Cidades, 40 - OpenEdition Journals

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Cidades Comunidades e Territórios 40 | 2020 Trabalho sem fronteiras perspetivas sobre os serviços domésticos e a prestação de cuidados Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/cidades/1943 ISSN: 2182-3030 Editora DINÂMIA’CET-IUL Refêrencia eletrónica Cidades, 40 | 2020, « Trabalho sem fronteiras » [Online], posto online no dia 26 junho 2020, consultado o 21 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/cidades/1943 Este documento foi criado de forma automática no dia 21 setembro 2020. Cidades. Comunidades e Territórios is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não- Comercial-Proibição de realização de Obras Derivadas 4.0 International.

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CidadesComunidades e Territórios 

40 | 2020Trabalho sem fronteirasperspetivas sobre os serviços domésticos e a prestação de cuidados

Edição electrónicaURL: http://journals.openedition.org/cidades/1943ISSN: 2182-3030

EditoraDINÂMIA’CET-IUL

Refêrencia eletrónica Cidades, 40 | 2020, « Trabalho sem fronteiras » [Online], posto online no dia 26 junho 2020, consultadoo 21 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/cidades/1943

Este documento foi criado de forma automática no dia 21 setembro 2020.

Cidades. Comunidades e Territórios is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Proibição de realização de Obras Derivadas 4.0 International.

SUMÁRIO

EditorialMaria Assunção Gato e Ana Rita Cruz

Dossier

Trabalho sem fronteirasPerspetivas sobre os serviços domésticos e a prestação de cuidadosNuno Dias, Inês Brasão e Manuel Abrantes

Les sociétés de plantation dans l’économie globale des services domestiquesLe cas de l’Ile MauriceColette Le Petitcorps

“Nós, as meninas da minha família, sempre vamos muito cedo para lá”Trajetórias migracionais, redes sociais e espaços de vida das domésticas migrantesGuélmer Júnior Almeida de Faria, Maria da Luz Alves Ferreira e Andrea Maria Narciso Rocha de Paula

Formalisation as a judicial claimThe case of paid domestic workers in ArgentinaLorena Poblete

Rompendo uma clandestinidade legalGénese e evolução do movimento dos cuidadores e das cuidadoras informais em PortugalJosé Soeiro e Mafalda Araújo

Estruturas residenciais para pessoas idosasRelação entre qualidade dos cuidados e qualidade do empregoAna Paula Gil

Crisis global de cuidados, migraciones transnacionales y remesasImpactos en y desde América LatinaSilvia Lilian Ferro

Migração internacional de mulheres e o mercado global de cuidadosUm estudo sobre filipinas em São Paulo, BrasilEster Martins Ribeiro e Rosana Baeninger

Varia

Urban SUNstainabilityA multi-dimensional policy evaluation framework proposalEduardo Medeiros

Relevância do VANT no Processo de Representação e Produção de ArquiteturaJoão Antunes, Sara Eloy e Pedro Luz Pinto

Espaços ajardinados do lado norte da Avenida dos Estados Unidos da AméricaTraços conceptuais na definição de um corredor verde no Bairro de Alvalade (1940-1960)Jorge da Rosa Neves e Paulo Tormenta Pinto

Espaços ajardinados do lado norte da Avenida dos Estados Unidos da AméricaTraços conceptuais na definição de um corredor verde no Bairro de Alvalade (1940-1960)Jorge da Rosa Neves e Paulo Tormenta Pinto

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A política urbana no Brasil e em PortugalContexto e evolução históricaEglaísa Micheline Pontes Cunha, Rui Pedro Julião e Francisco Henrique Oliveira

O papel das instituições subnacionais na aderência da agenda de integração hídricaLições da governança hídrica metropolitana de CuritibaSimone do Amaral Cassilha, Tatiana Maria Cecy Gadda, Niklas Werner Weins e Augusto Frederico Junqueira Schmidt

Fendas numa cidade divididaHabitação popular na cidade de São PauloLuis Octavio P. L. de Faria e Silva

Retalhos de uma cidade confinada em 2020 : entre realidade e utopiaEnsaio coletivo em tempos de PandemiaLaura Sobral, Marta Vicente, Rui Mendes, Sara Jacinto, Susana Rego e Ylia Barssi

Da ficção cinematográfica à realidade pandémicaUm ensaio sobre parasitas, vírus e outras maleitasAna Elísia da Costa

Julia Backhaus, Audley Genus, Sylvia Lorek, Edina Vadovics, Julia M Wittmayer (Eds.), Social Innovation and Sustainable Consumption: Research and Action for SocietalTransformationLondon, Routledge, 2017Hugo Pinto

Nancy Duxbury, Greg Richards, A Research Agenda for Creative TourismCheltenam, Edward Elgar Publishing, 2019Tiago Vinagre de Castro

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EditorialMaria Assunção Gato and Ana Rita Cruz

1 We are living historic and worrying moments. The first half of 2020 has been marked by

a global pandemic, still with no end in sight. There is a great anxiety for a vaccine thatcan rescue humanity from Covid-19 and restore the lost «normality». Until then,societies are managing daily fear and improvising epidemic contention measures at thepace of health and economic figures, with social inequalities also becoming more andmore obvious in this equation.

2 The theme of the dossier for this issue was defined well before the eruption of this

pandemic crisis, but it could not be more appropriate to emphasise certain values ofcivility, as well as the central role of care, caregivers and domestic workers. The dossier“Working without borders: perspectives on domestic services and care”, organized byNuno Dias, Inês Brasão and Manuel Abrantes as guest editors, provides an excellentopportunity to stimulate the debate on the contexts of poverty, insecurity andprecariousness of so many workers in this field worldwide. It is also an occasion tohighlight the contradiction between the ongoing social devaluation of these types ofjobs and their growing relevance in contemporary societies, especially in critical timeslike the ones we are living. The dossier comprises seven articles that capture realitiesexperienced in different parts of the world. This broad set of articles represents afundamental contribution to the perception of the inequalities that structure domesticwork and the care sector, as well as the power relations that underlie them. Theintersections made between domestic services and care work along with theinequalities of gender, nationality and race further reinforce the analytical-scientificvalue of this dossier, rendering its reading absolutely relevant.

3 Beyond the thematic dossier, five other articles on a wide range of topics, three essays

and two book reviews compose the issue. The first article, “Urban SUNstainability: amulti-dimensional policy evaluation framework proposal”, authored by EduardoMedeiros, proposes the innovative concept of urban SUNstainability aimed at moresustainable urban policies, both in environmental and economic terms. The productionand use of solar energy in urban areas is presented as an appropriate strategy toimplement a greener and sustainable territorial development process. To complete the

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argument, the article also presents a multi-dimensional policy evaluation framework toassess the SUNstainability capacity in urban areas.

4 The following article, “Relevância do VANT no Processo de Representação e Produção

de Arquitetura”, authored by João Antunes, Sara Eloy and Pedro Pinto, is alsoinnovative in proposing to explore the technological potential of unmanned aerialvehicles (UAV) for architecture production and representation. Framing theapplication and main advantages of UAVs in architecture, the article illustrates howthe use of these technologies not only provides architects with new possibilities foraction and professional autonomy, but also expands their technical capacities andperception about the territorial scenarios in which they intervene.

5 Still in the field of architecture, but focusing on landscape planning issues, the third

article, entitled “Espaços ajardinados do lado norte da Avenida dos Estados Unidos daAmérica. Traços conceptuais na definição de um corredor verde no Bairro de Alvalade(1940-1960)”, explores the equally innovative nature of the interdisciplinaryarticulation between architects and the first generation of landscape architects withinthe charismatic project of the Alvalade neighbourhood, in Lisbon. Authored by Jorge daRosa Neves and Paulo Tormenta Pinto, this article presents the conceptual features thatallowed the implementation of a Green Corridor in the Alvalade neighbourhood in the1940-1960s. Contextualized with both the Charter of Athens and the ModernMovement, this green corridor played a pioneering role in the city of Lisbon,emphasizing not only the public space, but also an ecological and artistic matrix, opento interdisciplinary dialectics in architecture.

6 In the fourth article, “A política urbana no Brasil e em Portugal: contexto e evolução

histórica”, Eglaísa Pontes Cunha, Rui Pedro Julião and Francisco Henrique Oliveiraanalyse the process of the historical evolution of urban policy in Brazil and Portugal,highlighting the main political and regulatory references in urban planning. Byreviewing the evolution of these policies in both countries, the authors underline notonly the main differences in each case, but also many of the weaknesses thatcontextualize urban policies, both in terms of implementation and articulation withother sectorial policies.

7 Finally, the article “O papel das instituições subnacionais na aderência da agenda de

integração hídrica: lições da governança hídrica metropolitana de Curitiba” takes us toBrazil for an analysis about water governance in the Metropolitan Region of Curitiba.Authored by Simone Cassilha, Tatiana Gadda, Niklas Weins and Augusto Schmidt, thisarticle also explores sustainability issues related to one of the most precious naturalresources for life on planet Earth, water. As a good part of the environmental problemsin Brazilian cities result from uncontrolled urban expansion processes, themanagement of water resources gains even more relevance, both in terms of thenecessary articulation of policies at different territorial scales, and in terms of themanagement of use and quality preservation. Hence, the authors identify severalchallenges posed by this Brazilian context, which are crucial to rethink watermanagement policies and urban sustainability on a more global scale.

8 The following section includes three essays that, while distinct, share the urban topic.

The first essay, “Fendas numa cidade dividida: Habitação popular na cidade de SãoPaulo”, authored by Luis Octavio de Faria e Silva, portrays an evolutionary process onSão Paulo's low-income neighbourhoods, highlighting the precarious housingsituations to which numerous groups of people have been subjected. The favelas

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(slums) constitute the best-known model of self-construction, and their expansionkeeps increasing without many solutions in sight, despite some interventions toimprove their residents’ quality of living.

9 The second essay, “Retalhos de uma cidade confinada em 2020: entre realidade e

utopia” is authored by six PhD students in Architecture of Contemporary MetropolitanTerritories (Laura Sobral, Marta Vicente, Rui Mendes, Sara Jacinto, Susana Rego andYlia Barssi), and is the outcome of a collective reflection on the city of Lisbon in acontext of lockdown due to the Covid-19 pandemic. The text frames new perspectiveson spaces, experiences and perceptions motivated by the confinement, but alsoexpresses concerns about the attempt to manage the daily uncertainties caused by thissituation.

10 The third essay takes up the pandemic theme to reinforce the issue of inequalities in

dealing with it – social, residential, economic, spatial, moral, symbolic, etc. In “Daficção cinematográfica à realidade pandémica: um ensaio sobre parasitas, vírus e outrasmaleitas”, Ana Elísia da Costa draws inspiration from Bong Joon Ho's film Parasite todevelop a challenging reflection on this globally shared health crisis. Between fictionaland real scenarios, the author raises social issues that, although not recent, seem tohave gained particular prominence during this period. Our attention is caught, and inthe end, we get the feeling that we are all sharing the same «scary movie».

11 In the book review section, Hugo Pinto offers a critical review of Social Innovation and

Sustainable Consumption: Research and Action for Societal Transformation (London,Routledge, 2019) edited by Julia Backhaus, Audley Genus, Sylvia Lorek, Edina Vadovicsand Julia M Wittmayer. According to Hugo Pinto, this book presents and analysespolicies, strategies and processes for societal transformation and fundamental changesto meet the challenge of sustainability. A transformation is expected in the field ofsustainability and its effects will radically change the existing institutional structure. Inthis respect, the focus is placed mainly on social innovation and its capacity to becomean important agenda for change. Nevertheless, the support of public policies andresearch to feed robust scientific knowledge into decision-making processes will beessential to develop social innovation as a practice. These are some of the main ideasoutlined by this book review which, on a whole, provides an excellent contribution tothe research agenda for social innovation.

12 Finally, Tiago Vinagre de Castro brings us A Research Agenda for Creative Tourism

(United Kingdom, Edward Elgar Publishing, 2019) edited by Nancy Duxbury and GregRichards. As stated in the title, this book is an agenda for research into a recent type oftourism, which is presented as an extension of cultural tourism, but in contrast to masstourism. Creative tourism is a niche product and is intrinsically linked to travellersseeking more active and participatory cultural experiences in which they can exploreand develop their creativity, as well as alternative approaches to the development oftourism, in a small-scale, more sustainable and closer visitor-host approach. In additionto the innovative character of the creative tourism concept and its intrinsic connectionwith the issues of sustainability, the book presents a wide selection of internationalcase studies that reveal not only the different approaches to creative tourism, but alsoits enormous potential in terms of promotion and cultural and economic dynamism inmore peripheral territories.

13 Closing this editorial, a quick final note about the cover image chosen by the invited

editors of the thematic dossier. Taken from a free image bank, the photograph is

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authored by Jaime Moag and is entitled “Assorted Kitchen ware and tools” (s.d.). Theimage depicts the great paraphernalia of common use objects that can exist in akitchen, in any part of the world. The objects evoke absent users, domestic workers,essential caregivers who are often also treated as objects for domestic use.

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Dossier

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Trabalho sem fronteirasPerspetivas sobre os serviços domésticos e a prestação de cuidados

Nuno Dias, Inês Brasão e Manuel Abrantes

1 A apresentação deste dossier resulta do encontro de vontades de três pessoas que têm

investigado o universo dos serviços domésticos a partir de perspetivas diferenciadas,complementares, mas, por vezes, pouco comunicantes. Os processos de feminização dosmovimentos migratórios e do mercado de trabalho das últimas décadas têm sidoreconhecidos largamente pela literatura, em alguns casos como parte integrante dessesmovimentos desde a sua origem. A globalização da economia capitalista e oconsequente movimento perpétuo de circulação de forças de criação e de destruição detrabalho beneficiaram da participação, nesse movimento, das mulheres e da sua fuga,enquanto resistência, à «dominação masculina». Todavia, apesar da naturezaestruturante destas dinâmicas, as narrativas mais influentes sobre o mercado detrabalho e as suas disposições futuras tendem a menorizar um amplo conjunto deprotagonistas e de sectores de atividade.

2 Novos paradigmas de organização e de gestão da produção dependentes das ideias de

flexibilidade e de desregulação no mercado de trabalho mantêm ativas lógicas coloniaisde estratificação dos modos de produção e do consumo. Nesse curso, a tendência dedesqualificação social das tarefas reprodutivas e desempenhadas na esfera do espaço daintimidade encontra nos movimentos migratórios pós-coloniais, de maior ou menoramplitude, a mão de obra sobre a qual se (re)materializa uma hierarquia racial ao longodos processos de segmentação do mercado de trabalho, a par da hierarquia de classe ede género.

3 A circunstância recente da pandemia de Covid-19 confirma a severidade de um sistema

social dependente de um quadro generalizado de relações laborais precárias einformais, onde questões como o tempo de trabalho, remuneração, proteção social edesemprego mantêm as assimetrias e a desigualdade entre centros e periferias e osmovimentos pendulares que lhes são característicos. A condição das trabalhadorasdomésticas e das cuidadoras obliterou-as da possibilidade de escolha entreconfinamento e rendimento, agudizando a vulnerabilidade decorrente da ausência demecanismos de proteção e de plataformas de representação.

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4 Apesar de não capitalizar grande interesse nos saraus científicos que discutem o tipo de

sociedade em que vivemos, o trabalho doméstico representa, à escala mundial, umaparte considerável do trabalho realizado por mulheres, especialmente quando estas sãopobres e/ou não-brancas. Por si só, este facto põe em evidência a perpetuação deregimes de sociedade inscritos no tempo e é o espelho refletor de um paradigma socialde desigualdade e subalternidade e de modelos de vida intocados transnacionalmente.Pode parecer pouco, mas como estamos a falar de um tipo de trabalho que constituiuma alavanca esquecida da «modernização» das sociedades, rapidamente percebemos asua importância. O estudo do trabalho doméstico na longa narrativa histórica convoca-nos para as perguntas mais difíceis: por que razão se considerou natural subalternizar,inferiorizar, maltratar e explorar indivíduos cujo corpo e, muitas vezes, a própria vida,se entregou ao bem-estar de um outro e dos seus familiares? Por que razão os processosde dominação de uns sobre outros, na esfera da propriedade privada (a casa, a herdade,a plantação), se revestem de uma violência particular?

5 Talvez seja porque a perpetuação do trabalho doméstico contribui para a reprodução

das principais categorias de divisão social e política que norteiam as sociedades ealimentam alguns dos princípios elementares da estratificação social: a necessidade dedistinção a partir do poder que temos sobre o outro no espaço privado, cuja pesadaherança patriarcal persiste (o(a) patrão(oa)/ escravo (a)/empregado(a)); a exibiçãodessa diferença social como troféu de que nos conseguimos livrar da responsabilidadede eliminar o sujo e os resíduos porque a outra classe de indivíduos isso compete; opacto com o sistema de que a nem todos os indivíduos serão atribuídos os mesmosprivilégios (por exemplo, o ócio e o desprendimento do trabalho reprodutivo), e por aífora.

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7 Os três primeiros artigos que apresentamos neste dossiê convocam-nos para diferentes

facetas do problema, mas, por outro lado, é possível subentender-lhes aspetosconvergentes. Entre estes, ressaltamos o facto de todos se reportarem a geografiasinscritas no hemisfério sul, compreendendo a realidade das Ilhas Maurícias, noprimeiro caso e, depois, a realidade do Brasil e da Argentina, no segundo e terceirocasos. Outro elemento comum é o de terem desenvolvido trabalho etnográfico nolevantamento das suas investigações. A etnografia permite que tenhamos acesso àforma como os indivíduos são guiados não apenas por uma luta pela sobrevivência,fazendo e refazendo as suas condições de existência, mas também pelo modo comoatribuem um sentido ao mundo e ao seu lugar nesse mundo (Willis, 2001). Em face docarácter extremamente opaco em que se travam as condições de realização do trabalhodoméstico, ter acesso a essa visão do mundo a partir dos próprios trabalhadoressubalternizados ganha, aqui, forças imperativas. O trabalho de campo e a história oralsão indispensáveis, uma vez que encontram nas protagonistas, bastas vezes, umarelação com o reportório de vida que é mais facilmente enunciado e rememorado pelafala do que pela escrita, dando ao investigador a possibilidade de fazer o resgate dorepertório dessas práticas a partir do lugar de fala das trabalhadoras. Comocuriosidade, acrescente-se que não é claro o domínio das fontes orais na historiografiado serviço doméstico, predominando antes a estatística, cartas, literatura, legislação,legados testamentários, a imprensa escrita ou os registos de saúde. Podíamosidentificar ainda outros pontos de acordo, como o facto de a identificação desta formade trabalho ser aqui apresentada como especificamente feminina ou, ainda, o de

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esclarecer que os contornos presentes nos estudos só podem ser compreendidos naarticulação com o denso passado colonial, mas atiremo-nos a cada um deles.

8 No artigo de Colette le Petitcorps, as alterações no formato de trabalho doméstico que

caracterizam o universo mauriciano, entre os anos de 1968 e o momento atual, são-nosapresentadas como o reflexo das mudanças operadas no próprio país. É uma análiseexemplar de como a história económica e a história social são indestrinçáveis. Aherança colonial permanece inscrita nos códigos corporais e nos rituais de deferênciaque marcam a relação ama/serva e, apesar de as Ilhas Maurícias serem consideradasum caso-de-sucesso nos manuais de desenvolvimento (um smart country dedesenvolvimento neoliberal) a autora não deixa escapar o quanto esse «paísinteligente» reforçou a estrutura de relações de subordinação pré-existentes naplantação, mas agora replicadas em segundas-residências e residências turísticas quefazem das Maurícias um dos países com tabela de preços mais elevada no mercadoglobal dos destinos. A infraestrutura humana, essa, continua servidora dos patrões e«empreendedores» de portento económico crescente, passando apenas do império doaçúcar para o do turismo, da biotecnologia ou dos eventos culturais.

9 O artigo seguinte, de Guélmer Júnior Almeida de Faria, Maria da Luz Alves Ferreira e

Andrea Maria Narciso Rocha de Paula, interpela o triângulo que une a imigraçãourbana, os mercados de trabalho e o serviço doméstico, tendo como referencial espacialo estado de Minas Gerais, no Brasil. Reporta os itinerários através dos quais, logo desdeo primeiro estágio de vida, mulheres muito jovens entram nas redes de recrutamentoque as levam da terra-campo para a cidade. Em 1995, por exemplo, os trabalhadoresdomésticos acusavam nos censos brasileiros a mais alta taxa de analfabetismo entre ostrabalhadores urbanos (passando de 19,69% em 1985 para 16,49%). No mesmo período,em outras atividades, a taxa de analfabetos era de 7,41% (Melo, 1998). Trata-se de umestudo sobre o tempo presente, contemplando a grande vantagem de nos elucidaracerca dos modelos de recrutamento, fixação e deslizamento da enorme massa demigrantes que se arrancam do espaço rural e cujas redes pré-estabelecidas, de carácterinformal, acabam por operar enquanto facilitadoras dos processos de integração. Éainda uma perspetiva que nos alerta para caminhos díspares entre as migraçõesfemininas e masculinas, sendo as primeiras, regra geral, mais «encapsuladas», porquerestringidas ao controlo domiciliário, enquanto as segundas permitem um fluxo e umatransitoriedade pela cidade com ganhos no alargamento das redes de oportunidades.

10 No artigo de Lorena Poblete é colocado o problema da formalização do trabalho como

meio para o alcance de melhor reconhecimento e enquadramento do trabalhodoméstico. A resposta não é clara, como veremos a partir do duplo olhar dosprotagonistas atuantes no processo: trabalhadora e empregador. Numa parteconsiderável do mundo, o trabalho informal sobrevive enquanto economia subterrâneae é, sem margem para dúvida, o único ganha-pão de grupos de indivíduos muitovulneráveis, quer pelas suas histórias de vida, em regra migrantes, quer por terem sidoprivados do acesso ao hipotético elevador social que é a escola, quer porquedeterminados acontecimentos precipitaram a súbita perda do seu trabalho e, emconsequência, a sistemática ostracização. A pandemia de 2020 mostrou, aliás, que doisdos países mais castigados pelo crescimento abrupto do número de infetados e mortos,o Brasil e os Estados Unidos, são justamente aqueles em que os números de trabalhoinformal e/ou precário são mais expressivos. Ora, como é referido pela autora “aformalização é tratada não como responsabilidade do empregador, mas como uma

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opção para os trabalhadores domésticos [e] o comportamento ilegal dos empregadoresé, portanto, retratado como meramente atendendo à solicitação do trabalhadordoméstico”.

11 A nível dos vários passos regulamentares e jurídicos que já têm sido dados, o estudo de

Lorena Poblete confirma que a burocratização é elevada, e o acesso aos meandros daregulamentação desenquadra, repele e castiga sempre as trabalhadoras, em vez de asenquadrar. Mas há ainda a questão maior relativa às contendas judiciais interpostaspelas trabalhadoras aos seus patrões quando querem ver definidos os seus direitos (porexemplo, relacionados com a contabilidade total das horas de trabalho antes de seremdespedidas). E é nesta escala da luta pelos direitos de trabalho, onde os testemunhos emtribunal contrabalançam, com poder desigual, a verdade da trabalhadora contra averdade do patrão, que a trabalhadora perde sistematicamente. As transcrições dosprocessos são esclarecedoras quanto ao facto de os patrões sequer admitirem aexistência daquela mulher que para eles trabalhou, o que produz um sentimento deinadmissibilidade no respeito da trabalhadora em relação àqueles a quem se dedicou e àprodução de sentimentos totalmente antípodas daqueles que teria vivido na casa: aconsciência do mau trato e desprezo pela total invisibilidade a que foi sujeita.

12 Os obstáculos ao reconhecimento e à formalização do trabalho são retomados no artigo

de José Soeiro e Mafalda Araújo, centrando-se este na prestação de cuidados por partede familiares ou pessoas amigas, tipicamente entendidos como trabalho não pago. Oartigo analisa a experiência de ação coletiva protagonizada pelo movimento decuidadores e cuidadoras informais em Portugal, que pretendeu “romper umaclandestinidade legal” e desempenhou um papel crucial no debate público e noprocesso legislativo que conduziu à aprovação de um Estatuto do Cuidador Informal emJulho de 2019.

13 São assim iluminadas as dinâmicas de participação das próprias pessoas cuidadoras na

regulação do seu trabalho, bem como as possibilidades de crescimento de umparadigma capaz de valorizar social e economicamente os cuidados em contextofamiliar. O artigo convida-nos ainda a refletir sobre as fronteiras e interligações dotrabalho doméstico pago e do trabalho doméstico não pago, entendendo como seajudam a perceber mutuamente no que respeita, por exemplo, à dimensão de géneroque perpassa ambos; ou às representações sociais do «altruísmo» e da «dádiva» comobarreiras ao reconhecimento de direitos; ou ainda, ao caráter determinante de umaidentidade coletiva para gerar e fortalecer reivindicações, algo identificado também naação coletiva das empregadas domésticas (Marchetti, 2012).

14 Ana Paula Gil analisa a prestação de cuidados noutro contexto, as estruturas

residenciais para pessoas idosas, focando-se no modo como as condições de trabalho deauxiliares de ação direta influenciam a qualidade do serviço. A recolha de dadosempíricos na Área Metropolitana de Lisboa permite identificar problemas associados afatores contratuais (falta de pessoal, salários baixos, pouca formação, sobrecarga dehorários e volume de trabalho), fatores interpessoais (mau ambiente laboral,supervisão inexistente ou insatisfatória) e fatores motivacionais (falta de valorização dotrabalho e das suas exigências efetivas, incluindo a dureza do trabalho físico e de lidarcom a doença e a morte). A autora observa que a falta de qualidade do emprego temimpactos não só na saúde física e mental de quem presta o serviço, especialmentedepressão, tendinites e problemas de coluna, mas também sobre a qualidade do serviçoprestado. O facto de Portugal ser o país da OCDE com menor proporção de

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trabalhadoras/es de cuidados por população idosa reflete-se de forma impressionantenos testemunhos recolhidos sobre instituições onde os utentes tomam um banho porsemana e estão habitualmente presos à cama ou a uma cadeira.

15 O estudo de Ana Paula Gil mostra que a dignificação do trabalho passa necessariamente

pela sua profissionalização. Tal como se constata nos artigos anteriores relativamenteao espaço doméstico, também nestes espaços institucionais encontramos umavalorização de aspetos como a dedicação ou o gosto pelo trabalho acima decompetências profissionais, que são negligenciadas ou mesmo desperdiçadas no caso demulheres que possuem formação ou experiência profissional na área. Sãoparticularmente ilustrativos os percursos de mulheres migrantes descritos no artigo,alguns dos quais incluem experiências de prestação de cuidados em contexto deinstituições (muitas vezes sem certificação legal) e em contexto domiciliário (comoempregadas domésticas «internas»).

16 Os dois artigos finais trazem-nos de novo contributos da América do Sul. No primeiro,

Sílvia Ferro examina as condições demográficas e sociais que subjazem àstransformações dos fluxos migratórios de cuidado desde o último quarto do século XX,atentando em particular à participação de países sul-americanos em tais fluxos. Emlinha com a noção de que as cadeias globais de cuidado são um traço constitutivo docapitalismo contemporâneo (Hochschild, 2000), a autora enquadra os movimentosmigratórios em desenvolvimentos económicos maiores, fundamentais paracompreender a partida de muitas mulheres da América do Sul para a América do Nortee para a Europa, onde vieram a assumir funções de cuidado.

17 Salienta também a intensificação de movimentos intra-regionais, isto é, entre

diferentes países da América do Sul, a partir dos primeiros anos do século XXI, quandovários destes países implementaram políticas redistributivas e registaram umaaceleração do crescimento económico. A análise abarca ainda os impactos e desafiosque emergiram da nova etapa iniciada com a crise financeira de 2008, à qual se seguiu arecessão económica e o retorno de políticas neoliberais. Em tempos nos quais seconjugam a crise global de cuidados e a contração dos orçamentos públicos, uma partedesmedida dos custos é suportada pelas trabalhadoras domésticas migrantes, que sedescobrem, como conclui Sílvia Ferro, numa posição de desvantagem perante osconflitos em torno dos usos do tempo e das deslocações geográficas.

18 No artigo que encerra o dossiê, Ester Martins Ribeiro e Rosana Baeninger debruçam-se

empiricamente sobre a cidade de São Paulo, no Brasil, olhando-a não como local departida, mas como local de destino. Caracterizam o movimento migratório de mulheresfilipinas e as relações sociais que determinam a sua concentração no setor do trabalhodoméstico, em particular, o crescente interesse que nelas demonstram as famílias declasse afluente e as agências de colocação. Procurando libertar as mulheres da lidadoméstica e dos cuidados a crianças e pessoas idosas sem questionar a escassaparticipação dos homens, as famílias encontram nas mulheres filipinas a resposta àssuas necessidades quotidianas e às suas expectativas de estatuto social: sãotrabalhadoras escolarizadas, fluentes em inglês, disponíveis para dormir no local detrabalho e associadas a um comportamento dócil e leal. Estas mulheres, por seu lado,deixam para trás as próprias famílias, sobretudo filhos e filhas, a quem remetem umagrande parte da remuneração que auferem, e são construídas no discurso público dopaís de origem como «heroínas modernas» (modern heroes) – provavelmente uma dasmais perturbadoras hipocrisias num capitalismo global, que gosta de se apresentar

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como distante e superior às mecânicas de exploração que marcaram os séculospassados.

19 No seu conjunto, os artigos reunidos neste dossiê oferecem-nos uma visão ampla e

acutilante das desigualdades que atravessam e estruturam o trabalho doméstico.Assinalam também esforços de contestação e transformação. Igualmente notório é oesforço envidado por todas as autoras e autores para que a sua análise não reproduzaacriticamente as relações de poder existentes nos contextos estudados. Procuramquebrar esse paradigma, por exemplo, quando examinam as relações de trabalhoatravés dos testemunhos e das interpretações de trabalhadoras domésticas; ou quandodiscutem os movimentos migratórios a partir de dinâmicas ocorridas nos países deorigem e não apenas nos países de destino. Também sublinhadas em vários artigos sãoas insuficiências que persistem no registo e na medição do trabalho doméstico. Asciências sociais não podem de modo algum eximir-se da sua própria responsabilidadena realidade que estudam.

20 A 16 de Junho de 2020, numa conferência online organizada pela Organização

Internacional do Trabalho, trabalhadoras domésticas dos quatro cantos do mundorelataram as consequências da pandemia de Covid-19 que sentiram no respetivo país.Descreveram também o que diversas organizações no terreno, nomeadamentesindicatos que integram a International Domestic Workers Federation, têm feito paraapoiar trabalhadoras domésticas confrontadas com o desemprego, a desproteção social,a doença, o desalojamento, a fome, a violência física e sexual, o racismo. Ostestemunhos recolhidos nessa conferência deixaram patente a importância crucial deconhecer melhor a realidade, de refletir criticamente, de elaborar ferramentasconceptuais e práticas para sustentar um mundo com mais justiça social.

21 Os imperativos do cruzamento de perspetivas disciplinares e da comparação de

contextos de observação sobre os serviços domésticos e a pluralidade de dimensões queestes encerram na sua relação com o passado, com circuitos globais de mão de obra,com dinâmicas de auto-mobilização e formação de identidade profissional, comdinâmicas de preconceito e de discriminação mais amplas, foram justamente o ponto deencontro a partir do qual iniciámos uma discussão sobre a necessidade de identificar ede sistematizar um conjunto variado de trabalhos e modos de ativação de diálogosentre si, e da sua participação num debate público sobre estes temas. O presente dossiêpretende ser um primeiro momento desse projeto.

AUTORES

NUNO DIAS

DINÂMIA’CET-ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, nuno.dias [at] iscte-iul.pt

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INÊS BRASÃO

Instituto Politécnico de Leiria; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de

Lisboa, Portugal, ibibrasao [at] gmail.com

MANUEL ABRANTES

SOCIUS/CSG - Investigação em Ciências Sociais e Gestão, Instituto Superior de Economia e Gestão,

Universidade de Lisboa, Portugal, manuelabrantes [at] gmail.com

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Les sociétés de plantation dansl’économie globale des servicesdomestiquesLe cas de l’Ile Maurice

Colette Le Petitcorps

1 L’usage du travail de femmes dans les services domestiques par des foyers des pays du

Nord s’est actuellement intensifié et a généré des flux transnationaux de main-d’œuvresans précédent (Federici, 2002 ; Falquet, 2009). Ce phénomène interpelle, d’autant plusque les théories de la modernisation des années 1970 présageaient la disparition desrapports fondés sur la dépendance personnelle et la loyauté du domestique vis-à-vis dumaître qui étaient perçus comme incompatibles avec la société moderne reposant sur lecontrat salarial (Coser, 1973). Des études féministes ont au contraire souligné lapermanence des rapports d’appropriation de la personne et de son corps-outil detravail pour la croissance des biens et la reproduction du groupe dominant, au cœur dela société salariale (Guillaumin, 1992). Le service domestique en est l’une desexpressions les plus concrètes (Anderson, 2000 ; Falquet, 2009 ; Galerand, 2015 ; Hooks,2015 ; Rollins, 1990). L’appropriation de la personne dans le rapport de travail instaurédans l’espace domestique serait le produit des deux formes historiques articulées desrapports sociaux de sexe et de race (Anderson, 2000 ; Glenn, 2009 ; Rollins, 1990). Cestravaux interrogent la façon dont se perpétue et se réajuste une exploitation spécifiqueau service domestique dans l’économie contemporaine, néolibérale et globalisée1.

2 La cause de l’intensification du marché des services domestiques à l’échelle

transnationale a souvent été trouvée dans la conjugaison de deux transformations dansl’organisation du travail des femmes : l’amplification des migrations des femmes despays du Sud cherchant les moyens de la survie de leur foyer dans les centreséconomiques du Nord d’une part, et la croissance de l’activité salariée continue desfemmes dans les pays du Nord d’autre part (Kergoat, 2009). Le service domestiqueconstitue le point nodal de la rencontre de ces deux processus, où la libération dutemps consacré au travail domestique pour augmenter le temps dans l’emploi des unes,passe par le recours à la force de travail d’autres femmes qui sont appauvries par la

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destruction des moyens de la reproduction de leur économie familiale dans les pays duSud. Il en résulte une inégalité de classe qui se manifeste dans la relation entre femmesà l’intérieur de l’espace domestique pénétré par les marchés des services de nettoyage,de soin et de prise en charge des personnes vulnérables. Cette organisationinternationale de la reproduction sociale (Federici, 2002) prend effet dans le cadred’une politique étatique néolibérale qui délègue au marché et aux familles une lourdepart de la prise en charge sociale de la reproduction des foyers. Ces approches onttendance à faire du cas de la réorganisation du travail domestique dans les foyers desgrandes villes du Nord un principe universel de l’internationalisation de lareproduction sociale contemporaine (Kofman, 2012).

3 Or, l’expansion des usages des services domestiques a aussi été observée dans certains

pays du Sud. Des études comparatives ont montré que les centres névralgiques de laproduction des travailleuses domestiques pour les migrations au Nord, mais aussi pourles migrations dans les Suds et pour les emplois domestiques sur place, étaientconstitués des anciennes colonies fondées sur l’esclavage de plantation (Higman, 2015 ;ILO, 2013). Quelles sont les conditions historiques passées et présentes de ces sociétésde plantation qui expliquent le fait qu’elles soient parmi les premières pourvoyeuses demain-d’œuvre domestique féminine dans l’économie globale des services domestiques? Cet article vise précisément à examiner la relation que l’on peut établir entre laperpétuation d’une exploitation spécifique dans les services domestiques fondée surl’appropriation de la personne au travail, et l’insertion de la main-d’œuvre fémininedes sociétés de plantation dans l’économie néolibérale globalisée. Il faut pour cela aussitenir compte des mutations du service domestique observées à différents endroits dumonde durant ces quarante dernières années. Les rapports de service d’abordprincipalement organisés au sein des économies familiales ont été de plus en plusdéfinis par des logiques de marché et de consommation des services domestiques. Celas’est traduit par des changements radicaux dans les conditions de travail : des emplois àdemeure ou à plein temps auprès du même employeur, aux emplois payés à l’heure, àtemps partiel et pour divers employeurs. Comprendre ces mutations implique deréinscrire le secteur des services domestiques dans l’évolution des contextes productifsnationaux tels qu’ils s’insèrent dans l’économie mondiale, comme certaines études l’ontmontré (Jacquemin, 2009 ; Todd, 2009). Prêter attention à la façon dont les rapports deservice domestique se réajustent et s’intègrent à une conjoncture économiqueparticulière de la production nationale permet d’en saisir les enjeux de classe. Oninterrogera à ce titre dans quelle mesure, dans des moments et des espaces précis, lestravailleuses domestiques sont des protagonistes majeures des conflits de classe sur lascène du travail.

4 Le cas d’étude de l’économie des services domestiques présenté ici est situé à l’Ile

Maurice qui est une ancienne société de plantation sucrière. Ce pays a autrefois fournil’Europe, et en particulier la France et l’Angleterre, en main-d’œuvre féminine pour lesservices domestiques (Vuddamalay, 1993 ; Le Petitcorps, 2015). Il mobilise aujourd’huiune partie de sa main-d’œuvre féminine pour les services domestiques administrés surplace. L’économie mauricienne a été dominée depuis le début du XIXème siècle par lamonoculture de la canne à sucre, pour laquelle la majeure partie des terres et de lamain-d’œuvre a été exploitée. L’emploi des femmes se partageait jusque dans lesannées 1960 entre deux secteurs d’activité : le travail agricole et le service domestique2.L’activité sucrière s’est progressivement réduite pour n’occuper plus que 2,1% de lapopulation active en 2018. Dans les années suivant l’indépendance (1968), la main-

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d’œuvre féminine a été mobilisée en masse pour occuper les emplois d’ouvrière dutextile développés dans la Zone Franche (Burn, 1996 ; Ramtohul, 2008). Une récessionde l’activité industrielle s’observe toutefois rapidement dès la fin des années 19903.L’emploi des femmes dans les services des « foyers employeurs »4 est en revanchedemeuré stable. Il se maintient à 9,1% en 2011, tandis qu’on estime une légère remontéeà 12,2% en 20185. Il en résulte qu’aujourd’hui, les femmes employées des servicesdomestiques forment le plus gros contingent des employées aux petits salaires6.

5 Pour comprendre l’augmentation, les conditions d’emploi et les rapports de travail des

services domestiques dans le contexte de la désindustrialisation à l’Ile Maurice, il estnécessaire de reconcevoir les outils d’analyse avec lesquels les services domestiques ontprincipalement été étudiés dans les pays du Nord. L’approche classique du servicedomestique prend pour unité d’analyse principale l’économie domestique du foyerbénéficiaire de services et la relation entre femmes, employeuses et employées, dansl’espace privé. Le travail de service domestique est par cette approche affilié à la sphèrereproductive de l’entretien de l’espace de vie et de la prise en charge des membres de lafamille qui bénéficie des services. La démarche que je propose pour analyser l’économiedes services domestiques d’une société de plantation insérée dans la mondialisation estdifférente. Elle s’appuie sur trois unités d’analyse dont il s’agira d’examiner la façondont elles s’articulent. Je traite dans un premier temps du contexte productif nationalactuel, en recherchant la façon dont le service domestique constitue un facteur deproduction du développement économique envisagé par l’Etat et par les holdings issuesdu capital sucrier. J’aborde ensuite les représentations du passé et du présent desrapports de service domestique de la part de bonnes et d’employeuses, pour saisir lesspécificités de la forme du foyer usager des services domestiques dans la société deplantation. Je considère enfin le foyer des travailleuses domestiques et leur espaced’habitat comme un site important de l’ethnographie pour comprendrel’appauvrissement engendré par l’intensification du service domestique dans lecontexte de la désindustrialisation, ainsi que les formes singulières de l’organisation dela contestation de leur exploitation au travail.

6 L’analyse développée s’appuie d’une part sur un ensemble de documents consultés pour

identifier la place des services domestiques dans la politique économique mauricienne: des textes de lois sur l’investissement depuis les années 2000, des brochures del’organisme paraétatique du Board of Investment chargé de gérer les investissementssur l’île, des sites internet des holdings issus du capital sucrier, des articles de la pressemauricienne et des rapports de l’institut des statistiques de l’Ile Maurice. Une enquêtede terrain de 8 mois entre 2017 et 2019 a permis d’autre part de réunir des donnéesempiriques sur les représentations des rapports de service domestique d’une vingtained’employeurs et d’une trentaine de travailleuses domestiques par la réalisationd’entretiens. Je me suis également impliquée durablement dans les relations, lequotidien et les pratiques de travailleuses domestiques dans leur espace d’habitat, dansdeux villages de la zone côtière du Sud-Ouest mauricien qui constitue un importantbassin d’emplois domestiques. Un tiers des femmes rencontrées sont nées auxalentours des années 1950 et sont aujourd’hui à la retraite, tandis que les deux autrestiers sont des femmes âgées entre 35 et 60 ans qui travaillent actuellement dans lesemplois domestiques sur la côte.

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1. Les services domestiques dans la politique dedéveloppement mauricienne et la globalisationfinancière

7 Contrairement aux autres pays d’Afrique, l’Ile Maurice n’a pas connu de paysannerie

précoloniale avant les colonisations hollandaise (au XVIIème siècle), française (de 1715à 1810) et anglaise (jusqu’en 1968). Elle est devenue une économie de plantation audébut du XIXème siècle, par la mobilisation d’une force de travail esclave qui cultivaitla terre concédée à des colons européens, majoritairement français. Le capitalismeagraire s’est développé au cours de la succession des régimes de l’esclavage et del’engagisme, qui ont contraint des individus et des familles d’Afrique et d’Inde autravail et à la vie dans l’enceinte de la plantation. La progression du capitalisme aconduit depuis les années 1860 à la concentration des terres, des usines et du capitalaux mains de quelques familles « franco-mauriciennes ». Le processus d’accumulationet de concentration du capital s’est accompagné de la fragmentation de terres, souventles moins fertiles et les plus éloignées des usines sucrières : celles-ci ont été acquisespar des Indiens ayant terminé leur contrat d’engagé dans les grandes plantations(Virahsawmy, 1979). Les étendues de cannes à sucre recouvrant les plaines intérieuresde l’île continuent d’appartenir aujourd’hui à quelques familles franco-mauriciennes,désormais unies en corporations sucrières.

8 En 1963, à l’approche de l’indépendance, un rapport économique de l’administration

britannique rédigé par Meade souligne l’urgence de la sortie de l’île de sa dépendance àla production et à l’exportation du sucre sur le marché mondial (Meade, 1968). Lescorporations sucrières vont elles-mêmes impulser la diversification économique desactivités de l’île. Elles se constituent pour cela en holdings qui investissent dansd’autres holdings. Cela leur permet de dominer le secteur du textile développé par laZone Franche dans les années 1970, ainsi que les secteurs du tourisme, des assurances,des finances et de l’immobilier (Virahsawmy, 1979). La classe politique émergente, issuedes petits et grands planteurs indiens, s’allie à l’oligarchie sucrière pour mettre enœuvre la politique de développement néolibérale impulsée par la Banque Mondiale, dèsles années qui suivent l’indépendance (Seegobin, Collen, 1977 ; Neveling, 2017). LaBanque de Développement Mauricienne (BDM) créée en 1964, qui comprend davantagede représentants du secteur privé que de représentants du gouvernement, décide desinitiatives principales de la politique économique de l’Etat (Neveling, 2017). La fin duProtocole Sucre, qui offrait des avantages préférentiels aux pays ACP (Afrique, Caraïbes,Pacifique) pour l’exportation du sucre dans l’Union Européenne, est prévue au débutdes années 2000. La perspective d’ouverture du sucre mauricien à la compétition sur lemarché international conduit à restructurer de nouveau l’industrie sucrière par deslicenciements massifs, des plans de départ à la retraite anticipée, la mécanisation et laréduction de la production. Sous l’égide de plusieurs cadres des holdings issues ducapital sucrier, le Board of Investment (BoI, remplaçant la BDM) pense alors les moyensd’optimiser les usages de la terre jusque-là cultivée pour la canne. Il promeutl’Integrated Resort Scheme (IRS), un plan de conversion de champs de canne en espacesrésidentiels fermés et sécurisés de l’immobilier de luxe, accessible aux acquéreursétrangers. Les premiers investissements dans la construction d’IRS sont réalisés par desholdings issues du capital sucrier sur leurs terres, tandis que viennent ensuite des

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corporations étrangères qui investissent massivement dans les Property DevelopmentSchemes (PDS)7.

9 Sur 10,6 milliards de roupies d’Investissements Directs de l’Etranger au premier

semestre 2019, 9,5 milliards sont ainsi investis dans le secteur de l’immobilier8. Le butaffiché de la nouvelle politique de développement est de fabriquer un « global smartcountry »9. L’adaptation locale du concept de développement urbain de la « smart city »consiste à « développer le résidentiel et le commercial sur un ancien terrain sucrier »10.Tous les espaces agricoles de l’île sont alors envisagés comme des zonespotentiellement constructibles, d’après l’organisme paraétatique chargé du nouveauplan d’aménagement du territoire, l’Economic Development Board (EDB) qui remplacele BoI11. La transformation de l’île agricole en grands espaces résidentiels,commerciaux, de travail et de loisirs pour des foyers à hauts revenus telle qu’elle estimaginée par l’élite économique et politique, s’inscrit dans une politique économique etfiscale plus large visant à convertir l’Ile Maurice en centre financier d’excellencerégionale et internationale. Plusieurs dispositions ont déjà été prises pour développerl’infrastructure et les accords fiscaux entre pays afin de faire de l’île un hub financier etcommercial international facilitant le business en Afrique12. Le développementimmobilier fait partie de l’infrastructure stratégique et des actifs financiers que lapolitique économique mauricienne propose aux acquéreurs étrangers. Le territoiremauricien prend ainsi de plus en plus l’allure de ce que Sassen a décrit des « globalcities », qui sont la traduction spatiale et matérielle des circuits économiques globauxgénérés par la finance (Sassen, 2016). Or, l’infrastructure stratégique de la « global city» repose aussi sur la force de travail féminine mobilisée de manière invisible dans lesemplois de services subalternes, que ce soit dans les bureaux ou dans les propriétésimmobilières des acteurs de la finance globale (Sassen, 2016).

10 Le propre de l’économie globale et digitalisée de la finance est de masquer les

conditions matérielles qui rendent son fonctionnement possible. Il est donc difficile deretrouver les traces des emplois domestiques créés par les global cities, d’autant plusqu’ils restent en grande partie dans le secteur informel. Le Board of Investmentn’octroie les permis de construction des projets IRS que lorsque le promoteur a prévuun plan de prestation de services domestiques pour les acquéreurs des villas13. Il esttoutefois impossible d’évaluer le nombre d’emplois domestiques créés depuis la mise enplace de ces programmes. L’Etat masque cet effet collatéral du projet de fabrique d’un «pays à hauts revenus » par les IDE et l’installation d’étrangers aisés14. Tout est fait àl’échelle étatique pour cacher la résurgence de la figure de la domestique associée àl’histoire coloniale15. L’intensification du secteur des services domestiques ne peut pasêtre non plus couverte, comme en Europe, du cache-sexe d’une politique de careveillant à la prise en charge sociale de la reproduction des foyers (Falquet, 2009), tant ilapparaît avec évidence que les nouveaux emplois domestiques créés sont destinés auxusages de la classe possédante et hypermobile dans le capitalisme global.

11 La preuve de l’existence de ces emplois se trouve dans la présence visuelle de femmes,

habillées de l’uniforme autrefois porté par les domestiques dans les maisons coloniales,au petit matin dans les rues des quartiers résidentiels des espaces côtiers quiconcentrent les nouveaux cœurs économiques de l’île. La fréquentation des transportscollectifs (bus et vans) à destination de ces zones le matin et en fin d’après-midi,renseigne également sur les pratiques de mobilité quotidienne de femmes venues dedifférentes villes, qui descendent aux entrées des résidences réservées au personnel de

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service. La proportion des femmes en emploi dans les services domestiques de la régionde Rivière Noire, qui comprend la côte Sud-Ouest de l’Ile Maurice, s’élevait à 16,2%d’après le recensement de la population de 2011. Un quart des récentes constructionsimmobilières de luxe (programmes IRS et PDS) sont situées sur la côte Sud-Ouest entreles villages de Tamarin et Rivière Noire. La moitié des projets IRS et PDS sont polariséssur deux espaces côtiers à la valeur foncière importante : Tamarin-Rivière Noire etGrand Baie. Ces zones côtières urbanisées constituent d’importants bassins d’emploisdomestiques qui drainent des femmes venant de différents coins de l’île.

12 J’ai en de rares occasions été témoin des procédés de marketing employés pour vendre

à des étrangers, avec la propriété immobilière, la qualité des services domestiques dits« à la Mauricienne »16. Cette pratique commerciale, qui utilise le registre de laconnivence coloniale sur les qualités naturelles de service perçues des femmesmauriciennes, inclut le service domestique dans la nouvelle chaîne transnationale deproduction, de vente et de consommation de produits immobiliers. Il ne s’agit passeulement d’une pénétration de la sphère domestique et du care par le marché(Ugerson, 1997), mais également d’une marchandisation des femmes (Anderson, 2000)et de leurs qualités au service incarnées d’après des stéréotypes coloniaux. Lamarchandisation des femmes, que ce soit pour les services domestiques ou pour laprostitution, a été observée dans d’autres économies de plantation qui se sontrestructurées par le développement du tourisme et de l’immobilier (Shapkina, 2014).

13 L’examen de la politique économique néolibérale et de la conjoncture de la

désindustrialisation (sucrière et textile) à l’Ile Maurice, permet de comprendrel’intensification et les conditions actuelles des emplois domestiques. Les entretiensmenés avec des travailleuses domestiques qui ont travaillé dans des résidences IRS ouPDS nous informent que les acquéreurs des villas habitent rarement leur bienimmobilier à l’année. Outre ceux qui n’y résident que de manière temporaire (entre 3 et6 mois), d’autres louent leur villa à des expatriés de passage, quand ils ne revendent pasrapidement leur villa dans une logique spéculative. La forme des emplois domestiquescréés dépend de ces fluctuations financières et de l’hyper-mobilité des résidents.Certaines travailleuses domestiques sont restées employées par les différents locatairesqui se sont succédés dans la villa d’un même propriétaire. Mais d’autres ont dûrechercher un travail lorsque le locataire partait, le renouvellement de l’emploi de labonne étant à la discrétion du locataire qui est l’employeur des services domestiques.Parmi les résidents qui ne restent que quelques mois dans l’année, certains souhaitentgarder la même bonne, sans pour autant que celle-ci ne travaille ni ne soit payée enleur absence. Les conditions d’emploi créées par les caractéristiques de l’immobilier,qui est avant tout un actif financier, plongent les travailleuses domestiques dans uncontexte d’incertitudes économiques quant à la durée de leur emploi, la stabilité durevenu assuré et l’accès à la protection sociale. L’exploitation des bonnes ne s’exprimeplus concrètement par l’amplitude horaire du recours à leurs services, mais par l’usageflexible, extensible et rétractable, de leur temps en fonction des plans de vietransnationaux des employeurs. En-dehors des IRS, sur les bordures des plages où lavaleur du foncier est la plus forte, des propriétaires de villas mauriciens et étrangersemploient également des travailleuses domestiques. Elles sont à la fois employées pourleur usager personnel et pour offrir divers services (de ménage, de cuisine, de nounouou d’aide à domicile) aux touristes qui louent leur(s) bien(s) immobilier(s). Cettedernière part de l’emploi domestique consacrée aux revenus du tourisme n’est souventpas déclarée, parce qu’elle est ajustée à la demande et à la fluctuation de la clientèle. Le

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travail de la bonne est dans ce cas rendu flexible, au profit des bénéfices espérés de lalocation touristique. C’est donc la travailleuse qui supporte le risque de réaliser « unemauvaise saison », sans que le niveau de sa rémunération horaire ne compensel’instabilité du revenu obtenu du travail dans ce type d’emploi17.

14 Les conditions des emplois domestiques du « global smart country » mauricien se

retrouvent sans doute dans les autres pôles économiques mondiaux des global cities,qui ne sont désormais plus uniquement localisées dans les pays du Nord (Sassen, 2016).Ces conditions d’emploi sont manifestes de la transformation des services domestiquesen bien de consommation à usage temporaire, dans la logique d’une économie demarché. Si les services d’assistance et de conseil du marché de l’immobilier sontsophistiqués, on constate en revanche que le recrutement du personnel domestiquedans les complexes immobiliers est plutôt laissé à la discrétion des résidents à l’IleMaurice. La mise en relation entre usagers et travailleuses domestiques continue de sepasser de manière informelle par le bouche à oreille. On a aussi vu que lamarchandisation des femmes employées domestiques passait par le recours à desstéréotypes coloniaux sur leurs qualités incarnées au service. Il convient de sedemander dans quelle mesure l’actuelle marchandisation des femmes pour constituerl’infrastructure du global smart country, s’appuie sur la structure et les représentationsancrées des rapports de service domestique de la société de plantation.

2. Les rapports de service domestique de la société deplantation

15 D’après Higman, le fait que les sociétés héritières de l’esclavage de plantation soient les

productrices des plus larges proportions de travailleuses domestiques dans le mondeest lié aux fortes inégalités de richesse dans ces sociétés, ainsi qu’à l’héritageinstitutionnel de la colonie de plantation (Higman, 2015). Un des legs principaux estl’idée de race qui a été produite dans l’organisation du travail de la production agricole(Thompson, 2012 ; Bastos, 2018), et qui constitue à la fois le mode et le résultat de ladomination coloniale moderne (Quijano, 2007). Afin d’examiner l’héritageinstitutionnel particulier de la colonie de plantation dans les rapports de servicedomestique contemporains, j’analyse les représentations du passé des rapports deservice domestique telles qu’elles sont exprimées par les souvenirs d’anciennes bonnesqui ont travaillé avant l’indépendance, en les mettant en relation avec les pratiques etles représentations des rapports de service domestique d’employeuses et de bonnes auprésent de l’enquête. L’analyse considère la pluralité des foyers qui ont recours auxservices domestiques aujourd’hui à l’Ile Maurice, de la classe moyenne urbaine auxnouveaux résidents étrangers des espaces côtiers.

16 Dans les années 1950, près d’un quart des foyers de l’Ile Maurice résidait encore sur la

propriété de familles usagères de leur main-d’œuvre18. La condition du logement desfamilles de travailleurs sur la propriété exploitant leur force de travail conférait ladépendance des travailleurs aux propriétaires terriens. Cette forme d’exploitationfondée sur le travail non libre est structurelle à l’économie de plantation qui s’estdéveloppée sous le régime esclavagiste, à partir des années 1820 à l’Ile Maurice(Teelock, 1998). Après l’abolition de l’esclavage, l’exploitation par le travail non libres’est recomposée sous diverses formes de salariat bridé (Moulier-Boutang, 1998), grâceau maintien du « foyer de plantation » comme unité de production principale

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contenant en son sein les rapports de production et de reproduction de l’ensemble de lasociété (Fox-Genovese, 1988). Certaines de ces unités de production qui exploitaient laterre pour la production principale de la canne à sucre ont perduré jusqu’audémantèlement des derniers camps de travailleurs et des dernières dépendances debonnes dans les années 2000.

17 Les femmes les plus âgées de mon enquête qui ont habité et travaillé soit dans une

plantation, soit dans une saline, soit dans un terrain de chasse ou soit dans la courd’une maison dans les années 1960, 1970, voire 1980, parlent de leur travail et de leurstatut social à l’époque en disant qu’elles « travaillaient pour » les propriétaires de cesterrains. La condition commune du travailleur non libre est signifiée par lesexpressions créoles. Tour à tour laboureuses, bonnes et/ou travailleuses des salinesdurant leur parcours de vie, ces femmes âgées résument leur condition par le faitqu’elles « travaillaient pour les Blancs ». Elles définissent donc moins leur travaild’après la tâche spécifique effectuée, que d’après le groupe social auquel son produitappartenait (Le Petitcorps, 2019). La catégorie raciale de « Blanc » exprime dans leurdiscours une condition matérielle qui était celle d’être propriétaire de la terre. Lerapport de race intériorisé par les femmes qui ont travaillé dans les foyers deplantation traduit dans les représentations un rapport social entre les propriétaires dela terre et leurs travailleurs dépendants.

18 L’économie des rapports domestiques de ce contexte historique n’était pas propre à la

sphère privée, comme dans le capitalisme de marché (Fox-Genovese, 1988). Elle étaitincluse dans l’unité du foyer de plantation qui, de la plus petite cour au grandétablissement sucrier, contenait encore dans les années 1960 une importante partie del’activité de production de l’île. La production s’obtenait par le rapport de dépendancedes travailleurs aux propriétaires terriens, qui définissait aussi les relations entre lesbonnes et principalement les patronnes. Les « rituels de déférence » (Rollins, 1990)obligés dont les anciennes bonnes rencontrées se souviennent, avaient selon elles pourbut de marquer leur infériorité au quotidien, comme le raconte par exemple Solange àpropos de son expérience du travail dans les années 1960 :

Solange : « Le monsieur m’a dit un jour « viens ouvrir la porte pour mon entourage! Viens ouvrir la porte quand je rentre chez moi ! » Ça veut dire que je dois sortir dechez moi, je dois courber ma tête plus bas encore, pour aller lui ouvrir la porte,juste lui ouvrir la porte, et retourner chez moi, le premier janvier ça ! Juste pour lui! 19»

19 Du point de vue des anciennes bonnes de l’enquête et de leur « connaissance de

l’intérieur » des mécanismes de la domination (hooks, 2015), le travail de domestiqueétait envisagé par les propriétaires terriens et par les relais de leur autorité dans lamaison (leurs épouses), comme étant la manifestation quotidienne exacerbée,imprimée dans les gestes des corps, de la subordination constitutive du rapport de race.

20 La hiérarchie socio-raciale établie dans les rapports sociaux internes aux foyers de

plantation s’est diffusée de manière durable à l’ensemble de la société, comme destravaux l’ont montré dans d’autres sociétés de plantation telles la Guyana (Williams,1991). La constitution d’identités ethniques, regroupant les individus d’après leur vaguemigratoire d’origine présumée – indienne, chinoise, musulmane par exemple à l’IleMaurice – a répondu à diverses reprises à des stratégies politiques de la part des élitesémergentes, qui visaient ainsi à garantir leur accès aux ressources économiques etpolitiques de la nation à l’approche de l’indépendance (Chan Low, 2008). Les stratégiesethniques de mobilité sociale s’inscrivent toutefois toujours dans les contraintes

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idéologiques créées par la domination coloniale européenne. La compétition ethniquepour les ressources nationales dans l’Etat postcolonial ne se joue que pour la « secondeplace », après les Blancs, dans la continuité de l’hégémonie coloniale raciste (Williams,1991).

21 Avoir une bonne, ne serait-ce que pour quelques heures par semaine20, constitue à ce

titre une marque de statut définie par l’aspiration au rapprochement de la blanchité detoutes les classes qui accèdent à la propriété, comme des travaux l’ont aussi montré enJamaïque (Johnson, 2007) ou en Amérique latine (Foote, 2015). La culture d’usage desservices domestiques au sein des classes moyennes de la société mauricienneaujourd’hui (un foyer sur dix emploie une travailleuse domestique21) résulte de lacontrainte idéologique imposée par l’hégémonie coloniale dans la représentation de lamobilité sociale : celle-ci ne peut s’imaginer sans disposer d’une bonne. On remarqueainsi dans les discours d’employeuses issues de familles de commerçants chinois ou depetits planteurs indiens, que le fait d’avoir une bonne pour effectuer des tâchesd’entretien de la maison n’est pas conditionné à leur activité professionnelle, commeon pourrait le voir en Europe aujourd’hui. Cela dépend plutôt du fait de disposer ou nonde moyens suffisants, comme le précise par exemple Uma, fille d’un petit planteur quiréside aujourd’hui dans les beaux quartiers d’une ville de l’intérieur de l’île :

Uma : « Ma maman avait 5 enfants, donc les 5 enfants étaient gardés par mamaman. Et… ma maman ne travaillait pas. Et on n’avait pas le moyen financier aussipour prendre une personne qui garde les enfants. Mais par contre ma maman, et jepeux vous dire, pour trois générations donc ma grand-mère, ma maman et moi-même, on a toujours eu des bonnes à la maison. Donc bonne, nécessairement pourfaire les, les repassages, la lessive parce qu’il y avait pas les machines à laver, lenettoyage de la maison et…voilà.22 »

22 D’après le discours d’Uma, les tâches et les heures de travail de la bonne commandées

s’envisagent en fonction des revenus du foyer. Elles s’amplifient à mesure del’accroissement des revenus du foyer selon les conventions sociales. La possessiond’une bonne et les caractéristiques de son travail constituent ainsi des attributs del’appartenance de classe des employeurs, qui matérialisent la façon dont ceux-ci seprojettent dans les rapports de pouvoir. Si les rapports de service domestique ontpénétré l’économie familiale des couches moyennes de la population, le rapport socialfondé sur la propriété continue d’opérer : prennent des services celles et ceux qui sontpropriétaires d’une maison, tandis que rendent les services celles qui habitent lesmaisons des cités, aux murs en amiante ou plafonds de tôle. Tous les employeursrencontrés, des membres de la classe moyenne urbaine aux nantis des espacesrésidentiels de luxe, sont obsédés par les risques de vols qui pourraient être commis parla bonne. Cette peur est un effet des écarts de richesse qui structurent les rapports deservice domestique encore aujourd’hui.

23 Les relations interpersonnelles des employeuses à leur bonne dans les espaces

domestiques sont de toute évidence variées d’un foyer à l’autre. Elles mobilisent plus oumoins les rituels de déférence représentés des rapports de service domestique du foyerde plantation. Certaines patronnes perpétuent ainsi le contrôle des faits et gestes de labonne dans leur maison ou maintiennent la séparation des lieux et des couverts durepas entre la bonne et la famille servie. Des formes d’expression concrète del’exploitation des bonnes semblent également toujours s’organiser en référence aurapport de production et de reproduction du foyer de plantation. Une bonne peut parexemple aussi bien être employée aux tâches domestiques, qu’aux activités de

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production possédées par ses employeurs, telles un commerce, un restaurant ou unmagasin de vêtements. Elle est aussi communément employée par plusieurs membresd’une même famille de propriétaires, ce qui entretient sa dépendance personnelle àcette famille. Il existe une diversité de pratiques, d’usages et de relations des servicesdomestiques, pour néanmoins une même représentation sociale des rapports de servicedomestique issus des rapports de dépendance et de subordination des foyers deplantation.

24 De nombreuses travailleuses domestiques que j’ai rencontrées pensent pour leur part

que leurs employeurs s’imitent les uns les autres, et qu’ils cherchent notamment àimiter les manières de faire qu’ils imaginent des Blancs. Elles savent qu’il faut avoir unebonne pour consacrer son statut de propriétaire ou son appartenance de classe, carelles font l’expérience du jeu de rôle que des employeurs donnent à voir pourmanifester l’exercice de leur pouvoir. Annabelle par exemple, une femme de laquarantaine, raconte par des images symboliques l’attitude de sa patronne quiappartient à la classe moyenne :

Annabelle : « Il faut qu’elle soit assise dans son fauteuil et qu’elle me demande « Vachercher ci ! Va chercher ça ! » Et moi, je dois courir chercher comme une esclaveet lui ramener dans la main qu’elle tend ! (Anabelle rit)23 ».

25 De même il fait partie du savoir des travailleuses domestiques que les nouveaux

résidents étrangers ont tendance, après quelques semaines d’acclimatation, à adopteravec leur bonne les mêmes pratiques que les Blancs afin de s’intégrer à ce groupesocial. Ils ajoutent par exemple de nouvelles tâches et des heures de travail non payéesau fil du temps.

26 Les rapports de service domestique établis dans les foyers de plantation d’autrefois ont

fourni un univers symbolique commun aux femmes employées comme bonnes et auxemployeurs de service domestique installés aujourd’hui, de manière temporaire oupermanente, à l’Ile Maurice. Les rapports de travail dans les emplois domestiques crééspar le « global smart country » s’élaborent à partir de cette construction socialecoloniale de la réalité. Le travail de service domestique avait autrefois pour fonction defixer les rapports de race fondés sur la différence de propriété dans les gestes des corpsdes membres servis et des membres servant des foyers de plantation. Il s’observeaujourd’hui un autre processus qui est celui de la « racisation du travail domestique »(Kergoat, 2009), par l’extension des rapports de race aux économies familiales desclasses moyennes et des nouveaux résidents étrangers. Les représentations desrapports de service domestique du passé sont mobilisées pour accomplir l’impératif detenir son rang, dans la hiérarchie socio-raciale sur le territoire mauricien. Ellesdonnent donc forme aux rapports de travail du service domestique au présent. Ellespeuvent également circuler dans l’espace transnational avec les outils modernes de lamarchandisation des femmes mauriciennes pour les tâches de service. Le sarcasme aveclequel les femmes employées comme bonnes observent ces logiques de classe, indiquetoutefois qu’elles remettent en cause la légitimité de leurs employeurs à exercer leurpouvoir dans l’espace domestique à l’image des rapports sociaux d’autrefois.

3. Dans le foyer de travailleuses domestiques

27 Les femmes employées dans les services domestiques sont aujourd’hui confrontées à la

fois à l’incertitude de la pérennité de l’emploi, aux représentations coloniales des

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rapports de travail de leurs employeurs et à la faible rémunération de leur travail, quiest légalement maintenue à un taux très bas pour que les classes moyennes puissentconsommer des services domestiques24. L’articulation de ces conditions de travailécrase les travailleuses domestiques sous les effets conjoints de l’exploitation ducontexte néolibéral et de la domination traditionnelle coloniale. Prendre pour objetd’analyse les foyers des travailleuses domestiques permet de rendre compte desconséquences de l’économie des services domestiques du contexte postcolonial etglobal sur les moyens de la reproduction des foyers de travailleurs. Il convient pourcela de considérer l’importance particulière du travail des femmes dans les servicesdomestiques pour la reproduction des foyers de travailleurs en contexte de récessionéconomique (Todd, 2009 ; Jacquemin, 2009) ou de désindustrialisation comme cela est lecas aujourd’hui à l’Ile Maurice. Le foyer, et plus largement l’espace d’habitat desfemmes employées comme bonnes, constitue également un site de relations sociales quis’organisent « loin de l’observation des puissants » (Brites, 2000). Cela m’a été donné àvoir du fait que les espaces d’habitat populaires des travailleuses domestiques (cités,villages autonomes, anciens camps de travailleurs) m’étaient a priori interdits d’accèsen tant qu’étrangère, européenne et blanche. On peut faire l’hypothèse que l’espaced’habitat autour du foyer des travailleuses domestiques soit investi de formes depréparations de la contestation à l’exploitation et à la domination du servicedomestique. Il s’agit d’étudier les formes spécifiques que prend cette contestation, dansle contexte historique de la plantation et dans le contexte présent de la prise en chargequasi-totale de la reproduction des foyers de travailleurs par les femmes.

28 La restructuration de l’activité sucrière depuis ces trois dernières décennies, ainsi que

le développement de l’industrie textile dans la Zone Franche employant en majorité desfemmes, ont non seulement concouru à la croissance du taux d’activité des femmes surle marché de l’emploi, mais également contribué à ce qu’elles deviennent de plus enplus les pourvoyeuses principales des ressources financières pour la reproduction deleur foyer (Ramtohul, 2008). La moitié des femmes rencontrées durant mon enquête deterrain sont les pourvoyeuses principales des revenus de leur foyer, soit parce que lepère de leurs enfants a quitté le foyer, soit parce qu’il est sans emploi ou dans unemploi moins rémunéré que le leur. L’exploitation du travail des mères seules sembleêtre une composante majeure de la phase de prolétarisation de la main-d’œuvre dansles sociétés de plantation (Collins, 2000) et de la phase des désindustrialisations. Lerevenu du travail des femmes dans les emplois domestiques créés dans le cadre dudéveloppement économique du « global smart country », est aujourd’hui essentiel à lasurvie des foyers de travailleurs vivant dans les quartiers d’habitat modestes.Cependant, le niveau de rémunération des services domestiques et les conditions desemplois domestiques actuels (à temps partiel, temporaires et en partie non déclarés),n’apportent pas les revenus suffisants pour que les femmes garantissent le maintien envie de leur foyer. Pour réunir l’ensemble des revenus nécessaires à la couverture desdépenses pour la reproduction des membres du foyer dont elles ont la charge25, ellessont alors contraintes de cumuler plusieurs travails rémunérés et divers systèmes definancement. Elles multiplient les emplois domestiques et de nettoyage, ellesdéveloppent des activités de vente de produits à destination des habitants de leurenvironnement proche (comme des travaux de couture ou des plats cuisinés), ellescontractent des crédits auprès de membres plus aisés de la communauté, elless’associent à d’autres personnes dans des systèmes d’épargne propres (les « sits »,

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formes de tontines) et parfois vendent des services sexuels aux hommes de lacommunauté.

29 La valeur que les femmes donnent à leur travail pour les employeurs de service

domestique n’est alors pas relative à la quantité et à la qualité du travail qu’elleseffectuent dans l’espace domestique d’autrui. Elle correspond plutôt à la justerémunération de leur travail qu’elles évaluent d’après le temps qu’elles lui ont alloué,dans l’objectif d’obtenir la part principale des ressources nécessaires à la subsistance deleur foyer. La mesure de la valeur financière de son temps de travail face à la menace dela survie de son foyer n’est pas un réflexe naturel. Elle obéit à une conception populairede la justice en matière de transaction économique qui a fait l’objet d’une définitionsociale et morale interne aux communautés organisées autour de leur subsistance(Scott, 1976). Les femmes employées comme bonnes rencontrées jugent que lesemployeurs qui ne paient pas le temps de travail qu’elles leur consacrent d’après lavaleur financière qu’elles ont défini selon leur éthique de subsistance, ne respectentpas leurs droits. Ce droit n’est pas relatif au dispositif légal instauré par l’Etat, mais àleur propre conception morale et institutionnalisée des ressources que leur travail doitprocurer pour le minimum de subsistance de leur foyer. Le non-respect de cette normesociale provoque le ressentiment et la colère des femmes vis-à-vis des usagers de leursservices, comme le montre par exemple cet extrait du discours de Shakti, mère de deuxenfants et unique pourvoyeuse des revenus de son foyer :

Shakti : « Je travaille six jours, pour 4000 roupies par mois. (…) Le temps que jecalcule, 4000 roupies six jours par semaine pour travailler, je compte ça fait 25roupies de l’heure. « Ah ben dites-moi Monsieur » j’ai dit, « dans 25 roupies qu’est-ce que je gagne ? » [Elle me regarde en colère comme si j’étais le monsieur enquestion]. Toutes les semaines vous faites vos courses ben votre employée elle n’apas le droit de faire ses courses ?26 »

30 L’origine sociale institutionnalisée de la valeur donnée par mes interlocutrices à leur

travail dans les emplois domestiques doit d’abord être recherchée dans les souvenirsd’enfance qu’elles relatent. Ceux-ci rendent compte de leur socialisation dans lacommunauté de subsistance des travailleurs des foyers de plantation. Les femmesrencontrées, qui sont aujourd’hui âgées entre 35 et 60 ans et employées des servicesdomestiques, ont pour la plupart travaillé depuis leur enfance afin de participer à lasurvie commune de leur foyer. Elles ont vécu les dernières heures du système deproduction des foyers de plantation qui impliquait que les enfants aident leurs parentsà partir de 9, 10 ou 12 ans à constituer les ressources du foyer. L’exposition du foyer à lamort du pourvoyeur principal des revenus précipitait souvent le travail des enfants. Lesnarrations des femmes qui ont vécu ces conditions traduisent une intériorisationprécoce de l’obligation à la fois matérielle et morale de travailler pour que tous lesmembres du foyer aient de quoi manger. La participation à la lutte commune pour lasurvie du foyer dès le plus jeune âge est évoquée par l’emploi du pronom « nous », quiunit l’ensemble des membres du foyer dans la conduite de cette action. La lutte pour lasurvie du foyer s’exerçait dans un continuum d’activités allant de la réalisation detravaux pour les propriétaires des foyers de plantation (dans les champs ou dans lesmaisons), à des activités de subsistance organisées en-dehors et de manièresocialement autonome des unités de production des plantations. Les femmes et lesenfants allaient notamment nourrir la vache de la famille avec du foin ramassé dans leschamps de canne, cueillir des fruits et légumes ou chercher du bois en petit groupe

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avec d’autres membres de la communauté des travailleurs, sur les terres despropriétaires.

31 D’après ces souvenirs d’enfance collectés, le rapport des travailleurs des foyers de

plantation aux propriétaires terriens était donc investi d’une norme sociale de ce queles premiers considéraient devoir s’obtenir en échange du travail pour les seconds. Ilsdevaient obtenir le minimum de la subsistance de leur foyer et de leur communauté parla rémunération en nature (logement, alimentation, frais de santé parfois) et par l’accèsnégocié à la terre pour les ressources de subsistance secondaire. Une partie de lasubsistance était organisée de manière relativement autonome des foyers deplantation, dans les relations sociales internes aux travailleurs où les femmes et lesenfants avaient un rôle primordial. Pour les besoins de la survie quotidienne, uneorganisation sociale dans les marges de plantation s’est donc instituée, avec ses proprescodes moraux, de façon alternative à l’organisation du travail imposée dans les foyersde plantation par les propriétaires terriens (Mintz, Price, 1992 ; Trouillot, 2002). Il enrésulte l’existence d’un « système de double valeur » observé dans d’autres sociétés deplantation (Trouillot, 1992) et qui perdure aujourd’hui. La valeur que les employeursdonnent au service domestique, pour leur statut dans la hiérarchie socio-raciale, sedistingue de la valeur que les femmes donnent à leur travail de bonne, pour garantir leminimum de subsistance à leur foyer. Ces deux systèmes de valeur entrent même enconflit.

32 L’accès progressif de l’ensemble des foyers de travailleurs des plantations au logement

indépendant depuis les années 1960, le passage à la rémunération exclusivementfinancière du travail et le rétrécissement des espaces des pratiques communautairesavec le développement intensif des zones résidentielles de luxe, notamment dansl’espace côtier investigué, ont conduit à réorganiser les moyens de la subsistance.Ajouté au fait que les femmes prennent désormais en charge la quasi totalité de lareproduction du foyer, il y a de leur part un sentiment de perte de la garantie duminimum de subsistance devant s’obtenir de leur travail. Le principe de réciprocité quitenait le rapport des travailleurs aux propriétaires des foyers de plantation est parconséquent rompu. Avec les nouvelles conditions des emplois domestiques du contexteéconomique du « global smart country », les femmes ne peuvent plus s’acquitter de leurobligation morale de prendre en charge le maintien en vie de leur foyer. L’enquêteethnographique menée dans l’espace côtier du Sud-Ouest mauricien m’a permis dedécouvrir que des femmes employées comme bonnes habitant cette zone, étaient entrain de produire leur propre code moral des rapports de travail dans les servicesdomestiques. Ce code moral s’appuie sur la règle explicitée en créole qui consiste à «faire ses conditions » avec les employeurs. « Faire ses conditions » veut dire agir sur sarémunération (à la hausse), sur ses tâches (refuser de faire la cuisine notamment) et surson temps de travail (refuser de travailler l’après-midi et le samedi en particulier).Cette pratique est réalisée dans le face à face aux employeurs, au moment del’embauche et entretenue durant la relation de service. Apparemment individuelle, ladéfinition de ses conditions de travail dans les emplois domestiques résulte néanmoinsd’une action collective. Elle s’organise à l’occasion des conversations que les femmesont entre elles, dans les espaces informels de rencontre dans leurs lieux d’habitat : auxcoins de rue, dans les petites boutiques, sous les porches des maisons et aux abords deslieux de prière. L’entretien et la recomposition de réseaux de solidarités entretravailleuses ancrés dans l’espace côtier, contiennent les moyens de redéfinir les

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conditions de travail des emplois domestiques sur la côte. L’organisation économique etsociale qui se passe dans les espaces d’habitat des travailleuses domestiques participeainsi à la dynamique des rapports de service domestique contemporains.

33 L’analyse de la situation économique du foyer des travailleuses domestiques, de la

valeur subjective qu’elles donnent à leur travail et de leurs pratiques sociales pourredéfinir leur conditions de travail dans les emplois domestiques, permet de rendrecompte d’un autre effet de l’appauvrissement des femmes que le processus desmigrations des femmes du Sud vers les emplois domestiques des pays du Nord (Federici,2002). Dans les localités qu’elles habitent de manière enracinée, les femmes dont lasurvie du foyer est menacée contribuent à modifier leurs conditions de travail. Lesemployeurs qui estiment que ces femmes habitantes de la côte commencent à prendretrop de pouvoir dans les rapports de travail, ont alors tendance à embaucher desfemmes venant d’autres régions de l’île qui n’ont pas encore les moyens de s’appuyersur des réseaux de solidarité dans leur contexte local de travail. Il est donc importantde prendre en compte la part d’action que des groupes de femmes, si petits soient-ils,ont dans les rapports de service domestique dans le contexte de la destruction desmoyens de la reproduction de leur foyer. Cela permet de comprendre la façon dont lesmarchés du service domestique sont réorganisés par le recours à la migration de lamain-d’œuvre, de façon à mettre un frein aux diverses formes d’organisation politiquedes travailleuses domestiques.

Conclusion

34 L’Ile Maurice constitue un cas d’étude de l’économie contemporaine des services

domestiques d’une société de plantation dans la mondialisation. Il souligne le processusde marchandisation et d’accaparement du temps des femmes pauvres d’une société deplantation dans les chaînes transnationales de commercialisation, de vente et deconsommation des produits de l’économie du tourisme et du développementimmobilier qui relient les « global cities » entre elles. Le cas mauricien montre que ceprocessus généré par la politique économique néolibérale s’articule auxreprésentations des rapports de service domestique qui continuent de prendre pourréférence la hiérarchie socio-raciale élaborée dans les foyers de plantation. L’analysedu point de vue de travailleuses domestiques d’après la situation de leur propre foyer apermis de souligner la façon dont leur approche subjective du travail et des rapports detravail dépendait à la fois de la mémoire des institutions culturelles créées par lestravailleurs dans les marges de la plantation et du contexte de la transformationviolente des moyens de la subsistance des foyers que les femmes prennent de plus enplus en charge seules. De nombreux points communs peuvent s’observer avecl’économie des services domestiques d’autres sociétés de plantation.

35 Les résultats obtenus encouragent à poursuivre les recherches qui interrogent la place

de la main-d’œuvre féminine issue de la classe des travailleurs des sociétés deplantation dans l’économie globale des services domestiques contemporaine. Il sepourrait que cette main-d’œuvre soit la première à faire l’objet des modes plurielsd’exploitation transnationale de la force de travail et du corps-outil de travail desfemmes appauvries dans le contexte des restructurations économiques et desdésindustrialisations. Tout comme la main-d’œuvre féminine mauricienne a étéexploitée dans les services domestiques en Angleterre et en France, dans les pays du

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Golfe et maintenant sur place dans le « global smart country », d’autres populationsféminines des anciennes sociétés de plantation ont été exploitées par de multiplesfaçons dans les marchés transnationaux des services domestiques : dans les anciennesmétropoles coloniales d’abord, dans les zones franches des pays émergents du Sud etdans les sociétés de plantation elles-mêmes ensuite. Le caractère pluriel del’exploitation transnationale des femmes de la classe des travailleurs des sociétés deplantation est à la fois le produit d’une politique économique qui avance masquée, d’uncontexte productif national des économies de plantation qui menace fortement lareproduction des foyers des travailleurs et d’un univers symbolique commun, diffusépar les élites hyper-mobiles, de l’importance d’ « avoir » ces femmes pour bonne afin deconsacrer son statut socio-racial (Foote, 2015).

36 Les outils d’analyse employés pour conduire cette étude permettent enfin de rendre

compte de la production dynamique des rapports de service domestique dans lecontexte contemporain. L’analyse des représentations du passé et du présent desrapports de service domestique de bonnes et d’employeurs, permet de rendre comptede la modernité de la colonialité du pouvoir (Quijano, 2007) dans les procédésd’exploitation néolibérale du temps des femmes appauvries. L’examen de la politiqueéconomique et du point de vue de travailleuses domestiques vis-à-vis de la situation deleur propre foyer conduit à réinscrire les relations entre femmes de l’espacedomestique dans des rapports de classe, qui sont relatifs aux rapports de race entretravailleurs et propriétaires terriens dans le contexte étudié. On ne peut désormais plusécarter l’hypothèse que l’espace domestique de service peut aujourd’hui, partout dansle monde, devenir un site majeur du conflit de classe. Cela pourrait dépendre desréseaux de solidarité dans lesquels les travailleuses s’inscrivent et de la façon dont ellesinterpréteront l’appauvrissement de leur foyer, l’écart grandissant des richesses avecleurs employeurs et la représentation que ceux-ci ont de la relation de service.L’appauvrissement des femmes et l’intensification des services domestiques sont desphénomènes dont l’interconnexion est suffisamment démontrée aujourd’hui pour ques’affirment les recherches qui placent les travailleuses domestiques au centre del’histoire des rapports et de la lutte des classes (Todd, 2009 ; Brasão, 2012 ; Nadasen,2016).

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NOTES

1. Cette recherche a été conduite dans le cadre du projet ERC Advanced Grant « The Colour of

Labour. The racialised lives of migrants » dirigé par Cristiana Bastos à l’Institut des Sciences

Sociales de Lisbonne. Je souhaite remercier Cristiana Bastos, ainsi que mes collègues Irene Peano

et Marta Macedo pour leur relecture qui m’a permise d’enrichir l’analyse développée dans cet

article.

2. 40,18% des femmes actives sont dans le travail agricole et 27,15% des femmes actives sont dans

les services domestiques (housekeepers, cooks, maids and related workers) d’après le Recensement de

la population de 1962, volume 2, Statistics Mauritius. Les proportions ont été calculées en

mobilisant les catégories des « occupation groups » de l’International Standard Classification of

Occupation mobilisé par les statistiques mauriciennes.

3. Avec une réduction de moitié de leur proportion dans le secteur manufacturier de 2000 à 2011 :

42, 69% des femmes en emploi sont dans le secteur manufacturier en 2000, contre 22,24% en 2011.

4. Le recensement de la population de 2011 mobilise les catégories de l’International Standard

Industrial Classification (ISIC), Révision 2, de l’Organisation International du Travail (OIT). La

section des « activities of household as employers » de cette révision récente de l’ISIC permet

d’avoir des données précises sur l’emploi domestique.

5. J’ai utilisé les données de Statistics Mauritius sur l’emploi du Continuous Multi-Purpose

Household Survey de 2018 mobilisant les catégories de l’ISIC. Le dernier recensement de la

population date de 2011.

6. 37,2% des femmes employées des « elementary occupations » (catégorie statistique 9 de l’ISIC

qui rassemble les emplois les moins payés), sont dans les « activities of household as employers »

au recensement de la population de 2011 (contre 13,58% des femmes dans le travail agricole et

18,22% des femmes dans le secteur manufacturier).

7. Il s’agit d’une version réaménagée de l’IRS de 2016.

8. Selon un article de L’Express du 26 novembre 2019, de Villen Anganan et Lindsay Prosper,

« IDE : plus qu’urgent de diversifier… », https://www.lexpress.mu/article/365999/

investissements-directs-etrangers-plus-quurgent-diversifier.

9. Board of Investment Mauritius (2015), Smart City Scheme Guidelines, https://

www.edbmauritius.org/schemes/smart-city-scheme/, p.6.

10. C’est la définition employée par le représentant d’un promoteur immobilier rencontré dans le

cadre du Forum Expats à Paris en juin 2019. Ce Forum a été organisé à Paris les 12 et 13 juin 2019

par Courrier International et Le Monde, pour aiguiller des jeunes dans leur recherche d’emploi à

l’étranger. 7 groupes mauriciens étaient présents pour fournir essentiellement du conseil

immobilier à des Français désireux d’investir dans la propriété à l’Ile Maurice.

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11. Lors de ce Forum, un représentant de l’EDB a présenté en grande conférence une carte de l’Ile

Maurice quasiment vierge, en ajoutant que tous ces espaces vierges étaient potentiellement

constructibles.

12. Voir l’exposé du Mauritius Leaks, 23/07/2019, https://www.icij.org/investigations/

mauritius-leaks/treasure-island-leak-reveals-how-mauritius-siphons-tax-from-poor-nations-to-

benefit-elites/.

13. Board of Investment Mauritius (2016), The Property Development Schemes Guidelines,

http://www.edbmauritius.org/.

14. Depuis 2012, les enquêtes statistiques sur le logement et sur l’emploi, les « continuous

multiple households surveys », ont abandonné la catégorie de section industrielle des « activities

of household as employers » de la dernière révision de l’ISIC, pour lui préférer celle illisible des

« other services ».

15. On note également que le sujet du service domestique à l’Ile Maurice n’est pas spécifiquement

traité par les études mauriciennes en sciences sociales.

16. Au Forum Expats de Paris déjà évoqué, le représentant d’un promoteur immobilier a

notamment fait la publicité des « services à la Mauricienne » dans son discours pour attirer de

potentiels acheteurs d’immobilier.

17. La rémunération horaire des bonnes ne dépasse guère le plafond des 100 roupies pratiqués

(2€50), ce qui équivaut par exemple à un aller-retour en bus vers la ville pour les femmes qui

habitent sur la côte à Tamarin et Rivière Noire.

18. Selon le recensement de la population de 1952, 22,9% des foyers habitaient dans des

logements comme free tenant.

19. Entretien avec Solange, Tamarin, 6 février 2019.

20. La bonne loge désormais à son propre domicile.

21. Household Budget Survey de 2017, p. 7, Statistics Mauritius.

22. Entretien avec Uma, Rose Hill, 30 août 2017.

23. Entretien avec Annabelle, Curepipe, 17 juillet 2017.

24. Un salaire minimum a été instauré depuis 2018. La rémunération horaire minimum

correspond à 41,7 Roupies à cette date, soit l’équivalent d’un prix de ticket de bus pour aller en

ville depuis les espaces côtiers par exemple.

25. Elles ont souvent des enfants à charge, qui ne sont pas nécessairement les leurs mais peuvent

être les enfants d’une sœur ou d’un cousin.

26. Entretien avec Shakti, Tamarin, 2 février 2019.

RÉSUMÉS

Cet article interroge la forme spécifique d’exploitation des femmes dans les services domestiques

aujourd’hui en portant le regard sur la place de la main-d’œuvre féminine issue de la classe des

travailleurs des sociétés de plantation dans l’économie globale des services domestiques. Il étudie

pour cela le cas de l’intensification des usages des services domestiques à l’Ile Maurice dans le

contexte de la désindustrialisation de l’île et de son insertion dans les réseaux transnationaux des

global cities. A la différence des approches classiques du service domestique dans l’économie

domestique et la reproduction sociale du foyer usager des services, la démarche de recherche

explorée examine le service domestique comme étant d’abord un facteur de production du

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développement économique envisagé par l’Etat postcolonial mauricien. Trois unités d’analyse

sont articulées pour traiter des données empiriques collectées par une enquête de terrain de huit

mois : le contexte productif national contemporain, les rapports de service domestique passés et

présents d’après les représentations de bonnes et d’employeuses et le propre foyer de

travailleuses domestiques. Ces outils d’analyse permettent de mettre en évidence la modernité

des références coloniales du pouvoir qui sont mobilisées par les procédés d’exploitation

néolibérale du temps des femmes dans les services domestiques, et la façon dont ce travail est

devenu un site majeur du conflit de classe. L’article entend contribuer à la littérature sur les

formes transnationales d’exploitation dans les services domestiques et sur l’histoire des rapports

de classe dont les travailleuses domestiques font pleinement partie.

INDEX

Palavras-chave : service domestique, plantation, global city, rapport social, économie morale,

Ile Maurice

AUTEUR

COLETTE LE PETITCORPS

Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa, Portugal, lepetit.colette [at] wanadoo.fr

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“Nós, as meninas da minha família,sempre vamos muito cedo para lá”Trajetórias migracionais, redes sociais e espaços de vida das domésticasmigrantes

Guélmer Júnior Almeida de Faria, Maria da Luz Alves Ferreira e AndreaMaria Narciso Rocha de Paula

1. Introdução

1 O recrutamento de domésticas é uma questão que merece atenção na sociologia do

trabalho e na sociologia das migrações. O trabalho doméstico constitui fonteempregadora da maioria da força de trabalho das mulheres migrantes, constituindoverdadeiros “regimes de cuidados” (Lutz, 2017). A migração campo-cidade no Brasil éuma das formas de provisão do trabalho doméstico. E, internacionalmente, asmigrações para as tarefas do care1 (cuidado) são o argumento central para refletir amigração das mulheres.

2 As trabalhadoras domésticas brasileiras iniciam sua carreira cedo, com 12, 13 anos de

idade. Em geral, começam trabalhando em sua própria cidade ou em cidades vizinhas,no interior, para, depois, chegarem até as capitais. Mesmo muito jovens, quase semprepassam por diversas residências, comprovando a alta rotatividade da ocupação. Namaioria dos casos, a iniciação na atividade dá-se através de contatos primários : umaamiga que já está na cidade grande ou um empregador originário da mesma localidadeda jovem que visita sempre essa cidade, ex-patroas que acabam sendo uma espécie deintermediárias, criando redes de contatos (Motta, 1977). E uma que vai, leva outra, queleva outra e constrói a rede.

3 Percebe-se que a primeira mulher que migra inaugura a entrada de outras mulheres

neste nicho de mercado de trabalho. A partir da demanda das “ amigas da patroa »,passa-se a recrutar e alocar mulheres de suas comunidades rurais. E, assim, “ umamigrante traz a outra » e o ciclo das redes de relações sociais para o trabalho doméstico

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efetiva-se e mantém-se. Trata-se de um trabalho geracional e vinculado às estratégiasde reprodução de muitas famílias.

4 O acesso ao trabalho doméstico, embora aparentemente desvalorizado, é entendido

como de fácil acesso, mas este não o é. O caráter fragmentado, intermitente, imediato epessoal do trabalho doméstico (Fernandez, 2018) traz implicações nas relações íntimasdo trabalho, por ser exercido em âmbito domiciliar, caracterizando-o por ser complexoe adquirir contornos para além do mercado habitual do trabalho. Sua diferença passapor componentes tais como : indicação por confiança, confiança, cooperação e ajuda.

5 As domésticas representam, segundo Nori, Bernardino-Costa e Fleysher (2011 : 16), “(...)

aproximadamente sete milhões de trabalhadoras brasileiras que menos têm direitos emrelação a qualquer outra categoria profissional no país. E ainda, este tipo de trabalhoreforça uma guetização profissional das mulheres em atividades ligadas aos cuidados,atividades essas muitas vezes entendidas como uma extensão das qualificações“ naturais » das mulheres.”

6 Lugones (2008) traz boas reflexões para pensar que essas domésticas passam por

distintas manifestações de discriminações que se intersectam, entre raça, classe, gêneroe sexualidade, para entender a preocupante indiferença que os homens demonstramem relação à violência que sistematicamente infringem essa categoria. São mulheresvítimas da colonialidade do poder e, inseparavelmente, da colonialidade de gênero.

7 Os estudos de gênero almejam para além de descrever, interpretar, indagar,

compreender e explicar as configurações e as dinâmicas que determinam a legitimidadedo lugar social ocupado por homens e mulheres, através, de seus conectados códigos deconduta, práticas e normas. Também, como assinala Fernandez (2018 : 525), “(...)buscam desvelar as relações de poder que vêm sendo historicamente estabelecidas, quese exprimem nos processos de dominação dos indivíduos do gênero masculino sobre osdo gênero feminino”, a partir dessas configurações e dinâmicas de normas, condutas eexperiências.

8 O gênero como construção social, que constitui as expectativas e expressões do

masculino e do feminino de uma sociedade, influencia o modo como se reproduzem asubordinação e a desigualdade, afetando especialmente as mulheres migrantesdomésticas, pela sua condição de mulheres, trabalhadoras e de migrantes, e tambémpelo pertencimento de classe e de sua origem étnica (Magliano, 2007 : 4, traduçãonossa).

9 A mulher migrante é considerada como força de trabalho competente para realizar o

trabalho doméstico remunerado, sendo que se trata de uma atividade socialmentepouco valorizada, invisível, pouco qualificada, assumida como algo inerente à condiçãofeminina, frequentemente realizada no âmbito da economia informal, sendo asempregadas domésticas frequentemente privadas de acesso aos cuidados de saúde,sociais e de proteção contra o despedimento em caso de maternidade, bem como docontrolo pelas autoridades responsáveis pela inspeção no trabalho (Ramos, 2014 : 429).

10 Essas mulheres, em sua maioria jovens, veem a possibilidade de garantir a reprodução

de suas vidas e de suas famílias e da permanência no meio rural através dasuplementação de renda, geralmente, com as contribuições de trabalhos temporáriosnas cidades próximas. Esse trabalho se concatena em atividades ligadas ao lugar socialque essas mulheres ocupam na sociedade, tais como : cuidados, diaristas, domésticas,acompanhantes, babás, etc.

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11 Por um lado, o contexto atual diante da regressão dos direitos trabalhistas, mesmo com

a regulamentação do trabalho doméstico no Brasil, a agenda reformista e a diminuiçãode acesso a programas sociais têm comprometido a situação dessas domésticas,obrigadas a aumentar a carga horária. O reconhecimento da categoria é algo aindaincipiente, além do individualismo e da estratificação social. Confinam-se em nichoslaborais pouco valorizados e, naturalmente, femininos, revelando não só o carátersexista, mas também classista da situação das domésticas migrantes. Por outro lado, asredes sociais fortificam-se, pois é necessário mais apoio e maior compreensão dofenômeno pelas mulheres. Portanto, o momento piora e afrouxa as relações detrabalho, ao mesmo tempo que as redes fortalecem as relações de solidariedade e ajudamútua.

12 Neste artigo, pretende-se analisar as trajetórias migratórias e as redes sociais e,

especificamente, a mobilidade espacial na vida de domésticas migrantes oriundas decomunidades rurais e suas relações pessoais que servem para dar continuação aoprocesso migratório, no sentido de conseguir informação, escolher o destino e inserir-se no mercado de trabalho da sociedade de destino. As migrações podem ser produzidaspor relações muitas vezes imaginárias sobre o lugar de destino, os “ espaços de vida »2,para tentar entender como esses processos se articulam e como se dá a formação dessasredes. Para Daniel Courgeau (1988), o conceito serve para pensarmos o indivíduo e suasrelações com o espaço, dando ênfase na dimensão coletiva (pertencimento a um grupo,a uma comunidade, etc.). Na visão de Assis (2003), as mulheres surgem como os atoresque conectam os dois lugares – aqui e lá – por meio das redes sociais. Essas redes sociaissão formadas pelas normas do parentesco, gênero e de geração. De tal modo, asmulheres valem-se muito mais da ajuda fornecida por parentes e são elas que tambémarticulam as redes entre os demais domicílios. Diante de tais evidências, este estudopretende responder às seguintes questões-problema : porque as redes sociais sãoimportantes nos processos migratórios ? Como o espaço de vida condiciona aexperiência migratória ? Quais são as trajetórias migracionais dessas mulheresmigrantes ?

13 Para atingir o objetivo proposto, procede-se, inicialmente, as considerações

metodológicas, com uma análise situada da área de estudo que o trabalho propõe. Emseguida, é realizada uma revisão de literatura sobre redes sociais e migração feminina,contribuindo para um maior entendimento e diálogo entre as redes de domésticasmigrantes. Na próxima seção, propõe-se compreender as trajetórias migracionais e osespaços de vida das domésticas migrantes pesquisadas. Por fim, são tecidas asconsiderações finais para explicar como as redes sociais são importantes para amigração feminina.

2. Considerações metodológicas

14 O enquadramento teórico-metodológico sobre as migrações internas no Brasil foi

embasado entre as correntes migratórias e o desenvolvimento econômico. Após oprocesso de industrialização/urbanização, diversos autores têm sinalizado para aslacunas desse modelo analítico. Este estudo é procedente de uma abordagem qualitativaem que o fenômeno migratório é visto como social, expressando suas manifestações noprocesso social, econômico e político, ao deslocar-se para outra região. Será interpolado

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com dados secundários do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)de 2010.

15 O uso de metodologias qualitativas, tais como entrevistas semiestruturadas, etnografias

multissituadas e observações diretas são ferramentas valiosas para a produção de dadossobre o fenômeno da mobilidade humana, capazes de fomentar interpretações e odesenvolvimento de conceitos fundamentados em pesquisas empíricas (Maciel,Almeida, 2018).

16 Consideramos que pesquisar é incorporar-se a um diálogo de saberes e a combinação de

análises provenientes de diferentes fontes de dados primárias e secundárias viabilizou aapreensão do fenômeno social de interesse de forma dinâmica e articulada. Além disso,contribui para a realização de estudos migratórios a partir da aplicação de métodos econceitos alternativos, como espaço de vida, redes sociais e trajetórias. Embora asfontes de dados dos censos demográficos e a Pesquisa Nacional por Amostra deDomicílios (PNAD) sejam de 2010, na verdade, são dados de migração dos anos 2000.Busca-se, assim, atenuar a “ censo-dependência » e empregar dados mais recentes combase em técnicas qualitativas.

17 O enfoque no “ espaço de vida » pode modificar a forma como entendemos a dinâmica

demográfica, indo além do binômio moradia-trabalho e buscando uma melhorcompreensão da complexidade da vida atual. As ferramentas demográficas, em especialas de base censitária, já não dão conta de mensurar e analisar a complexidadecontemporânea (Marandola Júnior, Mello, 2005). Por isso, sentimos a necessidade deestudar as trajetórias migratórias, definidas por Giusti e Calvelo (1999 : 30, traduçãonossa) como “(...) o conjunto de movimentos protagonizado por um indivíduo ou grupofamiliar. Implica todas as mudanças de residência em que permaneceu por um períodoigual ou superior a um ano”.

18 Serão sistematizados os dados qualitativos recuperados pelas entrevistas, as mudanças

nas relações sociais e familiares, os impactos para as condições profissionais ou detrabalho, investigando, também, a forma como as migrantes constroem suasexperiências nos contextos de vida e trabalho (Maciel, Almeida, 2018).

19 No que tange aos dados secundários utilizados nesta pesquisa, foi selecionado o Censo

Demográfico de 2010, disponibilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE). A variável data fixa delimita o município cinco anos antes do levantamento. OCenso é uma fonte de informação basilar sobre as migrações no Brasil, pois forneceinformações imperativas para avaliação da condição migratória do(as) migrantes.

3. Características da região em análise

20 A pesquisa foi ancorada pela observação direta e concatenada à realização de

entrevistas semiestruturadas com seis mulheres residentes nos municípios de Mirabelae São Francisco/ MG, localizados na Mesorregião Norte de Minas Gerais-Brasil. O estadode Minas Gerais foi dividido em 12 Mesorregiões e em 66 Microrregiões. Essesmunicípios fazem parte da Microrregião de Montes Claros e Januária, respectivamente.A escolha dessas localidades deu-se em razão de fazer parte do projeto “Do sertão paraoutros mundos” : as redes de relações sociais nos processos migratórios para o trabalhodo/no Norte de Minas Gerais, financiado pela FAPEMIG3 e coordenado pelo grupo depesquisa OPARA-MUTUM/ UNIMONTES/ CNPq.

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21 O Norte de Minas Gerais, conhecido também como os Gerais4 na obra de João Guimarães

Rosa (1957), fica na região Sudeste do Brasil, área mais rica e industrializada do país.Porém, os índices de desenvolvimento humano são os mais baixos do estado eequiparados aos da região Nordeste do país. É conhecido como Região Mineira do Norte,por sua inclusão em benefícios públicos oriundos do Nordeste, e também conhecidocomo o “ sertão de Minas », ou seja, longe do litoral, da urbanização e da aclamadamodernização. Portanto, muitas políticas foram implementadas na região, consideradavazia, sem considerar suas populações locais (Paula, 2003). Destacam-se as políticas dedesenvolvimento advindas da criação da Superintendência do Desenvolvimento doNordeste (SUDENE)5, a ocupação e expansão da pecuária bovina extensiva e adisponibilidade de terras livres e os novos projetos de desenvolvimento, calcados naexploração de recursos naturais, reflorestamento e industrialização. Com a intensaintervenção do Estado nas políticas locais, várias mudanças surgiram, tanto nas zonasrurais, como nas cidades brasileiras médias. É, assim, o desenvolvimento do capitalismoe a intensificação do processo de industrialização via urbanização que tecem osmeandros das migrações internas no Norte de Minas Gerais.

22 Outra questão, sempre pontuada na região, é a crise hídrica. Fonseca (2015 : 94) diz

que : “(...) ao longo dos tempos, políticas públicas foram implementadas com o intuitode amenizar o baixo crescimento econômico dos municípios do norte de Minas, emfunção da irregularidade pluviométrica, que ocasionou secas prolongadas e o flagelo demuitas famílias”. De fato, a questão da água no semiárido mineiro está vinculada aosdiscursos e práticas hegemônicos que desqualificam as potencialidades locais, o queacaba gerando um círculo vicioso de pobreza, miséria e expulsão. Muitas políticas dedesenvolvimento são calcadas na questão hídrica, valendo-se desse modelo de projeto,sem considerar a realidade e suas especificidades. Portanto tornam-se políticasdesenvolvimentistas pensadas de fora para dentro, sem especificidades e parceira comos agentes locais.

23 Assim, temos políticas públicas de desenvolvimento regional que se pautam desde o

acesso a água até a agricultura familiar, sem, contudo, ocorrer uma real transformaçãoda lógica econômica baseada na convivência e nos conhecimentos de seus povos emodos de vida. No contexto, Batista (2010) chama atenção programas de transferênciasde renda, imprescindíveis para a permanência de famílias no meio rural.

24 O modelo de “ desenvolvimento », na visão de Fonseca (2015), adotado para a região,

está baseado no desmatamento, carvoejamento, monocultura e reflorestamento,promovendo a perda da biodiversidade regional e ameaçando a reprodução social dapopulação nativa. Esse modelo provoca a expulsão da população local e incrementa odeslocamento das famílias rurais para os centros urbanos.

25 As migrações fazem parte do histórico da região. Nas décadas de 1950, 1960 e 1970,

muitos norte-mineiros deixaram a região para o “ sul maravilha », participando doprocesso de urbanização e industrialização do país, como mão-de-obra. No destino,pode-se perceber, na década de 1990, de acordo com Baeninger (1999), um fluxobastante intenso de nordestinos para o interior e para a Região Metropolitana de SãoPaulo, Paraná e Minas Gerais. Já as migrações de retorno aconteceram em direção aoNordeste e ao Estado mineiro. Essas migrações de retorno, em parte, explicam osprocessos migratórios da região Norte de Minas, onde a reprodução social na origem égarantida no destino. Através do trabalho, muitas famílias têm lógicas próprias de

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vivenciar esses tempos da migração. O calendário anual é feito de modo a conjugar otrabalho e a vida. Metade do ano é “ rural » e a outra metade é “ urbana ».

26 Assim, como um traço característico da paisagem do norte de Minas Gerais, essa

mobilidade espacial é também parte acessória da dinâmica populacional, como traço dacultura local. Isso se torna uma marcante característica da parte Norte do Estado deMinas Gerais, que não é específica apenas dessa região, mas é um fenômeno bastanteacentuado, que corresponde à intensa mobilidade espacial, marcada pela saída dapopulação rural de seus locais de origem e causadora do “ esvaziamento populacional »(Costa et al., 2008).

27 Assim, quando falamos desse cenário, as práticas, seus significados e seus sentidos, vão

depender das unidades familiares. Importante ressaltar que a mobilidade entre rural eurbano na região tornou-se também uma forma de resistência dos povos nativos. Aomigrar apenas um membro da família, é possível a garantia da permanência do rural,na terra familiar. Muitas mulheres migrantes fazem parte dessa estratégia dereprodução rural, embora, nas idas e vindas entre cidade e campo, muitas fiquem nacidade e, como já dito, levam outras mulheres ou toda a família nuclear. Mas, naessência, trata-se de um fenômeno coletivo, vivido e vivenciado por grande parte dapopulação que habita o espaço do Norte de Minas Gerais.

4. Referencial teórico

4.1. Redes sociais, gênero e a migração feminina

28 Nesta seção, propõe-se um diálogo com a literatura para melhor entendimento desses

processos. Na literatura sobre os novos paradigmas interpretativos das migraçõescontemporâneas, as redes sociais têm ocupado importante debate. Igualmente, quandose analisa pelo viés do gênero, as redes sociais configuram-se como importanteobliquidade teórica para pensar as mobilidades femininas em contraposição às teoriasdas escolhas racionais.

29 Teixeira (2015) indaga-nos a pensar como os migrantes são tratados como uma massa

universal de sujeitos heterossexualizados e sem distinções de gênero, que migramapenas por questões econômicas. Pois, ser mulher, doméstica e migrante imbrica-se emser migrante para além das necessidades econômicas. Assim, devem-se privilegiarestratégias de reprodução da vida dessas trabalhadoras domésticas migrantes, queestão calcadas em redes sociais das migrações.

30 No Brasil, de acordo com Assis (2003), os estudos de redes sociais têm sua tradição

ligada aos estudos de migração interna, descrevendo o longo percurso dos movimentosmigratórios do Nordeste para São Paulo e a rede de relações que envolviam. Os estudosanalisam a formação e a consolidação das redes no caminho do campo para a cidade,como no estudo de Durham (1984).

31 Ao atrelá-lo aos estudos sobre migração das mulheres, Catarino e Oso (2000) evidenciam

que o trabalho doméstico nas grandes cidades tem se nutrido, tradicionalmente, emdiversos contextos geográficos e temporários, de mulheres jovens provenientes domeio rural. O estudo que tem abordado a migração feminina e o trabalho domésticocentra-se nos movimentos internos e no papel do trabalho doméstico como práticadistinta para as classes que podem pagar por ele. Isso, na visão da doméstica

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tradicional, que convive com os empregadores, mantém as relações de trabalho,paternalistas, com isolamento social, a duras e pesadas condições de trabalho e vida.

32 Nesse sentido, identifica-se que as motivações individuais, as relações familiares, a

origem social e cultural, as interações dentro e fora do grupo social, as referências destatus associadas à profissão, no caso aqui, das domésticas, condição de migrantes, oambiente urbano presente e o passado, num marco de relações sociais de gênero,designam um lugar social à trabalhadora doméstica migrante e apresentam-se comoelementos que concorrem para a produção do espaço das migrantes. Os fluxosmigratórios, na visão de Ramella (1995 : 48, tradução nossa), amparam-se emimportantes e bem arranjadas redes de migrantes, definidas como um “tecido derelações interpessoais em que os indivíduos foram imersos – em tempos e espaçosespecíficos – e entrelaçados em torno de si mesmos.”

33 As redes sociais emergem, segundo Assis (2003 : 209), “(...) em decorrência do próprio

desenvolvimento desse processo migratório e das conexões que passam a serestabelecidas entre os locais de destino e origem dos migrantes. As redes sociais foramse configurando e são importantes para podermos desenhar o fluxo e compreendercomo se articulam.”

34 Fazito (2002) afirma que, historicamente, os processos migratórios parecem se originar

e se organizar através das redes familiares (laços de consanguinidade e afinidade), queoferecem o apoio social (através dos vínculos afetivos e das normas estatutárias),instituído segundo as regras de reciprocidade, de acordo com a natureza social dafamília. Embora estudiosos da demografia da família questionem-se sobre a modificaçãodas funções de apoio social atribuídas às famílias ao longo da história, pode-se dizerque, de uma forma ou de outra, os arranjos familiares desempenham intrinsecamente afunção efetiva de suporte social de seus membros.

35 Truzzi (2008 : 207) afirma que : “(...) é por meio das redes que são veiculadas

informações e opiniões que condicionam a favor da emigração. As redes sociais,geralmente de parentesco, amizade ou mesmo religiosas, são fundamentais paraexplicar a chegada ao destino, sobretudo porque elas ajudam a reduzir o custopsicológico e econômico da emigração.”

36 Para Piselli (1998), as redes sublinham a complexidade e o entrelaçamento das esferas

informais e formais da economia, a importância das variáveis sociais através das quaisse desencadeia o processo econômico e, ainda, as inter-relações entre as unidades deprodução, instituições, território e grupos étnicos. Defrontamo-nos, assim, com espaçosmúltiplos de trocas, definidoras de situações de igualdade, de amizade e de “ circuitosde confiança ».

37 No entanto, quando se analisa pelo viés do gênero, Hagan (1998) demonstra que

variação na estrutura das redes sociais influencia diferentemente a adaptação dehomens e mulheres. Enquanto os homens se inserem em uma rede de controle daorganização social do processo de trabalho, as mulheres submetem-se essencialmenteao trabalho doméstico e, em geral, moram no emprego. Assim, as redes sociais dasmulheres giram em torno de redes fechadas ou encapsuladas. Essa situação acaba porinfluenciar a busca e a indicação de trabalho, bem como dificultar a mobilidade dotrabalho, subjugando as trabalhadoras domésticas migrantes em um eterno refúgio,que é o trabalho doméstico.

