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Centro de Estudos Sociais

Universidade de Coimbra

União Europeia

e-cadernos ces PROPRIEDADE E EDIÇÃO

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS

- LABORATÓRIO ASSOCIADO

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

www.ces.uc.pt

COLÉGIO DE S. JERÓNIMO

APARTADO 3087

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CONSELHO DE REDAÇÂO DOS E-CADERNOS CES

MARTA ARAÚJO (Directora)

ANA CORDEIRO SANTOS CECÍLIA MACDOWELL SANTOS JOSÉ MANUEL MENDES LAURA CENTEMERI MARIA JOSÉ CANELO MATHIAS THALER

SILVIA RODRÍGUEZ MAESO

AUTORES

BRUNO MONTEIRO

CLARA SARMENTO

ANABELA MARISA AZUL

HÉLDER RAPOSO

VERA BORGES

ELENA BRUGIONI

ISABEL ESTRADA CARVALHAIS

DESIGN GRÁFICO DOS E-CADERNOS CES

DUPLO NETWORK, COIMBRA

www.duplonetwork.com

PERIODICIDADE

TRIMESTRAL

VERSÃO ELECTRÓNICA

ISSN 1647-0737

© CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS, UNIVERSIDADE COIMBRA, 2010

DEBATES CONTEMPORÂNEOS:

JOVENS CIENTISTAS SOCIAIS NO CES

(III, IV E V CICLOS ANUAIS)

ORGANIZAÇÃO

Marta Araújo, Laura Centemeri, Marisa Matias e Ana Cordeiro Santos

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS

2010

Índice

Introdução ................................................................................................................. 5

Bruno Monteiro - A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas

gestionárias numa fábrica de mobiliário .................................................................. 11

Clara Sarmento - A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e

representações do moliceiro ................................................................................... 37

Anabela Marisa Azul - Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à

sustentabilidade do sobreiro em Portugal ................................................................ 70

Hélder Raposo - Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas:

pistas para um breve ensaio teórico ........................................................................ 91

Vera Borges - Trabalho, género, idade e arte: estudos empíricos sobre o teatro e a

dança .................................................................................................................... 110

Elena Brugioni - Tradução, Diferença, Excepção. Apontamentos para uma reflexão

em torno da língua nas literaturas africanas homoglotas: o “exemplo” de Mia Couto

.............................................................................................................................. 128

Isabel Estrada Carvalhais - A União Europeia e o “Outro” – Tensões e

compromissos da lógica subjacente à sua gestão da imigração de países terceiros

.............................................................................................................................. 144

Agradecimentos

Gostaríamos de expressar o nosso agradecimento a todos os investigadores que

participaram nos Ciclos Anuais de Jovens Cientistas Sociais, a todos os

investigadores que comentaram as conferências e aos que, anonimamente,

aceitaram rever e comentar os textos aqui publicados. Finalmente, o nosso

agradecimento à Fundação para a Ciência e a Tecnologia pelo apoio concedido à

realização das conferências.

5

Introdução

Em 2005, o CES deu início a um projecto a que designou Ciclo Anual Jovens

Cientistas Sociais. Colocar em diálogo os trabalhos e as experiências desses jovens

oriundos de outros centros de investigação e universidades com aquele

desenvolvido pelos investigadores do Centro de Estudos Sociais, foi o objectivo

primacial deste projecto. A sua consolidação ao longo dos últimos anos abriu novas

portas. O objectivo do ciclo manteve-se, mas as disciplinas foram alargadas para lá

das ciências sociais, ainda que estas tenham continuado a ser o campo privilegiado

de análise. O modelo também se manteve, mas passaram a ser incluídos - ainda

que com menor peso, e apenas a partir da edição 2009-2010 - jovens cientistas do

Centro de Estudos Sociais, desta feita comentados por investigadores de outros

centros de investigação e universidades. A linha orientadora permanece: divulgar o

trabalho de jovens investigadores, promover a colaboração inter-institucional,

reforçar a visibilidade dos trabalhos desenvolvidos no domínio das ciências sociais,

ampliar o seu carácter transdisciplinar e interdisciplinar e favorecer o diálogo com

outros actores e com outros saberes, em consonância com o trabalho que tem vindo

a ser desenvolvido no Centro de Estudos Sociais. Em suma, conhecimento situado,

diálogo e cruzamento de experiências continuaram a ser os fios condutores desta

trajectória, procurando sempre o reforço da visibilidade das ciências sociais e

humanas.

A publicação que aqui apresentamos reúne textos dos ciclos realizados entre

2007 e 2010 (Ciclos Anuais III, IV e V). Os sete contributos passaram por um

rigoroso processo de arbitragem científica, pelo que os textos aqui reproduzidos não

só beneficiaram dos comentários que os autores receberam nas suas

apresentações, mas também das críticas e sugestões dos avaliadores anónimos.

Organização deste número

Os contributos aqui apresentados enquadram-se disciplinarmente na Sociologia,

Cultura Portuguesa, Estudos Literários, Ciência Política e na Ecologia. Não se trata

apenas de um conjunto de textos que nos permitem problematizar, a partir de

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diferentes perspectivas teóricas, vários objectos de estudo e processos, mas

também de textos que incidem sobre diferentes unidades de análise, sejam eles o

texto literário ou a vida numa fábrica. Parte-se igualmente de ‘geografias’ distintas,

dos ecossistemas da Ria de Aveiro ou do agro-silvo-pastoril do montado português

até ao contexto europeu. Partilham-se reflexões em torno de domínios profissionais

distintos, neste caso concretizados nos campos da clínica médica ou das artes

performativas. Não sendo possível, nem neste caso desejável, encontrar um fio

condutor que nos permita ler o conjunto dos textos aqui apresentados – essa

linearidade seria a antítese dos pressupostos associados à organização destes

ciclos anuais – é, contudo, possível encontrar pontos de contacto entre os vários

contributos. Diferentes processos de incorporação e práticas de inscrição aparecem

ao longo dos textos, assim como diferentes leituras de vulnerabilidade e de

incerteza, de padronização ou de ‘exemplaridade’.

Bruno Monteiro apresenta-nos um detalhado estudo de caso que problematiza

os efeitos da modernização e das novas tecnologias nas vivências e incorporações

dos operários de uma fábrica de móveis em Portugal. Num contexto marcado pela

introdução e dominação de novas estratégias empresariais orientadas para a

maximização da produtividade e da redução dos ‘custos com pessoal’, é na

realidade da fábrica enquanto universo existencial e configuração de poder, que

encontramos os dilemas dos operários ante a transformação profunda do processo

produtivo e as implicações daí decorrentes. Partindo de uma perspectiva ‘incarnada’

e contextualizada do mundo social, Bruno Monteiro mostra-nos como o ‘saber de

cor’ dos operários desta fábrica resiste e é posto à prova; ele leva-nos aos

meandros do ‘aprender a arte’ de ser marceneiro e às transformações impostas

(‘hoje as pessoas sabem mais de máquinas’), às hierarquias e solidariedades dos

trabalhadores no interior da fábrica ou ao diluir progressivo do trabalho artesanal. O

texto percorre ainda as contradições entre o discurso gestionário e a ‘economia

moral do chão da fábrica’, as narrativas de ‘perda de amor ao trabalho’, a

manifestação da condição operária no próprio corpo dos operários e o entendimento

de processos que vão da submissão a uma experiência progressiva de

despossessão.

Tendo como referencial o barco moliceiro e suas inscrições, Clara Sarmento

confronta-nos com um processo de invenção e reinvenção da cultura portuguesa no

contexto da região de Aveiro. Ao longo de um século, é possível verificar que essas

inscrições e textos pintados nos barcos são o produto de redes de circunstância,

traduzindo uma dialéctica entre o discurso oficial e a sua função social, económica e

simbólica, e gerando um imaginário histórico que se constitui como ‘inventário’. De

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‘ferramenta agrícola’ a atracção turística, a função do moliceiro alterou-se

profundamente nas últimas décadas. A ‘tradição’ foi sistematicamente adaptada às

diferentes realidades sociais e às novas funções económicas. Partindo de cinco

categorias de inscrições – jocosas, religiosas, sociais, históricas e lúdicas –, Clara

Sarmento mostra como os painéis do moliceiro se configuram num álbum de

imagens que expressam uma visão do mundo que reflecte o controlo social e

político, e de uma forma mais vincada durante a vigência do Estado Novo. A autora

sugere ainda que a autenticidade encenada pode ocasionalmente levar ao

renascimento cultural das tradições, à renovação da identidade local ou até mesmo

à invenção de novas tradições e identidades. Através de painéis onde só ‘cabe’ o

povo ou a burguesia, este texto ilustra ainda ‘espaços de negociação’ entre valores

culturais e ideológicos, entre dominação e subordinação, não sem laivos de

contestação.

Anabela Marisa Azul propõe-nos uma caracterização do sobreiro e do montado

do sobro em Portugal. O conceito de vulnerabilidade atravessa toda a análise da

autora, dado o aumento do declínio e da morte súbita do sobreiro em Portugal nos

últimos anos, ainda que o montado seja considerado um exemplo de sucesso no

uso sustentável do solo na Europa. Com efeito, o montado combina um alto nível de

produção e conservação, justamente considerados como exemplares à luz dos

actuais padrões ecológicos e ecossistémicos. Como mostra a autora, trata-se de

uma vulnerabilidade que resulta de factores que vão das alterações no uso do solo,

ao estabelecimento e aumento da agressividade de agentes patogénicos, ou mesmo

a situações de stress hídrico. Paradoxalmente ou não, o texto revela-nos como as

novas dimensões socioecológicas da paisagem – o turismo, a caça associativa ou a

exploração de produtos silvestres –, correntemente mais associadas a um uso

extensivo do território, nem sempre jogam a favor da redução do risco, da incerteza

ou da imprevisibilidade. Na proposta apresentada, Anabela Marisa Azul sustenta

que apenas uma análise profunda das inter-relações entre os agentes ecológicos,

económicos, sociais e ambientais, associada a uma identificação das condições de

vulnerabilidade e de sustentabilidade, pode ajudar a compreender o fenómeno

estudado. Para tal, mobilizar o diálogo entre a ciência e outros saberes, assim como

favorecer contextos que permitam modos de actuação colectiva, são parte da

resposta que permite salvaguardar a resiliência do ecossistema em causa.

O ensaio de Hélder Raposo debruça-se sobre a ‘suposta’ padronização das

práticas médicas a partir da análise da emergência e da consolidação da Medicina

Baseada na Prova. O autor problematiza as dinâmicas de reconfiguração da

profissão médica, num contexto de crescente importância da dimensão científica na

8

organização e na prestação dos cuidados de saúde. Entre defensores e críticos

desta tendência, o autor procura mostrar os limites de um modelo que tem como

objectivo conferir mais objectividade e validade aos processos de decisão clínica

através de critérios epidemiológicos, entendido como requisito fundamental para a

eficiência e eficácia dos recursos e investimentos em saúde. Hélder Raposo

questiona igualmente as narrativas de esvaziamento de autoridade e de perda de

autonomia no julgamento clínico, assim como as referentes ao processo de

proletarização e desprofissionalização da prática médica. Para o demonstrar recorre

a casos específicos, contrapondo à crescente ênfase na padronização médica o

carácter dinâmico e processual da produção e implementação de padrões. Não

ignorando as pretensões universalizantes, o autor sustenta que o ‘local conta’.

Levando em consideração a tendência para a padronização, para o reforço dos

protocolos e das guidelines e, ao mesmo tempo, a proliferação de novos discursos,

racionalidades e práticas regulatórias, o texto propõe um procedimento negociado

de padrões que interrogue a capacidade da homogeneidade de superar diferenças.

Será o protagonismo crescente das dimensões técnicas e tecnológicas

‘canibalizador’ da renovação médica que decorre das práticas quotidianas?

Ainda no domínio da análise de práticas profissionais, Vera Borges leva-nos

para o terreno das artes performativas. Partindo de um estudo sobre actores e

bailarinos, procura perceber se género e idade são factores explicativos da sua

situação profissional. Levando em linha de conta as estratégias de formação

associadas a cenários de forte incerteza de inserção profissional, que podem

atravessar carreiras inteiras, preocupa à autora delinear os efeitos da idade e do

género na capacidade de permanecer ou não no mercado de trabalho. O inquérito

foi a metodologia escolhida para aferir sobre o trabalho no mundo das artes,

independentemente da relação exclusiva, ou não, dos inquiridos com o teatro ou

com a dança. Os dados parecem confirmar, mesmo em realidades sociais bastante

diferenciadas, que a idade é o ‘filho imperfeito’ para as mulheres, seja pelo factor

envelhecimento no caso do teatro (o rareamento de papéis disponíveis afigura-se

determinante), seja pelo factor ‘desfavorecimento’ no caso da dança

(independentemente do maior número de mulheres, as condições de trabalho

tendem a ser menos satisfatórias). Contudo, e como bem mostra Vera Borges, a

dimensão explicativa mais relevante nas artes performativas é a incerteza como

estado permanente: por um lado, ‘alimenta’ até certo ponto a ‘chama’ criativa – pelas

opções ‘forçadas’ que dela decorrem; por outro, é também ela que elimina,

selecciona trajectórias de vida de homens e mulheres e de novos e velhos. Nesta

óptica, as artes performativas não ficam longe de outros mundos do trabalho e os

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trabalhadores performativos aproximam-se de outras categorias profissionais

caracterizadas pela precariedade. O teatro e a dança são, deste modo, palcos

privilegiados para analisar dilemas sociais e económicos dos tempos que correm.

‘A escrita é uma casa que visito mas onde não quero morar’, diz Mia Couto.

Elena Brugioni leva-nos a esse mundo feito por quem o frequenta e a reinventa.

Este texto propõe um itinerário crítico pela obra de Mia Couto e reflecte sobre a

língua enquanto meio de representação estética e política. A escrita do autor

configura, no entender de Elena Brugioni, uma prática de desconstrução institucional

e ‘instrucional’ da língua portuguesa. Um ‘português outro’ ou uma língua libertada

do ‘pacto exclusivo com uma única nação’ tornam a escrita de Mia Couto, na opinião

da autora, um exercício de ‘subversão linguística’ – que pode ser entendida numa

linha mais vasta de intervenção que caracteriza genericamente as literaturas

africanas homoglotas no período pós-independência. Esta acaba por configurar-se,

também, na construção de uma ‘moçambicanidade’ literária. Sendo identificáveis

modalidades de desconstrução e descolonização na sua obra, ela não pode ser

esvaziada do seu carácter individual e criativo – ‘as sabedorias que ganhamos

apenas se de nós mesmos nos soubermos apagar’, parecem ilustrá-lo. Couto leva a

língua até um ‘desmaio gramatical, em que o português perde todos os sentidos’. É

neste contexto que a tradução é um conceito tão importante para compreender a

obra deste autor e a forma como usa a sua escrita. A lógica da autenticidade

linguística e cultural saem neutralizadas na sua obra, configurando-se como um acto

de manipulação que, apesar de ‘acontecer’ na língua, a ultrapassa. O texto literário

é, a partir desta perspectiva, um lugar de enunciação da diferença por excelência,

um exercício de descolonização simbólica, em que a partilha do idioma se assume

como o derradeiro ‘rasto do império’. À língua pode-se-lhe levantar as saias e

experimentar a pele, abrindo todo um campo de recepção da obra literária que é

marcado por dicotomias e enunciações que suscitam reacções diferenciadas, mas

nunca inócuas.

Isabel Estrada Carvalhais leva-nos ao centro da ‘visão institucional’ europeia em

matéria de gestão da imigração, para desvendar as tensões e os compromissos que

lhe estão subjacentes. A ‘máquina’ europeia trata da questão migratória como uma

técnica de gestão de fluxos de entradas e de saídas, mas é atravessada por tensões

éticas não resolvidas. O predomínio de uma lógica liberal nunca permitiu

verdadeiramente ultrapassar a tensão entre o compromisso com os direitos

humanos e as premissas de funcionamento de uma sociedade capitalista. É assim

que, na perspectiva da autora, se compreende a manutenção de uma relação

complexa e difícil com o ‘outro’, o imigrante, e a incapacidade de o ver como parte

10

integrante de um ‘Eu’ plural. Os discursos políticos oficiais produzidos no seio das

instituições europeias têm, por isso, revelado incapacidade de gerir essa tensão,

prevalecendo muitas vezes uma ‘ética burguesa obediente’. A ‘fractura colonial’

permanece, mesmo que as histórias concretas dos países com o seu passado

colonizador se tenham transfigurado. É também por tudo isto que continua a ser

difícil responder à pergunta do que é ‘ser-se europeu’ ou se perpetua a não reflexão

sobre as consequências das opções da UE em matéria de gestão dos fluxos

migratórios. Afinal, o que nos dizem elas? Isabel Estrada Carvalhais mostra ainda

que, numa Europa que enfrenta o desafio do declínio populacional, a manutenção

de um modelo que separa a ‘imigração que se quer’ da ‘imigração que não se quer’

apenas alimenta um cenário onde a imigração ‘ilegal’ continua a sair ‘mais barata’ –

tem o custo da aceitação pública, mas evita os da integração e da cidadania.

Marta Araújo

Laura Centemeri

Marisa Matias

Ana Cordeiro Santos

e-cadernos CES, 10, 2010: 11-36

11

A CONTESTAÇÃO PELO CORPO. A REALIDADE PROSAICA DAS POLÍTICAS GESTIONÁRIAS

NUMA FÁBRICA DE MOBILIÁRIO

BRUNO MONTEIRO

INSTITUTO DE SOCIOLOGIA, UNIVERSIDADE DO PORTO

Resumo: O esforço de explicar e compreender os efeitos que a “modernização” e as “novas tecnologias” têm sobre os diferentes operários exige encarar a fábrica como universo existencial e como configuração de poder. Este artigo procura, primeiro, explorar as condições de possibilidade e os processos específicos de aquisição, conservação e transmissão de uma maneira de ser, ver e fazer particular à “arte”, um “saber de cor” intuitivo e incorporado que resiste às tentativas de explicação intelectualistas. Depois, é prestada uma atenção particular à interrogação sociológica das experiências de contra-socialização e des-envolvimento que podem representar as “mudanças”, mesmo aquelas na aparência puramente técnicas e organizacionais, trazidas pelas “novas” políticas gestionárias. Palavras-chave: etnografia, incorporação, operariado, fábrica, mudança tecnológica e organizacional.

INTRODUÇÃO

A conjuntura económica mais recente da indústria do mobiliário – a contracção do poder

de compra dos clientes; a letargia do mercado nacional, muito por culpa da

“desaceleração” do sector da construção civil; a intensificação da concorrência

internacional; e, por tudo isto, a multiplicação de falências – confere uma pertinência

inaudita a estratégias empresariais orientadas para a maximização da “produtividade” e a

redução dos “custos com pessoal”, destinadas a contrariar a “elevada fragmentação”

deste sector produtivo, pulverizado em pequenas empresas de “cariz familiar, com pouco

acesso a capitais”, entravadas em termos tecnológicos e gestionários (cf. Relatório

Indústria do mobiliário, AEP, Janeiro de 2005, 4)1. Estas tendências gerais de

1 O sector das madeiras e do mobiliário atravessa, segundo os representantes de associações patronais, um

período de rápida e intensa transformação. Desde 1994, desapareceram 30 a 40 por cento das empresas e

Bruno Monteiro

12

reestruturação do espaço económico da indústria do mobiliário são refractadas pela

configuração de relações de poder específica de cada empresa. Na medida em que

“cada particularidade contém uma generalidade, cada regime de fábrica particular é o

produto de forças gerais operando a um nível societal ou global” (Burawoy, 1985: 18). A

partir deste ponto de vista teórico-metodológico, uma empresa pode ser entendida como

uma caixa-de-ressonância que, pelo seu funcionamento como espaço social englobado,

retraduz nos termos específicos da sua legalidade interna os condicionamentos históricos

e socioeconómicos englobantes. Esta pesquisa sociológica escolheu uma fábrica de

mobiliário no Noroeste português – a empresa K.2 – como posto de observação

socioterritorial dos processos de desestruturação e reestruturação económicas que estão

em curso neste segmento industrial.

A gerência da empresa K. procurou corresponder, especialmente a partir de 2005,

coincidindo com a chegada de um novo gerente, aos constrangimentos e às solicitações

do “mercado” através de um processo de ”modernização” quer do sistema técnico da

produção, quer dos dispositivos de regulamentação utilizados pelos agentes da

administração. Na empresa K., localizada no seio de uma região industrial tradicional, o

advento deste inédito modo de organização empresarial passou pela elevação do ritmo

de trabalho, permitida pelo incremento de mecanização em diversos segmentos do

processo produtivo e pela introdução de novos materiais (convenientes aos novos

cerca de 50 por cento da mão-de-obra do sector. Apesar do presidente da associação industrial do sector, considerar “ainda não se ter alcançado um grau de concentração suficiente”, actualmente o sector “está melhor em termos tecnológicos, mais inovador, com um menor número de empresas”, demonstrando-o numa “melhoria da produtividade” (Madeiras: sector solicita novo estudo sobre competitividade portuguesa, Jornal

de Notícias, 25 de Junho de 2008). “A saturação do mercado interno, potenciada pela quase paralisação da construção civil, o grande motor do mobiliário, está a lançar o caos no sector. As quedas no volume de vendas, ao nível do mercado interno, atingem já os 50%. Números preocupantes, se se tiver em conta que apenas 10% das empresas têm capacidade exportadora” (“Mil empresas de mobiliário abrem falência em cada ano - Crise na construção e China constituem as principais ameaças ao sector”, Diário de Notícias, suplemento Negócios, 23 de Maio de 2005). Ernesto Romano, à altura director-geral desta associação empresarial, adverte para os problemas causados por esses “inimigos” das empresas portuguesas” que são a concorrência chinesa e dos países de Leste, esclarecem-se as razões de “este ser um sector onde têm fechado várias fábricas nos últimos anos” (segundo o título da notícia “mil (…) em cada ano”). Nesta notícia, de 2005, afirmava-se ainda que “o cariz quase familiar de muitas delas [das empresas de mobiliário] é um dos entraves à expansão para o exterior” e que “a estratégia de produtos a baixo preço será o fim de muitas empresas do sector”. 2 A empresa K. dedica-se ao fabrico de mobiliário habitacional, reunindo as sucessivas fases do processo de

produção: fabricação mecanizada de componentes pelos “maquinistas”; montagem semi-artesanal por marceneiros; acabamento e envernizamento; expedição para os revendedores, que comercializam, para o público, os seus móveis. A empresa tem 35 trabalhadores, está relativamente bem equipada em termos tecnológico, e possui uma gerência profissional e não exclusivamente familiar – características relativamente raras no âmbito local. O recenseamento industrial dedicado ao sector do mobiliário no Concelho Y contabilizava, em 2005, 1166 empresas, 258 delas na Freguesia Z, onde está situada a empresa K. No geral, tratam-se de micro-empresas (em média, cada qual conta com 8 trabalhadores; 851 empresas têm 10 ou menos trabalhadores), extremamente voláteis (436 foram criadas nos dez anos anteriores à realização do estudo), com uma estrutura produtiva tradicional (como evidencia a reduzida presença de trabalhadores administrativos – 827 num total contabilizado de 8439 – e a subcontratação generalizada dos serviços de gestão financeira – 973 empresas estão nessa situação) e dedicados sobretudo à revenda e à subcontratação (912 empresas afirmam dedicar-se à revenda, 836 empresas não têm exposição própria, 742 fazem móveis por medida).

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

13

“estilos” de “linhas direitas” do mobiliário contemporâneo); pela redução de porosidades

no tempo de trabalho (e. g. fixação do trabalhador ao posto de trabalho por via de regras

a proibirem as deslocações e as conversas, eventualmente sujeitas a “multas” ou

“castigos”); pela intensificação da vertente disciplinar dos dispositivos de controlo

hierárquico dirigidos à vigilância dos corpos e dos discursos operários na fábrica (mesmo

que à custa da relativa erosão da vertente pessoal baseada nos “favores” e “respeito”

mútuos entre trabalhadores e encarregados); e pela crescente racionalização e

formalização dos processos de trabalho (e.g.: instruções de produção escritas) e por

novas políticas de gestão da produção (zero stocks, just-in-time). Para ultrapassar os

limites definidos pelo economicismo e pelo tecnologismo, a investigação sociológica

deste novo “regime de fábrica”3 deve ser capaz de interrogar a “experiência vivida” da

fábrica (Estanque, 2000: 77).

Todo e qualquer processo de produção define os operários objectivamente, por força

da sua inclusão material no espaço físico e social da fábrica e em razão da natureza do

trabalho realizado, e contribui para moldar a sua subjectividade, mediante a experiência e

interpretação desse espaço e desse trabalho (Burawoy, 1985: 8). É indispensável não

separar a objectivação da subjectividade e a subjectivação da objectividade (Bourdieu

1989) no estudo dos locais de trabalho. Este artigo procura, primeiro, explorar as

condições de possibilidade e os processos específicos de aquisição, conservação e

transmissão de uma maneira de ser, estar e fazer particular à “arte”, um “saber de cor”

intuitivo e incorporado que resiste às tentativas de explicação intelectualistas. Depois,

procura compreender o modo como foi sendo quotidianamente recomposto, em paralelo

com a reorganização das técnicas patronais de vigilância e controlo do processo de

trabalho, o modo de coesão e de resistência do grupo operário e realizado o trabalho

individual e colectivo de memorização das relações de oposição e de concertação no

chão da fábrica. Por fim, tentar-se-á interrogar sociologicamente as experiências de

“contra-socialização” e “des-envolvimento” (Suaud 2009) que podem representar as

“mudanças” trazidas pelas “novas” políticas gestionárias, mesmo aquelas na aparência

puramente “técnicas” ou “formais”.

3 A noção de “regime de fábrica” compreende as duas dimensões da “política da produção”: as “relações de

produção”, ou seja, “a organização do trabalho tem efeitos políticos e ideológicos – quer dizer, conforme os homens e as mulheres transformam matérias-primas em coisas úteis, eles também reproduzem relações sociais particulares bem como uma experiência dessas relações”; e as “relações na produção”, “ao lado da organização do trabalho – isto é, o processo de trabalho – existem mecanismos de produção que regulam as relações de produção” (Burawoy, 1985: 7-8).

Bruno Monteiro

14

1. OFÍCIO DE SOCIÓLOGO, MÉTODO ETNOGRÁFICO

Compreender a contextura quotidiana da experiência social exige admitir a relevância da

carnalidade como dimensão mediadora na aquisição, transmissão e activação das

disposições a ver, estar e fazer específicas do operariado. Uma sociologia carnal, que

ambiciona situar-se no ponto de produção das práticas e dos agentes, implica da parte do

investigador uma “imersão tão profunda e tão duradoura quanto possível no cosmos a ser

investigado, a submissão às suas temporalidades e contingências específicas, a

aquisição das disposições incorporadas que ele exige e estimula, de maneira que

possamos compreendê-lo através da compreensão pretética que define a relação nativa

com o mundo – não como uma mundo entre outros mas como ‘lar’” (Wacquant 2005:

466). A etnografia sociológica realizada pelo autor ao longo de 2007 e 2008, envolveu a

observação participante na empresa K. (salientando-se a experiência como operador de

máquina durante 14 semanas) e a realização de entrevistas semi-estruturadas

aprofundadas a 35 operários da indústria do mobiliário (com uma duração entre os 60 e

os 300 minutos cada)4. Entendida como modo de pensamento sociológico em acto, esta

estratégia de pesquisa foi teoricamente orientada para o estudo das repercussões

silenciosas e aparentemente “naturais” das dinâmicas de (re)estruturação da fábrica

como lugar de socialização e de sociabilidade do operariado.

Uma sociologia dos processos de “afinação do corpo” (Goffman 1989: 125), esse

ajustamento tácito às asperidades e subtilidades do trabalho manual e aos ritmos ínfimos

e íntimos da vida em comum de um grupo de homens, permite desafiar o efeito de

evidência do mundo da vida, submetendo-o a um questionamento sociológico metódico.

A observação minuciosa da experiência vivida da fábrica, no fundamental constituída pelo

envolvimento prático e implícito nos acontecimentos do quotidiano fabril, o registo das

reacções às injunções invisíveis e às interdições silenciosas do local físico e social que é

a fábrica, sujeitando inclusive a sensibilidade, os pressentimentos e as emoções do

próprio investigador a um trabalho de descrição e reflexão, permite problematizar a

“naturalidade” de um modo de presença no mundo quotidianamente inquestionado (vd.

Katz e Csordas, 2003; Howes, 1990). Desta maneira, é possível trazer para o espaço

teórico de inquirição da sociologia toda essa dimensão tácita da fábrica que compreende

os barulhos e os odores, a comoção e o entendimento implícito entre colegas, os gestos

e as palavras na aparência mais insignificantes e rotineiras, aspectos que, precisamente,

4 As entrevistas foram conduzidas nas residências dos entrevistados, durante a semana à noite, depois do

trabalho, ou no fim-de-semana. Embora tenhamos realizado entrevistas a casais, as entrevistas consideradas para análise neste artigo dizem respeito, todas elas, a homens, operários especializados em diferentes segmentos do processo de trabalho (maquinistas, marceneiros, estofadores, etc.) e provenientes de distintos estádios etários entre os 16 e os 63 anos.

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

15

tendem a ser sistematicamente ignorados e desprezados por uma certa perspectiva des-

incarnada e des-contextualizada do mundo social.

Sob a função de comando da teoria e dirigido para as experiências concretas dos

indivíduos e grupos, “a observação participante pode examinar o macro-mundo através

do modo como este molda e, por sua vez, é moldado e condicionado pelo micro-mundo,

o mundo quotidiano da interacção face a face” (Burawoy, 1991: 6). No trabalho de

reconstrução teórica realizado a partir da observação participante, o método de caso

alargado surge como modo de articular a “compreensão” e a “explicação”, a dimensão

hermenêutica e científica da ciência social.5 O método de caso alargado procura,

precisamente, fazer “emergir generalizações através da teoria reconstruída”,

estabelecendo teoricamente a “significação societal” do contexto particular de observação

etnográfica (idem: 281). Aqui, desde logo, a análise sociológica da fábrica deve precisar o

seu posicionamento específico no âmbito e na conjuntura do espaço económico da

indústria do mobiliário. Enquanto “totalidade expressiva”, cada contexto social particular

refracta peculiarmente as dinâmicas estruturais que atravessam a situação sócio-histórica

englobante; o método de caso alargado esforça-se por “expor as macro fundações de

uma micro-sociologia” e por “perceber como essas micro situações são moldadas por

estruturas mais vastas” (ibidem: 282). Neste sentido, é indispensável, por um lado,

realizar a sua localização no circuito espacial de quadros de interacção relevantes para a

condição operária contemporânea. Efectivamente, a fábrica integra-se numa série de

locais territorialmente dispersos - a habitação familiar, o café, a equipa de futebol, etc. -

que colaboram simultaneamente para definir um modo de ser, estar e fazer. Por outro

lado, é necessário perceber a relevância da fábrica como espaço de socialização nos

trajectos e nos projectos singulares e colectivos do operariado.

2. “SABER DE COR”: INCORPORAÇÃO E SENSO PRÁTICO NA FÁBRICA.

“Aprender a arte”, professar a profissão, significa envolvermo-nos implicitamente num

trabalho de conversão e implicarmo-nos numa adesão subtil ao ethos colectivamente

transmitido e sancionado na fábrica (o “jeito”, a “pranta” e a “fama”). A incorporação

paulatina de esquemas práticos de acção, de visão e de percepção do mundo fabril, a

aquisição de uma competência social (“artista”) ao longo de uma trajectória “como

homem e como trabalhador”, é vulgarmente descrita recorrendo às expressões “ganhar

calo” e “ganhar corpo”. Pela mesma ordem de ideias, a inabilidade técnica e o

desajustamento ético são sancionados negativamente pelo insulto e ironia (“sapateiro”,

5 A “compreensão” é “a participação virtual ou actual nas situações sociais através de um diálogo real ou

construído entre participante e observador”; a “explicação” é “uma realização de um observador ou leigo [outsider] e diz respeito ao diálogo entre a teoria e os dados” (Burawoy, 1991: 3).

Bruno Monteiro

16

“carrejão” ou “serviçal”) ou pela inversão e estigmatização dos sinais físicos e morais que

constituem os mais seguros índices de grandeza e pureza oficinal (“lingrinhas”, “meio

homem”, “cachopo”, “bufo”, “boca suja”). “Aprender a arte” envolve uma pedagogia

inconsciente e mimética (“adquirindo a prática”, “aprendendo a ver”, “está tudo envolvido

(…) estamos a trabalhar e eu estou a ver aquele a trabalhar e estou a ver como ele faz”).

A aquisição, transmissão e sanção pelo colectivo de trabalho de uma “maneira de fazer

as coisas bem-feitas”, estruturada pelos princípios de classificação das coisas e dos

homens que compõem um idioma ocupacional, vincula insensivelmente todo um universo

de virtudes masculinas e artísticas directamente à destreza e postura corporal.

É sobretudo à margem de qualquer propósito deliberado, pela reiteração de

experiências quotidianas nos lugares comuns, que todo um sistema de propensões a

sentir, a fazer e a ver gradualmente se sedimenta nos corpos, gravando as marcas de

uma relação específica de revelação do mundo nos comportamentos e discursos

operários. É a partir desta “inclusão material – frequentemente despercebida e denegada

– e daquilo que ela implica, quer dizer, a incorporação das estruturas sociais sob a forma

de estruturas disposicionais, de possibilidades objectivas sob a forma de esperanças e de

antecipações, que eu adquiro um conhecimento e uma mestria [maîtrise] prática do

espaço englobante” (Bourdieu, 2003: 189). A “maneira de trabalhar” vai sendo

paulatinamente adquirida ao longo de uma imersão prolongada num universo de

incitamentos e constrangimentos, implicando posturas, gestos, atitudes que “a gente dia-

a-dia vai ganhando” ou “apanhando”, numa aprendizagem difusa sem a participação de

instâncias intencionalistas (“nem te lembras, nem te passa pela cabeça”). A experiência

pessoal dos processos objectivos de recomposição do espaço social da fábrica e da

comunidade compreende uma cadeia de processos de incorporação e de efeitos de

somatização que torna falaciosos dualismos que oponham irredutivelmente “objectivo” e

“subjectivo”, “singular” e “colectivo”, “corpo” e “mente”.

“Só mesmo experimentando fazer, mandando-te experimentar, tu vais

experimentando, avisando-te como tu fazes a maneira certa, dizendo: ‘mexe aqui,

não mexas ali’ e com o tempo tu é como se não decorasses aquilo, aquilo é como

se fosse automático, como se chegasses lá, tipo, não preciso de olhar para o

apertador, nem para o calcador, nem para a orla para metê-la no sítio. Sou capaz

de estar a falar para uma pessoa e afinar a orladora toda sozinho, na boa, ir ter pelo

rasgo, apertar o rasgo com a largura certa, meter o calcador certo e metê-la no sítio

certo para não falhar a medida, sou capaz de pôr isso tudo assim, sei lá, é como se

fosse o nosso corpo automático, já está tão habituado aquilo que chega ali, tse, tse,

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

17

já está feito, assim a falar para uma pessoa na boa. Nem em todas, há trabalhos

que não se faz tantas vezes, por exemplo, o orlador trabalha todos os dias, todo o

dia, agora há trabalhos que eu faço, tipo, há puxadores de linhas que já saíram há

algum tempo, há frisos da fresadora, há coisas que são aparelhadas que é preciso

ter mais cuidado e não temos tanto calo porque não fazemos aquilo diariamente, é

só mesmo semanalmente ou de quinze em quinze dias. (…) É como se eu não

precisasse… a minha cabeça não precisasse de pensar no que ia fazer, não

precisa-se de dizer: ‘agora mexo aqui, depois mexo acolá e eu ando aqui e empurro

isto para ali’, agora já não preciso de pensar nisso, chego lá e… é como se fosse

mesmo automático, estás ver? Como se fosse eu a própria máquina, eu faço aquilo

mesmo assim e fica sempre bem. (…)

Como eu te disse, [ganha-se] aquela cena do automático, estás a ver? Nós

chegamos lá, nós agarramos uma placa sempre assim quando se vai à frente, o U.

ao princípio agarrava assim [muda a disposição do gesto que faz com os braços].

Só fazes assim e já vês que cansa aqui e o caralho, enquanto assim [muda para a

posição inicial] estás sempre normalmente. (…) É como tu na primária aprendes a

escrever e agora escreves sempre da mesma maneira, tu não pensas na letra que

vais desenhar, como é que vais fazer uma letra, tu chegas aí para escrever o teu

nome e escreves, não é? Mesmo sem olhar, é como uma comparação isto, nós

ganhamos aquele ritmo mesmo, aquela coisa que nos leva da mesma maneira,

ganhamos aquela maneira que é a maneira mais fácil, menos cansativa e fazemos

aqui… fazemos daquela maneira. Funciona como, por exemplo, trabalharmos mais

depressa, não estarmos ali a pensar: ‘espera aí, agora vou pegar na placa, vou

levantá-la assim, virá-la para a esquerda, puxá-la para a direita e vou empurrá-la

para a colocar no sítio’, agora tu não pensas nisso, tu chegas lá pegas e empurras,

está feito, é isso. É mesmo com o tempo.” (F., maquinista, 21 anos, trabalha desde

os 16)

A iniciação ao ofício é realizada de modo prático, adquirindo, por incorporação

directa, um controlo prático dos esquemas corporais, emocionais, visuais e mentais. É

esta aquisição de uma competência corporal infra-consciente que define o agente

conhecido e reconhecido em qualquer universo social. Tornar-se trabalhador fabril

significa apropriar-se, por impregnação progressiva, visceralmente, da memória colectiva

da oficina. A assimilação é realizada através de uma disciplina, todo um “trabalho de

conversão ginástica, perceptiva, emocional e mental, que se efectua de um modo prático

e colectivo, com base numa pedagogia implícita e mimética que, pacientemente, redefine,

Bruno Monteiro

18

um a um, todos os parâmetros da existência” (Wacquant, 2002: 23). A exposição

constante às imputações banais da própria materialidade do lugar, ao barulho das

máquinas, à rugosidade própria dos objectos, aos ritmos e aos tempos habituais, esse

envolvimento anódino na fábrica, significa uma “mundanização” específica do aprendiz,

abrindo um modo de relacionamento particular com o que surge como relevante. As

reiteradas “chamadas de atenção” dos companheiros, as suas correcções e incentivos,

as suas censuras e elogios, que não são frequentemente mais do que insinuações (“meia

palavra basta”), resmoneios, esgares ou “tiques”, acabam por realizar um adestramento

contínuo e invisível, afastado de qualquer intenção deliberada ou premeditação explícita,

de maneira a interiorizar uma série de disposições inseparavelmente físicas e mentais.

Na “cumplicidade ontológica” entre a história incorporada e a história objectivada

funda-se “a relação dóxica com o mundo natal, essa espécie de empenhamento

ontológico que o senso prático instaura, uma relação de pertença e posse na qual o

corpo apropriado pela história se apropria, de maneira absoluta e imediata, das coisas

habitadas por essa história” (Bourdieu, 1989: 83). Na expressão de B, encarregado de 25

anos, “as pessoas já estão habituadas àquilo, já acham que é o normal ou até acham que

aquilo deve ser assim”. A experiência ordinária do mundo fabril funda-se na existência de

uma relação de pertença e de posse entre as condições de trabalho imediatamente

enfrentadas na oficina e os homens gerados em condições de existência que tornaram

inevitáveis, aceitáveis ou desejáveis as vicissitudes inerentes ao ofício. A persistência

deste encontro bem-sucedido é que garante que “as coisas são como são e como devem

ser”.

3. A DUPLA VERDADE DO TRABALHO OU A PAIXÃO E DESILUSÃO NO CHÃO DA FÁBRICA

“É a realidade, é o que nós temos, é o que nós somos”, disse-me um maquinista com 52

anos. A exposição precoce e reiterada ao universo social da “arte” possibilita uma

remodelação incessante do “corpo vivido” para o compatibilizar com as estipulações

temporais, físicas e cognitivo-emocionais específicas da fábrica. A concordância entre

vocação subjectiva e missão objectiva ajuda a explicar o “gosto” em cumprir aquilo para

que se nasceu (“isto nasce com a gente”), exercitando um “jeito” que oscila entre o dom e

o destino, expressando, como num movimento de criação a partir de si, uma “paixão” ou

“motivação” congénitas (“isso já vem com as pessoas”). O “orgulho” da “obra bem feita” e

“bem acabada”, o “gosto de trabalhar” e a “paixão pela arte”, estão intimamente ligados a

essa “maneira de trabalhar” fundamentalmente “artesanal” (por oposição a “industrial”),

na qual se “trabalhava as coisas com as mãos”, que foi “adquiri[da] ao longo dos anos”. O

“verdadeiro marceneiro”, como diz um marceneiro, é aquele que tem “paixão” pela arte e

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

19

a propensão necessária para reconhecer imediatamente o “valor” do trabalho. Ainda que

a devoção ao ofício signifique renúncia, despojamento e abdicação de si (“é trabalhar e

calar”, “o trabalho sai do corpo”, “tem que se vergar o fio”, “não se pode arrebitar cabelo”),

a lógica da arte realiza uma autovalorizarão e autojustificação do trabalho do operário ao

reconstituir em termos de “responsabilidade”, “respeito” e “orgulho” as exigências das

condições objectivas do quotidiano fabril e ao enfatizar o “gosto” e o “sacrifico” como

propriedades redentoras (“nunca falhei”, “gosto de cumprir”).

No entanto, a “paixão pela arte”, o investimento afectivo e a devoção sensual ao

trabalho que naturaliza ou eufemiza a elevada violência da fábrica, é sempre precária e

provisória. A adesão voluntarista ao trabalho, o envolvimento cooperativo na fábrica e,

em particular, o consenso em relação ao valor da “arte” e do “artista”, à legitimidade do

regime de poder oficinal e à hierarquia de prestígio no ofício, estão vinculados à

manutenção das condições históricas e sociais que asseguram a inquestionabilidade ou

plausibilidade da reprodução social da “arte”, em particular aquelas relacionadas com a

ordem do poder no âmbito da fábrica. O desaparecimento das condições de felicidade na

aquisição e activação de maneiras de ser, estar e fazer associadas ao regime da “arte”,

especialmente pelo que implicam de desvalorização da relevância económica, cultural e

simbólica da figura do “artista”, é vivido como uma experiência de negação individual e

colectiva. “Eu até pergunto: ‘Mas para quê é que eu andei a aprender tantas coisas?’”

(nota de campo 11 de Maio de 2007). O amplo reportório de acções individuais e

colectivas de contestação e resistência destes operários, pondo em acção múltiplas

variantes de descomprometimento conflitual e de tácticas de deflexão e inversão da

dominação, normalmente relacionadas com o domínio da “infra-política” (cf. Scott, 1990),

constitui um domínio fundamental de expressão das vivências da fábrica (analisado

pormenorizadamente em Monteiro, no prelo). Neste artigo, concentrar-me-ei em inquirir

sociologicamente sobre os modos incorporados de experiência operária das

transformações sociais da fábrica, com expressões técnicas e institucionais, ocorridas

simultaneamente a mais vastos e recentes processos de desestruturação e

reestruturação económicas.

Tradicionalmente caracterizada pela dureza e subordinação nas condições de

trabalho (“chegamos a ir trabalhar noites inteiras, chegamos a trabalhar trinta e seis ou

quarenta horas seguidas”), a indústria do mobiliário passa por um processo de

reestruturação apoiado, indissociavelmente, na introdução de novos métodos de

organização do trabalho e na introdução de procedimentos de trabalho progressivamente

mais formalizados e mecanizados. Levada a cabo em graus variáveis de intensidade

através do conjunto de empresas que compõem a economia local do mobiliário, a

Bruno Monteiro

20

aplicação desta “política de produção” corresponde a exigências de “competitividade” e

“produtividade” resultantes das injunções de um mercado altamente competitivo. Para

muitos operários, estas mudanças na organização do trabalho representaram, por um

lado, o advento de uma “forma de trabalhar mais rígida”, evidente na “sobrecarga” e na

“pressão”, que advêm da intensificação dos ritmos de trabalho, e na desestruturação das

modalidades de apropriação pessoal e colectiva do trabalho (“andar na brincadeira”,

“fazer de conta que se trabalha”, “pôr o trabalho à minha maneira”), que resulta da

extensão dos procedimentos hierárquicos de vigilância e controlo da acção produtiva dos

operários. Por outro lado, significaram a concretização de uma política gestionária que

“não tem reconhecimento do valor das pessoas”, convertendo as relações de dominação

de índole paternalista, fortemente pessoalizadas (“dar a cara”, “dar a palavra”, “não

deixava ninguém ficar mal”) e remetendo, ao menos metaforicamente, para a

reciprocidade entre “patrões” e “empregados”, em relações de dominação orientadas pelo

cálculo económico e por critérios técnicos (“só olham para o relógio”, “só pensam em

números”, “agora é só contratos”).

Quando “as máquinas fazem quase tudo”, os marceneiros tornam-se simples

“montadores de móveis”. A entrada na empresa e a progressão na “carreira” oficinal

passam também a depender da posse de outros recursos para além das “mãos”, do

“saber”, da “antiguidade”, da “fama” ou da “experiência” no ofício. A formação

profissional, os títulos escolares e a “juventude” (presumido índice de uma “maior

capacidade de adaptação”, da posse de “menos vícios” e de “menos burrice”) são

referências alternativas que disputam o monopólio do regime da “arte” e do “artista”. A

introdução de procedimentos de admissão formalizados (“entrevistas”, “currículos”)

reforça critérios que não são facilmente compatibilizáveis com a lógica das redes de

interconhecimento (as “amizades” e os “conhecimentos”) e que diminuem a importância

relativa da “fama” (ou da “má fama” como capital simbólico negativo) adquirida ao longo

de uma trajectória passada “ao banco”. A economia moral e sensual pela qual eram

garantidas e justificadas as margens de liberdade anteriormente existentes, por reduzidas

que fossem na realidade, vê agora serem ameaçadas as suas próprias condições de

possibilidade.

A produção de “mobília de série”, para lá das necessárias mudanças técnicas que

trouxe a introdução de máquinas automáticas e a formalização dos procedimentos

produtivos, implicou alterações na “carreira de marceneiro” e nas relações de força no

chão da fábrica. Actualmente, a socialização assente no contexto imediato de trabalho e

nas formas colectivas de transmissão e sanção do saber oficinal ocorre num momento

mais tardio da trajectória biográfica e passa a exigir um período de aprendizagem mais

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

21

curto em relação ao “aprender lentamente” que o significava “aprender a arte”, em que se

podia permanecer como aprendiz ao longo de toda a adolescência. Mesmo afirmando

que “a teoria é uma coisa, a prática é outra” e que “pode vir quem vier, a formação que

tire, se chegar à nossa beira eles não sabem trabalhar” (N., 47 anos, maquinista, a

trabalhar desde os 10), esta insistência deixa adivinhar a intuição de uma progressiva

subalternização relativamente às formas institucionalmente consagradas e valorizadas de

“formação”, fundamentalmente assente no “papel e caneta” (“os novos agora querem um

diploma qualquer”). “Eu penso que aquilo [formação profissional] é mais na teoria,

porque, na prática, eles não devem saber fazer nada, penso eu…” (R., marceneiro, 36

anos, trabalha desde os 14). No processo de trabalho imediato, o trabalhador tornou-se

mais facilmente substituível e relativamente supérfluo (“hoje em dia, elas [as máquinas]

dão trabalho a acertar, depois trabalhar nelas, qualquer um trabalha nelas”; “o

maquinismo usa menos pessoal, uma máquina faz muita coisa e antigamente para fazer

essa coisa era preciso seis homens enquanto agora um homem só com a máquina faz

tudo”).

Nota de campo 10 de Março de 2007 - M. C. [que é gerente na Empresa K] falou-

me hoje das mudanças que houve nas fábricas ao longo dos últimos anos: “Nós

não temos bem marceneiros, temos mais montadores. As peças colam-se,

encaixam. É como um lego. Antes era preciso fazer os malhetes à mão, cortar tudo

conforme os móveis. Agora, já chega tudo pronto, é só montar o móvel. Antes era

preciso 5, 4 anos, ou 2, conforme a capacidade de cada um, para aprender a arte.

Agora, em meio ano fica-se a saber tudo. E estas pessoas [marceneiro] pensam,

‘Fogo! Agora eles não precisam de mim! Eu, que ganho bem, que julgava que

estava como queria, afinal não. Não sou preciso para nada!’. E isto ainda é pior

para os maquinistas. Tu é que não sabes. Antes era preciso um bom tupiador, um

bom maquinista, que soubesse como usar os moldes, fazê-los, como se segura na

peça, como se abrem rasgos certinhos. Nós [Empresa K] nem estamos muito

avançados, com máquinas de ponta, que as nossas ainda são modernas [i.e. ainda

servem]. Mas agora, com a CNC, tu podes meter tudo no computador, que a

máquina faz tudo e tu até podes tar ali de braços cruzados, ela faz tudo. E agora

eles pensam, ‘Tou acabado. Vem para aqui um puto novo e tira-me o lugar…’. Eles

não se habituam, nem sequer têm pachorra para aprender tudo. Eles vêm malta

nova aí a chegar e nem sabem para onde se hão-de virar. Isto antes era quase

artesanal, agora já não é bem assim”.

Bruno Monteiro

22

“Já são as máquinas que trabalham mais, já não se trabalha tanto com o corpo” (M.,

maquinista de 44 anos, a trabalhar desde os 12). As opções na introdução de certos

dispositivos técnicos de produção, controlo e vigilância obedecem a princípios de

selecção que não são exclusivamente tecnológicos, mas que estão relacionados com

“escolhas” que “reflectem as intenções (impactos desejados) dos criadores [designers] –

intenções que reflectem a ideologia (frequentemente inarticulada e pré-reflexiva) e, desta

maneira, a posição social dos criadores” (Noble, 1979: 320).6 Torna-se mais saliente a

relativa obsolescência e superfluidade das técnicas do corpo “artísticas”, que dominavam

a execução e apreciação da “obra”. “Hoje em dia, as pessoas sabem mais de máquinas

do que de marcenaria, praticamente é assim.” (R., marceneiro de 36 anos, a trabalhar

desde os 14). A “transformação impressionante” do sector do mobiliário, diminuindo a

relevância da memória oficinal colectivamente partilhada e fisicamente incorporada pelos

trabalhadores no contributo para o processo de trabalho (“já agora existe maquinaria, já

agora existe material que praticamente não precisa das pessoas [trabalhadores]”), parece

acentuar a situação de desequilíbrio nas relações de poder.

