Tattiane Marques2 .pdf - Universidade Metodista de Sao Paulo

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO DIRETORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião TATTIANE YU BORGES MARQUES BUDA TĀRĀ: SURGIMENTO, TRANSFORMAÇÃO E PERMANÊNCIA DA CENTRALIDADE DE UM ÍCONE FEMININO NO BUDISMO TIBETANO GELUK APOIO SÃO BERNARDO DO CAMPO 2022

Transcript of Tattiane Marques2 .pdf - Universidade Metodista de Sao Paulo

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

DIRETORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

TATTIANE YU BORGES MARQUES

BUDA TĀRĀ: SURGIMENTO, TRANSFORMAÇÃO E PERMANÊNCIA DA

CENTRALIDADE DE UM ÍCONE FEMININO NO BUDISMO TIBETANO

GELUK

APOIO

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2022

TATTIANE YU BORGES MARQUES

BUDA TĀRĀ: SURGIMENTO, TRANSFORMAÇÃO E PERMANÊNCIA

DA CENTRALIDADE DE UM ÍCONE FEMININO NO BUDISMO

TIBETANO GELUK

Dissertação de Mestrado apresentada em cumprimento

parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em

Ciências da Religião, na área de concentração Religião,

Sociedade e Cultura, para obtenção do grau de Mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2022

FICHA CATALOGRÁFICA

M348b Marques, Tattiane Yu Borges

Buda Tārā: surgimento, transformação e permanência da centralidade de

um ícone feminino no budismo tibetano Geluk / Tattiane Yu Borges

Marques – São Bernardo do Campo, 2022.

133 p.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Diretoria de Pós-

Graduação e Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2022.

Bibliografia

Orientação de: Sandra Duarte de Souza.

1. Buda Tārā 2. Budismo Mahāyāna 3. Budismo - China - Tibet 4.

Budismo tântrico I. Título

CDD 294.3

A dissertação de mestrado sob o título Buda Tārā: Surgimento, transformação e permanência

da centralidade de um ícone feminino no budismo tibetano Geluk, elaborada por Tattiane Yu

Borges Marques foi apresentada em 4 de abril de 2022, perante banca examinadora composta

pelos/as Professores/as Doutores/as Sandra Duarte de Souza (Presidente/UMESP), Plínio

Marcos Tsai (Instituto Pramāṇa) e Helmut Renders (UMESP)

_____________________________________________________

Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (UMESP)

Orientadora e Presidente da Banca Examinadora

________________________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Carneiro

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura

Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Socioculturais

Esta pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior – Brasil (CAPES)

Prece de Refúgio

Busco refúgio até realizar o completo despertar,

No Buda, no Dharma e na Saṃgha.

Pela prática da generosidade, e demais superações,

Possa eu realizar o completo despertar

para beneficiar a todos os seres sencientes.

Atiśa Dīpamkaraśrījñāna1

1 Preceito de Refúgio de acordo com o mestre Atiśa Dīpamkaraśrījñāna. TSAI, 2020, p. 19. Livro Sthāvira I.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior (CAPES),

pela bolsa de estudos (bolsa taxa) no período total do mestrado, sem este suporte financeiro esta

pesquisa não seria possivel.

Agradeço ao Instituto Ecumênico de Pos-Graduação (IEPG), pela bolsa auxílio de

incentivo à mulher na pesquisa em Ciências da Religião no período de um ano, bem como o

espaço na casa do estudante do IEPG, abrigo necessário para o pernoite em São Bernardo do

Campos.

Agradeço igualmente ao Programa de Pos-Graduação em Ciências da Religião da

Universidade Metodista de São Paulo e todo corpo docente, em especial à minha orientadora

Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza, que acreditou no potencial da pesquisa, me ensinou e

incentivou desde o começo. Agradeço ao grupo de pesquisa Mandrágora Netmal, pelos debates

acerca do tema gênero e religião necessários para a pesquisa. Ao Prof. Helmut Renders pela

leitura e apontamentos na minha qualificação, o que fez toda diferença na conclusão deste trabalho.

Meu agradecimento ao Prof. Dr. Plínio M. Tsai, por me ensinar e apresentar as primeiras

linhas do Buddhadharma e me incentivar neste caminho de estudos acadêmicos. Agradeço sua

dedicação em traduzir tantos textos e torná-los acessíveis para nós brasileiros, como também

me incentivar aos estudos das línguas instrumentais. Que todos seus projetos se realizem

sempre!

A meu esposo Yu Jun, pelo suporte nessa trajetória. À minha mãe Sirlene pela bondade

e preocupação amorosa que tem comigo, por ser essa mulher forte que sempre me inspirou. Ao

Celso, meu pai adotivo, que vibrou comigo cada uma das minhas conquistas, marcando este

período do mestrado para sempre em nossas vidas... Sentirei saudades, sou muito feliz de ter

lhe dado todo meu amor de filha. Aos meus irmãos Thiago e Talitha, pelo apoio e

companheirismo de sempre.

Aos meus amigos da saṃgha, da Associação Buddha-Dharma e do Instituto Pramāṇa.

À monja Nirvana, que me incentivou e me apoiou na pesquisa desde o início; nossas conversas

e debates renderam muitos frutos na pesquisa e na vida.

Aos meus amigos, companheiros do mestrado, Patrícia, Estela, Loyane, Harumi, Max e

Felipe, muito obrigada a cada um de vocês pela amizade, apoio, debates, cafés e trocas de

experiência. Sem vocês seria mais difícil essa jornada.

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo entender de que forma as narrativas de surgimento e

transformações de Buda Tārā se consolidam no budismo tibetano Geluk, a fim de investigar

quais fissuras são provocadas por esse ícone feminino tão importante no budismo tibetano. Seu

surgimento consolida-se nos movimentos do sistema tântrico, na Índia, a partir do séc. VI, onde

a contextualização se torna bastante complexa, considerando o rico entrecruzamento cultural

de crenças do sistema de tantra na sociedade antiga indiana. Para análise de seu surgimento,

será usada a metodologia diacrônica que se volta para a arqueologia e os textos canônicos. Para

a análise conceitual e literária, a metodologia será sincrônica, privilegiando a narrativa literária

e suas transformações com o que temos na atualidade. Para a interpretação iconográfica,

usaremos a metodologia de mapeamento proposta por Gillian Rose, especificamente as

modalidades composicional e social. Para além das fronteiras indianas, quando Tārā se fortalece

no Tibete, ela é a grande percursora de um movimento de popularidade nas esferas conceitual

e revolucionária, que coloca a mulher em pé de igualdade com o homem quanto às suas

realizações e conquistas. Algumas décadas depois, seu culto estabelece-se na tradição

Mahāyāna Geluk, reafirmando a visão teológica de equanimidade (upekṣā) e compaixão

(karuṇā), segundo a qual é preciso adentrar o caminho do Bodhisattva, que tem como prática o

cultivo da bodhicitta – a mente que busca o completo despertar não só para si, mas também

para beneficio de todos. Na teologia dos sistemas Vajrayāṇa, que é um braço do Mahāyāna, as

iconografias tibetanas de Tārā, em suas inúmeras representações, elevam o status de Tārā como

Buda, reafirmando as bases hermenêuticas da tradição Mahāyāna Geluk, mas, na prática, a

tradição Geluk não corresponde em estabelecer a igualdade entre homens e mulheres.

Descobrimos, através dos esforços das pesquisadoras budistas, que o principal problema está

no sistema educacional institucional da sociedade tibetana e, principalmente, no sistema

educacional religioso que privou as mulheres durante séc. do estudo formal que as habilitasse

e as encorajasse a estarem minimamente em pé de igualdade com os homens.

Palavras-chave: Buda Tārā; Mahāyāna; Geluk budismo tibetano; tantra budista.

ABSTRACT

This work aims to understand how the narratives of the emergence and transformations of

Buddha Tārā are consolidated in the Geluk of Tibetan Buddhism, to investigate which impacts

are caused by this female icon so important in the Tibetan Buddhism. Her emergence is

consolidated in the movements of the tantric system, in India, from the VI century, where the

contextualization becomes quite complex, considering the rich cultural interweaving of beliefs

of the tantra system in ancient Indian society. To analyze her emergence, the diachronic

methodology that turns to archeological and canonical texts will be used. For the concept and

literary analysis, the methodology will be synchronous, privileging the literary narrative and

her transformations with what we have today. For the iconographic interpretation, we will use

the mapping methodology proposed by Gillian Rose, specifically the compositional and social

modalities. Beyond Indian borders, when the figure of Tārā strengthened in Tibet, she is the

great precursor of a popular movement in the conceptual and revolutionary spheres, which

places women on an equal footing with men in terms of their achievements and conquests. A

few decades later, her cult was established in the Mahāyāna Geluk tradition, reaffirming the

theological vision of equanimity (upekṣā) and compassion (karuṇā), according to which it is

necessary to enter the path of the Bodhisattva, whose practice is the cultivation of bodhicitta -

the mind that seeks complete awakening not only for herself but for the benefit of all being. In

the theology of Vajrayāṇa systems, which is an offshoot of the Mahāyāna, the Tibetan

iconographies of Tārā, in her numerous representations, elevate Tārā's status as Buddha,

reaffirming the hermeneutical foundations of the Mahāyāna Geluk tradition, but in practice the

Geluk tradition does establish equality between men and women. We discovered, through the

efforts of Buddhist researchers, that the main problem lies in the institutional educational

system of Tibetan society and, mainly, in the religious educational system that deprived women

for centuries of the formal study that would enable and encourage them to be minimally on their

equal standing with men.

Keywords: Buddha Tārā; Mahāyāna; Geluk budhism tibetan; buddhist tantra.

RESUMEN

El presente trabajo tiene como objetivo comprender cómo se consolidan las narrativas del

surgimiento y transformaciones de Buda Tārā en el budismo tibetano Geluk, para investigar

qué grietas provoca este icono femenino tan importante en el budismo tibetano. Su surgimiento

se consolida en los movimientos del sistema tántrico, en la India, a partir del siglo. VI, donde

la contextualización se torna bastante compleja, considerando el rico entrecruzamiento cultural

de creencias del sistema tantra en la antigua sociedad india. Para analizar su surgimiento se

utilizará la metodología diacrónica que recurre a la arqueología y los textos canónicos. Para el

análisis conceptual y literario, la metodología será sincrónica, privilegiando la narrativa literaria

y sus transformaciones con lo que tenemos hoy. Para la interpretación iconográfica,

utilizaremos la metodología de mapeo propuesta por Gillian Rose, específicamente las

modalidades compositiva y social. Más allá de las fronteras indias, cuando Tārā se fortalece en

el Tíbet, es la gran precursora de un movimiento de popularidad en el ámbito conceptual y

revolucionario, que sitúa a la mujer en pie de igualdad al hombre en cuanto a sus logros y

conquistas. Unas décadas más tarde, su culto se instauró en la tradición Mahāyāna Geluk,

reafirmando la visión teológica de la ecuanimidad (upekṣā) y la compasión (karuṇā), según la

cual es necesario adentrarse en el camino del Bodhisattva, cuya práctica es el cultivo de la

bodhicitta: la mente que busca el despertar completo no solo para sí misma sino para el

beneficio de todos. En la teologia de los sistemas Vajrayāṇa, que es una rama del Mahāyāna,

las iconografias tibetanas de Tārā, en sus numerosas representaciones, elevan el estatus de Tārā

como Buda, reafirmando los fundamentos hermenéuticos de la tradicion Mahāyāna Geluk, pero

en la práctica la tradición Geluk no corresponde a establecer la igualdad entre hombres y

mujeres. Descubrimos, gracias al esfuerzo de investigadores budistas, que el principal problema

está radicado en el sistema educativo institucional de la sociedad tibetana y, principalmente, en

el sistema educativo religioso que privó a las mujeres durante siglos del estudio formal que les

permitiría y alentaría estar mínimamente en pie igualdad.

Palabras clave: Buda Tārā; Mahāyāna; Geluk budismo tibetano; tantra budista.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Foto de alguns símbolos vajras em metal do tantra budista ................................... 26

Figura 2 – Mapa de Maharashtra, Índia. Os nomes em vermelho são as cavernas, no centro

estão os complexos de Ajanta, Ellora e Aurangabad................................................................ 29

Figura 3 – Mapa da caverna de Ellora, Maharashtra, Índia, 1994 ............................................ 30

Figura 4 – Escultura de Tārā em pedra, painel na lateral da caverna de n. 6 do complexo de

Ellora ........................................................................................................................................ 30

Figura 5 – Escultura em pedra de Tārā e Avalokiteśvara. Caverna 8 em Ellora, séc. VI ........ 33

Figura 6 – Painel de escultura em relevo mostrando Avalokiteśvara no centro, Tārā a direta e

Jambhala à esquerda. Caverna 12, Ellora, Maharashtra, Índia ................................................. 34

Figura 7 – Maṇḍala de Tārā e suas 17 deidades ...................................................................... 35

Figura 8 – Pintura em tecido de origem tibetana, séc. XIII, Tārā Branca e Tārā Verde .......... 45

Figura 9 – Vinte e Uma Tārās de acordo com a tradição de Atiśa ........................................... 61

Figura 10 – Tārā Branca, pintura em tecido, budismo Tibetano .............................................. 66

Figura 11 – Relevo em pedra na caverna 90 de Kānheri, Maharashtra. No centro

Avalokiteśvara, Bhṛkuṭī à esquerda e Tārā à direita ................................................................. 67

Figura 12 – Do lado direito Tārā Vermelha no aspecto de salvadora e pacífica, do lado

esquerdo seu aspecto irado, ambas pertencentes ao sistema Vajrayāṇa ................................... 69

Figura 13 – Kurukullā com aspecto irado e nas mãos um arco e fecha ................................... 72

LISTA DE ABREVIATURAS

IAST International Alphabet of Sanskrit Transliteration

MMK Manjusri-mula-kalpa

TMK Tārā-mula-kalpa

VAT Vairocana-abhisaṃbodhi-tantra

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

1 CAPÍTULO I - O SURGIMENTO DAS NARRATIVAS DE BUDA TĀRĀ DA

ÍNDIA AO TIBETE: EVIDÊNCIAS ARQUEOLÓGICAS, CANÔNICAS E

LITERÁRIAS ........................................................................................................... 21

1.1 Os primeiros registros de Buda Tārā na Índia ...................................................... 22

1.1.1 Contextualizando os sistemas tântricos budistas na Índia .......................................... 23

1.1.2 O surgimento de Tārā em evidências arqueologicas .................................................. 28

1.1.2.1 Tārā e Avalokiteśvara ................................................................................................. 31

1.2 A identidade de Buda Tārā nas evidências textuais .............................................. 36

1.2.1 O Tārā-mula-kalpa ..................................................................................................... 36

1.2.2 A relação de Tārā com os textos Mahā-Vairocana-abhi-saṃbodhi-tantra (VAT) e o

Manjusri-mula-kalpa (MMK) .................................................................................... 38

1.3 A narrativa de Buda Tārā representada pela princesa Jñānacandrā ................. 39

1.4 Buda Tārā no contexto do Budismo tibetano em seu surgimento ....................... 43

1.4.1 Adoração e disseminação do culto de Tārā no Tibete ................................................ 45

1.5 Considerações do capítulo ....................................................................................... 48

2 CAPÍTULO II - TĀRĀ, A CENTRALIDADE DE UM ÍCONE FEMININO EM

MONASTÉRIOS MASCULINOS DA TRADIÇÃO GELUK TIBETANA ....... 50

2.1 A importância de Atiśa para a disseminação do tantra de Tārā no Tibete ........ 51

2.1.1 O budismo de Atiśa: como ele foi versado no tantra ................................................. 51

2.1.2 A devoção de Atiśa por Buda Tārā ............................................................................ 53

2.1.3 As contribuições de Atiśa para a preservação do budismo no Tibete em especial do

sistema Vajrayāṇa....................................................................................................... 56

2.1.3.1 Como Atiśa foi para o Tibete ..................................................................................... 56

2.1.3.2 Quais foram as contribuições de Atiśa no Tibete ....................................................... 57

2.2 As representações de Tārā no Tibete ...................................................................... 60

2.2.1 As Vinte e Uma Tārās ................................................................................................ 60

2.2.2 Tārā Verde .................................................................................................................. 62

2.2.3 Tārā Branca ................................................................................................................ 64

2.2.4 Tārā Vermelha ............................................................................................................ 67

2.3 Tsongkhapa e a tradição Geluk tibetana ............................................................... 73

2.3.1 O sistema Vajrayāṇa de Tsongkhapa e a linhagem de Buda Tārā ............................. 75

2.4 Considerações do capítulo ....................................................................................... 77

3 CAPÍTULO III - TĀRĀ: MULHERES NO BUDISMO TIBETANO ................ 79

3.1 Situando o protagonismo feminino no Budismo .................................................... 80

3.1.1 Qual a posição das mulheres no tempo do Buda histórico? ....................................... 81

3.1.2 A primeira comunidade monástica feminina.............................................................. 83

3.1.3 Protagonismo invisível ............................................................................................... 86

3.1.4 Monasticismo feminino tibetano ................................................................................ 90

3.2 Uma breve introdução dos estudos sobre as mulheres na sociedade tibetana .... 92

3.2.1 Mulheres na tradição Geluk ....................................................................................... 94

3.3 Tārā e seu protagonismo nas escolas do Budismo tibetano .................................. 95

3.3.1 As linhagens de Tārā nas principais escolas tibetanas ............................................... 97

3.3.1.1 Tradição Geluk ........................................................................................................... 98

3.3.1.2 Tradição Sakya ......................................................................................................... 100

3.3.1.3 Tradição Nyingma .................................................................................................... 101

3.4 Buda Tārā: uma representatividade para as mulheres budistas da tradição

Geluk........................................................................................................................ 102

3.4.1 Tārā: Um icone feminino como centro e sua inclusão soteriologica ....................... 103

3.4.2 De que forma a narrativa (ou narrativas) de Buda Tārā é um caminho para afirmação

das mulheres no budismo tibetano Geluk? ............................................................... 105

3.5 Considerações do capítulo ..................................................................................... 107

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 109

DEDICATÓRIA DE MÉRITOS ......................................................................................... 112

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 113

REFERÊNCIAS ICONOGRAFICAS ................................................................................ 120

GLOSSÁRIO ........................................................................................................................ 121

ANEXO A .............................................................................................................................. 126

ANEXO B .............................................................................................................................. 130

14

INTRODUÇÃO

Passados quinze anos do início de minha formação em teologia budista na Associação

Buddha-Dharma, pertencente a tradição Geluk2 tibetana e ainda não havíamos nos deparado

com a figura feminina no papel de professora, Lama ou guru. A exceção foi Jetsun Kushok, da

escola Sakya, que conheci em 2008, no início de meus estudos.3

Todavia, as deidades femininas, em suas inúmeras representações, sempre estiveram

muito presentes nos estudos e na biografia dos grandes estudiosos budistas, sempre homens;

mas o grande questionamento é sobre as mulheres: por que elas não estavam nas universidades

e nos monastérios budistas? Se no sistema Vajrayāṇa4 as mulheres são detentoras de grande

sabedoria, por que elas não ensinavam?

O budismo tibetano possui quatro grandes escolas dominantes: Geluk, Kagyu, Sakya e

Nyingma, cada uma com seu próprio grupo de tratados e hermenêutica do Código de Disciplina

Moral.5

Jetsun Kushok é uma professora leiga (não monástica), casada, mãe de cinco filhos, o

que difere muito da escola Geluk, na qual o Código de Disciplina Moral (Vinaya) exige que os

professores sejam monges celibatários. Na escola Sakya não há essa exigência; apesar de

existirem monastérios de monges e monjas celibatários/as.

Há um milênio a família tibetana Sakya Khon6 vem criando suas filhas para serem

adeptas da tradição de Jetsunmas,7 ainda que a liderança Sakya seja concedia aos homens.8

O irmão mais novo de Jetsun Kushok assumiu o trono como o 41º Sakya Trizin.9

Quando ele começou a ensinar no Ocidente, foi questionado por mulheres da razão de não haver

2 Atualmente a formação em Teologia Budista é ministrada no Instituto Pramāṇa, instituto mantido pela

Associação Buddha-Dharma 3 Nessa época, eu não tinha dimensão do quão rara era a oportunidade de receber a transmissão oral de

ensinamentos tão antigos, transmitidos por uma professora nativa tibetana, sobre uma deidade feminina. Foi a

primeira e única vez. 4 Vajrayāṇa é um sistema de meditação, algumas vezes chamado de Veiculo do Mantra, Mantrayana ou

Tantrayana. No budismo tibetano, o sistema Vajrayāṇa é uma especialização acadêmica separada devido a sua

complexidade (TSAI, P. M., 2021, p. 19). 5 TSAI, Plínio Marcos. Sermão do Grande Fundamento: Tradução Bilíngue e Comentário. Valinhos: ATG,

2019, p. 11. A partir daqui será enunciado como TSAI, 2019a, seguido de número de página. 6 A família Khon é uma das maiores famílias religiosas do Tibete, com tradição de linhagens ininterruptas de

contínua liderança pertencente à escola Sakya até os dias de hoje. 7 Mulheres veneráveis. 8 BENARD, Elisabeth A. The Sakya Jetsunmas: The Hidden World of Tibetan Female Lamas. California: The

Sapan Fund, 2021. A partir daqui será enunciado como BENARD, 2021, seguido de número de página. 9 Gongma Trichen Rinpoche, nascido em 1945.

15

professoras e, por esse motivo, ele convidou Jetsun Kushok para ser professora. Desde então

ela ensina em vários países e é considerada modelo de inspiração para mulheres budistas.

O fato de não haver mulheres como professoras nos dias atuais, e nem haver registros

históricos de sua existência na tradição Geluk foi o ponto de partida desta pesquisa.

Por essa razão, a pesquisa acadêmica foi e ainda é fundamental para o entendimento

sobre como se organizavam as práticas religiosas no contexto budista, e assim compreender o

papel da figura feminina em sua estruturação.

Nos deparamos com relatos de que a deidade feminina Tārā10 sempre esteve bastante

presente na tradição Geluk, no Tibete desde o século III d. C., ganhando certa relevância a partir

dos ensinamentos de Padmasanbhavam,11 um mestre tântrico indiano que foi para o Tibete no

séc. VIII d.C.

Somente a partir do séc. XI d.C. a popularidade de Tārā firmou-se através do erudito

Dīpaṅkara Śrījñāna (982-1054), conhecido como Atiśa no Tibete. Atiśa, além de ser um grande

devoto de Buda Tārā, estabelece o sistema Vajrayāṇa nos monastérios, por meio de textos

canônicos que levou da Índia para o Tibete, inclusive o texto canônico de Tārā, o Tārā-mula-

kalpa.

Je Tsongkhapa (1347-1419), fundador da tradição Geluk, é o autor de Lamrim Chenmo

- O Grande Tratado do Caminho Gradual da Iluminação12, que contém todos os estágios do

caminho da plena iluminação ensinado pelo Buda histórico.13

Tsongkhapa tem Atiśa como um dos seus professores. Em sua obra principal (Lamrim

Chenmo), ele dedica o capitulo inicial para Atiśa, destacando suas qualidades, seus feitos e suas

obras. Tsongkhapa ressalta o quanto Atiśa foi importante para o budismo no Tibete,

restabelecendo as práticas do sistema budista que haviam desaparecido, revigorando aquelas

que permaneceram e, principalmente, removendo aquelas práticas que estavam corrompidas

(TSONGKHAPA, 2020, p. 74).

Nesse contexto, práticas corrompidas são aquelas que foram constituídas erroneamente

nos tantras e que causaram danos às práticas da Disciplina Moral no budismo tibetano. Isso

10 Algumas vezes usarei o nome de Buda na frente de Tārā, apesar de alguns textos tibetanos a chamarem de

Bodhisattva, empregando o titulo de Āryā Tārā (Āryā significa um ser nobre), mas em seu texto canônico ela é

referenciada como Bhagavatī, que significa Buda em sânscrito. Tārā em sânscrito significa aquela que liberta,

no budismo tibetano “Drolma” (སལ་མཨ་, sgrol ma) que significa salvar, resgatar, libertar. 11 A escola Nyingma é a mais antiga das escolas tibetanas, possui muitos textos de professores que receberam a

transmissão oral direta de Padmasambhava, como a linhagem Dzogchen, que tem suas origens em Garab

Dorje através de uma transmissão direta de Padmasambhava. 12 TSONGKHAPA, Lobsang Dragpa. Lamrim Chenmo: parte I. Tradução: Plinio Marcos Tsai. Valinhos: BUDA,

2020. Será enunciado como TSONGKHAPA, 2020, seguido de número de página. 13 Buda histórico por se tratar do Buda Śākyamuni ou Buda Gautama.

16

explica por que os ensinamentos do Vajrayāṇa na tradição Geluk são tão fechados e/ou secretos,

tema a ser explorado no capítulo II.

Um fato curioso é que, para os biografos de Atiśa, Tārā é presente em toda experiência

de vida dele, mas Tsongkhapa, ao narrar a vida de Atiśa, faz apenas uma citação pontual sobre

Tārā, e em outra passagem ele oculta o nome dela ao dizer: “Seus gurus e deidades escolhidas,

ora em pessoa e em sonhos...” (TSONGKAPA, 2020, p. 64). A deidade escolhida é Tārā.

No capítulo I, é apresentado um panorama das narrativas literárias de Tārā, em seu

surgimento, de forma que as interpretações teológicas (que dão sustentação às narrativas)

levantam importantes metodologias de ensinamentos colocados pelo Buda histórico. A

genealogia das narrativas de Tārā a coloca em alto patamar litúrgico, com seu culto e rituais

próprios, que não só não a restringem aos herdeiros tibetanos, ou a “tibetologia”, mas traça

sólidos caminhos da tradição budista em seu surgimento na Índia e seu percurso e permanência

até o Tibete.

A fim de buscar evidências do processo de surgimento das narrativas, foram trabalhadas

três frentes de pesquisa: (1) contextualização dos sistemas tântricos budistas na Índia, onde

ocorre uma apresentação e análise das evidências arqueológicas que datam suas primeiras

aparições nas cavernas na Índia; (2) análise das evidências textuais através de fontes canônicas,

em especial o texto raiz de Tārā , o Tārā-mula-kalpa (TMK); e (3) a análise interpretativa,

através de fontes literárias que confirmam a expansão do culto a Tārā para além das fronteiras

indianas, em especial a tibetana.

As evidências arqueológicas datam e reescrevem as narrativas no campo visual,

imaginário e conceitual, trazendo informações que confirmam as evidências textuais e os

conceitos levantados ao longo dos séculos. Para análise das imagens, usaremos a metodologia

de Gillian Rose,14 especificamente a modalidade composicional, que analisa, quando uma

imagem é feita, qual é a sua organização, seu gênero e sua relação intertextual. Também

usaremos a modalidade social que diz respeito às relações políticas, institucionais e práticas

acerca das imagens, o que nos responde (quando possível) para quem foram feitas, e quais os

motivos.

Já na análise interpretativa literária, Tārā é grande percursora de um movimento de

popularidade em diversas esferas: conceitual, revolucionária e de reafirmação das bases

14 ROSE, Gillian. Visual Methodologies. London: Thousand Oaks; New Delhi: Sage Publications, 2002. A partir

daqui será enunciado como ROSE, 2002, seguido de número de página.

17

hermenêuticas da tradição Mahāyāna.15 Nessa narrativa Tārā tem um importante destaque: ela

foi a primeira a buscar o completo despertar no corpo feminino e fez o voto de sempre renascer

como mulher, para provar o conceito de equanimidade proposto pelo Buda, que diz que todos

os seres têm igual capacidade para realizarem a plena iluminação.

Por fim, na última parte do capítulo, é apresentado o campo da representatividade de

Tārā no budismo tibetano em seu surgimento, com uma breve contextualização histórico-social

de Tārā no Tibete e sobre como o culto foi difundido pelo movimento social religioso ali

estabelecido, que dentro dos seus sistemas potencializa as qualidades e dá vida à prática

religiosa e a seus simbolos no Vajrayāṇa.

O capítulo II é todo dedicado a mostrar a centralidade de Tārā nos monastérios tibetanos.

A primeira parte trata, desde a chegada de Atiśa ao Tibete até sua permanência, dos motivos

que o levaram a ir para lá, e da sua relação de devoção com Buda Tārā como fator motivador

principal. Também buscamos demonstrar as contribuições necessárias de Atiśa na preservação

do sistema Vajrayāṇa no Tibete, implicações essas que serão de grande referência na tradição

Geluk.

Na segunda parte do capítulo II, veremos como Tārā se torna uma figura multivalente e

multifuncional dentro da evolução e mudança no quadro de referência do budismo tibetano, a

partir da análise iconográfica das representações mais populares: As Vinte e Uma Tārās, Tārā

Verde, Tārā Branca e Tārā Vermelha. Aqui mais uma vez usaremos modalidades visuais de

Gillian Rose (2002).

Os próximos dois tópicos do capítulo II são dedicados à tradição Geluk, primeiramente

uma breve contextualização histórica de Je Tsongkhapa, da fundação da tradição Geluk e da

relação de Tsongkhapa com Tārā e o budismo Vajrayāṇa. E, por fim, na última parte do

capítulo, uma exposição sobre a permanência do culto de Tārā nos monastérios da tradição

Geluk tibetana.

A partir da análise do texto canônico Therīgāthā, que traça a historia das primeiras

monjas na época do Buda, o capítulo III tem como objetivo analisar a importância das narrativas

posteriores de e sobre Buda Tārā como caminho para a afirmação das mulheres no budismo

tibetano Geluk, na tentativa de olhar para a vida da mulher budista e reconstruir o contexto

histórico-social-religioso na época do Buda, tanto para a comunidade monástica feminina

quanto para as mulheres leigas.

15 O sistema Mahāyāna é a base hermenêutica do budismo tibetano, tem como objetivo a busca do completo

despertar pelo cultivo da bodhicitta, ou seja, a mente que busca o completo despertar não só para si mesmo, mas

também para benefício de todos.

18

Primeiramente veremos uma exposição sobre o papel das mulheres na época do Buda e

a luta dessas mulheres pela formação da primeira comunidade de monjas budistas. Para isso,

utilizaremos a pesquisa de Nirvana França,16 monja budista brasileira da tradição Geluk, que

em sua dissertação traz importantes informações referente aos problemas enfrentados no início

da formação das primeiras comunidades femininas e possíveis indícios de corrupção nos

preceitos chamados de Gurudharmas.

Também Plínio Tsai17 trata dos contextos histórico-sociais e conceitos propostos do

Buda, na tentativa de equiparar homens e mulheres. Patricia Tsai 18 também nos ajuda a

identificar os problemas que o Buda enfrentava na organização social baseada nos textos

sagrados do Vedas, chamado Manusmṛiti.

Sobre a atuação das mulheres nas esferas sociais, tanto as narrativas arqueológicas

quanto as narrativas literárias, apresentam indícios de mulheres patronas que financiavam as

comunidades. E, ainda no mesmo tópico, ao analisar o monasticismo feminino tibetano, em

números e estatísticas, veremos a desigualdade no número de monjas em relação aos

monastérios masculinos. E, ao mesmo tempo, a significativa quantidade de mulheres na

tradição Geluk tibetana, que é a segunda maior entre as quatro escolas dominantes.

Dedicaremos a segunda parte a um levantamento sobre os estudos das mulheres na

sociedade tibetana, logo depois do recorte do papel das mulheres na tradição Geluk, a partir dos

pontos de vista das pesquisadoras budistas que discutem se os antigos modelos religiosos

traduzem a efetiva necessidade das mulheres tibetanas, apontando para um problema maior: a

defasagem educacional, tanto pública quanto privada e principalmente monástica. Já na tradição

Geluk será apresentado um demonstrativo sobre as praticantes monjas na atualidade.

Na terceira parte do capítulo, traremos um breve levantamento histórico do

protagonismo de Tārā nas escolas do budismo tibetano, além de um olhar interseccional as

mulheres professoras e detentoras da linhagem de Tārā e outras deidades femininas, fazendo,

sempre que possível, uma comparação com a tradição Geluk.

16 FRANÇA, Nirvana de O. M. G de. Gurudharmas: Processos de construção e corrupção do canon referente as

obrigações de monjas budistas iniciantes. 2020. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade

Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2020. A partir daqui será enunciado como FRANÇA, 2020,

seguido de número de página. 17 TSAI, Plinio Marcos. Sermão do Grande Fundamento: Tradução Bilingue e Comentário. Valinhos: BUDA,

2019a. A partir daqui será enunciado como TSAI, 2019a, seguido de número de página. 18 TSAI, Patricia Guernelli Palazzo. O Conceito de Responsabilidade Universal: uma análise do conceito pela

Tradição Budista Mahāyāna Geluk no XIV Dalai Lama. 2021. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião)

– Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2021. A partir daqui será enunciado como

TSAI, P. P., 2021, seguido de número de página.

19

E, por fim, no quarto tópico, faz-se uma reflexão com um olhar para as narrativas de

Tārā na perspectiva da pesquisadora indiana Gayatri Spivak 19 sobre os seguintes pontos:

alteridade e as transformações que as narrativas literárias sofrem por força de implicações

políticas, culturais e dentre outras. A partir disso, abre-se uma discussão sobre a centralidade

de Tārā no sistema budista Mahāyāna e sua inclusão soteriologica apresentada pelo pesquisador

Bee Scherer20 em seus estudos teológicos.

Com relação às traduções, foram feitas traduções livres, não técnicas. Para línguas

instrumentais, foi optado pelo uso dos termos técnicos da língua sânscrita e de alguns nomes

próprios e títulos na língua tibetana, por essas línguas serem consideradas sagradas para o

budismo.

O uso dos principais termos em sânscrito é necessário porque os textos canônicos da

tradição Mahāyāna foram escritos nesta lingua e são mantidos até hoje em diversas escolas do

budismo, inclusive sob a perspectiva acadêmica na Sinologia Budistas desde o séc. XVI na

Europa e Budologia ou Estudos Budistas (Buddhology/Buddhist Studies), no início do séc. XX.

Os termos técnicos foram grafados em itálico de acordo com o sânscrito romanizado

International Alphabet of Sanskrit Transliteration (IAST) e o The Princeton Dictionary of

Buddhism.

Com relação ao tibetano, apesar de as fontes de pesquisas não usarem o tibetano

romanizado, fiz a opção de trazer alguns termos e nomes na língua original buscando prezar

pela preservação da língua e cultura tibetana, pelos motivos que foram apresentados acima.

As grafias nos textos em inglês usam o sistema de transliteração Turrel Wylie, com

algumas exceções de nomes de autores tibetanos, que são escritos de maneira fonética, e, dessa

forma, não há como passar para a língua original.

Em relação ao nome Buda, fiz questão de usar a palavra escrita em português como

reconhecida no nosso alfabeto, ao contrário de Buddha, em sânscrito, como é usualmente escrito

nas academias de estudos budistas ocidentais. Os nomes de escolas e tradições e nomes

sagrados ficarão com a primeira letra maiúscula e sem itálico. Nas citações diretas, foi mantida

a grafia de acordo com o original relacionado.

19 SPIVAK, Gayatri. Quem reivindica alteridade? In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Tendências e

Impasses – O Feminismo como Crítica da Cultura. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1994. A partir daqui será

enunciado como SPIVAK, 1994, seguido de número de página. 20 SCHERER, Bee. Buddhist Tantric Thealogy? The Genealogy and Soteriology of Tārā. Buddhist-Christian

Studies, U.K., Canterbury Christ Church University, 2018. A partir daqui será enunciado como SCHERER,

2018, seguido de número de página.

20

Fizemos uma lista de abreviações e um glossário ao final do texto, para que a leitura

flua melhor, principalmente em relação aos nomes de textos canônicos, por serem muito longos

e se repetirem muitas vezes.

Ainda em relação aos termos técnicos, eles serão explicados brevemente no corpo do

texto ou na referência de nota de rodapé, quando necessário.

21

1 CAPÍTULO I - O SURGIMENTO DAS NARRATIVAS DE BUDA TĀRĀ DA ÍNDIA

AO TIBETE: EVIDÊNCIAS ARQUEOLÓGICAS, CANÔNICAS E LITERÁRIAS

Homenagem a você, Tārā, a Buda,

Quem elimina as visões errôneas, ignorância e letargia,

A sabedoria suprema que permeia todos os objetos do conhecimento,

Ela que alcançou a excelência perfeita completa ATIŚA, verso 0121

No presente capítulo, apresentamos um panorama das narrativas de Buda Tārā em seu

surgimento e interpretações teológicas, levantando importantes metodologias de ensinamentos

colocados pelo Buda histórico que dão sustentação às narrativas. Veremos que a genealogia

soteriologica de Tārā a coloca em mais alto patamar litúrgico, com seu culto e rituais proprios,

que não só a estringe aos herdeiros tibetanos, mas traçam sólidos caminhos da tradição budista

em seu surgimento da Índia ao Tibete.

Este capítulo é composto de quatro partes: (1) os primeiros registros de Tārā na Índia;

(2) a identidade de Tārā nas evidências textuais; (3) a narrativa de Tārā representada pela

princesa Jñānacandrā; e (4) Tārā no contexto do budismo tibetano em seu surgimento.

A proposta dessa divisão em tópicos foi buscar evidências do processo de surgimento

das narrativas em três frentes correspondentes a cada tópico do capítulo: (1) contextualização

dos sistemas tântricos budistas na Índia, apresentação e análise das evidências arqueológicas,

que datam suas primeiras aparições nas cavernas na Índia; (2) análise das evidências textuais

através de fontes canônicas, em especial o seu texto raiz o Tārā-mula-kalpa; e (3) a análise

interpretativa, através de fontes literárias que confirmam a expansão do culto a Tārā para além

das fronteiras indianas, em especial a tibetana.

Na primeira parte, as evidências arqueológicas datam e reescrevem as narrativas no

campo visual, imaginário e conceitual, trazendo informações que confirmam as evidências

textuais e os conceitos levantados ao longo dos séculos. Como segue:

21 Tradução nossa. Prece de Atiśa para Tārā como as Três Joias, traduzido para o inglês por James B. Apple, 2019,

p. 233:

“Homage to you, Tārā, the Buddha,

Who eliminates wrong views, ignorance, lethargy,

The supreme wisdom pervading all objects of knowledge,

She who has attained complete perfect excellence.”

