa em finais de 2006. Nesta
proposta podia ler-se:
Uma medida a considerar e que poderia integrar o quadro legislativo é o requisito
de um compromisso escrito por parte dos imigrantes no sentido do seu retorno
voluntário aos seus países de origem uma vez findo o seu contrato. (11-12)
Ora, há desde logo uma questão básica que se coloca: sendo o retorno um acto
voluntário, por um lado, e sendo a pessoa obrigada a aderir ao retorno voluntário por
outro, onde está então a capacidade de opção que legitimaria o uso do termo
‘voluntário’?
O texto prosseguia dizendo:
No caso dos imigrantes permanecerem ilegalmente no território da União em vez de
regressarem voluntariamente após o expirar da sua autorização, deverá ocorrer a
Isabel Estrada Carvalhais
160
readmissão por parte do país de origem. Tal seria mais facilmente alcançado na
existência de acordos de readmissão entre a CE ou o Estado-membro e o estado
de origem. (p.12; itálico nosso)
Como o próprio excerto o demonstra, está aqui claramente a invocar-se a política da
celebração de acordos de readmissão de imigrantes, a qual tem implicado a inclusão de
cláusulas de readmissão em acordos bilaterais feitos com países em vias de
desenvolvimento14. O objectivo de tal inclusão está em tornar a ajuda europeia ao
desenvolvimento de países terceiros dependente da capacidade dos seus governos em
controlar os seus fluxos migratórios. Tal quase nunca é tarefa fácil, mais ainda em países
marcados pela debilidade económica e não raras vezes pela violência social e
instabilidade política15.
Ainda em relação a operacionalização dos retornos, fazemos também notar um outro
aspecto inquietante e que se prende com a efectiva vontade política que precede essa
operacionalização. De facto, quando comparada a minúcia que acompanha o desenho
técnico dos sistemas de vigilância e controlo dos cidadãos, com as intenções algo vagas
e até pouco exequíveis sobre como a União pode colaborar no sentido de impedir a fuga
de cérebros de países em vias de desenvolvimento, parece ressaltar que no
amadurecimento do Programa de Haia no que neste se reporta à gestão dos fluxos
migratórios na União, tem havido mais investimento nas questões que se prendem com o
controlo da imigração em geral e da ilegal em particular, bem como na política de
prevenção de riscos, do que nas questões que se prendem com o sucesso da própria
política de migração legal circular. Em termos práticos, ideias como ‘[a] criação de
mecanismos que permitissem aos imigrantes uma melhor divisão da sua vida laboral
entre os dois países, o de origem e o receptor’, ou ‘[o] compromisso de não contratar
imigrantes em sectores altamente especializados indicados pelo país emissor como
estando sob pressão’, de que falava a já citada proposta de 2006, parecem efectivamente
muito mais próximas de uma linguagem de intenções, quando comparadas com
14
Temos como exemplo as negociações da Convenção de Lomé, em que os países em vias de desenvolvimento se viram confrontados com a necessidade de aceitar uma cláusula sobre a readmissão e o repatriamento de imigrantes. Por sua vez, o seu sucessor, o Acordo de Cotonou (2007-2020), veio também reforçar a posição da União em matéria de política de imposição de obrigações de readmissão. O assunto está longe todavia de pacífico, como se pôde ver em Março de 2010, com a segunda negociação dos Acordos de Cotonou em que claramente a readmissão surgiu como uma questão sensível aos países ACP que rejeitaram a inserção de especificações de carácter técnico sobre a operacionalização das readmissões preferindo discuti-las numa base bilateral com os diferentes estados-membros. 15
A União tem já negociado acordos de readmissão com diversos países entre eles os Países dos Balcãs ocidentais, nomeadamente a Albânia (Decisão 2005/809/CE), a Antiga República Jugoslava da Macedónia (Decisão 2007/817/CE), Montenegro (Decisão 2007/818/CE), Sérvia (Decisão 2007/819/CE) e a Bósnia-Herzegovina (Decisão 2007/820/CE). Tem igualmente acordos com Hong Kong (Novembro 2001), Sri Lanka (Maio 2002), Macau (Outubro 2002), Rússia (Abril de 2007), República Moldava e Ucrânia (Dezembro de 2007), Paquistão (Outubro de 2010). Em 2009, Marrocos, Líbia e Argélia, rejeitaram todavia as propostas da União para celebração de acordos de readmissão. Entretanto, permanecem em aberto as discussões relativas ao acordo de readmissão com a Turquia e também com a China.
