Editorial - Universidade Metodista

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1 Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 1, jul./dez. 2013 Editorial Ao contrário do anúncio feito no editorial de número anterior, estamos dando continuidade ao trabalho editorial dessa revista. Assim podemos comunicar mais duas pequenas mudanças na editoração: depois que percebemos que muitos(as) dos(as) nossos(as) leitores(as) gostariam de baixar e arquivar a revista Caminhando em formato de PDF, adicionamos o arquivo completo no final dos “Registros”, e da mesma forma incluímos daqui para frente as datas de recepção e da aprovação de cada artigo. Com o ano 2014, a própria revista Caminhando será assunto de uma pequena celebração, pois chegará, no seu trigésimo ano. 30 anos é a idade da maturidade no ciclo da vida humana e, no mundo editorial das Faculdades Protestantes representa, certamente, uma pequena eternidade. Ele começou como revista da Igreja Metodista, tornou-se, na sua segun- da vida, revista da Faculdade de Teologia e reinventou-se, em forma de edição eletrônica ao lado da versão impressa, há uns anos atrás. Com mais do que 30.000 acessos nos últimos dois anos ela é lida por mais pessoas do que nas três décadas anteriores. Tudo isso, me dá satisfação em agradecer aqueles(as) que com- partilharam os seus conhecimentos e a sua paixão sobre os temas da fé cristã com os(as) leitores(as), em espírito fraternal e autocrítico. Da mesma forma, lembramos dos(as) editores(as) do texto, revisores[as], tradutores[as]e diagramadores[as] que cuidaram de muitos detalhes. Será que a revista terá mais trinta anos? O futuro dirá. Helmut Renders Para a equipe editorial Em dezembro 2013

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1Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 1, jul./dez. 2013

Editorial

Ao contrário do anúncio feito no editorial de número anterior, estamos dando continuidade ao trabalho editorial dessa revista. Assim podemos comunicar mais duas pequenas mudanças na editoração: depois que percebemos que muitos(as) dos(as) nossos(as) leitores(as) gostariam de baixar e arquivar a revista Caminhando em formato de PDF, adicionamos o arquivo completo no final dos “Registros”, e da mesma forma incluímos daqui para frente as datas de recepção e da aprovação de cada artigo.

Com o ano 2014, a própria revista Caminhando será assunto de uma pequena celebração, pois chegará, no seu trigésimo ano. 30 anos é a idade da maturidade no ciclo da vida humana e, no mundo editorial das Faculdades Protestantes representa, certamente, uma pequena eternidade. Ele começou como revista da Igreja Metodista, tornou-se, na sua segun-da vida, revista da Faculdade de Teologia e reinventou-se, em forma de edição eletrônica ao lado da versão impressa, há uns anos atrás. Com mais do que 30.000 acessos nos últimos dois anos ela é lida por mais pessoas do que nas três décadas anteriores.

Tudo isso, me dá satisfação em agradecer aqueles(as) que com-partilharam os seus conhecimentos e a sua paixão sobre os temas da fé cristã com os(as) leitores(as), em espírito fraternal e autocrítico. Da mesma forma, lembramos dos(as) editores(as) do texto, revisores[as], tradutores[as]e diagramadores[as] que cuidaram de muitos detalhes. Será que a revista terá mais trinta anos? O futuro dirá.

Helmut RendersPara a equipe editorial

Em dezembro 2013

2 Rainer KessleR: Ética profética para um mundo sustentávelRevista Caminhando v. 18, n. 2, p. 2, jul./dez. 2013

Editorial

Contrary to the announcement made in the editorial of the previous journal Caminhando, we are still continuing the editorial work of this maga-zine . So we can share two smaller changes: Once we realized that many of our readers would like to download and save the complete edition of the jornal Caminhando in only one PDF archive, we added the full file at the end of “Records,” and likewise we included the submission date and date of approval of each article.

In 2014, the journal itself will be subject to a little celebration, becau-se it has reached its thirtieth year of circulation. 30 years is the age of maturity in the human life cycle and in the publishing context of a Protes-tant School of Theology in Brazil it certainly represents a small eternity. Caminhando began as a theological journal of the Methodist Church, in its second life , it became the journal of the School of Theology of Brazilian Methodism and a few years ago it reinvented itself in the form of an elec-tronic edition, alongside the print version. With more than 30,000 hits in the last two years, it is read by more people than the previous three decades.

All this gives us satisfaction to thank those who shared with its readers their knowledge and passion concerning Christian faith, in fra-ternal attitude and self-critical spirit. Likewise we remember text editors, reviewers, translators, visual designers and those who took care of many details . Does the magazine has another thirty years? The future will tell.

Helmut RendersIn the name of the editors team

In December 2013

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 7-19, jul./dez. 2013 5

DOSSIÊ

DOSSIER

DOSIER

6 José Ademar KAefer: Bíblia e sustentabilidade: fazendo caminho

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 7-19, jul./dez. 2013 7

Bíblia e sustentabilidade: fazendo caminho

Bible and sustainability: making way

Biblia y sostenibilidad: haciendo camino

José Ademar Kaefer

ResumoEste ensaio procura mostrar que na Bíblia o conceito sustentabilidade engloba não somente o cuidado com a natureza, mas também o cuidado com as pessoas mais vulneráveis da sociedade: “Que não haja pobres em teu meio” (Dt 15.4). Mostra que houve uma evolução na compreensão dos textos bíblicos a partir da hermenêutica da sustentabilidade e vice-versa. O mundo sustentável é um processo contínuo, um fazer caminho. Os erros do passado, como o dilúvio causado pela violência (hamas) do ser humano, ensinam que se a justiça (ze-daqah) não correr como um rio caudaloso (Am 5.24), outra vez a humanidade se autodestruirá. Uma pista poderá ser a teologia do serviço construída pelo povo de Deus no exílio, de onde resgatamos o verbo “sustentar” (tamach): “Eis o meu servo a quem sustenho” (Is 42.1).Palavras-chave: Sustentabilidade; hermenêutica; violência; justiça; serviço.

AbstRActThis essay seeks to show that in the Bible the concept sustainability encompasses not only the care of nature, but also the care of the most vulnerable people in society: “Let there be no poor among you” (Dt 15:4). Shows that there has been an evolution in the understanding of the biblical texts from the hermeneutics of sustainability and vice versa. The sustainable world is a continuous process, one way to do. The errors of the past, as the flood caused by violence (hamas) human, teach that if justice (zedaqah) does not run like a raging river (Amos 5:24), again humanity will self-destruct. A clue may be the theology of the service built by the people of God in exile, where rescued the verb “support” (tamach): “Behold my servant, whom I uphold” (Isaiah 42:1).Keywords: Sustainability; hermeneutics; violence; justice; service.

ResumenEste ensayo pretende demostrar que en la Biblia el concepto de sostenibilidad abarca no sólo el cuidado de la naturaleza, sino también el cuidado de las personas más vulnerables de la sociedad: “Que no haya pobres entre vosotros” (Deuteronomio 15:04). Indica que se ha producido una evolución en la compren-sión de los textos bíblicos de la hermenéutica de la sostenibilidad y viceversa. El mundo sostenible es un proceso continuo, una forma de hacerlo. Los errores del pasado, como la inundación causada por la violencia (hamas) humano, enseñan que si la justicia (zedaqah) no se ejecuta como un río embravecido (Amos 5:24), una vez más la humanidad se autodestruirá. Una pista puede ser la teología del servicio construida por el pueblo de Dios en el exilio, donde rescató el verbo “support” (tamach): “He aquí a mi siervo, a quien sostengo” (Isaías 42,1).Palabras clave: La sostenibilidad; la hermenêutica; la violencia, la justicia; el servicio.

8 José Ademar KAefer: Bíblia e sustentabilidade: fazendo caminho

Vi ontem um bichoNa imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,Não era um gato,Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira

memória Escrevo esse artigo inspirado pela Bíblia, não como exegeta, mas

como militante. Escrevo livremente como pessoa de fé, idealista, sonha-dor, pastoralista. Por isso, quero começar fazendo memória de pessoas que nos precederam nessa tarefa e que bem antes de nós perceberam a seriedade desse tema, indicaram o caminho e pagaram o preço. Paga-ram com aquilo que tinham de mais valioso, a vida. Pagaram o preço de sangue, seu sangue. Falo de pessoas como Dorothy Stang, que já vai para o seu nono aniversário de vida martirial: 12 de fevereiro de 2005, em Anapu, PA, dia do seu batismo de sangue. Deveria falar também de Chico Mendes ou o casal Maria Aparecida do Espírito Santo (reúne em seu nome todas as formas da fé do povo brasileiro) e de tantos e tantas mártires da América Latina e Caribe. Destaco Dorothy Stang nesta longa fila de mártires, demasiada longa, não por ela ser estadunidense ou por ser irmã religiosa, mas por ser anciã. É impressionante, o exemplo de luta desta mulher de 72 anos cheia de coragem juvenil. Como é impres-sionante até onde pode chegar a covardia de homens assassinos como aqueles que lhe tiraram a vida. Uma flor sem defesa, não tinha a mínima possibilidade de se defender. Estava totalmente à mercê dos que a gol-pearam. Dorothy, como outros mártires, alimentava o sonho de um mundo sustentável. E, com o seu pequeno projeto junto aos sem-terra, mostrava que isso era possível. Que, portanto, não se tratava só de um sonho. O martírio mostra que estavam certos, que esse é o caminho a seguir. Por isso é elementar que mantenhamos vivas suas memórias e aquilo pelo que lutaram e deram o que tinham de mais precioso, a vida. Que o sangue desta mulher, anciã com utopia e coragem juvenil, não seque, se mantenha aquecido em nossa memória e em nossa luta.

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1. Hermenêutica bíblica da sustentabilidadeAntes de mostrar como a Bíblia pode ajudar no debate do tema

da sustentabilidade, é preciso dizer que isso só é possível se lemos a Bíblia com outros olhos, com os olhos da sustentabilidade. Para tanto, é necessário estar comprometido e comprometida com a causa do mundo sustentável, estar inserido e inserida, participar, inquietar-se, ser e estar sensível às situações pelas quais passa o planeta e a humanidade. Sem isso, dificilmente se perceberá aspectos bíblicos que reportam ao tema. Enfim, depende de onde está o teu pé para que o coração sinta e as mãos atuem. Obviamente que esse é sempre um processo dialético: o sentir do coração conduz ao encontro de determinada realidade que por sua vez faz o coração sentir. Em alemão, os estudiosos da Bíblia cunha-ram uma expressão: sitz im lebem, normalmente traduzida por “contexto vital”, mas que literalmente significa “assento na vida”, ou seja, onde o indivíduo está sentado. Nós, na América Latina e Caribe, preferimos dizer “onde está teu pé”.

O que estamos querendo dizer aqui é que, ao mesmo tempo em que a Bíblia auxilia na reflexão sobre a sustentabilidade, a sustentabilidade contribui na leitura da Bíblia. Ou seja, os olhos da sustentabilidade fazem perceber situações na Bíblia que antes não percebíamos ou não dávamos valor. A leitura inserida na luta social é assim, ela renova e se deixa re-novar, é uma via de mão dupla. Portanto, é possível construir uma nova hermenêutica bíblica, a hermenêutica da sustentabilidade.

A Bíblia foi muito utilizada para legitimar ações conquistadoras, para tomar terras indígenas, impor culturas, costumes, oprimir, destruir, desmatar. Os mesmos textos utilizados pelos conquistadores, como por exemplo, o livro de Josué, que narra a conquista de Canaã, serve também para impulsionar as lutas dos pequenos, dos sem-terras, dos sem casas, dos quilombolas, de grupos marginalizados que propõe uma economia e uma sociedade alternativa, sustentável. A Bíblia na mão do povo fez com que ela se tornasse uma ferramenta libertadora. É um caminho que se vai fazendo aos poucos e aos poucos vai sendo ampliado e inclusivo. No início, o estudo bíblico na América Latina e Caribe tinha como centro de sua hermenêutica os pobres de maneira geral. Depois se evoluiu para uma leitura mais inclusiva a partir das categorias sociais excluídas: os negros, indígenas, camponeses, operários, crianças. Paralelamente se desenvolveu a leitura de gênero. O olhar das mulheres trouxe grandes contribuições para o estudo bíblico, uma riqueza nunca vista até então. E por último, a leitura ecológica. Aqui também, as primeiras leituras falavam unicamente da hermenêutica ecológica no sentido do cuidado com a natureza. Atualmente já se compreendeu que o processo é mais complexo e que é preciso falar de leitura sustentável, que vai muito além

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da conservação das matas e da preservação das espécies. É um caminho em paralelo e em sintonia com o que a sociedade como um todo vai fa-zendo. Antes a natureza era agressiva e perigosa, precisava ser domada, destruída. Hoje se fala em cultivar. Lembro-me de um pequeno agricultor que se lamentava, em parte com razão: “No passado eu era obrigado a derrubar o mato, senão o banco não me liberava o financiamento. Hoje, querem me multar porque derrubei o mato”.

O conceito “sustentabilidade” ainda está em fase de construção, não se sabe direito o que é, assim como o mundo que a humanidade alme-ja. A sua origem está ligada ao campo, do cuidado com a terra, com as florestas e com água. Não se pode derrubar mais matas que a natureza consegue repor, nem consumir mais água que ela consegue produzir, ou seja, que a presente geração não prive gerações futuras de usufruir daquilo que ela usufrui. O conceito evoluiu, e hoje o entendimento sobre “sustentabilidade” vai muito além da conservação do meio ambiente.

2. somos feitos da mesma matéria-primaA Bíblia oferece pistas, apesar de que nos tempos bíblicos os pro-

blemas serem outros. O ponto de partida é o relato de Gênesis 1-11, que são os textos paradigmáticos quando se fala de Bíblia e sustentabilidade.

O grande avanço na interpretação dos relatos da criação foi a supe-ração da visão antropocêntrica. Ou seja, a percepção da inter-relação e da interdependência de toda a criação. O que coincide com a descoberta das ciências modernas da interdependência dos fenômenos físicos e biológicos do planeta. Dependemos um do outro para existir. Até pouco tempo, no primeiro relato da criação, a atenção estava voltada ao sexto dia, quando Deus criou o homem e a mulher, como ápice da criação. Dava-se pouca importância ao conjunto da criação, ao fato de o texto mencionar o ser humano como parte de um todo, universo, natureza, luz, firmamento, terra, sol, lua, estrelas, água, terra, plantas pequenas e grandes, ervas, pássaros, peixes, répteis, abismos, montanhas. Lia-se com maior atenção Gênesis 1.28: “Enchei a terra e submetei-a e dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os seres que rastejam sobre a terra”. Aqui também houve um avanço na compre-ensão dos verbos “sujeitar” (Kabash) e “dominar” (Radah), comumente entendidos unicamente como “submeter”, “colocar os pés”. Porém, para ao contexto da época seu significado engloba também a ideia de gover-nar, administrar, ordenar, função que é atribuída ao rei e ao messias (Sl 72.12-13). Algo muito próximo do que o segundo relato da criação (Gn 2.15) define por “cultivar” (‘bad) e “guardar” (shamar).

Portanto, o fato do texto narrar detalhadamente a criação, colocando um dia para cada coisa criada, separando e destacando as espécies,

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mostra a importância que elas têm. Isto é, se só o ser humano fosse importante, não haveria necessidade de mencionar o restante da cria-ção. O mundo e seus habitantes, entre eles o ser humano, foram criados conjuntamente e como um todo. Isso sim, a responsabilidade maior, a de cuidar da criação, cabe ao ser humano. Portanto, na base do mito bíblico da criação já está gestada a compreensão de que o mundo, como as pessoas concebiam o planeta naquela época, é a casa (oikos) de todos, o que a moderna terminologia chama de “aldeia global”.

No segundo relato da criação (Gn 1.4b-2.25) encontramos um ser humano mais integrado ainda com e na natureza. Encontramos aqui também um Deus (Javé Deus) mais próximo da sua criação. Sua ação de “modelar” a criação, de plantar um jardim, se assemelha com o modo que o ser humano trabalha (cria). É uma realidade mais camponesa, que envolve os problemas do campo, seca, chuva, bem como os trabalhos do camponês, de cultivar a terra e cuidar da criação. Ser humano e animais estão muito próximos, interagem. Tanto que são feitos da mesma matéria--prima “Então, Javé Deus modelou do solo todo ser vivente do campo e todas as aves do céu” (Gn 2.19a). Somos todos feitos do mesmo barro, somos todos irmãos. Os animais têm nomes, detalhe importante para o camponês: “E os levou diante do Adam para ver como ele chamaria cada qual, e conforme o Adam chamaria todo ser vivente, assim seria seu nome” (Gn 2.19b). É um texto repleto da mística da roça. Javé Deus é um camponês. É daí, dessa realidade, que o ser humano concebe a ideia de que ele vem da terra. Observando o ciclo das plantas, da se-mente que nasce na e da terra, cresce, vira árvore, morre, incorpora-se novamente na terra, volta a ser terra, húmus para outras plantas, e vendo que o ser humano, animais e aves passam pelo mesmo ciclo, o camponês conclui que eles vêm todos da terra, que somos terra: “Tu és pó e ao pó voltarás”. Jó dirá: “nu saí do ventre da minha mãe e nu voltarei para lá” (Jó 1.21; Ec 5.14). Os seres humanos são seres saídos da terra, o Adam vem da Adamah (terra fértil). No português a relação semântica se dá entre humanus e humus (a humanidade é húmus). Somos matéria orgânica. Portanto, fazer mal à terra é fazer mal à humanidade, à nós mesmos. Todos os povos, por mais antigos que sejam, têm consciência disso. Para os povos Maias, o ser humano foi criado do milho. Conta o Popol vuh, seu livro sagrado, que Tepeu e Cugumatz criaram o ser hu-mano, fizeram várias tentativas. Primeiro tentou com madeira, mas não deu certo porque o boneco que ele tinha criado não tinha espírito. Então, fez outra tentativa com o barro, porém, quando choveu o barro derreteu. Finalmente tentou com o milho, aí deu certo. Por que com o milho? Por-que o milho é o seu alimento básico. Há dezenas de tipos de alimentos que os centro-americanos fazem a partir do milho. De tanto comer milho

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concluiu-se que o ser humano vem do milho: É-se aquilo que se come. Na Nicarágua canta-se: “somos hijos del maíz” (somos filhos do milho). Os povos Guaranis diriam: somos filhos da mandioca (casa de Mandi). Os povos andinos dirão, somos filhos da Pachamama, “a mãe terra”, ou seja, a terra é nossa mãe. Curiosamente, é grande a proximidade entre os mitos bíblicos da criação com os mitos dos povos autóctones da América Latina e Caribe, ou da grande Abya yala.