“Os patrões não querem saber se tu tiveres algum problema, só olham para o

relógio, chegaste atrasado, não querem saber do problema que tu tiveste, não

querem saber do problema que tiveste, pá, eles não querem saber disso, só

querem saber que cumpriu o horário mais nada, não cumpriste o horário levas

castigo. (…) [Os patrões] não dão valor, não dão valor ao empregado, só querem

saber… só ver números, dividendos ao fim do mês, ao fim do ano, a firma produziu

mais xis sim senhora a firma está em alta. De quem é o valor? É do gerente. Os

empregados não têm valor, nem têm valor, nem, nem… (…) Eles não vêem isso, só

vêem dividendos para eles e mais nada, por isso é que a gente, às vezes, tem

conflitos com o gerente por causa disso, a gente fica revoltada porque eles… falam

com este, falam com aquele e, quer dizer, o valor é só deles? E eu, eu sou contra

isso porque eu acho que… Eu tenho uma maneira de ser, tentar ser o mais correcto

6 A investigação de David Noble mostra que o desenvolvimento tecnológico é um processo social “fundado no

histórico e no concreto” (1979: 320), que reflecte portanto “as particularidades do seu pano de fundo [setting]: o tempo, o lugar, os sonhos e propósitos e as relações entre pessoas” (idem: 318). Nesta perspectiva, para compreender as escolhas tecnológicas é preciso identificar o grupo social que comanda a sua concepção e aplicação, explicando o modo como estes agentes são capacitados com essa competência e o modo como chegam a realizá-la. Ao mesmo tempo, obriga a enxertá-las no contexto da sua concepção e aplicação, ou seja, examinar de perto as estratégias mobilizadas e as relações de conflito e conivência associadas a uma determinada estrutura social ou institucional. São as próprias entrevistas e as notas de campo relativas às conversas que mantive com gerentes e patrões da indústria do mobiliário que parecem indicar a existência de uma estratégia gestionária deliberada, dirigida contra o que é visto como “falta de profissionalismo” e de “organização” de trabalhadores com “vícios” e “manhosos” (entrevista a A. C., sócio-gerente de uma empresa de cadeiras com cerca de 80 trabalhadores), motivada pelas novas condições do “mercado” e facultada pelo contacto na formação académica ou profissional com versões vulgarizadas de técnicas de gestão “modernas”.

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

23

possível e acho que ele não é…Só o valor é que é dele, e quem fez a obra? E

quem pintou? Quem embalou? O quê? Essas pessoas não têm valor? Essas

pessoas não têm valor?! Isso é que é complicado numa empresa, o operário nunca

tem valor! Praticamente, isto é, mais ou menos, o que se passa nos outros lados,

mais, actualmente, [por]que eles dizem que há crise. Agora ainda mais, os patrões

não dão valor. Antigamente, o patrão ainda chegava ao fim do ano: ‘o ano correu

bem, sim senhora, vamos fazer um jantar, a firma paga’, ‘sim senhora’, fazia-se o

jantar todos juntos, ‘ao fim damos xis a cada empregado’, uma graça, agora

acabou. (…) Agora… acho que lá que não tem reconhecimento do valor das

pessoas, isso aí é que me revolta mais, não ter reconhecimento do valor da pessoa.

Eles não reconhecem o valor da pessoa, se cometeres um erro és logo posto na

cruz, [e] se fizeres quinhentas coisas bem não és reconhecido, o que me revolta

mais é isso. Isso não motiva as pessoas, não é?, quando não se reconhece o valor

da pessoa não há motivação…” (R., marceneiro, 36 anos, a trabalhar desde os 14)

A organização real da produção contrasta fortemente com os apelos e promessas do

discurso gestionário (“somos uma equipa”). “Há muitas firmas que querem uma amizade,

uma amizade, mas eles não humanizam nada, eles estão pouco se lixando para os

empregados, quando não estiver bem é uma cartinha, muda de ares ou muda de

emprego” (J., 36 anos, polidor). O desencantamento perante o trabalho é resultante da

repetição das “desfeitas” e das “chancadas”, expressões da decepção perante as

demissões da benevolência do patronato (“não se lembram”, “não querem saber da tua

vida”), que ao invés de corresponder às “aflições” e “sacrifícios” operários, encontra na

“crise” uma ocasião para perversamente realizar a “ganância”.

As práticas de gestão empresarial que enfatizam a “participação”, a “produtividade”, a

“flexibilidade”, a “iniciativa” e a “formação” dos operários atribuem e transferem para eles

a responsabilidade e autonomia na exibição e concretização destes atributos. Na medida

em que correspondem a expectativas e suposições de uma argumentação que é, na

aparência, puramente tecnicista ou exclusivamente individual (“competências”), que

parecem portanto excluir os efeitos mais evidentes da dominação social, os desvios a

estas provas de aptidão profissional e pessoal constituem signos da incapacidade,

inabilidade ou relutância individual em conformar-se aos modos de acção interiorizados

a-propositados e aos dispositivos exteriorizados que caracterizam uma empresa

“moderna”. Largamente assimiladas pelos próprios operários, especialmente pelos mais

jovens, que, ao longo de percursos escolares tendencialmente mais prolongados,

adquiriram uma deferência relativamente acrescida aos procedimentos escritos, a

Bruno Monteiro

24

incapacidade ou renitência em mostrar-se “participativo”, “produtivo”, “flexível”,

“empreendedor” ou “formado” não são senão percebidas como consequências da

autocondenação dos operários. Na economia moral do chão da fábrica, todavia, é

possível observar, na forma larvar e subterrânea das “intrigas de denúncia”, o surgimento

de narrativas apócrifas, anedotas agressivas e estórias blasfemas, que imputam a estas

mudanças à “cobiça” patronal. No entanto, ao serem transferidas da ordem do poder para

a ordem da personalidade (“não sabem”, “não percebem”, “é mais difícil para eles para

perceberem”), esses comportamentos e atitudes são, de um modo geral, lidas como

“reacções” passivas e transfiguradas em “problemas” pessoais.

Nota de campo de 2 de Junho de 2007 – [Fui a casa do Neca; lá, além de nós os

dois, da esposa e da sogra dele, estava o seu irmão Zeferino, maquinista, e com

cerca de 40 anos] “Ele [gerente] não quer pessoas, quer máquinas. Quando um

gajo der o tilt já sabe, é pegar nas malas e ir embora. É o que ele [João] diz: ‘Eu

tenho os compromissos com os clientes, quero lá saber dos teus problemas’. Ele

não compreende mais nada… Só lhe interessam os compromissos com os

clientes… Este mês tive de faltar, por causa de levar os meus filhos ao hospital. E

já sei, para ele é ‘Não me interessam os teus problemas, quero lá saber se morreu

alguém da tua família, quero é que venhas trabalhar’” (Declarações de Z.,

maquinista, em casa de um colega em comum).

Nestas circunstâncias, o “amor ao trabalho” é não só supérfluo como insensato. “Não

se pode estar a ganhar amor ao trabalho, se eu ganho amor ao trabalho, levo um

pontapé no cu e vou dar uma volta!”. Além disso, a lógica de reprodução do capital de

bondade e de confiança (vd. Sigaud, 1996) vê-se ultimamente ameaçada pelas

alterações estruturais do sistema económico e pelas mudanças na correlação de forças

interna à fábrica. O pressentimento de impessoalidade nas relações de dominação,

motivado pelas mudanças organizacionais na empresa (os “engenheiros”, as “fichas”, o

“controlo numérico”), pelas mudanças nas relações laborais (“contratos”, “entrevistas”) e

pela preponderância de entidades e mecanismos abstractos e anónimos (a “crise”, os

“juros”, “o centro de emprego disse-me para lá ir”, “reclamas, recebes uma cartinha de

lá”), contrasta com um estilo de dominação pessoal, fundado na honra e prestígio

paternalistas de “bom patrão” e na gratidão ou dívida moral dos operários. Foi o

desmantelamento deste mecanismo de conversão das graças patronais em gratidão

operária, desmantelamento simultâneo à formalização das relações laborais e à inovação

técnica do processo de trabalho em curso nos últimos anos, que acompanhou a ruptura

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

25

das afiliações com os homens e as coisas e para a erosão de sentimentos de pertença a

um determinado mundo da vida.

Esta tendência parece extravasar igualmente para o domínio das relações entre

companheiros de trabalho, enfraquecendo a coerção moral relativamente a noções de

pureza e perigo e deteriorando a convivência na fábrica (“não gosto de dar confiança ao

pessoal”, “há gente perigosa dentro da fábrica”, “só tão bem é a foder os outros”, “gosta

de estar sozinho, é mais fechadinho, (…) esse fica de lado porque quer, não quer dar

confiança, não vem para a nossa beira”). Por isso é que, quando ocorrem, estas

mudanças são frequentemente vividas como desonra e vergonha ou como despossessão

e enfraquecimento individual: por um lado, privação da “força moral”, como a coragem, a

frontalidade e outros sentimentos honrados afins, por outro lado, generalização do

“medo”, “do rabo no meio das pernas” e do “calar e comer”. O desmoronamento das

obrigações morais e da interdependência entre patrões, operários e os actos de trabalho,

ameaça a reprodução das virtudes, a ocultação dos interesses económicos de patrões e

operários (realizada pela sua transformação em relações de dependência e coerção

recíprocas), e a preservação do estatuto e prestígio pessoais apoiados nessa economia

da grandeza artística e masculina.

A perda de “amor ao trabalho”, ou a redução do trabalho ao estatuto de simples

expediente de sobrevivência, é vivida como uma violência contra si mesmo porquanto

representa a cessação de uma maneira de fazer que é também e sobretudo uma maneira

de ser. A conivência afectiva e sensorial entre espaço fabril e trabalhador-em-acção é

desarticulada por mudanças objectivas na organização do trabalho, nas formas

interpessoais, e sistema de oportunidades e constrangimentos económicos e culturais e

passa a constituir, tanto para aqueles que são colocados numa relação puramente

oportunista com o trabalho (“até me orientar”, “até arranjar melhor”, “quero é meter umas

massas ao bolso”), como para aqueles que são percebidos como não mais possuindo as

prerrogativas necessárias para realizarem plenamente esse envolvimento (“somos postos

de lado”), uma relação impessoalizada e geradora de sofrimento pessoal.

A ambiguidade e contradição manifestas no “gosto pelo trabalho” devem-se menos à

ignorância da exploração e dominação do que à sua vinculação a condições objectivas

de produção e conservação da grandeza do estatuto de “artista” que são elas próprias

contraditórias. A mudança de uma oficina “debaixo da casa” para uma fábrica “moderna”,

oferecendo condições ambientais inegavelmente mais qualificadas, é todavia descrita,

por um marceneiro, como equivalendo a “perder a liberdade”. “Era a convivência que eu

tinha, tinha a liberdade toda, fui para ali, vamos supor que eu perdi a liberdade (…), é

uma coisa fria, estava ali, por exemplo, quatro horas que eu ia para lá para mim

Bruno Monteiro

26

representavam seis…” (T., marceneiro, 32 anos, a trabalhar desde os 12). As antinomias

do “gosto” fazem com que seja possível preferirmos um trabalho mais duro ou um

ambiente mais hostil que assegure o “valor” do operário, economicamente na forma de

uma “ordenado de homem” (nunca um “meio ordenado”) e simbolicamente como

contínua restituição da integridade pessoal e afirmação colectiva da “arte”.

“Eu cansava-me muito mais, trabalhava muito mais e era muito mais prejudicial à

saúde onde eu trabalhava do que agora, mas eu gostava mais de trabalhar onde

trabalhava, percebes? Porque eu fazia coisas… fazia coisas com as mãos. Eu

trabalhava… eu trabalhava a madeira com as mãos e hoje não, eu trabalho a

madeira com as máquinas, é completamente diferente, percebes? A gente faz as

coisas na máquina e antes eu fazia muitas coisas com as mãos, sabia o que era

trabalhar com uma garlopa ou com um gaipira ou com um raspador ou com o

martelo ou… essas coisas todas e, e lá não, lá a gente faz o trabalho nas máquinas

e as máquinas, máquinas, é tudo máquinas, percebes? Dava-me mais gozo

trabalhar como eu trabalhava do que trabalhar como trabalho agora, mas

reconheço que para a saúde ah… que é muito melhor trabalhar assim, muito

melhor…” (M., maquinista, 44 anos, a trabalhar desde os 12 anos).

A introdução de um regime de fábrica de novo tipo, quando ocorre a precarização

económica e social do operariado, vem perturbar as tradicionais “modalidades de

constituição da estima de si” dos operários (Pialoux, 1996: 14), fortemente apoiados na

auto-suficiência moral e física (“não gosto de me vergar ao patrão”, “enquanto tiver força,

não me falta onde trabalhar”, “sei bem o que valho como artista”) e relacionadas com

variadas formas de resistência às coacções produtivistas que procedem da hierarquia

administrativa e da cadência do processo de trabalho. Em resultado das transformações

das condições dentro e fora da fábrica, reduzem-se as margens de manobra que

permitiam o surgimento tanto dessas maneiras visíveis e invisíveis de desafiar e pôr em

causa a dominação, como dos rituais operários de sociabilidade e de actualização dos

recursos identitários fundamentais ao nível individual e colectivo enquanto fundamentais

qualidades humanas: a “força física”, o álcool, o “orgulho”, a “responsabilidade” enquanto

obrigação e garantia de virtudes, a “vaidade” e o “gosto” no trabalho “bem feito”, a

“pranta”. A manutenção da imagem de si e a defesa contra a desumanização do trabalho

industrial (“não somos pretos”, “não somos bestas de carga”) são comprometidas e,

dessa maneira, acrescida a probabilidade do trabalho ser cada vez mais experimentado

sob o registo da ofensa, da desmotivação e da desilusão. O sentido de si e a auto-estima

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

27

individuais são irremediavelmente afectados na medida em que são confrontados com

situações objectivas que denegam e vilipendiam o valor dos seus portadores (“a gente

sente-se acabado”) ou invalidam as possibilidades de realização da “necessidade

existencial” (Pollak e Heinich, 1986: 3) de conferir coerência e continuidade a uma

história pessoal, preservando-a e reafirmando-a no meio de um momento de ruptura com

o mundo habitual.

4. A CONTESTAÇÃO PELO CORPO. UMA INVESTIGAÇÃO SOCIOLÓGICA DA DOR COMO

TRANSCRIÇÃO OCULTA.

Estes operários do mobiliário reportam-se às dimensões tecnológica e organizacional das

mudanças verificadas nas fábricas para salientarem as implicações dessa transformação

na vivência quotidiana das relações sociais na produção e para evidenciarem as suas

repercussões emocionais e viscerais, esforçando-se, neste caso, para pôr em palavras

uma experiência geralmente inefável. Os processos de precarização social do

operariado, especialmente dos segmentos entretanto submetidos a uma maior usura do

capital corporal e incorporado (“é uma questão de força, energia, porque as pessoas mais

velhas já começam a ter problemas”) e colocados perante a desvalorização,

desadequação ou impossível reconversão dos esquemas de acção, percepção e

apreciação do universo fabril (“não evoluiu, ficou sempre naquilo, bloqueou”, “nem todas

têm a mesma capacidade para acompanharem a mudança”), inibem, dificultam ou

impedem o acesso a formas subjectivas socialmente mediadas e actualizadas que são

reconhecidas como confirmatórias da dignidade viril e oficinal (“ser alguém”).

Este processo torna manifesto o modo como “a formação do sentimento, da

consciência e do hábito social dos indivíduos” é relacionada com as estruturas sociais e o

nível de integração social (Elias, 2004: 255). A desvalorização objectiva do “valor” dos

operários é interiorizada e vivida em termos de contínua inferiorização social e da perda

das possibilidades de afirmação de si. A intensificação dos ritmos e da disciplina no

processo de trabalho (“colocou-lhe tempos”, “é aquela pressão, ‘vou-te pressionar, vou-te

apertar, vou berrar contigo, vou-te chamar nomes!’”) juntamente com a gradual

amplificação da dissonância existente entre o espaço das posições e o espaço das

disposições (“ele não desenvolve, bloqueou, foram muitos anos a fazer o mesmo”) geram

uma situação em que a sensibilidade humana colapsa para dentro de uma forma

empobrecida de existência. A “complicação da vida” surge por força do contacto reiterado

com “terrenos de negação que persistem fisiologicamente através de uma experiência

constante de dor e tensão” (Charlesworth, 2007: 13). O “medo” e a angústia ampliados a

todos os pequenos nadas da vida, a incessante vigilância sobre a dureza e a hostilidade

Bruno Monteiro

28

do meio circundante (“ficava logo preocupado”) ou, então, a busca de des-absorção e

desimplicação relativamente a uma realidade impositiva (“até parece que não quer

saber”), estão relacionados com a desestruturação da existência e a deterioração da

relação com o mundo dos agentes sociais colocados em determinadas situações sociais

(“mudou para um sistema diferente (…) e dizem que o homem não dava rendimento”).

Da submissão a uma experiência progressiva de despossessão, que inverte o rito de

instituição e a investidura “como homem e como artista”, outrora realizado ao longo da

trajectória biográfica, é salientada a natureza de despojamento, insulto e conspurcação

que ela assume para os operários (“cagar na cara a um homem”, “correu-nos como

cães”, “usa-nos como chiclas”, “calca os empregados”). Ao impedir a manutenção e

reprodução dos modos de apropriação mimética, de aquisição pessoal e de incorporação

física do universo de virtudes que esses mesmos trabalhadores representam em forma

viva, o “novo sistema de fazer móveis” define os contornos de uma situação de privação.

Pela implosão destas modalidades práticas e ante-predicativas da ética, estética e

técnica sensualmente condensadas na carne dos trabalhadores, que são constitutivas do

quotidiano operário e quotidianamente re-constituídas, a mediação carnal da existência

torna-se objecto de experiência para o sujeito que ela mesma fundamenta, objectifica-se,

de maneira que o corpo constitui o nexo pelo qual se revela e em que se inscreve a

vivência da negação e frustração económica e simbólico-cultural de um determinado

grupo social.

“Hoje para dar, tem de ser bem espremido” (N., maquinista, 47 anos). Para “espremer

o lucro” é preciso, simultaneamente, elevar o nível de intolerância à superfluidade e ao

“desperdício” e intensificar o ritmo de trabalho, o “andamento”. Este “novo sistema de

gestão” e este “novo sistema de fazer obra” adquire uma concreção que implica

integralmente, “a nível psicológico e a nível físico”, os agentes que neles participam. O

advento dessa “meia ditadura” ao chão da fábrica (na expressão usada por R.,

marceneiro, 36 anos, a trabalhar desde os 14) representou também a imposição de

novas “regras sem lógica” envolvidas no discurso da maior eficiência e racionalidade do

processo de trabalho. Estas novas modalidades de enquadramento dos trabalhadores

revelam a mesma violência das relações de poder paternalistas (“o patrão anda lá

sempre a berrar e a humilhar”), mas solicitam uma inédita rede de compulsões inspiradas

pelo rigorismo e pelo cálculo. A transição mais ou menos súbita para novas formas de

gestão da mão-de-obra e de organização da produção compreende “diferenças que

muitas pessoas sentem e vêem” no “convívio” e no “ambiente de trabalho”, em casa

(“neste momento não tenho vida nem para mim, nem para os meus amigos, namorada,

família, não tenho tempo para nada”) e nos cafés (“ninguém me atura”) - mas também no

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

29

próprio corpo e mente (“cansaço”, “é à base do suor das pessoas”, “ataca muito o

psicológico”).

“Ó pá, cada vez mais empresas estão a fechar, a reduzir pessoal, a reduzir

ordenados, ah… devido a uma quebra da produção que houve, fala-se numa

quebra de mais de metade… Pela experiência que tenho, pelo dia-a-dia e porque

também vou falando com outras pessoas, ah… cada vez isso começa a ser com

mais força. E aquilo que nos está a acontecer [na Empresa K] é a redução do

horário e cada vez estamos sujeitos a um stress, a uma pressão maior, não é?

Porque a procura [de emprego] aumenta quando há mais desemprego, então isto

leva a que as pessoas novas que entram tenham ordenados mais baixos e começa-

-se a notar uma pressão por parte da entidade. Não estou a falar por experiência

própria, mas é aquilo que oiço, por exemplo… Para o meu pai, para pessoas de

mais alguma idade, já começam a ter aquela pressão de dizer: ‘se não estás bem,

põe-te!’, ‘se queres ir embora, vai!’, ‘a porta de saída é aquela!’, e… e sempre esse

tipo de… e eu acho que cada vez vai ser pior. [Mas é assim para toda a gente, em

todo o lado?]

O desemprego para as pessoas que têm, em média, 50 anos está… está a mesmo

a aparecer, porquê? Porque essas pessoas não têm disponibilidade ou vida para

terem formações, para terem um curso, normalmente, rejeitam quando os patrões…

assim o querem, não é?, e então é mais um motivo que as pessoas dão para que

eles possam usar… Por exemplo, isso é muito fácil, começam [os patrões],

começam ‘ah, você não está disposto a fazer um esforço pela empresa, nós

estamos aqui a tentar ajudá-lo… com a sua formação e para o seu futuro’, mas a

gente sabe que não é nada… Se é vantajoso para uma empresa que esteja, por

exemplo, certificada, dizer que os empregados estão formados nisto ou naquilo,

para estatísticas e não sei quê, isso começa a acontecer, não é? Mas uma pessoa

com cinquenta anos, que trabalhe, por exemplo, oito horas por dia, ou seja dez ou

seja aquilo que for, que chegue a casa é claro que não tem aquela disponibilidade

de ir para uma formação… Eu vou e custa-me, não é?, uma pessoa chega a casa

às oito horas, nem janta, é tomar banho, um gajo vai directo, sai de lá às onze, é

um bocado complicado! E fazer isso uma semana aguenta-se, uma ou duas

semanas, agora quando é meses, meses seguidos, faz-se uma formação de 90

horas e dá quase três meses. Aquilo é uma rotina, é uma rotina que tu… É possível

as pessoas conseguirem, mas vão ter que tirar tempo noutros sítios, vão ter que…

Outras pessoas pagam por causa desse desgaste, desse stress. Aliás nós

Bruno Monteiro

30

tínhamos um caso lá na empresa que… um homem tinha cinquenta anos e o stress

dele era tal… que andava sempre stressado e então… era o mundo a fugir-lhe

pelas mãos e ele a ficar cada vez mais… a ficar mais desgastado e… aconteceu

essa situação que o meu gerente mandou-o embora, não é?, mesmo por causa

disso. [Podes explicar-me essa história melhor?]

O senhor chamava-se senhor L., ele veio embora de uma empresa lá vizinha,

estava lá há trinta anos e… por esse motivo, por causa da idade, de ele trabalhar lá

há muitos anos, começaram a… ele depois começar a ter lá alguns problemas, ele

começou a faltar, mas… Foram as pessoas que começaram a pressioná-lo, por

exemplo, pô-lo a fazer outras funções e… funções que, normalmente, são os

aprendizes que fazem e, isso é duro, não é?, para uma pessoa quando tem 30

anos de uma casa e que está num patamar que tenha o seu ordenado, que tenha

as suas coisas, que tenha tudo e comece cada vez mais a diminuir, a cortar… E

esse homem tomou a atitude de sair, e veio para a nossa beira. Estava lá bem, mas

depois com os problemas que ele começou a ter… [Que tipo de problemas?]

Do género, ele começou… a estar sempre preocupado porque nós não

trabalhamos pela folha, trabalhamos à peça. Ele estava sempre a fazer as contas e,

e… a ver quanto este ganha, quanto aquele ganha, quando ele ia receber, estava

sempre preocupado com as horas, com o transporte, com o almoço, estava sempre

a tentar negociar comigo, se eu… dava mais isto, mais aquilo, ‘ah, se me ajudasse

aqui, se me ajudasse ali’, eu dentro daquilo que era possível tentava ajudá-lo, não

é? Até mesmo os próprios funcionários tentavam ajudar, mas ele pensava que

estava toda a gente contra ele, que fui eu ou que foi o gerente ou… As pessoas

tentavam ajudá-lo, diziam-lhe as coisas, ‘faça assim…’, tentavam explicar, e ele:

‘não, eu faço assim porque acho melhor!’, e não era nada melhor, então começou a

ter problemas. Começou bem mas depois começou a complicar para ele. Por causa

desse tipo de situações. [Mas porquê?]

Não consigo perceber! Ele… penso que aquilo que ele começou a pensar que

estava a funcionar mal foi por uma situação… Normalmente, as pessoas tinham

direito a dois, três dias de férias à escolha e esses dias nunca foram descontados e

na altura foram, então… mas ele estava lá há pouco tempo e não sabia… então a

partir daí começou ‘já estão a começar, já estão a fazer isto, já estão a fazer aquilo’,

e… (…) E assim com pequenos conflitos, e acho que só foi mau para ele, porque

ele estava ali numa empresa… uma empresa normal, as coisas estão todas legais,

tinha a sua própria roupa, tinha… tinha tudo. Almoçava lá e tudo! Pronto, começou

a complicar-se a ele próprio… Começou-se a falar que ele tomava medicamentos e

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

31

tudo. Começou-se a falar não! Depois descobrimos que ele tomava medicamentos

para… porque teve um esgotamento e depois… Ele estava constantemente

alterado porque… ele, às vezes, parava com a medicação um dia ou dois e… e eu

dava com ele completamente parado, a falar sozinho, mesmo a… mesmo com

problemas. Acho que para bem dele, e para nosso bem que estávamos ali a tentar

ajudá-lo e ainda estávamos a ser acusados… tivemos que pôr um ponto final nisso.

[O que é que foi feito?]

O senhor A. trabalha à maneira dele, trabalha mal, mas… mas é assim, é um

homem que desde que veio para a minha secção tem melhorado… eu costumo

dizer isso a ele e ele concorda… parece-me que não é preciso de fazer pressão…

É um homem que está ali, está a fazer um trabalho de ajudante, desenrasca. Se eu

detecto algum problema, ele fica logo preocupado, se foi ele, se não foi, e… porque

ele é outra pessoa do género, passa a vida preocupado com tudo, se acontecer

alguma coisa de mal tem medo que ele [seja] o primeiro a ser… a ser prejudicado.

(…) Antes só chorava, isso é uma coisa que não pode acontecer, não é?, um

homem não pode fraquejar, nem chorar em frente a um superior que seja mais

fodido… que tenha uma forma de trabalhar diferente da minha, não é? Porque é

assim, se calhar, ele dantes chorava de nervos, mas para a outra pessoa [refere-se

ao outro encarregado], que eu conheço bem, aquilo era uma brincadeira, percebes?

Pôr o homem a chorar era uma brincadeira, coisas que…é impensável da minha

parte fazer isso. [Como é que isso aconteceu?]

Ele foi para lá [para a secção de produção] porque chegou a um ponto em que eles

iam… em que o meu superior começou a pensar e colocou-lhe tempos e tudo para

fazer ele desistir… Uma solução era ele ir-se embora, mas como foi preciso um

ajudante de maquinista na minha secção, eu então, por conhecer o homem e por

ter algum respeito por ele, pedi para que ele viesse para a minha beira. Porque ele

ia lá, de vez em quando, ajudar. Ele como já tinha um conhecimento mínimo

daquele trabalho e é um trabalho fácil, que é de moço, ah… lá foi desenrascando.

Ele vinha embora, se não fosse eu a falar para ele ficar… Porque ele era mais lento

do que os outros e… estava a não dar produção… (…) E então, e assim, qual era a

solução, era ele [o encarregado] começar a descobrir as partes piores [na secção],

então como o homem se mantinha sem mudar, há que usar outra táctica que é a

pressão, ‘vou-te pressionar, vou-te apertar, vou berrar contigo, vou-te chamar

nomes!’, que isso aconteceu várias vezes, coisa que eu nunca fiz, nem à minha

frente admito que se faça… E foi por aí, depois foram acusá-lo ao gerente, o

gerente, claro, ficou do lado do encarregado. E as coisas começaram-se a

Bruno Monteiro

32

complicar, ao homem foram-lhe postos tempos, o homem começou a bloquear,

chorava e… até mesmo… chegou-se a dizer que ia embora, e ele próprio chegou a

dizer que ia embora. E é como eu digo, como eu tenho algum respeito já por ele,

disse: ‘vamos experimentar pô-lo à minha beira, vamos ver como ele se porta,

senão der, não dá…’ Ele agora anda ali muito mais bem-disposto. É um homem,

por exemplo, que deixou de ter problemas das tensões. Contou-me isso, que

nestes últimos sete meses, tem tido um controlo normal. Antes tinha problemas de

tensões. Tomava medicação e tudo, por causa disso. Ele vai, semanalmente, ao

posto médico fazer, fazer o controlo. E isto foi dito por ele e pelo filho dele que

trabalha lá, connosco.

Ele, um dia chegou lá, foi quando foi a altura dos aumentos, foi agora em Maio ou

Abril, chegou lá e disse-me: ‘olhe, é assim, eu tive um aumento bom, não sei se o

chefe teve alguma coisa a ver com isto, mas eu também fico contente por duas

coisas, primeiro porque fui aumentado, e depois porque ainda hoje foi ao médico e

o médico deu-me os parabéns, porque eu tenho as tensões boas, e isto tem a ver

consigo!’, prontos. Ele deu a opinião dele sobre aquela situação, que achava que

eu tinha alguma coisa a ver com isso. Não sei se é verdade, pode ser, ajuda

sempre, mas…

E até uma vez, uma senhora veio ter comigo, que era a mulher dele e eu nem

sequer fazia ideia, e ela veio-me agradecer… Veio-me dizer que o marido não tem

nada a ver, que… que está sempre a falar bem de mim e que… e que está mais

alegre, e o caralho, e queria-me agradecer porque antes em casa ninguém o

aturava, ele estava sempre a chorar em casa, sempre… Que agora já está uma

pessoa diferente. Que ele… está muito mais aberto para ela, mais amigável, está

muito mais calmo, muito mais… muito bem-disposto. Ele é como outra pessoa,

quando não tem problemas tudo lhe corre bem, não é?, quando lhe corre mal é

porque tem algum problema. E foi isso, foi isso. Que inclusive, agora, fui convidado

para o casamento do filho, nem estava à espera… [risos] ele, por acaso, trabalha

comigo e tudo, mas o filho dele está numa secção que não é a minha, mas

convidou-me a mim, ao P. [outro encarregado] e ao encarregado dele não, que era

o encarregado do pai, percebes?” (B., 25 anos, encarregado, trabalha desde os 14)

O homem que “chora de nervos” demonstra a presença imanente de uma relação

diminuída com as possibilidades de resposta das solicitações quotidianas da existência e

a improbabilidade de dominação sobre o tempo, especialmente a incapacidade de

antecipação e planeamento do futuro. Em sentido contrário, a recuperação das condições

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

33

que tornam viável o “respeito” em relação a si próprio e plausível a exigência de

“respeito” dos outros perante si, possibilita a reabilitação da “boa disposição”, da “calma”,

da “abertura”, e de uma relação “amigável” com a existência (“andar de bem com a vida”).

As “tensões” constituem um índice pelo qual se avalia o grau de interiorização de tensões

originadas pelas assimetrias sociais, pelo estado das relações de poder ou pelas

discrepâncias surgidas de desajustamentos estruturais produzidos ao longo de uma

trajectória singular ou colectiva. “As circunstâncias económicas e sociais afectam a saúde

através dos efeitos fisiológicos dos seus significados emocionais e sociais e através de

efeitos directos das circunstâncias materiais” (Marmot e Wilkinson, 2001: 1233). O

enfraquecimento das afiliações sociais associado à privação relativa, resultante dos

constrangimentos materiais decorrentes da posição subalterna ocupada na estrutura

socioeconómica e da experiência de subordinação ou despromoção na hierarquia de

estatuto social, “mete-se debaixo da pele” (idem: ibidem).

A penibilidade das condições de trabalho e a degradação do convívio na fábrica, a

consciência do desgaste prematuro do corpo e a antecipação do envelhecimento (“a

maior parte deles [polidores] é isso, 45, 50, 55 anos eles estão todos cancerosos”, “a arte

que nós temos sei que daqui a meia dúzia de anos vai dar-nos cabo da saúde”), a

vulnerabilização objectiva e subjectiva dos operários (“ninguém dá valor a um homem”,

“um gajo desanima”), tudo isto são factores que influem no reforço do sentimento de

destituição e de impotência que irradia no conjunto das suas condições de existência.

“Nós temos que ganhar dinheiro, tenho as contas para pagar, tenho o carro, tenho a

casa, eu para mudar de ares não sei se vai ganhar um ordenado…”. Os “compromissos”,

as “despesas” e os “encargos” associado à aquisição de casa e viatura próprias, os

“gastos” com a educação dos filhos e com as “coisinhas que se vão comprando para se

ter” acabam por determinar uma atitude de consentimento não consentido (“que remédio

aceitarem”) e frequentemente vivido perplexa ou indignadamente.

Embora amplificado segundo as linhas da morfologia interna do grupo operário, a

rarefacção e fragilização na generalidade das posições operárias corresponde a

experiências pessoais de inferioridade e descrédito. Nesta conjuntura, a privação de

acesso às formas reconhecidas de ser surge associada à concentração cumulativa de

características pessoais negativamente percebidas (especialmente traços linguísticos,

aparência física, consumos alimentares). Ambas são correlativas da situação objectiva de

privação em termos de recursos materiais e simbólicos (“ter”) e da ocupação de uma

posição na estrutura socioprofissional (“estar no pó”, “trabalhar no serrim”) que inviabiliza

ou inibe a solicitação de “respeito”. Nestas condições, é supérfluo o investimento em

formas interpessoais de distinção (“não vale a pena estar com grandes ambições”), que

Bruno Monteiro

34

só podem ser vistas como actos de ostentação e de “sair fora das medidas” (“ter a mania

das grandezas”, “pensa que tem o rei na barriga”, “é um armante”), e diminuem as

possibilidades de adquirir reconhecimento social (“ser alguém na vida”). É toda uma

vivência empobrecida relacional e pessoalmente que envolve estes agentes (“isto não é

para quem quer, é para quem pode”).

Para numerosos operários, esta experiência assume os contornos de uma

redução ontológica ou uma amputação das significâncias sociais, quer dizer, emerge

como intuição não-explícita e não-codificada da posse e possibilidade de consumar

gestos e posturas que constituem, simultaneamente, uma indicação da “evidência

[markedness]” possuída e uma “pretensão” relativamente ao “valor” e ao

“reconhecimento”. “Através dos padrões da sua incorporação, as pessoas irradiam

significâncias e exercitam o seu valor diferencial” (Charlesworth et al., 2007: 57).

Engendrada pela precarização das posições sociais do operariado, esta é uma realidade

que é frequentemente descrita em termos de empobrecimento, irrealização e perda na

relação individual com o trabalho, com o futuro, com a intersubjectividade e com a

existência (“sem motivação”, “não ter ânimo” ou “andar desanimado”, “não guardam

respeito”, “não reconhecem o valor”, “isto agora não é futuro para ninguém”, “perdi o

amor aos patrões”, “perder o gosto”). Promove-se, paralelamente, uma reinvenção em

termos exclusivamente utilitaristas desses relacionamentos (“a maioria não trabalha por

gosto, só tá aí porque tem que trabalhar”, “hoje é só o dinheiro, querem lá saber, é bota

pá frente”). “Estou desanimado porque não dão valor, não dão valor à gente” (A., 63

anos, maquinista, antigo marceneiro). Estes indícios de desagregação das afiliações

pessoais e das formas interpessoais de decência colectiva e disposições solidarísticas

denunciam uma transformação, quer nos relacionamentos entre os agentes sociais

economicamente inseguros, quer no modo como eles se vêem a si mesmos, que não

pode deixar de ser vivida como particularmente violenta e humilhante.

O exercício de relatar a diminuição da auto-estima e a dissolução identitária através

de “idiomas locais de sofrimento”, na forma de emoções, angústias e (pre-)sentimentos,

constitui uma manifestação e um modo de “articular o sofrimento social e narrar

transformações pessoais e colectivas” (Kirmayer et al., 2000: 613). Precisamente porque

todos “estes acontecimentos danosos não estão codificados como conhecimento

declarativo mas antes ‘inscritos’ no corpo, ou então, constituídos no decurso de relações

sociais, papeis, práticas e instituições persistentes” (idem: ibidem) é que as formas de

violência exercidas sobre a continuidade pessoal e colectiva do operariado são anónimas

e impessoais aos olhos dos operários e a sua verbalização é difícil, hesitante e precária.

É desta realidade que surge a necessidade e a justificação da inclusão no programa de

A contestação pelo corpo. A realidade prosaica das políticas gestionárias numa fábrica de mobiliário

35

investigação científica da sociologia das classes sociais a observação, descrição e

explicação das irradiações e expressões corporais dos operários.

BRUNO MONTEIRO

Sociólogo, investigador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto e colaborador

do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Actualmente,

encontra-se a concluir o seu doutoramento sobre “a incorporação da vocação militante”,

ou seja, os modos socialmente diferenciados como, ao longo da segunda metade do

século XX, indivíduos provenientes de distintos grupos sociais – operariado,

“intelectualidade” e burguesia” – adquiriram uma propensão e uma aptidão a intervir

politicamente.

Contacto: [email protected]

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e-cadernos CES, 10, 2010: 37-69

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A CULTURA POPULAR PORTUGUESA E O DISCURSO DO PODER: PRÁTICAS E

REPRESENTAÇÕES DO MOLICEIRO

CLARA SARMENTO

CENTRO DE ESTUDOS INTERCULTURAIS

INSTITUTO SUPERIOR DE CONTABILIDADE E ADMINISTRAÇÃO, INSTITUTO POLITÉCNICO DO PORTO

Resumo: O presente ensaio estuda um objecto e o discurso por ele evocado, enquanto representação, invenção e re-invenção da cultura popular de uma região portuguesa. Contudo, pretende também ver através do objecto, isto é, “atravessar a [sua] opacidade inoportuna”, tal como propõe Michel Foucault em A Arqueologia do Saber. Esse objecto é o barco moliceiro da Ria de Aveiro que, mais do que um caso de tradição versus modernidade, constitui uma representação da identidade cultural de uma comunidade intimamente ligada ao ecossistema lagunar. Os painéis do barco moliceiro são assim representações simbólicas intersemióticas dos valores, práticas e representações partilhadas pela comunidade local. Os textos icónicos e escritos patentes em cada barco são produto de uma rede de circunstâncias políticas, ideológicas, sociais e económicas, dificilmente reconhecidas mesmo por aqueles que desenham, pintam e escrevem (e vivem) sob a sua influência. Ao longo do século XX, o moliceiro e seus painéis participaram numa complexa dialéctica entre as representações do discurso oficial e a sua real função social, económica e simbólica, gerando todo um imaginário histórico, todo um “inventário” (cf. Gramsci) que motivou, contextualizou e sustentou esta forma única de arte popular. Palavras-chave: Ria de Aveiro, barco moliceiro, cultura popular, poder, discurso, representação.

1. O BARCO MOLICEIRO: MEIO-AMBIENTE, PRÁTICAS E METODOLOGIAS

O barco moliceiro tem como campo de acção a Ria de Aveiro, amplo estuário do rio

Vouga que se estende ao longo da Beira Litoral portuguesa, entre Espinho e o Cabo

Mondego ou, em termos mais amplos, numa zona geográfica situada a sul do Porto e a

norte de Coimbra.1 A área ocupada pelo estuário é de aproximadamente 66 quilómetros

1 Com quarenta e sete quilómetros de extensão, a Ria de Aveiro atinge uma largura máxima de sete

quilómetros, apesar do seu progressivo assoreamento. A profundidade varia entre um e dois metros e pode elevar-se nas cales até quatro a seis metros. Abrange uma superfície líquida calculada em seis mil hectares, que se ramifica pelos braços principais de Ovar (em direcção ao Norte), Mira (voltado a Sul), Murtosa (a

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quadrados, na maré baixa, e de 83 quilómetros quadrados, na maré alta, o que faz da Ria

de Aveiro o maior estuário lagunar costeiro do país. A laguna é separada e protegida do

Atlântico por uma extensa barreira arenosa, hoje em dia densamente populada, onde

coexistem o turismo sazonal, a pecuária e a agricultura.

De fundo plano e pequeno calado, o barco moliceiro é construído em madeira de

pinho. Apresenta bordos largos e baixos, quase à flor da água, e uma inconfundível proa

muito recurvada, em meia-lua, acabando numa ré também ligeiramente arqueada. Os

meios de propulsão tradicionais são a vela (de formato trapezoidal, em lona), a vara ou a

sirga. Hoje em dia, é frequente acrescentar-lhe um motor fora de bordo. Apesar de as

primeiras referências documentadas sobre o barco moliceiro datarem da primeira metade

do século dezoito, isso não significa que os moliceiros não existissem anteriormente;

significa apenas que este artefacto popular e as práticas a ele associadas não haviam

sido até então reconhecidos pelas autoridades políticas e religiosas, i.e., letradas.

O barco moliceiro é o tipo de embarcação destinado à colheita e transporte da

vegetação da Ria de Aveiro, ocupação conhecida pelo termo popular de “apanha do

moliço” e serve também para o transporte de mercadorias, bens, pessoas e gado. O

“moliço”, nome vulgar que abrange, sem distinção de espécies, as plantas que

constituem a vegetação submersa da Ria, é utilizado como fertilizante na transformação

das dunas em terra de cultura, no contexto de uma agricultura de subsistência,

escassamente mecanizada, organizada em minifúndios familiares. Contudo, é importante

realçar que, acima de tudo, este tipo de barco foi concebido para um tipo de agricultura

praticado num ecossistema peculiar – a laguna – que é, ao mesmo tempo, rio e mar, terra

e água. Os moliceiros são ferramentas agrícolas, tal como o carro de bois ou a charrua.

Figura 1: Barco Moliceiro na Ria de Aveiro (2002).

Nordeste) e Vagos (a Sudeste). Além destes, existe uma infinidade de braços secundários em ligação com os rios Vouga e Águeda, formando um extenso labirinto com as suas ilhas, canais, valas e esteiros que penetram por toda a região.

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

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O termo moliceiro é também tradicionalmente associado àqueles que trabalham a

bordo da embarcação: o proprietário do barco e/ou um ou mais trabalhadores

assalariados (“camaradas”) e/ou um aprendiz (“moço”), organizados numa hierarquia

muito informal. O proprietário do barco tanto pode ser um agricultor a recolher algas para

as suas terras, como um vendedor profissional de moliço. No entanto, estamos

essencialmente a falar de uma população de camponeses pobres, obrigados a

complementar o seu rendimento com a pesca ocasional na Ria, a agricultura em pequena

escala e a criação de algum gado, juntamente com outras ocupações sazonais ou

temporárias. A maioria dos proprietários tem apenas um moliceiro, que geralmente troca

de dono diversas vezes durante as duas décadas de duração média do barco. Contudo,

sempre ocorreram excepções, como no caso dos pequenos e médios proprietários

agrícolas, que podiam manter o barco na sua posse indefinidamente, ou mesmo adquirir

até uma dezena de moliceiros, operados por assalariados. Aqueles que trabalhavam

directamente nos moliceiros faziam-no porém em condições de extrema precariedade.

Não surpreende, portanto, que a emigração maciça ocorrida na região durante as

décadas de 60 e 70 tenha levado consigo a maioria dos trabalhadores-moliceiros, o que

sentenciou o fim da indústria tradicional do moliço.

A função do moliceiro tem-se alterado profundamente nas últimas décadas. De

instrumento indispensável para a economia de toda a região, passou a ser uma simples

atracção turística, um símbolo a preservar consoante a boa vontade e as possibilidades

financeiras dos proprietários. A poluição, a evolução económica e a emigração afastaram

as pessoas deste estilo de vida peculiar. Os fertilizantes químicos substituíram as algas,

anteriormente usadas para a fertilização dos solos arenosos, a indústria do sal perdeu

grande parte da sua importância e as estradas tiraram o lugar do moliceiro como principal

meio de transporte das populações do litoral. Dos cerca de mil moliceiros registados na

Capitania do Porto de Aveiro em 1935, sobrevivem hoje menos de quatro dezenas. A

construção naval quase cessou, devido à grande vaga de emigração de finais de 60 e da

década de 70, mas a partir de meados da década de 80 os moliceiros ressurgiram como

símbolos culturais. As autarquias e outras entidades locais públicas e privadas estão a

encomendar, com uma frequência crescente, novos moliceiros aos artesãos

sobreviventes, para serem utilizados no turismo e em visitas guiadas pela Ria, para

exposição em museus locais e internacionais, ou para exibição pública num canal

aveirense, como exemplo de património cultural.2 A tradição do moliceiro não está

2 Contudo, a crise económica actual forçou as autoridades locais não só a cancelar ou a diminuir as

encomendas, mas também atrasou o pagamento de muitas delas. Durante o ano optimista de 1998 (o ano da Expo98) a Câmara Municipal de Aveiro encomendou cerca de 25 novos moliceiros, mas esse projecto está actualmente suspenso.

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destinada a desaparecer, pois a embarcação foi adaptada a uma nova realidade social e

económica, assegurando, assim, a sua sobrevivência e até eventual crescimento em

número. Caso contrário, se os moliceiros e seus proprietários tivessem persistido em

trabalhar apenas num tipo de actividade rural já obsoleta, a embarcação estaria

sentenciada a uma morte inevitável.

A característica mais original do moliceiro é o conjunto de quatro painéis distintos que

lhe adornam a proa e a popa, com pinturas características em cores vivas (azul, amarelo,

verde, vermelho, preto, branco), legendadas por uma frase escrita à mão. Os painéis da

proa acompanham a curvatura do “bico”, enquanto os da popa apresentam-se sob uma

forma mais ao menos rectangular. Ambos possuem uma cercadura brilhante de várias

faixas coloridas, constituídas por flores e figuras geométricas. Existe uma grande

variedade nos temas expostos nos painéis de um moliceiro, em estilos que vão desde o

traço mais tosco e grosseiro, até imagens de cuidada elaboração. O decorador, ao

mesmo tempo construtor ou “entendido” na arte, chamado para o efeito, realiza as

pinturas espontaneamente ou por sugestão dos proprietários das embarcações. Nesse

caso, alvitra-se um tema ou um mote predilecto, que o decorador ilustra consoante a sua

imaginação e talento.

O estudo de mais de quinhentos painéis, registados durante períodos regulares de

trabalho de campo entre 1988 e 2004, confirmou a existência de cinco grupos principais

de imagens e inscrições, com várias subcategorias: Jocosos (eróticos, sátira às

instituições, a figuras típicas e ao trabalho); Religiosos (cristológicos, marianos,

hagiográficos e votivos); Sociais (retratando o trabalho; varinas e varinos; mestres

moliceiros, barqueiros e pintores; apelos ecológicos e de celebração do património; festas

e cerimónias; declarações e sentenças); Históricos (imagens de monarcas e personagens

da História; Descobrimentos; escritores; soldados e cavaleiros); e Lúdicos (com

referências a contos populares, televisão, cinema e futebol).

Figura 2: Painéis de Moliceiros (finais da década de 90).

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

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As comunidades isoladas e dispersas, como a dos agricultores-moliceiros,

desenvolvem geralmente os seus próprios códigos, mitos, heróis e padrões sociais. No

presente caso, essas comunidades criaram um objecto cultural distinto, que usa códigos

pictóricos e linguísticos em simultâneo, sistemas semióticos coexistentes que criam um

fenómeno sem paralelo na cultura portuguesa. Este fenómeno simboliza tanto o confronto

como o compromisso entre a comunidade e o mundo exterior. Neste caso, “uma

população que pinta os seus barcos e os lança nas águas de uma lagoa, cria um álbum

de imagens através do qual expressa a sua visão do mundo” (Rivals, 1988: 254).

A primeira etapa da pesquisa para esta investigação consistiu num trabalho de

campo participativo, levado a cabo na Ria de Aveiro entre 1988 e 2004. Procedeu-se ao

registo fotográfico das embarcações e realizaram-se entrevistas com os construtores e

pintores sobreviventes, bem como com antigos operários da indústria artesanal do

moliço. As imagens dos barcos e das práticas envolventes anteriores aos anos 80 foram

obtidas em colecções e museus públicos e privados, nacionais e locais. A etapa seguinte

consistiu na pesquisa sobre as embarcações em museus, arquivos, jornais, paróquias,

câmaras municipais e outras instituições relevantes, nacionais e locais. O principal foco

desta pesquisa incidiu na iconografia, documentação turística, mapas, jornais e

regulamentos locais, livros escolares e literatura popular. Os Livros de Registo de

Embarcações – uma colecção de livros manuscritos existente nos arquivos da Capitania

do Porto de Aveiro que cobre praticamente todo o século vinte (entre 1914 e 1998) –

tiveram grande importância para o projecto, tal como teve a correspondência oficial entre

as autoridades locais e o poder central, durante o período compreendido entre a década

de 40 e 1974, preservada nos Arquivos Histórico e Municipal de Aveiro. Além destas

fontes, também os vários trabalhos publicados a partir de finais do século dezanove,

relacionados com o moliceiro e a Ria de Aveiro, foram avaliados criticamente.

2. CONDICIONANTES HISTÓRICAS E IDEOLÓGICAS DA CULTURA POPULAR PORTUGUESA

Entre Maio de 1933 e Abril de 1974, Portugal viveu sob um regime autoritário conhecido

como Estado Novo, inspirado nas ideologias fascistas e chefiado por António de Oliveira

Salazar (1889-1970). Este regime substituiu a sequência desordenada de governos que

sucederam à Primeira República de Outubro de 1910 e a uma breve ditadura militar,

entre 1926 e 1933.