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38 Como exemplifica Lisboa (2007), as categorias de modalidades do trabalho doméstico –

domésticas externas, mensalistas, faxineiras ou diaristas –, geralmente, são compostaspor mulheres pobres, com filhos menores, morando nas periferias das grandes cidades,muitas vezes sem creche ou escolas em tempo integral para seus filhos. É nessemomento que as redes de apoio se fazem presentes, garantindo acolhimento eestabelecimento no trabalho na cidade, o que, segundo Neto e Nazareth (2012) muitasvezes, são sua única forma de articulação com o mercado de trabalho, mesmo que ovivam de forma irregular e informal, sem as garantias previstas em lei. Atualmente, nãooferecer alojamento para as empregadas é uma maneira de cortar gastos para a classemédia.

39 A teoria das redes sociais, de acordo com Piselli (1998 : 110), “(...) com base nas

respectivas redes relacionais, reconstroem o tecido das relações sociais e econômicas,as trajetórias e os canais da mobilidade social, bem como as dinâmicas de conflito emudança”. Essa rede de relacionamentos é caracterizada por laços fortes e múltiplosque restringem cada mulher migrante a um intercâmbio constante de dinheiro,serviços, informações e apoio moral. As protagonistas desse sistema de relações nãoveem a imigração como uma ruptura com seu mundo de origem. As redes encapsuladas(fechadas em si), segundo Decimo (1998), em um estudo sobre mulheres migrantessomalianas, em Nápoles, na Itália, percebeu que a conduta fechada de viver em umacidade das mulheres somalianas estavam ligadas por várias formas de reciprocidade, oque lhes permite satisfazer muitas das suas necessidades.

40 Já em estudos sobre mulheres migrantes na Europa do Leste, Hellerman (2005) apontou

que as domésticas e, em particular, as domésticas internas (aquelas que dormem nodomicílio, seis dias ou seis dias e meio), são muito limitadas às possibilidades que elastêm para se encontrarem com outras pessoas, obter apoio e criar redes sociais próprias.

41 Logo, quando se analisa do ponto de vista da sujeição a que estão submetidas, estas

mulheres estão muito sós e, por esta razão, encontram-se numa situação extremamentevulnerável. Como seu dia de folga é normalmente o domingo, a igreja torna-se numelemento social com grande importância em seu trajeto migratório. A missa aosdomingos e, sobretudo, os encontros informais que ocorrem depois, na rua, oferecemuma possibilidade regular para ver outros imigrantes e estabelecer, pelo menos, algumaforma de interação social (Hellermann, 2005). Assim, “(...) além de sofrerem com asegregação laboral que se utiliza da condição como migrante para destinar essasmulheres a trabalhos de pouca valorização e informais, também se percebe que hámuitas barreiras para melhoria das condições de trabalho ou mobilidade social dasmigrantes, já que não conseguem ter acesso à rede educacional” (Bertoldo, 2018 : 318).

42 Para Soares e Rodrigues (apud Angelin, 2012), as relações estabelecidas entre as

protagonistas de uma rede também apresentam forma e conteúdo. O conteúdo dessasrelações é construído através da natureza dos laços, sejam eles de parentesco, amizade,afetividade, etc. Já a forma da relação compreende dois aspectos, a intensidade do laçoentre as protagonistas da rede e o grau de reciprocidade com que o laço entre elas semanifesta.

43 Quanto ao capital social e seus efeitos benéficos, Portes (2000 : 135) aponta que “as

redes sociais não são um dado natural, tendo de ser construídas através de estratégiasde investimento orientadas para a institucionalização das relações do grupo, utilizáveiscomo fonte digna de confiança para aceder a outros benefícios”. Por isso, a migraçãofeminina ancora-se em redes sociais, para que as domésticas estejam inseridas no

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mercado de trabalho. Para a migrante, o trabalho caracteriza a única via possível demudança, sobrevivência e esperança de uma melhora de vida.

44 Para Baeninger (apud Salata, 2017), é recomendável compreender as relações com os

locais de partida e de chegada, simultaneamente, os chamados “ espaços de vida », ouseja, aquelas porções do espaço onde as mulheres migrantes realizam suas atividades ese realizam. Logo, essas mulheres migrantes, para Lima e Conserva (2006), inserem-seem estruturas de redes que resultam de sua posição na estrutura social e de umacultura decorrente dessa posição que se manifesta na experiência cotidiana. Emboracom condicionantes sociais decorrentes da estrutura social, a ação individual não serestringe a esses condicionantes, existindo certa liberdade na escolha de estratégias deação permitindo mobilidades dentro da estrutura. O formato da rede social e/ou aparticipação em diversas redes favorece o acesso a recursos diferenciados, o que explicaque mulheres migrantes de mesma origem social construam trajetórias sociaisdistintas.

45 Portes (2000) afirma que os efeitos negativos dos laços sociais podem produzir maior

controle sobre os comportamentos desviantes e fornecer acesso privilegiado a recursos,podendo também, restringir as liberdades individuais e vedar a terceiros o acesso aosmesmos recursos através de preferências particularistas. Portanto, as redes de apoio nolocal de destino são responsáveis pela criação das condições necessárias para garantir ainserção das mulheres migrantes no trabalho doméstico e ancorar suas trajetóriasmigracionais dentro de um espaço de vida que está em frequente transformação eadaptação.

5. Resultados e discussão

5.1. Trajetórias migracionais e espaços de vida das domésticasmigrantes

46 Nesta seção, apresentam-se as trajetórias migratórias de duas interlocutoras da

pesquisa6 e também suas formas de movimentação pelo espaço. Embora não se tratepropriamente de uma investigação sociológica das trajetórias migratórias, elas semostraram um material empírico relevante para se pensar a questão das redes sociais edos espaços de vida dessas mulheres migrantes.

47 Procurando apontar algumas características das participantes da pesquisa, serão

descritas algumas histórias das entrevistadas. De maneira geral as médias de idade, noinício da pesquisa, em 2017, era entre 40 e 60 anos. Além disso, essas mulheres tinhambaixa escolaridade, sendo que, na maioria dos casos, possuíam apenas o EnsinoFundamental, o equivalente a apenas cinco anos de estudos ou menos. As trajetóriasmigracionais estão inseridas em migrações intraestaduais (São Paulo/ SP, Brasília/ DF,São José dos Campos/ SP, Campinas/ SP) e intrarregional (Belo Horizonte/ MG, Patos deMinas/ MG, Contagem/ MG, Nova Serrana/ MG, Ribeirão das Neves/ MG, MontesClaros/ MG), sobressaindo entre a maioria a migração de retorno aos seus municípiosde origem (Mirabela/ MG e São Francisco/ MG) ou municípios próximos dentro damesma região (Japonvar/ MG e Montes Claros/ MG).

48 A intensificação capitalista no campo e a concentração fundiária são fatores relevantes

que proporcionam a migração rural/urbana, em regiões como o Norte de Minas, que

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apresenta uma alta concentração de terras. Além disso, há as relações de poderpraticadas pelos latifundiários e uma mão de obra com baixa qualificação, que fazemcom que a migração para as cidades seja uma opção à exploração da mão de obra e àdominação que os trabalhadores rurais enfrentam (Oliveira, 2012).

49 Quanto ao sexo dos(as) emigrantes do Norte de Minas, não há expressiva diferença

entre mulheres e homens, sendo 50,28 %, do sexo feminino, e 49,72 %, do sexomasculino. No caso, as mulheres se sobressaem. Nas microrregiões Grão Mogol, MontesClaros, Pirapora e Bocaiúva predominaram emigrantes do sexo feminino, todavia, asdiferenças não são grandes. Segundo Fonseca (2015 : 207), apresentaram maisemigrantes do sexo masculino “(...) as Microrregiões de Salinas, Januária e Janaúba, masa quantidade a mais também foi pouca, respectivamente : 104, 285 e 437 homens. NaMicrorregião de Grão Mogol foram registrados 173 emigrantes a mais do sexo feminino,na Microrregião de Bocaiúva, 237 mulheres ; na Microrregião de Pirapora, 372mulheres ; e na Microrregião de Montes Claros, 742 mulheres” (Fonseca, 2015, p. 207).

50 Esses dados reforçam a tese de Raveinstein (1980) de que as mulheres tendem a migrar

mais do que os homens, principalmente, a migração de curta distância. Herrera (2012)pontua que a relação de gênero e migração faz-se presente com a participação dasmulheres nos fluxos de migração rural-urbana que transformaram as cidades durante oséculo XX, momento de auge das políticas neoliberais implantadas na América Latina,que serviram como um dos mecanismos através dos quais muitas mulheres ingressarampela primeira vez no mercado laboral, principalmente, no setor doméstico.

51 O trabalho doméstico considerado em territórios nacionais implica uma circulação de

pessoas entre mundos sociais e culturais distintos (entre classes ; entre, muitas vezes,etnia, pessoas ou grupos racializados ; entre rural e urbano ; entre bairros urbanos,etc.). O circuito é feminino e, quase sempre, a circulação é de mulheres (Kofes, 2001 :23).

52 Quando questionadas sobre a motivação para migrar para o trabalho doméstico e como

ocorre a indicação, uma das participantes respondeu :

Do emprego ? Às vezes a pessoa está lá trabalhando, né ? Igual eu mesmo. Se euquisesse falar assim : fulana, você, com passar do tempo, eu vou embora, mas meuserviço vai ficar aqui, você quer vir ? E com certeza, aí, você fala assim : como é queé o seu serviço ? Vou explicar tudo, aí, você vai. Aí, eu já indico você lá. Oh ! Fulanade tal conheço, fulana de tal é direita, ela é isso aqui. Porque você sabe que, nesseslugares, eles têm que ter informação de tudo, tudinho ! Como é que você é e como éque você não é. Aí, eu vou e já indico você lá. Aí, você já vai indicada minha. Aí, vocêjá vai fazer o serviço. Então, é igualmente o que passa eles já fazem assim. Quando apessoa vai, quer ir trabalhar fora, ela vai indicada por outra. Aí, fulana chega lá e játem serviço, né ? Aí, a pessoa vai naquilo, porque tá aqui sem trabalhar mesmo. E seeu falasse assim “tem serviço agora em Belo Horizonte”, eu ia, entendeu ? (Migrante B., 55 anos, doméstica)

53 Assim, percebe-se a compreensão do trabalho doméstico e a migração interna de

mulheres de comunidades rurais, pobres, com os pressupostos, segundo Monticelli(2017 : 5), de “servilistas, que muitas vezes se conectam com práticas discriminatórias edesiguais. São justamente esses discursos, práticas, lógicas, símbolos e representaçõesque fazem parte da ‘cultura doméstica’”. A “ cultura doméstica » é intrinsicamenteformada nas relações de poder familiares, da divisão sexual do trabalho, nos espaços,lugares e constitui importantes posicionalidades que diferenciam e mantémhierarquias. No Brasil, é muito comum a cooptação das jovens do meio rural para se

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empregarem em “ casas de famílias » nas cidades com várias justificativas, tais como :“ estudar », “ comprar suas coisinhas », “ apadrinhar », “ fazer companhia », “ ajudar aolhar as crianças », etc.

54 As declarações acima expressam os modos pelos quais muitas dessas trabalhadoras são

inseridas no trabalho doméstico, para a complementação de renda, apadrinhamento,instrumento disciplinador ou proteção da marginalidade, etc. Isso torna relevante ocruzamento da diferença de gênero com a classe social, que, na visão de Crenshaw(2002 : 178) : “A interseccionalidade é uma conceituação do problema que buscacapturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixosda subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, opatriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criamdesigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticasespecíficas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectosdinâmicos ou ativos do desempoderamento.”

55 Quanto à idade, os(as) emigrantes por idade da Mesorregião do Norte de Minas,

segundo a faixa etária, foram encontradas de cinco até 102 anos, considerados comidades entre cinco até 19 anos (jovens) correspondem a 29,70 % ; de 20 até 59 anos(adultos) chegam a 66,05 %, a maioria tanto do sexo feminino quanto do masculino ;com 60 anos ou mais (idosos) com 4,25 % (Fonseca, 2015).

56 Santos (2015) chama a atenção para a migração de meninas ou mulheres jovens para se

empregarem em residências nas cidades como uma prática comum. A migração évoluntária ou induzida pelos pais – ora as mulheres migravam por iniciativa própria,ora eram enviadas na infância pelas famílias.

57 A interpretação dessa origem comum das domésticas pode ser vista como uma prática

cultural aliada à “ cultura doméstica » e à “ cultura migratória » das famílias pobres daregião Norte de Minas Gerais, configurando-se, também, como uma tática desobrevivência articulada às construções de gênero dos grupos familiares desprovidos dazona rural e de redes sociais.

Então, eu não fazia igual minha filha mesmo, que me levou para São Paulo. Feztudo ! Oh, mãe, lá, ganha mais, a empregada doméstica ganha mais... Então, asenhora vai para lá. Aí, larguei o meu emprego em Belo Horizonte e rapei pra lá. Aí,lá, eu sei que minha filha que me levou, mas só que lá eu não senti pelo clima de láser igual de Belo Horizonte.(Migrante B., 55 anos, doméstica)

58 Esse relato oral coaduna com as questões geracionais que estão presentes nas relações

do trabalho doméstico. A maioria das mães das trabalhadoras domésticas entrevistadasdisse que já prestou serviços domésticos em alguma época da vida, ou ainda continuama realizá-lo, assim como revelou-se, também, que ele está presente entre as mulheres deuma mesma família.

59 A transformação social e econômica da região promovida por baixos índices de

desenvolvimento social e humano, projetos de desenvolvimento calcados na expulsãode comunidades tradicionais, a falta de políticas públicas bem geridas, reforça a tese dealguns estudiosos, tais como Paula (2009), Fonseca (2010), da criação de uma espécie de“ cultura de migrar ». Segundo Souza (2016), ela é transmitida através das gerações epelas redes sociais. Essa cultura molda valores e atitudes, elevando o deslocamento aum “ fato natural » oportuno para se atingir o sucesso financeiro pessoal e familiar.

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60 Assim, quando falamos desse cenário, concordamos que as práticas, seus significados e

seus sentidos vão depender das unidades familiares. Mas, na essência, trata-se de umfenômeno coletivo, vivido e vivenciado pela maior parte das mulheres que habitam noespaço do Norte de Minas Gerais.

61 A Tabela 1, a seguir, expressa a população emigrante do Norte de Minas, segundo data

fixa (2010). Na microrregião de Montes Claros, há 41.064 emigrantes, onde está inseridoo município de Mirabela, que apresentou um total de 1.410 emigrantes. Namicrorregião de Januária, o número de emigrantes é de 23.731, onde está localizado omunicípio de São Francisco, com 11.206 emigrantes.

Tabela 1. População total/emigrantes, Norte de Minas, data fixa (2010)

Microrregião População Total (2010) Emigrante (data fixa) Percentual ( %)

Grão Mogol 42.669 3.887 9,10

Bocaiúva 68.624 4.819 7,02

Salinas 210.771 15.978 7,58

Pirapora 164.903 16.074 9,74

Janaúba 247.487 22.957 8,29

Januária 274.092 23.731 8,65

Montes Claros 601.867 41.064 6,82

Total 1.610.413 128.510 7,97

IBGE, Censo 2010 apud Fonseca (2015)

62 Para Fonseca (2015 : 161) : “a emigração é histórica na Mesorregião Norte de Minas,

sendo agregada a vários fatores : pobreza, miséria, atraso econômico, longo período deseca, dificuldades de produção e capacidade de suporte que os rendimentos damigração dão à reprodução da população”. As migrações fazem parte do histórico daregião. Nas décadas de 1950, 1960 e 1970, muitos norte-mineiros deixaram a região parao “ sul maravilha », auxiliando na urbanização e industrialização do país. Seja porcausas objetivas ou subjetivas, essas migrações, ora de caráter temporário, oradefinitivo, regem uma necessidade de muitos norte-mineiros, fazem parte da cultura asidas e vindas, trajetórias que transformam geração após geração (Fonseca, 2015).

63 Giusti e Calvelo (1999) afirmam que o estudo da trajetória migratória constitui um

enfoque longitudinal que permite a compreensão do modo pelo qual as pessoasconjugam diferentes práticas residenciais no transcurso das etapas de seu ciclo de vida.Devido à migração, a trajetória migracional das domésticas foi se ampliando nodecorrer do tempo. Fez-se necessário pesquisar o conjunto de deslocamentos e asmudanças de residência em que elas permanecem por um período de tempo igual ousuperior a um ano. Espacialmente, o conjunto de lugares a partir dos quais se operam osdeslocamentos mudaram. Na trajetória da migrante A. (Figura 1), por exemplo, tem-se

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uma trajetória direta de Mirabela/ MG para São Paulo/ SP, para trabalhar comodoméstica, e uma trajetória de resguardo para Belo Horizonte/ MG, quando decideretornar ao local de origem, Mirabela/ MG. A trajetória migracional amplia-se para trêslocais, conformando espaços de vida e trabalho. Quando indagada sobre como decidiu irpara São Paulo/ SP, ela relata :

Pra caçar uma vida melhor, né ? Porque, aqui, eles falam, assim, que hoje em diaaqui está melhor, está muito bom, mas até a cidade aqui não tem muitos anos queela é emancipada. Me parece que ela só tem 54 anos de emancipação. Então, assim, émais complicado, inclusive até hoje não tem trabalho, firma, essas coisas não têm.(Migrante A., 40 anos, doméstica)

Figura 1. Trajetória migracional da migrante A

Elaboração própria (2017)

64 A trajetória migracional da migrante A., 40 anos, doméstica há mais de 20 anos, começa

com sua mãe, que foi a primeira a migrar. O deslocamento migratório funciona comoestratégia de reprodução social familiar e geracional, desenhando um tipo de trajetóriaatrelada ao espaço físico, mas que se constitui uma trajetória imaginária, pois pareceser uma resposta ao deslocamento através de representações do lugar de origem e dabusca por trabalho. O espaço de vida (Mirabela/ MG) é algo imaginário, e o local detrabalho (São Paulo/ SP, Belo Horizonte/ MG) guia sua trajetória migratória e vida. Emrelação à percepção da mudança de vida, ela disse :

Ah ! Eu acho que até mesmo em questão financeira, né ? Questão financeira ! Porqueminha mãe fala assim, que é quando ela morava aqui, os pais dela trabalhavam naroça, né ? Vivia trabalhando na roça para os outros, assim, é mesmo que é igual elafala quando ela foi embora para lá trabalhar na casa de família, assim, mas eramelhor, né ? Mesmo assim ! As coisas era melhor do que quem morava aqui quetrabalhava na roça. Eu acredito que para ela foi melhor(Migrante A., 40 anos, doméstica)

65 A partir da narrativa da trabalhadora constata-se que a experiência migratória é feita

com base nas redes de relações. O que seriam as relações ? E o que seriam os atributos ?De acordo com Portugal (2006), as relações são laços. Estes podem ser fracos, fortes,mistos e neutros. Os laços fortes são de identificação (parentesco, pertença) ; os fracossão de diferenciação (duração de uma relação) ; os mistos apresentam, ao mesmotempo, identificação e diferenciação ; e os neutros não apresentam nenhuma dessascaracterísticas. Os laços positivos são aqueles com interação frequente e os passivos deinteração irregular. Os conteúdos das redes de relações da migrante A. são baseados emredes de parentesco (irmãos, pais – pontos), com circulação de informação de trabalho(conexões). Quando questionada sobre a facilidade de encontrar trabalho nas capitais, afala da entrevistada remete para a identificação de pessoas que operam na migração :

Oh ! eu acho que foi assim, eu não sei te explicar quem foi, mas a maioria, assim,uma foi primeiro. Aí, tipo assim, aí, como tem família aqui, uma passa para a outra,é melhor. E aí por diante, são desse jeito e vai indo, vai indo, vai indo. É igual eu tefalei, minha mãe, o fato dela ter ido para São Paulo e depois foi para Belo Horizontee nisso, por ela ser a única que morava lá, aí, depois as irmãs dela mesmo forampara lá, moram lá. E foi assim, através de um que acaba levando a outra. É melhorassim e, assim, por diante vai(Migrante A., 40 anos, doméstica)

66 Assim, sua rede pode ser interpretada utilizando-se desse arcabouço teórico para dizer

que “ são redes de laços fortes e positivos », pois há um sentimento de pertença

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(parentesco) e com interação frequente. Quanto maiores os conteúdos das relações(trabalho, moradia, ajuda nos cuidados, suporte na chegada ao destino, indicação para otrabalho), maiores serão os vínculos de reciprocidade, vínculos afetivos,reconhecimento mútuo e solidariedade. No dizer de Portes (1999 : 12), as redes são “umconjunto de associações recorrentes entre grupos de pessoas ligadas por laçosocupacionais, familiares, culturais ou afetivos”. Trata-se de uma imbricada rede depertencimento e sociabilidade capazes de dar sentido a ações sociais através daterritorialização, no arranjo, na passagem, ou na permanência no lugar de destino, ouseja, contribuindo para a sua adaptação, integração ou definindo sua posição.

67 Vejamos a trajetória migracional da migrante B. (Figura 2), 55 anos, doméstica há mais

de 25 anos, com uma filha que, igualmente, trabalha como doméstica em São Paulo/ SP.Sua primeira migração foi para a cidade de Contagem/ MG para trabalhar no sítio deseus patrões ; não quis ter a carteira assinada. Convencida pela filha, teve sua segundamigração para a cidade de São Paulo/ SP. No entanto, teve dificuldades com o grandecentro urbano, retornando ao município de origem, São Francisco/ MG, mas, em suafala, destaca que, havendo oportunidades de emprego em Belo Horizonte, regressaria.

Figura 2. Trajetória migracional da migrante B

Elaboração própria (2017)

68 Esse espaço de migração e os tipos de trajetórias espaciais inseridas nele parecem ter

relação com os diferentes motivos de migração dessas mulheres. Mas é imperativoobservar a intervenção no sistema de reprodução familiar e socioeconômica de suasfamílias. Essa rede caracteriza-se pela informação e indicação por trabalho. Na prática,a filha mostra-se como uma informante confiável que já lidou com o processomigratório. Para ela, sua honestidade é fator preponderante de cooperação e confiança,associando a migração como forma de “ capital social », também apontado por Piselli(2008) como os circuitos de confiança. São estratégias recorrentes dos empregadorespara recrutar domésticas. Ao se utilizarem disso, apoiam-se nas redes sociais dessasmigrantes.

Pesquisador : Você trabalhou lá em quantas casas ?Migrante B. : Eu trabalhei... Oh minha filha, eu trabalhei em várias casas lá.Pesquisador : De empregada doméstica ? Muitas mulheres vão trabalhar dedomésticas lá ?Migrante B. : É. Várias... Várias.Pesquisador : Como que vocês ficam sabendo desses empregos, esses trabalhos ? Migrante B. : Não. Informação das outras que iam passando. Uma ia passando paraoutra e indicando como que era o serviço. Aí, eu conseguia pegar o serviço.

69 Para Portes (1999 : 16), “o capital social refere-se à capacidade dos indivíduos para

mobilizar recursos escassos em virtude da sua pertença a redes”. Estes recursos podemincluir bens econômicos tangíveis, como empréstimo financeiro. Quando perguntamosquem são as pessoas da sua rede pessoal que podem contar para pedir ajuda financeiraa resposta foi : a família. No caso de bens intangíveis (como informação), quandoperguntamos quem são as pessoas da rede pessoal com quem podem contar para pedirindicação para o trabalho, a resposta foi : dentro do próprio grupo de domésticas. Aprincipal característica destes recursos é que são gratuitos. Eles têm a marca da dádiva.Não se espera que seja pago monetariamente, pelo contrário, os recursos implicam aexpectativa da reciprocidade em algum momento futuro.

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Foi com minha filha que foi. Mas é por isso que eu vou falar com você que tempessoa lá que sabe o que fala : ah, se fulana vir, eu consigo um serviço para ela.Então, através disso, minha filha mesmo foi, foi assim através de outra quetrabalhava lá e levou ela, encaixou ela. Então, é por isso que eu falo que uma vaipassando para as outras(Migrante B., 55 anos, doméstica)

70 Os conteúdos das redes de relações de B. são baseados em redes de parentesco (filhas –

pontos), com circulação de informação de trabalho (conexões). Isso corrobora para“ redes de laços fortes e positivos ». Portanto, os atributos, as relações e as trajetóriasdessas domésticas migrantes internas vão depender das diferenças e característicaspessoais com as quais construíram e mantiveram seus vínculos, como cada uma delasmobilizou sua rede de relações e outras variáveis de acordo com ciclo de vida e das suastrajetórias na busca por trabalho. “ Elas movem as redes e as redes as movem » significadizer que as redes promovem a inserção no mercado laboral, a adaptação na sociedadee a manutenção dos laços familiares e culturais com a região de destino, diminuindo odesgaste psicológico com a desintegração familiar e saída do local de origem e,igualmente, “ uma migrante traz a outra ».

71 No entanto, Portes (1999) refere-se às redes sociais como dependendo das

características das suas redes e das posições pessoais no interior delas. Essas mulherespodem ser capazes de mobilizarem uma quantidade significativa de recursos, de evitarum controle apertado do seu comportamento egoísta ou, pelo contrário, podem seencontrar estreitamente condicionadas pelas expectativas impostas pelo grupo.

72 Estas redes de mulheres domésticas migrantes têm caráter antagônico, pois, ao mesmo

tempo em que a rede funciona como uma inserção no trabalho e na própriacomunidade de destino, têm caráter fechado, encapsulado, que obscurece as novasrelações sociais com sujeitos exteriores a essa rede, dificultando transpor a categoriadoméstica. Ou seja, os seus contatos não parecem suficientes para fazê-la ingressar emoutro nicho do mercado de trabalho. Isso porque poucas são as pessoas do seu círculode relações que têm ligação com outras áreas, muito parecidas com ela do ponto devista socioeconômico.

73 Na opinião de Portes (1999 : 19), “quanto maiores forem a densidade e a sobreposição

de relações das redes envolvidas, e quanto menos central for a posição de um membroem dívida, maior será a confiança no seu cumprimento das expectativas dereciprocidade”. Ou seja, esse grupo de domésticas não forma um grupo coeso, o queaumenta as possibilidades de trocas e solidariedades, impondo-lhes limites bemdefinidos.

74 Na visão de Fazito (2002), o contexto social dominado pela coletividade seria regido por

estruturas, instituições, normas e interação cotidiana e, assim, definiria a “ condição demigrante » dos indivíduos. É preciso estar conectado às estruturas sociais adequadaspara que a migração se configure como estratégia coletiva (e individual, em outromomento), concreta e plausível e as domésticas decifrarem sua condição de migranteapoiadas em redes sociais de ajuda mútua.

75 Assim, para Catarina e Oso (2000), a maioria das mulheres são jovens provenientes do

meio rural, que se empregam como domésticas internas nas “ casas de famílias » declasse média, onde tem assegurado o alojamento e manutenção nas cidades. Isso nãoanula o suporte por adesão em uma rede social.

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76 As trajetórias migratórias ajudam na discussão de Saquet e Mondardo (2008), expondo

que o fenômeno migratório é produto e produtor de uma complexa trama territorialentre os territórios de origem e de destino das migrantes no “ ir e vir » da busca pelotrabalho (reprodução social), adotando a importância dos vínculos com a origem, quesão levados em conta tanto para decisão de permanecer no destino, como parafundamentar o retorno, ou ainda a circularidade/ rotatividade. Essas migrantes estãoem transição, são expulsas de suas comunidades pela falta de perspectivas, habitandoespaços liminares, sejam dos estereótipos de gênero, sejam dos geopolíticos. Migramem busca de uma conexão possível entre espaço, história, trabalho e sociabilidade, ondepossam estabilizar suas identidades e sentidos de pertencimento, seja a um grupo dedomésticas ou a uma cidade globalizada (Teixeira, 2015).

77 O aspecto comum encontrado em ambas as trajetórias descritas sinalizam para a

migração de retorno. Conforme Campos, Reis e Colla (2016 : 2), “o retorno muitas vezesse verifica por algum equívoco de avaliação quanto às oportunidades no local dedestino, o que resulta em frustração no que tange às suas expectativas quanto àsmelhorias almejadas”.

78 Por meio dessas trajetórias migracionais, percebemos que muitas são as motivações que

as levaram a migrar. Os fatores macroestruturais afetam tanto quanto os fatoresmicroestruturais na migração feminina. As relações de gênero atreladas às redes sociaisse vislumbram enquanto tática migratória e operam no binômio estrutural damigração : “ esperança » e “ fracasso ». Como corroboram Campos, Reis e Colla (2016 : 3)“(...) o retorno não ocorre pura e simplesmente por um “ sucesso » ou um “ fracasso »econômico no mercado de trabalho de destino, mas também se relaciona com o própriociclo de vida das migrantes”.

Considerações finais

79 Considerando que as redes sociais da migração constituem aspecto relevante para os

estudos das relações das domésticas e não basicamente dos atributos de que cada umadelas possuem, elas promovem a inserção no mercado laboral, a adaptação na sociedadee a manutenção dos laços familiares e culturais com a região de destino, diminuindo odesgaste psicológico com a desintegração familiar e saída do local de origem. Assim,este estudo privilegiou as unidades sociais, no caso, as domésticas migrantes. Percebe-se, como Decimo (1998) verificou em seus estudos, que essas redes fechadas podemtambém definir uma guetização dos empregos femininos, considerados desqualificadose com baixos níveis de escolaridade. Acrescente-se a isso, a informalidade e adesproteção social a que estão submetidas, mesmo no Brasil havendo políticas públicaspara regularização do trabalho doméstico7.

80 Assim, o espaço de vida condiciona a experiência migratória, que, de acordo com

Courgeau (1988), propõe quatro tipos de estágios do espaço de vida : difusão ou umaextensão, deslizamento, transplantação, e contração ou um recuo. O espaço de vidacomo difusão ou uma extensão em direção a novos pontos do espaço configura-sequando a mulher migrante começa a trabalhar como doméstica, conservando os lugaresde afeição/ligação, como os seus lugares de origem (Mirabela/ MG e São Francisco/MG). No deslizamento de posições, ou seja, com a incorporação de novos lugares aoespaço de vida (Belo Horizonte/ MG e São Paulo/ SP), há uma perda de posiçõesanteriores. A transplantação pode ser uma consequência do deslizamento, se nenhuma

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posição anterior tiver sido mantida, havendo uma mudança completa da implantaçãodo indivíduo no espaço, no caso, a topofobia (rejeição) ao espaço da metrópole éimportante para pensar as migrantes rurais-urbanas. E, por fim, a contração ou o recuono espaço de vida pode ocorrer se houver a perda de posições anteriores, como no casoda migração de retorno.

81 Em relação às trajetórias migracionais dessas mulheres migrantes, pondera-se que as

duas trajetórias apresentadas, de maneira simplificada, demonstram as condiçõesfavoráveis da migração de mulheres em relação à busca por trabalho. Por outro lado, ofuncionamento das redes sociais é um fator importante no que diz respeito à “ culturamigratória » aliada à “ cultura doméstica » presente na análise de suas redes.Entretanto, a maior parte das participantes desta pesquisa, apesar de possuirconsciência de sua ação, de seu deslocamento ou dos motivos da migração, no começodo processo de mobilidade espacial (fatores econômicos), não conhecem o conjunto defatores intervenientes no processo migratório (subjetividade), já que vivem a trajetória,não a interpretam. Por isso, algumas não se percebem parte desse nomadismocaracterístico das mulheres que migram do meio rural para servir as famílias da classemédia e alta no meio urbano.

82 A presente proposta de trabalho tratou de incitar reflexões acerca da migração

feminina, abandonando o viés de que os migrantes são sujeitos heterossexuais e semgênero, adotando como estratégia de reprodução social dessas famílias inseridas naregião Norte de Minas Gerais entre os diferentes espaços de vida da migração interna elevando em conta a articulação entre trabalho, trajetórias e as redes sociais. Suscita-seque há lacunas a serem preenchidas pelo viés das relações de gênero e sobre asdinâmicas migratórias internas no Brasil quando dizem respeito ao segmento feminino,afinado com a complexa realidade social a ser descrita e decifrada, permitindo deter eanalisar mais e melhor as complexas dinâmicas sociais, relacionadas com a movência edissidências das mulheres.

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NOTAS

1. Trata-se de oportunidades de emprego relacionadas às tarefas naturalizadas confiadas às

mulheres, no espaço doméstico. No Brasil, é representada, em sua maioria, pelas domésticas,

babás e cuidadoras domiciliares, mas, igualmente, há uma exportação global dessa mão de obra,

inserindo-a nas rotas migratórias, tanto internamente (Nordeste-São Paulo), quanto

internacionalmente (Sul-Sul, Sul-Norte).

2. Conceito relativamente recente (cerca de 20 anos), utilizado na Demografia e incorporado à

análise populacional pelo francês Daniel Courgeau: espaço de vida. A partir daí, a Demografia,

ciência eminentemente quantitativa – ou que se entende assim –, passa a se aventurar no

desenvolvimento de um conceito qualitativo e quantitativo ao mesmo tempo.

3. Este estudo é oriundo das primeiras notas de pesquisa realizadas neste projeto, que foi

submetido à aprovação do Comitê de Ética em Pesquisas com seres humanos, da Universidade

Estadual de Montes Claros – MG, conforme determina a Resolução nº 196 do Conselho Nacional de

Saúde, de 10 de outubro de 1996. Aprovação CEPEX – Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão nº

020/2017.

4. “Minas, são muitas. Porém, poucos são aqueles que conhecem as mil faces das Gerais” (Rosa,

1957: 9).

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5. Política pública de desenvolvimento regional criada em 1959, continuamente, sendo revisitada

pelos planejadores do desenvolvimento para superar as desigualdades regionais dessa região,

proveniente de sua geoeconomia, impactada pelo seu clima (seca) e território (aridez).

6. Foram realizadas trajetórias das seis mulheres migrantes participantes desta pesquisa. Apenas

para ilustrar, serão utilizados como exemplo dois esquemas migratórios (A e B). Não é a intenção

discorrer sobre a trajetória migratória de vida de cada participante.

7. Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, também conhecida como a “PEC das

Domésticas”.

RESUMOS

Neste trabalho, são analisadas as trajetórias migratórias de domésticas do Norte de Minas Gerais-

Brasil, considerando o enfoque nas redes sociais e espaços de vida. O texto ancora-se na

realização de entrevistas semiestruturadas com mulheres migrantes, relacionando com dados

secundários do Censo do IBGE /2010. Investem-se nas causas que provocam a migração e como as

redes sociais contribuem para as relações de gênero nas migrações. Conclui-se que as redes

promovem a inserção no mercado laboral, a adaptação na sociedade e a manutenção dos laços

familiares e culturais com a região de destino, e igualmente uma guetização dos empregos

femininos.

ÍNDICE

Mots-clés: trajetórias espaciais, migrações rurais-urbanas, mulheres, redes migratórias,

trabalho doméstico, Norte de Minas Gerais, Brasil

AUTORES

GUÉLMER JÚNIOR ALMEIDA DE FARIA

Universidade Federal de Viçosa, Brasil, guelmerjrf [at] yahoo.com.br

MARIA DA LUZ ALVES FERREIRA

Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil, mariadaluz [at] oi.com.br

ANDREA MARIA NARCISO ROCHA DE PAULA

Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil, andreapirapora [at] yahoo.com.br

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Formalisation as a judicial claimThe case of paid domestic workers in Argentina

Lorena Poblete

1 As in many other parts of the world, paid domestic work is generally performed

informally in Latin America. The majority of domestic workers worldwide have, at best,restricted access to labour rights and social security. Moreover, almost 30 percent areexcluded from the scope of national labour laws (ILO, 2013). In fact, domestic work isone of the occupational categories with the highest incidence of informalarrangements. The ILO estimates that about 50 million of the 67 million domesticworkers worldwide are informally employed (ILO, 2016).

2 In Argentina, the majority of domestic workers are not registered. This can be

attributed to two factors, the first being the historical servitude model thattraditionally helped to structure this type of employment relationship (Kuznesof, 1993).The second factor is the existing regulatory framework and its conditions ofimplementation. Since paid domestic work is considered an extension of the tasksassigned to women within the household, even today, it is hardly conceived as work.Instead, it is more commonly thought of as ‘help’ for the woman of the household,whether she is a housewife or works outside the home. The logic of replacing onewoman with another makes the respective roles invisible (Pérez et al., 2018). What isunique about this employment relationship is that it forges connections betweenwomen from different social classes at the intersection between ‘the public’– that is,labour, money, and the law – and ‘the private’ – the intimacy of domestic life (Gorbán &Tizziani, 2018). Likewise, the proximity and intimacy of working in the employer’shouse – and, particularly, of caring for children, the elderly or the sick – allowsaffective relations to influence – and muddle – the labour relationship.

3 Regarding the regulatory framework, although most labour laws in Argentina did not

apply to paid domestic work, a special regime covering this type of work wasestablished in 1956. Compared to the general labour regime, this special regime washighly restrictive in terms of both its provisions and its scope. Certain provisions suchas paid vacations, sick leave and severance pay were included in this regime, but theirduration or amount were less than those guaranteed to other employees. In addition,the special regime for domestic workers covered only those who worked four hours,

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four days a week for the same employer. In 2000, the new Social Security Regime forDomestic Workers was introduced to provide social security benefits for anyoneworking more than six hours per week for the same employer. However, it was notuntil 2013, after the approval of a new special labour regime that all domestic workers,even those working just one hour each week for a single employer, became entitled tolabour and social security rights. Although the scope of the law has thus expanded overthe past two decades, informality remains high in this sector due to the limitedimplementation of the legislation. Since the employer’s house is the workplace, thesupervision of compliance with regulations is complex, if not unfeasible (Loyo andVelásquez, 2009 ; Rodgers, 2009 ; Vega Ruiz, 2011). The Argentine state has no legal orinstitutional capacity to inspect homes.

4 The combination of a lack of regulatory frameworks, limited state inspection

capabilities, and the culturally entrenched notion of domestic work as ‘servitude’ and‘help’ has turned informality into rule for paid domestic workers. In 2003, only 5 percent of domestic workers were formal workers. Since then, registration hasexperienced two spikes, the first in 2005, when tax deductions were introduced, andthe second in 2013, after the passage of the new law. However, the group of domesticworkers that benefited the most from the rise in formalisation were those workingmore than 16 hours per week for the same employer. After 2005, informality droppedprecisely among these workers because tax incentives were higher for employers ofpart-time or full-time workers. After 2013, however, registration of those working lessthan 16 hours also rose slightly. Even so, 75 per cent of all domestic workers are stillinformally employed (Pereyra, 2017).

5 Due to the persistently high levels of informality, formalisation is considered

fundamental for the recognition of social and labour rights, at both the policy andindividual levels. The latter is evident in the process of labour disputes resolutionestablished by the Domestic Work Tribunal in Buenos Aires. This specific court wascreated by the 1956 Special Regime, and lightly modified by the 2013 law. The mainpurpose of this administrative body unique to the domestic work sector is to fosterconciliation through mediation. Based on the model of other administrativejurisdictions entrusted with resolving individual conflicts among employees, theDomestic Work Tribunal functions as a first-instance court ; parties can later appeal itssentences to the Labour Justice.

6 Thus, this article seeks to understand how the demand for formalisation appears at the

centre of disputes over the recognition of rights at the Domestic Work Tribunal. Thatrequires analysing the meanings of formalisation at public policy level and withinindividual labour conflicts. During the standard-setting process at the InternationalLabour Organisation resulting in the approval of Convention 189 and Recommendation201 in 2011, formalisation was presented as a crucial mechanism to ensure enforcementof the law. Moreover, in Argentina, since 2005, formalisation has been the principalstrategy to extend domestic workers’ access to labour and social security rights. Thispaper thus aims to analyse the way in which formalisation became a judicial claim. Howis formalisation used in the context of an individual labour dispute at the tribunal ?

7 The paper, which is divided into two sections, draws on a study of the legal framework

for paid domestic work, a quantitative and qualitative analysis of 156 judicial files and1,000 rulings, and four months of ethnographic fieldwork. The first section analyses theway in which the process of formalisation is discussed, conceived, and implemented at

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the international and national level, and the way it is appropriated by employers anddomestic workers. The second focuses on the dispute resolution process in which themeaning of formalisation changes according to the diverse actors involved.

1. Informality as a problem, formalisation as a solution

8 In recent decades, formalisation has been treated as the solution to informality. The

elaboration and dissemination of this concept can be attributed to the ILO, which hasalso promoted different strategies to achieve formalisation. For over four decades, themeaning of the term informality has shifted with the times. Studies on the topic notethat the definition of ‘informal sector’ proposed in 1972 by the employment mission toKenya gave rise to the concept. In the context of a wide-ranging debate on theevolution of labour markets in developing countries that followed Arthur Lewis’s 1954article, Hans Singer and Richard Jolly’s mission into Kenya showed that there is atraditional sector of the economy capable of creating employment and thus reducingpoverty (Trebilcock, 2006, Chen, 2012). Shortly after, the concept of ‘informal sector’became a key topic in developing countries. In the years since, different actors with tiesto the ILO have proposed new definitions to unriddle the meaning of the concept (LaHovary, 2015). In some cases, the purpose of such clarifications was to developstatistical measures of informality ; in others, it was to draft recommendations forformalisation policies.

9 In 1991, according to the report The Dilemma of the Informal Sector (ILO, 1991) the

informal sector was comprised of small-scale production units and independentunskilled workers with little capital, limited technological capabilities, and low anderratic income (Neffa, 2008). This definition was mainly the outcome of the LatinAmerican debate, particularly the studies by the PREALC ILO.1 The activities of theurban poor within this heterogeneous sector are considered a survival strategy indeveloping countries. In keeping with this definition, the ILO International Conferenceof Labour Statisticians (ICLS) clarified in 1993 that the ‘informal sector’ refers not to thepersonal characteristics of informal workers or the jobs they do but to the companieswhere informal jobs are done. The focus is on an economic sector, not on mechanismsto regulate work arrangements on the labour market (Hussmanns, 2004a).

10 In 2002, the notion of informality broadened under the ILO “Resolution Concerning

Decent Work and the Informal Economy”. This resolution described the concept ofinformal economy, which “refers to all economic activities by workers and economicunits that are – in law or in practice – not covered or insufficiently covered by formalarrangements” (ILO, 2002). A year later, the ICLS added the concept of ‘informal jobs’ inan attempt to evaluate and measure the informal economy. According to theorganisation’s definition, “employees are considered to have informal jobs if theiremployment relationship is, in law or in practice, not subject to national labourlegislation, income taxation, social protection or entitlement to certain employmentbenefits (advance notice of dismissal, severance pay, paid annual or sick leave, etc.)”(ILO, 2003). In the ILO’s approach, informal economy and informal jobs are thusconsidered complementary concepts (Haussmanns, 2004b).

11 In 2015, the “Transition from the Informal to the Formal Economy Recommendation”

(R204) updated the 2003 definition of informal economy. In this more precisecharacterisation of economic units, they are described as “units that employ hired

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labour ; that are owned by individuals working on their own account – either alone orwith the help of contributing family workers ; cooperatives and social and solidarityeconomic units.” Among these units, Recommendation 204 highlights households(article 4), because domestic workers are considered among the most vulnerableworkers.

12 Through these myriad definitions, the ILO frames informality as two different

problems. On the one hand, informality refers to the exclusion of certain workercategories from the law ; this reveals gaps in existing legislation, which does not coverall of the positions on the labour market. On the other, informality is presented as aquestion of noncompliance with the law – or even fraud (Davidov, 2005). Therefore,state intervention must take two very different paths : while expanding the legalframework, it is also necessary to implement effective enforcement mechanisms. InArgentina, since 2000, the expansion of the scope of the legal framework for domesticwork has been accompanied by innovative enforcement mechanisms (Poblete, 2019).

13 For the implementation of the legal framework, the ILO recommends two possible

strategies that certain countries like Argentina have utilised simultaneously. One ofthese strategies involves dissuading informality, and the other, enabling formalisation.With a view to discouraging informality and pressuring employers to register workers,the deterrent approach includes measures like public information campaigns, labourinspections, complaint mechanisms, dispute resolution systems, and support to theparties engaged in an employment relationship (ILO, 2016). Several articles in the ILOConvention 189 Decent Work for Domestic Workers include the provisions to guaranteelegal enforcement. In Argentina, a specific labour court provides complaintmechanisms and dispute resolution systems under the first labour regime for domesticworkers introduced in 1956. Although the jurisdiction of the Domestic Work Tribunal islimited to the city of Buenos Aires, other provinces have developed similar systemssince 1956, and the tribunal remains a model in guaranteeing access to labour justice.

14 The second strategy to promote compliance with the law, the enabling approach,

focuses on removing barriers to formalisation and introducing incentives for formallabour relationships – like tax deductions, simplified registrations, and lower socialsecurity contributions and exemptions (ILO, 2016). Although employers are the maintarget of the incentives, the Argentine state also offers benefits for registered domesticworkers, including public transportation subsidies and access to social security. Inaddition, informal workers with a formal labour contract no longer have to forfeitother social benefits – like the Universal Allowance for Children – as a condition forholding formal employment (Poblete, 2018). However, some incompatibilities withother social security schemes remain that prevent domestic workers from beingformalised (Pereyra, 2017).

15 Although formalisation is presented as the first step to recognising domestic workers’

labour and social rights, its effectiveness has been questioned. Some authors, likeAdelle Blackett (2019), are cautious about whether formalisation can actually result inlegal formalism when it is built on a legal fiction. Treating formalisation as synonymouswith access to social protection may conceal historical forms of marginalisation,exclusion, inequality and social invisibility (Blackett, 2019 : 37). If public policies focusexclusively on the legality of the labour relationship – registered or unregistered insocial security systems or other labour institutions – the unlawful and exploitativedynamics that shape domestic work labour relationship are rendered invisible. Other

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scholars, such as Francisca Pereyra (2017), point out that compliance with other rights– like wages, paid vacations, severance payment, etc. – may be an offshoot offormalisation. Based on empirical research conducted in 2011 and 2017 in Argentina,Pereyra shows that when domestic workers work formally, recognition of a basic set ofrights is more likely (Pereyra, 2017 : 62). However, some of these rights are entrenchedin the country’s work culture – like the annual bonus and vacations – and thus, workersboth registered and unregistered tend to benefit from them (Pereyra, 2012).

16 Beside the controversies surrounding the notion of informality, and its antidote,

formalisation, Argentina has followed ILO recommendations in an effort to guaranteedomestic workers the same rights as other workers.

1.1 Local formalization policies

17 In Argentina, the scope of the law and noncompliance with the law are the two key

issues in the ILO’s conception of informality addressed in local policies. Theoverarching aim of the law is to guarantee that all workers receive basic socialprotection or, at the very least, health insurance and retirement pension.

18 Informality was initially viewed as an issue arising from the limited scope of existing

legislation, which excluded more than half of domestic workers. Under the SpecialDomestic Work Regime established by the Presidential Decree 326/562 – the soleregulation to govern domestic work between 1956 and 2000, only workers who residedin the employer’s household or performed activities in the same household at least fourhours a day, four days per week, could be registered. According to the Ministry ofLabour, the law covered just 47.2 per cent of domestic workers, since half of all workerswith a single employer worked less than sixteen hours a week ; and the majority of theworkers with more than one employer did not work sixteen hours for any of them(MTEySS, 2006).

19 In order to expand the legislation to cover more of these workers, Law 25,2393 was

enacted in 2000. Under this law, the Special Social Security Regime for DomesticWorkers extended social security benefits to all domestic workers performing at leastsix hours of work per week for a single employer. In the expanded legal coverage of thenew regime, the 1956 statute was not repealed, however. Due to the nature of thecontributory system, the two coexisting regimes created certain inequalities amongworkers in the same occupation. While domestic workers covered by the more recentsocial security regime only had the right to social security benefits, the domesticworkers covered by the 1956 regime benefitted from nearly the same labour rights asemployees in other economic sectors. In addition, under the newer regime, access tosocial security benefits depend on a worker’s capacity to make contributions (Poblete,2015).

20 Once the new regime was introduced in 2000, 90.6 per cent of domestic workers

qualified for formal employment under one of the two regimes (MTEySS, 2006). Withthe aim of integrating the remaining 9.4 per cent, in 2004, an Executive Order4

established that all domestic workers working less than six hours per week for one ormore employer could enrol as self-employed workers under the Single Tax Regimen5.Since the domestic workers in this situation are considered independent serviceproviders, they are responsible for making their own social contributions and payingtheir own taxes. However, it seemed doubtful that many domestic workers would enrol

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in this system because those working just a few hours for several employers rarely endup working full days ; therefore, they earn considerably less, and are unlikely toprioritize the payment of social contributions over more basic needs. In addition,hourly domestic work generates unsteady income since the households where suchdomestic workers are employed have changing needs. Despite the full gamut ofenrolment options starting in 2004, only seven per cent of domestic workers were infact legally registered as formal domestic workers in 2005 (Groisman and Sconfienza,2013).

21 While the first decade of the twenty-first century entailed a significant drop in

informality, it remained persistently high. In 2012, only sixteen per cent of domesticworkers worked as formal workers. Legislators thus began working to draft a bill thatwould successfully formalise domestic work. Passed in 2013, Law 26.8446 was amilestone in legislation on domestic work, as it granted labour and social rights to alldomestic workers providing at least one hour of service a week. Domestic workers werenow entitled to a limited number of working hours, weekly rest, worker compensation,a trial period, severance pay, overtime, annual mandatory bonuses, and paid holidays,sick leave and maternity leave. Although the new law was put into effect through yetanother Special Regime, the rights of domestic workers are now comparable to thoseconferred by the Labour Contract Act that regulates the work performed by privatesector employees.

22 The different regulations aimed to formalise this type of work, that is overwhelmingly

done informally. By doing so, they gradually amended the very definition of domesticworker. In 1956, the usual form of domestic employment – that is full-time or live-inwork – defined this category but, by the turn of the century, very few domestic workershad such arrangements with their employers. For that reason, the 2000 law considereda domestic worker to be any person cleaning in a household at least six hours a weekfor a single employer. As with ILO Convention 189, the aim was to exclusively includedomestic workers who do this type of work on an ‘occupational basis’. Later, in 2013,legislators acknowledged the myriad work arrangements and the rise in hourly work inthe sector, resulting in a law that did not set a minimum number of work hours. At thatpoint, a domestic worker was now defined as any person cleaning or providing personalcare in households, regardless of how many hours she worked. Thus, domestic workregulation goes from selectivity to universalism in terms of labour law coverage(Davidov, 2014). The 2013 law has effectively covered all domestic workers since then.

23 However, limited enforcement of legislation is another reason why domestic work is

frequently relegated to the informal sector. It is difficult to ensure compliance with thelaw when the workplace is a private residence, for two reasons. First, the state does nothave the legal authority to enter a person’s home without a warrant ; second, the statealso lacks institutional structure, i.e. a special team of labour inspectors, that suchvisits would require. Thus, to increase compliance, the government continued todevelop different strategies based on the enabling and the deterrent approaches. Witha view to removing barriers to formalisation, the state simplified the mechanisms ofenrolment, and introduced tax incentives. Seeking to dissuade informality, withdifferent partners – such as ILO and domestic workers unions –, the state developedpublic campaigns to inform the public on the duties of employers and the rights ofdomestic workers. Also, a compulsory enrolment system for domestic workers

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presumed to be working informally was instituted, accompanied with an intensivemedia campaign and the surveillance of the Public Treasure IT devices.

24 New information technologies have contributed greatly to simplifying the regime. In

2002, an online system launched by the Public Treasury streamlined both enrolmentand the payment of social security contributions. In an additional effort to facilitate theprocess, the 2013 law allowed for three enrolment options : an employer could registertheir domestic worker on the public treasury website, by calling a toll-free number, oron home banking websites. The goal was to make the enrolment of domestic workers aseasy as clicking a mouse.

25 Second, Law 26,0637 established, in 2005, a tax exemption for employers to further

promote enrolment. Subject to the limit prescribed by the Public Treasury (sec.16),employers of a domestic worker can deduct up to the full amount of socialcontributions – and even the worker’s wages – from income tax returns. Due to theirsuccess, these tax incentives have remained in force. In fact, formal employment in thesector almost tripled during the first year following the introduction of the incentives,rising from 52,150 domestic workers enrolled in 2004 to 142,200 in 2006 (Salim andD’Angela, 2006).

26 Third, with the aim of increasing compliance, the law established an “ex-officio

formalisation” in which households with certain characteristics were presumed to havenon-registered domestic workers. Established in 2013, the Minimum Domestic WorkIndicator8 drew on legislation covering social security fraud from 1970 (and its 2004amendment) and a formula for estimating social security debts of employers in thetextile industry and construction sector9. The indicator was based on gross annualincome and the taxpayer’s declared personal assets (especially real estate). In cases inwhich a taxpayer’s gross annual income and property value exceeded the minimumestablished by the indicator, there was a presumption of a domestic worker in thehome who had not been enrolled. In these cases, the Public Treasury would send anotice to the taxpayers, giving them a deadline to formalise the presumed employee. Ifthe taxpayer did not enrol a domestic worker by the deadline, the Public Treasuryproceeded to collect the corresponding social security contributions and taxes. Thoughcontroversial, the “presumption of a domestic worker” measure was initially effective.However, when the Executive decided that the indicators were insufficient to presumethe existence of an informal domestic worker in 2016, the measure was repealed.10

27 The final strategy for reducing informality in the domestic work sector involved public

campaigns on the rights of domestic workers and on employer obligations. The twocampaigns – one targeting domestic workers and the other, employers – were designedin a collaboration between the ILO and the Ministry of Labour. In some cases, thecampaigns even targeted domestic workers who had recently migrated to Argentinaand women in other countries – like Paraguay – with plans to migrate to Argentina.

1.2 The meaning of formalisation from the actors’ perspective

28 Within the domestic work sector, ‘the law of the household workplace’, to borrow

Adelle Blackett’s term (2019), takes precedence over the law, which is whyformalisation has ambiguous meanings. The domestic work labour relationship isstructured by the law of the household workplace, as are the behaviours of both

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employers and domestic workers : lawful versus unlawful is irrelevant in the face ofwhat domestic workers and employers consider fair or normal.

29 Although formalisation has been presented as the key to accessing social security

benefits from the state, domestic workers and employers have their own ideas aboutthe benefits of a formalised labour relationship. A qualitative investigation conductedby Francisca Pereyra11 (Pereyra, 2013, 2017) before and after the approval of the 2013law shows that domestic workers and employers generally consider formalisation avery important issue when speaking about general principles.

30 However, when employers talk about why they haven’t registered a domestic worker,

excuses begin to appear : “One of her other employers has already registered her,” “Shesays she’ll be forced to abandon some welfare plan if I register her,” “She’s fromParaguay, and doesn’t have work papers,” “She’s on her husband’s health plan”. Inthese accounts, formalisation is treated not as an employer’s responsibility, but as anoption for the domestic workers. The unlawful behaviour of employers is thusportrayed as merely granting the domestic worker's request.

31 From the domestic workers’ perspective, formalisation is entirely up to their

employers. When Pereyra inquired into whether they had asked their employer toregister them, all the domestic workers said no. Most added that they feared not only anegative response, but also dismissal : the employer might well respond, “You don’tneed to come anymore” (Pereyra, 2017, 68).

32 In both cases, compliance with the law is depicted as the other party’s choice instead of

both parties’ obligation. As domestic workers and employers understand compliancewith the law as voluntary, they can choose when to treat informality as a major issue.

2. Formalisation as a legal argument at the tribunal

33 Informality is the most common cause for individual labour conflicts at the Domestic

Work Tribunal. In 57 per cent of the cases files that ended in a judgment between 2015and 2018, the motive for the suit was the lack of worker registration or partial and/orinaccurate registration. Because the majority of paid domestic workers are informalworkers, it follows that this would be the case. Thus, in order to understand the way inwhich this argument appears over the course of the procedure established by thetribunal, the paper will focus on the analysis of five cases. The assessment of thesecases is based on the full legal proceedings, the hearing records, and the fieldworknotes at the conciliatory hearings witnessed as part of fieldwork.

34 These different sources provide insight into the way in which the procedural

mechanisms and legal practices shape the labour dispute. While the records of thehearings and the case files generate a particular form of translation based on legallanguage (Bourdieu, 1986), the fieldwork reveals another form of translation processesthat take place during the face-to-face meetings. At these meetings, the labour conflictis translated into everyday language, giving it new meanings. The section starts with adescription of the legal cases ; this is followed by an overview of how formalisation isinvoked as a legal strategy by the plaintiffs’ attorneys ; finally, the question of how theparties to the conflict utilise the legal strategy is addressed.

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2.1 Formalisation as an argument in five cases

35 The Domestic Worker Tribunal operates similarly to the Argentine Labour Courts

because the same legal framework applies to all. However, some of its procedural stageswere adapted based on the particularities of this type of labour relationship. Once theclaim is filed, the tribunal summons the parties to a conciliation hearing. If noconciliation is possible in that first instance, the defendant must respond to thecomplaint in writing. The court then issues a summons for a second conciliatoryhearing. If the parties cannot reach an agreement, the court conciliation officer(essentially a mediator) calls the witnesses. Once the testimonial hearings are over, thetribunal schedules another hearing with the parties in a third attempt at conciliation.As the tribunal seeks to foster conciliation through mediation, the mediators may callfor conciliatory hearings at any stage of the legal proceedings. If no agreement isreached, the tribunal staff in charge of judgments evaluate the case file. According tothe mediators, the entire process can take about five years. This motivates every actorinvolved to seek a compromise at some point during the proceedings. However, for thetribunal to accept an agreement and it to become legally binding, it needs to cover atleast 70 per cent of the items the worker has detailed in the claim.

36 The cases analysed here cover only a small part of this legal procedure, since the

parties reached a settlement at the first hearing in all five cases. Nonetheless, the casesvary greatly with regard to the duration and intensity of the employment relationship.In most cases, the employment relationship commenced prior to the enactment of the2013 law. In one case, the employment relationship lasted eight years, in three cases itlasted five years, and in the sole case where it started after 2013, it lasted just sevenmonths. The hourly workload varied between five and fifty-four hours per week. Inthree of the cases, the domestic worker performed less than sixteen hours per week,and in two, over forty. Thus, the compensations the plaintiffs sought also variedsignificantly. Beyond these differences, formalisation was the main argumentpresented in all of the lawsuits examined, despite the fact that all of the reportedlabour relations were registered.

37 Formalisation is presented as the main goal when a worker is employed informally, but

it becomes a source of suspicion and accusations when a worker is, in fact, registered.The certifications given by the Public Treasure do not constitute valid proof becausethe assumption is that the employers could have falsified said documents.Consequently, the status of the labour relationship – formal, formalised but inaccurate,or informal – is a matter of dispute at the Domestic Work Tribunal.

2.2 Formalisation as a legal strategy

38 Once the labour contract is broken, the attorneys representing the domestic workers

generally based their arguments on non-registration (or partial and/or inaccurateregistration). According to these attorneys, because the employer broke the law by notregistering the domestic worker, or not accurately reporting her hours, tasksperformed, etc. s/he must pay the full severance established by the law. This strategy isused at every step of the legal process, but especially in the certified letters exchangedprior to filing the lawsuit. The first certified letter sent by the domestic worker – asdictated by her legal counsel – always begins with variations of two legal formulas : “I

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urge you to clarify the status of my employment” or “I urge you to proceed to(accurately) register the employment relationship”. There is an implicit accusation inthese formulas. The employer is the one who put an end to the labour – and also thepersonal – relationship through his/her crafty and illegal behaviour. The numerouscertified letters included in the corpus of 156 legal files describe informality as thegreatest possible affront. In the five files analysed here, for example, the secondcertified letter sent by a domestic worker in response to her employer's response to herfirst certified letter, stated :

“Your response reveals that you shall not proceed with the legal registration of theemployment relationship that binds us according to the information provided inmy previous letters. (…) It therefore follows that you shall not proceed to make thesocial security contributions corresponding to my actual time of service, labourcategory and working hours. Each of these circumstances constitutes affronts ofsuch magnitude that they prevent me from continuing as your employee. I see thisas a serious affront and consider this a dismissal for which you are exclusively toblame.”

39 The employers’ responses reveal a similar use of a legal vocabulary that appears to

have deep moral connotations (from an external perspective). The denial of all claims isa basic legal strategy. For this reason, one employer denied each and every accusationthe worker presented in her first and handwritten certified letter :

“I reject the allegations of your telegram as false and inapplicable. I firmly deny anyemployment relationship with you. I therefore deny the termination of a job thatnever existed and state that there is thus no employment status requiringclarification. I shall not proceed to register the employment relationship you falselyallege and, in this regard, I reject as false the start date, salary, tasks, and work daydescribed in your allegations. I reject the application of Law 24,013. I reject thenotice to deliver salary receipts, proof of social security and health insurancepayments. I insist that no employment relationship exists. I deny the existence ofovertime. I reject the written warnings. You are hereby notified.”

40 Thus, the demand for formalisation serves as the central argument of the misdoings in

the certified letters in which the parties vie to intimidate one another, guided by thestandardised legal formulas to resolve labour disputes. In the claims presented bydomestic worker attorneys, non-registration or partial registration is also afundamental allegation, especially because it allows the regular amounts due forunjustified dismissal to be doubled, as provided for in Article 50 of the 2013 law. Byincluding a demand for extremely elevated severance pay in the lawsuit, attorneys fordomestic worker exert pressure on the defendant during the negotiations at theconciliatory hearing, though these demands rarely result in the highest compensationpossible.

41 During one hearing in which the plaintiff was demanding a particularly high

compensation, the negotiation played out as follows :

Employer’s attorney : I can make you an offer, but I can't offer you that. I willacknowledge the length of service that’s on the record.Worker’s attorney : Without any fines ?12 Employer’s attorney : I’m going to talk to my client about that, because he didn’teven know about the lawsuit until Wednesday, when his daughter handed him thenotice. I then couldn’t come into court to see the contents of the suit until Friday. Ifyou say she wants 141,000 pesos, I’ll tell you no flat out.Mediator : According to my calculation, the full amount of the lawsuit without thefine would be 72,000 pesos. Employer’s attorney : You tell me how much it is... Tell me what you're thinking...

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Worker’s attorney : I’m not willing to let you off without paying the annual bonus.Employer’s attorney : Not even for 58,000 ? If you say 58, I’ll see what my clientsays.Worker’s attorney : At least the total amount stated in the suit.Employer’s attorney : If it's 72,000, I can tell you, that’s not going to fly. I’ll talk tomy client, though. Mediator : But 58,000 would be 70 % of the amount of the lawsuit. What does yourclient think ? Worker’s attorney : My client will accept whatever I advise her to accept. But I amnot willing to have you only acknowledge the length of service that’s on the record.

42 The employer’s attorney exits to speak with his client and when he returns, he says :

Employer’s attorney : I’ve got him up to 45,000. If you come back with 50,000, Icould get him to do that in three monthly instalments.The worker’s attorney shakes her head.Mediator : Could it be 60,000 in three instalments ?Worker’s attorney : Well, I’ll have to see. I had told her it would be 85,000 withinterest. I’m going to see what she says.

43 She exits and when she returns, she agrees to the proposal.

44 This exchange shows that the amount established in the lawsuit represents only a

benchmark for negotiation that the employer’s attorney may quickly dismiss asunfeasible. Even the domestic worker knows they are not likely to receive the fullamount, though this is rarely stated. In this case, the point of reference was thecalculation made by the mediator, which includes only a set of items that there is noneed to prove. On other occasions, however – even when it is evident that demanding ahigh settlement is a strategy and not what they are actually expecting – it can functionas an effective bargaining tool if domestic workers refuse to accept considerably lessthan they are seeking in their demand. However, this legal strategy loses itseffectiveness when the parties in conflict translate legal language into everydaylanguage and begin interpreting the proceedings from an emotional point of view.

45 In the five cases analysed, the final settlement amounts in almost all the conciliatory

agreements ranged from 30 to 42 per cent of the amount stated in the lawsuit. In justone case, which we will examine in detail in Section 2.3, the settlement reached 53 percent of the amount the worker was seeking. In all cases, these percentages covered atleast 70 per cent of the categories that there is no need to prove. For the court, 70 percent of the total for these categories is the baseline, and it will not approve anyagreement between the parties that does not reach this threshold. Although thestrategy of maximising the amount a worker is seeking can be effective whennegotiating a settlement in the conciliatory hearings, the actual amount – generallyless than 40 per cent of the original number – is a source of great disappointment forthe domestic workers. As it appears during the fieldwork, their attorneys, who oftenmismanage these expectations and do not give domestic workers the full picture fromthe outset, are generally to blame. This is especially the case when the settlement ispaid in two or three monthly instalments and does not cover the contribution of backdues that allows her access to social security benefits.

2.3 Informality as proof of disregard

46 Although formalisation is frequently used by lawyers as a negotiating strategy,

domestic workers and employers often find it difficult to understand, especially in

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cases when the worker was, in fact, registered at the time of the dismissal. Oneparticularity of labour conflicts in this sector is that, for the parties in conflict, thefocus of the dispute is mainly affective, related to the breach of trust that structuresthis particular work relationship. Due to the nature of the performed tasks and theproximity between employer and employee resulting from the fact that the workplaceis the employer’s home, emotional ties and intimacy are embedded in the labourrelationship. Thus, the parties view the judicial claim as a violent interruption of thepersonal and affective agreement which is the basis of this labour contract.

47 When the domestic worker makes an arrangement understood as part of the private

sphere public, this represents a provocation for employers. This is because, on the onehand, it enables third parties to get involved in the relationship, and because – like inthese five cases – it involved a false allegation regarding the informal status of theemployment. The domestic workers experience the interruption of the employmentrelationship as the breaking point in the affective relationship. The judicial claimhighlights the fact that employment is a contractual relationship governed by the law,not affection. Likewise, the different stages of the administrative procedure increasethe upset and misunderstandings, given that the aforementioned legal formulas – suchas “I firmly deny any employment relationship with you” or “I reject the allegations ofyour telegram as false and malicious” – lose the meaning they are attributed in judicialproceedings and take on the sense they hold in everyday language. In the certifiedletters and written complaints, the refusal to recognise what the plaintiff is describing– and the use of terms such as ‘fallacious’, ‘malicious’ and ‘false’ – are interpreted bythe workers as a sign of contempt and a form of aggression that calls into questiontheir honesty. Both parties then feel that the bond of trust that united them haseroded, leading them to express strong, and at times even uncompromising, positions.In these cases, the worker and the employer became unwilling to find a middle groundbecause they feel personally betrayed. For the domestic workers, the judicialproceedings are indicative of the employer’s refusal to recognise the work she hasperformed ; for the employers, the lawsuit questions their position as a good employer.

48 In the five cases analysed, the only one in which the domestic worker obtained more

than 53 per cent of the amount sought in the lawsuit was where the worker put downher foot when offered less. At the beginning of the hearing, her attorney stated, “Shesays that they mistreated her and she is furious that they denied the relationship.“They denied I exist”, she told me. And I explained to her that this is what lawyersdo…” At the hearing, after several hours of negotiations between the parties and twocourt mediators, the domestic worker had resoundingly refused to accept payment foronly the items that do not need to be proved. Ultimately, the defendant agreed to paymore than that total. The following is an excerpt from the hearing :

Worker’s attorney : This offer is a good one since, as the mediator noted, it coversthe items and more. But it's your decision.Mediator (1) : We're at the point where the other party still hasn’t proved anything.But the number isn’t too bad, because it covers all the items.Worker’s attorney : Tell us what you think.Worker : No.Worker’s attorney : They aren't going to be able to make a better offer. Worker : No, no. Mediator (1) : If this goes to court, you're going to have to prove everything you'vesaid. The court can accept all you've said, accept some of what you've said, or eventhrow the case out if you can't prove everything. The five years this could take

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many not mean much to you, but the problem is the witnesses. It can be impossibleto find witnesses after so much time goes by. Did the witnesses see you working atthe house ?Worker : They're all neighbours and one of them had a car for hire. He would pickme up when they needed me there at seven AM.Mediator (1) : That’s why... The thing is, they can't testify that you worked there orstate your work hours, or the tasks you performed, because they never went intothe house and didn't see anything.Worker’s attorney : The problem is what happens if they realise that those twowitnesses will not be able to establish you worked there... I believe what you'resaying. I believe you, but the court makes its decision based on what can be proved. Mediator (1) : Plus, it's a very good settlement, and they're offering to cover all theitems.Mediator (2) : Why are you so set against it ?Worker : Because of the way they fired me and what they accused me of. They sayI’m a liar, that I never worked for them.

49 This same situation appears time and again in the different hearings, showing that the

legal formulas that attorneys routinely and banally employ are a source of a widevariety of personal disputes. The number of situations in which one of the parties feltunrecognised, or even despised by the other, reappear and come to life in these ‘firmdenials’ and these accusations of falsehood and malice. For the workers as well as fortheir employers, bringing formalisation into the context of court proceedings is asource of great disappointment : what had been a relationship of mutual trust is now asource of mistrust, scorn, and total disregard for one another. During the proceedings,legal formulas are frequently translated into the daily language of emotion. Instead ofcontributing to resolve the conflicts between domestic workers and their employers,this worsens matters, propelling them into a personal terrain where mistrust preventsany type of conciliation outside of that provided by law. For this reason, the use offormalisation as a central argument for the claims makes it difficult to resolve theconflict in most cases.

Concluding remarks

50 Formalisation became the cornerstone of labour and social rights starting in 2000,

when the newly created Social Security Regime for Domestic Workers indirectlyamended the 1956 special regime. Despite the fact that, by 2004, all domestic workersqualified for formal employment within the existing regulatory framework – vis-à-visthe 1956 regime, the social security regimen specific to the sector and introduced in1999, or the single tax regime as amended in 2004 – informality persisted as the resultof individual decisions to not comply with the law. For that reason, the state hasfocused on developing mechanisms to encourage registration since 2005. In 2013,although Law 26,844 further streamlined formalisation by allowing all domesticworkers to be covered by legislation, the state continued to offer more incentives forboth employers and domestic workers to voluntarily register. At the same time, itintroduced new mechanisms for enforcing formalisation as well.

51 Worker organisations supported all of these initiatives and use the different media

available to them to keep their members – and domestic workers in general – informedof their rights. In addition, the press has also kept the topic relevant, though it hasalternated between praising and condemning the government’s initiatives. Social

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media has also played a fundamental role. The demand for formalisation has thusbecome a case in point of legitimate claims for the recognition of domestic workers’labour and social security rights.

52 Due to the emphasis on informality over the past two decades, formalisation has also

become a legitimate claim in the labour conflicts heard at the Domestic Work Tribunalin Buenos Aires. The most commonly cited cause in litigation at the tribunal is non-registration or partial registration. According to the attorneys of domestic workers,citing formalisation is an effective bargaining strategy, though its impact on the partiesto the conflict is not always clear. At the micro-level of the legal process, formalisationis viewed as the key to recognising domestic worker rights but also a time-savingmethod to affirm the employer’s liability. Because of the characteristics of theworkplace, it is almost impossible to establish which rights were respected in theeveryday practices at the household. Thus, the best legal strategy for domestic workerattorneys is to denounce complete non-compliance, even in cases in which domesticworkers were formally employed. The use of formalisation as a legitimate legal claimcan only be understood within a larger framework in which formalisation indisputablybecome synonymous with domestic worker rights.

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NOTES

1. Regional Employment Programme for Latin America – ILO.

2. Presidential Decree 326/56, January 14, 1956, Argentina.

3. Law 25239, December 31, 1999, Argentina.

4. Presidential Decree 804/04, June 23, 2004.

5. The Single Tax Regime is a Special Tax and Social Security Regime for low-income taxpayers

established in 1998.

6. Law 26844 (Special Regime of Employment Contract for Domestic Workers), April 12, 2013,

Argentina.

7. Law 26063 (Tax Reform), December 5, 2005, Argentina.

8. Public Treasury Resolution 3492/13, April 30, 2013.

9. Public Treasury Resolution 2927/10, October 21, 2010.

10. Public Treasury Resolution 3828/16, February 19, 2016.

11. Francisca Pereyra conducted focus groups interviews with employers in 2011 and 2017, and

with domestic workers in 2017.

12. The fines refer here are the ones of the Article 50 of Law 26,844 (mentioned above).

ABSTRACTS

In Argentina, the majority of domestic workers are not registered. The combination of a lack of

regulatory frameworks, limited inspection capabilities on the part of the state, and the culturally

entrenched notion of domestic work as “servitude” and “help” has made informality the rule for

paid domestic workers. Thus, formalisation is considered fundamental for the recognition of the

social and labour rights, at both the policy and individual levels. The latter is evident in the

process of labour disputes resolution established by the Domestic Work Tribunal in Buenos Aires.

As a consequence, this article seeks to understand how the demand for formalisation appears at

the centre of disputes over the recognition of rights at the Domestic Work Tribunal, becoming a

judicial claim. How is formalisation used in the context of an individual labour dispute at the

tribunal?

This paper, which is divided into two sections, draws on a study of the legal framework for paid

domestic work, a quantitative and qualitative analysis of 156 judicial files and 1,000 rulings, and

four months of ethnographic fieldwork. The first section analyses the way in which the process

of formalisation is discussed, conceived, and implemented at the international and national level,

and the way it is appropriated by employers and domestic workers. The second focuses on the

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dispute resolution process in which the meaning of formalisation changes according to the

diverse actors involved.

INDEX

Palavras-chave: Paid domestic work, formalisation, informality, labour regulation, labour

justice

AUTHOR

LORENA POBLETE

CONICET-IDAES/UNSAM, Argentina, lorena.poblet [at]

conicet.gov.ar

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Rompendo uma clandestinidadelegalGénese e evolução do movimento dos cuidadores e das cuidadorasinformais em Portugal

José Soeiro e Mafalda Araújo

1 Talvez se possa dizer do surgimento de um movimento de cuidadores e cuidadoras

informais em Portugal aquilo que Bourdieu declarou acerca das mobilizações dedesempregados em França. Trata-se de um verdadeiro “milagre social”, por arrancar “àinvisibilidade, ao isolamento, ao silêncio, em suma, à inexistência” (Bourdieu, 1998 :122) um grupo de pessoas cujas condições materiais e subjetivas tenderiam,precisamente, a contribuir para o afastamento da ação coletiva. A dispersão eatomização social das cuidadoras, as circunstâncias que as remetem para uma espéciede confinamento doméstico que tende a isolá-las de redes de sociabilidade maisalargadas, o registo fatalista em que se vivencia a prestação de cuidados como umencargo necessariamente decorrente das obrigações familiares, a ausência de umantagonista claro contra o qual opor-se ou ao qual dirigir-se, a própria escassez oumesmo ausência de tempo para si e para outras tarefas para além das que decorrem daassistência prestada aos outros, são tudo fatores que concorrem pesadamente para aimprobabilidade sociológica de um tal movimento. E no entanto, contrariandodificuldades estruturais e disposições conformistas, ele irrompeu no nosso país.

2 A primeira conquista deste movimento, como notou Bourdieu acerca dessa outra

experiência de meados da década de 1990, “é o próprio movimento” (1998 : 122). Isto é,a transformação de uma experiência vivida de forma isolada e frequentemente numregisto de sofrimento numa identidade de luta, a criação de espaços de encontro e oestabelecimento de um programa de objetivos comuns. Mas além disso, esse movimentoconseguiu alcançar, no espaço de tempo relativamente curto que aqui analisaremos(entre junho de 2016 e julho de 2019), não apenas o “direito a existir” mas também umarápida centralidade no debate público e no campo político.

3 Se as premissas presentes nos movimentos por uma cidadania dos cuidados (Casas-

Cortes, 2019) podem ter bases comunicantes com as que subjazem ao regime

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familialista de organização dos cuidados (centralidade da família e dos cuidados não-profissionais ; relações não mercantis de apoio, de reciprocidade e de solidariedadeintra e intergeracional ; divisão sexual do trabalho reprodutivo), valerá a pena assinalartambém o quanto a sua existência pode contribuir para repensar esse mesmo regime eas relações que nele se estabelecem entre Estado, “ sociedade civil secundária », famíliae redes de solidariedade no campo dos cuidados (Santos, 1990 ; Ferreira, 2000).

4 Assim, analisaremos o modo como se construiu a temática dos cuidadores e cuidadoras

informais como um problema público, o quadro de oportunidades políticas que forampotenciadas, o surgimento de uma galáxia de coletivos e de organizações social epoliticamente mobilizadas, o tecimento de amplas alianças, os mecanismos deformalização e institucionalização que se iniciaram, os repertórios de ação mobilizados,a agenda de reivindicações e o processo político-legislativo desencadeado por estemovimento. O que pretendemos apresentar é mais do que um mero inventário deacontecimentos e de episódios. É, acima de tudo, uma reflexão sobre as estratégiaspostas em marcha e sobre as possibilidades que este processo abriu no sentido de serepensar a própria organização social dos cuidados no nosso país.

Breve nota metodológica

5 Nas próximas linhas, procuraremos retomar o fio dos acontecimentos que explicam a

estruturação desta experiência de mobilização em torno dos cuidados informais eoferecer uma interpretação sobre o percurso, as tensões e as características desteprocesso de subjetivação coletiva. Por cuidados informais entendemos aqui aqueles quesão prestados por familiares e amigos (vizinhos, nomeadamente), a tempo inteiro ou deforma parcial, sem remuneração ou contrapartida mercantil, e que incluem atividadesde assistência na alimentação, na higiene pessoal, em tarefas básicas de saúde e demanutenção quotidiana ou no apoio emocional, por exemplo (Cès et al., 2019 ; ILO,2018 ; Lopes et al, 2017 ; Lopes, 2017 ; Alves, 2015 ; São José, 2012). Optámos por falar emsubjetivação coletiva para acentuar a dimensão processual da constituição de ummovimento de auto-representação pública dos cuidadores e cuidadoras informaisenquanto ator coletivo, no período entre 2016 e 2019, que terá como principal resultadoorganizativo a constituição de uma Associação Nacional de Cuidadores Informais, masque compreende, como apontaremos, uma galáxia de alianças mais vasta.

6 Do ponto de vista metodológico, sublinhamos quatro elementos fundamentais sob os

quais assenta a análise que aqui propomos a debate.

7 Em primeiro lugar, foi realizado um levantamento exaustivo de todas as iniciativas

públicas organizadas pelos promotores da petição pela criação de um Estatuto doCuidador Informal e, mais tarde, pela Associação Nacional de Cuidadores Informais(ANCI). Essa identificação assentou na análise quer das notícias da imprensa no períodoidentificado (junho de 2016 a julho de 2019), quer de uma cronologia criada por umadas protagonistas deste movimento e primeira presidente da ANCI, cronologia essa quetraduz a seleção dos momentos significativos identificados pelos próprios protagonistasdestas ações. Nesse levantamento procurou caracterizar-se as iniciativas tendo emconta : i) os repertórios de ação mobilizados ; ii) o número de participantes ; iii) asalianças estabelecidas em cada ação ; iv) e o eco mediático produzido.

8 Em segundo lugar, foi feita a transcrição e análise de conteúdo de todas as intervenções

realizadas no debate público sobre as “ Medidas de Apoio ao Cuidador Informal » que

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ocorreu em fevereiro de 2018 no Parlamento e que contou com a participação e otestemunho de dezenas de cuidadores e cuidadoras informais. Esse material é de umaenorme riqueza : pelo conteúdo do conjunto de narrativas biográficas de uma amostramuito plural de cuidadores e cuidadoras informais (do ponto de vista territorial, etárioe de grupos de pessoas cuidadas) mas também pelo valor performativo do discurso,num contexto em que tomar a palavra não era apenas um ato narrativo, mas era já umaação de inscrição política, a partir da experiência subjetiva, do tema dos cuidadosinformais.

9 Em terceiro lugar, fez-se o levantamento de todas as iniciativas legislativas (projetos de

resolução, projetos de lei e propostas de lei) relativas ao tema dos CuidadoresInformais, procedendo-se a uma análise categorial (apresentada de forma maisdetalhada pelos autores num outro artigo) a partir da identificação das principaisquestões levantadas pelas organizações de cuidadores e cuidadoras informais e de umatipologia sobre as respostas de política pública apresentadas pelos agentes políticos,num enquadramento para os cuidados informais que oscila entre um eixo maisfamilialista, assente no reconhecimento dos cuidados por via de transferências diretasàs famílias ; e um eixo mais baseado na desfamiliarização destes cuidados pelo reforçoda sua provisão profissional, seja diretamente pelos serviços públicos, seja através doincremento de respostas sociais do setor particular e cooperativo financiadas peloEstado.

10 Em quarto lugar, este trabalho foi complementado com o registo áudio de conversas

(preferimos o termo a entrevistas, para reforçar a importância e o valor epistemológicodo caráter convivial e pouco hierárquico desses momentos de troca de conhecimentos ede confronto de interpretações) com três das pessoas que estiveram na origem desteprocesso, isto é, da criação da petição e, posteriormente, da Associação Nacional.

11 Por último, vale a pena sublinhar que a reflexão que aqui se oferece à discussão resulta

também – e precisamente – dessas conversas e da nossa participação e observaçãoimplicada em alguns dos processos aqui descritos. O reconhecimento da experiênciasocial da luta como fonte de produção de conhecimento, de re-significação e detrabalho cognitivo coletivo é para nós um instrumento epistemológico de autodefesados investigadores e investigadoras contra as armadilhas da “ curiosidade diletante » eda “ confiança arrogante » na prática científica (Santos 2018 : 60). Assim, a triangulaçãode saberes e de experiências – que se somam aos mecanismos de objetivação sociológicaque nos são dados pela observação rigorosa das técnicas e dos protocolos decientificidade da disciplina – desenvolveu-se no processo de escrita deste artigo, masfar-se-á sobretudo, assim o desejamos, no debate e na interação que ele possa suscitarpor parte dos seus leitores e leitoras.

Trabalho reprodutivo e lutas sociais pela cidadaniados cuidados

12 O movimento das cuidadoras e dos cuidadores informais não é um processo isolado na

luta pelo reconhecimento e visibilização do trabalho reprodutivo. De facto, já nasdécadas de 60 e 70 do século XX, a luta pela visibilização social do trabalho reprodutivo(principalmente o doméstico) tornou-se então, no entendimento de algumas autorasfeministas, no “ principal campo de batalha para as mulheres », denunciando-se adivisão sexual do trabalho e as dimensões opressoras, ao nível do género e das políticas

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sociais, subjacentes a essa divisão (Federici, 2013 : 72). Ao tornar evidente aprodutividade da “fábrica social” (James, 2012 : 51-2), ao descrever “como a força detrabalho é produzida e reproduzida quando é diariamente consumida na fábrica ou noescritório”, a identificação desse “trabalho das mulheres” pretendia enfatizar o quantoesta realidade as colocava as numa posição social considerada “degradante” : a deserem “as funcionárias pessoais dos homens”.

13 A reivindicação em torno de um salário doméstico era, no quadro destes movimentos e

destas correntes políticas, uma luta com o alcance estratégico de promover umatransformação radical do modelo de reprodução social existente. Contrariando ainstitucionalização das mulheres no lar (Federici, 2013 : 94), esta era uma propostatática com vista à transformação deste destino forçado ; isto é, tinha como objetivoretirar da clandestinidade política o trabalho feminino não reconhecido com vista aextingui-lo (e não a reificá-lo) enquanto trabalho não livre, imposto, gratuito, emborasocialmente útil e produtivo. Segundo Silvia Federici, a campanha pelo saláriodoméstico teria também o mérito de criar uma identificação coletiva e uma mobilizaçãoem torno de um objetivo concreto : o de rejeitar o trabalho doméstico enquantotrabalho gratuito subjacente a uma suposta missão de género que as mulheresdeveriam concretizar.

14 Não faltam, na literatura sociológica e particularmente nas perspetivas feministas,

reflexões também sobre a questão dos cuidados. Elas foram sendo propostas a partir deuma crítica feminista da economia centrada no chamado “ trabalho produtivo »(Waring, 1988 ; Ferber e Nelson, 1993), trabalhando analiticamente com conceitos comoa “ racionalidade dos cuidados » (Waerness, 1987), desenvolvendo considerações sobreo problema de saber como “ cuidar dos cuidadores » (Kittay et al., 2005), a partir de umaperspetiva que procurou problematizar a própria “ lógica dos cuidados » (Mol, 2008), ouda sugestão de uma “ economia púrpura » como visão alternativa aos paradigmasdominantes na macroenomia, capaz de tratar o cuidado como um bem público e umdireito humano básico (Ilkkaracan, 2013).

15 Também a afirmação da categoria de “ cuidador » e de “ cuidadora » informais foi

analisada tendo em conta as disputas com os profissionais e as lutas pela valorizaçãodos conhecimentos endógenos, produzidos pela experiência “ a partir de dentro »,através dos grupos de “ auto-ajuda », apresentando-se assim os cuidadores informaiscomo sujeitos de um conhecimento rival ao dos “ especialistas » externos (Barnes,2005). Os próprios movimentos das pessoas com deficiência produziram, nas últimasdécadas, um questionamento das políticas centradas numa abordagem médica dadependência, do baixo nível de apoio e de serviços disponibilizados, que abrangiatambém uma crítica à desconsideração dos cuidados nos paradigmas dominantes e aosobstáculos à autonomia das pessoas cuidadas (Fontes, 2016). Por outro lado, váriosestudos sobre o “ trabalho do cuidado informal » procuraram estimar o seu pesoeconómico e identificar os aspetos subjetivamente positivos e negativos da experiênciainformal de cuidar (Keating et al, 2013 ; Alves, 2015 ; Cès et al., 2019)

16 As lutas sociais e políticas em torno desta questão foram também abordadas

abundantemente a partir da ética dos cuidados (Gilligan, 1982), das teorias da justiça(Fraser, 2008) e do reconhecimento (Fraser e Honneth, 2013), dos cuidados comodimensão da democracia (Tronto, 2013) ou dos conflitos em torno dos mecanismos desilenciamento e invisibilização dos cuidados e das lutas pela sua regulação na esferaformal da política, nomeadamente tendo em conta diferentes “ regimes emocionais »

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(Dahl, 2017). Finalmente, no contexto dos ativismos contra a precariedade um poucopor toda a europa, coletivos feministas propuseram, no caso do Estado espanhol, umnovo termo, “ cuidadanía » (uma cidadania dos cuidados) para interpretar estasdisputas. Como escreve Maribel Casas-Cortes (2019), este novo signo alteraradicalmente o prefixo da palavra cidadania e, com isso, a sua etimologia : o lugardianteiro do conceito deixa de ter por base a cidade, cedendo prioridade agora aoreconhecimento dos cuidados como a raíz de uma comunidade. Desenha-se, portanto,uma nova conceção de cidadania (e de imaginação de direitos fundamentais a elaassociados) que chama a si a construção coletiva de laços de solidariedade e relaçõescuidadoras, ou cuidadosas, realçando e reconhecendo a vulnerabilidade da vidahumana num contexto de precariedade social crescente, e a importância do reforço dainterdependência como ato disruptivo das lógicas atomizadoras neoliberais1 (Gilligan,2003 ; Puar, 2012 ; Tronto, 2013 ; Lorey, 2015).

17 A premissa basilar que é coincidente nos dois movimentos – da ética dos cuidados e do

ativismo contra a precariedade – assenta na noção de relacionalidade ; isto é, inerente àcondição humana está a interdependência mútua para a satisfação das mais básicasnecessidades, à conquista de “ uma vida que valha a pena ser vivida ». Oreconhecimento desta relacionalidade surge assim como proposta fundamental parauma ética “ feminista » dos cuidados, contrariando a racionalidade económica de ummodelo que desvaloriza as disposições cuidadoras (associadas a uma “ ética feminina »)como uma “ fraqueza moral », por oposição à independência e à auto-governação(associadas ao “ masculino »), que privilegia as conquistas individuais, que despromovea criação de laços afetivos e que prepara mais para “uma vida autónoma de trabalho2”do que para “uma interdependência de amor e cuidado” (Gilligan, 2003 : 17, traduçãolivre). A ética dos cuidados ou a luta pela cidadania cuidadora pode ser entendida, desteponto de vista, como uma prática de resistência, na qual todas as cidadãs e cidadãos sãosimultaneamente cuidadoras/es e receptoras/es de cuidado, sendo esta reciprocidade,interdependência e reconhecimento mútuos condição essencial para a construção daigualdade social (Tronto, 2013 : 29). É também ela que, implicitamente, parece permearas mobilizações dos cuidadores e cuidadoras.

Cuidados informais, modelo familialista e políticaspúblicas

18 Partindo das tipologias relativas à configuração dos Estados de bem-estar propostas por

Esping-Andersen, Pedro Adão e Silva (2002) chama a atenção para a especificidade domodelo característico dos países do Sul da Europa, argumentando pela necessidade deum quarto modelo, para além dos três identificados pelo sociólogo dinamarquês(corporativo, liberal e social-democrático) : o de tipo familialista. Nestes países,caracterizados pela criação tardia de um Estado-Social e pela doutrina social docatolicismo, as famílias são chamadas a preencher uma lacuna deixada pela fracaprovisão de serviços públicos disponíveis e acessíveis às mesmas : é este o modelo dereprodução social “ familialista » que configura a formação social portuguesa. EmPortugal, este modelo de “welfare mix pluralista” (Ferreira, 2000) traduz-se numaestruturação da prestação de cuidados com uma das menores taxas de cobertura aonível dos cuidados profissionais (Lopes, 2017), ao mesmo tempo que se estima que 80 %dos cuidados sejam prestados por cuidadores informais (Lopes et al, 2017). Entre o

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papel fundamental exercido pela sociedade-providência (Santos, 1993) e as respostasprivadas financiadas pelo Estado, que impulsionou um Terceiro Setor que é narealidade uma “sociedade civil secundária” (Santos, 1990), o desenho de políticaspúblicas tem vindo a desenvolver-se, nas últimas décadas, através de dois eixosfundamentais (Lopes, 2017). O primeiro diz respeito às transferências monetáriasdiretas do Estado para as famílias, como é o caso do subsídio por assistência à terceirapessoa e do complemento por dependência. Estas medidas compensatórias – destinadasa “ajudar as famílias a amparar os custos adicionais” por prestarem serviços nãoremunerados na qualidade de cuidadores principais – são, contudo, tão reduzidas queservem essencialmente para acudir a situações de pobreza e carência económica. Osegundo pilar assenta na provisão de cuidados pelos serviços públicos (o ServiçoNacional de Saúde, particularmente no âmbito dos cuidados de saúde primários e dasequipas de cuidados na comunidade) ou pelo setor semi-privado de cuidados,protagonizado pelas Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSSs) – com as quaiso Estado celebra acordos de cooperação, através dos quais financia as entidades quedetêm e gerem os equipamentos e as respostas, e no qual assenta a Rede de Serviços eEquipamentos Sociais (RSES). Esta resposta, na qual o Estado aparece essencialmentecomo co-financiador (a par das famílias, que pagam também uma comparticipação) temum peso relevante no Orçamento do Ministério do Trabalho, da Solidariedade e daSegurança Social : em 2019, estes acordos de cooperação entre o Estado e estasentidades do setor social privado correspondiam a 1.531,7 milhões de euros.

19 Ora, o movimento dos cuidadores e das cuidadoras informais procurou inscrever na

agenda política não apenas o reconhecimento do seu papel na ecologia dos cuidados(Nunes, 2019), mas também uma reflexão sobre a insuficiência ao nível daqueleprimeiro eixo da resposta pública, isto é, das transferências diretas às famílias pelaprestação não-remunerada de cuidados ou aos indivíduos pelas situações dedependência ; e um questionamento da forma como esses apoios se articulam, oucontrastam, com o investimento público nos cuidados formais, sobretudo aqueles quesão providos pelo setor particular e solidário, chamando a atenção para o queconsideravam ser uma discrepância entre o financiamento das respostas deinstitucionalização, por comparação com a aposta na domiciliação e no apoio direto aoscuidadores informais.

20 Considerando os documentos internacionais e as diretivas europeias produzidas na

última década, é indiscutível que o debate público sobre os cuidados informais nãocomeçou quando, em 2016, apareceram em Portugal as primeiras manifestações de umaauto-organização dos cuidadores e das cuidadoras. De facto, e só para assinalar algunsexemplos, o relatório da Comissão Europeia Caring and Post Caring in Europe (CE, 2010)assinalava no início da década existirem 9,6 milhões de famílias que proporcionam 35horas ou mais de cuidados semanais. Em 2011, o Parlamento Europeu aprovou umRelatório que convidava “os Estados-Membros a valorizar e reconhecer o papel doscuidados informais prestados pelos membros da família”3. Também na ONU, o valor dasatividades cuidadoras não remuneradas era explicitamente reconhecido pelo Relatóriodo Secretário-Geral em 2016. A rede EuroCarers, e a Associação “ Cuidadores Portugal »nela integrada, vinha insistindo, desde 2015, na necessidade de respostas para oscuidadores informais, quer através da pressão junto dos decisores europeus, quer dasinstituições portuguesas. Contudo, só muito recentemente esta temática foi objeto,quer a nível europeu, quer a nível internacional, de documentos e relatórios que

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produziram uma abordagem mais compreensiva do fenómeno, concretamente atravésdo estudo “ Informal care in Europe. Exploring Formalisation, Availability andQuality », promovido pela Comissão Europeia em abril de 2018 e, em junho dessemesmo ano, do relatório Care work and care jobs for the future of decent work, daautoria da Organização Internacional do Trabalho. Em Portugal, a centralidade dodebate não pode ser desligada da emergência do próprio movimento que aquiprocuramos retratar.

Quantos são os cuidadores e as cuidadoras informaisem Portugal ?

21 Em 2014, o Inquérito Nacional de Saúde estimava que existiam, aproximadamente, 1,1

milhões de pessoas “com 15 ou mais anos [que] prestava[m] assistência ou cuidadosinformais a outras pessoas que tinham problemas de saúde ou relacionados com avelhice”. Daquelas, “mais de 85 % (948 mil) prestava esses cuidados sobretudo afamiliares”4, e 470 mil dedicam-se a estes mais de dez horas por semana. Mas o que éfacto é que a verdadeira dimensão dos cuidadores informais permanece, ainda hoje,relativamente desconhecida no que ao nosso país diz respeito. Os dados disponíveisresultam, essencialmente, a partir de quatro fontes.

22 Por um lado, de extrapolações a partir de estudos noutros países. É o caso, por exemplo,

dos números avançados pela Eurocarers (Alves, 2015 ; Goodwin, 2017), que apontampara a existência de cerca de 8 % de cuidadores informais entre o total da população (oque significaria um valor absoluto na ordem dos 800 mil cuidadores em Portugal) e decerca de 25 % de cuidadores “a tempo inteiro” dentro do total das pessoas que prestamcuidados (o que corresponderia a cerca de 200 mil no nosso país). Estima-se que 80 %dos cuidados em Portugal sejam prestados por não-profissionais e, destes, a maioria pormulheres5. É o caso, também, das projeções da Comissão Europeia, a partir do Inquéritoà Qualidade de Vida de 2016, o qual, tomando o critério da prestação de cuidados “umaou mais vezes por semana”, situa essa percentagem em 13 % da população total e em3,6 % entre os trabalhadores assalariados (CE, 2018 : 19- 21).

23 Por outro lado, é possível tentar estimar o número de cuidadores informais a partir de

uma realidade relacionada : o número de pessoas dependentes. De acordo com oObservatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS, 2015 : 38), existiam em 2015 cercade 110.355 pessoas dependentes no autocuidado no domicílio, das quais 48.500 estariamacamadas.

24 O mesmo tipo de condição poderá ser calculada tomando por referência as prestações

sociais destinadas a pessoas dependentes. O Complemento por dependência, “umaprestação em dinheiro dada aos pensionistas que se encontram numa situação dedependência e que precisam da ajuda de outra pessoa para satisfazer as necessidadesbásicas da vida quotidiana” (ISS, 2019 : 4) é atribuído em Portugal a cerca de 220 milpessoas, distribuídas pelo complemento por dependência de primeiro grau (atribuído a“pessoas sem autonomia para satisfazer as necessidades básicas da vida quotidiana”),de que eram beneficiários, em janeiro de 2020, 178.895 indivíduos e pelo complementopor dependência de segundo grau (destinado a pessoas que, além da dependência de 1.ºgrau, se encontrem acamadas ou com demência grave), que abrangia, no mesmoperíodo, 40.733 beneficiários. A estes números de pensionistas dependentes podesomar-se o das pessoas a quem é atribuído o Subsídio por assistência de terceira pessoa

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(uma prestação mensal para compensar as famílias com descendentes, a receber abonode família com bonificação por deficiência, que estejam em situação de dependência eque necessitem do acompanhamento permanente), que totalizavam, em finais de 2019,cerca de 13 mil pessoas.

25 Contudo, para lá de um conhecimento quantitativo mais rigoroso do fenómeno, ainda

por realizar, o que constituiu novidade nos últimos anos não foi apenas umadesclandestinização estatística dos cuidadores informais de pessoas dependentes. Foisobretudo a emergência, pela primeira vez, de uma voz própria organizada doscuidadores e cuidadoras informais, que fez com que estes deixassem de ser apenasfalados para tomarem, também eles e elas, a palavra no debate.

Do espaço online aos Encontros Nacionais : da auto-ajuda à criação de um sujeito político

“Decorria o ano de 2015, quando eu, o Joaquim Ribeiro e a Anabela Lima começámosa comunicar entre nós através das redes sociais. Os três cuidávamos de familiarescom demência e partilhávamos a necessidade de obter informação e estratégiaspara melhor cuidar. Sentíamo-nos frustrados e indignados com a escassez deformação e informação prestada. Considerávamos uma profunda injustiça oscuidadores serem abandonados à sua sorte, sem lhes ser reconhecida a carreiracontributiva, direitos laborais ou apoio psicossocial.”6

26 O relato é de Sofia Figueiredo, que viria a ser, pouco mais de dois anos depois, a

primeira presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais. Passados poucosmeses das primeiras conversas, decorria a campanha para as eleições presidenciais eJoaquim Ribeiro, um dos três cuidadores que partilhavam inquietações através dasredes sociais, telefona para um fórum da TSF no qual intervém uma das candidatas àpresidência, a eurodeputada Marisa Matias. “O Joaquim telefonou para lá e perguntou-lhe que políticas pretendia adotar relativamente aos cuidadores”, explica Sofia. “Nofinal do programa, a Marisa Matias informou que tinha sido a relatora da EstratégiaEuropeia de combate ao Alzheimer e outras demências”. Sofia Figueiredo, cuidadora daavó com Alzheimer, aproveitou a deixa e contactou a candidata por e-mail.Combinaram que iriam conhecer-se pessoalmente à margem de uma iniciativa públicada campanha, em Almada. “Propus-lhe organizar um Encontro de cuidadores e elaaceitou”.

27 O Encontro Nacional aconteceria em julho daquele ano em Lisboa, no Auditório Cardeal

Cerejeira, da Universidade Católica de Lisboa. Os contactos e a divulgação foram feitosessencialmente através dos grupos de Facebook que, há alguns anos, vinham sendocriados. Na realidade, os cuidadores e cuidadoras que se encontrariam em Lisboanaquele verão não se conheciam a não ser do espaço virtual. Num contexto em queeram escassas as informações sobre o tipo de apoios de que podiam beneficiar, em que acapacitação para os cuidados parecia ser uma tarefa sob a responsabilidade exclusivados próprios e em que a maior parte dos cuidadores tinha grande dificuldade emdeslocar-se e em dispor de tempo para sair de casa, foram esses grupos nas redes sociaisque criaram os primeiros espaços de sociabilidade, assente essencialmente na troca deinformações e de “ dicas » sobre como lidar com as patologias, em desabafos sobre ocansaço e as dificuldades e numa dinâmica próxima de grupos de auto-ajuda. Mas foramtambém esses grupos que, involuntariamente, foram forjando os mecanismos deidentificação e o embrião do que poderia chamar-se uma “ consciência coletiva » dos

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cuidadores e das cuidadoras, que viria depois a ganhar corpo, nos anos seguintes, numprocesso de subjetivação política.

28 O 1º Encontro Nacional de Cuidadores Informais de Alzheimer e Demências Similares,

para o qual foi endereçado um convite a todos os partidos políticos com representaçãoparlamentar, teve a participação de 220 pessoas. Para além de dezenas de testemunhosde cuidadores e cuidadoras, que se iam reconhecendo nos relatos uns dos outros,destacou-se a necessidade de lutar pela criação de um Estatuto do Cuidador Informal(ECI) capaz de dar resposta, ao nível das políticas públicas, a muitas das necessidadesidentificadas.

29 Do encontro saiu então uma comissão responsável pela redação de uma petição pública,

dirigida ao Governo e ao Parlamento, que seria colocada online no início de agosto de2016.7 Ao longo de catorze pontos, a petição dos Cuidadores Informais de Alzheimer eoutras demências expôs a sua lista de reivindicações, na qual surgia em primeiro lugara criação do ECI, para que se reconhecesse “social e juridicamente a condição de cuidar,assegurando os direitos e as necessidades específicas do/a cuidador/a”. Ao nível dosapoios sociais, a petição exigiu : o apoio à terceira pessoa para estes/as cuidadores/as eatribuição do subsídio por morte da pessoa cuidada, bem como a criação de deduçõesfiscais. Ao nível de apoio psicossocial, sugeriu-se a divulgação de informação epromoção da formação, psicoeducação e aconselhamento para quem cuida, mediante acriação de estruturas de acompanhamento, do fomento de grupos de entreajuda e dacriação de equipas de intervenção neste sentido ; o reforço da Rede Nacional deCuidados Continuados para estes efeitos e para o descanso do/a cuidador/a. Ao nívellaboral, as exigências fixaram-se na redução de horário laboral para 50 % da jornada,sem perda de vencimento, bem como a contabilização do tempo dedicado ao serviço decuidados informais para efeitos de cálculo da reforma. Seria apenas o início de umpercurso.

30 A evolução cronológica do processo de mobilização iniciado pelos cuidadores e pelas

cuidadoras informais8 que dinamizaram aquela petição pode encontrar-se na tabelaseguinte. Ela documenta a evolução da trajetória deste assunto e deste movimento naagenda social e política entre 2016 e 2020.

Tabela 1. Cronologia de um processo de ação coletiva

2016

18 junho

2016

1º Encontro Nacional de Cuidadores Informais de Alzheimer e Demências Similares,

em Lisboa. 220 participantes.

3 agosto 2016 Lançamento da Petição pela criação do Estatuto do/a Cuidador /a Informal.

12 outubro

2016

Entrega da petição na Assembleia da República, com mais de 14 mil assinaturas.

Cordão humano em frente ao Parlamento.

2017

12 abril 2017 Audição dos peticionários no Parlamento.

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81

17 junho

2017

2º Encontro Nacional de Cuidadores Alzheimer e Demências Similares, no Porto. 166

participantes. Marisa Matias faz a abertura, Presidente da República, Marcelo Rebelo

de Sousa, faz o encerramento.

20 setembro

2017Concentração junto do Parlamento. 20 manifestantes.

2018

23 janeiro

2018

Divulgação, pelo Governo, do Relatório Medidas de Intervenção junto dos

Cuidadores Informais, da autoria de um Grupo de Trabalho coordenado por Manuel

Lopes.

23 fevereiro

2018

Sessão de debate público promovida pela Comissão de Trabalho e Segurança Social

da Assembleia da República sobre a apresentação do estudo “Medidas de

intervenção junto dos Cuidadores Informais”.

16 março

2018Concentração de Cuidadores e Cuidadoras frente ao Parlamento.

23 março

2018

Debate no Plenário da Assembleia da República da Petição para a criação do Estatuto

do Cuidador Informal, em conjunto com projetos de lei do Bloco Esquerda e do PCP e

projetos de resolução do CDS-PP e do PAN sobre o mesmo tema.

19 maio de

2019

Manifestação pelo Estatuto do Cuidador entre a Praça da Figueira e o Terreiro do

Paço. 150 pessoas marcam presença.

3 junho 20183º Encontro Nacional de Cuidadores Informais de Alzheimer e Demências Similares,

em Coimbra. 131 participantes.

13 junho

2018Criação da Associação Nacional de Cuidadores Informais.

15 junho

2018

Audição conjunta, no Parlamento, de um conjunto de associações na área dos

cuidados, dos idosos e da deficiência, no âmbito do Grupo de Trabalho que ficou

responsável do processo legislativo do “ Estatuto do Cuidador Informal ».

30 junho

2018Encontro regional de Cuidadores Informais, em Guimarães.

8 Setembro

2018

Encontro de Cuidadores Informais em Vila Nova de Cerveira, promovido pela

Associação Nacional de Cuidadores Informais. 220 participantes. Marisa Matias e

Marcelo Rebelo de Sousa fazem o encerramento do Encontro

27 e 28

Setembro

2018

Vigília junto à escadaria da Assembleia da República, com o objetivo de pressionar o

Governo a incluir verba no Orçamento do Estado para tornar viável o Estatuto do

Cuidador

2019

5 fevereiro

2019

Presidente da República recebe, no Palácio de Belém, cerca de 50 cuidadores, de

vários pontos do país, para recolher testemunhos.

Cidades, 40 | 2020

82

15 fevereiro

2019Governo divulga a sua proposta de lei com “ Medidas de apoio aos cuidadores ».

7 março 2019

Reuniões entre a Associação Nacional de Cuidadores Informais e vários partidos

políticos, incluindo o PAN, PSD e CDS, autores de novos projetos de lei que se

somariam aos do Bloco de Esquerda e do PCP, entregues em março do ano anterior

8 março 2019

Debate no Plenário da A.R. da proposta de lei do Governo e dos projetos de lei do

PSD, CDS e PAN, que baixam sem votação à Comissão, para se juntarem ao processo

de especialidade dos projetos de lei do Bloco de Esquerda e do PCP.

6 maio 2019

Reunião entre os dirigentes da Associação Nacional de Cuidadores Informais e o

Governo, representado pelas Secretárias de Estado da Saúde, Segurança Social e

Inclusão.

5 julho 2019 Aprovação por unanimidade, no Parlamento, do Estatuto do Cuidador Informal.

2020

10 janeiro de

2020

Publicação da primeira portaria que regulamenta os procedimentos para o

reconhecimento e manutenção do Estatuto do Cuidador Informal.

1 de junho de

2020

Início dos 30 projetos-piloto previstos na legislação que criou o Estatuto do cuidador

Informal

Elaboração própria a partir de dados obtidos por Sofia Figueiredo e outros autores não identificados.

31 Como demonstra a cronologia dos acontecimentos, o Encontro Nacional decorrido em

Lisboa foi o início da criação de uma rede e de uma articulação entre pessoas que, atéentão, nem sequer se auto-designavam como cuidadoras. Provou também o potencialde mobilização em torno dessa categoria. Ao colocarem-se como objetivo a dinamizaçãode uma petição, os seus organizadores e organizadoras estavam ainda a dar início a umprocesso que os obrigou a traduzir politicamente a sua condição, a formular umconjunto de exigências que cimentavam uma agenda comum e que faziam com que, deuma experiência vivida a partir de um posição de isolamento, pudesse nascer umasubjetividade de luta que identificava simultaneamente os interesses comuns daquelescuidadores e um interlocutor para eles – o Estado. Do ciberespaço como lugar deencontro e de partilha, emergiu então um “ espaço público híbrido » (Castells, 2012),feito da comunicação online mas também, a partir daquele momento, de convocatóriaspara encontros presenciais que seriam marcados pelo ritmo do processo político queacabava de ser lançado com aquela iniciativa.

A construção dos cuidadores informais como umproblema público

32 A construção de uma realidade como um problema público é tudo menos natural ou

espontânea. Com efeito, ela remete para um processo através do qual um dadoproblema social, muitas vezes latente ou experienciado num registo privado e desofrimento individual, adquire uma dimensão pública, em consequência das múltiplas

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formas de investimento social e de mobilização coletiva de diferentes atores (Henry,2009). Para isso contribuiu a estruturação de um campo militante em torno dofenómeno dos cuidados e a capacidade de “ marcar a agenda » do debate público, isto é,de criar um processo de visibilidade pública daquele problema social por via da suainscrição no espaço mediático e nas preocupações dos agentes políticos.

33 Na sequência do primeiro Encontro Nacional, há uma clara orientação, por parte dos

cuidadores e cuidadoras, de introduzir a sua causa no espaço público, recorrendo desdelogo a duas instâncias de mediação determinantes para o efeito : a comunicação social eo poder político. Essa operação constituiu, de algum modo, a primeira forma dereconhecimento pela qual o movimento dos cuidadores e cuidadoras lutou : afirmar aexistência de uma categoria de pessoas cuja experiência era preciso tornar visível e,consequentemente, garantir uma atenção pública por parte dos media que fossetambém uma forma de pressão para que o Estado se sentisse na obrigação de desenharrespostas políticas para esse problema.