A verdade que esses mitos, assim como os mitos bíblicos da criação, trazem em seu bojo é grande. E seu ensinamento pode ajudar bastante na compreensão e construção de um mundo sustentável. Estão aí, encober-tos, escondidos, marginalizados, ridicularizados... É preciso resgatá-los, revivê-los e valorizá-los.

2.1) O egoísmo e a violência do ser humano conduzem à autodestruição

“A terra se corrompera diante de Deus e estava cheia de violência. E viu Deus que a terra estava corrompida porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra. Então, disse Deus a Noé: ‘o fim de toda carne está próximo diante de mim, pois a terra está cheia da violência diante deles, por isso, eis que irei destruir a terra” (Gn 6.11-13).

O que causa o dilúvio, segundo o mito bíblico do dilúvio, é a violência do ser humano. Essa violência começa com Caim, que por inveja mata o irmão (Gn 4.1-8), e se multiplica por setenta e sete com Lameque (Gn 4.23-24). Esse violência (hamas) é a mesma violência que os profetas denunciam: “Porque seus ricos (da cidade) estão cheios de violência, e seus moradores falam mentiras. A língua em sua boca é enganosa” (Mq 6.12. Cf. Jr 6.7; 20.8; Am 3.10; 6.3); “Por que me fazes ver a iniquidade e contemplas a maldade? Opressão e violência estão diante de mim, abundam pleitos e contendas” (Hc 1.3. Cf. Hc 1.2,9; 2.8,17).

Portanto, o dilúvio não é iniciativa divina. É a maldade humana que o provoca: “Javé viu que era grande a maldade do Adam sobre a terra e que toda a tendência do pensamento do seu coração era somente má todo dia. Javé se arrependeu de ter feito o Adam sobre a terra e afligiu--se o seu coração. E disse Javé: Vou exterminar o Adam que criei sobre a face do solo, e com o Adam os animais, os répteis e até as aves dos céus, porque me arrependo de tê-los feito” (Gn 6.5-7). Podemos, desta forma, remeter-nos aos dilúvios, enchentes, mudanças climáticas, entre outras coisas, que afetam o nosso planeta hoje. Não são desígnios de Deus, mas efeitos da ação humana, do mau cuidado com a criação. Da mesma forma, devemos remeter-nos à violência humana de nosso tempo. Produzem-se hoje em dia tantas armas que se pode destruir a terra de dezenas de formas diferentes. A fabricação de armas é um dos

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negócios mais rentáveis do nosso tempo. Fazer guerra, fabricar armas, matar tornou-se a fonte de renda por excelência: “A terra está cheia de violência” (Gn 6.11).

Quando o povo de Deus entrou na terra prometida, em Canaã, Javé lhe falou do cuidado que deveria ter com a terra e lhe adverte: “Se vocês contaminarem (sujarem) esta terra, ela os vomitará (Lv 18.28)”. Ou seja, se o ser humano não cuidar da terra ele será cuspido. De uma ou outra forma, a terra irá sobreviver, agonizante, mas sobreviverá. Porém, para se recompor ela precisará extirpar o ser humano, vomitá-lo, como uma alimento indigesto. À causa da ação humana. “Sabemos, pois, que toda criação/seres vivos geme conjuntamente e sofre conjuntamente dores de parto” (Rm 8.22).

Esse é o grande ensinamento do dilúvio, que não é exclusivo da narrativa bíblica. Conhecemos cerca de setenta mitos de dilúvio, muitos deles nas regiões da mesopotâmia, oriundo das grandes inundações na-quelas regiões, causadas pelos grandes rios, como o Tigre e o Eufrates.

No entanto, um homem justo, ou melhor, uma família justa, encon-tra graça diante de Deus e evita o extermínio de toda criação. É Noé e sua família. Temos aqui uma amostra da importância da pessoa justa a sociedade. Lembra o episódio de Abraão que quer convencer Javé de não destruir Sodoma por causa da presença de um justo na cidade (Gn 18.16-32).

O dilúvio é um retorno ao caos que existia antes da criação: “Nesse dia se abriram todas as fontes do grande abismo e as comportas dos céus” (7.11). É importante destacar que a arca não é só para salvar as pessoas, mas também os animais. Essa é a missão do homem e da mulher. No número de cada espécie a ser salva percebe-se no texto a presença de pelo menos duas tradições. Uma tradição fala de um par de cada espécie a ser salva e outra fala de sete pares de animais puros e um par de animais impuros. A segunda, a dos animais puros e impuros, é certamente a teologia sacerdotal do pós-exílio. Essa mesma teologia se percebe quando Noé sai da arca com todos os animais e oferece um holocausto de animais e aves puras a Javé (Gn 8.20-22). A exigência do holocausto não existia quando da criação em Gênesis 1-2. Aliás, essa é uma das diferenças notáveis entre os mitos bíblicos da criação e os mitos da Babilônia e da Mesopotâmia em geral. Apesar da influência que os mitos bíblicos da criação sofreram dos mitos babilônios, estes, além do conflito sangrento entre os deuses pela hierarquia no panteão, dão ênfase ao fato de que o ser humano é criado para servir aos deuses, devendo o ser humano trabalhar e continuamente trazer ofertas a eles. Na mito-logia babilônia, como aparece também no famoso código de Hamurábi, século 18 a.C., os governantes, reis, imperadores, são concebidos como

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sendo à imagem de Deus e venerados como tal. Ou seja, é correto que a humanidade sirva ao rei e seja seu escravo. Esses aspectos estão completamente ausentes nos dois relatos bíblicos de Gênesis 1-2. Aqui a criação é um ato gratuito do ser de Deus. Também convém mostrar que no contexto pré-diluviano o ser humano é orientado a se alimentar de todas as sementes das ervas e de todos os frutos das árvores (1.29). Ou seja, aqui o ser humano é vegetariano. No pós-dilúvio, porém, o ser humano já pode se alimentar da carne de todos os animais e aves puros (9.3). Aqui também é bem forte a ideia de que o ser humano deve ser o terror de todo ser vivente na terra e no mar (9.2).

2.2) A torre de BabelTerminado o dilúvio há um reinício da história da humanidade, e Deus

repete a mesma ordem que havia dado no começo (1.28): “Sede fecun-dos, multiplica-vos e povoai a terra, multiplicai-vos nela (9.7)”. A terra é novamente povoada, mas o egoísmo, a violência e o desejo de dominação que causou o dilúvio continuam presentes. Vemos isso num novo episódio que é o relato da Torre de Babel (11.1-9). Um relato muito breve, coeso e instrutivo. Seu conteúdo versa sobre o projeto da humanidade na terra de Sanaar (Babilônia) de construir uma torre que alcance os céus, de fazer um nome, de não ser disperso sobre a terra e de constituir um só povo que fale uma só língua. Esse era o projeto de dominação dos impérios daquela época, em particular o império Babilônio. Nos dias atuais, os projetos de dominação dos impérios modernos, em sua essência, têm o mesmo fundamento: impor uma única cultura, uma única economia, um único modo de pensar e uma única língua. Quem não se enquadra no projeto das torres de Babel modernas é colocado à margem, sofrendo as consequências daí decorrentes. Este é o projeto da insustentabilidade:

O estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. O custo em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana (Celso Furtado, 1974).

Mas, novamente Deus se revela contra a dominação do ser humano sobre o ser humano. Deus intervém e põe fim à ambição do império e obriga todos os habitantes da cidade de Sanaar (Babilônia) a fazerem aquilo que queriam evitar, dispersar-se sobre toda a face da terra. Aqui podemos entender que Deus promove as diferenças entre povos, culturas, crenças, línguas etc.

A torre de Babel é na sua essência um novo dilúvio: novamente a maldade humana quer se impor, novamente Deus intervém e novamente

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o mundo é recriado. De certa forma, podemos ler a Bíblia toda sobre esse prisma dialético do contínuo recomeçar. Numa primeira instân-cia está a ação Deus e a beleza da sua criação; num segundo passo encontra-se a ação do ser humano com sua arrogância e desejo de dominar, ocasionando a autodestruição. Num terceiro passo acontece a intervenção de Deus e a recriação: tudo começa de novo. Porém, é importante perceber que isso não é uma fatalidade, mas uma tentativa do ser humano de progredir, de acertar e melhorar na sua vida, pois quem faz a leitura da realidade mostrada na Bíblia são pessoas, não Deus. Ela é fruto da reflexão do passado em vista do futuro. É um fio condutor de esperança, de construir uma sociedade justa. Ela começa com um paraíso, um jardim (Gn 1-2), e termina com a nova Jerusalém, último capítulo da Bíblia: “No meio da sua praça, de um lado do rio e do outro, há árvores da vida que produzem frutos doze vezes, dando fruto a cada mês; as folhas da árvore são para a cura das nações. Nunca mais haverá maldições. E o trono de Deus e do cordeiro estará nela” (Ap 22.2-3).

3. “Que não haja pobres em teu meio” (Dt 15.4) Tentamos mostrar como a sensibilidade com a natureza e o meio

ambiente é grande nos primeiros capítulos da Bíblia. De certa maneira, essa forma de ver o mundo se estende e se aprofunda nos capítulos subsequentes, provavelmente porque boa parte das tradições bíblicas seja oriunda do campo. Um exemplo é o Salmo 104, que foi inspirado no hino de louvor do faraó Aquenaton ao Deus Sol. A forma com que esse salmo descreve o cuidado de Deus pela a criação é única. É como um casal de passarinhos cuidando dos seus filhotes.

Porém, a par do cuidado com a natureza e do meio ambiente, indu-bitavelmente deve estar o cuidado com os pobres da terra e da cultura. Um dos avanços mais significativos da reflexão nos últimos anos é de que não é possível falar de sustentabilidade sem falar da inclusão social. Sem inclusão dos/as marginalizados/das não existe mundo sustentável. O ser mais ameaçado do planeta é o pobre.

Esse fato foi constatado desde o princípio pelo povo da Bíblia. Por isso, no centro de suas leis está a defesa das categorias sociais mais vulneráveis da sociedade: o órfão, a viúva e o estrangeiro. “A nenhuma viúva ou órfão afligireis. Se os afligirdes e eles clamarem a mim eu escu-tarei o seu clamor e então a minha ira se inflamará contra vocês e vocês perecerão pela espada”, diz Javé em Êxodo 22.22-23a. “Não torcerás o direito do estrangeiro e do órfão, e não tomarás como penhor a túnica da viúva”, reafirma Deuteronômio 24.17. “Que não haja pobre em teu meio”, conclui Deuteronômio 15.4.

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Contudo, são os profetas que mais fortemente denunciam as opressões feitas aos pobres. Contra os ricos comerciantes: “Escutem isso, vós que pisoteais o pobre que quereis eliminar os necessitados da terra. Vós que dizeis: quando passará a lua nova para venderemos o grão e o sábado para negociarmos o trigo, para diminuir a medida e aumentar o preço, e enganar com balanças falsas, para comprar com prata os pobres e o necessitado por um par de sandálias, e vendermos o resto do grão?” (Am 8.4-6).

Contra os juízes corruptos: “Eles detestam àquele que repreende à porta e desprezam àquele que fala a verdade. Por isso, porque pisais sobre o pobre e tomais a parte de grãos dele, construís casas de cantaria, mas não as habitareis. Plantastes vinhas formosas, mas não bebereis seu vinho. Porque conheço vossos muitos delitos e vossos enormes pe-cados: opressores de justos e tomadores de suborno e que enxotais os necessitados da porta” (Am 5.10-12).

Contra os defraudadores e os falsos sacerdotes: “Vendem o justo por prata e o necessitado pelo preço de um par de sandálias. Eles pisam sobre o pó da terra a cabeça dos pobres... Sobre roupas penhoradas se deitam junto a todo altar e bebem vinho de multas na casa de seus deuses” (Am 2.6b-7a,8).

O cuidado que o povo de Deus deve ter com o empobrecido e a empobrecida pode ser resumido na Bíblia numa palavra: justiça, zedaqah, em hebraico. Apesar da evolução que esse conceito sofreu ao longo dos séculos, justiça é o que melhor traduz o cuidado, a preocupação com a in-clusão social. Os salmos estão repletos de meditações sobre a justiça, mas, novamente, são os profetas que mais se identificam na defesa da justiça:

• Amós 5.24: “Que o direito corra como as águas e a justiça como um rio caudaloso”.

• Miqueias 6.8: “Foi explicado para ti, ó homem, o que é bom e o que Javé requer de ti: agir com justiça, amar a misericórdia, humilhar-se e caminhar com teu Deus”.

• Isaías 42.6: “Eu, Javé, chame-te para a justiça...”. Enfim, uma sociedade sem justiça (zedaqah) não pode ser sustentá-

vel. Na Bíblia, é um caminho a ser feito, buscado e construído. É o eterno sonho de alcançar a terra prometida, que o Trito Isaías chama de Novo Céu e Nova Terra (Is 65.17-15; Ap 21.1), em que o ser humano vive em perfeita harmonia entre si e com a natureza. É o mito da “terra sem males” dos povos guaranis, como tantos outros mitos de tantos outros povos.

4. sustentabilidade e a teologia do serviçoSe a zedaqah é o caminho a ser trilhado para construir o mundo

sustentável, a maneira como manter-se nesse caminho ainda é um desafio. O texto de Gênesis 1-11 deixou-nos algumas lições, como por

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exemplo, de que a função do ser humano não é a de dominar, isso só leva à destruição, mas a de cultivar e cuidar: “E tomou Javé Deus o Adam e o colocou no jardim do Éden para cultivá-lo e o guardá-lo” (Gn 2.15). O que entendemos por isso e como isso pode ajudar na compreensão do tema da sustentabilidade?

Como mencionado anteriormente, o termo sustentabilidade, enquanto conceito como busca-se compreender e construir hoje, é desconhecido na Bíblia. Em alemão o termo sustentabilidade se traduz por Nachhaltichkeit. São duas palavras numa só. Halten: é o verbo suster, segurar, amparar. Nach é uma preposição que indica direção, seguir atrás. De forma que, Nachhaltichkeit, que nós traduzimos por “sustentabilidade” é uma ação seguida, duradoura, persistente, que segue sustendo e cuidando. Vem à mente a cena de uma criança que começa a andar e que precisa do amparo da mãe ou do pai, que lhe segue amparando, sustendo com as mãos para que não caia. Denota fragilidade. Isso é sustentabilidade. A natureza, de elemento agressivo, perigoso que é preciso conquistar, dominar, destruir, passa a ser uma instância frágil, que é preciso cuidar, amparar, sustentar continuamente.

Na Bíblia um verbo que denota essa fragilidade e que pode ser tradu-zido por “sustentar” é o verbo tamach. Observe algumas passagens onde esse verbo é empregado e analise o campo semântico do seu entorno, o que ajudará na sua compreensão.

A primeira vez que esse verbo aparece é em Gênesis 48.17. Aqui tamach é empregando no sentido de colocar a mão de Jacó sobre os filhos de José para abençoá-los. Em seguida aparece em Êxodo 17.12, no episódio da batalha de Israel contra os amalecitas, onde, enquanto Moisés levantava as mãos, Israel vencia, mas, quando, devido ao cansaço, Moisés baixava as mãos, Amaleque vencia. Foram, então, Aarão e Ur e sustentaram as mãos a Moisés.

Nos salmos o verbo tamach é empregado para falar da ação e do cuidado de Javé com o pobre, com pequeno e o excluído: “Javé é minha parte na herança, a minha taça. És tu que sustentas a minha porção” (Sl 16.5); “É ele (Javé) que sustenta os meus passos, por isso, meus pés não vacilam” (Sl 41.13); “És tu (Javé) que me manténs íntegro e me sustentas em tua presença” (Sl 17.3); “Minha vida está unida a ti e tua direita me sustenta” (Sl 63.9).

No entanto, é Isaías 42.1 que explicita melhor o que tamach quer signficar. “Eis o meu servo a quem sustenho”. Aqui o verbo tamach é empregado num contexto de extrema fragilidade. O povo de Deus se encontrava no exílio da Babilônia, onde foi humilhado, escravizado e ridicularizado em sua cultura e em sua crença pelos seus algozes. O povo fez a experiência do abandono, do sofrimento, da pobreza extrema

18 José Ademar KAefer: Bíblia e sustentabilidade: fazendo caminho

e da desesperança. Mas, aos poucos vai surgindo uma luz e a esperan-ça renasce. Diante da dura realidade o povo começa a refletir qual seria sua real missão no mundo. E, assim, passo a passo nasce uma nova teologia na caminhada do povo de Israel, a teologia do servo sofredor, a teologia do serviço. Israel não seria mais o povo de outrora, dos sonhos imperialistas dos reis, em que todos os povos, de todos os cantos da terra trariam tributos à Sião. Sua missão agora será a de servir os povos. O papel se invertera. O exílio lhe ajudara a encontrar sua autêntica missão.

Portanto, no Deutero Isaías, o servo, que é o povo, é alguém frágil, necessitado de proteção: “Eis o meu servo a quem sustenho” (Is 42.1). É um caniço rachado, uma chama que está por se apagar (Is 42.3). Onde, então, está a sua força? Na sua fragilidade e no seu go’el “resgatador”, que é Javé, seu Deus. Sua força é a força dos pequenos de Javé. Sua conduta não é a de conquistar, mas de servir, servir a vida (cf. Jo 13.1-15). Esta é uma condição impreterível para construir um mundo sustentável: o serviço à vida.

5. uma nova místicaA Bíblia mostra como o povo de Deus, por muitas vezes, seguiu em

direção errada e perdeu-se no caminho. Mostra também como esse povo foi capaz de refletir e recomeçar, deixando-se orientar pelo seu Deus. Estamos nesse tempo de reflexão e de reorientação. Tempo em que é preciso repensar os valores. Se até aqui se pensava que o mundo, com seus povos e culturas, com suas matas, animais e rios, era uma amea-ça que precisava ser conquistado e dominado, agora entendemos que esse mesmo mundo é frágil e que precisa ser cuidado, amado e servido. Para tanto, é necessário uma mudança de valores, um novo pensar, uma nova mística. Uma mística cujo amor transcende tudo, que é fonte de vida, de justiça, de solidariedade, acima de qualquer desejo egoísta e destruidor. Uma mística do coletivo: do pensar coletivo, sentir coletivo, sonhar coletivo e construir coletivo, pois o mundo, a terra é uma grande coletividade, uma comunidade viva interdependente. Uma mística aberta à diversidade cultural, com uma nova consciência religiosa. Uma mística voltada aos mais necessitados e necessitadas, aos pobres e excluídos. Uma mística da gratuidade, em que o gesto a favor da vida enche de satisfação e se basta. Uma nova consciência ecológica exige uma nova consciência em relação ao ser humano. Quem não é capaz de estar com o/a pobre, também não vai fazer nada pela ecologia, será somente uma atitude egoísta de quem não quer perder a beleza da flor para enfeitar o seu jardim particular.