A União Europeia e o «Outro»
161
discussões técnicas como as desenvolvidas em torno das idades mínimas em que é ou
não é viável a retenção de parâmetros biométricos do indivíduo.
5. PARTILHA OU EXPORTAÇÃO DE RESPONSABILIDADES DE SEGURANÇA? – OS BUFFER
STATES
A partir dos anos 90 tornou-se clara a aposta da União no conceito de buffer-zone, ou
zona-tampão, enquanto parte da sua estratégia de partilha de responsabilidades no
controlo dos fluxos migratórios e de refugiados com países terceiros. Nos casos em que
decorreram negociações com vista à adesão de países de Leste, o ajustamento dos
candidatos aos critérios que definem o espaço de Schengen foi claramente uma
exigência negocial da UE, ajustamento que aqueles fizeram permitindo desde logo
constituir-se como buffer states. Ao mesmo tempo, e uma vez já membros, exigiu-se-lhes
que suportassem nos primeiros anos o peso das restrições à livre circulação das suas
populações. Uma tal atitude não parece todavia conformar-se com discursos em defesa
dos direitos inalienáveis do indivíduo, incluindo os de livre circulação, livre escolha,
igualdade de oportunidades, e abertura das sociedades e mercados. Além disso, a
insistência no reforço das fronteiras externas de países como a Polónia ou o Chipre, com
vista a concretizar a criação de um regime de fronteiras suaves no interior da União e de
fronteiras fortes com o exterior – nem sempre parece considerar o seu impacto menos
positivo sobre o equilíbrio de relações políticas, culturais e sociais entre espaços vizinhos.
Veja-se o caso da Polónia em relação à Ucrânia, e de Chipre em relação ao
Mediterrâneo. A política de gestão coordenada das fronteiras da União não tem
obviamente como prioridade analisar o seu significado e impacto sobre as relações
sociais e políticas entre populações dentro e fora do seu espaço, mas sim assegurar a
sua eficácia na protecção integrada das fronteiras. Tal atitude tem sido alvo de diversas
críticas, entre elas a que lhe aponta ser uma reminiscência de um certo eurocentrismo, e
até da persistência de uma percepção colonial sobre outros espaços, nomeadamente
sobre o Leste (Borocz e Kovács, 2001).
Com a entrada no século XXI, a política de partilha de responsabilidades sobre a
segurança europeia ascendeu todavia a um patamar de maior estruturação e
organização através do amadurecimento de uma Política Europeia de Vizinhança.
Originariamente lançada pelo Conselho Europeu de Copenhaga de Dezembro de 2002, a
que o Conselho Europeu de Junho de 2003 e o Programa de Haia de 2004 deram um
particular impulso e consistência definitiva,16 a Política Europeia de Vizinhança não se
16
Marco incontornável da PEV é igualmente a Comunicação da Comissão, de 2003, que estabelece qual o quadro desejável para o desenvolvimento das relações entre os países vizinhos de Leste e do Sul (COM(2003) 104 final).
Isabel Estrada Carvalhais
162
limita à linguagem da gestão dos fluxos migratórios, embora aqueles sejam claramente o
seu principal vértice de referência. A PEV centra-se na ideia de que a criação e
manutenção de um círculo de países amigos sustentada por uma forte cooperação
institucional permite não só gerir melhor os feitos positivos e negativos dos fluxos
migratórios, mas também estimular o crescimento económico e coesão social de toda a
região de países envolvidos e que hoje já inclui estados do Leste, do Cáucaso, dos
Balcãs, Mediterrâneo e Próximo Oriente.17 A ideia-chave da Política Europeia de
Vizinhança consiste pois em criar uma ‘zona de boa vizinhança, paz e prosperidade’, com
vários intuitos, entre os quais, claramente, o de proteger a União das ameaças
transfronteiriças do terrorismo, do crime e da imigração ilegal. A União espera assim que
todas essas regiões se empenhem na cooperação policial e judicial e na coordenação de
acções de controlo dos fluxos migratórios (e de refugiados), dando dessa feita expressão
aos objectivos da FRONTEX (Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional
nas Fronteiras Externas) enquanto instrumento de promoção e aplicação da política
integrada de gestão das fronteiras entre Estados-Membros e países terceiros. Não se
nega aqui que a PEV seja um instrumento político legítimo de promoção e salvaguarda
de interesses estratégicos de todo o espaço europeu e das demais regiões envolvidas.