34 A realidade dos cuidadores informais foi assim suscitando – sobretudo na sequência da

entrega da petição e da emergência de um interlocutor capaz de representar estefenómeno publicamente na primeira pessoa – um interesse crescente por parte dacomunicação social. Desde o início, os media foram identificados pelos cuidadores comoum aliado potencial e a atenção dedicada aos seus problemas beneficiou também do“ efeito novidade », que permitiu ampliar o impacto das suas ações. Buscando os casosque podiam dar rosto à experiência dos cuidadores, a cobertura das ações promovidaspelo grupo de peticionários assentou no resgate dessas histórias, razão pela qual, maisaté do que uma abordagem feita a partir das secções de política, os cuidadores ecuidadoras informais começaram a ser chamados para dar o seu testemunhos emprogramas classificados como de “ entretenimento » ou talk-shows generalistas9. Esseespaço mediático contribuiu para trazer para a esfera pública as narrativas biográficasde pessoas que, para utilizar um dos títulos das várias reportagens sobre o tema, foramdurante muito tempo “consideradas figuras clandestinas para o governo”.10

35 É impossível compreender a afirmação e o espaço conquistado pelo movimento dos

cuidadores sem ter em conta, também, a “estrutura de oportunidades políticas”(McAdam, 1982) em que ele se desenvolveu, isto é, o ambiente político externo no qualele operou, a relação que estabeleceu com os agentes institucionais, designadamente ospartidos políticos e o Presidente da República, a posição estratégica dos aliados que foicapaz de conquistar e a conjuntura política em que se dinamizou, na qual a própriaAssembleia da República, pela natureza da distribuição de mandatos e da soluçãopolítica encontrada entre 2015 e 2019 (um Governo minoritário, sustentado em acordosparlamentares), teve uma grande centralidade. Com efeito, o movimento doscuidadores e cuidadoras parece ter gerado um aparente consenso sobre a pertinênciadas suas reivindicações, facto ao qual uma certa predisposição familialista da sociedadeportuguesa, aliada ao “ apadrinhamento » da causa pela Presidência da República, nãoserão alheios.

Uma galáxia de coletivos e uma ampla política dealianças

36 A estruturação de um campo de organizações e coletivos informais de cuidadores e

cuidadoras foi um processo que resultou de uma crescente interação entre diferentes

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grupos, representativos de várias das facetas da realidade dos cuidados informais.Apesar de o processo político-legislativo ter sido impulsionado por uma petiçãoorganizada por cuidadoras e cuidadores informais de doentes com Alzheimer e outrasdemências, rapidamente a reivindicação de um Estatuto foi acolhida por uma miríadede outros grupos, que a tomaram também como sua. Esta galáxia de organizações, comdiversos graus de formalização e de história passada, acabou por envolver-se no debatelegislativo e por tecer, a partir dessa participação, alianças importantes de geometriavariável.

37 Na audição realizada no Parlamento no dia 15 de junho de 2018, no âmbito da

apreciação dos projetos de lei do Bloco de Esquerda, do PCP, e dos projetos de resoluçãodo CDS e do PAN, estiveram presentes entidades associadas às várias realidades doscuidados informais.

38 Os promotores da petição inicial encontravam-se sobretudo distribuídos por três

grupos : a Associação Nacional de Cuidadores Informais (ANCI), o grupo “ Peticionáriosda petição pública pela Criação de um Estatuto do Cuidador Informal da Pessoa comAlzheimer » e o Grupo de Facebook “ Estatuto do Cuidador Informal Já ». Da área dasdoenças neurodegenerativas, das demências e do envelhecimento precoce marcarampresença as associações Alzheimer Portugal e Agir no Tempo. Pelas organizaçõesrelacionadas com o envelhecimento e os direitos das pessoas idosas estiveram a APRe ! -Aposentados, Pensionistas e Reformados, o MURPI - Confederação Nacional deReformados, Pensionistas e Idosos, o MODERP – Movimento Democrático deReformados e Pensionistas (ligado à UGT) e a Inter-Reformados (ligada à CGTP). A estesjuntaram-se ainda um conjunto de organizações do universo da deficiência, como o Me-CDPD – Mecanismo Nacional para a Monitorização da Implementação da Convençãosobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a Associação Portuguesa de Deficientes ea Humanitas – Federação Portuguesa para a Deficiência Mental.

39 Por último, é importante referir a presença um dos setores que mais se mobilizou neste

processo e cujos testemunhos acabaram por ter uma grande repercussão : o das famíliasde crianças com deficiência, presentes por via da Associação Pais em Rede, da Acreditar– Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro, do grupo informal “ O céu é olimite », do movimento “ Filhos sem Voz » e da Familiarmente – Federação Portuguesadas Associações das Famílias de Pessoas com Experiência de Doença Mental. Presentesestiveram ainda a Plataforma Saúde em Diálogo e a associação Cuidadores Portugal.

40 Apesar da especificidade de cada abordagem e de preocupações e experiências distintas,

as mobilizações dos cuidadores acabaram por conseguir unificar estas dimensões doscuidados informais em palavras de ordem com as quais todos podiam identificar-se. “Oque é que nós somos ? Cuidadores ! O que é que nós queremos ? Dignidade !", gritou-se,por exemplo, na primeira manifestação, em setembro de 2017. “Justiça pelo Estatuto docuidador informal”- resumia um dos cartazes do movimento.

41 Nesta fase inicial, de facto, do que se tratava era essencialmente de retirar esta

realidade da invisibilidade e de uma certa clandestinidade legal, através dereivindicações que, no fundo, articulavam, para utilizar as categorias de Nancy Fraser(2018), a luta pelo reconhecimento (de um segmento da população cujo trabalho nãoera identificado enquanto tal e que, até ali, não tinha acesso a formas de representaçãocoletiva dos seus interesses enquanto cuidadores) com a luta pela redistribuição (isto é,por um conjunto de políticas sociais capazes de valorizar esse trabalho dos cuidadosinformais e de o tomar como plataforma de acesso a direitos e a proteção social).

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42 Esta articulação entre reconhecimento e redistribuição é possível de verificar

analisando as inscrições das pancartas e dos cartazes – todos eles fabricadosmanualmente – que os cuidadores e cuidadoras envergavam na concentraçãoconvocada pela Associação Nacional de Cuidadores Informais frente ao Parlamento, àqual se juntaram outros grupos informais, no dia em que os projetos de lei dos partidose a proposta de lei do Governo foram debatidos no plenário da Assembleia da República(tendo acabado por baixar ao debate na especialidade). Nesse dia 8 de março de 2019,podia ler-se nos cartazes : “Basta de ignorarem, os Cuidadores existem”, “Os cuidadoresinformais trabalham 24 horas, 365 dias por ano ! Respeito”, “Os Cuidadores exigemdignidade. Queremos o Estatuto do Cuidador aprovado”.

43 Nessa iniciativa, era possível perceber como o Estado se tornara já o principal

interlocutor em relação ao qual os cuidadores faziam as suas exigências, apontando-se ainexistência de políticas públicas especificamente dirigidas a este grupo social : “Nãoexiste vontade política para apoiar os cuidadores informais. A culpa é do Governo”,“Srs. Políticos : sabem quantos cuidadores existem em Portugal sem qualquer apoio doEstado ?”. Por outro lado, os materiais que os cuidadores e as cuidadoras carregavamnessa concentração exprimiam também a dualidade e a ambivalência que atravessa asua condição (Cès et al, 2019 : 10-11), vivida frequentemente na tensão entre um ethosassociado à dádiva afetiva (“Só pedimos dignidade e condições para cuidar com amor”)e a constatação das consequências negativas que o exercício dessa atividade de ummodo coercivo tem para aqueles e aquelas que a desempenham sem qualquer tipo deapoio e de enquadramento (“Devido ao stress e à exaustão muitos cuidadoresencontram-se de baixa médica ! Precisamos de ajuda !”). Simbolicamente, em mais doque uma destas ações, foram colocadas no espaço público silhuetas de figuras humanasfeitas em cartão, simbolizando aqueles e aquelas que não estavam presentes,precisamente, pela sua condição de cuidadores informais a tempo inteiro.

44 As alianças estabelecidas não se circunscreveram ao universo de associações e grupos

informais relacionados com a questão da dependência, do envelhecimento, dadeficiência e dos cuidados. Destacam-se, a esse nível, os contactos estabelecidos comdois intervenentes políticos. A ligação inicial estabelecida com a eurodeputada MarisaMatias, vice-presidente da Aliança Alzheimer Europeia, que tinha sido autora dorelatório sobre a iniciativa europeia em matéria de doença de Alzheimer, aprovada em2011 no Parlamento Europeu com uma larga maioria de votos (646 a favor, 6 contra e 6abstenções), no qual se instava ao reconhecimento “do papel dos cuidados informaisprestados pelos membros da família das pessoas afectadas por estas patologias”. E arelação estabelecida com o Presidente da República, que participou no 2º EncontroNacional de Cuidadores de Alzheimer e Demências Similares, realizado no Seminário deVilar, no Porto. Desde esse momento, em que manifestou publicamente o seu apoio àcausa dos cuidadores e à aprovação, em Portugal, de um Estatuto, o Presidenteconstituiu-se como um interlocutor privilegiado do movimento dos cuidadores e dascuidadoras informais. Com efeito, marcou presença num terceiro encontro, realizadoem Vila Nova de Cerveira a 8 de setembro de 2018, onde fez a intervenção deencerramento, na qual reiterou o seu compromisso com a luta dos cuidadores.11 A 5 denovembro desse ano, a Presidência assinalou publicamente o Dia do Cuidador, com umcomunicado em que apelava a que fossem vencidos os “preconceitos e obstáculosinstitucionais à criação do Estatuto do Cuidador Informal”12 e, em fevereiro de 2019, emparceria com a Associação Nacional de Cuidadores Informais, promoveu um encontro

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público, no Palácio de Belém, com cerca de 50 cuidadores e cuidadoras informais detodo o país, insistindo na urgência de um Estatuto.

45 Nesse ano de 2019, a Associação Nacional de Cuidadores Informais, cuja constituição

formal havia acontecido no verão de 2018, aglutinando elementos dos vários gruposinformais criados até então, fez uma ronda de contactos por todos os partidosparlamentares e logrou constituir-se como a entidade que assumia a interlocuçãoinstitucional e pública da experiência e das reivindicações dos cuidadores informais. Acapacidade de diálogo que foi sendo construída quer com os agentes políticos, quer comos media, foi um fator que potenciou a construção da causa e ampliou o espaço que elaconquistou no debate público.

Um repertório de ação eclético e a importância dotestemunho biográfico

46 O repertório de ação dos cuidadores informais neste período foi variado, combinando

os formatos mais recorrentes dos movimentos sociais. Entre setembro de 2017 e marçode 2019 foram realizadas quatro concentrações em frente ao Parlamento (a 20 desetembro de 2017, a 16 de março de 2018, a 23 de março de 2018 e a 8 de março de 2019).Estas ações foram marcadas por uma diversidade crescente do tipo de cuidadoresrepresentados, com uma presença cada vez mais forte dos pais e mães de crianças comdeficiência, que foram ganhando proeminência no movimento. Notava-se, por outrolado, uma discrepância entre o número reduzido de pessoas presentes (realidadeassumida e justificada pelos organizadores como resultado da dificuldade de a maioriados cuidadores informais se deslocar e deixar sem apoio a pessoa cuidada), em regraentre as 15 e as 30, e o impacto comunicacional destas presenças no espaço público.Desse ponto de vista, as tomadas de posição dos cuidadores dependeram em grandemedida dos media para terem eco na sociedade. De facto, recorrendo à categoria criadapor Patrick Champagne (1990) quando falava, a propósito do contexto francês, das“ manifestações de papel », poderemos considerar que os happennings políticos doscuidadores, ainda que acontecendo na rua, tiveram lugar nas páginas dos jornais e nastelevisões, pois foi esse o lugar que fez com que eles existissem publicamente e fossemreconhecidos pelo campo político.

47 Não foi apenas sob a forma de concentrações, no entanto, que a mobilização dos

cuidadores informais aconteceu. No dia da entrega da petição, em outubro de 2017,existiu também um cordão humano e, em setembro de 2018, um grupo de cuidadores ecuidadoras realizou uma vigília na escadaria do Parlamento, com o objetivo depressionar o Governo a incluir verba no Orçamento do Estado para tornar viável oEstatuto do Cuidador.

48 Em maio de 2019, um novo passo é dado : realiza-se a primeira manifestação de

cuidadores informais em Portugal, com cerca de 150 pessoas, que vai da Praça daFigueira, em Lisboa, até ao Terreiro do Paço, numa marcha onde se destacavam balõesde várias cores e cartazes desenhados por quem os erguia, e onde vários cuidadores ecuidadoras tomaram a palavra. A 23 de janeiro de 2018, o governo tornou público umrelatório sobre as políticas públicas para esta área intitulado Medidas de intervençãojunto dos Cuidadores Informais (Lopes et al., 2017), que viria a ser apresentado edebatido em fevereiro desse ano, numa sessão pública promovida pela Comissão de

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Trabalho e Segurança Social, onde mais de uma dezena de cuidadoras e cuidadorasinformais tomaram a palavra para dar o seu testemunho.

49 A importância do testemunho biográfico deve, de resto, ser destacada como uma das

características mais fortes do discurso público do movimento dos cuidadores informais,seja nas suas aparições mediáticas, seja nas manifestações de rua, seja na suaparticipação em momentos mais institucionais, como as sessões públicas ou as audiçõesparlamentares. Em todas elas, o discurso na primeira pessoa foi sempre dominante.Parece-nos, com efeito, que o ato performativo de contar a sua história deve serentendido, na construção do movimento, de duas formas. Ele é um mecanismo político(mais ou menos consciente) capaz de tornar público aquilo que tantas vezes é remetidopara a esfera privada e individual. Mas é também uma forma de envolvimento que tem,por um lado, a força da subjetividade e, por outro, o efeito terapêutico que éreconhecido aos processos narrativos enquanto formas de atribuição de significado ànossa própria experiência (Gonçalves, 2003 : 37). Isto mesmo foi evidente na sessãopública de apresentação do estudo Medidas de intervenção junto dos CuidadoresInformais, realizada em fevereiro de 2018, na qual cerca de uma dezena de cuidadores ecuidadoras tomaram a palavra.

“Desde os dezoito anos que fui mãe e cuido do meu filho há vinte e três anos. Elenem sequer se sentava, era como um vegetal. Fui eu que tratei de toda a suareabilitação e tudo particularmente e com ajuda de familiares. (...) Eu moro perto daEriceira, e venho quase todos os dias para Lisboa e é só o meu marido a ganhar e atrabalhar que nem um mouro, desculpem lá a expressão. E eu a não poder ter vidasocial, a não poder ter ah... temos que fugir a muita coisa. Ele (apontando para ofilho) por vezes quer ir a um concerto ou quer ir a algum lado e não pode ir, porqueeu tenho que ir com ele e dois bilhetes são muito dinheiro e nós não temos dinheiro.(...) Há vinte e três anos, eu vou-vos dizer, tinha dezoito anos, eu não estudei, agoratenho quarenta e um anos. Ah ? Agora digam-me : o que eu vou fazer da minha vidaagora ? Com quarenta e um anos, vou lavar escadas ? A empregada da limpeza ? Oque é que vocês têm para mim ? Durante vinte e três anos ninguém quis saber demim ! Se eu comia, se eu bebia, o que é que eu era, onde é que eu estava, que serhumano é que eu era. Eu sou um ser humano ! Com necessidades também. E não écento e um euros que me pagam as minhas necessidades. De certeza absoluta.”(Ana Isabel Almeida, 41 anos, Lisboa)

50 Relacionando a sua experiência biográfica com o debate em curso sobre o Estatuto do

Cuidador Informal, os testemunhos das cuidadoras e dos cuidadores não devem serlidos apenas como desabafos. Na realidade, a construção narrativa que o ato de contar asua história pressupõe comporta já uma dimensão de distanciamento face à experiênciae, portanto, um potencial de consciencialização e um efeito de politização. De facto, seas narrativas nunca exprimem apenas a factualidade de uma vivência, mas são sim aexpressão de uma forma de significação desses momentos vividos (Gonçalves, 2003 : 37),então não devemos descurar o quanto elas poderão ter contribuído, também, para umprocesso de subjetivação política que foi essencial à construção da condição de“ cuidador » como uma categoria de mobilização.

“Portanto, eu, o que me fica a mim, ainda, como angústia, e eu já sou ex-cuidadorahá quatro anos, é que depois de tudo o que eu passei, depois de tudo o queaconteceu, nós andamos constantemente a tentar que as coisas mudem, que alguémoiça, que alguém se mexa, e o que eu oiço e vejo essas pessoas todas e os problemassão todos iguais !”(Maria Anjos Catapirra, Grupo de Cuidadores Informais de Doentes de Alzheimer eDoenças Similares)

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51 Se as cuidadoras e os cuidadores informais eram já representados como um grupo

particularmente vulnerável, frágil, aquilo para que estes testemunhos vêm contribuir eque não pode ser ignorado (nem pelo saber académico nem pelo fazer político) é o seuauto-retrato enquanto sujeitos políticos precários, e essa experiência partilhada deprecariedade é vivida em termos ontológicos, existenciais e materiais (Puar, 2012). Ohorizonte de certezas e a fonte de equilíbrio que se espera dos cuidadores informaisquando essencializadas em categorias (como sendo “ a família ») torna-se precisamenteuma fonte de incerteza e instabilidade, não por si só, mas como consequência docontexto da economia política em que se inserem. Neste sentido, dizia nessa mesmasessão uma cuidadora informal :

“Lamento também, mas estes cuidadores informais de frágil pouco têm. Estescuidadores informais são muito fortes, são, sim, desamparados e esquecidos portodos nós.”(Ivone Silva, Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa)

52 De facto, nos testemunhos públicos das cuidadoras, podem identificar-se muitas das

contradições que atravessam a significação subjetiva da experiência dos cuidados e dassuas consequências. Neles estão presentes também os fundamentos materiais esimbólicos das principais reivindicações do movimento e a identificação do que seriam,para as cuidadoras, as medidas de política que poderiam responder aos seus problemas,nomeadamente em termos laborais, de apoios sociais e educativos, da consideração dotrabalho que desempenharam para efeitos de proteção social e de carreira contributivafutura, da possibilidade de descanso e a ausência de reais oportunidades dereconstrução de uma vida profissional após longas carreiras de cuidados informais.

“A partir do momento em que o diagnóstico foi feito à minha mãe, eu entendo que odiagnóstico foi feito para mim também. Portanto, pesa todos os dias na minhacabeça porque eu não tenho vida pessoal, não tenho, tive que alterar a minha vidaem digamos, em cem por cento para poder dar todo o apoio. Eu estou com 45 anos, aminha vida está totalmente alterada (...). Devo dizer que no ano passado, todo omeu período de férias foi usado única e exclusivamente para dar apoio à minhamãe, portanto eu própria não tive férias. Eu para poder cá estar hoje, eu tive quepagar a um cuidador para poder cuidar da minha mãe e custou-me dez euros à hora,para poder pernoitar com a minha mãe. Durante o dia, pediram-me seis euros,como devem perceber isto dá um forte impacto a nível do rendimento.(...) Alémdisso, no meu trabalho, as pessoas começam a revelar alguma insatisfação porque asentidades laborais, a maioria das pessoas não entende que eu tenho que terdisponibilidade para poder acompanhar a minha mãe. (...) queria só dizer que éurgente que se trate e que se faça porque realmente isto é um ónus demasiadopesado para os cuidadores. Nós precisamos de proteção”.(Nélida Aguiar, 45 anos, Madeira)

53 A especificidade de cada caso, que gradualmente foi sendo conhecida à medida que

estas audições e manifestações tomavam lugar, criou alianças entre cuidadorasinformais até aí atomizadas, aproximando inclusivamente o que poderíamos designarde “ subgrupos de especialização » dentro da prática dos cuidados : a multiplicidade depatologias ou de condições de deficiência traz consigo a correspondente diversidade demodos de cuidar, de aperfeiçoar esse ofício, mas também de consequências físicas,materiais e emocionais. Ao mesmo tempo, essa mesma especificidade não impediu que,perante esta partilha de experiências, tomasse lugar um sentimento de comunalidadesocial e de urgência política.

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Uma vitória incompleta : a aprovação do Estatuto doCuidador Informal

54 O desenvolvimento do processo de reconhecimento legal dos cuidadores e cuidadoras

informais iniciado em 2016 começa a adquirir maior concretização em 2018. É emmarço daquele ano que se debate no Parlamento a “ Petição para a criação do Estatutodo Cuidador Informal da pessoa com doença de Alzheimer e outras demências »,acompanhada de dois projetos de lei, do Bloco Esquerda e do PCP, e de dois projetos deresolução, do CDS-PP e do PAN, sobre o mesmo tema. As propostas não foram nessemomento votadas e os partidos mostraram-se disponíveis para procurar um consenso ediscutir as propostas na especialidade.

55 Em outubro de 2018, decorria ainda o debate na especialidade daqueles projetos, foi

inscrita no Orçamento do Estado uma norma legal que reconheceu a importância doscuidadores informais, apesar de não contemplar uma verba para concretizar essaintenção e, em fevereiro de 2019, o Governo apresentou uma proposta de lei, quesubmeteu ao Parlamento, com um conjunto de “ medidas de apoio aos CuidadoresInformais ». A 8 de março de 2019, a iniciativa do Governo, assim como novos projetosde lei do PSD, do CDS e do PAN, que visavam a criação do Estatuto, baixaram semvotação à Comissão de Trabalho, Solidariedade e Segurança Social para se juntarem àsiniciativas legislativas do BE e do PCP que já tinham sido entregues há um ano.

56 Entre esse momento e julho de 2019, quando o texto final que daria origem ao Estatuto

seria aprovado, desenvolveu-se um intenso debate público sobre as várias dimensões esoluções que deveriam dar corpo ao reconhecimento legal dos cuidadores informais. Ascategorias em torno das quais se fez essa discussão revelam os diferentesentendimentos que os intervenientes tinham sobre sete aspetos fundamentais : i) oestatuto ontológico dos cuidados (concebidos como trabalho coercivo ou como práticaafetiva voluntária13), ii) a responsabilidade predominante das famílias ou do Estado emassegurar a prestação de cuidados, iii) a definição do universo de cuidadores a quem sedeveria dirigir o Estatuto, iv) a articulação entre cuidados formais e informais e o tipode apoios que deveriam ser desenhados para cuidadores e cuidadoras informais, v) opapel do terceiro setor na provisão de respostas, vi) a retroatividade das medidas aimplementar e, finalmente, vii) o processo e o ritmo de consolidação das políticaspúblicas previstas no Estatuto.

57 De facto, uma questão preliminar prendia-se com a própria natureza do diploma legal

que seria aprovado. A proposta de lei do Governo, bem como a do PCP, apontava para“ medidas de apoio » que não eram formalizadas enquanto “ Estatuto ». Já as restantes,do Bloco de Esquerda, do PSD e do CDS, previam explicitamente a criação de umEstatuto. Sofia Figueiredo, à época presidente da Associação Nacional de Cuidadorescoloca assim este debate :

“O Governo anunciou um conjunto de medidas e foi questionado o porquê de nãoavançar com um Estatuto do Cuidador. O Senhor Ministro Vieira da Silva referiuque não era esse o entendimento do Governo, que não era o Estatuto que eranecessário, porque começar com um Estatuto era começar pelo teto. Mas o que nóspretendíamos era um estatuto, porque só o estatuto vai abranger as diversasdimensões que nós pretendemos – nomeadamente a área laboral, a área social e aárea da saúde”.

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58 A Ministra da Saúde, por seu lado, explicava a opção do Governo pela necessidade de

maturar um processo antes de fechar o seu “ edifício legislativo » : “Eu compreendo quea vontade das pessoas seja de dar passos rápidos, mas nós não conseguimos fugir aotempo e aos caminhos que temos de percorrer e até à necessidade que temos de iravaliando aquilo que vamos fazendo”14.

59 Na verdade, a fixação do termo “ Estatuto » acabou por ganhar um grande peso

simbólico, dado que foi em torno desse conceito que o movimento foi construindo a suaagenda de reivindicações. A pressão pública e o eco mediático das posições daAssociação Nacional de Cuidadores Informais terão pesado na escolha final do poderlegislativo. Assim, a Lei 100/2019, de 6 de setembro, que “Aprova o Estatuto doCuidador Informal, altera o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencialde Segurança Social e a Lei n.º 13/2003, de 21 de maio” continha quer as alteraçõeslegislativas relativas a um conjunto de medidas de apoio, quer, em anexo à lei, odesejado “ Estatuto do Cuidador Informal ».

60 Um outro debate que atravessou o processo político-legislativo foi a consideração dos

cuidados informais a serem reconhecidos como sendo “ trabalho ». Esta era, de resto,uma das tensões mais presentes nas intervenções das cuidadoras ao longo do processo,e em particular na sessão da Assembleia da República já mencionada :

“Eu desempreguei-me, só o meu marido é que trabalha e temos cinco filhos. Ah paraeu ficar com a Rita e com a Inês e para elas chegarem até onde estão a chegar, euabdiquei da minha carreira, abdiquei de fins-de-semana, não tenho férias porque odinheiro não dá, abdiquei de tudo. Porque o subsídio de terceira pessoa são cemeuros. Portanto, não dá nem para dois dias de assistência, lá em casa, se eu puseralguém para pagar. (...) O que é que este estatuto me - se vai salvaguardar paramim ? Posso ter a reforma antecipada ? Vou ter algum, alguma benesse que estesanos - porque ninguém me vai dar emprego. Quem é que vai dar emprego a umacontabilista desempregada há trinta anos ? Ninguém !”(Helena Lagartinho, 56 anos, Lisboa)

61 Sem que nenhum interveniente político se arriscasse a propor uma equiparação total

entre os cuidados prestados informalmente e uma condição de emprego assalariado, asolução que acabou por vingar foi a de um reconhecimento mitigado do trabalho doscuidadores.

62 Do ponto de vista de compensação pecuniária, ela aparece na lei sob a forma de um

“ subsídio de apoio ao cuidador », sujeito a condição de recursos, e que assume a formade uma prestação social de combate à pobreza dos cuidadores informais, mais do que deuma remuneração de um trabalho entendido enquanto tal. Por outro lado, à ausênciade proteção social e de carreira contributiva dos cuidadores e cuidadoras informais, oEstatuto respondeu com a possibilidade de acesso ao Seguro Social Voluntário que, noscasos em que os cuidadores comprovem a sua situação de carência económica, pode darorigem a uma majoração do subsídio de apoio, para apoiar o pagamento daqueleseguro.

63 Estas soluções, como se percebe, oscilam entre a manutenção dos cuidados na esfera da

responsabilidade familiar e a tentativa de criar formas de proteção que, do ponto devista da Segurança Social, equiparem os cuidados a um trabalho que, mesmo não tendoremuneração, deve ser tido em consideração enquanto atividade.

64 O debate sobre a definição do universo dos cuidadores foi, também, uma expressão do

confronto entre a remissão dos cuidados informais ao universo familiar e da esfera

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privada e, em alternativa, uma concepção dos cuidados informais que pretendia alargaresse conceito também às atividades de apoio prestadas por vizinhos, pelas ““ amílias deafetos », pelas redes de proximidade fora dos laços biológicos. Contudo, a solução queacabou por ser aprovada pelo Parlamento foi a da restrição do conceito legal decuidador informal aos familiares até ao 4º grau, distinguindo-se, dentro destes, a figurado cuidador principal (cuidador a tempo inteiro sem qualquer trabalho remunerado), aquem seriam destinados os apoios pecuniários, e a do cuidador não-principal (aqueleque mantém um emprego assalariado), a quem se deveriam destinar outras medidastendentes a promover a conciliação entre a manutenção do vínculo laboral e aprestação dos cuidados familiares.

65 A articulação entre cuidados formais e informais foi também um dos campos em que as

tensões entre profissionais e familiares se revelou. Por um lado, o Estatuto aponta paraum conjunto de deveres dos cuidadores informais que ficam, na prática, sob a tutela deprofissionais chamados a acompanhar a prestação de cuidados e a capacitar oscuidadores. Por outro, no movimento de cuidadores assistiu-se a um processo deafirmação desta condição, entre outras dimensões, a partir da reivindicação de que oscuidadores e cuidadoras eram, também eles, detentores de um conhecimento “ local » e“ específico » que tinha de ser valorizado e não apenas como uma categoriapercepcionada em termos dos seus défices (de preparação técnica, de conhecimentoprofissional ou de validação académica para a prestação de cuidados).

Conclusão – ou o reconhecimento por vir

66 O movimento das cuidadoras e dos cuidadores informais forçou a discussão política em

torno do trabalho não remunerado dos cuidados, resgatando-o da invisibilidade, doplano do “ óbvio » e da evidência. Emergindo dessa invisibilidade a que estavamvotados, e deixando aceso um rastilho através dos seus fóruns de discussão e protestos,os cuidadores e as cuidadoras informais fizeram deslocar o retrato da sua atividadeenquanto gesto meramente altruísta e romperam com a sua localização exclusiva nouniverso do “ voluntário ». Desnaturalizando a representação dos cuidados como umaprática “ abnegada » e assinalando que ela tem também, frequentemente, umadimensão forte de prática compulsória, colocaram o cuidado informal numa relaçãodialética em que o universo simbólico do “ altruísmo » e da “ dádiva afetiva » coabitacom a reprodução de relações de opressão e de um padrão de trabalho precário, semremuneração, sem proteção social e com um défice de apoios públicos. Não negando acomponente afetiva dos cuidados, as cuidadoras e cuidadores informais tornaramvisível a realidade de uma força de trabalho explorada, ao demonstrarem que operavamna prática numa espécie de substituição forçada do Estado, dada a escassez de respostaspúblicas para as pessoas dependentes.

67 Atravessado por tendências diferentes e contraditórias, são identificáveis na agenda do

movimento dos cuidadores elementos que apontam quer para medidas que tendem areproduzir o regime familialista que regula a prestação de cuidados, com as suasdivisões sexuais e hierarquias de género, quer para uma transformação desse regimeatravés de uma lógica de democratização e socialização dos cuidados, por via depolíticas redistributivas das tarefas, de rendimento e de bens sociais, mesmo quelimitadas. A ação coletiva de cuidadores e cuidadoras visibilizou e, em certo sentido,também parece ter questionado o modelo estatal de reprodução familialista isto é, uma

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organização social dos cuidados marcada essencialmente pela informalidade, peladesigualdade de género, pela condicionalidade no acesso aos apoios sociais e pela baixataxa de serviços públicos de acesso universal.

68 Num curto período de tempo, este movimento logrou conquistar a sua principal

reivindicação – a criação de um Estatuto do Cuidador Informal, embora os resultadosalcançados sejam ainda, em grande medida, do domínio da “ lei escrita » e não da “ leina prática ».

69 Na verdade, permanece em grande medida por saber qual é exactamente o objeto e o

universo deste reconhecimento trazido pelo Estatuto e o que acabará por ser a traduçãoem políticas públicas concretas do enquadramento legal aprovado. O desenvolvimentodos projetos-piloto e a regulamentação daquele instrumento legislativo definirão, nospróximos meses e anos, muitas destas questões. A componente dos cuidados que está aser reconhecida reforçará o entendimento do cuidado como uma disposição, isto é, umainclinação afetiva, ou como prática, não remunerada, e perpetuada no seio da família(Tronto, 2013) ? Os instrumentos de política pública serão pensados numa lógica deapoio à visibilização deste trabalho enquanto prática compulsória (pior do que umemprego, nas palavras de uma cuidadora) ou enquanto forma de dedicação voluntária,altruísta e abnegada ? O reconhecimento desencadeado pelo Estatuto serápredominantemente um instrumento de afirmação/confirmação de um determinadoregime em que os cuidados têm um estatuto social subalterno no quadro de umparadigma familialista, no qual se reproduz uma acentuada divisão sexual do trabalhoreprodutivo, ou, pelo contrário, será um dispositivo de transformação desse mesmoregime, designadamente assumindo e codificando legalmente os cuidados comoresponsabilidade coletiva e partilhada pelo próprio Estado ?

70 Onde um olhar centrado na reprodução social poderia ver os fatores determinantes da

dominação, do isolamento e da construção de disposições conformistas, o movimentodos cuidadores e cuidadoras mostrou que a condição de cuidador informal era tambéma uma oportunidade para construir uma subjetividade de luta e um processo de açãocoletiva. Revelou, também, como pode ser ativada uma ética dos cuidados como práticade resistência e de constestação à ordem tendencialmente atomizadora e privatizadorada existência humana, que concebe os cidadãos como agentes individuais equiparáveisa participantes num mercado “ livre », onde estas liberdades são tendencialmentemedidas pelo poder de compra de cada interveniente. Por outro lado, confrontou-noscom as possibilidades de uma comunidade cuidadora, o que parece exigir umalargamento das políticas públicas já existentes no campo dos cuidados, mas implicartambém, provavelmente, o questionamento de uma governação familialista ondeescasseiam serviços públicos de acesso universal com qualidade na área dos cuidados.

71 Reconhecer os cuidados informais, criar mais respostas públicas que possam fazer deles

uma escolha e não uma obrigação por ausência de alternativa e cuidar de quem cuidaforam, no fundo, objetivos do movimento de cuidadores informais que se estruturou apartir de 2016 em Portugal. As ciências sociais podem ser parte deste processo econtribuir para escolhas políticas mais informadas no que aos cuidados diz respeito(Mills, 1959 ; McDermont, 2013). Contudo, é provavelmente o desenvolvimento dopróprio movimento, as suas escolhas programáticas e estratégicas, as suas alianças e asua capacidade de influenciar o debate político que acabarão por condicionardecisivamente o caminho das políticas públicas futuras.

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NOTAS

1. Para efeitos de esclarecimento, segue-se aqui a definição de Joan Tronto a este respeito: o neoliberalismo pode ser caracterizado como “o sistema

económico no qual as despesas governamentais são limitadas, o mercado é visto como o método preferível para alocar todos os recursos sociais, a

proteção da propriedade privada é tida como o mais importante princípio de governação, e os programas sociais limitam-se a servir de rede de

segurança” (2013: 37).

2. «Trabalho», na ótica desta mundivisão, como sinónimo de trabalho remunerado, dito «produtivo».

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3. A nota do Gabinete do Parlamento Europeu em Portugal pode ser encontrada no endereço https://www.europarl.europa.eu/

portugal/resource/static/files/

Alzheimer_Eurodeputados_apelam_a_mais_accao_da_UE_para_prevenir_e_tratar_doenca_-

_19_01_11.doc [consultada a 30 de janeiro de 2020]

4. Inquérito Nacional de Saúde, 2014: p.296.

5. cf CE, 2018.

6. Testemunho recolhido em novembro de 2019.

7. A petição pode ser encontrada no endereço eletrónico https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=pt82396, acedido

em 14 de janeiro de 2020.

8. Os dados utilizados para a elaboração desta cronologia foram cedidos por Sofia Figueiredo aos autores, a quem é deixado os devidos

agradecimentos e referência.

9. Utilizamos aqui as categorias de classificação por género televisivo adotadas pela Entidade Reguladora da Comunicação Social (cf. ERC, 2016)

10. Catarina Reis, “Elas são a sombra dos filhos, à espera de uma lei que as proteja”, Diário de Notícias, 31 de outubro de 2018. A reportagem está

disponível em https://www.dn.pt/edicao-do-dia/31-out-2018/elas-sao-a-sombra-dos-filhos-a-espera-

de-uma-lei-que-as-proteja-10017770.html, consultada a 20 de janeiro de 2020.

11. Nessa intervenção, o Presidente da República interveio diretamente no debate que então existia entre as pretensões dos cuidadores e uma

tendência do setor social para a defesa das respostas por via das instituições, afirmando: “Eu sei que há ou pode haver reticências nesse setor, quanto

ao papel dos Cuidadores Informais, mas porque sempre militei nesse setor, em misericórdias e IPSS, estou muito à vontade para poder dizer que essa

realidade, que é muito importante não justifica que se esqueça ou adie o drama de pais, filhos, netos, irmãos, primos, vizinhos, amigos que dão 24

horas por dia, todos os dias, todas as semanas, todos os meses”.

12. No comunicado, disponível em http://www.presidencia.pt/?idc=18&idi=154895, a Presidência da República declara o

seguinte: “Não podemos continuar a fingir que não existem milhares de compatriotas que são pais, filhos, netos, sobrinhos, primos, vizinhos, amigos,

cuidadores de tantos e tantos outros portugueses. Há milhares de cuidadores informais e cada vez haverá mais. Não podem continuar invisíveis e

nessa condição ignorados. Sem vencimentos, sem folgas, sem férias, sem reformas, sem direitos sociais, numa missão também ela sem preço. É

urgente conjugar o seu estatuto com o estado social. Assinalo, pois, este dia, renovando o apoio a esta causa e o apelo para que se faça mais, vencendo

preconceitos e obstáculos institucionais à criação do Estatuto do Cuidador Informal. É uma causa que sei ser de todos. É uma causa que merece o

esforço de todos.”

13. A este propósito, consultar artigo de (Autor e Autor, 2020).

14. Declarações de Marta Temido à imprensa, 8.03.2019.

RESUMOS

Capaz de forçar a discussão política em torno de uma das dimensões mais importantes do

trabalho reprodutivo não remunerado, o movimento dos cuidadores informais em Portugal

rompeu com as lógicas da invisibilidade que circunscreviam a sua existência, resgatando do plano

do “ natural » o seu trabalho gratuito com restrições importantes, na prática, à sua liberdade

social. Neste artigo, procura-se historicizar o passado recente do movimento dos cuidadores e

cuidadoras informais em Portugal, analisando os seus processos de formalização, as suas alianças

sociais, as suas estratégias mediáticas, as suas reivindicações e os seus repertórios de ação.

Pretende-se, a partir do estudo dessa experiência de ação coletiva, traçar a trajetória da evolução

recente dos cuidados informais como um problema social, que mobilizou diversos agentes

políticos e desencadeou um processo legislativo que conduziu à aprovação de um Estatuto do

Cuidador Informal.

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ÍNDICE

Keywords: cuidados informais, movimentos sociais, associativismo, reconhecimento, feminismo,

Estatuto do Cuidador Informal

AUTORES

JOSÉ SOEIRO

Universidade do Porto, Portugal, josemourasoeiro [at] gmail.com

MAFALDA ARAÚJO

University of Amsterdam, The Netherlands, mafaldagomesdearaujo [at] gmail.com

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Estruturas residenciais para pessoasidosasRelação entre qualidade dos cuidados e qualidade do emprego

Ana Paula Gil

Introdução

Com as alterações demográficas que temos vindo a assistir em toda a Europa, o cuidadosurge como categoria analítica, mas também política. Significa dizer que o cuidadoassume hoje um entendimento ampliado, encarado não apenas como pertencente àesfera privada e doméstica, mas também à esfera pública. O cuidado remete para asatividades de gestão do quotidiano, da saúde e do bem-estar (Comas-d’Argemir, 2016) eenvolve duas dimensões: uma relacional e uma outra que abarca os aspetosinstrumentais ou técnicos, «o fazer».

O conceito de cuidar tem sido substituído por um outro, o de trabalho de cuidados,preconizado e inserido num movimento liderado por um grupo de feministas, nos finaisda década de 80 e início da década de 90 (Guberman et. al, 1992 ; Twigg Atkin, 1994 ;Corbin, 1992), que veio fazer a rutura com uma conceção que concebe os cuidados umaprática essencialmente feminina. Este movimento veio chamar a atenção para avertente do trabalho que está inerente aos cuidados, um processo que envolve umsistema organizativo, recursos e competências específicas.

O trabalho de cuidados é analiticamente decomposto entre cuidados formais e cuidadosinformais; contudo, a sua utilização mais recorrente refere-se ao cuidador como oprofissional, com vínculo contratual, que acompanha a pessoa cuidada numa instituiçãoou no domicílio, desempenhando funções ligadas às atividades pessoais e instrumentaisda vida diária.

Em Portugal, o termo utilizado é «auxiliar de ação direta», correspondendo aostrabalhadores de cuidados pessoais que prestam cuidados diretos, incluindo atividadescomo alimentação, assistência na higiene pessoal e tarefas básicas de saúde. O cuidador

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informal é um membro da família direta e/ou alargada, ou ainda um elemento dacomunidade (amigos, vizinhos) que presta cuidados, de forma parcial ou integral.

Maheu e Guberman (1992) vieram também chamar a atenção para a amplitude,complexidade e organização que os cuidados na dependência envolvem, quer eles sejamprestados na esfera doméstica ou institucional. Associado ao trabalho de cuidados,surgem outros conceitos como «prestar cuidados», «tratar de», ambos comsignificações diferentes entre si. O «prestar cuidados» adquire uma dimensão detecnicidade e o «tratar de» reenvia-nos para o campo médico, o tratamento de umcorpo doente e para o saber médico. O tratar do corpo pressupõe cura e, quando a curafalha ou não existe, a gestão do corpo deixa de pertencer ao campo médico, para serconsiderado como pertencente à esfera familiar e doméstica. (Gil, 2010; Gil, 2020).

O cuidar é, assim, encarado como um conjunto de tarefas (higiene, o dar o banho ou ovestir) pertencentes à esfera doméstica, desprestigiante socialmente e desqualificante,designado como um «trabalho sujo» (Hayes, 2017). O não-reconhecimento do trabalhode cuidados tem inerente, assim, uma subestimação do valor que a sociedade atribui aotrabalho com população idosa, o que se estende também, consequentemente, àprofissão.

Algumas propostas têm sido lançadas, no sentido da profissionalização e darequalificação da força de trabalho no sector dos cuidados, passando pela flexibilizaçãodo trabalho, benefícios sociais, utilização de novas tecnologias, campanhas de marketing

sobre a profissão (Hussein et.al., 2011; Theobald, 2017; Gil et.al., 2019b). A escassez damão de obra para fazer face a estas necessidades tem suscitado na Europa múltiplasreflexões sobre o papel dos migrantes no sector dos cuidados, passando por articular aspolíticas de formação, migração e emprego (Anderson, 2012; ILO, 2019; King-Dejardin,2019) e a questão da qualidade do emprego emerge como questão central.

Os termos qualidade do emprego, qualidade do trabalho (Bustillo, 2009), ambiente detrabalho atraente e de apoio (Wiskow et al. 2010), trabalho decente (proposto porEurofound, ILO, 2018) e cuidado decente (ILO, 2018 ; 2019) ou bom cuidado (Tronto,2010 ; 2013) ilustram diferentes formas de reconhecimento da interdependência entre aqualidade dos cuidados de longa-duração e as condições de trabalho dos seusprestadores.

Entende-se por cuidados de longa-duração a prestação de um conjunto de serviços aindivíduos que estão limitados na sua capacidade em viver de forma independente,num período de tempo prolongado – geralmente, seis meses ou mais (Rodrigues, 2017).Estes serviços podem contemplar várias respostas, desde os serviços prestados emestruturas residenciais para pessoas idosas, serviços de apoio domiciliário, a soluçõesresidenciais, com uma componente de saúde e/ou social.

Importa, pois, questionar de que modo as condições de trabalho dos trabalhadores decuidados se refletem na qualidade da prestação e de que forma estão garantidas ascondições para um emprego decente. Como se caraterizam as condições de trabalho dosauxiliares de ação direta em meio institucional? Que impactes têm ao nível doscuidados prestados? Que medidas a implementar de modo assegurar a qualidade, querdo cuidado, quer do emprego? Estas são algumas questões que pretendemos responderao longo deste artigo.

A primeira parte deste artigo aborda conceptualmente os dois conceitos centrais,qualidade dos cuidados e qualidade no emprego. De seguida, e de modo a enquadrar osistema de respostas sociais existentes em Portugal pretende-se, com base em

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estatísticas (Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD),Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP), caraterizar a força de trabalho eidentificar algumas problemáticas associadas à prestação de cuidados à populaçãoidosa. Em seguida, e partindo dos resultados do projeto mais amplo “ Envelhecer eminstituição : uma perspetiva interacionista da prestação de cuidados », que utilizametodologias mistas (questionário e entrevistas semi-estruturadas), são exploradasalgumas das problemáticas associadas às condições de trabalho e ao mundo“ subterrâneo » do trabalho de cuidados.

No trilho da relação entre qualidade dos cuidados e doemprego

A qualidade dos cuidados é definida como o acesso a cuidados efetivos de acordo com asnecessidades dos residentes (de saúde, de apoio social) e a sua avaliação é feita emtermos da estrutura, processos e os resultados desse cuidado (Donabedian, 1980;Campbell et al, 2000; Eurofound, 2019). Esta proposta, baseada em Donabedian (1980)tem sido criticada pela excessiva valoração dos aspetos clínicos (número de quedas,úlceras de pressão, a perda de peso, entre outras) em detrimento das questõesrelacionadas com o bem-estar e a qualidade de vida de quem necessita de cuidados(OCDE, 2013; Zúñiga et al., 2015).

Algumas propostas têm surgido para associar a qualidade do cuidado com o conceito dequalidade de vida nos cuidados de longa-duração (Nolker and Harel, 2001; Kane, 2003;Towers et.al. 2016). Dimensões como o conforto, a segurança, a ocupação, as relaçõessociais, a funcionalidade, a autonomia, a privacidade, a dignidade e o bem-estar(psicológico, espiritual) surgem associadas à satisfação de necessidades físicas e desaúde (Kane, 2003). A distinção entre qualidade do cuidado e cuidado de qualidade,implica reconhecer também a natureza do trabalho de cuidado, bem como as interaçõesentre quem presta cuidados (prestadores de cuidados) e os residentes (quem recebe).

Drenann et al. (2012) identifica alguns fatores que influenciam a qualidade dos cuidadosinstitucionais. Fatores de contexto (condições físicas do lar e equipamentosdisponíveis), fatores organizacionais (bom ambiente de trabalho, o trabalho em equipamultidisciplinar); motivacionais (tipo de tarefas, gratificação do trabalho, valorizaçãodo trabalho) e os fatores de ordem contratual e materiais (salário, ter um contrato,benefícios sociais, flexibilidade de horários, ter acesso a formação).

Joan Tronto (2010) lança uma questão pertinente relativamente ao cuidado dequalidade: quando é que podemos dizer que uma instituição presta um bom ou um maucuidado? A autora, ao definir cuidado como um elemento central da vida humana quese dá de forma relacional, entende que estas relações são também imbuídas de conflito,de poder e de desigualdade, afetando todo o processo de cuidados. Como o trabalho decuidados é desvalorizado socialmente e, por isso, subestimado, em termos de valorsocial e económico, as pessoas que sofrem de discriminação social tornam-se maisfacilmente trabalhadoras no sector dos cuidados, pelo facto de serem mulheres, menosqualificadas, desempregadas ou por serem imigrantes (Tronto, 2010). Assim, o trabalhode cuidados é, ele próprio, desigual, e é determinado pelo género, classe, raça enacionalidade (Tronto, 2013).

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Nesse sentido, para se avaliar a qualidade das práticas de cuidados formais é necessárioconcentrar nas necessidades dos residentes – clientes – mas também nas necessidadesde quem cuida e nas suas condições do emprego.

Qualidade do emprego

Condições de trabalho ou ambiente de trabalho são termos utilizados como sinónimos,embora o ambiente de trabalho tenha uma abordagem mais ampla, incluindo aspetosque influenciam a vida e o trabalho, as dimensões organizacionais e culturais.

Wiskow et al. (2010) propõem um modelo que relaciona o ambiente de trabalho e aqualidade dos serviços que são prestados. As características do ambiente de trabalhoafetam e são parcialmente afetadas pela dinâmica organizacional: satisfaçãoorganizacional; equilíbrio família-trabalho; desenvolvimento pessoal (profissional eeducacional) e a cultura organizacional. “As três primeiras dimensões têmconsequências na qualidade dos cuidados por meio de erros, desgaste e rotatividade”(Wiskow et al. 2010 :4). Um bom ambiente de trabalho incentiva o ingresso(recrutamento) e que os faz permanecer (retenção) e que contribui para umdesempenho eficaz, que alia conhecimentos, competências e recursos.

Baseados na perspetiva de Bustillo (2009), os autores distinguem qualidade do trabalho(autonomia no trabalho, a organização do trabalho incluindo rácios de pessoal e adivisão do trabalho, a cultura organizacional, a higiene e a segurança no trabalho e oambiente) e qualidade do emprego (salários, o tipo de contrato, horas de trabalho,benefícios sociais, o desenvolvimento profissional (formação e desenvolvimento decompetências) (Wiskow, et al., 2010 :4).

Figura 1. Relação entre o ambiente de trabalho e a qualidade dos cuidados

Wiskow, et al., 2010: 3.

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No sector dos cuidados, são vários os estudos que têm vindo a chamar a atenção para arelação entre condições de trabalho e qualidade dos cuidados (Colombo et al., 2011;OECD 2013; Schulmann et al., 2016; Hussein, 2018; Bauer, Rodrigues, Leichsenring, 2018;Woolham et al., 2019). A precariedade no trabalho de cuidados (salários baixos, semproteção social, sem direitos a férias ou de apoio em caso de doença, o númeroexcessivo de horas de trabalho) (ILO, 2018 ; 2019) é geradora de problemas derecrutamento e de excessiva rotatividade, e de uma maior incidência de problemas desaúde e de burnout laboral, levando ao abandono precoce da profissão (Cangiano andShutes, 2010 ; Colombo et al. 2011¸ Filipova, 2011).

A precariedade laboral agudiza-se em países com sistemas de longa-duração, menosdesenvolvidos, nomeadamente nos países mediterrânicos (Salis, 2014).

De seguida, iremos enquadrar o sistema de respostas sociais existentes em Portugalbem como alguns indicadores de caraterização da força de trabalho no sector doscuidados, temática já abordada em trabalhos anteriores (Gil, 2018; Gil, 2019a).

Respostas sociais para a população idosa em Portugal: dosequipamentos à força de trabalho

Desde a década de 90 que, em Portugal, tem existido um investimento nas respostas deapoio à população idosa, através de vários programas nacionais (PARES1, Programa deApoio a Idosos (PAII) e a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI)com o objetivo de alargar a rede de equipamentos sociais, o número de lugaresdisponíveis e a população abrangida.

Em 2001, a proporção de pessoas a viver em alojamentos coletivos em Portugal era de3,6 % (correspondendo a 50.607 pessoas), valor que aumentou em 2011, para 71.219pessoas idosas (4 %). Destes, 72 % eram mulheres com mais de 80, com incapacidadescognitivas e físicas (INE, 2011), perfil similar ao traçado pela Carta Social (72,5 % +80anos) (GEP, 2017). Os serviços de apoio domiciliário e as estruturas residenciais parapessoas idosas foram as respostas que, neste domínio, mais cresceram no período1998-2018 (108 % e 105 %, respetivamente), em termos de oferta de serviços. Em 2018,contabilizaram-se cerca de 7300 respostas de ERPI, SAD e Centro de Dia, no territóriocontinental, das quais 37 % correspondiam a SAD (GEP, 2018).

De 2000 a 2015 houve um aumento de 65 % no número de ERPIS (de 1,469 em 2000 e2,418 em 2015) e um aumento significativo no número de população abrangida (69 %)(de 55,523 a 94,067 (GEP, 2017) (cit. Gil, 2018, p. 554). Em 2017, a taxa de ocupação nasERPIS atingia os 93 %, enquanto que as respostas SAD e Centro de Dia registaramocupações médias de 70 % e 64 %, respetivamente (GEP, 2018).

A procura de respostas de alojamento coletivo (ERPIS, RNCCI) refletem oenvelhecimento acelerado da população portuguesa e um aumento significativo daspessoas com mais de 80 anos (5 % em 2013 e 16 % em 2060) (Eurostat, 2015), sobretudouma maior prevalência de demência2 (OCDE, 2018) e, por consequência, necessidadesacrescidas de cuidados.

Os programas nacionais permitiram alargar a taxa de cobertura nacional e a populaçãoabrangida, e a legislação existente3 permitiu regulamentar as condições em termos deorganização e funcionamento das estruturas residenciais para idosos, no setor lucrativoe não lucrativo. No entanto, a análise das denúncias de irregularidades em ERPIS,

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apresentadas aos serviços nacionais de inspeção, entre 2009 e 2016, revelou que osistema de monitorização e inspeção dos equipamentos sociais ainda se baseia empadrões mínimos. O sistema de inspeção foca-se, essencialmente, nas questõesestruturais e de processo, em detrimento do bem-estar da pessoa idosa (sinais clínicos,saúde mental, atividades básicas e de conforto, medicação e cuidados de saúde, entreoutros) ou das condições de trabalho e das competências profissionais (Gil, 2019a).

A falta de competências profissionais dos trabalhadores de cuidados é uma das áreasque revela uma pior satisfação por parte dos cidadãos portugueses, de acordo com aEurofound (2019). Portugal é um dos países da Europa 28 que revelou uma satisfaçãoglobal menor face à qualidade dos cuidados que são prestados nos cuidados de longa -duração. A falta de qualidade dos equipamentos, o tipo de informação prestada sobre oscuidados, as competências do staff, bem como os cuidados prestados, constituem algunsdos indicadores alvo de maior insatisfação. Estes resultados seguem a mesma tendênciajá identificada no Eurobarómetro em 2008, para uma perceção coletiva insatisfatóriarelativamente ao desempenho destes serviços, com manifestas deficiências de ordemorganizacional e humana (Gil, 2010), sobretudo nos cuidados institucionais.

Força de trabalho no sector dos cuidados em Portugal

A maioria da força de trabalho nos cuidados de longa-duração é composta portrabalhadores que prestam cuidados pessoais e domésticos, em serviços para pessoasidosas (SAD, ERPIS, RNCCI), em domicílios particulares ou, mediados através deempresas privadas, por vezes como trabalhadores domésticos.

Um dos indicadores que reflete a escassez de recursos humanos no sector dos cuidadosé proposto pela OCDE, «densidade de trabalhadores» significa o número detrabalhadores por cada 100 pessoas com 65 anos ou mais. Portugal tem a menorconcentração de trabalhadores de cuidados na OCDE (0,8), ou seja, “menos de 1trabalhador por cada 100 pessoas com mais de 65 anos” (Noruega, 12,7 e a Suécia, 12,4,por 100), valores de referência muito abaixo do que se considera uma prestaçãoadequada de cuidados (variando entre 4,1 e 4,5) (Scheil-Adlung, 2016 : 20-21 ; OCDE,2019 : 235).

Scheil-Adlung (2015) estimou que existe uma insuficiente cobertura, no sistema decuidados português, devido à insuficiência de pessoal. As diferenças aumentam emcontexto institucional (0,6) e no domicílio (0,1) (OCDE, 2018; Gil, 2018). De acordo com aOCDE, a maioria dos trabalhadores portugueses nos LTC são prestadores de cuidadosdiretos (70 %) e 30 % são enfermeiras (OCDE, 2016; 2019). Os cuidados institucionais sãoprestados por pessoal sem formação e qualificação (64 %) (OCDE, 2019, Gil, 2018).

Metodologia

Os resultados apresentados inserem-se no projeto “Envelhecer em instituição: umaperspetiva interacionista da prestação de cuidados”. O trabalho de campo decorreudurante 2017, num concelho da área metropolitana de Lisboa, envolveu a participaçãode 16 estruturas residenciais num universo de 31 estruturas (privados e IPSS).

Os dados que se apresentam são oriundos de um questionário autoadministrado ereferem-se ao seu perfil sociodemográfico, educacional e laboral dos prestadores, bemcomo à identificação dos aspetos que mais e menos influenciam o trabalho de cuidados :

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fatores de contexto (condições físicas do lar e equipamentos disponíveis) ; interpessoais(bom ambiente de trabalho, avaliação do trabalho, o trabalho em equipamultidisciplinar) ; motivacionais (tipo de tarefas, gratificação do trabalho, valorizaçãodo trabalho) e contratuais e materiais (salário, ter um contrato, benefícios sociais,flexibilidade de horários, ter acesso a formação). Os 13 itens foram respondidosmediante numa escala tipo Likert de 6 pontos (0 = não valoriza; 5 = valoriza muitíssimo).

Para avaliar as condições de trabalho e as perspetivas de futuro considerou-se osseguintes indicadores: o número de horas de trabalho, rácios de pessoal, satisfação faceao trabalho e a intenção de abandonar a profissão (Filipova, 2011).

No total foram entregues 280 questionários e recebidos 186. Foram anulados 36questionários por estarem incompletos e por mais de metade das questões contidas noquestionário não terem sido respondidas. No total foram considerados 150questionários, o que equivaleu a uma taxa de resposta de 57 %. A análise dos dados foirealizada através do software SPSS (versão 17.0), utilizando uma análise estatísticadescritiva, univariada, bivariada e fez-se a análise da associação entre variáveiscategóricas através dos testes de Qui-quadrado e de Fishers. O nível de significância detestes foi estabelecido em 5 %.

Adicionalmente, nas 40 entrevistas realizadas, participaram 39 mulheres e 1 homem,sendo que as suas idades variaram entre os 24 anos e os 64 anos. O tempo médio naprofissão corresponde a 10 anos, num intervalo que varia entre 3 meses a 25 anos deprofissão. As habilitações literárias dos entrevistados variam entre a 4ª classe e o ensinosuperior. Do total das 40 entrevistas, 9 destas iniciaram a sua função nos serviços delimpeza e 35 foram contratados como auxiliares de ação direta.

Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. A cada entrevistado(a) foiatribuído um nome fictício e a identificação da nacionalidade (PT- Portugal; BR- Brasil;UKR – Ucrânia e MDA – Moldávia). A transcrição teve como objetivo preservar a formaoriginal da linguagem oral usada pelos entrevistados de modo a retratar as suasexperiências, identificar um conjunto de problemáticas associadas aos cuidados e àscondições de trabalho, bem como o modo como os mesmos são prestados nasinstituições.

A análise de conteúdo temática desenrolou-se em três etapas: (1) codificação, oprocesso de designação de categorias e subcategorias que refletem temas previamentedefinidos e novos; (2) armazenamento, a compilação de todos os extratos da entrevistasubordinado à mesma categoria para permitir a comparação; e (3) interpretação,através de um método de indução analítica (Patton, 2002).

Resultados do questionário: olhares da profissão

A maioria dos inquiridos é do sexo feminino, com idade compreendida entre os 21 e os68 anos, apresentando a idade média de 47 anos (tabela 1). A maioria dos respondentes(84,7 %) é de nacionalidade portuguesa e 15,3 % nasceu no estrangeiro (países africanos,Brasil, países de Leste e Europa). A maioria possuía uma escolaridade básica,correspondendo ao 2/3º ciclo do ensino básico (58,5 %) e ensino secundário (23,8 %). Oensino superior era exclusivo dos respondentes de nacionalidade não portuguesa. Otempo médio a trabalhar na profissão são 10 anos e o tempo médio a trabalhar nainstituição decresce para 7 anos. A maioria (77,3 %) trabalha por conta de outrem e

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possui um vínculo permanente e a maioria dos entrevistados com contrato a termo,trabalha há menos de 5 anos no lar.

Tabela 1 – Sociografia e situação perante o trabalho

n % Média (DP)

Sexo (n =150)

Homens 9 6,0

Mulheres 141 94,0

Idade (n =130) 46,7 (10,9)

Naturalidade (n =150)

Portuguesa 127 84,7

Estrangeira 23 15,3

Nível de escolaridade (n =147)

Nenhuma/1º ciclo do ensino básico 23 15,6

2/3º ciclo do ensino básico 86 58,5

Ensino secundário 35 23,8

Ensino superior 3 2,0

Anos a trabalhar na profissão (n =122 ) 10,1 (6,9)

Anos a trabalhar no lar (n =134) 6,8(5,9)

< 1 ano 18 13,4

1 a 5 50 37,3

6 a 10 33 24,6

>10 33 24,6

Tipo de contrato (n =150)

Contrato permanente 116 77,3

Contrato a termo 34 22,7

Contrato a termo (n =32)

< 1 ano 13 40,6

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1 a 5 17 53,1

6 a 10 0 0,0

>10 2 6,3

Frequência de ações de formação no lar(n =143)

Sim 123 86,0

Não 20 14,0

Participação em ações de formação /workshop (último ano) (n =143)

Sim 88 61,5

Não 55 38,5

Número médio de horas /diárias(n =150) 7,8(0,8)

Número de pessoas a cargo /diariamente (n =66) 8,7(4,5)

Elaboração própria.

Os resultados do questionário evidenciam que a falta de pessoal, os salários baixos, apouca formação, a pressão com os horários face ao volume de trabalho, as poucasregalias sociais e os turnos alternados são considerados os fatores de âmbito contratualque mais influenciam a qualidade do trabalho de cuidados (figura 2). Ao nívelinterpessoal, o mau ambiente laboral, a falta de feedback, as críticas ao trabalho e a faltade supervisão técnica constituem, por ordem decrescente, os fatores que os inquiridosprivilegiam como tendo mais impacto na qualidade da prestação. Como fatoresmotivacionais, de acordo com a ordem de maior importância, destacam-se a falta devalorização do trabalho, o trabalho físico duro pelas tarefas, o lidar com a doença/morte e as poucas experiências de sucesso. Os fatores de contexto, as condições físicasdo lar e os equipamentos disponíveis constituem os fatores que, segundo os inquiridos,menos influenciam o trabalho de cuidados.

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Figura 2. Fatores que influenciam o trabalho de cuidados

Gil et.al., 2019c.

O inquérito veio também evidenciar que um terço da população inquirida estárazoavelmente satisfeita com o seu local de trabalho, mas a maioria desta nãorecomendaria o local de trabalho, verificando-se assim uma associação estatisticamentesignificativa entre a satisfação do local de trabalho e a recomendação do lar (p <0.001).

Outra variável que é indicadora do nível de compromisso organizacional é o cenáriohipotético de deixar o trabalho relacionado com a população idosa. O número deinquiridos descontentes aumenta em relação ao nível de satisfação laboral, quase umterço (28,9 %) já pensou em abandonar a profissão. As razões primordiais de umpossível abandono prendem-se com a natureza do trabalho (um trabalho duro física epsicologicamente), pelas más condições de trabalho e pelo conflito organizacional.Entre o subgrupo dos que nunca pensaram em deixar a profissão, sendo estemaioritário (71,1 %), estão razões que se prendem com a gratificação do trabalho erealização pessoal/profissional. No entanto, é transversal à maioria dos inquiridos aperceção de que deveriam existir melhores condições de trabalho e um outroreconhecimento social da profissão, conclusão que vai ao encontro das entrevistasrealizadas.

Olhares sobre o quotidiano do trabalho de cuidados

A maioria dos entrevistados desempenhou outras profissões no passado e são relatadastrajetórias profissionais conturbadas de precariedade. O desemprego de longa duração,a doença, os problemas familiares, a mudança de residência são algumas dasproblemáticas associadas à decisão de procurar emprego na área. A decisão detrabalhar numa estrutura residencial para pessoas idosas surge também após longos

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períodos de cuidados de familiares e a decisão de retorno ao mercado de trabalho alia-se à descoberta de que se tem apetência para desempenhar a função de cuidadora(o).

As mais qualificadas, em situação de desemprego, são encaminhadas para o centro deemprego e o «lar» surge entre as ofertas de trabalho disponíveis. As menos qualificadas,as imigrantes (sobretudo brasileiras, ucranianas, moldava, guineenses) começam a suacarreira nos serviços de limpeza ou de cozinha, em casas particulares ou ainda emempresas de serviços de apoio domiciliário ou em lares, quase sempre sem alvará.

Foi o caso de Amanda, Helena, Arlete, Rosa e Maria, sendo todas elas imigrantes,qualificadas, com formação superior (enfermagem, biologia, gestão de empresas),iniciaram a sua atividade primeiramente em lares ilegais ou empresas de apoiodomiciliário, experiências de curta duração, que antecedem a atual. Todas asentrevistadas relatam que as habilitações iniciais eram desprezadas e minimizadas, talcomo o seguinte trecho poderá demonstrar:

“Eu trabalhei como enfermeira lá na minha terra (…) e eu aqui (em Portugal)simplesmente fui ignorada. Fiquei muito ofendida naquela altura, mas eu eraauxiliar, eu não podia dizer nada. (…) Eu dei uma opinião minha lá (à enfermeira) eela disse-me logo, «tu estás no teu lugar e eu estou no meu»” (Helena, UKR).

A passagem por lares privados ilegais

A primeira experiência de Amanda, proveniente da Moldávia, foi num lar privado e érecordada negativamente, pelo excesso de trabalho e pelas más condições de trabalho.

“Éramos muito castigadas em relação ao trabalho, tínhamos que fazer tudo e nãoéramos reconhecidas e quanto mais fazíamos mais exigiam e havia dias que eu iaalmoçar às 15h e depois soube que havia vaga, aceitei e fiquei” (Amanda, MDA).

O mesmo aconteceu com Manuela (PT), rececionista de profissão, que começou atrabalhar em lares, em part-time, primeiro na cozinha e depois a cuidar de idosos. A suadecisão de trabalhar a tempo inteiro fez-se de forma tardia, ao fim de 5 anos. Aparticipante qualifica a passagem por mais dois lares como chocante.

“Chocou-me. Foi um choque para mim. A forma como as pessoas dormiam, ondedormiam, o comer, as instalações. Tudo. Desisti, deixei de comer. Nada passava. Foium choque!” (Manuela, PT).

Também Rita começou a sua carreira como cuidadora num lar privado (numa vivenda)aos 15 anos. Relativamente a esta sua experiência, compara duas realidades bastantedistintas:

“Aqui temos condições físicas (instalações) muito boas e lá não tínhamos condiçõesao nível do trabalho. Aqui cada pessoa tem uma casa de banho para si. Lá tínhamosuma WC conjunta. Aqui cada um tem uma toalha de rosto e 1 copo. Lá era umatoalha para todos. Era uma esponja para todos. Lá não tínhamos horários paraalmoçar, às vezes almoçávamos às 15h30. O salário era muito menor. Era tudopior!”. (Rita, PT)

Helena, imigrante ucraniana, recorda a sua experiência nos primeiros anos, quandochegou a Portugal:

“Eu trabalhei um mês, só, num lar ilegal, numa vivenda, só para experimentar, edepois decidi, «quero ir embora daqui», não se conseguia trabalhar. Porquê? Então,mesmo nos cuidados de higiene, tudo, uma bacia para lavar 10 utentes (…) e osidosos pagavam 300 ou 400 euros (…) fui-me embora dali!”.

Também Dália (PT), passou por um lar ilegal. Recorda a experiência:

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“As pessoas pagavam 600, 700 euros e estive uns dias e não gostei. Fui tão malacolhida e fui-me embora. Não é justo, não eram maltratados, mas também nãoeram bem tratados” (Helena, UKR).

O mesmo sentimento foi partilhado por Arlete (BR). Através de um anúncio no jornalchegou a vários lares privados:

“Passei por dois para ver de emprego. Era um odor, as pessoas não eram bemcuidadas, percebi que as pessoas estavam jogadas naquelas macas e pronto, nãotinha qualquer atividade de reabilitação (…) Entrava-se às 7h00 e saia às 21-22h e osalário era 540 euros (sem direito a segurança social e a recibos verdes) e com 2folgas/semana”.

A passagem por empresas privadas: as malhas da informalidade

Arlete, imigrante brasileira, técnica de enfermagem e com o curso de biologia, veio paraPortugal, há 3 anos, para realizar um sonho: “fazer um mestrado numa universidadeportuguesa”. A dificuldade de suportar uma propina de 168 € mês fê-la procurartrabalho num mercado à partida difícil por não ter o atestado de residência assegurado.Contactou uma empresa privada, com alvará, e a contratação foi realizada por telefone,sem qualquer entrevista prévia de recrutamento. Não existem visitas de supervisãotécnica, segundo esta:

“Não tive entrevista nenhuma. Só me perguntaram se eu tinha noção de área dasaúde, perguntaram o que é que eu sabia fazer (…) só perguntaram se sabia trocarfralda, colocar sonda e pronto.” (Arlete, BR)

Arlete optou por ser empregada interna em casas particulares, mediada pela empresa,para não suportar o pagamento de um quarto. Fazia de tudo:

“Limpava a casa, fazia de tudo o que tem que ser feito numa casa e cuidava dapessoa”.

Arlete (BR) relata uma experiência dura e crua, recorda as diversas experiências poronde passou:

“Eu não tinha um quarto, eu dormia com o paciente… Pois, numa caminha ao lado eem relação à alimentação, tinha direito a ½ refeição. ½ dose para os dois (Arlete e apessoa idosa).

À medida que vai relatando a sua experiência, Arlete recorda a sua primeiraexperiência com a prestação de cuidados:

“A primeira experiência, a senhora tinha Alzheimer, tinha que dormir com ela,numa cama mesmo pegada a ela (…) então era complicado. Eu não almoçava, eu nãojantava, eu não conseguia sequer fazer a minha limpeza. Eu passei 5 dias semconseguir fazer a minha limpeza (…) Eu saí dessa casa fugida, praticamente! Foram5 dias de horror. Esse foi o meu primeiro trabalho aqui.” (Arlete, BR).

Após esta primeira experiência, Arlete ligou para a empresa a relatar, mas não existemvisitas, “eles não fazem as visitas às casas. Essa empresa não faz visita às casas antes dea gente entrar, nem para saber como é que está o paciente, nem para saber como é queestá o cuidador, se está correndo tudo bem, nunca!”. Nas várias experiências relatadas,Arlete descreve as condições de trabalho:

“Nessa época eu fiquei como interna, sem férias, era 1000,00 €, mas a gente é quepagava a Segurança Social e todas as outras coisas. Se tinha 1 folga por semana,pagavam 800 euros. Sem folgas, 1000 euros. Era feito por intermédio da Empresa?“É” Era a família que pagava à Empresa? A família paga à empresa e a empresa mepaga. Tinha um contrato? Não, mas passava recibos verdes e não tenho direito anada (subsídio de natal, férias, baixa)” (Arlete, BR).

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Por causa de um problema grave de saúde (uma infeção pulmonar) fez com que parassee abandonasse o trabalho. Sem dinheiro, sem direito a baixa, apesar de pagarmensalmente segurança social (aproximadamente 180 euros), regressou ao Brasil, coma ajuda de familiares, para recuperar fisicamente. Nesse período que mediou a suarecuperação, foi substituída por “uma menina, recém-chegada do Brasil, que não era daárea de saúde e que não sabia de nada!”. Arlete considera que estas empresas privadasvivem “à custa sobretudo dos imigrantes brasileiros, algumas são licenciadas outrasnão, os guineenses não gostam de trabalhar com idosos, preferem as limpezas.” Arletetraça um cenário enegrecido destas empresas: Não existe formação e não há supervisãotécnica dos cuidados.

Confrontada com a pergunta “O que é que tem sido mais difícil para si?”, Arleteresponde:

“Tem sido uma experiência dolorosa... É ficar longe da minha família e não terdireitos. Eu não tenho direitos, só tenho deveres, eu não recebo aqui nenhumdireito porque no Brasil a gente tem um sindicato que você só trabalha atédeterminada hora, tem folga determinada hora, tem direito a 13º, tem direito aosábado, férias, além do seu salário, e tem direitos, não tem somente deveres”.

Arlete, relativamente à sua trajetória profissional, considera que o trabalho de cuidado,“é um trabalho de escravo”, “não existe um pingo de respeito pelo cuidador, pelosprofissionais que trabalham” neste setor.

Como é que os trabalhadores de cuidados perspetivam hoje aprofissão? “Uma profissão nada valorizada”

A maioria das entrevistadas perspetiva o trabalho de cuidados como um trabalhomanual desvalorizado socialmente, difícil pela força física e mental requerida, e malremunerado. Natália (PT) adjetiva a profissão como: “mal paga, injusta e muito triste.Nada valorizada”. Aida sentiu-se ofendida quando ouviu um dia a descrição da suaprofissão “quem não sabe fazer mais nada vai para os lares” (Aida, PT). A mesmaperspetiva é partilhada por inúmeras entrevistadas (Isabel, Rita, Natália) entre as quaisRita fala de “um trabalho que é visto como «só mudar fraldas e limpar, é um trabalhosujo» e acho que a maioria das pessoas não tem a noção do quanto se trabalha noslares”.

O trabalho de cuidados significa executar um conjunto de tarefas, tais como apoiar nasatividades da vida diária (lavar, limpar, dar banho, vestir, fazer a cama) e cumprir umhorário pré-estabelecido: “Faço tudo, lavar, dar banho, limpeza, ajudar na cozinha, tudoum pouco” (Guiomar, PT). Para além das atividades de cuidar, em alguns lares, éacrescido a limpeza dos quartos, corredores, casas de banho e colaboração na cozinha(Alzira, PT) e lavandaria (“as tarefas na lavandaria são efetuadas à tarde”, Luísa, PT). “Émuito, muito trabalho. Na parte da manhã, há os banhos, as camas, as higienes (…) ànoite fazemos as rondas, a mudança de fraldas” (Augusta, PT).

Para Guilhermina (PT), o mais difícil neste trabalho é o risco da rotinização e dotrabalho se tornar um trabalho mecânico devido à “corrida contra o tempo”, é o tempopara estarmos com eles, nós temos que trabalhar apressadamente. Eles são muitos e nósprecisávamos de estar mais tempo, estar com eles, darmos aquela atenção (...) Isso falta.Tornamo-nos mecânicas” (Manuela, PT).

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Tarefas e horários a cumprir são a primeira prioridade diária. Em caso deincumprimento toda a rotina da manhã é desestruturada. Manuela dá o exemplo dopequeno-almoço.

“Todos têm que estar prontos até às 10h00 pois ao meio-dia as pessoas que precisamde nós, que necessitam que se lhe dê a comida à boca (…) e ao meio-dia e meiaentram os autónomos e tudo isto é acelerado (…) tem que ser tudo a correr.”(Manuela, PT).

A falta de tempo e o rácio de pessoal não permite fazer atividades extra: simplesmenteconversar, treinar a marcha ou colaborar em atividades ocupacionais. A necessidade defazerem mais exercício físico é também sentida por Ana (PT) como uma lacuna,condicionada pela insuficiência de recursos humanos (“impossível porque não hátempo”).

O trabalho de cuidados faz emergir um conjunto de problemáticas associadas àscondições da prestação: muitas horas de trabalho, rotatividade dos turnos, absentismoe abandono precoce.

Problemáticas associadas às condições de trabalho

As múltiplas tarefas que surgem associadas ao ato de cuidar, são geradoras desobrecarga laboral, tendo como efeito direto as flutuações diárias no pessoal. O elevadoabsentismo tem consequências inevitáveis nos elementos que são mais assíduos, maiorconcentração de tarefas, mais horas de trabalho e menos tempos de descanso (“já tive 8dias sem descanso por falta de pessoal” Deolinda (PT); “Há anos que eu nem sei o que éum fim-de- semana” Isaura, PT). Como encarregada de turno, Filomena (PT) faz emmédia 10 a 12 horas diárias, para além de todas as tarefas acrescidas (manutenção deequipamentos, listagem de material em falta).

Turnos alternados significam entrar às 8h, sair às 16h ou entrar às 16h e sair à meianoite e entrar à meia noite e sair às 8h.

“Hoje comecei às 8h00, saio às 16h. Amanhã começo às 16h00 e saio à meia noite edepois tenho as noites, entre à 0h00 e saio às 8h” (Elvira, PT).

Os turnos rotativos e as (muitas) horas de trabalho agudizam-se nos lares privados. É ocaso de Nádia:

“Trabalho 47 horas por semana e com poucas folgas. Hoje, por exemplo, faço 13horas. Entrei às 8 da manhã e saio às 21h. Entro sempre às 8h. Na terça-feira entroàs 8h00 e saio às 15h00, na quarta-feira saio às 14h, quinta-feira às 15h, sexta-feirafolgo, sábado entro às 8h e saio às 16h e no domingo saio às 14h (…) há anos que nãotenho um fim-de-semana” (Nádia, PT).

Outra das problemáticas associadas às práticas de cuidados diz respeito aos ráciosdesadequados e à escassez de pessoal face às necessidades acrescidas da populaçãoresidente.

Em média, segundo Natália no turno da manhã estão “7, 8 e raramente 9 para 68utentes” e no turno da tarde “são menos ainda, 6, 7 para os mesmos. À noite ficam 3 ou2, para 3 pisos (68 idosos)”. Rácio esse que aumenta em férias, épocas festivas. Natália,qualifica os turnos como “muito complicado porque se alguém vai para o hospital,como já tem acontecido, fica cá só uma sozinha. Ninguém tem consciência disso!”(Natália, PT).

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O desequilíbrio entre rácios de pessoal/residentes é variável de acordo com umconjunto de condicionantes: o abandono precoce, faltas por doença, motivos de ordemfamiliar, épocas festivas e férias, o que faz avolumar o trabalho para os que ficam noturno, gerando sobrecarga laboral.

Impactos no trabalho de cuidados

As condições adversas em que o trabalho de cuidados é realizado têm consequênciadireta na qualidade da prestação à pessoa idosa, quer em termos das atividadesrealizadas (banho, a higiene, a mudança de fralda), bem como da priorização doscuidados que é feita consoante o grau de dependência da pessoa idosa (figura 3).

Figura 3. Relação entre o trabalho de cuidados e as condições de trabalho

Elaboração própria.

O banho

A inadequação da proporção entre residentes e auxiliares faz com que o banho sejadado de 7 em 7 dias. É o caso do lar onde trabalha Isaura (PT):

“Tomar banho é uma vez por semana porque são muitos utentes e é muita gentepara tomar banho (…) Isso dá muito trabalho. Se fossemos dar banho a todos os 26utentes nem às 17h da tarde nos despachávamos”.

Banho diário, só excecionalmente, mediante autorização da diretora. O mesmo se passana instituição de Alzira (PT). Para uns o banho é dia sim, dia não, outros de 8 em 8 dias,de “acordo com o que a instituição estabelece”. A falta de pessoal faz com que o banhoseja planeado de 8 em 8 dias. Caso contrário, o plano de cuidado fica comprometido:“senão não damos conta do recado” (Natália, PT). No caso dos acamados, os banhos são

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espaçados de 15 em 15 dias. Teresa (PT) explica: “os acamados vão ao duche de 15 em 15dias porque as pessoas estão muito frágeis”.

Mudança de fraldas

A falta de pessoal condiciona também os cuidados básicos e o recurso à fralda servepara colmatar ausências ou escassez de recursos. O uso da fralda é algo normalizado efaz parte da rotina institucional, com tempos pré-determinados: em manhã; depois doalmoço (às 15h) e à noite.

“Por vezes, aqueles utentes pedem para ir à WC e nós dizemos «espere umbocadinho». Ele responde, eu estou aflito e dizemos «espere um bocadinho», porquenão podemos deixar a coisa a meio e depois não compreendem ou deixamos apessoa na sanita e depois quando acabamos de fazer a higiene voltamos ouesquecemo-nos de lá deles. Isso acontece! (…) por vezes estou a dar de comer ealguém se lembra de ir à WC, chama, chama e estamos 1 ou 2 a dar os almoços, émuito complicado” (Natália, PT).

A incapacidade e a não verbalização é indicadora de desvantagens:

Oos acamados, como não falam, ficam para mais tarde e acaba por ser injusto eficam com a mesma fralda até mais tarde” (Natália, PT).

Problemas de sono

Para Margarida (PT), o pior nos turnos da noite, na altura da mudança de fraldas, é terque acordar os residentes que partilham dos mesmos quartos, o que inevitavelmentetem implicações no sono:

“Abrimos a luz para mudar as fraldas e acabamos por incomodar os outros que nãoprecisam mudar (…). (Acha que é perturbador do sono?) Acho. Por vezes estão adormir tão sossegados, que começam: que horas são? São horas de acordar? Eu nãome quero levantar ainda? Ficam desnorteados. É suficiente para ficaremdestabilizados” (Margarida, PT).

A falta de movimento e a utilização da contenção física

A necessidade de fazerem mais exercício físico é também sentido como uma lacuna,condicionada pela insuficiência de recursos humanos. No entanto, Dália (PT) consideraque fazer exercício físico ou treino da marcha: “impossível porque não há tempo”.Justifica: “por mais boa vontade que nós tenhamos, não conseguimos. São muitos e nós,somos poucas”. O uso da contenção física, como fonte de segurança para prevenirquedas, constitui prática normalizada e aceite institucionalmente.

“O nosso medo é o caírem. Por isso, usam os cintos e é o medo de se tentaremlevantar e caírem. As pessoas têm os cintos e vamos ao wc com eles e depois têmque voltar. Estão de manhã e à tarde presos? Sim, é por causa das quedas. É o nossogrande problema. A senhora x anda e custa-me muito tê-la presa a uma cadeira derodas. Nós não temos uma empregada para cada um! Agora, por exemplo, estamostodas ocupadas e eles seguem-nos e nós temos medo das quedas nestas idades”.(Dália, PT)

Movimentos bruscos

A sobrecarga laboral, o burnout físico e mental são fatores que propiciam o surgimentode condutas que indiciam maus-tratos, tais como os movimentos bruscos, a falta depaciência, o gritar, o ignorar, o tipo de linguagem utilizada (infantil ou o uso de calão),

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a colocação forçada de fraldas, o deixar pessoas acamadas muitas horas sós e semcuidados, a contenção física constituem alguns dos indicadores que emergem dasentrevistas, o que torna as fronteiras entre maus cuidados, aceites institucionalmentecomo inadequados mas pouco combatidos na prática, e a questão do abuso e danegligência, como problemáticas não associadas aos cuidados, mas com fronteirasmuito ténues entre si (Gil, 2018).

O problema da rotatividade do pessoal, as ausências injustificadas, os turnos rotativos,os anos consecutivos de trabalho, são algumas das problemáticas associadas ao trabalhode cuidados e que interferem na saúde física e mental de quem presta cuidados, apóslongos períodos de trabalho árdua : “a parte psicológica” (Augusta, PT) ; “é muito durofísica e psicologicamente” (Guilhermina, PT) ; “um chama, o outro chama. Saio daqui evou a pé para aliviar a cabeça” (Aida, PT). As depressões, as tendinites, os problemas decoluna, essencialmente devido ao peso e aos maus posicionamentos, constituem osprincipais problemas de saúde.

A última questão colocada aos entrevistados diz respeito a que medidas a implementarpara requalificar a profissão de cuidador.

Rumo à requalificação do trabalho de cuidados

Mariana (PT) é apologista de processos de recrutamento e de formação obrigatória. Aprofissionalização e uma melhor remuneração do trabalho seria uma forma de protegero trabalhador e dignificar a profissão. Uma ideia que emerge das entrevistas é para anão uniformização do modelo formativo, muitas vezes designado por «formação noposto de trabalho» a la carte.

O tempo de formação “depende de pessoa para pessoa. Pode ser 1 mês, 2 ou 3 meses”(Conceição, PT), traduzido num acompanhamento de uma auxiliar com mais tempo deserviço. “Aprendi a maneira como se deve levantar a pessoa, a dar banho. Comoaprendo rápido, ao fim do 2º mês já estava a dar a medicação” (Isabel, PT). No entanto, onúmero de dias que os novos elementos permanecem em formação varia na prática deinstituição para instituição, condicionado também pelas flutuações diárias de pessoal.Pode variar desde 3, 2, 1 mês a de 1, 2 semanas, até a 5, 3, 2 dias e 1 dia.

Francisca (PT) descreve a forma como o processo formativo se desenrola:

- Entrevistador(a) [inicial]: As pessoas quando chegam têm formação?- Francisca: Não. Há cursos, mas não aparecem pessoas com cursos.- Entrevistador (a): Porquê?- Francisca: Na minha opinião porque chegam à conclusão que não querem. Temque se gostar. Caso contrário, não se vai conseguir.- Entrevistador(a): Como é que é feita a integração?- Francisca: A pessoa nova acompanha a chefe de turno e vai andar com a colega.Mostra a casa, o funcionamento e depois mostra o dia-a-dia. O trabalho direto e faztudo do turno. Acompanha a colega durante 1 ou 2 dias para fazer aquelas tarefas eassim, conseguir absorver o nosso modo de funcionar.- Entrevistador(a) : Acha que é suficiente para quem não tem experiência ?- Francisca : Acho que é um passo porque nesses 2, 3 dias a pessoa apercebe-se dotrabalho, se é capaz, se quer este tipo de trabalho e se quer continuar. Se ésuficiente, é obvio que não é suficiente. Devia haver pessoal, que não há! (Excerto de transcrição da entrevista com Francisca, PT).

Por exemplo, quando Alexandra (PT) chegou ao lar não teve formação, só a experiênciaadquirida após um longo período de cuidados. Aprendeu com colegas mais velhas e com

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o tempo foi participando em algumas ações de formação organizadas pela instituição.Ações que iam desde, “como devíamos mudar as fraldas aos idosos, como devíamosfazer as higienes e quando e como devíamos dar a alimentação”. Hoje, há mais de 12meses que não tem formação, pois “ficou adiada”. Além disso, de modo a não colidircom a rotina diária e com o volume de trabalho, os momentos formativos são feitos forado horário de trabalho, retirando tempo às horas de descanso (“segundo a doutorasomos obrigadas a ter certas horas de formação por ano, mas é sempre fora do horáriode trabalho”) (Raquel, PT).

Após frequentar um curso de geriatria através do centro de emprego, Ilda (PT)considera que a formação deveria ser obrigatória. As pessoas que aprendem através daprática trazem vícios e “não é a mesma coisa”. A mesma experiência teve Catarina (PT).No seu caso, frequentou um curso de geriatra através do centro de emprego, quequalifica de “uma boa formação”. No entanto, o que chocou mais Catarina, foram osrequisitos para o curso. “Um curso de florista é necessário ter o 9º ano e um curso degeriatria é só preciso a 4ª classe” (Catarina, PT). Na sua perspetiva o que está subjacente“é o valor da profissão. Não é só o vestir, é muito mais do que isso, é saber compreendero olhar do outro” (Catarina, PT).

O perfil de competências é outro dos requisitos necessários. Para estas entrevistadas,definidas como um misto de traços de personalidade, competências interpessoais,aptidões e gosto por conhecimentos, na área da saúde (os posicionamentos, saber daralimentação normal ou por sonda nasogástrica, ou aplicação de insulina e administrarmedicação).

Para Francisca (PT), a requalificação passaria por “testes psicotécnicos obrigatórios”.Segundo esta entrevistada, “os testes permitiram aferir se a pessoa tem o dom paratrabalhar com pessoas idosas ou não. Eu acho que a pessoa tem ou não tem”. Na suaperspetiva existem muitas auxiliares que não têm dom para cuidar. Segundo estaentrevistada, as auxiliares mais jovens demonstram mais, “disponibilidade paraaprender”, “estão a 0”, “nós moldamos conforme nós queremos”. As auxiliares maisvelhas são perspetivadas como tendo mais vícios e são mais adversas a fazer novasaprendizagens.

Sem perspetivas de carreira profissional e sem reconhecimento social dentro e fora dasinstituições, e sem diferenciação em termos financeiros, a forma como são, por vezes,chamadas atenção pelas chefias indicia a falta de valorização da profissão.

“Há sempre coisas desagradáveis que nos dizem a forma como somos abordadaspara nos chamarem atenção. Aí sinto! Sinto que às vezes, o valor que nós temos nãoé nada porque às vezes não dão valor. Dão mais valor às coisas negativas do que acoisas positivas, isso entristece-me. Não são as chamadas de atenção, é a formacomo as pessoas nos dizem as coisas. É o modo porque toda a gente erra, há modos emodos!” (Manuela, PT).

Para Elvira (PT), “ninguém quer vir para esta profissão. Já vi passar colegas, colegas.Vêm um dia e dão meia volta. Não é fácil trabalhar numa profissão destas. Temos quegostar do que se faz porque temos que trabalhar porque não é certamente pelo que apessoa leva ao final do mês”. O mesmo sentimento é partilhado por Raquel, trabalha há20 anos na área e aufere uma remuneração equivalente ao ordenado mínimo nacional(“levo menos que o ordenado mínimo e tenho um dia de folga”). Um dos grandesproblemas que Raquel identifica no trabalho de cuidados é a excessiva rotatividade dopessoal, devido ao desgaste da profissão, o não reconhecimento da profissão e, na suaperspetiva, acabam por ser menosprezadas e minimizadas as boas práticas de cuidar.

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Conclusões

O inquérito permitiu obter um retrato social do trabalhador de cuidados,maioritariamente composto por mulheres, de nacionalidade portuguesa, com baixasqualificações, em condições contratuais regularizadas, em termos de contrato detrabalho, e remuneração mensal4. No entanto, as entrevistas permitiram desvendarqualitativamente o que os números ocultaram. Condições de trabalho difíceis, ráciosdesajustados face ao número de residentes, longas horas de trabalho, ações de formaçãofragmentadas e irregulares (por ex. utilização de extintores e outros equipamentos,doenças, cuidados parcelares), realizadas fora do tempo de trabalho e, por vezes, atémesmo, inexistentes. Embora exista uma regulamentação laboral sobre horas deformação (35h/ por ano), na prática essa exigência é imputada às organizações, sem queexista um controle público sobre o exercício dessa formação e muito menos daprofissão. Este resultado vai ao encontro da tendência identificada pela ILO (2018), emque a maioria dos trabalhadores de cuidados não têm formação e qualificação e, mesmoquando a formação existe, a maioria destes não possui uma certificação acreditada (ILO,2018, 2019).

As entrevistadas vieram revelar que o trabalho de cuidados tem por base um plano detarefas a cumprir, num horário pré-estabelecido, em que os cuidados básicos se tornammecanizados e rotinizados em detrimento da individualização dos mesmos. A escassezde mão de obra tem inevitavelmente consequências nefastas na qualidade dos cuidados,mas também na saúde física e mental, na satisfação pessoal dos que permanecem nosector dos cuidados.

Se o trabalho de cuidados se estrutura e é marcado por mecanismos de diferenciaçãosocial, pelo género, idade, classe, raça, nacionalidade (Tronto, 2013), ele próprio ocultadesigualdades sociais, como é o caso dos imigrantes, mais vulneráveis a sofrerem deprocessos de exploração e de abuso (Figueiredo et al., 2018, Abrantes, 2012). Exploraçãoessa traduzida em mais horas de trabalho, sem proteção social (saúde, férias, descontospara a segurança social) e sem reconhecimento social (Woolham et al. 2019, Salis, 2014;Cangiano et al., 2010).

Os entrevistados, ao descreverem o seu quotidiano laboral, mencionam de formatransversal a sobrecarga laboral, os turnos alternados, a excessiva rotatividade, oabsentismo, colocando em causa não só a qualidade do emprego, mas a qualidade docuidado. A proposta de Wiskow et al. (2010) ganha especial relevância num sector quepremeia pouco os trabalhadores de cuidados e em que a cultura organizacional e ocontexto social incentivam pouco o desenvolvimento pessoal e as competênciasprofissionais e interpessoais. Dimensões estas que vão ter impactos, em termos depráticas, de bons versus maus cuidados, no desgaste físico e mental, na rotatividade e noabandono precoce da profissão. Como refere Wiskow et al. (2010), a qualidade doemprego é indissociável da qualidade de um ambiente de trabalho que incentive oingresso (recrutamento) e que faça permanecer (retenção) os seus trabalhadores e quecontribua para um desempenho que alie conhecimentos, competências e recursos.

Timonen and Lolich (2019) vão mais longe ao preconizarem uma cultura de confiança ede autonomia profissional no exercício do trabalho de cuidados (maior controle dotempo, maior capacidade de decisão, mais tempo despendido no apoio emocional e emsistemas de comunicação e de feedback, mais claros), baseada na formação contínua, em

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melhores condições de trabalho e de carreira. Propostas que poderiam atenuar asambivalências estruturais que existem em torno da profissão. Dignificar a profissão,através da formação obrigatória e da profissionalização, a definição de um plano decarreira, de modo a premiar perfis de competências e boas práticas, constituemmedidas possíveis de modo a tornar a profissão mais atrativa, criar incentivos entre osmais jovens, e combater o abandono precoce. A requalificação da profissão, inseridanuma estratégia nacional para o emprego mais digno, torna-se premente, num mercadoem franca expansão onde as necessidades de cuidados serão crescentes numa sociedadeenvelhecida, e onde as profissões ligadas aos cuidados e às pessoas foram identificadaspelo World Economic Fórum (2020) como uma das profissões de futuro.

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NOTAS

1. O Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos Sociais tem por finalidade apoiar o

desenvolvimento e consolidar a rede de equipamentos sociais no território continental,

nomeadamente aumentar o número de lugares em Lares de Idosos associados a situações de

maior dependência (http://www.seg-social.pt/programa-de-alargamento-da-rede-de-

equipamentos-sociais-pares); O Programa Integrado de Apoio para Idosos (PAII) permitiu alargar

a rede nacional de serviços de apoio domiciliário (atualmente encerrado).

2. Segundo o OCDE (2019), estima-se que existam mais de 20 pessoas com demência em Portugal

por 1000 indivíduos em 2019, e estima-se que esse número aumentará para 40.52% em 2050.

3. Portaria no. 67/2012 e Decreto-lei no. 33/2014.

4. Salário mínimo nacional, 607€/ mês, sem descontos. A confederação das instituições sem fins

lucrativos fornece uma lista, com taxas salariais de todas as categorias de trabalhadores, no

Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (2018).

RESUMOS

O objetivo deste artigo é analisar de que forma as condições de trabalho dos auxiliares de ação

direta interferem quotidianamente nos cuidados que são prestados em estruturas residenciais

para pessoas idosas em Portugal e que soluções a implementar de modo a dignificar os cuidados e

a profissão. Este artigo baseia-se num questionário autoadministrado a 150 auxiliares e em 40

entrevistas semiestruturadas, ambos aplicados em 16 estruturas residenciais para pessoas idosas

na área metropolitana de Lisboa. Os resultados revelam que a sobrecarga laboral, as más

condições de trabalho, associadas à falta de formação e à excessiva rotatividade dos recursos

humanos têm consequências nefastas na qualidade dos cuidados que esses profissionais prestam,

mas também na sua saúde física e mental, e no emprego. A necessidade crescente de cuidados de

longa-duração devido ao envelhecimento da população exigirá a melhoria das condições de

trabalho, a profissionalização e a dignificação do trabalho de cuidados.

ÍNDICE

Keywords: Trabalho de cuidados, estruturas residenciais para pessoas idosas, cuidadores

formais, condições de trabalho, qualidade do emprego, qualidade dos cuidados

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AUTOR

ANA PAULA GIL

NOVA FCSH, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas & CICS.NOVA, Portugal, anapgil [at]

fcsh.unl.pt

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Crisis global de cuidados,migraciones transnacionales yremesasImpactos en y desde América Latina

Silvia Lilian Ferro

1. Introducción

1 Son objetivos de este trabajo : a) demostrar las relaciones significativas que tienen

especificas condiciones demográficas y sociales con la reorganización global yreorientación regional de los flujos migratorios del cuidado, tanto en países con perfiltradicional de demanda como en aquellos más caracterizados por la oferta ; b) analizarla participación de países sudamericanos desde el último cuarto del siglo XX hasta laactualidad, en las dinámicas de las cadenas globales del cuidado y c) ofrecer un análisiscoyuntural sobre impactos y desafíos emergentes de una nueva etapa de contraccióneconómica regresiva que se reinició en 2015 en la región sudamericana ; en conjuncióncon el cierre de fronteras de los tradicionales países receptores de este tipo específicode migraciones feminizadas.

2 Por trabajo de cuidados se entiende “un conjunto prestacional individual, grupal y

colectivo en forma de bienes y servicios altamente especializados, personalizados y queinsumen ingentes volúmenes de tiempos y energías, destinados a sostener y garantizarel bienestar biológico, psicológico, social y espiritual propio, así como de otraspersonas” (Ferro, 2019b) sean estos remunerados o prestados gratuitamente al interiorde los hogares. Es decir, el concepto trabajo de cuidados implica el conjunto de lo que seha clasificado en otros marcos teóricos como trabajo doméstico y trabajo reproductivo,entendiéndose aquí que ambos aspectos son parte de un mismo conjunto prestacionalde servicios esenciales para el sostenimiento de la calidad de los procesos de la vidahumana, tanto sea la propia como la de otros, tanto sea en forma indirecta comodirecta, por lo que no sería útil la desagregación tradicional.

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3 La metodología de este trabajo se asienta en análisis e interpretación de bases de datos

e información estadística publicada por fuentes oficiales, organismos internacionalespertenecientes al sistema de Naciones Unidas y sistemas estadísticos públicosnacionales, así como en la revisión bibliográfica de la literatura internacional dereferencia en la temática. Se pusieron en diálogo los aportes de la literatura técnica quedesarrollan organismos internacionales con aquellos de investigaciones quedesenvuelven cientistas sociales del Norte y Sur global, enmarcando estos aportesteóricos en los contextos históricos que los propiciaron.

4 Estudios pioneros comenzaron a visibilizar un problema de alcance global conocido

como “internacionalización del cuidado” (Parella Rubio, 2005) también llamadotransnational circuits of care (Romero, 2018) aludiendo a flujos migratorios feminizadosen dirección Sur-Norte global, intensificados desde el último cuarto del siglo XX,destinados a cubrir en forma remunerada el déficit de prestaciones de cuidadosfamiliares gratuitos en los hogares de los países de destino. Aun cuando actualmente lostitulares de los hogares – hombres y mujeres – participan en los mercados laborales enforma casi paritaria en sociedades desarrolladas, la distribución en escala interpersonalde responsabilidades de los trabajos de cuidados sigue sin democratizarse, recayendomayoritariamente en las mujeres.

5 Estos flujos fueron facilitados por políticas migratorias de países del Norte Global para

atender una demanda social creciente de provisión de servicios de cuidados que, enalgunos casos, se intentaba responder estatalmente con subsidios insuficientes parapagar ese tipo de servicios en los mercados nacionales de los mismos.

“Since the mid-1990s the employment of women has risen steeply, so that by 2009their activity rate was 41.7 per cent. But this has happened in a context of littlechild care provision. Subsequently working mothers were given a small subsidy tohelp them buy in child care, and immigration policies developed quota allocationsfor domestic/care workers.” (Williams, 2011 :25)

6 No es casual que gran parte de la literatura de referencia del ámbito hispanohablante

sobre migraciones transnacionales feminizadas para cuidados se haya desarrolladoprincipalmente en España, ya que este país fue el destino prioritario de migranteslatinoamericanas en el último tercio del siglo pasado, debido a la facilitación cultural dela lengua común por razones coloniales. Williams (2011 : 23) explica que los flujos demigraciones de cuidados con orientación Sur-Norte Global siguieron el rastro de loscaminos coloniales : “These migration trails transect older tracks from colonial relations -

Ethiopians to Italy, Indian and African workers to the UK, South American workers to Spain”.Ensuma, la autora pone de relieve la dimensión geopolítica intrínseca a las cadenasglobales de cuidados ya que las mismas se edificarían sobre jerarquías coloniales,raciales y étnicas (idem : 24). Al respecto es necesario notar que estas rutas migratoriasque se desplazan a través de “caminos coloniales” también reproducen estacolonialidad, al interior de las sociedades de países del Sur Global asumiendo la formade relaciones sociales jerárquicas basadas en el género y la raza generando déficitanálogos de servicios de cuidados subsidiado por migraciones internas feminizadas decuidado desde áreas poco favorecidas de cada país hacia áreas centrales o de áreasrurales hacia las ciudades1.

7 El caso español es paradigmático porque experimentó el ingreso de las mujeres a los

mercados asalariados y a la cualificación profesional de forma más tardía que otrospaíses europeos, pero mucho más veloz, especialmente a partir del retorno a la vida

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democrática (Alba, 2000). Durán Heras (2011, 2016) demuestra que la infraestructurapública de apoyo a los cuidados no fue suficientemente ampliada en paralelo, paracontener la gran demanda resultante. Situación análoga a otros casos nacionaleseuropeos con diferentes matices y profundidades.

8 Este déficit, se intentó subsanar estatalmente con exiguos valores monetarios asignados

a las familias (Williams, 2011) estimulando que la compra de esos servicios fueseorientada hacia trabajadoras inmigrantes con expectativas de remuneración tan bajascomo lo fuera su situación legal migratoria. Esta forma de respuesta estatal, así comoaquella que dispuso beneficios impositivos, en otros casos nacionales, para facilitar esacompra de servicios por parte de los hogares, soslayó temporariamente el problema.

9 Desde inicios del corriente siglo, estas soluciones evidenciaron su insuficiencia de

forma mas dramática y por ello algunos estudios alertan sobre la existencia de una“crisis global de cuidados” (Pérez Orozco, 2006). Por crisis global de cuidados seentiende aquí al proceso histórico iniciado en gran parte de Occidente en el últimotercio del siglo XX donde se conjugan diversos factores, entre los cuales podemosmencionar :

10 Incremento significativo y sostenido de la participación laboral y educativa femenina ;

11 Transiciones demográficas, es decir caída progresiva de las tasas de fecundidad y

simultánea expansión del alargamiento de la expectativa de vida ;

12 Transición productiva, decrecimiento de los sectores primarios y secundarios en los

sistemas económicos del Norte Global y simultáneo crecimiento del sector terciario(servicios) transfiriendo al Sur Global la manufacturación intensiva de sus cadenasproductivas y la explotación de commodities (Beneria,2003) ;

13 urbanización acelerada, crecimiento espacial de las ciudades con sistemas de

transporte públicos deficientes e insuficientes ;

14 Transiciones familiares : nuclearización de las familias y crecimiento de familias

uniparentales jefaturadas por mujeres, así como homoparentales ;

15 Dinámicas y condiciones laborales androcéntricas anacrónicas, con cambios poco

significativos desde su modelización “ industrial » desde el Siglo XIX ;

16 Insuficiente infraestructura pública de apoyo al cuidado e inexistencia de

comprometimiento del sector empresarial en el problema ;

17 Invisibilidad en el pensamiento económico, cultural y en el debate político respecto de

la centralidad del cuidado para la sostenibilidad de la vida humana (Carrasco, 2003).

18 Las cadenas globales de cuidados generan compra y venta de servicios de cuidados que

mueven sumas monetarias hasta el momento desconocidas. Sin embargo, el análisiseconómico hegemónico sigue sin identificar y caracterizar adecuadamente este tipo deexportaciones e importaciones de servicios específicos. Esta crisis global de cuidados,con énfasis en países del Norte Global como atractores migratorios, configura tambiénuna coyuntura que permite a varios países de esta región del Sur global, contar con lasremesas monetarias que contingentes de emigrantes, de cuidados y de otrasactividades, envían a sus familias de origen (Stefoni, 2011). En algunos casos nacionaleslatinoamericanos, desde el último tercio del siglo pasado, las remesas constituyen unode los principales ingresos de divisas en sus balanzas comerciales, situación quepermanece y tiende a profundizarse actualmente : “Most of the top remittance-sending

countries remained the same between 2000 and 2015, as have the world’s top remittance-

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receiving countries. Overall, total global flows of remittances increased substantially between

2000 and 2016.” (IOM, 2018 :29)

19 A pesar de que a nivel global se advierte una masculinización de los flujos migratorios,

todavía la mayor parte de los emigrantes internacionales de las Américas son mujeres51,3 % (UN DESA, 2017). Este contingente migrante transnacional feminizado que prestaservicios de cuidado y envía remesas a sus familias en países de origen, forman parte deverdaderas balanzas comerciales del cuidado, invisibilizadas para la teoría económica yresultantes de lo que Williams (2011) llama commodification of care.

2. De mercados laborales generizados a la crisisglobal de cuidados

20 Frecuentemente, la crisis de los cuidados y otros males sociales son atribuidos desde la

literatura económica científica, especialmente neoclásica, al crecimiento de laparticipación laboral de las mujeres y que sería además un fenómeno occidental propiodel Siglo XX, acelerado a partir de la finalización de la Segunda Guerra Mundial.Historiadoras y economistas feministas, que se citan a lo largo de este artículo,evidenciaron que las mujeres pobres siempre trabajaron en todos los formatos en losque se expresó esta forma de actividad humana : esclavitud, servidumbre, cuentapropia y asalariadamente (Carrasco, Borderías y Torns, 2019). Y desde siempre trabajanen el ámbito familiar, las mayorías de las veces en superposición con las demás formasde trabajo.

21 Cuando abordamos el tópico “participación laboral” no podemos dejar de mencionar

que “laboral” es un concepto que, al menos en el idioma español, connota una relaciónde trabajo mediada por dispositivos legales o consensuales que establecen derechos yobligaciones para las partes, es decir formas contractuales de diverso tipo quecaracteriza al empleo. En cambio, el concepto “trabajo” está vinculado a una gamaamplia de esfuerzos físicos y mentales lucrativos o no (como el trabajo de cuidadosfamiliar en este caso) que se hacen en beneficio de sí mismos y en general en beneficiode otros, sea en los núcleos de convivencia o fuera de ellos. Se podría incluir elvoluntariado y activismo social a la gama de servicios de cuidado comunitario noremunerado.

22 La Nueva Economía de la Familia (NEF) surge precisamente desde la perplejidad ante el

comportamiento de las trabajadoras casadas, reticentes a volver a recluirse en el hogary en el trabajo de cuidados, una vez concluida las grandes guerras que devolvieron a loshombres sobrevivientes a sus sociedades. Jacob Minzer (1962) penaliza, desde lasupuesta neutralidad de la teoría económica, a aquellas mujeres casadas que prefirieronseguir en el trabajo remunerado extra-doméstico aun cuando sus esposos estaban deregreso. Lo explica a partir del concepto “coste de oportunidad” que impulsaría lasdecisiones de los trabajadores en lo que respecta al tiempo de ocio y el tiempo detrabajo remunerado según el nivel y poder adquisitivo de los salarios. La teoría delcoste de oportunidad fue – y es – prácticamente una invitación a seguir pagandomenores salarios por igual tarea a las mujeres respecto a los varones, porque el costo deoportunidad de dejar el hogar, en un esquema patriarcal de división sexual del trabajode cuidados como trasfondo, sería de ese modo menos interesante para ellas, porque

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deberían pagar a otras mujeres más pobres para que las sustituyan en sus “intrínsecas”obligaciones familiares.

23 Es decir, la teoría del coste de oportunidad en perspectiva de género no es más que la

admonición de una eventual punición monetaria por el comportamiento “irracional”de los agentes económicos según sean hombres o mujeres, cuando intentan cruzar losámbitos reservados a cada uno/a. Por ejemplo, el ocio es una variable que puedeaplicarse apenas en el modelo de trabajo androcéntrico, que puede sustituir horas detrabajo por horas de ocio y viceversa de acuerdo no solo al poder adquisitivo del salario,sino a la posibilidad que tiene en cuanto hombre de estar desligado de las obligacionesde cuidado de sí mismo y de dependientes familiares, las que delega en las mujeres desu núcleo familiar. Este dualismo, ocio-trabajo remunerado está construidoconsiderando modélicamente al asalariado masculino y no a la asalariada porque eneste caso sería una triada de opciones : valor de cada hora de trabajo asalariado, valorde las horas ocio y valor de las horas de trabajo de cuidados no remunerado.

24 Más adelante la NEF teoriza también sobre las funciones “especializadas” de hombres y

mujeres. Esta situación se idealiza como un “pacto entre iguales” para actuar enámbitos diferentes : “Las inversiones especializadas y la asignación del tiempo, asícomo las ventajas comparativas, debidas a diferencias biológicas, implican que loshombres casados, o no, se especializan en el mercado y las mujeres casadas en el hogar”(Becker, 1993 :43). Hombres y mujeres en los núcleos de convivencia optimizaríanracionalmente sus “ventajas comparativas” en base a la socialización históricadiferencial de saberes y haceres adquiridas de esa forma por razones culturales. Todaesta “armonía” de la conyugalidad neoclásica se sacude, cuando se expresan con fuerzalas consecuencias de dos procesos históricos concurrentes que protagonizaninicialmente mujeres de estratos medios occidentales y lentamente se generaliza alconjunto social mundial.

25 Por un lado, la conturbada historia del acceso de las mujeres a la Educación Superior en

número suficiente para conformar masas críticas y de allí ingresar a los mercadoslaborales calificados explica en parte las profundas transformaciones demográficasacontecidas desde la segunda mitad del siglo XX. Con el trasfondo de escasainfraestructura pública de apoyos al cuidado e inexistencia de debate social sobre lanecesidad de un nuevo reparto mas equitativo, la posibilidad del control químico de lafertilidad de sus cuerpos permitió a mujeres de estratos medios, una relativa soberaníacorporal en una ventana temporal entre el final de la adolescencia y la juventud, paraacceder a estudios superiores, postergando la conyugalidad y minimizando laposibilidad eventual de hogares prolíficos. La anticoncepción química masificadamediante costosas batallas por parte de las mujeres en el espacio público (Chesler,1992)promediando el siglo pasado fue una verdadera y silenciada revolución que posibilitócambios drásticos en los patrones de nupcialidad y fecundidad en países del NorteGlobal primero y en los del Sur Global después. Llegamos asi al siglo XXI con una clarafeminización de las matrículas universitarias en gran parte del mundo, lo cual hatenido impacto también en términos migratorios : “En muchos países de origen elporcentaje de personas con educación superior residentes fuera de su país denacimiento era mayor entre las mujeres que entre los hombres.” (OCDE, 2013)

26 Por otra parte, el reconocimiento de las trabajadoras como sujetos de derechos

laborales y previsionales aún está lejos de haber alcanzado conquistas equiparables alos niveles de la inclusión educativa femenina que detenta América Latina por ejemplo

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y Occidente como un todo. En las primeras décadas del siglo XIX, surgen los debatessociales sobre la cuestión laboral y protección estatal a la población trabajadoraenmarcados en las Revoluciones Liberales europeas (Hobswaum, 2010) de las quesurgiría el sindicalismo como forma de organización gremial y política de lostrabajadores, llegando a las Américas desde la segunda mitad del siglo, en las oleadas deinmigrantes provenientes del Mediterráneo europeo.