Aqui voltamos à Irmã Dorothy Stang. Foi com ela que iniciamos nossa reflexão. Em tempos obscuros e confusos precisamos de exemplos que

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servem de referência palpável e segura. Irmã Dorothy, como tantas outras e outros que deram sua vida pela causa dos e das empobrecidos/as, é essa referência segura. Sua prática foi inspirada na Bíblia. Na hora do seu martírio, diante de seus algozes, leu as bem-aventuranças (Mt 5.1-12) e indicou-nos o caminho a seguir. Profetisa de tempos modernos, não deixemos que seu testemunho caia no esquecimento.

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Submetido em: 15-10-2013Aceito em: 28-10-2013

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Ética profética para um mundo sustentável*

Prophetic ethics for a sustainable world

Una ética profética para un mundo sostenible

Rainer Kessler

ResumoDepois de uma breve definição dos termos sustentabilidade e ética profética desenvolve-se o tema em relação ao profetismo literário e à formação da Torá como reação à crise social, para finalizar com o aspecto ecológico específico da sustentabilidade na profecia veterotestamentária. Foca-se no entrelaçamento dos temas justiça social e a fertilidade da natureza.Palavras-chave: Antigo Testamento; ética profética; Torá; sustentabilidade; fertilidade da natureza.

AbstRActAfter a brief definition of the terms sustainability and prophetic ethics up, is developed the theme in relation to the prophetic literature and the formation of Torah as a response to social crisis, to finalize with the specific ecological aspect of sustainability in Old Testament prophecy. Focus is on the intertwining themes of social justice and fertility of nature.Keywords: Old Testament; prophetic ethics; Torah; sustainability; fertility of nature.

ResumenDespués de una breve definición de los términos de la sostenibilidad y de la ética profética desarrolla el tema en relación a la literatura profética y la formación de la Torá como una respuesta a la crisis social, para finalizar el aspecto ecológico específico de la sostenibilidad en la profecía del Antiguo Testamento. Se centra en los temas entrelazados de la justicia social y de la fertilidad de la naturaleza.Palabras clave: Antigo Testamento, la ética profética; la Torá, la sustentabilidad; la fertilidad de la naturaleza.

1. o que entendemos por “sustentabilidade” e por “ética profética”O título do presente artigo contém dois termos centrais: “sustenta-

bilidade” e “ética profética”. Ambos os termos não são evidentes, mas precisam ser explicados.

Vamos começar pelo termo da sustentabilidade. No uso amplamente divulgado que nós conhecemos hoje, o termo da sustentabilidade é ainda muito novo. Sua carreira começou nos anos 1980, quando o conceito da sustentabilidade foi desenvolvido primeiro pelo Club of Rome e depois pela Organização das Nações Unidas (ONU). Originalmente, o termo

* Traduzido do alemão por Monika Ottermann.

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provém da silvicultura, da gestão de florestas.1 Uma floresta é explorada e administrada de modo sustentável quando não se derruba mais árvores do que podem crescer para substituir as árvores cortadas. Isto se tornou o modelo para outros usos do termo. No setor da energia, ele significa que não se deve usar mais energia do que pode ser produzida depois. Para o meio ambiente, o termo significa que ele não deve ser mais poluído e comprometido do que ele consegue se regenerar.

Deste uso direto da palavra “sustentável” são derivados significados figurados. Uma política social sustentável visa a preservação do equilíbrio social. Na economia sustentável evita-se o desperdício de matérias-primas e de lixo, ou seja, de matérias recicláveis. Uma política sustentável leva em conta os interesses de gerações futuras.

De modo geral podemos afirmar que o conceito da sustentabilida-de não se refere somente a estas áreas individuais que acabamos de mencionar, mas que ele visa a integração destas áreas. Uma política sustentável articula e integra aspectos sociais, energéticos, econômicos e ecológicos. Na Wikipédia em Língua Portuguesa encontra-se a seguinte definição: “O Conceito de Sustentabilidade é complexo, pois atende a um conjunto de variáveis interdependentes, mas podemos dizer que deve ter a capacidade de integrar as Questões Sociais, Energéticas, Econômicas e Ambientais”. Na época da Antiguidade, a questão dos recursos limita-dos de energia ainda não era um fator importante. Por isso, vamos nos concentrar na abordagem da ética profética na questão socioeconômica e na questão ecológica.

Mas antes de entrar nesse assunto devo falar ainda do segundo termo do título do meu artigo: a ética profética. Quando falamos de ética profética queremos dizer algo diferente do que quando falamos da ética de Aristóteles ou da ética de Kant. Estes e outros filósofos ou teólogos escreveram livros que tratam a questão da ética sistematicamente. Na maioria das vezes aparece nos títulos desses livros a palavra “ética” ou a palavra “moral”. No profetismo, isto não existe. A ética dos profetas não é uma ética explícita como a ética dos filósofos e dos teólogos sistemá-ticos. Ainda assim, os profetas possuem algo como uma ética implícita. Suas palavras estão fundamentadas em critérios éticos, e para avaliar a conduta de seus contemporâneos, eles usam medidas éticas implícitas. Neste sentido é bem justificado falar de uma ética profética.

2. o profetismo literário como reação à crise socialO início do assim chamado profetismo literário ou “profetismo clássi-

co” pode ser situado no século oito antes de Cristo. O profetismo existiu 1 Isso ao menos se refere ao equivalente alemão “Nachhaltigkeit” introduzido por Hans

Carl von Carlowitz na sua obra “Sylvicultura oeconomica” (administração da silvicultura) do ano 1713.

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em Israel também já antes dos profetas literários, assim como existia profetismo em Mari e na Assíria, e assim como existiu e existe até hoje profetismo na maioria das religiões, desde os inícios. O fenômeno singular no caso de Israel é que as palavras de profetas foram colecionadas e que foram registradas e transmitidas sob o nome daquele profeta. Nem em Mari nem em Assur existiu algo parecido. Em Mari, oficiais da corte anotaram certos ditos de profetas em cartas ao rei, mas, mais cedo ou mais tarde, essas cartas eram destruídas. No Império Assírio, ou melhor, no Império Neo-Assírio, a corte colecionava oráculos que eram favoráveis para o imperador. Mas o fato de colecionar e passar adiante as palavras de um Amós ou de um Oseias, de um Isaías ou de um Miqueias, é único e existiu só em Israel. Portanto, o que tem de especial em Israel não é a profecia – ela existe praticamente em todas as culturas –, mas o livro profético.

Penso que a explicação desse desenvolvimento seja a seguinte: na época da monarquia, a sociedade de Israel e Judá enveredou para um processo de transformação que foi muito profundo e que gerou uma crise. Os profetas do século 8º reagiram a esse processo. Eles o critica-ram e anunciaram uma ameaça para a existência futura da sociedade. Mais tarde, quando o Reino do Norte, Israel, sucumbiu aos golpes da expansão assíria, isto foi considerado uma confirmação dessas profecias. Posteriormente ocorreu o mesmo em Judá. Assim, o profetismo crítico, que até então estava limitado a pequenos círculos da oposição, ganhou uma aceitação mais ampla. Os livros dos profetas receberam releituras e foram transmitidos pelas gerações, até que encontrassem finalmente sua forma canônica nas épocas persa e helenista.

a. A sociedade tradicional de Israel e JudáVamos voltar agora para os inícios. Eu disse que vejo uma relação entre

o surgimento do profetismo literário e a crise social que podemos observar no século 8º. Como era o mundo que entrou em crise, naquela época?2

É claro que não sabemos todos os detalhes das situações sociais que existiram em Israel e Judá desde a formação destes dois Estados. Mas é efetivamente possível reconstruir as linhas principais da conjuntura. A partir do século 12, a base da sociedade da grandeza de Israel eram as famílias de agricultores. Cada família tinha sua casa e sua roça. O ideal era a igualdade entre as propriedades de todas as famílias. As narrativas da distribuição da terra liderada por Josué refletem este ideal.

2 Para a história social do antigo Israel cf. Kessler , “O nascimento de Israel como sociedade baseada no parentesco” (2009, p. 52-81), “Do estado primitivo ao estado desenvolvido em Israel e Judá” (2009, p. 81-136) e “A formação de uma antiga sociedade de classes” (2009, p. 136-153).

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As famílias conviviam em pequenas comunidades que tinham caráter de aldeias. As plantas de assentamentos da época pré-estatal mostram casas que têm todas mais ou menos o mesmo tamanho. Nesses assenta-mentos faltam completamente edifícios representativos, como são típicos para formas de governos centralizados (FRITZ, 1996, p. 79-92). É verdade que, na época da monarquia, aparecem também as muralhas que prote-gem as cidades, bem como edifícios nobres e senhoriais. Mas as casas comuns dos moradores de aldeias e cidades preservam sua uniformidade.

Podemos supor que as relações entre vizinhos tinham como base a solidariedade e a ajuda mútua. Isto era indispensável para a sobrevivên-cia da comunidade. Litígios jurídicos eram resolvidos dentro da própria comunidade. O objetivo não era o castigo, mas uma conciliação entre as partes. Afinal, as pessoas tinham que continuar a conviver. Elas precisa-vam umas das outras.

Eu não tenho a intenção de esboçar aqui um idílio romântico. Não sabemos como eram as relações dentro das famílias, por exemplo, entre homens e mulheres ou entre pessoas mais idosas e mais novas. Certa-mente havia na realidade também diferenças entre o número de pessoas e entre as forças nas distintas famílias. Contudo, de modo geral, essa sociedade estava equilibrada. Podemos dizer que sua economia e sua convivência social se caracterizavam por sustentabilidade.

b. A decadência da sociedade tradicional e a formação de uma antiga sociedade de classes

Ao que tudo indica, essa sociedade entrou numa crise no século 8º. Aqui não podemos especular sobre os motivos que levaram a essa crise. Como acontece sempre com importantes desenvolvimentos históricos, precisamos partir da suposição de que havia mais que um único motivo para as mudanças. Revoluções e reviravoltas históricas nunca são mo-nocausais, elas são sempre multicausais. No entanto, podemos perceber com bastante clareza os fenômenos nos quais essa crise se manifestava.

Em primeiro lugar devemos mencionar a concentração da posse de terras nas mãos de poucos. Em Isaías 5.8 há a seguinte denúncia: “Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem herdade a herdade, até que não haja mais lugar, e fiquem como únicos moradores na terra”.

Este dito mostra que se trata de um desenvolvimento dinâmico: até que não sobrar nada… Neste contexto, a afirmação de que alguns ficam como os únicos moradores na terra significa que eles são os únicos no país que sobraram como homens livres. Todos os outros ficaram sem posses e se tornaram dependentes deles.

Um desenvolvimento semelhante é criticado por Miqueias: “Ai da-queles que, nas suas camas, intentam a iniquidade e maquinam o mal:

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à luz da alva o praticam, porque está no poder da sua mão! E cobiçam campos, e os arrebatam, e casas, e as tomam: assim fazem violência a um homem e à sua casa, a uma pessoa e a sua herança” (Mq 2.1-2).

É lógico que a opressão pelos ricos atinge não só os homens livres, mas também as suas mulheres, filhos e filhas. Miqueias registra isto em 2.9: “Lançastes fora as mulheres do meu povo, da casa das suas delícias: dos seus meninos tirastes o meu louvor, para sempre”.

Este versículo nos diz na primeira parte que as mulheres são des-pejadas de suas casas. A segunda metade do versículo significa que os filhos e as filhas caem na escravidão (SICRE 1984, p. 276s; KESSLER 2000, p. 133). Na Antiguidade, estas duas coisas estavam relacionadas, inseparavelmente: a perda da propriedade e a perda da liberdade pessoal. Isto fica muito claro na crítica do profeta Jeremias 5.26-28: “Porque ímpios se acham entre o meu povo, cada um anda espiando como se acaça-pam os passarinheiros. Armam laços perniciosos, com que prendem os homens. Como uma gaiola cheia de pássaros, são as suas casas cheias de engano. Por isso se engrandeceram, e enriqueceram. Engordam-se, alisam-se e ultrapassam até os feitos dos malignos. Não julgam a causa dos órfãos, para que eles prosperem, nem julgam o direito dos pobres”.

Por trás deste desenvolvimento social está o problema clássico das dívidas. Muitas vezes, agricultores são obrigados a pedir um crédito, seja em dinheiro, seja em grãos ou outra espécie (cf. a formulação em Deu-teronômio 23.19: “... não emprestarás à usura, nem à usura de dinheiro, nem à usura de comida, nem à usura de qualquer coisa que se empreste à usura”). Eles respondem pela devolução do crédito com suas posses, primeiro com as posses móveis, depois com as posses imóveis (casa, roça). Ao lado da responsabilidade vinculada a objetos há também a responsabilidade vinculada às pessoas quando um crédito não pode ser devolvido. Ela significa que membros da família tinham que ser entregues como escravas ou escravos, devido à dívida. Somente com este sistema é possível explicar como casas e campos podem ser concentrados nas mãos de poucos e como seres humanos podem ser “presos” por outros seres humanos, como o expressa Jeremias 5.26-28: “eles prendem os homens”.

Dívidas eram uma coisa comum da vida cotidiana dos agricultores na Antiguidade. O aspecto particular no desenvolvimento a partir do século 8º foi que essas dívidas cresceram tanto que jamais poderiam ser pagas. A partir da situação precária de famílias individuais nasce uma crise da sociedade inteira.

c. A reação dos profetasQuando perguntamos pela reação profética sob o aspecto da ética

profética para um mundo sustentável, a primeira reação é uma certa de-

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cepção. Por via de regra, os oráculos dos profetas são compostos de dois elementos: a crítica às condições existentes e o anúncio de um futuro no qual haverá uma intervenção de Deus. Como já dissemos, estes elementos não contêm uma ética explícita. E um termo como “sustentabilidade”, no uso moderno da palavra, era desconhecido aos profetas.

Mas mesmo assim podemos encontrar nas palavras dos profetas algo como uma ética implícita. Podemos chamar essa ética de “conservadora”. Os profetas criticam que as condições de vida foram mudadas. No entan-to, eles não criticam a mudança da situação, porque querem preservar, por algum motivo ideológico, aquilo que existe. Eles criticam a mudança porque os membros fracos da sociedade estão pagando o preço dela.

Em Amós, o primeiro dos profetas clássicos, encontra-se um grande número de palavras que ele usa para se referir a estes fracos e pobres. Ele os chama de `ebyon, pobres no sentido material. Eles são dal, o que pode ter também o sentido de “emagrecidos, subnutridos”. São chamados de ani, miseráveis, oprimidos. E eles são tsaddiq, ou seja, inocentes no sentido jurídico. Quando consideramos as palavras de Amós em conjunto, percebemos que essas pessoas ainda têm alguma posse própria. Ainda é possível tirar mais delas. Ainda não vivem numa miséria total, sem posse alguma. Não são mendigos. Mas sua situação é extremamente precária. Essas pessoas vivem no constante perigo de perder absolutamente tudo.3

Em Miqueias, a situação é muito semelhante. Eu já citei as palavras de Miqueias 2. Elas falam de um homem que corre o risco de perder sua casa e seu campo. Ele ainda os possui, mas, como diz Miqueias, isto não vai durar muito. E quando ele os perder, também a mulher será despejada da casa, e os filhos e filhas podem ser levados para a escravidão, por causa das dívidas.

Outros profetas como, por exemplo, Isaías, Jeremias e Ezequiel mencionam também as viúvas e os órfãos, e é interessante que estas pessoas não sejam mencionadas em Amós e Miqueias. Viúvas e órfãos são pessoas que, já como tais, vivem muitas vezes numa situação difícil. À diferença de famílias de agricultores, frequentemente, elas não têm nenhuma posse ou somente uma posse muito pequena. Por isto, são especialmente ameaçadas.

Mais tarde, em Ezequiel, menciona-se pela primeira vez um grupo de pessoas que o profeta caracteriza como “famintas e nuas” (Ez 18). Estas pessoas não podem mais plantar e também não podem produzir nada de outra forma. Por isto estão famintas e precisam mendigar ou furtar comida.

3 Cf. Schwantes (2004, p. 91): “Os ‘pobres’ de certo modo ainda pertencem a esses ‘ho-mens livres’ e por isso suas causas jurídicas são decididas no portão... Embora os pobres ainda tenham direito ao portão, sua situação social e econômica é tão precária e a dos donos de prata e subornos tão avantajada que os primeiros são facilmente sobrepujados e marginalizdos pelos últimos”.

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Suas vestes são apenas trapos. Com Ezequiel já deixamos o século oito e já estamos no século seis. O aumento da miséria e o desenvolvimento do empobrecimento já aconteceram. E quando lemos textos ainda mais tardios, como, por exemplo, o Livro de Jó e os Evangelhos do Novo Testamento, percebemos que a miséria e o empobrecimento cresceram cada vez mais.

É verdade que as palavras dos profetas possuem acentos muito diferenciados. Mas esses acentos coincidem em uma coisa bem importan-te: os profetas estão do lado dos fracos. Eles assumem uma parcialidade. Eles não veem o desenvolvimento com os olhos de um economista ou de um politólogo. Com toda a sua paixão, eles estão do lado das vítimas.

É interessante que eles quase não informam sobre os critérios de sua decisão. Quando comentam ocasionalmente em que eles medem o desenvolvimento, eles mencionam duas grandezas: direito e justiça, em hebraico: mishpat e tsedaqá. No famoso Cântico da Vinha, Isaías descreve como Deus cultivou bem a vinha Judá, mas como ela não deu fruto. O ponto alto e central do cântico encontra-se no último versículo: “(Javé) esperou que exercessem direito, e eis aqui opressão, justiça, e eis aqui clamor” (Is 5.7).

Como se sabe, Amós se contenta quase exclusivamente com críticas. Há apenas alguns poucos textos em que ressoa uma exigência positiva. E esta exigência diz: “Corra, porém, o direito como as águas, e a justiça como o ribeiro impetuoso” (Am 5.24).

Amós não descreve em que consistem direito e justiça. Trata-se de conceitos tradicionais. Todo mundo os conhece, não é preciso explicitá--los detalhadamente. Além disso, muito provavelmente, os profetas anti-gos do século 8º ainda nem conheciam coletâneas escritas de leis. Em todo caso chama a atenção que eles nunca se referem a mandamentos explicitamente formulados.