Oficialmente neutro durante a II Guerra Mundial, apesar das óbvias simpatias

fascistas, o Portugal de Salazar empenhava-se na salvaguarda das colónias (o que

resultou numa trágica guerra colonial entre 1961 e 1974) e na neutralização de qualquer

tipo de oposição em território nacional. A tentativa de Salazar de organizar a nação, em

Clara Sarmento

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termos espaciais, ideológicos e sociais, torna-se evidente em três momentos diferentes

mas complementares: na constante descrição laudatória das províncias metropolitanas e

ultramarinas e suas características vagas, artificiais mas distintivas; na generalização das

crenças e costumes do colectivo “povo”; na rigorosa distribuição, divisão e hierarquização

dos papéis sociais. Nada é deixado ao livre arbítrio do actor social, tudo é

predeterminado e aceite com alegria singela, espírito de sacrifício e honrada resignação.

As ideologias autoritárias tendem a ser simplificadas de forma a transmitir princípios

claros e inquestionáveis, em que o exercício do poder é apresentado como algo natural e

legítimo, e qualquer desejo de resistência como sendo fútil e inútil. De acordo com os

princípios autoritários, o dever de obedecer é tão simples e inevitável como um fenómeno

natural; como tal, os discursos políticos ideologicamente orientados valem não tanto pelo

conteúdo concreto das suas ideias mas, sobretudo, pela sua função disciplinadora. É o

que se passa com a paradigmática alocução de Oliveira Salazar, durante as

comemorações do décimo aniversário da Revolução Nacional, em 26 de Maio de 1936,

quando define as “verdades indiscutíveis” estabelecidas pela sua nova ordem:

Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos restituir o

conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a

Pátria e a sua história; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não

discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu

dever (Mattoso, 1994: 291 ss).

Assim, “Deus”, “Pátria”, “Autoridade”, “Família”, “Trabalho”, velhas bandeiras dos

discursos político-ideológicos das direitas autoritárias e conservadoras, foram

transformados em dogmas do Estado Novo.

Apesar de a ideologia poder apresentar-se como um conjunto de ideias coerentes,

surge mais frequentemente como uma compilação de princípios dispersos, provenientes

do senso-comum, sob uma variedade de formas e representações. Por isso, vale a pena

levar a cabo um estudo específico das formas de organização cultural que mantêm o

mundo ideológico em movimento dentro de um determinado país, bem como examinar a

forma como tudo isto funciona na prática real. As práticas e textos da cultura popular

operam dentro daquilo a que Gramsci chama de compromisso de equilíbrio entre poder e

consentimento – por outras palavras, dentro da hegemonia. Todas as relações de

hegemonia são, necessariamente, educacionais e ocorrem entre os vários grupos que

constituem a sociedade. O Estado exige consentimento mas também educa no sentido

desse consentimento. É o grande educador, cujo principal objectivo (pelo menos, de

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

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acordo com o seu discurso institucional) é criar uma civilização mais elevada e moldar a

cultura e os valores morais das massas populares, de acordo com a necessidade de

constante desenvolvimento da nação. O Estado, de acordo com Gramsci, é todo o

complexo de práticas e actividades teóricas que as classes dominantes utilizam, não

apenas para justificarem e manterem o seu poder, mas também para exercerem a sua

hegemonia e ganharem o consentimento das classes subalternas (Gramsci, 1971).

Como tal, os grupos dominados têm de ser persuadidos a aceitar que a sua

condição, as suas expectativas e dificuldades são inalteráveis e inevitáveis. Uma vez

convencidos de que nada pode ser feito para melhorar a sua situação, que permanecerá

eternamente imutável, as críticas e as aspirações dos grupos dominados acabarão

eventualmente por extinguir-se. Como afirma Pierre Bourdieu: “Toda a ordem

estabelecida tende a produzir (em graus muito diferentes e com meios muito diversos) a

naturalização da sua própria arbitrariedade” (1977: 164). Numa nação que deseja

regenerar e educar o espírito da época de acordo com essas verdades inquestionáveis, a

educação ideologicamente orientada, tanto impositiva como formativa e repressiva, é –

como veremos adiante – um dever sagrado de cada professor do sistema público de

ensino, um sistema estrategicamente purgado de todo e qualquer elemento subversivo

indesejado.

Durante os longos anos da ditadura, a cultura e as tradições portuguesas – genuínas,

ideologicamente orientadas pelo Estado Novo ou até inventadas – foram utilizadas para

inculcar no povo determinados valores e normas de comportamento, através da

reiteração, do exemplo e da instrução, de forma a enfrentar a ameaça de um mundo em

evolução. Estas práticas exploravam uma base ideológica artificial mas muito eficaz,

seleccionando um passado histórico conveniente ou um presente etnográfico. A cultura

popular tradicional, na sua forma “folclórica” ideal, era vista como o meio perfeito para o

Estado Novo reorganizar a sociedade. O resultado deste trabalho de domesticação,

denominado “folclore”, era extremamente útil para a estratégia ideológica do Estado

Novo. Esta estratégia discursiva seria alegadamente capaz de combater os perigos da

classe operária liberal e dos costumes urbanos com um modelo de celebração da vida

rural, que reduzia o conceito de “povo” a “camponês”, em que os lavradores, pescadores

ou artesãos eram os principais actores sociais. Esta estratégia redutiva era levada a cabo

com a colaboração voluntária dos etnógrafos próximos do regime que, nos anos 30 e 40,

não hesitaram em recorrer à apologia sistemática do primitivismo plebeu, do

analfabetismo, da humildade miserabilista e da docilidade bovina, como sendo as

características ideais do “bom povo português” (Silva, 1994: 112).

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A noção de “arte popular pura”, que caracterizava a vida quotidiana no ponto de vista

ingénuo e a-crítico dos etnógrafos do século dezanove, ia de encontro ao ideal de uma

nação rica em folclore e costumes pitorescos do regime de Salazar. A arte popular seria

uma forma de auto-celebração criada pelo “bom povo” – na sua maioria camponeses ou

pescadores profundamente religiosos, com vidas austeras e humildes. A exaltação do

artesanato, dos costumes tradicionais e dos meios de transporte rudimentares reflectia

um estilo de vida muito semelhante às condições de mera subsistência que o regime na

verdade proporcionava ao mundo rural português.

Durante o período do Estado Novo, formas de arte popular como os painéis do

moliceiro também faziam eco da mitologia oficial como consequência mais ou menos

directa da influência dos canais institucionais de educação e propaganda. Os

estereótipos ideologicamente orientados, enquanto parte da memória colectiva, eram

apropriados e reproduzidos pelas populações, que os adaptavam de acordo com a sua

experiência de vida e senso comum. No que à cultura do moliceiro diz respeito, o controlo

do Estado era exercido de forma quer directa quer indirecta: directamente, através da

supervisão, regulação, censura, manipulação e propaganda, principalmente por parte dos

representantes locais do poder central; e indirectamente, pela influência e ideologia do

ensino primário (universal e obrigatório) controlado pelo Estado.

Entre 1957 e 1964 – os anos mais repressivos do regime – até os painéis do

moliceiro, juntamente com a própria embarcação, tinham de ser registados (com

transcrição e descrição de frases e imagens) na Capitania local. Esta era uma forma

directa de controlo por parte do Estado, também usada para evitar mensagens

subversivas ou imagens chocantes em termos morais e políticos. Isto mostra como

qualquer veículo de comunicação e criatividade, incluindo a arte popular, era sujeito à

supervisão política e/ou à “censura oficial”, uma instituição que prevaleceu durante a

Segunda República e se manteve, sem interrupções, durante quase cinquenta anos,

entre Maio de 1926 e Abril de 1974.

Os coloridos moliceiros, excelentes símbolos do folclore local, inspiraram uma série

de eventos politicamente orientados, onde a cultura popular se transforma em

“entretenimento cultural” para consumo de um público externo, não-local. Os moliceiros

desde sempre haviam participado nos festivais religiosos populares ou “romarias”.

Inicialmente, serviam apenas de meio de transporte mas, nos anos 50, o seu papel

começou a mudar. Ao longo do século vinte, os artigos da imprensa local sobre as

festividades populares reflectiram as diversas (r)evoluções ideológicas, políticas e sociais

em curso. Durante as primeiras décadas do século, e ainda sob a influência dos

Românticos, emergiu um fascínio genuíno pela “beleza e ingenuidade” da cultura popular

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

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portuguesa. Com a implantação da República em 1910, e durante o período de

instabilidade política que se lhe sucedeu, as facções rivais locais apoderaram-se das

festividades populares e usaram-nas como armas políticas, acusando-se mutuamente de

mau planeamento, gestão e propaganda, em artigos profundamente sensacionalistas.

Mais tarde, quando o Estado Novo começou a reorganizar (isto é, a “normalizar”) a

nação, os poderes locais também manipularam as festividades populares, transformando-

as em celebrações artificiais do chamado “folclore”. Após uma limpeza moralizadora que

extinguiu quaisquer vestígios de práticas ancestrais,3 as autoridades católicas passaram

a exercer um controlo apertado sobre o aspecto religioso destes eventos.

Consequentemente, os artigos na imprensa criticavam as alegadas “práticas imorais

pagãs” e enfatizavam o crescente elitismo destas festividades modernas, “altamente

civilizadas e ordeiras”, que atraíam turistas e visitantes da classe média, vindos de todo o

país. Os seus actores e proprietários originais, a população local, tornaram-se

personagens secundárias, que actuavam para prazer dos visitantes.

Em Março de 1954, a Ria de Aveiro recebeu o primeiro Concurso de Painéis de

Moliceiros – criado, supervisionado e avaliado exclusivamente por representantes locais

do poder político – no qual os três barcos decorados da forma mais “típica” (isto é:

decorados com cenas idílicas da vida rural e frases inofensivas e cheias de erros)

recebiam grande atenção oficial e propaganda, e uma modesta recompensa monetária.

De acordo com Gramsci, esta estratégia de premiar as actividades individuais ou grupais

consideradas pelas autoridades como merecedoras de louvor e distinção, tem de ser

integrada no conjunto de acções “civilizadoras” do Estado, uma estratégia que é sempre

de pronto publicitada nos meios de comunicação oficial.

Figura 3

3 Tal como banhar em vinho tinto a imagem de madeira de um santo padroeiro local (S. Paio da Torreira), de

forma a obter protecção contra as maleitas. Esse vinho “sagrado” era posteriormente consumido em grandes quantidades, com previsíveis consequências.

Os 3 vencedores do 1º Concurso de Painéis de Moliceiros, Março 1954

(Fonte: Centro Português de Fotografia).

Quatro moliceiros a concurso, Abril 1962 (Fonte: Centro Português de Fotografia).

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O facto de existir um controlo indirecto, por parte do Estado Novo, da cultura do

moliceiro, através da educação e de uma ideologia orientada pela escola, requer alguma

contextualização. A República procurara, com escasso êxito, dignificar o ensino primário

e seus agentes; o Estado Novo agiu de modo inverso, desvalorizando com sucesso o

ensino primário. O ensino obrigatório foi, inclusive, reduzido pelo Estado Novo de quatro

para três anos, uma situação que se manteve até ao princípio dos anos 60. Os

professores primários (na sua maioria mulheres com baixas remunerações) eram

utilizados como veículos de doutrinação política e religiosa. O Estado Novo desvalorizou

a função educativa da escola, em favor de funções mais ideológicas e disciplinadoras. A

escola tornara-se uma ferramenta nas mãos do Estado, usada para ensinar virtudes em

detrimento de práticas ou conhecimentos úteis. Torna-se obrigatória a suspensão do

crucifixo sobre a cadeira do professor nas escolas do ensino primário público. É

igualmente obrigatório o canto coral, destinado a exaltar as glórias portuguesas, a

dignidade do trabalho e o amor à pátria. Sublinha-se a importância de instruir os alunos

sobre as colónias portuguesas, pois o Estado considerava que, se incutisse em todos a

noção exacta do valor do império ultramarino, a nação adoptaria uma atitude interna e

externa de defesa dos valores coloniais.

O livro de leitura oficial consistia num volume único, a nível nacional, um por cada

ano, e continha textos para leitura, uma secção de aritmética e uma longa secção de

doutrina católica – apesar de muitos dos textos para leitura consistirem já em orações ou

textos devocionais. O livro de leitura da quarta classe era um pouco diferente, em termos

de formato, dos outros três, mas com uma orientação ideológica semelhante e uma

mensagem política ainda mais forte, em lugar da doutrina religiosa elementar. Estes

livros, inspirados pelos manuais escolares italianos do período de Mussolini, eram

voltados para a criação de uma mentalidade colectiva nacionalista e católica. Publicados

pelo Ministério da Educação, sob rígida supervisão do governo, permaneceram

inalterados durante décadas, excluindo pequenas alterações a nível formal em meados

da década de 60 (Ministério da Educação Nacional, 1958a; 1958b; 1968).

Figura 4

Livro de Leitura da 1ª Classe (anos 50)

Livro de Leitura da 3ª Classe (anos 50)

Livro de Leitura da 4ª Classe (anos 60)

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

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Na maior parte dos casos, o único contacto com o objecto livro ao longo de toda uma

vida ocorria com o livro de leitura da escola primária, cujo valor e influência eram,

naturalmente, enormes. Facto que se torna ainda mais marcante se, para além de único

livro de toda uma vida, este é também efectivamente o “livro único”, que espelha a única

mundividência e ideologia admissíveis pelo regime. Veiculava-se um saber mnemónico,

maniqueísta, rigidamente categorizado, em que o mundo era apresentado à criança de

um modo pré-estabelecido, perfeitamente ordenado, de forma definitiva e inquestionável.

Esta forma de ensino era ainda mais eficaz porque reforçada por ilustrações atraentes,

de linha clara, pormenorizadas e de cores alegres. Este sistema de ensino actuou até

1974, mas a sua influência indirecta perdura até à actualidade, uma vez que os

educandos de então são os educadores de hoje, reproduzindo ainda e, muitas vezes, de

forma passiva e a-crítica os ensinamentos colhidos na infância, tão cómodos e atraentes

pela sua simplicidade, guias de um universo sem dúvidas nem opções. Assim, a ideologia

do Estado Novo influenciou (e ainda influencia, sob uma ténue aparência de progresso)

não só o meio cultural em torno do moliceiro, mas também toda a cultura portuguesa em

geral.

Os livros do ensino primário situavam os seus textos em cenários rurais, sempre

dentro de Portugal. Mesmo que o tema não estivesse directamente relacionado com o

mundo rural, a ilustração contígua encarregava-se de estabelecer a ligação. São

estratégica e cuidadosamente evitadas quaisquer referências laudatórias à transição do

universo rural para o urbano ou do agrícola para o industrial. O conjunto de texto e

imagem é complementado por provérbios e lendas tradicionais, que representam o saber

oral e a memória colectiva da sociedade camponesa, e por símbolos patrióticos e

religiosos.

Para Eric Hobsbawm, as tradições inventadas após a Revolução Industrial

classificam-se em três categorias: aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão

social; aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, estatutos ou relações de

autoridade; e aquelas cujo propósito principal é a inculcação de ideias, sistemas de

valores e padrões de comportamento (1983: 17). Estas três categorias estão claramente

patentes na realidade sócio-cultural apresentada nos livros de leitura do Estado Novo,

onde a História, como diz Claude Lévi-Strauss (1986: 167), substitui a Mitologia,

cumprindo a mesma função. Sabiamente guiada pela autoridade-autor e pelo mestre-

mediador, ao aprender a ler, a criança aprendia simultaneamente a ordem oficial do

mundo: “O Estado Novo ofereceu à Nação uma nova versão da sua glória passada,

(re)criando momentos e personalidades de acordo com a interpretação oficial da História,

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forjando uma nova era e restaurando a mítica era dourada que serviu de modelo a cada

celebração” (Paulo, 1994: 91).

Em comunidades piscatórias e agrícolas pobres como as da Ria de Aveiro, a taxa de

iliteracia era extraordinariamente elevada. Nas comunidades piscatórias, a escola

desempenhava o papel de uma mera exigência burocrática, pois a frequência do ensino

obrigatório era a única forma de os pescadores poderem exercer legalmente a sua

actividade. No que diz respeito à comunidade moliceira, tripulação, construtores e

decoradores eram analfabetos ou apenas capazes de assinar o próprio nome, aquando

da requisição das licenças ou do registo das embarcações na Capitania. Dado o

baixíssimo nível de escolaridade da maioria da população lagunar, os painéis legendados

(com uma ortografia muito discutível) eram tradicionalmente obra dos poucos artistas

“letrados” da região. Estes decoradores adquiriam a sua escassa educação na escola

primária e não constituíam uma excepção à regra da influência dos livros escolares na

sua visão do mundo, pois esses livros (assim como os livros em geral) eram relíquias

raramente reencontradas após o abandono da escola, e o poder visual e verbal das suas

mensagens tornava-se assim irresistível.

Os livros escolares exerceram uma influência óbvia sobre os símbolos e imagens que

os decoradores populares escolhiam para o moliceiro, como fica provado pela

observação de alguns painéis, principalmente históricos e religiosos, em particular

aqueles que representam personagens históricas como o rei D. Dinis, o Santo

Condestável D. Nuno Álvares Pereira, o Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro

Álvares Cabral e o poeta Camões. Todas estas personagens históricas encontram-se aí

retratadas de forma solene e estática, com talento e pormenor variável, mas seguindo

sempre o mesmo modelo. Ainda é possível notar a influência da imagem que ilustra o

texto “Camões” (no livro de leitura da quarta classe) em vários painéis históricos

representando o famoso escritor português, adoptado pelo regime como símbolo de uma

tradição cultural gloriosa.

Figura 5

Imagem do Livro de Leitura da 3ª classe (anos 50)

“Todo o mar é nosso” (anos 80)

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

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“O Príncipe dos Poetas” (anos 80)

Texto “Camões”, Livro de Leitura da 4ª classe (anos 60)

A glória, fé, engenho e sabedoria destas personagens históricas são simbolizados,

tanto nos painéis como nos livros de leitura, através de motivos iterativos como o livro

(Os Lusíadas de Camões), a espada, a bandeira, a caravela, o castelo, o mapa, a

bússola e o astrolábio. A Cruz de Cristo, presente nas velas dos navios dos

Descobrimentos, surge também na ilustração de capa do livro de leitura da quarta classe.

A Cruz – omnipresente na iconografia do Estado Novo e, consequentemente, nos seus

livros escolares (e também, como já mencionado, nas próprias salas de aula) – era

representada como companheira e fonte de inspiração do herói. A Cruz de Cristo e a

bandeira nacional são motivo transversal a quase todas as categorias de painéis,

excepção naturalmente feita para os jocosos, dada a reverência com que é encarada.

Os painéis Religiosos davam preferência às figuras maternais protectoras da Virgem

Maria, assim como da Rainha Santa Isabel e de Santa Joana Princesa de Aveiro,

também por influência dos livros escolares. Os textos destes livros apresentam as figuras

femininas não como heroínas, mas como companheiras de heróis e/ou como

personificação de virtudes cristãs de fé, resignação e caridade. Em geral, as mulheres

eram associadas à religião e às virtudes católicas. A Rainha Santa Isabel e Santa Joana

eram tema de vários textos, nos quais a sua santidade e milagres eram descritos como

factos históricos reais e inquestionáveis. O culto da Virgem era cuidadosamente

reforçado, não só na secção de leitura dos livros, mas também na longa secção de

“Doutrina Cristã” (na realidade, Católica). Estes ensinamentos eram – e ainda são –

reproduzidos e ilustrados em muitos dos mais artisticamente decorados painéis de

moliceiros.

Clara Sarmento

50

Figura 6

“Caridade e amor, Rainha da Paz” (anos 90)

“A Virgem”, Livro de Leitura da 1ª Classe (anos 50)

Santa Joana Princesa de Aveiro (anos 90)

Morte e milagre de Santa Joana de Aveiro, Livro de Leitura da 3ª Classe (anos 50)

Alguns textos moralistas eram directamente transferidos dos livros escolares para os

painéis do moliceiro, devido quer ao seu impacto ideológico, quer ao facto de os

decoradores concordarem efectivamente com a mensagem inerente. O painel com a

legenda “Uma boa acção”, por exemplo, representando um jovem a transportar o feixe de

lenha de uma senhora idosa, copia não só a imagem mas também o título do texto

homónimo “Uma boa acção”, do livro de leitura da quarta classe, além de inspirar outros

painéis, como era visível ainda na década de 80.

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

51

Figura 7

“Uma Boa Acção”, Livro de Leitura da 4ª Classe (anos 60)

“Uma Boa Acção” (anos 80)

“Quem me dera ser nova” (Início da década de 60;

Fonte: Arquivo Municipal de Aveiro)

De forma semelhante, o texto intitulado “Dois Portugueses” recorda a noção de “uma

grande Nação unida” (“Portugal vai desde o Minho a Timor”), já que as colónias eram

vistas como meras províncias ultramarinas, de forma a contornar as críticas da

comunidade internacional. Isto originou o aparecimento de painéis com os dizeres: “A cor

do sangue é igual”, “Ambos somos filhos de Deus” e “Diferentes na cor, mas somos

iguais na pátria”, onde diferentes raças veneram a Cruz e a bandeira portuguesa em

perfeita igualdade.

Figura 8

“Diferentes na cor, mas somos iguais na pátria” (início da década de 70)

“Dois Portugueses”, Livro de Leitura da 4ª Classe (anos 60)

Apesar de estas mensagens ideológicas surgirem em livros destinados a crianças

entre os sete e os dez anos, tal não significa que se deva encarar os moliceiros e a sua

arte como produto de mentes pueris. Na verdade, os seus autores mais não fazem do

que reter, reproduzir e, por vezes, adaptar os parcos conhecimentos doutrinários

Clara Sarmento

52

apreendidos na escola primária e que o contexto social, económico, cultural e religioso

envolvente se encarregou de perpetuar.

3. A DISCRETA ARTE DA SUBVERSÃO

Contudo, mesmo sob a capa da hegemonia, o contestatário pode sempre ocultar o

desafio e a sátira e fazer passar a sua mensagem dúplice com relativa imunidade. Por

isso, as autoridades não descuravam estes potenciais meios de comunicação (logo, de

subversão) popular e supervisionavam-nos activamente. As pinturas do moliceiro eram o

principal meio não autorizado e anónimo através do qual a população local podia

expressar-se, um facto que incentivava a paródia, o grotesco e as mensagens

subversivas, como contra-celebração dos valores oficiais.

Os artistas anónimos do moliceiro desenvolveram os seus próprios códigos, mitos,

heróis e padrões sociais. O isolamento, as condições análogas e a dependência mútua

entre subordinados favoreceram o desenvolvimento de uma cultura local, apoiada numa

forte imagética de “nós versus eles”. Em termos subversivos, quando tal ocorre, o objecto

em si torna-se numa força poderosa de coesão social, visto que todas as experiências

subsequentes são mediadas por uma visão partilhada do mundo. O resultado prático é

que essa cultura popular – da qual estes painéis fazem parte – alcança o anonimato da

propriedade colectiva e é assim constantemente ajustada, revista, truncada ou até

mesmo ignorada. A multiplicidade de autores confere-lhe protecção e, quando deixa de

corresponder aos interesses comuns, desaparece: assim os painéis são modificados,

pintados de novo, reescritos ou pura e simplesmente apagados.

As pinturas do moliceiro tendiam a ser vistas como o produto de um modo de vida

local, rude, simples, ingénuo e pitoresco. Durante quase um século, estas palavras foram

repetidas em ensaios e etnografias, guiadas por preconceitos culturais, para caracterizar

a arte do moliceiro. De facto, os erros ortográficos, juntamente com imagens simples e

directas em cenários rurais, parecem provar que essa arte era (e é) produto de uma

comunidade ignorante e centrada sobre si própria. No entanto, muitas vezes, ao encenar

ostensivamente a sua própria ignorância, os actores sociais estão a utilizar criativamente

os estereótipos designados para os estigmatizar. Sendo “superiormente” considerados

ignorantes pelo poder político e científico, e sabendo que uma crítica directa teria sérias

consequências, os pintores de moliceiros escondem a crítica por detrás da máscara da

ignorância, para desviar a atenção das autoridades. O que levou Eric Hobsbawm a

afirmar: “A recusa de compreender é uma forma de luta de classes” (1973: 13).

A simbologia épica, por exemplo, é não só reproduzida mas também adaptada pelo

moliceiro aos heróis locais, que são os mestres barqueiros e moliceiros, tradicionalmente

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

53

retratados a cavalo, em pose guerreira, quando não acompanhados de espada e escudo,

e com bandeira e castelo por cenário, numa original e irreverente transposição da gesta

nacional para a gesta local da sobrevivência quotidiana.

Figura 9

Celebração de construtor naval local (2001)

Camponês em cavalo branco (1955; Fonte: Centro Português de Fotografia)

Por outro lado, textos visivelmente políticos, tal como “O Estado Novo”, “O Chefe de

Estado” e “O Governo da Nação”, uma presença previsível nos livros de leitura, louvando

Salazar e as virtudes do seu regime, não tinham qualquer influência nos painéis e

inscrições do moliceiro, embora algumas etnografias da época tentassem negar esse

facto (Lage, Ferreira e Chaves, 1940: 72).4 A História antiga, o passado longínquo, pleno

de heróis semi-lendários, é passível de celebração popular, como uma “idade de ouro” e

abundância, tal como o passado mítico de reis, rainhas, princesas e cavaleiros da

tradição oral. Torna-se, porém, impossível celebrar a história mitificada contemporânea,

que a realidade circundante de pobreza demonstrava ser uma mera ficção. Os moliceiros

ignoravam as questões políticas (até mesmo questões maiores, tal como a guerra

colonial); não criticavam as autoridades, mas também não as louvavam. De facto, e

citando James C. Scott, “a especificidade da expressão cultural do grupo dependente é

criada em grande parte pelo facto de, pelo menos nesta área, o processo de selecção

cultural ser relativamente democrático” (1990: 157). Os grupos subordinados decidem a

que aspectos dar ênfase, adoptam-nos para uso próprio e criam assim novos artefactos e

práticas culturais que respondem às suas necessidades e sentimentos. O que resta,

então, dentro da cultura popular depende em grande parte daquilo que a comunidade

4 Ver a referência aos painéis do moliceiro no texto de 1940 de Luís de Pina, “Arte Popular”, inserido no livro

de Francisco Lage “Vida e Arte do Povo Português”, publicado e supervisionado pelo Secretariado da Propaganda Nacional: “Mas o artista actualiza as suas criações e, por isso, já aparecem alusões políticas e sociais: bustos de Salazar, legionários, filiados na Mocidade Portuguesa. Actualiza e moderniza os seus tipos, agrupa figuras, sofre a influência da política internacional” (Pina, 1940: 69-81). Contudo, não se localizou nas fontes consultadas quaisquer representações de Salazar, de legionários ou de filiados na Mocidade Portuguesa (excepção para uma curiosa ocorrência que mistura um jovem da Mocidade com o retrato do rei D. Manuel II), que seriam decerto as primeiras a ser reproduzidas e divulgadas, caso tivessem realmente existido.

Clara Sarmento

54

decide aceitar e transmitir. Isto não significa que as práticas culturais não sejam

afectadas pela cultura dominante; contudo, a eficácia desse controlo é menor.

Na generalidade, os livros de leitura do Estado Novo veiculam o estereótipo da

mulher enquanto mãe e dona de casa, uma “nobre missão” a que as raparigas estavam

predestinadas desde a infância. Segundo a ideologia dominante, as mulheres

sacrificavam com alegria as suas vidas, trabalhando arduamente no lar e no campo,

tendo os filhos como única e exclusiva recompensa. Existe até um texto no livro de leitura

da segunda classe, onde um irmão agradecido exclama, na derradeira e memorável

frase: “Como são lindas as meninas que sabem coser”. A agricultura era a única

actividade fora do lar que os livros permitiam e celebravam para a mulher.

Mas, no contexto real de trabalho do moliceiro, tais estereótipos de género não

funcionavam exactamente como pretendiam os discursos e representações oficiais. Para

garantir a subsistência familiar, a mulher sempre teve (e tem) de trabalhar fora do lar,

sendo o trabalho doméstico e a educação dos filhos um elemento quase residual no duro

acumular de tarefas do quotidiano. A mulher do povo, tal como é representada nos

painéis do moliceiro, é a lavradeira, a pescadeira, a varina, sempre no seu ambiente de

trabalho exterior, sem qualquer figuração de crianças nem referências ao lar ou à

maternidade (excepção para os painéis jocosos que satirizam o motivo da noiva grávida).

Ao contrário das cenas familiares dos livros de leitura, que representam maioritariamente

famílias do meio rural, com as hierarquias simbolizadas através do código corporal (o

homem mais alto do que a mulher, por exemplo), os pares dos painéis dos moliceiros têm

códigos corporais semelhantes, na acção e nas dimensões, pois homens e mulheres são

igualmente actuantes e relevantes no trabalho quotidiano.

Figura 10

“A Varina da Murtosa” (anos 80)

“A Rainha das Varinas” (anos 60)

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

55

“O aniversário da Mãe”,

Livro de Leitura da 3ª Classe (anos 50)

Pescador e Varina: “Já vendestes, Rosa?” (anos 50)

Homem e Mulher: “Não ha bacalhao”

(inícios dos anos 70)

De modo semelhante aos livros de leitura, o universo referencial espácio-temporal

dos moliceiros está confinado à aldeia, ao meio rural, à comunidade camponesa, à

família e ao trabalho. Destaca-se a ideia de que o trabalho duro, ao ar livre, é salutar, se

bem que os painéis por vezes lamentem a miséria, dificuldades e perigos da vida no

campo e no mar. A imagem institucionalizada do camponês trabalhador e sacrificado é

celebrada em sérios painéis sobre o trabalho, mas também pode ser fortemente

satirizada em painéis jocosos. O respeito devido à faina agrícola é, nesta região tão

próxima do mar, claramente superado pela celebração quase épica do pescador, do

homem do mar. O pescador de alto mar nunca é satirizado, numa visão próxima da –

mas não motivada pela – retórica do regime, que pretende representar o pescador da

faina maior como legítimo herdeiro dos marinheiros dos Descobrimentos, um simples

artifício retórico, dado que na realidade aqueles viviam em condições miseráveis.

De facto, a supervisão ideológica por parte das autoridades centrais e locais não era

completamente eficaz. Os pintores dos moliceiros, por exemplo, sempre privilegiaram a

taberna como cenário para os painéis jocosos que satirizam a figura típica do bêbado

local, com um tom humorístico que expõe o ridículo da realidade, ao invés de seguir o

discurso moralista oficial. A taberna, o inimigo visado pelo código moral do regime, é na

realidade um espaço de convívio há muito instituído na prática social, imune à retórica do

regime. Mas há que ter em atenção a especificidade da taberna no contexto português:

apesar de a taberna – tal como o mercado de Bakhtin (1984: 145-95) – ser geralmente

considerado um espaço de discurso anti-hegemónico (Scott, 1990: 122), devido à sua

relativa distância da vigilância oficial e ao facto de ser o principal local de reunião não-

autorizado das classes trabalhadoras, ela não pode ser vista como um espaço de

resistência aberta ou organizada, no Portugal pré-democrático.

Clara Sarmento

56

A comunidade popular critica a taberna somente quando esta é frequentada em

excesso (apenas por homens) e deste excesso advém a incapacidade mais ou menos

permanente para o trabalho, como no caso dos alcoólicos indigentes locais. E, mesmo

neste caso, o comentário do moliceiro é sempre feito em tom jocoso, pois os marcadores

comportamentais fundamentados em dicotomias de lícito/ilícito, bem/mal e

permitido/proibido, com base na autoridade religiosa, estatal e paternal (“Deus, Pátria e

Família”), são complementados com noções relativizantes muito pragmáticas e

permeáveis, que subsistem há décadas.

Figura 11

4. A (RE)INVENÇÃO CONTEMPORÂNEA DA TRADIÇÃO: A CULTURA POPULAR COMO PRODUTO

SIMBÓLICO

À medida que a agricultura tradicional vai lentamente desaparecendo, a geografia mental

da comunidade agrícola-moliceira da Ria de Aveiro também muda, de um espaço

agrícola centenário para uma mera paisagem rural, onde os antigos espectadores

também se tornaram actores. A difusão em massa de uma iconografia virada para o

turismo na Ria de Aveiro converte as representações individuais em representações

colectivas, e estas estão direccionadas para os grupos sociais dominantes. Contudo,

como em todas as mensagens polissémicas, há um fragmento de interpretação individual

que prevalece e que diferencia os espectadores directos dos espectadores indirectos, de

acordo com a sua origem cultural. Aos espectadores individuais é permitido participar

num sistema cultural, histórico, social e económico, mas a sua interpretação da

paisagem, tanto real como figurativa, deverá ser consciente e criticamente inserida numa

relação que lhes foi imposta pelo facto de os residentes permanentes se terem tornado

“Damos de beber à dor” (início da década de 80)

“Não há pipo que resista” (finais dos anos 70)

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

57

parte do sector terciário e estarem, agora, em minoria, em grande parte da região da Ria

de Aveiro.

Hoje em dia, a cultura popular e as suas produções estão cada vez mais atentas ao

mercado e às regras da procura e da competitividade, e isto aplica-se tanto às produções

utilitárias como às não-utilitárias. Este processo de refuncionalização é controlado à

distância pela procura de uma massa heterogénea que, no geral, busca produtos que são

vagamente simbólicos de um certo Portugal tradicional. Sem querer advogar aqui a

procura dos “elementos fundamentais da cultura portuguesa” (Dias, 1961: 97-119) na

“alma” dos objectos concebidos pelo povo, o produto artesanal está contudo sujeito a

tornar-se num objecto de consumo que, muitas vezes, já não pode ser mais considerado

como expressão de uma comunidade. O anonimato do mercado e a necessidade de

ganhar a vida podem moldar e transformar os artesãos, enquanto estes moldam e

transformam as suas próprias criações. No caso dos moliceiros, por exemplo, durante as

duas últimas décadas, houve uma clara inflação no número de painéis jocosos de cariz

erótico, cuja originalidade e humor fácil são muito atractivos para os turistas.

Tradicionalmente, contudo, estes temas eram minoritários e menos explícitos, se bem

que numerosos. Nos painéis tradicionais registados ao longo do século XX, o efeito

cómico era, regra geral, resultado de trocadilhos verbais e maliciosos jogos de palavras.

Recorrendo a imagens cada vez mais explícitas e elaboradas, os actuais painéis jocosos

eróticos atraem a atenção de fotógrafos amadores e profissionais que, por seu turno,

divulgam as suas imagens a outros potenciais visitantes e aos meios de comunicação

social, todos eles fontes de lucro para a região.

Figura 12: Painéis jocosos eróticos (2003-2004)

Quando a economia de mercado – base do poder económico que substituiu a

hegemonia ideológica – não compreende a própria cultura, o património cultural torna-se

externamente determinado e dependente das imagens que os outros criam e transmitem.

Clara Sarmento

58

Assim, os objectos culturalmente moldados (como os moliceiros) tornam-se objectos de

consumo que, apesar de aclamados, são parte de um contexto comercial alheio à

realidade que os criou e perde-se a possibilidade de compreender as suas funções e

significados.

A procura de objectos genuínos pode resultar numa autenticidade encenada, onde os

objectos culturais são produzidos e aceites como autênticos ou, pelo menos, como

razoavelmente similares à situação pré-massificação. Eric Hobsbawm considera que as

tradições inventadas são uma tentativa de criar uma ligação de continuidade com o

passado e com a identidade de uma comunidade (1983: 9). O conceito de “tradicional” é

frequentemente associado ao conceito de “autêntico”, o que nem sempre é correcto, pois

a manutenção da autenticidade é um fenómeno directamente ligado ao processo de

continuidade e mudança, base de qualquer cultura. Contudo, esta autenticidade

encenada pode ocasionalmente levar ao renascimento cultural das tradições, à

renovação da identidade local e até à invenção de novas tradições e identidades.

Tomemos, de novo, o exemplo das festas populares. A celebração dos moliceiros e

dos seus painéis nunca foi uma prática popular genuína. Pelo contrário, é uma tradição

recentemente inventada, que é explorada, mesmo na actualidade, pelo poder político e

especialmente pelo poder económico e comercial, que artificialmente multiplica razões e

ocasiões para tais celebrações, orientadas para o lucro e o turismo. Na realidade, no

início, os proprietários das embarcações estavam até muito relutantes em participar

nessas regatas e concursos e tiveram de ser pressionados com prémios de presença, de

modo a participarem em número satisfatório na vistosa parada de barcos, ao longo do

canal central de Aveiro. Esta atitude alterou-se profundamente no presente, pois os

prémios monetários são agora uma das poucas formas que resta aos proprietários de

retirarem algum lucro das suas embarcações.

Com efeito, a verdadeira importância destes eventos reside não tanto na estratégia

de conservação das marcas do passado, mas sobretudo no estímulo dado, por seu

intermédio, à recuperação da dimensão mais genuína da festa, o da celebração colectiva,

em que todos são potenciais protagonistas. Durante as festas, regatas e romarias, os

papéis confundem-se e é cada vez mais difícil distinguir os turistas dos locais, pois estes

podem comportar-se como turistas no seu próprio espaço. Muitas das pessoas que

deambulam pelas margens tomaram directa ou indirectamente parte na construção e

pintura dos barcos que participam nas festas, num duplo processo de exploração turística

do espaço. O cruzamento de códigos e práticas culturais, ainda que efémero, dilui as

fronteiras que separam a “cultura erudita” da “cultura popular”, numa dessacralização dos

critérios convencionais de legitimação estética.

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

59

Na presente conjuntura, não poderemos falar tanto de uma “ressurreição” mas antes

de uma “metamorfose” do moliceiro, pois as condições de vida anteriores não foram

recuperadas, nem o moliço, que deu o nome à embarcação, tem qualquer papel neste

novo contexto social. O moliceiro ressurge no Portugal democrático de finais da década

de oitenta, como objecto cultural desfrutável pelos turistas, independentemente da sua

função original. O moliceiro foi restaurado devido às suas linhas elegantes e decoração

única, tal como qualquer outro barco seria restaurado se a sua aparência estética o

justificasse. A metamorfose do moliceiro dá-se a nível funcional, de significado, enquanto

elemento de toda uma estrutura sócio-económica, mantendo-se a sua forma distintiva, o

objecto em si.

Em geral, na actual recuperação dos moliceiros para fins turísticos, os pintores

modernos tendem a imitar ou até a reproduzir as imagens tradicionais. Tentam encenar o

passado no presente, exageram o seu tradicionalismo enquanto reinventam a tradição.

Sobreviveram os exemplos históricos dos grandes reis, guerreiros e navegadores,

juntamente com a celebração neo-épica dos pescadores de alto mar e da faina maior.

Hoje em dia, estes são até representados em maior proporção, se comparados com os

seus homólogos das décadas de 1950 e 1960. Luís de Camões, por exemplo, o poeta

nacional exaltado pelo Estado Novo, é mais representado hoje do que então. Durante o

trabalho de campo que sustenta este ensaio, encontrámos variados exemplos de painéis

tradicionais renovados, cujas legendas e imagens ainda ecoam velhas ideologias: “Que

Deus vos guie pescadores”; “Deus e Pátria!” (um soldado a cavalo com bandeira

nacional); “Todo o mar é nosso!!” (Infante D. Henrique); “Numa mão a pena noutra a

espada” (Luís de Camões); “Velhos tempos na Terra Nova” (pesca de bacalhau à linha,

num dóri, entre icebergues).

Figura 13

“Que Deus vos guie pescadores” (2002)

“Velhos Tempos na Terra Nova” (1999)

Clara Sarmento

60

Os pintores dos moliceiros contemporâneos reproduzem estes símbolos

ideologicamente orientados, como se fossem testemunhos de um paraíso rural perdido,

numa tentativa de fazer reviver aquilo que consideram ser popular, português, genuíno,

tradicional, sem se aperceberem – ou aparentando não se aperceberem – que tais

imagens e mensagens estão deslocadas no espaço e no tempo. O contexto ideológico

circundante alterou-se e aquilo que em tempos era visto como “genuíno” não era uma

reprodução fiel da realidade, mas sim uma representação autorizada e doutrinada pelo

Estado.

Os actuais pintores, alguns deles com educação secundária ou até licenciados em

Artes Visuais, parecem colocar de lado as técnicas artísticas que dominam, enquanto

tentam criar pinturas mais popularizantes do que propriamente populares, na tentativa de

obter o prestigiante (e lucrativo) estatuto de “artesão”. Existe até uma reputada pintora de

moliceiros que é professora de Educação Visual numa escola secundária da região. O

diálogo entre o artista e os seus materiais torna-se não só numa forma de elevação mas

também de rebelião contra a pobreza, ao transformar um objecto aparentemente sem

valor (um barco de madeira que recolhe algas) numa delicada obra de arte. Existe uma

razoável recompensa pecuniária para estes talentos pseudo-amadores reconhecidos pela

comunidade, se bem que, no presente, estes amadores tenham já sido engolidos pela

máquina turística estabelecida em redor do moliceiro. De facto, a pressão para construir

novos barcos e para renovar os painéis a tempo dos numerosos festivais de Verão, bem

como o interesse na captação de turistas facilmente atraídos pelo desenho “perfeito”,

levou à procura crescente de novos artistas. Por sua vez, estes, cada vez menos

populares e mais qualificados, têm muitas vezes dificuldade em resistir a uma declarada

exibição das suas capacidades técnicas e artísticas.

De entre os novos temas que foram introduzidos nos painéis modernos, a figura

feminina é hoje, e mais do que nunca, representada de uma forma dúplice. A diferença

entre a mulher local (pescadeira, varina ou camponesa) e a “outra” mulher (a mulher do

cinema e da televisão, da cidade, ou seja, a moderna mulher urbana) denota-se nas suas

roupagens e funções. No primeiro caso, trabalho e roupas de trabalho (lenço na cabeça,

blusa, saia rodada, avental, pés descalços); no segundo caso, lazer e roupagens de lazer

(sugestivos vestidos, saltos altos, longos cabelos, fato de banho, roupa interior, nudez

parcial ou integral). As varinas e pescadeiras continuam a ser fortes, cheias de espírito e

resposta cortante, subservientes ao homem em teoria mas poderosas na prática, numa

inversão da ordem social tradicional, em muito auxiliada pela emigração massiva dos

seus companheiros nas décadas de 60 e 70. Estas mulheres trabalham num contexto

incessante de pobreza e duro labor generalizado, longe dos estereótipos

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

61

comportamentais burgueses. A mulher “outra”, por seu turno, nunca surge em painéis

laudatórios como os que celebram as varinas e pescadeiras. Pelo contrário, as mulheres

urbanas e ociosas são objecto de painéis extremamente maliciosos, onde são satirizadas

na sua sofisticação e indolência. Estas mulheres são representadas nas suas camas e

aposentos, reclinadas a ver televisão, tomando banhos de sol na praia ou caminhando

pelos espaços onde os outros (os locais) trabalham.

Ainda ecoando as lições do Estado Novo, as mulheres modernas (então sinónimo de

“imorais”) são representadas em situações eróticas, onde são respectivamente objecto e

sujeito de desejo sexual e de encontros sexuais. Mas, hoje em dia, as mulheres são na

verdade semelhantes aos homens no que toca a demonstrar as suas intenções e

consciência sexual: em painéis que satirizam o preservativo, por exemplo, são as

mulheres que instruem os homens ignorantes no seu uso. Quando representadas como

varinas ou camponesas, o discurso pode tornar-se poético ou laudatório, mas a sátira

prevalece sempre na representação da mulher nos painéis do moliceiro, com réplicas

espirituosas e comentários cheios de malícia, tradicionalmente formulados por mulheres.

Em numerosos painéis jocosos-eróticos, a simbologia e o vocabulário da produção

(trabalho) estão plenos de alusões à simbologia e ao vocabulário da reprodução (sexo).

Isto é bem visível nas diversas metáforas em que as mulheres são referidas como peixe

ou boa pescaria e nas imagens dúbias de homens e mulheres em contexto de trabalho

(pesca, caça, recolha de moliço, lavoura) que, assim, se transforma em contexto de

prazer. Nos painéis jocosos eróticos, o artista hiper-enfatiza o corpo feminino,

representando a mulher de forma carnavalesca, com formas exageradas e vestes

sugestivas, multicoloridas, com predomínio do vermelho.

Figura 14

“Fisga Manel que ha bom peixe!” (finais dos anos 80)

“Queres fazer um intervalo?” (1998)

Clara Sarmento

62

Nos painéis sobre a vida quotidiana e o trabalho, notamos uma tendencial

carnavalização Bakhtiniana (1984: 4-11) na inversão dos painéis do homem e dos

animais domésticos. O burro é frequentemente representado com características

humanas, como agricultor, mau estudante, espertalhão e, especialmente, como político.

Invertem-se papéis e posições em cena, com um homem a carregar um burro às costas,

ou a puxar uma carroça, cujas rédeas o animal segura. No imaginário popular, a inversão

representa o desejo mais ou menos secreto de inverter também a ordem social de eterna

pobreza e sujeição. No contexto pós-Estado Novo, qualquer necessidade de resistência

que possa ainda subsistir no moliceiro toma a forma de pesada sátira e é dirigida contra

as autoridades que, actualmente, dificultam a outrora livre e descuidada exploração (leia-

se delapidação) dos recursos da Ria e – acima de tudo – contra os eternos bodes

expiatórios do Portugal democrático: os políticos.

Figura 15

“Qual de nós pecou mais?” (1998)

“É tradição não ha balão” (2002)

A autoridade policial, por exemplo, é sempre satirizada. Tal como os padres e os

monges, pela sua alegada luxúria disfarçada de virtude (um painel jocoso representa uma

rapariga em roupas ligeiras e um padre no confessionário com a legenda “Qual de nós

pecou mais?”), se bem que a religião em si nunca seja satirizada em circunstância

alguma. Todas as profissões são celebradas pois todo o trabalho é honroso; mas todas

as profissões podem ser tema de caricatura, excepção para os mestres moliceiros,

construtores ou pintores, e para os pescadores de alto-mar, pelo seu prestígio na

comunidade e pelos perigos que enfrentam. A única profissão desonrosa, a única cujos

actores são invariavelmente representados como animais, parece ser a da política. Nesta

disputa simbólica, o vencedor é sempre a voz do povo, tal como ela é expressa pela voz

do moliceiro, através da sátira, da crítica e do lamento, graças à liberdade de expressão

garantida pela democracia.

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

63

Tendo em conta estes exemplos, conclui-se que a resistência (sob a forma de sátira)

é muito mais forte e declarada na actualidade e é direccionada para os outrora

reverenciados e todo-poderosos agentes da igreja e da autoridade, bem como para os

agentes de um regime democrático que, ironicamente, deu ao povo a liberdade de

expressão. Esta recente liberdade não disciplinou o humor ácido do moliceiro, bem pelo

contrário, como se verifica através das diversas representações de mulheres, sexo,

políticos, clérigos e agentes policiais, nos painéis do moliceiro.

Figura 16

Representação satírica de António Guterres (2002)

Representação satírica de Mário Soares (2002)

Deputado representado como burro (anos 90)

Raramente registámos painéis que documentem vivências de classe média: o painel

retrata o povo/trabalhador nas suas actividades quotidianas, ou a realeza/nobreza

Clara Sarmento

64

inspirada no imaginário popular. Hoje em dia, o grande veículo de elevação e de

normalização social é a televisão, e a sua influência é visível não só em alguns painéis

que ilustram efectivamente aparelhos de TV, mas também nas novas personagens e

acontecimentos que vão surgindo nos painéis: jogadores de futebol como Figo e Jardel; a

diva do fado Amália; o “menino Tonecas”, personagem infantil de uma popular sitcom;

políticos como Mário Soares e António Guterres e as crises e escândalos que tiveram de

enfrentar; a disputa entre o autarca Rui Rio e o dirigente desportivo Pinto da Costa; a

entrada de Portugal na União Europeia em 1986 e a prosperidade ilusória dos fundos

comunitários na década de 90; o Euro (e a sua potencialmente cómica designação prévia

“Ecu”); a exposição universal de Lisboa EXPO98; o célebre reality-show Big Brother; a

loucura nacional dos campeonatos europeu e mundial de futebol de 2004 e 2006; a

rivalidade entre equipas de futebol, entre muitos outros. Uma notícia reiterada ou

polémica (como as touradas ilegais de Barrancos, a morte do apresentador Fernando

Pessa, ou a comunidade nudista brasileira da Colina do Sol) pode gerar imediatamente

um novo painel, para rápido consumo e logo substituído, pela simples razão de ter

aparecido na televisão.

Figura 17

Alusão satírica à disputa entre Rui Rio e Pinto da Costa (2006)

“Viva a nossa Seleção!” (2004)

“Queremos Ecu!!!” (inícios da década de 90)

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

65

Todos estes eventos, assuntos e personagens são democraticamente oferecidos ao

povo através da televisão, item obrigatório em qualquer casa portuguesa actual (99% dos

lares, mesmo os mais pobres, possui televisão, de acordo com o último Censo). À

excepção dos painéis relacionados com o futebol e de homenagem a personalidades

públicas recém-falecidas, todos os outros exemplos são representados com traços

intencionalmente grotescos e sujeitos a observações muito mordazes. A televisão funde

imagens e palavras, tal como o painel de um moliceiro, e torna-se assim numa irresistível

fonte de inspiração para os pintores, principalmente quando a realidade imediata esgotou

os motivos de sátira. Contudo, a selecção nacional de futebol, tal como as equipas locais,

são símbolos reverenciados, encarados como orgulhosos representantes da identidade

de uma nação, cidade, vila ou região, e são, por isso, assuntos intocáveis e como tal

retratados. A saga nacional dos Descobrimentos, sistematicamente celebrada pelo

Estado Novo, encontrou no futebol um sucessor adequado, se bem que inesperado:

ambos criam uma sensação ilusória de orgulho patriótico e desviam a atenção da

verdadeira situação do país. Ao representar, comentar ou satirizar todos estes tópicos, a

moderna cultura do moliceiro ilustra, de forma muito lúcida, o imenso poder dos meios de

comunicação social.