27 En este nuevo orden de ideas, el trabajador se idealizó como alguien desobligado de las

responsabilidades de cuidados de sí mismo (Picchio, 2001) y respecto de susdependientes familiares, por ende, disponible a lo largo del día para la actividadeconómica, en un contexto de creciente asalarización que se profundizaría en todoOccidente. El ideal se complementaría con la existencia de una esposa dependiente desus ingresos, confinada al hogar en dedicación exclusiva, para atender las necesidadesvitales del trabajador asalariado, garantizando además la reproducción y cuidadosbásicos de reposición de la mano de obra, es decir los hijos. Tareas que por su vezfueron y siguen siendo consideradas sin valor equivalente2 al de las tareas extra-domésticas remuneradas. Este sesgo masculino-centrado de las relaciones sociales yeconómicas del trabajo asalariado, fue sostenido en la etapa tanto por líderes de lasincipientes organizaciones obreras- en Europa y en América-como por aquellos quepropugnaban otras formas de organizar el trabajo y distribuir los ingresos por fuera dela dependencia del salario, como por ejemplo las organizaciones cooperativas. Seesperaba que la inserción de las mujeres en los ámbitos laborales y de la producciónautogestionada extra doméstica fuese incidental o en casos forzosos, como haberquedado sola con sus hijos, recibiendo menor salario o ingreso que los hombres porigual tarea y peores condiciones de trabajo, entre otros estímulos para persuadirlas dela “vuelta al hogar” cuando las circunstancias lo permitieran.

28 “El trabajo fabril era visto como un desperdicio físico de energías femeninas y como

factor de la disolución de la salud y de la capacidad de desempeño de las funcionesmaternales. Comprometía además la dignidad de la mujer, a la que se considerabaculpable de la mortalidad infantil y responsable de los desórdenes sociales. Esepensamiento fue absorbido y mantenido por las organizaciones sindicales y políticasque aconsejaban a sus afiliados que retiraran a sus mujeres e hijas de la fábrica,destacándose inclusive el peligro que representaba la competencia femenina en elmercado de trabajo.” (Mesquita Samara y de Matos, 1993 :780)

29 El modelo de seguridad social que surgió en la época es análogo a estas ideas por lo que

la incorporación de las trabajadoras a la protección social, se realiza en primer lugar ensalvaguarda de sus funciones reproductivas. Es reciente su reconocimiento comobeneficiarias en mero carácter de trabajadoras (Ferro, 2019a).

30 Esta era obrera comenzará a concluir en la década de los ’70 del siglo XX, cuando

comienza el desmonte paulatino y progresivo de las conquistas obtenidas duramente yse frena la redistribución funcional del ingreso en países occidentales : “Se trata de unataque global que afecta a la seguridad, al empleo, al salario, a los servicios y a lastransferencias públicas, así como también al tiempo, a la organización del trabajo y, engeneral, al cuadro de derechos” (Picchio, 2009 : 27).

31 La conjunción entre crecientes niveles educativos de las mujeres, con mantenimiento

de órdenes de sexuación del trabajo remunerado y no remunerado, familiar y nofamiliar, se trasladó al ámbito de los mercados laborales en la forma de segmentacioneshorizontales y verticales (Alba, 2000) por razones de género. Esto es, tipos de

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actividades remuneradas distribuidas por razones de sexo (segregación horizontal) ysobre-representación femenina en capas basales de las organizaciones, en contraste conla sobre-representación masculina en capas dirigenciales de las mismas,independientemente de la composición cuantitativa por sexo en la organización, tantoabsoluta como relativa (segregación vertical).

32 Otro efecto estudiado en las segregaciones ocupacionales es el “efecto tijera” en

mercados laborales muy calificados. Las mujeres comienzan su carrera, generalmente,con un plus educativo respecto de los hombres, pero cuando llega la maternidad lamovilidad ascendente femenina en las organizaciones se detiene o invierte y la de losvarones va en ascenso sin vaivenes, porque la paternidad no comporta un impactosimilar en sus carreras (UNESCO, 2019 :23).

33 Por todo ello, para las mujeres titulares de hogares, debido a la falta de paridad en la

redistribución de las responsabilidades familiares con los hombres, resolverexitosamente la transferencia de esas responsabilidades en otras mujeres más pobrescomo muestran estadísticas de uso del tiempo (Time’s Budget3), es crucial para suempleabilidad y movilidad ascendente dentro de las organizaciones laborales. En paísescon sistemas de protección social fuerte – como en aquellos más deficientes en estesentido – con poder adquisitivo decreciente de salarios, esta tercerización del cuidadoes generalizadamente migrante porque así sus costos son compatibles con elencarecimiento de la crianza de los hijos/as (Alba, 2000) en contexto de pérdidageneralizada del poder adquisitivo de los salarios (Picchio, 2009) en comparación conlas generaciones anteriores por diversas razones, entre ellas la del cambio tecnológico ylas nuevas habilidades comunicativas exigidas en los mercados laborales a las nuevasgeneraciones. Otro factor persistente que complica la conciliación entre lasresponsabilidades laborales y del cuidado familiar es el comportamiento arraigado dehombres adultos y sanos que sin embargo no se tornan autónomos en el autocuidado entodo su ciclo vital – ni participan paritariamente de la distribución equitativa delcuidado de otros/as – y siguen demandando cuidados como si fuesen niños perpetuos(Picchio, 2001).

34 Tal tensión inicialmente se resolvió delegando pro bono parte de las responsabilidades

de cuidados en otras mujeres de la familia ampliada. Debido a la tendencia a lanuclearización de las familias (Jelin, 2010) y a los tiempos de la movilidad intra-urbana,que forman parte de la aceleración de procesos de urbanización y de concentraciónpoblacional en megalópolis, estas “soluciones” no están accesibles como antaño.

35 La solución menos cara que la compra de servicios de cuidados remunerados y la más

práctica para intentar paridad de trato y oportunidades en los mercados laborales, es laque muestra la transición demográfica : menos nacimientos y más tarde. La transicióndemográfica se produce por un cúmulo de factores siendo los descritos aquí de los másdecisivos y a su vez más invisibilizados, porque “la dinámica de una población nodepende sólo de la mortalidad y de la fecundidad, sino también integra otrosparámetros. Las diferentes variables interactúan entre sí, llegando a sistemas complejosde reproducción demográfica.” (Zabala de Cosio, 1992)

36 El cambio comportamental y de expectativas en las mujeres occidentales repercutió en

otras ramificaciones diferenciadas dentro de las demandas migratorias feminizadas.Una creciente porción de hombres de países desarrollados desea mujeres migrantespara casarse, que cuiden de ellos y cuiden de los hijos en casa, que no demandenparidad en la distribución de responsabilidades del cuidado, no aspiren a una

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participación equitativa en mercados laborales, en el sistema político, científico o ensuma en el reconocimiento social de la sociedad de acogida. Las migrantes para seresposas, en la forma de casamientos serviles, fenómeno migratorio estudiado porPiscitelli (2011) también forman parte del flujo migratorio para trabajo de cuidados, noremunerado en este caso y más invisible. Por ello deberían crearse instrumentos demedición para cuantificar y analizar el fenómeno de la importación de esposas4 quecrece sin pausa, especialmente en el Norte Global donde algunos sectores de sussociedades intentan preservar asi el modelo casi extinto del Male bread winner.

37 Otra ramificación que puede connotar situaciones reñidas con los derechos laborales y

hasta con los derechos humanos porque puede eventualmente deslizar a situaciones deservidumbre de hecho, es el sistema de au pair (Williams, 2011) por el cual se intentaconseguir servicios de cuidados de migrantes internacionales y en algunos casos deconnacionales más pobres- sin pagar salário por ello. Consiste básicamente en hacertrueque de alojamiento y comida a cambio de trabajos de cuidados, liberando a latrabajadora algunas horas diarias o semanales para que realice otras actividades deestudios o remuneradas.

38 El incremento de la presión por servicios de cuidados dentro de los hogares también

ocurre como consecuencia de inestabilidades, precariedades e hiper-movilidades en losmercados laborales (Benería, 2003) muchos integrantes de segundas y hasta de tercerasgeneraciones en los hogares entran y salen del empleo, por ende, egresan y re-ingresanperiódicamente a los hogares nucleares en busca del colchón amortiguador para elsubempleo, el autoempleo o el empleo intermitente.

39 Es en esta compleja coyuntura histórica donde se generaliza a escala global la disputa

por el reparto del tiempo entre hombres y mujeres titulares de hogares, que tiene unaelasticidad finita, entre configuraciones decimonónicas de los mercados laborales, losderechos laborales, la seguridad social y sistemas tributarios análogos (Villota, 2003)entre otros factores, coexistiendo con expectativas equitativas de participacióneconómica, política, social y cultural por parte de grandes colectivos de mujeres entodo el mundo. Estas situaciones no son exclusivas del Norte Global y son expresivastambién en sociedades del Sur Global.

3. Coyunturas económicas y flujos migratorios decuidados desde el sur

40 En América Latina, en el último tercio del siglo pasado, el exponencial endeudamiento

externo soberano, desembocando en cesación de pagos en muchos casos, caracterizó lallamada “década perdida” en los ’80 : crisis de pagos de deuda externa, inflación,desempleo, desindustrialización. En un escenario regional de histórica heterogeneidadestructural, sumada a las cíclicas crisis en las balanzas comerciales (CEPAL, 1996)enormes contingentes de desempleados son impulsados a emigrar en dirección a laseconomías del Norte Global en forma predominante y en menor escala a insertarse encircuitos migratorios regionales hacia países más prósperos y/o menosdesestructurados por la violencia política y social que atravesó la región en gran partedel siglo5.

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41 Parte significativa de los contingentes latinoamericanos emigrantes fueron mujeres

hispanohablantes (Pizarro, 2011) para dedicarse a tareas de cuidados remuneradas enhogares del Norte Global, principalmente en España y sur de los Estados Unidos.

42 “(...) en líneas generales, se pueden dividir los flujos contemporáneos desde

Latinoamérica en cuatro períodos : 1) 1975-1991, donde los flujos correspondenmayoritariamente a los ciudadanos argentinos, chilenos y uruguayos que llegaronprincipalmente por razones políticas ; 2) 1992-1999, cuando peruanos y dominicanosencabezan las migraciones económicas, claramente feminizadas ; 3) 2000-2005, períodocaracterizado por la gran aceleración de la migración latinoamericana con destino aEspaña, protagonizada principalmente por ecuatorianos y colombianos y, 4) a partir de2006, cuando nuevos flujos, liderados por bolivianos, paraguayos y brasileñosdesbancan a los anteriores de las primeras posiciones (Vono y otros, 2008 apud Pizarro,2011 : 33)

43 A mediados de la década de los ’90 comienza a formarse una nueva “tormenta perfecta”

en la región, por la confluencia de circunstancias que crearon otro push factor ; esta vezcon consecuencias diferenciadas respecto de etapas anteriores. La década estuvocaracterizada por el neoliberalismo programático, que impactó en la actividadeconómica, la acción política y hasta en el sistema cultural. El ascenso del capitalfinanciero como organizador de la actividad económica y de las decisiones políticasincluso, provocó una nueva ola desindustrializada y también trajo a consideraciónpública la evidencia de que, en América Latina, la pobreza está ampliamente feminizada(UN DESA, 2015). Por ello, organismos internacionales comenzaron a financiar desdeentonces, programas de transferencias monetarias condicionadas (TMC) dirigidas a“jefas de hogar”, estén o no solas, para la administración de las ayudas monetarias y suresponsabilización por el acceso a salud y educación de los hijos. (Rodríguez Enríquez,2011)

44 A partir del 2000, comienzan a darse experiencias estatales lideradas por gobiernos

progresistas, especialmente en Sudamérica, caracterizadas por la expansión de laprotección social, la reindustrialización, las políticas de empleo, la expansión einclusión de los sectores populares a la educación superior, entre otros indicadores quedejaron ver una tentativa de regreso a las intermitentes experiencias pretéritas deregímenes de bienestar. No fue un proceso uniforme en toda la región, cada casonacional tuvo sus improntas y desafíos particulares especialmente en lo que atañe a laintensidad del conflicto distributivo. Los signos comunes de reparación e inclusión delos sectores populares y de tentativas de subalternizar a los sectores económicosconcentrados para ser conducidos políticamente por liderazgos electosdemocráticamente, ofrecieron un estímulo, en términos de ingresos y recursos, para laestabilización territorial de los proyectos de vida de familias de los quintiles inferiores.

45 Durante la “etapa dorada”, 2005-2015, de las políticas redistributivas en América Latina,

una significativa mejora en las condiciones de vida y de la empleabilidad de gran partede los países en conjunción con la aguda crisis financiera del 2008 que afectóplenamente al Norte Global, provocó una reorganización de los flujos migratoriosanteriormente caracterizados por la escala intercontinental, tornándose más queimportantes entre países vecinos, por ejemplo el caso de México con el resto deAmérica Central. En Sudamérica los flujos migratorios tanto feminizados hacia lostrabajos de cuidados, como masculinizados para la agricultura y otras ocupacionesinformales y no cualificadas, se dinamizan en escala intra-regional dada la crónica

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heterogeneidad estructural de la región como evidencia el caso argentino, paísconsiderado paradigma de atracción de inmigración a lo largo de su historia : “en laprimera década del siglo XXI se revela que el 81,2 % de los inmigrantes externos sonoriginarios de los países americanos, y dentro de este total, el 84,6 % corresponde a lospaíses que limitan con la Argentina (Bolivia, Brasil, Chile, Paraguay y Uruguay)”.(Benencia, 2012 : 18-19)

46 También en los inicios del Siglo XXI, se intensificaron los contingentes migratorios de

otras regiones del mundo en dirección al Norte Global, como por ejemplo los flujosprovenientes del sudeste asiático (Parreñas, 2015) ampliamente documentados ;compitiendo con los tradicionales flujos latinoamericanos en la exportación deservicios de cuidados a escala global.

47 Según datos de OCDE (2013), la feminización de flujos migratorios, tanto aquellos

considerados calificados como no calificados (en este último clasificador se consideradaque está el grueso del trabajo de servicios de cuidados a cargo de mujeres migrantes) semanifiesta con mayor intensidad en las áreas geográficas tradicionalmenteimportadoras de servicios de cuidados domésticos remunerados como Europa yAmérica del Norte. Contrariamente la feminización de los flujos migratorios decae enlas áreas geográficas que son tradicionalmente exportadoras de este tipo de servicios.El mayor porcentaje de migrantes recientes en América latina y el Caribe desde el iniciodel siglo XXI, en contraste con el decrecimiento de estos en otras partes del mundotendría que ver, en la línea interpretativa de este trabajo, con la reorganizaciónintrarregional de los flujos de migraciones, entre ellos los del cuidado ; debido aprocesos simultáneos : el progresivo endurecimiento de los filtros de entrada haciamigrantes no calificados en Europa, América del Norte y hacia las “neo-europas” deOceanía (Australia y Nueva Zelandia) y la mejora sustantiva en la inclusión social y laredistribución funcional del ingreso en muchos países latinoamericanos en la mismaetapa, entre otras razones.

Gráfico 1. Características de los migrantes de 15 años en adelante en países de la OCDE, por regiónde origen (de 2000-2001 a 2010-2011)

Extraído de OCDE,2013 : 3.

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48 A partir del año 2015, el “círculo virtuoso” en sentido keynesiano del crecimiento con

inclusión social en algunos países de la región, especialmente sudamericanos, comienzaa dar señales claras de reversión con la aplicación de amplios programas de reformasregresivas (CEPAL, 2019) bajo la conducción política de gobiernos neo-conservadores,teniendo a Brasil, Argentina y Chile como ejemplos paradigmáticos de este giro. Con eldeterioro en las condiciones de vida de vastos conjuntos de la población yespecialmente en los sectores populares, así como la retracción de derechos laborales,previsionales y otros componentes basales de los sistemas de protección social ; sepresentan las condiciones para reactivar flujos migratorios extrarregionales, paracuidados y para otras actividades, en larga escala. Pero esta vez los bloques regionalesdel Norte Global, demandantes y receptores de este tipo de migración, tienen susfronteras casi blindadas.

49 Como consecuencia, o tal vez a causa de ello, de la mayor restricción de ingreso al

espacio europeo colocado a ciudadanos/as extracomunitarios, crecen los flujos demigrantes de Europa Central y del Este, desde países recientemente ingresados a laUnión Europea, con asimetrías en su nivel de desarrollo económico y dedemocratización del bienestar respecto de los países centrales del bloque : “Within the

North, the enlargement of the European Union since 2004 has seen an increase in the numbers of

educated younger women migrants from Central and Eastern Europe who find care and domestic

work in the rest of Europe, in the hope that this will be a stepping stone to more professional

work.6” (Williams, 2011 :23).

50 Esta situación de incremento de la regionalización de los flujos migratorios, se

reproduce también en otras regiones del mundo, donde países con crecimientoeconómico reciente-aún aquellos sin inclusión social significativa o con una lentísimaredistribución del ingresso – también están demandando y absorbiendo parte demigraciones transnacionales de trabajadoras del cuidado, como por ejemplo algunosenclaves de Oriente Medio y Asia Menor (IOM, 2018) ; teniendo en cuenta que aún parael 2013, el mayor contingente de este tipo de migraciones feminizadas se encontraba enel Norte global : “Migrant domestic workers were overwhelmingly located in high-income countries ; and this was true of both female and male migrant domesticworkers” (IOM, 2018 : 18).

51 Aunque algunos estudios de agencias internacionales coloquen que el aumento del

porcentaje de mujeres migrantes por razones económicas a escala global,se debe acambios en los roles de género en los hogares de origen (INSTRAW, 2005) en esteenfoque no se comparte esta apreciación para el caso de las migrantes no calificadas, yaque éstas en realidad se sacrifican emocionalmente dejando atrás sus redes afectivasfamiliares y comunitarias, muchas veces a sus propios hijos/as, para seguirgarantizando la subsistencia del grupo familiar ampliado ante la no participación de loshombres, tanto por opción como por desempleo, como fue evidenciado en entrevistasrealizadas por la autora de este artículo a migrantes latinoamericanas residiendo enEspaña en la primera década del siglo actual.

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4. Desafíos metodológicos para medir la migración delcuidado y sus remesas

52 Existe un renovado interés tanto en organismos internacionales como en

investigaciones académicas, sobre los impactos de las remesas que movimientan estosflujos migratorios en países y comunidades receptoras, debido a su creciente magnitud,pero no existen suficientes estudios de organismos internacionales y académicos queden cuenta de la incidencia específica de los servicios de cuidados en el volumen totalde las misma.

53 “Actualmente la forma de cuantificar las remesas es a través de las balanzas nacionales

de pagos. Esta información es recogida por los bancos centrales de cada país y remitidaal Fondo Monetario Internacional, desde donde se elaboran las estadísticas comparadas.Sin embargo, el problema con utilizar la balanza de pago es que las categorías ydefiniciones que ahí existen no fueron diseñadas para identificar envíos realizados pormigrantes.” (Stefoni, 2011 : 6)

54 Como un deja vu de la década de los ’80, las estimaciones del Banco Mundial (2018)

establecen que en 2019 las remesas enviadas a los países de ingresos bajos y medioshabrían llegado a US$ 550.000 millones y se convertirían en la mayor fuente externa definanciamiento en más de un caso nacional latinoamericano y- a nivel mundial- son unafuente más estable, confiable y sostenible que la inversión extranjera directa (IED) “They total twice the overseas aid that goes to poorer countries” (Williams, 2011 : 32 ) y que lasinversiones estatales de los propios países.

55 En el ranking latinoamericano, organizado según las tasas de incremento respecto de

años anteriores, aparecen países muy diversos por lo que no puede observarse unasimple correlación entre tamaño de la población y ubicación como receptores deremesas. En el top ten mundial de países receptores de remesas, el país latinoamericanoque aparece mejor posicionado es México ocupando el tercer lugar (IOM, 2018). Paísesde tamaño poblacional heterogéneo están posicionados en los primeros lugares, asícomo países que han liderado procesos de industrialización, urbanización ymodernización en el pasado reciente como México, Brasil y Argentina junto con otrosde estructuras socio-económicas tradicionalmente menos dinámicas : “(...) se ve queentre los flujos más recientes, particularmente de bolivianos y brasileños, la mayorpresencia de mujeres sigue el mismo patrón observado anteriormente en los casos delos peruanos y dominicanos, por ejemplo.” (Pizarro, 2011 :34).

56 En coincidencia con Durán Heras (2011 : 25) se sostiene aquí que hay que desarrollar

instrumentos metodológicos que permitan dar cuenta no solo del volumen y lamagnitud de las remesas que surgen de las cadenas globales de cuidados a escalalatinoamericana. Esta ponderación contribuiría a la visibilización de un capítulosustancial de la balanza comercial de servicios en casos nacionales sudamericanos : “Enla cuenta del sector “ resto del mundo », referida a los intercambios exteriores debienes y servicios, también tiene que reflejarse el cuidado tanto en importación deservicios como en transferencias (cadenas internacionales de cuidado, remesas).”

57 El adecuado y oportuno análisis de la correlación entre coyunturas macroeconómicas y

reorganización, así como reorientaciones de flujos migratorios específicos y susremesas, precisan de mejor utillaje teórico-metodológico que el que se tieneactualmente :

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58 “As with global migrant stocks, estimates of migrant workers and their respective

characteristics suffer from statistical, definitional and methodological complexities. Estimates of

global remittances are available annually through the World Bank but, again, there are caveats

and considerable limitations associated with the available figures.” (IOM, 2018 :28)

59 Esta opacidad está causando un subregistro estadístico de la forma de composición de

las remesas. Si bien la expresión remesas connota en la opinión pública al envíoconstante de pequeños montos de dinero que realizan trabajadores no cualificadosemigrados, hay que tener en claro que remesas también son los grandes giros de dineroque filiales de multinacionales radicadas en el Sur Global realizan hacia sus casasmatrices y eso posiciona a países desarrollados como los principales receptores deremesas. Tampoco ayudaría la caracterización de remesas familiares ya que en estaclasificación estarían también las que envían emigrantes no vinculados a cadenasglobales de cuidados. Tal vez la agregación por sexo de este tipo de remesas permitauna mayor aproximación al volumen de las mismas en articulación con otrosindicadores.

60 Una situación adicional de complejidad para la medición de las remesas para todas las

categorías de migrantes, la constituye el escenario transfronterizo. Personas que vivena uno y otro lado de ciudades de fronteras por ejemplo en la Triple Frontera entreBrasil, Argentina y Paraguay realizan diarios desplazamientos para desarrollar todotipo de tareas remuneradas, especialmente comercio ambulante y servicios de cuidadosy movimientan a través de la frontera volúmenes poco conocidos de bienes y capitales“hormiga”. Las áreas transfronterizas son a la vez tan rígidas como porosas, porejemplo, en la Triple Frontera del Paraná, en la que convergen Argentina, Brasil yParaguay, son muchas las mujeres paraguayas de la región del Departamento AltoParaná y mas allá incluso, que realizan trabajos de cuidados y comercio en la regiónfronteriza de Brasil, así como el caso de mujeres peruanas hacia Chile en la TripleFrontera seca entre Chile, Bolivia y Perú (Guizardi et al, 2017).

61 Sin embargo, por el alto nivel de informalidad de tales actividades y por el hecho deque

no cambian de lugar de residencia permanente, sino que se desplazan a diario osemanalmente, estas actividades y sus remesas quedan ocultas a la medición y fuera delalcance de la legislación laboral de cada país, presentándose por ello muchos casos dereducción a la servidumbre y otras violaciones a sus derechos humanos en hogares depaíses de acogida.

62 La invisibilidad de la situación migratoria y de las actividades que desarrollan,

acrecienta la vulnerabilidad de estos colectivos. En esta invisibilidad de las migrantes ysus actividades transfronterizas, juega un papel preponderante la generalizada ypersistente desvalorización socio-económica del trabajo de cuidados (Romero, 2018) asícomo la rigidez de las burocracias nacionales que no consideran a las situaciones decotidianidad en las fronteras y desestimulan la formalización en este tipo deactividades laborales que quedan sumergidas en la informalidad legal y fiscal, así comoen la invisibilización estadística.

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5. Prospectivas del cuidado desde las incertezasglobales del presente

63 No solo el servicio de cuidados home-based por parte de migrantes está creciendo,

también crece en instituciones privadas y públicas, como las sanitarias y afines(Williams, 2011).

64 El sector privado, habitualmente poco interpelado académicamente por su

responsabilidad en la organización y provisión pública de servicios de cuidados y en suresponsabilidad social ante el mismo, participa con oferta remunerada einfraestructura ad hoc, aunque su calidad y seguridad comenzó a ser controladaestatalmente en años recientes y solo en algunos casos (Martínez Buján, 2010). Porsector privado entendemos aquí las empresas que comercializan estos servicios y lasorganizaciones de la sociedad civil que prestan también este tipo de servicios en formaremunerada : ONG, Iglesias, sindicatos y cooperativas de trabajadores/as del cuidado ;éstas últimas evidencian un significativo crecimiento en la actualidad.

65 Aun así, estas formas empresariales y asociativas de la prestación de servicios de

cuidados y de facilitación de infraestructura para el mismo, son menos expresivascuantitativamente que la venta de este tipo de servicios “al menudeo” : individual, adomicilio y extremamente precarizada en términos de regulaciones laborales ysindicales, con variaciones en los casos nacionales observados. Romero (2018 : 1179)apunta también a la participación del sector empresarial en las cadenas globales decuidados : “The transnational circuits of care migration are constructed by the commercial and

legal processes used to recruit and transport domestic workers.” Es decir que, si bien losfondos de asignaciones para compra de servicios de cuidados son estatales, estosfinalmente son provistos por circuitos mercantiles “In other words, although the payments

come from the state, it is often in the private market that people will find their care providers.”

66 En estos días el colapso de los sistemas de transporte y en la actividad privada y pública

en general creado por la actual pandemia del Covid-19 origina enormes interrogantessobre el impacto de esta crisis en estas cadenas globales de cuidados tanto en el ámbitoregional de la demanda como en aquella de la oferta ; así como deseablemente cabeesperar que se intensifique en la opinión pública la discusión sobre la necesidad deredistribución paritaria de las responsabilidades del cuidado familiar entre hombres ymujeres en los núcleos de convivencia y entre Estados, mercados, instituciones yfamilias en una escala sistémica.

6. Conclusiones provisorias

67 Si en el trabajo remunerado formal extra doméstico existe un conflicto redistributivo

por la expectativa de mayor participación de los asalariados en la riqueza nacional, enel trabajo de cuidados familiares no remunerado que acontece mayormente en loshogares y que abarca periodos de tiempo más extensos que el empleo, también existeen la actualidad un conflicto redistributivo y es por el tiempo. La transicióndemográfica que experimentan las sociedades occidentales más acusadamente, es engran parte una respuesta soterrada a este conflicto en el uso del tiempo, debido aasignaciones desiguales de responsabilidades del cuidado al interior de los hogares, lainsuficiente infraestructura pública de apoyo, los cambios en los mercados laborales en

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sentido regresivo y la invisibilidad del problema en el ámbito de la responsabilidadsocial de las empresas.

68 Un interesante aspecto a ponderar es que el bienestar económico de las camadas

medias y populares no implica por sí mismo un estímulo a la democratización de losroles de género, ya que el mayor poder adquisitivo de los salarios, especialmente en laasalarización femenina, estimula la tercerización de los trabajos de cuidados en otrasmujeres más pobres, para evitar así el conflicto relacional al interior de los hogares queocurriría si reclamasen distribuir el cuidado en forma equitativa con los hombres co-titulares de los mismos e hijos varones adolescentes y adultos.

69 El déficit de categorías, definiciones teóricas y metodológicas para medir las cadenas

globales de cuidados que abarcan muchos más aspectos que la sola migración y elincremento de la participación de las mujeres en los mercados laborales, es un factor demucho peso en la opacidad política y económica que se advierte sobre la crisis global decuidados. Especialmente gravosa es esta opacidad en América Latina, un espaciotradicionalmente exportador de servicios de cuidados hacia el Norte Global y donde lamayor parte de la PEA femenina en comparación con otras regiones del mundo realizaeste tipo de trabajos, según informa la OIT (2013). La invisibilización del cuidado en lateoría económica consagrada y en el debate político desestimuló, hasta ahora, lacreación de metodologías que dimensionen impactos monetarios de la crisis global delcuidado en la región.

70 Las remesas del cuidado pueden y deben medirse en las balanzas comerciales porque su

peso en la receptación de divisas en algunos países latino-americanos se infieremayúsculo. Estudios en esta línea podrían aportar elementos que contribuyan a lagobernabilidad de la crisis migratoria global, que alcanza actualmente niveles decatástrofe humanitaria en algunas regiones del globo.

71 Enormes desafíos aparecen en el mercado global de servicios de cuidados dificultando

prospectivas. Por el lado de la oferta, aunque todavía continúan los efectos de unareorganización en los flujos migratorios del cuidado a escala intrarregional, es evidenteque tendrán que volver a reorganizarse por la abrupta pérdida de bienestar económicode vastos sectores sociales desde el giro ideológico de retorno al neoliberalismo desdeel 2015 en países sudamericanos, entre otros de América Latina. Por el lado de lademanda, desde la crisis financiera global del 2008 y la crisis de refugiados del MedioOriente ofrecen incertezas adicionales por el cierre generalizado de fronteras y larecesión económica que se augura en gran parte de las economías occidentales porcausa de la pandemia global en curso del COVID 19.

72 ¿Cuál será entonces el escenario post pandemia que se presenta para América Latina,

una de las regiones que más reciben remesas provenientes de migrantes trabajadoresde baja cualificación entre las que se sobrerrepresentan las prestadoras de servicios decuidados ? ¿Llegará el cuidado a la agenda política de nuestros países incidiendo en unamayor infraestructura pública de apoyo y a una asunción de las empresas de su parteen tales responsabilidades ? ¿Cuál es el lugar del cuidado y de su redistribuciónsistémica en la agenda de los movimientos feministas y de mujeres en la región ? ¿Cuáles el lugar de la Economía del Cuidado en la discusión académica en general, y de laEconomía-Ciencia en particular en nuestra región ?

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NOTAS

1. -Incluso se observa esta dinámica jerárquica en las cadenas transnacionales de cuidados a

través de enclaves de integración regional, tanto latinoamericanos como en otras partes del

mundo (Romero, 2018)

2. -Adam Smith, “padre” del espacio epistemológico denominado Economía Política, opinaba

respecto del valor del trabajo de cuidados familiares en 1786: “Sus servicios perecen, por lo

general, en el mismo instante de su ejecución y raramente dejan tras ellos huella o valor alguno

por la que se pueda conseguir posteriormente una misma cantidad de servicios” (Smith, Adam

apud Ferro, 2019b:118).

3. Técnica de construcción de datos primarios mediante cuestionario que refleja el uso del

tiempo diario de hombres y mujeres. Las encuestas de uso del tiempo están incorporadas en

sistemas estadísticos de muchos países occidentales.

4. -Este tipo de migración está llamando la atención por la creciente violencia doméstica y de

género, cuando no otras situaciones que envuelven redes criminales, que se presentan en no

pocos casos. (Piscitelli,2011)

5. -Una consecuencia similar habría ocurrido con la desestructuración del Bloque Soviético desde

1989 (Williams, 2011)

6. Situación con paralelismos a lo acontecido durante la crisis económica argentina que iniciada

en la segunda mitad de la década de los ’90 desembocó en una implosión institucional en 2001 y

flujos migratorios inéditos para la tradición más bien receptiva que expulsiva de población, en

dirección a Europa y especialmente a España, nutrieron los servicios de cuidados, en particular el

de “canguros” (nannies) de migrantes profesionales universitarias en su gran mayoría datos

obtenidos en entrevistas realizada por la autora de este artículo en el marco de proyectos de

investigación para estudios de postgrado en España.

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RESÚMENES

Este artículo se propone, en primer lugar, demostrar las relaciones significativas que tienen

especificas condiciones demográficas y sociales, con la reorganización global y reorientación

regional de los flujos migratorios del cuidado, tanto en países con perfil tradicional de demanda

de trabajo de cuidados remunerados como en aquellos más caracterizados por la oferta. En

segundo lugar, se realiza una caracterización de la participación de países sudamericanos desde

el último cuarto del siglo XX hasta la actualidad, en las dinámicas de las cadenas globales del

cuidado. Finalmente, ante una nueva etapa de contracción económica en sentido regresivo que se

reinició en 2015 en la región, en conjunción con el cierre de fronteras de los tradicionales países

receptores de este tipo específico de migraciones feminizadas de cuidados, se ofrece un análisis

sobre los desafíos que tales coyunturas acarrean en el presente y futuro inmediato en países del

cono sur latino-americano.

La metodología de este trabajo se asienta en el análisis e interpretación de bases de datos e

información estadística publicada por fuentes oficiales, tanto de organismos internacionales

como de sistemas estadísticos públicos nacionales en diálogo epistemológico con aportes teóricos

provenientes de la literatura internacional de referencia en la temática.

ÍNDICE

Keywords: cuidados, migraciones transnacionales, historia económica contemporánea, remesas,

Sudamérica

AUTOR

SILVIA LILIAN FERRO

Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), Brasil, lilian.ferro [at]

unila.edu.br

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Migração internacional de mulherese o mercado global de cuidadosUm estudo sobre filipinas em São Paulo, Brasil

Ester Martins Ribeiro e Rosana Baeninger

Agradecemos as contribuições das/dos pareceristas, que nos ajudaram a rever e aclarar o texto.

Também agradecemos a toda equipe do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO/

Unicamp) pelas constantes trocas intelectuais.

Introdução

1 As Filipinas são um exemplo de um Estado que assumiu a migração e exportação de

força de trabalho como forma de obtenção de renda e especialização no mercado global.Aproximadamente 10 % da população filipina se encontra trabalhando em outro país.Em 2016, foram firmados 582.000 (quinhentos e oitenta e dois mil) novos contratos paratrabalhadores – filipinas e filipinos – saírem de seu país para assumir ocupações land

based1 em outros países. No mesmo ano, 275.000 (duzentos e setenta e cinco mil) dosnovos contratos firmados se destinavam ao posto de trabalhador/a doméstica (domestic

helper). Ou seja, quase metade novos contratos de trabalho no exterior, no ano de 2016,se destinavam ao serviço doméstico e diziam respeito à migração de mulheres.

2 A colonização espanhola do país (entre os anos de 1521 a 1898) deixou marcas

profundas, especialmente na organização de uma economia voltada à exportação deprodutos agrícolas e na introdução do catolicismo (Tyner, 2009). A posteriorcolonização estadunidense (até 1946) aprofundou a dependência da exportação decommodities, além de remodelar o sistema educacional filipino e introduzir o inglêscomo língua oficial. Nos anos de 1970, durante o regime do Presidente Marcos, umapolítica de exportação de força de trabalho foi criada mobilizando a necessidade dealiviar a balança de pagamentos por meio de remessas dos migrantes, reduzir odesemprego e o subemprego de profissionais qualificados, promovendo ativamente osfilipinos como dóceis, altamente escolarizados e fluentes na língua inglesa.

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3 Num contexto interno de inseguranças econômicas, típicas de países em

desenvolvimento, Parreñas (2015 [2001]), ressalta que a migração “por razõeseconômicas” possui um sentido distinto para mulheres e para homens nas Filipinas : asopções limitadas de inserção no mercado ocupacional, a violência física e simbólica aque são submetidas, e os duplos padrões quanto às escolhas de mulheres e homensrevelam uma estrutura social estratificada com base (também) no gênero e que influidiretamente sobre as causas da migração de mulheres filipinas. Assim, a desigualdadede gênero é que coloca muitas dessas mulheres na posição de ter que migrar por razõeseconômicas.

4 Uma característica marcante dessa migração é a sua promoção ativa pelo Estado

filipino, que conta com agências privadas para alocação de força de trabalho noexterior, por meio de divulgação (criação de demanda e propaganda) e parcerias comoutras agências nos países de destino (Guevarra, 2010 ; Rodriguez, 2008). A fim degarantir a competitividade de domésticas filipinas no mercado global, as agênciasprivadas de recrutamento e o Estado filipino buscam promover uma determinadaimagem das trabalhadoras como sendo melhores do que as mulheres de outrasnacionalidades, como se representassem uma “mercadoria de trabalho superior nocontexto do Terceiro Mundo” (Guevarra, 2014).

5 Inclusive, essa construção racializada sobre as mulheres filipinas se mostra bastante

compatível e propícia à reprodução da estrutura econômica global de desigualdadeentre nações (Parreñas, 2007). As Filipinas continuam contando com o trabalho dasmulheres dentro e fora de casa (em ocupações desvalorizadas e tradicionalmentefemininas), tornando-se um Estado competitivo no mercado global, além de exportaressa força de trabalho barata. As Filipinas então recebem as remessas das migrantes eequilibram minimamente sua balança de pagamentos, amenizando sua situação perantecredores internacionais (Parreñas, 2007). As nações que as recebem se beneficiam dotrabalho e cuidados providos por elas, sem que se comprometam com sua cidadania(Parreñas, 2008, Martins e Vedovato, 2017). Essas mulheres, portanto, voltam-se para amigração internacional e para o trabalho reprodutivo, negociando suas escolhas eprojetos, em meio a um contexto global estratificado.

6 No Brasil, aproximadamente 300 mulheres de nacionalidade filipina entraram no país

entre 2013 e 2015 para trabalhar como domésticas nas residências de uma fração daclasse média alta paulistana (Mello, 2017). Ao mesmo tempo, o Brasil possui umcontingente elevado de mulheres (principalmente negras) trabalhando comodomésticas : estima-se que haja cerca de 6 milhões de domésticas no Brasil (DIEESE,2013, p. 3), sendo que 61 % seria de mulheres negras na média nacional (DIEESE, 2013,p. 6). De toda forma, a chegada dessas mulheres no Brasil apontava para uma novarelação do país com o trabalho doméstico remunerado : também somos consumidoresdessa força de trabalho imigrante.

7 Realizamos uma escolha teórica no sentido de compreender o trabalho doméstico como

um trabalho de cuidados e, portanto, inserido nesse mercado. Entendemos que otrabalho doméstico visa mais do que a manutenção dos corpos ou dos ambientes deuma casa. Há uma relação de afeto, de intimidade, uma preocupação constante com obem estar das pessoas, exteriorizado nas inúmeras atividades que uma domésticarealiza. Assim, o trabalho de cuidado (care work) inclui “qualquer tipo de atençãopessoal, constante e/ou intensa, que visa melhorar o bem estar daquela ou daquele queé seu objeto” (Zelizer, 2012 : 18).

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8 Além disso, argumentamos que o trabalho doméstico reproduz tanto os corpos, quanto

estruturas sociais, como relações de classe, gênero, raça, status (Anderson, 2000). Omercado global de cuidados se estrutura a partir da migração de mulheres de diversaspartes do mundo, especialmente do Sul global (Isaksen et al, 2008), sendo que asfilipinas possuem certa “vantagem” nesse mercado : uma construção racial com baseem sua nacionalidade e gênero, que lhes dá o apelido de “Supermaids” (Guevarra, 2014).

9 Na seção 1 desse artigo, buscaremos articular o tema da mobilidade de mulheres

filipinas em meio ao contexto do mercado global de cuidados. Esse mercado seestrutura a partir de uma divisão internacional do trabalho reprodutivo, por sua vezcomposta por divisões raciais e de classe entre mulheres. Na seção seguinte,buscaremos inserir esse fenômeno migratório no contexto brasileiro, em especial naRegião Metropolitana de São Paulo. Ademais, também trataremos de resultados dasentrevistas realizadas com domésticas filipinas que se encontravam na capital paulista,ressaltando contradições e as subjetividades desse processo.

1. O mercado global de cuidados e as migraçõesinternacionais

10 Estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) refletem a relevância das

migrações internacionais para o abastecimento do mercado de trabalho domésticoremunerado : dentre 67 milhões de trabalhadores domésticos em todo o mundo, 11,5milhões seriam migrantes internacionais (OIT, 2015 : 6). Dentre migrantesinternacionais, 73 % são mulheres, ou seja, quase 8,5 milhões. Lisboa (2007 : 817)também estima que, nesse contexto global, 100 mil mulheres se movem anualmentepara assumir trabalhos domésticos na esfera privada.

11 As regiões que mais concentram domésticas migrantes internacionais em números

absolutos são, primeiramente, o Sudeste asiático junto aos países banhados pelo OceanoPacífico (2,03 milhões) ; seguido pela Europa meridional, setentrional e ocidental (1,87milhão) ; pelos Estados árabes (1,6 milhão) ; e pelo leste asiático (990 mil). Por outrolado, temos que o percentual de migrantes internacionais em relação ao total detrabalhadoras domésticas se mostra especialmente elevado na América do Norte(71 %) ; na Europa meridional, setentrional e ocidental (65,8 %) ; bem como nos Estadosárabes (73 %).

12 Portanto, é a força de trabalho de mulheres migrantes, provendo serviços domésticos

no chamado norte global que tem abastecido o mercado de cuidados nessas localidades.Isaksen et al (2008) argumentam que isso vai além de uma transferência de afeto do sulpara o norte global, mas se caracteriza numa erosão de laços sociais de solidariedade eintegração fora do mercado. Conforme essas autoras, em fases anteriores doimperialismo, extraíam-se riquezas naturais e produtos agrícolas dos paísescolonizados. Hoje, a extração iria além da força de trabalho na indústria e naagricultura, pois o norte também dependeria de recursos emocionais trazidos pormulheres, ocasionando uma espécie de “desertificação de cuidadoras e bens emocionaisque teriam provido se tivessem a possibilidade de permanecer” (Isaksen et al., 2008 :419).

13 No entanto, a migração do sul para o norte global não é a única modalidade que se

destaca nesse processo : as regiões onde se encontram o maior número de domésticas

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imigrantes abrangem o sul global (como sudeste asiático e Pacífico ; Estados árabes ;leste asiático). Inclusive, os principais destinos da migração de domésticas filipinasentre 2004 e 2010 foram Hong Kong, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita,Qatar, Singapura, Bahrein, Oman, Chipre e Itália (POEA, 2010a). Em 2017, as mulheresfilipinas se distribuíam principalmente em : Arábia Saudita (22,5 %), Emirados ÁrabesUnidos (17,5 %), Hong Kong (11,7 %), Kwait (10,3 %) e Singapura (6,1 %). No mesmoperíodo, os locais onde havia mais concentração de homens filipinos era : ArábiaSaudita (28,7 %), Emirados Árabes Unidos (12,6 %), Europa (10,1 %), Américas (8 %) eJapão (6,9 %) (PSA, 2018).

14 Considerando-se mulheres e homens nas Filipinas, houve 85.000 novas contratações

(new hires) para trabalho doméstico no exterior em 2005 (POEA, 2005). Em 2010, 96.583novos contratos para essa ocupação (POEA, 2010b). Em 2016, esse número chegou a275.000 novos contratos (POEA, 2016). Mas são as mulheres filipinas que perfazem amaior parte do grupo de trabalhadores que se destina ao trabalho doméstico noexterior. Em 2005, elas representavam 96 % do grupo de new hires in household service

works e, em 2010, representavam 98 % do grupo.

15 Em trabalho de campo com corretores de agências de recrutamento de domésticas nas

Filipinas, Guevarra (2010 : 137) ouviu a explicação de que a competição com paísescomo Indonésia e Sri Lanka, além das demandas de empregadores por domésticasaltamente qualificadas, ameaçavam a liderança das Filipinas na provisão de força detrabalho para o serviço doméstico. Assim, corretores viam a necessidade de enfatizarainda mais o “valor adicionado” das filipinas. Os atributos da escolaridade, daqualificação, da fluência em inglês e do treinamento que recebem são vendidos comoum bônus que se adquire pelo preço de um serviço doméstico comum : “dois-pelo-preço-de-um”.

16 Lan (2003) demonstra que empregadores taiwaneses validavam seu status de classe

média por meio do consumo da força de trabalho de domésticas filipinas, que eramtambém tutoras de inglês para seus filhos. Esse capital, herdado da colonizaçãoestadunidense, era também utilizado por elas para negociar e melhorar suas condiçõesfrente aos empregadores. Semelhantemente no Brasil, a fluência das mulheres filipinasna língua inglesa, sua alta escolaridade, o fato de aceitarem dormir nas casas dasfamílias empregadoras, eleva o status social dos empregadores e é entendido como odiferencial do grupo. A contratação de uma mulher compreendida como “mais cara” emais adequada para o trabalho devido à sua origem e elementos raciais fazem com queempregadores brasileiros lhes paguem um salário ligeiramente superior ao que écomumente pago às trabalhadoras autóctones.2

17 Ao vender as qualidades das trabalhadoras como traços naturais de sua personalidade,

devidos à sua nacionalidade, corretores estariam racializando esse grupo e criando umaespécie de “marca racial filipina” (Guevarra, 2014 : 131). A construção dessa racializaçãode mulheres filipinas, tornando-as propensas e “naturalmente aptas” ao trabalhodomestico é um dos elementos da chamada “divisão racial do trabalho reprodutivo”,analisada por Glenn (1992).

18 A divisão racial do trabalho reprodutivo confere noções de feminilidade distintas para

mulheres brancas e para mulheres de grupos racializados, por meio de noções dualistase opostas que ganham sentido quando em relação com a outra : boa/ruim, limpa/suja,cidadã/imigrante, branca/outra (Glenn, 1992 : 34). Essa interdependência pode ser vista

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no fato de que o padrão mais alto de vida de uma mulher só é possível por, e tambémajuda a perpetuar, o padrão de vida mais baixo da outra mulher.

19 Dessa forma, “raça e gênero emergem como construções sociais, interligando sistemas

que dão forma às condições materiais, identidades e consciências de todas as mulheres”(Glenn, 1992 : 3). Essas construções raciais conferem uma autoimagem aceitável àsmulheres com privilégios de raça e classe, na medida em que protege também oprivilégio masculino (Glenn, 1992 : 34). Assim, historicamente mulheres brancas e comprivilégios de classe têm se afastado do trabalho reprodutivo ao adquirir serviçosbaratos de mulheres racializadas, mantendo uma divisão racial desse trabalho eestabelecendo uma hierarquia, em dois níveis, entre mulheres.

20 Buscando situar essa análise de Glenn (1992) num contexto internacional de

incorporação da força de trabalho de mulheres na economia global, Parreñas (2015)lança mão da discussão feita por Sassen (1984). A hipótese de Sassen (1984 : 1144) é quehá relações sistêmicas entre o crescimento da produção voltada para exportação empaíses em desenvolvimento, e o aumento massivo da migração para o norte global,sendo que ambos os fenômenos são caracterizados pela incorporação de mulheres do“Terceiro mundo” (sic) na força de trabalho capitalista numa escala sem precedentes.

21 A transformação técnica do processo produtivo e a dispersão espacial dos locais de

produção para áreas menos desenvolvidas teriam também alterado a estrutura laboralnos países desenvolvidos, aumentando a demanda por trabalhos de serviços com baixaremuneração, particularmente trabalhos considerados femininos (Sassen, 1984 : 1152).A necessidade de serviços para suprir centros de gerenciamento que permanecem nospaíses desenvolvidos, até de serviços privados para a alta classe gerenciadora nesseslocais, coincidem com o aumento no número de migrantes, tanto homens comomulheres, desde os anos 1960 nos Estados Unidos da América – de onde parte a análiseda autora (Sassen, 1984 : 1156).

22 A tendência à modernização das indústrias (capital-intensive) nos países em

desenvolvimento não dispensava de formas tradicionais de produção (labor-intensive) enão prescindia da força de trabalho feminina. Pelo contrário, houve aumento daparticipação das mulheres, especialmente em trabalhos com baixa remuneração nanova forma de organização do processo produtivo, combinado a um crescimento nosserviços domésticos nas cidades (Sassen, 1984 : 1148). Esses setores possuíam uma altataxa de rotatividade e eram amplamente abastecidos com a migração de jovensmulheres para regiões que se industrializavam rapidamente (Sassen, 1984 : 1150).

23 Considerando esse panorama, Parreñas (2015, p. 40) argumenta que a divisão

internacional do trabalho reprodutivo é moldada pelo capitalismo global e por sistemasde desigualdade de gênero, de classe, raça e cidadania – em ambos os contextos deorigem e destino da migração (Parreñas, 2015 : 41). Sob a divisão internacional dotrabalho doméstico, trabalhadoras domésticas filipinas realizariam o trabalhoreprodutivo atribuído a mulheres com privilégio de classe em países mais ricos,enquanto deixam seus dependentes para serem cuidados por outras mulheres nasFilipinas : “Essa divisão internacional de trabalho se refere a uma transferência, em trêsníveis, de trabalho reprodutivo entre mulheres em dois Estados-nacionais : mulheres decamadas médias e altas em países de destino, as migrantes filipinas trabalhadorasdomésticas, e as trabalhadoras domésticas, ou mulheres parentes mais pobres, nasFilipinas, que são normalmente pobres demais para migrar.” (Parreñas, 2015 : 41,tradução livre)

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24 De acordo com Parreñas (2015 : 41), esse último grupo de mulheres é composto

geralmente por parentes das migrantes ou mulheres com menos recursos para buscaremprego fora de seu país. Em meio a um desenvolvimento econômico desigual entrenações, a migração de um grupo de mulheres filipinas está imersa no processocapitalista global. Ao mesmo tempo, desigualdades de gênero e hierarquizações entremulheres também se mostram um fator central nessa migração (Parreñas, 2015 : 41) : oprocesso envolve a negociação de falta de oportunidades para mulheres nas Filipinas,ao passo em que alivia também constrangimentos de gênero impostos às mulheres empaíses mais ricos, e acaba por finalmente transferir encargos familiares das migrantesàs mulheres que permanecem nas Filipinas.

25 Ao liberar homens e mulheres do trabalho reprodutivo, migrantes filipinas tornam seus

empregadores mais disponíveis para o mercado capitalista e para a exploração dotrabalho considerado produtivo. Consequentemente, essa classe privilegiada se mantémcontando com mais recursos materiais e emocionais. No entanto, essa doméstica recebeum salário significativamente mais baixo que seus empregadores e não pode prover osmesmos recursos para sua família. Por essa razão, sua família permanece nas Filipinas,recebendo cuidados de uma terceira mulher, que recebe uma remuneração ainda piorou muitas vezes nem é paga. As necessidades reprodutivas da família dessa últimamulher da cadeia são ainda mais negligenciadas e ela conta com significativamentemenos recursos materiais para sua satisfação (Parreñas, 2015 : 42).

26 Dessa forma, a divisão internacional do trabalho reprodutivo tanto estimula

desenvolvimento econômico nos países de destino, como também retém desigualdadesda economia de mercado global (Parreñas, 2015 : 42) : os baixos salários das domésticasmigrantes aumentam as atividades produtivas nas nações que as recebem, mas ocrescimento econômico na economia filipina é limitado e dependente de moedaestrangeira, abastecida por meio dos baixos salários, da desigualdade de classeexistente nas Filipinas e da manutenção do trabalho reprodutivo às mulheres(Parreñas, 2015 : 43).

2. Trabalhadoras domésticas filipinas em São Paulo

27 A América Latina e o Caribe contam com cerca de 690 mil mulheres imigrantes que

realizam trabalho doméstico nessa região (OIT, 2015), sendo que o Brasil recebeuaproximadamente 300 mulheres de nacionalidade filipina que imigraram para o país,principalmente para atuar como trabalhadoras domésticas em casas de alto padrão nacapital paulista, entre os anos de 2013 e 2015 (Quintella, 2017).

28 No Estado de São Paulo, dentre os anos de 2000 e 2016, foram registradas 1.173

mulheres de nacionalidade filipina residentes no estado (Baeninger et al, 2017 : 344),muito embora a ocupação delas não seja necessariamente o trabalho doméstico. Na basede dados de registro de estrangeiros da Polícia Federal, o Sistema Nacional de Cadastroe Registros (SINCRE), há o registro de um total de 930 mulheres de nacionalidadefilipina que entraram no Brasil e declararam residência no município de São Pauloentre os anos 2000 a 2016.3

29 A base de dados Relação Anual de Informações Sociais do trabalho e emprego (RAIS)

não permite que se desagreguem os dados pela nacionalidade filipina, que se encontracontida na categoria “outras nacionalidades asiáticas”. As mulheres desse grupo foram

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responsáveis por 150 vínculos formais de trabalho no ano de 2010. Em 2014, essenúmero chegou a 268 (Cavalcanti et al, 2015 : 240).

30 Como a imigração filipina tem participação ativa do Estado (Guevarra, 2010), a

documentação é uma de suas características. Assim, agências nas Filipinas fazemacordos com agências nos locais de destino (neste caso, em São Paulo), e os trâmites sãoformalizados. Assim, há sempre um contrato escrito de trabalho, geralmenteacompanhado de autorização de trabalho obtida pela agência local em favor datrabalhadora.

31 Outro dado interessante é a existência de 130 empregadores na Região Metropolitana

de São Paulo (RMSP), responsáveis pela contratação de 180 trabalhadores domésticosinternacionais, sendo que a grande maioria desse grupo é de filipinos (Locatelli, 2017).Aproximadamente 70 trabalhadoras domésticas filipinas chegaram a São Pauloespecificamente por meio de um acordo entre uma agência filipina e uma empresabrasileira entre 2014 e 2015 (Locatelli, 2018 ; TRT 2ª região, 2019) – ambas condenadasem primeira e segunda instâncias pela justiça trabalhista brasileira por agenciamentofraudulento4 e por não agirem quando souberam das condições de trabalho análogas àescravidão, enfrentadas por 3 mulheres filipinas no país. Em 2017, as denúncias foramfeitas à Justiça brasileira e se tornaram públicas (Locatelli, 2017).5 Nesse momento,também foi formada a Comunidade Filipina em São Paulo.

32 Na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), as mulheres negras representam 55 %

das empregadas domésticas, um percentual alto, “considerando-se que a participaçãode negros na População Economicamente Ativa (PEA) é de cerca de 38 % na RMSP”(DIEESE, 2016 : 6). Na região, praticamente não há mais empregadas domésticas quedormem no emprego : em 1992, essa era uma realidade para 22,5 % das domésticas naregião. Em 2015, esse número chegou a 1 % (DIEESE, 2016).

33 Na RMSP, as domésticas mensalistas com vínculo formal de trabalho (“carteira

assinada” ou “celetista”) representavam 26,5 % das domésticas em 1992 (DIEESE, 2018).No ano de 2017, representavam 41,5 %. Nesse período, também cresceu arepresentatividade das diaristas (que não se beneficiam da Lei Complementar nº150/2015 nem dos direitos sociais conferidos aos trabalhadores formalizados) : eram30,2 % das trabalhadoras domésticas em 1992, chegando a 41,5 % em 2017 (DIEESE,2018). A jornada de trabalho semanal também se modificou no período : em 1992, asmensalistas celetistas trabalhavam em média 49 horas semanais. Em 2017, a média foide 40 horas semanais (DIEESE, 2018). Em termos de rendimento, as domésticas da regiãoaumentaram seus ganhos numa média de 150 % entre 1992 e 2017 (DIEESE, 2018).6

34 Mudanças significativas foram alcançadas pela luta desse grupo ao longo do tempo

(Kofes, 2001 ; Castro et al, 2018) : desde a garantia de alguns direitos trabalhistas naConstituição Federal em 1988 ; a Emenda Constitucional nº 72, em 2013 (que igualava osdireitos trabalhistas entre as domésticas e os outros trabalhadores formais“celetistas”) ; até a recente Lei Complementar nº 150/2015, que regulamenta a EmendaConstitucional 72/2013. Castro et al (2018) entendem que foi o protagonismo dosindicato nacional das domésticas brasileiras que pressionou e conquistou a extensãodos direitos de empregados celetistas à categoria dos domésticos, com regulamentaçãoda jornada diária de trabalho, cálculo de horas extras, adicional noturno, etc. A uniãopolítica das domésticas também participou intensamente do debate na OrganizaçãoInternacional do Trabalho sobre trabalho doméstico decente, que se materializou naConvenção nº 189 (Convenção dos Trabalhadores Domésticos) em 2011.7

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35 Dessa forma, vemos que a regulamentação do trabalho doméstico, mudanças na

estratificação social do Brasil, além de alterações na estrutura demográfica do país(Camarano e Kanso, 2009) e nos processos de migração interna (Cunha e Baeninger,2007) levaram a transformações do trabalho doméstico, como se queixam as patroas :“no Brasil, babá é só babá, cozinheira só cozinha e empregada só limpa, e não aceitamdormir no local de trabalho” (Mello, 2015).

36 Uma fração da classe média alta paulistana passou a recorrer a uma força de trabalho

estrangeira – fluente em inglês, escolarizada, considerada dócil e leal, disposta a dormirno local de trabalho, disposta a realizar todo tipo de tarefa. Cabe ressaltar queestereótipos raciais e de gênero são novamente invocados para se naturalizar aafinidade de certas mulheres para com o trabalho doméstico “[a babá filipina] estásempre bem humorada e eu preciso até pedir para ela parar de trabalhar ; o povofilipino gosta de servir”, falou uma empregadora brasileira em reportagem do jornalFolha de São Paulo (Mello, 2015).

37 A fim de apreender um pouco das representações e dos sentidos conferidos pelas

agentes às suas práticas, julgamos ser imprescindível o diálogo com as trabalhadoras.Afinal, tanto a posição dos agentes no espaço social objetivo, como suas subjetividades,encontram-se numa relação dialética, que é o próprio mundo social (Bourdieu, 1989).Em janeiro de 2019, realizamos entrevistas semi-estruturadas com 6 migrantes filipinasque se encontravam em São Paulo e trabalhavam ou haviam trabalhado comoempregadas domésticas no Brasil. Elas pertencem à Comunidade Filipina em São Paulo,que se reúne mensalmente para celebração de uma missa em inglês e paraconfraternização, onde realizamos observação não-participante por 10 meses. Duranteesse período, constatamos a presença majoritária de mulheres, com cerca de 50 pessoasem cada reunião.

38 As entrevistas foram realizadas em inglês e posteriormente traduzidas pelas autoras.

Todas as interlocutoras foram convidadas a participar da pesquisa por meio de umanúncio público nas reuniões e o caráter sociológico da pesquisa foi reforçadoindividualmente depois. O local e meio da entrevista de cada interlocutora foi escolhidopor elas próprias e incluíram : o espaço de reunião da comunidade, um restaurante, umcafé em um shopping mall, sua própria casa, além de contato eletrônico por e-mail. Oroteiro era composto de tópicos objetivos, como idade, região de origem nas Filipinas,estado civil, número de filhos, escolaridade, trajetória migratória, rotina de trabalho,bem como percepções sobre o trabalho e empregadores, sobre a emigração de mulherese homens das Filipinas, e finalmente seus projetos migratórios.

39 Nossas interlocutoras trouxeram diversos elementos que compõem seu mundo social.

Suas idades variavam entre 30 e 50 anos e elas haviam migrado sozinhas, de maneiradocumentada – ou acreditando assim estar, como é o caso de uma das Interlocutoras.Na fala de todas, a maternidade transnacional se destacou, seja pela experiência comomães migrantes ou pela experiência da Interlocutora 2 como filha de uma mulher quese tornou migrante ao se separar do marido. Posteriormente, a Interlocutora 2 seguiuos passos da mãe e veio para o Brasil. Os filhos apareceram como a principal motivaçãopara a migração dessas mulheres, aliado ao desejo de sua educação (formaçãouniversitária).

Interlocutora 5 : O sacrifício que eu faço de deixar meus filhos nas Filipinas e nãoestar ao lado deles, vendo-os crescer, é muito duro, mas é pra eles mesmos. Sei queum dia, quando eles se formarem na universidade, eles vão entender e vai ter valido

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a pena. Faço tudo isso pelo futuro deles, porque a universidade nas Filipinas é muitocara, e quero que eles tenham um diploma e um bom trabalho, diferente do que eutenho hoje. [grifos nossos]Interlocutora 6 : Como eu sou formada apenas no ensino médio, não fui prauniversidade, só posso trabalhar como doméstica. Mas não tenho planos de sair doBrasil por agora. De qualquer forma, tenho que trabalhar por pelo menos mais 9anos, que é quando meu filho mais novo terminará a faculdade [nas Filipinas].Interlocutora 2 : Se eu envio 500 reais por mês para eles [família], o que daria emtorno de 7.500 pesos [filipinos], eles podem usar para lazer, ir a restaurantes maiscaros umas 2 vezes ao mês, comprar carne, já é uma ajuda. (...) Nós saímos do paíspara ganhar mais, porque o salário mínimo lá é muito baixo. 80 % das famíliasfilipinas possuem 2 ou 3 membros trabalhando fora do país. (...) Atualmente, 50 %da economia do país depende do dinheiro que os migrantes enviam. Por isso noschamam de herois modernos [modern heroes]. Sem isso, seríamos o país mais pobredo mundo. [grifos nossos]

40 A linguagem do sacrifício permeou todas as falas, o que se coaduna com os achados de

Guevarra (2010) também, que demonsta como os atuais programas estatais de empregono exterior se utilizam das ideias de sacrifício e heroísmo dos filipinos ao migrarem,como veículo que serve aos interesses tanto das famílias, como do país. O apelo massivodo Estado filipino para promover a migração de domésticas como forma de sustento esobrevivência das famílias afetou mulheres de todas as regiões do país, sendo que 4delas possuíam escolaridade com grau universitário (Interlocutoras 1, 2, 3 e 4), 1 comgrau universitário incompleto (Interlocutora 5) e 1 era formada no ensino médio(Interlocutora 6). Todas pareciam tratar a mobilidade internacional com bastantenaturalidade, uma resposta quase “inata” a seus anseios.

Interlocutora 2 : 75 % dos meus amigos estão fora das Filipinas. Eles são enfermeirose engenheiros, mas estão limpando casas ou trabalhando em fábricas. (...) A gentenão vai pra faculdade só porque gosta de alguma área. Vamos pra faculdade pra terum diploma e poder sair do país num determinado nível. (...) A gente observa aolongo da vida : na escola, os amigos que tinham coisas novas era por que os paistrabalhavam fora [do país]. Então, crescemos com a ideia de que se você sai do país,você passa a ter dinheiro. E todo mundo quer isso. (...) Todo mundo pensa em sairpara dar uma segurança maior para a família. De que adianta ficar no país, ao ladoda sua família, e ver seus filhos sem ter o que comer ou vestir ? Eu sempre pensei

que, quando crescesse, sairia do país. [grifos nossos]Interlocutora 4 : Todo mundo tem esse desejo inato de mudar do próprio país paraoutro se não consegue encontrar uma boa vida no seu país. (...) Migração é uma dasformas de ter ganhos altos e é a forma como nós melhoramos nossa vida e dafamília, através do dinheiro que enviamos de volta pra casa. (...) O nosso país não ésuficiente para oferecer tantos trabalhos, e até formados em universidades eprofissionais são preparados para trabalhar fora do país por uma renda alta queeles não teriam em sua própria profissão. [grifos nossos]Pesquisadora : Você tem algum familiar ou amigo próximo que também emigrou dasFilipinas ?Interlocutora 5 : Sim, a maioria de nós. Se você conferir as estatísticas, vai ver queem quase todos os países do mundo há um trabalhador filipino lá. Nosso país é bempequeno, a escola é boa, mas a economia não vai bem. Há trabalho lá, mas o salárioé baixo, simplesmente não é suficiente. Então a maioria das pessoas migra outrabalha fora para sustentar a família nas Filipinas. Depois de se formar na

universidade, todo mundo sai do país para trabalhar. [grifos nossos]

41 Elas se deslocaram de suas casas, suas comunidades, para exercer da maneira mais

disciplinada e excepcional possível um trabalho que nunca haviam feito nas Filipinas(ao menos de maneira remunerada). Todas se orgulhavam de serem trabalhadoras com

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múltiplas qualificações, de “trabalharem mais do que as brasileiras”, de serem “umpacote completo”, muito embora também tivessem certa tristeza e vergonha de estarnessa ocupação. De toda forma, sua identidade como filipina, migrante e até cidadãparece estar ligada intrinsecamente ao trabalho.

Interlocutora 2 : Para todos, ser uma empregada filipina significa ser a pessoa quemais trabalha duro [hard working] em todo o mundo, porque nós nunca paramos detrabalhar enquanto o trabalho não está terminado. Se há roupas para passar, nósficaremos acordadas até meia noite, mesmo que tenhamos que acordar às 5h no diaseguinte. Temos isso na nossa cultura : por que deixar para amanhã o que pode serfeito agora ? Vejo que as diaristas no Brasil saem do trabalho quando acabam suashoras de trabalho, mesmo que o trabalho não esteja terminado. Eu não poderiafazer isso : me incomodaria muito ir dormir se eu deixei algo inacabado. [grifosnossos]Interlocutora 3 : Nas Filipinas, nós aprendemos a trabalhar duro. Mas nãoaprendemos a ser chefes e ter pessoas trabalhando para nós. Eu olho para minhaatual empregadora [no Brasil] : ela nem terminou a universidade, mas tem umnegócio e tem alguém limpando a casa para ela. Eu fiz curso universitário e estoulimpando o chão para outra pessoa. Tenho me perguntado sobre isso, sobre acultura filipina que nos ensina a trabalhar duro, mas sempre para os outros. Qual aestratégia dessas pessoas no Brasil, ou em outros lugares que trabalhei, pra que elassejam chefes de outras pessoas ? [grifos nossos]Interlocutora 1 : Eu sabia que poderia fazer mais [ao ser empregada comodoméstica, mesmo tendo formação em outra área], mas provei a eles[empregadores] que os filipinos são eficientes em qualquer tipo de trabalho. Issoera importante para mim. Tenho orgulho de ser filipina. [...] O trabalho domésticonão está muito no nosso nível, desculpe por dizer isso, não degradando outraspessoas, mas é a verdade. Mas por que não somos bem recompensadas no nosso país[em termos financeiros], acabamos trabalhando no exterior como domésticas.[grifos nossos]Interlocutora 5 : Naquela época [quando chegou ao Brasil], nosso empregador tinha6 empregadas domésticas, todas brasileiras. Porque aqui no Brasil, cada empregadasó faz um tipo de tarefa : se você é cozinheira, você só cozinha ; se você é faxineira,só faz a faxina ; se você é a babá, você é só a babá. Então eles nos contrataram parafazer múltiplas tarefas [ multitasking]. Então as 6 empregadas [brasileiras] seconverteram em apenas 3 [trabalhadoras filipinas] que dormiam no local de

trabalho. Eu, a [Interlocutora 6] e nossa amiga. [grifos nossos]

42 Apesar dos recentes avanços legislativos conquistados pelas trabalhadoras domésticas

no Brasil, todas as interlocutoras passaram por situações de desrespeito a seus direitostrabalhistas : desde jornada extenuante, falta de compensação por horas extras,acúmulo de funções, ausência de registro de vínculo formal de trabalho e atéconfiguração de trabalho escravo (conforme denunciado por Locatelli (2017 ; 2018) eapurado judicialmente em : TRT 2ª região, 2019). No entanto, mostravam-se dispostas acontinuar trabalhando no Brasil em razão dos compromissos assumidos perante àagência, bancos ou até sua família.

Interlocutora 5 : A gente começava nosso trabalho às 7h da manhã : preparava ocafé da manhã da família, arrumava as crianças para a escola. Eu trabalhava atéumas 13h e fazia um intervalo de descanso de 2h. Por volta das 15h, retomava otrabalho e ia até às 19h. A gente gostava desse esquema, era melhor do que emSingapura. Lá, seus patrões podiam te acordar a qualquer hora pra fazer algo paraeles. Mas isso foi só no começo [do trabalho no Brasil]. Ao longo dos meses, as horasde trabalho foram ficando mais longas : não respeitavam mais nosso horário dedescanso, a gente passou a trabalhar por 10 horas diárias, depois 12 horas,chegando a 14 horas [ao final de 2 anos de trabalho na mesma residência].

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Interloutora 6 [trabalhava junto à Interlocutora 5, nas mesmas condições] : Quandoela [empregadora] disse que, ao final do dia, eu deveria pegar minhas coisas e irembora, eu apenas disse : obrigada, senhora [ma’am]. Foi um grande alívio, euestava muito cansada. Se fosse por mim, eu não pediria demissão, porque precisodo trabalho pra enviar dinheiro para os meus filhos e também não teria acesso aoFGTS.8 Mas só agradeci que saí de lá. No mesmo dia, peguei minhas coisas e fuiembora. [grifos nossos]Interlocutora 3 : Durante os 2 primeiros meses de trabalho em São Paulo, eutrabalhava 16 horas por dia. Não recebia por horas extras e sofria insultos e abusospsicológicos. Minha patroa [brasileira e advogada] chegou a me trancar noapartamento e racionava a minha comida : eu tinha algumas bananas, um pão deforma e 6 ovos por semana. Emagreci muito e tive que ir para o hospital 2 vezesnesse período. Como eu tinha que cozinhar pedaços de carne pro cachorro dafamília, roubava um pouco dessa comida pra mim.(...) Eu reclamei para a agência[de trabalho], mas eles me diziam que minha única opção era voltar pras Filipinas.Eu não podia voltar, eu tinha pego dinheiro emprestado no banco pra pagar minhasdespesas de viagem e o serviço da agência [que a alocou no Brasil].

43 A opção migratória para o Brasil congregou razões relacionadas às condições de

trabalho (ouviram que a legislação do país era favorável aos trabalhadores), àproximidade com os EUA e contatos em São Paulo, entre os anos de 2015 e 2018. Issotambém se deve ao trabalho de agentes brasileiros, filipinos e singapurenses depromover São Paulo como um destino e como polo de demanda dessa força de trabalhoque já era bastante conhecida e famosa em outras partes do mundo. Nesse contexto, oBrasil aparece como uma opção migratória possível, não necessariamente desejável. Háuma oferta de documentação facilitada, o que parece ser um atrativo para essamigração Sul-Sul. As famílias empregadoras da maioria das interlocutoras possuíamalgum membro de origem estrangeira, que já tinha tido contato “com a fama e bomtrabalho das filipinas” (segundo nos contaram as interlocutoras).

44 As agências possuem um papel preponderante em todo esse processo : são elas que

verbalizam e propagam a ideia de que as filipinas são um tipo específico de mulher,naturalmente dócil, mais do que aptas para os cuidados com pessoas e com a casa : sãotrabalhadoras-modelo, “um pacote completo”, e o empregador ainda recebe o “bônus”de ter seu status elevado ao empregar uma mulher inteligente, especializada,escolarizada, disposta e preparada para migrar, que trabalha como faxineira,cuidadora, tutora de inglês, “reclama pouco”, pois necessita do dinheiro para enviarpara seus familiares, mas se encontra proibida de trazer sua própria família, e portantoestará à total disposição dos empregadores (tanto física, quanto emocionalmente).

Interlocutora 5 : Não recorri à agência [quando resolveu procurar outro trabalho noBrasil], porque a agência tenta te vender e você ainda tem que pagar por isso[pelos serviços prestados de alocação em outra família]. Eles fazem propaganda

das filipinas, comparando-as com as brasileiras. Eles dizem : “você sabia que secontratar uma filipina, ela vai fazer todo tipo de trabalho ? Se você contratar umabrasileira, ela só vai cozinhar, ou só limpar. Mas uma filipina é um pacote completo

”. Então é claro que os empregadores gostam disso : quem quer contratar 3 ou 4pessoas, se pode contratar só uma que seja suficiente ? Lembra do meu empregadorque tinha 6 empregadas brasileiras e no final contratou 3 filipinas pra fazer omesmo trabalho ? Eles [os empregadores] economizam e ganham dinheiro com agente. [grifos nossos]Interlocutora 2 : Eu tenho que conversar em inglês com as crianças e ensinar alíngua para elas. É como um bônus para eles [empregadores]. Já que escolas deinglês são caras, e eles sabem que nós falamos inglês, acaba virando um trabalhoparalelo. [grifos nossos]

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Interlocutora 6 : Eu queria aprender português e falar com as crianças, porque émais fácil aprender com uma criança. Mas eles [empregadores] não deixavam, paraas crianças aprenderem inglês. É muito mais fácil do que pagar alguém pra ensinaringlês pras crianças : o professor vai ser pago por hora, mas depois da aula a criançavai esquecer, porque todas as pessoas de sua casa falam em português. Mas se acriança vive com uma pessoa que fala inglês, 24 horas, todos os dias da semana,você não precisa de um professor de inglês.

45 As verbalizações das interlocutoras também foram muito ricas ao apontar relações de

poder, dominação e até habitus de certa classe. Os empregadores das migrantes noBrasil expressaram preferência por domésticas filipinas, escolarizadas, que dominavaminglês, estavam dispostas a dormir no local de trabalho e a realizar todo tipo deatividade dentro da casa, ou seja, que possuíssem certo capital cultural e que lhesoferecesse mais horas de trabalho. Esse capital cultural foi justamente o quepossibilitou que elas emigrassem das Filipinas a fim de ganhar mais em outraslocalidades, dadas as suas qualificações (“sair num determinado nível”, nas palavras daInterlocutora 2). As interlocutoras foram propelidas a sair de seu país natal pela falta decondições de lá exercer suas profissões e sustentar as famílias, mas possuíamconsciência de sua “vantagem comparativa” em relação às brasileiras e tambémprocuravam negociar sua condição no mercado de trabalho. Seus salários sãorelativamente maiores que os salários das domésticas brasileiras, algumas recebendoem dólar, ou conseguindo passar suas férias nas Filipinas.

46 Por outro lado, seu habitus de migrar é negado a partir do discurso delas próprias de

que essa mobilidade se caracteriza por ser apenas um tipo específico de trabalho (queno caso, é realizado fora do país), que o Estado apenas gerencia o “desejo inato dosfilipinos de buscarem novas aventuras” (Guevarra, 2010). Elas não se encontrariam emmigração, pois não desejam constituir residência e identidade nos locais que são apenasde trabalho (e portanto, passageiros). Seu lar é nas Filipinas, para onde retornarãoassim que terminarem de cumprir com seus objetivos.

Interlocutora 3 : Agora, eu não posso voltar para as Filipinas [mesmo após ter sidovítima de trabalho escravo no Brasil]. Quero voltar quando terminar de pagar pelosestudos dos meus filhos e me aposentar por lá.Interlocutora 4 : Não não chamamos isso de migração [trabalhar fora das Filipinas],é só que o nosso país não é suficiente para oferecer tantos trabalhos. [...] No fim, nósainda queremos ir para o nosso lar, porque não há lugar que se compare ao lar.

47 Sobretudo, as interlocutoras falaram sobre autonomia e sobre como fazem suas

escolhas. Estão inseridas numa estrutural global que as impõe o trabalho domésticocomo uma das únicas alternativas possíveis para uma mulher do Sul do mundo,proveniente de um país exportador de força de trabalho. Em suas palavras, “elas sesacrificam pela família, inclusive pelo país, são heroínas”. Assim, em parte reproduzemnormas tradicionais de gênero ao realizar trabalho de cuidados porque são mulheres,entendem que são mais exploradas do que as próprias brasileiras em alguns aspectos,mas em parte transformam essa realidade ao se tornarem aquelas que sustentam suaprópria família, cuidam de seus filhos, resistem a condições precárias de trabalho,lutam por melhores condições, migram sozinhas, buscam uma vida melhor para si epara os seus.

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Considerações finais

48 O trabalho de cuidados é um trabalho de reprodução de vida e das próprias estruturas

sociais. Emprega-se uma doméstica para realizar aquilo que não se pode ou não sedeseja, e a força de trabalho de um doméstica filipina aparece como um objeto aindamaior de consumo e desejo pelos empregadores. O sentido ontológico do trabalho e suadimensão subjetiva, enquanto elemento de sociabilidade, identidade, criação eabstração, e não apenas exploração e sujeição se mostra particularmente marcantenesse contexto : mulheres encontram no trabalho doméstico e na migração uma formade exercício de autonomia, de criação de redes de sociabilidade, de luta pela mudançade seu destino e de seus familiares, de criação e satisfação.

49 E isso tudo inseridas em um trabalho que é tanto físico como emocional, que reproduz a

própria vida e também as desigualdades existentes. Na privacidade de um lugarcaracterizado pelas emoções e pela intimidade, mulheres de um outro país do Sul domundo se dedicam a zelar pelo bem estar de quem pode pagar por seus serviços. Sãotrabalhadoras, mas estão também inseridas numa relação de status e numa divisãointernacional do trabalho reprodutivo.

50 As marcas de desigualdades (inclusive globais e entre nações) não são apagadas por sua

escolaridade, fluência em inglês, capital cultural. Pelo contrário, esses atributosreforçam ainda mais os interesses de distinção e poder de seus empregadores. Asempregadoras podem transferir o encargo do trabalho doméstico para uma outramulher, que por sua vez também transfere esse trabalho a alguém nas Filipinas. Assim,sobre as mulheres tem recaído a responsabilidade pela reprodução da família, dasrelações sociais, do próprio sistema de produção.

51 As filipinas no Brasil têm se mostrado como um grupo heterogêneo, de interesses e

percepções diversas. Há quem deseje continuar trabalhando como doméstica, há quemlute para ter reconhecidas outras habilidades e qualificações. Nossas entrevistasmostraram que algumas se ressentem pelo trabalho doméstico que realizam/realizaram, não desejam isso para seus filhos, e só encontram algum tipo decompensação pela remuneração percebida e pelo que podem prover com esta.

52 No Brasil, e especialmente em São Paulo, as condições de trabalho têm se mostrado

bastante árduas e penosas para o grupo como um todo. Os casos de trabalho análogo àescravidão ocorreram justamente numa ocupação marcada por relações de poder entresexos, raças e classes, com um histórico ligado à escravização de mulheres negras porquatro séculos no Brasil.

53 Parece-nos que os casos relacionados às filipinas lançam luz sobre as relações de

senhorio não superadas por certa classe empregadora de domésticas, que continuareproduzindo relações não pautadas por direitos e contratos de trabalho. Maspermanece numa lógica escravocrata e paternalista, em que o simples emprego dessaforça de trabalho e a oferta de alguns benefícios são vistos como atos de bondade,suficientes para a trabalhadora.

54 Como agentes de transformação social, as migrantes também modificam relações e até

estruturas sociais ao longo de sua trajetória. As denúncias de trabalho análogo àescravidão, a formação de uma comunidade para compartilhar informações e suporte,as negociações com os empregadores, a busca por novas oportunidades de trabalho, o

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emprenho para a melhora das condições de trabalho das domésticas no Brasil, sãofrutos da autonomia e agência dessas mulheres no Brasil.

55 A “disponibilidade” e “aptidão” das migrantes filipinas para com o trabalho doméstico

é o que permite que seus empregadores brasileiros estejam disponíveis para gerar valore mais valia, ao passo em que sua corporalidade permanece marcada por construçõessociais (Glenn, 1992) que garantem a manutenção do modo hegemônico de divisãointernacional do trabalho reprodutivo na era global (Parreñas, 2015), que permitem queo trabalho produtivo de alguns seja, inclusive, mais diretamente explorado pelo capital(Parreñas, 2015 ; Hochschild, 2002).

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NOTAS

1. A classificação land based se opõe aos trabalhos realizados por marítimos, ou seja, sea based.

2. Na Região Metropolitana de São Paulo, o salário médio de uma trabalhadora doméstica

mensalista (formalizada – “carteira assinada”) era de R$ 8,37/hora (aproximadamente US$ 2,20),

no ano de 2018 (DIEESE, 2019), enquanto que os rendimentos de uma doméstica filipina eram

cerca de R$ 11,50/hora (aproximadamente US$ 3,02) no mesmo período

3. Esses dados não levam em consideração a quantidade de mulheres que entrou com visto de

turismo no país.

4. Segundo apurado no referido processo judicial, as agências prometiam às trabalhadoras que

após 2 (dois) anos de trabalho no Brasil, seria possível obter visto de residência. Essa é uma

possibilidade inexistente no ordenamento jurídico do país.

5. Esse foi um acontecimento muito marcante na história recente das trabalhadoras, tanto as que

se viram diretamente envolvidas nas denúncias como também suas conterrâneas. O grupo como

um todo é bastante refratário a exposições públicas, uma das razões pelas quais as entrevistas

individuais se deram com um número pequeno de interlocutoras.

6. Conforme exposto anteriormente, os rendimentos das trabalhadoras domésticas continuam

sendo baixos. O aumento se deu muito em função da política de valorização real do salário

mínimo que foi aplicada no país durante os governos petistas (2003 – 2016) (Castro et al, 2018).

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7. Apesar da participação ativa da delegação brasileira na construção do documento, a Convenção

foi ratificada pelo Brasil em 2018 apenas.

8. Fundo de Garantia do Tempo de Serviço é uma espécie de compensação financeira oferecida

aos trabalhadores formalizados (celetistas) que foram dispensados sem justa causa. Portanto, não

tem direito quem pede demissão de seu trabalho.

RESUMOS

Neste trabalho, abordamos a inserção de mulheres filipinas no mercado de trabalho dos cuidados

na cidade de São Paulo, a partir do conceito de “divisão internacional do trabalho reprodutivo” –

uma transferência, em três níveis, de trabalho reprodutivo entre mulheres em países de origem e

destino da migração - (Parreñas, 2015). Especificamente, buscamos um aprofundamento do tema

do trabalho doméstico remunerado realizado por filipinas em São Paulo, fazendo um esforço de

inseri-lo no contexto brasileiro e de globalização da força de trabalho feminina para a provisão

dos cuidados, a fim de desvelar um pouco das relações sociais constitutivas que condicionam essa

migração específica de mulheres nas Filipinas e estruturam o lugar ocupado pela migrante

filipina no Brasil. Este trabalho foi realizado por meio de revisão bibliográfica e documental,

observação não participante, e entrevistas semi-estruturadas. Primeiramente, foram exploradas

autoras e autores que analisam o contexto de origem da migração – as Filipinas –, as

conformações do trabalho reprodutivo e o mercado global de cuidados. Além disso, utilizamos

dados quantitativos disponibilizados pelos órgãos administrativos filipinos de estatísticas

(Philippine Statistics Authority – PSA) e de contratos de trabalho no exterior (Philippine Overseas

Employment Administration – POEA). Idas a campo foram feitas em locais de reunião de uma

comunidade de migrantes filipinas, onde obtivemos contatos para as entrevistas, pois

almejávamos compreender a forma como são agenciados esses processos sociais e os significados

atribuídos pelas sujeitas da migração. Por fim, realizamos entrevistas com migrantes filipinas em

São Paulo que já tiveram experiência com trabalho doméstico no Brasil. Nossa hipótese de

trabalho foi a de que o capital cultural apresentado pelas migrantes filipinas possibilitou tanto a

sua mobilidade, como sua inserção laboral nas residências de uma fração da classe média alta

paulistana.

ÍNDICE

Keywords: migração de mulheres, mercado global de cuidados, divisão internacional do trabalho

reprodutivo, Filipinas, São Paulo

AUTORES

ESTER MARTINS RIBEIRO

Universidade de São Paulo, Brasil, ester.gmartins [at] gmail.com

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ROSANA BAENINGER

Universidade Estadual de Campinas, Brasil, baeninger [at] nepo.unicamp.br

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Varia

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Urban SUNstainabilityA multi-dimensional policy evaluation framework proposal

Eduardo Medeiros

The author is grateful for constructive comments and suggestions offered by two anonymous

referees.

1. Introduction

1 In an age of climate change and increasing vulnerability to extreme climate

catastrophes, the choice for using renewable sources of energy, instead of fossil fuelenergy sources, has become widely accepted as a concrete solution to promotingsustainable development (UN, 2016; Medeiros, 2018a). Indeed, how effectively a cityplans and prepares for future potential environmental shocks is decisive indetermining its prospects for environmental sustainability, as a key dimension both forterritorial development (Medeiros, 2016a; 2017a; 2019a; Potter et al., 2008) and forachieving territorial cohesion (Faludi, 2010; Medeiros, 2016b; 2019b; Medeiros andRauhut, 2018). Crucially, cities need to make choices about the use of greeninfrastructure in order to improve quality of life of their citizens, maximize economicopportunities, and minimize the impact of the population on the natural environment(Sachs, 2015).

2 Currently, the majority of carbon emissions and the bulk of energy consumption occur

in urban areas (Vesco and Ferrero, 2015). Under this scenario, and amidst powerfulsocial, technological and political forces that are compelling a shift towards a greener(Caprotti and Bailey, 2014) and circular economy (Bolger and Doyon, 2019), the use ofsolar energy is increasingly seen as a viable and clean energy source to power cities,through solar thermal systems (solar water heating, solar refrigeration) andphotovoltaic (PV) systems (Govada et al., 2017).

3 According to the International Energy Agency, across all cities globally, “the technical

potential for urban PV at 5,400 GW, is sufficient to provide approximately 30% of theurban electricity demand in 2050” (Steffen et al., 2019: 911). Indeed, in the past decade,the number of PV plants has been increasing rapidly, driven by a rapid decrease of

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production costs and by a strong support for green development policies (Trancik,2014).

4 It is true that, like wind energy, solar energy is known to be a volatile and uncertain

energy source (Spataru et al., 2015). However, as Kopp (1994) claims, and as the GiantTesla Battery project in Australia has shown, solar energy can be stored in order to beused at night time or on cloudy days. Indeed, nowadays, it is possible that “anoversupply of renewable energy occurs during low demand-side load periods” (Praß, etal., 2017: 610) which can be stored and used when needed.

5 Under this scenario, the European Union (EU) energy policy aims to balance both the

promotion of energy efficiency and the use of renewable energy (EC, 2019). In the end,this EU policy agenda intends to make a very significant contribution to improvingsecurity of energy supply, reducing emissions, and boosting competitiveness oftechnology innovation in renewable energy sectors (Park and Eissel, 2010). Inparticular, the European Commission (EC) has stimulated the energy performance ofbuildings via the EU Directive 2002/91 (2002), which had been supplemented by theincorporation into national law of Directive 2010/31/EU (2010). This Directive revisesand improves the previous one on building energy performance, in order to ensure that“by 2020 all new buildings are so-called nearly zero-energy buildings” (Papamanolis,2016: 815).

6 From a theoretical standpoint, this article is focused on the concept of SUNstainability

which, in turn, offers a stronger contribution to a wide body of knowledge related with,for instance, the concepts of 'sustainability transitions', 'urban sustainability','sustainable urban systems', and 'urban sustainable energy development'. Crucially,according to Truffer & Coenen (2012), sustainability transitions can entail solar civicinitiatives, as well as niche-innovations in the solar photovoltaic production (see Geels,2019). From an urban sustainability perspective, there is an increasing awareness of theadvantages of installing renewable energy plants in municipal and urban buildings(Haarstad, 2017) and sustainable development approaches advocating ideas such as,passive solar design (Hatuka et al., 2018), since the citizens’ acceptance of renewableenergy forms and technologies is largely associated with both the risk-benefitperceptions and a general environmental concern (Vainio et al., 2019).

7 The use of solar energy is not new. By and large, solar energy technology options have

been used for decades, but their relatively high cost has limited their expansion in pastdecades. Even so, all around the world, solar energy is being utilised in buildings viarooftop PV cells and water-heating systems, in order to meet some energy demands ofelectricity, transport, and heating (Kar et al., 2017). So conceived, solar energy is themost suitable source to yield environmentally clean, stress-free and inexhaustiblerenewable energy provision (Mafimidiwo and Saha, 2017). With cities being responsiblefor up to 70% of energy-related carbon emissions, cities are becoming increasinglyaware of their responsibility to act towards a greener economy (Steffen et al., 2019).

8 Substantially, solar energy is an important component of sustainable or green

communities, and also one of the most promising climate-friendly energy sources(Zahran et al., 2008). Amongst other advantages, solar technologies: (i) can be efficientin large areas of the world; (ii) require no special skill set to generate or provisionpower; (iii) need no security measures (Stimmel, 2016); (iv) can perform withoutexcessive maintenance costs for prolonged periods (Pelton and Singh, 2019); (v) canhelp to reinforce national security, economic growth, climate stewardship, sustainable

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land use, and economic development (Zahran et al., 2008); (vi) contribute to an urbanenergy transition towards experimentation in sustainability governance (Quirós et al.,2018); and (vii) have the potential for the creation of new green jobs (Park and Eissel,2010). In addition to environmental and cost benefits, reducing demand for energy inbuildings has three direct positive effects: (i) eliminating or requiring smallermechanical service systems; (ii) making the buildings themselves more robust andresilient, in that they require less heating or cooling; and (iii) reducing the number ofnew power stations required to generate electricity (Bothwell, 2015).

9 In this regard, the use of solar energy can be viewed as an optimal sustainable

development (SUNstainability) solution to be implemented in cities located in areaswith significant levels of sun exposure all year round, as solar energy technologies canbe incorporated into buildings and pathways (roads, sidewalks), large rooftop areas ofcommercial parks, vacant land at industrial sites, as well as on top of degraded orcontaminated land (Steffen et al., 2019) etc., both by public and private entities, and bycitizens. In the end, it should be expected that SUNstainable cities can be economicallyproductive, socially inclusive, environmentally sustainable, and entail a soundgovernance system, in order to ensure that all citizens can benefit from them (Sachs,2015).

10 In sum, SUNstainable cities can be seen as a concrete way of embracing zero carbon

footprint green urban systems and zero carbon buildings (Govada et al, 2017); a vehicleto promote integrated sustainable urban development strategies (Medeiros and van derZwet, 2019); and ultimately, sound territorial planning (Faludi, 2018; Medeiros, 2017b)and development (Medeiros, 2018b; Warf and Stutz, 2012). In order to be successful,however, SUNstainable cities should create partnerships with the academic andbusiness arenas, and stimulate city dwellers in implementing solar energy solutions intheir activities. From a governance standpoint, cities supported by solar energysystems can allow for the mitigation of over policy centralization, as they can becomesemi-independent in providing electrical power to the grid on an as-needed basis(Pelton and Singh, 2019).

11 As seen, the idea of ‘Urban SUNstainability’, generically understood as a ‘process of

attaining sustainable development via the intense production and intense use of solarenergy within urban areas’, entails a multi-dimensional and multi-governancedevelopment perspective. So conceived, the main goal of this article is to propose aninnovative multi-dimensional conceptual policy evaluation framework, which can beapplied to assess urban areas’ SUNstainability capacity. Methodologically speaking, this‘Urban SUNstainability conceptual framework’ will be designed based on a wealth ofliterature, namely on sustainable and smart cities, and also on the use of solar energyin urban areas.

12 The article is organized as follows. The next section will address the potential

advantages and disadvantages of producing and using solar energy in urban areas, as avehicle to promoting sustainable territorial development. The third section will thenelaborate on how the notion of Urban SUNstainability is integrated into the main Worldand EU territorial and urban development strategies. The fourth section will debate theabove mentioned Urban SUNstainability conceptual framework.

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2. Solar energy and sustainable territorialdevelopment

13 More than 50% of the population around the world dwell in urban areas. Close to 80% of

humanity’s greenhouse gas emissions are produced in cities, whilst around 70% of theenergy is consumed in cities (Siemens, 2009). Consequently, cities play a major role inimplementing the United Nations (UN) 2030 Agenda for Sustainable Development (UN,2016). This Agenda recognizes that “sustainable urban development and managementare crucial to the quality of life of our people” and that, amongst other things, thisrequires “more efficient use of water and energy” in order “to minimize the impact ofcities on the global climate system”. Alongside, it proposes to ‘increase substantiallythe share of renewable energy in the global energy mix’, and the promotion of‘investment in energy infrastructure and clean energy technology’, so that ‘all humanbeings can enjoy prosperous and fulfilling lives and that economic, social andtechnological progress occurs in harmony with nature’. In this context, and especiallyin territories with abundant exposure to sunshine, such as the south of Europe (Quiróset al., 2018) (Figure 1), the use of solar energy can provide a critical and fundamentalresponse to address the UN 2030 Agenda for Sustainable Development.

Figure 1. Spatial distribution at grid cell level (1km resolution) of the suitability for the installationof large-scale PV systems in Europe

Castillon et al., 2016: 91.

14 A wealth of literature has debated the importance of urban sustainable development

processes and the promotion of ‘smart cities’ (Battarra et al., 2016; Maltese et al., 2016)towards more green and resilient cities. Conversely, only a limited amount of researchwork has been produced on Urban SUNstainability processes – if and how solar energy

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can provide 100%, or close, of a city’s energy needs in a sustainable manner all yearround. Even so, a few examples are found in the literature, on the role of solar energyin promoting SUNstainability processes in several urban areas: Helsinki - Finland(Dahal et al., 2017); Virginia – USA (Pitt et al., 2018); San Francisco – USA (Ko et al.,2017); Toronto – Canada (Chow et al., 2016); Osmaniye – Turkey (Kara and Ozalp, 2017);and Cáceres – Spain (Quirós et al., 2018).

15 These experiences are particularly important since the combustion of fossil fuels is

largely responsible for the problems of climate change, air pollution, and energyinsecurity. As such, renewable energy sources, such as solar energy, have near-zeroemissions of greenhouse gases and other air pollutants, no long-term waste disposalproblems, and no risks of catastrophic accidents, whilst it can meet 100 percent of theworld’s energy needs (Delucchi and Jacobson, 2013). This is especially true for urbanareas where solar energy systems can be easily implemented in buildings and otherplaces. Thus, the importance of assessing cities’ Urban SUNstainability, as a concretesolution, is imperative, not only for achieving environmental sustainability, but also asa means to supporting a sustained transaction to a greener economy and a moreinclusive society (Sachs, 2015).

16 Solar energy production can be exploited via a smart grid infrastructure, in which the

customer becomes part of a network with bidirectional energy flows. In essence, solar-energy intakes enable energy providers to develop and to use tools to reduce gridpower demand when solar power can supply the total demand (Tamburini et al., 2015).One positive outcome is that the smart grid strengthens the role of the consumer andtransforms passive consumers into active prosumers, thus promoting an activecitizenship model (Koutitas, 2018). More pointedly, energy displays that give feedbackon energy consumption in real time make it possible to save energy on the basis of theinformation supplied by the smart meter (Battarra, 2016). Curiously, in general, on-sitesolar energy generation would benefit from a lower density environment since sparselybuilt forms allow larger rooftop areas per capita and less obstruction for solar panels.In contrast, compact urban settings are likely to have more shade on the rooftops fromneighbouring structures and provide less rooftop area per capita (Ko et al., 2017). Inaddition, there are a few other barriers to Urban SUNstainability processes:

17 • In several cases, solar panels still cannot compete with fossil fuels when it comes to

generating electricity relatively cheaply (Park and Eissel, 2010). Even so, the cost ofphotovoltaic power is dropping rapidly. Hence, if those trends continue, and if thephotovoltaic industry continues to grow and improve technologically, by 2020 the costwill be comparable to the cost of conventional power, as will the cost of solar thermalpower (Jacobson et al., 2013). More recent (2019) analysis conclude that “wind and solarfarms have become cheap enough, in many instances, to outcompete even gas” (TE,2019: 31). Then again, for any energy option, the total cost to society is the private costof generating power plus additional environmental or system-wide costs. “For wind,water, and solar power, these additional costs include the costs of extra generationcapacity, transmission, or storage needed to ensure that demand can be satisfiedreliably” (Delucchi and Jacobson, 2013: 34);

18 • Sometimes, investment in solar energy creates costs that must be passed on to other

electric ratepayers, since “net-metered PV owners do not pay their share of the fixedcosts for the generation, transmission, and distribution infrastructure that make grid-based electricity available to them when they need it” (Pitt et al., 2018: 2032-3);

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19 • Often times, “an excess of distributed solar PV systems could cause technical problems

for the electrical distribution grid” (Pitt et al., 2018: 2033);

20 • The amount of solar energy that can be generated by a solar panel depends largely on

location, the weather, and the time duration involved in receiving solar radiation, sinceit is a function of the amount of available irradiance that falls on the solar panel(Mafimidiwo and Saha, 2017: 217). Indeed, a “reasonably accurate knowledge of theavailability of the solar resources at any place is required by solar engineers” (Kara andOzalp, 2017: 765);

21 • The shortage of empirical data remains a barrier when it comes to the

implementation of solar energy solutions in cities (Ko et al., 2017).

3. Urban SUNstainability and territorial developmentagendas

22 Sustainable development is a holistic approach that emphasizes economic, social,

environmental, and spatial planning/governance objectives in shaping policy. Existingliterature also highlights the fundamental role of environmental sustainability as apillar to achieving the policy goal of territorial cohesion (Medeiros, 2016b). Reflectingthe general mood of present times, the global rise in the production of energy viarenewable sources, devises a brighter way forward in building a more sustainable worldeconomy for a global society that is interconnected as never before. This calls forconcerted policy actions on a global scale and new forms of global governance to meetthe new UN Sustainable Development Goals (SDGs). Hence, it goes without saying thatthe fundamental idea of sharing best practices in implementing green economy polices,between two of the most economic dynamic regions of the world (EU and USA), makesmore sense than ever before.

23 Indeed, sustainable development is a central concept for our age (Sachs, 2015), as the

gigantic world economy is creating a gigantic environmental crisis, threatening billionsof people across the word. In this context, the production of renewable sources ofenergy can be seen both as a direct solution for mitigating global warming and otherenvironmental threats, and as the basis for novel economic activities, in the context ofa prosperous, socially inclusive, and environmentally sustainable world. Indeed, theworld economy has become very large, relative to the finite planetary resources, andhuman beings are exceeding the planetary boundaries in several critical areas. Underthis pessimistic scenario for the future of our planet, sustainable territorialdevelopment strategies offer a range of answers to define the objectives of a morecohesive and well-functioning society, one that delivers wellbeing for its citizens todayand for future generations.

3.1. Worldwide: United Nations (UN)

24 The support for a sustainable development agenda has been at the forefront of the UN

political agenda for decades. Indeed, in 1987, the Brundtland Report placed the goal ofuniting countries to pursue a sustainable development path on the global politicalagenda, due to an increasing realization of the persistent deterioration of the humanenvironment and natural resources. This was meant as a development process to meet

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the needs of the present, without compromising the ability of future generations tomeet their own needs. Throughout its 300 pages, the report recognised that “futuredevelopment crucially depends on its long-term availability in increasing quantitiesfrom sources that are dependable, safe, and environmentally sound” (UN, 1987: 141).Further on, the same report singles out the untapped potential of renewable sources ofenergy that could, in theory, provide enough energy to cover the global energyconsumption.

25 As regards solar energy, this report mentions its relatively small use globally.

Nevertheless, it highlights the potential advantages of using solar water and householdheating systems, and the use of photovoltaic equipment, which, by then, alreadyprovided cheaper electricity to remote places than conventional power lines. Inconclusion, the Brundtland Report sustains that “every effort should be made todevelop the potential for renewable energy, which should form the foundation of theglobal energy structure during the 21st Century”, and that “a much more concertedeffort must be mounted if this potential is to be realized” (UN, 1987: 163). All thesegoals played out well in the environmental sustainability mainstream politicaldiscourse. However, they bear witness to a lack of deeper and stronger policy actiontowards the use of solar energy in urban areas, mostly likely because of the costsinvolved, namely in the production of PV solar panels at the time.

26 Over the years, solar energy has become increasing competitive within the energy

production market (Koutitas, 2018). However, the recent UN 2030 Agenda forSustainable Development does not mention, even once, the term ‘solar energy’. Even so,it dedicates a main policy goal (7) to “ensure access to affordable, reliable, sustainableand modern energy for all”. Evidently, this requires an increasing share of renewablesources of energy in the global energy mix. No mention whatsoever, however, wasmade of the need for urban areas to became fully independent in electricity production,in particular via solar energy.

3.2. Europe: The European Union (EU) policy agendas

27 The reading of the first EU treaties (Rome, Maastricht, Amsterdam) shows a clear

absence of policy goals aiming to support the use of renewable energy sources. It isonly by 2010 that the Lisbon Treaty dedicates an Article (176A) which invokes the needto “promote energy efficiency and energy saving and the development of new andrenewable forms of energy”. In the same year (2010), the EC published the EUROPE 2020policy agenda, which clearly and unequivocally supported the shift towards a lowcarbon economy and the increased use of renewable energy sources (EC, 2010: 7).

28 Nevertheless, the Europe 2020 agenda does not advance a specific energy policy goal

dedicated to urban areas. Seen from this angle, three years earlier, the Leipzig Charteron Sustainable European Cities (LC, 2007), invokes the need for improving the energyefficiency in cites. However, not a single word is used to highlight the need forrenewable sources of energy in European cities. Conversely, both Territorial Agendas(Territorial Agenda, 2007; Territorial Agenda 2020, 2011) highlighted the need topromote renewable and local energy production. Likewise, the more recent UrbanAgenda for the EU (Pact of Amsterdam) invokes a strong shift towards renewableenergy and energy efficiency. Moreover, this Agenda adds a fundamental goal,expressed in the need to apply energy efficiency in buildings, and to foster “innovative

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approaches for energy supply (e.g. local systems) and increasing the local production ofrenewable energy” (Urban Agenda, 2016: 27). A major concern is that the concretemention of the term ‘solar energy’ is absent in all mentioned documents.

29 Despite that, the EU has an Energy Strategy (EC, 2015a), which was adopted on 25

February, 2015. In short, this strategy “is focused on boosting energy security, creatinga fully integrated internal energy market, improving energy efficiency, decarbonisingthe economy – not least by using more renewable energy – and supporting research,innovation and competitiveness. Since its launch in 2015, the EC has published severalpackages of measures and regular progress reports, which monitor the implementationof this key priority of the Juncker Commission to ensure that the strategy is achieved.On 9 April 2019, the Commission published the fourth State of the energy union report,which takes stock of the progress made towards building the energy union andhighlights the issues where further attention is needed. It brings together a series ofCommission reports and initiatives related to the energy union in an integrated way”1.

30 As regards concrete measures for urban areas, the EU Energy Strategy proposes a full

integration of electric vehicles in urban mobility policies. Furthermore, the EU Cleanenergy for all Europeans package2, consisting of eight legislative acts, was agreed by theCouncil and the European Parliament in 2018 and early 2019, and requires that EUcountries have 1-2 years to transpose the new directives into national law. Some of themost relevant for Urban SUNstainability are:

31 the ‘Energy performance in buildings’ package: based on the EU Directive 2018/844

(amending Directive 2010/31/EU on the energy performance of buildings and Directive2012/27/EU on energy efficiency), it mentions the need for integrating renewables tosmart grids and smart-ready buildings;

32 the ‘Renewable energy’ package: based on the recast Renewable Energy Directive

(2018/2001) on the promotion of the use of energy, entered into force in December2018, it mentions the relevance of solar thermal technologies and rooftop solarinstallations.

33 In a more generic perspective, and for several years now, the EU has been taking pro-

active measures with the goal to support a greener economy, by helping citizens andgovernments to green their activities, through better management of resources, andthe use of economic instruments that are good for the environment. More recently, theconcept of the ‘circular economy’ has gradually been adopted by the EU3. This was donevia the implementation of the Circular Economy Action Plan in 2015 (EC, 2015b). Buthere, the key emphasis on energy is on improving energy efficiency, rather than on theneed for using renewable sources of energy, and in particular solar energy.

3.3. European Urban SUNstainability experiences

34 Amid these ever-growing green development flavour trends, it is expected there will be

a rise in initiatives which gather and share urban experiences in implementing UrbanSUNstainability development strategies. One of these initiatives is the POLIS project,which joins six European cities (Lisbon-PT, Vitoria-ES, Lyon-FR, Paris-FR, Munich-GE,and Malmö-SE), in a quest to implement strategic town planning and local policymeasures to utilize the solar energy capability of structures. In sum, the aim of thePOLIS project is to “identify and evaluate current practices in solar urban planning, andunite the key responsible parties of this process to create a more cohesive planning and

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legislation practice for solar developments. The physical structure of a building and itsposition within the urban pattern is clearly integral to its solar energy capabilities.Availability and orientation of external surface area is a crucial factor in the design ofactive solar systems and also important for the reception of passive solar energy. Morethan any other renewable energy, integrated solar energy relies on the qualification ofthe built environment”.4

35 This POLIS project is particularly interesting since it makes available to all interested

stakeholders several instruments to promote solar energy in urban areas, such as: (i)municipal agreements or private law commitments; (ii) a best practice guide for solarurban planning in Europe; (iii) the presentation of solar action plans; and (iv) thepresentation of several software programmes for analysing and simulating sunirradiation in a given urban area. In the end, the promotion and mobilisation of solarurban potential is engaged through the cooperation of cities that are currently engagedin solar urban planning.

36 Lisbon, as one of the cities integrated in the POLIS project, has created an Energy and

Environment Agency (Lisboa E-Nova), which “seeks to contribute to sustainabledevelopment of Lisbon by mainstreaming good practices among political decisionmakers, major urban stakeholders and citizens. Lisboa E-Nova’s objectives are metthrough projects and communication actions that promote the adoption of innovativeconcepts and actively contribute to the definition of new policies and developmentframeworks. By incorporating measures to adapt to climate change and actions tomitigate it, as well as supporting innovation and the development of projects thatenable greenhouse gas (GHG) emissions to be reduced, Lisboa E-Nova is workingtowards achieving a low carbon city and one that is less vulnerable to the effects of thefuture climate. A city that is an example to follow on the path to decarbonization, whilefocusing on the welfare of the citizen[s] and future generations. Lisboa E-Nova is a keyplayer in the city in the pursuit of national and international energy and climate goalsfor 2030 and 2050, and is active in three broad areas5”.

37 Most importantly, however, from this E-Nova initiative, was the creation of the SOLIS

instrument, which includes the development of a two-component platform: (i) theupdate and improvement of a solar potential chart for Lisbon (Figure 2); (ii) and thedevelopment of a virtual space, capable of gathering and sharing technologicalsolutions associated with the production of solar energy. In synthesis, the solarpotential chart for Lisbon was developed in 2012, and serves as a support tool to assessthe solar potential of edifices and other surfaces in Lisbon. With this chart, the city ofLisbon expects to establish appropriate goals and policies when it comes to theadoption of solar energy. Additionally, this tool will allow the owners of the buildingsand other spaces to compare their electric consumption profile with the photovoltaicpotential of their location, in order to obtain the optimal solar photovoltaic system.

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Figure 2. Solar potential chart for Lisbon for the downtown area around ‘Terreiro do Paço’

http://80.251.174.200/lisboae-nova/potencialsolar/

38 Just like Lisbon, in Germany, the district of Munich developed a GIS analytic tool (tool

on the Solar Initiative Munich), which provides detailed and updated information onthe solar potential for each edifice. This tool not only informs the user if the roof issuitable for the use of solar energy (Figure 3) but also provides advice on planning andconstruction of solar system s, as well as valuable links to further information.

Figure 3. Solar potential chart for Neubiberg Municipality – Munich – Germany for the downtownarea

https://www.solare-stadt.de/kreis-muenchen/solarpotenzialkataster2d ?lat =48.074703&lon =11.671462&zoom =14

4. Urban SUNstainability: a multi-dimensional concept

39 As previously stated, the concept of ‘Urban SUNstainability’ can be generically

understood as a process of attaining sustainable development via the intenseproduction and intense use of solar energy within urban areas. In an ideal scenario, afully SUNstainable urban area would not need to rely on any other energy source thansolar energy. For certain areas of the globe with wide solar exposure and intensity, thatis not a far cry scenario. Emanating from our previous discussion, it is also clear thatthe notion of SUNstainability is multi-dimensional, as it does not solely regard the

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assessment of the solar energy generation capacity of the analysed urban area, but alsoother development dimensions related to planning and governance, environment,social and economic aspects. Hence, and reflecting an integrated and interdisciplinaryapproach, from a methodological standpoint, the proposed Urban SUNstainabilityconceptual framework is supported by five analytic dimensions (Figure 4):

Figure 4. the Key Dimensions of the SUNstainability concept

Own elaboration

40 1. Solar energy generation capacity: this dimension is crucial to assess the degree of

SUNstainability since this process largely depends on availability and intensity of solarradiation. Hence, one way of assessing this solar energy generation capacity is bycalculating the solar radiation values in a specific urban area, for example, via the useof a Geographical Information System (GIS) software. The end result of this analysiswould identify if the urban area can be fully powered by solar energy.

41 2. Urban planning and governance processes: the sound implementation of ‘Urban

SUNstainability’ processes require appropriate urban planning and governanceinstruments, which can regulate and stimulate the use of solar energy by all interestedstakeholders. In this light, the assessment of Urban SUNstainability should take intoaccount in what measure the incorporation of regulations into urban plans arestimulating the use of solar energy use and production in the city. Likewise, it isfundamental to analyse if and how dedicated institutional capacity to coordinatestakeholders in implementing Urban SUNstainability governance processes is takingplace.

42 3. Environmental benefits: in the end, Urban SUNstainability should be a key driver

for achieving environmental sustainability processes within urban areas. As such, theanalysis of this process requires the assessment of its direct and indirect impacts inimproving environmental conditions (reduction of air and water pollution, and CO2emissions, etc.).