No entanto, isto não significa que Deus não teria nada a ver como tudo isto. Muito ao contrário! Vamos voltar para aquele cântico de Isaí-as, o Cântico da Vinha. Na linguagem metafórica do cântico, Deus é o vinhateiro que cuida do pomar. É ele quem vasculha Judá para encontrar direito e justiça. Tudo que os profetas formulam como crítica à situação social, eles formulam em nome de Deus. Sua crítica social tem um vínculo forte com Deus.

Este vínculo forte com Deus diz respeito, de maneira especialmente clara, à segunda parte de seus ditos, a saber, ao anúncio do futuro. A crítica à injustiça social leva os profetas à conclusão de que Deus vai intervir com seu castigo. Ele castigará aqueles que são os responsáveis por esse desenvolvimento. Aqueles que concentram nas suas mãos casas e campos terão futuramente apenas colheitas precárias, diz Isa-

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ías (Is 5.8-10). Mas os profetas contam também com a possibilidade de que a sociedade inteira entre em colapso. Depois de enumerar os delitos dos ricos e poderosos, Miqueias encerra sua profecia assim (Mq 3.12): “Portanto, por causa de vós, Sião será lavrada como um campo, e Jerusalém se tornará em montões de pedras, e o monte desta casa em lugares altos de um bosque”.

Em relação ao nosso tema da sustentabilidade podemos dizer que uma sociedade na qual não existem direito e justiça não consegue con-tinuar a existir. Quando uma sociedade construída sobre a solidariedade entre parentes e vizinhos se transforma em uma sociedade de classes, ela não tem futuro. Ela não é sustentável. E, assim dizem os profetas, é o próprio Deus que não aceitará esse desenvolvimento.

Antes de passar para a próxima parte do meu artigo, eu gostaria de fazer um breve resumo desta parte. A crítica profética reage à mudança da situação social que ocorre a partir do século 8º. Os profetas criticam em nome de Deus o desenvolvimento que vai de uma sociedade solidária para uma sociedade de classes. Eles anunciam a intervenção de Deus. Em parte, eles contam com a possibilidade de que a sociedade inteira não continuará a existir. Eles dizem que uma sociedade sem direito e justiça não pode ser sustentável. Recorrem a Deus tanto em sua crítica como em seus anúncios para o futuro, e assim conferem a ambos os aspectos um grande significado.

No entanto, os profetas não dizem muito sobre a questão de como poderia ser um desenvolvimento sustentável da sociedade. Eles remetem a direito e justiça, mas o que isto significa concretamente, é dificilmente explicitado. Aqui, a Torá, que também se forma a partir do século 8º, dá um importante passo a mais.

3. A formação da torá como reação à crise socialA crise social do século 8º, a passagem de uma sociedade solidária

para uma sociedade de classes, desencadeia não só a crítica dos pro-fetas. Ela é também uma motivação para compilar textos legais. A partir do século 8º surgem em Israel os primeiros códigos de leis. O Código da Aliança foi provavelmente compilado pelo fim do século oito, e a Lei Deuteronômica seguiu no século sete (CRÜSEMANN, 2002, p. 161-163 e 293-298). Diferentemente dos profetas, esses textos indicam muito precisamente como se deve lidar com o desenvolvimento que provocou a crise. Existem leis sobre a escravidão de homens e mulheres por causa de dívidas. Existe a proibição, muitas vezes repetida, de cobrar juros. Muitas leis tematizam a proteção dos pobres, particularmente das viúvas, dos órfãos e dos estrangeiros. Formula-se a exigência de perdoar as dívidas a cada sete anos. Isto procura garantir que a sociedade não se divida

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em classes. A cada setes anos, o equilíbrio entre as forças na sociedade deve ser restabelecido.

A crítica dos profetas e as normas da Torá estão voltadas para os mesmos problemas. Isto pode ser demonstrado em muitos exemplos. Aqui quero mencionar apenas três. Amós 2.7 critica que um homem e seu filho juntos exploram sexualmente uma mulher que se tornou escrava por causa de dívidas. Êxodo 21.7-11 determina que uma escrava dessa categoria pode ser dada em casamento somente ao seu dono ou a um filho dele, e que ela depois tem os mesmos direitos que uma esposa livre. Um segundo exemplo. Miqueias 2.2 denuncia que os poderosos “cobiçam” casas e campos. O verbo hebraico usado é chamad. O Decálogo diz: Não cobiçarás a casa de teu próximo (Êx 20.17), usando o mesmo verbo chamad. E finalmente um terceiro exemplo. Jeremias 5.28 denuncia: “Não julgam o direito dos pobres”. Êxodo 23.6 determina: “Não perverterás o direito do teu pobre na sua demanda.”

Aqui não quero continuar comentando as distintas prescrições da Torá. Primeiro, meu tema é “Ética profética para um mundo sustentável” e não “A ética da Torá para um mundo sustentável”. E, segundo, já tem publicado um artigo, cujo tema é exatamente a reação da Torá à crise social. Seu título é “A Torá como reação à transformação da sociedade israelita a partir do século 8 a. C.”. Não faz sentido repetir aqui todas essas reflexões (KESSLER, 2012).

Em vez disto quero destacar somente dois elementos teológicos fundamentais que realçam a importância da Torá para o tema da sus-tentabilidade. O primeiro é a compreensão de que uma sociedade pode continuar a existir somente quando há nela uma equilibração dos interes-ses. Um bom exemplo é a lei que determina que escravos por causa de dívidas devem sair livres no sétimo ano. Este exemplo mostra também que a Torá passou ao longo dos séculos por um desenvolvimento para realmente alcançar o objetivo da sustentabilidade. Êxodo 21.2-6 determina que, depois de seis anos, o escravo por causa de dívidas deve receber sua manumissão. Fica aberto se isto se aplicava também a escravas por causa de dívidas. Deuteronômio 15.12-18 reformula esta lei. Logo na primeira sentença determina-se que vale tanto para homens como para mulheres escravizadas por causa de dívidas. Também se determina, indo além de Êxodo 21, que as escravas e os escravos manumissos devem receber algo ao ir embora, uma ou duas ovelhas, um pouco de sementes ou outras coisas semelhantes. As pessoas manumissas precisam de um capital inicial. Sem isto, estariam em pouco tempo na mesma situação de antes. Precisariam contrair dívidas e rapidamente voltariam para a escravidão. A intenção da lei é evitar isto. A equilibração dos interesses é mais importante do que os interesses dos fazendeiros ricos.

30 Rainer KessleR: Ética profética para um mundo sustentável

O segundo motivo, eu gostaria de chamá-lo de “conceito de um ciclo de bênção” (CRÜSEMANN, 2003). Deus abençoou os israelitas com a posse da terra. Com esta terra, eles podem produzir. Disso nasce outra bênção. No entanto, este ciclo funciona somente quando existe justiça social. Quando falta a justiça social, o ciclo da bênção é interrompido. Podemos perceber isto naquela lei sobre a manumissão de escravos e escravas. O dono deve dar alguma coisa à pessoa que recupera sua liberdade. O texto diz exatamente: “(alguma coisa) daquilo com que o Senhor, teu Deus, te tiver abençoado, lhe darás” (Dt 15.14). E quando o dono dá algo de sua bênção às pessoas manumissas, ele será abençoado por sua vez: “assim o Senhor, teu Deus, te abençoará, em tudo o que fizeres” (Dt 15.18). É um ciclo de bênção que continua graças ao fato de fazer justiça social.

Estes dois motivos teológicos, o motivo da equilibração dos interes-ses e o motivo do ciclo de bênção, têm como objetivo que a sociedade não se despedace, mas que ela continue a existir. Eles não eliminam as desigualdades na sociedade, mas pelo menos as amenizam e aju-dam a evitar que a coesão da sociedade se rompa por completo. Este, porém, não é o último objetivo. Logo na primeira lei social, a lei sobre o perdão das dívidas, é inserido um pequeno trecho que ultrapassa todas as prescrições individuais. Ele formula a visão de uma sociedade sem marginalizados, sem excluídos, sem pobres (LOHFINK, 1995). A condição para esta sociedade é que os mandamentos da Torá sejam observados. Deuteronômio 15.4-6 diz: “Somente para que entre ti não haja pobre, pois o Senhor abundantemente te abençoará na terra que o Senhor, teu Deus, te dará por herança, para possuí-la. Se somente ouvires diligentemente a voz do Senhor, teu Deus, para cuidares em fazer todos estes manda-mentos que hoje te ordeno. Porque o Senhor, teu Deus, te abençoará, como te tem dito...”

Aqui temos a visão verdadeiramente profética de uma sociedade sem pobres. Quando a Torá é observada, a existência sustentável da sociedade é possível.

4. o aspecto ecológico da sustentabilidade na profecia veterotestamentária

No início do meu artigo, eu lembrei que, no uso que fazemos hoje da palavra sustentabilidade, estão em destaque questões da ecologia e do consumo de energia. No sanitário masculino da Universidade Metodista há uma placa junto às pias para lavar as mãos e às caixas com as toalhas de papel para enxugá-las. Essa placa diz: “Pequenos gestos fazem um mundo sustentável. Poupe a terceira folha.” Como podemos perceber, este uso da palavra “sustentável” não diz respeito à justiça social, e sim à lida responsável com os recursos naturais.

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Na última parte do meu artigo quero mostrar que este aspecto eco-lógico da sustentabilidade não é inteiramente alheio ao profetismo do Antigo Testamento.

a. A ideologia do rei no Antigo OrienteEm todo Antigo Oriente encontramos o conceito de que o governo

bom e justo do rei e a fertilidade da natureza estão inseparavelmente vinculados. Temos numerosos exemplos disto, tanto do Egito faraôni-co como da Mesopotâmia desde os tempos dos sumérios. Também no Antigo Testamento temos indícios desta compreensão. Quando houve uma fome durante o reinado de Davi – “uma fome de três anos, de ano em ano” (2Sm 21.1) –, Davi consulta a Javé. Ele age assim porque está convencido de que ele enquanto rei é o responsável por fazer com que essa fome termine.

Um texto verdadeiramente clássico é o Salmo 72, uma oração por um rei que acaba de ser entronizado. Neste salmo predominam dois te-mas: o anseio pela justiça social e o anseio pela fertilidade da natureza, e ambas as coisas dependem da atuação do rei. Por isto, o salmo inicia como segue (v. 1-2.4): “Ó Deus, dá ao rei os teus direitos, e a tua justiça ao filho do rei. Ele julgará ao teu povo com justiça, e aos teus pobres com direito...Julgará os aflitos do povo, salvará os filhos do necessitado e quebrantará o opressor...”

Um pouco adiante, o Salmo diz (v. 12-14): “Porque ele livrará ao necessitado quando clamar, como, também, ao aflito e ao que não tem quem o ajude. Compadecer-se-á do pobre e do aflito, e salvará as almas dos necessitados. Libertará as suas almas do engano e da violência, e precioso será o seu sangue aos olhos dele”.

Dois versículos depois, o tema não é mais a justiça social, mas a fertilidade da natureza (v. 16): “Haverá um punhado de trigo na terra sobre os cumes dos montes; o seu fruto se moverá como o Líbano, e os da cidade florescerão como a erva da terra”.4

b. A fertilidade da terra na literatura proféticaNo profetismo clássico, o tema da fertilidade da terra tem apenas

uma importância secundária. No fundo, ele aparece somente nos anún-cios de castigo para aqueles que se enriquecem às custas dos pequenos agricultores pobres. Os próprios campos e vinhas desses ricos se tornarão inférteis (Is 5.8-10). De modo geral, porém, o tema da fertilidade apare-ce somente na releitura dos livros proféticos que acrescentou textos e ditos. Nestas releituras surge sobretudo a pergunta sobre como a vida

4 Textus corruptus. Tradução mais provável: e as espigas florescerão como a erva da terra (cf. NEB: y broten las espigas como hierba del campo).

32 Rainer KessleR: Ética profética para um mundo sustentável

pode continuar depois do juízo que os profetas tinham anunciado e que se realizou nas experiências de exílio feitas por Israel e Judá. Para con-cluir, eu gostaria de mostrar com quatro exemplos como esse tema do desenvolvimento sustentável também da natureza foi inserido nos textos dos livros proféticos.

Primeiro exemplo: o fim do Livro de Amós. Assim como outros profe-tas, também Amós conhece o motivo da infertilidade da terra no contexto da crítica social. Para aqueles que corrompem o direito e exploram o pobre, ele anuncia: “Vinhas desejáveis plantareis, mas não bebereis do seu vinho” (Am 5.11).

Como, porém, a vida pode e deve continuar depois da catástrofe de Israel? O fim do Livro de Amós contém a visão mais espetacular de uma agricultura sustentável que encontramos em toda a literatura profética. Os últimos versículos do livro narram (9.13-15): “Eis que vêm dias, diz o Senhor, em que o que lavra alcançará ao que sega, e o que pisa as uvas ao que lança a semente; e os montes destilarão mosto, e todos os outeiros se derreterão. E removerei o cativeiro do meu povo Israel, e reedificarão as cidades assoladas, e nelas habitarão, e plantarão vinhas, e beberão o seu vinho, e farão pomares, e lhes comerão o fruto. E os plantarei na sua terra e não serão mais arrancados da sua terra que lhes dei, diz o Senhor, teu Deus”.

A visão é grandiosa, mas ela está vinculada a uma condição. Primeiro precisam ser destruídas as estruturas opressoras do Estado e eliminadas as pessoas que eram os responsáveis pela injustiça social no país. So-bre a visão da agricultura sustentável se diz com toda dureza (9.8,10): “Eis que os olhos do Senhor Javé estão contra este reino pecador, e eu o destruirei de sobre a face da terra; mas não destruirei de todo a casa de Jacob, diz o Senhor... Todos os pecadores do meu povo morrerão à espada, os que dizem: Não se avizinhará nem nos encontrará o mal”.

Também o segundo exemplo articula a justiça social e o desenvol-vimento sustentável da natureza. Trata-se do anúncio de um governante vindo da raiz de Jessé em Isaías 11. Sobre ele é dito nos versículos 4 e 5: “...julgará com justiça os pobres, e repreenderá com equidade os mansos da terra: e ferirá a terra com a vara de sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio. E a justiça será o cinto dos seus lombos, e a verdade o cinto dos seus rins”.

Imediatamente depois segue a conhecida visão da paz na natureza (v. 6): “E morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará, e o bezerro, e o filho de leão e a nédia ovelha viverão juntos, e um menino os guiará”.

Como terceiro exemplo quero citar alguns versículos de Isaías 32. Neles há um íntimo vínculo entre a fertilidade da terra, a paz e a justiça.

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Quando “virá sobre nós o espírito que vem do alto”, acontecerá o seguinte (v. 15-18): “Então o deserto se tornará em campo fértil, e o campo fértil será reputado por um bosque. E o direito habitará no deserto, e a justiça morará no campo fértil. E o efeito da justiça será paz, e a operação da jus-tiça, repouso e segurança, para sempre. E o meu povo habitará em morada de paz, e em moradas bem seguras, e em lugares quieto de descanso”.

O quarto e último exemplo é o texto famoso da peregrinação de todas as nações para o Monte Sião. Nele se acrescenta ao motivo da jus-tiça social no interior do país o motivo da paz entre os povos. Miqueias 4 vincula ambos os motivos com a ideia de que, nessa situação, as famílias de agricultores poderão desfrutar também em paz daquilo que produzem em suas terras (Mq 4.4): “...assentar-se-á cada um debaixo da sua videira, e debaixo da sua figueira, e não haverá quem os espante...”.

Todos os quatro exemplos mostram que também na literatura profé-tica existe a noção e o conceito de um desenvolvimento sustentável da natureza. É verdade que o acento absoluto dos textos proféticos recai sobre a questão da justiça social. Mas, mesmo assim, existem nas relei-turas dos livros proféticos alguns textos que refletem as consequências para a natureza. Todos os trechos afins dizem inequivocamente que um desenvolvimento sustentável da natureza é somente possível quando existe justiça social.

Eu gostaria de terminar lembrando do grande bispo brasileiro Dom Hélder Câmara. Em sua época, ele não se cansou de pregar que não pode haver paz sem justiça. Podemos complementar suas palavras pela afirmação de que não pode haver desenvolvimento sustentável da natu-reza, do meio ambiente, da agricultura ou do consumo de energia sem justiça. Especialmente a mensagem dos profetas do Antigo Testamento mostra que os dois aspectos andam inseparavelmente juntos. Por isto, eu gostaria de resumi-los em uma só frase:

Não há sustentabilidade sem justiça.

Referências CRÜSEMANN, F. A Torá. Teologia e história social da lei do Antigo Testamento. 2. ed. Tradução de H. Reimer. Petrópolis: Vozes, 2002.______. Gottes Fürsorge und menschliche Arbeit. Ökonomie und soziale Ge-rechtigkeit in biblischer Sicht. In: CRÜSEMANN, F. (Ed.). Maßstab: Tora. Israels Weisung und christliche Ethik. Gütersloh: Chr. Kaiser / Gütersloher Verlagshaus, 2003, p. 190-207.FRITZ, V. Die Entstehung Israels im 12. und 11. Jahrhundert v. Chr. Stuttgart et al.: Verlag W. Kohlhammer, 1996. (Biblische Enzyklopädie, 2).KESSLER, R. História social do antigo Israel. Tradução de H. Reimer. São Paulo: Paulinas, 2009 (Coleção cultura bíblica).

34 Rainer KessleR: Ética profética para um mundo sustentável

______. Micha. Freiburg et al.: Herder, 2. ed., 2000 (Herders Theologischer Kom-mentar zum Alten Testament).______. A Torah como Reação Social à Transformação da Sociedade Israelita a partir do Século VIII a.C. In: RICHTER REIMER, I.; FERREIRA; J.A. (Org.). Transformação Social, Economia e Literatura Sagrada: VI Congresso Internacional em Ciências da Religião. XIII Semana de Estudos da Religião, Goiânia: Oikos, 2012, p. 33-49.LOHFINK, N. Das deuteronomische Gesetz in der Endgestalt – Entwurf einer Ge-sellschaft ohne marginale Gruppen. In: IDEM (ed.). Studien zum Deuteronomium und zur deuteronomistischen Literatur III. Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 1995, p. 205-218. (Stuttgarter biblische Aufsatzbände, 20).NEB = Nueva Biblia Española. Traducción de los textos originales dirigida por LUIS ALONSO SCHÖKEL y JUAN MATEOS. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1975.SCHWANTES, M. “A terra não pode suportar suas palavras” (Am 7,10): Reflexão e estudo sobre Amós. São Paulo: Paulinas, 2004 (Coleção Bíblia e história).SICRE, J. L. “Con los pobres de la tierra”: La justicia social en los profetas de Israel. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1984.