Figura 18

“O cheiro da vida real – Big Bráder” (2002)

Alusão satírica à comunidade nudista brasileira da Colina do Sol” (2000)

Alusão satírica às touradas ilegais de Barrancos (2003)

Clara Sarmento

66

CONCLUSÃO

A cultura popular pode ser usada como uma alegoria e convertida em herança histórica,

étnica e ética, de que o “povo”, esse personagem tão indefinido, asseguraria em

exclusivo a custódia. Com efeito, desde o início, o conceito de “cultura popular” sofre de

uma profunda ambiguidade semântica resultante da multiplicidade de significados

inerente a cada uma das duas palavras que o compõem. As culturas populares tendem a

ser caracterizadas como representando os costumes de grupos sociais subalternos, em

constante desafio ao poder. Mas as culturas populares são bem mais do que uma forma

permanente e sistemática de resistência. Funcionam também em repouso, exprimindo as

diversas formas como os grupos sociais convivem no quotidiano com a dominação

(Grignon e Passeron, 1989).

Por tal, alguns objectos de cultura popular, como o barco moliceiro e seus painéis,

são rearticulados de modo a produzir significados oposicionais, criando formas de

resistência simbólica. A cultura popular é marcada pela tentativa das classes dominantes

alcançarem a hegemonia e pelas formas de oposição a essa tentativa. Este processo de

formação da cultura popular não consiste simplesmente na imposição de uma cultura de

massas que coincide com a ideologia dominante, nem na criação de culturas de oposição

espontâneas. Este processo cultural é antes um espaço de negociação entre ambas,

onde os valores culturais e ideológicos, tanto dominantes como subordinados, se cruzam

em trocas diversas e permanentes.

Textos e imagens, tais como os dos livros escolares inspirados pelo fascismo que

analisámos, exploram a cultura popular e as verdades ideologicamente orientadas, com

vista a estabelecer a posição e os papéis sociais imutáveis do indivíduo no território local

e nacional. Ainda assim, dentro dos discursos hegemónicos, podemos observar

resistência e aceitação, um facto que resulta em articulação; ou seja, resulta numa

negociação entre a cultura dominante e a cultura subordinada, utilizando os conceitos de

António Gramsci. Nos seus Cadernos do Cárcere, Gramsci fornece outra pista essencial

para qualquer estudo sério e abrangente da cultura popular, quando afirma que “o ponto

de partida da elaboração crítica é a consciência daquilo que se é realmente, é ‘conhecer-

se a si mesmo’ enquanto produto do processo histórico que depositou no indivíduo toda

uma infinidade de traços, sem deixar um inventário” (1971: 54).

É precisamente esta a lição que a história dos moliceiros ensina – os textos icónicos

e escritos patentes em cada barco são produto de uma rede de circunstâncias políticas,

ideológicas, sociais e económicas, dificilmente detectáveis e em geral demasiado

distantes ou comummente aceites para serem reconhecidos de forma crítica, mesmo por

aqueles que desenham, pintam, escrevem e vivem sob a sua influência. Contudo, é esse

A cultura popular portuguesa e o discurso do poder: práticas e representações do moliceiro

67

inventário invisível de Gramsci que constitui a fonte de inspiração para os painéis

tradicionais e permite a sua organização em categorias, com um conjunto de regras pré-

estabelecidas e tacitamente seguidas em cada nova ocorrência. Hoje em dia, há novos

assuntos que são adicionados todos os dias, como resultado do poder volátil dos media,

apesar de o artista popular – porta-voz da comunidade – escolher que assuntos devem

ser ignorados e que assuntos devem ser reproduzidos e assim perpetuados.

A intensa busca pelas origens da genuína cultura portuguesa inspirou a maior parte

do discurso pseudo-científico que, ao longo do século XX, tentou transformar a narrativa

das tradições populares numa descrição e justificação da própria identidade nacional.

Desta forma, esta breve história cultural dos moliceiros também confirma que os meios

institucionais de instrução e propaganda, as representações oficiais da realidade e as

fontes documentais em geral devem ser criteriosamente avaliadas quando se estuda a

cultura de um país dominado pela censura e pelos poderes hegemónicos durante

décadas. Os recursos poéticos e políticos são utilizados em conjunto de forma a construir

e preservar a alegoria da tradição como guardiã da verdadeira identidade nacional,

juntamente com o mito das origens gloriosas que legitimam o prestígio auto-proclamado

de posteriores autoridades governantes, bem como outras verdades manipuladas, muitas

vezes ainda repetidas no presente.

Mais do que testemunhos de “tradição” ou “resistência”, objectos como o barco

moliceiro são actualmente considerados como representantes da identidade e do

património cultural de uma comunidade local, intimamente ligada a um ecossistema

específico, como é a Ria de Aveiro. No caso presente, os painéis do moliceiro são

representações simbólicas inter-semióticas dos valores, práticas e representações

partilhadas pela comunidade. Mas, hoje em dia, o moliceiro participa também de uma

lucrativa estrutura económica e turística organizada em redor do objecto-barco, que

perdeu entretanto quase toda a sua antiga função social e económica e foi reinventado

enquanto símbolo cultural distintivo da região turística da Ria de Aveiro, reconhecido

nacional e internacionalmente. Trata-se aqui, contudo, de uma metamorfose e não de

uma ressurreição do objecto cultural, com novas funções dentro de um novo contexto,

orientado pelas exigências do sector terciário.

Em conclusão, este texto estudou um barco com características únicas que, de início,

estava estreitamente ligado a uma comunidade e a uma economia local. Mais tarde, ao

longo do século XX, o moliceiro e seus painéis participaram numa complexa dialéctica

entre as representações do discurso oficial e a sua real função social, económica e

simbólica. Contudo, os actuais agentes do turismo e da economia de mercado não

podem dissociar-se do imaginário histórico – ou do inventário – que motivou,

Clara Sarmento

68

contextualizou e sustentou esta forma de cultura popular durante séculos, sob pena de

estenderem a Portugal os teatros etnográficos e os museus de práticas perdidas em que

tantas outras culturas foram já transformadas.

CLARA SARMENTO

Doutorada em Cultura Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Professora Coordenadora no Instituto Superior de Contabilidade e Administração do

Porto do Instituto Politécnico do Porto (ISCAP-IPP). Directora do Mestrado em Tradução

e do Centro de Estudos Interculturais (www.iscap.ipp.pt/~cei) do ISCAP-IPP. Vencedora

do American Club of Lisbon Award for Academic Merit e do Prémio CES para Jovens

Cientistas Sociais de Língua Oficial Portuguesa.

Contacto: [email protected]

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70

DIÁLOGOS E MODOS DE ACTUAÇÃO COLECTIVA COM VISTA À SUSTENTABILIDADE DO

SOBREIRO EM PORTUGAL1

ANABELA MARISA AZUL

CENTRO DE ECOLOGIA FUNCIONAL, UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Resumo: Neste texto procura-se caracterizar o sobreiro e o montado de sobro em Portugal, numa perspectiva de analisar as inter-relações entre os agentes ecológicos, económicos, sociais e ambientais, incluindo-se uma breve síntese histórica, com vista a identificar quais as condições associadas à vulnerabilidade e à sustentabilidade ecológica do sobreiro. A propósito do declínio, morta súbita, e desenvolvimento do sobreiro em Portugal, procura-se, também, reflectir sobre o valor da biodiversidade do montado, e analisar em que medida a conservação da biodiversidade associada ao sobreiro congrega o diálogo entre ciência e outros saberes, e a construção de modos de actuação colectiva, entre conhecimento, agentes e sociedade, no sentido de uma sustentabilidade plural. Palavras-chave: sobreiro, montado, sustentabilidade, diálogo, actuação colectiva.

Nas condições tão frequentemente ingratas de solo e de clima do nosso País, o sobreiro é uma árvore preciosa... Nenhuma árvore dá mais exigindo tão pouco.

Joaquim Vieira de Natividade, 1950

O retorno a uma atitude de questionamento e debate permanente aberto sobre o sentido e a aplicação dos diferentes saberes é hoje uma necessidade urgente.

Boaventura de Sousa Santos et al. (2004: 5)

INTRODUÇÃO

O montado2 de sobro é reconhecido como um exemplo de sucesso de uso do solo

1 Este artigo apoia-se na investigação realizada no âmbito do projecto Ciência Viva, “O Montado: da

biodiversidade aos serviços do ecossistema” (CV, 16867), financiado pelo Programa Operacional Factores de Competitividade (COMPETE), com o investigador principal Anabela Marisa Azul, e reúne informação procedente de investigação científica no domínio da taxonomia e ecologia de fungos micorrízicos associados ao sobreiro em áreas de montado, resultante de vários projectos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), devidamente identificados ao longo do texto. 2 Povoamento aberto de sobreiro e/ou azinheira (onde também poderão estar presentes outros carvalhos,

oliveiras, e/ou pinheiros manso e bravo), com uma densidade de 60 a 100 árvores por hectare e um a dois estratos de vegetação em sob-coberto. No texto o termo montado refere-se ao montado de sobro (sobreiro).

Anabela Marisa Azul

71

sustentável na Europa, por combinar dois aspectos fundamentais: produção e

conservação, com repercussões positivas aos níveis ecológico, económico, social e

ambiental. Não obstante, assistimos, desde as duas últimas décadas, ao agravamento do

declínio e morte súbita do sobreiro em Portugal. São vários, complexos, e ainda não

totalmente compreendidos, os factores implicados no seu declínio. Modificações

profundas no uso do solo do sob-coberto do montado no decorrer da segunda metade do

século XX, o estabelecimento e aumento da agressividade de agentes patogénicos, e o

stress hídrico, são apontados como factores intimamente associados à vulnerabilidade do

sobreiro. Esta situação de vulnerabilidade expõe, por um lado, a necessidade de

conhecer novos parâmetros biológicos e ecológicos que possam influenciar a vitalidade

do sobreiro; por outro lado, a urgência do diálogo entre ciência e outros saberes, e a

construção de modos de actuação colectiva, entre conhecimento, agentes e sociedade,

para mitigar o declínio e promover o desenvolvimento sustentável do sobreiro.

Tradicionalmente, o montado está associado uma exploração do tipo agro-silvo-

pastoril3, onde a cortiça e a actividade silvopastoril representam os produtos com maior

valor económico. No entanto, são múltiplos os produtos que resultam da hierarquização

de espaços e de usos do montado, como vem descrito adiante.

Paralelamente aos múltiplos produtos tradicionais, emergem novos níveis de

utilização do montado, por incorporação de valores de dimensões social e ecológica,

nomeadamente o turismo, a caça associativa e a conservação da biodiversidade4,

integrada nos serviços dos ecossistemas5. A conservação da biodiversidade do montado

abre caminho para um conjunto de questões de particular relevância e interesse: que

futuro se pretende para o sobreiro e o montado em Portugal? Qual o valor da

biodiversidade enquanto contributo para mitigar o declínio e morta súbita do sobreiro? Em

que medida a biodiversidade associada ao sobreiro congrega o diálogo entre ciência e

3 Normalmente seguindo um regime de rotação de culturas de 9 anos, com um período de 6-8 anos de

actividade silvopastoril extensiva (gado ovino e bovino e/ou porco preto), seguido de um período de 1 a 2 anos de cultivo de cereais (trigo no primeiro ano; aveia, centeio, ou cevada, no segundo ano). O período de produção de cereais é decidido em função da qualidade do solo e corresponde à fracção menos importante da exploração do montado. No entanto, a actividade agrícola representa uma estratégia eficaz no controlo do crescimento do mato e da compactação do solo (Pinto-Correia, 1993). 4 O tema de conservação da biodiversidade nasce com o estudo dos ecossistemas a partir da década de 40

no século XX (e.g., Fisher, 1943), com o intuito de compreender melhor as relações entre os seres vivos e o meio envolvente. Rapidamente é acolhido na comunidade científica mundial e em compromissos internacionais. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida por Cimeira da Terra, realizada no Rio de Janeiro em 1992, no Brasil, representa o primeiro compromisso global para conservação da biodiversidade e a sustentabilidade. Nas últimas duas décadas assiste-se a um debate crescente à volta da conservação da biodiversidade, aos níveis local, nacional e global. 5 Os serviços dos ecossistemas representam os serviços e os processos decorrentes do funcionamento dos

ecossistemas e incluem, nomeadamente, a conservação da diversidade biológica, a regulação dos ciclos de nutrientes e recursos hídricos, e o sequestro de carbono (Pereira et al., 2009).

Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal

72

outros saberes, e a construção de modos de actuação colectiva no sentido da

sustentabilidade?

O amplo acolhimento da biodiversidade e do mundo natural destaca-se nas agendas

políticas aos níveis local, nacional e global, mas gera desafios de natureza muito diversa.

Por outro lado, o diálogo e a construção de modos de actuação colectiva, numa

perspectiva de promover equilíbrios dinâmicos entre o mundo natural e o bem-estar das

pessoas, são complexos, mas indeclináveis, sobretudo perante os actuais cenários de

risco, incerteza e imprevisibilidade, e em especial os que estão relacionados com o uso

indiscriminado e indisciplinado dos recursos naturais. É precisamente sobre o valor da

biodiversidade do montado, enquanto contributo para o diálogo e a actuação colectiva no

sentido da sustentabilidade, que incide a terceira análise no texto; nela tomaremos como

vector de análise Santos et al. (2004).

De seguida, far-se-á a caracterização do sobreiro e do montado em Portugal, numa

perspectiva de analisar as inter-relações entre os agentes ecológicos, económicos,

sociais e ambientais, incluindo uma breve referência à história no tempo e no espaço, e

às influências políticas e legais, com vista a identificar factores associados à

vulnerabilidade e à sustentabilidade ecológica do sobreiro. Na segunda parte do texto é

apresentado o caso de estudo de uma investigação científica que envolveu a colaboração

activa entre cientistas, de Ciências Biológicas e de Ciências Agrárias e Ambientais, e

proprietários de montado. O estudo em causa incidiu principalmente sobre fungos

mutualistas do solo, com o intuito de analisar, por um lado, quais os impactes do uso do

solo na biodiversidade do montado; por outro, quais as potenciais implicações da

biodiversidade do solo para a vitalidade do sobreiro e sustentabilidade ecológica. Na

terceira parte do texto, procura-se reflectir sobre o desenvolvimento do sobreiro em

Portugal, e analisar em que medida a conservação da biodiversidade do montado

congrega o diálogo entre ciência e outros saberes, e a construção de modos de actuação

colectiva entre conhecimento, agentes e sociedade, para a sustentabilidade.

1. O SOBREIRO E O MONTADO EM PORTUGAL

1.1. PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS

O sobreiro6 (Quercus suber L.) ocupa uma mancha superior a 736 700 hectares em

Portugal continental, maioritariamente em montado, associado a uma exploração

extensiva do tipo agro-silvo-pastoril. A distribuição actual do sobreiro está intimamente

6 Árvore da família Fagaceae, que se distingue pela presença de cortiça a envolver o tronco e ramos. No

presente estende-se por uma área de 2.2 x106 hectares, na Europa (Portugal, Espanha, França e Itália) e

norte de África (Marrocos, Argélia e Tunísia). Em Portugal continental, predomina nas regiões Alentejo (72%) e Lisboa e Vale do Tejo (21%), e em algumas zonas do Algarve, Beira Interior e Trás-os-Montes (DGRF, 2007a).

Anabela Marisa Azul

73

relacionada, por um lado, com as adaptações ecofisiológicas do sobreiro ao clima

Mediterrânico7 e balanço das condições geomorfológicas e hídricas do solo8; por outro,

com a hierarquização de espaços e de usos, incorporada na grande exploração

fundiária9.

Tradicionalmente são múltiplos os produtos obtidos a partir do montado10, embora a

cortiça11 represente o produto com maior valor económico. Portugal é o líder mundial de

produção de cortiça12, e, simultaneamente, o maior exportador13 e importador14 mundial.

A produção de cortiça é proveniente de pequenos e médios produtores florestais e

corresponde a cerca de 30% do total das exportações portuguesas de produtos

associados à floresta (DGRF, 2007c). O sector da cortiça está, sobretudo, associado às

rolhas e indústria vinícola (que absorve 66% da cortiça produzida, INE, 2009), e ao sector

da construção civil (que absorve 21% da cortiça produzida, INE, 2009). No entanto,

crescem as múltiplas e diversificadas aplicações da cortiça, e em novos sectores da

indústria, como a automóvel, a aeronáutica, ou a farmacêutica (Pereira, 2007). A

valorização do sector da cortiça tem estado na agenda política nacional15. Desde um

ponto de vista socioeconómico, existem cerca de 700 empresas a operar no sector da

cortiça16, distribuídas por dez distritos.

Segue-se a componente silvopastoril, que representa o segundo produto com maior

valor económico a partir do montado (INE, 2009), e da qual se destacam a exploração

7 O clima mediterrânico apresenta amplitudes térmicas elevadas e um período mínimo de seca durante dois

meses. Na região Sul de Portugal continental, a precipitação média anual é cerca de 570 mm/ano. 8 Sobre estes temas veja-se os textos de Teresa Soares David et al. (2007) e de António Gouveia e Helena

Freitas (2009). 9 Da qual resulta uma paisagem em mosaico muito diversificada, normalmente com um povoamento rural

concentrado em montes e aldeias compactas. 10

Principalmente a cortiça, carne, madeira, bolota, cereais, forragens, frutos silvestres, apicultura, plantas medicinais, cogumelos, e a caça. 11

Corresponde a um tecido secundário, produzido continuamente pela árvore, e resulta da acumulação de suberina e outros compostos (como a celulose, taninos, lenhina, ceras e outros polissacáridos) na parede celular da célula. A estrutura e composição química da cortiça conferem-lhe propriedades físicas, mecânicas, térmicas, viscoelásticas, e acústicas, únicas (Pereira, 2007). 12

A produção de cortiça em Portugal correspondente a 52% da produção mundial de cortiça em bruto (INE, 2009). 13

Cerca de 90% da cortiça transformada é destinada ao mercado internacional, com mais de 150 mil toneladas de cortiça exportada por ano. Em 2009 as exportações do sector ascenderam aos 698,3 milhões de euros, o equivalente a 144,8 mil toneladas de produtos de cortiça exportados (INE, 2009). O valor económico gerado pelas exportações do sector da cortiça representa aproximadamente 0,7% do Produto Interno Bruto e 2,2% do valor das exportações totais portuguesas (DGRF, 2007c). O sector da cortiça tem-se mantido em expansão desde 1990 (DGRF, 2007c). No entanto, o valor da exportação registou decréscimos nos últimos anos devidos a uma diminuição da produção e do preço (DGRF, 2007c). 14

A importação tem como destino a transformação e posterior exportação sob a forma de produtos de consumo final. Em 2009 foram importados 41 milhares de toneladas de cortiça, a maioria de Espanha (INE, 2009). 15

Na estratégia de apoio à Internacionalização dos Produtos de Base Florestal foi estabelecido o objectivo de aumentar a exportação da cortiça em 7%, em 2011. 16

Com a fracção maior de emprego nos distritos de Aveiro (Concelho de Santa Maria da Feira) e Setúbal: 75% e 12%, respectivamente (INE, 2009).

Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal

74

extensiva do porco alentejano17 e de gado bovino e ovino. A exploração silvopastoril no

montado conta, ainda, com o aumento crescente de produção de carne e seus derivados,

e de queijo, como resultado de estratégias de Denominação de Origem Protegida e

Indicação Geográfica Protegida (MADRP, 2007b).

A par dos produtos tradicionais do montado, emergem novos níveis de utilização do

território e, com eles, a redefinição da paisagem por incorporação de valores de

dimensão social e ecológica, que adquirem valor económico crescente, como é o caso do

turismo, as zonas de caça associativa e a exploração de produtos silvestres (e.g., frutos e

cogumelos), previstos no Plano Estratégico Nacional de Desenvolvimento Rural (MADRP,

2007a). Estas novas dimensões socioecológicas da paisagem apoiam-se, sobretudo, em

motivações de carácter social e cultural, e ocupam, ainda, uma posição marginal (Pinto-

Correia, 2010; Pinto-Correia et al., 2011b; Surová et al., 2011), e com financiamento

intimamente dependente do Estado.

Mais recentemente, surge a valorização do montado associada aos serviços dos

ecossistemas, por redefinição da importância atribuída aos processos que ocorrem na

natureza, e que oferecem, entre outros, os serviços de protecção biológica, ecológica e

ambiental (Pereira et al., 2009). Nesta perspectiva, o montado, em regime de exploração

extensiva, contribui para preservar habitats, manter índices de diversidade biológica

elevados18, assegurar a regeneração natural do sobreiro19, controlar a competição intra-

específica20, e regular os processos biogeoquímicos do solo.

O montado pode ser considerado um ecossistema complexo, reconhecido como um

exemplo de sucesso de uso do solo sustentável na Europa, e classificado pela Agência

Europeia do Ambiente como um sistema agrícola de «elevado valor natural»21. Não

obstante, assiste-se, desde as duas últimas décadas, ao agravamento do declínio e

morte súbita do sobreiro (DGRF, 2006; MADRP, 2007c; Ribeiro e Surovy, 2008). Admite-

se que modificações profundas no uso do solo em sob-coberto, o stress hídrico, e o

estabelecimento e aumento da agressividade de agentes patogénicos, representam

factores importantes para o quadro de vulnerabilidade do sobreiro a que assistimos hoje.

Estudos realizados nas áreas das Ciências Agrárias e Ambientais e Ciências Biológicas

revelam que as alterações no uso do solo ao longo do século XX conduziram à

17

O porco alentejano representa um dos produtos mais característicos do montado em Portugal; a sua produção tem vindo a subir, mas está ainda abaixo do potencial produtivo. As bolotas alimentam o porco alentejano; as pastagens naturais, forragens e restolhos das colheitas, alimentam o gado bovino e ovino. 18

Desde os níveis tróficos mais baixos, como as comunidades de fungos e invertebrados (Azul et al., 2011), aos níveis tróficos mais altos, incluindo várias espécies de aves de rapina e mamíferos protegidos (Pereira et al., 2009). 19

Sobre este tema veja-se o texto de Josep Pons e de Juli G. Pausas (2006). 20

Sobre este tema veja-se o texto de António Gouveia e Helena Freitas (2008). 21

Sobre este tema veja-se o texto de Maria Luisa Paracchini et al. (2008).

Anabela Marisa Azul

75

simplificação da paisagem (Pinto-Correia, 1993), à perda de diversidade biológica

(Pereira et al., 2009), à redução de reservas de água (Pereira et al., 2009), à sobre-

exploração do solo (Hector et al., 1999; Da Silva et al., 2009; Azul, 2002; Azul et al.,

2009a), ao aumento do risco de incêndios de grandes proporções (Silva e Catry 2006;

Catry et al., 2006; 2009; Moreira et al., 2010), e ao aumento de incidência de doenças22

(Brasier, 1996; Brasier e Scott, 2008).

Ainda assim, a área ocupada pelo sobreiro em Portugal tem vindo a aumentar cerca

de 2 000 hectares por ano desde 1956, a partir de uma área estimada em 637 000

hectares (Nogueira, 1990), e subiu para cerca 3 500 hectares por ano a partir de 198023.

Seguidamente apresenta-se uma breve síntese da história do sobreiro e do montado

em Portugal, com vista a interpretar melhor quais as inferências decorrentes da evolução

no tempo e no espaço, para a vulnerabilidade e declínio do sobreiro.

1.2. BREVE SÍNTESE HISTÓRICA

O sobreiro é uma árvore nativa da bacia do Mediterrâneo, no período Terciário (Magri et

al., 2007)24. Os bosques abertos de sobreiro e outros carvalhos, que viriam dar origem ao

ecossistema montado, começaram a ser desenhados, primeiro na transição do

Quaternário para o Neolítico25, depois durante os períodos de romanização, de invasão

dos bárbaros e dos muçulmanos, e da reconquista (Fonseca, 2004). O montado como

sistema agro-silvo-pastoril teve origem nos séculos XII, XIII, XV e XVI, e a sua história

está intimamente associada com a formação e consolidação do território de Portugal

22

Estudos em modelação ecológica advertem que as alterações climáticas previstas para a bacia do Mediterrâneo constituem um factor de risco efectivo para a sustentabilidade do sobreiro, e outros carvalhos, por favorecerem o estabelecimento e a agressividade de agentes patogénicos do solo (Brasier e Scott, 2008). 23

Como resultado de medidas agro-ambientais financiadas pela União Europeia. Sobre este tema veja-se os textos da Direcção Geral de Florestas (1985, 2001). 24

Entre os períodos Oligoceno e Mioceno há cerca de 15-25 milhões de anos. Trabalhos de paleoecologia indicam que no início do Miocénico predominava numa grande parte na Península Ibérica a floresta laurissilva devido a um macrobioclima tropical. O loureiro (Laurus nobilis L.), o azereiro (Prunus lusitanica L.), o azevinho (Ilex aquifolium L.), o teixo (Taxus baccata L.) são algumas espécies que reportam a floresta laurissilva do passado. A partir do Miocénico médio ocorreram cataclismos climáticos e geológicos que desencadearam grandes transformações na paisagem. Destacam-se os movimentos tectónicos alpinos (há 5,3-1,8 milhões de anos) de onde resultou o relevo do território português, a formação da bacia do Mediterrâneo (há 7,2-5,3 milhões de anos), a transição do macrobioclimatropical para o clima mediterrânico, e as glaciações (há 1,8 milhões de anos – 10 000 anos). O maqui mediterrânico com flora adaptada a períodos de secura domina na Península Ibérica desde o final do Terciário. São exemplos de flora nativa o sobreiro, a azinheira, outros carvalhos (Quercus sp.), os medronheiros (Arbutus sp.), as estevas (Cistus sp.), as murtas (Myrtus sp.), os zambujeiros (Olea sp.), alguns pinheiros (Pinus sp.), e as palmeiras-das-vassouras (Chamaerops sp.). 25

O período de transição para o Neolítico no território nacional continental iniciou-se há 7500 a 4000 anos. Durante esse período a agricultura itinerante consistia na queima de pequenas áreas de floresta e mato, seguida de mobilização superficial do solo. Os solos eram cultivados durante o período fértil possível e depois eram abandonados, o que contribuía para o restabelecimento da vegetação natural. O controlo do avanço das espécies lenhosas (arbustos e árvores) era feito pela herbivoria dos animais domésticos. Estes ciclos rotativos de uso do solo foram desenhando a paisagem e os bosques pristinos de Querci foram sendo

progressivamente substituídos por mosaicos seminaturais não arbóreos, como os prados, e por bosques abertos do tipo montado.

Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal

76

continental26. Joaquim Vieira de Natividade (1950) apresenta-nos um sumário

relativamente à trajectória do sobreiro e paisagem que lhe está associada ao longo dos

últimos oito séculos:

Nos territórios entre o Douro e o Minho, mais férteis e já densamente povoados

antes de se constituir a nacionalidade, os núcleos florestais fragmentaram-se

corroídos pela cultura agrícola. O mais intensivo aproveitamento da terra, o

incessante parcelamento da propriedade, expulsam o sobreiro das regiões mais

férteis como espécie de pouca valia, e onde aliás ela não pôde competir com as

outras quercíneas de mais rápido crescimento e tidas então em maior apreço. Nas

regiões montanhosas e mais agrestes do Minho, da Beira Alta e da Beira Baixa, a

floresta natural, abrigo de animais daninhos que ameaçam as culturas, ou reduto de

feras temidas pelo próprio homem, e que dizimam os rebanhos e constituem

impedimento ao pastoreio, desaparece a pouco e pouco pela acção destruidora do

fogo, do homem e dos gados. Os terrenos baldios, cobertos por uma vegetação

pobre que substitui a floresta clímace, estendem-se hoje ainda por centenas de

milhar de hectares... No centro do País, e mais particularmente no Alentejo, se bem

que lutas frequentes numa época anterior à constituição da nacionalidade hajam

reduzido a área suberícola, a floresta natural, mercê da menor densidade da

população, do clima mais árido, da forma por que se realizou o povoamento, e

graças também à protecção dispensada aos arvoredos pelas nossas leis agrárias,

pôde atravessar, não sem graves danos, minguando-se, fragmentando-se e

degradando-se, um longo período de sete séculos. Só a partir do começo do século

XVIII a valorização da cortiça revelou que imprevista riqueza constituíam os

montados de sobro, e só então a subericultura portuguesa, verdadeiramente,

nasceu (Natividade, 1950: 37-39).

Entre as circunstâncias que influenciaram a hierarquização de espaços e de usos do

montado destacam-se, a transumância controlada pelo Conselho de Mesta entre a

Cordilheira Central e o Alentejo, desde a Idade Média até ao século XIX (Ferreira, 2001);

o início da exploração de cortiça, no século XVIII27; o desenvolvimento de técnicas de

26

Sobre este tema veja-se o texto de Teresa Pinto-Correia e Ana Fonseca (2009). 27

Sobre este tema veja-se a obra Subericultura de Joaquim Vieira de Natividade. Refira-se apenas que a exploração de cortiça foi um processo lento, que só avançou verdadeiramente no século XX. No início da década de 30, a política do Estado Novo, desencorajadora da entrada de novos investimentos estrangeiros, acabou por contribuir para o desenvolvimento da subericultura. Mas só na década de 40 e 50 a cortiça é reconhecida como produto estratégico. Sobre a subericultura no século XX, veja-se Ignacio García Pereda (2009).

Anabela Marisa Azul

77

desbaste selectivo do sobreiro para aproveitamento agrícola em sob-coberto, no século

XVIII; e a recuperação da área de montado, sobretudo no Alentejo, no século XIX28.

Mas é no decorrer do século XX que ocorrem as transformações mais profundas na

paisagem do montado. Denise de Brum Ferreira (2001) apresenta-nos uma sinopse do

contexto socioeconómico e político no Alentejo interior durante o século XX, onde expõe

três fases de pressão que conduziram a uma situação de exploração do montado

dependente de políticas agrárias: a primeira, a Lei dos Cereais de Elvino de Brito; a

segunda, durante a Campanha de Trigo entre 1929 e 1935 (com prolongamento até final

da 2ª Guerra Mundial); e a terceira, a Reforma Agrária entre 1975 e 1979. De facto, o

montado, com a sua paisagem hierarquizada de espaços e de usos, quase desapareceu

por completo na segunda metade do século XX, evoluindo para duas situações de

vulnerabilidade, a que Teresa Pinto-Correia (1993) denomina por «intensificação» e

«extensificação» do montado. A «intensificação» do montado refere-se à situação

decorrente da Campanha do Trigo nas décadas de 30, 40 e 50, da qual resultou a

desarborização do sobreiro, e o desequilíbrio sobre os três vértices de exploração

extensiva: árvores, culturas arvenses e pastagens. A «extensificação» do montado,

reporta-se ao abandono das práticas de cultivo em sob-coberto e aos processos naturais

de regressão ecológica subsequentes29, também eles indutores de vulnerabilidades pelo

aumento da competição por nutrientes do solo e água, e pela reintrodução do fogo como

agente modelador da paisagem.

Esgotado o modelo do cultivo de cereais, e deslocados os objectivos políticos para a

indústria urbana, inicia-se um novo ciclo através da implementação do Plano de

Povoamento Florestal30 e do Plano de Fomento Suberícola31, e, depois, novas

redefinições no uso da terra decorrentes da Política Agrícola Comum32. Estas

28

Como consequência de metamorfoses na paisagem rural. Entre as metamorfoses, realçam-se o recuo do maqui mediterrânico, os arroteamentos, o progresso do caminho-de-ferro, a densificação da rede de estradas, alterações demográficas, e as primeiras leis proteccionistas para as culturas de cereais (Ferreira, 2001). A arborização contribuiu para o crescimento de uma área de 370 000 hectares de sobreiros e azinheiras em 1887 para 868 850 hectares em 1902 (Vieira apud Ferreira, 2001: 181). 29

Áreas de montado com estrato essencialmente arbóreo e herbáceo e/ou sistemas silvopastoris com arbustos artificialmente mantidos em baixas densidades, foram progressivamente colonizadas por vegetação arbustiva nativa, atingindo o estrato arbustivo uma densidade de ocupação de 85 a 95%, com arbustos com 1,5 a 2 m de altura. 30

No início do século XX foi instituído o Regime Florestal (Lei n.º 1971, de 5 de Junho de 1938) na tentativa de responder às necessidades de arborização de grandes extensões de terrenos incultos, e travar o declínio da floresta portuguesa e fenómenos erosivos do solo, por uso indiscriminado e indisciplinado dos baldios serranos. Numa primeira fase (1938-1944), o Plano de Povoamento Florestal consistiu na arborização de 287 mil hectares de terrenos incultos, cerca de 97% dos quais com pinheiro-bravo, quase em exclusivo na região Norte e Centro, e a restante percentagem com sobreiro, nas bacias do Tejo e do Sado e algumas zonas de Trás-os-Montes. Na segunda fase (1945-1986), o Plano de Povoamento Florestal reorienta-se para a propriedade privada, promovendo o reinício da arborização com sobreiro e azinheira e a pecuária extensiva do sul do país (Baptista, 1993). 31

Lei n.º 2069, de 1954, orientada para a propriedade privada e impulsiona a retoma suberícola em alguns territórios do Sul. 32

Com a entrada no Mercado Comum, e os acordos de comércio mundiais, verificou-se um decréscimo nos

Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal

78

circunstâncias, resultantes de influências políticas, vieram também revelar-se

simplificadoras da paisagem tradicional do montado, não apenas pelos impactes directos

na perda da biodiversidade e da resiliência do solo, mas também pela introdução de

novas vulnerabilidades, designadamente os incêndios recorrentes e de grandes

dimensões33, a dispersão massiva de espécies exóticas34, e o estabelecimento e

expansão de novos agentes patogénicos35, como a Phytophthora e o nemátodo da

madeira do pinheiro.

São também pontos de interesse, indissociáveis da história, o plano legal para o

sobreiro e o montado. Portugal possui o plano legislativo mais antigo36 e completo para

proteger o sobreiro, que inclui um conjunto de leis e medidas para defender a árvore, a

cortiça, o solo arborizado e o subericultor (ver Mendes, 2002). O montado está

legalmente protegido em Portugal (Decreto-Lei nº 169/200137) e na Europa (Directiva

92/43/CEE38). No passado, o território ocupado pelo montado circunscrevia-se ao

pastoreio, à caça e a actividades colectoras, e não estava dependente da propriedade.

No presente, a realidade é bem distinta e a área ocupada pelo sobreiro representa a

componente da floresta portuguesa onde a propriedade privada individual e não industrial

tem mais peso. Não é o propósito desta reflexão incidir sobre a função reguladora da

propriedade, a herança de estruturas patrimoniais fundiárias, a tendência neo-

patrimonialista na sequência da crescente demissão do Estado-Providência, as

expectativas em torno do valor do património fundiário ou, ainda, as consequências das

políticas europeias de subsídios desligadas da mobilização produtiva dos recursos39. No

entanto, existem condições legais e políticas, como foi exposto, cuja complexidade

preços agrícolas, só parcialmente compensado pela introdução ou aumento de subsídios. Esta condição conduziu à redefinição de novos modelos de exploração do montado, nomeadamente a conversão do uso multifuncional para regadio, a intensificação da actividade silvopastoril, por aumento do encabeçamento do gado, e a conversão do montado para floresta de produção, através da introdução de monoculturas de espécies arbóreas de crescimento rápido, como é o caso do eucalipto e do pinheiro. A floresta de produção oferece a possibilidade de rentabilidade a curto prazo e o absentismo do proprietário. 33

O fogo faz parte da história dos ecossistemas mediterrânicos, mas coloca em risco o bem-estar das pessoas (Silva et al., 2010) e potencia o estabelecimento e dispersão de espécies exóticas com capacidade de invasão. Em Portugal existe o Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios (Resolução do Conselho de Ministros nº 65/2006), que visa, entre outras medidas, desenvolver um programa de fogo controlado. As equipas de fogo controlado actuam no terreno desde 2009, sobretudo na região Norte e Centro, e em áreas de floresta de produção (ver http://www.afn.min-agricultura.pt/portal/dudf/gauf). Sobre este tema evoca-se prudência por ser limitado o conhecimento sobre quais os impactes da temperatura do fogo na biota do solo. 34

Veja-se o trabalho de Luís Carvalho et al., 2010. 35

Para a Phytophthora veja-se o trabalho de Brasier e Scott (2008), para o nemátodo da madeira do pinheiro veja-se http://www.afn.min-agricultura.pt/portal/pragas-doencas/. 36

O documento mais antigo refere-se à protecção do fruto, a bolota, e data de 1209 (Costumes e Foros de Castelo Rodrigo, apud Fonseca, 2004). 37

Decreto-Lei n.o 169/2001, de 25 de Maio, que define as regras para a protecção do sobreiro e da azinheira e os povoamentos destas espécies, nomeadamente os sistemas com aproveitamento agro-silvo-pastoril conhecidos por «montados». 38

Directiva 92/43/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1992, relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens. O.J. European Commission, L206(7). 39

Sobre estes temas veja-se a obra A Política Agrária do Estado Novo de Fernando Oliveira Baptista (1993).

Anabela Marisa Azul

79

causa/efeito importa analisar para compreender melhor em que medida as suas

influências poderão ter contribuído para a diminuição da resiliência do montado e o

declínio do sobreiro.

2. ESTUDO DE CASO SOBRE O DIÁLOGO CIÊNCIA–SOCIEDADE: MICORRIZAS NO MONTADO

Reporta-se o contributo de uma investigação multidisciplinar, transdisciplinar e integrada,

entre ciência e outros saberes, desenvolvida em áreas de montado na região do

Alentejo40. O caso aqui apresentado incidiu principalmente sobre o estudo das

micorrizas41 do sobreiro e teve por base dois objectivos principais, primeiro, caracterizar a

comunidade de fungos micorrízicos em áreas de montado com diferentes usos do solo;

segundo, analisar quais os impactes do uso do solo na composição e estrutura da

comunidade daqueles mutualistas, com vista a compreender quais as potenciais

implicações da biodiversidade do solo para o estado fitossanitário da árvore e

sustentabilidade ecológica.

Numa primeira fase da investigação, foi efectuado o estudo das micorrizas em

montados distribuídos ao longo da mancha com melhor produção de cortiça, entre Ponte

de Sôr, Mora, Coruche, Montemor-o-Novo, Alcácer do Sal, Serra de Grândola e Santiago

do Cacém, onde foram seleccionadas áreas com e sem mortalidade do sobreiro. Para

além dos fungos micorrízicos, o estudo incluiu, por um lado, a avaliação de parâmetros

climáticos e edáficos, e a vegetação companheira (incluindo a regeneração natural de

sobreiro); por outro, a história42 do uso do solo em sob-coberto desde meados do século

XX, a avaliação dos produtos com expressão económica, e as motivações dos

proprietários para as estratégias de gestão adoptadas. Os resultados revelaram que a

composição e estrutura da comunidade de fungos micorrízicos associada ao sobreiro é

40

Este caso de estudo apoia-se numa investigação realizada no âmbito de um projecto de investigação de pós-doutoramento na área das Ciências Biológicas, especialidade Ecologia, na Universidade de Coimbra, com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT): Diversidade dos fungos ectomicorrízicos em ecossistemas de Montado com diferentes usos do solo e em condições fitossanitárias distintas - Implicações para o funcionamento do ecossistema (SFRH7 BPD/ 5560/ 2001); e dois projectos de investigação, com o Investigador Principal a Professora Helena Freitas, também apoiados pela FCT: Sistemas de uso do solo e a diversidade de fungos micorrízicos em ecossistemas de Montado – exemplos da região Alentejo (PRAXIS/P/AGR/11165/1998), e Sistemas de uso do solo e a diversidade de fungos micorrízicos em ecossistemas de montado (POCTI/AGG/ 42349/ 2001). 41

As micorrizas são associações entre fungos e raízes das plantas. Em condições naturais, a maior parte das plantas forma micorrizas, sendo que a associação é considerada benéfica para o fungo e para a planta. As micorrizas são essenciais para a estabilidade, conservação e produtividade de todos os ecossistemas terrestres. Os benefícios da associação micorrízica na nutrição mineral reflectem-se na vitalidade das plantas e na manutenção do equilíbrio do solo, prevenindo a colonização por fungos parasitas oportunistas e diminuindo a susceptibilidade do solo a fenómenos de erosão e desertificação. Na última década assiste-se a um interesse crescente da comunidade científica pelo conhecimento das micorrizas nos ecossistemas naturais, no sentido de conhecer a diversidade real deste grupo de seres vivos, e de compreender melhor o seu papel na protecção e produtividade do solo, e influência na dinâmica das comunidades vegetais. 42

Dados obtidos a partir de inquéritos e entrevistas efectuadas aos proprietários. Este estudo foi feito em colaboração com Ana Fonseca e Teresa Pinto Correia no âmbito de um dos projectos de investigação mencionados antes (Praxis/P/AGR/11165/1998). Veja-se parte do inquérito e resultados em Azul et al., 2010.

Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal

80

bastante diversificada (Azul, 2002), e que é possível estabelecer uma relação entre a

biodiversidade do solo, as práticas de gestão e o estado fitossanitário da árvore (Azul et

al., 2010; 2011). A diversidade e a abundância de fungos micorrízicos foram mais

elevadas em áreas de montado com exploração silvopastoril em regime extensivo, e, em

especial, nas situações cuja opção passa por manter espécies arbustivas autóctones

numa densidade não superior a 50% da cobertura vegetal total. Em contrapartida, a

diversidade e a abundância dos mesmos mutualistas do solo, foram substancialmente

inferiores em áreas de montado com uma mortalidade de sobreiro superior a 0,3 árvores

por hectare, e em montados em situação de abandono do uso do solo em sob-coberto há

mais de 15 anos. O estudo das micorrizas incidiu em diagnósticos a partir das raízes de

sobreiro e envolveu metodologias clássicas e moleculares. Esta opção veio a revelar-se

importante para obter conhecimento científico sobre a estrutura versus função das

micorrizas em condições naturais. No entanto, levantou algumas limitações no que diz

respeito à divulgação dos resultados junto dos produtores e proprietários do montado.

Deste modo, sentiu-se necessidade de repensar estratégias e metodologias com vista a

desenvolver investigação científica e, paralelamente, integrar o diálogo numa perspectiva

de construir conhecimento e modos de actuação colectiva. Pelo interesse sob o ponto de

vista ecológico, e pelo valor económico crescente, levantou-se a questão de incorporar os

macrofungos43 nos parâmetros de análise de biodiversidade do solo.

A segunda fase de investigação incidiu nos impactes das práticas associadas ao

controlo da densidade de mato na biodiversidade do solo44, e na avaliação dos

macrofungos (e macrofauna) como parâmetros de análise de biodiversidade. O estudo

decorreu em parcelas experimentais estabelecidas na herdade Freixo do Meio45 e

43

A maioria dos fungos que formam micorrizas com o sobreiro produz macrofungos, conhecidos por cogumelos. O estudo das comunidades de fungos do solo com base na frutificação oferece algumas limitações, nomeadamente a fenologia do fungo (tempo e periodicidade da frutificação) e as condições climatéricas. Por outro lado, a presença das frutificações não reflecte, obrigatoriamente, o que se passa ao nível da raiz. Estabelecer correlações com significado ecofisiológico requer estudos continuados no tempo. Para o caso dos cogumelos, recomenda-se que a monitorização seja efectuada ao longo de um período mínimo de 4-5 anos. 44

Foram considerados como parâmetros de análise de biodiversidade os macrofungos e a macrofauna. 45

Localizada na Freguesia de Lavre, Concelho de Montemor-o-Novo, gere 670 hectares de montado misto de sobro e azinheira, e foi uma das herdades cuja opção de gestão revelou contribuir para a sustentabilidade ecológica do sobreiro (Azul, 2002; Azul et al., 2009a). A propriedade representa uma exploração com carácter

empresarial, totalmente convertida a produção biológica desde 2001. Os principais produtos de exploração são a cortiça e a componente silvopastoril, que inclui a produção de porco preto de raça alentejana, borrego raça merino, cabrito raça serpentina, gado bovino raça Barrosã e peru preto. Todas as raças são autóctones e existe um acompanhamento e registo genealógico dos reprodutores. Outros rendimentos complementares resultam de uma actividade agro-silvo-pastoril extensiva (madeira, lã, ovos, azeite, hortícolas, frutos, cogumelos silvestres, leguminosas, e alguns produtos transformados derivados), também a caça associativa, turismo rural e educação ambiental. A história do uso do solo em sob-coberto na herdade Freixo do Meio foi variando desde o início da exploração da propriedade, na segunda metade do século XX. No entanto, predominou uma gestão agro-silvo-pastoril seguindo o sistema tradicional de rotação de culturas. A gestão incluía o controlo artificial do crescimento do mato durante os períodos de actividade silvopastoril, que até 1970 era manual (ou através do pastoreio), e depois passou a ser mecânico, com corte seguido de

Anabela Marisa Azul

81

envolveu a análise das três práticas mais comuns. São elas o pastoreio, o corte mecânico

sem mobilização do solo, e o corte mecânico seguido de mobilização do solo.

O corte mecânico sem mobilização do solo revelou ser a estratégia que induz níveis

inferiores de perturbação na biodiversidade do solo e contribuir para a resiliência do

ecossistema. Em contrapartida, o corte mecânico seguido de mobilização do solo revelou

conduzir a uma redução significativa dos índices de biodiversidade do solo. Outro dado

importante foi a indicação de que a estratégia de corte mecânico sem mobilização do solo

contribui para a recuperação dos índices de biodiversidade do solo para valores próximos

da situação controlo46 num período de três anos após o corte (Azul et al., 2009a; Azul et

al., 2011; Mendes et al., 2011). Desta análise verificou-se, também, que os cogumelos (e

macrofauna) representam parâmetros de análise passíveis de serem quantificados e

replicados. Esta informação representa um dado importante para mitigar os impactes da

exploração do montado e proteger a sustentabilidade ecológica do sobreiro, assumindo

particular interesse no diálogo e actuação com diferentes actores do montado. Ainda

numa perspectiva de congregar o diálogo entre ciência e outros saberes, e promover o

conhecimento sobre o montado, a diversidade biológica e os processos que ocorrem no

mundo natural com vista a sustentabilidade, têm sido desenvolvidos projectos de

investigação-acção desde as idades mais jovens (Azul et al., 2007; Azul et al., 2009a, b;

Azul 2009).

São temas de investigação científica em curso a interacção entre mutualistas e

antagonistas do sobreiro e suas consequências para o estado de vitalidade do sobreiro,

assim como o diagnóstico de outros organismos cujo efeito no declínio não foi ainda

avaliado (Costa, 2011), em particular a flora associada ao sobreiro (que poderá actuar

como reservatório de pragas e doenças e/ou suprimir o efeito desses antagonistas) e

bactérias endofíticas (que poderão ser patogénicas e/ou promover o seu crescimento e

estado fitossanitário).

mobilização do solo. Entre 1975 e 1990 foram efectuadas rotações de culturas de trigo/ aveia/ forragem/ tremoço, entre ciclos de 4 a 5 anos. A partir de 1990, iniciou-se um período de gestão centrada na conservação dos recursos naturais (abandonaram-se as lavouras, diminuiu-se a produção de cereais e forragens, e efectuaram-se planos cuidados de adubação do solo). Nos últimos 20 anos, foram abandonados os cultivos de cereais e o sob-coberto do montado passou a ser ocupado essencialmente com pastagens naturais. O controlo do mato continuou a ser mecânico com corte à superfície do solo, intercalando zonas com e sem mobilização do solo. A composição florística do sob-coberto foi sempre idêntica, alternando-se plantas arbustivas e herbáceas nativas em função do momento no ciclo de culturas. O coberto arbóreo do montado também sofreu alterações desde o início da exploração; até 1990 eram efectuadas podas regulares com machado (em dias secos de Inverno), desde 1990 não se efectuam podas. A cortiça é extraída em períodos de 9 anos de intervalo, desde o início de Junho até meados de Agosto. A mortalidade do sobreiro é baixa em toda a herdade. Nos últimos 10 anos a empresa tem assumido como missão a sustentabilidade ecológica do montado. A herdade Freixo do Meio acolhe iniciativas múltiplas, desde a investigação científica em múltiplos domínios e em parceria com várias instituições, encontros entre produtores e proprietários, programas de educação ambiental, e feiras do montado abertas à comunidade (ver http://www.herdadedofreixodomeio.com/). 46

Sem qualquer intervenção no controlo da densidade do mato durante o período de estudo.

Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal

82

3. PERSPECTIVAS PARA O DESENVOLVIMENTO DO SOBREIRO EM PORTUGAL: ALGUMAS

PROPOSTAS

Continuam por se compreender todos os factores e circunstâncias implicados no declínio

e morte súbita do sobreiro. Porém, existe uma base de conhecimento científico e saberes

práticos sobre as condições que podem inferir na vulnerabilidade e sustentabilidade

ecológica do montado. Da caracterização e síntese histórica, e do caso de estudo

mencionado atrás, sobressaem resultados a dois níveis: por um lado, o montado como

um ecossistema complexo, produto de um trabalho social com identidade natural e

cultural; por outro, o potencial valor da biodiversidade do solo, associada à

hierarquização de usos e de espaços no montado, como contributo para a vitalidade do

sobreiro e a resiliência do ecossistema montado. Sobressai, também, que o

desenvolvimento do sobreiro em Portugal não depende exclusivamente de circunstâncias

ecológicas e ambientais, e que mitigar o declínio e promover a sustentabilidade, passa,

indubitavelmente, pelo diálogo entre ciência e outros saberes, e a construção de modos

de actuação colectiva, entre conhecimento, agentes e sociedade.

Um argumento que tem vindo a afirmar-se como estratégia para promover a

sustentabilidade do sobreiro é a conservação da biodiversidade do montado, seja pelo

reconhecimento da sua importância a um nível estrutural e funcional, seja pela atribuição

de valor económico aos serviços prestados pelos ecossistemas. Será que se nos

fixarmos no valor da biodiversidade do montado como fonte de matéria-prima para novos

produtos, por incorporação de valores de dimensão social e ecológica, o balanço para o

sobreiro poderá traduzir-se em processos promotores de equilíbrios dinâmicos para o

ecossistema?