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43 4. Economic benefits: Urban SUNstainability processes should entail positive impacts

in stimulating a greener economy, both via the creation of indirect and direct greenjobs and business activities, and also by stimulating the reduction of the use of carbon-related energy sources in transport and economic activities across the urban area.

44 5. Social benefits: the analysis of Urban SUNstainability processes requires the analysis

of the direct and indirect social benefits from the production and dissemination ofsolar energy related practices. In the end, these practices should contribute toimproving the quality of life of urban dwellers, for instance in their health and incomestatus.

45 As seen, the proposed methodological approach is innovative in a sense that is goes

beyond the purely technical perspective on the use of solar equipment in cities (see Pittet al., 2018; Chow et al., 2016; Ko et al., 2017) and the regulatory settings to promotetheir use (see Steffen et al., 2019) (Table 1). Instead, the Urban SUNstainabilityconceptual framework is intended not only to unveil the detailed solar energy capacityof each case-study, but also to shed light on existent or non-existent municipalplanning/governance processes (regulatory and financial instruments) which aim tosupport Urban SUNstainability processes. Moreover, the proposed framework iscompleted by collecting information on the potential economic, social andenvironmental benefits of such strategies in urban areas.

Table 1. Dimensions, components and variables to assess solar energy potential in the availableliterature

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Own elaboration based on Pitt et al (2018); Chow et al (2016); Ko et al (2017); Steffen et al (2019)

46 Although all the five proposed dimensions for assessing Urban SUNstainability are

important, for efficacy’s sake, cities should be aware that the use of photovoltaicenergy systems in a dwelling with a poor solar light radiation or a plant of the wrongsize, could not allow for the return of their investment (Tamburini et al., 2015). In thiscontext, it is crucial to firstly determine the solar energy potential of each city, beforeimplementing an Urban SUNstainability plan. From an environmental andtechnological point of view, solar energy should allow for an optimal supply of theelectricity network while emitting little or no pollution (Hatti, 2019). Besides solarexposure, other factors can contribute to enhance the capacity of cities to use solarenergy: (i) high density in the urbanized areas that enhances new energetic strategies;(ii) new and advanced building technologies that can save energy demand andconsumption; and (iii) urban morphology and compactness […] (Maltese et al., 2016).

47 From an urban governance perspective, the implementation of an effective Urban

SUNstainability plan presumes an iterative process linked to the policy cycle, wherevertical (across stakeholders) rather than horizontal (within a specific category ofstakeholders, e.g. government, private sector) coordination prevails (Vidican, 2015).Based on existing evidence, it is also possible to conclude that the implementation ofsubsidies and attractive financial schemes and attitude changing activities are essentialfor cities to promote small-scale solar energy. To attract city dwellers and energyutility companies to install solar panels and thermal collectors, city councils, centralgovernments, and energy authorities should establish several measures which includeattractive economic and policy plans (Dahal et al., 2017). In large measure, planning forfuture energy-efficient and energy-producing buildings requires specific knowledgeduring the design process. Indeed, future buildings need to comply with strict rulesconcerning their supply and demand energy balance. In this regard, not only do theyneed to reduce their energy demand, they should also produce a considerable part oftheir own energy locally with renewables (Kanters and Wall, 2014).

48 Alongside, and following the concept of ‘brightfields’, cities can promote the

regeneration and redevelopment of underused, abandoned and derelict sites andproperties (so called brownfields) by implementing solar energy projects (Spiess & DeSousa, 2016). Furthermore, as the recent report of IRENA concludes, there are three

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priority areas where cities can take action: (i) renewable energy in buildings (forheating, cooling, cooking, and appliances); (ii) sustainable options for transport(electric mobility and biofuels); and (iii) creating integrated urban energy systems. Asconcerns specifically solar energy, there are other technological solutions (besides PVpanels on roofs) which can be implemented in urban areas, such as central solarheating plants (CSHP) with seasonal heat storages, solar thermal (ST) power plants,solar ventilation preheat (SVP), solar water heating (SWH), solar cooling systems, etc.(IRA, 2016).

5. Conclusion

49 In our day and age, the continuous presence of growth vs development policy agendas

is illustrative of how little the world has evolved in absorbing the sustainabledevelopment concept, formally launched by the Brundtland Report, in 1987. Indeed,despite the efforts of the UN and many other international and national entities inpresenting compelling arguments on the advantages of implementing sustainabledevelopment policy agendas, rather than narrow-vision neoliberal growth agendas,several economic crises, coupled with fossil-energy lobbying forces have, in some cases,been able to halt the necessary progress for implementing sustainable territorialdevelopment agendas, in many territories. These include some of the most developedareas of the world, like the USA.

50 Against this backdrop, the UN continues its meritorious efforts to alert the world to the

need to implement a sustainable development agenda, as an indispensable requirementto achieving socioeconomic progress and positive sustainable territorial developmenttrends, whilst contributing to mitigate and invert current global challenges, such asglobal warming, deforestation, ocean acidification, and poverty. Crucially, urban areascan be regarded as fundamental playgrounds to implement these sustainable territorialdevelopment policies, since they are largely responsible for contributing to many ofthose global problems.

51 In this article, a case is presented on how urban areas, in particular those located in

territories with abundant solar radiation, can significantly contribute to promotingsustainable territorial development policy agendas, by exploring their untapped solarenergy potential, towards a carbon-free economy. Based on a wealth of literature, it ispossible to conclude that, as we speak, these potential Urban SUNstainability policyagendas, supported by the idea that an urban area can be gradually self-sufficient incovering all its energy needs via solar energy, with indirect and direct social, economicand environmental beneficial impacts, is very much realistic. Firstly, the production ofsolar energy is by now far more economically competitive than it was a few years ago,and soon can be more economically viable to explore than fossil-fuel related sources ofenergy. Secondly, there is an increasing global awareness that there are severalindirect costs associated with the use of fossil-fuel energy sources, in particular forhuman health and the world environment. Thirdly, and despite the absence of concretegoals and measures to implement Urban SUNstainability policies, both in UN and EUmainstream development agendas, there are already a few eloquent examples beingimplemented in some European cities, including some in northern and less sunnyterritories. This is, as we expect, just the beginning, of an Urban SUNstainability catch-on process, not only in Europe, but in many other parts of the world.

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52 In order to assess the current Urban SUNstainability process, and also to assess its

potential, this article presents a conceptual framework based on five analyticdimensions. First and foremost, the solar energy generation capacity needs to beassessed, since this process largely depends on the availability and intensity of solarradiation. In future research, there is a need to assess existing urban planning andgovernance procedures which can stimulate and consolidate the implementation ofUrban SUNstainability policy strategies. Lastly, the analysis of the potentialeffectiveness of this process needs to find causalities of its implementation to provokepositive social, economic and environment development trends, and in particular tothe implementation of a greener and circular economy, higher standards of living, anda cleaner environment.

53 As regards the case of Lisbon, one could expect that a path towards an increasing use

and production of solar energy, towards a smarter and more sustainable city, wouldrequire policy measures, at the urban level, which could attract the urban populationto become both producers and consumers of solar energy. Likewise, this intendedsustainability path requires experimenting with novel multi-level governance models,which can embrace a whole-of-society approach in view of increasing theadministrative capacity of urban government structures, as well as the awareness ofthe positive transformative nature that the use and production of solar energy canprovide to all urban dwellers.

54 In conclusion, as presented in this paper, Urban SUNstainability conveys an

understanding of a greener, prosperous and sustainable world for the years to come.Rooted in the image of an emergent need for an age of sustainable development, all thepotential territorial development benefits associated with the implementation of UrbanSUNstainability policy strategies are yet to be fully assessed. This paper intends toprovide an academic contribution to better assess their potential implementation bothin an ex-ante and ex-post phases across the world, by means of a multi-dimensionalpolicy evaluation framework. This framework is, obviously, open for furtherimprovements, following its implementation in several case-studies, which will be thenext step of this academic endeavour. In the end, this analysis also intends todisseminate the notion of Urban SUNstainability across the academic and policymeanders, as a way to contribute to the institutionalisation of palpable and potentpolitical forms supporting Urban SUNstainability agendas across the world.

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NOTES

1. https://ec.europa.eu/energy/en/topics/energy-strategy/overview

2. https://ec.europa.eu/energy/en/topics/energy-strategy-and-energy-union/clean-energy-all-

europeans

3. https://ec.europa.eu/environment/circular-economy/index_en.htm

4. http://www.polis-solar.eu/

5. https://lisboaenova.org/en/lisboa-e-nova-3/

ABSTRACTS

This paper discusses the concept of Urban SUNstainability and its importance for territorial

sustainable development. Generically understood as a process for attaining sustainable

development in urban areas, via the intense production and use of solar energy, Urban

SUNstainability is presented as a convincing urban policy strategy for a greener, sustainable and

prosperous world. Based on existing experiences in areas with abundant levels of solar radiation,

it was found that, by now, the use and production of solar energy in urban areas starts to be

economically viable, and should be regarded as an adequate solution to implement a greener and

sustainable territorial development process in urban areas. As a way to assess the potential and

current levels of Urban SUNstainability in urban areas, the paper proposes a multi-dimensional

policy evaluation framework, based on five crucial aspects: the solar energy generation capacity,

the direct and indirect environmental, economic and social benefits from implementing Urban

SUNstainability strategies, and the soundness and effectiveness of the urban planning and

governance processes related to the implementation of this process.

INDEX

Keywords: SUNstainability, Sustainable Development, Territorial Development, Urban

Development, Solar Energy

AUTHOR

EDUARDO MEDEIROS

DINÂMIA’CET-ISCTE, Portugal, eduardo.medeiros [at] iscte-iul.pt

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Relevância do VANT no Processo deRepresentação e Produção deArquiteturaJoão Antunes, Sara Eloy e Pedro Luz Pinto

Os autores gostariam de agradecer os comentários construtivos dos revisores que permitiram

aumentar a qualidade do artigo.

Introdução

1 Com vista a analisar a evolução tecnológica no âmbito disciplinar da arquitetura, este

trabalho surge da intenção de enquadrar uma realidade contemporânea emtransformação a partir de uma revisitação histórica contextualizando a evolução eadaptação do presente através do passado. A construção de uma narrativa que retrata aimportância do veículo aéreo não tripulado (VANT) no âmbito disciplinar darepresentação e produção de Arquitetura, é o objetivo primeiro a que se submete esteensaio, assumindo, enquanto produto de uma observação e “ponto de vista” particular,a representação aérea como génese deste estudo.

2 Numa busca pelo reencontro de uma evidência da “vista aérea” na história da

arquitetura, procura-se conciliar com esta uma realidade tecnológica de progresso e“vanguarda”. O ensaio pressupõe o arquiteto enquanto mediador deste tipo deobservação, assumindo com isto que, através de uma posição relativa, o papel deste,enquanto mediador, é profusamente influenciado pelas contingências naturais outecnológicas da sua realidade presente.

3 Este trabalho ambiciona uma compreensão da importância dos avanços tecnológicos,

no caso específico da observação aérea em arquitetura, procurando compreendersimultaneamente, quais as transformações a que este modo de “visitar” a cidade levou econtinua a levar no campo de ação conceptual e construtiva da Arquitetura. Nestesentido, a importância da tecnologia é também predominante ; intuindo que, noprocesso de avanço e progresso do homem e da sociedade, os avanços tecnológicos

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estão contínua e simultaneamente ligados a um retrato da evolução humana e social(Giedion, 1969). Sendo este o elo entre a tecnologia e a prática disciplinar daArquitetura, o enunciado para este trabalho parte da ideia de entender o VANTenquanto “ artefacto », ou seja, objeto e instrumento de apoio. Neste ensaio épredominante a ideia de uma determinada habilidade do corpo poder ser ampliada porum progresso tecnológico que, enquanto “extensão” do próprio corpo, se refleteenquanto capacidade tecnológica, mas também e simultaneamente enquantocapacidade humana. “(…) Darwin, por exemplo, usou o desenvolvimento dos telescópioscomo metáfora para a evolução dos olhos (…)” (Forty, 2006 : 22) “(…), uma dasimplicações do debate biológico foi a de que o ser humano é de alguma forma“ incompleto ». (…) parte do objectivo da produção de bens materiais é dar ao homem aintegridade de que carece. (…)” (Forty, 2006 : 25)

4 O artigo retrata em três âmbitos diferentes as problemáticas em discussão respondendo

assim aos três objetivos do estudo. Numa primeira fase, que corresponde às seções doise três, responde-se ao objetivo de identificar a importância dos avanços tecnológicos naobservação aérea em arquitetura. Para tal, através da contextualização histórica,analisa-se o surgimento e a evolução da vista aérea desde uma génese mais técnico-militar, até outra, relacionada com uma vertente artística ou técnico-artística. Nasegunda fase do artigo, com o objetivo de identificar as possibilidades da tecnologiaVANT na representação e produção de Arquitetura, apresenta-se uma vertente maisoperativa incidindo no VANT e nos seus métodos e processos de levantamento emArquitetura. Numa terceira fase do artigo, com o objetivo de analisar os impactos queos VANT trarão no futuro, faz-se uma reflexão acerca do futuro desta tecnologia, assimcomo considerações sobre ética e tecnologia, nomeadamente sobre a atual mudança deparadigma do espaço aéreo, onde a democratização do acesso e uso deste tipo detecnologia pode potenciar inesperados constrangimentos e pressões em temas como“ segurança » e “ privacidade ».

Contextualização histórica

Vista aérea, Arquitetura e Cidade

5 Nos séculos XIX e XX, a par com um conjunto de novas ideologias, também avanços

tecnológicos se evidenciaram como fundadores da realidade “ moderna » tal como arevisitamos nos dias de hoje. A criação de novos instrumentos e o aparecimento denovos materiais construtivos, como o betão, o vidro ou o aço, tornaram-se evidênciasde uma nova realidade que se revelou fértil em novas oportunidades, quer a um níveltécnico, quer num campo artístico.

6 Alguns fenómenos históricos, como o processo de revolução industrial, têm a

capacidade de alterar por completo o quotidiano das cidades, condicionando muito dofuturo expectante da vida urbana e as reflexões que se estabelecem sobre esta. Emborapodendo-se questionar as condições de progresso nestas dinâmicas de transformação,menos discutível é o facto de estes fenómenos introduzirem uma profunda alteraçãonas realidades em que sucedem. A ocorrência de uma resposta a estes fenómenos emâmbitos mais técnicos e/ou artísticos, por cadeia, acabam por representar um conjuntode determinantes reações multidisciplinares, onde a Arquitetura enquanto disciplina eárea técnico-artística, não se isenta de agir.

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7 No caso do movimento moderno, para além das novas e determinantes tecnologias de

construção, o avião – invenção anterior ao nascimento do movimento moderno –acabou também por construir os princípios ideológicos desta prática arquitetónica, queganhou voz na primeira metade do século XX. A visão dos arquitetos modernos acabouprofundamente influenciada pela presença do avião enquanto veículo aéreo integranteda cidade moderna, porém, também e essencialmente enquanto facilitador de um novoe revolucionário olhar sobre a cidade – a vista aérea (Lista, 1994 : 206-211).

8 Apesar das experiências realizadas no final do século XIX relativas à criação de um

veículo que tornasse possível a ambição humana de voar, já em 1783, pelas mãos dosirmãos Montgolfier (Joseph-Michel Montgolfier (1740-1810) e Jacques-ÉtienneMontgolfier (1745-1799)), o balão de ar quente surgiu como parte da concretizaçãodeste sonho. Tornando-se pela primeira vez possível sobrevoar um determinadoterritório, a invenção do balão de ar quente e o desenvolvimento da fotografia nasegunda metade do século XIX foram os dois fatores determinantes que tornarampossível aquelas que viriam a ser as primeiras fotografias aéreas. Levadas a cabo porGaspard-Félix Tourmachon (1820-1910), de pseudónimo “Nadar”, estas primeirasfotografias aéreas foram captadas na cidade de Paris, em 1868. Nesta altura recorrendoao engenho técnico do balão de ar quente e à sua técnica fotográfica, bastante avançadapara a época, Nadar realizou os primeiros registos aéreos de uma cidade. Até estaaltura, os registos sobre um ponto de vista superior resultavam sempre deposicionamentos elevados, recorrendo a fotografia aérea oblíqua a partir deconstruções altas como os monumentos emblemáticos das cidades (Espuche, 1994 :108-111).

9 Todas as experiências realizadas no decorrer da primeira década do século XX

acabariam por marcar aquilo que veio a ser o desenvolvimento da indústria aeronáuticano decorrer do século. O conceito e a presença do avião enquanto instrumento e íconeda era “moderna” acabaria por se estabelecer e se, por um lado, esta invenção passou aocupar a paisagem, por outro, conceptualmente, esta mesma acabou por moldar aforma como a própria paisagem passou a ser conhecida e pensada.

O avião e o movimento moderno

10 Enquanto novo elemento da vida urbana das cidades, no século XX o avião serviu tanto

a inspirações quanto à destruição associada aos conflitos armados. Novas presençascomo o automóvel passaram também a construir a realidade urbana da cidade do séculoXX. A cidade, agora vista a partir da janela do automóvel e projetada a partir da janelado avião, tornou-se reflexo destes dois olhares. “(...), Mies foi dos primeiros a pensar atorre de arquitectura moderna vista a partir do carro (...)” (Montaner, 2006 : 60).

11 Na 1ª e 2ª Guerra Mundial, o uso extensivo do avião, potenciado pelas funções militares

que assumiu, levou a que a fotografia aérea, enquanto instrumento de registo e análise,fosse alvo de um desenvolvimento exponencial. A importância e eficácia da conjugaçãodo avião com a fotografia acabou por se perpetuar na extensa produção de registosfotográficos aéreos que se deram durante este período.

12 Representando muita da essência dos princípios “ modernos », como o conceito de

“ máquina », o avião surge como um dos elementos fundadores do modernismo daprimeira metade do século XX. Ganhando este protagonismo principalmente nodiscurso de Le Corbusier (1887-1965), esta invenção tecnológica acabou por fundar um

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novo olhar sobre a cidade. Para Le Corbusier, o avião assumia-se como uma das peçascentrais do seu discurso, evocando princípios como o pragmatismo e o funcionalismo erepresentando para este “the precise new anatomy of architecture” (Le Corbusier, 1987 :25).

13 O papel do avião no movimento moderno acabaria por ser profundamente retratado

com a primeira viagem de Le Corbusier à América do Sul em 1929, onde teveoportunidade de visitar de avião cidades como Buenos Aires, São Paulo e o Rio deJaneiro. Testemunhamos hoje este seu fascínio pelo avião através dos seus esboços. Estametodologia utilizada por Le Corbusier de conhecer e interpretar o território tornou-seresponsável pelos seus primeiros registos relativos ao plano urbanístico para a cidadedo Rio de Janeiro. Le Corbusier acabaria por associar este modo de observar o territórioà expressão “ bird’s eye view », intuindo que esta “ vista de pássaro » mostrava o que era“ invisível » na observação feita a um nível térreo (Le Corbusier, 2017 : 75).

14 Se o avião acelerou o ritmo de mobilidade e reconhecimento do território, acabou

igualmente por aumentar a consciência dos arquitetos sobre a paisagem tornando-amais permeável ao planeamento urbano durante todo o século XX.

A cidade “objeto”

15 A presença do avião na realidade do século XX produziu a sua marca no espírito

conceptual da arquitetura do Movimento Moderno, assim como no panorama artísticofundado nas vanguardas deste século. Por esta altura os artistas desenvolviam aplasticidade do voo e os arquitetos o novo olhar sobre a cidade.

16 Complementando os hábitos de observação, interpretação e comunicação do arquiteto e

do artista, a vista aérea imprimiu uma mudança de consciência e a consolidação de umpensamento à escala da paisagem e da cidade. Embora no século XVII a escala da cidadefosse já potenciada por representações em planta emblemáticas, como o mapaiconográfico de Roma produzido em 1748 por Giambattista Noli (1701-1756), a cidadeenquanto “elemento abstrato” revelou-se mais evidente e clara no século XX ; a suaperceção ampla permitiu que esta ganhasse uma maior presença na imaginaçãotécnico-artística desta época, perpetuando-se até aos dias de hoje.

17 As visões urbanas a partir de um ponto de vista superior passaram a servir as

produções artísticas, refletindo a influência e emancipação do voo neste período dahistória (Espuche, 1994 ; 108-111). As produções artísticas inspiradas no “voo” sobre acidade resultaram como memória das realidades destruídas pela guerra. A pintura,fotografia e outras formas de expressão tornaram-se documentos históricos derevisitação de algumas realidades que desapareceram durante as duas guerras mundiaisdo século XX.

18 As cidades tornaram-se o objeto de contemplação por excelência. A aproximação

conceptual da escala da cidade a um objeto acabou por ser motivada pela nova posiçãode observação do arquiteto. A nova perspetiva de observação do território ofereceu ummaior poder de síntese na sua leitura, imaginação e planeamento. Tal como no filmePower of ten’s, lançado em 1977 com autoria de Ray Eames (1912-1988) e de CharlesEames (1907-1978), esta relativização da escala da cidade disponibilizou uma novaforma de esta se apresentar aos olhos atentos dos arquitetos e artistas do século XX.

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A ampliação tecnológica

Biologia e invenção

19 No processo de questionamento crítico da tecnologia a dicotomia entre o “ natural » e a

“ máquina » dá aso ao início de um entendimento sobre a relação estabelecida entre oser humano e os objetos. Recorrendo ao exemplo do papel desempenhado pelo avião noséculo XX, a condição não natural ou intrínseca ao ser humano relativa à observaçãoaérea tornou nítida a gestão complexa da adaptação a esta nova possibilidade. Acondição deste novo tipo de observação permitiu a ampliação da perceção da realidade.A forma como este fenómeno de transformação alterou a realidade acabou,simultaneamente, por transformar a própria consciência dos arquitetos através dapossibilidade de uma apreensão sobre um ponto de vista estranho à natureza do serhumano.

20 A estreita relação entre biologia e invenção, no ato de ampliação das capacidades do ser

humano, desde sempre alimentou grande parte da sua ambição e a evolução enquantoespécie. O carácter individual e coletivo promovido pela sua condição natural eamplamente criativa tornou ténue a diferenciação entre “ órgão » e “ máquina ».

21 Fundador e autor fundamental da biologia moderna, Charles Robert Darwin (1809-1882)

retratou a importância dos artefactos a partir da “ Teoria da Evolução das Espécies ».Recorrendo a uma das analogias de Darwin, Adrian Forty (n.1948) escreve : “Na área dasciências biológicas, a distinção entre artefactos como extensões literais ou metafóricasdos membros surgiu nos debates sobre evolução. (...), muitos biólogos usaram analogiasdo mundo dos artefactos para elucidar as suas ideias sobre a evolução natural : Darwin,por exemplo, usou o desenvolvimento dos telescópicos como metáfora para a evoluçãodos olhos (...)”. (Forty, 2006 : 22).

Objeto e corpo

“(…) Numa passagem claramente evocativa de Samuel Butler (…) Le Corbusierescreve : “Nascemos nus e com proteção insuficiente. Assim, as mãos em concha deNarciso levaram-nos a inventar a garrafa” (…)”. (Le Corbusier, 1925 ; 1987 : 72).

22 Perante a ideia de a tecnologia ser uma extensão do Homem e os objetos uma extensão

ou prótese do corpo, Adrian Forty assume que os objetos são como uma invenção quetenta anular “deficiências corporais”. Forty dá como exemplo a Ergonomia, a ciênciaque tornando mais próxima a conexão entre o corpo e os objetos, tornasimultaneamente mais presente a ideia de um objeto ser uma extensão do corpo : “(…)muitos dos membros do homem estão dispersos e encontram-se separados (…) – algunssempre à mão para uso eventual e outros, ocasionalmente, a quilómetros de distância. Amáquina é apenas um membro suplementar” (Forty, 2006 : 27-28).

23 Enquanto máquina funcional, o avião tornou-se assim uma extensão do corpo,

facultando-o da capacidade de “ voar ». Porém, enquanto instrumento conceptual edisruptor, este também acabou por produzir um conjunto de reações e emoções quetranspareceram na forma de “ projeto urbano » ou “ produção artística » inspiradas naconcretização e plasticidade do voo. A tecnologia pode ainda imprimir no seu utilizadoros valores que lhe estão associados. Características qualitativas, mesmo que recrutadasa partir de uma ferramenta tecnológica, podem ser associadas às capacidades pessoaisde quem lhe dá uso. Neste seguimento de ideias, Neil Leach introduz a noção de

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“ propriocepcão » entre a tecnologia (ou seja a “ prótese ») e o corpo humano (Leach,2006 :78-79).

24 A tecnologia do veículo aéreo não tripulado (VANT) é exemplo desta iminência

evolutiva do ser humano. Promovendo uma mudança na relação de proximidade entreos objetos e o ser humano, o caso específico do VANT reforça uma realidade onde ocontrolo da tecnologia e dos objetos se passa a fazer através de uma interação emanipulação mais remota, à distância. Os aspetos técnicos destes dispositivospressupõem uma nova dinâmica na realidade urbana, bem como nas relações einterações que o corpo estabelece com esta. Este veículo de mobilidade remotarelativiza a distância entre o corpo e a sua envolvente, revelando e potenciando aposição que o ser humano pode assumir no espaço.

25 O “ objeto » e o “ corpo » por um lado caminham para um afastamento físico induzido,

enquanto que por outro, complementam-se, ampliando o caráter híbrido que estatecnologia evidencia.

O veículo aéreo não tripulado (VANT)

26 Neste ensaio o entendimento conceptual sobre o que é um VANT baliza-se na

identificação de um conjunto de características específicas próprias de um veículoaéreo, por forma a permitir ao seu utilizador a possibilidade de o pilotar através de umcontrolo remoto.

27 Este tipo de veículos apresenta essencialmente dois métodos de pilotagem : i) o

controlo remoto manual em tempo real, baseado na emissão de um sinal entre o veículoaéreo e um comando na posse do agente utilizador ; ii) o controlo remoto programadode sistemas integrados mais complexos, normalmente utilizado para voos comtrajetórias e coordenadas muito especificas. Em ambos os métodos, a utilização desensores, radares e satélites pode ocorrer. Contudo, é no método de pilotagem baseadonuma programação de sistemas integrados que ocorre um maior recrutamento destescomponentes. Recentemente têm surgido formas inovadoras de controlar estes veículos(Silva, 2018 : 47-48). A empresa DJI1 tem desenvolvido funções de voo que revelam apossibilidade de controlar estes veículos a partir do reconhecimento de gestoscorporais realizados pelo utilizador. A pilotagem de VANT também pode recorrer àutilização de óculos FPV (“ First Person View »). À semelhança de óculos de realidadevirtual, estes permitem ao operador do VANT uma maior imersividade no voo,permitindo assistir à transmissão das imagens registadas por uma câmara acoplada aoVANT (DJI, 2017).

Os “objetos suspensos”

28 A presença cada vez mais pronunciada do VANT no contexto aéreo urbano é um

fenómeno muito comentado e debatido dos últimos anos no que respeita àstransformações das dinâmicas do espaço aéreo e da cidade.

29 Desde o início do século XXI que a popularidade e a crescente presença do VANT no

espaço aéreo tem-se caracterizado como exemplo paradigmático da alteração eadaptação àquelas que são as dinâmicas impostas pela interação entre o homem e oespaço aéreo.

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30 Um dos passos essenciais para esta realidade de apropriação social foi o início da

comercialização destes veículos para um uso pessoal e lúdico. A empresa 3DR2

desempenhou um papel determinante neste processo de apropriação emergente –aplicando pela primeira vez, em 2012, esta tecnologia ao uso civil (Silva, 2018).

31 Atualmente o VANT estabelece uma democratização da observação dos ambientes a

várias escalas, antecipando um aumento da consciência das realidades urbanasconstruídas ou ainda por construir. É a partir da vista aérea disponibilizada por estesobjetos que a consciência da realidade urbana se altera, principalmente no campo deação da arquitetura, onde esta observação aérea facilitada permite construir umconjunto de novos juízos e premonições sobre a cidade.

32 Tal como afirma Paula Melâneo (2019), “a vista aérea introduz na arquitetura uma nova

fachada visível, a cobertura vai com certeza deixar de ser um mero elemento técnicopara passar a ser uma nova fachada de desenho cuidado, senão um novo portal deingresso às edificações, quando o drone se difundir como meio de transporte. Aarquitectura terá de responder à funcionalidade destas maquinas.” De entre estasadaptações, a cada vez maior existência de entregas comerciais aéreas feitas comrecurso a estes veículos poderá tornar imperativa a necessidade de criar “droneports”,facilitando a aterragem destes veículos em cidades bastante densificadas.

33 No Elevation documentary : how drones will change cities (Dezzen, 2018), o debate sobre o

surgimento de uma nova “ cidade visível » também é abordado, apresentando acobertura como a nova e relevante face visível da cidade que precisa de ser valorizada.Também Sóla-Morales afirma que “(...) os corpos voadores, libertos de peso e degravitação, surgem cada vez mais nas fotomontagens destes anos. (...) a relação entre ocorpo e a sua envolvente física se liberta, pode “incorporar-se” em qualquer situação,em qualquer espaço (...).” (Sola-Morales, 2006 : 42). Esta mudança de paradigma, onde apresença cada vez mais emergente destes objetos com capacidade de ficarem suspensosno ar conforma e confirma novas realidades e dinâmicas urbanas, provoca umarenovação de oportunidades e desafios inesperados com os quais a cidade e os seusorganismos se deparam.

Áreas de aplicação e potencialidades

34 A quantidade de usos atribuídos à tecnologia do VANT tem aumentado nos últimos

anos. Sendo atualmente utilizada em planeamento e construção de arquitetura, comoveículo de transporte ou ferramenta de entretenimento e marketing, esta tecnologiatem-se adaptado a muitas áreas profissionais.

35 O VANT foi inicialmente utilizado como recurso militar. Em 1935, o aparecimento do

“ Havilland DH82B Queen Bee biplane » consagrou a criação do primeiro veículo aéreomilitar não tripulado e remotamente pilotado. O VANT tem sido cada vez mais utilizadoem cenários de conflito armado, permitindo um aumento da eficácia das operações euma diminuição expectante das perdas humanas (Rouse, 2009).

36 Com a empresa 3D Robotic Inc, esta tecnologia foi introduzida pela primeira vez num

contexto civil em 2012. Inicialmente foi essencialmente utilizada por empresas desegurança privada, tirando partido da tecnologia militar, facilitando a observação evigilância de pequenas e grandes áreas a partir de um ponto de vista facilitador (Silva,2018 : 56). Pouco tempo depois, algumas empresas de transportes passaram igualmentea investigar novas oportunidades associadas às características destes veículos. Uma das

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inesperadas aplicações surgiu pelas mãos da empresa Amazon, em 2013 quando estalançou um serviço inovador que consistia num novo método de entregas realizadas pordrone que disponibilizava a entrega de encomendas num curto período de tempo, quese revela em alguns casos, inferior a 30 minutos (Amazon, s.d.).

37 Com a realidade atual dos VANT, um conjunto de novas e inesperadas interações vai

ocorrer cada vez com maior frequência. Tal como evidenciado por Paula Melâneo(2019), estas novas dinâmicas poderão influenciar a conceção dos edifícios, levantandoquestões relativas à acessibilidade e à privacidade das atuais e futuras construções queterão de se adaptar a esta nova mobilidade aérea emergente.

38 Influenciando o conceito de edifício com o qual a cidade se formou e consolidou, a

habitual mobilidade terrestre da cidade foi determinante na construção do conceitopadrão de edifício a que nos habituámos, contudo, complementando a circulaçãourbana terrestre, o VANT surge como elemento fundador da mobilidade aérea dacidade.

39 No caso específico da Arquitetura, a utilização destes veículos surge em dois momentos

indissociáveis – o projeto e a construção. Ao possibilitarem a recolha de um conjunto dedados sobre o território e locais de intervenção, estes veículos tornam-se umaferramenta útil à prática de projeto de arquitetura. O mapeamento digital de grandesáreas é um dos recursos mais procurado associados a esta tecnologia.

40 No âmbito construtivo da arquitetura, o VANT também tem ganho destaque. Através da

adoção desta tecnologia pela área da construção robotizada, os VANT têm sido testadosem tarefas onde a sua agilidade de movimento constitui uma vantagem revolucionáriarelativamente aos processos construtivos atuais. Nesta área têm surgido diversasexperiências que revelam a capacidade do VANT realizar tarefas úteis à práticaconstrutiva, tais como no projeto “ Flight assembled architecture », resultado de umacolaboração entre Gramazio Kohler Research, Raffaello D’ Andrea e a ETH de Zurique(Etherington, 2011 ; Rawn, 2015).

41 As relações que se têm criado entre o VANT e a indústria audiovisual têm gerado um

conjunto de novos enquadramentos fotográficos e videográficos que se têm repercutidonas telas de cinema, nos registos comerciais e também nas mais recentes fotografias dearquitetura3. Assumindo o VANT como uma nova ferramenta de trabalho, algunsfotógrafos de arquitetura, como os portugueses Fernando Guerra e João Morgado, têmusufruído da versatilidade de enquadramentos que esta tecnologia pode disponibilizar(Taylor-Foster, 2015).

Métodos e processos de levantamento em Arquitetura

42 A forma como se regista e representa a arquitetura tem vindo a transformar-se

continuamente, sendo que o surgimento de novas ferramentas é a principal causa destatransformação. De facto, a evolução tecnológica disponibilizou novos e mais eficientesinstrumentos de medição, como o medidor de distâncias laser ou tecnologiasautomatizadas como a fotogrametria digital ou o varrimento laser 3D.

43 Baseando-se numa recolha manual de um conjunto de dados métricos destinados a

informar uma representação habitualmente planimétrica e bidimensional, os métodosde levantamento de arquitetura tradicionais apresentam uma eficiência reduzida e umconjunto de características que tornam os dados recolhidos subjetivos e incompletos.

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Ao imprimir tamanha simplificação da realidade, as representações geradas porprocessos de recolha como estes contribuem para uma imprecisão da informaçãogerada.

44 Nos métodos mais recentes de levantamento de arquitetura, a recolha de dados sobre

uma matriz tridimensional tem diminuído a perda de informação e aumentado odomínio e consciência das realidades arquitetónicas. Por via do desenvolvimentotecnológico, o surgimento destas ferramentas mais otimizadas, relativas à recolha eregisto de dados sobre construções e espaços de arquitetura, tem gerado um conjuntode mudanças e oportunidades que possibilitam uma mais rigorosa representação darealidade e interação entre esta e o processo de projeto.

Métodos terrestres

45 Tendo como principal intuito o aumento do conhecimento sobre as realidades que se

documentam, a adoção de métodos baseados em Fotogrametria Digital Terrestre (FDT)ou Varrimento Laser 3D (VL3D) constitui a mais-valia de fornecer uma informação maiscompleta e que requer menor grau de interpretação subjetiva, em contraste com osmétodos tradicionais de levantamento.

46 A “ democratização » deste tipo de tecnologia, através de aplicações que permitem

facilmente realizar FDT a partir da câmara de um smartphone e daí fazer um modelo 3Dde um objeto, tem ajudado no processo de familiarização destes novos sistemastecnológicos.

47 A FDT pode “(...) ser classificada de acordo com vários critérios : i) a relação e distância

entre a câmara e o objecto, ii) o número de imagens utilizadas, iii) o princípiooperativo, iv) pelo tempo de disponibilização dos resultados da medição, e v) a áreadisciplinar de aplicacão (...)”. (Mateus, 2012 : 132). O auxílio de software recente permitea intersecção de um conjunto de pontos determinados em fotografias, com o objetivo derealizar uma restituição planimétrica ou tridimensional na forma de nuvem de pontos(“ Point Cloud Model » - PCM). Este processo tornou a fotogrametria um método aindamais rápido e automatizado.

48 Como o registo através de fotogrametria se baseia em levantamentos fotográficos, a

dependência de uma boa iluminação torna este método pouco eficaz em determinadoscontextos menos iluminados. Neste âmbito de ação, os levantamentos realizados apartir de VL3DT tornam-se mais convenientes. Revelando-se uma fonte de energiaautónoma, o varrimento laser torna-se capaz de dispensar qualquer tipo de iluminaçãonatural ou artificial. Considerada uma das tecnologias mais poderosas de entre osmétodos de levantamento de arquitetura, o VL3DT torna-se capaz de realizar recolhasde dados bastante precisas, tornando-se versátil em registos de pequena e grandeescala. A utilização de uma estação de scan laser com um nível de alcance maior podepermitir a captação de dados relativos a componentes espaciais posicionados aquilómetros de distância.

Métodos aéreos

49 A existência de novos métodos que recorrem à utilização de plataformas aéreas tem-se

mostrado uma mais-valia, permitindo uma maior rapidez e eficácia em situações degrandes áreas urbanas ou ambientes exteriores de difícil acesso e registo. Facilitando

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trabalhos onde a necessidade de se fazer um conjunto de fotografias aéreas se tornasignificativa, a Fotogrametria Digital Aérea (FDA) ou o LiDAR (Light Detection and

Ranging) com o VANT, tornam possíveis enquadramentos fotográficos favoráveis a umarecolha mais completa de dados sobre uma determinada realidade. Enquanto a FDA usavárias fotografias para com elas obter as características geométricas e espaciais de umobjeto, o LiDAR usa, para o mesmo efeito, tecnologia laser que permite detetar adistância entre o emissor e uma superfície. As restituições tridimensionais ebidimensionais realizadas a partir destes registos aéreos alteraram o tipo de escalassuportadas pela Fotogrametria Digital Terrestre, criando nuvens de pontos de grandesáreas urbanas.

50 Quando ainda o VANT não era um recurso tecnológico tão acessível como hoje, os

registos fotográficos a partir de altitude eram realizados a partir de aviões, planadoresou balões (quando se pretendiam fotografias de alta altitude) ou com o apoio deinstrumentos extraordinários ao processo habitual de FDT como gruas ou mastros demão (em situações de fotografia de muito baixa altitude).

51 As imagens aéreas registadas através destes equipamentos tornam possível a

reconstituição de modelos bidimensionais e tridimensionais. Com base nestes, umaquantidade elevada de informação pode informar o projeto e a própria consciência doarquiteto enquanto agente responsável pela intervenção no território.

52 Mesmo após a conceção do projeto de arquitetura, esta tecnologia mostra competências

no que diz respeito à monotorização do projeto em construção. Tirando partido doprocesso rápido de registo e mapeamento, a confirmação gradual da realidade doprojeto baseada na comparação deste com a realidade construída pode ajudar aminimizar incoerências entre o projeto e a sua construção de forma rápida e eficiente.

Aplicações

53 A utilização desta tecnologia como método de documentação e produção de

conhecimento sobre edifícios amplia a relevância deste tipo de tecnologias no âmbitoda arquitetura, nomeadamente no que respeita ao planeamento de intervenções derestauro e reabilitação de construções. De facto, Rocha et al. (2020) referem que asgeometrias complexas (não paramétricas) presentes em muito do patrimónioconstruído tiveram, até ao aparecimento destas tecnologias de levantamento, muitadificuldade em serem representadas de modo correto com as técnicas tradicionais.

54 Sobretudo em sistemas construtivos mais complexos, como construções em pedra, a

partir do registo de todas as nervuras e juntas entre outras características construtivascomo revestimentos, a recolha destas informações auxilia e contribui, por exemplo,para a avaliação de anomalias e planeamentos de conservação. Associado ao elevadorigor que este tipo de levantamentos possui, a obtenção de curvas de nível atravésdestes levantamentos pode possibilitar ainda a realização de análises de deformaçõesde superfícies entre outros problemas estruturais.

55 Os dados presentes nos modelos tridimensionais produzidos através destas tecnologias

possibilitam o estudo aprofundado das realidades que são registadas. A possibilidade deconverter as nuvens de pontos em superfícies tridimensionais, mapas de análise ouinterpretações de projeto dita a conveniência da utilização destas bases na prática deregisto, estudo e projeto em arquitetura.

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56 A representação do território e das pré-existências (curvas de nível, perfis topográficos,

plantas, cortes e alçados) baseadas no seccionamento destes modelos de nuvem depontos em software CAD (Computer Aided Design) ou BIM (Building Information Model)torna a relação entre estas tecnologias recentes e a prática de projeto mais clara edireta, contribuindo para a autonomia da prática profissional do arquiteto.

57 Como base de estudo, através da inserção do modelo tridimensional de um projeto

numa nuvem de pontos do contexto real de implantação – onde se verificaminformações relativas a volumetrias, altimetrias, cores, texturas ou sombras –, estesPCM, produzidos através de FDA/LiDAR, facilitam a visualização do projeto no seucontexto a pequena, média e grande escala urbana.

58 Toda a informação digital georreferenciada destes modelos permite ainda associar ao

projeto de arquitetura a sua orientação, altitude, latitude e longitude, estabelecendouma matriz clara de caracterização da envolvente e de avaliação de exposições solares,brisas e ventos predominantes.

59 O caso da “ Plaza de Toros Real de San Carlos », onde foi realizado um mapeamento aéreo

com VANT, revela a eficiência desta tecnologia na documentação de uma construção –“(…), con el material producido, se realizarán maquetas a escala, tanto conceptuales como de

detalle, a los efectos de complementar la información gráfica y fotográfica (…)” (Alvarez, 2014 :351). Já a reabilitação da Catedral de Notre Dame, após o incêndio ocorrido em abril de2019, é um exemplo de um projeto informado através de um modelo de nuvem depontos tridimensional (realizado com recurso à tecnologia VL3D). A existência de ummodelo de nuvem de pontos tridimensional realizado antes deste incidente por AndrewTallon permitiu a consulta, estudo e reconstrução das estruturas danificadas nacatedral. (Pinto, 2019).

Exemplo de levantamento

60 Nesta secção apresenta-se um exercício prático de FDA, que coloca em evidência os

meios tecnológicos, uma metodologia de trabalho e os resultados que se obtêm atravésdesta. Este exercício decorreu num contexto urbano situado na freguesia da Trafaria,em Setúbal.

61 O propósito de criar um modelo de nuvem de pontos tridimensional atendeu a

possibilidade de disponibilizar uma base digital de informação sobre esta realidade,com a capacidade de gerar um conjunto de peças gráficas útil a uma metodologia deprojeto de Arquitetura. Essencial na fundamentação de alguns dos conceitos expostosno decorrer deste trabalho, esta interação direta com a tecnologia VANT procurouainda testemunhar as potencialidades operativas destes veículos aéreos num processode representação e produção de arquitetura, evidenciando um conjunto de fenómenoscaracterizadores das reais potencialidade e fragilidades desta tecnologia.

Metodologia

62 A metodologia adotada neste exercício assumiu três fases essenciais que estruturaram

todas as etapas deste levantamento. Inicialmente, o reconhecimento do hardware esoftware necessário ao exercício que se pertencia realizar. Nesta primeira fase foramutilizados : um equipamento VANT com uma câmara fotográfica integrada - DJI Mavic 2

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Pro ; duas baterias substitutas ; uma unidade de armazenamento de dados micro sd de128GB ; um smartphone Android ; e um computador.

63 Numa segunda fase, após proporcionadas as circunstâncias adequadas para o processo

de fotogrametria, através do software de fotogrametria aérea DroneDeploy, iniciou-se oprojeto de levantamento da zona que se pretendia restituir. Nesta etapa programou-seo mapeamento :

64 realização do voo no dia 15-07-2019, às 15 :00 horas

65 condições meteorológicas : céu limpo, sem precipitação, com vento moderado (12 km/

h).

66 altitude de voo do VANT - 60 metros

67 resolução do sensor : 1’’ CMOS, 20 megapixels

68 perímetro do mapeamento : 1,7 quilómetros

69 área do mapeamento : 14,2 hectares

70 percentagem de sobreposição das imagens : frontal - 75 % ; lateral - 65 %

71 Este conjunto de parâmetros definidos dentro da aplicação de mapeamento

DroneDeploy permitiram calcular outros aspetos como :

72 tempo de voo : 33 minutos

73 a velocidade do voo de mapeamento : 5m/s

74 resolução nativa da nuvem de pontos final : 1,3 cm/px

75 o número de registos fotográficos : 587

76 Após a recolha fotográfica realizada pelo VANT pode-se constatar dois tipos de registos

fotográficos : registos oblíquos ao solo (145 dos 585 registos – 25 %) e ortogonais ao solo(442 dos 585 registos – 75 %).

Figura 1. Zona do mapeamento (polígono verde)

Elaboração própria.

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77 A aquisição dos dados foi feita de forma automatizada. Todo o trajeto aéreo do VANT e

os registos fotográficos foram obtidos de forma autónoma pelo software DroneDeployinstalado no sistema do smartphone utilizado no mapeamento. Estando ligado aocomando do VANT, o software presente no smartphone controlou de forma integral adescolagem, aterragem, identificação/contorno de obstáculos, direções das trajetórias ea localização/enquadramento das fotografias aéreas adquiridas.

78 Após a recolha de todos os dados necessários no local, deu-se início à fase de

processamento dos mesmos. Recorrendo ao serviço de cloud da mesma aplicação(DroneDeploy), fez-se o carregamento de todas as fotografias para o site online –responsável pelo processamento e modelação dos dados adquiridos. O carregamento detodas as fotografias no site da aplicação permitiu, no prazo de 5-20 horas, que o modelofosse disponibilizado para visualização na forma de mapas e/ou modelostridimensionais.

79 Conforme as condições previstas na alínea b), do n.º 3, do art.º 4.° da Lei n.° 28/2013, de

12 de abril, foi pedida e deferida a autorização de voo do VANT no portal “e-AAN”,gerido pela Autoridade Aérea Nacional (AAN). Ainda devido ao peso de 907g doequipamento Mavic 2 Pro utilizado, foi feito o seguro de responsabilidade civilobrigatório para qualquer VANT com peso superior a 900g. Apesar de nos termos da leiestar também previsto o registo de equipamentos na Autoridade Nacional Aérea Civil(ANAC), cujo peso exceda os 250g, à data da realização deste exercício e submissão desteartigo, a plataforma destinada a estes registos ainda não se encontrava disponível.

Figura 2. DJI, “ Geo zone map », zona do caso de estudo, zona de voo restrito (retângulo azul)

Elaboração própria.

Resultados

80 A disponibilização do modelo da nuvem de pontos tornou evidentes as mais-valias que

estes tipos de registos podem assumir em trabalhos de Arquitetura. Elementos gráficoscomo plantas, alçados ou cortes ou a própria interpretação do território pode informar-

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se através do conjunto de informação que este modelo gerado congregava. O modelofinal apresentou um elevado rigor. Uma das vantagens identificadas nestelevantamento foi a georreferenciação automática do modelo gerado, incluída atravésdos dados recolhidos pelo VANT.

81 Na plataforma online de visualização do modelo, um conjunto de análises automáticas

demonstraram as potencialidades que estes métodos de trabalho podem ter,complementando o grau de informação que um arquiteto possui sobre um determinadoterritório e rentabilizando o seu tempo de análise. O software disponibilizou avisualização e exportação de um conjunto de mapas de análise, processados eproduzidos através do serviço de cloud :

82 Ortofotomapa – obtido através da combinação matemática de um conjunto de registos

fotográficos ortogonais ao solo.

83 Mapa de elevações (“ elevation map ») – permite visualizar as elevações de um mapa a

partir do modelo de superfície digital (DSM) – eficaz no mapeamento de topografia,combinando-a com vegetações e estruturas antropomórficas – e do modelo digital deterreno (DTM) – eficaz no mapeamento de topografia da superfície terrestre,descartando interferências como a vegetação e estruturas antropomórficas. Estasinformações geoespaciais são apresentadas pelo software DroneDeploy no sistema “ WGS84 Global Reference ».4

84 Mapa da “ saúde vegetal » – ferramenta direcionada para a agricultura. A partir de

dados NDVI (Normalize Diference Vegetation Index), que tradicionalmente mede eanalisa os infravermelhos próximos e a presença de tonalidades azuis. Este método éhabitualmente utilizado para medir a vegetação saudável entre outras condicionantes.Na aplicação DroneDeploy, estão disponíveis outros tipos de análise com : ENDVI, SAVI,OSAVI e RDVI – otimizadas para análises específicas.5

85 O modelo tridimensional – apresentado sob a forma de nuvem de pontos ou superfície

interpolada. Este modelo permite visualizar em três dimensões a realidade mapeada emformato xyz, lase ou rcp. A densidade (cm/px) e as texturas da nuvem de pontostraduzem a quantidade de informação adquirida, apresentando maior informação ummodelo em que se verifica uma maior densidade de pontos e presença de texturas. Estesmodelos, tal como o ortofotomapa, são obtidos através da combinação matemática deum conjunto de registos fotográficos que podem ser ortogonais e/ou oblíquos ao solo.6

86 Enquanto base de trabalho, os modelos de nuvens de pontos resultantes destes métodos

de levantamento (FDA, LiDAR ou FDT) são um instrumento cada vez mais importante naatividade de projeto em arquitetura, desde o programa preliminar ao pós-obra.

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Figura 3. Mapeamento, geolocalização dos registos fotográficos (pontos azuis)

Elaboração própria.

Figura 4. Ortofotomapa

Elaboração própria.

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Figura 5. Mapa da “saúde vegetal” (“plant health”)

Elaboração própria.

Figura 6. Mapa de elevações (“elevation map”) - DSM

Elaboração própria.

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Figura 7. Modelo tridimensional, nuvem de pontos

Elaboração própria.

Figura 8. Modelo tridimensional aproximado, nuvem de pontos

Elaboração própria.

87 Constituída maioritariamente por massas arbóreas e estradas, a composição urbana da

zona do levantamento influenciou em grande medida a qualidade do modelo gerado.Em situações como copas de árvores, a dificuldade de registar as zonas inferiores (emsombra) produziu algumas lacunas na restituição tridimensional. Pode-se concluir queo tipo de ambiente da zona de levantamento pode implicar uma maior atenção ealgumas estratégias de complementação dos dados obtidos através do registo aéreoautomatizado. O registo complementar de fotografias, através de uma recolha manualde fotografias específicas, poderia tornar a quantidade de dados mais rica e, por suavez, o modelo mais completo e pormenorizado ; porém, o tempo gasto nesta recolhamanual torna o processo menos rápido quando comparado com uma recolhatotalmente automatizada realizada unicamente através de uma programação emsoftware. Atendendo a possibilidade de combinar técnicas de fotogrametria, afotogrametria terrestre pode tornar-se um complemento útil para a riqueza e detalhe

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destas restituições tridimensionais. A utilização de marcas auxiliares no terreno(artificiais ou naturais), vulgarmente denominados de pontos de controlo, permitemaior precisão na georreferenciação, associando a esta fatores complementares deescala e orientação.

88 O cálculo automático baseado nos parâmetros que são inicialmente definidos pelo

usuário dentro do software – como a altitude de voo do VANT, a área do mapeamento oua percentagem de sobreposição das imagens – permitem obter uma estimativa domodelo final resultante. Devido a estas estimativas, antes do início da obtenção dedados no local, torna-se possível o conhecimento do tempo de voo necessário para aaquisição de imagens, o número total de registos fotográficos, bem como a resoluçãonativa do futuro PCM. Este facto possibilita realizar um planeamento mais exato econtrolado do mapeamento, evitando algumas correções posteriores e tornando a açãomais eficiente e eficaz. Desta forma, os resultados obtidos neste exercícioaproximaram-se bastante dos objetivos propostos.

Especulação futura

Evolução e sucessão

89 A aplicação de conhecimento da área da neurociência tem-se fundindo com as atuais

formas de controlo destes veículos aéreos, equacionando a possibilidade de controlar epilotar estes veículos através de estímulos cerebrais (Dearen, 2016). Por outro lado,ambicionando uma cada vez maior segurança no que diz respeito à presença destesveículos nas cidades, a existência de um sistema de informação mais completo quecontemple um maior número de variáveis relativas ao tráfego aéreo poderá ajudar atornar a circulação e autonomia de voo destes veículos menos dependentes de umapilotagem humana manual. À semelhança do que já acontece com os sistemas decondução autónoma de veículos automóveis, procurando uma cada vez maiorautonomia relativa à circulação aérea destes veículos, têm-se desenvolvido aplicaçõesde inteligência artificial aplicadas à análise e previsão de obstáculos, com o objetivo dediminuir cada vez mais a margem de erro humano e por sua vez os acidentes que daidecorrem. As aplicações inesperadas em que estas aeronaves têm sido utilizadas têmrevelado um conjunto de possibilidades rizomáticas, abrindo um leque deoportunidades ainda por descobrir (Cheng, et al., 2018 : 4).

90 Refletindo sobre a crescente facilidade de aquisição e utilização deste tipo de veículos,

os sistemas de privacidade que hoje conhecemos também serão afetados. O uso “ livre »destas aeronaves e a possibilidade de observar e alcançar sítios indevidos poderáconstituir um problema na forma como as cidades hoje estão pensadas. Tornando-sepossível a observação do interior de qualquer casa a partir de uma janela, mesmo quesituada num andar alto, os sistemas de privacidade tornam-se fraudáveis e inesperadosface à situação até agora vigente. Em pontos como este, os arquitetos desempenharãoum importante papel, repensando e equacionando as novas formas de interação entreVANT, cidadãos e arquitetura.

91 Muito embora as restituições tridimensionais realizadas a partir da fotogrametria ou do

varrimento laser não tenham ainda associadas uma inteligência artificial direcionadapara a análise dos registos, algumas marcas de software têm tentado desenvolveralgoritmos capazes de realizar uma interpretação automática destas nuvens de pontos.

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Uma das ambições é que, no futuro, o software consiga introduzir informações emalguns segmentos de nuvem – indicando a existência de paredes, corredores,compartimentos, etc.

92 Também ao nível da integração com o BIM, a eficiência de transformação dos dados

obtidos em modelos paramétricos BIM é ainda uma área com muitos aspetos porresolver. Este assunto é de particular interesse para a área da reabilitação dopatrimónio para a qual é urgente o desenvolvimento de um Historic Building Information

Modelling (HBIM) que permita o desenvolvimento de modelos BIM consistentes e quetragam reais benefícios para este tipo de intervenção (Rocha, 2020).

93 A integração destes modelos com a Realidade Aumentada (RA) e a Realidade Virtual

(RV) revela hoje um conjunto de possibilidades inovadoras que permitem, por exemplo,navegar de modo imersivo numa nuvem de pontos experimentando o modelo com umanoção de presença em escala real (Gomes et al, 2020).

Ética e tecnologia

94 Na avaliação ética relativa à disponibilização e utilização de novos recursos

tecnológicos, a relação que se estabelece entre a tecnologia e a sociedade evidencia-secomo um dos grandes tópicos relevantes. A hesitação da sociedade sobre as inovaçõestecnológicas e, particularmente, sobre o potencial que estas têm de alterar ascircunstâncias onde ocorrem, torna-se um importante ponto de discussão, sobretudoquando a utilização da tecnologia denuncia a sua capacidade de violar liberdadesindividuais, entre outros direitos estabelecidos.

95 Fundamentada pela ambição social de aumentar a qualidade de vida por via da

mobilidade, segurança, higiene urbana, entre outros fins, as inovações tecnológicassempre se relacionaram com os grandes avanços da sociedade. Contudo, o seuquestionamento revela-se importante e necessário na evidência dos seus desequilíbrios.É necessária uma avaliação relativa às tecnologias emergentes, onde tópicos como a“ segurança pública », a “ privacidade », a “ lei » e a “ proteção de dados » se mostramameaçados (Nelson and Gorichanaz, 2016 : 3).

96 Na discussão sobre ética associada à tecnologia são habitualmente abordadas temáticas

relativas à forma como a tecnologia interage com os sistemas quotidianos. De acordocom Salvini, (2017 : 283), a concordância da realidade tecnológica com um conjunto deâmbitos sociais torna-se tão ou mais significante do que as capacidades técnicasintrínsecas à tecnologia.

97 No caso específico dos VANT, a sua natureza formal e a forma de atuação distante do

operador é uma questão potencialmente problemática (Salvini, 2017 : 279). Adesresponsabilização do utilizador baseada na distância física entre ele e estasaeronaves torna necessária a existência de sistemas otimizados para a identificação eresponsabilização de utilizadores que ajam fora dos pressupostos éticos e legais (Finn eWright, 2016). No debate sobre a regulação da tecnologia e a normalização do seu usosobre um ponto de vista ético, a privacidade e a segurança relevam-se como as duasproblemáticas fundamentais que, principalmente no caso específico do VANT, setornam predominantes.

98 Para Salvini (2017), ao potenciar um conjunto de eventos imprevistos, a tecnologia do

VANT torna evidente a vulnerabilidade da sociedade e dos seus organismos a novos

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contextos potenciados por inovações tecnologias tão disruptivas como esta. O impactoque os VANT têm na privacidade e segurança de todos é revelador de uma mudança deparadigma, onde a presença destes equipamentos disponibiliza novas formas de registoe interação. O impacto na privacidade torna-se claro com o surgimento de uma grandequantidade de registos que, intencionais ou involuntários, caracterizam uma recolhaabusiva de informação na grande maioria dos casos.

99 A ética exerce a sua influência nas decisões do poder político e legislativo,

questionando e elevando a consciência sobre temáticas como as inovações tecnológicase a forma como estas interagem com os contextos sociais. A criação de regulamentossobre a utilização de tecnologias (como os VANT) torna-se fulcral para a aprovaçãoética do seu uso, tornando mais otimista a confiança que a sociedade tem na tecnologia.

Conclusão

100 Neste estudo, a analogia entre o surgimento dos primeiros veículos aéreos e a

transformação do olhar do Arquiteto sobre o território contextualiza o VANT como oproduto de uma evolução continua relativa aos veículos aéreos desde o século XIX.Promovendo um enquadramento histórico sobre o posicionamento específico destatecnologia na área disciplinar da Arquitetura, este trabalho revela os principais pontosonde os veículos aéreos efetivam uma mudança de paradigma, configurando umatransformação da atividade conceptual do arquiteto através de uma circunstância delocomoção e observação aérea.

101 Podendo assumir-se como parte integrante da metodologia de trabalho em Arquitetura,

a utilização de equipamentos como o VANT irá generalizar-se ainda mais nos próximosanos, assumindo uma importância cada vez maior no conjunto de ferramentas de umprofissional de arquitetura.

102 “As simulac o es disponibilizadas pelos novos suportes e tecnologias significam, pela

primeira vez na história da representação arquitectónica, a possibilidade de ter umprojecto, de modo integral, passível de experimentação na escala 1 :1 (em lugar daconstrução de uma maquete/protótipo a escala real)” (Melâneo, 2019).

103 O facto de se poderem extrair rapidamente desenhos técnicos (como plantas, cortes e

alçados) de uma forma expedita, ou mesmo visualizar modelos tridimensionais deforma imersiva (p.e. através de RV) ainda numa fase de estudo prévio do projeto,revoluciona os processos convencionais de intervenção. A acrescentar a isto, o facto denestes modelos se verificarem pistas sobre texturas e estados de conservação,revoluciona também a capacidade de importar para o âmbito digital dos nossoscomputadores uma realidade mais próxima do mundo real – alterando a forma comovemos e reconhecemos as coisas que nos rodeiam. Ainda a específica compatibilidadedestas restituições tridimensionais com software CAD ou BIM aumenta a prospeção doseu uso nas práticas profissionais de Arquitetura onde estes dois tipos de software sãoamplamente utilizados. Abrem-se assim novas possibilidades e permite-se a integraçãode uma maior inteligência nas restituições de modelação tridimensional.

104 A fotogrametria a partir de VANT permite uma maior versatilidade assim como

possibilita registos detalhados e completos, mesmo em situações onde não existeiluminação. Ainda, a rapidez aliada ao grande rigor da execução de uma representação

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através do processo de fotogrametria torna também este processo economicamentefavorável apesar do custo da tecnologia.

105 No caso da fotografia aérea de arquitetura, o “ olho » do arquiteto ou do fotógrafo de

arquitetura torna-se essencial na comunicação fotográfica do projeto ou do contextoque se pretenda retratar, i.e. toda a tecnologia utilizada nestas aeronaves écomplementada pela experiência do utilizador que, antecipando cenários de aplicaçãodesta, torna o seu uso mais adequado e eficaz.

106 Hoje, a democratização desta tecnologia revela-a como uma ferramenta

exponencialmente mais acessível, promovendo processos de trabalho mais rápidos ecom resultados surpreendentes onde o registo e análise de informação útil com umelevado rigor se torna mais fácil de obter, interpretar e comunicar.

107 A conciliação da liberdade de interpretação com o rigor de tecnologias como o VANT

pode assumir novas metodologias de trabalho em Arquitetura, desenvolvendo novasformas de conceber e comunicar o projeto. Uma das áreas em maior evidência nesteprocesso de comunicação de arquitetura por via do VANT é a Fotografia, dandodestaque à vista aérea como um dos modos basilares de representação realizadaatualmente por estes veículos. Premiado com um Leão de Ouro em 2018, Eduardo Soutode Moura socorreu-se de duas fotografias aéreas para representar um dos seus projetosde arquitetura localizado no Alentejo – uma fotografia da sua pré-existência e outra doprojeto já concluído. A sua premiação refletiu sobre a simplicidade adotada narepresentação do projeto, cingindo-se ao ponto de vista aéreo como leitura total doedifício em que interveio (Salema, 2018).

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NOTAS

1. https://www.dji.com/pt/company

2. https://www.3dr.com/

3. Exemplos destes casos são, entre outros, os trabalhos de vídeo turístico de diversas áreas como

de Portugal (https://www.youtube.com/watch?v=vuRGpPfLSe8), e Lisboa (https://

www.youtube.com/watch?v=V2Vp-b6jrmA) entre outras.

4. https://support.dronedeploy.com/docs/calibrate-elevation-3

5. https://support.dronedeploy.com/docs/plant-health-2

6. https://support.dronedeploy.com/docs/3d-point-clouds-1

RESUMOS

O surgimento do avião como elemento influente na visão dos arquitetos do movimento moderno

do século XX transformou a forma de conhecer e interpretar a paisagem, refletindo-se numa

metodologia distinta de planeamento e interação com o território. No seculo XXI, esta relevância

da aeronave perpetua-se com a emergência do veículo aéreo não tripulado (VANT), vulgarmente

designado como “drone”, no espaço aéreo da Cidade. A democratização desta tecnologia

transforma o espaço aéreo urbano, promovendo uma mudança de paradigma da realidade

contemporânea e influenciando aspetos como a privacidade, a segurança, o planeamento urbano

e os regulamentos de utilização do espaço aéreo. No âmbito profissional de utilização do VANT, a

relevância deste no processo de representação e produção de Arquitetura torna-se um dos seus

pontos de maior influência, possibilitando novas formas operativas de ação do arquiteto e

ampliando a sua autonomia, capacidade técnica e consciência sobre os cenários onde intervém.

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Com a premissa de enquadrar a relevância destes veículos no processo de representação e

produção de arquitetura, este trabalho procura expor as principais valências dos VANT na

Arquitetura, através de uma investigação sobre as suas especificações e aplicações em diferentes

áreas. A realização de um caso de estudo de utilização de um VANT e de fotogrametria digital

aérea tornou ainda possível testar as premissas desenvolvidas.

ÍNDICE

Keywords: arquitetura, tecnologia, representação, veículo aéreo não tripulado, VANT

AUTORES

JOÃO ANTUNES

ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, joaodoresantunes [at] gmail.com

SARA ELOY

ISTAR - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, sara.eloy [at] iscte-iul.pt

PEDRO LUZ PINTO

DINÂMIA’CET-Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, pedro.pinto [at] iscte-iul.pt

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Espaços ajardinados do lado norteda Avenida dos Estados Unidos daAméricaTraços conceptuais na definição de um corredor verde no Bairro deAlvalade (1940-1960)

Jorge da Rosa Neves e Paulo Tormenta Pinto

1. Introdução

1.1 O Plano Geral de Urbanização e Expansão de Lisboa (PGUEL)

1 A melhoria das condições de implantação da indústria moderna a partir da segunda

metade do século XIX acentuou a macrocefalia de Lisboa, evidenciando, no quadronacional, o fenómeno de emigração e de imigração interna a partir dos territóriosrurais mais distantes (Rodrigues, 1995 : 59-61). Num quadro de aumento populacionalcontínuo1, mais expressivo entre 1880 e 1920, Lisboa em 1930 albergava perto de umdécimo da população portuguesa, acentuando ainda mais a atratividade da capital(Rodrigues et al., 1991, 301).

2 Em resposta à carência habitacional decorrente dos fenómenos migratórios, a Câmara

Municipal de Lisboa (CML)2 promove vários programas de habitação (Costa, 2002 : 17) eo governo é obrigado a construir em grande escala “bairros de rendas económicas e decasas para pobres” para limitar as rendas, e mesmo interditar, por decreto, aconstrução de prédios de rendas elevadas (CML, 1948a : 10), incentivada anteriormentepelo Decreto n.º 15.289 de 30 de Março 19283, com consequente construção de prédiosde luxo, aumento de rendas e deslocação da população mais desfavorecida para aperiferia.

3 Com a perspetiva de continuado crescimento populacional4 e com vista a interpretar e

responder ao fenómeno especulativo, a CML promove em 1934 um ciclo de conferênciassubordinadas à habitação e, aproveitando a presença do arquiteto urbanista Alfred

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Agache (1875-1959), promulga o primeiro regulamento relativo à aprovação de Planosde Urbanização Camarários (Decreto-Lei n.º 24.802, de 21 de dezembro de 1934), emsubstituição da figura anterior dos Planos Gerais de Melhoramento (Costa, 2002 : 15-16).

4 Duarte Pacheco (1900-1943) ao acumular entre 1938 e 1943 a presidência da CML e a

pasta de Ministro das Obras Públicas (Marques de Almeida, 2009)5, coloca em marchaum vasto programa de edificação de bairros6 e de construção de arruamentos comovista a atenuar as necessidades inadiáveis de expansão da cidade. Neste contexto,promove a construção da rede fundamental de Lisboa e as suas ligações para o centro,norte e sul, bem como a construção do aeroporto e a ampliação do porto (Costa, 2002:17).

5 Com o objetivo de atribuir coerência funcional e formal à cidade, Duarte Pacheco

chama Étienne De Gröer (1882-1974) para ocupar o cargo de «urbanista-conselheirotécnico de câmara», cargo que ocupa entre 1938 e 1940. Durante este período, osestudos dos serviços da CML para as redes das circulações consideram os traçados dasgrandes vias propostas por De Gröer (CML, 1948a: 1).

6 Para melhor conhecimento da cidade, De Gröer elabora um programa para o estudo dos

elementos analíticos que servirá de base ao estabelecimento do Plano (CML, 1948a : 2).Este estudo, designado por Elementos para o Estudo do Plano de Urbanização da Cidade de

Lisboa (CML, 1938), é elaborado pelo engenheiro António Emídio Abrantes (1888-1970), àaltura Chefe de Repartição Técnica da Planta da Cidade (Brito et al., 2007 : 165). Nesteestudo, Emídio Abrantes integra um conjunto significativo de plantas temáticas,abrangendo a divisão administrativa da cidade, a distribuição das habitaçõesclandestinas, das fábricas e oficinas, a rede de transportes e a cobertura porinfraestruturas (água, gás, eletricidade) e serviços (CTT), entre outros aspetos ligadosao relevo e à geografia do território.

7 Em 1954 o Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU), em planta relativa à distribuição

da população na cidade, segundo a previsão de De Gröer de 1948, evidencia a relaçãoentre os traçados das grandes vias de expansão e os núcleos a urbanizar7. Entre estes,destacam-se o Bairro de Alvalade para 45.000 habitantes (construído a partir de 1946)na continuação do Bairro do Areeiro para 9.000 habitantes [(construído entre 1940 (1ªFase) e 1948 (2ª Fase)], ambos construídos com o propósito de resolver a escassez dahabitação, descentralizar a população e os serviços entre os eixos de expansão dacidade (Lamas, 1993: 284).

8 Apesar de De Gröer observar em construção bairros e vias, em alguns casos, com

traçado por ele sugerido, constata que a construção dos bairros de renda económicapelo Estado como medida de conter o fenómeno especulativo, por si só, é insuficiente,devendo ser complementada pela aplicação do conceito de «zonamento»8, queconsidera a base do urbanismo, capaz de promover, pela organização da cidade, asalvaguarda da saúde dos habitantes, a proteção da propriedade privada, bem comorefrear ao mesmo tempo a especulação predial (CML, 1948c : 7-13).

1.2 A Av. EUA no Plano De Gröer e no Plano de Urbanização da Zonaa Sul da Avenida Alferes Malheiro

9 Retomando a elaboração do Plano Diretor em 1946, após novo contrato, com vista à sua

revisão e aprovação9 (Brito et al, 2007 : 183), De Gröer estrutura a rede viáriaarticulando circulares concêntricas em torno do centro da cidade com os eixos radiais

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de desenvolvimento para norte. A Av. EUA, projetada em 1941 pelos serviços da CMLcomo “a grande avenida de circunvalação da cidade” que começaria em Monsanto e seestenderia até às Docas do Poço do Bispo (Costa, 2002 : 106), é integrada na 3ª circulardo Plano de 194810.

10 A Av. EUA, em complemento de outras vias, para além de servir alguns dos bairros

construídos ou em construção, serviria ainda as zonas industriais em expansão,nomeadamente, Alcântara (zona poente) e Xabregas, Marvila e Poço do Bispo (zonanascente)11, onde se localizavam as indústrias com maior número de trabalhadores,bem como o Campo Grande (limite poente da avenida) onde se localizava a “Fábrica delanifícios do Campo Grande” (Alcântara, 2013 : 9).

11 O Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro foi elaborado entre 1938 e

1944, até 1939 com base nos ensaios de desenho urbano, com continuação em 1941 noEstudo de Conjunto da Zona Sul da Avenida Alferes Malheiro. Com a coordenação doarquiteto urbanista João Guilherme Faria da Costa (1906-1971) partir de 1942, o plano érevisto profundamente em 1944 e aprovado separadamente do Plano Diretor no anoseguinte (Costa, 2002 : 25-26).

12 Constituindo-se como plano parcial do Plano Diretor de Urbanização de Lisboa (CML, 1945:

2), o Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro assenta na estruturaviária planeada para a cidade, integrando assim a Av. EUA já em construção por alturada sua aprovação (CML, 1945: 6). Considerando igualmente a Av. Roma, em construção,Faria da Costa estrutura o plano em oito células habitacionais com base na articulaçãodas vias que o delimitam e o atravessam12 e a aplicação do conceito de «Unidade deVizinhança»13 em torno das escolas (CML, 1945: 12-13)14. Faria da Costa ao assumir a Av.EUA como uma das artérias principais do plano, prevê, com o objetivo de o viabilizareconomicamente, habitação de renda não limitada15 em toda a sua extensão e paraambos os lados (à exceção do topo norte da RUA Guilhermina Suggia, no lado sul)16,compensando assim áreas de habitação menos valorizáveis (CML, 1945 :14).

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Figura 1. Implantação do Bairro de Alvalade na Planta da Cidade (1948)

Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Ref. PT/AMLSB/CB/13/27, p1.

Traçado da Av. EUA ainda sem continuidade para nascente e poente.

13  1.3 Movimento Moderno no Bairro de Alvalade

14 A Carta de Atenas (1933), saída do 4º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna

(CIAM) assume como causas principais da insalubridade da habitação e da fracaqualidade de vida das cidades, a excessiva densificação do tecido urbano, a edificaçãoem quarteirão (penalizadora das horas de Sol em grande parte dos edifícios) e aescassez de espaços livres na proximidade da habitação. Como solução, propõe aedificação em altura, tendo em consideração a orientação solar e em posiçãoperpendicular ou obliqua aos eixos viários de maior movimento e servida por extensasáreas verdes. O zonamento marcadamente funcional surge como estratégia para aseparação, entre si, das áreas residenciais, de lazer e de trabalho, bem como para acirculação hierarquizada entre estas áreas.

15 A edificação segundo os objetivos da Carta de Atenas, subjugados à lógica da unidade da

habitação, promove a separação entre os edifícios e o espaço exterior cuja identidade érelegada para segundo plano, passando a constituir o espaço residencial dos edifícios.Por outro lado, com a abertura do quarteirão, o jardim localizado no seu interior dálugar ao espaço verde de enquadramento dos edifícios, de cariz naturalizado, concebidona continuação dos espaços menos construídos segundo as correntes ecológicas(Magalhães, 2001 : 117-119).

16 Durante este período, a arquitetura paisagista concebe o espaço urbano, tal como a

arquitetura, segundo uma perspetiva estrita das suas funções de uso, incluindo entreestas a função ecológica. No entanto, a abordagem formal não aplica os conceitos quecaraterizaram a arquitetura de tendência racionalista, em que as formaspredominantemente utilizadas se baseavam na geometria euclidiana. A arquiteturapaisagista compatibiliza quase sempre a linha reta com curva e as estruturas edificadascom a natureza (Magalhães, 2001 : 108).

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17 Com a publicação da tradução da Carta de Atenas na revista Arquitectura – Revista de Arte e

Construção a partir de 1948 (Costa, 1948)17 e a realização do 1º Congresso Nacional deArquitectura durante o mesmo ano, o Movimento Moderno ganha novo fôlego (Costa,2002 : 21), surgindo logo em 1949 no Bairro de Alvalade os primeiros estudos deconjunto com uma linguagem arquitetónica próxima deste movimento, nomeadamente,por Joaquim Ferreira (1911-1966) no Conjunto Habitacional da Av. Dom Rodrigo daCunha (Costa, 2002 : 95-99) e por Ruy D’ Athouguia (1917-2006) e Formosinho Sanches(1922-2004) no Bairro de S. João de Deus (Costa, 2002 : 99-103), posteriormenteconhecido como Bairro das Estacas.

18 Nestes dois conjuntos habitacionais, os blocos foram implantados perpendicularmente

às vias, originando espaços entre estes de contorno retangular, pensados numa lógicade fruição em comum, até aqui inexistente no Bairro. Ambos os conjuntos beneficiaramde projetos de arborização e ajardinamento elaborados na 3ª Repartição – Arborização eJardinagem da DST-E em 1953 por Ribeiro Telles18. A abordagem do autor nos doisprojetos, no caso do projeto do Bairro das Estacas em complemento de uma primeiraabordagem por Ruy D’ Athouguia e Formosinho Sanches, constitui uma rotura naabordagem ao logradouro no Bairro de Alvalade ao conferir-lhes condições de fruiçãopública e de permeabilidade à implementação da Estrutura Verde do Bairro (Neves etal, 2018 : 25-28).

19 Para o processo de abertura do logradouro à fruição pública terão contribuído as

propostas de De Gröer (PDUL-1948) de modernização do regulamento urbano, por sóassim considerar possível edificar de acordo com as exigências de higiene e dourbanismo contemporâneo. Com vista a contrariar a densidade excessiva dosquarteirões e as condições de insalubridade dos seus logradouros, penalizada pelaconstrução em profundidade e altura dos prédios, propõe, entre outras medidas, aedificação em ordem descontínua (mesmo quando destinada a habitação coletiva) e aproibição de construção de prédios com pátios fechados ou saguões (CML, 1948e :42-49).

20 Em Alvalade, a deteção de focos de insalubridade nos logradouros particulares das

Células 1 e 2 nos finais da década de 1940, com consequente desvalorização dahabitação dos pisos térreos (Costa, 2002 : 96-98), terá sido crucial para o processo deabertura do logradouro nos dois conjuntos habitacionais acima mencionados,generalizada em ambos os lados da Av. EUA a partir de 1951 (Figura 2) e no Conjunto doMontepio Geral na Av. do Brasil de Jorge Segurado (1988-1990) a partir de 1958.

Figura 2. Planta de Divisão em Lotes dos Terrenos Situados na Av. Estados Unidos do Norte e noCruzamento desta Avenida com a Av. Roma, 1951

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSBAH/PURB/002/04051, p. 13.

Esc. 1/1.000.

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21 Enquanto a implantação perpendicular dos edifícios à via se encontrava prevista para o

lado norte da Av. EUA desde o Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes

Malheiro (1945), como medida de proteção do ruído e da poluição (Costa, 2002 : 106), omesmo não acontecia nos conjuntos habitacionais da Av. Dom Rodrigo da Cunha e daAv. Brasil, para onde se previam, respetivamente, edificações contínuas ao longo da viae moradias unifamiliares19.

22 O primeiro estudo de ocupação para a Av. EUA ocorre em 1953, quando o arquiteto

Joaquim Santiago Areal e Silva apresenta a proposta para o troço entre as avenidas deRoma e Rio de Janeiro com cinco blocos de nove pisos perpendiculares à via e edifíciosde quatros pisos no topo norte do logradouro20 com implantação paralela à RUAEpifânio Dias. Dois anos depois, é desenvolvido o projeto com apenas quatro blocosperpendiculares à via, com acréscimo em número de pisos (Costa, 2002 : 115-116). Parao facto, não será de excluir os méritos dos projetos dos ajardinados dos conjuntoshabitacionais da Av. Dom Rodrigo da Cunha e do Bairro das Estacas onde ainterdisciplinaridade arquitetónica terá ficado patente, apesar do desfasamentotemporal.

23 Em 1954, os arquitetos Manuel Laginha (1919-1985), Vasconcelos Esteves (1921-2014) e

Pedro Cid (1925-1983) elaboram o estudo de ocupação para o troço entre as avenidas doAeroporto (atual Avenida Gago Coutinho) e Rio de Janeiro, elaborando no ano seguinteos projetos de arquitetura dos lotes (Costa, 2002 : 118-119)21.

24 Igualmente em 1954, os arquitetos Lucínio Cruz (1914-1999), Alberto Ayres Braga de

Sousa e Mário Gonçalves Oliveira (1914-2013) projetam os blocos de rendimento para otroço entre a Praça Mouzinho de Albuquerque (atual Praça de Entrecampos) e a Av.Roma, com cinco blocos perpendiculares entre a avenida e a RUA António Patrício. Doisanos depois deste primeiro estudo, tal como aconteceu para o troço anteriormentereferido, é desenvolvido o projeto com menos um bloco, com aumento do número depisos por bloco (Costa, 2002 : 110-114).

25 Em Novembro de 1955 é aprovado o anteprojeto para o troço compreendido entre as

ruas Diogo Bernardes e Frei Tomé de Jesus da autoria dos arquitetos Croft de Moura,Henrique Albino (1921-2003) e Craveiro Lopes (1921-1972)22 substituindo um primeiroestudo de 1951-52 dos arquitetos João Simões (1908-1993), Francisco Castro Rodrigues(1920-2015), José Huertas Lobo (1914-1987), Celestino de Castro (1920-2007) e HernâniGandra (1914-1988) (Costa, 2002 : 116-117).

26 Em 1956 é apresentada nova implantação para a Av. EUA (Figura 3)23 com a

representação dos conjuntos habitacionais de Filipe Figueiredo (1913-1989) e de JorgeSegurado (1898-1990) para o cruzamento com a Av. Roma, assim como os troços entre aAv. Roma e a Praça Mouzinho de Albuquerque [lado norte (Zona I) e lado sul (Zona II)] eentre as avenidas Rio de Janeiro e do Aeroporto (Zona IV) já em construção. Por estaaltura, o troço entre as avenidas Rio de Janeiro e de Roma [lado norte (Zona III)]encontrava-se em estudo e do lado sul (Zona V) ainda por iniciar (Costa, 2002 : 117).Neste estudo ainda se observam os cinco blocos do conjunto habitacional do lado nortedo troço entre as avenidas de Roma e Rio de Janeiro, o que não irá ocorrer na planta detrabalho de 1959 (Figura 4)24.

27 Comparando as plantas de 1951 e 1956, constata-se que, na segunda, à exceção do troço

entre as avenidas do Aeroporto e Rio de Janeiro, não se encontram representados osblocos que rematam os logradouros a norte, prevendo-se em sua substituição bolsas

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para estacionamento. Em 1959 esta opção é revertida no troço entre as avenidas Rio deJaneiro e de Roma, passando o estacionamento a nascente da Av. Roma a ocorrerapenas ao longo das ruas Silva e Albuquerque e Epifânio Dias, tal como ao longo daavenida.

28 Por comparação entre as duas plantas foi possível detetar a representação (1956) e a

delimitação (1959) de um parque infantil no logradouro nascente do troço entre a PraçaMouzinho de Albuquerque e a Av. Roma, não concretizado em fase de projeto, como àfrente se comprova neste artigo.

29 A planta de 1959 apresenta a implantação dos conjuntos habitacionais de acordo com os

projetos de arquitetura anteriormente referidos, verificando-se ainda por ocupar oespaço do lado sul da avenida entre as avenidas de Roma e do Aeroporto, definido apartir de 1962 pelo arquiteto Leonardo Castro Freire (1917-1970), alinhando os trêsprimeiros edifícios com os edifícios propostos para o lado norte. Para nascente, éretomado o alinhamento dos blocos em posição paralela à avenida (Costa, 2002 :117-21).

Figura 3. Avenida dos Estados Unidos da América.Planta de Apresentação (1956)

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0248, p. 13.

CML \ DSUO \ 1ª Repartição – Urbanização e Expropriação.Desenho n.º 7387/10.11 e 12N/E, Esc. 1/500.

Figura 4. Av. EUA. Planta de Trabalhos (1959)

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/0244, p. 10.

CML \ DSUO \ 1ª Repartição – Urbanização e Expropriação.Desenho n.º 8637-10,11 e 12N/E, Esc. 1/500.

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30 O Movimento Moderno em Lisboa na primeira metade da década de 1950 é ainda

marcado pelo «Bloco das Águas Livres» (1953) de Nuno Teotónio Pereira (n1922) e deBartolomeu Costa Cabral (n1929) e pelo conjunto da Avenida Infante Santo (1955) deAlberto Pessoa (1919-1985), H. Gandra e João Abel Manta (n1925) (Tostões, 1994 : 63-71),com projeto de arborização e ajardinamento de Ribeiro Telles25. Três anos mais tarde, omesmo autor irá projetar os ajardinados do lado poente da avenida26.

31 A elaboração dos projetos acima mencionados por Ribeiro Telles, ainda que com algum

desfasamento temporal dos projetos de arquitetura, permite-lhe identificar ospropósitos da arquitetura do Movimento Moderno, bem como estudar a resposta à novatipologia de espaço urbano, “logradouro público entre blocos Habitacionais com topoou topos expostos ao arruamento”. Este percurso, simultaneamente em contexto decidade consolidada e de cidade que se expande (Bairro de Alvalade), permite-lhe, emfunção da localização, da orientação e da altura dos blocos e dos espaços urbanos porestes gerados, experienciar opções de organização do espaço, de pavimentação e deutilização da vegetação que serão determinantes na definição dos ajardinados na Av.EUA entre 1957-59, que de forma mais detalhada se abordará mais à frente neste artigo.

1.4 Gonçalo Ribeiro Telles na 3ª Repartição – Arborização eJardinagem da Direção dos Serviços Técnicos-Especiais

32 Ribeiro Telles integra a equipa de técnicos da CML em 1950, sucedendo a Manuel de

Azevedo Coutinho (1921-1992) igualmente neste ano (Bettencourt da Câmara, 2015 :69-70), após terem terminado em 1948 o curso livre de arquitectura paisagistaministrado a partir de 1942 pelo Professor Francisco Caldeira Cabral (1908-1992) noInstituto Superior de Agronomia (ISA), onde se licenciou em 1936.

33 Caldeira Cabral, recém-chegado a Portugal (1939) após ter concluído o curso de

arquitetura paisagista em Berlim sob a orientação do Mestre Professor Wipking(Caldeira Cabral, 1993 : 14), transfere para Portugal a doutrina da escola de Berlim que,relativamente ao Modernismo, recusava o classicismo como abordagem formal,transpondo o conceito romântico de paisagem para uma visão mais utilitária da mesma.Ou seja, esbate o peso dos valores simbólicos da paisagem, substituindo-os porpressupostos ecológicos e funcionais. A paisagem natural reproduzida pelo Romantismopassa a ser substituída por uma expressão naturalista de objetivos utilitários, numalógica de subordinação dos princípios ecológicos à conceção de estética romântica(Magalhães, 2001 : 122).

34 Da herança de Caldeira Cabral merece destaque a introdução do conceito de continuum

naturale que visava a preservação das estruturas fundamentais da paisagem e a suapenetração no tecido edificado de forma tentacular e contínua através de corredoresverdes, com tradução em espaços de lazer e recreio, de enquadramento deinfraestruturas, assim como na arborização de ruas e praças (Magalhães, 2001: 107).Com a aplicação do conceito de continuum naturale, integra-se o conhecimentoecológico, mais tarde integrado na «Ecologia da Paisagem», em substituição do«pulmão» da cidade, que se considerava ultrapassado (Magalhães, 2001: 127-128).Intrínseca às preocupações ecológicas surge a utilização de vegetação espontânea eadaptada ao local (com maior resiliência e com menores custos de construção e demanutenção), em detrimento da utilização de espécies exóticas que marcaram osjardins botânicos a partir do início do Século XVI (Magalhães, 2001: 110-111).

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35 Integrado na 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem (RAJ) da DST-E sob a chefia do

engenheiro silvicultor José D’Orta Cano Pulido Garcia (1904-1983) Ribeiro Telles irádesenvolver intensa atividade projetual, concretizada nos genericamente designados“Projeto de Arborização e Ajardinamento” os quais passam a ser assinados comreferência à especialidade de “Engenheiro Agrónomo com o Curso Livre deArquitectura Paisagista”.

36 No Bairro de Alvalade, o projeto de arborização que deu origem à Mata de Alvalade27

(atualmente Parque José Gomes Ferreira), constituiu um dos seus primeiros projetos e ode maior área. Reconhecendo a importância da Mata para o Bairro como espaço derecreio, de descompressão urbana e como ancoradouro de futuros corredores verdes,Ribeiro Telles aquando da elaboração de projetos ao longo das avenidas do Aeroporto28

e do Brasil29, estabelece continuidade através da disposição da vegetação e da escolhado efetivo botânico.

37 Após a Mata de Alvalade, os projetos do autor no Bairro incidem sobre a arborização e o

ajardinamento dos quarteirões, merecendo referência os projetos para a Célula 730

onde, a par dos aspetos estéticos, explora a aplicação do continuum naturale entrepraças, gavetos e pequenos logradouros (canteiros) fronteiros aos edifícios.

38 Neste percurso, Ribeiro Telles experiencia, dentro do Bairro, escalas de projeto

diversas, desde as pequenas praças e gavetos, ao jardim público31, às áreas deenquadramento a edifícios de culto religioso32 ou ao parque (Mata de Alvalade, 1951 e1955), exemplos que se enquadram nas tipologias definidas para os espaços livres noPDUL-1948 por De Gröer O «Parque» quando a dimensão excedesse os dez hectares, o«Jardim» quando excedesse um hectare e Squares (pequenos jardins decorativos)quando a dimensão fosse inferior. Espaços livres de área ainda mais reduzida deveriamser consideradas como decorativos dos arruamentos (CML, 1948b: 71).

39 Ribeiro Telles, ao projetar para o Bairro de Alvalade e em simultâneo para outras zonas

de expansão da cidade, como Belém, Benfica e Encarnação,33 entre outras, masigualmente na cidade consolidada34, observa em contínuo as transformaçõesurbanísticas e arquitetónicas em curso na capital e as repercussões sobre o espaçourbano e os modos de o usufruir. Ao projetar consecutivamente para os mesmos bairrosajardinados e arborizações de arruamentos em localizações contiguas ou relativamentepróximas, como no Restelo (1951-1961) e na Encarnação (1952-56), Ribeiro Tellesexplora a conetividade dos espaços verdes tal como no Bairro de Alvalade (1950-1959),contribuindo significativamente para a Estrutura Verde não só Bairro mas de toda aCidade.

2. A relação interdisciplinar no Gabinete de Estudos deUrbanização (GEU)

40 Com a formação do GEU em 195435, constituído pelo engenheiro Luís de Guimarães

Lobato (1915-2008) e pelos arquitetos José Aleixo da França Sommer Ribeiro (1924-2006)e Pedro Falcão e Cunha (n. 1922), os arquitetos paisagistas integrados na RAJ sãochamados a colaborar com as equipas técnicas nos Planos de Urbanização desde osestudos base. Este momento terá contribuído para o fortalecimento da relaçãointerdisciplinar entre arquitetos e arquitetos paisagistas, defendida e estimulada comparticular acuidade na doutrina de Caldeira Cabral (Cabral, 1993 : 26). Até então de

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prática difícil face ao desfasamento temporal entre os planos e os projetos dearquitetura desenvolvidos na Direcção dos Serviços de Urbanização e Obras (DSUO) e osprojetos de arborização e jardinagem elaborados na RAJ numa perspetiva decomplemento dos primeiros.

41 Como exemplos do desfasamento temporal, para além dos mencionados nos conjuntos

habitacionais da Av. Dom Rodrigo da Cunha, merecem referência os verificados entre oPlano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro (aprovado em 1945) e oRelatório A Arborização do Sítio de Alvalade (CML,1949) e entre os projetos de arquiteturapara as células 1 e 2 (a partir de 1946) e os projetos de arborização e ajardinamento paraos respetivos logradouros de 1950.

42 A equipa técnica do PDUL-1958 sob a coordenação dos engenheiros Guimarães Lobato e

Tomaz da Rocha Leão de Sousa Eiró, integrou os arquitetos paisagistas ProfessorCaldeira Cabral, que se manteve entre Janeiro de 1956 e Novembro de 1959, EdgarFerreira Fontes (1922-2000)36 e Ribeiro Telles (CML, 1958a). Bettencourt da Câmara(2015 : 68) interpreta da leitura do Plano o contributo dos arquitetos paisagistas nosaspetos mais diretamente relacionados com o planeamento e a conceção dos espaçosverdes, fruto do reconhecimento técnico que já beneficiavam por essa altura. Por outrolado, Magalhães (2001 : 130), saliente a ênfase atribuída às componentes ambientais,nomeadamente, o relevo, a exposição das vertentes, a hidrologia e a vegetação, nozonamento da ocupação do solo e na definição dos índices de densidade edificada.

43 No Bairro de Alvalade, constitui exemplo da integração das componentes ambientais no

zonamento do espaço urbano a proposta de Sousa da Câmara37 de 1966 para a Mata deAlvalade38, quando sobre a planta topográfica efetua um estudo analítico da utilizaçãodo solo, dos declives, bem como das vistas, partindo posteriormente para a definição damodelação do terreno, da utilização do solo, da arborização, da drenagem e da rega.

44 A participação de Ribeiro Telles e de Álvaro Ponce Dentinho (1924-2014) nos estudo-

base de 195739 é acompanhada do Professor Caldeira Cabral, constituindo um segundomomento de diálogo entre aluno e professor, subordinado à revisão de matérias econceitos lecionados há quase uma década atrás e à sua aplicabilidade à Lisboa dosfinais da década de 1950. Na envolvente do Bairro de Alvalade, Ribeiro Tellesacompanha o Professor no Estudo Base do Campo Grande da autoria do arquiteto PedroFalcão e Cunha, onde o jardim viria a amarrar a poente o corredor verde da Av. Brasil(Neves et al, 2019) e da Av. EUA.

45 Aludindo à profusão da prática da arquitetura paisagista em Portugal, Caldeira Cabral

enaltecia a meados da década de 1950 a integração dos seus colegas (ex-alunos) na CML(RAJ e GEU), mas sobretudo em entidades da administração pública de âmbito nacional,nomeadamente, no Ministério da Economia, na Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas,na Junta de Colonização Interna e no Ministério do Ultramar, salientando assim aabrangência e a aplicabilidade das suas competências para além do estrito campo daarquitetura paisagista. Com um olhar sobre o papel que os arquitetos paisagistaspoderiam desempenhar, em regime de interdisciplinaridade com outras áreas, emparticular, a arquitetura, e nas Câmaras, lamenta que apenas se encontram integradosna CML, chamando assim a atenção dos autarcas nacionais (Cabral, 1993 : 52).

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3. Os parques infantis no Plano Diretor deUrbanização de Lisboa de 1958

46 No PDUL-1958 a abordagem aos parques infantis ocorre no âmbito dos «Espaços Verdes

Especiais», por serem considerados locais preferenciais de convívio intergeracional ecomo ferramenta de coesão social. Como tal, deveriam inserir-se nas rotinas diárias dosgrupos etários então considerados: 1º Grupo – Pré-escolar (dos 3 aos 7 anos); 2º Grupo –Escolar (dos 7 aos 12-14 anos), 3º Grupo – Adolescente (14 aos 18 anos) e 4º Grupo - Idadeadulta. Deveriam ser concebidos de modo a responder às respetivas necessidades,nomeadamente, contemplar solários para os recém-nascidos, áreas de recreio para ospré-escolares e locais de estar para os mais idosos (CML, 1958d: 1-2).

47 Os pressupostos de projeto do PDUL-1958 antecipam em, praticamente, quatro décadas

os aspetos de conceção, construção e, mesmo da manutenção, previstos no Decreto-Lein.º 379/97, de 27 de Dezembro, que através do respetivo anexo estabeleceu as condiçõesde segurança a observar na localização, implantação, conceção e organização funcionaldos espaços de jogo e recreio, respetivo equipamento e superfícies de impacte40.

48 Segundo o Plano, os espaços para a primeira infância (pré-escolar) deveriam localizar-

se na proximidade da habitação, possibilitar a alternância de sombra e de sol e permitiro acesso por carrinhos de bebés41. Os espaços para as crianças do pré-escolar deveriampromover o contacto com o mundo natural e a apresentação das formas simbólicas,constituindo, em síntese, uma amostra do mundo exterior. Neste contexto, o “JardimJaponês” era apresentado como o modelo ideal, não por constituir uma cópia danatureza, mas por resultar num “arranjo artístico” dos seus elementos. Na simplicidadeda sua conceção residia a expectativa de estimular múltiplas interpretações e ainspiração individual. A água, a vegetação e a vedação envolvente proporcionariamambientes de adequado sossego. A composição dos pavimentos com empedradosespecíficos para cada espaço permitiria associar-lhe um determinado simbolismo,aumentando assim a imaginação das crianças (CML, 1958d : v4.5/3).

49 Como referência ao “Jardim Japonês”, o Plano refere o trabalho do arquiteto paisagista

dinamarquês Carl Theodor Marius Sørensen (1893-1979)42 que, na conceção dos espaçosde recreio, procurava a imitação da praia, do campo e do bosque. Estes elementos,quando associados harmoniosamente com o monte, o rio, o lago e a ilha,proporcionariam ainda a localização e o enquadramento adequado aos elementosescultóricos (CML, 1958d : v4.5/3).

50 Espaços desordenados, disponíveis para a livre iniciativa e para o estímulo da

criatividade deveriam nortear a conceção dos espaços para as crianças em idade escolar(7 aos 12-14 anos). Restos de construções, de demolições parciais, ruínas, aldeias deíndios, ranchos de cowboys, trechos de selva intrincada, “Jardins Robinson”, assim comoterreiros, eram apontados como soluções enriquecedoras do espaço (CML, 1958d :v4.5/4-5). Face à natureza dos materiais e das soluções construtivas, estes espaçosdeveriam ser controlados de forma qualificada43.

51 Com vista a responder aos estímulos e às capacidades das diversas idades44, o Plano

propunha para cada espaço de recreio quatro secções : a superfície ou caixa de areia, aárea de equipamentos, a área para jogos de organização espontânea e uma quartasecção que promovesse a aventura45. Ou seja, o espaço deveria ser organizado eequipado em função das capacidades lúdicas e de apreensão das crianças46.

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52 A influência da arquitetura paisagista do norte da Europa foi sendo incorporada

continuamente em Portugal, não só pela formação de Caldeira Cabral na Alemanha,como anteriormente mencionado, mas pela sua participação regular nos congressos daInternational Federation of Landscape Architects (IFLA). Caldeira Cabral acompanhou aparticipação de Azevedo Coutinho no 3º Congresso em Estocolmo (1952) conjuntamentecom Edgar Fontes e Fernando Vaz Pinto (1921-2001). Aquando da realização do 5ºCongresso em Zurique (1956), em data próxima à conclusão do PDUL, Ribeiro Tellesacompanhou a participação de Viana Barreto (1924-2012) (Bettencourt da Câmara,2015 : 79-80).

53 No relatório da viagem a Estocolmo, Azevedo Coutinho salienta as temáticas

relacionadas com os parques infantis, a utilização da árvore nas urbanizações e aabolição do logradouro comum, organizando os registos fotográficos por temas(Bettencourt da Câmara, 2015 : 86). O relatório de Viana Barreto comporta igualmenteum capítulo sobre os parques infantis (Bettencourt da Câmara, 2015 : 90), podendo daíaferir-se existir uma particular atenção sobre a sua conceção e o desejo de importarpara Portugal o que de melhor se planeava e construía além-fronteiras.

54 Esta conceção, em que o contacto com os elementos naturais, mesmo que

simbolicamente, é estimulada, encontra-se ainda presente no relatório Arborização do

Sítio de Alvalade (CML, 1949 : 133), onde Azevedo Coutinho defende que deveriam serevitados os alinhamentos e a instalação de equipamentos para além do estritamentenecessário, deixando assim campo livre à imaginação e à criação de cenários debrincadeira. Este modo de conceber o parque infantil pelo autor após a conclusão docurso livre em arquitetura paisagista (1948) e antes de se iniciarem as viagens aoscongressos da IFLA pode ser interpretado como reflexo do cariz naturalista que regeu adoutrina de Francisco Caldeira Cabral.

4. Conceção dos logradouros do lado norte da Av.EUA, em fase de anteprojeto

4.1. Troço Av. Aeroporto - Av. Rio de JaneiroProposta de Manuel Laginha, Vasconcelos Esteves, Pedro Cid(1956)

55 Na sequência do projeto para os Blocos de Habitação do troço entre as avenidas do

Aeroporto e Rio de Janeiro de 195447, Manuel Laginha, Vasconcelos Esteves e Pedro Cidapresentam dois anos depois a proposta para os espaços livres públicos (CML, 1956a),colando os espaços sob e entre os blocos de habitação (Figura 5)48.

56 Aqui, tal como na proposta de Ruy D’ Athouguia e Formosinho Sanches para o Bairro

das Estacas (1949)49 a edificação sobre pilotis une os espaços entre e sob os edifícios,potenciando a sua fruição em continuidade. Manuel Lajinha ao tipificar os espaçosexteriores como «Jardins», assume o propósito de enobrecer o espaço de estadia e derecreio comoa proposta de criar um espaço nobre, de estadia e recreio, secundando asintenções de mero enquadramento dos blocos. Na memória descritiva refere-se aosespaços entre blocos como «intermédios», reforçando a conceção numa lógica de “umúnico tabuleiro ajardinado de utilização comum” (CML, 1956a: 1). Ao fazê-lo, afuncionalidade dos percursos (de acesso e de atravessamento), a articulação das

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diversas áreas (em regime de complementaridade) e as manchas de vegetação na suaproteção, agregam-se em torno de um objetivo comum, a criação de um jardimmultifuncional.

57 Embora no projeto de Ruy D’Athouguia e Formosinho Sanches para o Bairro das Estacas,

complementado posteriormente com o projeto de Ribeiro Telles (1953)50, estejasubjacente a conceção dos espaços sob e entre os blocos habitacionais como um só,estes são delimitados por passeios paralelos aos blocos que os individualizam. Nestaintervenção, a continuidade sob os blocos traduz-se essencialmente nas diversas opçõesde circulação em forma de malha e na perceção dos espaços verdes em continuidade, oque na realidade não ocorre. Na proposta de Manuel Laginha, os espaços sãoorganizados em torno de um percurso estruturante que percorre todo o jardim.Hierarquizado pela extensão e perfil transversal e com implantação sensivelmenteparalela e protegida face à avenida, este percurso assume-se como alternativa aopasseio ao mesmo tempo que assegura a conetividade entre as entradas dos edifícios eas áreas de lazer.

58 Ao explicitar de forma mais vincada a complementaridade de oferta entre os «espaços

intermédios», relativamente à proposta de Ruy D’Athouguia para o Bairro das Estacas,bem como os conceber no seu conjunto como um equipamento de recreio não só doconjunto habitacional mas da célula habitacional onde se insere, este projeto constituium marco importante no processo de abertura do logradouro à fruição pública, namedida em que recria novamente a aplicação do conceito de «unidade de vizinhança»tal como Faria da Costa o fez em torno do equipamento escolar.

59 Com o objetivo de reforçar a unidade entre os «espaços intermédios», bem como de

ligar os volumes edificados, Manuel Laginha propõe a arborização do percurso principalcom árvores de médio e grande porte, reforçando assim a sua perceção do percurso àdistância. Embora subjugada ao percurso, a plantação de árvores, tal como a dearbustos, deveria ocorrer de forma irregular no sentido de valorizar ou desvalorizardeterminados pontos dos espaços. Para o enquadramento dos espaços de encontro (oque se interpreta igualmente para proteção) propõe maciços de arbustos e herbáceasem contraste com as áreas de relvado (CML, 1956a : 2-3).

Figura 5. Blocos de habitação da Av. EUA (Troço Av. do Aeroporto – Av. Rio de Janeiro)

AML, ref, PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0097, p. 6.

Planta Esquemática dos Jardins. Manuel Lajinha, Vasconcelos Esteves, Pedro Cid (1956).

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 4.2 Os parques infantis no anteprojeto dos Ajardinados daAvenida dos Estados Unidos da AméricaProposta de Ribeiro Telles (1957)

60 O anteprojeto dos ajardinados51 da Av. EUA é elaborado por Ribeiro Telles em 1957 52,

abrangendo todo o lado norte da avenida e o troço entre a Praça Mouzinho deAlbuquerque e a Av. de Roma do lado sul. É concebido temporalmente desfasado dosestudos de ocupação do solo e dos projetos de arquitetura para os conjuntoshabitacionais desenvolvidos a partir de 1951 e 1953, respetivamente, como mencionado,mas coincidente com a fase de conclusão do PDUL-1958, resultante da revisão do PlanoDe Gröer concluído uma década antes.

61 Ribeiro Telles ao projetar os ajardinados conhece os resultados dos projetos dos

logradouros comuns projetados por Azevedo Coutinho para as Células 1 e 2 em 1950 emsituação de compromisso com algumas áreas privadas – logradouros privados (paraagricultura de complemento) (Neves et al, 2018), bem como dos ajardinados deconfiguração retangular dos conjuntos habitacionais da Av. Dom Rodrigo da Cunha e doBairro das Estacas projetados por si.

62 Nos ajardinados da Av. EUA, tal como no Bairro das Estacas, Ribeiro Telles beneficia da

implantação dos edifícios sobre pilotis, mas com um acréscimo de área e de maiorafastamento entre os blocos, permitindo-lhe explorar as orientações de AzevedoCoutinho para a conceção do «Jardim Paisagístico»53 de cariz mais naturalizado, maisinformal e com disfrute de vistas em profundidade (CML, 1949: 36)54.

63 Assim, em detrimento do desenho simétrico e formal, Ribeiro Telles opta por desenhar

espaços distintos para cada ajardinado (Figuras 6a a 6c) seguindo assim mais uma vez amatriz ecológica de Caldeira Cabral (Cabral, 1993: 29), sem, no entanto, colocar emcausa a sua integração no conjunto habitacional (CML, 1957: 1). Propõe para cadaconjunto habitacional do lado norte da avenida um parque infantil, geralmente noajardinado central55, e no troço entre as avenidas de Roma e Rio de Janeiro um «JardimRobinson»56, vocacionado para o grupo escolar (7 aos 12-14 anos), aumentando assim asvalências e a complementaridade entre os vários espaços, tal como direcionou noâmbito do PDUL-1958.

64 Por comparação com a proposta dos arquitetos Manuel Laginha, Vasconcelos Esteves e

Pedro Cid, interpreta-se que Ribeiro Telles segue a bitola da complementaridade entreos espaços, mas não assume de forma explícita a circulação (direta) entre estes deforma longitudinal e paralela à avenida. Enquanto na proposta dos arquitetos o acessoàs zonas de lazer ocorre a partir do percurso estruturantes, na proposta de RibeiroTelles o acesso às zonas de lazer ocorre a partir de percursos que contornam osajardinados, geralmente com implantação paralela aos blocos. Reforça estainterpretação o enclausuramento do espaço por maciços arbustivos e pela modelaçãodo terreno.

65 Como aspetos comuns ao desenho dos ajardinados dos troços a nascente da Av. Roma,

ocorre a localização das áreas de estadia geralmente em posição recuada e adjacenteaos percursos com acesso pelos arruamentos secundários. Interpreta-se destalocalização a intenção de obter sombras e a proteção dos ventos dominantes (emparticular durante a estação estival), assim como promover a inserção das áreas deestadia ou de recreio na lógica dos percursos pedonais, ou seja, afetando-as às rotinas

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diárias, com ganhos simultâneos no conforto da sua fruição e na segurança peloafastamento à circulação automóvel.

66 Na introdução dos elementos d’água, interpreta-se, quando em registo mais

naturalizado e sob a forma de riachos, a introdução de referências da paisagem naturale, eventualmente, do «Jardim Japonês». Num registo mais formal, recorre ao tanque,recriando um dos traços dos jardins tradicionais portugueses, onde este, a diversidadedas árvores e dos arbustos, as vistas e a azulejaria constituem os seus principais traçosde composição (Castel-Branco, 2010 : 7).

Figura 6a. Ajardinados da Avenida dos Estados Unidos da América

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/0248, p. 11.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem. Troço Av. Rio de Janeiro - R. FranciscoLourenço da Fonseca). Anteprojeto.Ribeiro Telles, Agosto de 1957 ; Desenho n.º 3, Esc. 1/500.

Figura 6b. Ajardinados da Avenida dos Estados Unidos da América

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/0248, p. 9.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.(Troço Av. Rio de Janeiro - Avenida de Roma). Anteprojeto. Ribeiro Telles, Agosto de 1957 ; Desenhon.º 2, Esc. 1/500.

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Figura 6c. Ajardinados da Av. EUA

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/0248, p. 7.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.(Troço Av. República – Av. Roma). Anteprojecto. Ribeiro Telles, Agosto de 1957. Desenho n.º 1, Esc.1/500.

67 Nesta fase de anteprojeto, Ribeiro Telles preconiza a utilização de vegetação

dominantemente climace57, dispondo as árvores em maciços no topo norte dosajardinados como meio de os proteger dos ventos dominantes e em pequenos grupos nointerior dos ajardinados, podendo neste caso pertencer a espécies exóticas, a pretextoda sua contemplação. Com esta opção visa criar alternância de sombra e luz noajardinado, propiciando ambiências diversificadas em resposta aos diversos grupos dapopulação. Contorna as zonas de clareira com maciços de herbáceas vivazes58 e dearbustos plantados segundo mixed-border59 propiciando a definição de um espaçopróprio, animado pelas cores das florações das diversas espécies da composição. (CML,1957a : 1-2).

68 Verificando-se a disposição da vegetação climace, preferencialmente, no contorno dos

ajardinados, afigura-se lícito interpretar a intenção de, paralelamente aoenquadramento e valorização dos edifícios (sem penalizar as entradas de luz), opropósito de promover a continuidade ecológica e contrabalançar o artificialismo domeio urbano, valores defendidos por Caldeira Cabral e Ribeiro Telles poucos anosdepois em A Árvore (Cabral, 1960 : 10).

69 De igual modo, o enriquecimento dos ajardinados com composições de árvores e

arbustos, dispostos de forma isolada ou no enquadramento de áreas de estar, depercursos e outros elementos construídos, pode ser interpretado como estratégico paraestabelecer planos verticais intermédios entre os blocos, proporcionando assimreferências espaciais à escala do peão e o esbatimento da perceção do número de pisosdos blocos. Magalhães (2001 : 119), referindo-se aos espaços verdes de grandesdimensões resultantes da edificação segundo a Carta de Atenas (em que o desenho foiminimizado e o símbolo removido da composição), atribui ênfase ao desaparecimentoda escala humana como causa da perda das referências formais ou funcionaisindispensáveis à sua fruição.

70 No quadro 1 a seguir apresentado sintetizam-se alguns aspetos da composição que

distinguem os «espaços intermédios» de Manuel Laginha e dos «ajardinados» de RibeiroTelles.

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Quadro 1. Elementos de composição e função propostos para os Logradouros do lado norte da Av.EUA – Fase de Anteprojeto

Av. Aeroporto – Av. Rio de Janeiro Av. Aeroporto – Av. Rio de Janeiro Av. Rio de Janeiro – Av. Roma

Praça

Mouzinho

de

Albuquerque

– Av. Roma

Autor(es) M. Laginha, V. Esteves e P. Cid (1956)Ribeiro Telles

(1957)

Ribeiro Telles

(1957)

Ribeiro

Telles

(1957)

Tipologia Espaços Intermédios Ajardinados Ajardinados Ajardinados

Correspondência

Fig.Figura 5 Figura 6a Figura 6b Figura 6c

P C1 C2 N P C1 C2 N P C N P C

Composição

Estar

Esplanada aE,c aE

Zona de Estar c c aE,c aE aE aE

Pérgula ●

Recreio

Clareira c c ●

Biblioteca c

Jardim/Parque

Infantil c c aE c

Jardim

“Robinson” c c

Área para Jogos c

Circulações

De contorno ● ● ● ● ● ● ● ● ●

De

atravessamento● ● ● ●

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De acesso a

zonas de estar/

recreio

● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Com traçado

retilíneo● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Com traçado

curvilíneo ● ● ●

Localização e Utilização da Vegetação

Relvado ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Arbustos (em maciço) pfa pfa pfa pfa ● ● pf pf ● pf pf pf pf

Árvores (pontuais) ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Elementos d´água

Tanque ● ● ● ●

Repuxo ●

Riacho ● ●

Funções Predominantes

Enquadramento ● ● ● ● ●

Estar ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Recreio Informal ● ● ● ● ● ● ● ●

Recreio Idade Pré-Escolar (3

aos 7 anos) ● ● ●

Recreio Idade Escolar

(7 aos 12/14 anos) ● ●

 Elaboração própria.