Submetido em: 21-4-2013Aceito em: 28-10-2013

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 35-44, jul./dez. 2013 35

Uma leitura ética a luz de Gênesis 1- 3

An ethic reading of Genesis 1-3

Lectura de la ética en la luz de Génesis 1-3

Geraldo de Oliveira Souza

ResumoEsse artigo reflete sobre o pensamento do redator dos três primeiros capítulos do livro bíblico denominado Gênesis, na busca de conceitos éticos em relação a uma volta, um retorno, uma releitura, do capítulo três desse mesmo livro aos capítulos dois e um. Trata-se de uma volta ao paraíso, do lugar chamado Éden. É a tentativa da contribuição significativa do olhar da religião e da ética na busca de respostas, diante de um universo fragmentado no plano social e individual. Tem por objetivo um trabalho interdisciplinar, com a proposta de oferecer aos/às acadêmicos/as instrumentos de leitura e de interpretação das experiências existenciais.Palavras-chave: Deus; ética; vida; morte; retorno; natureza; ser humano.

AbstRActThis article seeks to reflect on the thought of the writer of the first three chapters of the biblical book called Genesis, in the pursuit of ethical concepts in relation to a return, a return, a retelling of the third chapter of the same book to two one chapters. It is a return to paradise, the place called Eden. It is the attempt of the significant contribution of the gaze of religion and ethics in search of answers, in a universe fragmented along social and individual. Objective interdisciplinary work and intends to offer academic reading instruments and interpretation of existential experiences.Keywords: God; ethics; life; death; return; nature; man.

ReSumenEste artículo busca reflexionar sobre el pensamiento del autor de los tres primeros capítulos del libro bíblico llamado Génesis, en la búsqueda de conceptos éticos en relación con el retorno, un retorno, un recuento del tercer capítulo del mismo libro a dos un capítulos. Es una vuelta al paraíso, el lugar llamado Edén. Es el intento de la importante contribución de la mirada de la religión y la ética en la búsqueda de respuestas, en un universo fragmentado a lo largo de social e individual. Trabajo interdisciplinario objetivo y la intención de ofrecer instrumen-tos de lectura académica y la interpretación de las experiencias existenciales.Palabras clave: Dios; ética; vida; muerte, retorno; naturaleza; hombre.

IntroduçãoA ideia desse artigo é fundamentada no livro de Frei Carlos Mesters

Paraiso Terrestre: saudade ou esperança?1 Escrito na década de 1970 a

1 MESTERS, Carlos. Paraíso terrestre: saudade ou esperança? Petrópolis: Vozes, 1983.

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partir do qual fazemos uma interpretação ética para a nossa contempo-raneidade. Assim como Mesters pretendia que seu livro fosse uma porta, a porta certa para que o/a leitor/a pudesse entrar no labirinto do Antigo Testamento, é nosso desejo também que esse artigo possa ajudar ao/à leitor/a a ter uma visão mais ampla do texto bíblico apresentando uma vertente ética.

Hans Jonas, em seu livro O princípio responsabilidade2 usa o texto de Sófocles, Antígona, para iniciar sua discussão em relação ao ser hu-mano e à natureza. Uma reflexão sobre a sensibilidade social em relação à natureza.

Usamos como exemplo Jonas, para iniciar essa comunicação, não com o texto de Antígona, mas sim com base no primeiro livro da Bíblia, chamado pelos cristãos de Gênesis e nomeado pelos judeus, na sua To-rah, como Bereshit, sendo o significado dos dois termos, o princípio ou a origem da natureza e da humanidade. Assim, o estudo girará em torno dos capítulos um, dois e três e breves comentários sobre os capítulos de quatro até o décimo primeiro, fazendo uma leitura inversa, do capítulo 3 ao capítulo 1.

Os relatos que serão apresentados nos darão conta das consequên-cias que se abateram sobre a natureza e sobre a humanidade, quando do conflito de desejos do primeiro casal, que supostamente habitou a terra em um lugar paradisíaco chamado Jardim do Éden. Mostrando-nos como podemos compreender e enfrentar o mal que destrói as vidas e os valores éticos.

Em seu livro A criação, Wilson expressa de uma maneira primordial o fato do pensamento do ser humano e sua natureza em relação à na-tureza virgem:

A atração gravitacional da natureza sobre a psique humana pode ser ex-pressa em um único termo, mais contemporâneo: biofilia, que defini, em 1984, como a tendência inata para se afiliar a vida e aos processos vitais. Desde a infância até a velhice, as pessoas de todas as partes do mundo sentem atração pelas outras espécies. A novidade e a diversidade da vida são apreciadas. [...] Essa filiação tem uma consequência moral: quanto mais compreendemos outras formas de vida, mais o nosso aprendizado se expan-de, abrangendo a sua vasta diversidade, e maior é o valor que atribuímos a elas – e, inevitavelmente, a nós mesmos (WILSON, 2008, p.74).

Não estará em discussão se o relato bíblico estudado é verdade ou não, não entraremos na discussão entre os criacionistas e os evolucio-nistas, discussão essa que já perdura por séculos.

2 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecno-lógica. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2006, p. 31.

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Nosso intento é simplesmente estabelecer uma hermenêutica dos tex-tos com um olhar simplesmente ético na busca de respostas que poderiam auxiliar o ser humano contemporâneo em relação a sua responsabilidade hoje aqui e agora, com a natureza e com o seu próximo.

Como pode haver desenvolvimento se a humanidade não reconhecer a sua responsabilidade e suas prerrogativas pessoais em relação ao seu viver nesse mundo? Pois esse ser humano que faz parte desse mundo, ou seja, da natureza sem ser mais do que ela e nem subordinado a ela, tem sua parcela de conduta fundamental para a preservação dessa na-tureza e da vida em geral.

O apóstolo Paulo, em sua carta aos Romanos 8.223 “sabemos, pois, que toda a criação geme conjuntamente e sofre dores de parto até agora” (BA, 1994, p.1420).

A angústia que o apóstolo narra é também a angústia do ser humano, esse ser humano que explora a natureza para ser sustentado por ela, que sofre, mas que também faz com que o seu próximo também sofra que, por vezes, se nega a entender o seu lugar no contexto da natureza, que não enxerga o seu destino, essa espécie que tem sentimentos, mas que simplesmente deixou de ter uma visão ética de sua natureza.

Gênesis capítulo três, paradoxos e contradiçõesNo início primitivo do Universo, nesses textos escolhidos para uma

leitura hermenêutica ética, por causa da desobediência (ou pecado) do ser humano houve um desequilíbrio, uma ruptura entre os seres humanos e o meio ambiente que levaram a humanidade ao caos da antivida.

O relator do texto verifica que existe um paradoxo, uma contradição geral na vida humana. O que foi construído para ser um bem para o ser humano e para a natureza, tornou-se um motivo de sofrimento para todos, seres humanos e natureza, sofrimento e opressão que nos é demonstrado no capítulo três de Gênesis.

Esse capítulo chamado de a “Queda” discorre sobre a caída do ser humano e suas consequências, por causa de seu desejo de ser como Deus, de ter o conhecimento do bem e do mal. O casal primitivo desobe-dece ao mandamento de Deus e por meio dessa desobediência o equilíbrio é desfeito e o caos impera. Um efeito cascata de medo, angústia assom-bros e maldições cai sobre a humanidade os animais e sobre a natureza.

De várias situações que se apresentam nesse capítulo podemos apreender algumas.

3 No texto bíblico que se usar A Bíblia Anotada abreviaremos com as letras BA e no texto que se usar a Nova Tradução na Linguagem de Hoje usaremos as letras NTLH.

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Iniciaremos pelo relacionamento humano manifestado no versículo 16, em sua segunda parte. Poderemos analisar a estrutura desse ver-sículo, por meio de um olhar em relação ao sentimento humano que pode ser chamado de amor humano. Esse amor entre um homem e uma mulher, no caso entre um casal marido e esposa, que seria algo belo, gentil, formoso, se transforma agora, de um momento para outro, em um relacionamento de dominação “[...] o teu desejo será para o teu marido, e ele te governará.” (BA, 1994, p. 11), o homem dominará a mulher, ela se sentirá atraída por ele e de imediato dominada por ele. Também, po-demos compreender o paradoxo da vida, em que o desejo de todo ser humano é viver, mas o que lhe espera inexoravelmente no final é a morte, nenhum ser no mundo escapará dessa verdade, como o versículo 19 bem define para o ser vivente chamado Adão: “[...] até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás” (BA, 1994, p. 11). Percebe-se que o agente da morte está, a partir de agora dentro da vida, no qual ele se destaca como uma nuvem de luto sobre aquilo que o ser humano mais deseja: a imortalidade.

Outra contradição que podemos notar no texto da Queda é o para-doxo da geração de vida, geração que faz com que se perpetue a vida, que por outro lado seria a perpetuação da vida dos seres humanos. Mas esse momento de perpetuação, de contentamento, agora se transforma estranhamente em dor. Gerar agora será algo que escravizará a mulher, duplicando seus sofrimentos como é manifestado no versículo 16 na sua primeira parte: “E à mulher disse: Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos” (BA, 1994, p. 11).

Outro olhar, nos leva ao paradoxo, que nos remete à terra. Ela que foi designada para ser nossa mantenedora, produzindo seus frutos para o alimento dos seres vivos, agora se torna maldita conforme o versículo 17: “maldita é a terra por tua causa.” Deste momento em diante, essa terra só produzirá, segundo o versículo 18, “cardos e abrolhos” (BA, 1994, p. 11). Segundo outra tradução da Bíblia “Ela lhe dará mato e espinhos” (NTLH, 2000, p. 16). Agora, somente por intermédio da fadiga e de suor do trabalho duro, é que o ser humano poderá obter alimento dessa terra amaldiçoada, o que nos mostram os versículos 17 e 19: “Você terá de trabalhar duramente a vida inteira a fim de que a terra produza alimento suficiente para você. Terá de trabalhar no pesado e suar para fazer com que a terra produza algum alimento” (NTLH, 2000, p. 16).

Ainda nos versículos 17 e 19, é possível também ver o paradoxo em relação ao trabalho. Esse trabalho, que é um elemento necessário para o ser humano e meio para fornecer o seu sustento, torna-se, a partir desse momento, um sofrimento, um peso, assim como o cansaço, além do suor, pois estabelece a luta pelo pão de cada dia e, no fim, a morte.

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Paradoxo e contradição no versículo 15 desse capítulo 3 entre o relacionamento dos animais com o ser humano, quando Deus fala com a serpente. Eles, que deveriam viver em paz, tornam-se inimigos. O ser hu-mano não pode mais confiar nos animais, assim como os animais também não podem confiar no ser humano, pois existe uma ameaça recíproca, a vida e uma hostilidade de morte entre eles. “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (BA, 1994, p. 11).

Além de tudo isso que foi apresentado, o autor nos mostra outro paradoxo que é a questão da religião. A convivência entre o dois seres viventes homem e mulher com o seu criador, que era um relacionamento entre amigos, algo que deveria ser o bem supremo, agora é motivo de medo. O homem se esconde da presença do seu criador por medo e ver-gonha, assim responde o homem segundo Gênesis 3.10: “Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo e me escondi” (BA, 1994, p. 11).

A expansão do erro para a sociedade em geralSe continuarmos a ler o texto de Gênesis até o capítulo 11 que forma

um só bloco, compreenderemos que o redator deixa o micro e alarga a situação de desgraça ao macro. O que se limitava apenas ao Jardim do Éden, agora se amplia por toda a terra. A vida familiar não está separada da vida social. Existe uma simbiose, uma implica na outra.

É instaurada a violência no relacionamento humano, onde os irmãos se matam. No caso, Caim assassina seu irmão Abel (Gn 4.8): “Disse Caim a Abel, seu irmão: Vamos ao campo. Estando eles no campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão, e o matou” (BA, 1994, p. 12).

O autor contempla o paradoxo de um mal cada vez mais crescente, o aparecimento do egoísmo em relação ao outro, a despreocupação com a vida do outro quando o criador pergunta a Caim onde estava o irmão dele e esse responde, com desdém, sobre a preocupação com a alteridade em relação ao seu próximo, isso é mostrado no versículo 9: “Disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei: acaso sou eu tutor de meu irmão?” (BA, 1994, p. 12).

A violência cresce cada vez mais como o fermento leveda a mas-sa. Torna-se uma praga social, incluindo nesse contexto a vingança e a repressão, qualquer discussão por mais simples que seja, pode chegar a uma vingança e ao assassinato. Foi o que aconteceu com um descen-dente de Caim chamado Lameque (Gn 4.23): “E disse Lameque às suas esposas: [...] matei um homem porque ele me feriu: e um rapaz porque me pisou” (BA, 1994, p. 13). Além disso, estabelece-se a arrogância e a justiça própria (Gn 4.24): “Sete vezes se tomará vingança de Caim; de Lameque, porém setenta vezes sete” (BA, 1994, p. 13).

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Essa preponderância de vingança e violência se alarga para uma preponderância em relação à busca de apoio em forças superiores, no mundo da superstição e da magia, buscando assim, o ser humano por meio de ritos, garantir a proteção dos deuses. A separação entre o sagra-do e o profano não existe mais, desembocando em prostituição sagrada, o relacionamento dos filhos de Deus com as filhas dos homens, expresso em Gênesis 6.2: “[...] vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si mulheres, as que, entre todas, mais lhe agradaram” (BA, 1994, p. 14).

A preponderância humana leva, então, à divisão entre os seres hu-manos. Surge um tipo de xenofobia hoje bem clara em relação às raças. Uma separação, um caos mundial, onde as nações não se entendem e sem possibilidades às vezes de união, uma confusão, uma Babel, essa é consequência da tentativa do ser humano de atingir seus projetos, sem se aperceber do mundo que ele vive sem se aperceber do outro, no seu desejo de ser grande, de ser maior do que tudo. Sua arrogância é insaciável, essa situação nos é apresentada em Gênesis 11.4: “Disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até aos céus, e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra” (BA, 1994, p. 20)

Análise do autor e nossas perguntasEssa é a análise que o redator faz da realidade familiar e social,

mostrando os problemas que se apresentaram naquele tempo que são os mesmos da atualidade: a violência, a vingança, a magia, a corrupção, a divisão entre povos, a xenofobia, os preconceitos raciais, a tentativa de dominação universal pelas potências mundiais, a fome, a tristeza, a dor, a maldade, o descaso e a falta de sensibilidade com a natureza e com o ser humano, com o nosso próximo.

O que poderíamos perguntar em relação a todos esses paradoxos e contradições e preponderâncias é: Por quê? Se não houvesse esses paradoxos e contradições, a vida seria diferente? Ela seria mais vida? Por que a falta de alegria foi substituída pelo medo? Por que tudo não é como deveria ser?

o movimento de retorno éticoTalvez o desejo do redator do texto fosse que não somente os indi-

víduos que existiam em seu tempo e que leram esse manuscrito, além dos que hoje vivem no século 21, praticassem um movimento de retorno ao princípio. Princípio relatado nos capítulos 1 e 2. Esse movimento de observação e de meditação em relação ao compromisso do ser humano de preservar aquilo que lhe foi dado para cuidar, de cuidar e não destruir, originando uma ética de preservação e de retorno ao princípio.

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Não queremos dizer que esse retorno ao lugar paradisíaco seja um pensamento utópico, de um lugar que não existirá mais problemas, onde viveremos como em uma Shangri-la4, mas de um lugar em que o respeito pelo ser humano, assim como pela natureza, seja real, em que uma busca de equilíbrio, ser humano-natureza, natureza-seer humano se estabeleça em harmonia.

Como podemos descobrir a visão ética assim como a da Bíblia que nos foi apresentada para esse retorno, ou seja, para esse movimento de harmonia e equilíbrio ecológico-ético?

Poderemos admitir que o objetivo do redator fosse o de nos mostrar o que aconteceu lá em seu tempo e o que acontece aqui e agora para nós, trazendo um fio de esperança e nos mostrando que podemos acertar tal situação na formação de uma consciência crítica, ética e moral, nesse movimento de retorno.

um novo sentidoÉ no capítulo 2, versículos 18, 23 e 24 (NTLH, 2000, p. 15), que o

texto nos mostra que o relacionamento marido-mulher, em que a mulher não era dominada pelo marido, mas sim sua companheira, igual ao ho-mem, ela era a ajudadora do homem, era alguém que poderia conversar com ele: “Depois o Senhor disse: Não é bom que o homem viva sozinho. Vou fazer para ele alguém que o ajude como se fosse a sua outra me-tade”. Por seu lado, o homem reconhecia nessa mulher uma dignidade, uma igualdade “Então o homem disse: Agora sim! Esta é carne da minha carne e osso dos meus ossos.” e que ela era digna de respeito, uma atração mútua, uma união sem dominação de qualquer um dos dois “[...] e os dois se tornam uma só pessoa”.

Não há mais morte na vida, pois ela continua para sempre, mas agora a vida já não morre, é verdade que a imortalidade não está dentro das possibilidades naturais do ser humano por mais que deseje, porém o criador responde a esse desejo profundo do ser humano e faz brotar no versículo 9: “No meio do jardim ficava a árvore que dá vida” (NTLH, 2000, p. 15). A morte foi eliminada e já não entristece a vida.

Gênesis 1.28: “[...] e os abençoou, dizendo: Tenham muitos e muitos filhos; espalhem-se por toda terra e a dominem” (NTLH, 2000, p. 14), não existe a dor nem o medo da morte na gestação, sem dores de parto uma vez que o ser humano não morre, isto é, não existe a aflição da imorta-lidade e nem precisa perpetuar sua descendência, não existe o desejo de prolongar a vida em seu filho quando de sua morte. O pensamento aqui não é somente sobre um casal Adão e Eva, mas sim um olhar sobre todos os casais de todas as épocas.

4 Lugar imaginário criado pelo inglês James Hilton em 1925, em seu livro Horizonte Perdido, é descrito como um lugar paradisíaco situado nas montanhas do Himalaia.

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A terra não é amaldiçoada. Ela é fértil, produtora de árvores, frutos que suprem a necessidade do ser humano, não existe sequidão, nem espinhos, ela é naturalmente irrigada, abundância de víveres, abundân-cia de água, o ser humano, mesmo sem merecer é abençoado por Deus nessa terra. Observe que Gênesis 3.8-9 expressa esse momento: “De-pois o Senhor Deus plantou um jardim na região do Éden, no Leste, e ali colocou o ser humano que ele havia formado. O Senhor fez com que ali crescessem árvores lindas de todos os tipos, que davam frutas boas de comer” (NTLH, 2000, p. 14).

Não mais suor no trabalho ele não é agora uma opressão, faz par-te do dia a dia do ser humano, não há esforço, há somente alegria, há prosperidade da terra; a terra já não geme, não sofre, o ser humano é seu cuidador e não seu destruidor. O texto em Gênesis 2.15 informa: “Então o Senhor Deus pôs o homem no Jardim do Éden para cuidar dele e nele fazer plantações” (NTLH, 2000, p.15). A subsistência do ser humano é garantida por meio da uma terra que ele mesmo vai cuidar, de uma maneira especial.