22

O complexo de cavernas de Ellora, assim como os de Ajanta e Aurangabad (todos

situados na região de Maharashtra), representa um achado arqueológico bastante

importante para o estudo da tradição budista indiana. Importante, por ser um massivo

complexo religioso, com divisão por cavernas, cada uma delas patrocinada por setores

abastados da sociedade indiana. Mas, fundamentalmente importante, pelo valor da

compreensão do desenvolvimento humano em todas as suas dimensões para a época,

que esse achado arqueológico oferece. (KAEFER; TSAI, 2020, p. 17-1822).

Já a análise interpretativa literária, representada pela princesa Jñānacandrā (Yeshe pë

Dawa23 em tibetano), na terceira parte do capítulo, é grande percursora de um movimento de

popularidade de Tārā em diversas esferas: conceitual, revolucionária e de reafirmação das bases

hermenêuticas da tradição Mahāyāna: o caminho ao completo despertar do Bodhisattva que tem

como objetivo libertar todos os seres sencientes. Nessa narrativa, a princesa Jñānacandrā tem

um importante destaque: ela foi a primeira a buscar o completo despertar no corpo feminino e

fez o voto de sempre renascer como mulher para provar o conceito de equanimidade, que diz

que todos os seres são iguais perante os sofrimentos existenciais e realizações.

Por fim, na última parte do capítulo, é apresentado o campo da representatividade de

Tārā no budismo tibetano em seu surgimento, com uma breve contextualização histórico-social

de Tārā no Tibete e como o culto foi difundido pelo movimento social religioso ali estabelecido,

que dentro dos seus sistemas potencializa as qualidades e dá vida à prática religiosa e seus

simbolos no Vajrayāṇa.

Vajrayāṇa é um sistema de meditação que trabalha a imagem não discursiva pela

construção imaginativa de um objeto visual, são construções simbólicas sob aspectos

que servem de plataforma de identificação de si mesmo, das relações que o meditador

faz com a realidade, de suas interpretações, em outras palavras, funciona como

espelho. (TSAI, 2017a, p. 27).

O Vajrayāṇa no budismo tibetano é uma especialização acadêmica separada, devido à

sua complexidade.24 E Tārā está inserida nesse sistema acadêmico tibetano.

1.1 Os primeiros registros de Buda Tārā na Índia

22 KAEFER, Jose Ademar; TSAI, Patricia Guernelli Palazzo. Asherah e Buddha Tārā: uma associação possivel?

Mandragora, v. 26, n. 1, p. 7-28, 2020. A partir daqui será enunciado como KAEFER; TSAI, 2020, seguido

de número de página. 23 Jñāna: Yeshe e candrā: Dawa. ཡཤ་དཝ. Lua da Sabedoria que é equivalente a Jñānacandrā. 24 Ver em TSAI, Plinio Marcos. Introdução. In: VASUBANDHU, Mahapandita. Tratado da Refutação do

Personalismo. Valinhos: BUDA, 2021, p.19. A partir daqui será enunciado como TSAI, P.M.,2021, seguido

de número de página.

23

1.1.1 Contextualizando os sistemas tântricos budistas na Índia

Quando se trata de religião e esoterismo na Índia, a palavra tantra é bem comum, até um

tanto familiar para os interessados pelo tema no Oriente. Mas, afinal, o que significa tantra?

Para o budismo a palavra tantra tem o significado de iluminado ou contínuo (BUSWELL;

LOPEZ, 2014, p. 893). No dicionário The Princeton Dictionary of Buddhism (2014), o termo

no sânscrito deriva da raiz √tan (esticar ou tecer), tendo o sentido de arranjo ou padrão de algo;

é usado para nomear manuais de tais arranjos, não apenas para rituais do budismo ou de

religiões indianas, de forma mais ampla, mas também pode ser usado em contextos militares e

políticos. Além disso,

[...] o termo é notoriamente difícil de definir. Pode-se dizer, no entanto, que o tantra

não carrega a conotação de todas as coisas esotéricas e eróticas que adquiriu no

Ocidente moderno. No budismo, o termo tantra geralmente se refere a um texto que

contém ensinamentos esotéricos, muitas vezes atribuidos a ŚĀKYAMUNI ou outro

buda. Mesmo isso, no entanto, é problemático: existem textos esotéricos que não

carregam o termo tantra em seu titulo (como o VAJRAŚEKHARASŪTRA), e há

textos não-esotéricos em cujo título o termo tantra aparece (como o

UTTARATANTRA). (BUSWELL; LOPEZ, 2014, p. 893, tradução nossa25).

Nesse mesmo sentido English26 acrescenta:

Uma definição de tantra é elucidar. Vaiṣṇavismo, Śaivismo e outras religiões indianas,

incluindo o budismo, todos desenvolveram ricas tradições tântricas, e o termo denota

amplamente determinados tipos de rituais empregados dentro de seus vários cultos de

deidades. "Tantra" também se refere aos diversos corpos da literatura dentro dessas

tradições: textos bíblicos e exegéticos que fornecem instruções para as realizações,

tanto espirituais quanto mundanas. (2002, p. 44, tradução nossa27).

Ao longo dos séculos, várias religiões indianas desenvolveram tradições do sistema

nomeado como tantra, e a tradição tântrica budista evoluiu na Índia a partir do séc. II, por mil

anos, um processo que continuou no Tibete e outras regiões por mais mil anos (ENGLISH,

25 Beyond this, the term is notoriously difficult to define. It can be said, however, that tantra does not carry the

connotation of all things esoteric and erotic that it has acquired in the modern West. In Buddhism, the term

tantra generally refers to a text that contains esoteric teachings, often ascribed to ŚĀKYAMUNI or another

buddha. Even this, however, is problematic: there are esoteric texts that do not carry the term tantra in their title

(such as the VAJRAŚEKHARASŪTRA), and there are nonesoteric texts in whose title the term tantra appears

(such as the UTTARATANTRA). 26 ENGLISH, E. Vajrayogini: Her visualizations, rituals, & forms: a study of the cult of Vajrayoginī in India.

Massachusetts: Wisdom Publication, 2002. A partir daqui será enunciado como ENGLISH, 2002, seguido de

número de página. 27 A pithy definition of tantra is elusive. Vaiṣṇavism, Śaivism, and other Indian religions including Buddhism all

developed rich tantric traditions, and the term broadly denotes particular types of ritual employed within their

various deity cults. “Tantra” also refers to the various bodies of literature within these traditions: scriptural and

exegetical texts that provide instructions for attainments, both spiritual and mundane.

24

2002, p. 44). No entanto, a principal produção de textos tântricos ocorreu na Índia entre os

séculos III e XII d.C.

O culto de Tārā é considerado um tantra, com manuais e rituais proprios (sādhanas).

Ele se consolida nos movimentos de principal produção dos tantras na Índia (séc. V ao VIII),

tornando-se parte do sistema religioso indiano medieval (LAM, 2014, p. 165). Com isso, a

contextualização torna-se bastante complexa, considerando o rico entrecruzamento cultural de

crenças desse sistema na tão antiga sociedade indiana.

Os três textos tântricos budistas vinculados ao surgimento de Tārā na Índia são:

Manjusri-mula-kalpa (MMK), Mahā-Vairocana-abhi-saṭbodhi-tantra (VAT) e Tārā-mula-

kalpa (LANDESMAN, 2020, p. 33), textos que possuem ritos e manuais próprios de prática da

tradição tântrica budista. Os três são considerados textos canônicos que fornecem instruções

para as realizações (ENGLISH, 2002, p. 44).

Algumas vezes as realizações dos tantras budistas são referenciadas apenas com o

“objetivo ganhar poderes (siddhi), tanto mundanos quanto supramundanos” (BUSWELL;

LOPEZ, 2014, p. 894), mas este não é o objetivo principal. Esses poderes estão relacionados às

práticas de aceleração pela transformação do apego, quando combinados com os ensinamentos

da interdependência ou investigação da realidade (ensinamentos contidos nos sutras), levam os

praticantes ao completo despertar. Já os poderes supramundanos são para que o ser

completamente despertado possa convencer as pessoas e os deuses por meio de uma pedagogia

da recompensa do poder, que nem sempre é necessária, pois é possível realizar a plena

iluminação sem nenhum siddhi.

É no sistema Mahāyāna que o tantra de Tārā se desenvolve nas tradições do budismo

tibetano. Neste caso, o termo tantra é usado para diferenciar do sutra (Mahāyānasutras), sendo

o veículo do sutra os ensinamentos do Buda (buddhavacana) voltado ao treinamento da

realidade convencional e última (sunyatā) das perfeições (pāramitāyāna), combinado com as

práticas de aceleração ao Veiculo do Vajra (Vajrayāṇa):

Embora se leia frequentemente em fontes ocidentais sobre os três veiculos do budismo

– o Hīnayāna, Mahāyāna e o Vajrayāna – a distinção entre o Mahāyāna e o Vajrayāna

é menos clara, pelo menos polemicamente falando, do que a distinção entre o

Mahāyāna e o Hīnayāna, uma vez que os seguidores do Vajrayāna se consideram

como seguindo o caminho para o estado de Buda estabelecido nos sutras Mahāyāna,

embora por um caminho mais curto. Assim, em algumas exposições, diz-se que o

Mahāyāna inclui dois veiculos, o pāramitāyāna, ou seja, o caminho para o estado de

Buddha seguindo as seis perfeições (pāramitā) conforme estabelecido nos sutras

25

Mahāyāna e o mantrayāna ou vajrayāna, isto é, o caminho para o estado de Buda

estabelecido nos tantras. (BUSWELL; LOPEZ, 2014, p. 514, tradução nossa28)

E, acrescenta que

[...] foi dito que o Mahāyāna foi dividido no pāramitānaya, o "modo das perfeições"

estabelecido nos sūtras Mahāyāna, e o mantrayana, o "modo dos mantras"

estabelecido nos tantras. Estes dois também são, embora menos comumente,

conhecidos como sūtrayāna e o TANTRAYĀNA. (BUSWELL; LOPEZ, 2014, p. 514,

tradução nossa29).

As seis perfeições ou superações, chamada de pāramitā em sânscrito (por isso o termo

pāramitānaya), são práticas do caminho do Bodhisattva: generosidade (dāna), disciplina (sila),

paciência (kṣānti), esforço (virya), meditação ou concentração (samādhi ou dhyāna) e sabedoria

(prajnā). No Mahāyāna há o Dasabhumikasutra, texto que lista dez perfeições, nele inclui as

seis precedentes e quatro adicionadas: método ou meios habilidosos (upāya), votos ou aspiração

(praṇidhāna), poder (bala), e conhecimento direto (jnāna). (BUSWELL; LOPEZ, 2014, p.

1361).

Sobre o termo Vajrayāṇa ou Veículo do Vajra, é chamado assim por ser seu símbolo

principal ser o vajra (figura a seguir):

28 Although one often reads in Western sources of the three vehicles of Buddhism—the hīnayāna, Mahāyāna, and

VAJRAYĀNA—the distinction of the Mahāyāna from the vajrayāna is less clear, at least polemically speaking,

than the distinction between the Mahāyāna and the hīnayāna, with followers of the vajrayāna considering

themselves as following the path to buddhahood set forth in the Mahāyāna sūtras, although via a shorter route.

Thus, in some expositions, the Mahāyāna is said to subsume two vehicles, the PĀRAMITĀYĀNA, that is, the

path to buddhahood by following the six perfections (PĀRAMITĀ) as set forth in the Mahāyāna sūtras, and the

MANTRAYĀNA or vajrayāna, that is, the path to buddhahood set forth in the tantras. 29 [..] it was said that the Mahāyāna was divided into the pāramitānaya, the “mode of the perfections” set forth in

the Mahāyāna sūtras, and the mantranaya, the “mode of the mantras” set forth in the tantras. These two are also,

although less commonly, known as the sūtrayāna and the TANTRAYĀNA.

26

Figura 1 – Foto de alguns símbolos vajras em metal do tantra budista

Fonte: Himalayan Art Resources – himalayanart.org

A palavra vajra é um termo em sânscrito que significa diamante ou raio, um símbolo de

poder por sua indestrutibilidade e imutabilidade (BUSWELL; LOPEZ, 2014, p. 2322).

Analisando a figura 1 (acima), tanto na parte de cima quanto na de baixo há uma ponta sendo

sustentada por quatro hastes, que representam as Quatro Nobres Verdades30, a soma das duas

partes (em cima e debaixo) representam o Caminho Óctuplo31. No vajra duplo (imagem 2

dourada), é normalmente representado na classe de tantra chamada anuttarayoga, o número de

hastes somados são 8 em cada ponta, somados são 32 (sendo as 16 características das Quatro

Nobres Verdades e 16 tipos de sunyatā). Este número representa o desdobramento das 32

características das Quatro Nobres Verdades, assim como na imagem 3, são oito hastes em cada

ponta, somados são 16, também relacionado as 16 características das Quatro Nobres Verdades.

Porém, há outros significados transmitidos de professor para aluno via transmissão oral, que

são parte do treinamento de meditação que une os ensinamentos do Sutrayana e do Vajrayāṇa.

30 1) Verdade do Sofrimento (duḥkha-satya) com suas quatro características: dor (dukhah), impermanência

(anitya), vacuidade (sunyatā) e inexistência de um eu imutável (anatman); 2) A Verdade da Origem (samudaya-

satya) com suas quatro características: causa (hetu), originação (samudgaya), surgimento intenso (prabhava), e

condição (pratityaya); 3) A Verdade da Cessação (nirodha-satya) com suas quatro características: paz (ksanta),

cessação (nirodha), perfeição (pranita) e verdadeira paz (nihsarana); 4) A Verdade do Caminho (marga-satya)

com suas quatro características: caminho (marga), razão apropriada (nyaya), efetividade (pratipatti), e

verdadeira libertação (nairyanika). (TSAI, 2017c, p. 29 e 35). 31 O Caminho Octuplo do Buddha é ensinado dentro do contexto do Sūtra (Sutrayana) das Quatro Verdades

Superiores, e esse caminho é o que levaria para fora dos sofrimentos do saṃsāra, sendo os oito: entendimento

correto, pensamento correto, linguagem correta, ação correta, modo de vida correto, esforço correto, atenção

plena correta e meditação correta (TSAI, 2017c, p. 30 e 31).

27

No tantra budista há muitas simbologias. Como explicado, o vajra é a simbologia

principal por fornecer instruções para as realizações (através dos métodos meditativos), tanto

espirituais quanto mundanas (ENGLISH, 2002, p. 44), sendo as mundanas as realizações de

poder (siddhi). Tamanha complexidade que os “tibetanos separam os seus estudos acadêmicos

em Sūtra e Tantra, sendo reservado para o Vajrayāṇa um sistema universitário separado, por

força da especialização, que o sistema tântrico exige.” (TSAI, P.M., 2021, p. 19).

Há ainda, no Vajrayāṇa, dois sistemas que são chamados de “tantra pai” e “tantra mãe”,

distinção que implica superioridade quando relacionada ao tantra mãe por causa do útero

materno de todos os Buddhas, que é a mente de clara luz (prabhāsvaracittah, འད་གསལ་ - ‘od gsal

sems).32 No entanto, o budismo tibetano Tārā está inserida e se solidifica em ambos (pai e mãe).

Os textos vinculados a Tārā foram incluidos em várias seções do canone tibetano, o

Kangyur (bKa''gyur), classificando seu culto nas três classes do tantra e incluindo os nos

tantras-chefes (rgyud. gtso che ba): kriyā, caryā, yoga e anuttarayoga-tantra (LANDESMAN,

2020, p. 55).

O mais popular de seu culto é no kriyā tantra, um tantra ação33, ou seja, voltado para a

prática externa, como por exemplo recitação de mantras, prática de mudrās 34 e atitudes

corporais como abluções purificatórias e alimentos específicos. Envolve também as práticas

como de se vestir, escovar os dentes, o cultivo de higiene corporal, o uso de perfumes e adornos

para o corpo, como brincos, pulseiras etc. São práticas comuns e por isso podem ser explicadas

para praticantes iniciantes, apesar de também exigir um ritual de iniciação (abhiṣeka), não são

reservados ou secretos. Já os tantras que exigem pré-requisito para prática, designados nas

classes caryā, yoga e anuttarayoga-tantra, são para praticantes mais avançados, concedidos

dentro de um sistema universitário para a formação dos futuros doutores (geshes), dentro dos

monastérios.

Neste contexto, então, o termo "tantra" é frequentemente usado por exegetas tântricos

em contraste com "sūtra", que é levado a significar o corpus de ensinamentos

exotéricos do Buda. Para aqueles que aceitam os tantras como a palavra do Buda, o

termo "sūtras e tantras" se referiria, assim, a totalidade dos ensinamentos do Buda. O

corpus de tantras foi eventualmente classificado pelos exegetas budistas indianos

tardios em uma série de esquemas, o mais famoso dos quais a divisão de quatro classes

em KRIYĀTANTRA, CARYĀTANTRA, YOGATANTRA e

32 Cf. instruções do Prof. Plínio Tsai na banca de defesa. 33 O uso de ações sensuais como olhar, toque, beijo e união sexual são totalmente proibidos. 34 mudrā em sânscrito significa sinal, mas no contexto do budismo são gestos de mãos e braços representados nas

práticas e rituais de oferendas. Ver glossário.

28

ANUTTARAYOGATANTRA. (BUSWELL; LOPEZ, 2014, p. 894, tradução

nossa35).

O tantra ação (kriyā) está muito voltado à prática externa, que são ações para o cultivo

de virtudes para o próprio benefício e dos outros, perspectiva muito particular do praticante

Bodhisattva nas tradições do budismo Mahāyāna. Isso explica a popularidade de Tārā no Tibete

desde seu surgimento, aproximando-a das virtudes de compaixão (karuṇā) e mãe protetora.

1.1.2 O surgimento de Tārā em evidências arqueologicas

De acordo com os achados arqueológicos budistas, os primeiros registros de

representações de Tārā na arte indiana foram localizados em Maharashtra na Índia a partir do

séc. V ao VIII d.C. (GHOSH, 1980, p. 6). Na figura a seguir, do mapa de Maharashtra, é

possível visualizar as cavernas em vermelho, sendo que dos quatro complexos de cavernas

existentes nesta região, três deles (Ellora, Ajanta e Aurangabad) trazem um importante achado

arqueológico sobre Tārā.

No entanto, de acordo com uma estimativa aproximada, existem quase 1200 cavernas

de tamanhos variados em toda Maharashtra, das quais quase 900 pertencem ao budismo.36

35 In this context, then, the term “tantra” is often used by tantric exegetes in contrast to “sūtra,” which is taken to

mean the corpus of exoteric teachings of the Buddha. For those who accept the tantras as the word of the Buddha,

the term “sūtras and tantras” would thus refer to the entirety of the Buddha’s teachings. The corpus of tantras

was eventually classified by late Indian Buddhist exegetes into a number of schemata, the most famous of which

is the fourfold division into KRIYĀTANTRA, CARYĀTANTRA, YOGATANTRA, and

ANUTTARAYOGATANTRA. 36 Informação extraída no site do Ministério da Cultura do Governo Indiano, na página de arqueologia na Índia.

Disponível em: https://asi.nic.in/ellora-caves/. Acesso em: 16 set. 2021.

29

Figura 2 – Mapa de Maharashtra, Índia.

Fonte: Maps of India – mapsofindia.com

Os nomes em vermelho são as cavernas, no centro estão os complexos de Ajanta, Ellora

e Aurangabad, o número de cavernas budistas nessa região se deu devido ao local de morada

de monges budistas e de contemplação religiosa, uma vez que havia patrocínio no local para

este fim:

As cavernas do complexo budista começaram a ser escavadas no séc. II a.C.,

tornando-se tanto locais para a contemplação religiosa quanto morada para os monges

que ali viviam e trabalhavam, ao longo de vários séculos. (O complexo contém

imagens, personagens da tradição budista, bem como monumentos funerários

(stupas), simbolos importantes para o Budismo. Cerca de trinta cavernas foram

escavadas e esculpidas pelos monges budistas, que eram patrocinados para esse fim.

Porém, por motivos politicos e financeiros, houve paralisação e suspensão das obras

no ano de 480, restando algumas cavernas sem qualquer conclusão. (KAEFER; TSAI,

2020, p. 18).

O complexo de Ellora é importante pois, apesar de ter um número pequeno de esculturas

budistas, é nele que foi encontrada a primeira imagem de Tārā. Podemos ver (figura a seguir)

um conglomerado de cavernas37, porém apenas aquelas de 1 a 12 são budistas, grande parte é

associada ao hinduísmo (ou bramanismo), e a parte menor ao jainismo.

37 No total, existem quase 100 cavernas neste complexo, das quais 34 cavernas são famosas (apenas essas

mostradas na figura 3). Informação extraída no site do Ministério da Cultura do Governo Indiano, na página de

arqueologia na Índia. Disponível em: https://asi.nic.in/ellora-caves/. Acesso em: 16 set. 2021).

30

Figura 3 – Mapa da caverna de Ellora, Maharashtra, Índia, 1994

Fonte: Library Artstor – library.artstor.org

A seguir, a primeira escultura de Tārā na evidência arqueologica:

Figura 4 – Escultura de Tārā em pedra, painel na lateral da caverna de n. 6 do complexo de Ellora

Fonte: KAEFER; TSAI, 2020, p. 20

31

É interessante observar o destaque para o corpo completamente desnudo, quadris largos,

acentuado detalhe na parte dos seios e genitália. Essa representação do corpo desnudo, com os

seios à mostra, é bem comum e é mantida nas representações até os dias atuais. Nessa escultura

ela está de pé em cima de um pedestal de flor de lótus duplo e segura um longo caule de flor de

lotus na sua mão esquerda, “que na iconografia de Tārā trata-se de um lótus azul, utpala

(Nymphaea caerulea)” (KAEFER; TSAI, 2020, p. 21). O lótus na cultura budista possui muitos

significados, o mais importante deles sendo sua representação das Quatro Nobres Verdades e,

quando duplo, do Caminho Óctuplo38, ambos ensinados pelo Buda histórico como caminho que

leva para fora do ciclo do saṃsāra.

1.1.2.1 Tārā e Avalokiteśvara

Tārā ganhou popularidade a partir do séc. VIII, quando suas atribuições de salvadora e

protetora dos perigos se sobressairam a medida que a popularidade de Avalokiteśvara também

se multiplicava.

No entanto, embora o culto de Tārā estivesse vinculado com o de Avalokiteśvara no seu

período formativo, ela ganha impulso e se expande além das fronteiras indianas

(LANDESMAN, 2020, p. 39).

As primeiras esculturas de Tārā e Avalokiteśvara foram registradas na arqueologia a

partir do séc. VI d.C. Conforme Shin, 39 as imagens de Tārā nas cavernas de Ellora,

especificamente na caverna de n°. 8 (foto a seguir), ganham uma inicial transformação ficando

ao lado direito de Avalokiteśvara. Ghosh40 (1980) atribui essa mudança à universidade de

Nālandā na Índia, devido a presença do texto de Homenagens às Vinte e Uma Tārās (namastāre

ekaviaviati),41 comentado pelo famoso poeta e gramático budista Candragomin42, que se tornou

38 Verificar nota 21. 39 SHIN, Jae-Eun. Transformation of the Goddess Tārā with Special Reference to the Iconographical Features.

Indo-Koko-Kenkyu, Studies in South Asian Art and Archaeology, v. 31, 2010. A partir daqui será

enunciado como SHIN, 2010, seguido de número de página. 40 GHOSH, Mallar. Development of Buddhist Iconography in Eastern India: A Study of Tara, Prajna of five

Tathagatas and Bhrikuti. New Delhi: Munshiram Manoharlal, 1980. A partir daqui será enunciado como

GHOSH, 1980, seguido de número de página. 41 Comentário de Candragomin (ekaviṃsati-sādhana) sobre as Homenagens às Vinte e Uma Tārās (namastāre

ekaviṃsati). Ver em LANDESMAN, Susan A. The Tārā Tantra – Tārā’s Fundamental Ritual Text (Tārā-

mūla-kalpa). New York: American Institute of Buddhist Studies, Wisdom Publications, 2020, p.65. A partir

daqui será enunciado como LANDESMAN, 2020, seguido de número de página do PDF (e-book). 42 Candragomin: século V, leigo e um dos poetas mais talentosos da história do budismo indiano, ele fez

contribuições substanciais para a gramática sanscrita e compôs diversas obras de devoção a Tārā.

32

um importante texto litúrgico (ekaviṃsati-sādhana) ao culto de Tārā, recitado até os dias atuais.

Abaixo o verso I do Anexo A, que faz referência a Avalokiteśvara:

Homenagem a Tārā, a Veloz, a Heroina, Cujos olhos são como lampejo de relampago,

Que surgiu do desabrochar de um lótus, Nascida das lágrimas do Protetor dos Três

Mundos. (CANDRAGOMIN, 2021, § I)

O “Protetor dos Três Mundos” é Avalokiteśvara, e Tārā é quem nasce de suas lágrimas.

Essa simbologia se dá pela narrativa literária:

Enquanto Avalokiteśvara olhava para os reinos dos seres, ele viu que mesmo que ele

fosse transferir seu imenso mérito acumulado e consciência, a fim de beneficiar todos

os inúmeros seres e salvá-los, ele ainda não seria capaz de libertar todos do saṃsāra.

Então, a partir de suas lágrimas, que surgiram do poder de sua grande compaixão,

muitas deusas Tārā emergiram e assumiram as formas de salvadoras para todos os

seres. (LANDESMAN, 2020, p. 33, tradução nossa 43)

Neste contexto, Tārā ganha o titulo de salvadora quando personificada das lágrimas de

Avalokiteśvara, salvadora de todos os medos e perigos.

A figura a seguir, a escultura de Avalokiteśvara e Tārā juntos, considerada uma das

primeiras aparições (SHIN, 2010, p. 19) deles na arqueologia budista.

43 As Avalokiteśvara gazed upon the realms of beings, he saw that even if he were to transfer his accumulation of

merit and awareness in order to benefit all the countless beings and save them, he would still not be able to free

them all from saṃsāra. Then from his tears, which arose from the power of his great compassion, many Tārā

goddesses emerged and took on the forms of saviours for all beings.

33

Figura 5 – Escultura em pedra de Tārā e Avalokiteśvara. Caverna 8 em Ellora, séc. VI

Fonte: SHIN, 2010, p. 19

Nessa figura, Tārā está a direita de Avalokiteśvara, ambos em pé, desnudos. Tārā segura

um botão de lótus, ao invés de um longo caule de flor de lótus azul, utpala, que está nas mãos

de Avalokiteśvara. De acordo com Shin (2010, p. 19), essas diferenças ocorrem porque as

imagens de Tārā ainda estavam em estágio experimental nas cavernas da Índia Ocidental.

Apenas depois do séc. VII são encontradas imagens com as representações de mudrās e longo

caule de flor de lótus azul, utpala.

Sobre a simbologia do lótus, também é uma simbologia que representa o Bodhisattva

Avalokiteśvara:

[...] com relação a flor de lotus, ela possui muitos significados na cultura budista, por

exemplo: ela representa o Caminho Octuplo do Buddha;17 representa o Bodhisattva

Avalokiteśvara, pelo fato de segurar em sua mão uma flor de lotus, sendo atribuido a

ele o titulo de Padmapāṇi (em sanscrito), ou aquele que segura um lotus; e representa

a saída do saṃsāra, do ciclo de sofrimentos aprisionador. (KAEFER; TSAI, 2020, p.

24 e 25, grifo no original)

E, ainda: A flor de lotus passou a ser um simbolo budista desde o começo das suas

representações, e é um dos oito simbolos originários que representam o Buda historico

(TSAI, 2019a, p. 577).

34

Avalokiteśvara possui os conceitos teologicos das imensuráveis (amor/bondade

(maitri), compaixão (karuṇā), alegria (muditā), e equanimidade (upekṣā)), mas Tārā o

acompanha pela experiência da libertação.

A união entre Tārā e Avalokiteśvara como fundamento conceitual é chamada de

mahākaruṇa em sânscrito, que significa grande (mahā) e compaixão (karuṇā), grande

compaixão também pode ser a união de amor (maitri) e compaixão combinados. Tais conceitos

teológicos se expressam através da arqueologia, representados por Avalokiteśvara e Tārā, são

traduzidos como a experiência de ver o mundo como abertura ao outro pelo amor e a compaixão.

A seguir, na figura 6, os relevos da caverna 12 de Ellora estão Avalokiteśvara no

centro, Tārā a direita e Jambala44 à esquerda. Ambos sentados em postura de meditação,

Avalokiteśvara e Tārā com a perna direita esticada, que simboliza a ação rápida para beneficiar

os seres.

Figura 6 – Painel de escultura em relevo. Caverna 12, Ellora, Maharashtra, Índia

Fonte: Library Artstor - library.artstor.org

Avalokiteśvara no centro, Tārā a direta e Jambhala a esquerda. A figura de Jambala

nesta imagem ao lado de Tārā e Avalokiteśvara, possui uma estreita relação. De acordo com a

tradição Vajrayāṇa, Jambala é conhecido como uma manifestação de Avalokiteśvara no

maṇḍala. O maṇḍala (figura 7, a seguir) é um termo em sânscrito que significa círculo, usado

no budismo Vajrayāṇa tibetano como uma representação simbolica de universo; nessa

simbologia os meditadores visualizam o maṇḍala e oferecem aos Budas e Bodhisattvas como

44 também conhecido como Dzambhala, Dzambala, Zambala ou Jambala.

35

meio de acumular méritos (ROBERT; LOPEZ, 2014, p. 1302). Dividido por cinco famílias de

Budas,45 Jambala pertenceria à família karma, que recebe o nome de Buda Amoghasiddhi,

consorte masculino de Tārā.

Figura 7 – Maṇḍala de Tārā e suas 17 deidades

Fonte: Himalayan Art Resources – himalayanart.org

Nesta figura do maṇḍala, no centro está Tārā verde (verde escuro), ambos os braços

abraçam o consorte Buda Amoghasiddhi na posição sexual de meditação. Cada cor,

implementos e gestos possui um significado. Sobre as representações de masculino e feminino,

nas narrativas visuais:

O aspecto feminino é tratado no Tantrayana tibetano como a sabedoria do vazio de

existência inerente e, então, somente através da combinação entre aspectos feminino

e masculino é que pode surgir um Buddha. É um sistema interdependente

necessariamente e, se assim não o fosse, não seria possível o resultado e objetivo final,

o do completo despertar ou Iluminação. (KAEFER; TSAI, 2020, p. 24 e 25, grifo no

original)

Ou seja, as duas simbologias são uma complementariedade:

45 As cinco famílias de Buda são: Buda Vairocana, Buda Akṣobhya, Buda Ratnasaṃbhava, Buda Amitābha e Buda

Amoghasiddhi (TSAI, 2019b, p.125-126). Cf. considerações do Prof. Plínio na banca de defesa as cinco famílias

não são deidades externas, são os próprios agregados purificados pelo cultivo dos cinco caminhos de um

Bodhisattva unido as práticas do Vajrayāṇa, que na tradição Geluk são estágio de geração e estágio de conclusão,

enquanto nas demais escolas tibetanas envolve outros processos como Atyoga, Mahāyoga e assim por diante.

36

Tārā representa todas as atividades iluminadas de todos os Buddhas e, portanto, é

chamada de mãe dos Buddhas dos três tempos. Aconteceu em um dia quando

Avalokiteśvara olhou para a miséria do mundo. Ele derramou lágrimas de seus olhos,

por força de sua grande compaixão. As lágrimas se transformaram em uma flor de

lótus da qual surgiu uma Tārā branca e outra verde [...]. (SHAKYA, 1994, p. 92 e 94)

A simbologia materna está inteiramente ligada ao conceito de sabedoria, assim mãe de

todos os Budas por causa do aspecto feminino que representa a sabedoria (como citado acima,

o masculino representa o método).

A sabedoria é prajnā em sânscrito (na filosofia, prajnā pode ser compreendida como

conhecimento ou entendimento), conceito que é usado sobre o entendimento da sunyatā

(vacuidade). Conhecida como Perfeição de Sabedoria, (Prajñāpāramitā), por isso mãe de todos

os Budas, pois o entendimento da realidade permeia todos os aspectos do caminho à plena

iluminação.

1.2 A identidade de Buda Tārā nas evidências textuais

Neste ponto adentramos a fonte no requisito textual na Índia que se refere aos textos

canônicos do tantra budista: Manjusri-mula-kalpa (MMK), o Mahā-Vairocana-abhi-saṃbodhi-

tantra (VAT) e o Tārā-mula-kalpa (TMK). Escritos entre os séc. VI e VIII d.C., esses textos

têm sua origem no sânscrito, e foram adotados pela tradição Mahāyāna.

Landesman (2020) nos mostra que estes textos foram compostos concomitantemente

e/ou em períodos próximos. O texto MMK, o mais antigo deles, atribui a origem de Tārā ao

séc. VI d.C., sendo parte do TMK (o texto raiz de Tārā) escrito no mesmo periodo que o

Vairocana-abhi-saṃbodhi-tantra.

1.2.1 O Tārā-mula-kalpa

O Tārā-mula-kalpa é o texto raiz (canônico) de Tārā. Com sua composição final

atribuída ao séc. VII, este texto traz os rituais e as narrativas visuais dos textos MMK e VAT,

e também possui o comentário de Candragomin46 (ekaviṭsati-sādhana) sobre as Homenagens

às Vinte e Uma Tārās (namastāre ekaviaviati).

46 Há uma divergência de datação. O The Princeton Dictionary of Buddhism descreve Candragomin como sendo

do século V d.C. e o texto TMK do século VIII. Porém, Susan Landersman (2018, p. 83, n. 144) traz a

informação de que não é o mesmo Candragomin, e que existe a possibilidade de serem três Candragomins em

datação diferenciada. O Candragomin que escreveu a ekaviṃsati-sādhana também escreveu um comentário

sobre o Mañjuśrī-nāma-saṃgīti, e provavelmente viveu no século VIII.

37

Candragomin é um autor leigo, nomeado um dos poetas mais talentosos da história do

budismo indiano que, além de compor diversas obras de devoção a Tārā, também fez

contribuições substanciais para a gramática sânscrita.

O texto TMK é a primeira e maior evidência textual que podemos ter de Tārā. Ele

contextualiza e traz fontes do seu surgimento e importância, e foi através dele que a teologia do

tantra de Tārā se estabeleceu nas escolas do budismo tibetano. Seu título abreviado47 tem os

seguintes significados: kalpa quer dizer ritual, mula significa raiz e Tārā é o proprio nome a

quem se refere o texto. O Tārā-mula-kalpa é encontrado na seção de textos do sistema

Vajrayāṇa e incluido nas várias seções do cânone tibetano, o Kangyur (bKa''gyur).

Landesman (2020, p. 112) explica em sua obra The Tārā Tantra - Tārā’s Fundamental

Ritual Text (Tārā-mula-kalpa) que um dos principais motivos de ter traduzido o Tārā-mula-

kalpa é porque ele é o único dos três textos canônicos (citados acima) cuja linhagem de

ensinamentos se perdeu, por não ter sido comentado pelos professores antigos.

No TMK a identidade de Tārā com Avalokiteśvara é reafirmada referindo-se a sete tipos

de Tārās como suas companheiras, sendo elas: Śrī Devī, Pāṇḍaravāsinī, Candrā, Śrī Yaśovatī,

Śvetā, Mahāśvetā e Bhṛṭkuī.

Esses nomes são importantes porque eles remetem às qualidades de cada identidade.

Por exemplo, para Candrā, há uma passagem em que se diz “ao vidyā de Candrā”: tanto

Landesman (2020, p. 33-34) quanto English (2002, p. 37) referem a palavra vidyā aos tantras

budistas femininos, onde vidyā é usado especificamente para "uma aparência feminina e a

expressão associada a esse método" (LANDESMAN, 2020, p. 34). Com isso, as autoras

mostram que as pluralidades de Tārās são representações de métodos na exegese tantrica.

Tārā é referida como Buda, ou como alguém que é completamente desperta, em trechos

do TMK ao referir-se como Bhagavatī (Buda), Mahāvidyārājñī48 (Rainha da Grande Sabedoria)

ou Mahāvidyā49 (Grande Sabedoria):

No TMK, Tārā também é referida como uma Mahāvidyā, por exemplo, "a sabedoria

e poder transcendente e libertador de uma deusa" e as sílabas sagradas associadas à

47 In the Indian language it is called Urdhvajaṭā-mahākalpa-mahā-bodhisattva-vikurvaṇa-paṭala-vistarād

Bhagavaty-ārya tārā-mula-kalpa-nāma.

In the Tibetan language it is called Ral pa gyen brdzes kyi rtog pa chen po byang chub sems dpa’ chen po’i rnam

par ’phrul pa le’u rab ’byams las bcom ldan ’das ma ’phags ma sgrol ma’i rtsa ba’i rtog pa zhes bya ba.

No inglês é nomeado “The Fundamental Ritual Text of Blessed Noble Tārā from the Extensive Chapter of the

Great Bodhisattva’s Magical Manifestations and the Great Ritual Text of Ūrdhvajaṭā.” (LANDESMAN, 2020,

p. 112). 48 Cf. considerações do Prof. Plínio na banca: mahā - grande ou universal, vidyā - sabedoria e Rajni – rainha. 49 Cf. considerações do Prof. Plínio na banca: mahā - grande ou universal, vidyā - sabedoria. Vidyā poderia ser

traduzido como substantivo masculino: conhecimento. Mas haveria um problema de conflito entre gêneros,

então, o melhor é optar pelo feminino: sabedoria.

38

sua presença, bem como uma "Rainha de Mahāvidyās". No sentido posterior, ela é

referida como a líder das deidades femininas que incorpora a sabedoria e o poder

transcendente e libertador. Isso significa o seu papel religioso como salvadora

suprema através da sabedoria espiritual e do poder. (LANDESMAN, 2020, p. 34,

tradução nossa50)

A sabedoria transcendente está relacionada ao sutra do Buda histórico, o

Āryaprajnāpāramitāhṛdayasutram, em que o Buda conversa com o Bodhisattva Mañjuśrī sobre

conceitos centrais de seus ensinamentos acerca da investigação da realidade, a interdependência

e vacuidade.

Portanto, a sabedoria transcendente ou inefável significa que possui total entendimento

da realidade que permeia todos os aspectos da plena iluminação ou do completo despertar das

realizações de um Buda.