É, hoje, indiscutível que a biodiversidade «constitui um importante recurso para a

humanidade, não só pelo seu valor utilitário como pelo seu valor estético»; e que

«diferentes formas de interacção e compreensão da natureza irão produzir diferentes

corpos de saber sobre a natureza» (Santos et al., 2004). Porém, o amplo acolhimento da

biodiversidade e dos serviços proporcionados pelos ecossistemas gera controvérsias47 e

desafios de natureza diversa (Fitter et al., 2010). Desde logo o conceito, tal como foi

definido pela Convenção sobre a Diversidade Biológica48 (1992), apresenta limitações,

primeiro por não considerar índices de biodiversidade e dinâmicas no tempo e no espaço;

segundo, por não incluir vínculos inter-relacionais entre a própria diversidade (Hamilton,

47

Sobre as controvérsias em torno da biodiversidade veja-se Santos et al., 2004. Sobre os desafios associados os serviços dos ecossistemas veja-se Fitter et al., 2010. 48

Biodiversidade ou diversidade biológica segundo a Convenção sobre Diversidade Biológica significa a “variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas” (Convenção sobre Diversidade Biológica, artigo 2; 1992).

Anabela Marisa Azul

83

2005). Por outro lado, o discurso sobre a biodiversidade representa «um discurso onde

se cruzam diferentes conhecimentos, culturas e estratégias políticas», que é utilizado

muitas vezes para autorizar e legitimar decisões retoricamente idílicas na promoção da

sustentabilidade, mas que na prática são impulsionadoras de esterilidade (Santos et al.,

2004). A propósito do declínio do montado, a morta súbita do sobreiro e o valor

económico crescente dos serviços dos ecossistemas, procura-se analisar, aqui, em que

medida a biodiversidade do montado congrega o objectivo de diálogo, de actuação

colectiva e de sustentabilidade, para o desenvolvimento do sobreiro em Portugal.

São vários os exemplos que indiciam o contributo da biodiversidade do montado para

o diálogo entre ciência e outros saberes, não apenas pelo diagnóstico dos elevados

índices de diversidade biológica, mas também pelo reconhecimento da relevância das

inter-relações entre os agentes ecológicos, económicos, sociais e ambientais, para a

sustentabilidade do sobreiro49. Neste texto referiu-se o caso de estudo de fungos

mutualistas do solo associados ao sobreiro, realizado em áreas de montado com e sem

sintomas de declínio, ao longo da mancha com melhor produção de cortiça, e que

envolveu o diálogo entre investigadores e proprietários. O estudo contribuiu, por um lado,

para reconhecer a importância da biodiversidade do solo para a vitalidade do sobreiro e

resiliência do montado; por outro, para criar e desenvolver estratégias de actuação

colectiva entre investigadores e proprietários com vista a uma sustentabilidade plural. Os

trabalhos de investigação multidisciplinares, transdisciplinares e integrados multiplicam-

se50 e corroboram a importância da biodiversidade para a sustentabilidade ecológica.

Mas, a biodiversidade do montado contribui, de igual modo, para o debate aos níveis

político e económico sobre o futuro que se deseja para o sobreiro em Portugal, também

pelos actuais cenários de risco, incerteza e imprevisibilidade, associados ao uso

indiscriminado e indisciplinado dos recursos naturais, e às alterações climáticas. Nas

últimas décadas a estratégia política nacional passou pela legitimação e promoção do

associativismo florestal, como forma de redefinir novas dinâmicas da floresta em

Portugal. No presente, existem cerca de cinquenta Associações de Proprietários e

Produtores Florestais com acção relevante nas zonas de produção suberícola. Estas

associações incorporam técnicos florestais que actuam junto dos associados com um

49

No domínio de diálogo entre ciência, destaca-se uma iniciativa recente na investigação científica, que reúne investigadores de diferentes áreas e com o objectivo estudar vários parâmetros-resposta do sobreiro a factores ambientais, a sensibilidade do sobreiro a pragas e a doenças, e os mecanismos envolvidos na formação de cortiça. Concurso de projectos financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia em 2009 (ver http://alfa.fct.mctes.pt/apoios/projectos/concursos/est/). No final do estudo pretende-se criar um chip que possa ser útil, também a outros Quercus, como a azinheira e os carvalhos, com igual importância na

Europa, ao nível ambiental e económico. 50

Sobre este tema veja-se o texto de Teresa Pinto-Correia et al. (2011).

Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal

84

discurso unificador entre a exploração e a sustentabilidade do sobreiro e do montado51. É

disso exemplo a iniciativa internacional de Certificação Florestal do Montado52, que visa

constituir um factor de competitividade e estratégia para promover a sustentabilidade do

mundo rural, desde os pontos de vista ecológico, económico, social, e ambiental. A juntar

a estas iniciativas de redefinição do uso do montado, por incorporação do valor da

conservação da biodiversidade, acrescem, também, em número e dimensão, iniciativas

privadas, organizadas em consórcios, com o compromisso de incluírem medidas

voluntárias de mitigação dos impactes das actividades de exploração na biodiversidade,

e, assim, salvaguardar equilíbrios dinâmicos nos ecossistemas53.

Outros exemplos chegam da sociedade civil, em resposta à degradação do montado

(Marta-Pedroso et al., 2007) ou de áreas do território tradicionalmente ocupadas pelo

sobreiro (WWF, 2007; Regato e Salman, 2008). Dois exemplos de particular interesse

são o Programa Castro Verde Sustentável54, por integrar a conservação da

biodiversidade com gestão agrícola, ecoturismo, educação ambiental e investigação

científica; e a Área Protegida Privada da Faia Brava55, não apenas por ser a primeira área

protegida privada em Portugal, mas, também, por conduzir a redefinição da paisagem

orientada para a restauração ecológica e reintegração socioecológica e económica após

o abandono das práticas agrícolas e/ou silvopastoris tradicionais nas últimas décadas56.

51

Os sectores da cortiça e a actividade silvopastoril representam produtos com valor acrescentado, exterior ao ecossistema, por não dependerem directamente da sustentabilidade do montado. Mas também ao nível destes sectores emerge a definição de estratégias de produção intersectadas com a biodiversidade do montado. 52

O processo de certificação do sobreiro partiu de uma estratégia de dimensão internacional Forest Stewardship Council (ver http://www.fsc.org/; http://www.fscportugal.org/) contou com a WWF como entidade facilitadora (ver http://wwf.panda.org/mediterranean/). Em 2005 foram certificados 912 hectares de montado de sobro do Alentejo pelo FSC, actualmente existem cerca de 52 mil hectares de montado certificado. Desde 2010, estão no mercado as rolhas de cortiça FSC. 53

Por exemplo a iniciativa europeia Business and Biodiversity (B&B), desenvolvida originalmente pelo Instituto da Conservação da Natureza e Biodiversidade (em 2007), que no presente conta com 50 empresas aderentes (ver http://www.icnb.pt). 54

Programa desenvolvido pela organização não-governamental, a Liga para a Protecção da Natureza (LPN), em parceria com a Câmara Municipal de Castro Verde, Associação de Agricultores do Campo Branco e outras entidades da região. A LPN é proprietária de várias herdades no concelho de Castro Verde, adquiridas parcialmente com donativos de cidadãos e empresas, na segunda metade da década de 90 do século XX. Esta iniciativa da LPN conta com a participação activa de cientistas e surgiu como resposta à ameaça da florestação com eucalipto numa área que no passado foi montado e durante a Campanha do Trigo uma estepe cerealífera. A introdução do eucalipto é indesejável pelos impactes negativos na biodiversidade e recursos edáficos, e por ser uma região com solos empobrecidos. 55

A Área Protegida Privada Faia Brava, em Figueira de Castelo Rodrigo (Portaria n.º 1181/2009 de 07 de Outubro, n.º 7 do artigo 5.º), está sob a responsabilidade da Associação Transumância e Natureza (ver http://www.atnatureza.org). A Faia Brava está integrada na Zona de Protecção Especial do Vale do Côa (Decreto-Lei n.º 384-B/99, de 23 de Setembro) e no Parque Arqueológico do Vale do Côa (Decreto-Lei n.º 117/97, de 14 de Maio). A designação desta área protegida coincide com o Ano Internacional da Biodiversidade 2010. 56

A redefinição de valor da função atribuída à identidade da paisagem em áreas abandonadas do território adquire expressão crescente na Europa (ver http://rewildingeurope.com). Ao aumento da importância deste nível de utilização do território associa-se, claramente, um decréscimo da importância da propriedade da terra enquanto meio de regulação e de captação de benefícios económicos. A compatibilização entre estas novas formas de utilização não é, porém, isenta de desafios. Quando a sua dimensão aumenta, a um patamar de indiferença, seguir-se-ão, necessariamente, questões relacionadas com a gestão e estratégia de

Anabela Marisa Azul

85

Em ambas as situações, estamos perante novas dinâmicas de exploração da natureza,

que possibilitam às pessoas sentirem-se, simultaneamente, utilizadores e agentes

actuantes na promoção da sustentabilidade. Ostrom e Nagendra (2006) defendem que

estas novas dinâmicas e formas de actuação colectiva aumentam a eficácia e

efectividade na gestão e protecção dos recursos naturais, pelas pessoas se sentirem

parte integrante dos processos e não meramente seguidores passivos de uma autoridade

que impõe regras. De facto, as pessoas podem ser agentes pelo seu contributo em

actividades de recuperação, de inventariação, de monitorização, de decisão de

estratégia, ou outra. Em última análise, a actuação colectiva pode exercer um contributo

importante na transformação da paisagem com impacto directo no aumento da floresta

nativa57. Estes novos modos de actuação colectiva oferecem, ainda, vantagem para o

Estado, pela acção directa no território em defesa do património natural. Não quer isto

dizer menor responsabilidade para o Estado, ou a direcção numa política isenta e

ausente de estratégia. Pelo contrário, a soberania do Estado assume papel essencial,

nomeadamente para o desenvolvimento de medidas concertadas entre apoios

estruturais, na estabilidade económica, e a continuidade na investigação científica e no

desenvolvimento de um plano no quadro legal58 e educativo. Relativamente a este último,

são de referir iniciativas crescentes na área da promoção e divulgação do conhecimento

científico59. Porque não está em causa única e exclusivamente o compromisso de

conservação da biodiversidade, ou do equilíbrio e identidade dos ecossistemas, ou do

desenvolvimento sustentável do sobreiro, mas também o bem-estar das pessoas.

Em suma, é inadiável reconhecer que os desafios para mitigar o declínio do sobreiro

e promover a sua sustentabilidade passam, impreterivelmente, por uma interpretação

integrada entre o conhecimento científico e outros saberes, e pela acção conjunta entre

os agentes ecológicos, ambientais, económicos e sociais. O argumento conservação da

biodiversidade impele para um investimento continuado no conhecimento dos processos

desenvolvimento. 57

Em Portugal as florestas seminaturais correspondem apenas a 4% da floresta (DGRF, 2007b). A distribuição das florestas seminaturais é muito dispersa e a manutenção está maioritariamente a cargo do Estado. Está entre os objectivos do Plano de Desenvolvimento Sustentável da Floresta Portuguesa (PDSFP) o aumento da área do território ocupada por flora nativa (DGRF, 2007b), nomeadamente espécies de Quercus, entre elas o sobreiro, por via de imposição legislativa (Resolução do Conselho de Ministros nº 114/2006 de 15-09-2006) e regulamentar (definida a nível central ou regional), e de incentivos e desincentivos económicos (ver em http://www.afn.min-agricultura.pt/portal/gestao-florestal/ppf/enf). 58

A legislação nacional apresenta um vazio legal relativamente à protecção da natureza no que diz respeito às novas redefinições do território, nomeadamente programas de reflorestação, gestão cinegética, e melhoramento de habitats. Recentemente foi estabelecido um Regulamento dirigido ao regime de «Gestão Multifuncional» e da «Promoção da Competitividade Florestal», integrado no Programa de Desenvolvimento Rural do Continente (Portaria n.º 821/2008 de 8 de Agosto). Este regulamento não contempla, por exemplo, para o caso da «produção de cogumelos silvestres», medidas de protecção relativamente ao uso inóculo de fungos de espécies exóticas. 59

Sobre este tema veja-se http://www.cienciaviva.pt/home/; http://ccvfloresta.com/

Diálogos e modos de actuação colectiva com vista à sustentabiliade do sobreiro em Portugal

86

que ocorrem na natureza; ao mesmo tempo contribui para novas redefinições e

posicionamentos sociais, no sentido de uma sustentabilidade plural.

ANABELA MARISA AZUL

Investigadora Auxiliar do Centro de Ecologia Funcional, Departamento de Ciências da Vida,

Universidade de Coimbra. Licenciada em Biologia e Doutorada em Ecologia, desenvolve a sua

investigação em Interacções Bióticas, no domínio da Taxonomia, Ecologia e Biotecnologia de

Fungos. Paralelamente debruça-se sobre estratégias para a promoção da cultura científica e o

desenvolvimento de redes de conhecimento na área da Micologia.

Contacto: [email protected]

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OS IMPERATIVOS DA PADRONIZAÇÃO NO CONTEXTO DAS PRÁTICAS MÉDICAS: PISTAS

PARA UM BREVE ENSAIO TEÓRICO

HÉLDER RAPOSO

ESCOLA SUPERIOR DE TECNOLOGIA DA SAÚDE DE LISBOA, INSTITUTO POLITÉCNICO DE LISBOA

Resumo: Este texto procura ensaiar uma reflexão sociológica que, mobilizando contributos provenientes de vários domínios disciplinares, seja capaz de problematizar a emergência das dinâmicas de reconfiguração da profissão médica, bem como os significados subjacentes ao desenvolvimento das lógicas de regulação e padronização no interior deste campo. Resgatando a abordagem sociológica das generalizações interpretativas e dos enquadramentos que tendem a perpetuar a obstinação com a questão do aumento ou da perda do poder profissional, exploram-se em alternativa outros enfoques que propiciem pistas de reflexão e de trabalho sobre a dimensão contextual e situada dos conhecimentos padronizados no contexto das práticas profissionais concretas. Palavras-chave: medicina baseada na prova, padronização, regulação, profissão médica, prática clínica.

INTRODUÇÃO

O acentuado protagonismo que a expressão evidence-based medicine – medicina

baseada na prova1 – actualmente assume no campo da saúde em geral, e na medicina

em particular, constitui um importante indicador de mudanças substantivas que estão na

base de múltiplas reconfigurações (epistemológicas, profissionais, organizativas,

institucionais, políticas, etc.) que, no seu conjunto, apontam para a redobrada importância

da dimensão científica na organização e na prestação dos cuidados de saúde. Esta nova

terminologia tem subjacente a preocupação com a enorme diversidade da prática clínica

1 Para efeitos de tradução da palavra evidence, utilizo aqui a noção de prova em detrimento da de evidência,

embora esta última se tenha vulgarizado e se tenha tornado de uso corrente. Sobre as razões dessa utilização mais vulgarizada, é interessante considerar os argumentos avançados pelo Director do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência (CEMBE), António Vaz Carneiro: “A palavra ‘evidência’ é uma tradução etimologicamente incorrecta da palavra inglesa ‘evidence’. De facto, a tradução deveria ser ‘provas’, devendo neste caso a designação de Evidence-Based Medicine ser ‘Medicina Baseada nas Provas’. Como achámos que se perderia a vantagem da conotação directa com a designação anglo-saxónica de EBM, optámos pela palavra ‘evidência’ reconhecendo os problemas que esta posição gera” (Carneiro et al., 2007: 2).

Hélder Raposo

92

o que tem, aliás, feito da constatação relativa à persistente variação da medicina (Berg e

Mol, 1998) um dos principais problemas a ultrapassar2 (Weisz et al., 2007: 708) até

porque essa mesma diversidade é entendida como geradora de problemas não só ao

nível da própria qualidade dos cuidados de saúde, mas também, e sobretudo, ao nível do

controlo e da racionalização dos custos (Timmermans e Kolker, 2004; Weisz et al., 2007).

Nesse sentido, pode-se entender o desenvolvimento da medicina baseada na prova

(MBP) como uma estratégia que está especificamente orientada para a tentativa de

aplicar de forma mais uniforme e padronizada as provas científicas decorrentes da

utilização das análises populacionais a vários aspectos da prática médica, como a

validação das terapêuticas (Marks, 1997) ou as recomendações clínicas (Timmermans,

Berg, 2003). Daqui resulta, portanto, que a MBP é entendida pelos seus promotores

(Raposo, 2010) como uma nova metodologia que, para além de permitir conferir maior

objectividade e validade aos processos de decisão clínica através de critérios

epidemiológicos,3 é perspectivada como tendo a vantagem suplementar de se constituir

como um requisito indispensável na promoção da eficácia e eficiência dos recursos e

investimentos em saúde, na avaliação de tecnologias e na própria alocação dos recursos,

sempre com base em estimativas probabilísticas de custo/benefício, que constituem hoje,

e cada vez mais, uma ferramenta indispensável para a implementação de políticas de

base mais managerialista.4

Com efeito, trata-se de uma orientação que se enquadra num contexto político-

ideológico mais geral, e que é fortemente marcado por uma lógica de intervenção política

pautada por princípios directamente alicerçados na Nova Gestão Pública (NGP) dos

serviços administrativos, o que no caso da saúde se traduz na implementação de

reformas políticas centradas na redução dos custos e na melhoria dos resultados

económicos. Estes princípios da NGP configuram uma linha de intervenção política que é

cada vez mais transversal a vários sectores da administração pública e a vários espaços

geográficos, o que significa, tal como detalhadamente salientado por Carvalho (2009) e

por Correia (2009) relativamente ao caso português, que opções como a

empresarialização dos hospitais públicos são coerentes com a implementação de

2 O trabalho, hoje clássico e seminal, do epidemiologista Archie Cochrane (1972/1999) apresenta os

princípios subjacentes à medicina baseada na prova, pondo já a ênfase na importância das revisões sistemáticas dos ensaios clínicos randomizados, para que os profissionais possam ter acesso a informação de qualidade sobre as provas que suportam, ou refutam, as opções terapêuticas, evitando assim o mau uso das técnicas e recursos disponíveis. 3 Uma exploração mais aprofundada sobre a importância da quantificação e da prova estatística no

pensamento biomédico pode ser encontrada em Raposo (2009). De resto, a importância da quantificação na demonstração de resultados é, igualmente, um princípio de incontornável importância nas avaliações e decisões managerialistas no campo da saúde. 4 Sobre a delimitação da natureza teórica deste conceito, e em particular no que este tem de mais específico

em relação à designação de gerencialismo, é esclarecedora a fundamentação de Carvalho (2009: 42-52). Agradeço a precisão deste reparo a Tiago Correia.

Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico

93

princípios organizacionais que procuram corrigir, através de modelos de gestão privada,

as ineficiências e desperdícios do sector público. Tal assim é que alguns autores

(Timmermans e Kolker, 2004; Weisz et al., 2007) têm associado a intensa expansão e

desenvolvimento da produção de guidelines – ou normas de orientação clínica – à

importância atribuída por parte dos políticos e dos gestores à redução dos custos e ao

controlo dos constrangimentos financeiros, dado que os critérios de investimentos nos

cuidados de saúde passam a estar vinculados à demonstração de resultados que

sustentem quais as opções (tecnologias, medicamentos ou outros recursos terapêuticos)

mais eficazes, benéficas e rentáveis.

Ora se estas reformas políticas5 no campo da saúde foram frequentemente

promovidas e implementadas sem o envolvimento directo da profissão médica, indo não

só contra os seus interesses corporativos mais estabelecidos, mas também fazendo

entrar em cena novos actores, como os doentes, os gestores e outras categorias de

profissionais de saúde (Tousijn, 2000), será que este mesmo contexto é limitador da

autonomia clínica e do tradicional poder profissional da medicina? E será também

plausível considerar que os novos equilíbrios nas relações entre o Estado, o capital e as

profissões instauraram inelutavelmente um enquadramento que restringe e subordina a

autoridade do ethos profissional da medicina nas organizações de saúde, precipitando,

assim, um processo de esvaziamento da autoridade e autonomia do julgamento clínico e,

em última instância, de proletarização e desprofissionalização?

Neste texto, mais do que tentar corroborar ou infirmar estas interrogações genéricas,

procurar-se-á, isso sim, ensaiar uma reflexão sociológica que, mobilizando contributos

provenientes de vários domínios disciplinares da sociologia (em particular a sociologia

das profissões, da saúde, do conhecimento e os estudos sociais da ciência), seja capaz

de ultrapassar o âmbito mais redutor e maniqueísta destas questões, dado que o carácter

categórico das suas formulações secundariza e negligencia outros enfoques que

problematizam a emergência de várias dinâmicas de reconfiguração da profissão médica,

bem como os significados subjacentes ao desenvolvimento das lógicas de regulação e

padronização. Assim, pelo seu carácter fundamentalmente teórico e de perscrutação

analítica,6 o que através deste texto se procurará discutir são, por um lado, as razões e

os interesses estratégicos (designadamente no interior da profissão médica) da crescente

5 Para uma contextualização panorâmica desta temática, remete-se o leitor interessado para Carvalho (2009),

em particular o capítulo 1. 6 As pretensões deste texto confinam-se ao ensaio de algumas explorações teóricas decorrentes de uma

investigação de doutoramento mais vasta, e ainda em fase de desenvolvimento, sobre a medicina baseada na prova em Portugal. Optou-se por não apresentar informações empíricas entretanto obtidas através da investigação, na medida em que esse processo ainda decorre, mas também porque o que entretanto já se recolheu carece ainda de um grau de sistematicidade que seja adequado a exercícios de natureza diferente da que aqui é trabalhada.

Hélder Raposo

94

ênfase na padronização e o empenho na racionalização da Medicina, e por outro,

compreender o carácter dinâmico e processual da produção e implementação de

padrões, chamando a atenção não só para o seu carácter adaptativo e contingente, mas

também, para a dimensão contextual e situada desses conhecimentos na prática

profissional concreta, o que nos deverá alertar para o facto de que, não obstante estas

pretensões de universalidade e uniformização, a dimensão local põe em evidência o

carácter plástico e recontextualizado que a mobilização e a “construção” desse

conhecimento sempre implica no contexto das diversas práticas profissionais (Caria,

2005).

Previamente, no entanto, considera-se pertinente desenvolver um conjunto de

considerações críticas relativamente a alguns pressupostos que têm ainda alguma

ressonância, sobretudo no campo da sociologia das profissões. Ao fazê-lo, pretende-se

justificar e delimitar melhor a natureza dos questionamentos e da reflexão deste trabalho,

até porque contrariamente às interpretações mais convencionais que vaticinam cenários

de inexorável ocaso do poder profissional da medicina, estamos hoje na presença de

fenómenos bem mais complexos e heterogéneos, desde logo porque não têm deixado de

se verificar situações de reforço do poder profissional de alguns segmentos da profissão

médica, que passam, justamente, a assumir novas formas de protagonismo por via da

assumpção de papéis regulatórios que recolocam noutros termos a questão mais global

do profissionalismo médico, bem como a própria natureza das reconfigurações científicas

no interior da profissão.

1. DINÂMICAS ACTUAIS DO PODER PROFISSIONAL DA MEDICINA: NOVAS RESPOSTAS PARA

“VELHAS” QUESTÕES

É consensual nos exercícios de revisão de literatura no campo da sociologia das

profissões, reconhecer o impacto que as perspectivas teóricas do paradigma do poder

assumiram neste domínio disciplinar, dado que estas constituíram um importante ponto

de viragem face às perspectivas anteriormente consagradas, designadamente as teses

funcionalistas. Em particular, esta corrente inaugurou e desenvolveu novas problemáticas

sociológicas a partir de algumas premissas críticas, problematizadoras e até

contestatárias quanto aos privilégios materiais e simbólicos resultantes de situações de

poder e monopólio profissionais mantidos por algumas profissões, como tem sido o caso,

recorrentemente estudado, da medicina (Rodrigues, 1997; Gonçalves, 2007).7 No

entanto, embora as principais análises críticas relativamente à dominância do poder

7 Sem pretensões de exaustividade, apenas se indicam estas duas referências, dado que são ilustrações

esclarecedoras e acessíveis acerca desta perspectiva no âmbito mais alargado das correntes e problemáticas fundamentais deste campo disciplinar.

Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico

95

profissional tenham contribuído de forma decisiva para pôr em evidência o modo como as

profissões utilizam o respectivo poder para construir e defender os seus interesses e

prerrogativas, assim como para obter o reconhecimento social, não deixa de ser

igualmente importante constatar como no decurso das últimas décadas se têm vindo a

verificar várias transformações que alteraram o sentido de muitas dessas interpretações,

sobretudo no que diz respeito à profissão médica. Assim, fenómenos como a tendência

para as superespecializações no interior da medicina e respectiva perda de capacidade

colectiva de negociação; a constante emergência de novos grupos ocupacionais no

campo da saúde a desenvolverem estratégias de profissionalização; a ampliação de

atitudes críticas e cépticas face à autoridade profissional, muitas vezes vinculadas a um

maior escrutínio público das profissões; o crescente envolvimento dos governos no

financiamento e na regulação dos cuidados de saúde, ou o desenvolvimento das

actividades profissionais em organizações burocráticas e o consequente assalariamento

desses grupos, constituem exemplos representativos de algumas implicações com

consequências substantivas na alteração da autonomia na profissão médica (Tousijn,

2000; Timmermans e Kolker, 2004).

É, justamente, neste quadro de entendimento relativo à erosão do prestígio, do

monopólio e de outros privilégios de poder profissional, que adquirirem protagonismo

algumas teses – nomeadamente as da proletarização e desprofissionalização –, cujos

enfoques se destacam por preconizarem, no seu essencial, o crescente declínio de

competências e qualificações e da autonomia do trabalho dos profissionais, resultante

dos esforços administrativos e burocráticos para melhorar o controlo sobre o processo

produtivo. Nestas teses, a ênfase é colocada na fragmentação, desqualificação e

rotinização provocadas pela acção do poder burocrático-administrativo. Nessa medida,

entende-se que os profissionais, por força do assalariamento, se transformam em

trabalhadores especializados incapazes de escolher os seus próprios projectos ou tarefas

e são forçados a trabalhar a ritmos e com procedimentos institucionalizados que são

claramente tributários da lógica e dos critérios de eficácia e de eficiência da gestão

privada das organizações.

Todavia, e evitando resvalar em alguns dos radicalismos destas teses, principalmente

quando vaticinam cenários de inelutável declínio do poder profissional, torna-se

importante salientar que a erosão da “tradicional” dominância da profissão médica

assume visibilidade nalgumas dimensões, embora noutras até se tenda a verificar a

emergência de novas dinâmicas que são indicativas do reforço de novas dimensões de

poder, como acontece, nomeadamente, com a gradual tendência de auto-regulação em

matéria científica em algumas áreas da medicina, o que significa que o impacto das

Hélder Raposo

96

actuais lógicas de produção de guidelines baseada em novos modos de produção da

prova científica, apontam para a emergência de novos papéis profissionais. Tal significa,

portanto, que se a um nível individual8 se pode admitir como plausível alguma erosão da

autonomia médica, sujeita que está a mais constrangimentos e formas de escrutínio

público, a um nível colectivo essa autonomia até se tende a reforçar por via de novos

papeis regulatórios, como a definição e produção de padrões, guidelines e protocolos

(Tousijn, 2000).

Neste sentido, torna-se relevante relembrar o potencial heurístico de algumas

dimensões de análise importantes, como sejam as relativas ao carácter heterogéneo,

internamente estratificado e divergente das profissões, dado que permitem evitar quadros

de leitura muito dicotómicos, simplificadores e apriorísticos quanto à interpretação da

dinâmica das profissões.

Sob este ponto de vista, e como bem lembra Rodrigues,

As profissões estão longe de ser blocos homogéneos, comunidades cujos membros

partilham identidades, valores e interesses por força dos processos de socialização

sofridos nas instituições de formação. Dentro das profissões existem segmentos ou

grupos constituídos a partir da diversidade das instituições de formação, de

recrutamento e das actividades desenvolvidas por membros do mesmo grupo

ocupacional, pelo uso de diferentes técnicas e metodologias, pelo tipo de clientes e

pela diversidade do sentido de missão, sendo que tais diferenças podem até

corporizar diferentes associações de interesses no interior do próprio grupo. Tais

segmentos tendem a tomar o carácter de movimento social, desenvolvem

identidades distintivas, um sentido de passado e futuro específicos, organizam as

suas actividades e desenvolvem interacções por forma a garantir uma posição

institucional. Com estas interacções, que assumem a maior parte das vezes a

forma de conflitos, ocorrem mudanças, avanços, redefinindo-se novas posições e

relações dentro do grupo e fora dele, que são parte fundamental nos processos de

profissionalização. (Rodrigues, 1997:19)

Assim sendo, o que especificamente se pretende argumentar é que face à

constatação da heterogeneidade da profissão médica, torna-se bastante frágil qualquer

sustentação teórica ancorada em pressupostos de elevada generalização quanto ao

8 À semelhança do que fiz notar na nota 4, também aqui agradeço a observação de Tiago Correia sobre as

dinâmicas da autonomia médica, no sentido em que podem ocorrer em simultâneo tendências de reforço e enfraquecimento dessa autonomia. Neste argumento procura-se justamente dar conta do modo como alguns (poucos) médicos usam as regras do mercado para o reforço da sua posição em termos individuais e autónomos à profissão (cf. Stoleroff e Correia, 2008; Correia, 2009).

Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico

97

significado das reconfigurações profissionais da medicina, o que significa que as leituras

construídas em torno da ideia de que a medicina é hoje passiva e refém de um maior

controlo administrativo se tornam problemáticas e, sobretudo, desfasadas face à

diversidade de situações empíricas potencialmente observáveis. Nesta acepção, pode-se

até considerar que o principal mérito analítico que daqui decorre reside, precisamente, na

consideração de que a profissão médica se tem vindo não só a fragmentar, em grande

medida devido à acentuação da tendência de especialização – em que algumas das

especialidades praticamente se tornam elas próprias profissões (Tousijn, 2000) –, mas

também a estratificar-se internamente, facto que propicia a constituição e o

desenvolvimento de diferentes papéis profissionais, alguns deles directamente

conectados à investigação e, principalmente, à gestão (Freidson, 1986; Tousijn, 2000).

Em grande medida, daqui resultam algumas importantes diferenciações internas e

segmentações hierárquicas que traduzem a afirmação de elites médicas ligadas à

investigação clínica de base epidemiológica, ou seja, de grupos com um perfil mais

académico e com ligações institucionais de carácter internacional, o que lhes confere

conhecimento e legitimidade para definirem e estabelecerem as bases dos padrões e dos

guidelines. É, aliás, também nesse sentido que Freidson (1986) argumenta, dado que na

sua preocupação analítica com o papel da autonomia clínica em contextos

crescentemente burocratizados considera que, em última instância, são os médicos que

produzem e formulam os padrões.

É certo que entre a comunidade médica esta questão é bastante controversa e

geradora de clivagens importantes, na medida em que o desenvolvimento de protocolos e

de guidelines, com base na “melhor” evidência disponível, reactualiza com uma acuidade

bastante notória discussões que conduzem à confrontação de distintos entendimentos

relativamente aos fundamentos da própria medicina. Sobretudo para os que se inscrevem

na tradição do humanismo médico, a natureza das críticas que desenvolvem orienta-se

para a problematização da especificidade das relações terapêuticas e das respectivas

dimensões da experiência humana que lhe estão subjacentes, o que significa que face à

perspectiva da crescente utilização dos protocolos e guidelines, e do lugar central que os

mesmos ocupam no âmbito do trabalho clínico, tendem a multiplicar-se posições

contestatárias que, em termos substantivos, sustentam que a MBP promove a erosão da

autoridade da arte médica ao desvalorizar a autonomia dos médicos ao nível das suas

faculdades de julgamento clínico; que esta enfatiza obsessivamente a quantificação e a

objectividade em detrimento da experiência clínica; que empobrece o ethos humanitário

da medicina; que desvaloriza a incerteza; que sobrepõe a racionalização económica da

prestação dos cuidados de saúde à autonomia profissional; e que dilata a plasticidade do

Hélder Raposo

98

próprio conceito de MBP, o que o torna facilmente apropriável para outros actores no

campo da saúde (governos, seguradoras, indústrias farmacêuticas) que aí encontram

legitimação para promoverem novos critérios de financiamento e de racionalização

económica baseados em análises de custo-benefício.

Claro que não obstante tratar-se de um debate em nada despiciendo, até porque

coloca em destaque aspectos directamente relacionados com as transformações da

própria natureza do conhecimento médico, agora mais estruturalmente baseado na

epidemiologia (Timmermans e Kolker, 2004; Raposo, 2009), o que, no entanto, assume

uma pertinência redobrada na linha de argumentação deste texto, é a questão relativa ao

modo como se desenvolvem novos equilíbrios e dinâmicas de reforço e legitimação do

profissionalismo médico. E isto no sentido em que alguns segmentos da profissão

médica, mais do que incorporarem a abordagem managerialista, “colonizam-na”

activamente, dado que se vão tornando bem-sucedidos no desenvolvimento de um papel

regulatório que não só transforma a produção do conhecimento, como viabiliza um

reforço importante no poder profissional por via da produção e disseminação do mesmo a

uma escala organizacional cada vez mais consolidada (Kuhlmann, 2006). Verifica-se,

assim, que através da acentuação da procura de maior certeza médica, estabelecem-se

novas configurações de profissionalismo médico, pois apesar de o processo de produção

e formulação de guidelines poder envolver vários actores, alguns dos quais externos ao

campo médico (Timmermans e Epstein, 2010), uma parte muito importante do

protagonismo deste processo é assumido pelos profissionais médicos (Timmermans e

Kolker, 2004).

Tal significa, portanto, que mais do que a simples intrusão das prerrogativas

provenientes da gestão, adquirem proeminência os critérios e o conhecimento de base

epidemiológica, o que faz com que passe a ser mobilizada uma constelação de

conhecimentos específicos que permitem proceder a sofisticadas avaliações

metodológicas relacionadas com o design das investigações, bem como com os

resultados estatísticos, o que é um aspecto de grande importância, atendendo às

dificuldades que uma parte substancial dos clínicos tem em dominar conceitos e

princípios epidemiológicos (Timmermans e Kolker, 2004: 185).

De resto, a ênfase neste tipo de conhecimento torna-se, em alguns contextos, de tal

forma estratégica que a abordagem da MBP se torna num discurso de poder cuja retórica

ao ser mobilizada se transforma num instrumento de reforço da autoridade profissional,

sobretudo junto de actores provenientes da burocracia administrativa (Geltzer, 2009).

Noutros casos, pode inclusivamente constituir-se como uma oportunidade não só para a

reprofissionalização da medicina através da aproximação e incorporação de valores,

Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico

99

princípios e práticas organizacionais coerentes com a racionalidade gestionária, mas

principalmente para a profissionalização de alguns segmentos ocupacionais da profissão

médica – como os clínicos gerais – que historicamente foram objecto de uma

secundarização gerada na dinâmica das especializações, o que se traduziu em níveis

mais restritos de poder, dominância e prestígio no interior da profissão médica (Pickard,

2009).

Com efeito, e a título meramente ilustrativo, é interessante verificar – com base em

alguns elementos empíricos resultantes da recolha exploratória de um processo de

pesquisa empírica ainda em curso sobre o contexto médico nacional9 – quais as áreas

médicas que efectivamente parecem protagonizar uma ligação mais estreita com a

abordagem da MBP. Assim, se considerarmos especificamente as actividades de

formação e divulgação levadas a cabo pelo Centro de Estudos de Medicina Baseada na

Evidência (CEMBE),10 designadamente em termos de realização de vários cursos de pós-

graduação e de Educação Médica Contínua em vários hospitais e universidades

portuguesas, constata-se a existência de uma crescente procura que parece atestar a

importância estratégica conferida à MBP. Trata-se, de facto, de um dado muito revelador,

na medida em que das perto de 60 acções formativas asseguradas pelo CEMBE – entre

1999 e 2009 – que foram integradas no âmbito dos vários cursos de pós-graduação, a

larga maioria orientou-se para a gestão de serviços de saúde e também para as

auditorias clínicas, estas últimas promovidas pela Ordem dos Médicos. Em relação às

áreas médicas, embora exista alguma diversidade (em áreas como a reumatologia,

medicina dentária, genética clínica ou farmacoepidemiologia), é possível constatar que a

ligação mais estável e duradoura é, justamente, a que se verifica com a área da clínica

geral, ao ponto de existir um protocolo de colaboração entre o CEMBE e a Associação

Portuguesa de Médicos de Clínica Geral, e que se traduz particularmente num curso pós-

graduado de actualização que em 2010 contava já com a sua 7ª edição.

9 Reporto-me, tal como explicitado na nota 6, ao meu trabalho de doutoramento que se encontra em

desenvolvimento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e que tem como objecto de estudo a MBP em Portugal. 10

O CEMBE caracteriza-se por ser uma unidade estrutural da Faculdade de Medicina de Lisboa (com autonomia financeira, bem como ao nível da sua gestão e da investigação que desenvolve), que tem como finalidade o desenvolvimento da área científica designada por medicina baseada na evidência Foi criado em 1999 e tem como principais objectivos promover a divulgação de conhecimentos científicos, fazer investigação biomédica, formar e/ou colaborar na formação no âmbito da medicina baseada na evidência, prestar consultoria científica, bem como estabelecer os contactos nacionais e internacionais em matéria de disseminação e implementação de guidelines. Actualmente é composto por 32 membros (cerca de metade

com estatuto de consultores), sendo que na sua maioria são médicos de várias áreas de especialidade, apesar de também estarem vinculados a este Centro consultores de outras áreas, em particular a área da enfermagem e da educação médica.

Hélder Raposo

100

De facto, a par da indústria farmacêutica (sobretudo no âmbito da formação e da

consultoria científica), esta é a especialidade médica que de forma mais efectiva se tem

aproximado do CEMBE, o que é revelador da ênfase que tem sido concedida às

metodologias da MBP. É um aspecto que, sem dúvida, merece e justifica maior

indagação e problematização, até porque se trata de uma especialidade que, pelas suas

características intrínsecas, está muito alicerçada na relação terapêutica com o doente,

facto que poderia sugerir, no imediato, um maior privilégio da autonomia médica em

matéria de decisão clínica – num sentido mais próximo do ethos humanitário da medicina

– e não tanto na incorporação sistemática de normas de orientação clínica que decorrem

de metodologias científicas resultantes de evidência baseada em critérios de prova

estatística. Se, no fundo, se trata de uma estratégia profissional de maior visibilidade e

afirmação face a outras especialidades médicas mais prestigiadas científica e

simbolicamente, ou “apenas” de uma tentativa pragmática de encontrar instrumentos

eficazes que permitam uma melhor adaptação face à crescente complexidade em termos

de conhecimentos técnicos e volume de informação especializada com que os clínicos

têm de lidar na sua prática profissional quotidiana, ou até mesmo uma tentativa de

resposta às pressões managerialistas de demonstração de resultados e de

fundamentação das práticas, é algo que deverá ser explorado de forma mais substantiva

em fases mais adiantadas da investigação empírica a que atrás se aludiu.

2. DA PRODUÇÃO COLECTIVA DA PROVA À RECONTEXTUALIZAÇÃO PRÁTICA DA

PADRONIZAÇÃO

Relativamente à génese da cultura subjacente ao desenvolvimento dos guidelines

clínicos, trata-se de um processo que remete para uma longa história internacional,

marcada sobretudo pelo protagonismo norte-americano (Weisz et al., 2007). Esta liga-se,

fundamentalmente, à intensificação de múltiplas e complexas actividades que, no campo

da saúde, vão tornando o desenvolvimento de várias formas de padronização

(Timmermans e Berg, 2003) um imperativo que se vai traduzindo na viabilização das

condições necessárias para a aplicação de protocolos sobre as melhores práticas a

desenvolver nas diversas situações e circunstâncias. De facto, e justamente no âmbito da

realidade norte-americana, pode-se considerar que antes mesmo da “naturalização” dos

ensaios clínicos randomizados como a melhor forma para medir a eficácia das acções

médicas com base na investigação (Marks, 1997), e a partir desses resultados

sistematizar as melhores recomendações para a prática clínica, já era patente a

existência de um certo clima intelectual bastante propício à adesão a fortes convicções

relativamente à autoridade moral das provas científicas provenientes da investigação

Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico

101

clínica no campo terapêutico e, portanto, à assumpção de um novo perfil científico

(Marks, 2009).

No fundo, o que a pretexto desta referência aqui se procura salientar, é o modo como

a orientação para a padronização – que faz da demonstração de resultados baseados em

investigação científica de base epidemiológica um requisito indispensável – põe em

evidência não só a proliferação de novos discursos e racionalidades, associados à

transparência, eficácia e à regulação em detrimento dos julgamentos individuais e

idiossincráticos, mas também, e muito significativamente, uma importante mudança na

regulação da qualidade da prática médica. Trata-se de um processo efectivamente

complexo, na medida em que envolve múltiplos grupos de actores com níveis de elevada

interdependência, circunstância que em si mesma, e desde logo, evidencia o carácter

bastante desadequado e redutor da dicotomia convencional que põe em confronto

médicos e administradores (Weisz et al., 2007).

De facto, a autoridade moral associada a esta nova lógica da produção colectiva da

prova que envolve e implica uma alargada colaboração internacional, francamente

exponenciada pelas novas dinâmicas de interdependência da actual globalização, resulta

de amplas negociações colectivas que, principalmente desde a década de 1990, têm

aglutinado o envolvimento de vários tipos de organizações, sobretudo médicas. O

resultado mais marcante dos diversos empreendimentos na dinamização da criação de

consórcios de investigação ou na consolidação de políticas de desenvolvimento dos

guidelines, tem sido, manifestamente, o reforço e a difusão desta lógica regulatória, ao

ponto de os guidelines se terem tornado ubíquos, isto não obstante ser possível verificar

especificidades entre países, que são o resultado de complexas relações entre os

múltiplos actores envolvidos (Weisz et al., 2007: 711-712).

Para todos os efeitos, e sendo verdade que não há um padrão homogéneo na forma

como estas metodologias vão sendo disseminadas e aplicadas aos vários campos de

intervenção, o que para os objectivos da presente reflexão se justifica destacar como um

dado particularmente relevante e estruturador do actual panorama da medicina

contemporânea, prende-se com a ideia da emergência de uma nova forma de

objectividade, marcada pela produção colectiva da prova. Esta análise, condensada na

noção de “objectividade regulatória” (regulatory objectivity) (Cambrosio et al., 2006;

Cambrosio et al., 2009), mostra-nos como a circunstância histórica de a medicina

moderna do pós-guerra se ter tornado biomédica – ou seja, em mais estreita articulação e

interdependência com as novas áreas da biologia –, nos permite falar, hoje, em modos de

produção de convenções, normas e protocolos que tornam possível a objectividade na

prática clínica. Esse carácter colectivo da prova, baseado em sistemas de convenções

Hélder Raposo

102

tornados possíveis pelos estudos interlaboratoriais, ensaios clínicos multicêntricos,

consórcios internacionais de investigação, etc., é fundamental para procedimentos de

controlo de qualidade, recomendações clínicas ou guidelines práticos. Como referem os

autores mencionados,

Para a biomedicina, é menos importante chegar a uma verdade (analítica ou outra)

do que assegurar a compatibilidade entre diferentes laboratórios e hospitais. […] A

objectividade regulatória também reflecte os valores da globalização e do livre fluxo

informacional que tem conduzido à internacionalização da padronização desde a

Segunda Guerra Mundial. (Cambrosio et al., 2006: 195)11

Deste ponto de vista, parece não haver dúvida que as lógicas de regulação têm

marcado, e viabilizado, o desenvolvimento da biomedicina contemporânea, ao ponto de

não serem apenas o resultado de intervenções externas, mas também, e cada vez mais,

de práticas endógenas que reflectem as necessidades práticas de convenções e critérios

padronizados. Reflexo disso mesmo é a existência de múltiplos lugares – como

laboratórios, publicações, entidades financiadoras, indústrias, etc. – que ao articularem

materiais, instrumentos, conhecimentos, práticas, discursos e formas de regulação

através da multiplicidade dos contextos, asseguram, de facto, a existência de

compatibilidades e formas de normalização fundamentais para o desiderato da

padronização e racionalização do saber e da prática médica.

Há, todavia, um aspecto que a este respeito não pode ser negligenciado, e que se

prende com o facto de a criação dos padrões ser um processo negociado, e portanto

socialmente activo, que envolve diversos actores sociais do campo da saúde. Isto

significa que os padrões são locais, contingentes e resultado de construções complexas,

o que desmonta completamente o pressuposto de que estes seriam intrinsecamente

neutros e impermeáveis às circunstâncias específicas que enquadram o processo da

produção colectiva de convenções (Moreira, May e Bond, 2009). Aliás, através deste tipo

de enfoque é a própria natureza social da prova científica que subjaz aos padrões que

surge analiticamente equacionada, problematizando-se, assim, o entendimento positivista

e factual da mesma (Goldenberg, 2006). Por isso mesmo, ao ser considerada a

multiplicidade de factores não cognitivos que podem explicar a origem, transformação e

legitimação do conhecimento formal associado aos padrões e protocolos, torna-se mais

nítida a compreensão de que o estabelecimento da previsibilidade e da normalização que

estes postulam resulta de alianças complexas e heterogéneas no campo da regulação da

11

Tradução do autor.

Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico

103

saúde, razão pela qual Timmermans e Epstein argumentam que a objectividade e a

universalidade dos padrões são conquistas árduas, que podem ser frequentemente

sujeitas à contestação de outros actores (Timmermans e Epstein, 2010: 74).

Por esta mesma razão, questões como a produção da evidência científica associada

aos padrões e guidelines, a sua distribuição e a adopção destes nos contextos

institucionais concretos (Dopson e Fitzgerald, 2005) remetem, necessariamente, a

abordagem para níveis que discutem a heterogeneidade e a contingencialidade de

práticas e conhecimentos médicos que não são, efectivamente, desprovidos das suas

dimensões e dinâmicas sociais próprias. Isto significa, portanto, que para além da

questão da construção, há também que considerar o carácter problemático e não linear

da implementação das convenções regulatórias, na medida em que nesse processo se

estabelecem importantes dialécticas que são reveladoras do carácter dinâmico e

adaptativo dos padrões. Daí que se compreenda que alguns autores critiquem a

sobrevalorização de alguma literatura sociológica em relação ao impacto pretensamente

hegemónico das normas de orientação clínica na prática médica, dado que esta tende a

ser efectivamente mais complexa e confusa do que é sugerido por esta forma de

reducionismo teórico (Timmermans e Kolker, 2004: 187).

Sob este ponto de vista, atribuir pertinência analítica às dimensões resultantes do

conhecimento prático, tácito e proveniente da experiência, permite relativizar os efeitos

dos guidelines nas decisões clínicas, pois o modo como essas decisões são elaboradas

traduz a existência de uma articulação interactiva entre o conhecimento prático e

quotidiano e a componente mais formal do conhecimento padronizado.

Aliás, mais importante até do que a estrita questão da implementação e da aplicação,

que tende de certo modo a presumir uma adaptação passiva, importa reconhecer que as

decisões que são elaboradas no contexto das práticas profissionais são muito mais do

que meras manipulações situadas do conhecimento padronizado (Caria, 2005), uma vez

que esse conhecimento é recontextualizado através de formas de reflexividade

profissional que vão permitindo a sua tradução e adaptação aos contextos e às

circunstâncias heterogéneas. Existem, portanto, como sublinha Caria (2005) a propósito

do trabalho clínico dos veterinários, modalidades diferenciadas de recontextualização

profissional do conhecimento que são fortemente mediadas e moldadas pelos sentidos

contextuais resultantes das práticas concretas, circunstância que em si mesma é

elucidativa do efectivo protagonismo que os saberes tácitos, implícitos e intuitivos

assumem nas dinâmicas do julgamento clínico.

Alguns exemplos ilustrativos deste enfoque, embora com matrizes teóricas e

preocupações analíticas relativamente diversas (Berg, 1998; Bourret, 2005; Serra, 2007)

Hélder Raposo

104

dão conta disto mesmo, sobretudo ao colocarem em evidência o modo como a avaliação

e as decisões clínicas não raras vezes implicam reelaborações que estão directamente

vinculadas à experiência, aos conhecimentos tácitos e também à avaliação das

necessidades individuais dos doentes.

É, justamente, o que se verifica na discussão acerca das especificidades da medicina

do cancro genético (Bourret, 2005), designadamente quando se evidencia que a prática

médica se confronta com o desafio da gestão da incerteza, que resulta não só do estatuto

híbrido e liminar da doença e do doente, como também dos imperativos de uma nova

lógica de trabalho colaborativo e multidisciplinar e da própria complexidade biológica das

mutações genéticas associadas às patologias em causa. Estes aspectos implicam uma

permanente reinterpretação das recomendações e guidelines, o que significa que o

julgamento clínico não fica subsumido nas recomendações regulatórias dos guidelines e

das provas epidemiológicas que os sustentam. Há, pelo contrário, um trabalho de

constante reinterpretação e discussão colectiva entre pares, o que faz com que a

discussão e a definição negociada de critérios e regras se tornem numa tarefa

institucional explícita. Através de redes de colaboração, os grupos de peritos vão

reflexivamente produzindo e adaptando localmente as recomendações que,

conjunturalmente, melhor parecem responder às incertezas concretas do seu domínio

específico.