Há ainda assim que questionar certos aspectos da sua aplicação. Se não vejamos. A
maioria dos estados vizinhos não entra no círculo de estados em vias de
desenvolvimento. Logo, o problema deste espaço de amizade, paz e prosperidade, não
estará tanto na condição económica dos seus membros que os obrigasse enfim a
cooperar com a União em troca de apoios ao desenvolvimento. O problema está antes no
facto de alguns destes estados (e.g. Marrocos, Argélia, Tunísia, Jordânia, Líbia, Síria…)
apresentarem várias deficiências no respeito devido pelas suas autoridades aos Direitos
Humanos, sejam os dos imigrantes ilegais sejam os dos refugiados que acolhem. Que
tais estados funcionem como áreas de recepção e de trânsito de pessoas que buscam
precisamente a protecção dos seus direitos mais básicos, é pois uma inquietação
legítima que surge em torno desta política, mesmo quando sobre em sua defesa sejam
invocados os vários instrumentos de ajuda financeira e tecnológica que a União tem
mobilizado no combate a tais dificuldades.18
17
Os países aqui incluídos são a Argélia, Arménia, Azerbaijão, Bielorrússia, Egipto, Geórgia, Israel, Jordânia, Líbano, Líbia, Moldávia, Marrocos, o território palestiniano, Síria, Tunísia e Ucrânia. A UE desenvolve ainda uma relação privilegiada com a Rússia mas no âmbito de uma Parceria Estratégica específica. 18
Através da PEV, a União procura desenvolver instituições e mecanismos centrados no estímulo da capacidade dos estados envolvidos em actuar em conformidade com os princípios internacionais de respeito pelos Direitos Humanos. Assim, ao longo dos anos a União tem levado a cabo várias acções de formação, quer de forças policiais, quer de autoridades judiciais, em países vizinhos como Marrocos ou Argélia, de modo a elevar os padrões de tratamento das populações migrantes em respeito pelos preceitos internacionais, e a promover o combate à corrupção, ao tráfico, à criminalidade, etc. Do mesmo modo, tem sido patrocinada a criação de agências que visam localmente prestar maior assistência às populações em
A União Europeia e o «Outro»
163
Esta política de ‘controlo remoto’ por via de um ‘policiamento à distância’ (Bigo e
Guild, 2005) corrobora a leitura já aqui apresentada sobre o modo como a Europa (a
Europa ocidental cuja geografia incerta é compensada pelas fronteiras políticas da actual
União Europeia) nega ao Outro transfigurado na forma de estados soberanos, muitos dos
quais ex-colónias, a possibilidade de também ele usufruir do princípio que aquela tem
como estruturante do seu projecto: o da livre circulação de pessoas.
Da mesma forma, esta política de externalização do controlo de fronteiras (Carrera,
2007), ou de outsourcing como já lhe é chamada (Gammeltoft-Hansen, 2006), recorda-
nos que a lógica subjacente à relação da União com o ‘Outro’ é afinal uma lógica liberal
que vive agrilhoada à sua dimensão burguesa e colonizadora, radicada numa visão
sobranceira sobre o seu lugar no Mundo), a qual corrompe, embora não chegue a
destruir, a integridade e o potencial da sua dimensão humanista.
6. CONTROLO, VIGILÂNCIA VS LIBERDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS
A União Europeia tornou-se em certa medida num exemplo de complexificação com vista
à simplificação. O objectivo de tornar por exemplo o acesso a dados pessoais mais
rápido, simples e eficiente, implica a criação de sistemas procedimentais jurídicos e
informáticos cada vez mais intrincados e sofisticados.
A União tornou-se igualmente num exemplo da máxima da filosofia liberal: liberdade
pela regra. É preciso regulamentar, vigiar e controlar para assegurar a liberdade. Assim
se explica que falar em liberdade e direitos fundamentais ocorra cada vez mais no
contexto de debates marcados pela lógica da limitação a direitos e liberdades. Alguns
desses debates têm-se centrado em questões suscitadas pelo Tratado de Prüm.