O tantra de Tārā se inicia com alguns capítulos formando uma narrativa onde o

Bodhisattva Mañjuśrī dá ensinamentos e faz louvores a Tārā, relacionando-a aos ensinamentos

do Āryaprajnāpāramitāhṛdayasutram (WILLSON, 1992, p. 40) Por esse motivo, Tārā é

considerada uma Buda em corpo feminino, pois expressa a sabedoria central das realizações, a

sabedoria de todos os Budas, e por isso também é interpretada como a mãe de todos os Budas.

1.2.2 A relação de Tārā com os textos Mahā-Vairocana-abhi-saṃbodhi-tantra (VAT) e o

Manjusri-mula-kalpa (MMK)

Desde sua fase inicial, a identidade de Tārā é associada com Avalokiteśvara

(LANDESMAN, 2020). Das evidências textuais até os relevos das cavernas na Índia do mesmo

periodo (como vimos no topico anterior), Tārā aparece ao lado de Avalokiteśvara. É no texto

VAT, especificamente, que revela uma multiplicidade de Tārās como nascidas das lágrimas de

Avalokiteśvara, narrativa muito conhecida na sua identidade, onde é vinculada ao aspecto da

compaixão (karuṇā).

Neste texto Tārā é chamada de Devimāryāvalokitesvarakaruṇāṃ.51A palavra Devim no

inicio dá a identificação de Tārā (a deusa), porém Devi é uma expressão da realidade da Verdade

50 In the TMK, Tārā is also referred to as a Mahāvidyā, i.e., “a goddess’s transcendent and liberating knowledge

and power” and the sacred syllables associated with her presence, as well as a “Queen of Mahāvidyās.” In the

later sense, she is noted as the leader of female deities who embody transcendent, liberating knowledge and

power. This signifies her religious role as ultimate savior through spiritual knowledge and power. 51 Cf. considerações do Prof. Plínio na banca: Devim ārya avalokitesvara karunām

devim – acusativo /fem. /singular – a deusa

aryah – nom./masc. /singular – nobre (cuidado porque se retirar o h aspirado no final se torna vocativo e muda

para arya, o que determina uma locução isolada – a devani da compaixão, o nobre, Avalokiteśvara.

39

Última que se funde e se torna parte do Buda de maneira completa. A compaixão (karuṇāṃ)

feminina e ativa (SCHERER, 2018, p. 4), no sentido de agir para libertar os seres dos

sofrimentos, e também de salvadora, por levar os seres à libertação completa (nirvana).

Willson (1992) também explica essa identidade através do texto Homenagens às Vinte

e Uma Tārās, que diz assim: “Avalokiteśvara percebeu que, quanto mais seres migrantes ele

removia do saṃsāra, mais eles aumentavam, e por isso ele chorou. Tārā surge de um utpala

(lotus azul) que cresceu na água de suas lágrimas” (WILLSON, 1992, p. 12). Mostrando que

Tārā é a compaixão personificada.

Os textos MMK e TMK contêm imagens idênticas na representação exposta no

maṇḍala, onde Tārā carrega os mesmos simbolos de Mañjuśrī, porém, no MMK, Tārā é

mencionada como uma "Deusa e mãe do jovem resplandecente Mañjughoṣa52", o que reafirma

sua identidade materna.

1.3 A narrativa de Buda Tārā representada pela princesa Jñānacandrā

A narrativa de Tārā representada pela lenda da princesa Jñānacandrā é retratada como

início do seu surgimento através de fontes literárias na Índia. Essa narrativa marca a expansão

da popularidade de Tārā para além das fronteiras indianas, tornando-a muito famosa no Tibete.

A lenda sobre a princesa Jñānacandrā, contada por Jaya-Pandita (blo bzang ’phrin las)

em The Collected Works of Jaya Paṇḍita,53 retrata que a princesa Jñānacandrā não era deste

mundo, e sim de um reino chamado de Luzes-Múltiplas, existente há incontáveis milhares de

anos atrás, quando existia um Buda chamado Dundubhīśvara, Som do Tambor. Na narrativa,

Jñānacandrā ficou encantada com a comitiva do Buda e sua comunidade. Ela fazia muitas

oferendas e preces para também poder obter o completo despertar, a partir de um profundo

sentido de compaixão de ajudar os outros. Com o passar de milhões de anos, um grupo de

monges homens implorou para que ela se transformasse em um homem, a fim de completar o

avalokitesvarah – nom./ masc. / singular (mesmo caso do h aspirado no final, se errar se torna vocativo de

imediato).

karunām – acusativo /fem. /singular – a compaixão

Ocorre uma adjetivação do que se segue ao devim (de todo o restante)

A “devani” (nominativa) da compaixão do aryah Avalokiteśvara

A deusa da compaixão do nobre senhor (Īsvara) que nos observa. 52 Mañjughoṣa em sanscrito significa “Voz Suave ou Gentil” é um termo usado no budismo Mahāyāna para o

Bodhisattva Mañjuśrī. Ver em BUSWELL, R. E.; LOPEZ, D. S. The Princeton dictionary of Buddhism.

Princeton University Press, 2014, p. 1302. A partir daqui será enunciado como BUSWELL; LOPEZ, 2014,

seguido de número de página.

53 Traduzido direto do tibetano em LANDESMAN, 2020, p. 468.

40

que eles achavam ser o pré-requisito final para alcançar as realizações de se tornar iluminada.

A história conta que, em resposta, Jñānacandrā argumentou rejeitando o conselho dos monges,

usando a lógica da não existência de um eu-dependente, imutável, apegado às designações de

masculino e feminino, e assim fez o voto de seguir o caminho Bodhisattva54 de trabalhar para

o benefício dos seres sempre na forma de uma mulher.

Com base na lógica de seguir o caminho Bodhisattva, que afirma que todos os seres

possuem o potencial do completo despertar, ela faz o voto de permanecer como mulher até

alcançar as realizações, como segue:

“Não existe a noção de homem, ou mulher, nem de um eu, personalidade e nem noção

disso. Apego (a designação) de “masculino e feminino” é sem sentido e ilude através

de palavras as pessoas com pobre entendimento. Muitos desejam o Completo

Despertar no corpo de um homem, enquanto não há ninguém que se esforça para o

benefício dos seres sencientes no corpo de uma mulher. Portanto, trabalharei para o

benefício de todos os seres sencientes na forma de mulher enquanto o saṃsāra não

estiver esvaziado” (Jaya Pandita, Collected Works, fol. 221b-3-5 apud

LANDESMAN, 2008, p. 58, tradução nossa55).

Foi pela força de seu exemplo, ao se dedicar para provar que o corpo feminino é igual

ao masculino, capaz de alcançar a iluminação, de realizar o completo despertar, que ela superou

os preconceitos de gênero socialmente enraizados na comunidade monástica em que vivia. A

partir desse voto e de seu esforço motivado pela compaixão, ela alcança o completo despertar.

A lenda conta que em seus proximos nascimentos a princesa teria o nome de Tārā:

A singularidade de seu voto repousava sobre o seu compromisso de permanecer na

forma feminina em todas suas vidas subsequentes, trabalhando para aliviar o

sofrimento. À medida que A Lenda se desenrolava, a princesa atualizou seu voto

através dos esforços de suas práticas diárias: gerando a mente da iluminação e

libertando inúmeros seres. Seu sucesso levou à profecia de que enquanto ela

manifestasse iluminação completa e perfeita, ela seria referida como a "Deusa Tārā".

(LANDESMAN, 2020, p. 30, tradução nossa56, grifo no original).

54 Bodhisattvas são pessoas que cultivam as causas para a felicidade por meio de uma motivação específica – a de

se tornarem seres completamente despertos para o benefício de todos (TSAI, 2017a, p. 114). 55 "There is neither man nor woman nor self nor person-hood nor notion of such. Attachment to [the designations]

'male and female' is meaningless and deludes worldly people with poor understanding. Many desire

enlightenment in a man's body, while not even a single [person] strives for the benefit of sentient beings in a

woman's body. Therefore, I shall work for the benefit of sentient beings in a woman's form as long as saṃsāra

has not been emptied" (Java Pandita, Collected Works, fol. 221b-3-5). 56 The uniqueness of her vow rested upon her commitment to remain in female form in all subsequent lifetimes,

working to alleviate suffering. As The Legend unfolds, the princess actualized her vow through the efforts of

her daily practices: generating the mind of enlightenment and liberating countless beings. Her success led to the

prophecy that as long as she manifested unexcelled, perfect enlightenment, she would be referred to as “Goddess

Tārā.”

41

Landesman57 considera que essa narrativa se contrapunha ao sistema Theravāda, que

divergia em termos de seus ideais teológicos na época:

Uma passagem exemplifica o pensamento monástico desenvolvido pela escola

Theravada que aparece no comentário do Buddhavarmsa (Linhagem dos Buddhas)

feito pelo Buddha-datta Thera no séc. cinco, intitulado de Madhuratthavil (Ilustrador

do Significado Encantador), traduzido pelo I. B Horner (London: Pali Text Society,

1978), 132-33, v. 91.59. “A aspiração de alguém que almeja ao estado de Buddha

sucede... somente para aquele que é de sexo masculino. Ele não sucede para mulheres,

ou eunucos, os afroditas, ou hermafroditas. E por quê? [Porque] não há completude

de caracteristicas. Portanto, foi dito em detalhes: “é impossivel, monges, não pode

acontecer de que uma mulher que é um arhat se torne um Buddha perfeito.” Logo,

para alguém de sexo feminino, mesmo que talvez ela tenha um renascimento humano,

a aspiração (para o completo despertar) não pode ser bem-sucedida.”

(LANDESMAN, 2008, p. 48, tradução nossa58)

Entender as diferenças teológicas das tradições Theravāda e Mahāyāna neste contexto

é importante para também entender o surgimento histórico da narrativa. Depois do séc. V d.C.

as tradições budistas de maneira geral se dividiram em dois grandes cânones e interpretações

deles: um do sistema Theravāda (que veio a se estabelecer em lugares como Tailândia, Laos e

Ceilão), que se utiliza da língua pāli; e o outro do sistema Mahāyāna (que se disseminou para

a China, a Coreia, o Tibete, o Japão e o Nepal), em sânscrito, ocorrendo a tradução para as

línguas nativas das regiões disseminadas.

Há controvérsias sobre a origem desses dois sistemas de textos canônicos no budismo;

no entanto, evidências sobre a cisão dos sistemas nos primeiros Sínodos ou Concílios59 após a

57 LANDESMAN, Susan A. Goddess Tārā/ Silence and Secrecy on the Path to Enlightenment. Journal of

Feminist Studies in Religion, Indiana University Press, v. 24, n. 1, p. 44-59, Spring, 2008. A partir daqui será

enunciado como LANDESMAN, 2008, seguido de número de página. 58 A passage exemplifying developed Theravada monastic thought appears in Buddha-datta Thera's fifth-century

commentary on the Buddhavamsa (Lineage of the Buddhas) entitled Madhuratthavil (Clarifier of the Sweet

Meaning), trans. I. B. Horner (London: Pali Text Society, 1978), 132-33, v. 91.59. "The aspiration of one who

is aspiring to Buddhahood succeeds . . . only for one who is of the male sex. It does not succeed for women or

for eunuchs, the sexless, or hermaphrodites. And why is that? [It is] because there is no completeness of

characteristics. Accordingly, it was said in detail: 'It is impossible, monks, it cannot come to pass that a woman

who is an arhat can be a perfect Buddha.' Therefore, for one of the female sex, even though she may be of human

birth, the aspiration [for enlightenment] does not succeed." Yuichi Kajiyama discusses this point in "Women in

Buddhism," Eastern Buddhist, 2nd ser., 15, no. 2 (1982): 53-70, esp. 65-66, wherein the author proposes that

Buddhadatta Thera is referring to the major characteristics of a Great Person. The "Great Person" is a reference

to a Mahapurusa, which refers to a Buddha, Siva, Brahma, Mara, etc.,] who displayed special marks or

characteristics at birth. Among these characteristics, women lack "the male sexual organ hidden in recess"

(kosopagatavastiguhya). In this case, a "complete set" would imply that the male sex is a prerequisite for

enlightenment; however, Kajiyama reveals that monks never openly stated this point. 59 O critério de autenticidade dos ensinamentos foi construído no Primeiro Concílio e se tornou uma marca ou

característica necessária para a diferenciação entre os ensinamentos dos Buda (em virtudes dos seus Sermões

Orais) e as outras escolas não budistas [...] (TSAI, 2019a, p. 56).

42

morte do Buda histórico apontam os descontentamentos da tradição Theravāda, que teve seu

cânone oficializado no séc. V e o Mahāyāna no primeiro séc. d.C.60:

É incorreto afirmar que a tradição Theravāda é a mais antiga do que a Mahāyāna e

por isso seu canone seria mais proximo as intenções originais do Buddha historico,

tanto o é que Hirakawa contribui com o seguinte (1990, p. 8): As escrituras [da

tradição] Mahāyāna já existiam no primeiro século a.C., indicando que o budismo

Mahāyāna deve ter surgido no início da era comum, enquanto o budismo Sectário

[Theravāda] ainda estava em desenvolvimento. Os primeiros praticantes do

Mahāyāna estavam especialmente interessados em ensinamentos sobre a não-

substancialidade ou vazio de existência inerente [sunyatā]. (TSAI, P. M., 2021, p. 53

grifo no original)

Há diversos conflitos dos dois sistemas quanto ao desenvolvimento dos textos canônicos

ao longo dos séculos, e uma das controvérsias é a inclusão Mahāyāna de leigos e leigas (não

monásticos), de permitir que pratiquem o budismo, uma vez que havia “o status monástico

como algo superior e individualista” (TSAI, P. M., 2021, p. 53). A inclusão de praticantes leigos

e leigas fora acrescentada nos sutras como parte dos textos canônicos pela tradição Mahāyāna:

Os sūtras Mahāyāna foram claramente produzidos por monges, embora monges cuja

visão do Dharma abraçava a possibilidade da prática leiga no nivel superior de um

Bodhisattva no caminho da budeidade, e que usaram figuras leigas em sutras para

incorporar uma crítica a outros monges, vistos de algum modo como deficientes a luz

da mensagem do sūtra, ou que perderam a real mensagem e direção do Dharma.

(WILLIAMS, 2009, p. 24, tradução nossa61).

Perante esses conflitos das tradições a inclusão da narrativa de Tārā na representação da

princesa Jñānacandrā – a presença de uma narrativa que coloca a mulher como centro, como

protagonista marcante, cujo objetivo é mostrar que o corpo feminino também é uma base válida

e propícia para o despertar, é um enfrentamento revolucionário à cultura local (LANDESMAN,

2008, p. 20).

Bee Scherer (2018) refere-se a narrativa da princesa Jñānacandrā como uma “inclusão

soteriologica” para o pensamento do sistema Mahāyāna, em defesa da aceitação de igualdade

dos seres, inclusive no aspecto de gênero (homens e mulheres) no potencial para o caminho do

completo despertar da mente de iluminação de Buda.

60 […] por volta do inicio da nossa era, eles foram infiltrados por adeptos de uma nova forma de budismo animada

por um ideal mais ousado, inspirado por ideias filosóficas e teorias professas, até então desconhecidas, sobre a

natureza de Buda e dos futuros Budas. Este movimento, mais sugestivo do que revolucionário, tornou o nome

de Mahāyāna, ‘Veiculo Universal (de salvação) [...] (TSAI, P. M., 2021, p. 31-32). 61 The Mahayana sūtras were clearly the products of monks, albeit monks whose vision of the Dharma embraced

the possibility of lay practice at the superior level of a Bodhisattva on the path to Buddhahood, and who used

lay figures in the sūtras to embody a critique of other monks seen as in some way defective in the light of the

message of the sūtras, or having lost the real message and direction of the Dharma.

43

Raymond Lam (2013), pesquisador do tema, investiga os dilemas teológicos em torno

da teologia de Tārā ser reverenciada como Buda. Ele aponta que as lendas têm a pretensão de

indicar outra apropriação, além de Buda, de uma qualidade personificada anterior não

pertencente a Tārā, mas Landesman e Willson retratam, em suas traduções dos textos originais

em tibetano, que essa apropriação é justamente a prova de que Tārā possui as realizações de

Buda, em um corpo feminino, como segue:

Tārā é feminina; e não apenas simbolicamente feminina, segundo o sistema budista

do Tantra, pelo qual o homem representa os Meios Habilidosos compassivos e a

mulher a Sabedoria do Vazio, mas feminino por escolha própria, a fim de mostrar que

o corpo de uma mulher é pelo menos tão bom quanto o de um homem para beneficiar

os seres e alcançar o estado da iluminação. (WILLSON, 1996, p. 22)

O historiador tibetano Tārānātha62 (séc. XV d.C.), autor do texto The Origen of Tārā

Tantra, afirma que a origem da narrativa de Tārā está relacionada a princesa Jñānacandrā ser

uma Buda em solo indiano. Histórias que compartilham semelhanças de narrativas são

encontradas no Vimalakīrti Sūtra, que também debate conceitos sobre gênero e vazio (LAM,

2014, p. 167). Da mesma forma, há semelhanças na narrativa com a Bodhisattva Jewel Brocade

no O Sutra de Sāgara, o Rei Nāga, que também faz a promessa de permanecer no corpo

feminino.

É possível ver esse processo gradual de pensamento acontecendo dentro da tradição

do Tantra Indiano, como alguns adoradores Mahāyāna de Tārā começaram a iniciar

tentativas de elevar seu status com as qualidades de Bodhisattvas masculinos famosos

como Avalokiteśvara e Mañjuśrî. (LAM, 2014, p. 167-168, tradução nossa63)

Lam (2014) aponta que na trajetoria teologica do culto de Tārā, embora a datação seja

incerta, é possível estabelecer uma conexão entre os movimentos iniciativos do tantra na Índia

e sua apropriação das virtudes do sistema Mahāyāna, que eram essenciais para a teologia do

sistema posterior Vajrayāṇa.

1.4 Buda Tārā no contexto do Budismo tibetano em seu surgimento

62 Tārānātha foi um historiador tibetano, seu texto escrito em 1604 traz informações sobre a transmissão de

ensinamentos de Tārā, de seu percurso, que não passou direto da Índia para o Tibete, mas fez um longo caminho

pela Tailândia, Camboja e Nepal. Ver em WILLSON, Martin. In Praise of Tārā – Songs to the Saviouress.

Boston: Wisdom Publications, 1992, p. 167. A partir daqui será enunciado como WILLSON, 1992, seguido de

número de página. 63 It is possible to see this gradual thought-process taking place within the tradition of Indic Tantra, as some

Mahāyāna worshippers of Tārā began to initiate attempts to elevate her status with the qualities of famous male

bodhisattvas like Avalokiteśvara and Mañjuśrî.

44

No budismo tibetano Buda Tārā é a personificação mais alta de adoração e reverência,

ela é o pilar de sustentação e devoção desde as sociedades primitivas tibetanas até os dias atuais.

Stephan Beyer,64 em sua obra totalmente dedicada a explicar a magia e ritual do culto de Tārā

no Tibete, afirma que compreender o culto de Tārā é entender toda a estrutura expressa na

cultura e religião tibetana. A autora destaca que Tārā difere-se das “altas divindades patronas”,

pois ela está em todas as esferas da cultura tibetana. Para o povo, ela é incluída como deidade,

divindade, protetora e Bhagavatī65, sendo Bhagavatī o significado do seu status mais elevado,

possuidora das qualidades de uma Buda na forma feminina.

No budismo tibetano Tārā é referenciada como protetora e aquela que liberta, o próprio

significado de seu nome em tibetano possui essas características, “Drolma” (སལ་མཨ་, sgrol

ma) é derivado do verbo སལ sgrol བ་ ba,66 que significa salvar, resgatar, libertar.

Já em sanscrito, Tārā é um substantivo feminino que significa estrela ou travessia (navio

ou barco), que poderia ser traduzido como “uma estrela que atravessa o céu noturno”.67 Todos

esses significados expressam que ela leva os seres para a iluminação, protegendo-os e ajudando

a superar os sofrimentos.

As formas de representação mais famosas de Tārā no budismo tibetano são a Tārā Verde

e a Tārā Branca, sendo a Tārā Verde a mais popular, pelas ações imediatas de proteção. A cor

verde é o símbolo da Família Ação no maṇḍala do budismo tântrico, que enfatiza a ação plena,

representada nos votos de tomar ações para beneficiar (salvar) os seres sencientes68 (GROSS,

1993, p. 111).

64 BEYER, Stephan. Magic and Ritual in Tibet the Cult of Tara. University Of California, 2001. A partir daqui

será enunciado como BEYER, 2001, seguido de número de página. 65 Bhagavati em sânscrito ou Bhagavat em Pāli significa iluminado/a, um dos epitetos padrão de um Buda. Na

literatura sânscrita é reservado tanto para os indivíduos mais honrados, quanto para os deuses. Na literatura

budista, no entanto, o termo é usado quase inteiramente com referência ao Buda, e aponta para a perfeição de

sua virtude, sabedoria e contentamento. Em tibetano Icom Idan 'das ma possuidora das qualidades que

transcendem o saṃsāra. Ver em BUSWELL; LOPEZ, 2014, p. 301 e LANDESMAN, 2008, p. 50. 66 Veja em LANDESMAN, 2020, p. 31. 67 Veja em MONIER-WILLIAMS, 1979, p. 443. 68 GROSS, Rita M. Buddhism After Patriarchy: A Feminist History, Analysis, and Reconstruction of Buddhism.

New York: State University of New York Press, 1993, p.111. A partir daqui será enunciado como GROSS,

1993, seguido de número de página.

45

Figura 8 – Pintura em tecido de origem tibetana, séc. XIII, Tārā Branca e Tārā Verde

Fonte: Himalayan Art Resources – himalayanart.org

A diferença não está apenas nas cores, mas também na postura de meditação: Tārā Verde

é sempre representada com a perna direita levemente esticada, que simboliza a ação rápida para

beneficiar os seres, como também vimos na arqueologia (figura 6): a Tārā Branca, com as

pernas em postura de lótus, representa os métodos de concentração meditativa, que têm como

objetivo aumentar o tempo de vida, em função das práticas do método das Quatro Nobres

Verdades (TSAI, 2019a, p. 560).

1.4.1 Adoração e disseminação do culto de Tārā no Tibete

Os primeiros indicios de adoração a Tārā no Tibete marcam o séc. VII em fontes

literárias no período do reinado de སང་བཙན་སམ་པ་ (Srong btsan sgam po), que significa

Avalokiteśvara em sanscrito, e suas duas esposas, com os respectivos nomes de Bhṛkuṭī e

46

Tārā,69 pois era comum em reinados terem seus nomes vinculados às deidades, Bodhisattvas e

Budas. Conforme Landesman (2020), os primeiros remanescentes de textos litúrgicos são

aqueles encontrados em um catálogo do séc. VIII, listando os três textos tântricos indianos que

haviam sido traduzidos do sânscrito para o tibetano, que são: o Tārā-devi-nāmāṣṭa-sataka,

Āryāṣṭa-mahābhayot-tārā-tārā-stava e Ārya-Avalokitesvara-mātā-nāma-dhāraṇi.70

No entanto, só após o séc. XI, com a chegada do renomado erudito budista Dīpamkara

Śrījñāna, conhecido como Atiśa, houve a promoção do culto de Tārā. A historia conta que Atiśa

so foi para o Tibete porque tinha visões de Tārā, ela aparecia em seus sonhos e pedia para que

ele ensinasse na Terra das Neves71, mas avisava que essa escolha encurtaria sua vida em vinte

anos. Atiśa estava com 59 anos e num ato de devoção considerou que, se fosse para o benefício

de preservar o budismo, ele faria o sacrifício.

Atiśa foi para o Tibete levando com ele muitos manuscritos em sanscrito, um deles foi

o Tārā-mula-kalpa que, como visto anteriormente, é um dos principais e mais importantes

textos das primeiras evidências do culto de Tārā na Índia. Porém, Atiśa não fez a tradução dele

para o tibetano, só após três séculos de sua morte o texto foi traduzido por completo por Bu-

ston em 1361 (LANDESMAN, 2020, p. 40).

Tentando traçar aqui uma breve linha do tempo, é interessante observar o percurso que

Tārā teve ao se consolidar no Tibete. Seu principal texto raiz, o TMK, foi traduzido quase cinco

séculos depois da chegada das primeiras narrativas, e se tornaram ainda mais populares, tanto

para a cultura quanto para o monasticismo, onde as narrativas são contadas e recontadas por

professores eruditos da tradição através de uma linhagem72 ininterrupta de ensinamentos.

Já o aspecto interpretativo que tem grande legitimação na cultura tibetana é o da

narrativa da princesa Jñānacandrā, a narrativa que personifica Tārā enquanto uma Bodhisattva,

que faz o voto de se tornar uma Buda no corpo feminino.

69 Veja em LANDESMAN, 2020, p. 39. 70 Em inglês esses títulos são: The 108 Names of Goddess Tārā, Praises of Tārā: The Supreme Noble Protectress

from the Eight Dangers, e The Dhāraṇi of the Mother of Noble Avalokitesvara. Ver em LANDESMAN, 2020,

p. 49, n. 40. 71 O Tibete é também conhecido como Terra das Neves por causa da picos de montanhas de gelo que se formam

pelas baixas temperaturas. 72 A linhagem é feita de professores para alunos por tradição oral que se mantem viva no budismo tibetano, chinês,

mongol, coreano e japonês. Através dela é possível traçar a linhagem de professores, alguns desde o Buda

historico até os professores atuais. A linhagem é muito importante no budismo Vajrayāṇa, através dela

professores consagrados transmitem os ensinamentos do nível mais baixo até o mais superior dos tantras. Essa

transmissão normalmente é feita via transmissão oral, com cerimonias e rituais próprios.

47

Os textos de Jaya-Paṇḍita73 e Tārānātha, séc. XV e XVI, são fundamentais para a

transmissão da narrativa da princesa Jñānacandrā. Conforme aponta Scherer (2018), os relatos

de Jaya-Paṇḍita e Tārānātha, de trazer à tona a popularidade da narrativa, condizem com o

pensamento Mahāyāna e a visão teologica de equanimidade, de incluir as mulheres no caminho

budista, também na defesa da aceitação igualitária de uma Bodhisattva feminina realizar o

estado de Buda.

O sistema Mahāyāna é base hermenêutica do budismo tibetano, que diz que o estado do

completo despertar de Buda vai além da libertação do ciclo aprisionador do saṃsāra, onde é

preciso adentrar ao caminho do Bodhisattva que tem como prática o cultivo da bodhicitta – a

mente que busca o completo despertar não só para si mesmo, mas também para benefício de

todos.

Os valores de equanimidade e compaixão são a conexão da identidade de Tārā aos

valores do budismo Mahāyāna tibetano. A etimologia do seu texto canônico, o TMK, a

identifica como a companheira feminina de Avalokiteśvara e ela passa ser conhecida como mãe

que age para salvar os seres dos sofrimentos, no que diz respeito à simbologia das lágrimas de

compaixão de Avalokiteśvara, como mencionado anteriormente.

Conforme Scherer (2018), no budismo popular tibetano, Tārā fornece a corporificação

feminina e Avalokiteśvara a corporificação masculina, porém, ambos são a representação dos

conceitos teológicos vinculados às quatro qualidades imensuráveis (catur-aparimita-

brahmacarya). Esses conceitos são as quatro virtudes: bondade (maitri), compaixão (karuṇā),

alegria entusiástica (muditā) e equanimidade (upekṣā), teologias empregadas nos sistemas

Mahāyāna e Vajrayāṇa.

É pela combinação entre os aspectos femininos (prajnā, sabedoria) e masculinos (upāya,

meios habilidosos) que surge o estado da mente de iluminação de Buda. Por isso, “Tārā

representa todas as atividades iluminadas de todos os Buddhas e, portanto, é chamada de mãe

dos Buddhas dos três tempos.” (SHAKYA, 1994, p. 92 e 94). A união de ambos está nos

conceitos prajnā e sunyatā, a sabedoria sobre a vacuidade e interdependência no

Āryaprajnāpāramitāhṛdayasutram (Sutrā da Perfeição de Sabedoria), cujo orador é

Avalokiteśvara (LAM, 2014, p. 160). Este Sutrā é central no budismo Mahāyāna e outros

sistemas, que foram preservados nas tradições do budismo tibetano:

73 The translation of the initial section of Tārā’s legends is based upon folios 221a-4 to 224a-2 of The Collected

Works of Jaya Paṇḍita (blo bzang ’phrin las), 1981, vol. 1. Jaya Paṇḍita’s entire version of these myths [221a-

4 to 231a-6] corresponds to Tāranātha’s Tārā tantra (sgrol ma’i rgyud kyi byung khungs gsalbar byed pa’i lo

rgyus gser gyi phreng ba zhes bya ba bzhugs so) found in Jonang Mdzad Brgya of Tāranātha, 1971, folios 428–

467 in roman numerals and 1–20 in Tibetan. (LANDESMAN, 2020, p. 472, n. 1005).

48

[...] pela aplicação de Tārā nas importantes imagens de sabedoria do gênero Mahāyāna

(prajñā, feminino) e upāya ("significa", masculino), que funcionam como

complementos nos conceitos Mahāyāna de iluminação. Vista desta perspectiva, Tārā

torna-se equiparada ao prajñā corporificado. Aqui, a popular divindade da compaixão

Tārā é identificada e sucede a personificação da Perfeição da Sabedoria,

Prajñāpāramitā, como a “mãe dos budas” (veja abaixo): Prajñāpāramitā equivale ao e

personifica o conceito chave Mahāyāna da filosofia sobre śūnyatā (vacuidade). A

equação Tārā – Prajñāpāramitā representa um segundo nivel de teologia e prática.

(SCHERER, 2018, p. 291, tradução nossa74).

É por essas virtudes mencionadas que a popularidade das duas narrativas se difunde no

budismo tibetano. De um lado, a lenda de Tārā com a narrativa da princesa Jñānacandrā,

expressada pela luta feminina de igualdade; e de outro, mãe, reverenciada e exaltada como

“forma espiritual, transcendente” no aspecto da sabedoria e na forma humana (nascida das

lágrimas). Essas narrativas estão vinculadas ao conceito de compaixão e suas quatro causas: (1)

identificação do sofrimento; (2) desejo de se libertar dos sofrimentos – ambos, 1 e 2 relatados

à narrativa da princesa Jñānacandrā; (3) equanimidade (upekṣā); e (4) bodhicitta – desejo de

libertar todos os seres dos sofrimentos e de suas causas, o que vincula Tara à narrativa que a

descreve como nascida das lágrimas de compaixão de Avalokiteśvara, portanto, como mãe e

protetora.

As identidades vinculadas às narrativas dão suporte às teorias teológicas praticadas até

os dias atuais no budismo tibetano, em diversas escolas. Podemos ver que ao longo dos séculos

suas transformações seguiram os movimentos teológicos que deram sustentação à permanência

da existência de um ícone feminino tão representativo para a religião e o povo tibetano. No

próximo capítulo veremos em detalhes como se estabelece a relação da tradição Geluk tibetana

com o culto de Tārā.

1.5 Considerações do capítulo

Neste capitulo vimos por quais fontes as narrativas de Buda Tārā se estabeleceram na

Índia. Desde seu surgimento foi um importante ícone feminino na teologia do tantra budista,

por esse motivo, foi necessária a contextualização desse sistema que não só pertence ao

budismo, mas que no budismo se desenvolveu por muitos anos e se tornou uma importante

74 Tārā by the application of the important Mahāyāna polar gender imagery of wisdom (prajñā, female) and upāya

(“means,” male), which function as complements in Mahāyāna concepts of enlightenment. Viewed from this

perspective, Tārā becomes equated with the embodied prajñā. Here, the popular compassion deity Tārā is

identified and succeeds the personification of the Perfection of Wisdom, Prajñāpāramitā, as the “mother of the

buddhas” (see below): Prajñāpāramitā equates to and personifies the key Mahāyāna philosophical concept of

śūnyatā (emptiness). The equation Tārā–Prajñāpāramitā represents a second level of theology and practice.

49

vertente da tradição budista, com seus textos canônicos, rituais e simbologias próprias.

Procuramos demonstrar como essa rica tradição se estabeleceu na arqueologia, ganhando

destaque nos maiores complexos de cavernas na Índia.

Em seguida, vimos as modificações e transformações que a narrativa de Tārā sofreu

devido à influência de exegetas budistas, como o Candragomin, colocando-a no mesmo patamar

de igualdade dos icones masculinos, Avalokiteśvara e Mañjuśrī.

Na arqueologia, Tārā passa a ser representada ao lado de Avalokiteśvara; na literatura,

como a personificação de salvadora nascida das lágrimas de Avalokiteśvara; no âmbito

filosófico, simbolizando os conceitos teológicos de sabedoria (prajnā) e conhecimento último

da existência (sunyatā), expressos no texto canônico do Bodhisattva Mañjuśrī, o MMK, e a

grande compaixão (mahākaruna) como expresso no texto no texto VAT, também por forte

influência do exegeta Candragomin em seus textos de louvores e homenagens a Tārā.

Na terceira parte do capítulo, é apresentada outra narrativa literária, em que Tārā é a

personificação da princesa Jñānacandrā, e foi grande percursora de um movimento de

popularidade de seu culto para além das fronteiras indianas, chegando até o Tibete. Nesta

evidencia de seu surgimento, vimos possíveis indícios de uma apropriação do sistema budista

Mahāyāna ao ressaltar a narrativa com a intenção de enfrentamento revolucionário da cultura

local, ao colocar as mulheres em pé de igualdade perante as realizações, o que em outras

tradições budistas era negado às mulheres

Por fim, na quarta parte do capitulo, pudemos analisar como Tārā rivaliza os conceitos

teologicos com seus parceiros masculinos, sobressaindo com o titulo materno de “mãe de todos

os Budas”, quando reafirma as bases hermenêuticas da tradição Mahāyāna que se estabelece no

budismo tibetano Vajrayāṇa. No Vajrayāṇa vimos como ela ganha destaque dos exegetas

tântricos ao classificá-la em todas as classes desse sistema, inclusive no mais elevado, o

anuttarayoga-tantra.

No próximo capítulo, entenderemos como o tantra de Tārā se desenvolve nas escolas

tibetanas, em especial na patriarcal escola Geluk, que a coloca como centro desde a relação com

seus fundadores, por serem grandes devotos de Tārā, até os dias atuais.

50

2 CAPÍTULO II - TĀRĀ, A CENTRALIDADE DE UM ÍCONE FEMININO EM

MONASTÉRIOS MASCULINOS DA TRADIÇÃO GELUK TIBETANA

Homenagem a você, Tārā, o nobre Dharma.

Grande bem-aventurança, paz, Nirvāṇa,

O supremo nobre Dharma de dez letras

O método das dez perfeições ATIŚA, verso 0275

A proposta do capitulo é mostrar como Tārā se torna protagonista do evento que os

pesquisadores chamam de “período formativo” ou reforma do budismo tibetano, que se inicia

com Atiśa através de presságios e sonhos com a deidade. Neles, Tārā profetiza que ele tinha

uma grande missão de preservação do budismo no Tibete, mas para isso ele teria de sacrificar

sua própria vida para benefício dos seres.

Vimos no capitulo anterior que toda identidade das narrativas de Tārā é marcada por

uma reafirmação do feminino, seja nos conceitos teológicos, na arqueologia, e principalmente

na literatua, em que há uma luta de gênero contraposta às visões equivocadas dos monges

daquele tempo, os quais acreditavam que o corpo da mulher não era capaz de obter as

realizações do completo despertar. Por isso, entramos neste capítulo com a inquietação de

descobrir como o budismo tibetano patriarcal lidou com a força do protagonismo de Tārā,

também de entender de que forma Tārā permaneceu com Je Tsongkhapa na tradição Geluk.

Sendo assim, o capítulo se divide em três tópicos. O primeiro remonta a história de

Atiśa e o terceiro a historia de Tsongkhapa, nesses dois tópicos foram usadas as metodologias

diacrônica e sincrônica, mas não foi possível separá-las76 porque a história ora se volta para a

os textos canônicos (os períodos de escrita, autores e por que foram escritos); enquanto em

outros momentos, explora diversos episódios da narrativa literária, com relação aos sonhos e

visões de Atiśa.

75 Tradução nossa. Prece de Atiśa para Tārā como as Três Joias, traduzido para o inglês por James B. Apple, 2019,

233 p.

“Homage to you, Tārā, the noble dharma.

Great bliss, peaceful, nirvāṇa,

The ten-letter supreme noble dharma

The method of the ten perfections398” 76 De acordo com Lilia Schwarcz (2001) metodologicamente isso é possível quando a temporalidade é retomada

em sua dimensão social.

51

Já na parte iconográfica, localizada no segundo tópico, a metodologia empregada se

volta para análises utilizando o método de mapeamento de Gillian Rose (2002), especificamente

a modalidade composicional, que analisa quando uma imagem é feita, qual é a sua organização,

gênero e relação intertextual.

No primeiro tópico veremos que a historia de Atiśa relatada pelos seus biografos é

fascinante e toda sua vida foi marcada pelos ensinamentos do sistema do tantra budista, sendo

Tārā sua deidade tutelar, a única deidade feminina dentre as cinco deidades tutelares do tantra

em que ele era versado e tinha como seus principais instrumentos de prática meditativa.

O segundo tópico abre-se para as iconografias de Tārā no budismo tibetano, iniciando

com as representações das Vinte e Uma Tārās como preservada na linhagem de Atiśa e inclusas

nos textos de rituais (sādhanas) como dispositivo meditativo. O destaque maior vai para as

representações de Tārā Verde, Tārā Branca e Tārā Vermelha, porque são as representações mais

significativas dentro do recorte da pesquisa. Tārā Branca terá um destaque mais extenso por se

associar ao Bodhisattva Mañjuśrī em seus conceitos teologicos e por isso uma relação mais

direta com Tsongkhapa. Já Tārā Vermelha, por se assimilar ao tantra de Vajrayoginī, posição

que a coloca na classe mais elevada do tantra, o anuttarayogatantra.

Na terceira parte do capítulo, dedicada a Tsongkhapa, foi preciso entender quais os

caminhos percorridos para o surgimento da tradição Geluk e como ela se estabeleceu no meio

político-religioso no Tibete naquele período. Passando para um breve histórico do sistema

Vajrayāṇa de Tsongkhapa, que mostra como as deidades femininas estavam presentes e eram

centrais na vida de Tsongkhapa bem como na tradição Geluk.