Também Berg (1998), através do seu trabalho sobre o uso de protocolos no campo

da oncologia (em particular na área do cancro da mama), converge em termos essenciais

neste entendimento, principalmente quando enfatiza que os protocolos criam novas

formas de diversidade nas práticas médicas. Assim, em lugar de uma pretensa

homogeneidade que supera as diferenças e instaura procedimentos uniformes que

preconizam instruções e procedimentos de acção e decisão para várias situações

específicas, o que se verifica é que os protocolos acabam por reconfigurar práticas e

imprimir novos critérios e problemas que mostram que, para uma nova disciplina de

práticas ser viável, há necessidade de desencadear um processo de construção activa de

negociações e adaptações contingentes. Neste sentido, em lugar de uma tradução

mecânica e linear, desencadeiam-se processos que conferem uma maior flexibilidade ao

conjunto de novas regras e padrões que se vão estabelecendo no âmbito das práticas,

aspecto que é, sem dúvida, revelador da importância do trabalho local – mesmo que

entretanto este tenda a tornar-se invisível – que é necessário para a sua implementação

e sobretudo para a viabilidade da sua relativa eficácia (Timmermans e Epstein, 2010: 83).

Também alusivo à importância das possibilidades de reconstrução do conhecimento

no contexto das práticas clínicas, é o trabalho de Serra (2007), dado que avança com

Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico

105

alguns elementos importantes que dão conta do modo como o conhecimento médico se

renova constantemente a partir das práticas médicas quotidianas. Centrando-se num dos

exemplos flagrantes de um modelo de medicina tecnocrática – neste caso a

transplantação hepática –, a autora argumenta que apesar de esta substituir a imagem do

médico clínico centrado no doente por um maior protagonismo da dimensão técnica e

tecnológica, tende, contudo, a prevalecer o primado da experiência clínica, o que conduz

frequentemente à secundarização de critérios mais padronizados – sobretudo de

natureza estatística. Verifica-se, assim, que não obstante os proclamados méritos dos

protocolos remeterem para um horizonte de padronização de procedimentos, as margens

de imprevisibilidade e o accionamento de saberes indeterminados – principalmente num

domínio que conjuga vários olhares construídos a partir de conhecimentos diversos e

específicos sobre uma mesma realidade –, acentuam lógicas de articulação e negociação

entre especialidades e entre profissionais de carácter fortemente contingente.

Assim sendo, embora estes exemplos estejam longe de esgotar o reportório de

trabalhos empíricos que problematizam alguns pressupostos mais maniqueístas

relativamente ao significado do processo de construção e negociação de padrões e ao

seu impacto na escala mais micro das práticas médicas, o que parece relevante fazer

notar – embora no âmbito deste pequeno texto tal não se concretize empiricamente12 – é,

sem dúvida, o carácter diverso da medicina, nomeadamente ao nível da heterogeneidade

das práticas e dos seus contextos institucionais concretos. Neste sentido, a consideração

da contextualidade social subjacente à realidade da MBP pode conduzir-nos, no quadro

de futuros aprofundamentos em termos de investigação empírica tendo em conta a

realidade portuguesa, precisamente ao questionamento das estratégias e mecanismos de

difusão desta metodologia, e da sua respectiva lógica regulatória, mas também do modo

como a mesma é adoptada e recontextualizada no âmbito concreto de algumas

especialidades médicas.

Nesta medida, a cultura e a prática científica das diferentes especialidades médicas

são efectivamente um elemento a considerar, dado que para além de darem uma

imagem da justa heterogeneidade da profissão médica, podem ser indicadoras de formas

distintas e diferenciadas de recepção, acolhimento, incorporação, adaptação ou recusa

dos princípios da MBP nas práticas profissionais concretas. Aferir quais as

12

A referência a estes exemplos específicos procura aqui reflectir a afinidade que as opções empíricas que se encontram a ser forjadas e desenvolvidas no âmbito da minha pesquisa empírica com eles estabelecem. Quer isto dizer que, não obstante algumas das opções e estratégias de investigação estarem ainda a ser limadas – particularmente no que diz respeito à definição dos critérios de escolha das especialidades médicas a estudar para melhor aferir o “impacto” dos padrões e das provas estatísticas nas práticas médicas concretas –, há, no entanto, uma clara convergência com a preocupação de se explorar as racionalidades de carácter reflexivo das práticas profissionais desenvolvidas no âmbito de algumas especialidades médicas no contexto nacional.

Hélder Raposo

106

especialidades médicas que melhor ilustram esta diversidade e determinar quais os

modos concretos de proceder a essa avaliação são aspectos que, por agora,

transcendem o enfoque mais limitado deste exercício de perscrutação teórica mas que

apontam, e vinculam, estas pistas de reflexão, para a necessidade de futuros avanços na

investigação empírica.

NOTAS FINAIS

Tal como se procurou salientar no decurso desta breve reflexão de carácter teórico, o

interesse em discutir, mesmo que de forma condensada, as razões e os interesses

estratégicos (designadamente em alguns sectores da profissão médica) da crescente

ênfase na padronização e o empenho na racionalização da medicina, bem como o

carácter dinâmico e processual da produção e implementação de padrões, justifica-se

pela necessidade de algumas clarificações e delimitações analíticas. Ou seja, tratando-se

a medicina de um domínio não unitário e heterogéneo, é importante não só evitar

generalizações interpretativas acerca da natureza das suas reconfigurações, mas

sobretudo encontrar enfoques de análise que consigam resgatar a abordagem

sociológica de alguns enquadramentos – marcados sobretudo pelas preocupações mais

ortodoxas do quadro da sociologia das profissões – que tendem a perpetuar a obstinação

com a questão do aumento ou da perda do poder profissional.

Um desses enfoques alternativos passa por conferir maior centralidade à análise das

diferentes bases científicas do conhecimento médico, agora mais estruturalmente

alicerçado na abordagem epidemiológica. Perceber que consequências resultam desta

transformação na produção do conhecimento, e dos novos poderes que daí decorrem, é

uma indagação de grande pertinência, desde logo porque a prova estatística passa a

definir o que conta como conhecimento válido, mas também porque habitualmente o

carácter contingente e socialmente construído de alguns processos cognitivos que estão

na base do conhecimento médico surgem “mascarados”.

Nesta acepção, o presente texto procurou, na sequência das considerações que se

foram sistematizando, identificar e contextualizar as condições que estão subjacentes a

uma cultura de racionalização e a um discurso da evidência. Por essa razão,

naturalmente que assumiu algum destaque o questionamento dos fundamentos e

pressupostos ideológicos dessa cultura de regulação marcada por modalidades de

normalização e produção de convenções. Através desse exercício tornou-se mais nítido o

modo como a actual biomedicina se desenvolve num contexto cada vez mais marcado

por novos colectivos de actores que mobilizam modalidades de regulação de carácter

transnacional ao nível da produção de convenções, critérios de normalização, sistemas

Os imperativos da padronização no contexto das práticas médicas: pistas para um breve ensaio teórico

107

de classificação e padronização de modelos médicos. Trata-se, no fundo, de um

panorama que denota a importância assumida pela dimensão institucional ao nível da

produção e negociação colectiva quanto aos padrões e modelos de acção (convenções

biomédicas) indispensáveis à normalização das práticas.

Mas como também se viu, não obstante a importância de identificar os fundamentos

que suportam e alimentam os imperativos da padronização no contexto da MBP, o

desafio analítico de explorar o carácter adaptativo e contingente da padronização afigura-

se como uma orientação potencialmente fértil para a exploração e compreensão da

dimensão contextual e situada desses conhecimentos na prática profissional concreta.

Trata-se, portanto, de um aspecto que nos deverá alertar para o facto de que, apesar das

pretensões de universalidade e uniformização, a dimensão local põe em evidência o

carácter plástico e recontextualizado que a mobilização e a “construção” desse

conhecimento sempre implicam no contexto das diversas práticas profissionais.

São, em suma, questões que, pela sua pertinência e actualidade no âmbito da

agenda da investigação sociológica sobre esta temática, urgem ser exploradas de uma

forma mais substantiva nos novos trilhos a que este trabalho pode, potencialmente,

conduzir.

HÉLDER RAPOSO

Docente da área científica de Sociologia da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de

Lisboa (ESTeSL-IPL). Doutorando no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de

Lisboa (ICS-UL).

Contacto: [email protected]

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110

TRABALHO, GÉNERO, IDADE E ARTE: ESTUDOS EMPÍRICOS SOBRE O TEATRO E A DANÇA

VERA BORGES1

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, UNIVERSIDADE DE LISBOA

Resumo: Este artigo analisa se existe uma relação sistemática entre o género, a idade e a situação profissional de actores e bailarinos a trabalhar em Portugal. Os resultados do inquérito realizado junto de 187 artistas são lidos à luz das actuais condições de trabalho nas artes e dos efeitos do género, da idade, das características de inserção profissional e do tipo de organização dos indivíduos no teatro e na dança. Em geral, a análise demonstra que os artistas desenvolvem importantes estratégias de formação que aparecem associadas a cenários de uma forte incerteza quanto ao seu futuro profissional e à sua permanência no mercado de trabalho artístico. A incerteza e o risco profissional atravessam as carreiras de actores e bailarinos de tal forma que as diferenças entre os domínios artísticos e o respectivo sucesso dos indivíduos são mínimas ou quase nulas. Palavras-chave: arte, género, idade, trabalho, profissão.

1. PONTO DE PARTIDA2

Nos últimos anos têm sido publicadas inúmeras pesquisas de carácter sociológico e

histórico, nacionais e internacionais, que analisam os efeitos da idade e do género na

situação profissional dos indivíduos que trabalham nas artes. Uma das pesquisas que

melhor compararam os domínios da música, do teatro e da dança foi desenvolvida por

Coulangeon, Ravet e Roarik (2005), que provaram que, com o passar do tempo, as

artes performativas tratam de forma diferenciada os mais novos e os mais antigos, os

1 Estou muito agradecida a Cícero Roberto Pereira, investigador associado do Instituto de Ciências Sociais,

pelas suas sugestões feitas ao longo da elaboração do artigo. Uma palavra de agradecimento para a equipa de especialistas, cujos comentários foram muito úteis. 2 Esta pesquisa foi inicialmente apresentada no III Ciclo Anual de Jovens Cientistas Sociais (2007-2008),

realizado em Coimbra no dia 12 de Março. O texto intitulou-se “Actores e actrizes no teatro: profissão e mercado de trabalho” e partia de uma questão levantada na tese de doutoramento a propósito do género e da idade dos artistas entrevistados na fase da pesquisa no terreno. Actualmente, os dados que constam deste artigo foram recolhidos com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projecto de pós-doutoramento entretanto desenvolvido.

Vera Borges

111

homens e as mulheres. O destaque que é aqui dado à literatura francesa passa em

grande medida pela potencialidade comparativa destes estudos, quer do ponto de vista

da démarche metodológica seguida, quer do ponto de vista da leitura dos resultados e do

perfil das populações estudadas. O que se deixa antever desde logo pela escolha do

título deste artigo, que se inspirou fortemente nas jornadas de estudos do

agrupamento de pesquisas Marché du travail e genre en Europe, intituladas «Travail,

genre et art», dirigidas por Buscatto, Marry e Naudier (2008), e ainda no seminário

apresentado por Ravet e Coulangeon no âmbito do workshop international «A profissão

como vocação», realizado em Lisboa, no Instituto de Ciências Sociais, em 2008, sob a

direcção de Delicado, Borges e Dix.

Assim, o presente artigo tem em conta os desafios teóricos e empíricos levantados

por estas pesquisas, realizadas em torno da profissão, do trabalho, do género e da

arte, e parte dos resultados de dois estudos empíricos efectuados junto de 122 actores

e 65 bailarinos para descrever em que condições trabalham hoje estes profissionais das

artes no nosso país. O objectivo é reflectir sobre o actual funcionamento destes

mundos artísticos e lançar os dados para uma análise sistemática da relação entre o

trabalho realizado nas artes (a tempo inteiro ou a tempo parcial), o género e a idade

dos artistas.

O artigo está organizado em três secções: em primeiro lugar, apresenta-se o contexto

teórico e empírico que inspira e sustenta esta reflexão e as pontes que existem entre as

investigações realizadas em contexto português e francês. Fora das artes procuram-se

estabelecer, de uma forma breve, alguns paralelos com outros mundos sociais, como a

engenharia, a advocacia, etc. Em terceiro lugar, seguem-se os principais resultados das

pesquisas desenvolvidas no teatro e na dança e na última parte apresentam-se as

principais conclusões e algumas perspectivas para as investigações futuras.

2. TRABALHO, GÉNERO, IDADE E ARTE

Em geral, as pesquisas sobre o trabalho que contemplam a temática do género têm tido

importantes desenvolvimentos. Em Portugal, Torres (2004) coordenou uma publicação

que incidiu sobre a condição dos homens e das mulheres entre a família e o trabalho.

Wall e Amâncio (2007) apresentaram as clivagens e as continuidades de género nas

atitudes face à família e, no mesmo volume, Aboim (2007: 35-91) descreveu o impacto do

trabalho profissional na vida familiar e nas carreiras das mulheres e dos homens. A

discussão dos efeitos do género nas profissões foi feita por exemplo na pesquisa de

Rodrigues (1999), que descreveu como se formam os novos universos de discurso

resultantes da entrada das mulheres engenheiras no mundo do trabalho. Caetano (2003)

Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança

112

assinalou a mudança na composição da profissão e considerou determinante o aumento

do número de mulheres inscritas na Ordem dos Advogados nos últimos vinte anos.

Apesar disso, Chaves (2010) assinalou ser notória a menor tendência das jovens

advogadas para exercerem a profissão. Por sua vez, Gonçalves (2006) analisou a

emergência dos economistas, acompanhada pelo fenómeno da feminização, que alterou

toda a dinâmica de organização destes profissionais. Machado (2003) considerou existir

um impacto forte da entrada das mulheres na evolução da profissão médica.

Em França, Buscatto e Marry (2009) estudaram a evolução do fenómeno da

feminização no século XX em diversos países e profissões superiores, analisando as

barreiras «duráveis» e «invisíveis» que fazem com que as mulheres qualificadas não

acedam a posições profissionais mais elevadas. A discussão realizada em torno da

temática do trabalho e do género com e sem a arte é antiga, como é vasta a literatura

sobre o assunto (Marry e Kieffer, 1998; Ferrand, 1993; Naudier, 2010; Cacouault-Bitaud e

Ravet, 2008; Giannini, 2005; Buscatto e Leontsini, 2011).

As investigações de cariz sociológico, realizadas nos mundos das artes,

principalmente nos domínios do teatro e da dança, descrevem como a idade e o género

podem ditar as regras do jogo em diferentes fases das trajectórias de carreira dos

indivíduos: por exemplo, Menger (1997) considera que a idade é uma «porta de entrada»

importante para as mulheres, em particular no caso do teatro e da televisão, pois, quanto

mais jovens, mais acumulam trabalhos de representação no teatro e contratos na

televisão. O que pode funcionar como uma vantagem inicial quando se comparam as

carreiras de dois indivíduos – homem e mulher – com talento semelhante (Menger, 2009).

No entanto, a idade acaba por se tornar um «filtro imperfeito», sobretudo no caso das

mulheres, que são penalizadas pela vida familiar e pela mesma razão que inicialmente

facilita a sua entrada no mercado de trabalho e que com o passar do tempo acaba por

produzir diferenças entre homens e mulheres artistas (Menger, 1997). No mesmo sentido,

Paradeise, que também liderou um estudo sobre o teatro em França, considerou que as

mulheres actrizes desaparecem de cena por volta dos 50 anos:

As mulheres – sobretudo entre os 30 e os 60 anos – encontram-se desfavorecidas

em relação aos homens: por um lado, em volume global, existem actualmente pelo

menos tantas actrizes como actores no mercado para menos papéis (duas em cada

dez estão numa produção de cinema ou televisão); por outro lado, em volume por

momento do ciclo de vida, a análise da sua distribuição no cinema e no teatro

mostra um grave deficit de papéis de «mulher madura» […]. Elas podem no entanto

manter-se no métier desenvolvendo esforços de auto-criação de emprego […],

Vera Borges

113

investindo na periferia do métier […] ou em actividades exteriores (Paradeise, 1998:

42-43).

Já a entrada no mercado de trabalho da dança clássica exige alguma idade, não

muita, apenas o tempo suficiente para se fazer formação específica, como ficou provado

na pesquisa de Rannou e Roarik (2006). A dança contemporânea (Sorignet, 2004) é

aparentemente mais aberta a todos; contudo, revela-se um espaço de desigualdades,

não tanto na entrada na profissão, mas, acima de tudo, nos momentos de construção

coreográfica, durante os ensaios, conforme é relatado na pesquisa de Saura (2009). No

domínio da música são vulgares as actuações ao vivo de músicos mais velhos do que em

qualquer outro mundo da arte citado, exemplo de que estes podem permanecer mais

tempo no mercado de trabalho (Coulangeon, Ravet e Roarik, 2005).

Por sua vez, a análise da tríade trabalho, género e arte, em Portugal, tem merecido a

atenção dos investigadores em literatura comparada, estudos feministas e história de

arte, nomeadamente através dos importantes contributos de Vicente (2005), Macedo

(2011) e Macedo e Rayner (2011). A primeira analisou de uma forma aprofundada as

mulheres artistas e os sentidos da criatividade artística no feminino desde o século XVI

ao século XX. Já Macedo (2011) entrou no universo conceptual e no trabalho da pintora

Paula Rego e a dupla Macedo e Rayner (2011) organizou uma antologia que reúne

textos de investigadores de diferentes áreas que articulam o género, a cultura visual e a

performance.

Dos trabalhos sociológicos desenvolvidos pela equipa do Observatório das

Actividades Culturais merece destaque a pesquisa de Gomes, Lourenço e Martinho

(2005) sobre as carreiras profissionais e as diferenças de género na produção de cinema.

Anteriormente, Conde, Martinho e Pinheiro (2003) reflectiram sobre as mulheres nas

principais orquestras portuguesas e mostraram que os efeitos de género têm aqui uma

explicação diferenciada de acordo com o contexto de cada orquestra. Conde apresentou

a vulnerabilidade da identidade dos artistas, retirando a este respeito idênticas

conclusões sobre as carreiras femininas nos diferentes mundos artísticos (Conde, 2009).

Ainda em terreno português, uma pesquisa recente seguiu e aprofundou a pista da

formação e da inserção dos artistas no mercado de trabalho e obteve resultados que

apontam a experiência em situação de trabalho, preferencialmente realizada durante o

período de aprendizagem formal, como o factor determinante do nível de sucesso de

homens artistas e mulheres artistas, novos e de gerações mais antigas (Borges e Pereira,

2011).

Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança

114

O estudo dos arquitectos a trabalhar em Portugal, realizado no Instituto de Ciências

Sociais por Cabral e Borges (2006 e 2010), considera que a aposta na formação formal

e a elevada frequência de cursos de formação, especialização e pós-graduações

universitárias são realizadas em grande medida pelas mulheres que têm uma posição

precária neste mercado, desenvolvendo a arquitectura a tempo parcial, ou numa posição

secundária no interior dos ateliers visitados. O investimento que as mulheres fazem na

formação mostra-se ineficaz e não altera a sua posição, desfavorecida, no mercado de

trabalho, funcionando apenas como factor cumulativo capaz de gerar empregabilidade

nas segundas profissões, como o ensino, ao qual as mulheres arquitectas acabam por

ficar ligadas.

Com efeito, a formação formal é cada vez mais um passo na profissionalização no

interior do mundo das artes, e as pesquisas americanas têm vindo a dar conta do

potencial que a educação artística confere aos indivíduos, desenvolvendo a sua

capacidade de responderem de maneira flexível adaptável às necessidades do mercado

e explorando a sua criatividade para a porem ao serviço de novos modelos de trabalho

(Caves, 2000). Por exemplo, no caso da dança, Montgomery e Robinson (2003)

mostraram que ter um curso superior de dança, alguma idade, geralmente menor do que

noutros domínios, e experiência de trabalho são condições favoráveis para conseguir um

emprego nesta área e obter rendimentos mais elevados, trate-se de bailarinos ou de

bailarinas.

No que respeita ainda a análise das condições de emprego de homens e de

mulheres nas artes, Buscatto (2007) descreve longamente o funcionamento do jazz

como sendo um mundo «masculino» pelo tipo de organização das suas redes sociais,

convenções musicais e normas de interacção, que deixam de fora as mulheres. Estes

factores explicam que, em França, apenas 8% dos 2000 músicos de jazz sejam mulheres

e menos de 4% instrumentistas. No mesmo sentido, as condições de emprego na

indústria cinematográfica descritas por Bielby e Bielby (1996) ilustram como

representações e estereótipos sociais tendem a excluir as mulheres do exercício de

actividades ligadas à representação, afastando-as para a escrita de textos (script girls)

especializados em assuntos «femininos», ou seja, as mulheres aparecem aqui como

responsáveis pela escrita de argumentos de filmes para mulheres.

Do lado das pesquisas que comparam as carreiras artísticas femininas e masculinas,

salientam-se os trabalhos sobre as artes plásticas (Pasquier, 1983) e a literatura

(Naudier, 2007). De novo as dificuldades em conciliar o trabalho e a vida familiar afectam

as perspectivas de carreira, as modalidades de profissionalização e a probabilidade da

consagração das mulheres quando comparadas com as carreiras dos homens.

Vera Borges

115

Nas pesquisas de Pasquier (1983), Moulin (1992), Menger (1997), Cabral e

Borges (2006) assinalam-se que a vida familiar pode penalizar as mulheres. Com

dificuldades em permanecer no mundo das artes algumas delas passam a desenvolver

actividades artísticas amadoras e «escolhem» as actividades consideradas menos

reputadas e até menos premiadas, como se pode ler no estudo sobre os arquitectos:

Há diferenças nos domínios de actividade em que trabalham, ocupando-se os

homens das construções mais importantes. Na mesma linha, as arquitectas

participam menos do que os arquitectos em concursos e são praticamente metade

deles a ganhar prémios. As arquitectas também acumulam menos actividades do

que os arquitectos e auferem, em média, rendimentos inferiores aos deles (Cabral

e Borges, 2010: 156).

As investigações que se ocupam da comparação dos rendimentos dos homens e das

mulheres, por exemplo, no cinema e na televisão (Bielby, 2009) concluíram que as

desvantagens dos jovens e das mulheres vão sendo acumuladas desde o início das

carreiras, uma vez que estes grupos trabalham frequentemente nas «margens da

indústria cinematográfica» e acabam por ficar com as «tarefas menores», como a

reescrita de uma pequena parte de um argumento. Voltando agora ao mundo das artes

performativas, as pesquisas concluem que, mesmo quando estão em maior número,

como acontece no domínio da dança (Rannou e Roarik, 2006; Borges e Pereira, 2011),

ou quando estão em número semelhante ao dos homens (Menger, 1997: 22), as

mulheres artistas têm condições de trabalho menos satisfatórias, aliadas a rendimentos

mais baixos (Paradeise, 1998: 42; Rannou e Roarik, 2006: 91).

Por fim, elencam-se algumas das pesquisas que abordam as diferentes práticas de

selecção das mulheres e dos homens na sua entrada em certos mundos da arte.

Recorda-se o interessante trabalho de Goldin e Rouse (2000) sobre a imparcialidade no

recrutamento dos indivíduos para as orquestras e o impacto das audições às «cegas» na

contratação das mulheres: o uso de uma «cortina» durante as audições evitou

comportamentos discriminatórios, quer para as mulheres, quer para os músicos de outras

nacionalidades. Algumas das orquestras estudadas prescindiram da cortina na última

fase do concurso, alegando que seria necessário avaliar a presença cénica dos

candidatos e o seu desempenho corporal. A pesquisa de Ravet (2007) analisou as

consequências de socializações diferenciadas que «orientam» as mulheres mais jovens

para as «práticas musicais femininas», como acontece com a escolha da harpa e do

piano, graças à emergência de vocações que têm associados factores familiares

Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança

116

específicos, como a socialização precoce das artistas e a exposição a condições sociais

propícias.

Em todas as pesquisas citadas parece desenhar-se um cenário mais ou menos

comum de condição desfavorável para as mulheres nas artes e para aqueles que têm

mais idade pelas características peculiares do teatro e da dança. As actrizes que

trabalham na televisão são muito chamadas pela sua juventude, mas a idade afecta o

número de contratos (Menger, 1997); os bailarinos e as bailarinas a partir de uma certa

idade, pela exigência física da dança clássica, sentem a reconversão como uma

mudança necessária na sua carreira (Baumol, Jeffri e Throsby, 2004).

Os resultados que se apresentam a seguir permitem que se discutam as questões do

género e da idade engendradas no seio destas profissões, mas mostram também que as

variáveis clássicas das ciências sociais são, nos dias de hoje, menos determinantes do

que outrora. É a incerteza do sucesso nas carreiras artísticas que, por um lado, alimenta

e «chama» os artistas para o teatro e a dança, mas, por outro lado, é essa incerteza que

elimina, selecciona, homens e mulheres, novos e velhos. À semelhança do que acontece,

hoje, em outros mundos produtivos e com os outros trabalhadores.

3. MÉTODOS E PARTICIPANTES

Este artigo utiliza os resultados de uma investigação realizada entre 2007 e 2009 e que

se centrou no estudo dos percursos profissionais e formativos de actores e bailarinos,

utilizando-se para o efeito um questionário on-line. No período de lançamento dos

questionários foram contactadas organizações ligadas à dança e ao teatro, como o

Fórum Dança e a REDE (associação de 23 estruturas para a dança contemporânea, que

facilitou a observação e a participação numa reunião de trabalho dos bailarinos

associados e dos investigadores, realizada no Espaço do Tempo em Montemor-O-Novo),

na Escola Superior de Dança, na Escola Superior de Teatro e Cinema e na associação

de trabalhadores a «recibos verdes», designada FERVE.

No que respeita aos participantes neste questionário, a amostra utilizada é de 187

indivíduos. Cerca de 35% dos artistas pertencem ao domínio da dança e 65% pertencem

ao teatro. Os artistas responderam a questões relativas ao início das carreiras, idade do

primeiro trabalho e tipo de recrutamento, formação geral e específica, evolução do

percurso, rendimentos, tempos de trabalho em diferentes sectores de actividade,

vantagens e desvantagens da profissão, caracterização da situação profissional actual e

dados como a mobilidade geográfica e a profissão dos pais.

A presente análise incidirá na compreensão do tipo de relação que existe entre o

género, a idade e a situação profissional dos indivíduos. A propósito desta última variável,

Vera Borges

117

convém esclarecer que foi solicitado aos inquiridos que descrevessem a sua situação na

profissão, tendo em conta o seguinte conjunto de respostas: actor/bailarino a tempo

inteiro; actor/bailarino a tempo parcial; trabalhador a tempo inteiro numa profissão

relacionada com o teatro/dança (como, por exemplo, o ensino e a direcção artística);

trabalhador a tempo parcial numa profissão relacionada com o teatro/dança (como, por

exemplo, o ensino e a direcção artística); trabalhador a tempo inteiro numa profissão que

nada tem a ver com o teatro/dança; trabalhador a tempo parcial numa profissão que nada

tem a ver com o teatro/dança; trabalhador-estudante; estudante.

4. RESULTADOS

Uma análise geral dos principais resultados sócio-demográficos deste questionário

mostra que pouco mais de metade dos inquiridos nestes dois estudos são mulheres (53,

6%). Em média, os inquiridos têm 29 anos: verificou-se que a idade média é de 30 anos

na dança e de 28 anos no teatro. Os bailarinos iniciam-se precocemente na profissão,

quer do ponto de vista da entrada na profissão, quer do ponto de vista das suas relações

contratuais de trabalho: com 18 anos, os bailarinos começam a fazer da dança um

trabalho e aos 19 anos estabelecem o seu primeiro contrato formal. Os actores começam

a fazer teatro profissional mais tarde, aos 21 anos, e o primeiro contrato de trabalho

surge, em média, dois anos depois.

O background familiar dos artistas no teatro e na dança difere. No teatro, os níveis de

escolaridade das mães, que, regra geral, têm o ensino básico e estão a desenvolver

trabalhos administrativos e não qualificados, são inferiores aos dos pais, que têm o

ensino intermédio e são técnicos de nível intermédio. Acresce que 24% dos actores têm

familiares próximos que exercem ou exerceram uma profissão artística.

A relativa heterogeneidade do recrutamento social dos actores contrasta com a

situação vivida na dança, cujos resultados acentuam a importância dos níveis de

escolaridade média e superior e das profissões intelectuais e científicas desenvolvidas

pelos pais e pelas mães dos bailarinos inquiridos. Cerca de 27% dos bailarinos assinalam

ter familiares próximos que exercem profissões artísticas; no entanto, essa situação não

determina a sua «inserção objectiva na profissão», ou seja, os seus rendimentos e o

tempo que estão envolvidos na realização da sua actividade artística.

A quantidade de familiares artistas relaciona-se negativamente com a percepção de

tempo de trabalho na profissão. Assim, quanto mais artistas os inquiridos disseram ter na

sua família, menos tempo de trabalho têm na profissão (Borges e Pereira, 2011).

No mesmo sentido, a «importância que os artistas atribuem aos contactos com os

colegas de profissão» para o sucesso da sua carreira está negativamente relacionada

Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança

118

com a inserção dos indivíduos na profissão: quando mais o contacto com colegas é visto

como importante, mais os indivíduos trabalham esporadicamente no teatro e na dança.

Já a «importância da participação em grupos profissionais» está positivamente

relacionada com a inserção na profissão: quanto mais os artistas consideram importante

a sua participação nesses grupos, mais os artistas trabalham a tempo inteiro na

profissão.

Quanto aos diferentes percursos formativos dos artistas, ressaltam as suas

importantes estratégias de formação: dois terços dos inquiridos afirmam ter concluído o

nível mais elevado de escolaridade geral (ensino superior) e 41,8% consideram ter

realizado um curso de formação específica. Cerca de 32% dos bailarinos e 27% dos

actores continuam a desenvolver um tipo de formação superior, realizando um mestrado

ou um curso de doutoramento. É também possível acrescentar que, durante a formação

mais longa que realizaram, dois terços dos artistas afirmaram ter exercido uma actividade

ligada às artes. Com efeito, os inquiridos estimam que a «experiência adquirida» a

trabalhar no interior de um grupo de teatro ou de dança e «ter jeito» para as artes foram

«extremamente importantes» para a aprendizagem da profissão. Por seu turno, a

experiência escolar foi considerada pelos inquiridos apenas um passo «importante» para

a sua inserção profissional no mercado das artes.

O facto de os actores e os bailarinos terem realizado uma formação longa não gera

diferenças quanto aos seus rendimentos médios mensais, estimados em cerca de 700

euros. As suas expectativas de integração no mercado de trabalho são mais elevadas

quando a formação inicial é longa. A maior parte dos inquiridos pensava que nesta altura

seria melhor remunerada e teria uma situação profissional mais estável. Pouco mais de

metade dos actores e bailarinos (53,5%) já pensaram deixar a profissão e 15,8%

abandonaram-na por um curto período de tempo.

No que diz respeito à questão inicialmente levantada neste artigo sobre se existiria

uma relação sistemática entre o género, a idade e a situação profissional dos artistas no

meio profissional, os principais resultados desta investigação permitem concluir que os

efeitos da idade e do género interagem muito mais no caso das actrizes do que no caso

dos actores, dos bailarinos e das bailarinas, como, aliás, se pode observar nos gráficos 1

e 2, que apresentam a relação idade, género e área de trabalho (no teatro N = 122 e na

dança N = 65) 3.

Na dança, as bailarinas inquiridas têm, em média, 29 anos e os bailarinos 32 anos.

3 No caso do teatro, a relação entre o género e os grupos de idade é marginalmente significativa: χ2 (1, N =

122) = 2,793, p < .09. No caso da dança, não há qualquer relação entre o género e os grupos de idade: χ2(1, N = 65) = 0.38, n. s

Vera Borges

119

No caso do teatro, as actrizes têm, em média, 27 anos e os homens 29. Parece, pois,

que na dança contemporânea – donde provém a maior parte dos artistas inquiridos que

assim se autoclassificaram – a exigência técnica não é propriamente incompatível com a

idade. Pina Bausch será sempre o exemplo de longevidade profissional.

No teatro, as mulheres jovens têm um peso quantitativamente mais importante do

que as actrizes com mais idade. Ao focar a análise na inserção profissional das jovens

actrizes pode dizer-se que com isso são emitidos sinais importantes para os seus pares,

as entidades empregadoras e o público em geral: o primeiro é o sinal da

profissionalidade, pois, ao serem vistas ainda jovens no teatro, as actrizes «dizem» que

têm qualificação e um «saber-fazer». Neste mercado de trabalho prevalece a ideia de

que se aprende a representar no palco (Borges, 2011; Borges e Pereira, 2011) e é no

palco que se exercita a vocação teatral por excelência. O segundo sinal é o da

«transferibilidade», que acontece quando as actrizes conseguem juntar ao trabalho no

teatro a participação na televisão.

Teatro/idade/sexo (%)

Fonte: Inquérito aos actores (2009).

Dança/idade/sexo (%)

Fonte: Inquérito aos bailarinos (2009).

Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança

120

No entanto, com o passar do tempo, as actrizes beneficiam menos da sua

experiência profissional do que os actores e o peso da idade actua na sua participação

no teatro e no volume de trabalho que aí conseguem angariar. Será que as actrizes

com mais idade correm o risco de não terem trabalho? Ou na origem deste resultado

estão explicações espúrias que fazem com que por alguma razão que ultrapassa esta

investigação as mulheres com mais idade tenham tido menos acesso aos

questionários.

Na pesquisa desenvolvida no interior dos grupos de teatro portugueses (Borges,

2007) foram entrevistados 44 homens e 19 mulheres com 35 anos ou menos e 53

homens e 24 mulheres com 36 anos ou mais. Por que razões é que foram

encontradas menos actrizes a trabalhar nos grupos de teatro quando estas estão em

número mais elevado no mercado de trabalho? Os dados apresentados pelo Instituto

Nacional de Estatística indicam haver mais mulheres do que homens na profissão em

2001. Concretamente, 37% dos actores e encenadores são homens e 63% são

mulheres. Situação semelhante é vivida no mundo da dança. São mais as bailarinas do

que os bailarinos: 23% são homens e 77% são mulheres.

Em França, Menger demonstrou que as actrizes têm uma longevidade profissional

claramente inferior à dos homens: «a população das actrizes é mais jovem […] as

carreiras femininas são condensadas num tempo biográfico mais curto» (Menger, 1997:

23). Existirão menos papéis para as actrizes « maduras»? Existirá um risco de

abandono das carreiras por parte das actrizes de meia-idade?

Os testemunhos de cinco actrizes portuguesas com mais de 45 anos chamam a

atenção para o facto de a idade afectar as carreiras das mulheres no teatro e na

televisão: descreve-se a problemática saída das actrizes dos grupos de teatro depois de

vinte anos de colaboração permanente; assinala-se o «não ter cara» (expressão utilizada

por uma das entrevistadas) para iniciar, tarde, uma carreira na televisão.

Na verdade, poderá tratar-se do efeito da idade, que faz evoluir as carreiras das

mulheres de uma forma secundária e marginal, ao sabor das convenções estéticas que

circunscrevem o volume de emprego disponível para as actrizes mais velhas

(Borges, 2007).

Uma observação dos elencos que compõem os espectáculos de teatro das 39

estruturas apoiadas na Região de Lisboa e Vale do Tejo em 2010 permite avaliar a

distribuição de papéis para mulheres «mais maduras»: é possível reter o nome de

algumas actrizes mais velhas ligadas a tempo parcial às estruturas teatrais. A

observação dos espectáculos foi feita no âmbito do trabalho desenvolvido pela

comissão de acompanhamento dos grupos de teatro apoiados pelo Ministério da

Vera Borges

121

Cultura (cf. Borges, Costa e Graça, 2011). No conjunto de entrevistas realizadas pela

comissão, verificou-se que, em geral, a produção é feita por mulheres e que a maior

parte dos indivíduos que dirigem os grupos de teatro são homens. O abandono ou a

descontinuidade da actividade das actrizes no teatro podem ter a ver com a falta de

papéis nos textos escolhidos pelos grupos de teatro.

Quanto aos resultados relativos ao género, rendimentos e situação actual dos

artistas inquiridos no teatro e na dança: a relação do género, rendimentos nas artes e

situação profissional dos inquiridos não tem um impacto relevante para esta análise;

portanto, nos estudos empíricos realizados não se verificou propriamente um efeito do

género. Já a idade dos inquiridos está relacionada com a situação na profissão, pelo

que, quanto mais idade, mais os artistas inquiridos têm a percepção de estarem a

trabalhar a tempo inteiro na profissão. Se «os sistemas de salários dão sinais sobre a

visibilidade e a invisibilidade das competências, a sua legitimidade, no fim de contas,

sobre a verdade das relações de força na negociação» (Rannou e Roarik, 2006: 91),

então pode afirmar-se que aqui existe um efeito positivo que coloca homens e

mulheres na mesma posição face às profissões artísticas, afastando-se estes

resultados de algumas das conclusões de outros estudos citados na primeira secção

deste artigo.

Os rendimentos médios mensais brutos que os artistas, homens e mulheres, com

mais ou menos de 30 anos dizem auferir são muito modestos: em média, os salários

retirados do trabalho no teatro ou na dança variam entre 501 e 1000 euros mensais.

No caso das actrizes e dos actores, os rendimentos são ligeiramente reforçados pela

sua participação na televisão e no ensino.

O sector do audiovisual atrai as actrizes e os actores inexperientes e em início de

carreira e até aqueles que, não sendo actores ou actrizes, «tentam a sua sorte», o

que, em grande medida, gera o capital necessário para posterior reinvestimento na

arte.

No domínio do teatro, a interacção da idade com a situação profissional dos

artistas levanta algumas tendências que merecem atenção especial4. No caso dos

actores com mais de 30 anos, 58,3% têm a percepção de estarem a trabalhar a tempo

inteiro e 41,7% a tempo parcial. Os artistas com menos de 30 anos estão ligados ao

mundo teatral, desempenhando uma actividade relacionada com o teatro a tempo

inteiro (52,6%), depois a tempo parcial (24,6%), como, aliás, se pode ver no gráfico 3.

4 No caso do teatro, a relação entre os grupos de idade e a sua situação na profissão é significativa: χ2 (1,

N = 122) = 10,412, p < .05. No caso da dança, não existe relação entre os grupos de idade e a situação

profissional: χ2(2, N = 65) = 0.5, n. s.

Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança

122

Os actores mais jovens dividem-se entre a profissão e a formação: 22,8% são

trabalhadores-estudantes. Já anteriormente se avaliaram as carreiras dos actores e

dos encenadores e a evolução dos seus modos de formação entre o grupo de teatro e

a escola, discutindo-se a importância dos grupos enquanto entidades de ligação dos

jovens alunos com o mundo profissional (Borges, 2011). No mesmo sentido, provou-se

que a «inserção profissional objectiva» dos artistas no mercado passa, sem dúvida,

pela importância da experiência adquirida no teatro ou na dança enquanto estudam

(Borges e Pereira, 2011; a propósito da juventude e inserção profissional, v. Alves,

2008).

Idade e situação profissional no teatro

Fonte: Inquérito aos actores (2009).

No caso da dança, a situação vivida pelos bailarinos e bailarinas com mais de 30

anos é descrita pelos próprios como não sendo diferente da situação vivida pelos mais

jovens (v. gráfico 4). Metade dos bailarinos com menos de 30 anos trabalham a tempo

inteiro (52%) e 44% a tempo parcial. Pouco mais de 2/3 dos bailarinos com mais de 30

anos trabalham a tempo inteiro e 36% trabalham a tempo parcial.

Idade e situação profissional na dança

Fonte: Inquérito aos bailarinos (2009).

Vera Borges

123

As implicações destes resultados permitem deixar aqui breves reflexões e algumas

linhas de investigação que se podem continuar a explorar. Em primeiro lugar, as artes

do teatro e da dança têm estado sujeitas a um tipo de organização onde há muito se

descreve a precariedade do trabalho, desenvolvido por projecto ou por peça, e as

relações contratuais de trabalho estabelecidas com inúmeros empregadores. Mas as

artes não estão sozinhas nesta caminhada (v. como exemplo a pesquisa cuidada de

Freire, 2006, a propósito das possibilidades e condições de trabalho na vinha). O

interesse de pesquisas como esta, realizadas fora do universo artístico, está para lá da

curiosidade e uma reflexão conjunta destes temas ajuda a fazer uma leitura mais

ampla dos resultados e a lançar as bases de uma discussão alargada sobre o impacto

da instabilidade nas trajectórias individuais de carreira e os desafios à reorganização

colectiva do trabalho dentro e fora do universo artístico.

Depois, convém salientar que nos estudos empíricos aqui apresentados de uma

forma comparativa e mobilizando as variáveis clássicas das ciências sociais, como o

género, a idade e até a formação, estas pouco explicaram ou não explicaram as

desigualdades, pois neste momento o que caracteriza estes mundos do trabalho é a

profunda incerteza quanto ao futuro profissional de todos os inquiridos. Por fim,

importa perceber se, face aos riscos de ficarem sem trabalho, os artistas encontrarão

respostas na formação e qual será o efeito que esta pode ter quando realizada sem

ser de «costas» para o mercado, permitindo aos indivíduos o desenvolvimento de

actividades profissionais «derivadas», como o ensino e a animação, ou o

desenvolvimento de actividades profissionais «paralelas» e diferentes das actividades

artísticas mas capazes de assegurar trabalho para os mais jovens. Até que ponto a

segunda profissão ajudará o indivíduo a financiar a sua vocação artística? Acentuará a

incerteza estrutural das artes? Permitirá ao indivíduo continuar a investir o seu tempo

livre numa actividade considerada «libertadora», à semelhança da situação vivida nas

ciências (Borges e Delicado, 2010)?

CONCLUSÃO E PERSPECTIVAS

Vivem-se profundos dilemas sociais e económicos nos mundos das artes, em

particular no teatro e na dança, como acontece em mundos produtivos diversos, um

pouco por toda a parte. Neste artigo merece um olhar atento a juventude dos artistas

inquiridos – em média, não chegam aos 30 anos – e a sua «necessidade quase vital»

(expressão utilizada por um dos entrevistados) de ligação à arte para concretizar um

sonho, incrustado numa instabilidade que atravessa todas as fases da carreira dos

artistas, dos reputados aos mais desconhecidos, homens e mulheres, novos e antigos.

Trabalho, Género, Idade e Arte: estudos empíricos sobre o Teatro e a Dança

124

Além das razões económicas que estruturalmente afectam as artes performativas,

a favor da frágil e precária organização destas carreiras pode estar ainda o facto de no

teatro e na dança contemporânea a entrada parecer acessível. Apesar de os níveis de

formação serem elevados e os percursos formativos dos inquiridos articularem

interessantes linhas de formação mista, formal e informal (workshops e cursos

técnicos), estes não são mecanismos de selecção, ao contrário do que se passa em

certos mundos, como a música clássica ou a dança clássica.

O peso dos jovens no teatro e na dança e o volume de trabalho que parece ocupá-

los, mesmo que seja a tempo parcial, podem proporcionar um leque de oportunidades

de trabalho (serão reais?) que fazem com que espartilhem o seu tempo entre uma

actividade criadora e uma actividade de «suporte» do trabalho artístico. No caso do

teatro, os artistas com mais idade não têm uma situação profissional melhor do que os

mais jovens: todos vivem de forma instável e imprevisível a sua passagem pelas artes.

No caso da dança também não existe qualquer relação entre o género, a idade e a

situação profissional; por isso, qualquer que seja a idade de um bailarino ou de uma

bailarina, a sua posição na profissão é frágil. Nesta análise destaca-se o teatro e a

situação «nebulosa» das actrizes: com mais de 45 anos pode ser tarde de mais para

ser artista.

No futuro merece a nossa atenção o estudo da eficácia da formação nas artes

pelas implicações gerais que pode ter na definição das políticas públicas para o sector.

Em contexto português está ainda por estudar a percepção que os artistas têm das

dificuldades em construir a sua reputação num mercado cujas regras do jogo são a

imprevisibilidade e a força das vantagens cumulativas (Merton, 1988). Mas isso será

objecto de outra pesquisa.

VERA BORGES

Investigadora de pós-doutoramento do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de

Lisboa. Actualmente, a autora desenvolve a sua pesquisa em torno da reputação,

sucesso e risco das carreiras nas artes e em outros mundos do trabalho.

Contacto: [email protected]

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DA LÍNGUA NAS LITERATURAS AFRICANAS HOMOGLOTAS: O “EXEMPLO” DE MIA COUTO

ELENA BRUGIONI

CENTRO DE ESTUDOS HUMANÍSTICOS, UNIVERSIDADE DO MINHO

Resumo: Este artigo propõe um itinerário crítico em vista de uma reflexão que se prende com as relações subjacentes e apontadas pela língua como meio de representação estética e, logo, política. Analisando as fisionomias linguísticas e as problemáticas críticas contidas e apontadas pela escrita literária de Mia Couto, pretende-se reflectir em torno de alguns paradigmas teóricos e operacionais cruciais para repensar o que vem sendo definido como prática humanística. Palavras-chave: Mia Couto, língua portuguesa, literatura moçambicana, literaturas africanas homoglotas, teoria pós-colonial.

INTRODUÇÃO

Há como um terramoto no chão da escrita, uma linguagem em estado de transe,

[...]. Linguagem criadora de desordem, capaz de converter a língua num estado de

caos inicial, ela suporta um transtorno que é fundamental porque fundador de um

reinício. João Guimarães Rosa é um ensinador de ignorâncias de quanto

carecemos para entender um mundo que só é legível na margem dos códigos da

escrita (Mia Couto, 2005).

Um dos traços mais singulares da proposta literária de Mia Couto prende-se com um

conjunto de fisionomias linguísticas inéditas que configuram diferentes aspectos do

idioma português na sua condição de língua literária e, ao mesmo tempo, de elemento de

edificação do “projecto nacional” moçambicano (Couto, 2007b). As estratégias que se

detectam na escrita deste autor – e que de um ponto de vista fenomenológico parecem

responder a uma lógica de “provincianização” da língua (Chakrabarty, 2000) – sugerem

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uma prática estética e, logo, política que visa desconstruir a dimensão institucional e

instrucional – isto é, mediadora – da língua portuguesa no seu alcance de representação

cultural e identitária, configurando-a, simultaneamente, como lugar de inscrição de

instâncias culturais próprias do contexto representado – isto é, problematizado – nesta

literatura. Apresentando um português outro e, logo, uma língua libertada do “pacto

exclusivo com uma única nação” (Manifeste, 2007), a escrita de Mia Couto proporciona

uma reflexão crítica em torno das dinâmicas de intervenção literária e cultural da

contemporaneidade, configurando-se como um “exemplo”1 (Agamben, 1995) no que

concerne à questão linguística nas chamadas literaturas africanas homoglotas.2 As

solicitações que se apresentam através de uma análise da escrita deste autor constituem

pontos de partida para uma problematização em torno de paradigmas críticos cruciais do

que vem sendo definido como “pós-colonial no espaço-tempo de língua oficial

portuguesa” (Santos, 2001), configurando o texto literário como lugar seminal para um

itinerário teórico situado e “mundano”3 (Said, 2004) cujas implicações epistemológicas

contribuem para uma reflexão em torno da própria prática humanística. Por via de

categorias conceptuais tais como relação, tradução, diferença surge a possibilidade de

uma reflexão crítica que a partir de uma problematização da língua na escrita de Mia

Couto bem como nas chamadas literaturas africanas homoglotas, procura re-pensar as

instâncias teóricas e operacionais que pautam a prática humanística. Deste modo, língua,

representação, comunidade e excepção representam pontos-chave da reflexão

epistemológica que se pretende desenvolver, configurando-se como constelações críticas

matriciais para (re)pensar a literatura como lugar de problematização dos paradigmas de

leitura da contemporaneidade.

1 O recurso à categoria de “exemplo” tal como esta é teorizada por Giorgio Agamben (1995) pretende

evidenciar as relações que a fisionomia linguística da escrita de Mia Couto parece estabelecer com outras propostas literárias africanas homoglotas, contribuindo para a desconstrução de processos de recepção exotizantes e salientando, deste modo, a dimensão de “inclusão exclusiva” (Agamben, 1995: 26) que configura a escrita deste autor numa dimensão contextual alargada. Neste sentido, a escrita de Mia Couto é exemplar na medida em que: “exibe o seu pertencer ao caso normal” [tornando-se] um paradigma no sentido etimológico do termo”(Agamben, 1995: 27). 2 Com literaturas homoglotas [omeoglotte] entendem-se “todos os textos escritos fora da Europa em línguas

similares àquelas europeias e contudo não exactamente as mesmas. Por outras palavras, os ‘ingleses’ falados fora da Inglaterra, as variedades de Francês utilizadas em África a nas Caraíbas, o Espanhol dos Estados Unidos da América, o Português do Brasil, de Angola ou de Moçambique” (Centro di Studi sulle Letterature Omeoglotte dei Paesi Extraeuropei: http://www2.lingue.unibo.it/postcolonial_studies_centre/centrehistory.htm) [15/12/2010]. Veja-se também Albertazzi et al., 2004. 3 Mundano e/ou Mundanidade [Worldly / Worldliness] representam conceitos-chave da teorização crítica e

epistemológica de Edward Said; a este propósito o próprio Said salienta: “De um ponto de vista cultural, através do termo mundanidade pretende-se salientar que todos os textos e todas as representações estão no

mundo e são sujeitos as suas numerosas e heterogéneas realidades, contaminações e envolvimentos” (Said, 2004: 31-56; tradução minha).

Tradução, Diferença, Excepção.

130

1. LÍNGUA: AMBIGUIDADE(S) E RELAÇÃO. TRADUÇÃO E DIFERENÇA

O português é o pilar mais forte para a construção da unidade nacional e esta é

uma situação contraditória: é preciso que este português seja um português nosso

uma coisa que é sentida como nossa e que nos diferencia dos outros que falam as

outras línguas portuguesas (Mia Couto apud Brugioni et al., 2010).

Na observação crítica da fisionomia linguística da escrita de Mia Couto um dos

pressupostos gerais a considerar é a ambiguidade funcional e simbólica da língua

portuguesa no contexto social, cultural e – obviamente – político moçambicano,

destacando-se como um dos elementos fulcrais para a inscrição da proposta literária

coutiana na dimensão fenomenológica de uma intervenção cultural “situada” (Hall, 1990).