Assinado em Maio de 2005 na Alemanha, o Tratado de Prüm visa o reforço da
cooperação judicial e policial entre os estados-membros, assente no princípio de que só
pela via de uma estreita cooperação nesses domínios, pode a União aspirar a um
combate eficaz da imigração ilegal, do terrorismo e do crime transfronteiriço. Prüm nunca
foi todavia um tratado pacífico. Prova disso mesmo esteve aliás na proposta apresentada
em 200719 pelo ministro alemão do Interior, Wolfgang Schäuble, no sentido do Tratado
trânsito e às autoridades na sua relação com as mesmas (por exemplo, criação de uma secção internacional dentro da Agência Nacional de Emprego em Marrocos). Ainda na linha de apoio aos países terceiros para facilitar a sua cooperação com a PEV, esteve operacional entre 2004 e 2006 o programa comunitário Aeneas, criado precisamente com o propósito de garantir a assistência e a cooperação aos países terceiros na protecção dos direitos dos migrantes e no apoio à gestão de fronteiras. As actividades e propósitos do programa foram entretanto continuados pelo programa temático de cooperação com países terceiros em matéria de migração e asilo lançado em 2006 (COM(2006)26final). 19
A proposta foi apresentada em 2007 por Schäuble no contexto de uma reunião de ministros da Justiça e Assuntos Internos dos três países que haveriam de estar envolvidos com a presidência do Conselho entre 2007 (Alemanha e Portugal) e no primeiro semestre de 2008 (Eslovénia). A reunião antecedeu o Conselho informal que haveria de ocorrer em Janeiro de 2007 em Dresden, entre os ministros da Justiça e dos Assuntos Internos da União.
Isabel Estrada Carvalhais
164
ser transferido para o Direito Comunitário, (de modo a não constranger a sua aplicação à
necessidade de ratificação e assinatura por parte de todos os estados-membros20), facto
que veio a ocorrer em 2008 através de três decisões do Conselho.21
Têm sido diversos os debates suscitados em torno das potencialidades e desafios
que acompanham o conceito de e-justice tal como promovido pelo Tratado de Prüm. Um
desses debates centra-se na possibilidade que Prüm institui de cada Estado dar a outros
estados acesso automático a bases de dados nacionais de registo automóvel, de registo
de impressões digitais ou de registo de ADN, sempre que tal seja solicitado pelos estados
que estão a realizar a pesquisa. Um outro debate ocorre em torno da aplicação do
princípio da disponibilidade (Availability Principle) adoptado pelo Programa de Haia e que
estabelece a entrada em funcionamento desde Janeiro de 2008 de uma rede de
informação jurídica acessível a todas as autoridades policiais e judiciais em qualquer
estado-membro no sentido de facilitar as suas tarefas de investigação pela troca
automática de informação [COM(2006)331final]. Um terceiro debate centra-se na
temática do Controlo e Vigilância de Sujeitos, em particular sobre os desenvolvimentos
técnicos em matéria de aplicação do Sistema de Informação de Schengen (SIS II) e do
Sistema de Informação sobre Vistos (VIS/SIV)22.