2.1 A importância de Atiśa para a disseminação do tantra de Tārā no Tibete

2.1.1 O budismo de Atiśa: como ele foi versado no tantra

O erudito budista Dīpamkara Śrījñāna, conhecido como Atiśa no Tibete, nasceu na Índia

em 982 d.C. na cidade de Vikramapura, hoje atual distrito de Mushiganj em Bangladesh. Seu

nome de nascimento era Candragarbha, o segundo de três filhos de uma família real de grande

riqueza e poder (APPLE, 2019, p. 1). Por volta dos dez anos de idade, ele abandonou sua vida

de príncipe para viver na floresta e estudar com o leigo budista chamado Jitāri, que ensinava no

monastério de Vikramaśīla77 e era mestre do sistema tântrico budista.

77 Vikramaśīla foi um dos três monastérios budistas mais importantes da Índia durante o Império Pala (750-1162

d.C.), junto com Nālandā e Odantapuri.

52

Por volta de 994, o jovem Atiśa foi para a universidade monástica de Nālandā em

Magadha na Índia para estudar com o professor Bodhibhadra, lá ele tomou os votos monásticos

de noviço. Através do Bodhibhadra, ele foi inspirado a renunciar sua vida de príncipe e se tornar

um monge plenamente ordenado, mas antes disso ele instruiu Atiśa a estudar com o monge

Vidyākokila que vivia em retiro ao norte de Nālandā (APPLE, 2019, p. 12). Vidyākokila foi o

mestre que ingressou Atiśa na escola Mādhyamika do grande Ācārya Candrakīrti, descendente

do mestre Nāgārjuna.78

De acordo com o biografo Apple (2019), Atiśa passou dos dez aos vinte e um anos

estudando e praticando o budismo com vários professores, incluindo os iogues tântricos

Avadhūtipa e Rāhulaguptavajra. Com esses professores tântricos, seus estudos se estenderam

até seus vinte e nove anos, o que o fez se tornar muito hábil em muitos textos e instruções desse

sistema (TSONGKHAPA, 2020, p. 64).

Depois de um grande periodo estudando com o professor Avadhūtipa, Atiśa volta para

sua cidade natal para pedir permissão aos seus pais para renunciar sua vida de príncipe e se

tornar um monge plenamente ordenado. Após esse período, mesmo sem o consentimento dos

pais, ele volta para o monastério e passa a estudar extensivamente com o professor

Rāhulaguptavajra, onde

Atiśa também ouviu uma série de ensinamentos tantricos de ḍākiṇīs e teve visões de

muitas divindades tântricas durante esta fase de sua vida. [...] Em uma visão de Tārā,

entretanto, a deusa perguntou a Atiśa: “Ei, paṇḍita, você é proficiente nas práticas do

Mantra Secreto?” Atiśa respondeu: “Sim, eu sou.” A deusa perguntou a ele: “Você

entende esta sādhana tantrica, ou que tal esta outra sādhana?” Como Atiśa nunca tinha

visto os textos budistas esotéricos antes, a deusa disse a ele: “O conhecimento sobre

as práticas do Mantra Secreto em seu reino humano não é nem mesmo a mera ponta

de cabelo de um cavalo. Muitos exemplos e significados das práticas do Mantra

Secreto estão nas mãos das ḍākiṇīs.” A deusa quebrou o orgulho de Atiśa sobre seu

conhecimento das práticas do Mantra Secreto. (APPLE, 2019, p. 14, tradução nossa79)

Tsongkhapa (2020, p. 64) explica que o orgulho de Atiśa foi subjugado pelas ḍākiṇis

(deidades femininas, em tibetano མཁའ་འག་མ (mkha’gro ma)), porque havia muitos textos de

78 Nāgārjuna foi um filósofo budista indiano do séc. II. A escola Mādhyamika de Nāgārjuna é uma das linhas

hermenêuticas da tradição Geluk, principalmente para epistemologia sobre a investigação da realidade

(Abhidharma). 79 Atiśa also heard a number of tantric teachings from ḍākiṇīs and had visions of many tantric deities during this

phase of his life. From the age of twenty-one to twenty-nine, he received consecrations and special instructions

within the four main groups of tantra. Atiśa intended to take up the conduct of Secret Mantra discipline in order

to attain the accomplishment of the Great Seal.24 In a vision of Tārā, however, the goddess asked Atiśa, “Hey

paṇḍita, are you proficient in Secret Mantra practices?” Atiśa replied, “Yes, I am.” The goddess asked him, “Do

you understand this tantric sādhana, or how about this sādhana?” Since Atiśa had never seen the esoteric

Buddhist texts before, the goddess told him, “The knowledge about Secret Mantra practices in your human

realm is not even the mere tip of a horse’s hair. Many examples and meanings of Secret Mantra practices are in

the hands of ḍākiṇīs.” The goddess broke Atiśa’s pride about his knowledge of Secret Mantra practices.25”

53

rituais (sādhanas) de que ele ainda não tinha conhecimento. Apesar de Tsongkhapa não

mencionar o nome de Tārā nesse episódio da história, na citação acima Apple (2019) menciona

que foi Tārā que o subjugou.

As práticas do Mantra Secreto é outra terminologia do Vajrayāṇa, ou ainda Mantrayana,

que se refere ao sistema dentro do Mahāyāna sobre o estudo e prática meditativa daquilo que é

ensinado nos textos tântricos ou classes do tantra. Já o termo Paṇḍita, em sanscrito, significa

mestre ou aquele que tem domínio das ciências menores e maiores80.

Depois dessa visão de Tārā, ele passa a receber muitas instruções de deidades femininas

(ḍākiṇis) através de sonhos. Seus professores e deidades pediam extensivamente para que ele

se tornasse monge, dizendo que seria de grande benefício para o budismo, e assim ele o fez e

seu nome monástico passou a ser Śrī Dīpamkarajñāna (TSONGKHAPA, 2020, p. 65).

No desenvolvimento do caminho do Bodhisattva, na tradição Mahāyāna, Atiśa estudou

com Serlingpa81 em Sumatra por volta do período de 1012 d.C. (APPLE, 2019, p. 17). Foi nesse

período que ele recebeu muitas instruções dos mestres Asaṅga e Śāntideva, transmitidas por

Serlingpa, tornou-se capaz de desenvolver “a mente de iluminação que aprecia outros mais do

que a si mesmo” (TSONGKHAPA, 2020, p. 69). Ele ficou em Sumatra estudando com

Serlingpa durante 12 anos e recebeu todos os treinamentos Mahāyāna e de seu sistema

Vajrayāṇa, que marcam os métodos de treinamento mais importantes para o budismo tibetano:

o desenvolvimento do amor e da compaixão no caminho do Bodhisattva:

Aquele que põe de lado seus próprios interesses e toma

O fardo do interesse dos outros é meu Guru (Atiśa). (rNam thar rggyas pa: 87.2-3

apud TSONGKHAPA, 2020, p. 69).

Atiśa mantinha seu mestre em grande estima, algo que fica evidente quando ele retorna

para a Índia, trazendo diversas obras de Serlingpa consigo, as quais foram posteriormente

traduzidas pelo proprio Atiśa no Tibete, inclusive os textos de rituais do sistema Vajrayāṇa,

incluindo as práticas de Serlingpa para Buda Tārā (APPLE, 2019, p. 33).

2.1.2 A devoção de Atiśa por Buda Tārā

Atiśa era um grande devoto de Buda Tārā, toda a sua biografia é marcada por uma

relação intima com Tārā, através de sonhos, preces ou visões. Não há dúvidas para seus

80 Ver em TSAI, P. P., 2021, p. 71. 81 Ser-ling-pa (gSer-gling-pa).

54

biógrafos e pesquisadores do budismo tibetano de que a devoção de Atiśa por Tārā fez com que

ela se tornasse uma das deidades mais populares do Tibete, conforme aponta Willson:

A contribuição de Atiśa para o Tibete incluiu o culto a Tārā, sua divindade tutelar. Ele

escreveu pouco sobre ela, mas parece que o nome dela estava constantemente em seus

lábios e que ela o ajudava com frequência. Dificilmente há um evento significativo

em sua vida que um ou outro de seus biógrafos falhe em lhe conectar com a Deusa.

Graças a sua devoção, Tārā se tornou uma das duas deidades mais populares do Tibete.

(1996, p. 290-291, tradução nossa82)

E Apple complementa que

Atiśa teve sonhos, visões e previsões de Tārā ao longo de sua vida. Sua devoção

carismática a deusa foi o impeto para a adoração fiel de Tārā na cultura budista

tibetana. (APPLE, 2019, p. 233, tradução nossa83)

A lenda conta que uma das razões de Atiśa decidir ir para o Tibete foi porque Tārā

Branca apareceu para ele em sonho profetizando a ele sua ida para o Tibete, dizendo que lá ele

encontraria condições para preservar os ensinamentos, mas isso teria um custo de encurtar sua

vida por vinte anos, além da viagem extenuante (LANDESMAN, 2020, p. 39).

Na época, Atiśa estava com 59 anos e considerou que, se fosse para benefício de

disseminar o budismo, ele faria o sacrifício. Ele foi para o Tibete aos sessenta anos e passou

onze anos84 da sua vida lá, traduzindo muitos textos e transmitindo muitos ensinamentos.

Há também a relação materna de Atiśa para com Tārā, em outro sonho em que ela

apareceu para ele como sua mãe:

Em outra noite, em um sonho, Atiśa acordou ouvindo instrumentos musicais, um

barulho como joias femininas, mas ele não olhou (naquela direção). Então, Tārā, que

tinha aparecido em pleno adorno no céu, perguntou-lhe por que ele não olhou para

sua mãe. Atiśa pensou que ele estava vendo Tārā como sua mãe em um sonho, mas

ele estava testemunhando Tārā diretamente diante dele. Atiśa mais tarde disse que

tinha sonhado com Tārā como sua mãe e que ela também estava presente no momento

atual enquanto ele apontava para uma pintura da deusa protegendo dos oito grandes

medos. (APPLE, 2019, p. 70, tradução nossa85)

82 Atiśa's contribution to Tibet included the cult of Tārā, his tutelary deity. He wrote little about Her, but it would

seem that Her name was constantly on his lips and that She frequently helped him. There is hardly a significant

event in his life that one or other of his biographers fails to connect with the Goddess. Thanks to his devotion,

Tārā became one of the two most popular deities of Tibet. 83 Atiśa had dreams, visions, and predictions from Tārā throughout his life. His charismatic devotion to the goddess

was the impetus for the faithful worship of Tārā in Tibetan Buddhist culture. 84 Há duas tradições sobre quanto tempo Atisa passou no Tibete, uma ele passou 11 anos lá e outra que ele passou

17 anos, ambas concordam que ele morreu aos 73 anos. Ver em Tsongkhapa, 2020, p. 75, n. 72. 85 One evening, when there was a strong winter storm, Atiśa made maṇḍalas and got cracked hands. Tārā appeared

to him and asked why he was taking such trouble.204 On another evening, in a dream, Atiśa woke up hearing

musical instruments, a rattling sound like women’s jewelry, but he did not look. Then, Tārā, who had appeared

55

Mais tarde, Atiśa escreve preces de elogios a Tārā como sua mãe, e, também, da

capacidade de Tārā como protetora dos oito medos.86

A tradição da linhagem de Atiśa de Tārā é a mais distinta entre as cinco tradições de

ensino de Tārā no Tibete. Todo o edificio ritual de adoração de Tārā no Tibete é

construido sobre as principais obras de Atiśa sobre a deusa. (APPLE, 2019, p. 233,

tradução nossa87)

A relação de Tārā como mãe está vinculada ao conceito de Prajñāpāramitā como foi

explicado no capitulo anterior, relacionado ao Sūtra do Coração vinculados ao Bodhisattva

Avalokiteśvara.

A devoção de Atiśa a Tārā foi registrada nos textos canônicos que vieram do Tibete e

que foram preservados no Tāngyur de Pequim, como aponta Willson:

Quatro de seus louvores a Tārā, que chegaram até nos em versões tibetanas, estão

traduzidos aqui, do Tāngyur de Pequim (P4869-71 e 4873). Embora dois deles sejam

construídos sobre o tema básico dos oito grandes medos, em conjunto eles são

notavelmente variados e não repetitivos, testemunhando a proximidade do

conhecimento do autor com a Deusa Āryā. (WILLSON, 1996, p. 223, tradução

nossa88)

Podemos ver mais detalhes sobre a primeira composição de louvor realizada à deusa no

seguinte trecho:

O primeiro louvor, muito o mais longo, tem um lugar notável na história do culto de

Tārā no Tibete: foi traduzido na grande universidade budista de Vikramaśīla pelo

tradutor Nak-ts'o com o paṇḍita Dīpamkaraśrījñāna, comumente conhecido como

Atiśa. Ou seja, teria sido traduzido entre provavelmente 1036, quando Nak-ts'o veio

convidar Atiśa para o Tibete, e 1040, quando eles partiram, o que mostra o entusiasmo

de Atiśa por Tārā, e foi o que levou a sua grande popularidade no Tibete. (WILLSON,

1996, p. 223, tradução nossa89)

in full adornment in the sky, asked him why he did not look at his mother. Atiśa thought that he was seeing Tārā

as his mother in a dream, but he was witnessing Tārā directly before him. Atiśa later said that he had dreamed

of Tārā as his mother and that she was also present in the current moment

while he was pointing to a painting of the goddess protecting from the eight great fears. 86 Sobre a prece de proteção aos oito medos ver Willson, 1986, p. 87-93 e Beyer, 1973, p. 229-236. 87 Atiśa’s lineage tradition of Tārā is the most distinguished among the five teaching traditions of Tārā in Tibet.396

The entire ritual edifice of worshipping Tārā in Tibet is built upon Atiśa’s major works on the goddess.397 88 “Four of his praises to Tārā that have come down to us in Tibetan versions are translated here, from the Peking

Tāngyur (P4869-71 and 4873). Though two of them are built on the stock theme of the eight great fears,

altogether they are remarkably varied and unrepetitive, bearing witness to the closeness of the author's

acquaintance with the Āryā Goddess.” 89 “The first praise, much the longest, has a noteworthy place in the history of Tara's cult in Tibet: it was translated

at the great Buddhist university of Vikramasila by the translator Nak-ts'o with the paṇḍita Dīpamkaraśrījñāna,

commonly known as Atiśa. That is, it would have been translated between probably 1036, when Nak-ts'o came

to invite Atiśa to Tibet, and 1040, when they set out, after which it was principally Atiśa's enthusiasm for Tārā

that led to Her great popularity in Tibet.

56

Como pudemos ver nos registros de seus biografos, a vida de Atiśa foi inteiramente

marcada com uma relação muito proxima de Buda Tārā, é unânime entre os pesquisadores que

Atiśa teve grande influência sobre a disseminação da popularidade de Tārā no Tibete.

2.1.3 As contribuições de Atiśa para a preservação do budismo no Tibete em especial do

sistema Vajrayāṇa

2.1.3.1 Como Atiśa foi para o Tibete

Um dos principais motivos de Atiśa ter ido para o Tibete tem a ver com o que muitos

pesquisadores chamam de um “renascimento do budismo tibetano”. Esse período “formativo”

iniciado no reinado do monge Lha Lama Yeshé Ö (947-1019/24) trouxe para o Tibete alguns

estudiosos, como Dharmapāla do leste da Índia, para explicar o Vinaya (Codigo de Conduta

Moral) e reestabelecer a linhagem de ordenação monástica Mūlasarvāstivāda. Apos esses

ensinamentos, o rei Yeshé Ö percebeu que havia contradições relacionadas aos ensinamentos

do sutra e mantra (APPLE90, 2019, p. 38). Depois disso, o rei envia vinte e um jovens tibetanos

à Índia para estudar e traduzir os tratados budistas, mas apenas dois91 voltaram e relataram que,

na conduta dos mestres indianos, não havia contradições relacionados aos sutras e tantras, por

isso constataram que os ensinamentos dos tantras praticado no Tibete estavam corrompidos.

No entanto, apesar dos esforços do rei Yeshé Ö, somente no reinado de Jangchup Ö92

(984-1078), por volta do ano 1033, o convite para Atiśa ensinar no Tibete teria ocorrido. Tal

convite teria sido realizado pelos tradutores (tio e sobrinho) Gyadzonseng 93 e Nag-tso

Tshultrimgyalwa94 que foram para Vikramaśīla na Índia. A principio Atiśa recusou o convite e

as oferendas de ouro, declarando que ele estava velho demais e tinha muitos afazeres, mas disse

que examinaria se sua presença no Tibete seria útil (APPLE, 2019, p. 43). Naquela noite ele fez

preces para Tārā pedindo esclarecimentos se sua ida para o Tibete seria benéfica:

90 APPLE, James B. Atiśa Dipamkara: illuminator of the awakened mind. Shambhala, 2019. A partir daqui será

enunciado como APPLE, 2019, seguido de número de página. 91 Rinchen Zangpo e o Lekpai Sherap responsáveis por muitas obras que vieram a ser incluídas nas coleções

canônicas budistas tibetanas do Kangyur e Tengyur. Todos os outros jovens morreram devido ao calor. Ver em

Apple, 2019, p. 38. 92 JangChup-od (Byang-chub-‘od) outra forma da transliteração do nome em tibetano para o alfabeto romano. 93 brGya-brtson-seng ou Gya Tsöndru? Ver em Tsongkhapa, 2020, p. 73 e Apple, 2019, 39. 94 Nag-tsho-tshuk-khrims-rgyalba ou Naktso Lotsāwa Tsultrim Gyalwa Ver em Tsongkhapa, 2020, p. 73 e Apple,

2019, 40.

57

Durante a noite, Atiśa rezou três vezes para Tārā e perguntou se sua viagem ao Tibete

beneficiaria os ensinamentos budistas, se ele poderia ajudar espiritualmente o rei

tibetano, e se sua própria vida seria encurtada pela viagem. No sonho, a deusa lhe

disse para ir a uma cidade de não budistas perto de Vikramaśīla, Mukhena, para

questionar uma yoginī em um templo budista. Atiśa foi até lá, encontrou a yoginī, e

perguntou se sua jornada beneficiaria os tibetanos. Ela disse que a viagem seria muito

benéfica, especialmente para um certo leigo budista, ou upāsaka. "A yoginī também

disse que a vida de Atiśa duraria noventa e dois anos se ele permanecesse na Índia,

mas duraria apenas 72 anos se viajasse para o Tibete. Como Atiśa recebeu o sinal de

que a viagem beneficiaria os tibetanos, sua determinação em ir ao Tibete foi reforçada.

(APPLE, 2019, p. 43, tradução nossa95).

Yoginī é epíteto usado para as representações de deidades femininas, em nenhuma das

biografias consultadas há uma explicação no que diz respeito aos nomes das deidades ou

mulheres neste relato, mas confirmam a profecia de que Atiśa recebera de Tārā anteriormente.

Podemos dizer que Tārā foi de grande importancia para sua decisão de ir para o Tibete.

2.1.3.2 Quais foram as contribuições de Atiśa no Tibete

A chegada de Atiśa no Tibete foi muito esperada, ele foi recebido pelos seus seguidores

tibetanos com extensas preces para que ele purificasse os ensinamentos budistas que estavam

contaminados pelas concepções errôneas há séculos. Tsongkhapa (2020) relata que

O resultado foi que ele reestabeleceu as práticas do sistema budista que

desapareceram; revigorou aquelas que permaneceram levemente; e removeu as

corrompidas, baseadas em concepções errôneas. Assim, ele fez com que os

ensinamentos ficassem livres das corrupções e dos erros. (TSONGKHAPA, 2020, p.

74)

Sobre os ensinamentos que foram corrompidos, Tsongkhapa explica que era justamente

quanto às coleções e significados do tantra que Atiśa precisou refutar os especialistas que ali

existiam:

Na disseminação tardia dos ensinamentos para o Tibete, alguns que fantasiaram ser

especialistas e praticantes construíram erroneamente o significado das coleções do

tantra. Por causa disso, causaram grandes danos à manutenção da disciplina ética, a

raiz dos ensinamentos. Esse ser excelente (Atiśa) refutou-os bem. Além disso, ele fez

com que suas concepções errôneas desaparecessem, revigorando os ensinamentos sem

95 “During the night, Atiśa prayed three times to Tārā and asked if his trip to Tibet would benefit the Buddhist

teachings, whether he could help the Tibetan king spiritually, and whether his own life would be shortened by

the journey. In the dream, the goddess told him to go to a city of non-Buddhists near Vikramaśīla, Mukhena, to

question a yoginī there at a Buddhist temple. Atiśa went there, met the yoginī, and asked if his journey would

benefit the Tibetans. She said the journey would be greatly beneficial, especially for a certain Buddhist

layperson, or upāsaka. The yoginī also said that Atiśa’s life would last ninety-two years if he stayed in India but

would last only seventy-two years if he journeyed to Tibet. Since Atiśa received indications that the trip would

benefit the Tibetans, his resolve to go to Tibet was strengthened.81”.

58

engano. Portanto, sua bondade alcançou a todos na Terra das Neves.

(TSONGKHAPA, 2020, p. 75)

Não há dúvidas de que a revitalização do budismo feita por Atiśa foi de grande

relevância, Tsongkhapa (2020) também evidencia essa importancia porque Atiśa trouxe para o

Tibete os caminhos vastos, relacionados aos estudos da compaixão da linhagem de Asaṅga96; e

os caminhos chamados de Percepção do Profundo 97 , relacionados aos estudos da prajnā

(sabedoria que vê a realidade como vacuidade e vazia de existência inerente) contida no Sūtra

do Coração (Bhagavatihṛdayaprajnāpāramitāsutra). Além das três qualificações 98 que um

autor deve ter para compor textos, sendo a primeira ter tido visões da sua deidade tutelar e

permissão dela para isso. Como já foi visto, a deidade tutelar de Atiśa é Tārā, seguida de

Avalokiteśvara e mais três outras deidades masculinas.

Dentre os principais presságios de Tārā a Atiśa referente a sua ida ao Tibete está a

participação do leigo tibetano Dromtönpa Gyalwai Jungné99 (1005-1064):

“A deusa Tārā havia dado um presságio a Atiśa de que vir ao Tibete traria grande

benefício ao Dharma em relação a um leigo tibetano em especial. Enquanto traduzia,

ensinava e viajava para o Tibete Ocidental, Atiśa dizia repetidamente a si mesmo:

"Leigo apareça rapidamente!" e perguntava: "A profecia de Tārā para o aparecimento

de um leigo seria verdadeira ou falsa?" (APPLE, 2019, p. 47-48, tradução nossa100)

Posteriormente, Dromtönpa foi o grande responsável pela linhagem de Atiśa, além dos

patrocínios que ele conseguira para construção de um futuro monastério, ele também traduziu

grandes obras, incluindo os textos litúrgicos de Tārā:

Atiśa e seus discipulos traduziram uma série de textos enquanto ele residia em

Nyethang com base nos pedidos de patronos e estudantes. Dromtönpa traduziu a

Sādhana da Terra de Maitreya, os Vinte e Um Louvores ao Venerável Tārā, a

Perfeição da Sabedoria das Oito Mil Linhas, e outros textos. (APPLE, 2019, p. 68,

tradução nossa101)

96 Que Atiśa recebera com Serlingpa (pensamento Yogācāra). 97 Da linhagem de Nāgārjuna (pensamento Mādhyamika). 98 Ver em TSONGKHAPA, 2020, p. 76. 99 Dromdonba Gyelwayjungnay (‘Brom-ston-pa-rgyalba’i-‘byung-gnas) é uma outra forma de escrita fonética do

seu nome. Esta forma está em Tsongkhapa, 2020, p. 78. Fiz a opção de escrita fonética de acordo com o biógrafo

Apple, 2019, p. 49. 100 “The goddess Tārā had previously given a prediction to Atiśa that coming to Tibet would bring great benefit to

the dharma in relation to a special Tibetan layperson. While translating, teaching, and traveling in West Tibet,

Atiśa would repeatedly say to himself, “Layperson quickly appear!” and question, “Is Tārā’s prediction for the

appearance of a beneficial layperson false?” 101 “Atiśa and his disciples translated a number of texts while he resided at Nyethang based on the requests of

patrons and students. Dromtönpa translated the Sādhana of the Land of Maitreya, the Twenty-One Praises to the

Venerable Tārā, the Eight Thousand Line Perfection of Wisdom, and other texts.”

59

Já os textos canônicos do Bodhisattva Avalokiteśvara, a segunda deidade tutelar de

relação muito proxima com Atiśa, Ghosh (1980) diz que Atiśa teve grande influência pelos

textos litúrgicos que aproximam Tārā de Avalokiteśvara:

Atiśa revitalizou também a devoção tibetana ao grande bodhisattva da compaixão,

Avalokiteśvara. Atiśa introduziu uma série de práticas rituais que eram formativas no

renascimento do budismo tibetano, como a recitação ritual do Sūtra do Coração.

(APPLE, 2019, p. 3, tradução nossa102)

O Sutra do Coração é o texto central sobre o entendimento da sunyatā (vacuidade),

relacionado aos estudos da prajnā (sabedoria) em que Atiśa era versado.

Willson (1996) destaca que Atiśa não só desenvolveu todos os sistemas budistas no

Tibete, mas que ele foi responsável pelas novas escolas do budismo tibetano que dominam até

hoje, no tempo de Atiśa era chamada Nova Kadampa, posteriormente Geluk:

A influência de Atiśa no desenvolvimento do Buddha-Dharma no Tibete foi enorme,

excedendo em muito a de qualquer outro paṇḍita indiano que ensinou lá. Dele deriva

a primeira das "novas" escolas do budismo tibetano (em oposição à "velha" escola, a

Nyingmapa), a Kadampa. Este foi fundado por seu discípulo Drom-ton-pa. Continua

até hoje como a tradição Gelukpa ou 'New Kadampa', que dominou o Tibete durante

seus últimos três séc. de liberdade. (WILLSON, 1996, p. 290, tradução nossa103)

O texto Preces de Homenagens aos Dezessete Mestres de Universidade de Nālandā104

resume todas as contribuições de Atiśa no Tibete, ele foi o décimo sétimo a ser homenageado

na linhagem de mestres de Nālandā:

Homenagem ao mestre Dipamkarasrijnāna, conhecido no Tibete como Atisa que

ensinou o caminho dos três tipos de seres e compôs um sistema de explicação dos

ensinamentos Vastos e Profundos de Buda, conhecidos como Lamrim e Tenrim,

mantendo a unificação entre as escolas Mādhyamika e Yogācāra, fundou a escola

Kadam tibetana, levou o tesouro inesgotável dos sistemas Mahāyāna e Vajrayāṇa das

universidades de Vikramasila e Nālandā da Índia para o Tibete. (TSAI, 2019a, p. 59,

grifo no original)

102 Atiśa revitalized the Tibetan devotion to the great bodhisattva of compassion, Avalokiteśvara, as well. Atiśa

introduced a number of ritual practices that were formative in the renaissance of Tibetan Buddhism, such as the

ritual recitation of the Heart Sūtra. 103 The influence of Atisa on the development of the Buddha- Dharma in Tibet was enormous, far exceeding that

of any other Indian patJ4ita who taught there. From him stems the earliest of the 'new' schools of Tibetan

Buddhism (as opposed to the 'old' school, the Nyingmapa), the Kadampa. This was founded by his disciple

Drom-ton-pa. It continues today as the Gelukpa or 'New Kadampa' tradition, which dominated Tibet for its last

three centuries of independence. 104 Prece original escrita pelo XIV Dalai Lama, traduzida e modificada por TSAI, 2019a, p. 59 com comentário

interpolado, no sentido de ampliar e esclarecer alguns aspectos que não estavam na prece original, de maneira

a deixá-la mais pedagógica e acessível aos alunos iniciantes na Tradição Geluk.

60

Os três tipos de seres são os três escopos de praticantes Śrāvakas, Pratyekabuddhas e

Bodhisattva, como também do Veiculo Comum (Hīnayāna e Mahāyāna) e ainda do Mahāyāna

que são chamados de praticantes do escopo superior: Veículo da Perfeição e do Veículo do

Mantra. Dessa forma, a contribuição de Atiśa para o budismo tibetano foi completa, sendo o

Veículo do Mantra – o sistema Vajrayāṇa, um braço do Mahāyāna no escopo superior.

2.2 As representações de Tārā no Tibete

Abrimos este tópico para expor de forma mais detalhada as diferentes representações de

Tārā no budismo tibetano da linhagem de Atiśa. Daremos inicio com o conjunto das Vinte e

Uma Tārās, que são sistemas meditativos com funções especificas, expressos nas vinte e uma

representação de cores.

Depois seguimos com uma das formas mais populares, a Tārā Verde, que é considerada

a cor primária da representação de Tārā dentro do campo iconográfico.

Beyer (2001, p. xiii) explica que, quando as linhagens iconográficas se estabeleceram

no Tibete, embora existissem os estilos próprios do Tibete, foi mantido o estilo pertencente à

escola de Nāgārjuna, que fora transmitida por Atiśa.

Foi usado a metodologia composicional de Gillian Rose (2002). A análise das imagens

tenta, sempre que possível, abordar os seguintes tópicos: quando foi feita, material, organização

das representações, gênero e relação intertextual.

2.2.1 As Vinte e Uma Tārās

O conjunto das vinte e uma Tārās são representações ou até mesmo emanações de Tārās

de diferentes formas e propósitos, cada uma com seus ritos específicos para que o/a meditador/a

possa direcionar sua prática (WILLSON, 1996, p. 21). No sistema da tradição de Atiśa, as vinte

e uma Tārās possuem o mesmo aspecto, alterando apenas a coloração, mas há outras

linhagens105 do tantra conhecido como Vinte e Um Louvores de Tārā. No entanto, aqui o recorte

foi feito para a linhagem de Atiśa, mantida pela tradição Geluk. A lista de cores e funções foi

encontrada no sítio Himalayan Art Resources Inc., como segue:

105 No budismo tibetano há três linhagens majoritárias de Tārā: tradição de Atiśa, Paṇḍita Suryagupta, e a linhagem

do Nyingma Lama - Longchenpa. No entanto, as três linhagens principais não compartilham as mesmas formas

iconográficas. Além dessas três, existem outros conjuntos menos conhecidos de 21 Tārās, bem como numerosas

formas de linhagens individuais. Visto em BEYER, 2001 e no sítio Himalayan Art Resources Inc.

https://www.himalayanart.org/items/450. Acesso em: 26 nov. 2021.

61

1. vermelha, poder

2. branca, pacificadora de doença e obstáculos

3. amarela dourada, longa vida e prosperidade

4. amarela, poder sobre a vida e a morte de alguém

5. laranja, aumento da expectativa de vida de 10 a 100 anos

6. marrom, para domar (ou controlar) demônios

7. preta, para derrotar os outros (pessoas)

8. marrom, para derrotar demônios e inimigos (matar)

9. branca, para proteger do medo

10. vermelho, para controlar demônios e interferências

11. ouro refinado, para pacificar o sofrimento da pobreza

12. amarelo dourado, desejando prosperidade

13. fogo ardente (vermelho), proteção contra impedimentos e obstáculos

14. preta, ligeiramente irada, para suprimir obstáculos

15. branca, para pacificar os pecados

16. vermelha, aumento da sabedoria e do intelecto

17. laranja, pacificando demônios e obstáculos

18. branca, para pacificar uma série de cobras (nagas) venenosas

19. branca, para dissipar disputas e pesadelos

20. laranja, para proteger de doenças contagiosas

21. branca, desejando realizar completamente todas as atividades

(2021, tradução nossa106)

Abaixo podemos ver a iconografia das vinte e uma formas de Tārās de acordo com a

tradição de Atiśa:

Figura 9 – Vinte e Uma Tārās de acordo com a tradição de Atiśa

106 1. red, power

2. white, pacifying disease & hindrances

3. golden yellow, long-life & prosperity

4. yellow, power over one's life & death

5. orange, increasing life-span 10 to 100 years

6. maroon, to tame (or control) demons

7. black, to defeat others (people)

8. maroon, to defeat demons & enemies (kill)

9. white, to protect from fear

10. red, to control demons & interferences

11. refined gold, to pacify the suffering of poverty

12. golden yellow, wishing prosperity

13. blazing fire (red), protection from hindrances & obstacles

14. black, slightly wrathful, to suppress hindrances

15. white, to pacify sins

16. red, increasing wisdom and intellect

17. orange, pacifying demons & obstacles

18. white, to pacify a host of poisonous nagas

19. white, to clear away disputes & bad dreams

20. orange, to protect from contagious disease

21. white, wishing to completely accomplish all activities

62

Fonte: NYINGPO, 2013, p. 164

No centro está Tārā Verde, todas as vinte e uma Tārās ao redor tem o mesmo aspecto,

alterando somente a cor, todas seguram um vaso de longa vida na mão direita estendida no

mudrā de doação suprema, o vaso acompanha a mesma coloração do corpo de cada Tārā. De

acordo com o texto de homenagens (Anexo A), algumas Tārās são descritas como ferozes ou

raivosas, estas são representada na figura com o aspecto irado. No total são 4 Tārās vermelhas,

6 brancas, 3 amarelas, 4 laranjas, 2 pretas-avermelhadas e 2 Tārās pretas para um total de 21.

2.2.2 Tārā Verde

Tārā de cor verde é classificada a cor primária de Tārā; a cor verde representa sua

atividade desperta, sua compaixão ativa. 107 No maṇḍala (figura 7) de Tārā Verde,

Amoghasiddhi é seu consorte, isto significa que é pertencente à família108 ação.

107 Ver em RINPOCHE, Bokar. Tara The Feminine Divine. Tradução: Christiane Buchet. Canada, 2007, p.44. A

partir daqui será enunciado como RINPOCHE, 2007, seguido de número de página. 108 Ver nota 42.

63

Na iconografia tibetana (figura 8), Tārā Verde é normalmente representada com uma

das pernas levemente esticada, que significa que ela está pronta para ação de ajudar os seres,

pois já possui todas as realizações, o simbolismo das pernas nos diz que ela permanece no

saṃsāra para ajudar a todos aqueles que sofrem, embora esteja liberta das amarras das

distorções (viparyasta).

No Tibete, Tārā Verde é famosa por dar proteção; alguns pesquisadores como Apple,

Willson e Beyer afirmam que essa popularidade esteja, mesmo que de forma tardia, ligada a

Atiśa, por ele ter composto as preces de exortação a Tārā.

A prece descreve Tārā da seguinte forma:

Ela é de cor verde, com uma face e dois braços. Sua mão direita repousa no gesto de

dar bênçãos e sua mão esquerda segura uma flor utpala. Ela tem Amoghasiddhi na

coroa de sua cabeça e senta-se na posição de meia pernas cruzadas (APPLE, 2019, p.

241, tradução nossa109)

Dentro da perspectiva do tantra, a coroa é o lugar destinado ao guru ou aquele que o

guia, então, nesse sentido, o aspecto masculino (como Amoghasiddhi) na coroa de Tārā

representa os meios habilidosos (upāya), o estado da mente de completa iluminação de Buda

(SCHERER, 2018, p. 29).

Outra composição de Atiśa a Tārā Verde foi O Compêndio da Clara Realização da

Nobre Tārā110, em sua prece de elogio e de meditação sobre os aspectos de Tārā, ele descreve:

Se você deseja fazer um elogio a Venerável Senhora Tārā, busque refúgio, gere a

mente altruísta do despertar, e em seu coração visualize um disco de lua vindo da

silaba a, e no topo disso uma silaba verde marcada com o TĀṂ. Então, tendo

purificado os obstáculos e impedimentos com os raios de luz vindo das sílabas, você

se torna a Venerável Senhora Tārā com um corpo de cor verde sentada em um acento

de lótus branco e um disco de lua [...] (APPLE, 2019, p. 241, tradução nossa111)

109 She is green in color, with one face and two arms. Her right hand rests in the hand gesture of giving boons and

her left hand holds an utpala flower. She has Amoghasiddhi as a head ornament and sits in the half cross-legged

position 110 O nome do texto em inglês: The Abridged Clear Realization of Noble Tārā; em sanscrito: Ārya tārā abhisamaya

piṇḍārtha; e na lingua tibetana: ཕགས་མ་སལ་མ་ཨ་མངན་པར་རགས་པ་བསས་པ་ (wylie é Phags ma sgrol ma’i mngon par rtogs pa

bsdus pa). Ver em APPLE, 2019, p. 268 111 If you wish to utter a praise of the Venerable Lady Tārā, go for refuge, generate the altruistic awakening mind,

and at your heart visualize a moon disk from the syllable a, and on top of that a green syllable TĀṂ. Then,

having purified obstacles and hindrances with the light-rays from the syllables, one is the Venerable Lady Tārā

with a green-colored body sitting on a white lotus and moon-disk seat […]

64

A proposta de prática meditativa é o/a praticante se auto visualizar como Tārā Verde,

trazendo para si os aspectos virtuosos altruístas de dar proteção aos seres e também purificar

seus proprios obstáculos, como descrito por Atiśa nas orientações seguintes:

Por meio da ioga de residir na concentração da Venerável Senhora Tārā, tendo

estabelecido o epíteto que deve ser alcançado, no centro do mantra como explicado

anteriormente, recite o tempo que desejar. Então, perceba que os raios de luz surgem

da sílaba semente e permeiam todos os corpos para serem alcançados. Perceba que os

corpos ficam satisfeitos com os raios de luz e se tornam inabaláveis pelos perigos.

Esta é a proteção da pacificação. (APPLE, 2019, p. 270, tradução nossa112)

Por meio da concentração meditativa (samatha) o/a praticante traz para si e para os

outros (como forma imagética) os estados de pacificação vindos dos mantras de Tārā. A

proposta é se auto visualizar no aspecto feminino de Tārā Verde para trazer proteção.

Embora seja em comum acordo aos/às autores/as pesquisadores/as de Tārā que Atiśa

não compôs comentários ao tantra, mas ele trouxe grandes contribuições no âmbito da fé e

devoção fervorosa à deidade.