Este aspecto torna-se particularmente emblemático uma vez que é relacionado com as

especificidades de um contexto como o moçambicano onde a língua portuguesa –

similarmente a outros contextos africanos4 – é caracterizada por um conjunto de

atribuições simbólicas, históricas, políticas e socioculturais problemáticas e, ao mesmo

tempo, específicas5. O carácter comunitário de cariz essencialista e hegemónico que tem

caracterizado o idioma de raiz europeia quer em época colonial quer no pós-

independência,6 constitui o elemento emblemático desta ambiguidade funcional e, logo,

simbólica que caracteriza a língua portuguesa, tornando a subversão linguística da

escrita deste autor numa proposta que coloca problemáticas contextuais e teóricas

relevantes. Por outras palavras, a feição diferencial que caracteriza a escrita de Mia

Couto, uma vez que observada na sua relação com o contexto em que se inscreve,

reveste-se de um sentido ulterior, apontando simultaneamente para dinâmicas de rotura e

continuidade no que diz respeito às práticas de intervenção cultural na chamada

colonialidade e, ao mesmo tempo, à urgência de pluralidade que se situa como um dos

imperativos culturais na construção de uma “moçambicanidade” literária (Matusse, 1998)

e, logo, de uma modernidade cultural. Ao mesmo tempo, este processo de inovação

linguística, frequentemente considerado como uma especificidade da escrita deste autor,

uma vez que é observado dentro do chamado cânone da literatura moçambicana7 ou

4 Refiro-me, por exemplo, à escolha da língua portuguesa como única língua oficial diferentemente de outras

nações africanas onde o idioma europeu partilha este estatuto político com outras línguas, habitualmente definidas como autóctones. Em Moçambique as línguas autóctones gozam do estatuto político de línguas nacionais. 5 Neste sentido, veja-se Gregório Firmino (2002).

6 Pense-se no debate ocorrido nas páginas das diferentes revistas culturais e literárias moçambicanas em

torno do uso da língua portuguesa na literatura moçambicana. 7 A este propósito veja-se: “José Craveirinha, ex-colonizar a literatura, um programa para a sociedade pós-

colonial” in Basto, 2006: 251-283.

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131

ainda relacionado com o que se poderá definir como perspectiva contextual interna8

adquire uma dimensão fenomenológica mais complexa. Por exemplo, situando a escrita

de Mia Couto num horizonte de perspectivação não apenas “lusófono”, a subversão

linguística que pauta a obra deste autor parece inscrever-se numa linha de intervenção

literária que tem caracterizado as literaturas africanas homoglotas no pós-independência,

apontando para as dinâmicas de “autoctonização e relexificação linguísticas” (Zabus,

2007) que se detectam em outras “literaturas africanas eurófonas” (idem). No que diz

respeito a um plano metodológico, o contraponto entre a escrita de Couto e as propostas

que surgem nas literaturas africanas de língua inglesa e francesa contribuiria para a

neutralização de uma especificidade frequentemente atribuída à escrita deste autor –

pelo menos nos contextos de língua portuguesa – e que determina a consolidação de

processos de exotização desta proposta literária. A este propósito, a categoria da

“Relação” (Glissant, 1990) constitui o conceito-chave através do qual é necessário ler a

escrita deste autor, quer numa perspectiva nacional moçambicana quer noutra

fundamentada numa perspectivação contextual mais abrangente. Aliás, o conceito de

Relação representa a instância crítica crucial para a observação desta literatura,

configurando-se simultaneamente como um contra-paradigma epistemológico refundador

para reposicionar a fisionomia linguística da escrita de Mia Couto e, logo, a sua recepção.

Por outro lado, numa perspectiva geral, uma operacionalização do conceito de Relação

no que concerne à crítica das literaturas africanas homoglotas proporcionaria um

itinerário teórico capaz de neutralizar as dicotomias que pautam o debate em torno das

opções linguísticas nas literaturas africanas, ainda hoje marcado por uma alternância

ideológica entre autenticidade e universalidade. Com efeito, no que diz respeito aos

contextos africanos pós-independência, a questão da língua que as diferentes literaturas

nacionais deviam utilizar tem representado um dos debates mais complexos e todavia

longe de se esgotar. As posições paradigmáticas e opostas tomadas por Chinua Achebe

(1975) e Ngugi wa Thiong’o (1987) têm determinado o surgir de duas linhas de

pensamento antitéticas ainda marcantes da questão linguístico-literária africana. Para

além das questões específicas que os diferentes posicionamentos estéticos e políticos

realçam, o debate em torno da escolha linguística nas literaturas africanas pós-

independência salienta especialmente a centralidade da língua na colonização europeia

em África e, por conseguinte, o seu papel matricial nos processos de edificação nacional

e de autodeterminação política e, logo, cultural. Ao mesmo tempo, a dicotomia entre o

autêntico [línguas autóctones] e o universal [línguas coloniais] que, em geral, fundamenta

8 Refiro-me obviamente a uma dimensão contextual africana ou ainda regional que se tornaria operacional

por via de um contraponto entre diferentes literaturas africanas homoglotas.

Tradução, Diferença, Excepção.

132

as diferentes posições assumidas por Chinua Achebe e Ngugi wa Thiong’o –

permanecendo ainda central na crítica das literaturas africanas – não parece ilustrar a

situação linguístico-literária africana cuja complexidade requer um aparato epistemológico

que não permanece vinculado a um pensamento de cariz dicotómica e, logo, que se

funda numa desmontagem do cânone ocidental. Neste sentido, torna-se fundamental a

observação das “modalidades” (Ashcroft, 2001) que caracterizam as escolhas linguísticas

e, logo, uma problematização situada que se prende com as relações que estas opções

pretendem estabelecer no que diz respeito ao contexto em que se inscrevem. No que

concerne a opção de escrita na chamada língua colonial – tal como é o caso de Mia

Couto – a reflexão crítica prende-se forçosamente com as modalidades de desconstrução

– ou melhor, de descolonização (Zabus, 2007) – linguística levadas a cabo pelo autor,

sem porventura esquecer o carácter individual e criativo destas opções. A este propósito,

e procurando inviabilizar um equivoco marcante da recepção crítica da escrita deste

autor, é útil salientar que a língua desta escrita não constitui um elemento representativo

– isto é universal – da situação sociolinguística moçambicana (Gonçalves, 2000). Aliás,

as manipulações e as desconstruções que se detectam nesta literatura não são

determinadas por uma reprodução literária do português de Moçambique ou ainda dos

processos de autoctonização do idioma português no contexto moçambicano (idem). Ao

contrário, a fisionomia linguística da escrita de Couto situa-se na dimensão de uma

prática literária e cultural onde a dimensão fenomenológica da “tradução” parece

desempenhar um papel crucial. Para além de representar um lugar literário seminal na

escrita coutiana9, a tradução constitui uma prática cultural, linguística e obviamente

política central, apontando para instâncias cruciais no que diz respeito à relação

língua(s), identidade(s), contexto(s) e representação.

A escrita é uma casa que eu visito mas onde não quero morar. O que me instiga

são as outras línguas e linguagens, sabedorias que ganhamos apenas se de nós

mesmos nos soubermos apagar. Da minha língua materna eu aspiro esse momento

em que ela se desidioma, convertendo-se num corpo sem mando de estrutura ou

de regra. O que eu quero é este desmaio gramatical, em que o português perde

todos os sentidos. Neste momento de caos e perda, a língua é permeável a outras

razões, deixa-se mestiçar e torna-se mais fecunda. (Couto, 2009)

9 A literatura de Mia Couto é pautada por uma centralidade – implícita ou manifesta – da figura do tradutor e,

logo, da prática da tradução; entre os muitos casos pense-se, por exemplo, no romance O Último Voo do Flamingo (2000) onde tradução e tradutor excedem emblematicamente a dimensão linguística, apontando para dimensões de mediação, negociação e re-definição culturais e identitárias.

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133

Aliás, o trabalho de manipulação linguística cabe numa lógica de tradução na língua

portuguesa de determinantes linguístico-culturais específicas que, em última análise, não

visa reproduzir a “variedade em formação do português de Moçambique” (Gonçalves,

1996) mas sim utilizar o idioma do colonizador como “dispositivo de rotura e de

afastamento de uma língua dominante” (Basto, 2006: 266). Neste sentido, a tradução não

representa apenas uma prática linguística mas desempenha a função de uma prática

estética e política onde a negociação entre elementos linguísticos e culturais

heterogéneos é facultada pela inscrição na língua portuguesa de uma pluralidade de

repertórios específicos, facultando o surgir do que se poderia definir como “terceiro

código”10 (Zabus, 2007). Por conseguinte, a língua – portuguesa e literária – da escrita de

Mia Couto responde a uma alteridade traduzida – isto é, uma diferença – neutralizando a

lógica de autenticidade linguística e cultural subjacente à coexistência de diferentes

idiomas simbólica e politicamente conotados. O que surge por este trabalho de

manipulação que “acontece na língua mas a ultrapassa” (Leite, 2003) responde, numa

dimensão fenomenológica, a uma língua alheia – à norma europeia bem como à

moçambicana – edificada por via de um processo de tradução de idiomas, códigos,

registos e repertórios intrínseca e simbolicamente heterogéneos e configurando o texto

literário como lugar de enunciação da diferença.

2. RECEPÇÃO: AUTENTICIDADE E EXOTISMO

Tem gente que fica ofuscada com o seu exercício da língua [...]. E falam até que ele

inventou uma língua para falar sozinho. Os mais gramáticos chamam-lhe nomes

feios como logoteta, subvertor, desarrumador de regras. [...] Parece-me que, como

o adivinho diante do cesto de adivinhação, o Mia Couto organiza as palavras da

infância e paga o preço de ter passado pela poesia. [...] Passou-se para a prosa

mas ficou preso nas malhas das experiências primeiras: levantar as saias da língua

e experimentar-lhe a pele (Ana Paula Tavares, 2003).

A fisionomia singular da escrita de Mia Couto e, logo, a inscrição na língua

portuguesa de uma diferença tem suscitado reacções variadas e problemáticas,

contribuindo, ao mesmo tempo, para o surgir de um corpus crítico significativo. No que

diz respeito à recepção da obra de Couto em contexto português – ou, mais em geral,

10

A definição de terceiro código, formulada por Chantal Zabus (2007) e fundamentada na relação simbólica, política e contextual com a noção de Terceiro Mundo [Third World], torna-se uma categoria crítica e operacional particularmente significativa na medida em que permite salientar a dimensão de alteridade linguística, apontando simultaneamente para os processos de tradução que a determinam.

Tradução, Diferença, Excepção.

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europeu – esta é caracterizada por uma “obsessão”11 (Rothwell, 2004) linguística,

tornando-se o sintoma de uma recepção imperfeita que aponta de imediato para um

conjunto de relações de feição [neo-]colonial. Aliás, ensaios, artigos e textos que se

debruçam sobre os chamados miacoutismos, à procura da função logotética12 ou que

visam estabelecer relações imediatas entre idioma português, linguagem literária e

“variante moçambicana” constituem o corpus crítico quantitativamente mais significativo

surgido em torno da obra deste autor.13 Ao mesmo tempo, o paradigma subjacente à

recepção crítica da obra de Mia Couto não parece ser o que se prende com uma

abordagem do trabalho contextual de alcance possivelmente cultural e político apontado

por esta literatura, mas sim o que procura demonstrar as potencialidades do português

europeu salientadas pela escrita deste autor. No entanto, perspectivações críticas deste

género permanecem vinculadas a uma dicotomia epistemológica determinada pela

observação da fisionomia da escrita de Couto como um fenómeno disjunto do contexto

espaço/temporal no qual se inscreve, desembocando, por conseguinte, num processo de

exotização da diferença. Aliás, no que diz respeito ao horizonte de recepção da escrita de

Mia Couto, as estratégias de observação desta fisionomia linguística parecem repartidas

entre dinâmicas assimilantes e exóticas, salientando todas as peculiaridades de uma

recepção e de uma fortuna que não deixa de proporcionar ambiguidades e, logo de se

basear em equívocos crítico-teóricos significativos.14

Ao mesmo tempo, falando de fortuna ambígua não é apenas num horizonte de

recepção europeu que a escrita de Mia Couto se torna problemática, tendo suscitado,

desde logo, reacções controversas no próprio contexto moçambicano.

Mia Couto: Eu fui questionado, fui quase julgado. Havia várias contestações e uma

destas era a de que eu estava revelando uma fragilidade, estava demonstrando que

os moçambicanos, afinal, não sabem falar e escrever o bom português. Isto

derivava de um certo sentimento colonizante que se traduz no facto de que era

preciso demonstrar ao outro – o ex-colonizador – que eu era capaz de manejar este

instrumento que é a língua portuguesa. [...] Ao mesmo tempo, há uma nação que se

11

A obsessão pela fisionomia linguística da escrita de Mia Couto apontada por Phillip Rothwell fundamenta-se na observação da obra literária de Mia Couto como exercício linguístico, determinando o desfavorecimento de outras leituras da obra deste autor. 12

A definição de logoteta foi originariamente formulada em relação à escrita de Luandino Vieira e é da autoria de Salvato Trigo (1981); continua a representar uma formulação teórica recorrente sobretudo em relação a certos autores; para a designação de Mia Couto logoteta veja-se Fernanda Cavacas (2002). 13

Pense-se, por exemplo, na enorme quantidade de trabalhos académicos — tais como teses de mestrado e doutoramento — que abordam e analisam a fisionomia linguística da escrita deste autor; a este propósito veja-se o artigo de Fátima Mendonça “Mia Couto, le mal-aimé” (Mendonça, 2008b). 14

No que diz respeito à ambiguidade que parece caracterizar a recepção da obra de Mia Couto veja-se

Fátima Mendonça (Mendonça, 2008b).

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135

tem que formar e há que cortar laços e uma maneira importante ou melhor o campo

principal em que se tem que fazer isto é exactamente na língua do outro, a língua

portuguesa (Brugioni, 2010).

Ao contrário do contexto português, a recepção crítica moçambicana parece

questionar a dimensão da autenticidade linguística e cultural que a obra de Mia Couto

representa. Observando, por exemplo, o debate surgido em Maputo aquando da

publicação de Vozes Anoitecidas (Couto, 1986) algumas das intervenções críticas

ocorridas nas diferentes revistas literárias moçambicanas encaram a subversão

linguística da escrita de Mia Couto como uma operação sem “fundamento real: [que] nem

segue o povo nem a gramática banto” (Manjate, 1988: 44) salientando, deste modo, a

falta de legitimidade da operação criativa proposta pelo autor. Em geral, enquanto a

recepção portuguesa parece contribuir à definição de um “exótico pós-colonial” (Huggan,

2001) – que no caso dos contextos pós-coloniais de língua oficial portuguesa poderá

relacionar-se com o dispositivo ideológico luso-tropicalista – a moçambicana levanta

questões que se prendem com um certo essencialismo cultural fundamentado por um

conflito entre o que é “próprio” e que é do “outro” (Mendonça, 2008a) e encarando, por

vezes, o texto literário como o lugar de enunciação de uma moçambicanidade que se

pretende autêntica. Todavia, ambos os posicionamentos são pautados por uma

abordagem à literatura que subentende e, ao mesmo tempo, projecta uma noção

identitária reificada sem reconhecer à escrita literária em geral e mais em particular à de

Mia Couto a prerrogativa “mundana” – worldly – (Said, 2004) que, em rigor, esta literatura

parece propor e conter. No entanto, uma leitura mundana15 das subversões linguísticas

desta escrita torna-se o imperativo epistemológico matricial para desconstruir as

dicotomias que pautam a recepção exógena e endógena da obra de Mia Couto,

proporcionando deste modo uma prática crítica integrativa capaz de “resistir ao modelo

de pensamento dicotómico que todavia caracteriza o nosso tempo” (Said, 2004). Por

outras palavras, uma análise da recepção crítica da obra de Mia Couto pode representar

um ponto de partida para uma reflexão de mais amplo fôlego que se prende com as

dinâmicas de afirmação e recepção de propostas literárias e culturais que se inscrevem

num espaço de alteridade, convocando simultaneamente histórias, memórias e relações

inéditas cuja leitura parece sugerir uma reconfiguração do que por norma se define como

prática humanística. Por conseguinte, a representação como prática problematizante e

seminal do espaço literário surge como um desafio teórico e, logo, como um “dilema

15

Com leitura mundana pretendo apontar para as implicações epistemológicas do conceito de mundanidade formulado por Edward Said (2004).

Tradução, Diferença, Excepção.

136

epistemológico” (Said, 2008) a partir do qual sobressai a necessidade de questionar os

paradigmas que edificam o léxico da nossa contemporaneidade.

3. LÍNGUA(S): LOGO-CENTRISMO E COMUNIDADE

Há séculos que o idioma lusitano é um filho mestiço de namoros feitos entre as

duas margens do Mediterrâneo (Mia Couto, 2007a)

Uma observação situada da diferença que caracteriza a escrita de Mia Couto

proporciona uma reflexão crítica crucial para a desconstrução das dicotomias epistémicas

que pautam a própria partilha do idioma português. Por outras palavras, uma leitura da

fisionomia linguística da escrita deste autor pode tornar-se o ponto de partida para

repensar sujeitos, contextos e relações subjacentes à própria ideia de lusofonia. Aliás, a

“comunidade imaginada” (Anderson, 1991) como construção ideológica edificada a partir

de uma sobreposição entre nação e império e, de certa forma, subjacente às

organizações internacionais de índole linguística – como, por exemplo, a Comunidade

dos Países de Língua Oficial Portuguesa [CPLP] – parece desempenhar o papel do

“império da geolinguística compensatória” (Almeida, 2006) revelando em diferentes

instâncias uma fenomenologia, sem dúvida, problemática. A este propósito, o “drama

bufo luso-brasileiro” (Santos, 2008) ocorrido aquando do Novo Acordo Ortográfico

representa um exemplo paradigmático de como a questão da língua, e logo a sua

partilha, revela todavia a persistência de uma dicotomia centro/periferias ou

colonizado/colonizador ainda marcante e por resolver. Ao mesmo tempo, a inscrição na

língua de valores como pertença, pátria e soberania é posto em causa pela complexidade

dos contextos envolvidos nestas construções comunitárias e mais ainda pelas relações

de poder que são vinculadas pela própria partilha linguística.

Todos nos lembramos como certos sectores da política portuguesa entraram em

pânico com a adesão de Moçambique à Commonwealth. O que se passava? Os

moçambicanos haviam traído a sua fidelidade ao idioma luso? As reacções de

algumas facções foram de tal modo excessivas que só podiam ser explicadas por

um sentimento de perda de um antigo império. A exemplo da síndrome do marido

traído que, não reconhecendo autonomia e maioridade na ex-mulher, sempre se

pergunta: com quem é que ela anda agora? Moçambique andaria, assim, com o

inglês. Não se apenas tratava de adultério mas ainda por cima que mau gosto, logo

um inglês, com todos os fantasmas históricos que isso comportava (Couto, 2009).

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137

No que diz respeito às relações que se vão estabelecendo entre diferentes contextos

e sujeitos envolvidos neste universo cartografado como lusófono estas apontam para

uma falta de descolonização simbólica que caracteriza a partilha do idioma como

derradeiro e indelével rasto do império. O que, numa perspectiva geral, é observado

segundo os princípios dicotómicos de inclusão/exclusão, no que diz respeito ao contexto

literário parece desembocar na construção de uma especificidade edificada a partir dos

processos típicos da assimilação ou ainda da exotização. Isto é, em termos de produção

e representação cultural, o paradigma lusófono ou melhor luso-cêntrico – que, numa

perspectiva literária convoca, de imediato, noções como cânone e património – parece

funcional a uma dialéctica domesticação/exotização de um conjunto de subversões que,

por outro lado, visam desconstruir as relações de poder veiculadas e apontadas pela

língua portuguesa. Em geral, este processo de recepção salienta a incapacidade de

encarar esta diferença – que em relação à língua poderá configurar-se como uma

difracção polifónica16 – na perspectiva de uma condição necessária e indispensável para

ultrapassar “os fantasmas e as fantasias” (Ribeiro e Ferreira, 2003) do império perdido.

Uma diferença que aliás constitui o pressuposto indispensável para a edificação de logo-

fonias que se situem para além da “utopia abortada” (Raharimanana, 2007) ou ainda do

“abuso” (idem) e, logo, que não representem “o último avatar de um novo colonialismo”

(Manifeste, 2007).

No entanto, o questionamento crítico e, logo, a reconfiguração epistemológica que se

prendem com a categoria de comunidade logo-cêntrica pode ser desenvolvido a partir

dos próprios textos literários que parecem oferecer configurações inéditas no que diz

respeito aos paradigmas que pautam a ideologia subjacentes a estas categorizações.

Aliás, uma lusofonia híbrida e mestiça ab horigem (Couto, 2007a) cabe naqueles

fenómenos de subversão que inviabilizam a ideia de uma comunidade que se

fundamenta no paradigma essencialista do “ser comum”. Num plano teórico, o que surge

por esta problematização do comunitário é uma noção de comunidade débil, inoperosa,

désœuvrée (Nancy, 1992) não fundamentada por valores de pertença ou homogeneidade

identitária mas que se mostra como “ser singular plural” (Nancy, 1995).

A diferença desta articulação crítica reside no carácter permanentemente

incompleto, não homogéneo, dinâmico, no sentido de sujeito a constantes

16

Com esta designação, edificada a partir de dois conceitos distintos e não imediatamente coerentes,

pretendo apontar para uma dimensão fenomenológica – por via da metáfora visual da difracção – convocando, ao mesmo tempo, a noção de polifonia tal como esta é conceitualmente definida por Bakhtin. Por via desta designação são chamadas em causa perspectivações crítico-conceituais diferenciadas que, em geral, visam salientar não apenas a transformação substancial e sistémica da língua, mas também a emblematicidade da sua configuração e percepção simbólica.

Tradução, Diferença, Excepção.

138

transformações, da ideia de comunidade; ela portanto não encontra seu princípio na

construção, mas na incompletude, uma comunidade estruturada na falta, portanto

désœuvrée, inoperosa, sem obra. (Vecchi, 2010b)

Neste sentido, a ideologia subjacente à noção – conceptual e pragmática – de

lusofonia liberta-se do passado nostálgico e das suas projecções essencialistas,

configurando o conceito de comunidade como uma “articulação contínua de

singularidades” (Vecchi, 2010b) e o texto literário como “lugar político onde dar forma –

“figura” – à ideia de comunidade inoperosa” (idem). No caso do “espaço-tempo da língua

portuguesa” (Santos, 2001), a operacionalização da noção de comunidade inoperosa

passa forçosamente pela desconstrução do paradigma luso-tropicalista por norma

subjacente ao conceito de lusofonia como essência, apontando para um processo de

desmontagem ideológica do edifício imperial. Inviabilizando este dispositivo logo-tropical

o aparato conceptual subjacente à partilha linguística na sua dimensão simbólica e

pragmática configura-se como um espaço plural e imanente, onde as relações não são

reguladas pela lógica centro/periferias mas sim por uma multiplicidade de direcções

dentro de um espaço limiar, fragmentário e anti-hegemónico, reconstituindo a figura

comunitária como paradigma das traduções pós-coloniais.

4. ITINERÁRIOS CRÍTICOS E EPISTEMOLOGIAS

Sempre que aflora, de um modo ou do outro, a questão da língua, significa que se

está a impor uma série de outros problemas: a formação e a ampliação das classes

dirigentes, a necessidade de estabelecer relações mais íntimas e seguras entre os

grupos dirigentes e da massa popular-nacional, ou seja, de reorganizar a

hegemonia cultural (Gramsci, 2007).

Este percurso de reflexão sobre a fisionomia linguística na escrita de Mia Couto

proporciona solicitações crítico-teóricas e, logo, um léxico epistemológico que não se

torna operacional apenas para a leitura da obra literária deste autor mas configura-se

como o esboço de um itinerário crítico para a observação de algumas problemáticas

matriciais nas chamadas literaturas africanas homoglotas.

Em primeiro lugar, a questão da língua – que permanece central nas propostas

literárias africanas eurófonas – destaca-se como uma instância crucial no que diz respeito

às problematizações para as quais aponta e logo aos quadros teóricos que parece

sugerir. Destacando a categoria da tradução como praxis criativa e pressuposto

operacional subjacente às escritas literárias africanas homoglotas, uma constelação

Elena Brugioni

139

conceptual específicas parece surgir, proporcionando uma reflexão em torno de algumas

instâncias críticas complexas. Neste sentido, a reflexão teórica pode focar-se já não nas

fisionomias mais ou menos inéditas que pautam os diferentes regimes de escrita mas sim

na dimensão potencial que caracteriza a língua de um ponto de vista ontológico,

salientando especialmente relações problematizantes tais como escrita e oralidade ou

ainda voz e palavra numa perspectivação pós-colonial. Aliás, por via da noção de

tradução resolve-se a aparente dicotomia entre repertórios orais e textualidades escritas,

configurando o texto literário como lugar fundador de um terceiro código (Zabus, 2007),

fruto de uma prática de transformação forçosamente estruturada numa lógica de restos e

perdas, e fenomenologicamente marcada por uma fisionomia potencial e, ao mesmo

tempo, residuária. A “língua-resto” (Vecchi, 2004) que surge por via desta perspectivação

teórica configura-se como lugar onde “se perdeu por inteiro (...) a dialéctica entre anomia

e norma” (idem) respondendo ao uso de um “língua morta” (Agamben, 1982; 1998). A

perspectivação crítica que envolve a noção de língua morta não só permite sublinhar as

potencialidades da linguagem no discurso literário, inviabilizando um conjunto de

dicotomias epistemológicas marcantes especialmente no que diz respeito ao aparato

crítico das literaturas africanas homoglotas, mas possibilita a definição da língua como

excepção pós-colonial. Por outras palavras, tendo em conta o dispositivo ideológico

comunitário que a língua numa situação pós-colonial subentende e, simultaneamente,

desconstrói, o conceito de estado de excepção salienta a complexa rede de relações que

se estabelecem na língua no que diz respeito aos fenómenos de inclusão e exclusão que

ela própria produz e através dos quais é também observada. Procurando reflectir em torno

da relação língua/literatura/excepção destaca-se uma linha crítica contigua à que surge na

reconfiguração epistemológica específica para ler a literatura da guerra colonial:

A literatura da guerra colonial, como ocorre com as literaturas em processo de pós-

colonização, dá corpo (textual) e voz (narrativa ou poética) ao dispositivo da

excepção mostrando morfologicamente, ou seja, pela língua, o seu funcionamento,

expondo assim os mecanismos internos menos visíveis, portanto mais perigosos,

para tecer um véu ambíguo e impalpável – «um novo encoberto», para citar uma

definição de Margarida Ribeiro do luso-tropicalismo (Ribeiro, 2004: 151), ou o

«Encoberto do século XX» (Ana Calapez Gomes) – nos simulacros imperiais

(Vecchi, 2010a).

O desvendamento através da língua de fenómenos que nela se fundam para a

ultrapassar torna-se um dos pressupostos críticos matriciais no que diz respeito à uma

redefinição epistemológica em torno das literaturas africanas homoglotas, sugerindo a

Tradução, Diferença, Excepção.

140

desconstrução dos paradigmas dicotómicos através dos quais se observa a dimensão

linguística e os seus desdobramentos fenomenológicos e conceptuais. A configuração do

texto literário como lugar da excepção convoca um aparato crítico inédito e, ao mesmo

tempo, seminal para a observação da intervenção literária como uma prática cultural

situada – “topográfica” (Derrida, 1967) – e logo como um “espaço de construção e

negociação da diferença cultural” (Santos, 2001) cujas implicações desdobram-se em

dimensões sociais e políticas específicas. A este propósito, um itinerário crítico que se

debruça sobre a questão linguística a partir da sua fenomenologia literária constituída

neste estudo pela escrita de um autor como Mia Couto, configura-se como um “exemplo”

(Agamben, 1995) para uma reflexão crítica e, logo, política em torno dos discursos e das

performatividades que pautam o “pós-colonialismo no espaço-tempo de língua oficial

portuguesa” (Santos, 2001).

ELENA BRUGIONI

Investigadora Doutorada do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho

– CEHUM e bolseira de Pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia,

com o projecto “Provincianizando o Cânone. O questionamento das grandes narrativas

europeias em literaturas homoglotas” [SFRH/BPD/62885/2009], tendo por orientadores

Ana Gabriela Macedo (Universidade do Minho) e Roberto Vecchi (Università di Bologna).

Contacto: [email protected]

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143

A UNIÃO EUROPEIA E O «OUTRO» – TENSÕES E COMPROMISSOS DA LÓGICA

SUBJACENTE À SUA GESTÃO DA IMIGRAÇÃO DE PAÍSES TERCEIROS1

ISABEL ESTRADA CARVALHAIS

ESCOLA DE ECONOMIA E GESTÃO E

NÚCLEO DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS,

UNIVERSIDADE DO MINHO

Resumo2: O texto questiona a lógica que orienta a praxis da União Europeia na gestão da

imigração de países-terceiros. Da natureza liberal dessa lógica ressalta uma tensão entre o compromisso com os Direitos Humanos e as premissas do funcionamento capitalista, tensão que marca a relação da Europa com o imigrante enquanto uma das possíveis faces do ‘Outro’. O texto identifica a presença dessa lógica na operacionalização de diversos conceitos que sustentam os discursos políticos produzidos no contexto institucional da UE. Nessa operacionalização, evidencia-se uma fricção entre duas heranças constitutivas da matriz do pensamento e da acção da Europa, em particular do seu espaço comunitário: a herança de uma ética humanista e a herança de uma ética burguesa. Em face desta ambivalência na relação com o ‘Outro’, a legitimidade de práticas e de discursos políticos sobre a gestão da imigração surge necessariamente como incompleta e fragilizada. Palavras-chave: União Europeia, lógica liberal, direitos humanos, imigração.

INTRODUÇÃO

O presente texto visa analisar e propor alguns tópicos de reflexão em torno da lógica que

orienta a praxis política da União Europeia em matéria de tratamento de questões

migratórias, em concreto no tocante ao modo como controla e gere (ou pelo menos

procura controlar e gerir) as entradas de fluxos de imigrantes vindos de países-terceiros.

Consideramos estarem neste duplo esforço de análise e de reflexão, duas tarefas

essenciais (e todavia em falta) da própria construção do projecto europeu enquanto

projecto que pretende ser não apenas económico mas também social, político e cultural

1 Este texto tem a sua origem num outro publicado em Cabecinhas e Cunha (2008), tendo sido entretanto

substancialmente actualizado e desenvolvido. 2 Texto financiado pela FCT [Ref.ª FEDER/POCI 2010].

Isabel Estrada Carvalhais

144

(Delanty, 1995; Christiansen, Jorgensen, Wiener, 2001; Barnavi, 2002; Bruter, 2005). De

facto, só a compreensão da lógica que se encontra a montante da praxis política da

União Europeia em diversas matérias e no que para o caso nos importa, em matéria de

imigração, poderá trazer verdadeira luz sobre o porquê das opções que a

institucionalidade europeia tem feito nesse âmbito.

Parece-nos igualmente que análises como aquela que aqui sugerimos, podem e

devem ser entendidas como exercícios integrados no processo mais amplo de reflexão

crítica sobre a relação que a União Europeia tenciona efectivamente construir com a sua

diversidade de povos e de expressões culturais.

Na primeira parte do texto, partiremos para a identificação da lógica em causa,

reconhecendo-a como uma lógica liberal de condição binária. Essa condição binária

traduz-se pelo seu repartir entre uma ética burguesa obediente ao Capitalismo (e por isso

colonial e colonizadora3), e uma ética humanista pela qual a lógica liberal estabelece o

seu apego a um conjunto de direitos tidos como humanos universais, entre os quais

figura o direito à liberdade de circulação. Embora não coincidentes, a ética burguesa e a

ética humanista reforçam em conjunto a lógica liberal no que esta representa de

compromisso com o Capitalismo, e nesse sentido a condição binária daquela, embora

existindo, está longe de se traduzir num paradoxo dramático. No caso concreto da

liberdade de circulação, a sua elevação ao estatuto de direito básico do indivíduo, faz-se

muito por força da própria agenda liberal que acompanha os interesses de funcionamento

das economias capitalistas.

Mas como também procuraremos argumentar, ainda na primeira parte do texto, a

dimensão humanista da lógica liberal possui uma autonomia que a não reduz a mero

instrumento do Capitalismo, radicando tal autonomia pelo menos parcialmente, na

genuína convicção de milhões de pessoas (que não apenas de sociedades ocidentais,

diga-se) sobre a efectiva existência de Direitos Humanos básicos e universais nos quais

se inscreve também a liberdade de circulação.

Na segunda parte do texto, procuraremos ver como essa lógica liberal está afinal

presente nas opções políticas da União Europeia (amplamente avalizadas pelos seus

estados-membros) que marcam a sua relação com o ‘Outro’ na forma de imigrante de

países terceiros. Em concreto, olharemos para pilares estruturantes da linguagem mais

recente da União em matéria de controlo das suas fronteiras, linguagem essa em que se

incorpora a externalização de responsabilidades de controlo de fronteiras; o combate à

3 Entendemos separar colonial enquanto atitude, de colonizadora enquanto prática, uma vez que a primeira

pode implicar a ocorrência da segunda, mas não necessita desta para seguir existindo.

A União Europeia e o «Outro»

145

imigração ilegal e terrorismo, a defesa da migração circular e das políticas de retorno

voluntário, entre outros conceitos.

1. A DUPLA FACE DA LÓGICA LIBERAL NA ORIENTAÇÃO DA ACÇÃO POLÍTICA

Acreditando que a acção política é a um tempo agente e produto dos sistemas de

crenças, valores e mundivisões (no sentido de concepções amplas e integrantes da vida)

de uma dada sociedade, será então de esperar que diferentes sistemas conduzam a

diferentes acções políticas – diferentes não tanto num sentido material, mas sobretudo

num sentido intencional, ou seja, do que deliberadamente se pretende com a sua

implementação. Do mesmo modo, diferentes acções políticas irão estimular a

(des)continuidade dos sistemas que as alimentam intrinsecamente.

Mas mais do que sistemas, parece-nos útil falar em lógica. Adopta-se aqui este termo

para com ele traduzir a ideia de ‘sentido’ das coisas e de ‘sentido’ que acompanha o

‘fazer das coisas’, logo, de sentido do próprio sistema e da sua vitalidade comunicacional.

Neste caso, a palavra lógica que por diversas vezes utilizaremos, tenta traduzir a ideia de

sentido dos valores e de sentido que acompanha o ‘fazer’, o seguir, o abandonar, o

recuperar, o transformar desses mesmos valores. Há por conseguinte uma profunda

condição valorativa no termo tal como o utilizamos, ainda que não caiba explorar neste

texto todas as implicações hermenêuticas daí resultantes.

Se diferentes lógicas conduzem à produção de diferentes praxis políticas, é razoável

também assumir que diferentes opções políticas terão diferentes impactos sobre a

qualidade das relações que se estabelecem numa sociedade, e para o que nos interessa,

das suas relações interculturais enquanto espaços de crescimentos e de enriquecimentos

mútuos (Cox e Blake 1991; Martin e Nakayama, 1999; Martin e Nakayama, 2010). Assim

sendo, será legítimo perguntar:

O que dizem as opções políticas da União Europeia em matéria de gestão de fluxos

imigratórios de países terceiros, sobre a lógica que lhes subjaz – e que em última

instância também subjaz ao contributo político da União para formar uma espécie de

património mais ou menos estabelecido de ideias em torno da identidade europeia, da

pertença europeia, da cultura europeia, do sentido europeu, enfim, do ‘ser-se europeu’?

E sendo que as opções políticas têm impactos sobre o tipo e as qualidades das

relações que uma sociedade constrói com os múltiplos ‘Outros’ que a habitam, de que

tipo é e que qualidades assume a relação que a União Europeia constrói consigo mesma

na forma do seu ‘Outro’ imigrante, em face das opções políticas que tem assumido em

matéria de imigração?

Isabel Estrada Carvalhais

146

Mas antes de partirmos para a tentativa de resposta às questões estruturantes deste

texto, e que serão objecto das secções subsequentes, importa determinar qual então o

princípio orientador da lógica europeia.

Como o texto mostrará mais adiante, há toda uma praxis em curso relativa ao modo

como a União Europeia concebe a gestão da presença de imigrantes de países terceiros,

que é em si reveladora de uma dada lógica de acção que no texto identificamos, entre

outras qualidades, como securitária. O que esta secção do texto pretende é identificar os

princípios que norteiam essa lógica securitária e que serão em última instância os

princípios responsáveis pela existência daquela como trivial, ou seja, como natural e não

como uma lógica recente ou estranha à própria Europa.

Temos consciência de que o esforço analítico para a identificação desses princípios

pode muito facilmente enveredar pela exploração da possibilidade (pós)colonial. Na

verdade, não negamos que a Europa e os seus estados ainda sofrem o peso da ‘fractura

colonial’ (Stora, 1999; Blanchard et al., 2005; Laforcade, 2006) resultante da tensão que

foram construindo entre o seu ‘eu’ e o ‘Outro’ – o escravo, o colonizado, o descoberto, o

conquistado, enfim, o imigrante. Mudaram-se os espaços dessa tenção (hoje a mesma

ocorre predominantemente no próprio espaço europeu enquanto espaço de sociedades

receptoras de “comunidades imigrantes”) e mudaram-se é certo, muitos aspectos da

linguagem (legal, política, social e cultural) em que o diálogo entre esse ‘eu’ e o ‘outro’ se

foram historicamente operacionalizando (o espaço dos impérios, das suas colónias e

ultramares). Mas, nem tudo mudou e nesse sentido parece-nos correcto afirmar que há

uma persistência da lógica colonial no modo como a Europa se relaciona com o seu

imigrante (e até com o seu cidadão que ela insiste todavia em perceber como ‘imigrante’

em razão da origem étnica, nacional, religiosa) e que aliás está na base da forma

autocentrada e confusa como a Europa entende a multiculturalidade, não como condição

natural da sua própria identidade, mas como traço externo adicionado pela presença do

‘Outro’ ao seu espaço.

Contudo, sublinhar o peso da fractura colonial na explicação das dinâmicas da

institucionalidade europeia em matéria de gestão de fluxos imigratórios, configurar-se-ia

como manobra argumentativa algo redutora do significado dessas mesmas dinâmicas.

Países como a Suécia, Finlândia ou Dinamarca, não têm a mesma história colonial da

França, Portugal, Holanda ou Reino Unido. E no entanto, todos eles têm sustentado de

forma mais ou menos activa, mais ou menos empenhada, mas sempre politicamente

legitimante, a leitura securitária que a Europa tem vindo a desenvolver sobre a imigração

de países terceiros, desde pelo menos os anos setenta quando se inicia o fim do ciclo de

expansão económica que aquela conhecera no pós-Segunda Guerra Mundial (Messina,

A União Europeia e o «Outro»

147

2007). Aliás, paradigmático de tudo quanto acabamos de dizer, é o caso da Alemanha

que não tende a experiência histórica de potência colonizadora na acepção e dimensão

de outros países, incorporou na construção do seu projecto político e da sua identidade

colectiva, o traço colonial no que este comporta de entendimento da relação com o Outro

como hierarquicamente superior e dominante.

O sentido de persistência do ‘colonial’ deve pois ser lido numa acepção mais ampla

que se desprende das histórias concretas de países com passado colonizador, e que se

ancora outrossim numa postura de superioridade cultural da Europa face ao resto do

mundo, independente dos tempos colonizadores em que essa superioridade foi tanto

fonte legitimadora como produto legitimado. É esta postura que está em nosso ver a

montante da própria iniciativa colonizadora e não o contrário, e que explica em última

instância a lógica binária (Hajjat, 2005) que contamina o modo como a Europa, quer na

sua versão comunitária de União, quer nas suas diversas existências nacionais, pensa a

integração como um movimento unilateral de conformação do Outro ao seu ‘Eu’.

Esta postura ‘civilizacional’ complexifica extraordinariamente a análise ao perfil da

Europa como herdeira de uma de ética humanista por um lado, e de uma ética burguesa

e colonizadora por outro.

Na verdade, as duas são lados de uma só face. Ou seja, a ética burguesa e

colonizadora mais não é do que ética liberal, defensora da conquista de mercados e da

liberdade de movimento de bens e pessoas. Logo, a ética liberal é simultaneamente ética

burguesa que legitima o comportamento expansionista (e por isso também colonizador)

do Capitalismo, e ética humanista que defende liberdades fundamentais como a

liberdade de acção (logo de circulação) e de pensamento4. Por outras palavras, a ética

burguesa que vê como correcta a conquista de mercados (embora no contexto pós-

moderno tenha substituído o termo ‘conquista’ pelo de ‘globalização’ dos mesmos), é

também ética humanista na medida em que os direitos que defende, essenciais ao

sucesso da globalização dos mercados, são direitos tidos como basilares à dignidade

humana.

O paradoxo liberal (Hollifield, 1992) consubstanciado no desfasamento entre, por um

lado, a consagração da livre circulação de pessoas e bens - elevado ao estatuto de

vértice da própria ideia de Cidadania Europeia (Carvalhais, 2010: 82-85) - e por outro, a

4 Entendemos aqui como fundamental para a interpretação da liberdade de circulação como Direito Humano

consagrado, a leitura dos artigos 3.º e 13.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No primeiro lê-se que ‘[T]odo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal’ e no ponto 1 do 13.º lê-se que ‘[T]oda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado’ (sem que todavia haja aqui referência à necessidade de o indivíduo ser nacional do estado escolhido), e no seu ponto 2 ‘Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.’

Isabel Estrada Carvalhais

148

caminhada progressiva para políticas de imigração cada vez mais restritivas (Tushnet,

1995) como padrão mundial no qual a União se inclui não parece pois tão ‘paradoxal’

quando visto à luz da dualidade que acompanha a lógica aqui descrita.

Quem assim o demonstra é o próprio Capitalismo. Este funda-se no princípio da livre

circulação, é certo, mas por nenhum instante ele nos diz ter perdido de vista o critério da

utilidade da mesma. O Capitalismo é por assim dizer selectivamente liberal e nesse

sentido apenas selectivamente humanista no que este conceito remete para a defesa de

Direitos Humanos. O problema que resulta do não-reconhecimento do Capitalismo como

selectivamente liberal está pois em frequentemente associá-lo a uma ética humanista que

aquele afinal não tem de possuir pelos seus cânones de funcionamento. Por outro lado,

uma vez compreendida esta (não) relação entre Capitalismo e a ética humanista, o

paradoxo liberal atrás enunciado deixa afinal de ser estranho ao Capitalismo, para ser

apenas uma tensão de aparentes contrários que serve os propósitos económicos deste,

como aliás pretendemos demonstrar mais adiante.

No entanto, reduzir a lógica liberal ao mero interesse que esta tem para os propósitos

da acção capitalista, seria excessivo pois corresponderia a afirmar que qualquer

dimensão humanista dessa mesma lógica não cumpriria mais do que uma função

utilitarista na perspectiva do Capitalismo e cínica na perspectiva dos Direitos Humanos.

Poder-se-ia aqui argumentar que o problema desta última afirmação está desde logo

na expressão ‘Direitos Humanos’, ou melhor, na ausência de problematização da mesma,

e consequentemente nos limites que a sua avaliação como ‘universais’ apresenta

enquanto produtos geoculturais (Wallerstein, 1995: 145-161). Explorando essa via,

desembocaríamos quase de imediato na constatação de que os Direitos Humanos são

tudo menos expressão pacífica, merecedores por isso, não só de sérias reservas

(Wallerstein, 1997: 186), mas de um questionamento efectivo – por via, por exemplo, de

uma hermenêutica diatópica (Santos, 1997: 21-23) que não esquecesse o círculo de

princípios operacionalizadores do diálogo intercultural consubstanciados em direitos de

comunicação, expressão e informação (Habermas apud Cohen e Arato, 1992). Não

sabemos em que máximo denominador comum (Santos, 1997) assentaria a definição de

dignidade humana num cenário ideal de uma hermenêutica diatópica bem suportada por

uma ética procedimental orientadora da acção comunicativa em que aquela se exercitaria

(Carvalhais, 2004: 137-144). Sabemos sim qual a definição que hoje prevalece de

dignidade humana e de Direitos Humanos, a qual reflecte a interpretação cultural das

sociedades ocidentais. Podemos não concordar com tal definição, mas é a prevalecente.

Ora, pese embora se possa até dizer que a dimensão humanista da lógica liberal aqui

referida nasce apenas enquanto dimensão ‘operacionalizadora’ de um cinismo ocidental

A União Europeia e o «Outro»

149

ao serviço do Capitalismo, a verdade é que esse facto não consegue por si só aniquilar a

profunda crença de milhões de pessoas na ideia de Direitos Humanos, e nos quais

suportam a sua noção de dignidade humana. Há pois, em nosso entender, uma

dimensão humanista genuína que acompanha a lógica liberal, que resulta, se mais não

for, das próprias percepções e convicções dos indivíduos sobre à efectiva validade (moral

e legal) dos Direitos Humanos actualmente consagrados como constitutivos da dignidade

humana.

Voltamos a frisar porém que estamos conscientes de que expressões como ‘direitos

basilares da dignidade humana’, ou simplesmente Direitos Humanos, estão bem longe de

resguardadas de acesos debates e dissenso5.

Paralelamente, há um outro aspecto que convém frisar e que denuncia aliás a forte

tentação do vício ‘colonial’ na estruturação dos próprios argumentos que o procuram

denunciar. A lógica liberal sustentada em princípios como o da livre circulação de bens e

pessoas também conheceu o seu processo de globalização e hoje de modo algum se

reduz à geografia dos estados desenvolvidos (que quase sempre acumulam a posição de

centros económicos com a de receptores de imigrantes). Quer os estados pós-coloniais

nascidos dos processos de descolonização, quer os estados pós-soviéticos saídos da

implosão nos anos noventa do império soviético, são estados liberais no sentido de

estados que abraçaram a defesa da liberdade de circulação. Frequentemente argumenta-

se que o fazem por necessidade económica como se esse fosse um argumento válido

que distinguisse a sua conformação a esse princípio estruturante da lógica liberal, da

conformação feita pelos estados ditos centrais. Porém, trata-se de um falso argumento,

na medida em que toda a conformação à liberdade de movimento, como cremos ter

explicitado, é a um tempo utilitarista e a outro, genuinamente apoiada pela crença quer

na existência de Direitos Humanos fundamentais, quer na consagração da liberdade de

circulação como um desses direitos. Ora, o que sucede é que, à semelhança aliás de

outros processos, quando finalmente o ‘Outro’ (mesmo que geograficamente europeu,

mas não aceite plenamente como tal, como no caso dos Países de Leste) está em

condições de abraçar aquele que tem sido desde pelo menos o século dezassete, um

5 A simples ideia de que possa existir uma hierarquia de direitos dentro dos Direitos Humanos, logo, que haja

lugar a direitos basilares está longe de consensual (Fassin, 2010a). Da mesma forma, não é pacífica nem tão pouco universal – embora sendo hegemónica (Fassin, 2010b: 201) – a ideia do direito à vida como direito cimeiro dos Direitos Humanos. E nem tão pouco é linear o impacto que a consagração contemporânea de uma razão humanitarista (assente desde logo no princípio da ingerência que norteia a acção de organizações internacionais como a ONU) tem sobre a efectiva protecção da vida humana e em última instância até sobre os próprios Direitos Humanos (Fassin e Pandolfi, 2010c). Igualmente, está longe de resolvida a tensão gerada entre o princípio da justiça judicial que acompanha a defesa do direito à vida como Direito Humano cimeiro, e que beneficia quem o invoca, e o princípio de justiça social refém da incapacidade de quem não tem meios para tal invocação judicial (Ferraz, 2009: 33-45). Eis pois muito resumidamente algumas das questões mais actuais que se levantam em torno da problemática dos Direitos Humanos.

Isabel Estrada Carvalhais

150

princípio matricial da cultura económica e política da Europa (e do Ocidente em geral),

esta como que desvaloriza o princípio, enfatizando em contraste princípios de segurança

individual e colectiva. Esta dissintonia entre a defesa da liberdade de movimento pelos

países de perfil emigratório, e a defesa de políticas cada vez mais fechadas por parte dos

estados de perfil imigratório (Vertovec e Cohen, 1999) que se afirmam todavia fiéis à livre

circulação e que a operacionalizam em projectos como o do espaço livre da União, é

claramente um foco de tensão política que em termos práticos resulta no arremessar de

milhões de migrantes para a esfera da clandestinidade.

Finalmente, uma outra reflexão se impõe aqui a propósito desta dissintonia entre a

defesa da liberdade de circulação e as políticas imigratórias restritivas dos estados. Esta

dissintonia é em boa verdade inerente ao próprio Estado Moderno capitalista, uma vez

que aquela traduz o confronto de uma vontade do Mercado com uma vontade do Estado

Soberano na preservação das suas fronteiras. O Estado Moderno forma-se e consolida-

se tendo pois sempre presente esta contradição entre a necessidade de expansão das

suas bases de apoio económico, social e político-administrativo, por um lado (Gamble,

1981), e o princípio da conservação de território e de defesa de fronteiras, por outro.

2. OS EFEITOS DOS PARADOXOS

Iniciámos o ponto anterior colocando duas questões:

O que dizem as opções políticas da União Europeia em matéria de gestão de fluxos

migratórios de países terceiros, sobre a lógica que lhes subjaz - e que em última instância

também subjaz ao contributo político da União para a formação de uma espécie de

património mais ou menos estabelecido de ideias em torno do ‘ser-se europeu’ (da

identidade, da pertença e da cultura europeias)?

E sendo que as opções políticas têm impactos sobre o tipo e as qualidades das

relações que uma sociedade constrói com os múltiplos ‘Outros’ que a habitam, de que

tipo é e que qualidades assume a relação que a União Europeia constrói consigo mesma

na forma do seu ‘Outro’ imigrante, em face das opções políticas que tem assumido em

matéria de imigração?

Esta secção tratará agora de responder em simultâneo às duas questões, tentando

demonstrar de que modo as respostas da União Europeia são exemplificativas de uma

lógica securitária, que se funda afinal numa lógica liberal, binária-colonial (Eu vs. o

Outro), e fundada num princípio matricial de superioridade cultural.