Finalmente, um outro debate frequente centra-se no acesso às bases de dados de
impressões digitais, não apenas por razões criminais mas também em situações
preventivas. Pese embora a importância que o Parlamento Europeu teve em gerar uma
maior sintonia entre os objectivos legítimos do Tratado e o respeito pelas liberdades e
garantias fundamentais,23 atenuando assim algumas das inquietações mais fortes que
20
Os primeiros estados signatários foram a Bélgica, Alemanha, França, Luxemburgo, Países Baixos, Áustria e Espanha. Entretanto, outros oito estados-membros (Finlândia, Itália, Portugal, Eslovénia, Suécia, Roménia, Bulgária e Grécia) declararam formalmente a sua intenção de aderir. Porém, países como a Grã-Bretanha desde início fizeram saber do seu desinteresse em aderir ao Tratado. 21
Decisão 2008/615/JAI, Decisão 2008/616/JAI e Decisão 2008/617/JAI do Conselho de 23 de Junho de
2008. Estas decisões selaram a transposição do Tratado de Prüm para o Direito Comunitário, criando um período de três anos para adaptação das legislações nacionais. 22
Dentro deste debate, as principais questões giram em redor da identificação biométrica dos sujeitos. No universo de questões técnicas que aí se levantaram sobretudo entre 2006 e 2008, Portugal defendeu que deveriam existir algumas excepções na recolha de dados biométricos para pessoas com deformidades faciais, enquanto a Polónia considerava que a deformação não deveria ser razão para excepções. Isso mesmo se pode ver nos resultados das discussões no âmbito do grupo de trabalho sobre fronteiras/falsos documentos – Comité misto UE-Islândia/Noruega/Suíça (9403/1/06 - FAUXDOC 9, VISA 135, COMIX 463). Na Alemanha, a idade mínima para recolha de impressões digitais é de 14 anos, enquanto que na Polónia é de 12 anos para impressões digitais e dados biométricos da face. Já na Letónia e França, as impressões são recolhidas aos 6 anos e a imagem facial é retida desde o nascimento (o que diga-se tem um aspecto muito meritório que se prende com combate ao tráfico de crianças). A República Checa tira impressões aos 5 anos e captura a imagem desde o nascimento. Em Espanha ambos os identificadores biométricos são retirados desde o nascimento. E os exemplos poderiam continuar, todos eles atestando a diversidade de interpretações que cada estado tem sobre estas matérias e a dificuldade em acertar uma linguagem única que a todos agrade. 23
No seguimento da aprovação daquele que ficou conhecido por ‘Relatório Fausto’, de que foi relator o eurodeputado Fausto Correia do PSE, e que foi tido em consideração pelo Conselho na criação das decisões já citadas.
A União Europeia e o «Outro»
165
Prüm levantava, a verdade é que tal sintonia não diluiu por completo o espaço, também
ele legítimo, para todas as desconfianças que ainda se levantam. À cabeça, indicaríamos
a desconfiança relativamente à proporcionalidade, razoabilidade e adequação de todas
as medidas que integram esta política de prevenção de riscos, de controlo e de vigilância
dos indivíduos, sobretudo quando a linguagem oficial dos documentos de trabalho anda à
volta de expressões tão vagas quanto perigosas, como sejam as referências a ameaças
à segurança interna. Repare-se no seguinte exemplo. A Comissão avançou em 2005 com
uma proposta para uma decisão-quadro em matéria de protecção de dados. A proposta
foi discutida no âmbito da presidência austríaca e finlandesa da União em 2006. No
primeiro semestre de 2007, a presidência alemã avançou com a proposta de uma nova
redacção, ignorando para o efeito o trabalho do Parlamento Europeu com cerca de 60
emendas (Setembro de 2006) e as opiniões do European Data Protection Supervisor
(EDPS). O resultado foi um texto ainda mais ‘pesado’ que o anterior e que reduz bastante
o direito do indivíduo a ser informado de que estão a ser recolhidos e processados dados
relativos à sua pessoa. O direito de acesso aos dados também é limitado, e recheado de
excepções. Ou seja, segundo esta nova redacção, só se uma pessoa souber ou suspeitar
que os seus dados estão a ser processados é que poderá requerer o acesso aos
mesmos (UE doc.7315/07). Estes debates fazem-nos igualmente pensar na
transparência e democraticidade com que tudo isto é discutido e implementado. A
proposta de Decisão do Conselho, de Junho de 2007, sobre cooperação transfronteiriça
no combate ao terrorismo e ao crime entre fronteiras, reconhecia as dificuldades na
gestão de dados pessoais associados ao acesso on-line, mas ao mesmo tempo
terminava dizendo que a decisão respeitava a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais
(Draft Council Decision 2007). Ora, daqui ressaltava como evidente uma potencial
incoerência que valeria a pena ser mais amplamente discutida no âmbito de debates
públicos. No entanto, a maioria das discussões ocorreu no seio de comités e grupos de
trabalho especializados, ficando-se o cidadão pelo conhecimento dos resultados finais.