2.2.3 Tārā Branca

Como foi visto, a base de adoração de Tārā Branca113 no Tibete tem forte influência de

Atiśa, além dela ser sua deidade tutelar, dos seis textos de Tārā traduzidos por ele para o

tibetano, três obras eram sobre Tārā Branca, escritas originalmente por Vāgīśvarakīrti.114 Por

isso, “é a partir dessas três traduções que todas as linhagens tibetanas de Tārā Branca derivam”

(BEYER, 2001, p. 12), sendo que um dos principais motivos de Atiśa ir para o Tibete fora

devido à profecia que ele recebeu de Tārā Branca (LANDESMAN, 2020, p. 39).

A culto de Tārā Branca foi se expandindo ao longo dos anos no Tibete, a maioria dos

exegetas de seu tantra concordam que Tārā Branca tem o significado teologico de trazer longa

vida aos praticantes (BEYER, 2001, p. 364). Na sua função inicial, o texto litúrgico escrito por

Vāgīśvarakīrti a descreve:

112 “Through the yoga of residing in the concentration of the Venerable Lady Tārā, having established the name

which is to be achieved in the center of the mantra explained earlier, recite for as long as you wish. Then,

perceive that light-rays arise from the seed syllable and pervade all the bodies to be achieved. Perceive that the

bodies become satisfied due to the light-rays and become unharmable by dangers. This is the protection of

pacification.” 113 Tārā Branca em tibetano é དལ་མ་ཀར་མ (drol ma kar mo) 114 Vāgīśvarakīrti erudito indiano que compôs os três ritos (sādhanas) sobre Tārā (ciclo de ’chi blu, ou enganando

a morte) através de uma revelação pessoal com a deidade e não com base em uma escritura tântrica, assim seus

textos constituíram o início da linhagem de Tārā Branca. Veja em BEYER, 2001, p. 36 e BUSWELL; LOPEZ,

2014, p. 895.

65

Os textos indianos básicos para o culto de Tārā Branca, o ciclo de Vāgīśvarakīrti sobre

Enganando a Morte, contêm um capítulo inteiro dedicado aos sinais de dissolução e

enfraquecimento da vida. Entre as obras está inclusa no ciclo o Bardo, chamado Livro

Tibetano dos Mortos – nele há um texto inteiro dedicado ao tema. (BEYER, 2001, p.

367, tradução nossa115)

A representação de longa vida se assemelha ao mesmo significado de Buda Amitāyus,116

ambos com a função teológica de trazer para as/os praticantes a longevidade, mas não só,

também de controlar o processo de morte através da meditação. Isso se dá por conduzir a

dissolução do fator vida para o próximo renascimento (controle do estado intermediário –

Bardo) para a Terra Pura de Sukhāvatī,117 do Buda da Luz Infinita (Amitāyus).

Na figura abaixo, na coroa de Tārā Branca está o Buda Amitāyus segurando um vaso

cheio de néctar da imortalidade.118 A esfera de arco-íris em volta dele significa que ele está na

Terra Pura. Tārā Branca com Buda Amitāyus em sua coroa é o método meditativo (samatha)

de seu tantra para que a/o praticante use como objeto imagético não discursivo (ou dispositivo

auxiliar (ālambana)) para controlar o próprio processo de morte.

115 The basic Indian texts for the cult of White Tārā, Vāgīśvarakīrti cycle on Cheating Death, contain an entire

chapter devoted to the signs of approaching dissolution and decay of life. Among the works in included in the

cycle of the Bardo the so-called Tibetan Book of the Dead – there is an entire text devoted to the subject. 116 Em sanscrito significa vida ilimitada ou vida infinita, algumas vezes pode ser sinônimo de Amitābha, mas no

tantra Amitāyus é por vezes possui seus ritos e caracteristicas independente. Ver em BUSWELL; LOPEZ,

2014, p. 35. 117 Sukhāvatī significa felicidade ou cheio de felicidade, no tantra é o local da terra é local da Terra Pura de Buda

Amitābha, local onde não há sofrimento. Ver em BUSWELL; LOPEZ, 2014, p. 867. 118 Ver em TSAI, Plínio Marcos. Néctar da Imortalidade: A dhyāna de Amitāyus. Tradução e adaptação.

Valinhos: ATG, 2019b, p. 87. A partir daqui será enunciado como TSAI, 2019b, seguido de número de página.

66

Figura 10 – Tārā Branca, pintura em tecido, budismo Tibetano

Fonte: Himalayan Art Resources – himalayanart.org

Como podemos ver, Tārā Branca visualmente se difere da Tārā Verde, não somente no

aspecto da cor, mas em outros com simbolismos específicos: olhos, posição das pernas,

vestimentas, ornamentos etc. Bokar Rinpoche (2007) descreve que a presença dos sete olhos

(conforme figura são três no rosto, dois nas palmas das mãos e dois nas solas de seus pés)

significa que ela vê a realidade pelas portas da libertação, que são três: vazio, ausência de

características e ausência de desejo aflitivo; e mais quatro relacionados à compaixão, chamados

de quatro incomensuráveis: amor, compaixão, alegria e equanimidade. Os ornamentos (sedas e

joias) representam as qualidades dos Bodhisattvas e as ações para libertar os seres.

(RINPOCHE, 2007, p. 44)

Apesar de Tārā Branca não constar nos textos canônicos indianos, e a primeira linhagem

de seu culto ter iniciado no Tibete com Atiśa, a partir do séc. XI ela se torna tão popular quanto

Tārā Verde, tanto que é bem comum serem representadas juntas (ver figura 8). Isso se fortalece,

principalmente a partir do séc. XIV, pela tradição Geluk, com Je Tsongkhapa, que fez retiros

67

extensivos da deidade. Até nos dias atuais, de tempos em tempos, há na tradição retiros de Tārā

Branca nos monastérios Geluk.119

Já Tārā Branca como Bhṛkuṭī (outra analogia feita por Wayman (1992)), na literatura

tibetana, Tārā (verde) e Bhṛkuṭī (branca) são os nomes das duas esposas do rei Srong btsan

sgam po (que significa Avalokiteśvara em sanscrito) no séc. VII d.C. (LANDESMAN, 2020,

p. 39). Há indícios de que tais referências do reinado tibetano tiveram como inspiração as

deidades budistas indianas, como segue figura abaixo:

Figura 11 – Relevo em pedra na caverna 90 de Kānheri, Maharashtra.

Fonte: LANDESMAN, 2020, p. 38

No centro Avalokiteśvara, Bhṛkuṭī à esquerda e Tārā à direita. Um detalhe interessante

de observar na figura acima é que ambas as representações possuem um Buda em suas coroas

(acima de suas cabeças), forma utilizada até hoje na iconografia budista, principalmente

tibetana.

2.2.4 Tārā Vermelha

Tārā Vermelha é mais uma das representações do culto de Tārā no Tibete, conhecida

pelo epiteto Kurukullā120, é um dos quatro vidyās mencionados no texto canônico de Tārā, o

TMK. O texto litúrgico de Kurukullā é o Kurukullākalpa (ku ru kul+le’i rtog pa) da linhagem

119 Conforme palestra promovida pela Associação Buddha-Dharma do Geshe Lharampa Jangchep Choeden da

International Geluk Foundation no dia 29 dez. 2021, na celebração do dia de nascimento e morte de Lama Je

Tsongkhapa. 120 Kurukullā em tibetano Kurukullā no ཀ་ར་ཀལ་ལ།་ (Wylie: ku ru kul le)

68

de Atiśa foi traduzido pelo indiano Kṛṣnapaṇḍita e o tibetano Tsültrim Gyalwa, ambos

acompanharam Atiśa em sua jornada para o Tibete121 (DHARMACHAKRA, 2020, § i22).

No texto TMK, Kurukullā não é representada iconograficamente, mas é descrita em

textos posteriores na cor vermelha e de face irada (LANDESMAN, 2020, p. 89). De acordo

com a pesquisadora Stevens,122 o que difere Tārā Vermelha das outras representações literárias

de Tārā, é sua cor que lhe atribui o papel de significar poder, dominação e ira:

Uma diferença chave entre Tārā Vermelha e os outros aspectos da deusa é o papel de

uma divindade subjugadora [...]. Muitas emanações de Tārā são pacificas, enquanto

outras são iradas. Tārā Vermelha é o principal exemplo de Tārā como uma divindade

subjugadora, uma função exemplificada por sua cor vermelha.17 Tārā, a deusa

subjugadora, nos distancia um pouco das denominações mais comuns de “Mãe” e

“Salvadora”. (STEVENS, 2010, p. 63, tradução nossa123)

No texto litúrgico Kurukullākalpa há duas descrições sobre a cor vermelha, uma no

capítulo II e outra no capítulo IV:

Com luz vermelha de diferentes tons

Ela ilumina os três mundos.

Aquele que obteve a joia deste poder

Alcançará todas as realizações.

(DHARMACHAKRA, 2020, § 2.39, tradução nossa124).

E, Você deve praticar o mantra e assim por diante.

Vendo uma mulher cujo nome é Tārā,

De aspecto branca e vermelha e belos olhos [F.38.a]

(DHARMACHAKRA, 2020, § 4.18, tradução nossa125).

121 DHARMACHAKRA. Translation Committee. The Practice Manual of Kurukullā Kurukullākalpa, Toh 437,

29b-42b). In: 84000: Translating the Words of the Buddha, 2020. A partir daqui será enunciado como

DHARMACHAKRA, 2020, seguido de número do parágrafo § 122 STEVENS, Rachael. Red Tārā: Lineages of Literature and Practice. Tese de Doutorado, Oxford University,

2010. A partir daqui será enunciado como STEVENS, 2010, seguido de número de página. 123 “One key difference between Red Tara and the other aspects of the goddess is the role of the former as a

subjugating deity, and this is something that will be examined below in this section. Many Tara emanations

are peaceful, whereas others are wrathful. Red Tara is the main example of Tara as a subjugating deity, a

function exemplified by her red colour. 1 7 Tara the subjugating goddess takes us some distance from the more

common appelations of 'Mother' and ‘Saviouress’.” 124 With red light of different hues

She illuminates the three worlds.

One who has obtained the jewel of empowerment

Will attain all accomplishments. 125 With red light of different hues

She illuminates the three worlds.

One who has obtained the jewel of empowerment

Will attain all accomplishments.

69

Numa interpretação um pouco diferente, mas não contrária, feita por Dharmachakra

Translation Committee (2020, § i3) nos mesmos textos litúrgicos de Kurukullā, diz que a

deidade tem o papel de Tārā como salvadora (figura 11) pelo aspecto da sabedoria da

iluminação, sendo ela uma manifestação de Avalokiteśvara, pela sua personificação de grande

compaixão (mahākaruna):

A deidade feminina Kurukullā, cuja prática é o assunto deste texto, tem um lugar e

uma orientação particulares em meio ao panteão das deidades meditativas. Como

todas, ela é uma personificação do estado de Buda em sua totalidade. Como uma

deidade feminina, entende-se que ela incorpora o aspecto da sabedoria da iluminação

(ou seja, vacuidade), e como uma forma da salvadora Tārā, ela mesma uma

manifestação de Avalokiteśvara, ela personifica a compaixão abrangente. Mas sua

qualidade particular está relacionada a “atividade” da iluminação. Muitas escrituras

do Grande Veículo descrevem a atividade espontânea e sem esforço dos Budas para

o beneficio dos seres. No Vajrayāṇa, essa atividade iluminada é mencionada em

termos de quatro modos, ou tipos, de atividade: pacificar, aumentar 126 , atrair e

destruir. É o terceiro deles, atrair, que é o campo especial de Kurukullā, e é para

desenvolver essa qualidade particular de iluminação que um praticante empreenderia

sua prática. (DHARMACHAKRA, 2020, § i3, tradução nossa127).

As escrituras do Grande Veículo referenciadas significam que são da tradição

Mahāyāna, que na tradução significa mahā para grande e yāna para veículo, mas também pode

ser Vajrayāṇa, que é um braço da tradição Mahāyāna. Sobre a interpretação da emanação de

Tārā como Kurukullā, a atividade de atrair se equipara aos significados iconográficos

normalmente mencionados a ela, também como subjugar ou dominar.

Figura 12 – Representações de Tārā Vermelha na arte budista tibetana.

126 Optei pelo termo aumentar na tradução ao invés de enriquecer, pois de acordo com as explicações das quais

recebi transmissão oral, não é somente ter mais condições de enriquecimento, o que pode conotar ter mais bens

ou dinheiro, mas é de aumentar também as virtudes, generosidade etc. 127 The female deity Kurukullā, whose practice is the subject-matter of this text, has a particular place and

orientation amid the pantheon of meditational deities. Like all deities, she is a personification of buddhahood

in its entirety. As a female deity, she is understood to embody the wisdom aspect of enlightenment (i.e.,

emptiness), and as a form of the savioress Tārā, herself a manifestation of Avalokiteśvara, she personifies all-

embracing compassion. But her particular quality is related to the “activity” of enlightenment. Many Great

Vehicle scriptures describe the spontaneous and effortless activity of buddhas for the benefit of beings. In

Vajrayāna that enlightened activity is spoken of in terms of four modes, or types, of activity: pacifying,

enriching, magnetizing, and destroying. It is the third of these, magnetizing, that is the special field of

Kurukullā, and it is to deploy that particular quality of enlightenment that a practitioner would undertake her

practice.

70

Fonte: 大嘓瞒筋啊128

Do lado direito Tārā Vermelha no aspecto de salvadora e pacífica, do lado esquerdo seu

aspecto irado, ambas pertencentes ao sistema Vajrayāṇa. Martin Willson (1992) descreve

Kurukullā como sedutora e de quatro braços e detalhes que representam os oito grandes medos,

os quatro braços é uma forma comum nas representações iradas de deidades:

O principal aspecto de Tārā para Kurukullā é de dominação sedutora pela cor

vermelha, de quatro braços. Este aspecto especial de Tārā é para salvar os seres de

cada um dos oito grandes medos – a Tārā vermelha, com cara de leão, olhos e cabelos

amarelos para salvar dos leões, e assim por diante, cada um com seu mantra especial

e gestos [...] (p. 21-22, tradução nossa129)

A prece de proteção dos Oitos Medos foi composta por Atiśa e é um manual (sādhana)

de meditação contra as aflições mentais. Cada um dos oitos medos possui características

externas e internas – quando direcionados para características das aflições mentais e emocionais

–, por isso a aparência externa, como cara de leão por exemplo, é para combater o orgulho

(APPLE, 2019, p. 240), mas também representavam os perigos externos da época.

128 Dà guō mán jin forma ortográfica pinying de aproximação. 129 Tara's main aspect for subjugating is the seductive red, four-armed Kurukulla. There is a special aspect of Tara

for saving from each of the eight great fears-a red, lion-faced Tara with yellow eyes and yellow hair for saving

from lions, and so on, each with Her special mantra and gestures.

71

De acordo com Landesman (2020), Tārā Vermelha também é referenciada como a

antiga Pāṇḍaravāsinī do panteão védico, que, à medida que seu culto cresce, suas emanações

foram ganhando epitetos, como é o caso de Tārā Vermelha ser reconhecida como Kurukullā:

Wayman traça as formas dos Tārās dourados, brancos e vermelhos até as antigas

deusas védicas Sarasvatī, Īḍa e Bhāratī, e propôs que o Tārā verde era uma inovação

dos budistas. Ele observa que a medida que o culto de Tārā cresceu, suas formas

iniciais foram diferenciadas ou incluidas em novos epitetos, como a Tārā Branca

(anteriormente Bhṛkuṭī); a Tārā Vermelha, Kurukullā (anteriormente Pāṇḍaravāsinī)

[...] (LANDESMAN, 2020, p. 47, n. 27, tradução nossa130)

No TMK, Pāṇḍaravāsinī é mencionada, mas não há informações de sua cor, assim como

Kurukullā, mas os epitetos que as denominam como Tārā são mencionados (LANDESMAN,

2020, p. 91). Pāṇḍaravāsinī131 aparece no maṇḍala como companheira de Avalokiteśvara, o que

dá indicios de ser a forma pacifica da representação de Tārā Vermelha.

Landesman (2020) concorda sobre a expressão irada, de quatro braços, com o arco e

flecha que Kurukullā carrega em uma das mãos:

130 Wayman traces the forms of the golden, white, and red Tārās to the ancient Vedic goddesses Sarasvatī, Īḍa, and

Bhāratī, and proposed that the green Tārā was an innovation of the Buddhists. He notes that as Tārā’s cult

grew, her early forms were either differentiated from or subsumed by new epithets, such as the White Tārā

(formerly Bhṛkuṭī); the Red Tārā, Kurukullā (formerly Pāṇḍaravāsinī) [...]. 131 Pāṇḍaravāsinī também é descrita como ser uma deidade feminina de Avalokiteśvara, conhecida na China com

o nome de Baiyi Guanyin (白衣觀音), tibetano como Gos dkar mo (གས་དཀར་མ་). O nome abreviado Pāṇḍara é

identificada como Kurukullā também, que significa desejo. Ver em BUSWELL; LOPEZ, 2014, p. 93 e

DHARMACHAKRA, 2020, § i13.

72

Figura 13 – Kurukullā com aspecto irado e nas mãos um arco e fecha

Fonte: LANDESMAN, 2020, p. 89

A descrição de arco e fecha e sedução também se aproxima de formas de Vajrayoginī,

outra deidade de cor vermelha irada:

Há também a irresistível Kurukulla (SM171-90; Beyer 1978: 301-10). De cor

vermelha, e pronta para atirar um arco e flecha feitos de flores, ela é particularmente

associada a ritos de amor e dominação, características que também veremos entre as

formas de Vajrayoginī. (ENGLISH, 2002, p. 45, tradução nossa132).

Vajrayoginī é uma das grandes deidades femininas cultuada no budismo tibetano, cuja

prática foi preservada pela tradição Geluk dentro do sistema da classe superior do tantra, o

anuttarayogatantra.

Dharmachakra Translation Committee (2020, § i17) faz uma menção ao Capítulo Cinco

do texto litúrgico de Kurukullā que conta uma historia do Buda Śākyamuni com seu filho

Rāhula. Ele havia testemunhado o poder do mantra de Kurukullā quando estava em perigo, o

que fez o Buda aparecer na sua frente milagrosamente. Depois desse evento, Rāhula pede ao

Buda os ensinamentos de Kurukullā.

132 There is also the irresistible Kurukulla (SM171-90; Beyer 1978: 301—10). Red in color, and poised to shoot a

bow and arrow made of flowers, she is particularly associated with rites of love and subjugation, characteristics

we will also see among the forms of Vajrayoginī.

73

2.3 Tsongkhapa e a tradição Geluk tibetana

Je Tsongkhapa Lobsang Dragpa (séc. XIV d.C.) foi um grande inovador do budismo

tibetano ao compor grandes tratados, como sua obra intitulada Lamrim Chenmo – O Grande

Tratado do Caminho Gradual da Iluminação, composta em 1402, entre outras grandes

coletâneas (JINPA, 2019, p. 227). Depois de Atiśa, ele é considerado o segundo reformador do

budismo tibetano, não só no requisito teológico, mas também político.

O sistema monárquico da época de Tsongkhapa era regido pela Dinastia Phagdru e

dominado recentemente pela tradição budista Kagyu, uma das três escolas budistas dominantes:

Durante o seu tempo de vida havia três grandes tradições tibetanas do Budismo:

Nyigma, Sakya e Kagyu. As três possuiam grandes disputas por influência e poder, se

aliando com ora os chineses, ora os nepaleses ou ainda os indianos e mongois. Nessa

disputa por poder e supremacia politica e religiosa é que florescem as teorias e debates

budistas no Tibete. (TSAI, P. P., 2021, p. 60)

Tsongkhapa teve diversos professores de ambas as tradições,133 venceu grandes debates

e desde o começo teve como base o budismo indiano dos professores paṇḍitas Atiśa, Asaṅga e

Nāgārjuna.

Tsongkhapa deu prioridade à autoridade de fontes budistas indianas originais sobre

suas interpretações tibetanas; sua ênfase nos entendimentos obtidos por meio de

compreensão pessoal, e não na autoridade da tradição; sua insistência em desenvolver

uma compreensão integrada de toda a herança filosófica e espiritual do budismo

indiano, tanto no sutra, quanto tantra; sua forte defesa da ética vinaya como o

fundamento indispensável da vida espiritual; e seu apelo ao envolvimento na prática

meditativa, mesmo de uma instrução específica, com uma compreensão global de todo

o caminho budista – tudo isso conduziu, inevitavelmente, ao surgimento de uma

tradição inteiramente nova no Tibete, ainda que, queira ou não, o próprio Tsongkhapa

pretendesse criar uma. (JINPA, 2019, p. 276, tradução nossa134)

Com a intenção de compilar os ensinamentos do Buda histórico numa compreensão que

Jinpa (2019) chama de “global”, ele escreve grandes coletâneas em que une os ensinamentos

133 JINPA, T. Tsongkhapa: A Buddha in the Land of Snows. Boulder: Shambhala Publications, 2019, p.13. A

partir daqui será enunciado como JINPA, 2019, seguido de número de página. 134 Tsongkhapa’s prioritization of the authority of original Indian Buddhistsources over their Tibetan

interpretations; his emphasis on insightsgained through personal understanding rather than the authority

oftradition; his insistence on developing an integrated understanding of theentire Indian Buddhist philosophical

and spiritual heritage, both Sūtraand Tantra; his strong advocacy of vinaya ethics as the

indispensablefoundation of spiritual life; and his call for engaging in meditativepractice, even of a specific

instruction, with an overall understanding ofthe entire Buddhist path—all of these inevitably led to the

emergence ofan entirely new tradition in Tibet, whether or not Tsongkhapa himselfintended to create one.

74

do sutra e tantra com fortes alicerces na perfeição de Disciplina Moral135 (Vinaya), dando

continuidade ao trabalho do mestre Atiśa de não corromper os ensinamentos do Vajrayāṇa.

O pensamento budista no Tibete, especialmente o discurso filosófico sistemático, veio

inevitavelmente a ser moldado pela agenda estabelecida pelas obras influentes de

Tsongkhapa. Muitos dos novos desenvolvimentos do pensamento filosófico tibetano,

após Tsongkhapa, tomaram a forma de consolidar ainda mais o seu pensamento ou de

se opor aos seus pontos de vista, particularmente, no que diz respeito à interpretação

da filosofia de vacuidade de Nāgārjuna, a relação entre ontologia e epistemologia, a

filosofia da linguagem, e ao papel da razão e do pensamento no processo

soteriológico. (JINPA, 2019, p. 276, tradução nossa136)

Com a força da interpretação filosófica sobre o vazio de Nāgārjuna, aliado ao Codigo

de Disciplina Moral (Vinaya) estritamente celibatário, Tsongkhapa funda os três grandes

monastérios: Ganden, Drepung e Sera no período de 1416 a 1419. O monastério de Ganden foi

o primeiro a dar surgimento ao que conhecemos de tradição Geluk, que a princípio se chamava

tradição Ganden. Depois da morte de Tsongkhapa a tradição passou a se chamar Geluk que

deriva do nome Geden Ringluk (JINPA, 2019, p. 459), assumida por Gyaltsap e Khedrup, seus

dois discípulos mais importantes e sucessores imediatos:

No final do séc. XV, a totalidade dos escritos conhecidos de Tsongkhapa seriam

compilados como suas Obras Coletadas (sungbum ou kabum), cobrindo cerca de

dezoito ou dezenove grandes volumes. As obras recolhidas de Tsongkhapa seriam,

mais tarde, as obras recolhidas de dois de seus discípulos mais importantes e

sucessores imediatos, Gyaltsap e Khedrup, compreendendo oito e doze grandes

volumes, respectivamente. Juntos, conhecidos como Obras Coletadas do Pai e Filhos

(jé yapsé ungbum), estes volumes tornar-se-iam a maior coleção canônica para

membros da escola Geluk de Tsongkhapa. (JINPA, 2019, p. 227, tradução nossa137)

Conforme destacado pelo biógrafo Thupten Jinpa (2019), Tsongkhapa tinha a intenção

de revitalizar os ensinamentos budistas no Tibete que estavam enfraquecidos pelas disputas de

poder entre as dinastias vizinhas e as tradições dominantes do Tibete.

135 Sobre o Vinaya, Tsongkhapa escreveu um extenso comentário sobre o compêndio Yogacarabhumi do século

IV d.C. sobre a Perfeição de Disciplina Moral no caminho do Bodhisattva. 136 Buddhist thoughtin Tibet, especially systematic philosophical discourse, inevitably came tobe shaped by the

agenda set by Tsongkhapa’s influential works. Many ofthe new developments in Tibetan philosophical

thinking afterTsongkhapa took the form of either consolidating his thought further oropposing his views,

particularly concerning the interpretation of Nāgārjuna’s philosophy of emptiness, the relationship between

ontologyand epistemology, the philosophy of language, and the role of reason andthought in the soteriological

process. 137 By the end of the fifteenth century, theentirety of Tsongkhapa’s known writings would be compiled as his

Collected Works (sungbum or kabum), covering some eighteen ornineteen large volumes. Tsongkhapa’s

collected works would later bejoined by the collected works of two of his most important disciples

andimmediate successors, Gyaltsap and Khedrup, comprising eight andtwelve large volumes, respectively.

Together known as the “Father andSons Collected Works” (jé yapsé ungbum), these volumes would becomethe

major canonical collection for members of Tsongkhapa’s Gelukschool.

75

A força política da escola Geluk inicia com Gendun Drup, um dos seus principais

alunos, sendo nomeado o primeiro da linhagem de Dalai Lamas do Tibete, como explica

Patricia Tsai:

A escola Geluk conta com não apenas a fama e renome de Tsongkhapa, mas também

com a linhagem dos Dalai Lamas, sendo certo que o primeiro foi um dos principais

alunos de Tsongkhapa, de nome Gendun Drup, vindo de maneira ininterrupta aos dias

de hoje como um de seus mais renomados professores o XIV Dalai Lama, Tenzin

Gyatso. (TSAI, P. P., 2021, p. 62).

A tradição Geluk de Tsongkhapa é conhecida como uma das tradições mais

consolidadas em relação aos sistemas de ensino universitário do budismo tibetano, que se divide

entre Sūtra e Tantra devido à sistematização teórica desenvolvida por Tsongkhapa e seus

sucessores dentro desses dois sistemas. O ponto de concordância entre eles está relacionado ao

código de Disciplina Moral ser restritamente celibatário, a fim de dar continuidade àquilo que

fora construido as heranças do seu mestre Atiśa.

Entretanto, não há informações na biografia de Tsongkhapa escrita por Jinpa (2019)

sobre a fundação do primeiro monastério feminino Geluk, o que veremos em mais detalhes no

próximo capítulo.

2.3.1 O sistema Vajrayāṇa de Tsongkhapa e a linhagem de Buda Tārā

A tradição Geluk de Tsongkhapa é percursora de grande parte da linhagem de Tārā que

se disseminou no Tibete. Sobre as primeiras linhagens encontradas de Tārā Vermelha, por

exemplo, das três obras em tibetano, duas foram preservadas na tradição Geluk (STEVENS,

2010, p. i).

Já em relação a Tārā Branca, a referência que encontramos está ligada à sua

representação como Sarasvatī, pois Je Tsongkhapa tinha como deidade meditacional (idam) o

Bodhisattva Mañjuśrī e sua consorte Sarasvatī (WILLSON, 1992, p. 445).

Como vimos anteriormente, há indícios de que Sarasvatī seja uma outra forma de

nomear Tārā Branca, apesar de Sarasvatī não ser muito mencionada entre os pesquisadores

sobre o culto de Tārā nas narrativas em seu surgimento, ela é muito referenciada pelos biógrafos

de Tsongkhapa, pelo fato de Tsongkhapa ser autor de muitas preces e homenagens à deidade.

Especificamente sobre o tantra de Tārā Branca como Sarasvatī,

Wayman (1992, p. 9-10) atribui à composição em sânscrito do VAT a datação de

metade do séc. VI, argumentando que “o grupo feminino de divindades de

Avalokiteśvara podem ser referidas como Tārās”. Wayman traça as formas dourada,

76

branca e vermelha das Tārās a antiga deusa védica Sarasvatī, Īḍa e Bhāratī, e propõe

que Tārā verde é uma inovação budista. Ele nota que conforme o culto de Tārā crescia,

suas formas antigas eram tanto diferenciadas ou subsumidas com novos epítetos,

como a Tārā Branca (antiga Bhṛkuṭī); a Tārā Vermelha, Kurukullā (antiga

Pāṇḍaravāsinī) e; Tārā Dourada ou Amarela (antiga Yaśovatī). (LANDESMAN,

2020, p. 47, n. 23)

Sarasvatī como uma deusa do panteão védico é patrona da poesia, música, ciência e

todas as artes criativas (WILLSON, 1992, p. 445), mas que difere em suas qualidades numa

possivel adoção da deusa védica para o budismo Vajrayāṇa, que ocorre a partir do séc. VI d.C.

quando nomeadas as diversas formas de Tārās. No entanto, Sarasvatī como Tārā Branca é citada

até mesmo em pesquisas de cunho geral, como Wikipédia.138

Jinpa relata na biografia de Tsongkhapa que a deusa acompanhava Tsongkhapa desde

criança:

Aos três anos, a criança Tsongkhapa aprendeu a recitar os mantras de Mañjuśrī e da

deusa Sarasvatī, as duas divindades de meditação no panteão budista tibetano

associadas ao conhecimento, sabedoria e eloqüência poética. (JINPA, 2019, p. 36,

tradução nossa139)

Sua devoção a Sarasvatī o acompanhou em seus extensos retiros, quando ele compôs a

prece de louvor intitulada Homenagem para a Tārā Sarasvati (Anexo B). Sobre este evento

Jinpa aponta para

[...] uma importante nota de rodapé sobre a educação formal de Tsongkhapa no Tibete

central. Logo após seus debates em Sangphu em 1379, Tsongkhapa realizou um retiro

solitário e intensivo focado em Sarasvatī, a deusa da sabedoria e da poesia, recitando

seu mantra mais de cinquenta milhões de vezes. Fontes falam de Tsongkhapa teve

uma visão de Sarasvatī. Profundamente inspirado pela experiência do extenso retiro,

ele compôs um hino poético à deusa [...] (JINPA, 2019, p. 60, tradução nossa140)

Outra importante deidade feminina meditacional de que a tradição Geluk é detentora é

Vajrayoginī, sendo mencionada como central pela tradição:

A Geluk tinha originalmente focado em Vajrayoginī / Vajravarahï em seu papel como

consorte de sua divindade principal, Cakrasamvara, seguindo os ensinamentos de

Tsongkhapa (1357-1419). Cakrasamvara foi uma das três divindades de meditação,

138 https://en.wikipedia.org/wiki/Tara_(Buddhism) Acesso em: 20 set. 2021. 139 By age three, the toddler Tsongkhapa had learned how to recite the mantras of Mañjuśrī and goddess Sarasvatī,

the two meditation deities in the Tibetan Buddhist pantheon associated with knowledge, wisdom, and poetic

eloquence. 140 There is an important footnote to Tsongkhapa’s formal education in central Tibet. Soon after his debates at

Sangphu in 1379, Tsongkhapa undertook an intensive solitary retreat focused on Sarasvatī, the goddess of

wisdom and poetry, reciting her mantra more than fifty million times. Sources speak of Tsongkhapa

experiencing a vision of Sarasvatī. Deeply inspired by his experience of the long retreat, he composed a poetic

hymn to the goddess.

77

junto com Yamàntaka e Guhyasamàja, cujos sistemas Tsongkhapa reuniu como as

práticas fundamentais da escola de Geluk. Neste contexto, o texto explicativo de

Tsongkhapa, Illuminating All Hidden Meanings (sBas don kungsal) é aparentemente

a principal fonte sobre Vajrayoginī (K. Gyatso 1999: xii); e ela realmente foi descrita

como o "yidam mais íntimo de Tsongkhapa, guardado muito secretamente em seu

coração" (ENGLISH, 2002, p. 26-27, tradução nossa141)

Como vimos, há indícios de que Vajrayoginī tenha alguma relação com Tārā Vermelha,

pela semelhança de suas caracteristicas, mas English (2002) explica que o tantra de Tārā, por

ser formador, está contido em todos os tantras, enfatizando a complexidade que seria traçar as

inúmeras sucessões do tantra de Tārā.

Jinpa (2019, p. 85) descreve todas as linhagens de tantra com que Tsongkhapa era

familiarizado desde criança, incluindo o tantra-mãe de Vajrayoginī, destacando que a tradição

Geluk possuia todas as linhagens do sistema Vajrayāṇa através de seu fundador Tsongkhapa.

2.4 Considerações do capítulo

Como vimos, o sistema Vajrayāṇa de Tārā é muito presente no budismo tibetano Geluk,

desde a tradição que vem de Atiśa, até a permanência dela com Je Tsongkhapa. Ambas as

histórias são marcadas por mudanças sociais políticas e religiosas que mudaram os percursos

da história do budismo no Tibete.

Je Tsongkhapa claramente estava empenhado em dar continuidade à herança do mestre

Atiśa, transformando o budismo tibetano Geluk em um budismo nos moldes acadêmicos

inspirados nos paṇḍitas de Nālandā e Vikramaśīla, incluindo Atiśa, um dos mestres altamente

qualificado como ponto de partida. O sistema Vajrayāṇa tibetano também sofreu alterações, ao

longo dos séculos, tornando-se um sistema acadêmico separado por tamanha complexidade

(TSAI, P.M., 2021, p.19).

As narrativas literárias de Tārā de alguma forma impactaram e moldaram a cultura

popular tibetana, principalmente as classes mais acessíveis do tantra como kriyā e caryā.

Restringindo, excepcionalmente na tradição Geluk, um estudo sistemático universitário restrito

aos monastérios. Na biografia de Tsongkhapa escrita por Thupten Jinpa (2019) não encontrei

141 The dGe lugs pa had originally focused upon Vajrayoginī/Vajravarahï in her role as consort to their main deity,

Cakrasamvara, following the teaching of Tsong kha pa (1357-1419). Cakrasamvara was one of the three

meditational deities, along with Yamàntaka and Guhyasamàja, whose systems Tsong kha pa drew together as

the foundational practices of the dGe lugs school. In this con­ text, Tsong kha pa’s explanatory text,

Illuminating All Hidden Meanings (sBas don kungsal) is apparently the main source on Vajrayoginī (K. Gyatso

1999: xii); and she has actually been described as Tsong kha pa’s “innermost yidam, kept very secretly in his

heart” (Ngawang Dhargyey 1992: 9).

78

nenhuma informação sobre os monastérios femininos, mas há claramente uma narrativa das

deidades femininas em toda estruturação teológica.

Tsongkhapa, na sua principal obra, Lamrim Chenmo, direciona os ensinamentos para a

saṃgha de monges, homens celibatários, deixando os ensinamentos do tantra reservados a

outras obras específicas do sistema Vajrayāṇa. Mas estes estudos foram mantidos de forma

restrita ao sistema universitário, pelos motivos levantados que levaram Atiśa ao Tibete – a

corrupção do código de Disciplina Moral que contradizia os ensinamentos do Buda histórico

registrados no sūtras.

De acordo com as pesquisas aqui levantadas, o sistema Vajrayāṇa precisa ser estudado

de forma estruturada, acompanhado de conselheiros meditativos. Neste sentido, a pesquisadora

Rachael Stevens (2010) ressalva não seguir uma metodologia feminista ao analisar os textos

canônicos os quais traduziu em sua tese de doutorado sobre Tārā. Ela deixa um recado

importante às/aos futuras/os pesquisadoras/es do tema sobre a problemática do tantra ser

interpretado mal, pois os textos-fontes (canônicos) precisam ser analisados e estudados com

cautela em sua língua original; ainda assim, é preciso eclipsá-los, e isso só é possível com a

ajuda de professores/as qualificado/as aos moldes que a tradição pede.

O olhar feminista será importe para analisar a sociedade tibetana e entender os motivos

pelos quais as mulheres não estavam incluídas no sistema universitário budista. O que veremos

no próximo capítulo.

79

3 CAPÍTULO III - TĀRĀ: MULHERES NO BUDISMO TIBETANO

Homenagem a você, Tārā, a comunidade espiritual,

O corpo secreto, fala e mente

De todos os sugatas dos três tempos

Totalidade de sabedoria das ḍākiṇis. Atiśa, verso 03142

O presente capítulo traz um panorama sobre as mulheres budistas e o contexto histórico-

social-religioso na época do Buda histórico, como uma tentativa de olhar para a vida da mulher

budista da tradição Geluk na atualidade, tanto para a comunidade monástica feminina quanto

para as mulheres leigas.

Como foi visto no capítulo anterior, as deidades femininas, especialmente a de Tārā, em

suas inúmeras representações, sempre estiveram muito presentes na vida dos grandes estudiosos

budistas, mas uma pergunta que não silencia é onde estavam as mulheres nas universidades e

nos monastérios budistas Geluk? Se as ḍākiṇis143 sempre foram detentoras de grande sabedoria,

por que elas não ensinavam formalmente? Por que seus nomes foram silenciados?

Na tentativa de responder a essas perguntas, o capítulo foi dividido em quatro partes. A

primeira faz uma exposição acerca do protagonismo feminino na época do Buda histórico, bem

como da luta das mulheres pela formação da primeira comunidade de monjas budistas.

Abordam-se o protagonismo invisível das mulheres nas comunidades; os relatos das monjas

anciãs no texto canônico Therīgāthā que foram esquecidos por diversos especialistas no

budismo tibetano; e as mulheres patronas que financiavam as comunidades, como a narrativa

de Tārā personificada na princesa Jñānacandrā e suas inúmeras oferendas à comunidade

monástica. E, por fim, mas não menos importante, é feito um panorama sobre o monasticismo

feminino tibetano, tendo como foco a desigualdade no número de monjas em relação aos

monastérios masculinos e, também, a significativa quantidade de mulheres na tradição Geluk

tibetana, que é a segunda maior entre as quatro escolas dominantes.

142 Prece composta por Atiśa para Tārā como as Três Joias. Traduzido para o inglês por James B. Apple, 2019, p.

233-234:

“Homage to you, Tārā, the spiritual community,

The secret body, speech, and mind

Of all the sugatas of the three times

Aggregation of wisdom ḍākiṇīs.” 143 Mulheres, emanações de deidades femininas, em tibetano མཁའག་མ (mkha’gro ma).