Em relação à convivência do ser humano com os animais, já não existe inimizade. Ao contrário, os animais vivem em harmonia com os seres humanos. É o ser humano que nomeia cada um deles, o equilíbrio é restaurado no relacionamento, não há medo, não há terror e pavor, mas sim um cuidar de um para com o outro. No texto de Gênesis 2.19-20 podemos entender essa realidade: “Depois que o Senhor Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves, ele os levou ao homem para que pusesse nome neles. E eles ficaram com o nome que o homem lhes deu. Ele colocou nomes nas aves e em todos os animais domésticos e selvagens” (NTLH, 2000, p. 15).

Quanto à relação do ser humano com Deus, existe uma intimidade sem que a presença de Deus seja algo terrível para o ser humano, sem pavor, sem medo, não há vergonha. É um relacionamento de um amigo para com outro, esse relacionamento pode ser compreendido em todo o capítulo 2.

conclusãoEsses relatos dos capítulos 1, 2 e 3 do livro de Gênesis, entre cen-

tenas que existem na Bíblia, visam ressaltar a contribuição inestimável que o redator do texto oferece à história da humanidade, expressa na linguagem acerca das forças da natureza, o relacionamento do ser humano com o espiritual, assim como com os outros seres humanos e também dos animais e a terra.

Wilson vê a atividade humana sem controle como um grande mal para a natureza. Ele afirma:

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Agora, como resultado da atividade humana, teve início um sexto período de extinção. Embora não causado pela violência cósmica, seu potencial é suficiente para ser tão infernal como os cataclismos anteriores. Segundo estimativas feitas em 2004 por uma equipe de especialistas, apenas a mudança climática, se não for contida, poderá ser a causa primária da extin-ção de um quarto das espécies de plantas e animais terrestres nos meados deste século (WILSON, 2008, p. 88).

Temos muito que admirar, desfrutar e aprender, a partir de toda esta tradição. O redator é humano, como todos nós, não é ultrapassado, mas sim contemporâneo, portador de uma preocupação que se avoluma hoje em nosso tempo em relação a nossa vida ética, em relação à convivência com o outro, com a natureza, a terra, os animais, tudo que envolve nosso ecossistema e com a vida no seu todo. Expressa as mesmas ansiedades e as mesmas esperanças de homens e mulheres de nosso tempo e de todos os tempos, atento às coisas da natureza humana.

Nesse texto, mitológico ou não, podemos descobrir valores éticos da criação, como obra positiva, a fim de poder entender o relato bíblico que inspira mensagens éticas profundas e fundamentais.

Analisamos, por fim, que a interpretação de Gênesis não nos apre-senta a obra da criação como uma obra ecologicamente fechada, mas sim como uma verdadeira proposta de criação em permanente abertura e em permanente processo de fazer-se em contínuo.

Porém, se faz urgente e importante mostrar ao ser humano a raiz de todo mal, da destruição e da morte, não tanto para que ele possa adquirir uma noção acertada sobre o papel, da liberdade e da própria responsabilidade na história da humanidade, mas também para que a história passada de injustiça e de dor e de morte não volte a se repetir. Perceber que todos são responsáveis pelo que sofre a terra e junto dela também todos os seres.

Por isso, acreditamos, assim como Mesters, que a posição mais audaz de Gênesis 1, 2 e 3 foi de ter se atrevido a assinalar, sem medo, qual a causa do mal na criação. Foi o egoísmo ou a tendência que sempre tem ha-vido no ser humano de sempre olhar em favor de seus próprios interesses.

Essa é a chave para se interpretar esse texto que nos leva a uma reflexão ética desse retorno a um novo sentido, de uma transcendência de vida plena de liberdade, mostrando aos seres humanos como viver juntos, como uma grande família nessa bela terra.

ReferênciasA Bíblia Anotada. Texto bíblico: Versão Almeida, Revista e Atualizada. São Paulo: Mundo Cristão, 1994.

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Texto bíblico: Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2000.JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006.MESTERS, C. Paraíso terrestre: saudade ou esperança? Petrópolis: Vozes, 1983.WILSON, E. O. A Criação: como salvar a vida na terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Submetido em: 6-9-2013Aceito em: 2-10-2013

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Como superar a contradição entre crescimento e cuidado encontrado no livro de Gênesis?

How to overcome the contradiction between growth and care found in the book of Genesis?

¿Cómo superar la contradicción entre el crecimiento y el cuidado que se encuentra en el libro de Génesis?

José Antonio Correa Lages

ResumoO Gênesis convida a uma reflexão sobre a sustentabilidade. O mandamento divino de “crescei, multiplicai-vos e governai a terra” se contradiz com o cuidado sobre ela que o mesmo texto nos prescreve? Boff vê outro paradigma com o cosmos e a vida no centro do mundo.Palavras-chave: Gênesis 1.28a e 2.15; sustentabilidade; ecologia; governar a terra; cuidar da terra.

AbstractThe book of Genesis invites to a reflection about the sustainability. Does the divine precept that says “Be fruitful, increase in number and rule the earth” contradict the care by it that this same text recommends us? Boff sees another paradigm with the cosmos and the life in the center of the world.Keywords: Genesis 1.28a e 2.15; sustainability; ecology; rule the earth; caring for the earth.

ResumenGénesis convida a una reflexión sobre la sustentabilidad. ¿El mandamiento divino de “crecer, multiplicarse y gobernar en la tierra” se contradice con el cuidado sobre ella, que el mismo texto nos prescribe? Boff ve otro paradigma con el cosmos y la vida en el centro del mundo.Palabras clave: Génesis 1.28a e 2.15; sustentabilidad; ecología; gobernar la tierra; cuidado de la tierra.

IntroduçãoOs fragmentos do texto bíblico Gênesis 1.28a e Gênesis 2.15 per-

mitem reflexões diversas sobre quem somos e como nos relacionamos com a criação, incluindo nós mesmos e a natureza. “Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra, submetei-a.” (Gn 1.28a). “Iahweh tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e o guardar.” (Gn 2.15).

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Encontramos nesta relação contradições de extrema atualidade para a nossa reflexão acadêmica. Este artigo abordará o crescimento da popu-lação do planeta Terra e o domínio do ser humano sobre a natureza, de um lado, e a responsabilidade humana pelo cuidado do mesmo planeta na perspectiva de sua preservação e da sustentabilidade, de outro lado.

Ao ler estes textos, aparece a contradição: somos chamados a cres-cer, multiplicar e submeter a natureza, e ao mesmo tempo a cuidar e cul-tivar. Estamos muito preocupados com o Gênesis 1.28a, cumprindo como verdadeira lição de casa o mandamento do “crescei e multiplicai-vos”. Mas não compreendemos o mandamento do “submetei a natureza”, além do extremo descuido com o Gênesis 2.15. Não cuidamos como devíamos da nossa casa comum. Tomaremos como nosso principal referencial teórico as reflexões de Leonardo Boff sobre a mãe-Terra, a pacha mama, organismo vivo por ele mesmo, gerador de todos os seres, inclusive do ser humano, como o próprio mito da criação em Gênesis o coloca.

A partir de um comentário exegéticoDepois de terminada sua obra com a criação do homem e da mulher,

o Criador estabelece uma relação especial com ambos: Ele os abençoa. Sabemos que a bênção no Antigo Testamento significa vida e vida em abundância. Dar uma bênção é desejar que se tenha vida, vida farta, com grande descendência, com terra para cultivar, com boas colheitas e reba-nhos! A relação face a face de Deus com o ser humano se concretiza na bênção. As bênçãos de Deus significam a vontade do Criador de que os humanos fossem felizes. E para garantir este seu desejo, Ele estabelece uma ordem a partir de sua plena soberania: “sede fecundos, férteis, tende muitos filhos, multiplicai-vos e enchei toda a Terra e submetei-a” (Gn 1, 28a e Gn 2, 15). Krauss e Kuchler dão uma explicação para as bênçãos no Gênesis, a começar por esta dos primeiros pais no Gênesis:

A necessidade de uma benção mostra que a capacidade de fertilidade e de multiplicação entre os seres humanos não decorre de sua similitudinariedade e de sua semelhança divina, mas remonta a um dom especial do Criador. (...) mediante a bênção, o vigor sexual é definido como um dom positivo do ser humano, que não encontra, da parte de Deus, nenhuma desaprovação (KRAUSS; KUCHLER, 2007, p. 47).

Para o domínio do ser humano sobre a Terra é usada a expressão “submeter” que significa neste texto bíblico “administrar” e, utilizando uma expressão mais contemporânea nossa, “gerir”, “fazer a gestão”. Não significa dominar. Com isso, o mundo é contraposto ao ser humano: ele deve administrá-lo, à semelhança de Deus e não se deixar administrar, governar por ele. Mas esta expressão não significa uma submissão para

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a exploração e destruição. Como o ser humano foi criado à imagem de Deus, o seu governo sobre a natureza deve ter como modelo o governo de Deus e deve espelhar-se no seu caráter (MANUAL, 2009). A Terra não é inimiga do ser humano. Essa expressão “submeter” outra coisa não era senão uma expressão jurídica formal, uma vez que, de acordo com os costumes daquela época, um novo proprietário tomava posse de sua propriedade pondo os pés publicamente nela.

O governo sobre a natureza deve ser entendido a partir do significado da raiz do verbo hebraico aqui empregado. Ele aponta para o pastor que perambula com seu rebanho a procura de água e pastagem, que protege os animais fracos do seu rebanho contra os fortes e defende todos contra os perigos externos. Para Krauss e Kuchler:

A imagem do pastor fazia parte constituinte da ideologia antigo-oriental da realeza [...], e supunha-se que o homem devia ser cheio de sabedoria, hu-mildade, magnanimidade e cuidado pelos fracos dos seus súditos. O poder concedido ao ser humano, de dispor dos animais, não significava, portanto, de forma alguma, carta branca para a exploração e arbitrariedade [...] Ao ser humano ainda não é concedido sequer matar animais para a sua alimentação (KRAUSS; KUCHLER, 2007, p. 48).

Em Gênesis 2.15, a expressão “Deus tomou o ser humano” tem um significado todo especial na Bíblia Hebraica. Ela significa uma escolha especial, como podemos observar em outras passagens como em relação a Abraão (Gn 24) e Davi (Sl 78. 70). O fato de o ser humano, recém--criado do barro, ser colocado no paraíso é a expressão de um favor especial de Deus.

Segundo Krauss e Kuchler (2007), a afirmação de que o ser humano foi colocado no Éden “para o cultivar e o guardar” não quer dizer que o paraíso fosse uma Terra de delícias. O trabalho é leve, pois já existia a ir-rigação natural. Desde o início, o ser humano tinha uma missão a cumprir. Ele não devia ficar ocioso, mas ser transformador e criativamente ativo. Mas uma incumbência dada por Deus ao ser humano chama a atenção. Este deverá ser o guardador, o cuidador do jardim. Por extensão, vamos compreender este jardim como toda a criação, homem, mulher e natureza.

A história de Genesis é notória, uma das mais conhecidas, no entanto das mais ridicularizadas pela secularidade racionalista e cartesiana, que não enxerga o mundo na essência das relações vitais. Os conflitos internos e externos do ser humano são originários dentro desse quadro. Nossos con-flitos conosco e com nosso semelhante, bem como o todo do qual todos nós formamos e somos formados e fazemos parte (meio ambiente) estão a partir daí (TONNERA JR., 2012, p. 1).

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Estamos crescendo e dominando e não estamos cuidandoA humanidade atingiu 7 bilhões de pessoas no final de 2011. Se-

remos em 2050 aproximadamente 9 bilhões. Mas é bom lembrar que o “crescei e multiplicai-vos” do Gênesis é seguido também pela referência ao governo do ser humano sobre a Terra. Este crescimento e esta multi-plicação incluem também ao avanço cultural, científico e tecnológico que se acelerou nos últimos dois séculos e meio.

A população continuará crescendo de forma desigual entre os con-tinentes, mas continuará crescendo. A humanidade ocupou todos os espaços possíveis do planeta, usando e abusando dos recursos natu-rais: “A espécie humana já ocupou 83% do planeta; ocupou devastando. Transformou o jardim do Éden numa casa de tortura sob a qual sofrem e desaparecem centenas de espécies por ano” (BOFF, 2009, p. 10). Vê-se que este crescimento esconde contradições fragrantes cada vez mais visíveis e que nos obrigam a refletir sobre o seu caráter e sua disfunção.

Conforme o índice de footprint (pegada ecológica)1, desenvolvido pela organização ambientalista World Wildlife Fund (WWF), atualmente precisaríamos de três planetas para manter o ritmo de consumo que temos no mundo (PRADO, 2009). Com outras palavras, gastamos anualmente 30% a mais de recursos naturais do que o planeta pode renovar.

O sonho do crescimento ilimitado produziu o subdesenvolvimento de dois terços da humanidade. A utilização absurda dos recursos da Terra levou à exaustão dos sistemas vitais e à desintegração do equilíbrio am-biental. O jardim e o jardineiro estão sangrando perigosamente. É urgente encontrarmos uma forma de fazer a gestão do nosso crescimento com qualidade e sustentabilidade. Isto é o que o Gênesis chama de “guardar” ou “cuidar” do jardim. Segundo Boff (2003), rever o estilo de vida de toda a sociedade humana seria um primeiro passo para que possamos enten-der quais são as ações que devemos empreender. O Éden é a natureza e, por extensão, o nosso próprio planeta, nossa morada comum e única:

A consciência coletiva incorpora mais e mais a idéia e o valor de que o Planeta Terra é a nossa Casa Comum e a única que temos. Importa, por isso, cuidar dela, torná-la habitável para todos, conservá-la em sua gene-rosidade e preservá-la na sua integridade e esplendor. A partir disso pode nascer um ethos mundial compartilhado por todos, capaz de unir os seres humanos para além de suas diferenças culturais, fazendo-os sentir de fato como filhos e filhas da Terra que amam e respeitam como a sua própria Mãe (BOFF, 2009, p. 64).

1 A expressão Pegada Ecológica é uma tradução do inglês ecological footprint e refere-se, em termos de divulgação ecológica, à quantidade de terra e água que seria necessária para sustentar as gerações atuais, tendo em conta todos os recursos materiais e energéticos gastos por uma determinada população. O termo foi primeiramente usado em 1992 por William Rees, ambientalista e professor na Universidade de Colúmbia Britânica, no Canadá.

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Cuidar do planeta é uma premissa que existe desde o início da his-tória humana. Somos os seus gestores. Temos as condições para cres-cermos no jardim, mas também temos o poder e a capacidade de cuidar deste mesmo jardim. O Gênesis já expressava este conhecimento do ser humano há 600 ou 700 anos antes da nossa era. Esta contradição do Gênesis – crescei e cuidai - mostra que devemos, sim, ser sustentáveis, precisamos compreender que vivemos num mundo com recursos finitos. A responsabilidade desta geração é iniciar o processo de harmonia entre Gênesis 1.28a e Gênesis 2.15. Literalmente, é a superação da contradição e a construção de um mundo novo.

O olhar sobre a Terra como um objeto extenso, inerte e desprovido de espírito, como quer a modernidade ocidental, entregue ao ser humano para nela expressar a sua vontade de poder e de intervenção criativa e destrutiva permitiu que aparecesse o desejo de explorar de forma ilimi-tada toda a sua riqueza, até chegarmos aos níveis atuais de verdadeira devastação da biodiversidade, dos recursos não renováveis e dos seus serviços, e ao desequilíbrio ecológico do sistema-Terra. Boff (2012) chama a atenção para a emergência, na contracorrente deste processo destruti-vo, de uma nova percepção de que a Terra e a Humanidade possuem o mesmo destino e que temos condições de transformar a possível tragédia numa crise de passagem do paradigma prometeico de destruição para outro de cuidado e de sustentação da vida.

A raiz ideológica das ameaças sobre a terraNão podemos cair na ilusão racionalista de nos situarmos diante da

Terra como diante de um objeto estranho. Num primeiro momento vigora uma relação sem separação. Somos um com ela. “Vigora [...] uma cali-bragem sutil entre todos os elementos químicos, físicos, entre o calor da crosta terrestre, a atmosfera, as rochas, os oceanos, todos sob o efeito da luz solar, de sorte que tornam a Terra boa e até ótima para os orga-nismos vivos” (BOFF, 2009, p. 52).

Ela surge desta forma como um imenso super-organismo vivo que se auto-regula, chamada por James Lovelock (2006) de Gaia, de acordo com a clássica denominação dos gregos antigos. A vida e seu ambien-te estão tão intrinsecamente interligados que a evolução diz respeito à Gaia e não aos organismos ou ao ambiente tomados em separado e em si mesmos. Sem dúvida, descobrimos, tarde demais, que a Terra possui este caráter auto-regulador, que articula o físico, o químico, o biológico e o antropológico de tal forma que ela se torna benevolente para a vida.

Boff (2009) dedica um capítulo do seu livro A Opção Terra para falar da Terra crucificada. Ele lista as ameaças imediatas e mais distantes que pesam sobre o planeta, como as mudanças climáticas e suas inexoráveis

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consequências econômicas e sociais. Não entraremos aqui nestes deta-lhes. Eles já são bastante conhecidos e vêm sendo divulgados pela mídia, por estudos acadêmicos e por diversas publicações, como o aquecimento global, o efeito estufa, o degelo das calotas polares, a elevação do nível do mar, entre outros. Ficaremos na raiz ideológica, na visão de mundo de que resultam estas ameaças visíveis e invisíveis.

O ser humano se entende como um ser sobre as coisas, dispondo delas a seu bel-prazer, jamais como membro de uma comunidade maior, planetária e cósmica. O efeito final, somente agora visível de forma ine-gável é este, expresso na frase atribuída a Ghandi: “A Terra é suficiente para todos, mas não para a voracidade dos consumistas”. E naquela outra bastante conhecida por todos nós: “ou mudamos, ou conhecemos, tristemente, o caminho já percorrido pelos dinossauros”.

A ética da nossa sociedade é utilitarista e antropocêntrica. Considera que o conjunto dos seres está a serviço do ser humano, que pode dispor deles como bem entender, satisfazendo seus desejos e preferências. Acredita que o ser humano é o ápice do processo evolutivo e o centro do universo, o que sabidamente se trata de uma arrogância, além de uma ilusão. “Somos um elo da cadeia dos seres, embora com a singularidade de sermos seres éticos” (BOFF, 2009, p. 125).