Segundo a Declaração do Conselho Europeu de Estrasburgo de 1992, a evolução

para uma política comum de imigração pressupõe o respeito por princípios básicos tais

como o respeito integral pelos Direitos Humanos e o respeito pelo primado do Direito

A União Europeia e o «Outro»

151

(ponto xvi). Por sua vez, o edifício jurídico-institucional da União em matéria de Direitos

Humanos apresenta-se como um dos mais completos e sólidos a nível internacional, não

parecendo credível que possa em simultâneo albergar lógicas que contrariem os

respeitos atrás enunciados e que fragilizem as suas fundações. Da estrutura desse

edifício fazem parte a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades

Fundamentais de 1950 e seus protocolos adicionais; a Carta Social Europeia de 1961; a

Declaração Comum do Conselho, Comissão e Parlamento sobre a defesa dos Direitos

Fundamentais (Declaração de Copenhaga de 1977); a Declaração Comum do Conselho,

Comissão e Parlamento contra o Racismo e a Xenofobia, de 1986; a Carta Comunitária

dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores de 1989, a que inicialmente não

adere o Reino Unido, assinando-a posteriormente em 1998; a Carta dos Direitos

Fundamentais da União Europeia (de Nice a Estrasburgo)6; e o próprio Tratado de Lisboa

que no ponto 8 do seu artigo 1.º estabelece como redacção do n.º 1 do artigo 6.º do

Tratado da União Europeia o seguinte:

A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta

dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, com as

adaptações que lhe foram introduzidas em [12 de Dezembro de 2007], em

Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados.

A tudo isto acresce a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e a

jurisprudência de um outro tribunal que não fazendo parte da institucionalidade

comunitária, é basilar na regulação internacional dos Direitos Humanos, o Tribunal

Europeu dos Direitos do Homem.

Paralelamente, a compreensão política da União Europeia sobre como deve ser feita

a gestão dos fluxos imigratórios segue há várias décadas uma clara lógica securitária,

que parece ter atingido uma nova etapa da sua expansão e expressão no pós-11 de

Setembro. A lógica securitária funciona tanto melhor quanto menor for a capacidade

individual de se questionar sobre dois comportamentos recorrentes:

a) Por um lado, o acomodar ao julgamento apriorístico de todo aquele que não

corresponda aos critérios de identificação cultural que lhe permitiria ser mais rapidamente

reconhecido como ‘europeu’, como sendo potencialmente ameaçador (ainda que em

diferentes graus de perigosidade);

6 Aquando da sua adopção em Nice, em Dezembro de 2000, a Carta assumia-se ainda como um

compromisso político, ou um modelo de intenções. Com a sua proclamação conjunta entre Parlamento Europeu, Conselho e Comissão, em Estrasburgo a 12 de Dezembro de 2007, a carta passa todavia a ter um carácter juridicamente vinculativo.

Isabel Estrada Carvalhais

152

b) Por outro lado, a interiorização da ideia de que há uma necessidade inegociável de

vigilância do ‘estrangeiro’, do ‘imigrante’ enquanto categoria do ‘Outro’.

O discurso comunitário é pródigo em se expressar por meio de uma linguagem que

serve os propósitos securitários e os dois comportamentos atrás enunciados através do

recurso frequente a termos como ‘crime organizado’ e ‘terrorismo’, ao mesmo tempo que

se mescla de expressões mais suaves, como ‘cidadãos em condição irregular’. Que esse

jogo é parte integrante do sucesso relativo do modo como gere a presença do estrangeiro

sem ferir os compromissos não apenas jurídicos e políticos mas também civilizacionais

com os Direitos Humanos, não suscitará dúvida. Mas é este um jogo sustentável no longo

prazo?

3. IMIGRAÇÃO ILEGAL E A POLÍTICA DE PREVENÇÃO DE CENÁRIOS DE RISCO

Em 2005, o Livro Verde Uma nova solidariedade entre gerações face às mutações

demográficas sublinhava:

A Europa conhece hoje alterações demográficas sem precedentes pela sua escala

e gravidade. Em 2003, o crescimento natural da população foi apenas de 0.04% ao

ano; nos novos estados-membros, à excepção de Chipre e de Malta, registou-se

mesmo um declínio demográfico. Em vários países, a imigração tornou-se crucial

para assegurar um crescimento da população. Por todo o lado, a taxa de

fecundidade é inferior ao limiar de renovação de gerações (cerca de 2,1 crianças

por mulher) […] (COM(2005)94final, p.2).

Em 2004, o Conselho Europeu sublinhava o inevitável declínio demográfico da

Europa, que nem já a imigração em larga escala poderá inverter. Tudo isto volta a ser

reafirmado em 2006 numa Comunicação da Comissão Europeia intitulada ‘O Futuro

Demográfico da Europa – do desafio à oportunidade’ (COM(2006)571final). Na mesma

linha se orientou uma Comunicação de 2002 da Comissão ao Conselho e ao Parlamento

Europeu intitulada “Resposta da Europa ao Envelhecimento da População Mundial:

Promover o Progresso Económico e Social num Mundo em Envelhecimento –

Contribuição da Comissão Europeia para a II Assembleia Mundial sobre o

Envelhecimento" (COM(2002)0143).

Em paralelo, num artigo do Eurobusiness podia ler-se em 2006 que com excepção da

França, actualmente os grandes estados da UE como a Alemanha, Espanha e a Grã-

A União Europeia e o «Outro»

153

Bretanha, dependem da imigração para manter a sua estabilidade demográfica7

(Eurobusiness, 2006). Já um relatório de 2009 do Eurostat apontava para o facto de as

taxas de mortalidade na Bulgária, Hungria e Letónia serem agora superiores às taxas de

natalidade. Simultaneamente, Hungria e Letónia têm estado entre os países com as mais

baixas taxas de natalidade (9,6 por mil habitantes) a que se juntaram países como a

Alemanha (7,9), Áustria (9,1), Portugal (9,4) e Itália (9,5). Por sua vez, as maiores

quebras populacionais registaram-se para igual período de 2009, na Letónia e Hungria,

mas também na Bulgária, Lituânia e Alemanha. Os países de Leste a que se junta a

Polónia, parecem ser aliás os que mais forte e rapidamente sentem os efeitos do declínio

demográfico. No entanto, o problema é transversal, e países como Malta, Portugal,

Espanha, Dinamarca e Grã-Bretanha são igualmente apontados como estando a braços

com dificuldades decorrentes do seu envelhecimento geracional.

Na mesma linha de análise, as previsões do Eurostat apontam para que apenas seja

possível manter o ritmo de crescimento da população europeia, se a taxa de população

imigrante no espaço comunitário, que ronda actualmente os 3,3%, não diminuir. Todavia,

como o relatório de 2009 sublinha:

De acordo com as projecções populacionais do EUROPOP2008, a imigração para a

Europa dos 27, poderá desacelerar ainda mais nos próximos anos. Estima-se que a

taxa líquida de imigração [imigração menos emigração] caia dos actuais 3,3 por mil

habitantes, para 1,6 por volta do ano 2060.” (Eurostat, 2009: 225)

Poderíamos continuar a listar exemplos e argumentos sobre, por um lado, o declínio

demográfico da Europa e em particular do espaço comunitário aqui em análise, e por

outro lado, a dependência da União em relação aos fluxos imigratórios. Fica claro porém,

que a sustentabilidade económica da União Europeia (e da Europa em geral) bem como

dos seus sistemas de protecção social, depende e muito da imigração. E sendo ela que

em certa medida já hoje impede um declínio demográfico ainda mais acelerado da

população europeia, a defesa de políticas de imigração-zero nunca poderia ser senão

ridícula.

7 Na União, a média de filhos por mulher ronda os 1,52%, valor insuficiente para manter a população nos

valores actuais e assim evitar o declínio demográfico. Sendo que na origem deste fenómeno estão alterações do comportamento das famílias resultantes em boa parte da necessidade de conciliação entre vida profissional das mulheres e a vida familiar, o Parlamento Europeu tomou em 2004 uma resolução no sentido de incentivar os estados e as instituições a adoptar medidas visando a promoção dessa mesma conciliação. A Resolução do Parlamento Europeu sobre a conciliação entre vida profissional, familiar e privada (2003/2129(INI)) não passa todavia de um manifesto de apelos que se limita a constatar o óbvio e a sublinhar a importância de um empenho activo dos governos e das sociedades na criação de fórmulas que permitam às famílias não apenas crescer, mas sobretudo crescer bem, em harmonia e respeito geracionais.

Isabel Estrada Carvalhais

154

A lógica securitária bem-sucedida é pois aquela que não compromete a sua

legitimidade em face das opiniões públicas, ou seja, é a que não deixa de reconhecer

tanto a importância como a inevitabilidade da imigração. Mas enquanto que o

reconhecimento da importância da imigração se faz sobretudo por via de estratégias

governamentais que visam o brain gain para os Estados e para a União (em

conformidade com os objectivos da Agenda de Lisboa) (Carvalhais, 2011); a forma como

essa mesma lógica faz o reconhecimento da inevitabilidade da imigração, concretiza-se

de modo bem diferente.

Por outras palavras, à importância e à inevitabilidade da imigração associam-se

diferentes estados de alma que se resumem à imigração que se quer e à imigração que

se não quer. De um lado está a que se deseja, desde logo pelos seus benefícios

económicos os quais de certo modo também ajudam a diminuir os custos de um eventual

maior distanciamento cultural que se possa ter em relação ao imigrante que interessa

aceitar. Do outro lado, está a imigração que se não deseja, em face da disparidade entre

os poucos benefícios económicos que as suas baixas qualificações podem proporcionar,

em contraste com os eventuais altos custos políticos e sociais que tendem a ser tanto

maiores quanto maior for a distância cultural percebida pelas comunidades receptoras em

relação a essa imigração.

A leitura europeia sobre a ‘inevitabilidade’ da imigração que não se deseja, faz-se

pois por via da avaliação das compatibilidades entre a imigração e a sua capacidade de

enquadramento às exigências do Mercado. Daqui decorre a necessidade de combate à

imigração ilegal. Por outras palavras, há que combater a imigração que não se deseja e a

forma de o fazer é, em primeiro lugar, certificar-se de que esta se mantém na esfera do

ilegal, (pois não se pode combater o que é legal), para de seguida se combatê-la, agora

sim legitimamente, sob o pretexto da ilegalidade. A aplicação de sistemas de quotas para

a entrada de imigrantes, as medidas de favorecimento da imigração altamente

especializada, ou a imposição de faseamentos no acesso de imigrantes dos Estados-

membros dos alargamentos de 2004 e de 2007 aos mercados laborais da anterior Europa

a 15, são por isso, à sua maneira, faces da mesma moeda, isto é, expressões de uma

mesma lógica que norteia a leitura da União sobre a presença do Outro.

Actualmente, os problemas da União com a imigração parecem pois residir, por um

lado, no perfil dos imigrantes que buscam o seu espaço8, e por outro lado, na ilegalidade

8 Recorde-se a este propósito as declarações do primeiro ministro da Baviera, Horst Seehofer em Outubro de

2010 a propósito das dificuldades de inserção das comunidades islâmicas na Alemanha e a consequente necessidade de limitar a entrada de populações muçulmanas, Segundo o Wall Street Journal, para Seehofer, imigrantes de círculos culturais como a Turquia, os países árabes têm maior dificuldade em se adaptar ao estilo de vida alemão, pelo que os alemães não necessitam de nenhuma imigração adicional vinda de outros círculos culturais (Wall Street Journal, 12.10, 2010: 6). Estas afirmações originalmente feitas à Revista Focus,

A União Europeia e o «Outro»

155

que acompanha grande parte dos fluxos imigratórios. Portanto, o ónus é colocado

sempre do lado de lá, do lado do imigrante. A União não combate a imigração (até

porque em honestidade não pode dizer que a dispensa, a não ser por recurso a discursos

populistas e xenófobos), combate sim a imigração desajustada às suas necessidades

económicas, tornando-o num combate à imigração ilegal. Imigração ilegal cujos números

o Comité da Migração, Refugiados e População da Assembleia Parlamentar do Conselho

da Europa estima possam ascender, na hipótese mais conservadora, aos 5,5 milhões

apenas na União Europeia (Doc. 11350, 2007). Ocorre porém que a imigração ilegal só

tem a expressão que tem precisamente porque as vias da legalidade são

deliberadamente dificultadas e reduzidas pelos Estados-membros, com o beneplácito dos

seus mercados empregadores, e o estímulo político-jurídico da institucionalidade

europeia.

A preocupação com os fluxos ilegais, sendo uma preocupação legítima alicerçada

desde logo nos compromissos jurídicos e éticos da União com o respeito pelos Direitos

Humanos, é por isso também uma preocupação que esconde nos seus interstícios

políticos uma inquietante verdade: que os instrumentos que lidam com a imigração ilegal

são bem mais baratos e politicamente menos custosos do que os instrumentos

necessários para lidar com a imigração legal, sendo por isso preferíveis os primeiros aos

segundos.

A imigração ilegal implica investimento em recursos humanos, recursos de elevada

complexidade tecnológica e comunicacional (investimento na formação policial;

desenvolvimento de dispositivos e de linguagens que realizam a identificação biométrica

dos indivíduos, que operacionalizam diversas redes de cruzamento de informação, etc.)9.

Mas a imigração legal implica algo bem mais complexo e dispendioso: saber como

integrar no longo prazo o imigrante entretanto transformado em residente não-nacional, e

posteriormente em cidadão, e como desenvolver nas sociedades receptoras uma cultura

de verdadeiro respeito intercultural10. Por outras palavras, a União e os seus Estados-

membros reconhecem a necessidade económica da imigração, contudo, revelam

dificuldades no que respeita a saber como (con)viver com aquela, porque o investimento

estimularam um acesso debate na sociedade alemã, nele se destacando também a afirmação de Ângela Merkel dias mais tarde, sobre o fracasso do modelo multicultural alemão. 9 Sobre o Reforço dos sistemas de vigilância (desenvolvimento do VIS no sentido de incluir parâmetros

biométricos sobre imigrantes, legais e ilegais, veja-se a Regulação do Conselho 1987/2006 sobre o estabelecimento, operacionalização e uso de uma segunda geração do Sistema de Informação de Schengen-SIS II, bem como os documentos relativos à sua operacionalização, nomeadamente, a Decisão da Comissão (2008/333/CE) que adopta o Manual SIRENE e outras medidas de execução para o SIS-II; e Decisão da Comissão (2010/261/UE) que prevê a organização da segurança do SIS II Central e da sua infra-estrutura de comunicação, estabelecendo um plano de segurança para ambos. 10

Mais correcto seria aliás dizer: como integrar-se, na medida em que deveria ser à luz desta reflexividade

que a Europa deveria entender a multiculturalidade como traço constitutivo da sua identidade, e não como traço a que se obriga como corpo estranho.

Isabel Estrada Carvalhais

156

político que se lhes exige é elevado, sendo mais fácil apostar numa política de gestão

selectiva da imigração, remetendo para o universo da ilegalidade todos os restantes

fluxos não atractivos, seja do ponto de vista económico, seja do ponto de vista dos

desafios culturais que estes representam.

O secretário-geral da OCDE, Angel Gurría, alertava no início de 2008 para a

necessidade da integração dos imigrantes dever ser encarada como uma prioridade das

nossas sociedades. Mas o custo político que os governantes antecipam no curto prazo,

parece-lhes sempre excessivo. Daí que em Portugal, como um pouco por toda a Europa,

a integração esteja longe de ser uma prioridade efectiva (não apenas nominal) das

agendas políticas. Tal é tanto mais evidente quanto mais se adensa actualmente o

cenário de crise económica. Pelo contrário, em momento algum se desaceleraram os

múltiplos esforços nacionais e comunitários no sentido de controlar a imigração

indesejada, por via da manutenção dos entraves políticos e jurídicos que garantem a

manutenção da sua ilegalidade11.

Tudo isto poderia resumir-se à situação caricata de um continente envelhecido que

vê potencialmente como ilegal qualquer pessoa que queira nele trabalhar e que lhe

pareça desajustado às suas expectativas culturais e sociais; um continente que se

autodefine portanto como produto escasso, raro, logo de acesso restrito. Todavia, a sua

insistência em apresentar a imigração ilegal e a criminalidade como duas faces de uma

mesma moeda, resulta em muito mais do que uma simples caricatura. Resulta desde

logo num forte estigma pendendo sobre o quotidiano de milhões de pessoas que

procuram sobreviver no espaço clandestino a que as sociedades receptoras as confinam.

Ao sublinhar-se os perigos que podem advir para a segurança europeia dos espaços

de intercepção entre os mundos da imigração ilegal e da criminalidade, justifica-se o

combate à imigração ilegal como sendo também o combate à criminalidade e até mesmo

ao terrorismo que aí se pode alojar, pelo que o léxico político relativo à imigração ilegal

não está completo sem a presença das palavras criminalidade e terrorismo (Buzan e

Waever, 2003; Bigo, 2004).

Curiosamente, ao mesmo tempo que a exploração da ameaça terrorista e da

criminalidade legitima todas as medidas de força no combate à imigração ilegal, verifica-

11

Lembremo-nos da aprovação pela União Europeia em 2008, de um Pacto de Imigração e Asilo, no seguimento da proposta apresentada por Sarkozy no decurso da presidência francesa do Conselho no segundo semestre desse ano. O pacto de Imigração e Asilo aprovado trouxe consigo o reforço da ideia de uma política de imigração comum centrada na "protecção das fronteiras externas" e no "afastamento efectivo dos estrangeiros ilegais" através do reforço dos poderes policiais e dos patrulhamentos terrestre, marítimo e aéreo. Por outro lado, o mesmo pacto introduziu em definitivo o conceito de Cartão Azul, um cartão que visa de certo modo reproduzir na União os princípios orientadores das políticas imigratórias do Canadá, Suíça, Austrália e, em menor grau, norte-americanas, que claramente tendem a privilegiar a entrada e legalização de imigrantes altamente qualificados.

A União Europeia e o «Outro»

157

se em simultâneo uma preocupação em frisar a concordância de todas elas com a estrita

observância dos Direitos Humanos, bem como em desdramatizar a linguagem que

acompanha as práticas exercidas no tratamento dos imigrantes ilegais. Os voos

conjuntos, por exemplo, não são voos de deportação, mas voos de repatriamento ou de

recondução de cidadãos não-europeus em situação irregular aos seus países de origem

ou outros que os possam acolher12. Ora, ao recriar-se a realidade das expulsões, através

de uma linguagem moderada em que o ilegal passa a designar-se por cidadão irregular, e

em que a expulsão é apenas uma recondução orientada, uma realocação de fluxos, a

União revela como que uma preocupação em instruir as opiniões públicas sobre a

legitimação moral dessas suas práticas, preocupação essa que faz mais sentido, parece-

nos, precisamente num contexto em que haja dúvidas quanto à concordância de tais

práticas com a integridade dos Direitos Humanos.

Desdramatiza-se a linguagem das práticas sobre o que se combate (a imigração

ilegal), garante-se a sua aceitação como moralmente razoáveis junto das opiniões

públicas, ao mesmo tempo que se radicaliza a linguagem do que se combate, reforçando

a associação da imigração à ilegalidade e por essa via ao crime e ao terrorismo.

4. MIGRAÇÃO CIRCULAR E POLÍTICA DE RETORNO VOLUNTÁRIO

Em Novembro de 2006, uma proposta conjunta do Reino Unido, França, Alemanha,

Espanha, Polónia e Itália, submetida à presidência finlandesa do Conselho, e que teve na

sua origem um documento conjunto de Sarkozy e Schäuble apresentado em Outubro de

2006 durante uma reunião informal em Stradford-upon-Avon dos ministros da

administração interna dos seis maiores estados-membros (Reino Unido, Alemanha,

Polónia, Itália, Espanha e França), recuperava a ideia de promoção da migração

temporária e circular que já em 2005 surgia, ainda que pouco evidenciada, numa

Comunicação da Comissão intitulada ‘Migração e Desenvolvimento’ (COM(2005) 621

final). Nessa comunicação podia então ler-se que a União e os países de origem

deveriam “definir e apoiar os projectos que favoreçam a circulação legal dos estudantes,

dos investigadores e dos trabalhadores, a título permanente ou temporário” (idem: 7).

O conceito de migração temporária circular parece-nos um claro renascer das

políticas de gastarbeiter, tão em voga na Europa do Pós-Segunda Guerra Mundial, em

12

Prevista no Pacto de Imigração e Asilo ratificado pelos 27 Estados-membros em Outubro de 2008, como uma medida necessária no combate organizado à imigração ilegal, a ideia dos voos conjuntos tivera já em 2004 uma expressão através da Decisão 2004/573 do Conselho sobre a criação de voos conjuntos ou comuns para afastamento de imigrantes ilegais. Entretanto, nas conclusões da presidência do Conselho relativas ao primeiro semestre de 2009, pode ler-se que: “O Conselho Europeu sublinha ainda que é necessário reforçar as operações de controlo fronteiriço coordenadas pela FRONTEX, dispor de regras claras para a participação das patrulhas conjuntas e o desembarque das pessoas socorridas, e fazer uma maior utilização dos voos conjuntos de retorno.” (11225/2/09 REV 2: p.14).

Isabel Estrada Carvalhais

158

particular ao longo das décadas de 50 e de 60, correspondentes aos períodos áureos da

reconstrução europeia. Senão veja-se a Comunicação da Comissão ao Parlamento, ao

Conselho, ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões, [COM(2007) 248

final, de Maio de 2007] sobre migração circular e parcerias de mobilidade entre a União e

países terceiros:

a migração circular está a ser crescentemente reconhecida como uma forma-chave

da migração que, se bem gerida, pode ajudar a conciliar a oferta e a procura

internacionais de mão-de-obra, contribuindo assim para uma alocação mais

eficiente dos recursos disponíveis e para o crescimento económico. No entanto […]

se não convenientemente desenhada e gerida, a migração que deveria ser circular

pode facilmente tornar-se permanente derrubando assim o seu objectivo. (p.8)

A migração circular surge portanto como um conceito que visa operacionalizar a

presença do imigrante económico temporariamente relevante e nesse sentido,

acreditamos não ser excessivo dizer que o mesmo conceito se aproxima da filosofia

subjacente às políticas do guestworker do século passado. Sendo certo que são cada vez

mais frequentes os trajectos de vida que se alicerçam na mobilidade transnacional dos

sujeitos (Ong, 1999), consideramos todavia que os mesmos só deveriam existir enquanto

livres opções de vida, que funcionassem como impulsionadores de novas cidadanias,

mais cosmopolitas e flexíveis, e não enquanto circuitos que têm de ser percorridos à

revelia da vontade dos sujeitos.

Uma política de migração circular só pode resultar nos seus propósitos se entre os

países envolvidos (na dupla condição de emissor-receptor) for concebida uma política de

retorno que permita o completar do ciclo de trânsito do migrante13. Ora, na União

Europeia, são vários os documentos que a par da leitura comum sobre migração circular,

nos permitem identificar a política comum em matéria de prioridades, linhas de acção e

procedimentos relativos ao retorno de imigrantes. À cabeça está o próprio Programa de

Haia de 2004 que se constitui como um ambicioso programa de objectivos relativos à

gestão dos fluxos migratórios na Europa, e que tem na segurança do espaço europeu

uma das traves mestras da sua estruturação. Mas antes mesmo do Programa de Haia,

poderíamos falar do Programa de Acção de Retorno lançado pelo Conselho em 2002; na

13

Os projectos de promoção de retornos voluntários e de gestão da circularidade são vários, envolvendo países terceiros situados em África, Marrocos à cabeça de vários projectos entretanto desenvolvidos mas também Egipto, Tunísia, entre outros; países dos Balcãs ocidentais (Albânia, Antiga República Jugoslava da Macedónia, a República do Montenegro, a República da Sérvia e a Bósnia-Herzegovina) e do Cáucaso Sul (Arménia, Azerbaijão), países da América Latina como a Colômbia, e países asiáticos como China, Coreia do Sul e Japão.

A União Europeia e o «Outro»

159

Directiva 2001/40/EC sobre o reconhecimento mútuo por parte da União e de estados

terceiros das decisões e procedimentos da União em matéria de expulsão de nacionais

de países terceiros; na Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento

Europeu relativa a uma Política Comunitária de Regresso de Residentes em situação

ilegal, de 14.10.2002. COM(2002)564; na Directiva 2003/110 sobre ‘Trânsito para a

Expulsão’ (no original ‘transit for expulsion’; na Decisão do Conselho 2004/191/EC que

estabelece os critérios e mecanismos práticos para compensação financeira dos estados-

membros, em virtude dos custos resultantes da sua conformação à anterior directiva); na

Decisão do Conselho 2004/573/EC sobre a organização de voos conjuntos de

recondução de cidadãos a países terceiros. Já posterior ao Programa de Haia aprovado

em Novembro de 2004, poder-se-ia listar como documentos de referência a Proposta da

Comissão para uma Directiva do Parlamento e do Conselho para estabelecimento de

regras e procedimentos comuns no retorno de nacionais de países terceiros em situação

ilegal (COM/2005/391); a Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento

Europeu sobre as acções prioritárias para dar resposta aos desafios da migração

(COM/2005/621 final) e ainda a Comunicação da Comissão ao Conselho e ao

Parlamento Europeu sobre as formas de facilitar a concretização de uma verdadeira

política europeia global na gestão dos fenómenos migratórios (COM(2006)735final).

Naturalmente, são muitas as inquietações sobre como a relação entre a migração

circular e a política de retorno voluntário se concretiza no terreno, sem comprometer o

respeito pelos Direitos Humanos. Como exemplo dessas inquietações, veja-se a já

referida proposta apresentada à presidência finlandesa em finais de 2006. Nesta

proposta podia ler-se:

Uma medida a considerar e que poderia integrar o quadro legislativo é o requisito

de um compromisso escrito por parte dos imigrantes no sentido do seu retorno

voluntário aos seus países de origem uma vez findo o seu contrato. (11-12)

Ora, há desde logo uma questão básica que se coloca: sendo o retorno um acto

voluntário, por um lado, e sendo a pessoa obrigada a aderir ao retorno voluntário por

outro, onde está então a capacidade de opção que legitimaria o uso do termo

‘voluntário’?

O texto prosseguia dizendo:

No caso dos imigrantes permanecerem ilegalmente no território da União em vez de

regressarem voluntariamente após o expirar da sua autorização, deverá ocorrer a

Isabel Estrada Carvalhais

160

readmissão por parte do país de origem. Tal seria mais facilmente alcançado na

existência de acordos de readmissão entre a CE ou o Estado-membro e o estado

de origem. (p.12; itálico nosso)

Como o próprio excerto o demonstra, está aqui claramente a invocar-se a política da

celebração de acordos de readmissão de imigrantes, a qual tem implicado a inclusão de

cláusulas de readmissão em acordos bilaterais feitos com países em vias de

desenvolvimento14. O objectivo de tal inclusão está em tornar a ajuda europeia ao

desenvolvimento de países terceiros dependente da capacidade dos seus governos em

controlar os seus fluxos migratórios. Tal quase nunca é tarefa fácil, mais ainda em países

marcados pela debilidade económica e não raras vezes pela violência social e

instabilidade política15.

Ainda em relação a operacionalização dos retornos, fazemos também notar um outro

aspecto inquietante e que se prende com a efectiva vontade política que precede essa

operacionalização. De facto, quando comparada a minúcia que acompanha o desenho

técnico dos sistemas de vigilância e controlo dos cidadãos, com as intenções algo vagas

e até pouco exequíveis sobre como a União pode colaborar no sentido de impedir a fuga

de cérebros de países em vias de desenvolvimento, parece ressaltar que no

amadurecimento do Programa de Haia no que neste se reporta à gestão dos fluxos

migratórios na União, tem havido mais investimento nas questões que se prendem com o

controlo da imigração em geral e da ilegal em particular, bem como na política de

prevenção de riscos, do que nas questões que se prendem com o sucesso da própria

política de migração legal circular. Em termos práticos, ideias como ‘[a] criação de

mecanismos que permitissem aos imigrantes uma melhor divisão da sua vida laboral

entre os dois países, o de origem e o receptor’, ou ‘[o] compromisso de não contratar

imigrantes em sectores altamente especializados indicados pelo país emissor como

estando sob pressão’, de que falava a já citada proposta de 2006, parecem efectivamente

muito mais próximas de uma linguagem de intenções, quando comparadas com

14

Temos como exemplo as negociações da Convenção de Lomé, em que os países em vias de desenvolvimento se viram confrontados com a necessidade de aceitar uma cláusula sobre a readmissão e o repatriamento de imigrantes. Por sua vez, o seu sucessor, o Acordo de Cotonou (2007-2020), veio também reforçar a posição da União em matéria de política de imposição de obrigações de readmissão. O assunto está longe todavia de pacífico, como se pôde ver em Março de 2010, com a segunda negociação dos Acordos de Cotonou em que claramente a readmissão surgiu como uma questão sensível aos países ACP que rejeitaram a inserção de especificações de carácter técnico sobre a operacionalização das readmissões preferindo discuti-las numa base bilateral com os diferentes estados-membros. 15

A União tem já negociado acordos de readmissão com diversos países entre eles os Países dos Balcãs ocidentais, nomeadamente a Albânia (Decisão 2005/809/CE), a Antiga República Jugoslava da Macedónia (Decisão 2007/817/CE), Montenegro (Decisão 2007/818/CE), Sérvia (Decisão 2007/819/CE) e a Bósnia-Herzegovina (Decisão 2007/820/CE). Tem igualmente acordos com Hong Kong (Novembro 2001), Sri Lanka (Maio 2002), Macau (Outubro 2002), Rússia (Abril de 2007), República Moldava e Ucrânia (Dezembro de 2007), Paquistão (Outubro de 2010). Em 2009, Marrocos, Líbia e Argélia, rejeitaram todavia as propostas da União para celebração de acordos de readmissão. Entretanto, permanecem em aberto as discussões relativas ao acordo de readmissão com a Turquia e também com a China.

A União Europeia e o «Outro»

161

discussões técnicas como as desenvolvidas em torno das idades mínimas em que é ou

não é viável a retenção de parâmetros biométricos do indivíduo.

5. PARTILHA OU EXPORTAÇÃO DE RESPONSABILIDADES DE SEGURANÇA? – OS BUFFER

STATES

A partir dos anos 90 tornou-se clara a aposta da União no conceito de buffer-zone, ou

zona-tampão, enquanto parte da sua estratégia de partilha de responsabilidades no

controlo dos fluxos migratórios e de refugiados com países terceiros. Nos casos em que

decorreram negociações com vista à adesão de países de Leste, o ajustamento dos

candidatos aos critérios que definem o espaço de Schengen foi claramente uma

exigência negocial da UE, ajustamento que aqueles fizeram permitindo desde logo

constituir-se como buffer states. Ao mesmo tempo, e uma vez já membros, exigiu-se-lhes

que suportassem nos primeiros anos o peso das restrições à livre circulação das suas

populações. Uma tal atitude não parece todavia conformar-se com discursos em defesa

dos direitos inalienáveis do indivíduo, incluindo os de livre circulação, livre escolha,

igualdade de oportunidades, e abertura das sociedades e mercados. Além disso, a

insistência no reforço das fronteiras externas de países como a Polónia ou o Chipre, com

vista a concretizar a criação de um regime de fronteiras suaves no interior da União e de

fronteiras fortes com o exterior – nem sempre parece considerar o seu impacto menos

positivo sobre o equilíbrio de relações políticas, culturais e sociais entre espaços vizinhos.

Veja-se o caso da Polónia em relação à Ucrânia, e de Chipre em relação ao

Mediterrâneo. A política de gestão coordenada das fronteiras da União não tem

obviamente como prioridade analisar o seu significado e impacto sobre as relações

sociais e políticas entre populações dentro e fora do seu espaço, mas sim assegurar a

sua eficácia na protecção integrada das fronteiras. Tal atitude tem sido alvo de diversas

críticas, entre elas a que lhe aponta ser uma reminiscência de um certo eurocentrismo, e

até da persistência de uma percepção colonial sobre outros espaços, nomeadamente

sobre o Leste (Borocz e Kovács, 2001).

Com a entrada no século XXI, a política de partilha de responsabilidades sobre a

segurança europeia ascendeu todavia a um patamar de maior estruturação e

organização através do amadurecimento de uma Política Europeia de Vizinhança.

Originariamente lançada pelo Conselho Europeu de Copenhaga de Dezembro de 2002, a

que o Conselho Europeu de Junho de 2003 e o Programa de Haia de 2004 deram um

particular impulso e consistência definitiva,16 a Política Europeia de Vizinhança não se

16

Marco incontornável da PEV é igualmente a Comunicação da Comissão, de 2003, que estabelece qual o quadro desejável para o desenvolvimento das relações entre os países vizinhos de Leste e do Sul (COM(2003) 104 final).

Isabel Estrada Carvalhais

162

limita à linguagem da gestão dos fluxos migratórios, embora aqueles sejam claramente o

seu principal vértice de referência. A PEV centra-se na ideia de que a criação e

manutenção de um círculo de países amigos sustentada por uma forte cooperação

institucional permite não só gerir melhor os feitos positivos e negativos dos fluxos

migratórios, mas também estimular o crescimento económico e coesão social de toda a

região de países envolvidos e que hoje já inclui estados do Leste, do Cáucaso, dos

Balcãs, Mediterrâneo e Próximo Oriente.17 A ideia-chave da Política Europeia de

Vizinhança consiste pois em criar uma ‘zona de boa vizinhança, paz e prosperidade’, com

vários intuitos, entre os quais, claramente, o de proteger a União das ameaças

transfronteiriças do terrorismo, do crime e da imigração ilegal. A União espera assim que

todas essas regiões se empenhem na cooperação policial e judicial e na coordenação de

acções de controlo dos fluxos migratórios (e de refugiados), dando dessa feita expressão

aos objectivos da FRONTEX (Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional

nas Fronteiras Externas) enquanto instrumento de promoção e aplicação da política

integrada de gestão das fronteiras entre Estados-Membros e países terceiros. Não se

nega aqui que a PEV seja um instrumento político legítimo de promoção e salvaguarda

de interesses estratégicos de todo o espaço europeu e das demais regiões envolvidas.

Há ainda assim que questionar certos aspectos da sua aplicação. Se não vejamos. A

maioria dos estados vizinhos não entra no círculo de estados em vias de

desenvolvimento. Logo, o problema deste espaço de amizade, paz e prosperidade, não

estará tanto na condição económica dos seus membros que os obrigasse enfim a

cooperar com a União em troca de apoios ao desenvolvimento. O problema está antes no

facto de alguns destes estados (e.g. Marrocos, Argélia, Tunísia, Jordânia, Líbia, Síria…)

apresentarem várias deficiências no respeito devido pelas suas autoridades aos Direitos

Humanos, sejam os dos imigrantes ilegais sejam os dos refugiados que acolhem. Que

tais estados funcionem como áreas de recepção e de trânsito de pessoas que buscam

precisamente a protecção dos seus direitos mais básicos, é pois uma inquietação

legítima que surge em torno desta política, mesmo quando sobre em sua defesa sejam

invocados os vários instrumentos de ajuda financeira e tecnológica que a União tem

mobilizado no combate a tais dificuldades.18

17

Os países aqui incluídos são a Argélia, Arménia, Azerbaijão, Bielorrússia, Egipto, Geórgia, Israel, Jordânia, Líbano, Líbia, Moldávia, Marrocos, o território palestiniano, Síria, Tunísia e Ucrânia. A UE desenvolve ainda uma relação privilegiada com a Rússia mas no âmbito de uma Parceria Estratégica específica. 18

Através da PEV, a União procura desenvolver instituições e mecanismos centrados no estímulo da capacidade dos estados envolvidos em actuar em conformidade com os princípios internacionais de respeito pelos Direitos Humanos. Assim, ao longo dos anos a União tem levado a cabo várias acções de formação, quer de forças policiais, quer de autoridades judiciais, em países vizinhos como Marrocos ou Argélia, de modo a elevar os padrões de tratamento das populações migrantes em respeito pelos preceitos internacionais, e a promover o combate à corrupção, ao tráfico, à criminalidade, etc. Do mesmo modo, tem sido patrocinada a criação de agências que visam localmente prestar maior assistência às populações em

A União Europeia e o «Outro»

163

Esta política de ‘controlo remoto’ por via de um ‘policiamento à distância’ (Bigo e

Guild, 2005) corrobora a leitura já aqui apresentada sobre o modo como a Europa (a

Europa ocidental cuja geografia incerta é compensada pelas fronteiras políticas da actual

União Europeia) nega ao Outro transfigurado na forma de estados soberanos, muitos dos

quais ex-colónias, a possibilidade de também ele usufruir do princípio que aquela tem

como estruturante do seu projecto: o da livre circulação de pessoas.

Da mesma forma, esta política de externalização do controlo de fronteiras (Carrera,

2007), ou de outsourcing como já lhe é chamada (Gammeltoft-Hansen, 2006), recorda-

nos que a lógica subjacente à relação da União com o ‘Outro’ é afinal uma lógica liberal

que vive agrilhoada à sua dimensão burguesa e colonizadora, radicada numa visão

sobranceira sobre o seu lugar no Mundo), a qual corrompe, embora não chegue a

destruir, a integridade e o potencial da sua dimensão humanista.

6. CONTROLO, VIGILÂNCIA VS LIBERDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS

A União Europeia tornou-se em certa medida num exemplo de complexificação com vista

à simplificação. O objectivo de tornar por exemplo o acesso a dados pessoais mais

rápido, simples e eficiente, implica a criação de sistemas procedimentais jurídicos e

informáticos cada vez mais intrincados e sofisticados.

A União tornou-se igualmente num exemplo da máxima da filosofia liberal: liberdade

pela regra. É preciso regulamentar, vigiar e controlar para assegurar a liberdade. Assim

se explica que falar em liberdade e direitos fundamentais ocorra cada vez mais no

contexto de debates marcados pela lógica da limitação a direitos e liberdades. Alguns

desses debates têm-se centrado em questões suscitadas pelo Tratado de Prüm.

Assinado em Maio de 2005 na Alemanha, o Tratado de Prüm visa o reforço da

cooperação judicial e policial entre os estados-membros, assente no princípio de que só

pela via de uma estreita cooperação nesses domínios, pode a União aspirar a um

combate eficaz da imigração ilegal, do terrorismo e do crime transfronteiriço. Prüm nunca

foi todavia um tratado pacífico. Prova disso mesmo esteve aliás na proposta apresentada

em 200719 pelo ministro alemão do Interior, Wolfgang Schäuble, no sentido do Tratado

trânsito e às autoridades na sua relação com as mesmas (por exemplo, criação de uma secção internacional dentro da Agência Nacional de Emprego em Marrocos). Ainda na linha de apoio aos países terceiros para facilitar a sua cooperação com a PEV, esteve operacional entre 2004 e 2006 o programa comunitário Aeneas, criado precisamente com o propósito de garantir a assistência e a cooperação aos países terceiros na protecção dos direitos dos migrantes e no apoio à gestão de fronteiras. As actividades e propósitos do programa foram entretanto continuados pelo programa temático de cooperação com países terceiros em matéria de migração e asilo lançado em 2006 (COM(2006)26final). 19

A proposta foi apresentada em 2007 por Schäuble no contexto de uma reunião de ministros da Justiça e Assuntos Internos dos três países que haveriam de estar envolvidos com a presidência do Conselho entre 2007 (Alemanha e Portugal) e no primeiro semestre de 2008 (Eslovénia). A reunião antecedeu o Conselho informal que haveria de ocorrer em Janeiro de 2007 em Dresden, entre os ministros da Justiça e dos Assuntos Internos da União.

Isabel Estrada Carvalhais

164

ser transferido para o Direito Comunitário, (de modo a não constranger a sua aplicação à

necessidade de ratificação e assinatura por parte de todos os estados-membros20), facto

que veio a ocorrer em 2008 através de três decisões do Conselho.21

Têm sido diversos os debates suscitados em torno das potencialidades e desafios

que acompanham o conceito de e-justice tal como promovido pelo Tratado de Prüm. Um

desses debates centra-se na possibilidade que Prüm institui de cada Estado dar a outros

estados acesso automático a bases de dados nacionais de registo automóvel, de registo

de impressões digitais ou de registo de ADN, sempre que tal seja solicitado pelos estados

que estão a realizar a pesquisa. Um outro debate ocorre em torno da aplicação do

princípio da disponibilidade (Availability Principle) adoptado pelo Programa de Haia e que

estabelece a entrada em funcionamento desde Janeiro de 2008 de uma rede de

informação jurídica acessível a todas as autoridades policiais e judiciais em qualquer

estado-membro no sentido de facilitar as suas tarefas de investigação pela troca

automática de informação [COM(2006)331final]. Um terceiro debate centra-se na

temática do Controlo e Vigilância de Sujeitos, em particular sobre os desenvolvimentos

técnicos em matéria de aplicação do Sistema de Informação de Schengen (SIS II) e do

Sistema de Informação sobre Vistos (VIS/SIV)22.

Finalmente, um outro debate frequente centra-se no acesso às bases de dados de

impressões digitais, não apenas por razões criminais mas também em situações

preventivas. Pese embora a importância que o Parlamento Europeu teve em gerar uma

maior sintonia entre os objectivos legítimos do Tratado e o respeito pelas liberdades e

garantias fundamentais,23 atenuando assim algumas das inquietações mais fortes que

20

Os primeiros estados signatários foram a Bélgica, Alemanha, França, Luxemburgo, Países Baixos, Áustria e Espanha. Entretanto, outros oito estados-membros (Finlândia, Itália, Portugal, Eslovénia, Suécia, Roménia, Bulgária e Grécia) declararam formalmente a sua intenção de aderir. Porém, países como a Grã-Bretanha desde início fizeram saber do seu desinteresse em aderir ao Tratado. 21

Decisão 2008/615/JAI, Decisão 2008/616/JAI e Decisão 2008/617/JAI do Conselho de 23 de Junho de

2008. Estas decisões selaram a transposição do Tratado de Prüm para o Direito Comunitário, criando um período de três anos para adaptação das legislações nacionais. 22

Dentro deste debate, as principais questões giram em redor da identificação biométrica dos sujeitos. No universo de questões técnicas que aí se levantaram sobretudo entre 2006 e 2008, Portugal defendeu que deveriam existir algumas excepções na recolha de dados biométricos para pessoas com deformidades faciais, enquanto a Polónia considerava que a deformação não deveria ser razão para excepções. Isso mesmo se pode ver nos resultados das discussões no âmbito do grupo de trabalho sobre fronteiras/falsos documentos – Comité misto UE-Islândia/Noruega/Suíça (9403/1/06 - FAUXDOC 9, VISA 135, COMIX 463). Na Alemanha, a idade mínima para recolha de impressões digitais é de 14 anos, enquanto que na Polónia é de 12 anos para impressões digitais e dados biométricos da face. Já na Letónia e França, as impressões são recolhidas aos 6 anos e a imagem facial é retida desde o nascimento (o que diga-se tem um aspecto muito meritório que se prende com combate ao tráfico de crianças). A República Checa tira impressões aos 5 anos e captura a imagem desde o nascimento. Em Espanha ambos os identificadores biométricos são retirados desde o nascimento. E os exemplos poderiam continuar, todos eles atestando a diversidade de interpretações que cada estado tem sobre estas matérias e a dificuldade em acertar uma linguagem única que a todos agrade. 23

No seguimento da aprovação daquele que ficou conhecido por ‘Relatório Fausto’, de que foi relator o eurodeputado Fausto Correia do PSE, e que foi tido em consideração pelo Conselho na criação das decisões já citadas.

A União Europeia e o «Outro»

165

Prüm levantava, a verdade é que tal sintonia não diluiu por completo o espaço, também

ele legítimo, para todas as desconfianças que ainda se levantam. À cabeça, indicaríamos

a desconfiança relativamente à proporcionalidade, razoabilidade e adequação de todas

as medidas que integram esta política de prevenção de riscos, de controlo e de vigilância

dos indivíduos, sobretudo quando a linguagem oficial dos documentos de trabalho anda à

volta de expressões tão vagas quanto perigosas, como sejam as referências a ameaças

à segurança interna. Repare-se no seguinte exemplo. A Comissão avançou em 2005 com

uma proposta para uma decisão-quadro em matéria de protecção de dados. A proposta

foi discutida no âmbito da presidência austríaca e finlandesa da União em 2006. No

primeiro semestre de 2007, a presidência alemã avançou com a proposta de uma nova

redacção, ignorando para o efeito o trabalho do Parlamento Europeu com cerca de 60

emendas (Setembro de 2006) e as opiniões do European Data Protection Supervisor

(EDPS). O resultado foi um texto ainda mais ‘pesado’ que o anterior e que reduz bastante

o direito do indivíduo a ser informado de que estão a ser recolhidos e processados dados

relativos à sua pessoa. O direito de acesso aos dados também é limitado, e recheado de

excepções. Ou seja, segundo esta nova redacção, só se uma pessoa souber ou suspeitar

que os seus dados estão a ser processados é que poderá requerer o acesso aos

mesmos (UE doc.7315/07). Estes debates fazem-nos igualmente pensar na

transparência e democraticidade com que tudo isto é discutido e implementado. A

proposta de Decisão do Conselho, de Junho de 2007, sobre cooperação transfronteiriça

no combate ao terrorismo e ao crime entre fronteiras, reconhecia as dificuldades na

gestão de dados pessoais associados ao acesso on-line, mas ao mesmo tempo

terminava dizendo que a decisão respeitava a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais

(Draft Council Decision 2007). Ora, daqui ressaltava como evidente uma potencial

incoerência que valeria a pena ser mais amplamente discutida no âmbito de debates

públicos. No entanto, a maioria das discussões ocorreu no seio de comités e grupos de

trabalho especializados, ficando-se o cidadão pelo conhecimento dos resultados finais.

CONCLUSÃO

A qualidade das relações desenvolvidas entre sociedades receptoras e as suas múltiplas

comunidades de origens e pertenças étnicas diversas, não pode ser indiferente às

opções políticas que se efectuam em matéria de gestão migratória e de controlo de

fronteiras. Desta feita, se tais opções tiverem respaldo numa lógica que entenda como

estrategicamente defensável a incriminação e desconfiança antecipada sobre o valor

moral do Outro, então, tais opções terão maior probabilidade de estarem activamente a

contribuir para a fragilização das ditas relações. A probabilidade será tanto maior, quanto

Isabel Estrada Carvalhais

166

menor for, por acréscimo, o nível de preparação das populações para enfrentar e

desmontar as armadilhas que as linguagens e as práticas institucionais apresentam. Não

será despiciendo sublinhar que as relações sociais interculturais são antes de mais

relações assentes em pressupostos de confiança mútua, que ajudam à sustentação de

expectativas recíprocas e à sustentação de algo tão fundamental como a legitimidade de

políticas e práticas de solidariedade dento do Estado. É porque temos confiança no

‘Outro’ (independentemente de ele ser de facto um Outro, ou antes uma face de nós

mesmos ainda não reconhecida enquanto tal e por isso percebida como externa) que

aceitamos com ele trabalhar para uma ideia de Bem Comum. Assim, face ao

resumidamente exposto neste texto, ousamos questionar se essa confiança pode ser

estimulada através da aposta numa política de prevenção e controlo de comportamentos,

em cujo universo semântico o terrorismo e a imigração ilegal aparecem lado a lado qual

sinónimos; numa política de migração circular que reabilita o conceito de guestworker,

isto é, do imigrante económico descartável; numa política de retorno voluntário que na

verdade não apresenta o retorno como opção do indivíduo mas como condição

obrigatória para admissão de sua entrada; numa política de exportação de

responsabilidades, assente em círculos de boa vizinhança, em acordos de readmissão, e

que no fundo coloca sobre os ombros de países terceiros a responsabilidade pela

segurança interna da Europa (Bigo e Guild, 2010; Bigo e Guild, 2005).

Convenhamos que é no mínimo difícil reconhecer a linguagem da interculturalidade,

na linguagem destas quatro políticas que materializam a lógica subjacente à praxis

política da União Europeia não só em matéria de controlo de fluxos imigratórios de países

terceiros, mas também e mais importante, em matéria da sua relação com o ‘Outro’.

Na operacionalização das políticas que acompanham os conceitos de imigração

ilegal, migração circular e buffer states, evidencia-se uma inquietante fricção entre duas

grandes heranças constitutivas da matriz ideológica (entendida como matriz de

pensamento e acção) quer da Europa contemporânea no geral, quer do espaço

comunitário em particular. São elas, por um lado, a herança de uma ética humanista (ela

mesma hesitante entre uma leitura mais universalista sobre a existência de um máximo

denominador comum de dignidade humana materializado num conjunto de direitos

humanos fundamentais e inalienáveis; e uma leitura mais ‘multiculturalista’ sobre a

existência de múltiplas versões de dignidade humana, tornadas compatíveis através do

exercício de diálogos interculturais). E, por outro lado, a herança de uma ética burguesa,

marcada pela sobranceria civilizacional do espaço europeu no curso da História Mundial.

Neste contexto de ambivalência matricial que persegue as respostas da União Europeia

na sua relação com o ‘Outro’, a legitimidade de práticas e discursos políticos sobre a

A União Europeia e o «Outro»

167

gestão de fenómenos imigratórios é uma legitimidade necessariamente incompleta.

Incompleta porque ensombrada pela presença dessa segunda herança binária. De

sublinhar como nota final que o objectivo do tipo de reflexão que este texto propõe não é

o de desacreditar o projecto da União Europeia para a construção de um espaço de

maior liberdade, justiça e democracia. Precisamente porque acreditamos nas virtudes e

potencialidades do projecto, preocupam-nos os laivos que na acção política europeia

possam afectar a sua integridade democrática, a sua compatibilidade com os Direitos

Humanos, e a sua sintonia com uma visão mais inclusiva de cidadania.

ISABEL ESTRADA CARVALHAIS

Investigadora do NICPRI - Núcleo de Investigação em Ciência Política e Relações

Internacionais (www.nicpri.uminho.pt). Professora auxiliar da Escola de Economia e

Gestão da Universidade do Minho.

Contacto: [email protected]

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