80

A segunda parte do capítulo é dedicada a um breve levantamento dos estudos sobre as

mulheres na sociedade tibetana. Com uma visão mais contemporânea, pesquisadoras

feministas, historiadoras, sociólogas e teólogas discutem como é possível fazer uma análise de

gênero a partir dos antigos modelos religiosos, questionando se eles podem mesmo fornecer

uma imagem que traduza as necessidades da mulher tibetana na atualidade. Em seguida, uma

importante questão nos traz à luz um problema maior de estrutura institucional, que precisa ser

superado: a defasagem educacional dessas mulheres, principalmente na vida religiosa, que

limita seus papéis como lideranças institucionais e acadêmicas. Já no recorte das mulheres

pertencentes à tradição Geluk, na difícil tarefa de encontrar pesquisas sobre o papel da mulher

nessa escola, trago um demonstrativo da situação das praticantes na atualidade. Infelizmente

esses dados não cobrem uma parte significativa de praticantes leigas, por força da escassez de

informações.

Na terceira parte, realizou-se uma breve exposição do protagonismo de Tārā nas escolas

do budismo tibetano, nas linhagens e nos ensinamentos, textos litúrgicos compostos e

preservados nas tradições. Além de voltar um olhar interseccional às mulheres professoras e

detentoras da linhagem de Tārā e de outras deidades femininas, fazendo sempre que possível

uma comparação com a tradição Geluk.

O quarto tópico é dedicado às mulheres budistas da tradição Geluk na atualidade e às

representações de Tārā como modelo para as praticantes, monjas e leigas, dessa tradição. O

ponto de partida é uma reflexão inspirada na autora indiana Gayatri Spivak (1994) sobre as

possibilidades de negociações que as narrativas sofrem por força de implicações políticas. A

fim de olhar para as narrativas de Tārā nessa perspectiva, abre-se uma discussão sobre a

centralidade de Tārā no sistema budista Mahāyāna e os indícios de uma certa inclusão

soteriológica apresentada pelo pesquisador Bee Scherer (2018) nos estudos teológicos. A última

parte traz, ainda, um olhar sobre a importância do modelo feminino para um caminho

antagonista das mulheres da tradição Geluk, esse caminho não outro do que aquele firmado nas

estruturas institucionais acadêmicas.

3.1 Situando o protagonismo feminino no Budismo

Apesar de o Buda histórico ter enfrentado grandes problemas na inclusão da mulher na

comunidade monástica, sendo radical em elevar a mulher perante as realizações espirituais,

81

colocando-as em pé de igualdade144 aos homens; após a sua morte, a construção da religião

budista teve cursos bem diferentes que perduram até os dias atuais. Ao longo dos séculos, a

religião foi moldada por mestres, gurus, professores, majoritariamente homens, o que implica

que a produção de conhecimento sobre a religião budista foi socialmente construída por um

sistema patriarcal.

Linda Woodhead 145 afirma que, quando se trata de religião, é preciso olhar sob

perspectivas de gênero, pois a construção do conhecimento do que é verdade na religião é

afetada pelas relações de poder. Por exemplo, nas produções literárias de Tārā, segundo relatos

históricos, há o protagonismo feminino, mas quase não há, na história do budismo ao longo dos

séculos, mulheres realizadas que foram grandes eruditas, professoras e assim por diante.

Nesse sentido, Sandra Duarte de Souza aponta:

No âmbito dos estudos de religião, os Estudos Feministas permitiram o

questionamento e a desconstrução dos discursos de verdade baseados na evocação de

pressupostos religiosos para afirmar e perpetuar desigualdades de gênero. (SOUZA,

2015, p. 15)

Assim, o olhar para as ciências budistas na perspectiva de gênero é importante, não só

por uma representatividade feminina, mas para recorrer às bases fundamentais do princípio de

equanimidade proposto pelo Buda, que, por muitas vezes, foi levantado nas narrativas de Tārā,

desconstruindo pressupostos religiosos de sua época, mas que ainda não foi capaz de romper

com as desigualdades de gênero nas tradições budistas ao longo dos séculos, especialmente na

patriarcal sociedade tibetana.

De fato, há razão quando Nona Olivia146 chama atenção ao contexto histórico das vidas

dessas mulheres em suas vivências religiosas, que não deve ser desconsiderado ao ler seus

relatos, pois elas não estavam reivindicando seus direitos femininos em sociedade, elas estavam

relatando suas trajetórias em busca da paz definitiva dos sofrimentos existenciais, que são

inerentes a todos os seres humanos, ou seja, que independem de gênero.

3.1.1 Qual a posição das mulheres no tempo do Buda histórico?

144 A igualdade mencionada aqui é com relação ao princípio fundamental de equanimidade proposto pelo Buda. 145 WOODHEAD, Linda. As diferenças de gênero na prática e no significado da religião. Estudos de Sociologia,

Araraquara, UNESP, v. 18, n. 34, 2013. A partir daqui será enunciado como WOODHEAD, 201, seguido de

número de página. 146 OLIVIA, Nona (Sarana). Aprendendo com o Therīgāthā - O que libertou a venerável monja Uttamā. The Sati

Journal: The Journal for the Sati Center Buddhist Studies, 2011. A partir daqui será enunciado como OLIVIA,

2011, seguido de número de página.

82

O budismo nasce numa sociedade indiana patriarcal, na qual a mulher era subjugada,

fazendo lamentar o nascimento feminino e a tratando como propriedade, fato esse tão

problemático que fez o Buda a princípio negar a formação monástica feminina e enfrentar

paradigmas de sua época em relação à mulher. Por outro lado, o Buda ensinava sem

discriminação de cor, casta ou gênero, conforme destacado por Nirvana França:

A forma como o Buda ensinava e o que ele ensinava trazia uma revolução nos valores

da época, em especial, rejeitando as castas e a discriminação de gênero. Sponberg

explica que, para entender melhor a complexidade desse espírito inclusivo em relação

às mulheres no início do budismo, devemos demonstrar sua relação com a rejeição do

Buda às distinções de casta ou classe. Ambas as visões sociais são derivadas dos

princípios filosóficos em que ele se baseou. Assim como o objetivo budista não se

limita aos que nascem em um grupo social, também não se limita aos que nascem

homens ou mulheres. (FRANÇA, 2020, p. 38)

O sistema de crenças que o Buda enfrentava era uma organização social a partir de uma

revelação divina dos Vedas e de exegeses dos textos sagrados dos Upaniṣads que impunham

papeis sociais, esse texto é o Manusmṛiti.147 Apesar de ser um escrito de difícil datação, por ter

sofrido muitas edições e traduções ao longo dos séculos, há um consenso entre os pesquisadores

de que ele estava vigente durante o tempo de vida do Buda histórico (TSAI, P. P., 2021, p. 33).

O Manusmṛiti ditava a ordem social que deveria ser respeitada à risca, na qual havia

uma hierarquia que contemplava privilegiados e excluía os desprovidos por não terem

proximidade com a essência divina, daí surge a divisão por casta. 148 Então, o contexto

enfrentado pelo Buda “era de uma sociedade dividida em classes, adquiridas por força do

nascimento, e com isso há pouca ou quase nenhuma mobilidade social” (TSAI, P. P., 2021, p.

35), sendo as regras ainda mais restritivas às mulheres:

[...] um dos pontos mais simbólicos quando se fala da situação da mulher na Índia se

refere às leis de Manu (Manusrmith): elas colocam um ponto importante sobre a

liberdade das mulheres, que literalmente era nula segundo esta lei, pois quando

solteira ela deveria responder ao pai ou ao irmão mais velho, quando casada ao marido

e quando viúva (considerando que ela não tenha sido queimada viva ao ter se tornado

viúva) ela deveria obedecer ao filho mais velho. A questão do pouco valor dado à

mulher era tão grande que ao se casar ela tinha um novo nascimento, ou seja,

pertencia, era propriedade de outra família. Versam sobre a organização jurídica na

Índia no tempo do Buda o Código de Manu. (FRANÇA, 2020, p. 28)

147 Também conhecido como Manavadharmaśāstra ou Leis de Manu em países europeus, uma categoria do texto

Dharmasūtras dos Vedas. Mais detalhes em TSAI, P. P., 2021, p. 31-33. 148 As castas ou classes (kula vaṃsa, zhǒngzú, 種族) são as quatro classes da sociedade indiana: artesãos,

comerciantes, sacerdotes e guerreiros. Os escravos não estão inclusos entre os quatro, pois eram excluídos da

sociedade para “pagar” suas negatividades mediante sofrimento. Acreditavam que suas negatividades eram

mais pesadas do que dos animais. Veja mais em TSAI, 2019a, p. 78.

83

Patricia Tsai acrescenta:

Dentro do contexto social da Índia, as mulheres eram tratadas em mesmo plano que

os indivíduos de baixa casta, e suas obrigações sociais eram casar, ter filhos e seguir

as regras sociais, e com o advento do Buddha histórico passa a ser diferente, de

igualdade. (P. P., 2021, p. 48)

Apesar de o Buda ter uma postura radical de enfrentamento aos padrões da sua época, o

status das mulheres na Índia era fortemente ligado às relações familiares, e elas precisavam de

motivos muito fortes para renunciar a esse modelo de família já enraizado nas crenças

arquetípicas149 da época.

O status das mulheres na Índia está fortemente ligado às relações familiares, onde esta

unidade é vista como de importância crucial e patrilinear. São grupos geralmente

multi-geracionais, com a mulher se mudando para viver com os sogros. As famílias

são hierárquicas, com os idosos tendo autoridade sobre as gerações mais jovens e os

homens sobre as mulheres. (FRANÇA, 2020, p. 27)

O Buda, ao considerar todos em pé de igualdade, rompendo com o código social de

castas e aceitando mulheres na comunidade, rompe também com a crença de essência divina,

ou seja, com o modo que a sociedade fundamentava a realidade, como explica Plínio Tsai:

O Buda histórico se contrapôs a essa originação divina por geração, a partir da crença

na existência, a partir da crença na essência divina nos seres vivos e no mundo, no

lugar ele colocou a interdependência (co-originação-dependente) e posicionou Deus

para fora da estrutura cognitiva dos seres sencientes, afirmando a inexistência da

essência divina gerada, por isso imutável, em qualquer ser sencientes. Não é que no

tempo do Buda histórico não houvesse outros que interpretavam os Vedas de uma

maneira diferente, mas no caso do Buda há uma mudança radical no fundamento da

realidade. (TSAI, 2019a, p. 52, grifo no original)

Ele estava fundamentado com bases sólidas no conceito de interdependência, que faz

a/o praticante se voltar para a investigação da sua própria realidade e de tudo que a/o cerca. O

entendimento dessa co-originação-dependente é o conhecimento dos sofrimentos existenciais

que prende todos os seres sencientes na prisão do saṃsāra, isso inclui homens e mulheres.

3.1.2 A primeira comunidade monástica feminina

149 Tais crenças nos modelos de uma tríade de deidades indianas que formam uma família feliz: Shiva, Parvati,

Ganesha. Mais detalhes em FRANÇA, 2020, p. 27.

84

O Buda trazia uma proposta de ver a realidade completamente diferente do que já havia

existido, era um ambiente revolucionário nos valores ético-social-religiosos. Dessa forma, as

mulheres sempre estiveram presentes no budismo, desde a época do Buda, inicialmente como

leigas.

Elas não só davam apoio à comunidade do Buda, sendo benfeitoras, como participavam

ativamente dela. Além de fazerem parte da saṃgha, 150 seguindo o Buda, ouvindo seus

ensinamentos e praticando-os diligentemente. Mas o Buda enfrentava um momento político

delicado ao equiparar os seres, rejeitando o sistema de castas, ensinando mulheres, escravos e

excluídos sem apoio de reinado. Qualquer problema poderia causar confronto com outras

religiões que estavam no poder.

Há indícios de corrupção em diversas tradições do budismo, em que a história da

primeira comunidade feminina sofreu alterações, principalmente em relação à primeira aluna

do Buda e ao pedido de Mahāprajāpatī, sua madrasta:

Nesta investigação inquietante descobrimos que o processo de fundação da

comunidade feminina budista é envolto por contratempos e seus registros são objeto

de questionamentos quanto a possível corrupção. (FRANÇA; MARQUES, 2022, p.

1, tradução nossa)151

São unânimes os registros em vários Sermões do Buda de que, somente após cinco

anos da primeira fundação monástica masculina, é fundada a comunidade feminina através da

insistência de Mahāpajāpatī:

De fato, o Buda nega em um primeiro momento a fundação da comunidade monástica

feminina, mas como já discutido é provável que ele tenha oferecido uma opção às

mulheres, porque seria uma afronta muito grande que elas raspassem seus cabelos e o

seguissem em peregrinação sem alguma forma de consentimento; além disso, nota-se

que Ānanda ao ver as mulheres tomando tal posição não expressa nenhuma

estranheza. (FRANÇA, 2020, p. 104-105)

Mahāprajāpatī Śākya Gotamī é símbolo para as mulheres budistas, sendo considerada a

mãe de todas as monjas, por ser pioneira nessa luta de igualdade e inspiração para muitas

mulheres no seu tempo e nos dias de hoje; sua história no caminho para o despertar é

150 O termo saṃgha significa comunidade de praticantes, em tibetano é མཆག་. 151 “En esta inquietante investigacion descubrimos que el proceso de fundacion de la comunidad femenina budista

está lleno de adversidades y que sus registros son objeto de interrogantes en cuanto a una posible corrupcion

(FRANÇA, 2020). Es un hecho que las mujeres se adentraron en el budismo desde sus inicios. Descubrimos

que la primera mujer que siguio las enseñanzas del Buda historico fue la madre de Yashas, que se convirtio en

una discipula laica (KULAVAGGA, 1885). Sin embargo, desde el primer momento, los hombres se

convirtieron en monjes renunciantes, mendigos de limosnas y de alimentos. Unos cinco años después de la

fundacion de la comunidad masculina, Mahāprajāpatī, la madre adoptiva del Buda, decidio que era el momento

de que las mujeres ingresaran en la vida monacal.”

85

emocionante. A história conta que ela liderou um grupo de quinhentas mulheres em marcha,

após a negativa do Buda à fundação da saṃgha, com o objetivo de fundar sua própria ordem

de renunciantes; elas raspam a cabeça e vestem-se com as vestimentas monásticas, mas há

controvérsias entre os textos Discurso para Gotami e o Kullavagga (FRANÇA, 2020, p. 54) de

que realmente a história de afronta ocorrera dessa forma.

Na versão Sarvāstivāda, mantida pela tradição Theravāda, segundo Anālayo 152 , há

outras versões de que o Buda teria concedido ela ingressar na vida monástica e que não teria

sido uma afronta:

A versão Sarvāstivāda relata similarmente o Buda concedendo a Mahāprajāpatī

Gautamī a permissão de cortar o cabelo e usar vestes monásticas. No relato

Mūlasarvāstivāda preservado na tradução chinesa, a passagem correspondente fala [da

opção] de usar roupas de túnicas brancas. Em uma seção subsequente da versão do

Mūlasarvāstivāda, quando Mahāprajāpatī Gautamī repete seu pedido depois de ter

seguido o Buda em suas viagens, a permissão do Buda fala de ela usar “Roupões de

retalhos remendados”. Essa parte também foi preservada na versão em sanscrito,

segundo a qual o Buda realmente deu permissão para raspar seus cabelos e usar um

saṃghāṭi, o manto monástico externo. (ANĀLAYO, 2016, p. 51, tradução nossa153)

No entanto, Nirvana França (2020) esclarece que, de fato, o Buda havia dito a

Mahāprajāpatī para cortar seus cabelos e usar as vestes, porém esse ato seria uma forma de ela

praticar renúncia e experienciar a vida monástica, mas sem correr riscos na peregrinação, como

era feito pelos homens:

A discussão proposta pelo Bhikkhu Anālayo é que o Buda oferece uma alternativa as

mulheres para que estas possam viver o que ele chama de “vida santa”, sem se

colocarem em risco como aconteceria numa vida de peregrinação, como andarilhas,

expostas e sem proteção. Desta forma, a próxima passagem é significativa, pois as

mulheres raspam seus cabelos, vestem-se como os monges, fato não destacado ou

comentado, e seguem por centenas de quilômetros a pé para seguir o Buda [...]

(FRANÇA, 2020, p. 57)

Contudo, as condições na época eram muito impróprias para as mulheres, o Buda sabia

disso e estava articulando qual forma seria mais adequada. O próximo passo da história é sobre

152 ANĀLAYO, Bhikkhu. The foundation history of the nun’s order. Freiburg. Projekt Verlag. 2016. A partir

daqui será enunciado como ANĀLAYO, 2016, seguido de número de página. 153 “The Sarvāstivāda version similarly reports the Buddha granting Mahāprajāpatī Gautamī permission to shave

off herhair andput onmonastic robes. In the Mūlasarvāstivāda account preserved in Chinese translation, the

corresponding passage speaks instead of wearing white robes or clothes. In a subsequent section of the

Mūlasarvāstivāda version, when Mahāprajāpatī Gautamī repeats her request after having followed the Buddha

on his travels, the Buddha’s permission speaks rather of her wearing “patchwork robes”. This part has also

been preserved in the Sanskrit fragment version, according to which the Buddha indeed gave her permission

to shave off her hair and wear a saṃghāṭī, the outer monastic robe.”

86

a intervenção de Ānanda, que era primo e atendente pessoal do Buda. Há algumas versões154

sobre como foi a intervenção de Ānanda. De todo modo, ele teve êxito em conseguir a

permissão do Buda para que as mulheres ingressassem na vida monástica, porém, para que isso

fosse possível, elas teriam que assumir os preceitos chamados de Gurudharmas (sânscrito) ou

Garudhammas (pāli), então

[...] quando Mahāprajāpatī aceita os princípios a serem respeitados (isso considerando

a hipótese deles serem verdadeiros) ela os fez, segundo Murcott (1991), porque tinha

em mente um objetivo maior, que era o de conseguir o estabelecimento da ordem das

monjas e a respectiva autorização para que elas deixassem a vida em família. Aceitar

tais preceitos seria um “problema” menor se comparado com os enfrentados pela

domesticidade que era imposta a elas. Ao aceitar, o objetivo de poderem trilhar o

caminho para libertação foi alcançado. (FRANÇA, 2020, p. 182)

Plínio Tsai traz argumentos indicando que tais preceitos só foram efetivamente adotados

após a morte do Buda e que

[...] talvez mesmo no séc. III a.C., com a vinda do Imperador Aśoka dos Mauryans -

a diferença entre homens e mulheres, por meio da construção do que veio a ser

chamado de Oito Guru Dharmas, texto fundamentado na ideia de que para ordenar as

mulheres, Ānanda seu monge gerente, teria pedido por condições especificas para que

as mulheres continuassem abaixo da honra e respeito concedido para os homens

ordenados, o que, supostamente, o Buda teria aceito. No entanto essa é uma suposição

que encontra diversas contraposições [...] (TSAI, 2019a, p. 261, grifo no original)

Infelizmente esses preceitos são usados até hoje. Eles são obstáculos que precisam ser

superados, por serem utilizados como ferramentas de subordinação e opressão da comunidade

feminina. Nirvana França (2020), monja budista, dedicou sua dissertação de mestrado a analisar

os indícios de corrupção dos textos que trazem à tona tais preceitos, evidenciando os pontos em

que podem ter ocorrido possíveis adições.

3.1.3 Protagonismo invisível

A literatura budista é muito rica em destacar um cenário propício às realizações de

grandes mestres e professores, mas pouco se sabe sobre as praticantes femininas, suas

conquistas e participações na história que remontaram as narrativas literárias, iconográficas e

canônicas. É unanime entre as/os pesquisadoras/es que há um obscurecimento da história das

mulheres no budismo, apesar do conceito igualitário proposto pelo Buda histórico, como já foi

visto.

154 Para mais detalhes, veja FRANÇA, 2020, p. 59-69.

87

Sabemos que, ao longo do tempo, os ensinamentos do Buda foram interpretados e

traduzidos por seus estudiosos em suas línguas nativas, fundamentando-se em seus contextos e

culturas. Infelizmente, alguns falharam em dar continuidade à proposta equânime de equiparar

homens e mulheres, como afirma Owen155:

Estudiosos quase unanimemente concordam que as escrituras budistas foram editadas,

codificadas e traduzidas por homens. Além disso, todos os textos canônicos são

atribuídos a uma composição masculina, ou seja, o Buda é o autor implícito. Portanto,

a possibilidade de vieses androcêntricos e falocêntricos nos textos deve ser evocada

continuamente. (OWEN, 1998, p. 10, tradução nossa156)

Rita Gross (1993) também partilha da mesma opinião, mas elogia o budismo indiano

por ter como herança a antologia de literatura das primeiras monjas budistas relatadas no texto

canônico Therīgāthā. 157 Infelizmente, há investigações que mostram que essa literatura

feminina também fora escrita por homens; por meio de comparações feitas por Kathryn

Blackstone (2000), foram notadas semelhanças entre essa literatura e os poemas masculinos

registrados no texto Theragāthā (coleção de poemas masculinos; thera: homem iluminado,

gāthā: poema).

Own (1998) chama a atenção para o registro androcêntrico e falocêntrico das escrituras

que, infelizmente, desmerece a luta dessas mulheres colocando o objetivo do completo

despertar como secundário:

Não é de surpreender que as primeiras mulheres budistas, vivendo numa cultura

androcêntrica e patriarcal, são registradas como “viúvas”, “matronas”, “esposas

deslocadas” e “mães de filhos mortos”. A mensagem aqui é clara: somente aquelas

mulheres que não estão mais ligadas a pai, marido ou filho podem desconsiderar as

convenções da sociedade indiana e renunciar ao papel tradicional da mulher em favor

da vida monástica. Ao identificar essas mulheres renunciantes em relação aos homens

e aos seus antigos papéis “tradicionais” como esposas e mães, o registro budista falha

em conceder a essas mulheres total independência e agência. Em um registro

androcêntrico e patriarcal contaminado, essas mulheres revolucionárias são retratadas

155 OWEN, Lisa Battagli. On Gendered Discourse and the Maintenance of Boundaries: A feminist Analysis of the

Bhikkhuni order in Indian Buddhism. Asian Journal of Women's Studies, v. 4, n. 3, 1998. A partir daqui será

enunciado como OWEN, 1998, seguido de número de página. 156 “Scholars almost uniformly agree that the Buddhist scriptures were redacted, codified, and translated by men.

Further, all canonical texts are attributed to male composition, i.e., the Buddha is the implied author. Thus, the

possibility of androcentric and phallocentric biases in the texts must continually be evoked. Consequently, one

must question whether the texts reflect a male or masculine perspective, thus revealing only one-half of the

“(sexual) spectrum” of perspectives, knowledges, and experiences.” 157 O Therigāthā é um conjunto de poemas em forma de cânticos. Theris significa mulheres iluminadas, gāthā

refere-se a poemas. Os poemas relatam a vida das monjas no tempo da comunidade no tempo do Buda. É

chamado também de theris de udānas, que quer dizer que são escrituras canônicas. Ver em FRANÇA;

MARQUES, 2021, p. 33.

88

como ingressando na comunidade monástica porque não havia outra alternativa, e essa

era sua última esperança. (OWEN, 1998, p. 27, tradução nossa158)

No entanto, a pesquisadora Nirvana França (2020) ressalva que havia razão de a maioria

das mulheres indianas no tempo do Buda tomarem refúgio na comunidade monástica por

viverem em situação de vulnerabilidade, mas que isso é mais um fator revolucionário de suas

renúncias:

Nestes poucos textos, encontramos relatos que mostram a mulher que busca o refúgio

na comunidade (saṃgha) como uma alternativa da sua situação. Decerto como foi

apresentado, a realidade da mulher indiana naquele tempo era vulnerável, e sua vida

estava em risco constante. As situações às quais ela se sujeitava eram degradantes e

seu status de propriedade as colocava em condições que são inadmissíveis para os dias

atuais. Mas simplesmente reduzir a luta destas mulheres a uma fuga é desmerecer seu

poder revolucionário. (FRANÇA, 2020, p. 41-42)

Seus relatos são suas próprias vivências, parte importante no caminho da libertação dos

sofrimentos que não pode ser ignorada, mas que, diferente dos homens, a renúncia das mulheres

expressava suas angústias de vida, como esposas, mães, prostitutas, concubinas, além dos

perigos de violência que enfrentavam:

O modelo de libertação que o Therigāthā apresenta as dificuldades e lutas destas

mulheres na vida que elas tinham antes de se tornarem monjas (renunciantes),

dificuldades essas diferentes das dos homens, e que também são descritas em literatura

chamada de Theragāthā (thera: homem iluminado, gāthā: poema). As obras

masculinas e femininas diferem em temática e nas descrições das superações para se

tornarem iluminados e iluminadas. A principal fonte dos conflitos masculinos era a

questão dos desejos sexuais pelas mulheres, o que combatiam minimizando o contato.

Já para as mulheres, embora fosse cenário desejável para conquista da libertação,

assim como era para o Buda e os monges, a floresta representava perigo latente de

estupro e de outras violências. (FRANÇA; MARQUES, 2021, p. 33, grifo no original)

A realidade dos homens, de fato, era diferente da das mulheres, assim como ainda é

atualmente. Na época do Buda, os homens viviam em parques e florestas, e as mulheres viviam

em comunidades isoladas pelos motivos apresentados acima. Nesse mesmo sentido,

[...] Nona Olivia (2011), pesquisadora de mulheres anciãs na religião, diz que, para

ler o Therigāthā, é necessário entender o contexto cultural e historico de vida dessas

158 “It is not surprising that the first Buddhist women, living in an androcentric and patriarchal culture, are recorded

as being ‘widows,’ ‘matrons,’ ‘displaced wives,’ and mothers of deceased children. The message here is clear:

only those women who are no longer bound to a father, husband, or son can pennissibly disregard the

conventions of Indian society and renounce the traditional role of women in favor of the monastic life. By

identifying these renunciant women in relation to men and to their former ‘traditional’ roles as wives and

mothers, the Buddhist record fails to grant these women full independence and agency. In a tainted androcentric

and patriarcal record, these revolutionary women are portrayed as joining the monastic community because

there was no other alternative, and this was their last hope.”

89

mulheres que viviam na Índia antiga, se distanciado daquilo que muitos/ as referem

como o feminino, um termo quase Jungiano, popularizado no começo da segunda onda

do feminismo. (FRANÇA; MARQUES, 2021, p. 35)

Nona Olivia (2011) propõe que olhemos as histórias dessas mulheres considerando o

objetivo soteriológico que elas se propuseram a relatar, pois é notório que elas queriam inspirar

outras mulheres às realizações que foram tão difíceis de serem conquistadas.

A questão principal aqui é questionar os motivos de essa literatura não ter o destaque

que merece, uma vez que raramente são encontrados relatos das monjas anciãs nos grandes

tratados budistas. Apesar de a tradição Geluk ter preservado o cânone dos versos das monjas,159

não pude encontrar menção disso nas principais obras da tradição Geluk, como no Lamrim

Chenmo.

Um fato relevante, muito bem observado na arqueologia budista, são os indícios de que

muitas das imagens iconográfica foram encomendadas e/ou financiadas por mulheres. Esse

estudo foi levantado porque havia uma figura feminina na estrutura da cena do Sermão do Buda

sobre as Quatro Nobres Verdades na base da estela de Sernath (PICCIN, 2021, p. 85, n. 91); e,

além dessa comprovação, alguns pesquisadores investigam outros diversos financiamentos de

monumentos budistas vinculados a mulheres.

A narrativa de Tārā, personificada na princesa Jñānacandrā, é um exemplo de

benfeitoria, pois a princesa fazia muitas oferendas para a comunidade monástica. Tamanha era

a bondade expressada por ela à comunidade, que os monges pediam para que ela se

transformasse em um homem, a fim de completar o que eles achavam ser o pré-requisito final

para alcançar as realizações.

Também vivia ali a filha do rei chamada Jnānacandrā, “Lua de Sabedoria”, que

grandemente reverenciava os ensinamentos do Tathāgata. Ela prestava homenagens

ao Buddha, juntamente com seu séquito – uma comunidade infinita de discípulos

(srāvakas) e seres iluminados (bodhisattvas) – por centenas de milhões de anos. Todos

os dias ela fazia oferendas iguais em valor ao montante de joias que preenchiam

completamente doze milhas em cada uma das dez direções... e ela gerou o Pensamento

da Iluminação (bodhicitta). Que é a geração do pensamento último. Naquele tempo,

um grupo de monges implorou a princesa, “Se você aspira servir os ensinamentos do

Buddha, devido às suas raízes de virtudes, você será transformada em um homem

nesta mesma vida. (COLLECTED Works, 1979, fol. 522 (3ª) apud LANDESMAN,

2008, p. 28, tradução nossa160)

159 Ver em SKILLING, Peter. Esā agrā: Images of nuns in (Mūla-) Sarvāstivādins literature. Journal of

International Association of Buddhist Studies (JIABS), v. 24, n. 2, 2001. A partir daqui será enunciado

como SKILLING, 2001, seguido de número de página. 160 “Also living there was the king’s daughter Jñānacandrā, ‘Moon of Wisdom,’ who greatly revered the

Tathāgata’s discourse. She worshipped the Buddha, together with his retinue — an infinite community of

disciples (śrāvakas) and enlightened beings (bodhisattvas) — for hundreds of millions of years. Every day she

90

Não é novidade no budismo as mulheres serem mencionadas como patronas, não só por

defenderem a causa budista, mas também por darem suporte às comunidades. Assim como

destaca Nirvana França:

São consideradas patronas da religião porque defendiam a causa budista. Como

discípulas leigas davam suporte as comunidades. Algumas provendo condições de

sustento, outras alugando parques para que as comunidades pudessem se estabelecer.

Foi previamente explicado que a condição da mulher naquela época era

desprivilegiada, contudo algumas convenciam seus maridos a patrocinar a causa, e

por esta razão elas eram consideradas as patronas. Outras eram importantes cortesãs,

sendo que neste caso, elas possuíam recursos próprios (FRANÇA, 2020, p. 38, n. 59)

A questão principal é que essas mulheres foram esquecidas na história, e não há muitos

registros de suas participações, seus nomes etc.; mesmo enquanto patronas ou benfeitoras, suas

histórias foram esquecidas.

3.1.4 Monasticismo feminino tibetano

Conforme Tsomo,161 o número de monjas no Tibete antes da invasão chinesa de 1950

foi subestimado. O Conselho para Assuntos Religiosos e Cultura do Dalai Lama, em

Dharamsala, na Índia, revela em suas estatísticas que o número de monjas era bastante

significativo: 12.398 monjas, sendo 7.141 da tradição Nyingma, 6.831 da tradição Geluk, 3.697

da Kagyu e 1.159 da Sakya, o que torna o Tibete o país com maior número de monjas budistas

do mundo. A grande controversa está relacionada à linhagem Mulasarvāstivāda feminina

(bhikkhunis)162 de ordenamento pleno que não foi preservada no budismo tibetano, o que

implica mulheres sendo ordenadas por homens monges ao longo dos séculos, pois as monjas

eram sempre novatas e nunca plenamente ordenadas (TSOMO, 2014). Já no contexto do

budismo na China, conforme aponta o China Buddhism Encyclopedia, há uma lista de

professoras respeitadas e monjas plenamente ordenadas, inclusive existente nos tempos atuais

no budismo Chinês.

made offerings equal in value to the amount of jewels completely filling twelve miles in each of ten

directions… and she generated the Thought of Enlightenment, which is the generation of the foremost thought.

At that time, a group of monks implored the princess, “If you aspire to serve the teachings of the Buddha, due

to your own roots of virtue, you will be transformed into a man in this very life. In order for it to turn out that

way, it is proper to do so accordingly…” 161 TSOMO, Karma Lekshe. Tibetan Nuns and Nunneries. In: Feminine Wisdom: Collection of Articles on

Tibetan Women. Dharamsala; New Delhi: Library of Tibetan Works and Archives, 2014. A partir daqui será

enunciado como TSOMO, 2014, seguido de número de página. 162 Bhikkhuni, monja mulher.

91

O Buddha estabeleceu um código de normas para a ordenação das bhikkhunis, em

todas as formas essenciais semelhantes ao bhikkhus.163 As bhikkhunis prosperaram na

Índia durante muitos séc., e a ordem foi estabelecida no Sri Lanka. De acordo com

registros no Tripitaka chinês, a linhagem das bhikkhunis passou do Sri Lanka para a

China. Embora isso possa parecer estranho para nós hoje, de fato, os laços históricos

entre o Sri Lanka e a China são bem conhecidos, como mostra, por exemplo, a

existência de um comentário binanês do Sri Lanka em chinês antigo. Posteriormente,

por razões desconhecidas, a tradição das bhikkhunis morreu no Sri Lanka. Parece não

ter chegado a outros países, como o Tibete164 e a Tailândia. Mas até hoje floresce na

maioria dos países cuja principal influência budista vem da China, como Taiwan,

Coréia e Vietnã. (SUJATO, 2016, p. 50)

Atualmente o número de monjas no exílio em Dharamsala, na Índia, não é muito preciso;

há fontes que dizem haver cerca de 818 monastérios femininos, que somam 27.190 monjas,

outras da estatística de Shakapba estimam existir 120.000 monjas, uma proporção de 1 monja

para 10 monges.165

O reflexo dessas diferenças de proporção de monjas e monges, também pela escassez

de professoras budistas, ocorre, segundo Rita Gross, na sua obra Buddhism After Patriarchy

(2011), por uma visão errônea enfrentada pelas mulheres budistas de que o corpo feminino não

é adequado para as realizações:

Não é de admirar que a visão de que o renascimento feminino seja infeliz em

comparação com o renascimento masculino cresceu cada vez mais forte, e em muitas

partes do mundo budista, o renascimento eventual como um homem foi apresentado

como a única solução viável para as desgraças do renascimento feminino. (GROSS,

2014, p. 7)

Esse problema já era tema central do surgimento de uma das narrativas de Tārā ao

enfrentamento em relação ao corpo feminino de praticantes no budismo, quando em uma

passagem que exemplifica o pensamento monástico desenvolvido pela escola do sistema

Theravāda no séc. V, o qual a saṃgha de masculina acusa o corpo da mulher de não ser

suficiente para as realizações, história muito parecida com a lenda da princesa Jñānacandrā, que

também, no mesmo contexto, faz oposição às perspectivas de gênero, prometendo que

alcançaria as realizações no corpo feminino – narrativa que dá surgimento a Tārā e se

popularizou no Tibete (LANDESMAN, 2008). Esse fato nos instiga a questionar como a

163 Bhikkhus, monge homem. 164 O Dalai Lama, em discursos públicos, tem afirmado que a linhagem feminina completa existiu no Tibete, mas

foi perdida. 165 Ver em MAKLEY, Charlene. The Meaning of Liberation: Representations of Tibetan Women. In: Feminine

Wisdom: Collection of Articles on Tibetan Women. Dharamsala; New Delhi: Library of Tibetan Works and

Archives, 2014. A partir daqui será enunciado como MAKLEY, 2014, seguido de número de página.

92

sociedade tibetana, tendo um exemplo tão forte de luta de gênero com a narrativa de Tārā, ainda

mantinha um sistema engessado patriarcal?

3.2 Uma breve introdução dos estudos sobre as mulheres na sociedade tibetana

O que quase sempre nos chama a atenção na história das mulheres budistas são suas

reinvindicações de direitos igualitários, desde os primeiros relatos das anciãs, na narrativa de

Tārā, e assim por diante. Na literatura tibetana, há muitos relatos que ressalvam o poder de luta

revolucionário de grandes mulheres, por vezes milagrosos quando relacionados às deidades.

Porém, a socióloga Barbara Aziz166 (1989) alerta que os modelos femininos que o budismo

tibetano apresenta não foram e não são capazes de modificar a realidade social das mulheres

tibetanas:

O apelo das filosofias budistas igualitárias, por um lado, e das perspectivas feministas,

por outro, agora nos confronta, exigindo um esclarecimento precoce. Ela cria uma

demanda legítima, de fato, por dados sociológicos sólidos e confiáveis sobre essa

cultura, dados de um grau que nunca tivemos, nem para homens nem para mulheres.

Isto torna-se assim um ponto de partida para uma sociologia do Tibete. (AZIZ, 2014,

p. 24, tradução nossa167)

Ela propõe uma visão mais contemporânea e sociológica das mulheres tibetanas,

começando por um estudo de linguagens, símbolos, de papel social e dos mitos das posições

dessas mulheres; também sugere um levantamento biográfico e autobiográfico, principalmente

de literatura secular.

Começando com marcadores sociais básicos, podemos considerá-los como

marcadores de gênero – termos de tratamento, comportamento preferencial, divisão

de trabalho – e passar por eles para papéis econômicos, acesso ao poder, expectativas

e realizações e, claro, significados simbólicos e associações derivadas do ritual e do

mito. (AZIZ, 2014, p. 23, tradução nossa168)

166 AZIZ, Barbara Nimri. Moving Towards a Sociology of Tibet. In: Feminine Wisdom: Collection of Articles on

Tibetan Women. Dharamsala; New Delhi: Library of Tibetan Works and Archives, 2014. A partir daqui será

enunciado como AZIZ, 2014, seguido de número de página. 167 “The appeal of egalitarian Buddhist philosophies on the one hand, and of feminist perspectives on the other,

now confronts us, calling for an early clarification. It creates a legitimate, indeed a pressing demand for solid,

reliable sociological data about this culture, data of a degree we have never had, neither for men nor for women.

This thus becomes a point from which to launch a sociology of Tibet.” 168 “Beginning with basic social markers, we can consider them as gender markers — terms of address, preferential

behavior, division of labor — and move through them to economic roles, access to power, expectations and

achievements, and of course, symbolic meanings and associations derived from ritual and myth.”

93

Algumas décadas depois da primeira pesquisa da socióloga Barbara Aziz (1989 e 2014),

ainda não vemos muitos progressos, principalmente em relação à literatura secular, mas temos

um pequeno avanço biográfico e autobiográfico, como o trabalho biográfico feito pela autora

Elisabeth Benard169 sobre as mulheres da tradição Sakya.