Só muito recentemente é que esta arrogância/ilusão começou a ser colocada em discussão. Trata-se de uma crise de paradigmas. E qual era esta concepção de mundo indiscutível? Que tudo deve girar em torno da ideia de progresso e de desenvolvimento. E que este desenvolvimento se move entre dois infinitos: o infinito dos recursos da Terra e o infinito do futuro. Os dois infinitos são ilusórios.

A consciência da crise reconhece: os recursos têm limites, pois a Terra é limitada e nem todos os recursos são renováveis; o crescimento indefinido para o futuro é impossível porque não podemos universalizar o modelo de crescimento para todos e para sempre (LUTZENBERGER, 1980). Já foi possível calcular que, se os países ricos quisessem, por iro-nia, estender seu nível de consumo a toda a humanidade, precisaríamos de duas Terras iguais a esta, o que é simplesmente impossível. A “pegada ecológica” entre o Norte rico e o Sul pobre é profundamente desigual.

Ter esquecido nossa união com a Terra foi o equívoco do racionalismo e do reducionismo científico em todas as suas formas de expressão. Ele gerou a ruptura com a mãe. Deu origem ao antropocentrismo, na ilusão de que, pelo fato de pensarmos a Terra e podermos intervir em seus ciclos, podemos nos colocar sobre ela para dominá-la para dispor dela ao nosso bel-prazer (BOFF, 2009, p. 61).

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Uma ecologia em defesa de Gaia: uma ética para a sustentabilidadePodemos perceber que a ecologia é melhor entendida a partir das

teorias da Complexidade e da Teoria do Caos. Pois estas teorias tratam de sistemas dinâmicos não lineares, autorreguladores, adaptativos e coevolutivos que conhecem incertezas, ambiguidades e bifurcações. Pois é exatamente assim que se comporta a natureza. “Tudo se encon-tra intra-retro-conectado, formando redes e redes de redes compondo o grande sistema do cosmos, da Terra e da vida. O sistema é sempre aberto, trocando a todo momento matéria, energia e informação e assim se auto-criando, auto-regulando e co-evoluindo” (BOFF, 2009, p. 102).

O aspecto singular deste saber ecológico consiste na transversalidade e deste procedimento resulta o holismo (hólos em grego significa totali-dade) sobre uma nova realidade. Ele não significa a soma dos saberes ou das várias perspectivas de análise. Isso seria apenas um somatório. O holismo traduz a captação da totalidade orgânica da realidade e do saber sobre essa totalidade. Isso representa uma qualidade nova, um novo olhar sobre o todo. A ecologia transformou-se hoje numa crítica radical do tipo de civilização que construímos. É neste sentido que o argumento ecológico é sempre levado em conta em todas as questões que dizem respeito à qualidade de vida, à vida humana no mundo e à salvaguarda ou ameaça da totalidade planetária ou cosmológica.

Para Boff (2009), precisamos criar outro tipo de civilização2 que tra-balhe junto com a Terra, que use racionalmente os recursos escassos, que salvaguarde a capacidade de regeneração dos ecossistemas, que recicle os dejetos e que dê lugar ao coração, ao pathos, ao sentimento para que nos sintamos de fato irmãos e irmãs da grande comunidade de Gaia, vivendo de forma respeitosa e cuidadosa dentro dos limites impostos pela única Casa Comum.

Mas sustentabilidade não se refere apenas aos recursos e aos ecossistemas. Possui um lado social imprescindível, necessariamente integrado com a natureza. Boff afirma:

[...] uma sociedade só pode ser considerada sustentável se ela mesma, por seu trabalho e produção, se tornar mais e mais autônoma; se tiver supe-rado níveis agudos de pobreza ou tiver condições de diminuí-la [...]; uma sociedade é sustentável se seus cidadãos forem socialmente participativos e destarte poderem construir uma democracia socioambiental, aberta a contínuas melhorias (BOFF, 2009, p. 113).

2 A Carta da Terra, concluída após oito anos de trabalho internacional em março de 2000 e assumida oficialmente pela UNESCO em 2003, nos adverte enfaticamente: ‘Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no coração’.

52 José Antonio Correa LAges: Como superar a contradição entre crescimento e cuidado

Mas importa enfatizar: temos algo de específico. Como diz o Gênesis, somos chamados a ser os guardadores dos demais seres, os cultivadores do Éden. Portanto, temos uma missão ética de preservação e de cuida-do3. É urgente incorporar na nossa mente e em nosso coração o que nos ensina a Carta da Terra: “Reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente de sua utilidade para os seres humanos” (artigo 1º). Em vez de antropocêntricos, devemos ser cosmocêntricos e biocêntricos, o cosmos e a vida no centro do mundo.

Para Boff (2009), a partir de uma visão verdadeiramente integral, podemos compreender melhor o ambiente e a forma de tratá-lo com respeito, objeto da ecologia ambiental:

Aprendemos as dimensões da ecologia sócio-política, responsável pela sustentabilidade da Terra e dos ecossistemas dos quais dependem nossa sobrevivência pessoal e coletiva. Damo-nos conta da urgência da ecologia mental que nos ajuda a superar o inveterado antropocentrismo em favor de um cosmocentrismo e biocentrismo. Por fim, pela ecologia integral captamos a importância de integrar a Terra e o ser humano com o Todo, de descobrir as conexões que ligam e religam todos os seres, a matéria e a vida, o espírito e o mundo, Deus e o universo (BOFF, 2009, p. 122).

É necessário discernirmos como essas diversas ecologias se complementam e em que medida nos ajudam a assumirmos nossa missão de cuidadores do Éden, produtores de padrões de comportamento que tenham como consequência o cuidado, a preservação e a potenciação do patrimônio formado ao longo de 13,7 bilhões de anos. Custosamente este patrimônio chegou até nós e é nosso dever passá-lo adiante, preservado e enriquecido, dentro de um espírito cooperativo com a natureza e afinado com a grande sinfonia universal.

ConclusãoOs fundadores do paradigma moderno, Galileu Galilei, René Des-

cartes, Francis Bacon, Isaac Newton e outros moldaram o pensamento ocidental que até muito pouco tempo atrás considerávamos natural e normal. Descartes ensinava que nossa intervenção na natureza é para fazer-nos “mestres e donos da natureza” (2008, p. 60). Bacon dizia que devemos tratar a natureza como o inquiridor trata o inquirido: “pressioná-

3 Mas importa reconhecer um limite: se por trás da ética não existe uma nova espirituali-dade, quer dizer, um novo acordo do ser humano com todos os demais seres, fundando uma nova religação (donde vem religião), se não houver um novo sentido de viver em harmonia com a comunidade de vida e com o universo, há o risco de que esta ética degenere em legalismo, moralismo e hábitos de comportamento de contenção e não de realização jovial da existência em relação cuidadosa, reverente e para com todos os demais seres.

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-la para entregar todos os seus segredos, amarrá-la a nosso serviço e fazê-la nossa escrava” (cf. MOLTMANN, 1993, p. 51).

Assistimos hoje à emergência de um novo paradigma, ou seja, uma nova forma de diálogo com a totalidade dos seres e de suas relações. Evidentemente, permanece o paradigma clássico das ciências com seus famosos dualismos, como a divisão do mundo entre material e espiritu-al, a separação entre a natureza e cultura, entre ser humano e mundo, razão e emoção, feminino e masculino, Deus e mundo. Impera ainda a atomização dos saberes científicos, particularmente nas universidades e centros científicos. Predomina enormemente aquilo que Boaventura de Sousa Santos (2010) chama de monoculturas dos saberes4.

Apesar de tudo isso, está se desenvolvendo uma nova sensibili-zação com o planeta como um todo. Surgem novas formas de pensar alternativamente: o Pensamento Complexo (Edgard Morin), a Teoria do Caos (Prigogine), o Pensamento Lateral (Edward De Bono). Não nasceu totalmente ainda. Mas começa já um novo diálogo com a natureza e o universo. Com base nesta nova percepção, sentimos a necessidade de uma utilização nova da ciência e da técnica com a natureza, em favor da natureza e jamais contra ela. Impõe-se, pois, a tarefa de ecologizar tudo o que fazemos e pensamos, rejeitar os conceitos fechados, desconfiar das causalidades unidirecionadas, das soluções únicas, propor-se ser inclusivo contra todas as exclusões, conjuntivo contra todas as disjunções, holístico contra todos os reducionismos, complexo contra todas as simplificações.

A complexidade exige outro tipo de racionalidade e de ciência. A ciência clássica se orientava pelo paradigma da redução e da simplifica-ção. Antes de mais nada arrancava-se o fenômeno de seu ecossistema para analisá-lo em si mesmo. Excluía-se tudo o que fosse meramente conjuntural, temporal e ligado a contingências passageiras.

Como se percebe, o momento ecológico deve estar presente em todas as disciplinas: caso contrário não se alcança uma sustentabilidade generalizada. Depois que irrompeu o paradigma ecológico, nos conscien-tizamos do fato de que todos somos ecodependentes. Participamos de uma comunidade de interesses com os demais seres vivos que conosco compartilham a biosfera. O interesse comum básico é manter as condi-ções para a continuidade da vida e da própria Terra, tida como Gaia. É o objetivo último da sustentabilidade.

Precisamos estar conscientes de que não se trata apenas de in-troduzir corretivos ao sistema que criou a atual crise ecológica, mas de agir para sua transformação. Isto implica superar a visão reducionista e mecanicista que ainda impera e assumir a cultura da complexidade. Ela

4 Para Boaventura de Souza Santos (2010) as principais monoculturas são as do saber cien-tífico, do tempo linear, das hierarquias, do universal e do global e da eficiência capitalista.

54 José Antonio Correa LAges: Como superar a contradição entre crescimento e cuidado

nos permite ver as inter-relações do mundo vivo e as ecodependências do ser humano. Tal verificação nos exige tratar as questões ambientais de forma global e integrada. Deste tipo de atitude perante Gaia se deriva a dimensão ética da responsabilidade e do cuidado pelo futuro comum da Terra e da humanidade. Esta ética faz descobrir o ser humano como o cuidador do Oikos, de nossa Casa Comum e o guardião, gestor de to-dos os seres. Somente assim, estaremos respondendo positivamente ao mandamento de Gênesis: “Crescei e multiplicai-vos, submetei a Terra” e superando a sua contradição do ponto de vista da humanidade e da Terra “cultivar e guardar o jardim de Éden.”

Referências DESCARTES, R. O Discurso do Método. São Paulo: Escala, 2008.KRAUSS, H.; KUCHLER, M. As Origens: um estudo de Gênesis 1-11. São Paulo: Paulinas, 2007. BOFF, L. A Opção Terra: a solução para a Terra não cai do céu. Rio de Janeiro: Record, 2009.________. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.________. Sustentabilidade e Educação. Blog Leonardo BOFF.com. Disponível em: <http://leonardoboff.wordpress.com/2012/05/06/sustentabilidade-e-educacao/>. Acesso em: 22 maio 2013.LOVELOCK, J. A vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006.LUTZENBERGER, J. A. Fim do Futuro? Porto Alegre: Movimento, 1980.MOLTMANN, J. Doutrina Ecológica da criação. Petrópolis: Vozes, 1993.PRADO, T. E não é que a Bíblia já pregava a sustentabilidade? São Paulo: Editora Abril, Revista Superinteressante, edição de 27 abril 2009. Disponível em: <http://super.abril.com.br/blogs/planeta/e-nao-e-que-a-biblia-ja-pregava-a-sustentabilida-de>. Acesso em: 19 maio 2013. TONNERA JR., J. “O evangelho da paz da sustentabilidade de Gênesis e de Wangari Maathai”. In: Essa novidade de vida. Disponível em: <http://jorge-no-vidadedevida.blogspot.com.br/2012/02/o-evangelho-da-paz-da-sustentabilidade.html?m=1 >. Acesso em: 19 maio 2013.SANTOS, B. S. A Gramática do Tempo: por uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2010.MANUAL de Sustentabilidade Ambiental. Perspectiva bíblica do meio ambiente. In: ROOTS 13. TEARFUND, 2009. Seção 2, pp 21-38. Disponível em: < http://tilz.tearfund.org/~/media/Files/TILZ/Publications/ROOTS/Portuguese/Environmental%20Sustainability/ROOTS_13_P_Section%202.pdf >. Acesso em: 15 maio 2013.

Submetido em: 20-10-2013Aceito em: 26-11-2013

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Homo sustentabilis: considerações na base dos discursos do novo ser humano durante o século 20 e na epístola aos Efésios Homo sustentabilis: considerations on the basis of the discourse of the new human being during the 20th century and the Epistle to the Ephesians

Homo sustentabilis: consideraciones sobre la base del discurso del nuevo ser humano durante el siglo 20 y la Epístola a los Efesios

Helmut Renders

ResumoO artigo discute o conceito do homo sustentabilis a partir da compreensão secular e religiosa do homo noeno no século 20. Para isso, investiga o papel do conceito em fascismo e socialismo, no mito de superman, e nos projetos católicos e pentecostais da eclesiogênese e da antropogênese, e confronta com as respectivas passagens na epístola aos Efésios.Palavras-chave: Antropologia teológica; homo sustentabilis; novo ser humano; Fascismo; Socialismo; mito de Superman; Efésios.

AbstRActThe article discusses the concept of homo sustentabilis in dialog with the secular and religious understanding of the homo noeno in the 20th century. For this, the paper investigates the function of concept in fascism and socialism, in the myth of Superman, and the Catholics and Pentecostals projects of the ecclesiogenesis and anthropogenesis. Finally, confronts them with the corresponding passages in the Epistle to the Ephesians.Keywords: Theological anthropology; homo sustentabilis; new human being; Fascism; Socialism; Superman myth; Ephesians.

ResumenEl artículo analiza el concepto de homo sustentabilis a partir de la comprensión secular y re-ligioso do homo noeno en el siglo 20. Para ello, el trabajo investiga el concepto de en el fascismo y socialismo, en el mito de Superman, y los proyectos católicos y pentecostales de la eclesiogénesis y antropogénesis. Finalmente, los confronta con los pasajes correspondientes en la Epístola a los Efesios.Palabras clave: Antropología teológica; homo sustentabilis; nuevo ser humano; el fascismo; el socialismo; mito del Superman; Efesios.

56 Helmut RendeRs: Homo sustentabilis: considerações na base dos discursos do novo ser humano

IntroduçãoEstamos a beira de um novo eon, uma nova época caracterizada

pela dupla noção da escassez dos recursos necessários para a nossa economia e de chegar ao limite da resiliência dos ecossistemas. A situação é nova e única quanto a sua escala e abrangência, seu caráter inevitável e impactante.

Somos confrontados pela necessidade de reorientar ou reeducar imaginários, valores, desejos, afetos, noções de amizade e inimizade, habitus e projetos, por terem nos levado ao ponto na qual a humanidade encontra-se hoje. O projeto da sustentabilidade precisa do ser humano como seu idealizador e realizador, com novos saberes, com novos pode-res, com novos fazeres. Talvez seja isso uma das razões mais profundas porque se busca tanto nestes dias no mundo religioso o poder: porque as pessoas se sentem sem saber como, sem poder como, sem saber e poder fazer. Esta crescente incerteza, esta insegurança agressiva, são de longa data, como as expressões “desencantamento com o mundo” (Weber) e “mal-estar com a civilização” (Freud) nos indicam.

Poderíamos continuar que o homo faber, aquele capaz de se eman-cipar e criar ao lado da natureza o mundo da cultura, criou também “mal-estar com criação”, sendo ele sua maior ameaça. Surgiu, então, a demanda do homo sustentabilis:

O calcanhar de Aquiles de qualquer programa de sustentabilidade é a dis-posição ou indisposição do indivíduo e de instituições de abraçar um estilo de vida mais simples e menos agressivo e explorador em relação ao seu próximo, ao eco-sistema e às futuras gerações. Para superar possíveis impasses precisa-se de formação de caráter de um ser humano em qual conhecimento, atitude e visão forjassem um homo ecologicus, ou melhor, um homo sustentabilis (SILVA, 2008).

Concordamos com esse mapeamento do desafio e gostaríamos em seguida abrir um diálogo a partir de uma ideia paralela a do homo noeno. Para isso propomos explorar a sua compreensão em ideologias e mitos do século 20, e seus impactos na igreja, para depois retornar para a epístola aos Efésios, na procura de algo que pode “forjar” aquele homo sustentabilis.

1. Leituras seculares do “novo ser humano”: fascismo, socialismo e superman

Em épocas de transição, como no caso do século 20, aumenta a necessidade do novo. Lepp, Roth e Vogel (1999) falam até da obses-são do século 20 com o tema do novo ser humano. O discurso aparece justamente nos sistemas ideológicos de destaque, da época, o fascismo e o socialismo. Não podemos esquecer isso por duas razões: primei-

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ro, por causa das imensas dificuldades das democracias modernas de implantar políticas ecológicas eficazes, o que faz alguns discutirem a opção por estruturas políticas mais autoritárias. Segundo, pela falência desses sistemas totalitaristas no passado, inclusive por causa da sua plena incompatibilidade com qualquer projeto de sustentabilidade. Além disso, queremos ainda olhar como um mito urbano da década de 1930, o do “Superman”, por influenciar o imaginário religioso brasileiro popular parcialmente quanto a sua antropologia teológica.

1.1 O “novo ser humano” emerge da purificação: naturalismo e idealismo no fascismo

Mesmo que não se usava explicitamente o conceito do ser humano novo no fascismo, fica evidente que seu discurso predileto, ou da pureza da raça humana, parte do princípio da renovação, no caso, por exclusão, separação e extermínio. Misturavam-se discursos biológicos com étnicos (higiene de raças), sociológicos (darwinismo social) e religiosos (religião germânica do povo). O seu ideal de comunhão do povo (Volksgemeins-chaft) tem como um dos princípios centrais o do Duce ou do Führer (italiano e alemão para guia). Segundo esta perspectiva, o ser humano deve desenvolver em primeiro lugar a liberdade de obedecer o líder, uma autonegação ritualizada – no caso dos soldados e funcionários públicos – pelo juramento ao Führer. Assim formam o militarismo e a teoria de raças seu núcleo. Na pintura abaixo (figura 1), representam não por acaso três soldados a “vanguarda” do povo, um povo representado somente por cinco homens e nenhuma mulher.

Figura 1: Hans Schmitz-Wiedenbrück, Arbeiter, Bauern und Soldaten, 1941 [Tra-balhadores, agricultor e soldados]

O herói é identificado com o guerreiro. A guerra não é somente um mal necessário, mas, parte natural até central da vida. Ao lado do solda-

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do compõem o trabalhador e o agricultor o novo povo, a “raça” alemão--germânica. Concordamos com a descrição de Lyons que na ideologia do nacional-socialismo

A nação ou raça é vista como uma comunidade orgânica que supera qual-quer outro tipo de lealdade e deve ser glorificada. Seu mito se refere a um renascimento como cultura ou estado, depois de um tempo de decadência. Consequentemente, quer ou preservar esta vivência por excluir outros grupos ou poderes considerados uma ameaça. Típico são a ênfase na masculinida-de, juventude, união mística e a força regenerativa de violência ou guerra (LYONS, 2004.