5. Conceção dos logradouros do lado norte da Av.EUA, em fase de projeto

5.1 Troço Av. Aeroporto - Av. Rio de JaneiroProposta de Ribeiro Telles (1958)

71 Ribeiro Telles, ao projetar no primeiro semestre de 1958 os ajardinados do lado norte

da Av. EUA entre as avenidas do Aeroporto e Rio de Janeiro, mantem-se fiel ao

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anteprojeto na opção de conceber espaços distintos para cada ajardinado e da suacomplementaridade. Fruto da escala de projeto explicita agora a circulação sob osblocos habitacionais e entre estes e o interior dos ajardinados com traçados geralmenteretilíneos.

72 Na organização dos espaços, o autor tira partido da faixa adjacente ao maior lado do

bloco habitacional poente60 expandindo-a para definição de áreas de estadia. A área demaior expressão ocorre no logradouro a nascente da Av. Rio de Janeiro, interpretando-se nesta localização, para além da preocupação em assegurar maior proteção do Sol edo vento, a procura por um ponto dominante, a partir do qual se obteriam vistas emprofundidade sobre os ajardinados, assim como sobre a avenida, cuja arborização eajardinamento elaborado em 1957, como se observará mais à frente neste artigo.

73 Com vista a favorecer a perceção de profundidade e a fomentar a circulação entre os

ajardinados, Ribeiro Telles, para além de criar clareiras ao centro, prolonga a vegetaçãoe os percursos entre os pilotis, como irá propor igualmente nos ajardinados dos outrosconjuntos habitacionais que projeta. Nos dois ajardinados mais a nascente, prevê acolocação de bancos junto ao passeio da avenida, o que se interpreta como intenção deorientar as vistas para o interior dos ajardinados, onde, em pano de fundo, adensa avegetação. Este adensamento da vegetação poderá ser interpretado como resposta àmenor privacidade dos pisos inferiores dos blocos que rematam os ajardinados a norte,que contrariamente aos grandes blocos habitacionais em posição transversal à avenidanão se implantam sobre pilotis (Figs. 7a e 7b).

74 Nesta fase de projeto, Ribeiro Telles simplifica o desenho e suprime a tipologia de

«Jardim Robinson». Em alternativa, localiza áreas de parque infantil no primeiro e noterceiro ajardinado (de nascente para poente), mantendo assim a estratégia de encurtaras distâncias a partir dos edifícios.

75 Contribuindo o conjunto habitacional de Manuel Laginha, Vasconcelos Esteves e Pedro

Cid para a leitura à época da avenida como o mostruário da mais recente produçãoarquitetónica de Lisboa (Tostões, 2002 : 47), este vai continuar a sê-lo pela incorporaçãoda proposta de Ribeiro Telles, na medida em que, apesar de diferente no desenho e emalguns dos pressupostos que o sustentam (em particular os ecológicos), afigura-sesimilar na conceção enquanto espaço público e de equipamento do bairro.

 Figura 7a. Av. EUA. Projeto dos Ajardinados

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU/10/258, p. 35_D1.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.Troço Av. do Aeroporto – Av. Rio de Janeiro. Ribeiro Telles, março de 1958. Folha n.º 1 – Plano Geral.Esc. 1/200.

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Figura 7b. Av. EUA. Projeto dos Ajardinados

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU/10/258, p. 36_D2.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.Troço Av. Aeroporto – Av. Rio de Janeiro. Ribeiro Telles, março de 1958. Folha n.º 2 – Plano Geral.Esc. 1/200.

5.2 Troço Praça Mouzinho de Albuquerque - Av. RomaProposta de Ribeiro Telles (1958)

76 Em finais de 1958, Ribeiro Telles projeta os ajardinados para o troço entre a Praça

Mouzinho de Albuquerque e a Av. Roma, propondo desenhos próprios para cadaajardinado, como aconteceu para o troço anteriormente referido, mantendo assim aregra que definiu no anteprojeto.

77 O principal aspeto diferenciador deste projeto face ao anterior decorre de, à data da sua

elaboração, não estarem previstos edifícios para os topos norte dos ajardinados, massim placas de estacionamento. Esta circunstância terá levado o autor a propor para osajardinados poente e central o revestimento dos taludes com maciços arbóreo-arbustivos entre as plataformas dos ajardinados (com maior proximidade à avenida) eas placas de estacionamento da RUA António Patrício. Com esta opção, Ribeiro Tellespara além de atenuar a perceção do desnível existente, promove significativamente apresença de vegetação no interior do conjunto habitacional, sem penalizar as áreas derecreio e a sua visibilidade de e a partir da avenida. Na disposição da vegetação,observa-se maior formalismo no ajardinado nascente, onde desenha canteiros decontorno retilíneo, aludindo à imagem dos canteiros de buxo dos jardins formaisportugueses (Figura 8).

78 Posteriormente à elaboração do projeto de Ribeiro Telles, o arquiteto Lucínio Cruz

projeta as garagens e as áreas comerciais (Costa, 2002 : 115) que irão ocupar as zonasmais a norte dos ajardinados, incluindo as zonas de talude, o que irá introduziralterações sobre a proposta inicial dos ajardinados, nomeadamente, na expressão davegetação entre os blocos.

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Figura 8. Av. EUA. Projeto dos Ajardinados

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU/10/258, p. 39.

CML \ DST-E \ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.Troço Praça Mouzinho de Albuquerque – Avenida de Roma. Ribeiro Telles, novembro de 1958. PlanoGeral. Esc. 1/200.

5.3 Troço Av. Roma – Av. Rio de JaneiroProposta de Manuel Sousa da Câmara (1959-60)

79 O projeto dos ajardinados da Av. EUA para o troço entre as avenidas de Roma e Rio de

Janeiro foi elaborado por Sousa da Câmara (1929-1992)61 em 1959-60 após os projetos deRibeiro Telles anteriormente mencionados e para a faixa verde central da Avenida.

80 Na elaboração deste projeto, o autor colhe a experiência de Ribeiro Telles, em

particular, do projeto para o troço a nascente, face à localização e à similitude dosvolumes edificados em presença. Sousa da Câmara recua as áreas de estadiarelativamente à avenida, implantando-as preferencialmente do lado nascente doajardinado (em posição protegida pelo bloco a norte), obtendo igualmente maiorproteção às horas de maior insolação. O recuo de todas as áreas de estadia constitui umaspeto diferenciador da proposta de Ribeiro Telles. Interpreta-se como razão para estaopção a análise cuidada das condições de conforto bioclimático entre os blocos, comoapresenta no anteprojeto do ajardinamento dos logradouros do conjunto habitacionaldo Montepio Geral na Av. do Brasil em 1963 (Neves et al., 2019). Os efeitos do aumentodo trânsito na avenida, particularmente sentidos neste troço face à pendente e aosentido ascendente, ocorre como uma segunda razão.

81 Como aspetos em comum com os projetos de Ribeiro Telles, salienta-se a faixa

adjacente ao lado nascente dos blocos perpendiculares à avenida, na continuidade dospisos térreos (que neste troço, contrariamente aos restantes, não se encontracompletamente vazado) para acesso de viatura de emergência, assim como a localizaçãodo parque infantil no ajardinado central, aspetos que deveriam ser atendidos emresposta ao programa para os conjuntos habitacionais (CML, 1959 : 2).

82 Em relação aos percursos, ambas as propostas apresentam ligações entre os blocos

habitacionais segundo traçados retilíneos e as áreas mais abertas dos ajardinados, bemcomo percursos menos diretos de acesso a zonas de estadia informais em plano recuadodo ajardinado, pontuadas com bancos de jardim. Da multiplicidade de acessos aoparque infantil, que ocorre em ambas as propostas, interpreta-se as intenções degarantir a equidistância a partir dos blocos, bem como a perceção do ajardinadoenquanto equipamento da célula e não apenas do conjunto habitacional. Para o efeito,

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integra nos ajardinados percursos responsáveis pela continuidade da rede de percursospedonais prevista por Faria da Costa na aplicação do conceito de «unidade devizinhança» em torno do equipamento escolar.

83 A observação da disposição dos bancos de jardim (Figura 9) permite observar outro

aspeto que distingue os dois projetos. Enquanto Ribeiro Telles dispõe os bancos dejardim segundo linhas, orientando a observação para o lado oposto do ajardinado,Sousa da Câmara dispõe os bancos em redor das áreas de estadia, independentementedo seu maior ou menor formalismo.

84 O adensamento da vegetação junto aos blocos que rematam a norte os ajardinados e a

libertação do interior para opções de recreio informal são aspetos comuns às duaspropostas, embora na proposta de Sousa da Câmara o desenho determine áreascontínuas com maior expressão.

Figura 9. Av. EUA. Projeto dos Ajardinados

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU/10/258, p. 22_D1.

CML \ DST-E \ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem. Troço Av. Roma – Av. Rio de Janeiro.Sousa da Câmara, 1959. Desenho n.º 5 - Pavimentos. Esc. 1/200.

85  À semelhança da análise efetuada no Quadro 1, no Quadro 2 a seguir apresentado

sintetizam-se sensivelmente os mesmos itens observados, agora em fase de projeto eentre as propostas de Ribeiro Telles e Sousa da Câmara.

Quadro 2. Elementos de composição e função propostos para os Logradouros do lado norte da Av.EUA – Fase de Projeto

Av. Aeroporto – Av.

Rio de Janeiro

Av. Rio de Janeiro

– Av. Roma

Praça Mouzinho de

Albuquerque – Av. Roma

Autor(es)Ribeiro Telles

(1958)

Sousa da Câmara

(1962)

Ribeiro Telles

(1958)

Correspondência Figura 6a Figura 6b Figura 6c

Ajardinados P C1 C2 N P C N P C N

Composição

Estar

Cidades, 40 | 2020

224

Esplanada aE

Bancos c c ● ● c c c

Bancos

Espaços Informaisc c

Zona de EstaraE

aAc aA c c c

Recreio

Jardim/Parque Infantil c ● c

Jardim “Robinson” c

Área de Jogos ●

Circulações

De contorno ● ● ● ● ● ● ●

De atravessamento ● ● ● ● ●

De acesso a zonas de

estadia/recreio● ● ● ● ● ● ● ●

Com traçado retilíneo ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Com traçado curvilíneo ●

Vegetação

Relvado c c c ● ● ● ● ●

Arbustos (em canteiro) ●

Arbustos (em maciço) pf pf pf pf pf pf pf ● ●

Arbustos (em talude) ● ●

Árvores (pontuais) ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Elementos d´água

Tanque ● ●

Funções Predominantes

Enquadramento ● ● ● ● ● ● ● ●

Estar ● ● ● ● ● ●

Cidades, 40 | 2020

225

Recreio Informal ● ● ● ● ● ● ●

Recreio Idade Pré-Escolar

(3 aos anos) ● ● ●

Recreio Idade Escolar

(7 aos 12/14 anos)

elaboração própria. 

6. Arranjo verde da faixa central e dos cruzamentos

Proposta de Ribeiro Telles (1958)

86 A definição do cruzamento das avenidas dos EUA e de Roma teve na proposta dos

arquitetos Filipe Figueiredo (1913-1990) e Jorge Segurado (1951-52)62 um dos grandescontributos, sendo desde logo incorporada na Planta de Divisão de Lotes dos TerrenosSituados na Av. EUA e no Cruzamento com a Av. Roma de 1951 (Figura 2). Contrariandoa edificação em contínuo no contorno da praça63, a proposta edifica quatro grandesblocos de treze pisos com implantação perpendicular entre si e rodada relativamenteao cruzamento das duas avenidas, constituindo um conjunto de “vibrante expressãoformal desenvolvida com um rigoroso profissionalismo” (Tostões, 1994 : 64) querapidamente se tornou o “coração simbólico” da zona (Fernandes, 1999 : 28).

87 Em 1955 a RAJ, pela mão de Ribeiro Telles, desenvolve o projeto de arborização para a

Av. Roma que inclui o cruzamento com a Av. EUA (Figura 10) através de um rotunda decontorno ovoide enquadrada por quatro ilhéus direcionais com acesso pelos vérticesdas avenidas.

Figura 10. Projeto de Arborização e Ajardinamento da Av. Roma, 1955

AML. Ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0596, p. 17.

CML \ DST-E \ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.Desenho n.º 1 - Plano Geral, Esc. 1/1.000, Ribeiro Telles, 1955.

88 Ribeiro Telles prevê para o cruzamento das avenidas, em detrimento do recurso à

caldeira, a plantação das árvores sobre a rotunda e os ilheis direcionais por considerarreunir vantagens de ordem vegetativa. Na composição dos ilhéus direcionais propõe aplantação de maciços arbustivos do lado interior, protegendo do tráfego os passeiospropícios à instalação de esplanadas, e expondo as áreas de relvado para o centro docruzamento, aumentando assim as condições de visibilidade e de segurança em tornoda rotunda e com ganho na leitura urbanística e arquitetónica dos blocos habitacionais.

89 Ribeiro Telles projeta a arborização da Av. EUA64 (Figura 11) em maio de 1958, ou seja,

entre os projetos dos ajardinados dos dois troços atrás mencionados, o que permiteinterpretar ter perspetivado o papel que a arborização da faixa central e dos passeios

Cidades, 40 | 2020

226

laterais poderia desempenhar na implementação de um corredor verde segundo oconceito de continuum naturale pela coesão dos ajardinados por ele projetados.

 Figura 11. Av. EUA. Arranjo Verde da Faixa Central e dos Cruzamentos, 1958

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU/10/258, p. 34_D.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e JardinagemNota : Esc. 1/1.000, Ribeiro Telles, maio de 1958.

90 Neste projeto, o autor propõe para os passeios laterais da avenida espécies de grande

porte e com copa de desenvolvimento colunar, como Ginkos (Ginkgo biloba), Grevíleas(Grevillea robusta), Choupos-brancos (Populus alba) e Freixos (Fraxinus angustifolia), com oobjetivo de esbater a perceção da altura dos blocos habitacionais. No separador centralda avenida, introduz para além das espécies referidas, outras igualmente de portecolunar como a Casuaria (Casuarina tenuissima), o Choupo-negro (Populus nigra) e oUlmeiro (Ulmus procera) e algumas espécies de copa arredondada, mas de grande porte,como o Plátano (Platanus orientalis) e o Lodão-bastardo (Celtis autralis) aumentandoassim significativamente a perceção da mancha de vegetação ao longo do corredor. Ainexistência de um compasso de plantação regular, associado a uma alternância deespécies não ritmada, mas característica na região, permite interpretar a intenção decriar uma mancha de cariz naturalizado.

91 Em 1959 Ribeiro Telles tem a possibilidade de reforçar a mancha de vegetação ao longo

da avenida, ao projetar os ajardinados para o lado sul no troço entre as ruas Frei Toméde Jesus e Diogo Bernardes65, provavelmente dos últimos projetos que desenvolve parao Bairro enquanto técnico da RAJ.

92 O somatório dos projetos elaborados por Ribeiro Telles na Av. EUA mencionados neste

artigo constitui o exemplo da aplicação do conceito de continuum naturale introduzidopor Caldeira Cabral no ensino da arquitetura paisagista em Portugal, mais tardeformalizado no Plano Verde de Lisboa (Telles, 1997).

 Notas conclusivas

93 Os ajardinados do lado norte da Av. EUA de perímetro quadrangular constituem uma

herança tipológica do processo de abertura do logradouro no Bairro de Alvalade, cominício nos «Logradouros Comuns» das Células Habitacionais 1 e 2 (1946) e comsequência nos ajardinados de perímetro retangular dos conjuntos habitacionais da Av.Dom Rodrigo da Cunha e do Bairro das Estacas (1949).

94 Neste processo, e no domínio da arquitetura, o contributo das propostas de Manuel

Laginha, Vasconcelos Esteves e Pedro Cid para o conjunto habitacional do troço entre asavenidas do Aeroporto e Rio de Janeiro (1954) e para o jardim (1956), constituíram umpasso determinante, por darem sequência à edificação sobre pilotis de Ruy D’Athouguiae Formosinho Sanches no Bairro das Estacas (1949) e por introduzirem, de formaexplícita, a circulação e a fruição numa lógica de plataforma única plurifuncional.

Cidades, 40 | 2020

227

95 Em paralelo, o acompanhamento deste processo pela primeira geração de arquitetos

paisagistas sob a alçada do Professor Caldeira Cabral, de forma mais efetiva aquando dasua integração no Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU) (1956-1959), permitiuintroduzir na conceção dos espaços ajardinados e arborizados do Bairro os cânones dasua doutrina, a arte, a interdisciplinaridade técnica e artística (em particular com aarquitetura) e a ecologia.

96 Para o desenho de Ribeiro Telles terá contribuído a experimentação de soluções de

desenho e de composição de espécies nos projetos para a Av. Dom Rodrigo da Cunha epara o Bairro das Estacas (1953) e a sua integração no GEU, constituindo este ummomento estimulante da relação interdisciplinar entre arquitetos e arquitetospaisagistas, até então condicionada pelo desfasamento temporal entre os projetos dearquitetura desenvolvidos e acompanhados pela DSUO e os projetos de arborização eajardinamento elaboradas na DST-E.

97 No contexto dos anteprojetos dos Planos de Urbanização elaborados no GEU, Ribeiro

Telles observa a função dos ajardinados enquanto equipamento dos conjuntoshabitacionais, incorporando nos ajardinados da Av. EUA os parques infantis comaspetos inovadores à época (contemplados no PDUL-1958) e que antecipam em quasequatro décadas muitos dos aspetos do decreto-lei nº 379/97 de 27 de setembro, oprimeiro diploma legal sobre Espaços de Jogo e Recreio publicado em Portugal.

98 A elaboração, praticamente em simultâneo, dos projetos para os ajardinados

(1957-1959), e para a faixa central e para os cruzamentos (1958), permitiu a RibeiroTelles conceber o ajardinamento e a arborização da avenida como um projeto único,seguindo uma lógica de incorporação de vegetação subjacente à aplicação do conceitode continuum naturale, adaptada às circunstâncias, às condicionantes e aos desafioscolocados pelos projetos de arquitetura e dos arruamentos.

99 A análise sistemática dos projetos dos ajardinados de Ribeiro Telles para a Av. EUA

entre os que elaborou para o Bairro colocam-nos num segundo momento autoral doautor, quando comparados com os projetos para o interior das células habitacionais. Orecurso a formas regulares na pavimentação e a composição da vegetação em posiçõesrelativamente simétricas que se verificam, por exemplo, nas Células Habitacionais 6 e 7,dão lugar a formas menos regulares, por vezes de contorno orgânico, em que adisposição da vegetação associada à modelação do terreno relembram a paisagemnatural.

100 Ao situarmos a conceção dos ajardinados da Av. dos EUA entre os Planos Diretores de

Urbanização de Lisboa (1948 -1958), reconhecem-se contributos decisivos de ambos, dosestudos que lhe deram suporte, assim como das fases de planeamento intermédias deajuste e de incorporação do conhecimento arquitetónico, reflexo dos novos modos devida em sociedade e das perspetivas atualizadas de crescimento da cidade. Assim, nagénese do processo de abertura do logradouro, identifica-se como decisiva a análise dacidade que informou o Plano De Gröer (que serviu igualmente de base ao Plano de

Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro). Para a conceção final dosajardinados, em particular, no que concerne à conceção dos parques infantis, terãocontribuído os estudos do PDUL-1958.

Arquivo Municipal de Lisboa | núcleo Arco do Cego

Arquivo do Ministério de Economia

Cidades, 40 | 2020

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NOTAS

1. População de Lisboa: 1911 – 435.359 hab.; 1920 – 489.667 hab. (República Portuguesa, 1921: 7);

1930 – 594.390 hab. (República Portuguesa, 1933: 122).

2. Planta da Cidade de Lisbôa. Planta N.º 5 – Localisação das Habitações Clandestinas, 1953, (CML, 1938).

3. Estabelecia “um regime de renda fixa e um subsídio de renda para o senhorio, variável,

destinado a compensá-lo das perdas resultantes do facto de ter que praticar uma renda inferior à

justa remuneração dos capitais investidos” (IRHU, 2015: 3).

4. Confirmada no recenseamento de 1940 a existência de 694.389 hab. (República Portuguesa,

1945).

5. Para além deste período Duarte Pacheco ocupou a pasta de Ministro das Obras Públicas e

Comunicações entre 1932 e 1936.

Cidades, 40 | 2020

232

6. Alvito (1937), Quinta do Jacinto (1937), Alvalade (1938), Belém (1939), Caramão da Ajuda (1938),

Quinta das Furnas (1938), Quinta da Calçada (1939), Alto da Serafina (1940), Encarnação (1940),

Madre Deus (1942), Campolide (1943), entre outros (Costa, 2002: 17). Plano de Urbanização da

Encosta da Ajuda – 1ª Fase, 1938 (Bento d’ Almeida, 2013: 27)

7. CML. DSUO. GEU. Plano Diretor, Distribuição na Cidade segundo a Previsão do Arquitecto E. De Gröer

feita em 1948, Março de 1954, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/411, p.1.

8. De Gröer definida “Zonamento” como a divisão da área abrangida por um plano de urbanismo

por zonas de diferente regulamentação, em que esta determinava a afetação dos terrenos de uma

zona a uma mesma atividade (indústria, comércio, habitação, etc.) e a taxa da sua utilização

(CML, 1948c: 7)

9. Apesar de concluído por De Gröer em 1948, nunca chegou a ser aprovado pelo Governo (Silva,

1986: 379).

10. Primeira Circular (mais interior) entre a Av. 24 de Julho 1833 e Stª. Apolónia, integrando a Av.

Infante Santo, o L. do Rato, as ruas Alexandre Herculano, Joaquim Bonifácio e Jacinta Marto,

Forno do Tijolo e Rua dos Sapadores; Segunda Circular entre Alcântara e Xabregas, integrando a

Av. Calouste Gulbenkian, Av. Berna, Av. João XXI, com passagem na Rotunda do Areeiro e entre o

Alto de São João e o Bairro Madre de Deus; Terceira Circular entre a Praça General Humberto

Delgado (Praça de Sete Rios até 1979) e o Poço do Bispo, integrando a Av. 28 de Maio (Av. das

Forças Armadas após 1974) e a Av. EUA até à Av. Aeroporto (Almirante Gago Coutinho após 1960),

com ligação ao Beato e ao Poço do Bispo com traçado a poente de Marvila e a nascente do Bairro

Madre de Deus. Quarta Circular entre Pina Manique e o Cabo Ruivo, integrando a Av. Marechal

Carmona (Av. General Norton de Matos após 1974) entre a Estrada de Benfica a o Campo 28 de

Maio (atual Campo Grande), a Av. Marechal Craveiro Lopes entre o Campo 28 de Maio e a Praça do

Aeroporto (vulgo Rotunda do Aeroporto) e a Av. de Cabo Ruivo (Av. Marechal Gomes da Costa

após 1966) entre a Praça do Aeroporto e o Cabo Ruivo; Quinta Circular entre Pina Manique e

Moscavide, com passagem por Benfica, Pontinha, Paço do Lumiar, Lumiar e a norte do aeroporto

por Ameixoeira e Charneca, infletindo posteriormente para Moscavide com passagem a nascente

do Bairro da Encarnação. Eixo da Av. da Liberdade – Av. António Augusto de Aguiar e seu

prolongamento com saída de Lisboa pelo Lumiar através da Praça Mouzinho de Albuquerque

(atual Praça de Entrecampos). Eixo do prolongamento da Av. Almirante Reis com saída da cidade

pela Encarnação, através do seu limite Nascente (Câmara, 1948d). Consultar em Evolução do

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Gröer) – 1948, disponível em https://www.lisboa.pt/cidade/urbanismo/planeamento-urbano/

evolucao

11. Planta da Cidade de Lisbôa. Planta N.º 5 – Localisação das Principais Fábricas e Oficinas, 1953, que

acompanha o relatório “Elementos para o Estudo do Plano de Urbanização da Cidade” (CML,

1938), ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/12/01/15, p.1.

12. Delimitado pela Av. República e as ruas Oriental e Ocidental do Campo 28 de Maio a Poente, a

Av. Alferes Malheiro a Norte (Av. do Brasil após 1948) a Norte, a artéria de prolongamento da Av.

Almirante Reis (atualmente Av. Almirante Gago Coutinho) a Poente e pelo Caminho-de-Ferro a

Sul. Atravessado pelas avenidas dos EUA, da Igreja, Rio de Janeiro e de Roma.

13. Conceito definido pelo arquiteto urbanista Clarence Perry (1872-1944) que pretendia recriar

em unidades territoriais as relações de proximidade perdidas na Cidade Moderna, pela criação de

áreas residenciais em torno das escolas e dos equipamentos cívicos.

14. Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro - Esquema da Distribuição dos

Diferentes Tipos de Edifícios (Esc. 1/2.500). AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0545,p.2, com

sobreposição da numeração das células habitacionais.

15. Em contraponto à habitação de renda limitada, regulada pelo Decreto-Lei Nº 36:212 de 7 de

Abril de 1947, que se distingue dos restantes regimes pelo facto do valor não poder exceder

determinadas quantias.

Cidades, 40 | 2020

233

16. Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro - Esquema de Utilização do Solo (Esc.

1/2500). AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0837, p.2.

17. Pontos 1 a 5 no nº 20 de fevereiro de 1948; pontos 6 a 8 no nº 21 de março de 1948; pontos 9 a

16 no nº 22 de abril de 1948; pontos 17 a 27 no nº 23/24 de maio/junho de 1948; pontos 29 a 33 no

nº 25 de julho de 1948; pontos 34 a 41 no nº 26 de agosto/setembro de 1948; pontos 42 a 51 no nº

27 de outubro/dezembro de 1948; pontos 52 a 62 no nº 28 de janeiro de 1949; pontos 63 a 71 no nº

29 de fevereiro/março de 1949; pontos 72 a 81 no nº 30 de abril/maio de 1949; pontos 82 a 91 no nº

31 de junho/julho de 1949.

18. CML \ DST-E \ 3ª Repartição. Ajardinado da Avenida D. Rodrigo da Cunha, 1953; Projecto de

Ajardinamento da Zona Comercial na Célula 8 (Alvalade), 1953. AML.

19. Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro - Esquema da Distribuição dos

Diferentes Tipos de Edifícios (Esc. 1/2500). AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0545,p.3.

20. Os espaços resultantes da abertura do logradouro continuam a ser referenciados na

tramitação dos processos na CML como «logradouros». Costa refere-se a estes espaços como

«logradouros» no contexto da Av. D. Rodrigo da Cunha, como «Espaços de Logradouro Públicos»

no contexto do Bairro das Estacas (Costa, 2002: 98) e como “Logradouros Públicos Ajardinados”

no contexto dos conjuntos habitacionais do Lado Norte da Avenida dos EUA (Costa, 2002; 110). No

âmbito deste artigo, utiliza-se a designação dominante nas respetivas peças de projeto.

21. Imagem do conjunto habitacional entre as avenidas do Aeroporto e Rio de Janeiro, 1960. AML

| Núcleo Fotográfico, ref. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ARM/I00441.

22. Seguindo a implantação prevista na Planta de Divisão de Lotes, 1951 (Fig. 2).

23. Observar em continuidade o desenho n.º 7387/10.11 e 12N/E, Esc. 1/500. AML, ref. PT/

AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0248, p.13A.

24. Observar em continuidade o desenho n.º 8637-10,11 e 12N/E, Esc. 1/500. AML, ref. PT/AMLSB/

CMLSB/UROB/EV/0244, p.10A.

25. CML \ DST-E \ 3ª Repartição. Avenida Infante Santo. Projecto de Espaços Verdes, 1957; Avenida

Infante Santo. Projecto dos Ajardinados entre os Blocos (Lado Nascente), 1958. AML.

26. CML \ DST-E \ 3ª Repartição. Avenida Infante Santo. Jardim Poente, 1960; Jardim Poente da Avenida

Infante Santo (Alteração), 1960. AML.

27. CML. DST-E. 3ª Repartição. Projecto de Arborização do Triângulo compreendido entre o Bairro de

Alvalade, a Avenida do Brazil e a Avenida do Aeroporto, 1950-51. AML.

28. CML. DST-E. 3ª Repartição. Construção de Ajardinados nas Placas Centrais da Avenida do Aeroporto,

1951; Projecto de Remodelação da Placa da Rotunda do Aeroporto, 1953. AML.

29. CML. DST-E. 3ª Repartição. Projeto dos Caminhos de Peões da Avenida do Brasil (Troço entre a Praça

do Aeroporto e a Estrada da Portela), 1959. AML.

30. CML. DST-E. 3ª Repartição. Projecto de Ajardinado, para a Praceta da Rua 50 da Célula 7 do Sítio de

Alvalade (Praça Francisco de Morais), 1951-52; Projecto de um Ajardinado para a Praça da Rua n.º 50A do

Bairro de Alvalade (Praça Gonçalo Trancoso), 1952; Projecto de um Ajardinado para a Praça da Rua n.º 48

do Bairro de Alvalade (Praça Andrade Caminha), 1952; Projecto de Revestimento dos Canteiros das Ruas da

Célula VII (Alvalade), 1954. AML.

31. CML. Alvalade. Jardins Públicos. Projeto do Jardim junto ao Centro Escolar da Célula n.º 2, Manuel

de Azevedo Coutinho, 1950-51. Ribeiro Telles participa na elaboração da Estimativa Orçamental e

do Caderno de Encargos.

32. CML. DST-E. 3ª Repartição. Projecto de Enquadramento da Igreja de São João de Brito, 1956-58.

33. Belém (Projecto de Construção, do Jardim da Praça de Damão (1951); Projecto de Construção do,

Jardim da Praça de Gôa (1951); Projecto de Arborização e Ajardinamento da Praça de Santo Eugénio (Bairro

da Encarnação) (1952); Projecto do Jardim da Praceta V da Rua D. Francisco de Almeida (1952)); Benfica

(Projecto dos Espaços Verdes Públicos do Bairro de Sta. Cruz (1958)), entre outros.

34. Freguesia dos Prazeres (Projecto de Arranjo duma Placa do Jardim 9 de Abril (1950)); Freguesia de

São João de Deus (Projecto de Construção do Jardim, Junto ao Liceu D. Filipa de Lencastre (1951));

Cidades, 40 | 2020

234

Freguesia da Encarnação (Projecto de Remodelação do Jardim de S. Pedro de Alcântara (1954));

Freguesias de Coração de Jesus e de São José (Remodelação da Av. Liberdade (1955-58), em coautoria

com Francisco Caldeira Cabral), Freguesia do Castelo (Projecto de Arranjo do Fosso do Castelo de S.

Jorge (1951)), entre outros. Localizações segundo CML. DSUO. 2ª Repartição. Freguesias de Lisboa, Esc.

1/25.000, 194-; ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/394, p.1.

35. O Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU) foi chefiado pelos engenheiros-chefes Guimarães

Lobato entre Janeiro de 1954 e Abril de 1958 e Sousa Eiró entre Abril a Outubro deste mesmo ano

(Câmara, 1958d: 1/1).

36. Edgar Sampaio Ferreira Fontes entrou para a RAJ em 1953, sucedendo a Manuel de Sousa

Coutinho e Ribeiro Telles em 1950 (Bettencourt da Câmara, 2015: 69).

37. Manuel Pereira da Nóbrega de Sousa da Câmara (1929-1992) entrou para a RAJ em 1957,

sucedendo a Edgar Fontes (Bettencourt da Câmara, 2015: 69).

38. CML\DST-E\ 3ª Repartição. Zona da Mata de Alvalade. Sugestão para o Arranjo Paisagístico do

Areeiro do Narigão, 1966. AML

39. Em Arranjo do Campo Grande. Estudo-Base, elaborado pelo arquiteto Pedro Falcão e Cunha,

colaboraram os arquitetos paisagistas Ribeiro Telles e o Professor Caldeira Cabral (CML, 1956b);

Em Urbanização Praça de Espanha, da Artéria em Prolongamento da Avenida António Augusto de Aguiar,

da Palhavã e de Sete Rios. Estudo-Base, elaborado pelos arquitetos Pedro Falcão e Cunha e José

Vitorino da Costa Bastos, colaborou o arquiteto paisagista Ribeiro Telles (CML, 1957b); Em

Urbanização do Vale Escuro. Estudo-Base, elaborado pelos arquitetos Bartolomeu Costa Cabral e

Sommer Ribeiro, colaboraram os arquitetos paisagistas Ribeiro Telles e o Professor Caldeira

Cabral (CML, 1957c); Em Urbanização de S. Mamede, Mercês, Bairro Alto e Santa Catarina. Estudo-base,

elaborado pelos arquitetos Frederico Carvalhosa e Oliveira e Fernando Ressano Garcia,

colaboraram os arquitetos paisagistas Álvaro Dentinho (1924-2014) e o Professor Caldeira Cabral

(CML, 1957d).

40. Alterado pelo DL 119/2009, de 19 de Maio e posteriormente substituído pelo DL 203/2015, de

17 de Setembro (com entrada em vigor em 15 de Janeiro de 2016).

41. Previsto no DL 379/97, de 17 de Dezembro, nos artigos 6º - Acessibilidade, 10º - Condições de

proximidade e visibilidade e 11º - Principios Gerais.

42. Considerado um dos maiores arquitetos paisagistas do século XX. Conhecido por ser o autor

do primeiro parque de aventura (em coautoria com Hans Dragehjelm) em Emdrup, Copenhagem

(Anderson, 2001).

43. A preocupação com a visibilidade do espaço a partir da envolvente foi prevista no DL 379/97,

de 17 de Dezembro, Secção I – Localização e implantação, artigo 10º - Condições de proximidade e

visibilidade.

44. Interpreta-se referir-se aos grupos pré-escolar (dos 3 aos 7 anos) e escolar (dos 7 aos 12-14

anos).

45. Como exemplo da aplicabilidade deste modelo o Plano refere o caso de Gotemburgo

(Gottemburg), onde se aplicou a proporção de 1:2,5; 2,5; 6 para a caixa de areia, área de

brinquedos, área para jogos de organização e terreiro, respetivamente (CML, 1958d: v4.5/6).

46. Previsto pelo DL 379/97 de 17 de Dezembro, Secção II – Concepção e Organização Funcional,

artigo 11º - Principios Gerais, alínea a) do n.º 2.

47. CML. Arranjo de Conjunto e Blocos de Habitação para o terreno situado na Avenida dos Estados Unidos

da América (Troço Av. do Rio de Janeiro – Av. do Aeroporto) – Anteprojeto, 1956 (Costa: 2002: 108-110).

48. Embora as peças de projeto informem como limites da intervenção as avenidas do Aeroporto

e Rio de Janeiro, o espaço projetado estende-se para Nascente até à R. Francisco Lourenço da

Fonseca.

49. CML. Sítio de Alvalade. Célula 8. Zona Comercial. Arranjo do Terreno, 1949.

50. CML\DST-E\ 3ª Repartição. Projecto de Ajardinamento da Zona Comercial da Célula 8 (Alvalade),

1953.

Cidades, 40 | 2020

235

51. No âmbito dos projetos elaborados pela 3ª Repartição - Arborização e Jardinagem da DST-E os

espaços livres entre os blocos habitacionais irão ser designados nas peças desenhadas por

“Ajardinados”, ocorrendo por vezes a designação de «logradouro» nas peças escritas. A

designação de «logradouro» é retomada nas peças desenhadas no Anteprojeto dos Ajardinados dos

Logradouros da Avenida do Brasil, elaborado por Sousa da Câmara entre 1963-64.

52. Ano em que Ribeiro Telles elabora o projeto do Parque Infantil do Campo Grande, em sequência

do anteprojeto elaborado por Azevedo Coutinho em 1954. AML.

53. Azevedo Coutinho ressalva em nota de rodapé que os jardins formais são igualmente

paisagísticos.

54. Relatório A Arborização do Sítio de Alvalade elaborado por Azevedo Coutinho enquanto

profissional liberal, datado de 30 de Novembro e submetido à Câmara Municipal em 2 de

Dezembro de 1949 em resposta à solicitação da DSUO.

55. Interpreta-se o objetivo de diminuir a distância a partir dos blocos, numa lógica semelhante à

aplicação do conceito de «Unidade de Vizinhança» que colocou a Grupo Escolar no centro da

célula habitacional.

56. Interpreta-se na designação de «Jardim Robinson» a intenção de criar um espaço de fantasia

alusivo ao romance Robinson Crusoé de Daniel Defoe, publicado em 1719. Na recreação das

aventuras de Robinson Crusoé, Ribeiro Telles prevê a instalação de barcos, de equipamentos para

trepar, elementos de água (o mar e os cursos de água), áreas de clareira (a praia) e maciços

arbóreo-arbustivos (a orla da floresta).

57. Vegetação característica da região, adaptada aos fatores climáticos (fotoperíodo,

temperatura, pluviosidade e humidade do ar), aos fatores fisiográficos (geomorfologia, exposição)

e aos fatores edáficos (tipo e características físicas do solo).

58. Herbáceas com ciclo de vida superior a um ano.

59. Termo utilizado em floricultura e na prática da arquitetura paisagista em que na composição

de maciços herbáceo-arbustivos se conjugam espécies com a finalidade e obter cor ao longo ano

pela floração e folhagem das diferentes espécies.

60. Definida no programa base como obrigatório para assegurar o acesso às entradas do bloco por

viaturas de emergência (Câmara, 1959: 2).

61. Manuel Pereira da Nóbrega de Sousa da Câmara entrou para a 3ª Repartição – Arborização e

Jardinagem em 1957 (Bettencourt da Câmara, 2015: 69).

62. Cruzamento das Avenidas de Roma e dos E.U.A. Jorge Segurado e Filipe Figueiredo, 1951. AML,

ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU-10-2013, p.1 e seguintes.

63. Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro - Esquema da Distribuição dos

Diferentes Tipos de Edifícios (Esc. 1/2500). AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0545,p.3.

64. Concretização do projeto em imagem da década de 1960. AML | núcleo fotográfico, ref. PT/

AMLSB/ART/000141.

65. CML. DST-E. 3.ª Repartição. Avenida dos Estados Unidos da América. Troço Rua Frei Tomé de Jesus –

Rua Diogo Bernardes. Lado Sul, 1959. AML.

RESUMOS

Com suporte na investigação da génese e das características da Estrutura Verde do Bairro de

Alvalade, e com incidência na documentação dos arquivos municipais de Lisboa, o artigo observa,

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236

no contexto do planeamento e do projeto, os traços conceptuais que, na definição do espaço

urbano da Avenida dos Estados Unidos da América, propiciaram a implementação de um

Corredor Verde no Bairro de Alvalade e na Cidade.

Partindo do enquadramento da avenida no Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes

Malheiro (aprovado em 1945) e do Plano Geral de Urbanização e Expansão de Lisboa (elaborado por

Étienne De Gröer entre 1938 e 1948), o artigo revisita o crescimento da cidade e as propostas de

implantação ao longo da avenida (1951, 1956 e 1959). Em paralelo, elenca os projetos dos

conjuntos habitacionais do Bairro influenciados pela publicação em Portugal da Carta de Atenas

(1948) e pelo surgimento do Movimento Moderno que, no seu conjunto, propiciaram a abertura

do logradouro e a redefinição do espaço urbano da avenida.

Num segundo momento, o artigo aborda a conceção do espaço urbano da avenida nos finais da

década de 1950 na sequência do ensino da arquitectura paisagista em Portugal a partir de 1942

por Francisco Caldeira Cabral e da sua prática na Câmara Municipal de Lisboa pela primeira

geração de técnicos com esta formação específica a partir de 1950, cuja matriz ecológica, artística

e aberta à dialética interdisciplinar permitiu explorar os espaços intersticiais do bairro e

implantar um corredor verde segundo o conceito de continuum naturale.

ÍNDICE

Keywords: Bairro de Alvalade, dialética projetual, espaço urbano, estrutura verde, parques

infantis

AUTORES

JORGE DA ROSA NEVES

DINÂMIA’CET-ISCTE, Portugal, jorge_gabriel_neves [at] iscte-iul.pt

PAULO TORMENTA PINTO

DINÂMIA’CET-ISCTE, Portugal, paulo.tormenta [at] iscte-iul.pt

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Espaços ajardinados do lado norteda Avenida dos Estados Unidos daAméricaTraços conceptuais na definição de um corredor verde no Bairro deAlvalade (1940-1960)

Jorge da Rosa Neves e Paulo Tormenta Pinto

1. Introdução

1.1 O Plano Geral de Urbanização e Expansão de Lisboa (PGUEL)

1 A melhoria das condições de implantação da indústria moderna a partir da segunda

metade do século XIX acentuou a macrocefalia de Lisboa, evidenciando, no quadronacional, o fenómeno de emigração e de imigração interna a partir dos territóriosrurais mais distantes (Rodrigues, 1995 : 59-61). Num quadro de aumento populacionalcontínuo1, mais expressivo entre 1880 e 1920, Lisboa em 1930 albergava perto de umdécimo da população portuguesa, acentuando ainda mais a atratividade da capital(Rodrigues et al., 1991, 301).

2 Em resposta à carência habitacional decorrente dos fenómenos migratórios, a Câmara

Municipal de Lisboa (CML)2 promove vários programas de habitação (Costa, 2002 : 17) eo governo é obrigado a construir em grande escala “bairros de rendas económicas e decasas para pobres” para limitar as rendas, e mesmo interditar, por decreto, aconstrução de prédios de rendas elevadas (CML, 1948a : 10), incentivada anteriormentepelo Decreto n.º 15.289 de 30 de Março 19283, com consequente construção de prédiosde luxo, aumento de rendas e deslocação da população mais desfavorecida para aperiferia.

3 Com a perspetiva de continuado crescimento populacional4 e com vista a interpretar e

responder ao fenómeno especulativo, a CML promove em 1934 um ciclo de conferênciassubordinadas à habitação e, aproveitando a presença do arquiteto urbanista Alfred

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Agache (1875-1959), promulga o primeiro regulamento relativo à aprovação de Planosde Urbanização Camarários (Decreto-Lei n.º 24.802, de 21 de dezembro de 1934), emsubstituição da figura anterior dos Planos Gerais de Melhoramento (Costa, 2002 : 15-16).

4 Duarte Pacheco (1900-1943) ao acumular entre 1938 e 1943 a presidência da CML e a

pasta de Ministro das Obras Públicas (Marques de Almeida, 2009)5, coloca em marchaum vasto programa de edificação de bairros6 e de construção de arruamentos comovista a atenuar as necessidades inadiáveis de expansão da cidade. Neste contexto,promove a construção da rede fundamental de Lisboa e as suas ligações para o centro,norte e sul, bem como a construção do aeroporto e a ampliação do porto (Costa, 2002:17).

5 Com o objetivo de atribuir coerência funcional e formal à cidade, Duarte Pacheco

chama Étienne De Gröer (1882-1974) para ocupar o cargo de «urbanista-conselheirotécnico de câmara», cargo que ocupa entre 1938 e 1940. Durante este período, osestudos dos serviços da CML para as redes das circulações consideram os traçados dasgrandes vias propostas por De Gröer (CML, 1948a: 1).

6 Para melhor conhecimento da cidade, De Gröer elabora um programa para o estudo dos

elementos analíticos que servirá de base ao estabelecimento do Plano (CML, 1948a : 2).Este estudo, designado por Elementos para o Estudo do Plano de Urbanização da Cidade de

Lisboa (CML, 1938), é elaborado pelo engenheiro António Emídio Abrantes (1888-1970), àaltura Chefe de Repartição Técnica da Planta da Cidade (Brito et al., 2007 : 165). Nesteestudo, Emídio Abrantes integra um conjunto significativo de plantas temáticas,abrangendo a divisão administrativa da cidade, a distribuição das habitaçõesclandestinas, das fábricas e oficinas, a rede de transportes e a cobertura porinfraestruturas (água, gás, eletricidade) e serviços (CTT), entre outros aspetos ligadosao relevo e à geografia do território.

7 Em 1954 o Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU), em planta relativa à distribuição

da população na cidade, segundo a previsão de De Gröer de 1948, evidencia a relaçãoentre os traçados das grandes vias de expansão e os núcleos a urbanizar7. Entre estes,destacam-se o Bairro de Alvalade para 45.000 habitantes (construído a partir de 1946)na continuação do Bairro do Areeiro para 9.000 habitantes [(construído entre 1940 (1ªFase) e 1948 (2ª Fase)], ambos construídos com o propósito de resolver a escassez dahabitação, descentralizar a população e os serviços entre os eixos de expansão dacidade (Lamas, 1993: 284).

8 Apesar de De Gröer observar em construção bairros e vias, em alguns casos, com

traçado por ele sugerido, constata que a construção dos bairros de renda económicapelo Estado como medida de conter o fenómeno especulativo, por si só, é insuficiente,devendo ser complementada pela aplicação do conceito de «zonamento»8, queconsidera a base do urbanismo, capaz de promover, pela organização da cidade, asalvaguarda da saúde dos habitantes, a proteção da propriedade privada, bem comorefrear ao mesmo tempo a especulação predial (CML, 1948c : 7-13).

1.2 A Av. EUA no Plano De Gröer e no Plano de Urbanização da Zonaa Sul da Avenida Alferes Malheiro

9 Retomando a elaboração do Plano Diretor em 1946, após novo contrato, com vista à sua

revisão e aprovação9 (Brito et al, 2007 : 183), De Gröer estrutura a rede viáriaarticulando circulares concêntricas em torno do centro da cidade com os eixos radiais

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de desenvolvimento para norte. A Av. EUA, projetada em 1941 pelos serviços da CMLcomo “a grande avenida de circunvalação da cidade” que começaria em Monsanto e seestenderia até às Docas do Poço do Bispo (Costa, 2002 : 106), é integrada na 3ª circulardo Plano de 194810.

10 A Av. EUA, em complemento de outras vias, para além de servir alguns dos bairros

construídos ou em construção, serviria ainda as zonas industriais em expansão,nomeadamente, Alcântara (zona poente) e Xabregas, Marvila e Poço do Bispo (zonanascente)11, onde se localizavam as indústrias com maior número de trabalhadores,bem como o Campo Grande (limite poente da avenida) onde se localizava a “Fábrica delanifícios do Campo Grande” (Alcântara, 2013 : 9).

11 O Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro foi elaborado entre 1938 e

1944, até 1939 com base nos ensaios de desenho urbano, com continuação em 1941 noEstudo de Conjunto da Zona Sul da Avenida Alferes Malheiro. Com a coordenação doarquiteto urbanista João Guilherme Faria da Costa (1906-1971) partir de 1942, o plano érevisto profundamente em 1944 e aprovado separadamente do Plano Diretor no anoseguinte (Costa, 2002 : 25-26).

12 Constituindo-se como plano parcial do Plano Diretor de Urbanização de Lisboa (CML, 1945:

2), o Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro assenta na estruturaviária planeada para a cidade, integrando assim a Av. EUA já em construção por alturada sua aprovação (CML, 1945: 6). Considerando igualmente a Av. Roma, em construção,Faria da Costa estrutura o plano em oito células habitacionais com base na articulaçãodas vias que o delimitam e o atravessam12 e a aplicação do conceito de «Unidade deVizinhança»13 em torno das escolas (CML, 1945: 12-13)14. Faria da Costa ao assumir a Av.EUA como uma das artérias principais do plano, prevê, com o objetivo de o viabilizareconomicamente, habitação de renda não limitada15 em toda a sua extensão e paraambos os lados (à exceção do topo norte da RUA Guilhermina Suggia, no lado sul)16,compensando assim áreas de habitação menos valorizáveis (CML, 1945 :14).

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Figura 1. Implantação do Bairro de Alvalade na Planta da Cidade (1948)

Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Ref. PT/AMLSB/CB/13/27, p1.

Traçado da Av. EUA ainda sem continuidade para nascente e poente.

13  1.3 Movimento Moderno no Bairro de Alvalade

14 A Carta de Atenas (1933), saída do 4º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna

(CIAM) assume como causas principais da insalubridade da habitação e da fracaqualidade de vida das cidades, a excessiva densificação do tecido urbano, a edificaçãoem quarteirão (penalizadora das horas de Sol em grande parte dos edifícios) e aescassez de espaços livres na proximidade da habitação. Como solução, propõe aedificação em altura, tendo em consideração a orientação solar e em posiçãoperpendicular ou obliqua aos eixos viários de maior movimento e servida por extensasáreas verdes. O zonamento marcadamente funcional surge como estratégia para aseparação, entre si, das áreas residenciais, de lazer e de trabalho, bem como para acirculação hierarquizada entre estas áreas.

15 A edificação segundo os objetivos da Carta de Atenas, subjugados à lógica da unidade da

habitação, promove a separação entre os edifícios e o espaço exterior cuja identidade érelegada para segundo plano, passando a constituir o espaço residencial dos edifícios.Por outro lado, com a abertura do quarteirão, o jardim localizado no seu interior dálugar ao espaço verde de enquadramento dos edifícios, de cariz naturalizado, concebidona continuação dos espaços menos construídos segundo as correntes ecológicas(Magalhães, 2001 : 117-119).

16 Durante este período, a arquitetura paisagista concebe o espaço urbano, tal como a

arquitetura, segundo uma perspetiva estrita das suas funções de uso, incluindo entreestas a função ecológica. No entanto, a abordagem formal não aplica os conceitos quecaraterizaram a arquitetura de tendência racionalista, em que as formaspredominantemente utilizadas se baseavam na geometria euclidiana. A arquiteturapaisagista compatibiliza quase sempre a linha reta com curva e as estruturas edificadascom a natureza (Magalhães, 2001 : 108).

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17 Com a publicação da tradução da Carta de Atenas na revista Arquitectura – Revista de Arte e

Construção a partir de 1948 (Costa, 1948)17 e a realização do 1º Congresso Nacional deArquitectura durante o mesmo ano, o Movimento Moderno ganha novo fôlego (Costa,2002 : 21), surgindo logo em 1949 no Bairro de Alvalade os primeiros estudos deconjunto com uma linguagem arquitetónica próxima deste movimento, nomeadamente,por Joaquim Ferreira (1911-1966) no Conjunto Habitacional da Av. Dom Rodrigo daCunha (Costa, 2002 : 95-99) e por Ruy D’ Athouguia (1917-2006) e Formosinho Sanches(1922-2004) no Bairro de S. João de Deus (Costa, 2002 : 99-103), posteriormenteconhecido como Bairro das Estacas.

18 Nestes dois conjuntos habitacionais, os blocos foram implantados perpendicularmente

às vias, originando espaços entre estes de contorno retangular, pensados numa lógicade fruição em comum, até aqui inexistente no Bairro. Ambos os conjuntos beneficiaramde projetos de arborização e ajardinamento elaborados na 3ª Repartição – Arborização eJardinagem da DST-E em 1953 por Ribeiro Telles18. A abordagem do autor nos doisprojetos, no caso do projeto do Bairro das Estacas em complemento de uma primeiraabordagem por Ruy D’ Athouguia e Formosinho Sanches, constitui uma rotura naabordagem ao logradouro no Bairro de Alvalade ao conferir-lhes condições de fruiçãopública e de permeabilidade à implementação da Estrutura Verde do Bairro (Neves etal, 2018 : 25-28).

19 Para o processo de abertura do logradouro à fruição pública terão contribuído as

propostas de De Gröer (PDUL-1948) de modernização do regulamento urbano, por sóassim considerar possível edificar de acordo com as exigências de higiene e dourbanismo contemporâneo. Com vista a contrariar a densidade excessiva dosquarteirões e as condições de insalubridade dos seus logradouros, penalizada pelaconstrução em profundidade e altura dos prédios, propõe, entre outras medidas, aedificação em ordem descontínua (mesmo quando destinada a habitação coletiva) e aproibição de construção de prédios com pátios fechados ou saguões (CML, 1948e :42-49).

20 Em Alvalade, a deteção de focos de insalubridade nos logradouros particulares das

Células 1 e 2 nos finais da década de 1940, com consequente desvalorização dahabitação dos pisos térreos (Costa, 2002 : 96-98), terá sido crucial para o processo deabertura do logradouro nos dois conjuntos habitacionais acima mencionados,generalizada em ambos os lados da Av. EUA a partir de 1951 (Figura 2) e no Conjunto doMontepio Geral na Av. do Brasil de Jorge Segurado (1988-1990) a partir de 1958.

Figura 2. Planta de Divisão em Lotes dos Terrenos Situados na Av. Estados Unidos do Norte e noCruzamento desta Avenida com a Av. Roma, 1951

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSBAH/PURB/002/04051, p. 13.

Esc. 1/1.000.

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21 Enquanto a implantação perpendicular dos edifícios à via se encontrava prevista para o

lado norte da Av. EUA desde o Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes

Malheiro (1945), como medida de proteção do ruído e da poluição (Costa, 2002 : 106), omesmo não acontecia nos conjuntos habitacionais da Av. Dom Rodrigo da Cunha e daAv. Brasil, para onde se previam, respetivamente, edificações contínuas ao longo da viae moradias unifamiliares19.

22 O primeiro estudo de ocupação para a Av. EUA ocorre em 1953, quando o arquiteto

Joaquim Santiago Areal e Silva apresenta a proposta para o troço entre as avenidas deRoma e Rio de Janeiro com cinco blocos de nove pisos perpendiculares à via e edifíciosde quatros pisos no topo norte do logradouro20 com implantação paralela à RUAEpifânio Dias. Dois anos depois, é desenvolvido o projeto com apenas quatro blocosperpendiculares à via, com acréscimo em número de pisos (Costa, 2002 : 115-116). Parao facto, não será de excluir os méritos dos projetos dos ajardinados dos conjuntoshabitacionais da Av. Dom Rodrigo da Cunha e do Bairro das Estacas onde ainterdisciplinaridade arquitetónica terá ficado patente, apesar do desfasamentotemporal.

23 Em 1954, os arquitetos Manuel Laginha (1919-1985), Vasconcelos Esteves (1921-2014) e

Pedro Cid (1925-1983) elaboram o estudo de ocupação para o troço entre as avenidas doAeroporto (atual Avenida Gago Coutinho) e Rio de Janeiro, elaborando no ano seguinteos projetos de arquitetura dos lotes (Costa, 2002 : 118-119)21.

24 Igualmente em 1954, os arquitetos Lucínio Cruz (1914-1999), Alberto Ayres Braga de

Sousa e Mário Gonçalves Oliveira (1914-2013) projetam os blocos de rendimento para otroço entre a Praça Mouzinho de Albuquerque (atual Praça de Entrecampos) e a Av.Roma, com cinco blocos perpendiculares entre a avenida e a RUA António Patrício. Doisanos depois deste primeiro estudo, tal como aconteceu para o troço anteriormentereferido, é desenvolvido o projeto com menos um bloco, com aumento do número depisos por bloco (Costa, 2002 : 110-114).

25 Em Novembro de 1955 é aprovado o anteprojeto para o troço compreendido entre as

ruas Diogo Bernardes e Frei Tomé de Jesus da autoria dos arquitetos Croft de Moura,Henrique Albino (1921-2003) e Craveiro Lopes (1921-1972)22 substituindo um primeiroestudo de 1951-52 dos arquitetos João Simões (1908-1993), Francisco Castro Rodrigues(1920-2015), José Huertas Lobo (1914-1987), Celestino de Castro (1920-2007) e HernâniGandra (1914-1988) (Costa, 2002 : 116-117).

26 Em 1956 é apresentada nova implantação para a Av. EUA (Figura 3)23 com a

representação dos conjuntos habitacionais de Filipe Figueiredo (1913-1989) e de JorgeSegurado (1898-1990) para o cruzamento com a Av. Roma, assim como os troços entre aAv. Roma e a Praça Mouzinho de Albuquerque [lado norte (Zona I) e lado sul (Zona II)] eentre as avenidas Rio de Janeiro e do Aeroporto (Zona IV) já em construção. Por estaaltura, o troço entre as avenidas Rio de Janeiro e de Roma [lado norte (Zona III)]encontrava-se em estudo e do lado sul (Zona V) ainda por iniciar (Costa, 2002 : 117).Neste estudo ainda se observam os cinco blocos do conjunto habitacional do lado nortedo troço entre as avenidas de Roma e Rio de Janeiro, o que não irá ocorrer na planta detrabalho de 1959 (Figura 4)24.

27 Comparando as plantas de 1951 e 1956, constata-se que, na segunda, à exceção do troço

entre as avenidas do Aeroporto e Rio de Janeiro, não se encontram representados osblocos que rematam os logradouros a norte, prevendo-se em sua substituição bolsas

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para estacionamento. Em 1959 esta opção é revertida no troço entre as avenidas Rio deJaneiro e de Roma, passando o estacionamento a nascente da Av. Roma a ocorrerapenas ao longo das ruas Silva e Albuquerque e Epifânio Dias, tal como ao longo daavenida.

28 Por comparação entre as duas plantas foi possível detetar a representação (1956) e a

delimitação (1959) de um parque infantil no logradouro nascente do troço entre a PraçaMouzinho de Albuquerque e a Av. Roma, não concretizado em fase de projeto, como àfrente se comprova neste artigo.

29 A planta de 1959 apresenta a implantação dos conjuntos habitacionais de acordo com os

projetos de arquitetura anteriormente referidos, verificando-se ainda por ocupar oespaço do lado sul da avenida entre as avenidas de Roma e do Aeroporto, definido apartir de 1962 pelo arquiteto Leonardo Castro Freire (1917-1970), alinhando os trêsprimeiros edifícios com os edifícios propostos para o lado norte. Para nascente, éretomado o alinhamento dos blocos em posição paralela à avenida (Costa, 2002 :117-21).

Figura 3. Avenida dos Estados Unidos da América. Planta de Apresentação (1956)

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0248, p. 13.

CML \ DSUO \ 1ª Repartição – Urbanização e Expropriação.Desenho n.º 7387/10.11 e 12N/E, Esc. 1/500.

Figura 4. Av. EUA. Planta de Trabalhos (1959)

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/0244, p. 10.

CML \ DSUO \ 1ª Repartição – Urbanização e Expropriação.Desenho n.º 8637-10,11 e 12N/E, Esc. 1/500.

30 O Movimento Moderno em Lisboa na primeira metade da década de 1950 é ainda

marcado pelo «Bloco das Águas Livres» (1953) de Nuno Teotónio Pereira (n1922) e de

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Bartolomeu Costa Cabral (n1929) e pelo conjunto da Avenida Infante Santo (1955) deAlberto Pessoa (1919-1985), H. Gandra e João Abel Manta (n1925) (Tostões, 1994 : 63-71),com projeto de arborização e ajardinamento de Ribeiro Telles25. Três anos mais tarde, omesmo autor irá projetar os ajardinados do lado poente da avenida26.

31 A elaboração dos projetos acima mencionados por Ribeiro Telles, ainda que com algum

desfasamento temporal dos projetos de arquitetura, permite-lhe identificar ospropósitos da arquitetura do Movimento Moderno, bem como estudar a resposta à novatipologia de espaço urbano, “logradouro público entre blocos Habitacionais com topoou topos expostos ao arruamento”. Este percurso, simultaneamente em contexto decidade consolidada e de cidade que se expande (Bairro de Alvalade), permite-lhe, emfunção da localização, da orientação e da altura dos blocos e dos espaços urbanos porestes gerados, experienciar opções de organização do espaço, de pavimentação e deutilização da vegetação que serão determinantes na definição dos ajardinados na Av.EUA entre 1957-59, que de forma mais detalhada se abordará mais à frente neste artigo.

1.4 Gonçalo Ribeiro Telles na 3ª Repartição – Arborização eJardinagem da Direção dos Serviços Técnicos-Especiais

32 Ribeiro Telles integra a equipa de técnicos da CML em 1950, sucedendo a Manuel de

Azevedo Coutinho (1921-1992) igualmente neste ano (Bettencourt da Câmara, 2015 :69-70), após terem terminado em 1948 o curso livre de arquitectura paisagistaministrado a partir de 1942 pelo Professor Francisco Caldeira Cabral (1908-1992) noInstituto Superior de Agronomia (ISA), onde se licenciou em 1936.

33 Caldeira Cabral, recém-chegado a Portugal (1939) após ter concluído o curso de

arquitetura paisagista em Berlim sob a orientação do Mestre Professor Wipking(Caldeira Cabral, 1993 : 14), transfere para Portugal a doutrina da escola de Berlim que,relativamente ao Modernismo, recusava o classicismo como abordagem formal,transpondo o conceito romântico de paisagem para uma visão mais utilitária da mesma.Ou seja, esbate o peso dos valores simbólicos da paisagem, substituindo-os porpressupostos ecológicos e funcionais. A paisagem natural reproduzida pelo Romantismopassa a ser substituída por uma expressão naturalista de objetivos utilitários, numalógica de subordinação dos princípios ecológicos à conceção de estética romântica(Magalhães, 2001 : 122).

34 Da herança de Caldeira Cabral merece destaque a introdução do conceito de continuum

naturale que visava a preservação das estruturas fundamentais da paisagem e a suapenetração no tecido edificado de forma tentacular e contínua através de corredoresverdes, com tradução em espaços de lazer e recreio, de enquadramento deinfraestruturas, assim como na arborização de ruas e praças (Magalhães, 2001: 107).Com a aplicação do conceito de continuum naturale, integra-se o conhecimentoecológico, mais tarde integrado na «Ecologia da Paisagem», em substituição do«pulmão» da cidade, que se considerava ultrapassado (Magalhães, 2001: 127-128).Intrínseca às preocupações ecológicas surge a utilização de vegetação espontânea eadaptada ao local (com maior resiliência e com menores custos de construção e demanutenção), em detrimento da utilização de espécies exóticas que marcaram osjardins botânicos a partir do início do Século XVI (Magalhães, 2001: 110-111).

35 Integrado na 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem (RAJ) da DST-E sob a chefia do

engenheiro silvicultor José D’Orta Cano Pulido Garcia (1904-1983) Ribeiro Telles irá

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desenvolver intensa atividade projetual, concretizada nos genericamente designados“Projeto de Arborização e Ajardinamento” os quais passam a ser assinados comreferência à especialidade de “Engenheiro Agrónomo com o Curso Livre deArquitectura Paisagista”.

36 No Bairro de Alvalade, o projeto de arborização que deu origem à Mata de Alvalade27

(atualmente Parque José Gomes Ferreira), constituiu um dos seus primeiros projetos e ode maior área. Reconhecendo a importância da Mata para o Bairro como espaço derecreio, de descompressão urbana e como ancoradouro de futuros corredores verdes,Ribeiro Telles aquando da elaboração de projetos ao longo das avenidas do Aeroporto28

e do Brasil29, estabelece continuidade através da disposição da vegetação e da escolhado efetivo botânico.

37 Após a Mata de Alvalade, os projetos do autor no Bairro incidem sobre a arborização e o

ajardinamento dos quarteirões, merecendo referência os projetos para a Célula 730

onde, a par dos aspetos estéticos, explora a aplicação do continuum naturale entrepraças, gavetos e pequenos logradouros (canteiros) fronteiros aos edifícios.

38 Neste percurso, Ribeiro Telles experiencia, dentro do Bairro, escalas de projeto

diversas, desde as pequenas praças e gavetos, ao jardim público31, às áreas deenquadramento a edifícios de culto religioso32 ou ao parque (Mata de Alvalade, 1951 e1955), exemplos que se enquadram nas tipologias definidas para os espaços livres noPDUL-1948 por De Gröer O «Parque» quando a dimensão excedesse os dez hectares, o«Jardim» quando excedesse um hectare e Squares (pequenos jardins decorativos)quando a dimensão fosse inferior. Espaços livres de área ainda mais reduzida deveriamser consideradas como decorativos dos arruamentos (CML, 1948b: 71).

39 Ribeiro Telles, ao projetar para o Bairro de Alvalade e em simultâneo para outras zonas

de expansão da cidade, como Belém, Benfica e Encarnação,33 entre outras, masigualmente na cidade consolidada34, observa em contínuo as transformaçõesurbanísticas e arquitetónicas em curso na capital e as repercussões sobre o espaçourbano e os modos de o usufruir. Ao projetar consecutivamente para os mesmos bairrosajardinados e arborizações de arruamentos em localizações contiguas ou relativamentepróximas, como no Restelo (1951-1961) e na Encarnação (1952-56), Ribeiro Tellesexplora a conetividade dos espaços verdes tal como no Bairro de Alvalade (1950-1959),contribuindo significativamente para a Estrutura Verde não só Bairro mas de toda aCidade.

2. A relação interdisciplinar no Gabinete de Estudos deUrbanização (GEU)

40 Com a formação do GEU em 195435, constituído pelo engenheiro Luís de Guimarães

Lobato (1915-2008) e pelos arquitetos José Aleixo da França Sommer Ribeiro (1924-2006)e Pedro Falcão e Cunha (n. 1922), os arquitetos paisagistas integrados na RAJ sãochamados a colaborar com as equipas técnicas nos Planos de Urbanização desde osestudos base. Este momento terá contribuído para o fortalecimento da relaçãointerdisciplinar entre arquitetos e arquitetos paisagistas, defendida e estimulada comparticular acuidade na doutrina de Caldeira Cabral (Cabral, 1993 : 26). Até então deprática difícil face ao desfasamento temporal entre os planos e os projetos dearquitetura desenvolvidos na Direcção dos Serviços de Urbanização e Obras (DSUO) e os

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projetos de arborização e jardinagem elaborados na RAJ numa perspetiva decomplemento dos primeiros.

41 Como exemplos do desfasamento temporal, para além dos mencionados nos conjuntos

habitacionais da Av. Dom Rodrigo da Cunha, merecem referência os verificados entre oPlano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro (aprovado em 1945) e oRelatório A Arborização do Sítio de Alvalade (CML,1949) e entre os projetos de arquiteturapara as células 1 e 2 (a partir de 1946) e os projetos de arborização e ajardinamento paraos respetivos logradouros de 1950.

42 A equipa técnica do PDUL-1958 sob a coordenação dos engenheiros Guimarães Lobato e

Tomaz da Rocha Leão de Sousa Eiró, integrou os arquitetos paisagistas ProfessorCaldeira Cabral, que se manteve entre Janeiro de 1956 e Novembro de 1959, EdgarFerreira Fontes (1922-2000)36 e Ribeiro Telles (CML, 1958a). Bettencourt da Câmara(2015 : 68) interpreta da leitura do Plano o contributo dos arquitetos paisagistas nosaspetos mais diretamente relacionados com o planeamento e a conceção dos espaçosverdes, fruto do reconhecimento técnico que já beneficiavam por essa altura. Por outrolado, Magalhães (2001 : 130), saliente a ênfase atribuída às componentes ambientais,nomeadamente, o relevo, a exposição das vertentes, a hidrologia e a vegetação, nozonamento da ocupação do solo e na definição dos índices de densidade edificada.

43 No Bairro de Alvalade, constitui exemplo da integração das componentes ambientais no

zonamento do espaço urbano a proposta de Sousa da Câmara37 de 1966 para a Mata deAlvalade38, quando sobre a planta topográfica efetua um estudo analítico da utilizaçãodo solo, dos declives, bem como das vistas, partindo posteriormente para a definição damodelação do terreno, da utilização do solo, da arborização, da drenagem e da rega.

44 A participação de Ribeiro Telles e de Álvaro Ponce Dentinho (1924-2014) nos estudo-

base de 195739 é acompanhada do Professor Caldeira Cabral, constituindo um segundomomento de diálogo entre aluno e professor, subordinado à revisão de matérias econceitos lecionados há quase uma década atrás e à sua aplicabilidade à Lisboa dosfinais da década de 1950. Na envolvente do Bairro de Alvalade, Ribeiro Tellesacompanha o Professor no Estudo Base do Campo Grande da autoria do arquiteto PedroFalcão e Cunha, onde o jardim viria a amarrar a poente o corredor verde da Av. Brasil(Neves et al, 2019) e da Av. EUA.

45 Aludindo à profusão da prática da arquitetura paisagista em Portugal, Caldeira Cabral

enaltecia a meados da década de 1950 a integração dos seus colegas (ex-alunos) na CML(RAJ e GEU), mas sobretudo em entidades da administração pública de âmbito nacional,nomeadamente, no Ministério da Economia, na Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas,na Junta de Colonização Interna e no Ministério do Ultramar, salientando assim aabrangência e a aplicabilidade das suas competências para além do estrito campo daarquitetura paisagista. Com um olhar sobre o papel que os arquitetos paisagistaspoderiam desempenhar, em regime de interdisciplinaridade com outras áreas, emparticular, a arquitetura, e nas Câmaras, lamenta que apenas se encontram integradosna CML, chamando assim a atenção dos autarcas nacionais (Cabral, 1993 : 52).

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3. Os parques infantis no Plano Diretor deUrbanização de Lisboa de 1958

46 No PDUL-1958 a abordagem aos parques infantis ocorre no âmbito dos «Espaços Verdes

Especiais», por serem considerados locais preferenciais de convívio intergeracional ecomo ferramenta de coesão social. Como tal, deveriam inserir-se nas rotinas diárias dosgrupos etários então considerados: 1º Grupo – Pré-escolar (dos 3 aos 7 anos); 2º Grupo –Escolar (dos 7 aos 12-14 anos), 3º Grupo – Adolescente (14 aos 18 anos) e 4º Grupo - Idadeadulta. Deveriam ser concebidos de modo a responder às respetivas necessidades,nomeadamente, contemplar solários para os recém-nascidos, áreas de recreio para ospré-escolares e locais de estar para os mais idosos (CML, 1958d: 1-2).

47 Os pressupostos de projeto do PDUL-1958 antecipam em, praticamente, quatro décadas

os aspetos de conceção, construção e, mesmo da manutenção, previstos no Decreto-Lein.º 379/97, de 27 de Dezembro, que através do respetivo anexo estabeleceu as condiçõesde segurança a observar na localização, implantação, conceção e organização funcionaldos espaços de jogo e recreio, respetivo equipamento e superfícies de impacte40.

48 Segundo o Plano, os espaços para a primeira infância (pré-escolar) deveriam localizar-

se na proximidade da habitação, possibilitar a alternância de sombra e de sol e permitiro acesso por carrinhos de bebés41. Os espaços para as crianças do pré-escolar deveriampromover o contacto com o mundo natural e a apresentação das formas simbólicas,constituindo, em síntese, uma amostra do mundo exterior. Neste contexto, o “JardimJaponês” era apresentado como o modelo ideal, não por constituir uma cópia danatureza, mas por resultar num “arranjo artístico” dos seus elementos. Na simplicidadeda sua conceção residia a expectativa de estimular múltiplas interpretações e ainspiração individual. A água, a vegetação e a vedação envolvente proporcionariamambientes de adequado sossego. A composição dos pavimentos com empedradosespecíficos para cada espaço permitiria associar-lhe um determinado simbolismo,aumentando assim a imaginação das crianças (CML, 1958d : v4.5/3).

49 Como referência ao “Jardim Japonês”, o Plano refere o trabalho do arquiteto paisagista

dinamarquês Carl Theodor Marius Sørensen (1893-1979)42 que, na conceção dos espaçosde recreio, procurava a imitação da praia, do campo e do bosque. Estes elementos,quando associados harmoniosamente com o monte, o rio, o lago e a ilha,proporcionariam ainda a localização e o enquadramento adequado aos elementosescultóricos (CML, 1958d : v4.5/3).

50 Espaços desordenados, disponíveis para a livre iniciativa e para o estímulo da

criatividade deveriam nortear a conceção dos espaços para as crianças em idade escolar(7 aos 12-14 anos). Restos de construções, de demolições parciais, ruínas, aldeias deíndios, ranchos de cowboys, trechos de selva intrincada, “Jardins Robinson”, assim comoterreiros, eram apontados como soluções enriquecedoras do espaço (CML, 1958d :v4.5/4-5). Face à natureza dos materiais e das soluções construtivas, estes espaçosdeveriam ser controlados de forma qualificada43.

51 Com vista a responder aos estímulos e às capacidades das diversas idades44, o Plano

propunha para cada espaço de recreio quatro secções : a superfície ou caixa de areia, aárea de equipamentos, a área para jogos de organização espontânea e uma quartasecção que promovesse a aventura45. Ou seja, o espaço deveria ser organizado eequipado em função das capacidades lúdicas e de apreensão das crianças46.

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52 A influência da arquitetura paisagista do norte da Europa foi sendo incorporada

continuamente em Portugal, não só pela formação de Caldeira Cabral na Alemanha,como anteriormente mencionado, mas pela sua participação regular nos congressos daInternational Federation of Landscape Architects (IFLA). Caldeira Cabral acompanhou aparticipação de Azevedo Coutinho no 3º Congresso em Estocolmo (1952) conjuntamentecom Edgar Fontes e Fernando Vaz Pinto (1921-2001). Aquando da realização do 5ºCongresso em Zurique (1956), em data próxima à conclusão do PDUL, Ribeiro Tellesacompanhou a participação de Viana Barreto (1924-2012) (Bettencourt da Câmara,2015 : 79-80).

53 No relatório da viagem a Estocolmo, Azevedo Coutinho salienta as temáticas

relacionadas com os parques infantis, a utilização da árvore nas urbanizações e aabolição do logradouro comum, organizando os registos fotográficos por temas(Bettencourt da Câmara, 2015 : 86). O relatório de Viana Barreto comporta igualmenteum capítulo sobre os parques infantis (Bettencourt da Câmara, 2015 : 90), podendo daíaferir-se existir uma particular atenção sobre a sua conceção e o desejo de importarpara Portugal o que de melhor se planeava e construía além-fronteiras.

54 Esta conceção, em que o contacto com os elementos naturais, mesmo que

simbolicamente, é estimulada, encontra-se ainda presente no relatório Arborização do

Sítio de Alvalade (CML, 1949 : 133), onde Azevedo Coutinho defende que deveriam serevitados os alinhamentos e a instalação de equipamentos para além do estritamentenecessário, deixando assim campo livre à imaginação e à criação de cenários debrincadeira. Este modo de conceber o parque infantil pelo autor após a conclusão docurso livre em arquitetura paisagista (1948) e antes de se iniciarem as viagens aoscongressos da IFLA pode ser interpretado como reflexo do cariz naturalista que regeu adoutrina de Francisco Caldeira Cabral.

4. Conceção dos logradouros do lado norte da Av.EUA, em fase de anteprojeto

4.1. Troço Av. Aeroporto - Av. Rio de JaneiroProposta de Manuel Laginha, Vasconcelos Esteves, Pedro Cid(1956)

55 Na sequência do projeto para os Blocos de Habitação do troço entre as avenidas do

Aeroporto e Rio de Janeiro de 195447, Manuel Laginha, Vasconcelos Esteves e Pedro Cidapresentam dois anos depois a proposta para os espaços livres públicos (CML, 1956a),colando os espaços sob e entre os blocos de habitação (Figura 5)48.

56 Aqui, tal como na proposta de Ruy D’ Athouguia e Formosinho Sanches para o Bairro

das Estacas (1949)49 a edificação sobre pilotis une os espaços entre e sob os edifícios,potenciando a sua fruição em continuidade. Manuel Lajinha ao tipificar os espaçosexteriores como «Jardins», assume o propósito de enobrecer o espaço de estadia e derecreio comoa proposta de criar um espaço nobre, de estadia e recreio, secundando asintenções de mero enquadramento dos blocos. Na memória descritiva refere-se aosespaços entre blocos como «intermédios», reforçando a conceção numa lógica de “umúnico tabuleiro ajardinado de utilização comum” (CML, 1956a: 1). Ao fazê-lo, afuncionalidade dos percursos (de acesso e de atravessamento), a articulação das

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diversas áreas (em regime de complementaridade) e as manchas de vegetação na suaproteção, agregam-se em torno de um objetivo comum, a criação de um jardimmultifuncional.

57 Embora no projeto de Ruy D’Athouguia e Formosinho Sanches para o Bairro das Estacas,

complementado posteriormente com o projeto de Ribeiro Telles (1953)50, estejasubjacente a conceção dos espaços sob e entre os blocos habitacionais como um só,estes são delimitados por passeios paralelos aos blocos que os individualizam. Nestaintervenção, a continuidade sob os blocos traduz-se essencialmente nas diversas opçõesde circulação em forma de malha e na perceção dos espaços verdes em continuidade, oque na realidade não ocorre. Na proposta de Manuel Laginha, os espaços sãoorganizados em torno de um percurso estruturante que percorre todo o jardim.Hierarquizado pela extensão e perfil transversal e com implantação sensivelmenteparalela e protegida face à avenida, este percurso assume-se como alternativa aopasseio ao mesmo tempo que assegura a conetividade entre as entradas dos edifícios eas áreas de lazer.

58 Ao explicitar de forma mais vincada a complementaridade de oferta entre os «espaços

intermédios», relativamente à proposta de Ruy D’Athouguia para o Bairro das Estacas,bem como os conceber no seu conjunto como um equipamento de recreio não só doconjunto habitacional mas da célula habitacional onde se insere, este projeto constituium marco importante no processo de abertura do logradouro à fruição pública, namedida em que recria novamente a aplicação do conceito de «unidade de vizinhança»tal como Faria da Costa o fez em torno do equipamento escolar.

59 Com o objetivo de reforçar a unidade entre os «espaços intermédios», bem como de

ligar os volumes edificados, Manuel Laginha propõe a arborização do percurso principalcom árvores de médio e grande porte, reforçando assim a sua perceção do percurso àdistância. Embora subjugada ao percurso, a plantação de árvores, tal como a dearbustos, deveria ocorrer de forma irregular no sentido de valorizar ou desvalorizardeterminados pontos dos espaços. Para o enquadramento dos espaços de encontro (oque se interpreta igualmente para proteção) propõe maciços de arbustos e herbáceasem contraste com as áreas de relvado (CML, 1956a : 2-3).

Figura 5. Blocos de habitação da Av. EUA (Troço Av. do Aeroporto – Av. Rio de Janeiro)

AML, ref, PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0097, p. 6.

Planta Esquemática dos Jardins. Manuel Lajinha, Vasconcelos Esteves, Pedro Cid (1956).

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 4.2 Os parques infantis no anteprojeto dos Ajardinados daAvenida dos Estados Unidos da AméricaProposta de Ribeiro Telles (1957)

60 O anteprojeto dos ajardinados51 da Av. EUA é elaborado por Ribeiro Telles em 1957 52,

abrangendo todo o lado norte da avenida e o troço entre a Praça Mouzinho deAlbuquerque e a Av. de Roma do lado sul. É concebido temporalmente desfasado dosestudos de ocupação do solo e dos projetos de arquitetura para os conjuntoshabitacionais desenvolvidos a partir de 1951 e 1953, respetivamente, como mencionado,mas coincidente com a fase de conclusão do PDUL-1958, resultante da revisão do PlanoDe Gröer concluído uma década antes.

61 Ribeiro Telles ao projetar os ajardinados conhece os resultados dos projetos dos

logradouros comuns projetados por Azevedo Coutinho para as Células 1 e 2 em 1950 emsituação de compromisso com algumas áreas privadas – logradouros privados (paraagricultura de complemento) (Neves et al, 2018), bem como dos ajardinados deconfiguração retangular dos conjuntos habitacionais da Av. Dom Rodrigo da Cunha e doBairro das Estacas projetados por si.

62 Nos ajardinados da Av. EUA, tal como no Bairro das Estacas, Ribeiro Telles beneficia da

implantação dos edifícios sobre pilotis, mas com um acréscimo de área e de maiorafastamento entre os blocos, permitindo-lhe explorar as orientações de AzevedoCoutinho para a conceção do «Jardim Paisagístico»53 de cariz mais naturalizado, maisinformal e com disfrute de vistas em profundidade (CML, 1949: 36)54.

63 Assim, em detrimento do desenho simétrico e formal, Ribeiro Telles opta por desenhar

espaços distintos para cada ajardinado (Figuras 6a a 6c) seguindo assim mais uma vez amatriz ecológica de Caldeira Cabral (Cabral, 1993: 29), sem, no entanto, colocar emcausa a sua integração no conjunto habitacional (CML, 1957: 1). Propõe para cadaconjunto habitacional do lado norte da avenida um parque infantil, geralmente noajardinado central55, e no troço entre as avenidas de Roma e Rio de Janeiro um «JardimRobinson»56, vocacionado para o grupo escolar (7 aos 12-14 anos), aumentando assim asvalências e a complementaridade entre os vários espaços, tal como direcionou noâmbito do PDUL-1958.

64 Por comparação com a proposta dos arquitetos Manuel Laginha, Vasconcelos Esteves e

Pedro Cid, interpreta-se que Ribeiro Telles segue a bitola da complementaridade entreos espaços, mas não assume de forma explícita a circulação (direta) entre estes deforma longitudinal e paralela à avenida. Enquanto na proposta dos arquitetos o acessoàs zonas de lazer ocorre a partir do percurso estruturantes, na proposta de RibeiroTelles o acesso às zonas de lazer ocorre a partir de percursos que contornam osajardinados, geralmente com implantação paralela aos blocos. Reforça estainterpretação o enclausuramento do espaço por maciços arbustivos e pela modelaçãodo terreno.

65 Como aspetos comuns ao desenho dos ajardinados dos troços a nascente da Av. Roma,

ocorre a localização das áreas de estadia geralmente em posição recuada e adjacenteaos percursos com acesso pelos arruamentos secundários. Interpreta-se destalocalização a intenção de obter sombras e a proteção dos ventos dominantes (emparticular durante a estação estival), assim como promover a inserção das áreas deestadia ou de recreio na lógica dos percursos pedonais, ou seja, afetando-as às rotinas

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251

diárias, com ganhos simultâneos no conforto da sua fruição e na segurança peloafastamento à circulação automóvel.

66 Na introdução dos elementos d’água, interpreta-se, quando em registo mais

naturalizado e sob a forma de riachos, a introdução de referências da paisagem naturale, eventualmente, do «Jardim Japonês». Num registo mais formal, recorre ao tanque,recriando um dos traços dos jardins tradicionais portugueses, onde este, a diversidadedas árvores e dos arbustos, as vistas e a azulejaria constituem os seus principais traçosde composição (Castel-Branco, 2010 : 7).

Figura 6a. Ajardinados da Avenida dos Estados Unidos da América

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/0248, p. 11.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem. Troço Av. Rio de Janeiro - R. FranciscoLourenço da Fonseca). Anteprojeto.Ribeiro Telles, Agosto de 1957 ; Desenho n.º 3, Esc. 1/500.

Figura 6b. Ajardinados da Avenida dos Estados Unidos da América

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/0248, p. 9.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.(Troço Av. Rio de Janeiro - Avenida de Roma). Anteprojeto. Ribeiro Telles, Agosto de 1957 ; Desenhon.º 2, Esc. 1/500.

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Figura 6c. Ajardinados da Av. EUA

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/0248, p. 7.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.(Troço Av. República – Av. Roma). Anteprojecto. Ribeiro Telles, Agosto de 1957. Desenho n.º 1, Esc.1/500.

67 Nesta fase de anteprojeto, Ribeiro Telles preconiza a utilização de vegetação

dominantemente climace57, dispondo as árvores em maciços no topo norte dosajardinados como meio de os proteger dos ventos dominantes e em pequenos grupos nointerior dos ajardinados, podendo neste caso pertencer a espécies exóticas, a pretextoda sua contemplação. Com esta opção visa criar alternância de sombra e luz noajardinado, propiciando ambiências diversificadas em resposta aos diversos grupos dapopulação. Contorna as zonas de clareira com maciços de herbáceas vivazes58 e dearbustos plantados segundo mixed-border59 propiciando a definição de um espaçopróprio, animado pelas cores das florações das diversas espécies da composição. (CML,1957a : 1-2).

68 Verificando-se a disposição da vegetação climace, preferencialmente, no contorno dos

ajardinados, afigura-se lícito interpretar a intenção de, paralelamente aoenquadramento e valorização dos edifícios (sem penalizar as entradas de luz), opropósito de promover a continuidade ecológica e contrabalançar o artificialismo domeio urbano, valores defendidos por Caldeira Cabral e Ribeiro Telles poucos anosdepois em A Árvore (Cabral, 1960 : 10).

69 De igual modo, o enriquecimento dos ajardinados com composições de árvores e

arbustos, dispostos de forma isolada ou no enquadramento de áreas de estar, depercursos e outros elementos construídos, pode ser interpretado como estratégico paraestabelecer planos verticais intermédios entre os blocos, proporcionando assimreferências espaciais à escala do peão e o esbatimento da perceção do número de pisosdos blocos. Magalhães (2001 : 119), referindo-se aos espaços verdes de grandesdimensões resultantes da edificação segundo a Carta de Atenas (em que o desenho foiminimizado e o símbolo removido da composição), atribui ênfase ao desaparecimentoda escala humana como causa da perda das referências formais ou funcionaisindispensáveis à sua fruição.

70 No quadro 1 a seguir apresentado sintetizam-se alguns aspetos da composição que

distinguem os «espaços intermédios» de Manuel Laginha e dos «ajardinados» de RibeiroTelles.

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253

Quadro 1. Elementos de composição e função propostos para os Logradouros do lado norte da Av.EUA – Fase de Anteprojeto

Av. Aeroporto – Av. Rio de Janeiro Av. Aeroporto – Av. Rio de Janeiro Av. Rio de Janeiro – Av. Roma

Praça

Mouzinho

de

Albuquerque

– Av. Roma

Autor(es) M. Laginha, V. Esteves e P. Cid (1956)Ribeiro Telles

(1957)

Ribeiro Telles

(1957)

Ribeiro

Telles

(1957)

Tipologia Espaços Intermédios Ajardinados Ajardinados Ajardinados

Correspondência

Fig.Figura 5 Figura 6a Figura 6b Figura 6c

P C1 C2 N P C1 C2 N P C N P C

Composição

Estar

Esplanada aE,c aE

Zona de Estar c c aE,c aE aE aE

Pérgula ●

Recreio

Clareira c c ●

Biblioteca c

Jardim/Parque

Infantil c c aE c

Jardim

“Robinson” c c

Área para Jogos c

Circulações

De contorno ● ● ● ● ● ● ● ● ●

De

atravessamento● ● ● ●

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De acesso a

zonas de estar/

recreio

● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Com traçado

retilíneo● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Com traçado

curvilíneo ● ● ●

Localização e Utilização da Vegetação

Relvado ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Arbustos (em maciço) pfa pfa pfa pfa ● ● pf pf ● pf pf pf pf

Árvores (pontuais) ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Elementos d´água

Tanque ● ● ● ●

Repuxo ●

Riacho ● ●

Funções Predominantes

Enquadramento ● ● ● ● ●

Estar ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Recreio Informal ● ● ● ● ● ● ● ●

Recreio Idade Pré-Escolar (3

aos 7 anos) ● ● ●

Recreio Idade Escolar

(7 aos 12/14 anos) ● ●

 Elaboração própria.

5. Conceção dos logradouros do lado norte da Av.EUA, em fase de projeto

5.1 Troço Av. Aeroporto - Av. Rio de JaneiroProposta de Ribeiro Telles (1958)

71 Ribeiro Telles, ao projetar no primeiro semestre de 1958 os ajardinados do lado norte

da Av. EUA entre as avenidas do Aeroporto e Rio de Janeiro, mantem-se fiel ao

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255

anteprojeto na opção de conceber espaços distintos para cada ajardinado e da suacomplementaridade. Fruto da escala de projeto explicita agora a circulação sob osblocos habitacionais e entre estes e o interior dos ajardinados com traçados geralmenteretilíneos.

72 Na organização dos espaços, o autor tira partido da faixa adjacente ao maior lado do

bloco habitacional poente60 expandindo-a para definição de áreas de estadia. A área demaior expressão ocorre no logradouro a nascente da Av. Rio de Janeiro, interpretando-se nesta localização, para além da preocupação em assegurar maior proteção do Sol edo vento, a procura por um ponto dominante, a partir do qual se obteriam vistas emprofundidade sobre os ajardinados, assim como sobre a avenida, cuja arborização eajardinamento elaborado em 1957, como se observará mais à frente neste artigo.

73 Com vista a favorecer a perceção de profundidade e a fomentar a circulação entre os

ajardinados, Ribeiro Telles, para além de criar clareiras ao centro, prolonga a vegetaçãoe os percursos entre os pilotis, como irá propor igualmente nos ajardinados dos outrosconjuntos habitacionais que projeta. Nos dois ajardinados mais a nascente, prevê acolocação de bancos junto ao passeio da avenida, o que se interpreta como intenção deorientar as vistas para o interior dos ajardinados, onde, em pano de fundo, adensa avegetação. Este adensamento da vegetação poderá ser interpretado como resposta àmenor privacidade dos pisos inferiores dos blocos que rematam os ajardinados a norte,que contrariamente aos grandes blocos habitacionais em posição transversal à avenidanão se implantam sobre pilotis (Figs. 7a e 7b).

74 Nesta fase de projeto, Ribeiro Telles simplifica o desenho e suprime a tipologia de

«Jardim Robinson». Em alternativa, localiza áreas de parque infantil no primeiro e noterceiro ajardinado (de nascente para poente), mantendo assim a estratégia de encurtaras distâncias a partir dos edifícios.

75 Contribuindo o conjunto habitacional de Manuel Laginha, Vasconcelos Esteves e Pedro

Cid para a leitura à época da avenida como o mostruário da mais recente produçãoarquitetónica de Lisboa (Tostões, 2002 : 47), este vai continuar a sê-lo pela incorporaçãoda proposta de Ribeiro Telles, na medida em que, apesar de diferente no desenho e emalguns dos pressupostos que o sustentam (em particular os ecológicos), afigura-sesimilar na conceção enquanto espaço público e de equipamento do bairro.

 Figura 7a. Av. EUA. Projeto dos Ajardinados

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU/10/258, p. 35_D1.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.Troço Av. do Aeroporto – Av. Rio de Janeiro. Ribeiro Telles, março de 1958. Folha n.º 1 – Plano Geral.Esc. 1/200.

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Figura 7b. Av. EUA. Projeto dos Ajardinados

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU/10/258, p. 36_D2.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.Troço Av. Aeroporto – Av. Rio de Janeiro. Ribeiro Telles, março de 1958. Folha n.º 2 – Plano Geral.Esc. 1/200.

5.2 Troço Praça Mouzinho de Albuquerque - Av. RomaProposta de Ribeiro Telles (1958)

76 Em finais de 1958, Ribeiro Telles projeta os ajardinados para o troço entre a Praça

Mouzinho de Albuquerque e a Av. Roma, propondo desenhos próprios para cadaajardinado, como aconteceu para o troço anteriormente referido, mantendo assim aregra que definiu no anteprojeto.

77 O principal aspeto diferenciador deste projeto face ao anterior decorre de, à data da sua

elaboração, não estarem previstos edifícios para os topos norte dos ajardinados, massim placas de estacionamento. Esta circunstância terá levado o autor a propor para osajardinados poente e central o revestimento dos taludes com maciços arbóreo-arbustivos entre as plataformas dos ajardinados (com maior proximidade à avenida) eas placas de estacionamento da RUA António Patrício. Com esta opção, Ribeiro Tellespara além de atenuar a perceção do desnível existente, promove significativamente apresença de vegetação no interior do conjunto habitacional, sem penalizar as áreas derecreio e a sua visibilidade de e a partir da avenida. Na disposição da vegetação,observa-se maior formalismo no ajardinado nascente, onde desenha canteiros decontorno retilíneo, aludindo à imagem dos canteiros de buxo dos jardins formaisportugueses (Figura 8).

78 Posteriormente à elaboração do projeto de Ribeiro Telles, o arquiteto Lucínio Cruz

projeta as garagens e as áreas comerciais (Costa, 2002 : 115) que irão ocupar as zonasmais a norte dos ajardinados, incluindo as zonas de talude, o que irá introduziralterações sobre a proposta inicial dos ajardinados, nomeadamente, na expressão davegetação entre os blocos.

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Figura 8. Av. EUA. Projeto dos Ajardinados

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU/10/258, p. 39.

CML \ DST-E \ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.Troço Praça Mouzinho de Albuquerque – Avenida de Roma. Ribeiro Telles, novembro de 1958. PlanoGeral. Esc. 1/200.

5.3 Troço Av. Roma – Av. Rio de JaneiroProposta de Manuel Sousa da Câmara (1959-60)

79 O projeto dos ajardinados da Av. EUA para o troço entre as avenidas de Roma e Rio de

Janeiro foi elaborado por Sousa da Câmara (1929-1992)61 em 1959-60 após os projetos deRibeiro Telles anteriormente mencionados e para a faixa verde central da Avenida.

80 Na elaboração deste projeto, o autor colhe a experiência de Ribeiro Telles, em

particular, do projeto para o troço a nascente, face à localização e à similitude dosvolumes edificados em presença. Sousa da Câmara recua as áreas de estadiarelativamente à avenida, implantando-as preferencialmente do lado nascente doajardinado (em posição protegida pelo bloco a norte), obtendo igualmente maiorproteção às horas de maior insolação. O recuo de todas as áreas de estadia constitui umaspeto diferenciador da proposta de Ribeiro Telles. Interpreta-se como razão para estaopção a análise cuidada das condições de conforto bioclimático entre os blocos, comoapresenta no anteprojeto do ajardinamento dos logradouros do conjunto habitacionaldo Montepio Geral na Av. do Brasil em 1963 (Neves et al., 2019). Os efeitos do aumentodo trânsito na avenida, particularmente sentidos neste troço face à pendente e aosentido ascendente, ocorre como uma segunda razão.

81 Como aspetos em comum com os projetos de Ribeiro Telles, salienta-se a faixa

adjacente ao lado nascente dos blocos perpendiculares à avenida, na continuidade dospisos térreos (que neste troço, contrariamente aos restantes, não se encontracompletamente vazado) para acesso de viatura de emergência, assim como a localizaçãodo parque infantil no ajardinado central, aspetos que deveriam ser atendidos emresposta ao programa para os conjuntos habitacionais (CML, 1959 : 2).

82 Em relação aos percursos, ambas as propostas apresentam ligações entre os blocos

habitacionais segundo traçados retilíneos e as áreas mais abertas dos ajardinados, bemcomo percursos menos diretos de acesso a zonas de estadia informais em plano recuadodo ajardinado, pontuadas com bancos de jardim. Da multiplicidade de acessos aoparque infantil, que ocorre em ambas as propostas, interpreta-se as intenções degarantir a equidistância a partir dos blocos, bem como a perceção do ajardinadoenquanto equipamento da célula e não apenas do conjunto habitacional. Para o efeito,

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integra nos ajardinados percursos responsáveis pela continuidade da rede de percursospedonais prevista por Faria da Costa na aplicação do conceito de «unidade devizinhança» em torno do equipamento escolar.

83 A observação da disposição dos bancos de jardim (Figura 9) permite observar outro

aspeto que distingue os dois projetos. Enquanto Ribeiro Telles dispõe os bancos dejardim segundo linhas, orientando a observação para o lado oposto do ajardinado,Sousa da Câmara dispõe os bancos em redor das áreas de estadia, independentementedo seu maior ou menor formalismo.

84 O adensamento da vegetação junto aos blocos que rematam a norte os ajardinados e a

libertação do interior para opções de recreio informal são aspetos comuns às duaspropostas, embora na proposta de Sousa da Câmara o desenho determine áreascontínuas com maior expressão.

Figura 9. Av. EUA. Projeto dos Ajardinados

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU/10/258, p. 22_D1.

CML \ DST-E \ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem. Troço Av. Roma – Av. Rio de Janeiro.Sousa da Câmara, 1959. Desenho n.º 5 - Pavimentos. Esc. 1/200.

85  À semelhança da análise efetuada no Quadro 1, no Quadro 2 a seguir apresentado

sintetizam-se sensivelmente os mesmos itens observados, agora em fase de projeto eentre as propostas de Ribeiro Telles e Sousa da Câmara.

Quadro 2. Elementos de composição e função propostos para os Logradouros do lado norte da Av.EUA – Fase de Projeto

Av. Aeroporto – Av.

Rio de Janeiro

Av. Rio de Janeiro

– Av. Roma

Praça Mouzinho de

Albuquerque – Av. Roma

Autor(es)Ribeiro Telles

(1958)

Sousa da Câmara

(1962)

Ribeiro Telles

(1958)

Correspondência Figura 6a Figura 6b Figura 6c

Ajardinados P C1 C2 N P C N P C N

Composição

Estar

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Esplanada aE

Bancos c c ● ● c c c

Bancos

Espaços Informaisc c

Zona de EstaraE

aAc aA c c c

Recreio

Jardim/Parque Infantil c ● c

Jardim “Robinson” c

Área de Jogos ●

Circulações

De contorno ● ● ● ● ● ● ●

De atravessamento ● ● ● ● ●

De acesso a zonas de

estadia/recreio● ● ● ● ● ● ● ●

Com traçado retilíneo ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Com traçado curvilíneo ●

Vegetação

Relvado c c c ● ● ● ● ●

Arbustos (em canteiro) ●

Arbustos (em maciço) pf pf pf pf pf pf pf ● ●

Arbustos (em talude) ● ●

Árvores (pontuais) ● ● ● ● ● ● ● ● ●

Elementos d´água

Tanque ● ●

Funções Predominantes

Enquadramento ● ● ● ● ● ● ● ●

Estar ● ● ● ● ● ●

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Recreio Informal ● ● ● ● ● ● ●

Recreio Idade Pré-Escolar

(3 aos anos) ● ● ●

Recreio Idade Escolar

(7 aos 12/14 anos)

elaboração própria. 

6. Arranjo verde da faixa central e dos cruzamentos

Proposta de Ribeiro Telles (1958)

86 A definição do cruzamento das avenidas dos EUA e de Roma teve na proposta dos

arquitetos Filipe Figueiredo (1913-1990) e Jorge Segurado (1951-52)62 um dos grandescontributos, sendo desde logo incorporada na Planta de Divisão de Lotes dos TerrenosSituados na Av. EUA e no Cruzamento com a Av. Roma de 1951 (Figura 2). Contrariandoa edificação em contínuo no contorno da praça63, a proposta edifica quatro grandesblocos de treze pisos com implantação perpendicular entre si e rodada relativamenteao cruzamento das duas avenidas, constituindo um conjunto de “vibrante expressãoformal desenvolvida com um rigoroso profissionalismo” (Tostões, 1994 : 64) querapidamente se tornou o “coração simbólico” da zona (Fernandes, 1999 : 28).

87 Em 1955 a RAJ, pela mão de Ribeiro Telles, desenvolve o projeto de arborização para a

Av. Roma que inclui o cruzamento com a Av. EUA (Figura 10) através de um rotunda decontorno ovoide enquadrada por quatro ilhéus direcionais com acesso pelos vérticesdas avenidas.

Figura 10. Projeto de Arborização e Ajardinamento da Av. Roma, 1955

AML. Ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0596, p. 17.

CML \ DST-E \ 3ª Repartição – Arborização e Jardinagem.Desenho n.º 1 - Plano Geral, Esc. 1/1.000, Ribeiro Telles, 1955.

88 Ribeiro Telles prevê para o cruzamento das avenidas, em detrimento do recurso à

caldeira, a plantação das árvores sobre a rotunda e os ilheis direcionais por considerarreunir vantagens de ordem vegetativa. Na composição dos ilhéus direcionais propõe aplantação de maciços arbustivos do lado interior, protegendo do tráfego os passeiospropícios à instalação de esplanadas, e expondo as áreas de relvado para o centro docruzamento, aumentando assim as condições de visibilidade e de segurança em tornoda rotunda e com ganho na leitura urbanística e arquitetónica dos blocos habitacionais.

89 Ribeiro Telles projeta a arborização da Av. EUA64 (Figura 11) em maio de 1958, ou seja,

entre os projetos dos ajardinados dos dois troços atrás mencionados, o que permiteinterpretar ter perspetivado o papel que a arborização da faixa central e dos passeios

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261

laterais poderia desempenhar na implementação de um corredor verde segundo oconceito de continuum naturale pela coesão dos ajardinados por ele projetados.

 Figura 11. Av. EUA. Arranjo Verde da Faixa Central e dos Cruzamentos, 1958

AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU/10/258, p. 34_D.

CML \ DST-E\ 3ª Repartição – Arborização e JardinagemNota : Esc. 1/1.000, Ribeiro Telles, maio de 1958.

90 Neste projeto, o autor propõe para os passeios laterais da avenida espécies de grande

porte e com copa de desenvolvimento colunar, como Ginkos (Ginkgo biloba), Grevíleas(Grevillea robusta), Choupos-brancos (Populus alba) e Freixos (Fraxinus angustifolia), com oobjetivo de esbater a perceção da altura dos blocos habitacionais. No separador centralda avenida, introduz para além das espécies referidas, outras igualmente de portecolunar como a Casuaria (Casuarina tenuissima), o Choupo-negro (Populus nigra) e oUlmeiro (Ulmus procera) e algumas espécies de copa arredondada, mas de grande porte,como o Plátano (Platanus orientalis) e o Lodão-bastardo (Celtis autralis) aumentandoassim significativamente a perceção da mancha de vegetação ao longo do corredor. Ainexistência de um compasso de plantação regular, associado a uma alternância deespécies não ritmada, mas característica na região, permite interpretar a intenção decriar uma mancha de cariz naturalizado.

91 Em 1959 Ribeiro Telles tem a possibilidade de reforçar a mancha de vegetação ao longo

da avenida, ao projetar os ajardinados para o lado sul no troço entre as ruas Frei Toméde Jesus e Diogo Bernardes65, provavelmente dos últimos projetos que desenvolve parao Bairro enquanto técnico da RAJ.

92 O somatório dos projetos elaborados por Ribeiro Telles na Av. EUA mencionados neste

artigo constitui o exemplo da aplicação do conceito de continuum naturale introduzidopor Caldeira Cabral no ensino da arquitetura paisagista em Portugal, mais tardeformalizado no Plano Verde de Lisboa (Telles, 1997).

 Notas conclusivas

93 Os ajardinados do lado norte da Av. EUA de perímetro quadrangular constituem uma

herança tipológica do processo de abertura do logradouro no Bairro de Alvalade, cominício nos «Logradouros Comuns» das Células Habitacionais 1 e 2 (1946) e comsequência nos ajardinados de perímetro retangular dos conjuntos habitacionais da Av.Dom Rodrigo da Cunha e do Bairro das Estacas (1949).

94 Neste processo, e no domínio da arquitetura, o contributo das propostas de Manuel

Laginha, Vasconcelos Esteves e Pedro Cid para o conjunto habitacional do troço entre asavenidas do Aeroporto e Rio de Janeiro (1954) e para o jardim (1956), constituíram umpasso determinante, por darem sequência à edificação sobre pilotis de Ruy D’Athouguiae Formosinho Sanches no Bairro das Estacas (1949) e por introduzirem, de formaexplícita, a circulação e a fruição numa lógica de plataforma única plurifuncional.

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262

95 Em paralelo, o acompanhamento deste processo pela primeira geração de arquitetos

paisagistas sob a alçada do Professor Caldeira Cabral, de forma mais efetiva aquando dasua integração no Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU) (1956-1959), permitiuintroduzir na conceção dos espaços ajardinados e arborizados do Bairro os cânones dasua doutrina, a arte, a interdisciplinaridade técnica e artística (em particular com aarquitetura) e a ecologia.

96 Para o desenho de Ribeiro Telles terá contribuído a experimentação de soluções de

desenho e de composição de espécies nos projetos para a Av. Dom Rodrigo da Cunha epara o Bairro das Estacas (1953) e a sua integração no GEU, constituindo este ummomento estimulante da relação interdisciplinar entre arquitetos e arquitetospaisagistas, até então condicionada pelo desfasamento temporal entre os projetos dearquitetura desenvolvidos e acompanhados pela DSUO e os projetos de arborização eajardinamento elaboradas na DST-E.

97 No contexto dos anteprojetos dos Planos de Urbanização elaborados no GEU, Ribeiro

Telles observa a função dos ajardinados enquanto equipamento dos conjuntoshabitacionais, incorporando nos ajardinados da Av. EUA os parques infantis comaspetos inovadores à época (contemplados no PDUL-1958) e que antecipam em quasequatro décadas muitos dos aspetos do decreto-lei nº 379/97 de 27 de setembro, oprimeiro diploma legal sobre Espaços de Jogo e Recreio publicado em Portugal.

98 A elaboração, praticamente em simultâneo, dos projetos para os ajardinados

(1957-1959), e para a faixa central e para os cruzamentos (1958), permitiu a RibeiroTelles conceber o ajardinamento e a arborização da avenida como um projeto único,seguindo uma lógica de incorporação de vegetação subjacente à aplicação do conceitode continuum naturale, adaptada às circunstâncias, às condicionantes e aos desafioscolocados pelos projetos de arquitetura e dos arruamentos.

99 A análise sistemática dos projetos dos ajardinados de Ribeiro Telles para a Av. EUA

entre os que elaborou para o Bairro colocam-nos num segundo momento autoral doautor, quando comparados com os projetos para o interior das células habitacionais. Orecurso a formas regulares na pavimentação e a composição da vegetação em posiçõesrelativamente simétricas que se verificam, por exemplo, nas Células Habitacionais 6 e 7,dão lugar a formas menos regulares, por vezes de contorno orgânico, em que adisposição da vegetação associada à modelação do terreno relembram a paisagemnatural.

100 Ao situarmos a conceção dos ajardinados da Av. dos EUA entre os Planos Diretores de

Urbanização de Lisboa (1948 -1958), reconhecem-se contributos decisivos de ambos, dosestudos que lhe deram suporte, assim como das fases de planeamento intermédias deajuste e de incorporação do conhecimento arquitetónico, reflexo dos novos modos devida em sociedade e das perspetivas atualizadas de crescimento da cidade. Assim, nagénese do processo de abertura do logradouro, identifica-se como decisiva a análise dacidade que informou o Plano De Gröer (que serviu igualmente de base ao Plano de

Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro). Para a conceção final dosajardinados, em particular, no que concerne à conceção dos parques infantis, terãocontribuído os estudos do PDUL-1958.

Arquivo Municipal de Lisboa | núcleo Arco do Cego

Arquivo do Ministério de Economia

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263

Gabinete de Estudos Olissiponenses

Legislação

Sítios consultados

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NOTAS

1. População de Lisboa: 1911 – 435.359 hab.; 1920 – 489.667 hab. (República Portuguesa, 1921: 7);

1930 – 594.390 hab. (República Portuguesa, 1933: 122).

2. Planta da Cidade de Lisbôa. Planta N.º 5 – Localisação das Habitações Clandestinas, 1953, (CML, 1938).

3. Estabelecia “um regime de renda fixa e um subsídio de renda para o senhorio, variável,

destinado a compensá-lo das perdas resultantes do facto de ter que praticar uma renda inferior à

justa remuneração dos capitais investidos” (IRHU, 2015: 3).

4. Confirmada no recenseamento de 1940 a existência de 694.389 hab. (República Portuguesa,

1945).

5. Para além deste período Duarte Pacheco ocupou a pasta de Ministro das Obras Públicas e

Comunicações entre 1932 e 1936.

Cidades, 40 | 2020

267

6. Alvito (1937), Quinta do Jacinto (1937), Alvalade (1938), Belém (1939), Caramão da Ajuda (1938),

Quinta das Furnas (1938), Quinta da Calçada (1939), Alto da Serafina (1940), Encarnação (1940),

Madre Deus (1942), Campolide (1943), entre outros (Costa, 2002: 17). Plano de Urbanização da

Encosta da Ajuda – 1ª Fase, 1938 (Bento d’ Almeida, 2013: 27)

7. CML. DSUO. GEU. Plano Diretor, Distribuição na Cidade segundo a Previsão do Arquitecto E. De Gröer

feita em 1948, Março de 1954, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/411, p.1.

8. De Gröer definida “Zonamento” como a divisão da área abrangida por um plano de urbanismo

por zonas de diferente regulamentação, em que esta determinava a afetação dos terrenos de uma

zona a uma mesma atividade (indústria, comércio, habitação, etc.) e a taxa da sua utilização

(CML, 1948c: 7)

9. Apesar de concluído por De Gröer em 1948, nunca chegou a ser aprovado pelo Governo (Silva,

1986: 379).