Apesar de Aziz sugerir avanços na literatura secular, a maioria das pesquisas são

centradas no âmbito religioso, dado que a sociedade tibetana, mesmo em exílio, vive a religião

em volta dos monastérios.170

Um fato unanime relatado pelas pesquisadoras nos estudos das mulheres tibetanas é que

a educação para as mulheres sempre foi negligenciada, desde o ensino educacional formal, mas

principalmente a educação religiosa. Janice Willis171 ressalva a grandiosidade de mulheres

realizadas na literatura budista tibetana, mas lamenta que

[...] devido ao condicionamento cultural, expectativas sociais e suas próprias ilusões

de incapacidade, o leque de oportunidades religiosas para as mulheres era muito mais

limitado do que para os homens. Essas limitações foram mais substancialmente

sentidas na área da educação. (WILLIS, 1989, p. 134, tradução nossa172)

E, ainda, sobre a prospecção de melhoria, principalmente nos monastérios femininos,

ela conclui:

A educação nos monastérios precisa ser estabelecida e organizada sistematicamente

para fornecer instrução nos campos religiosos e seculares. As monjas e outras jovens

precisam de incentivos para cursar o ensino superior nas universidades para qualificá-

las como professoras para que possam assumir cargos em benefício de outras

mulheres, bem como da sociedade em geral. Estão em curso mudanças que irão

assegurar às mulheres tibetanas um papel maior na vida religiosa e cultural. (WILLIS,

1989, p. 134, tradução nossa173)

169 BENARD, Elisabeth A. The Sakya Jetsunmas: The Hidden World of Tibetan Female Lamas. California: The

Sapan Fund, 2021. A partir daqui será enunciado como BENARD, 2021, seguido de número de página. 170 Não é a proposta da pesquisa fazer um levantamento de estudos detalhado sobre as mulheres na sociedade

tibetana, mas gostaria de trazer um relato da minha experiência nos dois grandes locais de exílio tibetano na

Índia que tive a oportunidade de conhecer na viagem ao país em 2012. Um é localizado no sul da Índia, em

Bylakuppe, no estado de Karnataka, onde se encontra o grande Monastério Universitário de Sera Jey da tradição

Geluk; e outro, no norte da Índia, em Dharamsala, localizado no estado de Himachal Pradesh, onde vive o atual

14º Dalai Lama. Pude perceber que a sociedade tibetana em âmbito cultural, político e educacional se mobiliza

com a religiosidade budista; a experiência cultural na sociedade tibetana tem base na religiosidade budista.

Todavia, não se pode perder de vista que essa sociedade exilada não se limita à Índia, mas também está presente

em outros países como Nepal, e, ainda, entre os tibetanos que vivem no Tibete hoje. 171 WILLIS, Janice Dean. Feminine ground: essays on women and Tibet. Ithaca, New York: Snow Lion

Publications, 1989. A partir daqui será enunciado como WILLIS, 1989, seguido de número de página. 172 “Still, due to cultural conditioning, social expectations, and their own delusions of incapability, the range of

religious opportunities for women was far more limited than for men. These limitations were most substantially

felt in the area of education.” 173 “Education in the nunneries needs to be established and systematically organized to pro­ vide instruction in

both religious and secular fields. Nuns and other young women need incentives for pursuing higher education

94

Infelizmente é notório, diante dos tratados budistas, especificamente ao budismo da

tradição Mahāyāna, que a vida intelectual das monjas não foi registrada; já os monges ficaram

com o título de doutores das grandes universidades budistas indianas que posteriormente foram

preservadas no Tibete.

Na raiz, o maior problema da ordem das mulheres provavelmente residia na

incapacidade da tradição budista de afirmar completamente a ideia de que as mulheres

prospectavam o papel de renunciante. Isso levou a uma estrutura institucional que

oferecia às mulheres oportunidades admiráveis de crescimento espiritual e intelectual,

mas não para a liderança institucional e acadêmica que tal crescimento deveria

habilitá-las a assumir. (FALK, 2001, p. 197, tradução nossa174)

O desenvolvimento universitário budista na Índia foi estruturado a partir do séc. II,

durante a fase de desenvolvimento do budismo imperial, que se iniciou com o imperador

Aśoka175 e se firmou com a universidade de Nālandā,176 no séc. V, a primeira universidade

budista na Índia, também reconhecida pela Unesco como a primeira universidade do mundo.

De lá surgiram grandes eruditos, renomados professores e mestres do budismo iniciático.

Infelizmente não encontrei registros que datam mulheres como professoras nessa ou em outras

universidades desse período, mas a arqueologia e a literatura marcam esse período com grande

produção de narrativas femininas, incluindo o texto canônico de Tārā e aparições arqueológicas

muito influenciadas pelos eruditos professores do monastério de Nālandā.

3.2.1 Mulheres na tradição Geluk

Em busca dos registros intelectuais das mulheres tibetanas, foi interessante descobrir

que o grau de formação acadêmica nos monastérios femininos Geluk diferem dos monastérios

masculinos. Desde a fundação da tradição Geluk no séc. XV até o séc. XXI, nenhuma mulher

at universities to qualify them as teachers so that they may take up positions to benefit other women as well as

society at large. Changes are currently underway that will assure Tibetan women a greater role in religious and

cultural life.” 174 “At the root, the major problem of the women's order probably rested in the Buddhist tradition’s inability to

affirm completely the idea of women pursuing the renunciant’s role. This led to an institutional structure that

offered women admirable opportunities for spiritual and intellectual growth, but not for the institutional and

scholarly leadership that such growth should have fitted them to assume. The nuns’ troubles were compounded

by an ambivalent image created in a tradition of Buddhist stories that sometimes praised their achievements

but just as often undercut and attacked them.” 175 Império de Aśoka, o terceiro reinado dentro da Dinastia Mauryan (Kǒngquè wángcháo, 孔雀王朝) (325-169

a.C.); ver em TSAI, 2019a, p. 139. 176 Nālandā foi uma grande universidade monástica budista, localizada na Índia, fundada no século V d.C.,

manteve-se até o século XII. Local onde os maiores especialistas do budismo lecionaram e produziram

conteúdos acadêmicos. Ver em BUSWELL; LOPEZ, 2014, p. 565.

95

pôde obter o título do Geshema,177 que significa doutora em tibetano, já para homens o título

Geshe, doutor, sempre existiu. Ou seja, somente homens (Geshes) poderiam ensinar, inclusive

ser professores de mulheres, monjas.

Embora o pesquisador Plínio Tsai (2021, p. 19) esclareça que “os tibetanos separam seu

estudo acadêmico em Sūtra e Tantra, sendo reservado para o Vajrayāṇa um sistema

universitário separado, por força da especialização que o sistema tantrico exige”, não se pode

afirmar que o título de Geshe ou Geshema se enquadra no mesmo sistema universitário do

Tantra. Sendo assim, para afirmar que mulheres não são professoras no sistema acadêmico

Vajrayāṇa, seria preciso ampliar a pesquisa com um trabalho de campo, entrevistando monjas

pertencentes ao sistema acadêmico Vajrayāṇa Geluk, mas esse não foi o objetivo da presente

dissertação.

O filme documentário The Geshema is Born, lançado em 27 de janeiro de 2020, traça a

luta da monja Geluk Nandol Phuntsok, a primeira mulher a receber o grau de doutora, Geshema,

no budismo Geluk tibetano. O documentário apresenta a superação da monja Nandol Phuntsok

e de outras monjas no enfrentamento e na conquista do título inédito na tradição Geluk, apoiado

recentemente pelo 14º Dalai Lama. Em seus relatos, é possível ver as dificuldades enfrentadas

pelas monjas tibetanas exiladas na Índia, como falta de segurança nos monastérios femininos,

medos, possibilidades de estupros e inúmeros problemas enfrentados, cujas dimensões só as

mulheres, pelo fato de serem mulheres, conhecem.

De qualquer forma, mesmo nas escolas que possuem mulheres como detentoras das

linhagens de Tārā e de outras deidades, elas não são autorizadas a ensinar, somente passam a

transmissão oral e autorização de prática (iniciação, abhiṣeka). Em algumas raras exceções,

recebem o título de conselheiras meditativas (kalyāṇa-mitra), tornando-se conselheiras pessoais

de meditação. Quando a Venerável Jetsun Kushok veio para o Brasil, pude me certificar desse

fato. Ela não ensinou, fez a transmissão oral dos textos que fazem parte da tradição de

autorização de prática da sādhana, sem nenhuma explicação. As pessoas presentes somente

puderam ter a experiência de participar de uma série de ritos tradicionais.

3.3 Tārā e seu protagonismo nas escolas do Budismo tibetano

Sem dúvidas o maior protagonismo feminino está no sistema Vajrayāṇa, é nele que Tārā

se consolida como personificação feminina de conceitos pilares da tradição budista, como

177 Geshema para mulheres e Geshe para os homens. O titulo de doutor em sanscrito é Paṇḍita, como vimos nos

capítulos anteriores.

96

compaixão, equanimidade, sabedoria, entre outros (SCHERER, 2018). Na tradição Geluk

tibetana, Tārā está inserida nas três classes do tantra, incluindo a mais elevada, a

anuttarayogatantra, como exposto nos capítulos anteriores. E é unanimidade entre as escolas

tibetanas que Tārā é representada por todas as atividades iluminadas de todos os Budas e,

portanto, é chamada de mãe dos Budas dos três tempos, a Prajñāpāramitā – as atividades

iluminadas que se referem a sabedoria (prajnā) do modo de ver como as coisas realmente são

(vazias de existência inerente – sunyatā), ou seja, um protagonismo central dos ensinamentos

do Buda que está inserido nas escolas tibetanas, por ter como base as escrituras Mahāyāna

contidas nos Sūtras da Perfeição de Sabedoria (Āryaprajnāpāramitāhṛdayasutram).

Sobre a igualdade de homens e mulheres nessa doutrina, Schuster178 apresenta:

Mas existem muitas escrituras Mahāyāna que insistem que apenas os ignorantes

fazem distinções entre as aspirações religiosas e as capacidades intelectuais e

espirituais de homens e mulheres. Essa posição é a única que é consistente com a

doutrina Mahāyāna de vacuidade de todos os fenômenos. Essa é a doutrina que está

no coração de muitas escrituras Mahāyāna, começando com os Sutras da Perfeição

de Sabedoria (Prajnāpāramitāsutras). (SCHUSTER, 1981, p. 25, tradução nossa 179)

É comum na tradição Geluk iniciar esse Sūtra com a prece composta pelo mestre

Nāgārjuna traduzida e adaptada por TSAI180:

Eu me prosto à mãe de todos os Conquistadores, os Budas dos três tempos, que é a

perfeição de sabedoria, Prajnāpāramitā, inexpressível na linguagem e pensamentos,

não produzida e não cessada, como algo surgido nos céus, o objeto da realização do

conhecimento não-dual. (2019b, p. 45)

A reverência é à sabedoria, que é representada como mãe desse método ensinado pelo

Buda, essa corporificação é sem dúvidas Buda Tārā (SCHERER, 2018) para os tibetanos. Como

178 SCHUSTER, Nancy. Changing the Female Body: Wise Women and the Bodhisattva Career in Some Maharatna

kutasutras. Journal of the International Association of Buddhist Studies, v. 4, n. 1, p. 33-46, 1981. A partir

daqui será enunciado como SCHUSTER, 1981, seguido de número de página. 179 “But there are many Mahāyāna scriptures which insist that only the ignorant make distinctions between the

religious aspirations and intellectual and spiritual capacities of men and women. This position is the only one

which is consistent with the Mahāyāna doctrine of the emptiness of all phenomena. This is the doctrine which

lies at the heart of many Mahāyāna scriptures, beginning with the Perfection of Understanding Sutras

(Prajnāpāramitāsutras).” 180 TSAI, Plínio Marcos. Néctar da Imortalidade: A dhyāna de Amitāyus. Tradução e adaptação. Valinhos: ATG,

2019b. A partir daqui será enunciado como TSAI, 2019b, seguido de número de página.

97

aponta Lotsawa,181 em sua tradução da coleção tibetana Degé Kangyur,182 datada no final do

séc. VIII d.C. e início do nono:

A Nobre Dhāraṇi “A Mãe de Avalokitesvara”1 começa na cidade de Vaiśālī, onde o

Buda estava residindo em meio a uma assembleia de monges e bodhisattvas. O

bodhisattva Samantabhadra pede que revele a poderosa dhāraṇi conhecida como A

Mãe de Avalokitesvara, e o Buda concorda.

[...]

Conforme indicado pelo titulo do texto, a dhāraṇī diz respeito a uma deusa chamada

ou com o titulo Avalokiteśvaramātā, “A mãe de Avalokiteśvara.” No Degé Kangyur,2

a dhāraṇī pertence a um ciclo de oito textos Kriyātantra (bya rgyud) (Toh 724-31)

dedicados a deusa Tārā. Com base nessa categorização, podemos inferir que os

estudiosos tibetanos entenderam que Avalokiteśvaramātā era a deusa Tārā, mas não

há mais evidências para confirmar essa identificação. (LOTSAWA, 2021b, §§ i.1-i.2,

tradução nossa183)

Essa menção do Buda no texto sagrado tibetano e chinês nos confirma que o Buda

passou ensinamentos sobre Tārā, ao contrário das interpretações sobre os achados

arqueológicos que apontam que Tārā é companheira de Avalokiteśvara, nesse sentido, é sua

companheira materna chamada Avalokiteśvaramātā, por ter o título de mãe. Para os tibetanos,

essa dhāraṇi184 pertence aos textos sagrados de Tārā, agora personificada como a mãe de

Avalokiteśvara.

3.3.1 As linhagens de Tārā nas principais escolas tibetanas

181 LOTSAWA, Lhasey. Translations and Publications. The Dhāraṇī “The Mother of Avalokiteśvara”

(Avalokiteśvara- mātādhāraṇī, Toh 725, 909). In: 84000: Translating the Words of the Buddha, 2021b. 182 O autor fez comparações das escrituras Kangyur com edições comparativas em tibetano དཔ་བསར་མ་ (dpe bsdur

ma), encontradas nos catálogos Denkarma (ཨདན་དཀར་མ་ (ldan dkar ma)) e Phangthangma (ཕང་ཐང་མ་ ('phang thang

ma)) de traduções feitas durante o período imperial do Tibete e textos em chinês que foram traduzidos por

Fǎxián (法 賢, 973-1001) sob o título Fo shuo guanzizai pusa mu tuoluoni jing (观 自在 菩萨 母 陀罗尼 经,

Taishō, 1117). A opção de escrever o tibetano romanizado foi uma escolha minha e não consta no texto

Lotsawa, apenas a versão Wylie. Para saber mais veja em LOTSAWA, 2021b, §§ i.3-i.4. 183 “The Noble Dhāraṇi ‘The Mother of Avalokitesvara’ 1 begins in the city of Vaiśālī, where the Buddha is

residing amidst an assembly of monks and bodhisattvas. The bodhisattva Samantabhadra requests that he reveal

the powerful dhāraṇi known as The Mother of Avalokitesvara, and the Buddha agrees.

[…]

As indicated by the text’s title, the dhāraṇī concerns a goddess named or bearing the title Avalokiteśvaramātā,

“the mother of Avalokiteśvara.” In the Degé Kangyur,2 the dhāraṇī belongs to a cycle of eight Kriyātantra (bya

rgyud) texts (Toh 724–31) dedicated to the goddess Tārā. Based on this categorization, we may infer that the

Tibetan scholars understood Avalokiteśvaramātā to be the goddess Tārā, but there is no further evidence to

confirm this identification.” 184 Dhāraṇi em sânscrito, em tibetano gzungs གཟངས།. Tanto nos dicionários apresentados por Lotsawa e Buswell;

Lopez, o termo dhāraṇi tem o sentido de reter, referindo-se, neste caso, à capacidade dos praticantes de

memorizar e relembrar ensinamentos detalhados. O mesmo termo também é usado para denotar textos que

contêm essas fórmulas, neste caso, um método.

98

Seria uma imensa ousadia propormos a traçar qualquer registro de linhagem de

ensinamentos de Tārā, ainda mais no amplo recorte do budismo tibetano, em que Tārā é

considerada uma deidade quase universal para a religiosidade tibetana. Seria o mesmo que

pesquisar Nossa Senhora185 no imenso catolicismo italiano e tentar traçar uma linha de ritos e

seus preceptores iniciais.

O budismo tibetano tem como tradição uma lista de professores que transmitiram os

ensinamentos orais. Essa lista traz uma linhagem ininterrupta de ensinamentos do Buda

histórico até os professores atuais. Por isso, me propus a esse desafio de mostrar quais

importantes professores derivam de quais escolas. A pesquisa com essa pretensão só foi

possível porque tive acesso à tese de doutorado Red Tārā: Lineages of Literature and Practice,

de Rachael Stevens, que dedicou sua pesquisa à Tārā Vermelha. Ela fez traduções de alguns

textos diretamente do tibetano para o inglês e traçou as diversas linhagens de ensinamentos nas

principais escolas tibetanas:186 Geluk, Sakya, Nyingma e Kagyu.187

Apesar de o recorte da tese de Rachael ser especificamente sobre a Tārā Vermelha, a

pesquisa mostra-nos que grande parte da linhagem das escolas deriva da tradição de Atiśa e de

diversos estudiosos da tradição Geluk, parte efetivamente importante para a proposta desta

dissertação. Vale ressaltar que Tsongkhapa (tradição Geluk) teve professores da tradição Kagyu

em sua formação. Essa escola teve grande influência na prática tântrica no Vajrayāṇa Geluk

como os Seis Yogas de Naropā188 e Mahamudra,189 que vieram da linhagem Dagpo Kagyu.

3.3.1.1 Tradição Geluk

Na tradição Geluk há grandes professores das demais escolas tibetanas que vieram da

linhagem de Atiśa e Tsongkhapa (fundador da tradição Geluk), eles são responsáveis por grande

parte da linhagem de Tārā que se disseminou no Tibete. Quanto às primeiras linhagens

185 Apenas para título ilustrativo, sem nenhuma intenção comparativa. 186 É importante explicar aos pesquisadores futuros que a forma de escrever os nomes das escolas varia de acordo

com a preferência do(a) tradutor(a). Rachael Stevens, por exemplo, descreve o nome das escolas no padrão de

escrita Wylie na língua tibetana: dGe-lugs-pa para a escola Geluk, Sa-skya-pa para Sakya, rNying-ma-pa para

Nyingma e hKa'-brgyud-pa para Kagyu. 187 A linhagem de Tārā na tradição Kagyu no Tibete provém da linhagem de Atiśa vinculada as Vinte e Uma Tārās,

também a Tārā Kurukullā. Stevens (2010, p. 97) declara que não encontrou em suas pesquisas mais

informações da Tārā na tradição Kagyu. Também não encontrei mais informações especificamente da linhagem

de Tārā na tradição Kagyu, aqui me refiro aos textos. 188 Conjunto de prática tântricas do budismo tibetano compiladas e avançadas pelos indianos Tilopa e Nāropa,

posteriormente transmitidas para o yogi tibetano Marpa Ltsawa da tradição Kagyu 189 Terminologia que possui muitos significados dentro do budismo indiano e tibetano. De maneira geral, são

técnicas de meditação no estágio de conclusão nos tantras.

99

encontradas de Tārā Vermelha, das três obras em tibetano, duas foram preservadas na tradição

Geluk (STEVENS, 2010, p. i.).

Rachael Stevens, na sua detalhada pesquisa sobre as linhagens de Tārā Vermelha,

aponta diversos renomados professores da escola Geluk criadores de textos canônicos sobre a

deidade, como Tārānātha,190 Sétimo Panchen Lama que deu seguimento à linhagem para outras

três principais escolas do budismo tibetano (2010, p. 84).

Há cinco linhagens do final do séc. XIX ao início do XX preservadas na escola Geluk:

Além disso, cinco mestres da escola dGe-lugs-pa compuseram textos sobre a Tārā

Vermelha no final do séc. XIX e início do séc. XX: Blo-bzang byang-chub bstan-

pa'jsgron-me, 'Jam-dbyangs' phrin-las, 'Jjgs-med 'phrin-Ias rgya-mtsho, Ngag-dbang

dge 'dun rgya-mtsho, e 'Jam-dpal grub-pa'j rdo-rje. (STEVENS, 2010, p. 388, tradução

nossa191)

A única menção encontrada sobre uma professora mulher na tradição Geluk foi a

professora do mestre tibetano Je Pabongkhapa192 (1878-1941). Pabongkhapa foi responsável

por incluir o tantra de Tārā na mais alta classe de tantras, o anuttarayogatantra. A lenda conta

que ele recebeu o ensinamento dessa professora que era considerada o renascimento do quarto

Takpu Lama,193 mas infelizmente não há menção ao verdadeiro nome da professora e, por isso,

não foi possível identificá-la.

No entanto, pudemos ver, ao longo da pesquisa, o quanto Tārā sempre foi um ícone

central na tradição Geluk tibetana, mas que infelizmente não há uma linhagem feminina vinda

de professoras mulheres, apenas uma pequena menção a partir do mestre Pabongkhapa, que

teve seu protagonismo invisível diante das escrituras na escola Geluk, provavelmente porque

ela pertencia a escola Nyingma e não era Geluk.

Infelizmente não foi possível encontrar referências que mencionem alguma linhagem

tântrica feminina na tradição Geluk, diferentemente de outras escolas tibetanas (como será visto

190 TĀRĀNĀTHA, Jo Nang. The Origin of Tārā Tantra. Tradução: David Templeman. New Delhi: Library of

Tibetan Works and Archives, 2007. A partir daqui será enunciado como TĀRĀNĀTHA, 2007, seguido de

número de página. 191 “Furthennore, five masters from the dGe-lugs-pa school composed texts on Red Tara in the late nineteenth to

early twentieth centuries: Blo-bzang byang-chub bstan-pa'j sgron-me, 'Jam-dbyangs 'phrin-las, 'Jjgs-med

'phrin-Ias rgya-mtsho, Ngag-dbang dge 'dun rgya-mtsho, and 'Jam-dpal grub-pa'j rdo-rje.” 192 Pabongkhapa Déchen Nyingpo (Tibetan: ཕ་བང་ཁ་པ་བད་ཆན་སང་པ, Wylie: pha bong kha pa bde chen snying po), do

período de 1878 a 1941. Ele foi professor do Kyabje Ling Rinpoche (1903-1983), tutor do atual 14º Dalai

Lama, Trijang Rinpoche e muitos outros professores altamente respeitados. 193 Informação recebida pelo professor Plínio M. Tsai e pelo monge Lobsang Chogni, em aula na Associação

Buddha-Dharma, a partir de ensinamentos do professor Geshe Jampa Gyatso, no dia 14 de fevereiro de 2018.

100

a seguir), em que há importantes mulheres com o título do Jetsunmas,194 que são detentoras da

linhagem de Tārā.

3.3.1.2 Tradição Sakya

A tradição Sakya, ao contrário da tradição Geluk, possui renomadas professoras. A

recente obra de Elisabeth Benard, intitulada The Sakya Jetsunmas, publicada em 2021, conta

com a história da linhagem de professoras da tradição Sakya. Jetsunmas é um termo tibetano

que significa mulheres praticantes, mas não necessariamente monjas, pois nem todas as monjas

são Jetsunmas. Jetsun deriva da palavra bhaṭṭārikā,195 em sânscrito, que significa nobre ou

venerável senhora, mas também é um título para leigos que ensinam monges e monjas. A

tradução final para Jetsunmas é mulheres veneráveis (BENARD, 2021, p. 09).

Jetsun Kushok, nascida em 1938, é uma dessas mulheres veneráveis da família Sakya,

detentora da linhagem dos mais importantes tantras femininos, inclusive o de Tārā. Eu tive o

privilégio de conhecê-la em 2008 no monastério Sakya em Cabreúva, no interior de São Paulo,

Brasil. Sua biografia é fascinante, uma vida inteira dedicada à prática religiosa budista. Como

não é proposta da pesquisa o recorte da tradição Sakya, infelizmente não poderei me alongar,

mas trago alguns elementos que tornam essa grande história inspiração para futuras pesquisas.

Dentro do sistema Vajrayāṇa, na atualidade, a Venerável Jetsun Kushok é uma das

poucas professoras (para não dizer a única) detentoras da linhagem feminina dos tantras, além

de ser considerada a personificação de Vajrayoginī, deidade mencionada no capítulo anterior,

no topico de Tārā Vermelha, na mais alta classe de tantras, o anuttarayogatantra.

De acordo com a biógrafa Elisabeth Benard (2021), Jetsun Kushok é uma Jetsunma

leiga, casada e mãe de cinco filhos, atualmente mora no Canadá, após alguns anos em exílio na

Índia, depois da tomada do governo tibetano pela China. Mesmo sendo a filha mais velha da

família Sakya e tendo completado todas as práticas do budismo tântrico aos 17 anos, não pôde

herdar o título de representante da escola, uma vez que o título era concedido somente aos

homens, que foi dado ao seu irmão mais novo Sakya Trizin. Depois de sua mudança com o

marido para o Canadá, Jetsun Kushok não ensinava, mas, quando seu irmão começou a ensinar

em New York, mulheres questionaram-lhe por que não havia professoras de linhagens

194 Mulheres Veneráveis. Título que só se aplica o contexto da escola Sakya, pois se trata de sistema diferentes,

apesar da crítica ser direcionada ao sistema tibetano geral, não apenas a Geluk. 195 Jetsun é o mesmo que svāmi-vinaya (sila) – o mesmo que bhaḍḍārak. C.f. instrução do Prof. Plínio na banca

de defesa, também dicionário online de sânscrito learnsanskrit.cc e Elisabeth Benard, 2021, p. 09.

101

femininas. Então, foi assim que ele convidou Jetsun Kushok para ser professora, e ela começou

a ensinar. Atualmente ela comanda dois centros de Dharma (escolas de ensinamentos), um em

Vancouver, a escola Sakya Thubten Tsechen Ling, e outro em Oakland, Califórnia, a Sakya

Dechen Ling, além de ensinar por muitos países e ser de inspiração para muitas mulheres,

monjas e leigas.

Especificamente sobre a linhagem de Tārā na tradição Sakya, Rachael Stevens mostra-

nos, dentro do recorte da Tārā Vermelha:

Esta pesquisa identificou quatro linhagens de Tārās Vermelhas originárias da Índia:

Pīthesvarīt, Cundā Tārā, Tārās Vermelhas dentro das Vinte e uma Taras, e as Taras

Vermelhas encontradas dentro do Ciclo de ensinamentos Sa-shya-pa. (STEVENS,

2010, p. 387, tradução nossa196)

E, por fim, a tradição Geluk deriva da escola Sakya, pois Rendawa (1349-1412), um dos

principais professores de Tsongkhapa (e fundador da tradição Geluk), era da escola Sakya. Mas

a tradição Geluk não tem a tradição de Jetsunmas, tampouco professoras/es leigas/os ensinando

no sistema Vajrayāṇa.

3.3.1.3 Tradição Nyingma

A tradição Nyingma é a escola mais antiga do budismo tibetano, também a mais próxima

linhagem de Tārā no Brasil. Em 1995, Chagdud Tulku, mestre tibetano da escola Nyngma,

muda para o Brasil e funda o Templo Budista Chagdud Gonpa Khadro Ling, em Três Coroas,

no Rio Grande do Sul. Ele trouxe especificamente a linhagem de Tārā Vermelha e transmitiu

seus ensinamentos para muitos adeptos no Brasil e na América Latina.

De acordo com Stevens, há cinco linhagens de Tārā Vermelha na tradição Nyingma:

Dentro da escola rNying-ma-pa foram descobertas cinco linhagens de Tara Vermelha:

a de A-pam gter-ston, A Garland of Bimba Blossoms, a prática de sMin-grol-ling, a

do séc. XVIII Tshe-dbang nor-bu e Rang-rig rdo-rje no séc. XIX. (STEVENS, 2010,

p. 387, tradução nossa197)

Chagdud Tulku possuía algumas dessas linhagens.198 De acordo com a pesquisa de

Stevens, toda bibliografia de Chagdud Tulku é marcada pela presença de Tārā. Desde a infância

196 “This survey identified four lineages of Red Tārās originating from India: Pīthesvarīt, Cundā Tārā, Red Tārās

within the Twenty-one Tārās, and the Red Tārās found within the Sa-shya-pa Cycle ofteachings.” 197 “Within the rNying-ma-pa school five lineages of Red Tara were discovered: that of A-pam gter-ston, A

Garland of Bimba Blossoms, the sMin-grol-ling practice, the eighteenth century Tshe-dbang nor-bu, and Rang-

rig rdo-rje in the nineteenth century.” 198 Para maiores detalhes, veja em STEVENS, 2010, p. 387.

102

ele sempre teve acesso às linhagens de praticantes de Tārā. Sua mãe, Delog Dawa Drolma, foi

sua primeira professora, ela era considerada uma emanação de Tārā Branca, apesar de ter casado

com Sera Kharpo, um praticante Geluk, não foi encontrado qualquer registro de seus

ensinamentos, mas foi registrado199 por Chagdud Tulku que ela era considerada uma grande

professora (Lama) e que recebia ensinamentos através de visões de Buda Tārā, ela foi uma

grande inspiração para que Chagdud Tulku desse continuidade a linhagem de Tārā. Além de

sua mãe, ele também recebeu instruções de Zhe-chen rab_'byams200 , que era detentor da

linhagem de Tārā Verde. Durante um retiro de três anos,

[...] seu professor Khrom-dge drung-pa Rin-po-che disse a Chagdud Tulku: "Em cada

geração de nossa familia, há um lama que atinge plenamente o poder benéfico de Tārā.

Sua mãe, foi a Tara siddha de sua geração, e se você praticar Tara, acredito que será

a sua Tara siddha. Isso seria muito bom". (STEVENS, 2010, p. 305, Tradução

nossa201)

Após essa instrução, Chagdud Tulku conta que recitou cem mil vezes os longos versos

de louvores às Vinte e Uma Tārās202 (2001, p. 92). O termo siddha na citação refere-se a poderes

supramundanos.

3.4 Buda Tārā: uma representatividade para as mulheres budistas da tradição Geluk

Quem reivindica a alteridade? É com essa pergunta que Gayatri Spivak (1994), de

origem indiana, exemplifica com sua história de vida “como as narrativas históricas são

negociadas” (p. 187). Spivak, faz uma reflexão de como a produção das narrativas transforma

o socius e constrói as leituras que emergem e legitimam questões, cujas implicações são

políticas em todos os níveis possíveis:

O socius, afirma-se, não é urdido com base na escritura, não é textual. Diz-se inclusive

que, quando nos apresentamos como agentes de uma história alternativa, nossa própria

emergência na ‘‘corte de reivindicações’’ não é dependente da transformação de uma

escritura em algo legível. (SPIVAK, 1994, p. 188)

199 Nome tibetano Zla-ba sgrol_ma, sua história de vida está no livro Drolma, D. (2001), Delog: Journey to Realms

Beyond Death. 200, Importante mestre da escola Nyingma. 201 “[…] his teacher Khrom-dge drung-pa Rin-po-che said to Chagdud Tulku, ‘In every generation of our family,

there is one lama who fully attains the beneficial power of Tara. Your mother was the Tara siddha of her

generation, and if you do Tara practice, I believe you will be the Tara siddha of yours. This would be very

good’.” 202 Anexo A.

103

Ela explica que a reinvindicação do conhecimento é uma tentativa de refazer a história,

permitindo tornar-se instrumento que legitima o poder coletivo, ou seja, uma reafirmação

institucional e política ao criar-se pertencente a uma classe excludente (também) daquilo que

se nega.

De todos os instrumentos para se desenvolver histórias alternativas — gênero, raça,

etnicidade, classe —, este último é certamente o mais abstrato. (SPIVAK, 1994, p.

189)

A reinvindicação do conhecimento no âmbito de gênero numa determinada cultura feita

por mulheres que não estão inseridas nela, mas que se conectam pela tradição religiosa, pode

ser a “figura da mulher de classe subalterna”, como explica Spivak:

A relação desta figura com a produção acadêmica é complexa. Em primeiro lugar, ela

é um objeto de conhecimento; em segundo, a maneira do informante nativo, sujeito

de histórias orais, essa figura é considerada incapaz de desenvolver estratégias em

relação a nós; finalmente, a figura da mulher de classe subalterna é um sujeito/objeto

imaginado no campo da literatura. (SPIVAK, 1994, p. 191)

Essa reflexão me intrigou, mas também me inspirou a pensar em como produzir

estratégias a partir das referências feministas que possam olhar para as narrativas de Tārā e

propor, através desse olhar feminista – sem produzir uma classe (excludente) –, que se coloca

para fora da literatura e se apossa de uma alteridade sem precedentes. É, sem dúvidas, uma

difícil tarefa.

Ao longo da dissertação, foi preciso remontar séc. de histórias e recortar essa imensidão

literária para urdir uma “suposta proposta” de pesquisa que nos leve a um olhar para as mulheres

budistas (monjas e leigas) da tradição Geluk na atualidade.

Como foi visto, a história do budismo sempre fora narrada por homens ao longo dos

séculos, que tiveram como protagonista uma deidade feminina, às vezes mãe, salvadora,

subjugadora e muitos outros aspectos que Tārā representa. Não me cabe aqui, obviamente,

refazer a história, mas sustentar vozes sob perspectiva alternativa, para propor um movimento

(aquele que me instigou) a futuras pesquisadoras que, a longo prazo, possam contar a história

de Tārā e sua representatividade, na perspectiva feminina.

3.4.1 Tārā: Um ícone feminino como centro e sua inclusão soteriológica

104

Quando a narrativa (ou narrativas) de Buda Tārā se expande para além das fronteiras

indianas, ela se fortalece ainda mais no Tibete como grande percursora de um movimento de

popularidade em diversas esferas: conceitual, revolucionária e de reafirmação de uma “inclusão

soteriologica” (SCHERER, 2018, p. 7) da tradição budista Mahāyāna, em defesa da igualdade

de gênero expressa no relato de Tārānātha sobre a princesa Jñānacandrā.203

A centralidade de Tārā no sistema budista Mahāyāna corresponde a base hermenêutica

das escolas tibetanas, em relação aos conceitos teológicos de compaixão (karuṇā) e

equanimidade (upekṣā), como fundamentos essenciais. Ou seja, trabalhar em prol de beneficiar

os seres e tomar as ações para ajudá-los sem distinção de gênero, raça, classe e assim por diante.

Na tentativa de entendermos por quais motivos Tārānātha e outros estudiosos daquele

período legitimaram Tārā e a colocaram em ascensão, Bee Scherer (2018), em uma leitura

teológica para explicar a genealogia e soteriologia de Tārā, aponta para questões cujas

implicações são políticas: de reafirmação dos ideais Mahāyāna em contraposição ao budismo

Theravāda, que, pouco tempo depois da morte do Buda histórico, se mantinha no sistema de

castas (classes) sem radicalismos ou enfrentamento à sociedade naquele tempo. Já a tradição

Mahāyāna desafiava essa continuidade social:

[...] as classes seriam estáticas no tempo, pois seriam expressão da verdade da

causalidade de um modelo védico, que so será desafiado pelas Escolas da Tradição

Universalista (Mahāyāna); as demais mantiveram essa continuidade social estática.

(TSAI, 2019a, p. 78)

De fato, a inclusão soteriologica Mahāyāna apontada por Scherer (2018) teria

fundamento. No entanto, na prática, há marcas patriarcais mantidas pelas tradições budistas

tibetanas que não foram superadas mesmo atualmente, como vimos nos tópicos anteriores.

Tenho observado uma certa tendência nos estudos budistas feministas, que talvez seja

uma reação ao fato de que Mahāyāna tem todas as ferramentas teologicas necessárias

para propagar a igualdade de gênero, mas muitas vezes não conseguiu fazê-lo

historicamente. (LAM, 2013, p. 159, tradução nossa204)

203 SPONBERG, Alan. Attitudes toward women and feminine in early buddhism. In: CABEZON, José Inácio.

Buddhism, sexuality and gender. New York: State University of New York Press, 1992, p.8. A partir daqui

será enunciado como SPONBERG, 1992, seguido de número de página. 204 “I have observed a certain tendency in feminist Buddhist studies, which is perhaps a reaction to the fact that

Mahāyāna has all the theological tools needed to promulgate gender equality, yet has often failed to do so

historically.”

105

Raymond Lam,205 contesta tal legitimação, apontando para o pé de igualdade em que as

narrativas de Tārā estão, em relação aos patronos masculinos:

Tārā é uma dessas figuras atipicas cuja “visibilidade” (uma questão crucial no

pensamento feminista) ultrapassa o nível simplesmente literário ou heurístico e entra

na esfera transcendente geralmente reservada aos bodhisattvas masculinos, os atores

ativos e agentes da iluminação. (LAM, 2013, p. 159, tradução nossa206)

Os Bodhisattvas masculinos são Avalokiteśvara e Mañjuśrī, que, de fato, são tão

pioneiros nos textos canônicos (apresentados no capítulo I) quanto Tārā. Vimos que o TMK

inclui Avalokiteśvara em sua literatura, assim como o MMK inclui Tārā também no status

transcendente, ambos desenvolvidos e expandidos no inicio da teologia Mahāyāna. Lam (2013)

insiste que as virtudes Mahāyāna já existiam dentro dos textos tântricos indianos “antes que os

autores tibetanos começassem a escrever sobre ela como uma Buda feminina” (LAM, 2013, p.

165).

3.4.2 De que forma a narrativa (ou narrativas) de Buda Tārā é um caminho para afirmação

das mulheres no budismo tibetano Geluk?

Janice D. Willis207 é uma das pesquisadoras budistas que vêm estudando e escrevendo

no meio acadêmico sobre as mulheres budistas numa perspectiva feminista. Ela propõe em sua

obra Tibetan Buddhist Women Practitioners, Past and Present A Garland to Delight Those

Wishing Inspiration que façamos uma lista de mulheres budistas que são modelos de inspiração

para nós:

Minha sugestão é que agora comecemos a formar para nós uma "linhagem especial de

renomadas mulheres praticantes". Aqui segue como modelo de como isso pode ser

feito: (1) moldar essa linhagem de mulheres budistas tibetanas praticantes que foram

inspiradoras para mim pessoalmente; e (2) narrar brevemente alguns detalhes das

histórias de vida de algumas dessas mulheres. De uma forma importante, o que uma

205 LAM, Raymond. Legitimizing Legitimization: Tārā’s Assimilation of Masculine Qualities in Indo-Tibetan

Buddhism and the Feminist ‘Reclaiming’ of Theological Discourse. Feminist Theology 2014, v. 22, n. 2, p.