CONCLUSÃO
A qualidade das relações desenvolvidas entre sociedades receptoras e as suas múltiplas
comunidades de origens e pertenças étnicas diversas, não pode ser indiferente às
opções políticas que se efectuam em matéria de gestão migratória e de controlo de
fronteiras. Desta feita, se tais opções tiverem respaldo numa lógica que entenda como
estrategicamente defensável a incriminação e desconfiança antecipada sobre o valor
moral do Outro, então, tais opções terão maior probabilidade de estarem activamente a
contribuir para a fragilização das ditas relações. A probabilidade será tanto maior, quanto
Isabel Estrada Carvalhais
166
menor for, por acréscimo, o nível de preparação das populações para enfrentar e
desmontar as armadilhas que as linguagens e as práticas institucionais apresentam. Não
será despiciendo sublinhar que as relações sociais interculturais são antes de mais
relações assentes em pressupostos de confiança mútua, que ajudam à sustentação de
expectativas recíprocas e à sustentação de algo tão fundamental como a legitimidade de
políticas e práticas de solidariedade dento do Estado. É porque temos confiança no
‘Outro’ (independentemente de ele ser de facto um Outro, ou antes uma face de nós
mesmos ainda não reconhecida enquanto tal e por isso percebida como externa) que
aceitamos com ele trabalhar para uma ideia de Bem Comum. Assim, face ao
resumidamente exposto neste texto, ousamos questionar se essa confiança pode ser
estimulada através da aposta numa política de prevenção e controlo de comportamentos,
em cujo universo semântico o terrorismo e a imigração ilegal aparecem lado a lado qual
sinónimos; numa política de migração circular que reabilita o conceito de guestworker,
isto é, do imigrante económico descartável; numa política de retorno voluntário que na
verdade não apresenta o retorno como opção do indivíduo mas como condição
obrigatória para admissão de sua entrada; numa política de exportação de
responsabilidades, assente em círculos de boa vizinhança, em acordos de readmissão, e
que no fundo coloca sobre os ombros de países terceiros a responsabilidade pela
segurança interna da Europa (Bigo e Guild, 2010; Bigo e Guild, 2005).
Convenhamos que é no mínimo difícil reconhecer a linguagem da interculturalidade,
na linguagem destas quatro políticas que materializam a lógica subjacente à praxis
política da União Europeia não só em matéria de controlo de fluxos imigratórios de países
terceiros, mas também e mais importante, em matéria da sua relação com o ‘Outro’.
Na operacionalização das políticas que acompanham os conceitos de imigração
ilegal, migração circular e buffer states, evidencia-se uma inquietante fricção entre duas
grandes heranças constitutivas da matriz ideológica (entendida como matriz de
pensamento e acção) quer da Europa contemporânea no geral, quer do espaço
comunitário em particular. São elas, por um lado, a herança de uma ética humanista (ela
mesma hesitante entre uma leitura mais universalista sobre a existência de um máximo
denominador comum de dignidade humana materializado num conjunto de direitos
humanos fundamentais e inalienáveis; e uma leitura mais ‘multiculturalista’ sobre a
existência de múltiplas versões de dignidade humana, tornadas compatíveis através do
exercício de diálogos interculturais). E, por outro lado, a herança de uma ética burguesa,
marcada pela sobranceria civilizacional do espaço europeu no curso da História Mundial.
Neste contexto de ambivalência matricial que persegue as respostas da União Europeia
na sua relação com o ‘Outro’, a legitimidade de práticas e discursos políticos sobre a
A União Europeia e o «Outro»
167
gestão de fenómenos imigratórios é uma legitimidade necessariamente incompleta.
Incompleta porque ensombrada pela presença dessa segunda herança binária. De
sublinhar como nota final que o objectivo do tipo de reflexão que este texto propõe não é
o de desacreditar o projecto da União Europeia para a construção de um espaço de
maior liberdade, justiça e democracia. Precisamente porque acreditamos nas virtudes e
potencialidades do projecto, preocupam-nos os laivos que na acção política europeia
possam afectar a sua integridade democrática, a sua compatibilidade com os Direitos
Humanos, e a sua sintonia com uma visão mais inclusiva de cidadania.
ISABEL ESTRADA CARVALHAIS
Investigadora do NICPRI - Núcleo de Investigação em Ciência Política e Relações
Internacionais (www.nicpri.uminho.pt). Professora auxiliar da Escola de Economia e
Gestão da Universidade do Minho.
Contacto: [email protected]
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