10. Primeira Circular (mais interior) entre a Av. 24 de Julho 1833 e Stª. Apolónia, integrando a Av.

Infante Santo, o L. do Rato, as ruas Alexandre Herculano, Joaquim Bonifácio e Jacinta Marto,

Forno do Tijolo e Rua dos Sapadores; Segunda Circular entre Alcântara e Xabregas, integrando a

Av. Calouste Gulbenkian, Av. Berna, Av. João XXI, com passagem na Rotunda do Areeiro e entre o

Alto de São João e o Bairro Madre de Deus; Terceira Circular entre a Praça General Humberto

Delgado (Praça de Sete Rios até 1979) e o Poço do Bispo, integrando a Av. 28 de Maio (Av. das

Forças Armadas após 1974) e a Av. EUA até à Av. Aeroporto (Almirante Gago Coutinho após 1960),

com ligação ao Beato e ao Poço do Bispo com traçado a poente de Marvila e a nascente do Bairro

Madre de Deus. Quarta Circular entre Pina Manique e o Cabo Ruivo, integrando a Av. Marechal

Carmona (Av. General Norton de Matos após 1974) entre a Estrada de Benfica a o Campo 28 de

Maio (atual Campo Grande), a Av. Marechal Craveiro Lopes entre o Campo 28 de Maio e a Praça do

Aeroporto (vulgo Rotunda do Aeroporto) e a Av. de Cabo Ruivo (Av. Marechal Gomes da Costa

após 1966) entre a Praça do Aeroporto e o Cabo Ruivo; Quinta Circular entre Pina Manique e

Moscavide, com passagem por Benfica, Pontinha, Paço do Lumiar, Lumiar e a norte do aeroporto

por Ameixoeira e Charneca, infletindo posteriormente para Moscavide com passagem a nascente

do Bairro da Encarnação. Eixo da Av. da Liberdade – Av. António Augusto de Aguiar e seu

prolongamento com saída de Lisboa pelo Lumiar através da Praça Mouzinho de Albuquerque

(atual Praça de Entrecampos). Eixo do prolongamento da Av. Almirante Reis com saída da cidade

pela Encarnação, através do seu limite Nascente (Câmara, 1948d). Consultar em Evolução do

Planeamento Urbano de Lisboa o Plano Geral de Urbanização e Expansão de Lisboa - PGUEL (Étienne de

Gröer) – 1948, disponível em https://www.lisboa.pt/cidade/urbanismo/planeamento-urbano/

evolucao

11. Planta da Cidade de Lisbôa. Planta N.º 5 – Localisação das Principais Fábricas e Oficinas, 1953, que

acompanha o relatório “Elementos para o Estudo do Plano de Urbanização da Cidade” (CML,

1938), ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/12/01/15, p.1.

12. Delimitado pela Av. República e as ruas Oriental e Ocidental do Campo 28 de Maio a Poente, a

Av. Alferes Malheiro a Norte (Av. do Brasil após 1948) a Norte, a artéria de prolongamento da Av.

Almirante Reis (atualmente Av. Almirante Gago Coutinho) a Poente e pelo Caminho-de-Ferro a

Sul. Atravessado pelas avenidas dos EUA, da Igreja, Rio de Janeiro e de Roma.

13. Conceito definido pelo arquiteto urbanista Clarence Perry (1872-1944) que pretendia recriar

em unidades territoriais as relações de proximidade perdidas na Cidade Moderna, pela criação de

áreas residenciais em torno das escolas e dos equipamentos cívicos.

14. Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro - Esquema da Distribuição dos

Diferentes Tipos de Edifícios (Esc. 1/2.500). AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0545,p.2, com

sobreposição da numeração das células habitacionais.

15. Em contraponto à habitação de renda limitada, regulada pelo Decreto-Lei Nº 36:212 de 7 de

Abril de 1947, que se distingue dos restantes regimes pelo facto do valor não poder exceder

determinadas quantias.

Cidades, 40 | 2020

268

16. Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro - Esquema de Utilização do Solo (Esc.

1/2500). AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0837, p.2.

17. Pontos 1 a 5 no nº 20 de fevereiro de 1948; pontos 6 a 8 no nº 21 de março de 1948; pontos 9 a

16 no nº 22 de abril de 1948; pontos 17 a 27 no nº 23/24 de maio/junho de 1948; pontos 29 a 33 no

nº 25 de julho de 1948; pontos 34 a 41 no nº 26 de agosto/setembro de 1948; pontos 42 a 51 no nº

27 de outubro/dezembro de 1948; pontos 52 a 62 no nº 28 de janeiro de 1949; pontos 63 a 71 no nº

29 de fevereiro/março de 1949; pontos 72 a 81 no nº 30 de abril/maio de 1949; pontos 82 a 91 no nº

31 de junho/julho de 1949.

18. CML \ DST-E \ 3ª Repartição. Ajardinado da Avenida D. Rodrigo da Cunha, 1953; Projecto de

Ajardinamento da Zona Comercial na Célula 8 (Alvalade), 1953. AML.

19. Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro - Esquema da Distribuição dos

Diferentes Tipos de Edifícios (Esc. 1/2500). AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0545,p.3.

20. Os espaços resultantes da abertura do logradouro continuam a ser referenciados na

tramitação dos processos na CML como «logradouros». Costa refere-se a estes espaços como

«logradouros» no contexto da Av. D. Rodrigo da Cunha, como «Espaços de Logradouro Públicos»

no contexto do Bairro das Estacas (Costa, 2002: 98) e como “Logradouros Públicos Ajardinados”

no contexto dos conjuntos habitacionais do Lado Norte da Avenida dos EUA (Costa, 2002; 110). No

âmbito deste artigo, utiliza-se a designação dominante nas respetivas peças de projeto.

21. Imagem do conjunto habitacional entre as avenidas do Aeroporto e Rio de Janeiro, 1960. AML

| Núcleo Fotográfico, ref. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ARM/I00441.

22. Seguindo a implantação prevista na Planta de Divisão de Lotes, 1951 (Fig. 2).

23. Observar em continuidade o desenho n.º 7387/10.11 e 12N/E, Esc. 1/500. AML, ref. PT/

AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0248, p.13A.

24. Observar em continuidade o desenho n.º 8637-10,11 e 12N/E, Esc. 1/500. AML, ref. PT/AMLSB/

CMLSB/UROB/EV/0244, p.10A.

25. CML \ DST-E \ 3ª Repartição. Avenida Infante Santo. Projecto de Espaços Verdes, 1957; Avenida

Infante Santo. Projecto dos Ajardinados entre os Blocos (Lado Nascente), 1958. AML.

26. CML \ DST-E \ 3ª Repartição. Avenida Infante Santo. Jardim Poente, 1960; Jardim Poente da Avenida

Infante Santo (Alteração), 1960. AML.

27. CML. DST-E. 3ª Repartição. Projecto de Arborização do Triângulo compreendido entre o Bairro de

Alvalade, a Avenida do Brazil e a Avenida do Aeroporto, 1950-51. AML.

28. CML. DST-E. 3ª Repartição. Construção de Ajardinados nas Placas Centrais da Avenida do Aeroporto,

1951; Projecto de Remodelação da Placa da Rotunda do Aeroporto, 1953. AML.

29. CML. DST-E. 3ª Repartição. Projeto dos Caminhos de Peões da Avenida do Brasil (Troço entre a Praça

do Aeroporto e a Estrada da Portela), 1959. AML.

30. CML. DST-E. 3ª Repartição. Projecto de Ajardinado, para a Praceta da Rua 50 da Célula 7 do Sítio de

Alvalade (Praça Francisco de Morais), 1951-52; Projecto de um Ajardinado para a Praça da Rua n.º 50A do

Bairro de Alvalade (Praça Gonçalo Trancoso), 1952; Projecto de um Ajardinado para a Praça da Rua n.º 48

do Bairro de Alvalade (Praça Andrade Caminha), 1952; Projecto de Revestimento dos Canteiros das Ruas da

Célula VII (Alvalade), 1954. AML.

31. CML. Alvalade. Jardins Públicos. Projeto do Jardim junto ao Centro Escolar da Célula n.º 2, Manuel

de Azevedo Coutinho, 1950-51. Ribeiro Telles participa na elaboração da Estimativa Orçamental e

do Caderno de Encargos.

32. CML. DST-E. 3ª Repartição. Projecto de Enquadramento da Igreja de São João de Brito, 1956-58.

33. Belém (Projecto de Construção, do Jardim da Praça de Damão (1951); Projecto de Construção do,

Jardim da Praça de Gôa (1951); Projecto de Arborização e Ajardinamento da Praça de Santo Eugénio (Bairro

da Encarnação) (1952); Projecto do Jardim da Praceta V da Rua D. Francisco de Almeida (1952)); Benfica

(Projecto dos Espaços Verdes Públicos do Bairro de Sta. Cruz (1958)), entre outros.

34. Freguesia dos Prazeres (Projecto de Arranjo duma Placa do Jardim 9 de Abril (1950)); Freguesia de

São João de Deus (Projecto de Construção do Jardim, Junto ao Liceu D. Filipa de Lencastre (1951));

Cidades, 40 | 2020

269

Freguesia da Encarnação (Projecto de Remodelação do Jardim de S. Pedro de Alcântara (1954));

Freguesias de Coração de Jesus e de São José (Remodelação da Av. Liberdade (1955-58), em coautoria

com Francisco Caldeira Cabral), Freguesia do Castelo (Projecto de Arranjo do Fosso do Castelo de S.

Jorge (1951)), entre outros. Localizações segundo CML. DSUO. 2ª Repartição. Freguesias de Lisboa, Esc.

1/25.000, 194-; ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/394, p.1.

35. O Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU) foi chefiado pelos engenheiros-chefes Guimarães

Lobato entre Janeiro de 1954 e Abril de 1958 e Sousa Eiró entre Abril a Outubro deste mesmo ano

(Câmara, 1958d: 1/1).

36. Edgar Sampaio Ferreira Fontes entrou para a RAJ em 1953, sucedendo a Manuel de Sousa

Coutinho e Ribeiro Telles em 1950 (Bettencourt da Câmara, 2015: 69).

37. Manuel Pereira da Nóbrega de Sousa da Câmara (1929-1992) entrou para a RAJ em 1957,

sucedendo a Edgar Fontes (Bettencourt da Câmara, 2015: 69).

38. CML\DST-E\ 3ª Repartição. Zona da Mata de Alvalade. Sugestão para o Arranjo Paisagístico do

Areeiro do Narigão, 1966. AML

39. Em Arranjo do Campo Grande. Estudo-Base, elaborado pelo arquiteto Pedro Falcão e Cunha,

colaboraram os arquitetos paisagistas Ribeiro Telles e o Professor Caldeira Cabral (CML, 1956b);

Em Urbanização Praça de Espanha, da Artéria em Prolongamento da Avenida António Augusto de Aguiar,

da Palhavã e de Sete Rios. Estudo-Base, elaborado pelos arquitetos Pedro Falcão e Cunha e José

Vitorino da Costa Bastos, colaborou o arquiteto paisagista Ribeiro Telles (CML, 1957b); Em

Urbanização do Vale Escuro. Estudo-Base, elaborado pelos arquitetos Bartolomeu Costa Cabral e

Sommer Ribeiro, colaboraram os arquitetos paisagistas Ribeiro Telles e o Professor Caldeira

Cabral (CML, 1957c); Em Urbanização de S. Mamede, Mercês, Bairro Alto e Santa Catarina. Estudo-base,

elaborado pelos arquitetos Frederico Carvalhosa e Oliveira e Fernando Ressano Garcia,

colaboraram os arquitetos paisagistas Álvaro Dentinho (1924-2014) e o Professor Caldeira Cabral

(CML, 1957d).

40. Alterado pelo DL 119/2009, de 19 de Maio e posteriormente substituído pelo DL 203/2015, de

17 de Setembro (com entrada em vigor em 15 de Janeiro de 2016).

41. Previsto no DL 379/97, de 17 de Dezembro, nos artigos 6º - Acessibilidade, 10º - Condições de

proximidade e visibilidade e 11º - Principios Gerais.

42. Considerado um dos maiores arquitetos paisagistas do século XX. Conhecido por ser o autor

do primeiro parque de aventura (em coautoria com Hans Dragehjelm) em Emdrup, Copenhagem

(Anderson, 2001).

43. A preocupação com a visibilidade do espaço a partir da envolvente foi prevista no DL 379/97,

de 17 de Dezembro, Secção I – Localização e implantação, artigo 10º - Condições de proximidade e

visibilidade.

44. Interpreta-se referir-se aos grupos pré-escolar (dos 3 aos 7 anos) e escolar (dos 7 aos 12-14

anos).

45. Como exemplo da aplicabilidade deste modelo o Plano refere o caso de Gotemburgo

(Gottemburg), onde se aplicou a proporção de 1:2,5; 2,5; 6 para a caixa de areia, área de

brinquedos, área para jogos de organização e terreiro, respetivamente (CML, 1958d: v4.5/6).

46. Previsto pelo DL 379/97 de 17 de Dezembro, Secção II – Concepção e Organização Funcional,

artigo 11º - Principios Gerais, alínea a) do n.º 2.

47. CML. Arranjo de Conjunto e Blocos de Habitação para o terreno situado na Avenida dos Estados Unidos

da América (Troço Av. do Rio de Janeiro – Av. do Aeroporto) – Anteprojeto, 1956 (Costa: 2002: 108-110).

48. Embora as peças de projeto informem como limites da intervenção as avenidas do Aeroporto

e Rio de Janeiro, o espaço projetado estende-se para Nascente até à R. Francisco Lourenço da

Fonseca.

49. CML. Sítio de Alvalade. Célula 8. Zona Comercial. Arranjo do Terreno, 1949.

50. CML\DST-E\ 3ª Repartição. Projecto de Ajardinamento da Zona Comercial da Célula 8 (Alvalade),

1953.

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51. No âmbito dos projetos elaborados pela 3ª Repartição - Arborização e Jardinagem da DST-E os

espaços livres entre os blocos habitacionais irão ser designados nas peças desenhadas por

“Ajardinados”, ocorrendo por vezes a designação de «logradouro» nas peças escritas. A

designação de «logradouro» é retomada nas peças desenhadas no Anteprojeto dos Ajardinados dos

Logradouros da Avenida do Brasil, elaborado por Sousa da Câmara entre 1963-64.

52. Ano em que Ribeiro Telles elabora o projeto do Parque Infantil do Campo Grande, em sequência

do anteprojeto elaborado por Azevedo Coutinho em 1954. AML.

53. Azevedo Coutinho ressalva em nota de rodapé que os jardins formais são igualmente

paisagísticos.

54. Relatório A Arborização do Sítio de Alvalade elaborado por Azevedo Coutinho enquanto

profissional liberal, datado de 30 de Novembro e submetido à Câmara Municipal em 2 de

Dezembro de 1949 em resposta à solicitação da DSUO.

55. Interpreta-se o objetivo de diminuir a distância a partir dos blocos, numa lógica semelhante à

aplicação do conceito de «Unidade de Vizinhança» que colocou a Grupo Escolar no centro da

célula habitacional.

56. Interpreta-se na designação de «Jardim Robinson» a intenção de criar um espaço de fantasia

alusivo ao romance Robinson Crusoé de Daniel Defoe, publicado em 1719. Na recreação das

aventuras de Robinson Crusoé, Ribeiro Telles prevê a instalação de barcos, de equipamentos para

trepar, elementos de água (o mar e os cursos de água), áreas de clareira (a praia) e maciços

arbóreo-arbustivos (a orla da floresta).

57. Vegetação característica da região, adaptada aos fatores climáticos (fotoperíodo,

temperatura, pluviosidade e humidade do ar), aos fatores fisiográficos (geomorfologia, exposição)

e aos fatores edáficos (tipo e características físicas do solo).

58. Herbáceas com ciclo de vida superior a um ano.

59. Termo utilizado em floricultura e na prática da arquitetura paisagista em que na composição

de maciços herbáceo-arbustivos se conjugam espécies com a finalidade e obter cor ao longo ano

pela floração e folhagem das diferentes espécies.

60. Definida no programa base como obrigatório para assegurar o acesso às entradas do bloco por

viaturas de emergência (Câmara, 1959: 2).

61. Manuel Pereira da Nóbrega de Sousa da Câmara entrou para a 3ª Repartição – Arborização e

Jardinagem em 1957 (Bettencourt da Câmara, 2015: 69).

62. Cruzamento das Avenidas de Roma e dos E.U.A. Jorge Segurado e Filipe Figueiredo, 1951. AML,

ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/PU-10-2013, p.1 e seguintes.

63. Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro - Esquema da Distribuição dos

Diferentes Tipos de Edifícios (Esc. 1/2500). AML, ref. PT/AMLSB/CMLSB/UROB/EV/0545,p.3.

64. Concretização do projeto em imagem da década de 1960. AML | núcleo fotográfico, ref. PT/

AMLSB/ART/000141.

65. CML. DST-E. 3.ª Repartição. Avenida dos Estados Unidos da América. Troço Rua Frei Tomé de Jesus –

Rua Diogo Bernardes. Lado Sul, 1959. AML.

RESUMOS

Com suporte na investigação da génese e das características da Estrutura Verde do Bairro de

Alvalade, e com incidência na documentação dos arquivos municipais de Lisboa, o artigo observa,

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no contexto do planeamento e do projeto, os traços conceptuais que, na definição do espaço

urbano da Avenida dos Estados Unidos da América, propiciaram a implementação de um

Corredor Verde no Bairro de Alvalade e na Cidade.

Partindo do enquadramento da avenida no Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes

Malheiro (aprovado em 1945) e do Plano Geral de Urbanização e Expansão de Lisboa (elaborado por

Étienne De Gröer entre 1938 e 1948), o artigo revisita o crescimento da cidade e as propostas de

implantação ao longo da avenida (1951, 1956 e 1959). Em paralelo, elenca os projetos dos

conjuntos habitacionais do Bairro influenciados pela publicação em Portugal da Carta de Atenas

(1948) e pelo surgimento do Movimento Moderno que, no seu conjunto, propiciaram a abertura

do logradouro e a redefinição do espaço urbano da avenida.

Num segundo momento, o artigo aborda a conceção do espaço urbano da avenida nos finais da

década de 1950 na sequência do ensino da arquitectura paisagista em Portugal a partir de 1942

por Francisco Caldeira Cabral e da sua prática na Câmara Municipal de Lisboa pela primeira

geração de técnicos com esta formação específica a partir de 1950, cuja matriz ecológica, artística

e aberta à dialética interdisciplinar permitiu explorar os espaços intersticiais do bairro e

implantar um corredor verde segundo o conceito de continuum naturale.

ÍNDICE

Keywords: Bairro de Alvalade, dialética projetual, espaço urbano, estrutura verde, parques

infantis

AUTORES

JORGE DA ROSA NEVES

DINÂMIA’CET-ISCTE, Portugal, jorge_gabriel_neves [at] iscte-iul.pt

PAULO TORMENTA PINTO

DINÂMIA’CET-ISCTE, Portugal, paulo.tormenta [at] iscte-iul.pt

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A política urbana no Brasil e emPortugalContexto e evolução histórica

Eglaísa Micheline Pontes Cunha, Rui Pedro Julião e Francisco HenriqueOliveira

1. Introdução

1 As políticas urbanas “devem referir-se às reais ações e às propostas consequentes de

ação do Estado sobre o Urbano” (Villaça, 1999 :180). Sua implementação depende dosrecursos públicos que lhe são aferidos, conforme as diretrizes e marcos regulatóriosestruturados pelo Estado ao longo do tempo. Sua eficácia, no entanto, depende dainterseção de vários fatores, tais como o contexto histórico e o protagonismo de seusagentes.

2 Neste artigo, buscamos reconstituir o processo de evolução histórica dos quadros

regulamentares da política urbana no Brasil e em Portugal, a partir do século XIX, deforma a conjugar aspectos que permitam uma compreensão geral do atual contexto deambos os países e dos seus desafios consequentes. Por se tratar de um processohistórico e exaustivo, optamos pela abordagem dos principais condicionantes quecontribuíram para a evolução das respectivas políticas.

3 Na primeira parte apresentamos a evolução histórica da política urbana no Brasil, onde

se destaca a aprovação do Estatuto da Cidade, Lei n.º 10 257, de 10 de julho de 2001, quecongregou um conjunto de princípios e instrumentos que expressam a concepção decidade, de planejamento e de gestão urbana por meio de um processo público edemocrático. Esta Lei ocasionou mudanças no cotidiano dos municípios, em especial,sob o ponto de vista do controle social, requisito obrigatório na implementação da novapolítica urbana.

4 De seguida, resume-se a evolução do processo de formação do ordenamento do

território como política pública autónoma em Portugal. Apresenta-se, assim, a evoluçãodos seus principais marcos regulatórios, em que se busca uma perspectiva estratégica

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por meio, entre outros, da institucionalização de um Programa Nacional de Políticas deOrdenamento do Território (PNPOT) para a coordenação de políticas e instrumentos degestão territorial.

5 Ainda que Brasil e Portugal, apesar de suas conexões históricas, sejam muito diferentes

nas perspectivas territorial, económica, demográfica, social e institucional, foi possívelcompreender a partir deste estudo, as fragilidades técnico-institucionais dos agentespúblicos e sociais envolvidos com a implementação da política urbana. Tais fragilidadesrevelam-se, seja em função da conjuntura política específica, em que governos e atoressociais contribuem para conformar ambientes específicos que limitam e condicionam aação popular, seja em função da carência de recursos humanos qualificados pararesolver de forma eficiente questões técnicas que fazem parte de qualquer programa,projeto ou ação de governo na área urbana, e a partir disso tecer algumas consideraçõese recomendações possíveis.

2. A Política Urbana no Brasil

6 A política urbana no Brasil foi marcada por momentos de inflexão política

intermitentes. Motivada pelo acelerado processo de urbanização do país, a partir dasegunda metade do século XX, e impregnada das mazelas estruturantes do processo deformação da sociedade brasileira, a formalização efetiva da política urbana brasileira sóocorreu a partir da Constituição Federal de 1988, a primeira a dedicar-lhe um capítuloespecífico1, ainda que vinculada ao título “da ordem económica e financeira”.

7 No âmago da perspectiva histórica deste processo encontra-se o intenso processo de

industrialização associado à explosão demográfica no país. A população passa depredominantemente rural para maioritariamente urbana em apenas cinquenta anos :entre 1960 e 2010, o Brasil urbano passa de 32 milhões para 160 milhões de pessoas(IPEA, 2016 : 30). Neste processo observa-se uma correlação direta entre o modelo dedesenvolvimento e as políticas públicas adotadas no país que, ao contrário de mitigar,retroalimentaram a crise urbana deflagrada pelo despreparo dos municípios em lidarcom os efeitos da urbanização, a partir de um cenário de recursos financeirosinsuficientes, inadequados meios administrativos e ausência de instrumentos jurídicosespecíficos.

8 A partir desse contexto, em meados da década de 1960, segmentos progressistas da

sociedade brasileira iniciaram demandas por reformas estruturais na questão fundiária,a partir dos ideais da Reforma Agrária que integrava o plano das chamadas “ reformasde base » no governo do Presidente João Goulart. Essas demandas foram discutidasdurante a realização de um Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRU)2

promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil, em 1963, e sistematizadas comoorientações para que fosse iniciada uma reforma urbana no país, a partir de medidaspara o estabelecimento de uma política de planejamento urbano e habitação.

9 Com a ditadura militar, a partir de 1964, uma boa parte das propostas do Seminário não

prosperou e só foi retomada duas décadas depois, no período de redemocratização dopaís, por meio da atuação do Movimento Nacional da Reforma Urbana junto àConstituinte de 1988 e à criação do Ministério das Cidades em 2003.

10 No entanto, a profunda transformação imposta à força pelos militares também

impulsionou a implementação de algumas orientações decorrentes do SHRU, como a

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criação do Banco Nacional de Habitação e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo(SERFHAU) : “(...) A reformulação da ação habitacional no país requeria um novo quadroinstitucional, pois o quadro político do período pré-64 obstaculizava transformaçõesmais profundas, que já tinham sido tentadas em outras oportunidades. Assim,contraditoriamente, a profunda transformação imposta à força pelos militares criou umambiente favorável à implementação de algumas propostas surgidas no SHRU, como acriação do BNH e do SERFHAU”. (Bonduki, 2010, n.p)

11 Durante o período militar destaca-se ainda a aprovação do II Plano Nacional de

Desenvolvimento - PND (Lei n.º 6 151, de 4 de dezembro de 1974), que além do viéseconómico moldado pela estratégia de integração nacional e de desenvolvimento social,apresenta formalmente, e pela primeira vez, uma Política Nacional de DesenvolvimentoUrbano (PNDU) para o país, em conjunto com a estratégia de controle da poluição epreservação do meio-ambiente, indicando dessa forma certa preocupação acerca dosefeitos da expansão industrial e da excessiva concentração urbana.

12 O II PND destacou-se ainda por apresentar, no âmbito de uma PNDU, maior detalhe e

amplitude da temática urbana com a temática regional e ambiental, o que pode serinterpretado como uma tentativa de ampliar a visão setorial tradicionalmenteencontrada, embora pouco se tenha avançado na alocação coerente de recursos,conforme as ações preconizadas. Segundo Bernardes (1986), havia pouco respaldopolítico e pouco apoio dos grupos económicos às ações, o que fez com que a referidapolítica de desenvolvimento urbano não alcançasse melhores resultados.

13 Institucionalmente, neste período, a gestão da política urbana ficava a cargo da

Secretaria de Articulação entre Estados e Municípios – administradora do Fundo deParticipação dos Municípios, e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo(SERFHAU), que administrava o Fundo de Financiamento ao Planejamento (Brasil,2004). Neste sentido, a questão habitacional avançava sob dois pontos de vista : daprodução do espaço urbano e da colmatação do espaço existente por meio doplanejamento (Serra, 1991). O plano diretor foi a proposta para planejar o crescimentourbano das cidades e seu financiamento era provido pelos órgãos referidos : SERFHAU,FIPLAN (Financiamento para o Planejamento Urbano) e o BNH, conforme a Lei n.º4 380/1964 que também lhe pautou atribuições que compreendiam desde promoverpesquisas e estudos relativos ao déficit habitacional, aspectos do planejamento físico,técnico e socioeconómico da habitação.

14 O Sistema Financeiro da Habitação e o Banco Nacional da Habitação (BNH), na prática,

foram os responsáveis pelo primeiro maior movimento de construção que o Brasilconheceu nas cidades, alimentado pelas contribuições compulsórias dos assalariados aoFundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e pela poupança privada relativa àSociedade Brasileira de Poupança ou Empréstimo.

15 Cabe observar que o SERFHAU, imbuído da atribuição de dar apoio ao planejamento

urbano e local no Brasil, era dependente dos recursos do BNH, mas protagonista doprocesso metodológico dos planos a serem desenvolvidos pelos municípios.

16 Da vasta bibliografia relacionada ao tema3, depreende-se que a aplicação desses planos

a uma parte das cidades ignorou as condições de assentamento e as necessidades dagrande maioria da população urbana, relegada à ocupação ilegal e clandestina dasencostas e áreas baixas das periferias ou, em menor escala, aos cortiços4 em áreascentrais abandonadas. Por consequência, a falta de aplicabilidade dos planos diretores

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fez com que o seu destino fosse as gavetas das administrações municipais. A sociedadepouco se envolveu ou teve notícia destes instrumentos e de suas possibilidades.

17 O planejamento tecnocrático foi, portanto, o destaque na concepção urbanística da

década de 1970, materializada nos referidos organismos criados em 1964 para dirigir apolítica urbana do regime militar. Dessa forma, a gestão tecnocrática empreendidaacabou por fomentar um processo caracterizado pela apropriação privada dosinvestimentos públicos e pela segregação de grandes massas populacionais em favelas,cortiços e loteamentos periféricos, excluídos do acesso a bens, serviços e equipamentosurbanos essenciais (Bassul, 2004).

18 Além disso, as concepções do urbanismo modernista funcionalista inseriram-se no

cotidiano das cidades brasileiras e contribuíram para a consolidação de sociedadesdesiguais, ao ocultar a cidade real e preservar condições para a formação de ummercado imobiliário especulativo e restrito a uma minoria (Maricato, 2015). SegundoDel Rio (2000, n.p), “um dos mais sentidos legados desse urbanismo e que permeia ocotidiano de nossas cidades são os dispositivos restritivos e classificatórios da lei dezoneamento. Se por um lado tenta-se proteger funções urbanas do impacto de outras, o'zoning' é derivado da quebra da visão da cidade como 'continuum' (físico-espacial, sociale histórico) e tende a promover uma abordagem fracionada, que não reconhece ariqueza da complexidade urbana e trata a cidade por partes estanques, mais facilmentemanipuláveis. No Brasil, bem como em todas as grandes cidades mundiais, através dozoneamento, esta visão modernista equivocada promoveu o monofuncionalismo e oesvaziamento de áreas urbanas, impacto sentido sobretudo nos centros históricos dascidades maiores, gerando áreas esvaziadas, propensas à marginalidade e inseguras, comprocessos de degradação de difícil reversão, nesses espaços repletos de infraestrutura e,na maioria das vezes, carregados de significado para suas comunidades.”

19 Cabe observar, igualmente, que os planos governamentais antecedentes e

subsequentes, como o III Plano Nacional de Desenvolvimento (1980-1985), ou o I PlanoNacional de Desenvolvimento da Nova República (1986 a 1989) não tinham a políticaurbana como prioridade. A ênfase estava sempre na proposição de ações voltadas aocrescimento económico amparado pelo desenvolvimento do mercado, o que ampliou apauta de problemas existentes, tornando o quadro urbano ainda mais complexo diantedas diretrizes e das proposições superficiais registradas nesses documentos.

20 No período que compreende os anos de 1980 e 1990 o país entra em compasso de baixo

crescimento. Os setores produtivos ligados à habitação e ao saneamento entram emcrise e o BNH, afundado em dívidas, é extinto em 1986. A Caixa Econômica Federalassume, então, o espólio do BNH e termina por conduzir, ainda que sem uma orientaçãoformal e explícita, o rumo da política urbana, tendo em vista seu poder como agenteoperador do FGTS – a maior fonte de recursos para o financiamento público dahabitação e do saneamento.

21 A restrição de crédito para o setor público e o corte nos investimentos públicos

motivados pelos ajustes impostos pelos agentes financeiros internacionais5, entre eles oFundo Monetário Internacional (FMI), promoveram um forte recuo das ações deinfraestrutura urbana no Brasil, resultando numa ausência de políticas setoriais clarasdecorrentes de uma gestão macroeconómica pautada pelo ajuste fiscal.

22 Na contramão do declínio do crescimento económico, movimentos sociais e operários

atuaram na elaboração de plataformas para mudanças políticas, com propostas de base.Esse crescimento das forças democráticas alimentou a articulação de movimentos

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comunitários e setoriais urbanos com o movimento sindical. Dessa forma, nasce oMovimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) que resgata as propostas de baseelaboradas no SHRU na década de 1960 e retoma a agenda interrompida pela ditadura,com o objetivo de lutar pela democratização do acesso a condições condignas de vidanas cidades brasileiras. Segundo Maricato (2015), esse movimento reunia entidadesprofissionais (arquitetos e urbanistas, engenheiros, advogados, assistentes sociais),entidades sociais (urbanitários, sanitaristas, setor de transportes), lideranças demovimentos sociais, ONGs, pesquisadores, professores, intelectuais, entre outros. Porsua influência foram criadas comissões parlamentares e foram eleitos prefeitos,vereadores e deputados.

23 Nesse período destacam-se algumas experiências democráticas, como o orçamento

participativo de Porto Alegre6 e programas de urbanização e regularização fundiária defavelas, que começaram a incorporar a participação popular nas decisões dasadministrações públicas.

24 Em paralelo, os ideais da reforma urbana ganham corpo conceitual e maior consistência

política no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte, convocada em 1986, cujoRegimento admitiu a apresentação de propostas de iniciativa popular.

25 Neste sentido, as entidades componentes do MNRU articularam-se e apresentaram uma

Emenda Constitucional de Iniciativa Popular de Reforma Urbana firmada por mais de160 mil eleitores em todo o país. Pela primeira vez na história do Brasil, umaConstituição Federal aprovada estabelece um capítulo dedicado à política urbana, cujasbases se firmam em torno da função social da cidade e da propriedade7.

26 Segundo Saule Júnior (2009 : 262), “com a emenda popular, o direito público brasileiro

passou não somente a garantir a propriedade privada e o interesse individual, mas aassegurar o interesse coletivo quanto aos usos individuais da propriedade. Assim, apropriedade deixou de ser somente vinculada ao direito civil, matéria de caráterprivado, e passou a ser disciplinada pelo direito público. Separou-se o direito depropriedade do direito de construir, que tem outra natureza, que é a de concessão dopoder público ; estabeleceram-se penalizações com atribuição normativa, calcadas emuma série de instrumentos jurídicos e urbanísticos, impondo ao proprietário do solourbano ocioso – que se vê sustentado pela especulação imobiliária, ou mantém seuimóvel não utilizado, subutilizado ou não edificado – graves sanções, inclusive adesapropriação.”

27 A eficácia destes preceitos constitucionais, no entanto, prescindia da sua

regulamentação, processo que durou 13 anos marcados por “vitórias e derrotas” até acomemorada aprovação, em 2001, da Lei n.º 10 257, denominada Estatuto da Cidade,primeira norma federal brasileira de diretrizes para a política urbana.

28 A partir do Estatuto da Cidade, as bases do pensamento da política urbana no Brasil

passaram a ter características singulares que se estabelecem pela nova e avançadalegislação urbanística pautada por meio do “direito a cidades sustentáveis”, e do“direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana,ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futurasgerações” (art. 2º, I, Lei n.º 10 257/2001), por meio de uma “gestão democrática” quedeve ser articulada no âmbito da “participação da população e de associaçõesrepresentativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução eacompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (art. 2º,II, Lei n.º 10 257/2001) e, sobretudo, pelo princípio da função social da cidade e da

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propriedade que fundamentam o novo paradigma jurídico-político que projeta, para opoder público e a sociedade civil organizada, o controle, o uso do solo e odesenvolvimento urbano.

29 A materialização do Estatuto da Cidade depende substancialmente das reformas dos

quadros regulatórios municipais criados para o controle e uso do solo, especialmentepor meio da aprovação obrigatória do plano diretor8. Este deve conter os novos9

instrumentos, preconizados como ferramentas capazes de ampliar os potenciais elimites do meio físico, de forma que os impactos projetados pela sua implementaçãopossam sanear desequilíbrios e deseconomias, além de prover a construção ereconstrução de espaços urbanos humanizados, a partir de um processo de gestãodemocrática. E é por meio do processo político e do engajamento da sociedade civil quese encontram a natureza e a direção de intervenção de uso dos instrumentos propostosno Estatuto, o que pressupõe uma série de arranjos políticos e sociais para que aviabilidade e a eficácia dos seus instrumentos sejam estruturados na prática.

30 Passados mais de 18 anos da aprovação do Estatuto da Cidade, as disputas e críticas

ainda se renovam no sentido de que é preciso qualificar e multiplicar o seu conteúdopara que a sua implementação e regulamentação seja possível. De fato, a capacitaçãodos agentes sociais para exercerem o pleno direito de participar na construção doordenamento urbanístico de sua cidade depende de um processo pedagógicoparticipativo que desmistifique a implementação da política urbana no âmbito dasadministrações municipais. Este é talvez o maior desafio a ser superado para que estaLei do Estatuto da Cidade seja plena.

31 É importante ressaltar também que, desde a publicação da Lei do Estatuto da Cidade em

2001, além da aprovação da sua normatização, vários elementos se combinaram deforma subsequente para que as proposições do ideário da reforma urbana fossemretomadas : a eleição de um Presidente da República (2002) comprometido diretamentecom o Movimento Nacional de Reforma Urbana e, por consequência, a criação de umconjunto de instituições como o Ministério das Cidades (2003) e as suas secretariasnacionais de programas urbanos, habitação, mobilidade urbana e saneamentoambiental. Além disso, houve a consolidação de espaços dirigidos à participação diretadas lideranças sindicais, profissionais, académicas e populares como as ConferênciasNacionais das Cidades e a institucionalização do Conselho das Cidades.

32 Sem dúvida, os avanços na trajetória da política urbana no Brasil são significativos,

como se pode constatar no campo normativo, tendo em conta a avançada legislaçãobrasileira aprovada, especialmente por meio da Constituição Federal de 1988 e doEstatuto da Cidade (Lei n.º 10 257/2001) e, no campo institucional, por meio da criaçãodo Ministério das Cidades em 2003, com a possibilidade de reunião e gestão transversaldas políticas setoriais afetas ao desenvolvimento urbano, sob a perspectiva de gestãoparticipativa em nível nacional, por meio do Conselho das Cidades.

33 Atualmente, sob nova gestão presidencial, desde 1 de janeiro de 2019, o Ministério das

Cidades foi extinto e a maior parte de suas competências foi absorvida pelo novoMinistério do Desenvolvimento Regional10.Embora ainda não se possa dimensionar oimpacto das mudanças políticas intermitentes, o desenho complexo estabelecido paraas atribuições e competências legais municipais, estaduais e federais ainda é um desafiode grandes proporções nessa área, especialmente quando se trata do controle sobre ouso e ocupação do solo, ainda que no nível federal seja possível impor algumaregulação, como contrapartida aos repasses de recursos financeiros, à semelhança do

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caso dos planos urbanísticos municipais e dos planos setoriais exigidos no âmbito dosmarcos regulatórios da Habitação (Lei n.º 11 124/2005), do Saneamento (Lei n.º11 445/2007), e da Mobilidade Urbana (Lei n.º 12 587/2012). Também é importantemencionar a aprovação do Estatuto da Metrópole (Lei n.º 13 089/2015), dentro daperspectiva das articulações necessárias para a elaboração do plano dedesenvolvimento urbano integrado e outros instrumentos de governançainterfederativa necessários à gestão e execução das funções públicas de interessecomum, em regiões metropolitanas e em aglomerações urbanas instituídas pelosestados.

34 Além da complexidade das atribuições, podemos inferir que, mesmo com os avanços em

torno da preconizada gestão democrática, ainda não foi possível promover umamudança cultural no sentido de construir e consolidar um novo paradigma de políticaurbana no Brasil.

3. O ordenamento do território em Portugal

35 Em Portugal, as diversas transformações ocorridas e os impulsos modernizadores

detectados no âmbito do planejamento e governança urbana são fruto da evolução eimplementação do conceito de ordenamento do território, que ganha força já emmeados do século XIX (Campos e Ferrão, 2015). Mas a sua consolidação só ocorre depoisda passagem de um regime conservador e autoritário para um regime democrático(1974) e após a integração à CEE em 1986, hoje União Europeia.

36 De início, segundo Campos e Ferrão (2015 : 7), “as primeiras iniciativas modernas do

Estado visando regular a organização e ocupação do território português datam dasegunda metade do século XIX, num período em que o país se caracteriza ainda poruma forte presença do mundo rural, e desenvolveram-se segundo duas linhas depolítica autónomas : agroflorestal e urbanística.”

37 A linha de política urbanística restringe-se, inicialmente, à esfera responsável pelas

obras públicas, como forma de adequar-se às doutrinas higienistas da época. Suaprimeira expressão significativa foi a regulação das vias públicas11, por meio dos“planos de melhoramentos urbanos” que eram obrigatórios para as duas principaiscidades (Lisboa e Porto) e facultativos para as demais. No entanto, devido aos interessesfundiários e imobiliários de uma cultura de propriedade privada e capital prevalecente,tais planos só se vão concretizar após algumas décadas (Campos e Ferrão, 2015).

38 Em 1926, com a mudança para o regime ditatorial, uma reforma estrutural em todo o

quadro legal do desenvolvimento urbano é conduzida por Duarte Pacheco. Este políticovisionário deixou uma contribuição sem precedentes no urbanismo português :instituiu os “planos de urbanização” para os aglomerados urbanos com mais de 2 500habitantes e estabeleceu as bases para um sistema de colaboração e financiamento deobras de urbanização. Modificou assim, de forma pragmática, as bases da política desolos vigentes, de forma interventiva, reivindicando para o poder público aprerrogativa de condução do processo de urbanização. Com a sua morte inesperada, em1943, as reformas instituídas por Duarte Pacheco são revertidas ao longo do tempo pormeio de processos gradativos, tendo em conta a pressão dos interesses privadosafetados por estas.

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39 Na prática, não havendo à época qualquer plano urbanístico juridicamente eficaz

(Campos e Ferrão, 2015), mesmo estando sob a tutela de um Estado centralista eautoritário, os proprietários e promotores privados ganham de novo o controle sobre otempo, o lugar e a forma da urbanização no processo de crescimento das principaiscidades portuguesas.

40 Este retrocesso na política urbana traduz-se igualmente na multiplicação dos bairros

clandestinos a partir de 1950, com a intensificação do êxodo rural decorrente das novasoportunidades surgidas com a ampliação do processo de industrialização do país.

41 Em 1968, sob influência da política regional francesa, com foco na ampliação da

racionalidade supra-urbana, destaca-se o lançamento do III Plano de Fomento(1968-1973)12 que propõe, pela primeira vez, o combate às assimetrias existentes, comvista ao reequilíbrio da rede urbana, em especial para o reordenamento da localizaçãoda atividade industrial. Neste período, o Estado promove os Planos Integrados deHabitação por meio do Fundo de Fomento de Habitação, elabora o primeiro Relatório doOrdenamento do Território e revê a lei sobre regime jurídico do solo (Decreto-Lei n.º576/70, de 24 de novembro), dando ênfase aos instrumentos de política de solos comvista à dinamização do mercado fundiário. O IV Plano de Fomento (1974-1979)incorpora a experiência do plano anterior e inova ao sustentar a premissa doordenamento do território como um grande objetivo para o reequilíbrio regional dopaís. No entanto, com a revolução democrática de 1974, este plano não se concretiza eum novo cenário de profundas mudanças toma conta do país.

42 A cultura centralista do Estado passa a ser diluída no contexto do poder local

democrático, de forma a ampliar progressivamente o protagonismo dos municípios nacondução da política urbana, conforme preconizava a nova Constituição aprovada em1976, embora o tema ainda fosse conduzido, no âmbito nacional, pela redenominadaDireção Geral do Planeamento Urbanístico (DGPU).

43 De facto, o texto original da Constituição de 1976 interpôs o ordenamento do território

Português como uma obrigação transversal do estado e enquadradora da efetivação dosdireitos à habitação e ao ambiente e qualidade de vida e como um instrumentonecessário ao planejamento de base económica. Em 1989 este estatuto constitucional foireforçado, ao ser assumido explicitamente como uma tarefa fundamental e autónomado estado (Carmo, 2016). Neste ínterim, um conjunto de instrumentos foram aprovadose articulados : os Planos Diretores Municipais (PDM, Decreto-Lei n.º 208/82), quereconhecem aos municípios o seu papel na promoção do desenvolvimento económico esocial e suas relações com o ordenamento do território13, e os Planos Regionais deOrdenamento do Território (PROT, Decreto-Lei n.º 338/83), que promoveram avalorização dos recursos naturais, paisagísticos e ambientais no âmbito dodesenvolvimento económico preconizado e do avanço do processo de urbanização sob aótica do desenvolvimento regional.

44 Em 1990, já sob a égide da Comunidade Económica Europeia, promove-se uma reforma

do quadro legal (Decreto-Lei n.º 69/90) regulando os planos municipais de ordenamentodo território, tentando integrar as várias concepções dos planos de ordenamento doterritório. Em 1995 são regulados os Planos Especiais de Ordenamento do Território(PEOT), com vista às suas articulações com outros instrumentos do ordenamento doterritório (Decreto-Lei n.º 151/95), tendo em conta a salvaguarda e valorização de áreasterritoriais ambientalmente sensíveis.

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45 Mesmo com uma estrutura permeada por dispositivos legais funcionais, somente em

1998 é que Portugal passa a dispor de uma Lei de Bases da Política de Ordenamento doTerritório e de Urbanismo (LBPOTU, Lei n.º 48/98) aprovada pelo Parlamento, queestabelece, de forma articulada, no âmbito nacional, regional e local, os Instrumentosde Gestão Territorial (IGT) que constituirão o Sistema de Gestão Territorial (SGT). Nasequência, em 1999 foi aprovado o Regime Jurídico dos Instrumentos de GestãoTerritorial (RJIGT), Decreto-Lei n.º 380/99.

46 Sob influência do Esquema de Desenvolvimento do Espaço Comunitário (EDEC), a

LBPOTU e o RJIGT, de modo geral, distinguiram competências e regularam as ações dosdiversos segmentos atuantes no ordenamento do território e introduziram princípiospara a coordenação das políticas setoriais. Pela primeira vez, o ordenamento doterritório estabeleceu-se como política pública autónoma e aberta ao diálogo emparidade com as demais políticas setoriais.

47 Segundo Mourato (2011 : 112), a inovação institucional e funcional que a LBPOTU

introduziu é fundamental para compreender a dinâmica contemporânea doplanejamento como política pública em Portugal. Por um lado, a LBPOTU estabelece adiferença entre o que são instrumentos de desenvolvimento territorial (PNPOT, PROT ePIOT) e quais são os instrumentos de planejamento territorial (PMOT, PDM, PU e PP).Da mesma forma, estabelece uma clara diferença entre o que são planos municipais,planos especiais e planos setoriais, dentro da estrutura de planejamento territorialmais ampla, permitindo o delineamento de uma plataforma legislativa integrada, naqual coexistem a abordagem de planejamento regulatório explícito e a abordagem dedesenvolvimento estratégico implícita14.

48 Nesta perspectiva, e com vista ao Sistema Nacional de Gestão Territorial, segundo

Caldeira (2010 : 13), o governo central passa a ter incontornavelmente uma funçãodecisiva que se centra em três domínios : “na criação de um ambiente geral e dinâmicafavorável à afirmação do ordenamento e planeamento do território, no preenchimentodos vazios legislativos e no melhoramento da qualidade das normas na envolvente doordenamento mas fundamentais à boa prática do ordenamento do território e dourbanismo (caso da Lei de Solos, nomeadamente), na promoção da formação equalificação dos técnicos (da administração central, regional e municipal), nodesenvolvimento de ferramentas de orientação técnica e metodológica de suporte àspráticas de gestão territorial”.

49 Neste sentido, em 2002 inicia-se a elaboração do primeiro Programa Nacional de

Políticas de Ordenamento do Território (PNPOT), cuja aprovação somente em 2007incluiu os elementos necessários em falta para a implementação das políticas deplanejamento nacional. Sua natureza estratégica estabelece : “as grandes opções comrelevância para a organização do território nacional, consubstancia o quadro dereferência a considerar na elaboração dos demais instrumentos de gestão territorial econstitui um instrumento de cooperação com os demais Estados membros para aorganização do território da União Europeia” (Lei n.º 58/2007).

50 Por outras palavras, o PNPOT estabeleceu-se como um instrumento nacional de

coordenação de políticas e uma plataforma para cooperação de atores (Mourato, 2011 :113).

51 Outras iniciativas que se destacam entre os anos de 2007 e 2011 são os Planos Regionais

de Ordenamento do Território (PROT) em todas as regiões do país, oportunidade em

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que se busca a integração entre os níveis de governança por meio de estratégiasmunicipais de desenvolvimento local, com vista à elaboração dos planos municipais deordenamento do território. Tais iniciativas, no entanto, foram interrompidas a partirde 2011, tendo em conta um processo de revisão do quadro regulamentar doordenamento do território a partir da nova gestão do XIX Governo Constitucional(2011-2015), cenário em que se aprova em 2014 a nova Lei de Bases da Política Públicade Solos, Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei n.º 31/2014), um novo RegimeJurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei n.º 80/2015) e um novoregime de classificação, reclassificação e qualificação do solo (Decreto Regulamentar n.º15/2015).

52 Segundo Galvão (2016 : 37), este novo quadro regulamentar da política de solo, embora

assumindo a revisão de aspectos estruturais e regimentais importantes, continua a serreconhecível a partir da matriz definida pela reforma de 1998/99. Ou seja, apesar dasnovidades, não há ruptura sistemática, não há sistema ex novo, mas há, no entanto :“uma continuidade aberta a soluções disruptivas e a inovações que reflectem aevolução que assumidamente se pretende. Muda-se, portanto, embora sem romper emdefinitivo com a experiência passada” (Galvão, 2016 : 37)

53 Campos (2016) reforça, no entanto, que tal reforma do quadro legal da política de solo,

de ordenamento do território e de urbanismo não era necessária nem prioritária, tendoem conta que os problemas que afetam a gestão territorial não são de natureza legal,mas problemas de organização e de prática, decorrentes da ausência de uma culturacoletiva do território e da cultura de gestão do território, e ainda afirma : “Excetuandoo regime jurídico do solo e os aspetos relacionados com o regime económico-financeirodos programas e planos territoriais, não há muito de substancialmente novo nosdiplomas resultantes da revisão. Na lei anterior já estava quase tudo o que é preciso emtermos instrumentais para gerir bem o território e parte do que é novo nestes diplomasnão se nos afigura imprescindível. O que fazia e continua a fazer falta é capacitar asinstituições, os profissionais e as organizações, para usarem bem os instrumentos que alei prevê e aplicarem corretamente os princípios, os critérios e os sistemas de valoresque lhe estão subjacentes. O que faz falta é desenvolver as competências genéricas dosatores territoriais, a normativa técnica, os indicadores e a demais informação de apoio,mudar a cultura do território e a cultura da sua gestão. E isso não se resolve escrevendono Diário da República.” (Campos, 2016 : 41)

54 Nesta perspectiva, Campos e Ferrão (2015 : 24) referem ainda as dificuldades de

coordenação intersetorial das políticas públicas, o que reforça a importância do“ordenamento do território como matriz essencial da organização espacial das pessoase das atividades e de valorização sustentável dos recursos territoriais, reequilibrando osistema de gestão territorial e abrindo perspectivas para uma nova agenda política doordenamento do território que lhe permita dialogar em paridade com as políticassectoriais ´fortes`, nomeadamente com o ambiente”.

55 A esse respeito, Ferrão (2014 : 25) afirma que o ordenamento do território em Portugal,

no contexto das políticas públicas, corresponde a uma política duplamente fraca :“fraca em relação à sua missão, dada a desproporção que se verifica entre a ambiçãodos objetivos visados e as condições efetivas para os atingir ; e fraca em relação aosefeitos indesejados decorrentes de outras políticas, dada a sua vulnerabilidade emrelação a impactos negativos à luz dos objectivos e princípios do ordenamento doterritório. Existe, portanto, um problema simultâneo de eficiência e de resiliência.”

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56 Por outro lado, percebe-se um esforço progressivo por parte do governo em avançar na

articulação política que o ordenamento do território propõe. A revisão do PNPOT15,prevista a cada 10 anos, por exemplo, foi um exercício cuja elaboração envolveu aparticipação efetiva de outros setores do governo, tendo em conta a estratégia a serdesenvolvida no âmbito do orçamento a ser disponibilizado pelo Programa Nacional deInvestimentos 2030, que é o instrumento de definição de prioridades de investimentosinfraestruturais estratégicos de médio e longo prazo nos setores da Mobilidade eTransportes, Ambiente e Energia.

57 De acordo com as informações disponibilizadas pela Direção Geral do Território16, “ao

longo do processo da elaboração da alteração do PNPOT, procurou-se desde o inícioassegurar uma participação continuada e efetiva, gerando um diálogo alargado efomentando a reflexão sobre as condicionantes, as oportunidades e os desafios que secolocam ao território nacional e sobre os objetivos de ordenamento e desenvolvimentoque o país quer prosseguir, a partir de uma visão territorial informada.”17

58 Como resultado da discussão pública, o documento resultante prevê uma Agenda para o

Território estruturada em 5 pontos :

59 “1º - enunciam-se 10 compromissos para o território que traduzem as ideias fortes das

apostas de política pública para a valorização do território e para o reforço daconsideração das abordagens territoriais. Apresenta-se ainda o esquema de articulaçãodo PNPOT com a Estratégia para o Portugal 2030 e Programa Nacional de Investimentos2030.

60 2º - apresenta-se o conjunto das medidas de política que integram o Programa de Ação

do PNPOT, estruturadas e organizadas em 5 domínios de intervenção : Domínio Natural,Domínio Social, Domínio Económico, Domínio da Conetividade e Domínio daGovernança Territorial.

61 3º - procede-se à Operacionalização do Modelo Territorial, estruturado de acordo com

os sistemas identificados na Estratégia : Sistema Natural, Sistema Social, SistemaEconómico, Sistema da Conetividade, Sistema Urbano e Vulnerabilidades Críticas.

62 4º - identificam-se as diretrizes para os instrumentos de gestão territorial, abordando as

questões de articulação e questões de conteúdo territorial e temático.

63 5º - apresenta-se o esquema do Modelo de Governação do PNPOT, identificando as

estruturas de operacionalização, monitorização e avaliação bem como de articulação econsulta.”

64 Embora seja perceptível o caráter transversal das estratégias apontadas pelo PNPOT,

sua aplicação dependerá da forma como estas se associam a decisões políticas ou acomponentes de investimento público. Neste sentido recomenda-se ultrapassar a visãoendógena ao sistema de planejamento e fomentar relações horizontais junto aos setoresque mobilizam recursos estruturantes para a implementação de políticas urbanas, demodo que o PNPOT funcione como referencial estratégico vinculativo, enquantoinstrumento legal, e seja incorporado na orgânica do governo como premissa para odesenvolvimento urbano do país.

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4. Síntese comparativa

65 A análise da evolução histórica do processo de política urbana empreendido no Brasil e

em Portugal permite conjugar alguns aspectos importantes e imprescindíveis para acompreensão do atual contexto dos dois países.

66 Em comum, ambos sofreram grandes transformações resultantes do acelerado processo

de urbanização na segunda metade do século XX, e das transições e alternâncias entreos regimes conservadores e democráticos que tornaram ainda mais complexas asrelações entre os diversos agentes responsáveis pela implementação da política urbana.

67 Em ambos os países, a legislação nacional é avançada e prima pela eficácia na

implementação dos seus instrumentos urbanísticos. Há uma semelhança estrutural edos processos definidos evidenciada na evolução dos respectivos quadrosregulamentares, conforme se demonstra na Figura 1.

Figura 1. Evolução da Política Urbana Portugal/Brasil

Elaboração dos autores.

68 No âmbito da evolução da política urbana (Figura 1), destaca-se, no caso do Brasil, a

pauta obrigatória vigente dos planos diretores participativos em 2001, a partir daaprovação do Estatuto da Cidade, onde se buscou a superação do viés tecnicista que ostornavam incompreensíveis ao cidadão comum, de forma a incorporá-lo no processo deplanejamento, com vistas à sua eficiência e adequação à realidade municipal. Essamudança de paradigma pode ser comprovada, de certa forma, por meio da evolução dosresultados apresentados no âmbito da Pesquisa de Informações Básicas Municipaisn –Munic (IBGE, 2019) : em 2018, 2.866 municípios possuíam Plano Diretor, o quecorresponde a 51,5 % dos 5.570 municípios brasileiros, percentual próximo ao apuradona Munic de 2015, de 50 %, mas bem superior ao percentual de 2005, de 14,5 %.

69 Os dados da Munic (IBGE, 2019) também revelam que 2 701 municípios brasileiros

(48,5 %) não têm Plano Diretor, sendo que 533 informaram que o instrumento estavaem elaboração. Tal percentual foi mais elevado no grupo de municípios com populaçãode até 20 000 habitantes, 2 526 (66,9 %), onde não há obrigatoriedade legal para aelaboração desse instrumento. No que se refere aos municípios com mais de 20 000habitantes, dos 1.762 que são legalmente obrigados a elaborar o Plano Diretor,conforme o Estatuto da Cidade, restam apenas 175 (9,9 %) que ainda não o fizeram,

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sendo que destes, 76 informaram que estariam em processo de elaboração. O Gráfico 1demonstra a situação geral de aprovação dos Planos Diretores municipais nosmunicípios brasileiros, a partir das determinações do Estatuto da Cidade (Lei n.º10.257/2001).

Gráfico 1. Percentual de municípios, por situação do Plano Diretor, segundo as classes de tamanhoda população dos municípios selecionadas - Brasil - 2005/2018

Image 100C39580000367700002848C8FFB069BBD666F2.emf

IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenaca o de Populaca o e Indicadores Sociais, Pesquisa deInformacoes Basicas Municipais 2005/2018.

70 Em Portugal, apesar da sua tradição centralista, a multiplicidade de planos e programas

existentes fundamenta-se na premissa de gestão integrada do território, conformepreconizado pelo projeto europeu. Dessa forma, as sucessivas reformas regulamentaresestimularam ações estratégicas para ampliar a capacidade de articulação dosmecanismos de coordenação das políticas setoriais. É o caso do Programa Nacional dePolíticas de Ordenamento do Território (PNPOT), que introduz um modelo territorialpara o país e se consolida como instrumento nacional de coordenação de políticas, deforma que seus preceitos sejam estimulados pelos recursos advindos do Plano Nacionalde Investimentos e dos fundos europeus.

71 No que se refere aos Planos Diretores Municipais – PDM, é importante ressaltar que

Portugal já está coberto na sua totalidade (100 %). Impulsionados pela adoção demedidas condicionantes que inviabilizavam o acesso aos recursos de fundoscomunitários por parte dos municípios sem plano, no final dos anos 90, a maioria dosPDM foi aprovada.

72 Segundo dados da Direção Geral do Território (PNPOT, 2019), em finais de 2017, 38 %

dos 308 municípios portugueses ainda não tinham concluído o processo de revisão doPDM, motivo pelo qual ainda utilizam os PDMs elaborados no âmbito da Lei de Bases de

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1998. Além disso, pouco mais da metade dos Planos estão vigentes há menos de 10 anos.Dos restantes, 117 têm mais de 15 anos e 98 têm mais de 20 anos. Os PDMs com temposde vigência mais longos encontram-se no interior do país, mas também municípios doVale do Tejo, Lisboa, Alentejo litoral e do Algarve, totalizando 19 % do total. Por outrolado, a região Norte apresenta 87 % dos PDMs revistos e recentes.

5. Considerações finais

73 Embora o plano diretor seja um instrumento fundamental para a definição da política

urbana, existem muitos outros vetores de transformações, ações, sujeitos e poderes emjogo que vão além das normas e da construção de institucionalidades ou distribuição deinvestimentos públicos.

74 No entanto, a delegação progressiva ao poder local/municipal para o protagonismo na

elaboração obrigatória dos respectivos planos diretores pautada pelos dois países, sobpena de sanções orçamentais, aumentou as possibilidades de implementação eregulamentação de instrumentos urbanísticos compatíveis com a realidade municipal,de forma a ampliar as possibilidades de atendimento às necessidades locais.

75 No caso do Brasil, não se pode negar que o processo recente de elaboração de planos

diretores participativos propiciou a ampliação da discussão sobre o acesso à cidade e àterra urbanizada, apesar dos conflitos e disputas territoriais relativas à reprodução doespaço urbano (Oliveira, 2011).

76 Já em relação a Portugal, o grande desafio para os municípios consiste na necessidade

regulamentar de atualização dos seus planos diretores, para adaptação ao novo regimede classificação, reclassificação e qualificação do solo e para integração das normas dosProgramas Especiais relacionados com o regime de uso do solo. Por meio desse processode atualização espera-se, ainda, a produção de "instrumentos mais estratégicos,integrados, dinâmicos e participados, garantindo a sustentabilidade e a eficiência dosrecursos naturais e um desenvolvimento territorial mais equilibrado e adequado anovos desígnios. Nestes desafios inclui-se o de reforçar a cultura da avaliação emsintonia com um reforço da cultura do território, de ordenamento do território e deplaneamento territorial" (PNPOT, 2019 : 203).

77 Além desses desafios, o que se pode inferir é que a implementação da política urbana

prescinde, em ambos os países, de uma articulação sistemática com as demais políticassetoriais que, em sua maioria, seguem de forma independente e limitadas na suavertente territorial.

78 Nesse sentido, há a necessidade de fomento de uma cultura coletiva político-

administrativa territorial, conforme aponta Ferrão (2014) e Campos (2016), por meio daoferta de processos de formação para técnicos, gestores, comunidade profissional ecidadãos em geral, para que conheçam e apliquem de forma adequada os instrumentosregulados, bem como os critérios e valores que lhe são inerentes.

79 Combater o analfabetismo urbanístico (Maricato, 2012 :45) e identificar as forças que

têm poder sobre a produção das cidades para que se articulem de forma sistêmica noâmbito do seu planejamento são estratégias fundamentais a serem adotadas para oaprimoramento da política urbana tanto no Brasil, como em Portugal.

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NOTAS

1. O Capítulo da Política Urbana é composto pelos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de

1998. Está inserido no Título VII, que trata da Ordem Económica e Financeira. Sobre a inclusão da

moradia no rol dos Direitos Sociais (art. 6), esta só ocorreu a partir da Emenda Constitucional n.º

90, de 2015.

2. Os resultados do Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRU) foram publicados na

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3. A exemplo de Serra (1991), Villaça (2001), Bonduki (2010) e Ipea (2016).

4. Conjuntos habitacionais compostos por frações para aluguer e instalações sanitárias comuns,

similares aos pátios e vilas de Lisboa, associados a habitantes de baixos rendimentos e condições

insalubres.

5. As principais recomendações de ajustes ocorreram no âmbito do Consenso de Washington e

incluíam: “1) disciplina fiscal; 2) redução dos gastos públicos; 3) reforma tributária; 4)

determinação de juros pelo mercado; 5) câmbio dependente igualmente do mercado; 6)

liberalização do comércio; 7) eliminação de restrições para o investimento estrangeiro direto; 8)

privatização das empresas estatais; 9) desregulamentação (afrouxamento das leis económicas e

do trabalho); 10) respeito e acesso regulamentado à propriedade intelectual. A referência a

“consenso” significou que esta lista foi baseada num conjunto de ideias partilhadas, na época,

pelos círculos de poder de Washington, incluindo o Congresso e a Administração dos Estados

Unidos da América (Tesouro e Federal Reserve Bank), por um lado, e instituições internacionais

com sede em Washington, tais como o FMI e o Banco Mundial, por outro, apoiados por uma série

de grupos de reflexão e economistas influentes.” (Lopes, 2011).

6. Surgido no final dos anos 1980, o Orçamento Participativo de Porto Alegre, capital do Rio

Grande do Sul, no Brasil, consolidou-se como modelo participativo na primeira gestão da Frente

Popular (1989-1992), uma coligação entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o então Partido

Comunista Brasileiro (PCB). Tornou-se referência nacional e internacional quando a ONU o

selecionou como uma das 40 melhores experiências de gestão local para a conferência Habitat II

(Istambul,1995) e, posteriormente, quando Porto Alegre foi escolhida para sediar o Fórum Social

Mundial. (FEDOZZI, 2009)

7. Art. 182. A politica de desenvolvimento urbano, executada pelo poder pu blico municipal,

conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das

funco es sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

§ 1º O plano diretor, aprovado pela Camara Municipal, obrigato rio para cidades com mais de vinte

mil habitantes, e o instrumento basico da politica de desenvolvimento e de expansao urbana.

§ 2º A propriedade urbana cumpre sua funcao social quando atende as exige ncias fundamentais

de ordenac ao da cidade expressas no plano diretor.

§ 3º As desapropriac o es de imoveis urbanos serao feitas com pre via e justa indenizacao em

dinheiro.

§ 4º E facultado ao poder publico municipal, mediante lei especifica para area incluida no plano

diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietario do solo urbano nao edificado,

subutilizado ou nao utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena,

Cidades, 40 | 2020

289

sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificacao compulso rios; II - imposto sobre a

propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriac ao com

pagamento mediante titulos da divida pu blica de emissao previamente aprovada pelo Senado

Federal, com prazo de resgate de ate dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas,

assegurados o valor real da indenizacao e os juros legais.

Art. 183. Aquele que possuir como sua area urbana de ate duzentos e cinquenta metros

quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposicao, utilizando-a para sua moradia ou

de sua familia, adquirir-lhe-a o dominio, desde que nao seja proprietario de outro imovel urbano

ou rural.

§ 1º O titulo de dominio e a concessao de uso serao conferidos ao homem ou a mulher, ou a

ambos, independentemente do estado civil.

§ 2º Esse direito nao sera reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3º Os imoveis publicos nao serao adquiridos por usucapiao.

8. Lei n.º 10 257/2001 (...) Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades: I – com mais de vinte

mil habitantes; II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; III – onde o

Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no§ 4o do art. 182 da

Constituição Federal; IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico; V – inseridas na

área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de

âmbito regional ou nacional; VI – incluídas no cadastro nacional de Municípios com áreas

suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos

geológicos ou hidrológicos correlatos.(Incluído pela Lei nº 12 608, de 2012)

9. Segundo Bassul (2010), boa parte dos instrumentos incluídos no Estatuto já vinham sendo

postos em prática pelos municípios anteriormente à aprovação da norma federal, com resultados

considerados estimulantes pelo capital imobiliário, o que constituiu, sem dúvida, importante

fator de diminuição do grau de restrições à sua aprovação.

10. Decreto nº 9 666, de 2 de janeiro de 2019.

11. “A pretexto de assegurar a livre circulação de pessoas e bens nas estradas e caminhos,

regulou-se o alinhamento das construções e a sua altura máxima em função da largura das vias

(…).” (Campos e Ferrão, 2015)

12. O I Plano de Fomento (1953-1958) baseou-se num conjunto de investimentos públicos em

vários sectores, com prioridade para a criação de infraestruturas. No II Plano de Fomento

(1959-1964) o montante investido é ampliado e elege-se a indústria transformadora de base como

foco (siderurgia, refinação de petróleos, adubos, químicos). No período de 1965 a 1967, o Plano

Intercalar de Fomento absorve as exigências aos acordos externos assinados à época, e a

necessidade de rever o condicionamento industrial, que se considerava desadequado às novas

realidades.

13. Cabe mencionar, igualmente, a Lei n.º 79/1977, de 25 de outubro, que ampliou as atribuições e

competências das autarquias locais no que se refere ao desenvolvimento social, económico e

ambiental e confere às assembleias municipais competências sobre o Plano Diretor do Município

(art.48, No.1, alínea i)

14. “The institutional and functional innovation that the LBPOTU introduced is key to understanding the

contemporary dynamics of planning as a public policy in Portugal. For one, the LBPOTU (Figure 5.2) sets out

the difference between what are territorial development instruments (PNPOT, PROT and PIOT) and what

are territorial planning instruments (PMOT, PDM, PU and PP). In addition, it outlines a clear difference

between what are municipal plans, special plans and sectoral plans, within the wider territorial planning

framework. In doing so, the LBPOTU provides an integrative legislative platform within which coexist the

explicit regulatory planning approach and the implicit strategic development approach. In addition, it

includes the legislative equivalent of a coordination agreement between the three main bodies of contextual

influence identified throughout this chapter (i.e. urban planning, regional planning and environmental

Cidades, 40 | 2020

290

planning). But above all it introduces the National Spatial Planning Policy Programme (PNPOT).”

(Mourato, 2011: 112)

15. O novo PNPOT foi aprovado pelo Conselho de Ministros em 14/7/2018, e em votação final

global na Reunião Plenária do Parlamento, de 14/6/2019.

16. Atualmente, a Direção Geral do Território - DGT (Decreto-Lei n.º 7/2012), vinculada ao

Ministério do Ambiente (Decreto-Lei n.º 251-A/2015), é o organismo público nacional português

responsável pelas políticas públicas de ordenamento do território e de urbanismo, atuando nas

ações de formação, informação e divulgação técnica e de boas práticas dirigidas à capacitação dos

agentes territoriais, públicos e privados, e aos cidadãos em geral.

17. http://pnpot.dgterritorio.gov.pt/documentos-pnpot (Acesso em 21/05/2019)

RESUMOS

O presente artigo resume o processo de evolução histórica da política urbana no Brasil e em

Portugal, a partir dos principais aspectos do seu contexto político e respectivos marcos

regulatórios. Pela análise empreendida foi possível constatar que ambos os países sofreram com o

acelerado processo de urbanização ocorrido na segunda metade do século XX, com as transições e

alternâncias entre os regimes conservadores e democráticos, mas possuem uma legislação

urbanística nacional avançada e que prima pela eficácia na implementação de seus instrumentos

urbanísticos. O desafio está na sua implementação e articulação com as demais políticas setoriais

que, em sua maioria, seguem de forma independente e limitadas na sua vertente territorial, bem

como no fomento de uma cultura coletiva político-administrativa territorial, envolvendo

técnicos, gestores, comunidade profissional e cidadãos em geral para que conheçam e apliquem

de forma adequada os instrumentos regulados.

ÍNDICE

Keywords: Política urbana, Brasil, Portugal, ordenamento territorial

AUTORES

EGLAÍSA MICHELINE PONTES CUNHA

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil, eglaisa [at] gmail.com

RUI PEDRO JULIÃO

FCSH – Universidade Nova de Lisboa, Portugal, rpj [at] fcsh.unl.pt

FRANCISCO HENRIQUE OLIVEIRA

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil, chico.udesc [at] gmail.com

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O papel das instituiçõessubnacionais na aderência daagenda de integração hídricaLições da governança hídrica metropolitana de Curitiba

Simone do Amaral Cassilha, Tatiana Maria Cecy Gadda, Niklas WernerWeins e Augusto Frederico Junqueira Schmidt

1. Introdução

1 As diferentes dimensões e definições de desenvolvimento sustentável e o seu

significado na prática, certamente são um dos grandes temas deste século. Ogerenciamento do trade-off entre necessidades humanas e limites do planeta, em proveros bens e serviços da natureza, representa o foco deste debate (Barreto et al., 2017). Asvisões de mundo cada vez mais especializadas e técnicas têm levado as instituições adesconsiderar as conexões entre o “sistema humano” e o “sistema natural” (Haas,1992 ; Elmqvist et al., 2013 ; Santos et al., 2017). O pensamento cartesiano eunidimensional sobre os recursos ecossistêmicos, como a água, inibe uma gestãoadequada nos seus usos múltiplos. A escassez hídrica é reconhecida como um problemaambiental global e tratada em diversos documentos internacionais. É tambémreconhecida, porém, a baixa aderência das agendas ambientais preconizadas no nívelinternacional na gestão ambiental realizada por instituições nacionais e subnacionais(Oliveira et al., 2011).

2 A água doce superficial e potável compõe tão somente um por cento da superfície da

terra mas é a base da vida de todos os organismos (Febria et al., 2015 ; Rieu-Clarke et al.,2017). Apesar disso, as políticas que propõem sua proteção são relativamente recentes(Biswas e Tortajada, 1998) e foram motivadas pelo crescente stress hídrico refletido nocomprometimento dos vários usos da água (humanos e não humanos) e na sua escassez.Entre os principais vetores dessa alteração podemos apontar a intrincada relação entrecrescente industrialização, urbanização e mudanças nos ecossistemas. Mas apenasrecentemente reconheceu-se a importância das externalidades ambientais e sociais, e

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que os recursos da natureza não são tão abundantes quanto (se entendia) no começo darevolução industrial (Elmqvist et al., 2013). Além disso, Carmo et al. (2014), apontamque, além da pressão populacional exercida sobre os recursos hídricos, há umatransição no padrão de consumo da população que se relaciona ao aumento de rendaper capita nas cidades. Os autores concluem que o desafio referente às políticas públicasno Brasil será garantir que a ampliação dos sistemas de abastecimento de água possaser implementada, garantindo o acesso à água tratada, mas sem exaurir os mananciaisexistentes.

3. Metodologia

3 A pergunta que guia este trabalho é : as instituições envolvidas na gestão dos recursos

hídricos na Região Metropolitana de Curitiba refletem em seus planos ou dialogam dealguma forma com a agenda internacional, seguindo as tendências de GerenciamentoIntegrado de Recursos Hídricos ? Busca-se responder a esta pergunta com uma pesquisade caráter exploratório a partir de análises bibliográficas, confrontando análise teóricacom a documental.

4 Uma primeira análise foi aplicada ao entendimento da agenda internacional no que diz

respeito à gestão dos recursos hídricos. Para este fim foram consultadas produçõescientíficas e tecnocientíficas. Uma análise bibliográfica foi também aplicada para aescala subnacional onde foram analisados documentos oficiais, como os planosDiretores Municipais de Curitiba, de Desenvolvimento Integrado (COMEC), Planos deBacia do Alto Iguaçu e Afluentes do Ribeira, e Plano Diretor do Sistema deAbastecimento de Água (SANEPAR). Nessa extensa análise busca-se entender como aágua é abordada na Região Metropolitana de Curitiba (RMC) e quais diretrizes sãoestabelecidas ao gerenciamento de recursos hídricos como um todo. Com isto é possíveluma comparação entre as análises para inferir qual o reflexo das diretrizespreconizados pelo nível internacional no nível subnacional, considerando o estudo decaso da RMC.

5 O ponto de partida desta investigação pode ser observado na Figura 1, que mostra de

maneira linear os desdobramentos das políticas internacionais e seu reflexo nasimplementações das respectivas medidas na escala local e metropolitana. Nestapesquisa foram considerados com mais detalhe os desenvolvimentos no nível local e asespecificidades do gerenciamento de recursos hídricos no Paraná, que conta com umarranjo institucional que difere do padrão federal. Para tal, este artigo se baseia naanálise de quatro planos relevantes ao planejamento do abastecimento da RMC. Comocomplemento aos dados de Curitiba e Região metropolitana os autores conduziram umaentrevista com a Defesa Civil do Paraná em novembro 2017.

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Figura 1. Agenda internacional e local em relação à água no planejamento

Autores, 2019.

6 Visando a perspectiva multidisciplinar, que comumente se dá ao redor da gestão dos

recursos hídricos, esta pesquisa remete a diversos conceitos, abordagens e aspectos devárias áreas de conhecimento. Apresentam-se a seguir, os achados da presente análise,partindo principalmente da ótica de arquitetura e urbanismo, mas também daengenharia civil e das ciências sociais, econômicas e políticas.

4. A gestão hídrica na escala internacional esubnacional

7 Boa parte dos problemas ambientais das cidades brasileiras decorre de processos não

controlados de expansão urbana (Braga, 2001). Uma coerente explicação para esteprocesso, segundo Rolnik (1997), é de que a cidade é um organismo vivo e dinâmico,onde a diversidade e complexidade de suas interações geram condições urbanas muitodistintas, favorecendo e agravando os conflitos dentro da mesma.

8 O município é a menor unidade administrativa da Federação e também, em muitas

questões, de autonomia equivalente entre os entes federativos, podendo ser definidocomo “entidade de direito público, constituída por uma comunidade humana,assentada em um território determinado, que administra seus próprios e particularesinteresses” (Pizella, 2015).

9 A Constituição de 1988 outorgou aos municípios novas competências e,

consequentemente, novas responsabilidades, a partir da redistribuição entre os níveisfederal, estadual e municipal, entre elas a formulação e implementação da políticaurbana (Silva, 2016). Com relação ao meio ambiente, a partir da regulamentação, em2001, dos artigos 132 e 133 do Estatuto da Cidade, foram estabelecidas fundamentaçõesjurídico-legais de garantia do “direito a cidades sustentáveis” (Lei 10.257, 2001),passando então a existir uma relação de maior coerência entre o legal e o real. Aefetivação desta ferramenta, entretanto, é carente na gestão integrada, no caso dosrecursos hídricos, pois evidencia-se que os diversos níveis federativos possuem

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interesses conflitantes (Marinato, 2008). O cuidado com o serviço ecossistêmico águadepende de políticas que escalam desde o federal até o local, exigindo abordageminterinstitucional.

10 O Brasil não possui atualmente nem um programa nacional de Pagamento por Serviço

Ambiental (PSA), nem reconhece o conceito jurídico de serviços ecossistêmicos e seusrespectivos valores econômicos (Costenbader, 2009 ; Schomers e Matzdorf, 2013). OSistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos definiu competências para agestão dos recursos hídricos, restando ao município participação restrita aos comitês econselhos (Marinato, 2008), muito embora existam várias ações nos territóriosbrasileiros que se dão por meio de consórcios intermunicipais. Contudo, o escopo dotrabalho das partes envolvidas na gestão dos recursos hídricos, mesmo considerando oterritório nacional, não é exatamente claro ou coerente. O caso estudado a partir daestrutura de monitoramento, participação e fiscalização no Paraná se destaca nestearranjo e se justifica em parte por tal constelação.

11 A Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997, definiu um dos grandes desafios para

a gestão quando estabeleceu como unidade territorial de planejamento a baciahidrográfica, já que esta pode compreender diversos municípios, estados ou até mesmopaíses. Para a adoção da bacia hidrográfica, o planejamento e a gestão devem conciliaros limites político-administrativos, pois as políticas territoriais, para que possam defato acontecer, devem estar em consonância (Alvim et al., 2008). No caso de uma baciacompreender diversos municípios, a gestão deveria acontecer por meio de consórcio oucoordenação metropolitana.

4.1 Governança nas principais RMs brasileiras

12 As primeiras Regiões Metropolitanas (RMs) criadas no Brasil datam do início da década

de 1970 e apresentam todas população atual superior a dois milhões de habitantes(Barreto, 2017). De acordo com Lemos (2003) estas regiões representam mais de 30 % dapopulação brasileira, e são consideradas aglomerações de grande porte. Um fenômenoobservado nos últimos censos realizados pelo IBGE é a desaceleração no ritmo decrescimento da população na maior região metropolitana do Brasil, São Paulo. Estecomportamento, porém, não se mantém para outras RMs, que apresentam taxas decrescimento acima da média brasileira, como é o caso de Curitiba. A Tabela 1 apresentaas primeiras RMs brasileiras e suas respectivas taxas de crescimento entre os censos de2000 e 2010. As altas taxas de diminuição de população rural apontam para o contínuocrescimento nas franjas das regiões metropolitanas, especialmente naquelas detamanho médio, como é o caso de Curitiba.

Tabela 1. Primeiras Regiões Metropolitanas, sua população e taxas de crescimento

Região UFRegião

Metropolitana

Ano 2000 Ano 2010Taxa de crescimento

( % aa)

Urbana Rural Total Urbana Rural Total Urbana Rural Total

Norte PA Belém 1.754.786 40.750 1.795.536 2.036.787 65.096 2.101.883 1,49 4,68 1,58

Nordeste CE Fortaleza 2.880.582 104.107 2.984.689 3.475.126 140.641 3.615.767 1,88 3,01 1,92

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295

PE Recife 3.234.733 102.832 3.337.565 3.589.176 101.371 3.690.547 1,04 -0,14 1,01

BA Salvador 2.974.090 47.482 3.021.572 3.506.152 67.821 3.573.973 1,65 3,57 1,68

Sudeste

MGBelo

Horizonte4.669.362 150.377 4.819.739 5.283.368 131.333 5.414.701 1,24 -1,35 1,16

RJRio de

Janeiro10.814.059 80.097 10.894.156 11.777.368 58.340 11.835.708 0,85 -3,17 0,83

SP São Paulo 17.120.099 759.898 17.879.997 19.459.582 224.393 19.683.975 1,28 -12,20 0,96

Sul

PR Curitiba 2.500.029 226.552 2.726.581 2.921.845 252.356 3.174.201 1,56 1,08 1,52

RSPorto

Alegre3.509.384 148.992 3.658.376 3.845.049 113.936 3.958.985 0,91 -2,68 0,79

Censos Demográficos 2000 e 2010, IBGE.

13 Considerando aspectos de gestão das diversas RMs, aquelas criadas nos anos 1970

demonstram panorama frágil de institucionalização. Menos de 50 % possui instânciaexclusiva de gestão, 80 % possui instituído um conselho deliberativo, porém compequena participação da sociedade civil, e apenas 30 % possui plano metropolitanoelaborado ou em elaboração (Costa, 2013). A gestão dos recursos hídricos na RegiãoMetropolitana de São Paulo, por exemplo, necessita grande integração entre os diversossistemas que a compõem, sendo que o maior desafio se encontra no âmbitoinstitucional, visto que a gestão ideal por bacias extrapola a forma tradicional deorganização. Segundo Lemos (2003) a escassez de água e a poluição dos maioresreservatórios de abastecimento, em decorrência da grande urbanização desde os anos1960, continua a se agravar na RMSP.

14 A escassez hídrica enfrentada em São Paulo entre 2014 e 2016, decorrente de um longo

período de estiagem, acarretou em um cenário denominado pela mídia e gestores de“crise hídrica”. No intuito de enfrentar essa situação foi realizada uma transposição deaguas da bacia do rio Paraiba do Sul, que já fornecia parte da água para abastecimentoda RM do Rio de Janeiro, para a bacia Piracicaba-Capivari-Jundiai, criando ahidromegalo pole Sao Paulo-Rio de Janeiro. Essa nova espacialidade é delimitada então apartir dessa conexão física, quatro regio es metropolitanas do estado de Sao Paulo (SãoPaulo, Campinas, Baixada Santista, Vale do Paraíba e Litoral Norte) e a regiaometropolitana do Rio de Janeiro passam a compartilhar os recursos hidricos, gerandouma complexa relação de interdependência (Carmo e Anazawa, 2017).

15 No caso em estudo por este trabalho, a Região Metropolitana de Curitiba tem destaque

estadual por seu porte econômico além de funções de decisão e gestão, os quaisabrangem todo o território do Paraná e extrapolam para estados vizinhos como SantaCatarina ; além de importância nacional pelas relações com outros aglomeradosmetropolitanos (Kornin e Do Carmo, 2013).

16 A gestão da RMC apresenta desafios para seus gestores, visto que as aglomerações se

estendem em áreas distantes do núcleo principal e os municípios integrantes ainda nãoapresentam desenvolvimento ordenado e igualitário. Importante considerar tambémque na articulação entre os entes institucionalizados desta Região ainda predominam

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ações isoladas e sem agenda comum metropolitana. O início dos anos 2000 foicaracterizado por ações relacionadas à questão ambiental, com a busca pela proteçãodos mananciais. Porém o enfraquecimento institucional da COMEC - Coordenação daRegião Metropolitana de Curitiba - ocorrido por motivos diversos, resultou em poucacapacidade de controle e preponderância de interesses sobre o uso e ocupação do solopelo mercado imobiliário (Klink, 2010).

4.2 Atores e seus respectivos planos relevantes à gestão hídrica emCuritiba e RMC

17 A Região Metropolitana de Curitiba (RMC) foi regulamentada formalmente em 1974

com a criação da COMEC pelo governo do Paraná. Composta inicialmente por 14municípios, compreende atualmente 29 municípios com um total de 3,5 milhões dehabitantes. Com grande potencial e importância no contexto nacional, esta RegiãoMetropolitana possui desafios a serem vencidos, como por exemplo a questão de quegrande parte do território é composto por áreas de interesse de proteção (Lei Estadualnº 12.248/98), considerado as áreas de interesse de mananciais de abastecimentopúblico de água (COMEC, 2006).

18 Serão analisados a seguir quatro planos, por sua importância direta na preservação e no

planejamento do uso dos recursos hídricos na RMC. Em primeiro lugar, o Plano DiretorMunicipal de Curitiba que estabelece as principais diretivas para o consumo e aprojeção do futuro abastecimento do município núcleo. O Plano de DesenvolvimentoIntegrado da COMEC se apresenta como principal documento para a efetiva integraçãode diferentes políticas municipais relacionadas ao uso e à ocupação do solo a nível daregião metropolitana. Mais especificamente para o abastecimento da RMC, o PD doSistema de Abastecimento de Água Integrado (SANEPAR) aponta para assuntospertinentes a esta questão. E por fim, o Plano das Bacias do Alto Iguaçu e Afluentes doRibeira indica as diretivas a nível da bacia hidrográfica, que são relevantes para aintegração das políticas além dos limites administrativos. Com estes quatro documentossão contemplados os vetores que este artigo se propõe a analisar, deixando de ladooutros possíveis documentos relevantes para a integração do planejamento a fim deprecisão analítica para o assunto da governança hídrica na RMC.

4.2.1 Plano de Diretor Municipal (PDM)

19 No planejamento dos municípios não raramente aspectos relevantes deixam de ser

considerados, principalmente quando relacionados ao tema ambiental. Isto acontece,por exemplo, quando os tipos de ocupação do território não apresentam conectividadecom os corpos hídricos e seus impactos nas bacias hidrográficas (Marinato, 2008 ; Gaddaet al., no prelo). As diretrizes previstas para um Plano Diretor Municipal, que poderiamcontemplar estes aspectos, possuem duas escalas : uma menor que estabelecenormativas como taxas e coeficientes de ocupação, e uma maior que estabelecemacrozoneamentos com delimitação de zonas urbanas e rurais, de expansão urbana, ede zonas especiais de proteção ambiental (Braga, 2001).

20 Documento obrigatório para os municípios com mais de 20 mil habitantes - embora a

legislação paranaense tenha estendido esta necessidade para todos os municípios doestado - o Plano Diretor Municipal é o principal instrumento do desenvolvimentourbano pois regulamenta o uso e ocupação do solo, garantindo o bem-estar humano

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(BRAGA, 2001). Em Curitiba o planejamento urbano teve início em 1943 com o PlanoAgache, o qual já trazia questões relativas ao planejamento ambiental, porém semmenção à preservação dos recursos hídricos e mananciais. Em 1966 foi criado então oPlano Diretor (PD) de Curitiba, estabelecendo as diretrizes básicas para a orientação e ocontrole do desenvolvimento integrado do município.

21 Também nessa época, a partir dos anos 1960, o tema da proteção dos recursos hídricos

começa a ser tratado politicamente no nível internacional. Contudo a abordagem aindanão integrava agendas complementares como a de habitação, abastecimento, saúde,etc. (Biswas e Tortajada ; 1998, Biswas, 2004). Com a Conferência de Estocolmo em 1972foi atingido um primeiro milestone na mudança dos paradigmas de desenvolvimentosustentável a nível internacional e aparece pela primeira vez o termo ServiçoAmbiental (environmental service) (Pesche et al., 2013, p. 70 ; Barreto et al., 2017 ; Rieu-Clarke et al., 2017).

22 A Conferência das Nações Unidas sobre a Água em Mar del Plata, Argentina, em 1977,

propôs avaliar pela primeira vez o estado dos recursos hídricos (Rieu-Clarke et al.,2017), e trazia recomendações de caráter extremamente técnico, considerando aspectosde regulação e provisão, uso e controle, saúde e poluição e riscos (Biswas, 2004). Nestamesma década, no ano de 1980, o único manancial em utilização para abastecimento deágua em Curitiba era o rio Passaúna. Porém, havia ficado claro que o planejamentomunicipal deveria ser ampliado para a escala metropolitana, visto que as bacias dosoutros mananciais que abastecem a capital do Paraná estão localizadas em outrosmunicípios da RMC (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba [IPPUC],2015).

23 Entre os anos de 1983 e 1985 foi elaborado o Plano Municipal de Desenvolvimento

Urbano de Curitiba (PMDU), responsável pela criação da Secretaria Municipal do MeioAmbiente (SMMA). A política ambiental do município passa então a ser planejada,executada e fiscalizada por este órgão. É interessante reconhecer que nas décadas de1970 e 80 Curitiba acompanha a tendência internacional, dando os primeiros passospara o gerenciamento integrado dos recursos hídricos.

24 A década de 1980 foi declarada pela ONU como Década Internacional de Abastecimento

de Água e Saneamento. Os gestores de água perceberam que a integração, emdetrimento a uma abordagem setorial, era necessária para a conservação dos recursoshídricos (Niasse e Cherlet, 2015). É no cenário de competição pelo uso da água e de crisehídrica que surge uma maior consciência da necessidade de agir (Niasse e Cherlet,2015). No entanto, Biswas (2004) assim como Rieu-Clarke et al. (2017), argumentam quehouve uma water blindness desde a Conferência sobre a Água de Mar del Plata em 1977, econcluem que a água tem estado praticamente invisível na agenda internacional nosanos 1980.

25 A revisão do PD Municipal de Curitiba de 2004, adequando-o ao Estatuto da Cidade,

buscou o desenvolvimento sustentável e trouxe consigo os temas : direito aosaneamento, à qualidade ambiental e à proteção ao meio ambiente. Em complemento,trazia ainda o Plano de Desenvolvimento Sustentável e Controle Ambiental, comobjetivos estratégicos como o gerenciamento das bacias hidrográficas, a melhoria daqualidade da água e a garantia do abastecimento à população.

26 A mais recente atualização do PD Municipal de Curitiba (2010-2015) intencionava

propiciar melhores condições para o desenvolvimento integrado e sustentável domunicípio com a Região Metropolitana (IPPUC, 2015). O Plano estabelece diretrizes da

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política urbana ambiental, trazendo : a bacia como unidade de planejamento, aidentificação e conservação dos mananciais, a consonância com o Plano de Bacia doAlto Iguaçu e a promoção da renaturalização dos corpos hídricos canalizados. Ainda nonível ambiental é relatado no artigo 66 que o município deve estabelecer o Programa dePagamento por Serviços Ambientais (PSA) visando a conservação e a melhoriaambiental entre os municípios da RMC.

27 Considerando o nível metropolitano, e incluindo aspectos do recém instituído Estatuto

da Metrópole, o atual PD trouxe a Política Municipal da Região Metropolitanaestabelecendo diretrizes para planejamento, gestão e execução de interesses comunsatravés da governança interfederativa, buscando estabelecer assim maior aproximaçãoentre os municípios da RMC no aspecto ambiental (IPPUC, 2015).

4.2.2 Plano de Desenvolvimento Integrado (COMEC)

28 A criação da Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (COMEC) em 1974,

apresentou-se concomitante à regulamentação da própria RMC. Com desafiadoresaspectos metropolitanos e visando organizar o desenvolvimento desta regiãometropolitana, a COMEC apresentou no ano de 1978 o primeiro Plano deDesenvolvimento Integrado da RMC (PDI/RMC) (COMEC, 2006). Neste documento foramdefinidas diretrizes segundo um enfoque sistêmico, buscando equilibrar característicasmetropolitanas com as diferentes dinâmicas municipais.

29 A primeira atualização deste Plano aconteceu no ano de 2002, considerando que a

região sofria acelerado crescimento das ocupações irregulares na franja urbana, comrelevante proximidade aos mananciais (Lima e Mendonça, 2001). Nele foram abordadasduas estratégias de atuação :

30 (1) medidas rígidas de regulação e controle pelo poder público, garantindo a qualidade

da água dos mananciais de abastecimento,

31 (2) mudança de captação de água para mananciais mais distantes, de solo cársticos, com

características negativas à ocupação do solo.

32 Naquele momento estudos indicavam que os recursos hídricos da RMC teriam seu

esgotamento em 35 anos, e que a contaminação dos mananciais deveria receber especialatenção das políticas públicas (Lima e Mendonça, 2001). Desta forma a posterior ediçãodo PDI, em 2006, abordou principalmente diretrizes de ocupação do território a partirdas condicionantes naturais e antrópicas, com orientação da estruturação urbana apartir de novo sistema viário metropolitano (COMEC, 2006). Estas informaçõescoincidem com dados coletados em uma entrevista com a Defesa Civil do Paraná pelosautores em novembro 2017.

33 Aproximadamente 45 % do território da RMC é considerado Área de Interesse de

Mananciais de Abastecimento Público de Água (Figura 2), conforme o decreto estadual6194, de 2012, o qual tornou obrigatória a preocupação com o meio ambiente nos planosrealizados para a região (COMEC, 2017). Em relação às áreas de mananciais deabastecimento, o Plano indicava que “os centros urbanos nos municípios de Piraquara eSão José dos Pinhais [deveriam] ser rígidos em seus crescimentos, em virtude de sualocalização muito próxima às áreas de captação de água” (Lima e Mendonça, 2001).

34 Com a atual revisão do PD Municipal de Curitiba de 2015, e visando a inclusão de

aspectos relativos ao recém aprovado Estatuto da Metrópole, o PDI encontra-senovamente em estado de revisão, a fim de adaptar e incluir aspectos metropolitanos

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tanto naturais quanto antrópicos em constante mudança. Isto significa que, embora oPDI em teoria dite as diretrizes de desenvolvimento dos municípios da RMC, odocumento é também afetado pelas abordagens ambientais formuladas por cada umdos municípios em seus respectivos PDMs.

35 A Figura 2 demonstra a abrangência da RMC e as áreas de proteção de mananciais,

marcadas em cinza. Estas áreas foram delimitadas pela COMEC buscando facilidade nagestão e controle do uso e ocupação do solo, garantindo a qualidade da água paraabastecimento público. Atualmente o abastecimento da RMC é realizado por mananciaislocalizados em Piraquara, Campina Grande do Sul, Quatro Barras, Pinhais, Araucária,Campo Largo, Campo Magro, Almirante Tamandaré, Curitiba e São José dos Pinhais(COMEC, 2017).

Figura 2. Áreas de Proteção de Mananciais - Região Metropolitana de Curitiba

COMEC, 2012.

4.2.3 Plano Diretor do Sistema de Abastecimento de Água Integrado (SAIC)

36 O primeiro PD desenvolvido pela SANEPAR aconteceu no ano de 1975, tendo como

horizonte os próximos 30 anos. Porém, considerando o acelerado crescimento da RMCeste documento teve revisões nos anos de 1980, 1991, 2000 e 2011. A Figura 3 apresentaa mancha urbana ao centro e a abrangência atual do Sistema integrado deabastecimento de Curitiba e Região Metropolitana - SAIC (linha preta).

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Figura 3. Municípios da Região Metropolitana de Curitiba atendidos pelo SAIC

Ilustração pelos autores com base em dados de Sanepar, 2013.

37 Os PDs desenvolvidos pela Companhia de Saneamento do Paraná (SANEPAR) buscam

identificar demandas atuais e futuras dos municípios integrantes da RMC atendidospela companhia, assim como projetar a utilização de novos mananciais na região.Procurando identificar os mananciais disponíveis para abastecimento futuro, asprioridades de implantação e a garantia de atendimento a 100 % da população da RMC,a mais recente revisão do Plano aconteceu no ano de 2013, seguindo o Decreto estadualnº 6194/2012 (SANEPAR, 2013).

38 A Sanepar desenvolve o Plano Diretor do Sistema de Abastecimento Integrado de

Curitiba e região Metropolitana (SAIC) conforme pareceres dos municípios envolvidos,considerando levantamentos presentes nos respectivos Planos Diretores, quecontribuem com a quantificação das demandas hídricas sempre para um horizonte de30 anos, assim como com as projeções das ocupações urbanas. Atualmente o SAIC éresponsável pelo abastecimento de água tratada nos municípios de AlmiranteTamandaré, Araucária, Campina Grande do Sul, Colombo, Curitiba, Fazenda Rio Grande,Pinhais, Piraquara, Quatro Barras e São José dos Pinhais, todos integrantes da RMC.

4.2.4 Plano das Bacias do Alto Iguaçu e Afluentes do Ribeira

39 A primeira tentativa de gerenciamento integrado dos recursos naturais na RMC iniciou-

se com o PROSAM (Programa de Saneamento Ambiental da Região Metropolitana deCuritiba - Bacia do Alto Iguaçu), criado através do decreto estadual 1.167 de 1992 eprevendo sua coordenação pela Secretaria de Planejamento do Estado do Paraná eexecução pela SANEPAR, COMEC e município de Curitiba, tendo também prevista a

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colaboração de vários outros órgãos do Estado, além de organizações nãogovernamentais de cunho ambiental e dos municípios da RMC.

40 O PROSAM previu uma política de uso e ocupação do solo adequada à proteção de

mananciais. No final da década de 90 seguindo a Lei Nacional 9.433 (1997), com ainstituição da Política Estadual de Recursos Hídricos (Nº 12.726, 1999), foi criado oSistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos, com instrumentos de gestãocomo : Plano Estadual de Recursos Hídricos, e Plano de Bacia Hidrográfica. Os Planos deBacia Hidrográfica são elaborados pela Agência de Água, aprovados pelo Comitê deBacia e deve considerar os planos, programas, projetos e demais estudos relacionados arecursos hídricos existentes na área de abrangência das respectivas bacias (Institutodas Águas do Paraná [Águas Paraná], 2007).

41 Essas políticas se situam em uma tendência internacional de “redescobrir” os recursos

hídricos nas agendas na década de 1990 (Biswas, 2004). Em 1992 a Declaração daConferência Internacional sobre Água e o Meio Ambiente em Dublin, foi seguida nomesmo ano pela Rio-92 propondo os “Quatro Princípios de Dublin” que iam representardiretivas a ser incorporadas em novas políticas hídricos nos níveis nacional esubnacional (Niasse e Cherlet, 2015). No entanto, de acordo com Rieu-Clarke et al.(2017) consenso internacional sobre essas diretrizes para a Gestão Integrada deRecursos Hídricos (GIRH) alcança-se só no segundo Fórum Mundial de Água, em Haiaem 2000. Biswas (2004) afirma que a proximidade temporal com a Rio-92, e o caráter deencontro de experts - e não de governos - fez com que não se teve maiorcomprometimento com esses princípios.

42 Assim como a metodologia utilizada nos Planos de Recursos Hídricos Nacional (PNRH) e

Estadual do Paraná (PLERH), o Plano de Bacias trabalha com cenários, resultando emplanejamento estratégico para orientação de decisões acerca dos prognósticos. Paradefinição dos cenários são considerados os seguintes aspectos : taxa de crescimentopopulacional, uso e ocupação do solo, distribuição da população nos municípios, eocupação do solo nas sub-bacias da RMC (Águas Paraná, 2007). Porém, ainda não se temevidência nesta época sobre a incorporação dos princípios do GIRH no nívelsubnacional. Somente em 2012, em volta de 80 % de todos os países tinham integradoesses princípios nas suas legislações e ⅔ possuíam planos nacionais de GIRH (Niasse eCherlet, 2015). Andreotti et al. (1999) analisam dois cenários nos quais a demanda porágua cresce mais que a população, como pode ser observado na Figura 4.

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Figura 4. Cenários de crescimento populacional e aumento da demanda hídrica

Autores com base em dados de Andreotti et al. (1999).

43 Segundo o Plano de Bacias o principal objetivo é otimizar os benefícios ambientais para

a população presente nestas áreas. Diz o documento : “os instrumentos previstos nalegislação a serem mobilizados para a gestão dos recursos hídricos, definem metasquantificáveis a serem atingidas”. As ações contempladas buscam a melhoria daqualidade e disponibilidade dos recursos hídricos, integrado a outros planos eprogramas setoriais como : de saneamento básico, diretores municipais, de recursoshídricos, entre outros. Os programas, subprogramas e ações específicas contribuempara o direcionamento da aplicação dos recursos provenientes da cobrança pelo direitodo uso da água (Águas Paraná, 2007 ; Rauber e Cruz, 2013).

44 No nível internacional, Rieu-Clarke et al. (2017) destacam a Conferência Internacional

sobre Água Doce, em Bonn, Alemanha, em 2001, que foi realizada em preparação àCumbre Mundial de Desenvolvimento Sustentável em Durban, África do Sul, em 2002.As “Chaves de Bonn” destacam as necessidades das populações pobres em relação àágua, a necessidade de maior descentralização, novas parcerias e melhores arranjoscooperativos em bacias compartilhadas. De forma similar os princípios do Habitat daONU direcionam para um entendimento sobre políticas públicas em seu contextomaior, apontando para as conexões críticas de questões como a urbanização, habitaçãocom a água (Organização das Nações Unidas [ONU], 2016).

5. O caso da governança hídrica nas bacias do Paraná

45 A bacia hidrográfica é a escala espacial adequada para avaliar os impactos da ocupação

urbana atual, e de novos projetos de urbanização sobre os processos hidrológicos esobre as cargas de poluição. Assim funcionam como unidade de gestão desde que hajareconhecimento pelos órgãos gestores deste recorte espacial (Rocha e Vianna, 2008 ;Rauber e Cruz, 2013 ; Schussel e Nascimento Neto, 2015).

46 Neste contexto, Curitiba é dividida em seis sub-bacias hidrográficas, contendo seus

principais rios : Barigui, Belém, Passaúna, Ribeirão dos Padilhas, Atuba e Iguaçu,

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conforme ilustra a Figura 5. No entanto, para o abastecimento de água na cidade, sãoutilizados os rios Iguaçu (com a captação fora de Curitiba), Passaúna (único manancialaproveitável na cidade), Iraí, e Miringuava (GADDA et al., 2018).

47 A análise por bacias hidrográficas identifica, excetuando-se o Passaúna, que os rios no

território municipal não são adequados para o abastecimento em decorrência dapoluição. Desta forma, a solução é buscar água de rios do entorno que apresentemcondições de potabilidade adequada para as diversas demandas. Nota-se que sãoescassas as políticas de recuperação da qualidade da água dos rios, sendo que não foramlocalizados estudos comparando o custo de recuperação dos rios e o investimento emampliação da rede para captação em rios mais distantes, viabilizando a captação deágua dentro das bacias hidrográficas mais próximas aos locais de fornecimento.

Figura 5. Divisão do município de Curitiba em Bacias Hidrográficas

IPPUC/SUDERHSA, 2010.

48 De acordo com Porto (2008), o conceito de descentralização da gestão da água para o

nível local, e as necessidades de articulação que a gestão por bacias hidrográficas exige,estão ainda dependentes de uma enorme evolução institucional do país, bem comomedidas de sustentabilidade, e de intervenções ambientais de preservação. Desde acriação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos com a novaconstituição de 1988, a Lei das Águas de 1997 e a criação da Agência Nacional de Águas(ANA), foram feitos importantes avanços na descentralização do gerenciamento naslinhas preconizados no nível internacional (ANA, 2002). No entanto, com a criação doInstituto das Águas à base da antiga Superintendência de Desenvolvimento de RecursosHídricos e Saneamento Ambiental (SUDERHSA) em 2009, as “funções de entidade deregulação e fiscalização do serviço de saneamento básico” (Águas Paraná, 2007) passama ser organizados em um arranjo particular no estado do Paraná. Pela criação desta

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autarquia vinculada à Secretaria Estadual do Meio Ambiente mediante Lei nº 16.242, oInstituto das Águas se estabelece como “órgão executivo gestor do Sistema Estadual deGerenciamento de Recursos Hídricos” (Medeiros, 2011).

49 Medeiros e Canali (2012) em uma análise das atas dos comitês de bacia no Paraná,

apontam para uma peculiaridade do Comitê das Bacias do Alto Iguaçu e Afluentes doAlto Ribeira (COALIAR), que foi o primeiro estabelecido no estado. Se bem que as quotasde representação até sobressaem as exigências da lei, de acordo com os autores, as atas“apresentaram poucos registros de manifestação dos conselheiros” e “poucasmanifestações dos participantes”. Segundo os autores “são registradas aprovaçõescoletivas sem debates, questionamentos ou decisões conflituosas” e que essa “faltadeste registro dificulta conhecer as posições setoriais e/ou individuais dosconselheiros.” Medeiros (2011) ainda afirma que :

50 “O Modelo descentralizado de gestão parece enfrentar limites na sua implementação,

conflitando práticas e idéias que alimentaram os modelos burocráticos e tecnocráticos,uma vez que os segmentos do sistema ainda carregam em suas formas de atuação os'vícios' das velhas formas de gerenciar as águas”.

51 Observando a estrutura de governança dos recursos hídricos no estado do Paraná e

consequentemente da região metropolitana, percebe-se uma instigante controvérsia naestrutura de governança e cumprimento das diretrizes colocadas pelos diferentesplanos que estão em vigor na governança dos recursos hídricos na RMC (Horning et al.,2016).

52 A Figura 6 mostra os principais órgãos estabelecidos para a governança hídrica pela

política nacional e estadual (do Paraná) : o Conselho Estadual de Recursos Hídricos(CERH), a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SEMA), o Institutodas Águas do Paraná (antiga Superintendência de Desenvolvimento Recursos Hídricos eSaneamento Ambiental SUDERHSA), os comitês de bacia e as respectivas agências debacia.

Figura 6. Comparação entre estrutura da governança dos comitês de bacia no nívelnacional e no nível do Paraná

Elaborado pelos autores com base em dados do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (2018) e doMinistério do Meio Ambiente (2018).

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53 A diferença de outros estados, o Paraná conta com uma estrutura particular com o

Instituto das Águas (em vermelho na Figura 6), que age ambos como órgão executivo eao mesmo tempo como fiscalizador no sistema. Nas diretivas pela política nacional, oscomitês de bacia, como unidade mais local, ficam independentes, mas cooperando comos órgãos estaduais. No caso do Paraná a agência de bacia fica justamente representadopelo Instituto das Águas o que não garante uma separação entre estabelecimento demetas e fiscalização independente, senão uma “sobreposição institucional”. Naspalavras de Hojda et al., 2014 :

54 “Parte do problema ocorre porque o Instituto das Águas do Paraná, órgão executivo

gestor do Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SEGRH/PR, quetem por finalidade oferecer suporte institucional e técnico à efetivação da PERH/PR,não vem agindo de modo efetivo. Cabe ressaltar que também é finalidade do Institutodas Águas do Paraná o exercício das funções de entidade de regulação e de Agência deBacia. Essa diferenciada definição institucional do Instituto das Águas (antigaSUDERHSA) como a Agência de Bacia gera uma sobreposição institucional (confusa)desse ator desenhado originalmente para agir como planejador, implementador efiscalizador da gestão de recursos hídricos do Paraná”.

55 Além disso, as autoras Rauber e Cruz (2013) apontam para a “falta de estrutura do

[Instituto das Águas do Paraná], para atender adequadamente à demanda de processos”de efetivação dos comitês de bacia como efetivos espaços para discussão dos usosmúltiplos da água, a função de “parlamento das águas” discutida por esses autores.Assim a função de participação popular efetiva ainda não é alcançada (Jacobi eFrancalanza, 2005). Diferentemente do que em outros estados, onde as agênciasreguladoras podem divergir dos comitês de bacia, o poder de decisão acaba sendoconcentrado nesse ator. Como ele faz parte da SEMA, seu potencial para defenderinteresses específicos ligados à questão hídrica e, em detrimento da expansão urbana,são reduzidos drasticamente.

56 Tendo em vista as iniciativas de integração na RMC, o ProMetrópole merece uma

atenção atenta. Esse programa com presidência do prefeito e vice-presidência dodiretor da FIEP (Federação das Indústrias do Paraná) junto com órgãos metropolitanoscomo Assomec, COMEC, Sebrae, Fecomércio e FACIAP (Federação das AssociaçõesComerciais e Empresariais do Estado do Paraná), percebe-se um foco forte em temascomerciais (Agência de Notícias da Prefeitura de Curitiba, 2017). Fica a esperar quetemas sociais e ambientais como o assunto da água como bem público na região serãointegrados nas agendas de integração metropolitana (Medeiros, 2011). Porém, o atualarranjo coloca pouca importância ao assunto (Weins, 2019).

6. Discussão e conclusão

57 Visto de forma mais ampla, Curitiba é um exemplo sul americano de avanço de agendas

de sustentabilidade, de acordos internacionais e de soluções pioneiras em políticasambientais. Porém, para a questão hídrica, a cidade na cabeceira do Rio Iguaçuapresenta maiores desafios do que para outras cidades brasileiras. As instituiçõesenvolvidas na gestão dos recursos hídricos na Região Metropolitana de Curitibarefletem em boa parte dos seus planos a agenda internacional, e incorporam com certoatraso as tendências de Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos. No entanto, oarranjo institucional escolhido no estado dificulta um diálogo verdadeiro como

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“parlamento das águas” (Rauber e Cruz, 2013), tendo em conta as grandes divergênciasde interesses. Isto, no cenário político atual brasileiro é um retrocesso na consolidaçãodemocrática.

58 A pesquisa bibliográfica e análise documental baseada em dados oficiais dos planos de

ordenamento territorial relevantes ao estudo de caso (RMC) mostra que as diretrizespara a gestão dos recursos hídricos preconizadas internacionalmente e nacionalmentesão absorvidas com retardo e certa modificação para os arranjos na escala subnacional.A evidência vem do fato do planejamento necessário à gestão hídrica na RMC ainda nãoser, de fato, integrado, visto que os planos de habitação, de saúde e ambiental dialogamentre si de maneira limitada. Igualmente se encontram alguns órgãos, como o comitê debacia, criado para facilitar a gestão integrada, e também na estrutura estadual, como oInstituto das Águas, que não estão cumprindo os seus papéis por vários desafios. Umdeles poderia ser oriundo de funções não claramente definidas e da capacitaçãodesatualizada dos funcionários, outro pelo receio em atribuir tarefas e poder regulativoà sociedade civil - processo importante na consolidação democrática - que poderia ircontra os interesses dos órgãos responsáveis e seus funcionários.

59 Além destes fatores gerenciais, é plausível também que os cálculos para oferta e

demanda da água não reflitam a realidade. Nos vários planos analisados, os indicadoresde comparação entre oferta e demanda levam em conta fatores básicos, mas estãoausentes do cálculo alguns fatores de relevância como a influência das mudançasclimáticas, mudanças de renda da população, e spillovers relacionados à apropriação deágua virtual por unidades geográficas. Carmo et al. (2014), inclusive indicam que oconsumo per capita tem aumentado em diversas capitais brasileiras a medida em que seaumenta a renda. Pode se constatar ainda que “muitos dos problemas ambientaisenfrentados pelas cidades brasileiras [...] têm suas origens na falta de uma posturaproativa da sociedade brasileira e do poder público com relação ao crescimentourbano” (Martine e McGRANAHAN, 2010).

60 O fato da captação de água estar se afastando cada vez mais da cidade pólo (maior

consumidora) pode ser considerada um aparente bálsamo para os moradores da RMCque segue uma tendência global da formação de “hidromegalópoles” (Carmo eAnazawa, 2017). Contudo, pode também ser fator de adiamento do enfrentamento dabaixa qualidade dos corpos hídricos da região (Gadda et al., 2018). Além disso, apoluição dos corpos hídricos no interior dos municípios (como é o caso de Curitiba)pode ser fator de desestímulo a um planejamento urbano por bacias, como preconizadointernacionalmente, pois neste caso a captação para abastecimento está na franja e/oufora do município. Neste último caso a responsabilidade pela qualidade da água écolocada sobre um outro município, gerando conflitos no uso e ocupação do território epreocupação quanto às compensações econômicas cabíveis.