157-172, 2014. A partir daqui será enunciado como LAM, 2014, seguido de número de página. 206 “Tārā is one of these anomaly figures whose ‘visibility’ (a crucial issue in feminist thought) breaks past the

simply literary or heuristic level, and enters the transcendent sphere usually reserved for male bodhisattvas, the

active players and agents of enlightenment.” 207 WILLIS, Janice Dean. Tibetan Buddhist Women Practitioners, Past and Present. In: TSOMO, Karma Lekshe

(ed.). Buddhist Women Across Cultures: Realizations. Albany, NY: State University of New York, 1999. A

partir daqui será enunciado como WILLIS, 1999, seguido de número de página.

106

lista como esta faz é nos mostrar que mulheres tão exemplares existiram e agora

vivem. (WILLIS, 1999, p. 145, tradução nossa208)

Tārā, sem dúvida, estaria na lista de nós mulheres budistas; nem tanto a personificação

materna e salvadora, destacaria a literatura daquela que fez o voto de sempre ser mulher para

garantir que todos os seres, sem exceção, possam se libertar dos sofrimentos. Esse modelo

feminino reivindica a alteridade de nós mulheres, mas também inspira a sermos voz que

sobreponha o protagonismo invisível que nos assombra desde sempre.

É fato histórico que há uma carência de modelo feminino. Na tradição Geluk é

extremamente raro encontrar professoras. Quando há menção, foram clamadas pelos seus

ímpetos ḍākiṇis, yogini,209 bodhisattvas, e seus nomes foram apagados da história. Já para os

homens, há linhagens ininterruptas, professores que marcaram histórias que são narradas por

diversos biógrafos, ensinamentos que são grandes clássicos e pilares de imensos debates ao

longo de muitos séculos.

O registo do papel da mulher na tradição Geluk ainda é subalterno, por vezes não

existente; nos monastérios os professores são sempre homens, são eles que se destacam no mais

alto grau de hierarquia no budismo Geluk, enquanto as mulheres não possuem nenhuma

representatividade hierárquica. Segundo Rita Gross (2011), esse é um fato na estrutura budista

global. Ela explica que o reflexo disso é um obscurecimento do feminino, pois, em termos

quantitativos, a maioria das praticantes são mulheres, mas não há professoras mulheres.

A pesquisadora Nirvana França (2020) traz uma reflexão do protagonismo subalterno

ou da inexistência das mulheres como fato histórico:

Quando nos referimos às mulheres, não podemos esquecer que elas correspondem a

49,6% da população mundial41, e que têm participado de diversas formas da vida em

sociedade, atuando, trabalhando e apoiando, ou seja, estão participando. Mas, como a

vida pública pertence aos homens, a história delas foi obscurecida, renegada a segundo

plano, de forma a dar a entender que elas não participaram dos fatos históricos, como

se elas simplesmente não existissem. (FRANÇA, 2021, p. 11)

Rita Gross foi uma das pioneiras pesquisadoras ocidentais sobre as mulheres budistas e

relata em sua pesquisa, em 1996, que muitas das informações encontradas tinham cunho

androcêntrico, distorcendo a imagem das mulheres budistas da história.

208 “My suggestion is that we now begin to fashion for ourselves a "special lineage of renowned women

practitioners." As a model for how this might be done, here I will: (1) fashion such a lineage of Tibetan Buddhist

women practitioners who have been inspirational for me personally; and (2) briefly narrate some of the details

of the life stories of a few of these women. In an important way, what a listing like this does is show us that

such exemplary women have existed and do now live.” 209 A palavra yogini é a representação feminina de qualquer deidade, mais detalhes no glossário.

107

Diferentemente disso, o que vemos nas narrativas literárias de Tārā, principalmente do

sistema Mahāyāna, é algo realmente surpreendente. A narrativa da princesa Jñānacandrā, sendo

legitimada ou não, está muito à frente do seu tempo e é extremamente revolucionária ao

contexto social, seja indiano ou tibetano.

É nesse sentido que nós, mulheres budistas, monjas ou leigas, podemos nos afirmar

nesse caminho não só na tradição Geluk como também nas demais escolas tibetanas ou não do

budismo. Já como o caminho de inspiração na tradição Geluk, ainda é preciso ultrapassar as

barreiras patriarcais que imperam o budismo tibetano, como Janice Willis (2014) nos propõe:

é preciso recontar a história feminina a partir de nós, e, assim, traçarmos uma linhagem de

mulheres que são detentoras da linhagem de deidades femininas. Sem dúvidas, Tārā seria a mais

importante para nós, mulheres da tradição Geluk.

Como vimos na história dos mestres e professores que deram origem à tradição Geluk,

todos tinham uma forte relação com Tārā. Eles foram os detentores e responsáveis pela

preservação dos tantras que moldaram todo o sistema de prática do tantra de Tārā. O desafio

para as mulheres budistas da tradição Geluk é, a partir do método Geluk, reconhecido como um

dos mais completos sistemas de estudos e debates do budismo, pela sua maior ênfase na lógica

budista indiana: construir fortes alicerces para ultrapassar as barreiras do patriarcado tibetano.

Esse caminho não pode ser outro do que aquele do estudo institucional e acadêmico, que foi tão

negado às mulheres budistas tibetanas.

3.5 Considerações do capítulo

Neste capítulo, vimos a complexidade dos estudos sobre a mulher tibetana, percebemos

que, apesar dos esforços de análises histórias e sociológicas sobre o papel da mulher, é difícil

descolar a imagem social do povo tibetano (homem ou mulher) da religião, uma vez que a

experiência cultural dessa sociedade está imbuída com a religiosidade.

Aprendemos com as feministas budistas que o retorno para as representações literárias

femininas não é suficiente para promover efetivas mudanças sociais da mulher tibetana, de

análise do passado e nem de projeções futuras, algumas vezes podendo negligenciar o cotidiano

da prática religiosa. Porém, vimos que há uma brecha que nos faz olhar para as bases históricas

e perceber que há falhas nas tentativas de equiparar homens e mulheres uma vez que seus

sistemas constitucionais educativos são discrepantes, pois as mulheres budistas tibetanas foram

privadas por séc. do sistema educacional (privado e religioso) que as habilitasse e as encorajasse

a estarem minimamente em pé de igualdades aos homens.

108

Além do mais, pudemos ver que essa discrepância estrutural não se limita somente à

patriarcal sociedade tibetana, ou a uma “Tibetologia”, como a pesquisadora Tseyang (2014)

nomeia os estudos da teologia tibetana, mas tem fortes reflexos na história do budismo que se

desenvolveu ao longo dos séculos, ou mesmo nas lutas enfrentadas pelo próprio Buda ao

equiparar homens, mulheres, escravos e assim por diante.

O budismo que se instaurou no Tibete apos a chegada de Atiśa enfrentou sérios

problemas de corrupção no sistema Vajrayāṇa, como foi visto no capítulo anterior. Na

sequência, a contribuição do fundador da escola Geluk, Je Tsonkhapa, foi seguir as bases

deixadas pelo seu grande mestre, Atiśa, ao fundar uma escola nos moldes dos doutores indianos,

exclusivamente masculina, celibatária e que mantinha extremamente fechados os ensinamentos

do sistema tantrico, o Vajrayāṇa. Nessa estrutura masculina, com fortes traços das

universidades indianas (principalmente Nālandā e seus dezessete Paṇḍitas),210 unindo a cultura

estrutural patriarcal tibetana, as mulheres não tiveram espaços, ficaram sempre em segundo

plano.211

Há esforços do atual Dalai Lama em reaver o sistema acadêmico pleno às monjas da

tradição Geluk, mas há muito trabalho para que essa pequena onda de transformação chegue a

todas as praticantes, monjas e leigas. O caminho é longo, sem dúvida, ainda mais em relação

aos ensinamentos de tantra, que no budismo tibetano é um sistema acadêmico separado pela

tamanha complexidade, mas vimos que esse caminho não é outro além daquele que se volta às

bases institucionais formais de estudos acadêmicos.

Por isso, há um longo caminho para as mulheres da tradição Geluk, uma vez que ainda

não foram encontradas professoras detentoras da linhagem de Tārā, e tais ensinamentos são

reservados aos monastérios tântricos. Para as praticantes leigas, esse caminho é ainda mais

longo, mas não totalmente impossível, desde que nossas bases estejam nos estudos.

210 Linhagem de veneráveis masculinos que começa com Buda Śākyamuni e vai até o mestre Atiśa Dīpamkara

Śrījñāna. 211 Aqui me refiro às mulheres do sistema monástico, também monjas celibatárias.

109

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dissertação teve como ponto de partida pesquisar as narrativas de Buda Tārā numa

perspectiva de gênero, com o intuito de investigar como as narrativas surgem e se consolidam

no budismo tibetano Geluk. Vimos que há indicios de que a tradição Mahāyāna de alguma

forma se apropria de uma das narrativas de Tārā a fim de fortalecer suas bases hermenêuticas

em países em que o budismo estava em ascensão, após o enfraquecimento religioso na Índia.

De fato, das narrativas de Buda Tārā, desde seu período iniciático, como demonstrados

nas fontes arqueológicas, sobressaem conceitos de finalidade última e busca pela verdade

enraizados na tradição Mahāyāna, essa finalidade está relacionada ao caminho do Bodhisattva,

que tem como prática o cultivo da bodhicitta – a mente que busca pelo completo despertar não

só para si mesmo, mas também para benefício de todos os seres. Há também o conceito de

Bodhisattva, que é trabalhado por sua assimilação com Avalokiteśvara a partir de quatro

virtudes chamada de incomensuráveis: bondade (maitri), compaixão (karuṇā), alegria

entusiástica (muditā) e equanimidade (upekṣā), teologias empregadas nos sistemas Mahāyāna

e Vajrayāṇa.

Com relação à assimilação de Tārā personificada como mãe, conecta-se aos conceitos

teologicos do Bodhisattva Mañjuśrī, quando ela é referenciada como mãe de todos os Budas

por ser a representação de sabedoria (prajnā) no Āryaprajnāpāramitāhṛdayasutram. Além

disso, o texto canônico de Tārā, o TKM, é idêntico aos treze volumes do MMK, descoberta

feita pela pesquisadora Susan Landesman, na qual a datação indica que foram escritos

concomitantemente.

No capítulo I vimos que Tārā desde seu surgimento sempre foi um icone feminino

inserido na teologia do tantra budista, apesar de alguns pesquisadores relacionarem seu

surgimento com deidades do vedantíssimo, outros afirmam que Tārā Verde é a única

representação original do budismo, com seus textos canônicos, rituais e simbologias próprias.

Vimos que há grande influência de exegetas budistas nas transformações nas narrativas

literárias no Tibete, como o Candragomin, que a colocou no mesmo patamar de igualdade nos

conceitos teológicos dos ícones masculinos. Para Avalokiteśvara o conceito de grande

compaixão (mahākaruna), em que Tārā é vincula no texto canônico VAT, a narrativa a descreve

como nascida das lágrimas de Avalokiteśvara no louvor as Vinte uma Tārās, como nascida das

lágrimas do protetor dos três mundos. Já com Mañjuśrī, os conceitos sabedoria e investigação

da realidade estão relacionados.

110

No sistema Vajrayāṇa, vimos como Tārā ganha destaque dos exegetas tantricos ao

classificá-la em todas as classes desse sistema, inclusive no mais elevado, o anuttarayoga-

tantra. Nas escolas tibetanas, desde a linhagem de Atiśa, vimos a centralidade de Tārā nas

esferas culturais e políticas.

Na esfera sociocultural, Tārā é vista como salvadora para os tibetanos. Nesta forma ela

se distancia dos icones masculinos Avalokiteśvara e Mañjuśrī e ganha mais repercussão como

protetora dos oito medos impulsionada pelos louvores contido no texto Homenagem às Vinte e

Uma Tārās (anexo A). Isso porque as classes kriyā e caryā é a classe do tantra mais acessível

e por isso não se restringe só aos monastérios. Deixando a classe superior do tantra fechada às

universidades monásticas.

Já na esfera política, descobrimos que tanto Atiśa como Tsongkhapa tinham a intenção

de restringir principalmente o sistema Vajrayāṇa para o sistema universitário monástico, de

modo que não houvesse as mesmas distorções e conflitos que aconteceram no passado e fizeram

os ensinamentos do Buda nos sutras e tantras terem contradições. Infelizmente a pesquisa não

alcançou essa importante questão, deixando aqui o questionamento para futuras pesquisas: será

que as distorções em relação ao sistema Vajrayāṇa ao código de Disciplina Moral (Vinaya) foi

uma importante causa para o enfraquecimento do budismo na Índia? Ou então, será que esse

fechamento do budismo no Tibete tinha relação de disputas políticas-religiosas? Uma vez que

ocorreram tais mudanças de conduta, com Atiśa e depois com Tsongkhapa houve uma ascensão

das escolas envolvidas. E, ainda, havia outros interesses para apropriação da narrativa de gênero

de Tārā, além da inclusão soteriologica? Por que não há registro de monastérios femininos na

história do budismo se a intenção soteriológica inclui todos os seres?

Algumas dessas questões tentamos responder no terceiro capítulo. A proposta inicial era

analisar como as representações femininas ajudaram a firmar o protagonismo das mulheres no

budismo e investigar como Buda Tārā, com as suas representações de gênero, poderia ser o

caminho de afirmação para as praticantes Geluk.

Vimos através da história que o papel da mulher no budismo sempre foi legitimado,

desde a primeira comunidade budista. Descobrimos que ao longo dos séculos os avanços foram

bem lentos, até os dias de hoje a mulher budista ocupa uma posição subalterna, ou seja, elas

dão sustento e auxilia às comunidades monásticas, muitas vezes sendo patronas, trabalhando

em inúmeras esferas da instituição e assim por diante, mas raras exceções, este trabalho é

reconhecido ou documentado. É fato histórico, são pouquíssimas professoras e Lamas com

títulos e doutoras.

111

Na história pudemos ver que as deidades femininas, especialmente a de Tārā, em suas

inúmeras representações, sempre estiveram muito presentes na vida dos grandes estudiosos

budistas, sempre homens, mas uma pergunta que não silencia é onde estavam as mulheres nas

universidades e nos monastérios budistas? Se no sistema Vajrayāṇa as mulheres são detentoras

de grande sabedoria, por que elas não ensinavam?

A reflexão da pesquisadora feminista Gayatri Spivak sobre a pergunta “quem

reivindica a alteridade?” é uma questão a ser levantada para as lideranças religiosas da tradição.

Se a base dos conceitos teológico é equanimidade, então por que não há reinvindicação e ações

concretas para mudanças desse cenário? Atualmente o XIV Dalai Lama vem articulando com

a hierarquia patriarcal das escolas Geluk, concedendo o merecido título de doutoras (Geshema)

as monjas Geluk, que até o séc. XXI não era permitido monjas alcançarem.

Certamente Je Tsongkhapa tinha bons motivos para fechar o sistema budista Geluk aos

sistemas monásticos acadêmicos, ele construiu uma escola com bases sólidas no método das

Quatro Nobres Verdades Superiores proposto pelo Buda histórico, assim como fez com a lógica

budista dentro da epistemologia da interdependência. Porém, como vimos, parece que há

alguma falha em não incluir as mulheres nos sistemas institucionais acadêmicos. Seria

necessário fazer uma pesquisa de campo para investigar como funcionam as universidades

tântricas femininas que existem na atualidade. Fica aqui aberto mais uma continuação para

futuras pesquisas.

O campo acadêmico sobre o budismo no Brasil é ainda muito embrionário, a maioria

das pesquisas sobre o budismo são no campo da filosofia, que falham em não considerar um

importante requisito proposto pelo Buda histórico: a soteriologia budista, como busca da

verdade última. Embora o termo soteriologia seja um termo grego, ele corresponde aqui ao

objetivo de toda base filosófica budista, que tem como finalidade alcançar a paz definitiva, que

não pode ser desconsiderada. O estudo do budismo acadêmico na Ciências da Religião

comporta seu sentido fundamental religioso, que se assemelha às primeiras universidades

budistas na Índia. Desejo que esta inicial pesquisa impulsione mais mulheres no campo da

pesquisa sobre o budismo na Ciências da Religião.

A pesquisa de uma representação feminina do budismo no Brasil é importante para uma

construção de um budismo brasileiro com um olhar mais crítico e mais livre de preconceitos às

praticantes mulheres, em especial da tradição Geluk em que não há representantes mulheres e

nem detentoras da linhagem monástica feminina. Que sejamos o início do caminho nessas

histórias.

112

DEDICATÓRIA DE MÉRITOS212

Dedico todos os méritos gerados de minhas ações para a realização das Quatro Verdades

Superiores em mim e em todos os seres sencientes. Para que o sofrimento de todos os seres

cesse pela compreensão de suas causas e pela construção de um caminho que leve para a

cessação dos sofrimentos, tanto por mim mesmo quanto por todos os seres sencientes. Que eu

possa ajudar e contribuir com essa construção e desenvolvimento da felicidade e bem-estar por

meio de uma determinação persistente, da alegria e da grande compaixão por todos os seres

sencientes, até que o sofrimento de todos termine definitivamente.

Tudo isso é agora reunido, direcionado e dedicado plenamente à realização mais correta

da insuperável, correta e completa iluminação que é a incomparável libertação (consistente e

densa em virtudes realizada pelos mestres), pelo desenvolvimento hábil, como os Budas, os

Abençoados, do passado dedicaram plenamente, assim como os Budas, os Abençoados, ainda

por vir dedicarão plenamente e, assim como os Budas, os Abençoados, que vivem hoje dedicam

plenamente, também eu, agora, dedico plenamente (para a completa e perfeita iluminação de

todos os seres sencientes, sem exceção).

212 TSAI, 2020, p. 51-52

113

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Figura 10: Tārā Branca https://www.himalayanart.org/items/1802. Acesso em: 5 dez. 2021.

Figura 11: Relevo em pedra na caverna 90 de Kānheri, Maharashtra. No centro

Avalokiteśvara, Bhṛkuṭī à esquerda e Tārā à direita. LANDESMAN, 2020, p. 38.

Figura 12: Tārā Vermelha pacifica e irada. Fonte: 大嘓瞒

筋啊http://www.dymf.cn/index.php?m=content&c=index&a=show&catid=452&id=1111597

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Figura 13: Kurukullā. LANDESMAN, 2020, p. 89.

121

GLOSSÁRIO213

Sânscrito Tibetano Português

Abhiṣeka དབང་བསར་ rito de iniciação no Vajrayāṇa

Ālambana དམགས་ཡལ་

dispositivo auxiliar de meditação

Anuttara བ་ན་མ་མཆས་པ་ insuperável

Anuttarayogatantra རལ་འབར་བ་ན་མད་པའ་རད

classe superior do tantra yoga no

Vajrayāṇa

Āryā འཕགས་པ་ ser nobre

Āryaprajnāpāramitāhṛdayasutra

m

Sūtra da Perfeição de Sabedoria ou

Sūtra do Coração

Avalokiteśvara སན་རས་གཟགས་ representação do Buda da

compaixão

Avidyā མ་རག་པ་ ignorância distorciva

Avidyā-nirodha

libertação da ignorância, extinção

da ignorância

Bhagavatī བཅམ་ལན་འདས་མ་ (Icom Idan 'das

ma)

Bhagavatī em sanscrito significa

iluminado/a, um dos epítetos

padrão de um Buda. Na literatura

budista, no entanto, o termo é

usado quase inteiramente com

referência ao Buda. Em tibetano

significa possuidor/a das

qualidades que transcendem o

saṃsāra

Bhaṭṭārikā ཀ་པ་ལ་ཏ་ར་ Jetsun, Jetsunmas

nobre ou venerável senhora.

Mulheres Veneráveis

Bhāva ཡན་ ser, existir, existência contaminada

Bhikkhunis

monja mulher

Bhikkhus

monge homem

Bodhi, avabodha བང་ཆབ entendimento

Bodhicitta བང་ཆབ་ཀ་སམས་ mente, intenção que busca o completo

despertar não só para si, mas

também para benefício de todos

213 O glossário foi construído de forma livre (tradução não técnica) a partir das seguintes biografias: BUSWELL,

Robert E.; LOPEZ, Donald S. The Princeton dictionary of Buddhism, 2014; LANDESMAN, Susan A. The

Tārā Tantra – Tārā’s Fundamental Ritual Text (Tārā-mūla-kalpa), 2020; MONIER-WILLIAMS, Monier. A

Sanskrit-English Dictionary, 2008. TSAI, Patricia Guernelli Palazzo. O Conceito de Responsabilidade

Universal: uma análise do conceito pela Tradição Budista Mahāyāna Geluk no XIV Dalai Lama, 2021. TSAI,

Plínio Marcos. Sermão do Grande Fundamento: Tradução Bilíngue e Comentário, 2019a; WILSON, Joe.

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122

Bodhisattva བང་ཆབ་སམས་དཔའ་ aquele que busca se tornar um

Buda. Um praticante do sistema

Mahāyāna

Buddha སངས་རས་ཀས་ aquele que realizou o completo

despertar, samyaksaṃbuddha

Buddhavacana བཀའ་ ensinamentos de Buda

Ḍākiṇis མཁའག་མ (mkha’gro

ma)

mulheres, emanações de deidades

femininas

Dāna སན་ generosidade

Dhāraṇi གཟངས། (gzungs) sentido de reter, referindo-se, que

contém fórmulas, método

Dharma ཆས་ ensinamentos (Buddhadharma,

ensinamentos do Buda)

Duḥkha སག་བསལ dor, sofrimento

Duḥkha-skandha

agregado do sofrimento

Geluk ག་ལགས་ (Geden Ringluk) nome da tradição

de Je Tsongkhapa, chamada de

tradição dos virtuosos ou tradição

do chapéu amarelo

Hetu-pratyaya ར་རན་ interdependência

Idam modelo meditacional

Jnāna ཤས་པ༏་རམ་ཤས་

conhecimento direto

Jñānacandrā Yeshe pë Dawa Jñāna: Yeshe e candrā: Dawa. Lua

da Sabedoria

Kagyu བཀའ་བརད་ nome de uma das quatro grandes

escolas tibetanas

Kalyāṇa-mitra དག་བའ་བཤས་གཉན་ conselheiras/os meditativas/os

Kangyur དཔ་བསར་མ་ (dpe

bsdur ma),

Texto canônico tibetano

Karma ལས་ ação ou atividade

Mahā-karuṇā ཐགས་ར་ཆན་པ་ grande compaixão

Kurukullā ཀ་ར་ཀལ་ལ་ deidade feminina, uma forma de

Tārā na cor vermelha

Kriyā tantra བ་བ་རད་

tantra ação

Kṣānti-pāramitā

བཟད་པའ་ཕ་རལ་ཏ་ཕན་པ་

Perfeição (pāramitā)

Paciência (kṣānti)

Mahāyāna ཞག་པ་ཆན་པ་ tradição budista surgida apos o

Terceiro Concilio. É a base

hermenêutica do budismo tibetano,

tem como objetivo a busca do

completo despertar pelo cultivo da

bodhicitta, o completo despertar

123

não só para si mesmo, mas

também para benefício de todos os

seres.

Mahāyānasutras

textos canônicos (sutras) do

Mahāyāna

Maṇḍala མཎ་ཌ་ལ་

significa círculo, usado no

budismo Vajrayāṇa tibetano

como uma representação

simbólica de universo; nessa

simbologia os meditadores

visualizam o maṇḍala e

oferecem aos Budas e

Bodhisattvas como meio de

acumular méritos

Mantra, Mantrayāna

སགས་, སགས་ཀ་ཐག་པ་

Veículo do Mantra, epíteto de

Vajrayāṇa. Mantra também

corresponde a preces litúrgicas

Mudrā ཕག་མཚན་ sinal, no contexto do budismo são

gestos de mãos e braços

representados nas práticas e rituais

de oferendas. Os gestos são usados

nas imagens de Budas,

Bodhisattvas e divindades tântricas

Nālandā ན་ལ་ universidade monástica budista,

localizada na Índia, fundada no

séc. V d.C., manteve-se até o séc.

XII

Nirvāṇa མ་ངན་ལས་འདས་པ་ paz definitiva, o estado de um

arhat. Não é sinônimo de completo

despertar

Nyingma རང་མའ་ལགས་ nome de uma das quatro grandes

escolas tibetanas de Budismo

Prabhāsvaracittah ད་གསལ་ (od gsal

sems)

mente de clara luz

Paṇḍita པཎ་ Geshema, Geshe

doutor/a. Geshema para mulheres e

Geshe para os homens

Prajñā ཤས་རབ་ sabedoria, entendimento ou

conhecimento.

Prajñāpāramitā ཤར་ཕན་ atividades iluminadas que se

referem ao entendimento da prajnā

(sabedoria) Pāramitas ཕར་ཕན་དག་པ་

Perfeições, práticas de

aperfeiçoamento do Bodhisattva

Pāramitāyāna ཕར་ཕན་ཐག་པ་

sistema de práticas das pāramitas

do Bodhisattva. Métodos das

perfeições ou superações

Sādhanas ཕན་ལས་བསབ་ manuais e/ou ritos de práticas

budista que fornecem

instruções para as realizações

124

Sakya ས་ས་ nome de uma das quatro grandes

escolas tibetanas de Budismo

Śākyamuni ཤཀ་ཐབ་པ་ Buda histórico

Samādhi ཏང་འཛན་

meditação ou concentração

Saṃgha མཆག་ comunidade de praticantes

Saṃsāra; saṃsṛti, འཁར་ ciclos de existência, continuidade

dos renascimentos ilusórios

Sila ཚལ་ཀམས་

disciplina

Siddhi ས་དད་ poderes supramundanos

Śrāvastī མཉན་ཡད་ deidade, Tārā Branca

Sugatas བད་གཤགས་ um epíteto de Buda

Sunyatā སང་པ་ vacuidade, vazio de existência

inerente. Interdependente

Sutras, Sutrayana མཌ་སཌ་, ཐག་པ་ཆན་པའ་མད་

textos canônicos de ensinamentos

do Buda, chamado de Veículo do

Sūtras ou Sutrayana.

Tantra རལ་འབར་རད་ no budismo, o termo tantra

geralmente se refere a um texto

que contém ensinamentos, muitas

vezes atribuídos a um Buda,

significando iluminado ou contínuo.

Nem sempre o termo tantra se refere a

um texto que contém ensinamentos,

mas no geral é chamado de tantra

textos do sistema Vajrayāṇa, que são

ritos e manuais próprios de prática da

tradição tântrica budista.

Tārā སལ་མ་ (sgrol ma) Tārā significa estrela e pupila dos

olhos (subs. feminino). Drolma é o

nome fonético derivado do verbo སལ

sgrol བ་ ba que significa salvar,

resgatar, libertar.

Tathagata ཏ་ཐ་ག་ཏ་ Conhecedor da Verdade,

Conhecedor da Superação. Um

epíteto de Buda

Theragāthā

conjunto de poemas em forma de

cânticos. thera: homem iluminado,

gāthā: poema

Theravāda བས་བ་གསམ་པ་ vertente budista surgida após o

Terceiro Concílio. Possui

entendimentos diferentes dos da

tradição Mahāyāna e existe até os

dias de hoje através do canone pāli

Therigāthā

conjunto de poemas em forma de

cânticos. Theris significa mulheres

125

iluminadas, gāthā refere-se a

poemas

Tripiṭaka ས་སད་གསམ་ três Cestos ou Três Categorias de

Ensinamentos, composto pelos

Três Treinamentos Superiores:

Vinaya, Sūtra e Abhidharma

upāya, upāya-kausalya ཐབས་ métodos ou meios habilidosos

upekṣā བཏང་སམས་ས་བད་ equanimidade

utpala ཨཏ་པ་ལ་ flor de lótus azul

vajra ར་ར no budismo é um termo que

significa diamante ou raio, um

símbolo de poder por sua

indestrutibilidade e imutabilidade

Vajrayāṇa ར་ར་ཐག་པ་

é um sistema de meditação, uma

especialização dentro do

Mahayana, algumas vezes

chamado de Veículo do Mantra,

Veículo do Vajra, Mantrayana ou

Tantrayana.

Vajrayoginī ར་ར་རལ་འབར་མ་

Buda feminina

Vinaya འདལ་བ categoria do codigo de disciplina

ética monástica, também usado

como codigos éticos budistas.

viparyasta ཕན་ཅ་ལག་པ་

amarras causadas pelas

distorções

virya བརན་འགས་པ་

esforço

yogini རལ་འབར་མ་ representação feminina de

qualquer deidade no tantra budista

126

ANEXO A

Homenagem às Vinte e Uma Ārya Tares

Tradução: Plínio Marcos Tsai.

ISBN 978-85-68091-48-7

OM, Homenagem a Venerável Ārya Tare.

Homenagem a Tare, a Veloz, a Heroína,

Cujos olhos são como lampejo de relâmpago,

Que surgiu do desabrochar de um lótus,

Nascida das lágrimas do Protetor dos Três Mundos.

Homenagem a ti, com uma face qual cem luas cheias de outono

Reunidas numa única,

A resplandecer com brilhante luz,

Igual a mil constelações.

Homenagem a ti que és ouro azulado,

Tens a mão perfeitamente adornada com uma flor de lótus.

Tu surges das práticas de generosidade, disciplina moral,

Paciência, esforço, concentração e sabedoria.

Homenagem a ti que coroas a uṣṇiṣa dos Tathāgatas,

Cujas ações vitoriosas são ilimitadas,

Que és muito respeitada pelos Filhos dos Conquistadores

Que atingiram todas as perfeições.

Homenagem a ti que, com as letras TUTTARE e HUM

Enche os reinos do desejo, direção e espaço.

Com os sete mundos sob teus pés,

És capaz de levar todos os seres ao êxtase.

Homenagem a ti que és adornada com Indrā,

Agni, Brāhma, Vāyu e outros poderosos devas.

127

E diante de quem a hoste de rakṣas, vetālas, gandharvas e duṣkṛtis,

Respeitosamente oferecem louvor.

Homenagem a ti que, dizendo TRÄ e PHAT

Destróis completamente as obstruções causadas por inimigos,

Esmaga-os com a tua perna direita dobrada e a esquerda estendida,

E queimas com um fogo ardente e furioso.

Homenagem a TURE, a extremamente temível,

Que destrói completamente o chefe dos māras,

Com expressão irada em sua face de lótus,

Vence todos os inimigos sem exceção.

Homenagem a ti, cujos dedos adornam perfeitamente teu coração,

Com o mudrā que simboliza as Três Joias Preciosas.

Adornada com uma roda de todas as direções,

Cuja luz radiante brilha mais do que tudo.

Homenagem a ti, cujo alegre e brilhante ornamento-coroa

Irradia uma grinalda de luz.

Que com tua risada jubilosa de TUTTARE

Dominas os māras e devas mundanos.

Homenagem a ti que és capaz de convocar

Todos os guardiões direcionais e seus séquitos.

Franzindo o cenho e estremecendo com a letra HUM,

Salvas a todos de seus infortúnios.

Homenagem a ti, com uma lua crescente a adornar tua coroa

E todos os teus ornamentos a luzir com esplendor.

Com Amitābha no topo de tua cabeça,

Eternamente irradiando luz.

Homenagem a ti que moras entre grinaldas de chamas,

128

Como o fogo do final do kalpa.

Com a perna direita esticada e a esquerda dobrada,

Destróis as hostes de obstruções dos que se deleitam na Roda do Dharma.

Homenagem a ti que bates no chão com a palma da tua mão

E o golpeias com o teu pé.

Com um olhar irado e a letra HUM,

Dominas os sete níveis.

Homenagem a ti, feliz, virtuosa e pacífica,

Dentro da esfera de paz do nirvāṇa.

Plenamente dotada com SVAHA e OM,

Destróis completamente as pesadas ações malignas.

Homenagem a ti que subjugas completamente as obstruções

Daqueles que se deleitam na Roda do Dharma.

Salvando-os com a sequência do mantra de dez letras

E a letra-conhecimento HUM.

Homenagem a TURE que bate os pés,

Nascida da semente no aspecto de HUM,

Que faz com que o Monte Meru, Mandāra e Vindhaya,

E os três mundos estremeçam.

Homenagem a ti que seguras em tua mão

Uma lua, o lago dos deuses.

Dizendo TARE duas vezes e a letra PHAT,

Dissipas completamente todos os venenos.

Homenagem a ti que és adornada pelos reis das hostes de deuses.

E pelos deuses e kiṃnaras.

Por meio de tua brilhante e alegre armadura penetrante.

Todos os conflitos e sonhos maus são dissipados.

Homenagem a ti, cujos dois olhos, qual sol e lua cheia,

129

Irradiam uma luz clara e pura.

Dizendo HARA duas vezes e TUTTARE.

Dissipas as doenças mais violentas e contagiosas.

Homenagem a ti que tens o perfeito poder de pacificar.

Por meio de tua bênção das três sunyatās.

Subjugadora das hostes de māras, vetālas e duṣkṛtis.

Ó TURE, a mais perfeita e suprema!

Assim termina a prece do mantra-raiz e as vinte e uma homenagens.

130

ANEXO B

Homenagem para a Tārā Sarasvati 214

Na vastidão do mais puro dos céus escrevo essa homenagem de palavras bem

escolhidas. Vajra Sarasvatī, grande compaixão, eu vos embelezo. Abra as flores noturnas da

minha mente.

Vossa mente brilha com um milhão de raios de luz, com uma fala tão doce quanto a

melodia perfeita de Brahma, com vosso corpo tão lindo quanto os picos das montanhas nevadas.

Vajra Sarasvatī, eu te presto homenagem.

Quando a noite escura da ignorância fecha a pétala de lótus da sabedoria dos seres

sencientes, penso em vossa forma com um brilho sem igual, penso na vossa irradiância e brilho

sem iguais, que transformam a ignorância distorciva na luz da lua, a mente que deseja pelo

completo-despertar.

Em vossa forma irada, com vossos olhos vermelhos que brilham como um milhão de

estrelas cadentes, dentes brancos que cintilam como os picos das montanhas nevadas, luzes que

emanam do seu corpo com chamas de raios de tempestades. Vajra Sarasvatī guerreira, vos

moveis os três reinos

Homenagem a vós, com dois olhos que revelam todos os fenômenos como sendo duas

verdades, a convencional, que aparece como uma miríade de formas, e a última, vazia-de-ser-

inerente em qualquer lugar.

Preso por esses muros espessos das noções do egoísmo (ahaṃkāra), confinado

constantemente pela escuridão da ignorância (avidyā), essa mansão horrenda do saṃsāra, é

destruída pelo vajra que está em vossa mão direita.

A cabeça do demônio do auto apreço (mamakara), que nos mantém na prisão do

saṃsāra, com as correntes duras de romper do apego aflitivo, é decepada pela espada de

sabedoria que seguras em sua mão esquerda.

Da natureza da sabedoria e do método, os barcos para cruzar o perigoso oceano do

saṃsāra, o caminho para os reinos de êxtase da liberdade, suas pernas, uma esticada e a outra

dobrada, esmagam um cadáver hediondo sobre um disco de lótus e sol.

214 TSONGKHAPA, 2001, p. 167 traduzido do tibetano para o inglês por Gavin Kilty e do inglês para o português

por Plínio M. Tsai. Autorização para publicação e uso integral da tradução concedida em 20 de fevereiro de

2022.

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Vajra Sarasvatī sem nenhuma negatividade, com um corpo tão supremamente lindo

como a lua cheia completamente perfeita, como a radiância das montanhas nevadas sob o sol,

resplandecente na luz de vossas joias, as virtudes da compaixão e amor.

Adornada com os preciosos ornamentos de ossos, a renúncia das causas do sofrimento,

como as guirlandas de nuvens no céu, como um arco-íris de muitas e variadas cores,

evidentemente manifesta, embora elusiva.

Para contemplar insaciavelmente a vossa forma maravilhosa, exaltada por qualidades

gloriosas e inacreditáveis, é como ver o Monte Meru, e por comparação, não o fazer é afundar

vergonhosamente no mais profundo do oceano.

Vossa voz, adornada com as sessenta qualidades das virtudes, é água para lavar todas as

faltas. Quando a vossa voz é ouvida, não são as águas do Rio Ganges retraídas e arrastadas para

o mar?

Toda a existência é claramente iluminada pela vossa mente. Até mesmo Indra é incapaz

de mudá-la, mesmo que tente, não consegue, mas se recolhe e foge através dos céus.

Minha Vajra Sarasvatī extraordinária, senhora exaltada, quem poderia descrever vossas

qualidades plenamente? Do vosso oceano de excelências, no entanto, eu tomo uma gota e vos

ofereço essa homenagem.

Por esse louvor, Vajra Sarasvatī extraordinária, me conduza a grande cidade da

libertação, longe da prisão do saṃsāra, onde eu estou desprotegido, preso por uma cegueira

total, que não me permite ver a realidade.

Com vossa compaixão, Vajra Sarasvatī poderosa, ajude aqueles enganados por visões

incorretas, jogue essas visões no mais profundo abismo do saṃsāra.

Vajra Sarasvatī da compaixão, expulse a ignorância distorciva, que violentamente

conduz os ventos aflitivos do karma e delusão, que nos jogam sem amparo nas garras afiadas

do monstro marinho do renascimento descontrolado, a raiz do sofrimento.

Adornada pelas águas da compaixão vazia de existência inerente, vós sois a fonte de

toda a felicidade e alegria, uma joia dos desejos, dispersando a pobreza da mente, cuidando de

nós, como uma mãe cuida de seu filho único. Manifeste agora um milhão de formas de

sabedoria em favor daqueles que estão na posse sagrada da joia do conhecimento, mas que não

desfrutam da alegria de estarem sentados na presença dos Budas, amargando o confinamento

na escuridão da ignorância.

Se vós ignorásseis aqueles que tem os olhos da sabedoria cobertos pela grossa catarata

da ignorância, então seria apenas compassiva por nome, ó médica incomparável que curais

todas as dores.

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Mas se não conhecêsseis os meios de dispersar a confusão das mentes dos outros, ou se

sabendo não o fizesse, então, eu agora, teria me afastado do poder do vosso completo-despertar,

dos poderes de vossas habilidades.

Se uma criança percorre um caminho perigoso e sua amorosa mãe não fizer nada a

respeito, então que outra protetora, além de vos Vajra Sarasvatī, poderia ser mais eficiente em

proteger essa criança?

Que aqueles com inteligência tragam a vossa forma à mente e te prestem homenagem

com uma emoção tão forte quanto esta, e que a escuridão da ignorância deles, seja trazida

instantaneamente para a cessação final, pelo poder da vossa compaixão.

OM SARASIDDHI HRIM HRIM