61 Além disso, os planos municipais parecem incluir diretrizes de preservação dos

mananciais de maneira vaga. São indicadas medidas de conservação e “melhoriasambientais”, mas que não definem parâmetros de monitoramento e nem objetivosclaros de como tais melhorias podem ser alcançadas e não definem responsabilidadesclaras para este assunto. Importante citar também o essencial envolvimento dosgestores públicos neste processo. Um melhor monitoramento do sistema de proteçãoambiental levaria para uma perspectiva positiva pautada segundo os preceitos dodesenvolvimento sustentável, que reconhece a interdependência dos setores urbanos(Schussel e Nascimento Neto, 2015).

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62 É necessário um esforço mais integrado na gestão dos recursos hídricos e na absorção

dos conceitos preconizados internacionalmente sob o risco de os atores envolvidos nagestão hídrica estarem negligenciando questões importantes já estabelecidas e quepodem garantir a qualidade dos recursos hídricos e seus múltiplos usos para o bem-estar humano.

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Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

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RESUMOS

A escassez hídrica global tratada há décadas por documentos internacionais, é também

reconhecida, ainda que com baixa aderência, nas agendas ambientais subnacionais. Conceitos

como o Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos (GIRH) e Serviços Ecossistêmicos (SE) são

relevantemente preconizados a nível internacional pela comunidade científica para serem

aplicados pelas instituições no nível local. Este artigo propõe uma análise da adesão destes

conceitos para a governança da água na Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Primeiramente

foram elencados os planos de maior relevância no gerenciamento da água na governança relativa

ao Estado do Paraná e ao município de Curitiba, bem como fatores demográficos e suas

respectivas atribuições com relação à manutenção desse recurso e suas escalas de atuação. Por

meio de uma análise documental, relacionamos as medidas adotadas pelos diferentes atores de

modo a subsidiar uma análise da inserção dos conceitos de GIRH e SE nas suas respectivas

atuações. Com isto buscou-se entender as possíveis implicações para o gerenciamento da água

dentro das especificidades de governança hídrica metropolitana paranaense e curitibana, e como

as instituições e sua relação com o meio ambiente podem ter consequências sobre a

disponibilidade de água com qualidade na RMC.

ÍNDICE

Keywords: serviços ambientais, gerenciamento de recursos hídricos, planejamento urbano

AUTORES

SIMONE DO AMARAL CASSILHA

Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil, simone.cassilha [at] pucpr.br

TATIANA MARIA CECY GADDA

Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil, tatianagadda[at]utfpr.edu.br

NIKLAS WERNER WEINS

Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil, weinsniklas [at] gmail.com

AUGUSTO FREDERICO JUNQUEIRA SCHMIDT

Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil, guto.fritz [at] gmail.com

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Fendas numa cidade divididaHabitação popular na cidade de São Paulo

Luis Octavio P. L. de Faria e Silva

Diário de Carolina Maria de Jesus, p. 132, referente ao dia 4 de Janeiro de 19591

Paisagem e ocupação humana em São Paulo até aofim do século XIX

1 O sítio onde se desenvolveu a ocupação humana que resultou na megacidade de São

Paulo corresponde a parte da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê. Trata-se de um valeencravado no Planalto Atlântico, a menos de 100 quilómetros do mar, mas a partir desteé necessário escalar uma serra com desnível de pelo menos 800 metros para atingiraquela região antigamente chamada de Campos de Piratininga

2 O rio Tietê, eixo central daquela Bacia, quando chega à região hoje intensamente

urbanizada de São Paulo, corre numa planície relativamente ampla, leito maior daquelecurso de água que se inicia junto a morros da face ocidental da chamada Serra do Mar.Essa planície junto ao Tietê, na região da cidade de São Paulo, é assimétrica : na suamargem esquerda é ampla enquanto na margem direita encontra colinas e morraria dasserras ao norte, de onde brotam muitos ribeirões e rios, que percorrem uma morfologiaacidentada pouco urbanizada até meados do século XX. Divisores de águas entre o Tietêe os afluentes da sua margem esquerda, por sua vez, foram ocupados com maisintensidade desde o seiscentos e ali se iniciou a urbanização paulistana2.

3 A ocupação desse compartimento do Planalto Atlântico inicialmente buscava sítios

estratégicos quanto à provisão de víveres e para defesa, além, também, em função designificados simbólicos neles presentes. Até meados do século XIX, a região de SãoPaulo assim foi ocupada : as vilas e bairros rurais se estabeleciam em topos de colinas e,por uma série de razões, não se via nelas uma nítida separação espacial entre ricos epobres, cujo cotidiano era significativamente semelhante quanto à relativa escassez derecursos e austeridade, ainda que vigorasse um sistema escravagista.

4 No Planalto paulista não se via a riqueza proveniente da cana de açúcar que fazia do

nordeste brasileiro uma região de maiores contrastes sociais. Esse quadro se transforma

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com vigor sobretudo no último quartel do século XIX, com a libertação da populaçãoaté então escravizada e que passou a viver frequentemente segregada em lugares maisdistantes e pouco valorizados. Estas condições de vida eram em geral partilhadas poroutros excluídos, como muitos dos imigrantes que afluíam à cidade em função deincentivos estatais brasileiros, que atraíam mão de obra estrangeira em troca dasviagens para aqueles que viessem fugidos das crises socioeconómicas em seus países deorigem.

5 A infraestrutura que se estabeleceu para a produção, algum processamento e

escoamento do café paulista, importante produto do agronegócio naquele período,trouxe a reboque não só imigrantes em busca de novas perspectivas de vida, mastambém novos costumes e dinâmicas económicas. Também já a partir do final dooitocentos se estabeleceram em São Paulo as primeiras indústrias e, consequentemente,seus operários, que compartilhavam com seus congeneres na Europa e América doNorte os baixos níveis de salários e precária qualidade de vida.

6 Assim nasce a cidade dividida de São Paulo, onde bairros novos são desenhados para os

ricos, enquanto bairros pobres surgem junto às fábricas e entrepostos relacionados coma ferrovia, abrigando operários e recém libertos – os pobres que naquela condiçãoinaugurada não têm lugar junto aos remediados. Ao longo do século XX, a cidade de SãoPaulo vê aumentar a separação entre uma parte próspera, onde existem equipamentose infraestrutura, em detrimento de outra parte onde a precariedade é a regradominante.

O lugar dos pobres em São Paulo

“Poucas vezes na história do urbanismo terá ocorrido um fenômeno semelhante,uma cidade reconstruída duas vezes sobre o mesmo assentamento. A descoberta deuma cidade inteiramente construída de barro surpreendeu os viajantes no início doséculo XIX (...) e, a partir do momento em que a ferrovia chegou às novas terrasprodutoras de café, a cidade [de São Paulo] conheceu um crescimento incontrolado.(...) Com os imigrantes vieram novas técnicas de construir e a cidade foireconstruída integralmente (...). Até a Segunda Grande Guerra a cidade conservousua imagem de metrópole do café. A partir de então, os grandes empreendimentosimobiliários vieram destruir, um a um, os documentos arquitetônicos da cidade. Ospoderes públicos sempre ficaram para trás da iniciativa privada e um código deobras anacrônico permitiu um uso abusivo do solo. (...)” (Toledo, 2004 : 181)

7 Entre o final do século XIX e o início do XX, quando já é característico da cidade de São

Paulo esse processo de sua destruição e reconstrução contínua, construções esparsasnum meio entendido como rural abrigavam famílias despossuídas, que também seinstalavam nos ambientes urbanos em cortiços (conjuntos de cômodos quecompartilham banheiros, cozinha e lavandaria) construídos por especuladores quecontavam com lucros importantes, obtidos de uma população locatária sem recursosnem proteção legal ou do Estado. Houve também uma produção rentista que resultavaem vilas para aluguel, habitadas sobretudo por famílias de pouca renda que conseguiamescapar da vida nos cortiços, ainda que sempre com insegurança quanto à suacapacidade financeira e sob a ameaça constante de despejo. Algumas indústriasmantinham vilas operárias, algo que significava uma dupla condição para aqueles queali moravam, já que a relação de dependência decorrente levava a situações em quehorários de descanso não eram necessariamente respeitados e patrões ou encarregadosnão hesitavam em insinuar a possibilidade de despejo em caso de insubordinação. Ecos

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pálidos dos falanstérios, apropriação burguesa de visões dos chamados socialistasutópicos, as vilas operárias em São Paulo tiveram na Vila Maria Zélia um exemplomáximo. Outras indústrias mantiveram vilas operárias, mas raras foram aquelas quecontavam com equipamentos como a escola e a igreja do conjunto da Vila Maria Zélia,inaugurada em 1917 na margem esquerda do rio Tietê, próximo à indústria propriedadeda família Street (Figura1).

Figura 1. Foto recente da Vila Maria Zélia, inaugurada em 1917 na margem esquerda do rio Tietê,próximo à indústria propriedade da família Street

Fotografia do autor.

8 Até aos anos de 1930 os pobres paulistanos viviam, em geral, em conjuntos de casas de

aluguel que representavam a aposentadoria de muitos idosos paulistanos que delaseram proprietários e locadores, em vilas operárias e em cortiços, além de em algunscasebres esparsos nas áreas menos urbanizadas.

9 Nos anos 1940, alguns aglomerados de construções muito precárias passaram a fazer

parte da paisagem urbana paulistana. É o caso da favela da Vila Prudente, consideradacomo a primeira a se formar em São Paulo, e da favela do Ibirapuera (removida naaltura da construção do parque no 4º centenário da cidade, em 1954) (Figura 2), entreoutras : “Em São Paulo, julga-se que as primeiras favelas apareceram na década de 40. ODiário de São Paulo (1/10/1950) relata uma pesquisa feita pela Divisão de Estatística eDocumentação da Prefeitura de São Paulo (hoje extinta) sobre a favela do Oratório, naMooca, zona leste de São Paulo. Ali moravam 245 pessoas em moradias de tábuas, comapenas 6 vasos sanitários para uso de todos. Também no mesmo ano encontrou-sereferência à favela da Rua Guaicurus, na Lapa (zona central) com 230 domicílios e 926pessoas. No Diário de São Paulo de 6/8/1950, um artigo sobre a favela do Ibirapuera (27domicílios, 144 pessoas) já comentava que os moradores desse assentamento erampessoas pobres e não vadios e malfeitores, fortalecendo uma evidência empírica

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retomada na década de 70. Datam também da década de 40 a favela Ordem e Progresso,na Barra Funda, zona central do município (hoje erradicada), a favela do Vergueiro, nazona sul (também erradicada) e a de Vila Prudente, na zona leste, ainda existente.”(Pasternak, 2001 : 9)

Figura 2. Favela do Ibirapuera, removida aquando da construção do parque no 4º centenário dacidade, em 1954

Acervo Sebastião Assis Pereira. Disponível em https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/9966-zona-sul-ibirapuera, acesso em Junho de 2019.

10 Essas primeiras favelas paulistanas surgem num contexto de crescimento populacional

da cidade, novo fôlego na sua industrialização e de remoções resultantes detransformações urbanas, além de profunda mudança no sistema de locação eincapacidade do Estado no sentido de atender a uma demanda crescente de moradiaspara famílias de poucos recursos. Em São Paulo, no entanto, mais do que nas favelas, ospobres instalavam-se nos chamados loteamentos de periferia, frequentementeirregulares, que se tornaram uma constante na paisagem, associados à autoconstruçãopor parte de seus moradores (Bonduki, 1998 : 281).

11 É também na década de 1940 que começam a ser construídos conjuntos habitacionais

viabilizados pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões : uma produção importante,ainda que insuficiente diante da grande demanda que se colocava. Em São Paulo, algunsconjuntos de porte significativo são construídos junto a bairros industriais, além deedifícios isolados e conjuntos menores dispersos em áreas mais centrais. Essesconjuntos habitacionais passam a abrigar a classe operária e empregada nos serviçosque se desenvolviam com vigor nos anos finais da segunda guerra mundial e nos anossubsequentes.

12 Embora presente desde há muito, o fenômeno favela, em São Paulo, só vai se

desenvolver em larga escala nos anos 70. A montagem de um Cadastro de Favelas, naSecretaria do Bem-Estar Social, em 1973, permitiu uma mensuração bastante exata donúmero de favelas e domicílios. Nas moradias, aplicou-se um formulário abrangente,numa amostra ampla, sobre caracterização domiciliar e populacional. Através do dado“pessoas por unidade domiciliar” foi estimado o número da população favelada total.Em 1973/1974 a população favelada paulistana não alcançava 72 mil pessoas (71.840),cerca de 1,1 % da população municipal. ( Pasternak, 2001 : 10)

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13 Ainda que ocupações de áreas públicas e privadas continuassem a verificar-se nos anos

entre 1950 e o final da década de 1960, vai-se dar um novo crescimento vertiginoso efavelização de grandes proporções em São Paulo no período do regime militarbrasileiro, numa época que se apregoava um “milagre económico” devido ao elevadonível de crescimento da economia do país. É naqueles anos de 1970 que muitas dasvárzeas dos rios paulistanos vêem seus habituais campos de futebol e sítios de produçãoagrícola intermitentemente alagados serem ocupados a uma velocidade surpreendente.Lagoas e charcos no leito maior do rio Tietê e de seus afluentes (tanto naturais comoresultantes de dragagens de areia para a construção civil e argila para indústria local)são aterrados e ocupados, ora por armazéns industriais, ora por favelas.

14 Sobretudo ao longo da década de 1970 foram realizados muitos conjuntos habitacionais

de baixa qualidade construtiva para os pobres da cidade de São Paulo, com recursos doBanco Nacional de Habitação (BNH). O BNH era referência na estrutura estatal daditadura militar brasileira, órgão que acabou por financiar também a construção deimóveis para a classe média paulistana num período que se caracterizou por umagrande produção imobiliária. Os conjuntos destinados às classes menos favorecidas,cujo exemplo máximo em São Paulo é representado pela Cidade Tiradentes, eram emgrande parte feitos fora da área urbanizada, sem equipamentos públicos, cominfraestrutura incipiente e incompleta. É apenas a partir da primeira década desteséculo que o Estado se fez efetivamente presente naqueles conjuntos, implantandoequipamentos e infraestrutura articulada de mobilidade pública. A demanda pormoradia para a população desfavorecida, no entanto, seguiu crescendo a um ritmomaior que o da produção habitacional governamental e do mercado imobiliário poucovoltado para aquele segmento. Assim sendo, bairros precários na periferia, distantes dainfraestrutura urbana, e favelas ocupando terrenos cada vez mais impróprios emfunção de riscos de deslizamentos e afundamentos resultantes de erosão continuaram asurgir nas bordas e “fendas” da cidade que se expande para todos os lados.

15 Na década de 1980, em função de uma valorização imobiliária crescente, instala-se nas

regiões de várzeas dos grandes rios da Bacia do Alto Tietê uma tensão entre expansãode áreas ocupadas por favelas e remoções promovidas em nome de projetosimobiliários. Simultaneamente, a pressão por ocupação das áreas de proteção dosmananciais da cidade de São Paulo intensifica-se, algo que segue até à atualidade. Amancha urbana paulistana, conurbada com áreas urbanizadas de uma série demunicípios vizinhos atinge uma extensão imensa e com baixa densidade demográfica,algo desfavorável em termos ambientais e quanto à viabilidade de implantação emanutenção de redes de infraestrutura.

16 Segundo dados apresentados por Pasternak a partir dos Censos Demográficos de 1980 e

1991 e Contagem populacional de 1996, a população favelada em São Paulo era de335.344 pessoas em 1980 (aumento de quase 500 % em relação aos números referentes a1974), 711.032 em 1991 e 747.322 em 1996 (Pasternak, 2001 :16)3.

17 A mesma autora fala de um crescimento das favelas de 3,06 % de 1991 a 1996 em anel

periférico da cidade de São Paulo, sendo negativo o crescimento em seus anéis centrais,algo que demonstra a expulsão dos pobres para as bordas da cidade e espraiamentourbano (Pasternak, 2001 : 17).

18 No final dos anos de 1960 e ao longo da década de 1970, no Rio de Janeiro, o arquiteto

Carlos Nelson Ferreira dos Santos (que foi assessor de uma organização de favelas4 etrabalhou num órgão público que se dedicava a lidar com elas5), já chamava a atenção

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para o que via como uma construção coletiva com intensas relações, que deveriam sercompreendidas e não desprezadas como era de praxe – suas contribuições elevantamentos de favelas cariocas (como Brás de Pina e Catacumba) foram inauguraisna mudança de paradigma da ação pública em favelas, algo que em São Paulo tevereflexos nos anos de 1980.

19 Os movimentos sociais na cidade de São Paulo nasceram, de uma forma geral, a partir

das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) surgidas nos anos 1970 e ligadas à IgrejaCatólica, e foram fortalecidos com a redemocratização do país a partir dos anos 1980.Entre eles cabe destacar o MDF - Movimento de Defesa do Favelado, que se estabelecedesde 1978 no sentido de lutar por melhorias nas favelas paulistanas. Alguns anosdepois do seu surgimento (já no final da década de 1980), nasce a UMM - União dosMovimentos de Moradia, entidade que acolheria uma série de movimentos quebuscavam melhores condições de vida para a população pobre, com ênfase no direito auma moradia digna.

20 Desde os anos 2000 que os movimentos de moradia passam a reivindicar habitação para

os pobres em áreas centrais e próximas ao emprego. Surgem Políticas Públicas deprovisão de habitação social no centro paulistano e ocupações de edifícios subutilizadosou vazios também se tornam uma constante na paisagem urbana central da cidade.Assim, desde a primeira década do século XXI que edifícios no centro paulistanos têmsido convertidos em habitação de interesse social, a partir de reformas com atualizaçãode sistemas prediais – processos atualmente chamados de retrofit (Figura 3) - que sedefrontam com dificuldades quanto à aprovação dos projetos em função de novalegislação, que muitas vezes torna as obras excessivamente onerosas. Por outro lado, asocupações de edifícios foram-se consolidando como realidade paulistana, sendo umamaneira de chamar a atenção para os movimentos de moradia, já que ocupar no centropaulistano ganha uma ampla divulgação, diferente do impacto da ocupação de terrenosnas bordas da cidade (Figura 4). Os movimentos de moradia, de uma forma geral, têmorigem em bairros afastados do centro paulistano e, mesmo atualmente, grande partedos seus participantes ocupa terrenos distantes dos bairros centrais.

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Figura 3. Edifício Dandara

Convertido em edifício residencial, no ano de 2018, através de projeto da Assessoria Técnica Integra,para o Movimento de Moradia ULCM.

Fotografia do autor.

Figura 4. Ocupação Rio Branco

Conjunto ocupado no centro paulistano por movimentos de moradia do Movimento Sem Teto doCentro, ligados à Frente de Luta por Moradia

Fotografia do autor.

21 Alguns planos, programas e projetos habitacionais têm sido empreendidos ou

facilitados pelo Poder Público em São Paulo desde a extinção do BNH no final dos anos1980, o que resultou em alguns conjuntos habitacionais de grande qualidadearquitetónica. Também o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) produziu, na sua

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modalidade Entidade, importantes conjuntos de boa qualidade na cidade, não obstantea dificuldade em construir em São Paulo devido aos custos envolvidos.

22 O PMCMV como um todo, no entanto, não contribuiu propriamente para qualificar as

áreas onde os empreendimentos são implantados e reduzir a sua precariedade (Rolnik,2015). A maior parte desses empreendimentos são erguidos por construtoras(modalidade Empresas) associadas ao que Rolnik refere como parte do complexoimobiliário-financeiro que se estabeleceu com vigor no Brasil nas últimas décadas : “Aforma do condomínio fechado e murado, obrigatória para conjuntos verticais doprograma, reproduz enclaves fortificados sobre um tecido urbano – das periferiasconsolidadas – fragmentado e desconexo, não contribuindo para transformá-lo ouqualificá-lo” (2015 : 314).

23 Complementarmente ao exposto verifica-se uma tensão contínua em São Paulo quanto

às transformações urbanas em relação ao lugar dos pobres na cidade. As margens oubordas da cidade, internas ou externas, têm sido os lugares permitidos à populaçãopobre, desde os libertos e mão de obra imigrante na viragem do século XIX para o XX,aos migrantes brasileiros que desde meados do século XX têm abandonado o campopara se lançarem à aventura na cidade/metrópole brasileira. Toda esta população temsido entendida como reserva de mão de obra barata para serviços, construção civil eindústria, vivendo em margens ou interstícios que são ocupados e crescem “ sem Estadoe sem Mercado » em áreas de risco geológico ou ambientalmente frágeis (Maricato,2003 : 154). Estes espaços correspondem à “ cidade informal », como se não tivessemforma própria. Hoje fala-se de áreas de ocupação precária na Macrometrópole paulista,já que o fenómeno das ocupações precárias passou a ter essa escala, com densificaçãode favelas existentes e ocupações de terras em vários municípios, num padrão demoradia e urbanização com precariedades.

Terra de quem ? A questão fundiária no país

24 O Brasil resulta de uma “ ocupação » com pouco mais de 500 anos. Nesse sentido, a

maneira como os povos originários são tratados não deixa de ser emblemática, já quequem ali habita desde tempos imemoriais tem que lutar para garantir o seu modo devida, que não tem como prerrogativa a posse da terra, nos termos da propriedadedocumentada em cartório – forma de propriedade que se efetiva no Brasil a partir daLei de Terras, no século XIX. Antes desta Lei, a terra era uma concessão, pertencendoem última instância, à Coroa (primeiro à Coroa portuguesa e, depois da Independência,à Coroa brasileira). Nos primeiros séculos da experiência colonial portuguesa naAmérica do Sul, os donatários de terra escolhidos pela Coroa podiam conceder a posseda terra e tinham o direito de estabelecer vilas.

25 O modelo atualmente vigente, derivado das transformações decorrentes da Lei de

Terras e referendado pela República proclamada no final do século XIX, trata a terracomo património inviolável e como mercadoria. A origem da propriedade da terra noBrasil, no entanto, é a posse e a ocupação em tempos antigos. Não raramente surgemsituações em que documentos de posse têm base em declarações de presença atestadade muitos anos num determinado terreno. Há grandes disputas e resistências quanto aesses títulos de propriedade. Ao mesmo tempo persistem no Brasil outros modelos depropriedade : a concessão segue quanto às terras nas faixas marinhas e ilhas. Terraspúblicas têm sido também, em algumas cidades brasileiras, objeto de termos de

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concessão de uso por parte de população de poucos recursos que as ocupam, graças ainstrumentos criados a partir de marcos regulatórios recentes e socialmentecomprometidos. A terra, no entanto, segue como uma grande limitação na busca porigualdade de condições para a população brasileira em geral, paulistana em particular.

26 De quem é a terra ? Esta é uma pergunta que fica frequentemente no ar. A Constituição

Federal Brasileira de 1988 trouxe a perspectiva da Função Social da Propriedade – algoregulado no Estatuto da Cidade, um marco referencial no país que foi base para muitasações no sentido de consolidar locais de moradia dos pobres, habitualmente removidosem operações impiedosas envolvendo a polícia. A terra, na nova concepção, tem queservir à sociedade como um todo e não deverá ser tratada como privilégio de poucos. Aconcentração de terras no Brasil em mãos de um pequeno grupo é um paradoxo a serenfrentado. Levanta-se a perspectiva de que os proprietários são zeladores das terras,mas o seu uso deverá ter indicação social, em resultado de pacto coletivo edemocrático.

27 Um dos procedimentos para lidar com a questão da habitação em São Paulo tem sido a

regularização fundiária, cuja defesa é associada a um projeto de urbanização quandonecessário, mas que em geral traz à luz a questão da segurança da manutenção dapopulação pobre em bairros e casas de autoconstrução, onde frequentemente as redesde infraestrutura e equipamentos já foram instalados, mas a ausência da posse fragilizafamílias que ali vivem algumas vezes há algumas gerações.

28 Há nas políticas públicas brasileiras uma ênfase na ideia de propriedade individual da

terra, deixando-se de lado outras possibilidades, como a manutenção da condiçãopública de conjuntos edificados a partir de recursos governamentais, que poderiam sergeridos através de programas de locação social, numa parceria com movimentos sociaisorganizados. Nesse sentido, Rolnik refere que “(...) o sistema oficial de financiamentoda habitação e do desenvolvimento urbano federal (...) jamais reconheceu outrosinstrumentos que não a propriedade plena escriturada como passíveis de garantir atotal segurança da posse, apesar de o ordenamento jurídico incluir outrosinstrumentos.” (2015 : 321)

Características das favelas paulistanas

“Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo [sic]. Achosublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferente da favela.As casas com seus vasos de flores e suas cores variadas. Aquelas paisagens há [sic]de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade maisafamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas.”Jesus, p. 76, referente ao dia 7 de Julho de 1958

29 Carolina de Jesus, no seu diário cujo fragmento está acima reproduzido, refere-se às

favelas paulistanas da década de 1950. O contraste entre elas e os bairros ditos formaismantém-se, ainda que atualmente as favelas em São Paulo apresentem construções emalvenaria, em que tijolos cerâmicos são assentados com argamassa de cimento, etambém em lajes compostas por vigotas de cimento armado entremeadas de tijoloscerâmicos. Não é comum a utilização de telhados sobre as lajes de cobertura.Habitualmente, estas lajes são base para futuras ampliações, quando filhos ou parentesali constroem as suas moradias. Também são utilizados pilares de betão com funçãoestabilizadora, de travamento, além de ajudar na resistência das paredes (Figura 5).

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Figura 5. Jardim Paraná, bairro popular na zona norte de São Paulo

Fotografia do autor.

30 Raramente as construções recebem acabamentos – algumas vezes, apenas internamente

e nas fachadas voltadas para as vias, sendo então pintadas de cores variadas, algo queCarolina de Jesus admirava na “cidade formal” dos anos 1950. São utilizadas janelas eportas compradas a prestações em lojas de material de construção. Não é rara areutilização de janelas e portas retiradas de imóveis reabilitados ou demolidos na dita“cidade formal”.

31 Contrariamente às favelas da cidade até aos anos 1980, a madeira é hoje pouco

utilizada. Casas construídas com placas de madeira são vistas nos lugares maisprecários das favelas : espécie de “ favela dentro da favela » no interior do conjuntomais consolidado.

32 Ainda que com um aspecto frequentemente semelhante, as favelas em São Paulo são

heterogeneas, albergando grupos sociais com diversos níveis de rendimentos (tal comoos bairros da “cidade formal”) e de diversas origens. Há por vezes a presença destacadade pessoas com origem noutros Estados brasileiros ou cidade específica, mas a grandemaioria dos seus moradores já é paulistana há pelo menos uma geração.

33 As escolas estão presentes em quase toda a malha urbana paulistana, com exceção das

creches, que não atendem plenamente a demanda. A qualidade do ensino é ainda umdesafio, mas existem equipamentos educacionais nos bairros pobres periféricos e nosarredores das favelas. Os postos de saúde e hospitais não têm a mesma incidência nosbairros populares paulistanos, ainda que esforços nesse sentido tenham sido feitos nasúltimas décadas. Organizações Não Governamentais (ONG) e instituições religiosasrealizam trabalhos de inclusão social, com capacitação para o trabalho, educaçãoartística e musical, apoio espiritual e reforço escolar. Há ativistas que têm procuradoinserir na agenda desses bairros a produção de alimentos e cuidados com o meio

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ambiente. Hortas na periferia são vistas com certa frequência atualmente, muitas emterrenos sob linhas elétricas de alta tensão.

34 Os resíduos são igualmente um problema visível, já que nas favelas a recolha não é

sempre regular e os locais de acomodação dos sacos de lixo são muitas vezesinadequados. Continua a observar-se um lançamento intenso de resíduos nas ruas erios. Contudo, o grande desafio é sensibilizar tanto os residentes dos bairros pobrescomo dos ricos para este problema, ainda que nestes últimos haja uma logísticaconvencional de limpeza mais estruturada. No âmbito do Poder Público paulistano têmsurgido esforços no sentido de ampliar a recolha e universalização do serviço delimpeza pública, que costuma chegar tardiamente em relação à ocupação dos bairrosperiféricos e ser pouco eficaz nas condições existentes nas favelas.

35 Muito frequentes são as atividades relacionadas com a chamada “ economia informal »

entre os habitantes das favelas e das ocupações centrais (grande percentagem dosmoradores das ocupações dedica-se à venda ambulante), ainda que haja também muitosdesempregados e mesmo empregados formalizados. O nível de desemprego no Brasilmantém-se elevado e o aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigodenuncia dificuldades encontradas pela população pobre da cidade. Há também umvisível aumento de população em algumas favelas, com pressão por ocupação de áreasprestadoras de serviços ambientais, em geral geologicamente frágeis.

36 Perante o cenário descrito justifica-se ainda pensar nas favelas nos termos em que

Carolina Maria de Jesus a elas se referiu, como a úlcera da cidade ou o seu “quarto dedespejo” ?

Espaço público nos bairros populares precários

37 De uma forma geral, os espaços públicos nas favelas são os caminhos de acesso às casas

(Figuras 6 e 7). Tal como nas vilas tradicionais brasileiras, por vezes há alguns largos –alargamentos dos caminhos que se consolidam como lugar de encontro, não raro com apresença de um bar ou estabelecimento comercial.

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Figura 6. Favela do Moinho, na área central paulistana

Fotografia do autor.

Figura 7. Favela na zona sul de São Paulo

Fotografia do autor.

38 A grande exceção é o campo de futebol, espaço quase sagrado que se mantém livre no

interior da intensa disputa por áreas para construções. As favelas paulistanas sãofrequentemente construídas junto a córregos ou mesmo cursos de água de maior porte,junto dos quais ora se encontram caminhos um pouco mais largos, com a presença daágua em geral poluída e onde se lançam resíduos de todo tipo, ora casas que sesobrepõem às águas e se tornam suscetíveis de serem carregadas por enxurradas.

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39 Os espaços entendidos como públicos – caminhos, raros largos e campos de futebol –

são muito frequentados pelas crianças, que são observadas e socialmente controladaspelos moradores. Os forasteiros ali são rapidamente identificados. Há, por vezes, umainterdição velada quanto a aceder a determinadas zonas da favela quando dominadaspelo crime organizado ou mesmo por pequenos infratores, mas de uma forma geral, emSão Paulo é relativamente fluida a transição entre estes bairros pobres e a cidade ditaformal. Contudo, existem “ muros socioculturais » percebidos no preconceito contra omorador da favela, que frequentemente vive em construções muito semelhantes aosvizinhos da suposta “ cidade formal », esta construída a partir de loteamentosperiféricos, muitos deles realizados ilegalmente, sem que seus empreendedorestivessem a propriedade da terra retalhada e vendida.

40 Na periferia de São Paulo e também nas suas favelas percebe-se um reflexo da

desigualdade racial brasileira. Não existe, no entanto, uma condição marcada de guetocomo nas cidades norte-americanas, mas a igualdade é visivelmente problemática nessesentido.

41 O sistema viário urbano perde geralmente continuidade quando chega na favela devido

a uma série de circunstâncias – uma das diretrizes de obras de urbanização nas favelasé a de conquistar, através de sua articulação com vias no seu entorno, uma maiorintegração dos caminhos com os bairros próximos. Há um comércio vibrante em muitasdas favelas paulistanas e os moradores do seu entorno também se utilizam dele.

42 As obras de infraestrutura na favela contam também com a consolidação de caminhos

internos e ordenação de redes relacionadas com serviços públicos. Assim sendo, paraum manejo de águas pluviais e racionalização do sistema de tubulações e fiações, temsido desenvolvido em São Paulo um conhecimento técnico de como estabelecercanteiros de obra e avançar com transformações dos espaços de circulação, levando emconsideração condicionantes locais como dimensões e geometria próprias, além deatentar para um cotidiano que não poderá ser interrompido. Outra prerrogativa dasobras em favelas é a eliminação do risco : geológico, de incêndio, de afundamentosresultantes de erosão em função das águas e visando a saúde da população. Grandesconhecedores da realidade das favelas paulistanas são, nesse sentido, os agentespúblicos de saúde e com um papel fundamental para a compreensão de processos e deprojetos que buscam melhorias.

43 Há poucas árvores nos espaços públicos das favelas e a sua arborização é também um

grande desafio. Obras de urbanização têm inserido nas favelas espaços de brincadeirapara as crianças e algumas praças, mas permanecem problemas antigos : a iluminaçãopública é pouco frequente fora das vias de circulação de veículos ; o esgoto éhabitualmente lançado in natura nos rios e ribeirões. Segue como um desafio encontrarpossibilidades de redesenho das favelas sem que a cidade formal (que necessita derevisão de paradigmas) siga como parâmetro dominante.

44 Diferente de algumas situações na Índia, em São Paulo (e no Brasil, em geral) as favelas

não são lugar de produção relacionada com a indústria. Em bairros mais centrais, ondehá uma presença expressiva de cortiços, existem pequenas oficinas em que se realizametapas de produção, sobretudo da indústria têxtil. Nessas oficinas, algumas vezes ostrabalhadores (muitos dos quais imigrantes não legalizados que têm sido tratados comouma inaceitável versão contemporânea de mão de obra escrava) dormem em ambientesinsalubres. Mas essa prática não acontece, ao menos de forma significativa, nas favelasou bairros periféricos.

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45 Os equipamentos e a infraestrutura chegam sempre tardiamente às periferias e favelas

de São Paulo. Mas existem favelas já mais consolidadas e onde já se realizam obras háalgumas décadas. Há outras ainda sem intervenção alguma por parte do Estado. Desdeos anos 1980, quando mudou o paradigma de remoção como princípio para urbanizaçãoe com remoção apenas em situações extremas, o Estado tem-se ocupado mais dasfavelas. Equipamentos públicos têm sido instalados, ainda que frequentemente semrecursos suficientes para fornecerem serviços de qualidade. Uma honrosa exceção sãoos CEU (Centros de Educação Unificada), grandes escolas com biblioteca, teatro e áreadesportiva utilizada pelos moradores do entorno, que representam uma ação públicamarcante no sentido de uma nova possibilidade urbana (Figura 8).

Figura 8. Centro de Educação Unificada, no Jardim Paraná, zona norte da cidade de São Paulo

Edifícios escolares associados a teatro e clube abertos à comunidade do entorno, configuram umacentralidade e uma possibilidade outra para os bairros populares com muitas precariedades onde sãoinstalados.

Fotografia do autor.

46 As transformações nas favelas, no âmbito de projetos provenientes tanto do Poder

Público como da Academia, são frequentemente objeto de avaliação quanto a seremalvo de melhorias em detrimento da demolição de formas de espacialização produzidaspelos próprios usuários. Isto também resulta da existência de uma Cultura da Favelaque cada vez mais se afirma, com o rap, o graffiti, modo de vestir e falar, e que seestende para a compreensão da sua forma como detentora de valor. Algumas rádioscomunitárias persistem, ainda que tenham sido mais populares há algumas décadas.Acontecem nas favelas festas que se tornam grandes eventos, com nomes conhecidosno cenário musical. Há mesmo alguns saraus de poesia e literatura, que embora aindaem pequeno número, demonstram um potencial vigoroso.

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Políticas públicas

“Conversei com um senhor. Disse-me que circula um boato que a favela vai acabarporque vão fazer avenida. Ele disse que não é pra já. Que a Prefeitura está semdinheiro.”Jesus, p. 115, referente ao dia 2 de Novembro de 1958

47 Em meados dos anos 1980 iniciou-se a prática de urbanização de favelas na área

metropolitana da Grande São Paulo, tendo sido precursor o município de Diadema. Omunicípio de São Paulo teve uma série de ações no sentido de tratar de bairrospopulares durante o período da prefeita Luíza Erundina (1989-92), assistente social deformação, afeita às dificuldades vividas pela população pobre paulistana. A criseeconómica de então não foi obstáculo para ações de apoio a movimentos de moradia,que se organizaram através do que no Brasil se denominam mutirões (quando trabalhossão feitos coletivamente, em prol da comunidade) e contaram com grupos deassistência técnica na recomposição de áreas ocupadas, construção de conjuntos dereassentamento e instalação de infraestrutura, com os próprios futuros moradorestrabalhando como operários.

48 Essa importante fase no município de São Paulo foi interrompida por uma mudança na

política local : conjuntos habitacionais semelhantes ao que se produziu durante aexistência do BNH foram então retomados como forma de superar os impasses sociaiscom que a cidade se deparava.

49 Nos anos 2000, com a consolidação, através do Estatuto da Cidade (lei federal), do

instrumento representado pelas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), a questãodos bairros populares chega efetivamente aos Planos Diretores em São Paulo (Figura 9).

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Figura 9. Indicação das ZEIS no município de São Paulo

Em vermelho, correspondem a bairros precários existentes.

Mapa ZEIS em São Paulo. Disponível em : https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/140424_PDE/Mapa04_ZEIS.pdf, acesso em Junho/2019

50 Áreas demarcadas como ZEIS representam perímetros onde a população residente, de

poucos recursos, está de certa forma protegida contra remoções (há também ZEIS quedemarcam áreas destinadas à construção de conjuntos habitacionais de interessesocial).

51 Outro instrumento que também se estabelece é o das Operações Urbanas Consorciadas

(OUC), de estímulo a transformações urbanas, sendo um dos seus objetivos destinarfundos obtidos para a produção de Habitação de Interesse Social (HIS). Este objetivo foipouco concretizado, o que denuncia a sua vinculação, de forma não tão explícita, comum modelo de financeirização da cidade sem um olhar cuidadoso para a população, emespecial para comunidades vulneráveis. Na OUC Faria Lima foram destinados fundospara construção de HIS no Real Parque, um bairro fora do seu perímetro. Na OUC ÁguaEspraiada foram construídos alguns conjuntos, mas foi notória a expulsão de antigosmoradores das favelas da região através da compra dos seus barracos e oferta deapartamentos em bairros distantes.

52 A Secretaria de Habitação (SEHAB) do município de São Paulo desenvolveu, em anos

recentes, uma série de ações no sentido de racionalizar o atendimento por parte doPoder Público aos ditos bairros precários. Foram realizados vários projetos e conjuntosde notável qualidade arquitetónica (Figura 10) e um Plano de Habitação Municipal(PMH) concebido no sentido de organizar ações e obras ao longo das gestões seguintes.

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Figura 10. Conjunto Habitacional realizado pela SEHAB de São Paulo, com projeto de Biselli eKatchborian arquitetos

Fotografia do autor.

53 Conjuntos semelhantes aos realizados sob o BNH e PMCMV na sua modalidade

Empresas continuam sendo construídos pela Companhia de DesenvolvimentoHabitacional e Urbano (CDHU) do Estado de São Paulo, ainda que com esforçosrenovados no sentido de maior qualidade da construção e com adoção de técnicas deredução de consumo energético e produção de energia de fontes alternativas.Curiosamente, a origem do CDHU foi a CECAP (Caixa Estadual de Casas para o Povo),através da qual se produziu um dos conjuntos habitacionais emblemáticos daArquitetura moderna em São Paulo, o CECAP Guarulhos, projeto de equipe coordenadapelo arquiteto João Vilanova Artigas (Figura 11).

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Figura 11. Conjunto CECAP Guarulhos, projeto dos arquitetos João Vilanova Artigas, FábioPenteado, Paulo Mendes da Rocha, construído em 1967

Fotografia do autor.

54 Resultado do Plano Diretor de São Paulo de 2004, ratificado pelo Plano de 2014, o

Conselho de Habitação do Município de São Paulo (com assentos de lideranças demovimentos de moradia, Universidade, sociedade civil e órgãos públicos) é um locus

importante para a discussão de caminhos para o enfrentamento da questãohabitacional numa das maiores aglomerações humanas do planeta. Os fundos com osquais trabalha, no entanto, não fazem jus à dimensão do déficit habitacional paulistanoe aguarda-se uma maior consolidação desse importante instrumento.

Perspectivas

55 Como superar a imagem apresentada por Carolina Maria de Jesus em seu diário, de que

“a cidade é um morcego que chupa nosso sangue” (Jesus, referente ao dia 13 de Julho de1959), quando a autora se refere aos moradores das favelas e, por extensão, aos bairrospopulares de forma geral ? Uma imagem corroborada pela visão apresentada porRolnik, ao referir-se a paradoxos recentes que deixam antever o processo definanceirização da terra e da moradia no Brasil : “(...) no final dos anos 1990 e início dosanos 2000, quando foram ampliados os recursos públicos disponíveis para aurbanização de assentamentos, o que se observa é a desconstituição de processos efóruns participativos, a urbanização seletiva de favelas e processos massivos deremoção em decorrência da implementação de projetos e obras, muitas vezes com usoda violência.” (2015 : 321)

56 Quais seriam, assim, as perspectivas para os bairros populares paulistanos –

loteamentos periféricos e favelas ? Há resistências quanto às transformações no sentidode submeter a cidade a um lugar de extração de renda. Há perspectivas divergentes masverifica-se um “(...) modelo (...) organizado sob os imperativos de uma economia

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neoliberal globalizada, controlada pelo sistema financeiro, (...) [que] vai penetrando nascidades e nas políticas urbanas de moradia, capturando territórios, expulsando ecolonizando espaços e formas de viver” (Rolnik, 2015 : 373). Paralelamente, também seobservam muitos coletivos e ativistas naqueles bairros, algo que faz pensar em açõesbase-topo que devem ser amparadas pela legislação e por Políticas Públicas. Entende-seque há uma complementaridade destas com as ações locais, de viés artístico, associadasà Permacultura e à busca por uma condição ecológica, entre tantas. Existemorganizações ligadas à Igreja católica, que mantém creches, locais de apoio àcomunidade entre outras ações relevantes ao quotidiano daquelas populações. As ZEIS,enquanto garantia de que ocupações não serão removidas indiscriminadamente comono passado, são um marco referendado pelo Estatuto da Cidade e presente em PlanosDiretores como o de São Paulo. A ideia é que essas áreas demarcadas como ZEIS sejamobjeto de projeto, considerando a manutenção da população ali instalada. A Cultura deprojeto para estas áreas não se efetivou ainda e há um longo caminho a percorrer.Nessas zonas especiais há a prerrogativa do estabelecimento de Conselhosparticipativos formados por lideranças locais – tampouco esses conselhos sedisseminaram como seria necessário, possivelmente em decorrência do que Rolnik(2015) refere como efeito político-territorial de ações do complexo imobiliário-financeiro estabelecido no Brasil. Permanece o desafio da efetivação daqueles conselhose, também o de serem instâncias representativas e deliberativas de facto, com poderdecisório quanto à afectação de fundos e recursos. Nesse sentido é importante aidentificação de agentes envolvidos na transformação destes bairros populares, clarezano debate e busca de pactos. É igualmente fundamental a participação da populaçãolocal e a sua representação efetiva, junto com técnicos do Estado e da Universidade, eagentes relacionados como Mercado e instituições financeiras. A presença e equidaderepresentativa de todos estes agentes é determinante para o sucesso de pactos a seremestabelecidos quanto a um futuro mais generoso e sustentável para os bairrospopulares, do ponto de vista social, económico e ambiental.

BIBLIOGRAFIA

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Inquilinato e difusão da casa própria São Paulo. Estação Liberdade : FAPESP.

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Maricato, E. (2003) “Metrópole, legislação e desigualdade”, Estudos Avançados,17.

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Rolnik, R. (2015) Guerra dos Lugares – a colonização da terra e da moradia na era das finanças,

São Paulo : Boitempo.

TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo, três cidades em um século. São Paulo : Cosac & Naify, Duas

Cidades, 2004

NOTAS

1. O diário de Carolina Maria de Jesus foi publicado em 1960 com o título Quarto de Despejo e

refere-se a alguns dias de sua vida em São Paulo, na favela do Canindé (hoje desaparecida), em

1955 (15/07 a 28/07), e de forma mais ininterrupta de 02/05 de 1958 a 01/01 de 1960. Carolina

nasceu em Minas Gerais e mudou-se para São Paulo, onde viveu em favelas grande parte do

tempo. Seus diários foram publicados por um jornalista que percebeu o valor documental e de

crônica presente nos seus relatos e comentários, nos quais há uma visão da favela a partir de seu

âmago.

2. A região é ocupada desde tempos remotos por povos originários. Já no século XVI se inicia a

ocupação dos Campos de Piratininga por parte de colonos ibéricos e jesuítas. No seiscentos

expande-se essa ocupação, quando se tem notícia de chácaras e pequenas aglomerações na

margem esquerda do rio Tietê. A fundação de São Paulo de Piratininga, missão jesuítica que se

tornou cabeça de um sistema de missões na região, foi em 1554.

3. Segundo o Censo Demográfico de 2010, o município de São Paulo tinha 11.253.503 habitantes

(em 2019, a estimativa era a de sua população ter aumentado para 12.252.023 pessoas), dos quais

31,6% vivem com um rendimento de até 0,5 salário mínimo brasileiro, que corresponde a R$

1.039,00 em 2020 (aproximadamente US$ 225.00 em Março de 2020) - o índice de pobreza no

município indica que 30,02% (limite superior) de sua população estão abaixo da linha de pobreza.

Essa porcentagem está próxima dos 25% estimados pelo CEM (Centro de Estudos da Metrópole)

correspondentes à população que vive em favelas e loteamentos irregulares - 14% em

loteamentos irregulares e 11% aproximadamente vivendo em favelas, o que representa uma

população favelada de mais de 1,3 milhões de pessoas, algo que indica um aumento de mais 170%

nessa população desde 1996, ainda que tenha sido verificada uma menor densidade nas favelas de

forma geral, muito em função de consolidação de construções em alvenaria. Dados a partir de

números apresentados na postagem: http://agencia.fapesp.br/populacao-em-favelas-

paulistanas-cresce-mais-do-que-no-restante-da-cidade/24676/

4. Federação de Favelas do Estado da Guanabara - Fafeg

5. Companhia de Desenvolvimento de Comunidades - Codesco, com origem em um Grupo de

Trabalho no âmbito da Companhia do Progresso do Estado da Guanabara - Copeg, em meados dos

anos 1960, antes da incorporação do antigo Estado da Guanabara ao Estado do Rio de Janeiro

RESUMOS

Este ensaio traz considerações sobre os bairros populares da cidade de São Paulo (periferias,

favelas, ocupações de edifícios por parte de movimentos de moradia e conjuntos habitacionais),

tendo por base uma década de trabalho sistemático de observação. Nele se observam os vários

movimentos no sentido da configuração do espaço da habitação popular paulistana, desde os

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primeiros esforços de reverter a cisão estabelecida na cidade a partir da experiência moderna

que ali se instala no final do século XIX, passando em revista algumas ações do Poder Público ao

longo do século XX e instrumentos recentes de planejamento. O texto aqui apresentado vai em

busca de possibilidades no enfrentamento do grande desafio relativo à habitação na cidade de São

Paulo, a saber, seus bairros populares, com suas múltiplas precariedades. Habitação é aqui

entendida no seu sentido pleno, ou seja, moradia associada a infraestrutura urbana e

equipamentos públicos.

ÍNDICE

Keywords: Habitação popular, habitação social em São Paulo, bairros precários paulistanos

AUTOR

LUIS OCTAVIO P. L. DE FARIA E SILVA

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, professor vinculado ao

Programa de Pós-graduação da Universidade São Judas Tadeu e Pós-graduação lato sensu da Escola

da Cidade, São Paulo, Brasil, lifariaesilva [at] gmail.com

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Retalhos de uma cidade confinadaem 2020 : entre realidade e utopiaEnsaio coletivo em tempos de Pandemia

Laura Sobral, Marta Vicente, Rui Mendes, Sara Jacinto, Susana Rego eYlia Barssi

1 Nos tempos incertos que vivemos são muitas as questões que se colocam. Quase todas

prontas a vestirem-se de inquietações e perguntas de partida para os mais atuais efraturantes projetos de investigação. Todas elas representantes de dúvidas inquietantesde quem anseia compreender o que se segue, como se segue, onde se segue... Como quenuma tentativa, mais ou menos frustrada e mais ou menos frustrante, de estar umpasso à frente. Por agora não parecem existir respostas, apenas hipóteses. Tudo pareceestar numa momentânea adaptação a esta nova e desconhecida realidade.

2 Dentro da normalidade, a cidade era passagem. Caminho entre a casa e o trabalho,

passagem entre a casa e a escola, percurso entre a casa e as compras, espaço paraencontrar com os amigos. Instalada a pandemia ficou clara a metamorfose de umacidade que causa grande estranhamento.

3 As ruas têm menos movimento, o ar está mais limpo, a cidade mais silenciosa. As

pessoas parecem estar mais atentas umas às outras porque, além das preocupaçõespartilhadas, também sabem que se podem contaminar mutuamente. Sobressaem assensibilidades na mesma proporção que as solidariedades. O que se pode aprendersobre o valor da colaboração e da solidariedade num tempo de uma crise inédita, daprocura de compreender o outro apesar das distâncias e das máscaras, de um olharsistémico e controlador sobre a estranheza do que nos rodeia ?

4 Há medidas emergenciais por parte do Estado, como a regularização de imigrantes, o

reforço do Sistema Nacional de Saúde e a ampla valorização do seu papel na gestãodesta pandemia, o assegurar de rendimentos mínimos para os que mais precisam, aflexibilização no pagamento de rendas habitacionais devido à quebra de rendimentodas famílias, entre outros. Porém, cada cidadão também é chamado a assumir a suaquota parte de responsabilidade na gestão quotidiana desta crise sanitária. Além documprimento das regras decretadas pela sucessão de estados de 'emergência' e

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'calamidade', o cuidado com os vizinhos é fundamental e até não comprar mais do quese necessita se tornou um ato humanitário tão importante como manter as necessárias'distâncias sociais', sublinhando-se o paradoxo desta situação.

5 O estado de exceção colocou a vida em suspenso, como se o tempo pudesse ser parado.

A cidade, também ela em suspenso, permite que se valorizem os encontros, os espaçosdesses encontros, a qualidade dos espaços desses encontros. Descobriu-se também o(hiper)local. Agora é mais seguro ir só até onde os pés nos podem levar. Caminhar pertode casa tornou-se uma novidade e até permitiu descobrir novos mundos, micro-espaços, mas não menos importantes devido à sua escala. Confinados às nossaspequenas cidades-casas não nos resta muito mais do que explorar as suas múltiplasdimensões e novas formas de habitar, tanto no seu sentido físico, como no seu sentidoontológico.

6 Já se passou pela fase de viver na cidade sem sair de casa e ninguém tem a certeza se a

ela voltaremos em breve. Esta alteração à forma de viver (n)a cidade obrigou,naturalmente, a uma nova relação com o espaço da casa, que nas últimas semanastambém terá mudado substancialmente. A casa é agora escritório, restaurante, rua e atécidade... Espaço de múltiplas funções executadas quase sempre em família, mesmoquando a família passou a estar ainda mais absorta no ecrã do telemóvel, ou quando sebrinda com os amigos de sempre, ainda que também por via dos mesmos dispositivoseletrónicos.

7 Dentro da casa tanto se redescobrem como reinventam novos espaços. Cada janela é

agora muito mais do que uma simples fonte de luz e de ar. A partir da janela vemos,ouvimos, cheiramos e sentimos a cidade. É assim que se percebe como ela está diferentee se tenta adivinhar o curso das mudanças. De cada janela questionam-se os direitosque se consideraram garantidos e que tiveram de ser suspensos em nome de um bemmaior. Entretanto anseia-se por uma nova normalidade e que venha rápido para nosresgatar da janela e devolver a cidade.

8 Lendo e discutindo Lefebvre pensámos conhecer de cor os contornos do Direito à Cidade

(1968). Talvez também tenhamos considerado esse direito como garantido, ainda queconscientes da fragilidade que acompanha as nossas democracias e os valoreseconómicos pelos quais se regem. Ainda que conscientes da intemporalidade destaobra, não pensaríamos que um dia, sentados à janela, poderíamos questionar sobre adimensão representativa do direito à cidade quando não se pode sair de casa. Quedireito a que cidade quando também ela aguarda, expectante, por uma nova realidade ?E que direito a que cidade para aqueles que nem casa têm ? Neste período em que tudoparece subitamente diferente e em simultâneo igual, é um desafio conseguir olhar parao futuro com otimismo, com capacidade de mudança. Será que a cidade, a sociedade enós próprios, iremos agir em continuidade ou, ao invés disso, observaremos umarutura ?

9 Diariamente, procuram-se respostas provisórias, reinventam-se formas de estar e de

viver (n)a cidade. Por todo o lado surgem presságios de revolução, imperativos deconstruir um mundo alternativo, um novo sistema. O tempo abrandou e finalmenteparece ter surgido uma oportunidade para pensar, dizem-nos. Mas a pandemia do medoque o vírus trouxe consigo turva a visão do caminho e a incerteza que alimenta essemesmo medo faz-nos recuar. O paradoxo de que tudo permaneça igual e que nada serácomo antes congela-nos. Até onde estaremos dispostos a mudar ?

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10 Tanto o medo do futuro, como a ansiedade pela mudança acabam por desfocar os

problemas do agora. O mundo em suspenso afinal é só para alguns e, apesar de nãoaparecerem nas notícias, sabemos que os imigrantes continuam a naufragar noMediterrâneo, as crianças continuam a morrer no Iémen, os sírios continuam presos aoseu destino de guerra. O medo tem esse poder, reduz-nos à nossa própria bolhatapando-nos os olhos para o que não pertence ao problema que enfrentamos. Nessesentido, provoca a mesma alienação em relação ao 'outro' que existia antes, agorajustificada por um vírus que não escolhe classe, raça ou género, dizem. Sabemos queisso não é verdade, que o vírus não é democrático, no sentido em que a exposição aomesmo não é controlada por todos de igual forma. Por aqui, o mesmo sentido agregadorque a pandemia parece ter trazido parece ocultar ainda mais as diferenças sob odesígnio de que 'estamos todos juntos' e 'vai ficar tudo bem'. Mas como estamos todosjuntos se há pessoas sem um teto e quando a casa parece ser a arma mais poderosacontra a doença ? Se o teletrabalho é só para uns, enquanto outros têm de se sujeitar àscondições de sobrelotação dos transportes públicos ?

11 O vírus não é democrático hoje, e talvez seja esse o ponto de partida para uma discussão

sobre essa 'democracia por vir' derridiana (Derrida, 2009), o 'por vir' como promessa,como impossibilidade que gera caminhos, que se abre ao 'outro' e à diferença, ao queestá fora do radar da pandemia, para cogitar a alternativa. Ao questionar a condiçãodemocrática do vírus questionamos a sociedade como um todo. Não apenas a forma dehabitar, de fazer cidade, de fazer política, de criar relações, mas uma sociedade queaceita o isolamento pelo medo de algo invisível e, ao mesmo tempo, parece ignorar aexistência bem visível da desigualdade social em democracia.

12 Nesta fase de repensar tudo e especialmente a nossa forma de comunicar, deve-se

considerar que nos fragmentamos em telas muito antes da pandemia ser declarada.Aderimos ao escudo do nosso ecrã como uma forma de nos apresentar ao mundo.Temos a ilusão de saber mais dos indivíduos através das suas redes sociais, do que pelasua própria personalidade e carácter, presencialmente e sem câmaras a gravar.

13 Assim vamos também redescobrindo ambientes dentro de nós. Quando privados de

contato com os demais, de rotinas que sempre preencheram os nossos dias longos,dispensamos parte da nossa individualidade para fazer o que é melhor para o bemcomum. Antes queríamos mais horas para os hobbies, visitar mais museus, conhecermais de outras culturas, viajar, ler livros, ter mais tempos para amores e amigos. Hojecontinuamos a sonhar com tudo isso porque o tempo se esgota de igual forma, aindaque confinados em casa.

14 Este confinamento à casa permitiu ainda redescobrir novos significados para os espaços

in-between, entre espaços constituídos por portas, janelas, varandas, terraços e quintais.Estes elementos intermédios de ligação parecem ter ganhado uma renovadaimportância, que não só confortam no meio da incerteza, como se permitem a novasapropriações, como um pequeno jardim, uma esplanada ou uma bancada de espetáculofictícia onde podemos aplaudir heróis, manifestar ideias, posições e outros estados dealma. Esta consciência facilita a compreensão do potencial que estes espaços têm naconfiguração de um espaço real e múltiplo. Neles, o interior (casa) coexiste com oexterior (cidade), tal como o individual coexiste com o coletivo, sem necessidade derecorrer à acentuação arbitrária de um em função do outro, ou deformar o seusignificado. Talvez fosse importante refletir sobre estas aprendizagens e procurarestender à cidade as características destes entre espaços.

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15 Estas questões não se podem dissociar das reflexões sobre nós mesmos e sobre a nossa

relação com os múltiplos ecossistemas com os quais interagimos. Observamos adiminuição dos níveis de poluição e a natureza aparenta ganhar espaço com a nossaausência. Ao associarmos o termo coletivo apenas à nossa espécie, não estaremos asobrevalorizar o termo individual em detrimento de um coletivismo mais amplo, maisverdadeiro ? Parece faltar na nossa relação com o mundo uma posição intermediária –como uma janela ou varanda – um entre espaço entre o coletivo e o individual.

16 Perante tantas medidas emergenciais que fazem repensar o mundo em que vivemos e,

sobretudo, reequacionar o futuro próximo, importará questionar também de que formairemos superar esta situação e o que vamos aprender com ela quando chegar a 'nova'normalidade ? Neste refazer do dia a dia parece que descobrimos maior proximidadenos quotidianos partilhados. A colaboração entre os países mostrou que a humanidadetambém pode não ter fronteiras e a maior solidão fez-nos valorizar os momentos decomunhão e encontro com quem nos é próximo.

17 Estamos todos – ou não estamos – em fotografias (como as de Paulo Catrica) onde

habitualmente não se vislumbram pessoas, mas onde toda a pertença humana está nosvestígios, nos restos que habitam as imagens da geometria não exata das cidades. Aimperfeição e a incompletude das cidades são o território que nos habituámos areivindicar cada vez mais nosso. É preciso continuar a construir os espaços dasociabilidade e da proximidade, da justiça e da democracia. Ouvem-se perspetivas sobrea volta da normalidade e questionamos as palavras que não parecem fazer já grandesentido.

18 Entretanto, a rua e o espaço público das nossas lutas vão ganhando outras geometrias e

emoções. O futuro é incerto, mas a capacidade de sonhar a alternativa e de redescobrira beleza permanece. Pois tal como disse Lefebvre, “Quem, nos dias de hoje, não éutópico ?”

BIBLIOGRAFIA

Derrida, J. (2009) Vadios, Palimage, ISBN 9789728999773.

Lefebvre, H. (2012 [1968]) O Direito à Cidade, 1ª Edição, ed. Lisboa Estúdio e Livraria Letra Livre,

ISBN 9789898268750.

AUTORES

LAURA SOBRAL

ISCTE, Portugal, laura_sobral [at] iscte-iul.pt

MARTA VICENTE

ISCTE, Portugal, marta_alexandra_vicente [at] iscte-iul.pt

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RUI MENDES

ISCTE, Portugal, rui_mendes [at] iscte-iul.pt

SARA JACINTO

ISCTE, Portugal, sara_jacinto_silva [at] iscte-iul.pt

SUSANA REGO

ISCTE, Portugal, susana_rego [at] iscte-iul.pt

YLIA BARSSI

ISCTE, Portugal, arq.yliabarssi [at] gmail.com

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Da ficção cinematográfica àrealidade pandémicaUm ensaio sobre parasitas, vírus e outras maleitas

Ana Elísia da Costa

1 Uma paisagem urbana árida – pontes, viadutos, escadarias, avenidas – e duas casas.

Esses são os cenários mais importantes do filme Parasita (2019), do diretor sul-coreanoBong Joon-ho. Apesar da potência poética do cenário urbano distópico que separa essasduas casas, são elas que ganham protagonismo no filme. Uma casa é de famíliaabastada, família Park, cujo bom gosto parece ter suas matrizes no modernismoamericano dos anos 1950 (Wisnik, 2020) e que ainda hoje é palatável ou de fácilconsumo, como evidenciam revistas e websites de arquitetura contemporânea. De outrolado, a decadência da casa da família Kim, com suas sobreposições e acúmulos de coisas,explora uma atmosfera não menos atraente – a «estetização da pobreza» –, cujapotência pode ser verificada na vida real, quando milhares de turistas invadem áreasurbanas empobrecidas, para o consumo de «exotismos», como ocorre nas favelasbrasileiras (Figuras 1a e 1b).

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Figura 1a. Casa da família Kim – sala

CJ ENM Coorporation, Barunson E&A/Divulgação, filme Parasita (Direção Bong Joon-ho)

Figura 1b. Casa da família Kim – banheiro

CJ ENM Coorporation, Barunson E&A/Divulgação, filme Parasita (Direção Bong Joon-ho)

2 Com o sucesso do filme, principalmente com os quatro prêmios no Oscar de 2020 –

Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original –,pode-se dizer que suas casas se transformaram em simulacros eternizados na memóriado cinema, apesar de serem apenas cenários. Idealizados pelo cenógrafo (e nãoarquiteto) Lee Ha Jun, o cenário da «casa-rica» envolveu a execução das fachadas, de

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todo andar térreo e dos jardins. O seu andar superior só foi construído virtualmente. A«casa-pobre», por sua vez, foi erguida junto com um quarteirão de 40 casas e com umenorme tanque de água usado para as cenas de inundação (Farinha, 2020).

3 Dezenas de publicações sobre Cinema e Arquitetura expressam um especial, e

presumível, encantamento pela «casa-rica».1 (Figuras 2a, 2b, 2c). E há aquelas que jádestacam o aumento de turistas na exótica pobreza de Seul2 ou a transformação, dedecadente a cool, dos banjiha, apartamentos semienterrados típicos da periferia dacidade que inspiraram o cenário da «casa-pobre».3 O sucesso da hashtag #banjiha nasredes sociais atesta a eficiência do sistema em transformar tudo, até a pobreza, em bemde consumo.

Figura 2a. Casa da família Park – sala de estar-jantar

CJ ENM Coorporation, Barunson E&A/Divulgação, filme Parasita (Direção Bong Joon-ho)

Figura 2b. Casa da família Park – sala de estar-jantar

CJ ENM Coorporation, Barunson E&A/Divulgação, filme Parasita (Direção Bong Joon-ho)

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Figura 2c. Casa da família Park – cozinha

CJ ENM Coorporation, Barunson E&A/Divulgação, filme Parasita (Direção Bong Joon-ho)

4 Os contrapontos entre as duas casas, muito além do simples aspecto estético, são

explorados para desenvolver uma severa crítica social. Os banjiha, somados às casasimprovisadas na cobertura dos edifícios (oktapbang) e aos quartos enclausurados emcasas compartilhadas (gosiwon), são retratos atuais da pobreza e da crise habitacionalsul-coreana (Minji, 2020), especialmente em Seul, onde a população do país assiste auma escalada assustadora no preço dos aluguéis e a processos de gentrificação.Problemas de saneamento sobrepõem-se a esse problema habitacional, como ilustraminundações decorrentes do represamento do rio Han que, na década de 1980, levou aoalagamento de áreas de baixa renda (Balhorn, 2020). Ao afetar mais diretamente jovense pobres, esses cenários levam a questionar a imagem de «prosperidade» do país queocupa a 11ª posição no ranking da economia mundial.

5 No filme, problemas urbanos e habitacionais servem de cenário para escancarar

conflitos sociais que, hoje, são universais. É talvez a universalidade da realidade urbanae social apresentada, muitas vezes ocultada pela sociedade dominante nos quatrocantos do mundo, que justifica o sucesso do filme.

6 Por outro lado, pode-se pensar que a temática do filme também antecipa a própria

realidade. Ao explorar metáforas ligadas ao mundo biológico – presentes não só noParasita, mas também em diversos outros filmes do diretor, como O Hospedeiro4 – Joon-ho engatilha reflexões que ganham ainda mais força diante da pandemia virulenta queassola o mundo. Parasitas e hospedeiros são partes de um sistema em que o primeiro,desprovido de metabolismo independente, usa células vivas do segundo para sereplicar. Essas relações na natureza, contudo, podem ser tanto harmoniosas comopredatórias, o que parece levar o diretor do filme a sugerir o questionamento – quemparasita quem? Onde? Como? A parasitagem, apesar de abstrata, é altamentecontagiante. É como o cheiro retratado no filme, que «atravessa» espaços e pessoas dedistintas classes sociais.

7 Essas metáforas fílmicas e a sincronicidade das mesmas com a pandemia, bem como o

meu próprio isolamento social, motivaram-me a assistir ao filme novamente.5 O ócio,como sugere Domenico De Masi (2001), é produtivo e, num ímpeto fantasioso, levou-mea questionar : Se as famílias Park e Kim não fossem vítimas da tragédia retratada nofilme, como viveriam o isolamento imposto pelo Covid-19 na Coreia do Sul ? Como secomportariam naquelas duas casas?

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8 As respostas a estes questionamentos permitem compor um conto, uma ficção sobre

ficção ou uma pós-ficção, cujo «roteiro-outro» pode ser uma forma de refletir e darvisibilidade ao problema das condições desiguais – econômicas e emocionais – deenfrentamento dos isolamentos sociais impostos6. Ela, apesar de baseada em medidasefetivas do governo sul-coreano no combate ao vírus (Han, 2020), pode permitirreflexões sobre dramas similares vividos em várias partes do mundo, como o própriofilme assim o fez.

9 Essa pós-ficção, portanto, retoma a discussão de temas universais que já eram sensíveis

antes da pandemia e que, provavelmente, irão persistir ou serão ampliados após a crise– o direito à moradia e à cidade; o direito à privacidade e à liberdade. Ao fazer isso,procura-se estabelecer um outro sentido para a própria realidade, não a assimilandocomo inevitável. Tenta-se denunciar essa realidade e indicar a necessidade de construirnovos caminhos para a sua constituição futura.

10 Alguns novos caminhos vêm sendo especulados por pensadores em publicações

lançadas em paralelo à própria pandemia, ou seja, ao mesmo tempo em que este ensaiopós-ficcional é escrito. Ele é então confrontado com alguns desses ensaios teóricos,especificamente os de David Harvey (2020) e Boaventura de Sousa Santos (2020), demodo a fazer aproximações e testar limites entre realidade e teoria. O exercício,contudo, não pretende seguir caminhos seguros, nem persegue resultados assertivos,mas apenas ampliar reflexões ou, como sugere Boaventura de Sousa Santos, fazer «sub-teorizações». Para ele, qualquer teorização absoluta na realidade caótica da pandemia ébeirar o abismo, o fracasso, pois “a realidade vai sempre adiante do que pensamos ousentimos sobre ela” (Santos, 2020, n.p.).

1. A pós-ficção

11 Um (possível) diário pandêmico das famílias Park e Kim:

12 20 de janeiro de 2020

13 Sr. Park toma café na bancada da cozinha, iluminada pela luz do sol. Dali, ele vê a sala e,

através da sua grande janela, o pátio. Pelo smartphone, lê notícias sobre o primeiroregistro do coronavírus na Coreia do Sul e nos Estados Unidos, ambos no mesmo dia ! Amensagem também chega ao smartphone da filha dos Kim que, sentada no vaso sanitáriodo banheiro do seu apartamento, rouba sinais de conexão com a internet do vizinho.

14 Democraticamente, a informação chega aos dois que reagem com certa indiferença: ele,

por acreditar na imunidade do poder financeiro; ela, pela certeza daquilo ser só maisum dos riscos diários. Ele toma um gole da xícara de café e embarca no carro commotorista que o espera. Ela desenrola o papel higiênico, se limpa, dá descarga e não lavaas mãos.

15 25 de janeiro de 2020

16 O Sr. e a Sra. Kim embarcam no metrô que cheira limpeza, mais uma das medidas do

governo no combate ao vírus, contrastando com o odor que exala dos seus corpos eroupas. A testagem negativa de ambos, feita ali na mesma estação, não exala, é inodorae silenciosa.

17 No outro extremo da cidade, a Sra. Park pinga duas gotas de Chanel no pulso. Após

contratar um pacote de viagem para recuperar o ânimo do marido e talvez o sentido do

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casamento, ordena o jantar à governanta e embarca no carro com os filhos para fazeruma testagem rápida num dos muitos postos móveis da cidade. Com resultadosnegativados, todos seguem aliviados. Caso contrário, o aplicativo governamentalcorona-app imporia o constrangimento da notificação do contágio a parentes e, ainda,da intimação dos mesmos a também testar.

18 02 de março de 2020

19 Enquanto faz compras on-line, a Sra. Park recebe mensagem informando que o

epicentro do vírus no país está entre fiéis da Igreja de Jesus Shincheonji. Seus olhoslacrimejam – é a igreja da sua governanta. Atônita, procura os filhos pela casa com umilusório sentimento de imunizá-los com a sua presença. Com as aulas suspensas, osfilhos estão, provavelmente, reclusos no microcosmo dos seus quartos – a filhaadolescente, em conflitos existenciais; o filho, numa espécie de autismo; ambos,ignorados pelo rígido sistema educacional coreano que molda indivíduos competentes einfelizes. O facto da possível contaminação da governanta deve ser, a qualquer custo,omitido do marido que se isola no confortável escritório da casa, de onde controlaremotamente os empregados da sua empresa de informática. Com nervos à flor da pele,ele estuda os impactos da crise sobre as metas de crescimento da empresa e alternativaspara fazer da crise uma oportunidade. Vislumbra desenvolver um software de vigilânciadigital, já que esta é uma das estratégias do governo para o controle epidêmico.Sorrateiramente, a Sra. Park atravessa o corredor que comunica com a porta doescritório, desce a escada e encontra a governanta na cozinha. Mantendo a distância eum certo olhar de pavor, dispensa seus serviços. A governanta implora por umaquarentena remunerada, por um retorno, mas em vão. Servil e resignada, como todosos empregados, curva-se e sai. Sra. Park equipa-se com luvas e máscaras e higienizatudo com álcool gel. A casa parece pequena para comportar o seu medo. Naquela noite,sem jantar, iriam encomendar uma pizza pelo Uber Eats.

20 Sem luvas e máscaras, os filhos da família Kim trabalham em casa num serviço

temporário, dobrando embalagens para pizza, a mesma que irá ser servida mais tardena casa dos Park. Apinham-se na pequena sala do “banjiha”, iluminada pela janela quese abre no nível da rua. Escuta-se um k-pop em alto volume, vindo do apartamentovizinho. Com pouca ventilação e entulhado de pertences, o apartamento cheira aroupas guardadas-mofo-sujeira, com tons de comida-suor. Sem testagem, à noite osfilhos Kim interagem com amigos do bairro, excitados por um exercício simbólico dedesobediência civil. O governo não proibiu propriamente as pessoas saudáveis desaírem durante a epidemia, nem ordenou que o comércio fosse fechado, mas elessentem uma vigilância social em curso, um constrangimento coletivo. Eles saem à ruamascarados, menos para ocultar uma identidade e mais para corresponder ao que ossul-coreanos fazem cotidianamente. Sabem que a máscara não impedirá de seremdescobertos pela vídeo-vigilância do governo ou pelo rastreio do cartão de crédito ecelular. Sentado na calçada em frente a uma pizzaria, o filho dos Kim recebe mais umalarme do corona-app que notifica casos de vizinhos contaminados. Desta vez édenunciado um senhor que insistentemente fuma e urina junto à janela da sua sala.Deseja-lhe a morte, mas ao mesmo tempo, teme ser o próximo a perder a liberdade eprivacidade.

21 Dia 11 de março de 2020

22 Os Park e os Kim recebem a notícia de que a OMS decretou o coronavírus como

pandemia. Pronunciamentos do presidente, com máscara de nanofiltros, são feitos com

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mais frequência. A Sra. Park já enfrenta jornadas domésticas sem serviçais. Semhabilidade para cozinhar, é criticada pela família e se cobre de culpas. O isolamento domarido é social, doméstico e conjugal. Não partilham as atividades de casa e a partilhade corpos deixa a desejar. Ela, carente, tem desejos obscenos, impensáveis eimpronunciáveis para uma senhora recatada. Ele deambula pela casa. A sua cabeça estános dados de provedores de internet e de telefonia móvel que alimentarão o seuaplicativo de vigilância. Através do teletrabalho, finge-se de vivo e sublima desejos. Oúnico desejo verdadeiro remete-o ao seu amante, um menino de 20 anos agoraprisioneiro da periferia sob o sombrio medo de contaminação. A distância entre o casale a habitual frieza na relação com os filhos alargam ainda mais a metragem quadradados espaços que ela limpa diariamente. Sente saudades da governanta que, segundo ocorona-app, morreu em decorrência do vírus. Percebe que não sabia nada sobre a famíliada governanta, se tinha marido e filhos. A casa cheira mal, por mais que a limpe. Algumanimal morto?

23 A família Kim, em quarentena depois da testagem positiva da filha, vive dias de pânico.

Tosse e calafrios definem o ritmo da casa, envolto no medo de agravamento do quadro.Na sala, os corpos desobedecem a distanciamentos sanitaristas. Dois metros ali é luxo.Não há espaço para estabelecer quaisquer protocolos, de entrada-saída da casa, deisolamento de corpos contaminados; não há espaço para respirar e, tão pouco narizpara cheirar ; não há espaço para caber tamanho medo da morte ; mas, contrariamente,cabe ali alguma cumplicidade afetiva. Resignados, sabem que, provavelmente, todos vãose contaminar. Na urgência do agora, o único contágio certeiro é o da fome ! Semreceberem doações de cestas de mantimentos, o esvaziamento da geladeira leva o filhodos Kim, mais uma vez, à rua. Desta vez, ele não é movido pelo desejo rebelde dedesobediência civil, mas pela necessidade primitiva de sobrevivência. Vai buscartrabalho, pedir esmolas, o que for...

24 Atravessa o pobre gueto Ahyeon-dong, onde vivem, correndo. Tem urgência. Atravessa

áridas pontes, viadutos, escadarias, avenidas. Como sempre, ninguém no caminho. Nodistrito de Seongbuk-dong, onde ricos se isolam e talvez ofereçam algumaoportunidade, encontra poucas pessoas na rua. O corona-app alerta para edifícios emque há registro de infectados. O vírus contamina ali também e ele afasta-se. Teme, embreve, ser detectado pela vigilância virtual. Algo nas ruas mudou, seja no pobreAhyeon-dong, seja no rico Seongbuk-dong. É como se o espaço árido que atravessoucorrendo estivesse contaminando, aos poucos, os espaços adjacentes. Ofegante, chora!Há nuvens no céu. Se chover, a casa dos Kim poderá sofrer alagamento, como já ocorreuoutras vezes. Ele clama por algo próximo a Deus e, ao mesmo tempo, num impulsoprofundo, deseja a própria morte, a morte do mundo, um apocalipse, um fim.

25 27 de março de 2020

26 Depois do controle relativo da epidemia, os Sr. e Sra. Park entram com pedido de

separação. O isolamento desvelava o que o cotidiano encobria. Enterram um casamento.A família Kim também enterra um amor, a filha que, num caixão lacrado, desapareceudeste mundo sem velório, padecendo do que ela mesma subestimou no dia 20 dejaneiro. A morte naturaliza-se entre todos, exigindo cuidados dos vivos ou dos restos-dos-vivos. Nessa urgência, perde-se a percepção do real inimigo, se o «vírus», se o «eu»,se o «outro». O «outro», por certo, não lhes é a salvação. Isolados e vigiados, cada umbusca garantir a sua própria sobrevivência, sem desejos de ressignificar o vivido, semdesejos de outras formas de viver e habitar.

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27 ******

28 O corona-app notifica – “Estuda-se a possibilidade de retomar o isolamento, pois novos

casos de contaminação e morte são registrados”. A mensagem é emitida já com o temorde lidar com a resistência da população para se isolar novamente. A primavera chegou eas flores estão desabrochando.

2. O desabrochar de primaveras ou o voltar ao bunker

29 O imaginário dos mundos retratados pelas casas parece apoiar-se num aspecto

geográfico – alto-baixo – e no decorrente aspecto luminoso a ele associado – claro-escuro. Grandes janelas e implantação em cota elevada garantem luz abundante aosPark; pequenas aberturas em cota abaixo do nível da rua condenam os Kim a uma vidasombria7. Esta polaridade, que explicita de facto condições de habitabilidade, permiteao diretor do filme inúmeras metáforas, como a do bunker que poderia representar oespaço mais baixo e mais escuro (Figuras 3 e 4).

Figura 3. Acesso à casa da família Kim

CJ ENM Coorporation, Barunson E&A/Divulgação, filme Parasita (Direção Bong Joon-ho)

Figura 4. Jardim da casa da família Park

CJ ENM Coorporation, Barunson E&A/Divulgação, filme Parasita (Direção Bong Joon-ho)

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30 Bunkers são espaços semienterrados, construídos para resistir a «ataques» bélicos, como

na época da guerra fria, a tornados e furacões e, mais recentemente, a pandemias, comotêm demonstrado milionários americanos (Labbate, 2020). Na casa dos Park, o bunker éa despensa que o arquiteto fictício Namgoong Hyeonja projetou para a proteção depossíveis ataques norte-coreanos. O apartamento dos Kim é o próprio bunker. Assimcomo um banjiha, foi construído após 1970, quando o governo temeroso aos mesmosataques passou a exigir que edifícios residenciais com menos de quatro andarestivessem porões-abrigo para situações de emergência. Essa função original foipreservada até aos anos 1980, quando uma crise imobiliária levou a consolidar essesespaços como habitação (BBC, 2020).

31 No bunker dos Park vive clandestinamente o marido da governanta que, provendo-o de

alimentos e afetos, lhe garante a sobrevivência frente a pressões de agiotas. O Sr. Kim,posteriormente, também sobreviverá ali. Os sinais de vida vindos desse bunker

expressam-se em forma de «luz», no acende-apaga de lâmpadas que eles acionam. Dequalquer modo, eles não existem, são fantasmas invisíveis no espaço mais baixo eescuro da luminosa e radiante casa dos Park. No bunker dos Kim, mínimo, húmido eescuro, vivem quatro pessoas semienterradas. São mortos-vivos e os seus sinais vitaistambém são invisíveis, aparecem em forma de «cheiro» que é exalado por eles. Espaço,luz e ventilação são condições essenciais para a sobrevivência que lhes são vedadas.

32 A sobrevivência, portanto, transcorridos mais de 40 anos após a construção das casas-

bunkers, ainda define os seus modus operandi. A sobrevivência a possíveis ataques bélicosdos anos 1970-80 foi substituída pela sobrevivência a um sistema econômico que,deflagrado a partir da década de 1980, acentuou diferenças sociais, concentrando ariqueza na mão de poucos e condenando muitos à pobreza extrema. A crise, a suasituação de excepcionalidade, portanto, não foi superada e a aparente normalidade éuma simulação. Vive-se um permanente estado de crise ou uma «normalidade daexceção» que, como sugere Boaventura de Sousa Santos (2020), se estende além daCoreia do Sul, é global.

33 É essa mesma «crise permanente», ainda segundo o autor, que tem sido usada para

justificar cortes a financiamentos de políticas sociais de diversas ordens – saúde,educação, previdência social, habitação, infraestrutura. A crise justifica reduçõessalariais. Ela isenta o Estado do seu papel, delegando serviços a terceiras entidades eparcerias público-privadas. Ela justifica, inclusive, a atuação de comunidades solidáriasno rentável comércio das filantropias (Santos, 2020).

34 Neste contexto vivem os Kim – os filhos não estudam, os pais não estão aposentados,

fazem trabalhos provisórios de baixa remuneração e «parasitagens», não só a ricos, mastambém aos seus iguais. Vivem com um precário acesso à internet, condiçãoindispensável para o teletrabalho e a educação à distância. Vivem numa casa que não oscomporta ou conforta, e num bairro que se inunda mediante temporais. Vivemquarentenas sobrepostas (Santos, 2020), aqui, uma tripla quarentena, imposta pelapandemia, pela comunicação digital e pelo bairro delimitado por áreas distópicas que ossegregam do resto da cidade. Estão preso ! O sistema e a cidade já lhes concederam essacondição, antes mesmo da pandemia. Estão ali, sem amparo do Estado e nem mesmo decomunidades filantrópicas. Estão ali, sozinhos, sem articulação social.

35 A não resolução desta crise, mesmo antes da epidemia, tem objetivos claros –

concentrar riquezas como a ostentada pelos Park. Protegidos na sua «casa de revista» e

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numa empresa bem sucedida, eles mascaram hábitos vorazes de consumo e descarte. Ominimalismo da sua casa decorre menos de um bom gosto e mais do facto de que jágozaram do «muito» e podem definir, ao seu critério e prazer, onde, como e o queconsumir. (Carini, 2020). Num «consumo compensatório» para abrandar frustrações,compram pacotes de viagens e roupas de que não necessitam ; ou, para abrandarinseguranças, adquirem planos de saúde, seguros, sistemas de segurança, e terapias.Meritocráticos, os seus serviçais são tratados com arrogância ou falsa cordialidade, semadmitir que os mesmos sejam vítimas do sistema social operante (Harvey, 2020).

36 De qualquer modo, os mundos dos Kim e dos Park são condenados com a pandemia.

Ambos sofrem com a suspensão da liberdade e da privacidade imposta pela política devigilância do Estado que, autoritário, não constrói coletivamente alternativas. Eis o«estado de exceção». As demais medidas desse estado, contudo, não se dão de modoequitativo. Precarizado, o Estado tem dificuldades em responder às emergências. Atragédia vai ganhando maiores proporções e, aos poucos, desmontando o mito de que ocontágio não reconhece classes sociais. Como observa David Harvey (2020: 21), “oCOVID-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, de gênero e deraça”, o que vem ao encontro da afirmação de Boaventura Sousa Santos (2020, n.p.) –“Sabemos que a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados.”

37 Como alvo privilegiado da pandemia, somam-se aos Kim outros grupos para os quais a

quarentena é mais difícil ou impossível – os que não possuem casa ; os que possuemcasas que, precárias, inviabilizam medidas higienistas ; os que possuem casas e que nãopodem isolar-se, ou porque atuam na «linha de frente do sistema» (saúde,abastecimento) ou porque precisam optar entre a proteção e a provisão de seus lares(supermercado, planos de saúde, etc.) (Harvey, 2020 ; Santos, 2020)8. Esses gruposforam-se avolumando nos últimos 40 anos. Permanecendo mais ou menosdespercebidos, ganham agora maior notoriedade por comprometer o sistema como umtodo. Em muitos países, contudo, são assumidos como parte descartável de um«darwinismo social» que se desfaz dos que não são produtivos ou não são consumidorespotenciais (Santos, 2020).

38 Também na pós-ficção a morte só acontece entre os Kim, restando aos Park mortes

mais simbólicas. Além do fim da união conjugal, talvez a morte mais penosa para osPark seja a do seu padrão de consumo, inoperante nas condições atuais da pandemia(Harvey, 2020).

39 E é essa inoperância – essa possibilidade do (hiper) capitalismo cair por terra, como

sugere Boaventura de Sousa Santos (2020) –, que irá talvez acelerar aquilo quetranscorria lentamente, que irá dar visibilidade ao que era despercebido, que iráviabilizar o que era, até então, inconcebível.

“Torna-se possível ficar em casa e voltar a ter tempo para ler um livro e passar maistempo com os filhos, consumir menos, dispensar o vício de passar o tempo noscentros comerciais, olhando para o que está à venda e esquecendo tudo o que sequer, mas que só se pode obter por outros meios que não a compra. A ideiaconservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelohipercapitalismo em que vivemos cai por terra” (Santos, 2020, n.p.).

40 E o que virá em alternativa?

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3. Da pós-ficção à pós-pandemia – um fim ouconsiderações finais

41 O porvir pandêmico é tão incerto quanto aos arrastados dia-a-dia de quarentena e

quanto à condição mutante dos vírus. Os mais otimistas sugerem o surgimento de novostempos e de alternativas individuais e coletivas aos modos de viver e consumir que, detão longamente impostos, são como bunkers que nos impedem de ver luzes e derespirar. Num sentido oposto, o porvir pandêmico parece sugerir aos pessimistas, ouaos mais realistas, o receio de um endurecimento do poder dominante para a retomadada «normalidade», aquilo que se tinha antes da quarentena, ou da «normalidade deexceção», em que seremos submetidos a crises contínuas e futuras quarentenas, comoquestiona Boaventura de Sousa Santos:

“Desaparecerá o Estado de excepção que foi criado para responder à pandemia tãorapidamente quanto a pandemia? Nos casos em que se adoptaram medidas deprotecção para defender a vida acima dos interesses da economia, o regresso ànormalidade implicará deixar de dar prioridade à defesa da vida?” (Santos, 2020,n.p.)

42 De qualquer forma, o regresso à normalidade não será fácil. Será difícil para todos,

sobretudo para aqueles representados pelos Kim, os desabrigados, os desempregados,os precarizados. A esses restará aceitar o «novo normal», cavando mais fundo o seubunker, invisibilizando-se ainda mais, para então morrer ou, em pequenas escapadelas,“ parasitar com civilidade » famílias como a dos Park ou, em desobediência civil,saquear o supermercado da esquina. Aos representados pelos Park, restarão aindasobras econômicas para ajustes financeiros, pagamentos de planos de saúde eterapeutas e, se restar algum saldo, para o e-market, o que, contudo, não deixará de seruma legítima condição de sofrimento.

43 Todos seguirão sós, no isolamento social que vem na contramão de qualquer comoção e

mobilização para a solidariedade. Sós, órfãos de entes queridos mortos e enterrados emvala comum, sem rituais de despedida. Sós, ignorados por um Estado que,desmantelado, é incapaz de articular novas soluções políticas, econômicas e sociais. Sós,pela potência do poder econômico e das fake news que apagam as pequenas fagulhas deesperança que partem de articulações comunitárias e da educação. Sós, pelaimpossibilidade de planejar o amanhã, ficando à deriva de vidas sem propósito. Sós...

44 Sem conseguir romper tamanha solidão, aos Kim e aos Park não foi concedido final

feliz, e tampouco triste. O fim assume a atmosfera melancólica de algo reticente, como arealidade caótica dos seus mundos durante a pandemia, que anestesia o que é sentido epensado. O destino de suas vidas, apesar de confrontado com as recentes reflexões,ainda se mostrou fugidio, à beira de um abismo.

45 Reticentemente, o único fim possível é: “ Mas a primavera chegou e as flores estão

desabrochando”.

Referências Fílmicas

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BIBLIOGRAFIA

Ambrósio, R. V. (2020) “Um Tour pelas Locações do Filme Parasita”, Korea Post- Corean Culture,

disponível em https://www.koreapost.com.br/conheca-a-coreia/turismo/um-tour-pelas-

locacoes-do-filme-parasita/ https://www.koreapost.com.br/conheca-a-coreia/turismo/um-tour-

pelas-locacoes-do-filme-parasita/.

Balhorn, M. (2020) “O filme ‘Parasita’ é um retrato do neoliberalismo sul-coreano”, Diário do

Centro do Mundo, disponível em https://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-filme-parasita-e-

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O Hospedeiro (longa-metragem) Dir. Bong Joon-ho, 2007 (120m).

Okja (longa-metragem) Dir. Bong Joon-ho, 2017 (118m).

Parasita (longa-metragem) Dir. Bong Joon-ho, 2020 (132m).

Snowpiercer (longa-metragem) Dir. Bong Joon-ho, 2013 (126m).

NOTAS

1. Podem Ilustrar o argumento Belin, 2020; Carini, 2019.

2. Podem Ilustrar o argumento: Ambrósio, 2020;Willmersdorf, 2020.

3. Podem Ilustrar o argumento: BBC, 2020; Minji, 2020.

4. Neste filme, um monstro mutante da poluição química invade uma cidade, devorando pessoas.

Entre outros filmes do mesmo diretor com temáticas similares, pode-se citar: Snowpiercer ou

Expresso do Amanhã (2013), em que um experimento científico leva a futuro distópico e a uma

guerra de classes entre sobreviventes que transitam entre vagões de um comboio em contínuo

movimento; Okja (2017), em que uma porca, geneticamente modificada, é disputada por poderosa

multinacional e o amor de uma criança.

5. Assisti ao filme Parasita em Lisboa, quando os cinemas amparavam a promíscua troca de vírus

entre o público. Estava ali no âmbito de um pós-doutoramento. Com a suspensão das atividades

académicas em Portugal devido à pandemia, voltei ao Brasil. Aqui, em quarentena e cuidando dos

meus pais, o cinema tem sido refúgio, onde assisti filmes de Bong Joon-ho – Parasita e Okja,

revistos; e O Hospedeiro e Expresso do Amanhã, vistos pela primeira vez.

6. O conto isolado foi submetido ao concurso literário Contos da Quarentena do site Brasil 247.

Entre 1827 inscritos, foi selecionado entre os 68 melhores contos. Sobre o assunto, consultar:

https://www.brasil247.com/cultura/concurso-contos-da-quarentena-do-247-divulga-68-

finalistas

7. A ideia dos contrapostos no filme pode ser examinada em Flight, 2020.

8. No Capítulo 3, Santos elenca grupos mais afetados pela exploração capitalista, denominas por

ele como “Sul”, e que são mais vulneráveis à pandemia: mulheres, trabalhadores autônomos

(informais) e de rua, moradores de rua e das periferias pobres, refugiados e imigrantes,

deficientes e idosos, presos e pessoas com deficiência mental.

AUTOR

ANA ELÍSIA DA COSTA

Departamento de Arquitetura, Faculdade de Arquitetura - UFRGS, Brasil, ana_elisia_costa [at]

hotmail.com

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Julia Backhaus, Audley Genus, SylviaLorek, Edina Vadovics, Julia MWittmayer (Eds.), Social Innovationand Sustainable Consumption: Researchand Action for Societal TransformationLondon, Routledge, 2017

Hugo Pinto

REFERÊNCIA

Backhaus, J., Genus, A., Lorek, S., Vadovics, E., Wittmayer, J.M. (Eds.)(2017), SocialInnovation and Sustainable Consumption: Research and Action for SocietalTransformation, London: Routledge-SOCRAI Studies in Sustainable Consumption.London: Routledge/Taylor & Francis Group.

Visão Global

1 O mundo está a colapsar. De várias formas. As sociedades contemporâneas estão a

confrontar-se com uma permanente turbulência social, económica e ecológica. Aspolíticas tradicionais não conseguem dar respostas efetivas aos novos tipos deproblemas. Os padrões atuais de consumo e de produção estimulam a degradaçãoambiental. Crises, que pareciam desconectadas, encontram-se cada vez maisrelacionadas umas com as outras, alimentando-se reciprocamente.

2 O livro Social Innovation and Sustainable Consumption: Research and Action for Societal

Change, editado por Julia Backhaus e colegas, apresenta e analisa políticas, estratégias eprocessos para a transformação societal e mudanças fundamentais para responder ao

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desafio da sustentabilidade. Partindo de uma perspetiva eminentementeinstitucionalista, considerando central compreender profundamente as estruturas queincentivam ou limitam a ação individual e coletiva, este livro integra o estudo dainovação social, do consumo sustentável e da transformação das sociedades, em trezecapítulos que exploram avanços teóricos e conceptuais na interseção destes trêsdomínios. Os capítulos enquadram uma relevante discussão teórica e vários estudos decaso, principalmente europeus, em diferentes temas, da alimentação à energia. Ostextos centram-se não apenas na apresentação dos atores, práticas e relaçõesrelevantes, mas procuram sublinhar os processos de institucionalização dedeterminadas inovações sociais. Estudos de caso como as Cidades em Transição, Global

Ecovillage Network, Movimento Slow Food, Credit Unions, Economia da Partilha, sãoanalisados em detalhe. A necessidade de consumo sustentável é um dos aspetosincontornáveis do conjunto de capítulos e remete para as alterações que as sociedadescontemporâneas têm de operar para garantir que os fenómenos de sobre-produção e desobre-consumo são controlados sem colocarem em causa os limites do próprio planeta eseus recursos.

3 Este é um livro coletivo que resulta dos resultados de um workshop organizado em

novembro de 2015 no Impact Hub em Viena a propósito do TRANSIT, um projeto FP7financiado pela Comissão Europeia que se centrou na análise da inovação social comogeradora de mudança social. A obra é promovida pela atividade da SCORAI – The

Sustainable Consumption Research and Action Initiative, uma rede internacional queenvolve cerca de um milhar de investigadores e decisores políticos na interface entre oconsumo, o bem-estar humano e a mudança tecnológica e cultural.

Desafios à investigação em inovação social

4 Grande parte da discussão sobre inovação social permanece ainda hoje vaga com uma

profusão de definições concorrentes. Para muitos é simplesmente um novo termo parao estudo de organizações sem fins lucrativos; para outros, pode incluir quase tudo,desde novos tipos de democracia até ao desenho de produtos acessíveis a consumidorescom baixos rendimentos. Para outros, não é mais que uma tentativa disfarçada demercantilizar atividades que estavam na esfera da economia social e solidária ou sob aresponsabilidade do Estado. Todavia pode ser entendida numa perspetiva menos cínica– a inovação social resulta da vontade de transformar ideias em ação para responder anecessidades sociais. Os indivíduos conseguem criar respostas inovadoras, muitas vezesa partir de experiências de pequena escala e de carácter localizado. É a partir daobservação da implementação destas soluções, com o seu sucesso, que tentativas dereplicar institucionalmente essas soluções podem surgir. A inovação social advémtambém da exploração de possibilidades adjacentes, quando após uma solução serencontrada para determinado problema, outras alternativas fluem quaseespontaneamente a partir desta – ampliando, adaptando ou combinando essa solução, anovos problemas ou com novas configurações.

5 Uma forma simples de definir inovação social é compreendê-la como uma nova ideia

que funciona na prática para responder a necessidades sociais não satisfeitas (Mulganet al., 2007). Uma definição útil de inovação social descreve-a como inovações que sãosociais quer nos seus fins quer nos seus meios (Young Foundation, 2012), captando afinalidade social das soluções criadas e a necessidade de uma articulação coletiva entre

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diversos atores. Westley e Antadze (2010) sublinham que a inovação social é umprocesso complexo de introdução de novos produtos, processos ou programas quealteram profundamente as rotinas básicas, os fluxos de recursos e de autoridade ou ascrenças do sistema social em que a inovação ocorre. Tais inovações sociais bem-sucedidas têm durabilidade e amplo impacto. Do ponto de vista das políticas públicas, ainovação social é essencialmente uma nova forma de responder a falhas de mercado e afalhas do Estado e distingue-se de uma conceção de inovação estritamente económica,porque não trata apenas de novos tipos de produtos ou de processos, mas de satisfazernecessidades não resolvidas pelo mercado e de criar formas mais satisfatórias deinserção dos indivíduos na sociedade (OCDE, 2011). Neste livro, a inovação social é vistaessencialmente como um processo que estimula mudanças nas relações sociais queenvolvem novas formas de fazer, organizar, saber e enquadrar necessidades sociais (cf.Capítulo 2 – Conceptualising the Role of Social Innovation in Sustainability Transformations,Alex Haxeltine, Flor Avelino, Julia Wittmayer, Iris Kunze, Noel Longhurst, AdinaDumitru e Tim O’ Riordan).

6 A inovação social varia naturalmente em termos dos seus impactos. Podemos estar a

considerar soluções meramente incrementais, mas podem estar também em causamudanças que alteram as bases fundamentais da sociedade. Neste último caso, falamosde inovação social transformadora, que desafia, altera ou substitui formasinstitucionais dominantes num determinado contexto, tendo por isso um impactoalargado nos grupos que a experienciam. A transformação remete para a mudançafundamental, persistente e irreversível na sociedade. A abordagem do livro élargamente inspirada no trabalho de Karl Polanyi. “A Grande Transformação” (Polanyi,1944; 2018) apresentava a ascensão do mercado como instituição primordial narealidade contemporânea e sublinhava como economia está sempre incrustada na açãodo Estado e outras instituições específicas. A economia de mercado é compreendidacomo uma ficção, a mercadorização do trabalho, da terra e da moeda como aspetos quefizeram exaltar a financeirização e a conflitualidade crescente com o meio natural (cf.Capítulo 3 – The Idea(l) of a ‘Sustainable Sharing Economy’: Four Social Science Perspectives on

Transformative Change, Julia Backhaus, Harro van Lente e René Kemp). As transiçõessociotécnicas (Geels, 2004), com enfoque no que se designa normalmente por transiçõessustentáveis (Köhler et al., 2019) são outra das abordagens, intimamente relacionadacom a noção de transformação, destacadas no livro. A inovação social pode contribuirpara uma transição sustentável, enfim, para uma mudança transformadora, através denovas formas de fazer, organizar, enquadrar e conhecer.

7 A investigação sobre inovação social não é ainda coerente em termos de objeto ou de

enquadramento teórico-metodológico. Constitui um fenómeno abordado de diferentesperspetivas e, portanto, também definido de diferentes maneiras (cf. Capítulo 1 –Introduction: the Nexus of Social Innovation, Sustainable Consumption and Societal

Transformation, Julia Backhaus, Audley Genus e Julia Wittmayer). As ciências sociais, emparticular a Sociologia, centram a sua atenção para o estudo da inovação social nacompreensão das novas práticas ou formas de interação social. Existem análises sobreas estruturas de inovação e difusão a partir do nível micro. A relação entre inovaçãosocial e a mudança é particularmente sublinhada, explorando com atenção osmovimentos de cidadãos como catalisadores da inovação social (Cajaiba-Santana, 2014).

8 Os estudos regionais e urbanos têm sido também importantes catalisadores da

investigação sobre inovação social ao conferir atenção às respostas territorializadas a

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necessidades sociais emergentes (Moulaert e Van den Broeck, 2018). Existe um conjuntosignificativo de trabalhos que exploram respostas inovadoras à exclusão social emcontexto urbano e em regiões periféricas, explorando o potencial de modelos,intervenções e interações públicas, privadas e da sociedade civil. A inovação socialenvolve a transformação das relações sociais no território, a reprodução de identidadese culturas locais e o estabelecimento de estruturas de governança em múltiplas escalas.A inovação social é, portanto, na maior parte das vezes, local ou regionalmenteincrustada. Para as cidades, o Capítulo 5 (Local Authorities and their Development of New

Governance Approaches: Distilling Lessons from a Social Innovation Project, MarcellineBonneau e François Jégou) é particularmente estimulante, ao sugerir aspetosfundamentais para se concretizar a inovação social na governança da cidade: produçãode conhecimento transdisciplinar, instituições e estratégias adaptativas, antecipação deefeitos sistémicos de longo-prazo, formulação de objetivos de forma participada eiterativa, desenvolvimento estratégico interativo e inclusivo. É fundamental estimular acolaboração entre diferentes tipos de atores e favorecer a partilha de recursos eresponsabilidade da governança na cidade. A inovação social pode ajudar a estimularcidadãos mais ativos e oferecer a diversos stakeholders uma oportunidade de seenvolverem em processos de decisão e planeamento. Por outro lado, a inovação socialpermite a vários níveis de governo desenvolver um engajamento ativo com estes“novos” atores da cidade.

Nota Conclusiva

9 Atualmente a inovação social tem potencial para se converter numa importante agenda

de mudança, mas carece quer do apoio das políticas públicas para se desenvolverenquanto prática, quer de atenção da investigação para alimentar processos de decisãocom conhecimento científico robusto. A agenda de investigação sobre inovação socialestá profundamente entrelaçada com um campo emergente de ação e prática. Ao invésde ser um domínio científico com limites claros, fundamentos teórico-metodológicosdistintamente definidos, está enraizado em atividades estimuladas pela práticaquotidiana. Assim, uma melhor compreensão da inovação social só pode ser garantidacom mecanismos que permitam entender o trabalho em curso, em várias partes domundo, por variados tipos de atores, para a concretizar, colocá-la em ação e descobrirse pode ser generalizada a outros problemas e contextos.

10 Subsistem grandes interrogações para a agenda de investigação da inovação social: o

papel dos cidadãos na geração de inovação social, as reconfigurações das funções doEstado, mercado e sociedade; o papel da inovação social para uma transiçãosustentável. Certamente um dos eixos cruciais desta agenda será a transformação doconsumo e a reconfiguração dos moldes em que é efetuado nas sociedades atuais.

11 Também é fundamental aprofundar no futuro o debate que a inovação social não é, por

si só, algo socialmente positivo. A inovação social pode ter um lado obscuro que desafiasuposições normativas, de que implica sempre uma melhoria, quando pode ser apenasuma mudança. A noção de que inovações sociais podem criar vencedores e perdedoresraramente é veiculada (Nicholls et al., 2015). Sendo uma condição importante para amudança, a inovação social pode não ser suficiente, porque o seu desenho eimplementação podem ser influenciados ou mesmo sequestrados por interesses deorganizações e instituições dominantes, que garantem a manutenção e continuidade de

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práticas insustentáveis. É sabido que inovações criarão valor para alguns, masdestruirão para outros, algo subjacente à ‘destruição criativa’ (Schumpeter, 1942; 2018).O benefício social de uma inovação é contingente. É importante, portanto, estar cientede que a bondade da inovação social da perspetiva de uma das partes interessadas podeser muito diferente da visão de outros atores.

12 A transformação que venha a acontecer no domínio da sustentabilidade será profunda e

vai alterar radicalmente a estrutura institucional existente. No entanto, é evidente queno futuro próximo a inovação social – tal como sugere este livro – vai permanecer umcampo complexo e multifacetado sujeito a práticas, discursos e definições concorrentes.

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AUTORES

HUGO PINTO

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal, hpinto [at] ces.uc.pt

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Nancy Duxbury, Greg Richards, AResearch Agenda for Creative TourismCheltenam, Edward Elgar Publishing, 2019

Tiago Vinagre de Castro

REFERÊNCIA

Duxbury, N., Richards, G. (orgs.) (2019), A Research Agenda for Creative Tourism,Cheltenham, UK: Edward Elgar Publishing.

1 O conceito de turismo criativo é relativamente recente (Richards e Raymond, 2000)

enquadrando-se numa área de turismo de nicho, que emergiu tanto da evolução doturismo cultural como da reação à sua massificação. O turismo criativo estáintrinsecamente ligado aos viajantes que procuram experiências culturais mais ativas eparticipativas, nas quais possam explorar e desenvolver a sua criatividade, bem comoabordagens alternativas ao desenvolvimento do turismo, numa lógica de pequenaescala, mais sustentável e de maior proximidade entre visitante e anfitrião.

2 O caráter multi e interdisciplinar inerente ao turismo criativo conduziu a um

incremento gradual da investigação, estabelecendo um campo de especialização emevolução, acompanhando o desenvolvimento do turismo criativo, tanto na oferta comona procura, a nível global. Com efeito, tem-se verificado um crescimento na procura deexperiências criativas, bem como de oferta de destinos e atividades que proporcionemuma imersão na cultura local associada a processos de aprendizagem e criação. OCREATOUR “Desenvolver Destinos de Turismo Criativo em Cidades de Pequena Dimensão e

Áreas Rurais” (P2020: 2016-2020) insere-se neste contexto. Trata-se de um projeto deinvestigação-ação que tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento do turismocriativo sustentável, em quatro regiões de Portugal, designadamente, Norte, Centro,Alentejo e Algarve e do qual Nancy Duxbury e Greg Richards fazem parte, comoInvestigadora Principal e Consultor Científico.

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3 Os resultados dos diversos estudos realizados têm levantado novas questões que exigem

corpos teóricos e empíricos mais ajustados ao desenvolvimento e evolução do turismocriativo. Neste sentido, o livro A Research Agenda for Creative Tourism, organizado porNancy Duxbury e Greg Richards, surge com o objetivo de lançar um conjunto de linhasorientadoras para uma agenda de investigação futura para o turismo criativo, tendo porbase uma forte ligação entre a teoria e a prática. Assim, partindo do trabalho depesquisa que têm vindo a fazer, os organizadores deste livro desafiaram outros autoresque trabalham e investigam sobre o turismo criativo em diferentes áreas disciplinares egeográficas, para que sugerissem eixos de investigação a desenvolver, no sentido deampliar as questões conceptuais e pragmáticas que têm vindo a ser trabalhadas noâmbito do turismo criativo.

4 O livro está organizado em 6 partes. Um capítulo introdutório que faz um

enquadramento do conceito turismo criativo e sua evolução até ao momento atual em 4fases complementares, bem como a emergência deste campo de investigação,evidenciando os elementos que o caraterizam e distinguem no contexto do turismocultural. Seguem-se 4 partes - compostas por capítulos que apresentam estudos atuaisespalhados pelo mundo - associadas a 4 áreas temáticas, através das quais o olhar sobrea investigação se vai alargando gradualmente, do turismo criativo e a experiênciaindividual, para a relação simbiótica entre as diversas formas de atividades de turismocriativo e contextos em que ocorrem, passando pelos desafios dos processos dedesenvolvimento e seus impactos locais, assim como estratégias e políticas locais,terminando numa análise à oferta internacional de plataformas e redes que organizame promovem atividades de turismo criativo numa base coletiva. Por último, o capítulofinal sistematiza e analisa os contributos dos diversos autores, apontando para linhasde investigação futuras em torno do turismo criativo e abrangendo temas tão diversoscomo: experiências e atividades, abastecimento, marketing, desenvolvimento deexperiências e destinos, avaliação do seu desenvolvimento, o papel das comunidadeslocais, placemaking através de turismo criativo e, ainda, redes e plataformas.

5 A compilação de um conjunto de casos de estudo internacionais (na Malásia, Indonésia,

Croácia, Canadá, Finlândia, Coreia do Sul, Estados Unidos da América, Tailândia, Rússiae Brasil) comprova a enorme diversidade e abrangência do turismo criativorelativamente à multiplicidade de temas e interesses, tipologias de oferta e procura,abordagens e contextos geográficos. Esta realidade deriva, de certa forma, de umadefinição fluída e que reflete diferentes conjunturas. Os casos de estudo apresentadosreferem-se a múltiplos contextos de locais históricos classificados, áreas remotas ruraise urbanas, cidades grandes e pequenas ou aldeias e envolvem comunidades (étnicas,rurais, de bairro), organizações culturais, artistas, artesãos e empreendedores. Na suamaioria, tratam-se de ambientes socioeconómicos desafiantes, onde a adaptação,inovação e resiliência está ligada ao turismo criativo como modelo alternativo oucomplementar de desenvolvimento local, podendo centrar-se nas artes e educação, naregeneração urbana de base cultural e/ou na salvaguarda das tradições e patrimóniolocal, etc. É interessante perceber as diferentes abordagens ao turismo criativoadotadas em cada cenário - adaptadas às caraterísticas e circunstâncias sociais,culturais, naturais e económicas locais - enquanto que, do ponto de vista dainvestigação, são as metodologias, as ferramentas de monitorização (algumas criadaspara o efeito), os modelos de análise, e os impactos resultantes que suscitam maiorcuriosidade.

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6 Torna-se claro o caráter intersetorial do turismo criativo, com uma ligação intrínseca

aos setores da cultura, do turismo e da economia criativa. Mas em paralelo, também seobserva a sua ligação ao setor público, na ótica do desenvolvimento socioeconómicolocal e regional e no potencial enquanto modelo alternativo mais sustentável einclusivo que engloba ações coletivas e cooperação entre atores, facilitação e mediação,assim como modelos de governança colaborativa. No entanto, para a discussão,desenvolvimento e implementação do turismo criativo, é fundamental a geração deconhecimento que suporte ações inovadoras e políticas públicas futuras.

7 Este livro vem demonstrar a abrangência, pertinência e margem de expansão que a

área de investigação do turismo criativo tem, podendo servir como ponto deconvergência de diversos campos disciplinares, em particular nas ciências sociais. Alémdisso, reforça a ideia presente de que ainda não se alcançou um consenso a nível globalrelativamente ao conceito de turismo criativo, o que por si só constitui um desafio e umestímulo para estudos que hão de vir. Efetivamente, ainda há muita investigação porfazer sobre temáticas tão variadas como: o perfil, motivações e comportamentos doturista; as formas de organização da oferta; as relações entre turistas e o destino; osimpactos nas comunidades locais; ou os contributos para o desenvolvimento de novasiniciativas e de políticas que o enquadrem.

8 Em suma, o livro A Research Agenda for Creative Tourism proporciona uma visão

multifacetada sobre o turismo criativo e o seu potencial enquanto elemento chave paraum desenvolvimento integrado e sustentável baseado na criatividade, e que podeassumir diferentes modelos de operacionalização ajustados aos contextos em que seinsere. Trata-se de uma publicação de extrema utilidade para quem faça investigação,trabalhe ou, simplesmente queira explorar conhecimento em áreas que entrecruzemturismo, cultura, desenvolvimento regional e local, economia cultural e criativa,sustentabilidade, património, cooperação e governança. Para aguçar a curiosidade poreste livro fica aqui uma citação que ilustra bem a sua essência:

“As forças da imaginação e da expressão criativa fornecem-nos ferramentasimportantes com as quais podemos revitalizar e ampliar tradições e práticasculturais, mergulharmos em diferentes visões do mundo e perspetivas, e construirvisões renovadas e caminhos para o futuro, inspirando e informando o mundo queestamos a construir coletivamente. O turismo criativo pode desempenhar um papelimportante nesta trajetória daqui para frente.”(Duxbury and Richards, 2019: 7)

AUTORES

TIAGO VINAGRE DE CASTRO

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal, tiago.vng.castro [at] gmail.com

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