Partes dessa ideologia influenciaram Brasil, especialmente, durante a época Vargas, como já indica o nome “Estado Novo”, um empréstimo direto do fascismo italiano. Já as teorias do branqueamento, desenvolvidas depois de 1870, bebem de fontes parecidas dos teóricos do fascismo, mas, parecem encerrar gradualmente na década de 1930, talvez até em reação ao fascismo. Porém, casos como o debate sobre a eugenia mostram a complexidade desse intercâmbio. Assim lembraram Wegner e Souza (2013, p. 263-288) recentemente, da influência da ideologia nacional-socialista no Brasil quanto à discussão sobre a esterilização de grupos específicos da população.

A influência do ideário fascista ao pensamento religioso brasileiro é geralmente discutido como fenômeno [interno] luterano (DREHER, 2003). Mas, nem sempre é o caso como mostra o exemplo a seguir:

Foi o coração aquecido pela ideia do domínio que levou o jovem Alexandre [...] a construir um dos maiores impérios. [...] Foi o coração aquecido pela ideia da supremacia que levou Hitler a provocar uma guerra mundial. É tal experiência interior que leva os homens a conquistas e realizações de gran-des coisas, boas e más (CABRAL, 2ª quinzena 05/1985, p. 13). Trata-se de um simples deslize?1 Transparece aqui não uma admiração

pouco contida, por uma suposta grandeza de uma visão? Qual experiência do interior pode ser lida independente dos seus objetivos e resultados? Qual seria o suposto bem de uma “ideia da supremacia”? Justiça e bondade cer-tamente não... Fica o sonho da supremacia e da grandeza do ser humano que alcança seus objetivos como conquistador e guerreiro.

As respectivas linguagens religiosas com seu fascínio para discursos totalitaristas não são meros acidentes do cristianismo brasileiro. Eles são de longa data – pense-se no ideal como o da obediência absoluta dos “soldados de Cristo” (Jesuítas) – e levaram a “Inquisição sem fogueiras”

1 Veja também um exemplo de uma crítica em Renders (2009, p. 109-128).

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(ARAÚJO, 2010) em igrejas protestantes, e isso apesar de que não fal-taram vozes proféticas de alerta (SILVEIRA, 1943).

1.2 O novo ser humano nasce da nova sociedade: realismo e idealismo no socialismo

Como segundo exemplo, apresentamos o discurso socialista. Na dé-cada de 1970 Caetano Veloso cantou: “Mamãe eu quero ir a Cuba, quero ver a vida lá”. Se Cuba, como símbolo de um novo modelo de sociedade serve ou não, não é assunto desse texto. Nosso foco está no uso na metáfora do “novo homem”, ou do “novo ser humano”, como “ser humano socialista”. Um retrato desse novo tipo de ser humano pode-se ver na pintura a seguir (figura 2).

O “ser humano futuro no socialismo” é descrito como em domínio dos elementos (fogo, água, ar e terra) e dos átomos por meios intelectuais (o compas-so) ou força física (a alavanca). Aqui o indivíduo novo é resultado da mudança do ambiente. Assim fala-se no texto “O Socialismo e o Homem em Cuba” de Ernesto Che Guevara (1965) nove vezes do “homem novo”:

... Para construir o comunismo, [...] há que fazer o homem novo. [...] Nes-te período de construção do socialis-mo podemos ver o homem novo que vai nascendo. [...] Todos e cada um de nós paga pontualmente a sua quo-ta de sacrifício, conscientes de rece-ber o prêmio na satisfação do dever cumprido, conscientes de avançar com todo face ao homem novo que se vislumbra no horizonte.

O ser humano novo surge da sua participação consciente no projeto da nova sociedade, o que requer, novamente, “sacrifícios”, no caso, de esforços extraordinários e heroicos.

Este discurso revolucionário impactou entre jovens cristãos da dé-cada de 1960:

Figura 2: RENAU, Josep. Der zukünftige Mensch im Sozialismus, 1969. [O ser humano futuro no socialismo]

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Para nós, brasileiros e cristãos, não existe a opção de estar fora da so-ciedade. Temos que estar necessariamente engajados nela, pois não há nenhuma razão para assim não agirmos. Somos responsáveis pelos rumos que ela for tomar. As opções que se colocam para nós são, unicamente como construir essa sociedade para que ela não se torne opressora, nem escravize o homem, mas, pelo contrário, se constitua em benefício do próprio homem, possibilitando a realização das potencialidades que Deus lhe deu (GUARIBA; TOLEDO, 1962, p. 25).

Heleny Guariba participaria mais tarde na luta armada – ou seja, também abraçou uma forma da lógica sacrifical – foi presa em 1970, aliás, junto com a presidenta Dilma Vana Rousseff, e “despareceu” em 1972.2 A lógica sacrifical aparece também no texto em seguida, porém, em outra forma:

Os que clamam por justiça não são os cristãos, mas, os comunistas, mate-rialistas e ateus. Os que se colocam ao lado dos oprimidos, dos camponeses espoliados e injustiçados, não são os pastores evangélicos, mas o Francisco Julio. Não são as igrejas cristãs que preconizam a Reforma Agrária, a divi-são justa e humana das terras, mas as Ligas Camponesas e os chamados “esquerdistas”. O nosso cristianismo está desfigurado. Perdemos o verda-deiro sentido da nossa missão. O de sermos mediadores do amor de Deus ao mundo. [...] Tenho ouvido muitos pastores e padres arrotando teologia e sapiência filosófica, referirem-se aos comunistas em tom da raiva: “porcos imundos. O governo deveria fuzilar esta caterva” (BEULKE, 1962, p. 18).

A ideia do “novo” era, aparentemente, conflituosa ao extremo e o desejo de “reor-ganizar” seu mundo pelo “fuzilamento”, mais uma vez, propõe uma lógica sacrifical, inclu-sive radicalizada ao extremo da aniquilação. “Porcos imundos”, aliás, lembra do discurso fascista da “pureza do povo”.

1.3 Superman: a versão secular do “super-poderoso”

Ao lado do discurso fascista e socialista a respeito do novo ser humano, surgiu em 1932 nos Estados Unidos, nos turbulentos anos da depressão econômica o primeiro super-herói: o superman.

A figura musculosa (figura 3) lembra de um bodybuilder e a roupa artistas de circo.

2 Em 1962 Heleny era casada com Ulysses T. Guariba Netto. Ele e Caio N. de Toledo, também redator da revista, seriam mais tardes importantes historiadores brasileiros.

Figura 3: Cartaz do filme “O retorno de superman”, 1993

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Superman não é uma figura do cotidiano, mas, do mundo da ascese e da transcendência dos limites e da ilusão. O logotipo com a letra “s” lembra os nomes dos criadores (Jerry Siegel e Joe Shuster) e da figura. O seu nome criptoniano, “Kal-El”, soa como קל-אל (kolel), voz de Deus, lembrando dos anjos Gabriel, Rafael e Micael. Isso cria o imaginário de um mensageiro de Deus, herói divino ou até salvador, no sentido do le-gendário Golem. Como extraterrestre ele compensa sua vulnerabilidade, recorrendo a soluções supranaturais. “No mundo moderno, ele (Superman, o autor) parece dizer que somente um ser humano com superpoderes consegue sobreviver e ser próspero” (CLARKE, 1971, p. 4). Assim, con-sidera Umberto Eco (2000, p. 261) o leitor de Superman

“heterodirigido” [...] um homem que vive numa comunidade de alto nível tecnológico e particular estrutura social e econômica [...] e a quem constantemente se sugere [...] o que deve desejar e como obtê-lo segundo certos canais pré-fabrica-dos que o isentam de projetar pe-rigosamente e responsavelmente. Numa sociedade desse tipo a pró-pria opção ideológica é “imposta” através de um cauteloso controle das possibilidades emotivas do lei-tor, e não promovida através de um estímulo à reflexão e à avaliação reacional.

Isso nos parece um aspecto que facilita a assimilação desse imagi-nário no campo religioso brasileiro. A transposição do mito urbano para a fé cristã representa a figura em seguida (figura 4). Nela o próprio Jesus é descrito pelos atributos de “superman”:

Esta transposição foi, provavel-mente, facilitada pelas ênfases cris-tológicas no Cristo soberano (calvi-nismo), Cristo Rei (católico), e Cristo Vitor (luterano) e alimentou, além dis-so, uma antropologia teológica popu-

Figura 4: O logotipo de Superman integrado ao nome de Jesus

Figura 5: Cartaz “[super-]heróis da fé”; Igreja Metodista, 5ª Região Eclesiás-tica, 2009

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lar. Ao cristo “superman” corresponde o “supercrente”. Veja a figura 5, que cita a lenda de superman para descrever agora uma “nova geração” religiosa “heroica” – “levantando heróis” – marcada pela “santidade”:

O cartaz não conta ou evidencia como o imaginário de superman de fato foi interpretado. Há a possibilidade de uma contraposição entre a san-tidade cristã e a “santidade” do “super” de superman, há a probabilidade de uma releitura da antropologia teológica através do mito de superman interpretando o heroico como o extraordinário e o supernatural. Nesta segunda perspectiva seria o novo ser humano o ser humano taumaturgo.

2. Leituras religiosas do “novo ser humano”: a eclesiogênese católica e a antropogênese pentecostal

A ideia do novo ser humano articulou-se na América Latina também de duas formas distintas no ambiente da fé cristã. No catolicismo, temos uma abordagem mais indireta e processual a partir do ideal da eclesio-gênese, o nascimento de uma igreja nova e diferente, sendo um espaço distinto que facilita novas formas de relacionamentos. O novo ser humano não é resultado da nova sociedade, mas, da nova igreja. Na inversão da lógica estabelecida favorece-se nesta nova igreja o leigo antes do clero, o humilde antes do socialmente estabelecido, etc. (cf. BOFF, 1976, p. 393-438, 1977). Aqui o novo ser humano é um ser humano que se relaciona de uma forma nova com o outro. A eclesiogênese leva a antropogênese3, a transformação do ser humano.

Paralelamente articula a experiência pentecostal a criação do novo ser humano a partir da experiência do batismo no Espírito Santo, como transformação instantânea e abundante. Neste caso, unem-se expec-tativa e promessa de uma transformação radical, plena e imediata, não resultante do esforço humano, nem forjado ou pela sociedade ou pela comunidade da fé, mas, causado e selado unicamente pela atividade divina. Por causa disso, poderíamos falar – apesar que não seja comum – também de uma antropogênese.

Tanto a eclesiogênese como a antropogênese articulam então um ideário teocêntrico e são vinculadas com uma visão mística do mundo e das suas dinâmicas principais. Enquanto, porém, a primeira se desdobra em forma de processo tanto no nível institucional como interpessoal e pessoal, espera-se da segunda um impacto pleno e imediato, uma Dur-chbruchserfahrung, uma experiência de rompimento mediante um salto qualitativo. O novo ser humano nasce completamente vestido do divino poder pela experiência religiosa.

3 O conceito refere-se, em geral, a teorias quanto à origem da humanidade.

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3. o segundo efésiosQueremos confrontar estas articulações do ser humano novo do sé-

culo 20 com a metáfora bíblica correspondente, a do “ser humano novo”, deixando uma segunda, a da “nova criatura”4, ao lado.

Interessantemente, aparece a metáfora do “novo ser humano”5 na carta aos Efésios, ou seja, em um momento que a igreja precisa lidar com a possibilidade de uma presença mais douradora na terra, em tem-po e espaço. O “ ”, “renovado no Espírito” e “criado segundo Deus”, vive a “verdadeira justiça e a verdadeira santidade6” (cf. Schlier, 1991, p. 291).7 O novo ser humano assume o compromisso de viver a justiça – como contínua busca da superação da inimizade – e a misericórdia e a bondade, – como sinal da sua “santidade” e “pureza”, da sua pertença a Deus. Schlier (1991, p. 291) lembra que δικαιοσυνη (dikaiosune) e oσιοτης (hosiotes) descrevem no grego antigo “a justiça em relação às demais pessoais e ao mundo [...] e a justiça em relação a Deus e os santos”,8 ou seja, céu e terra, o cristo cósmico, a igreja e mundo são vistos como correlacionados e campos da ação do fiel.

Os versículos de Efésios 4.22-23 deixam claro que isso requer ca-pacidades éticas, a capacidade de discernimento (moral), acompanhada por atitude. Πνεύματι (pneumati) significa aqui o interior como disposição e νοòς (noos) a faculdade da razão onde se localizam a compreensão, o discernimento e o propósito ou querer da pessoa.

Atitude e discernimento partem de uma nova visão do mundo que foca, segundo Efésios 2.15, justamente nas estruturas legais, consideradas uma forma de “inimizade instalada”. Em outras palavras, estas estruturas reproduzem o mal, isso é, a injustiça. A igreja enfrenta esta realidade na convicção que Jesus “na sua carne desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz”.

... νóμον των εντολων εν δóγμασιν... (nomon ton entolon en dogma-sin) não pode ser reduzidos unicamente a leis religiosas, refere-se também as estruturas do mundo greco-romano (SCHLIER, 1991, p. 291). Νóμος (nomos), εντολή (entole) e δóγμα (dogma) descrevem a ordem legal do mundo da polis e dos respectivos cultos. Νóμος (nomos) refere-se à lei como sistema legal, εντολή (entole) fala dos mandamentos particulares

4 Ou “nova criação”.5 A tradução “novo homem” (Almeida) é errada. ΛνθρωπoV (anthropos) se refere à espécie

como toda (cf. JEREMIAS, 1933, p. 365).6 Oσιοτης (hosiotes) traduz na LXX a palavra דיסח (chasid). 7 Cf. também Lc 1.75.8 Um significado parecido carrega na antiguidade a dupla διακαιοσυνη (diakaiosune) e

ευσεβεια (eusebeia) (cf. TUOR-KURTH, 2010, p. 99-111; também SEECK, 1997).

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e δóγμα (dogma), como Tillich (1984, p. 35) lembra, representa às “dou-trinas especiais aceitas como tradição”, em nosso caso, à convicção da sociedade greco-romana que seu sistema legal seja de origem divina, e assim, imutável. Para o autor de Efésios, este conjunto é hostil à vida, ergo, representa inimizade9. Como sistema legal ele se dirige contra o ser humano, como sistema de sentido ele compete com a esfera do divino.

A ética requerida – a vivência de justiça e misericórdia ou bondade – corresponde à obra pacificadora e reconciliadora de Jesus, o Cristo. A experiência do ser diferente de Jesus inspira novos comportamentos que requerem educação. Cristo é fundamento desse processo, porém, não agente único.

Considerações finaisO aparecimento da metáfora ou do ideal do “novo ser humano” em

sistemas totalitaristas ou radicalmente idealistas representa um desafio para a educação e para a ética. No caso das vertentes citadas, eles inte-graram uma lógica sacrifical operacionalizada pela justificação da guerra como caminho da purificação, pela identificação de bodes expiatórios e pela insistência na necessidade de pagar um preço, especialmente, nas fases da sua implantação. O novo ser humano é aquele que assume estes sacrifícios como “salvíficos” para um povo, um estado, uma classe social, obedecendo, sobretudo, o seu líder ou colocando os seus ideais acima de tudo. Obviamente, há vertentes religiosas que seguem este esquema.

Já segundo o mito de superman, a conquista do futuro e superação das ambiguidades depende de forças supernaturais ou extraordinárias. A figura do Superman, porém, é atemporal e, em consequência, mítica, ou seja, é possível relacioná-la ou aproximá-la da figura do próprio Jesus, não como figura histórica, mas como figura mística e transcendente, além dos males e das vulnerabilidades do cotidiano. A historicidade garante também que o sujeito não sinta a falta de um projeto, e favorece “[...] o estabelecimento de uma pedagogia paternalista, qual requer, justa-mente, a secreta convicção de que o sujeito não seja responsável pelo próprio passado, nem dono do projeto futuro [...] (ECO, 2000, p. 262). Em termos religiosos, favorece uma leitura mítica de Jesus e o ideário da divinização do ser humano.

O novo ser humano, segundo Efésios, não segue nem as lógicas sacrificais nem o ideário misticista. O novo ser humano nasce – neste sentido trata-se de uma antropogênese – da experiência da graça universal e do amor incondicional. Porém, não se trata de uma divinação unilateral que substitui a colaboração humana. Efésios visa um ser humano em construção e responsável e nos convida a imaginar o homo sustentabilis 9 Εχθρα pode significar hostilidade, mal-intencionalidade e até ódio. Isso pode aqui

representar os aspectos discriminatórios de legislações.

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como ser humano em processo contínuo do amadurecimento. Em analogia ao conceito do justo – aquele que está praticando a justiça, e não aquele que é perfeito em sua retidão – o homo sustentabilis representa também um horizonte que indica a direção da caminhada. Conhecimento, atitude e visão partem da interação com o seu mundo e a sua religião. Assim considera-se tanto o conhecimento de Deus como o conhecimento do mundo centrais para o homo sustentabilis. Aos seus deveres diante do mundo e de Deus correspondem as suas atitudes, e sua visão visualiza a superação da inimizade pela paz.

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Submetido em: 22-6-2013Aceito em: 28-10-2013

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Ecologia: um tema ainda incipiente entre os batistas brasileiros

Ecology: a still incipient theme among Brazilian baptists

Ecología: un tema todavía incipiente entre los bautistas brasileños

Alonso Gonçalves

ResumoOs batistas, pertencentes à mesma matriz teológica e histórica do protestantismo de missão que se instala no Brasil a partir do século 19, são, de certa maneira, herdeiros da mentalidade que se produziu na Modernidade. O desenvolvimento histórico-eclesiástico dos batistas se deu a partir de temas que estavam em pauta na Modernidade como a liberdade individual e o progresso científico. Esses valores ajudaram a sedimentar a denominação nos Estados Unidos e, consequentemente, no Brasil. Para uma denominação que, comprovadamente na sua trajetória, sempre se aliou com os temas correntes do seu tempo, os batistas brasileiros ainda não se deram conta de um tema de grande importância para a sociedade – a questão ecológica. É a partir de algumas constatações no âmbito denominacional que o artigo pretende contribuir para um agir mais significativo com o tema proposto – ecologia e os batistas – com uma leitura teológica engajada. Palavras-chave: Ecologia; protestantismo; Igreja Batista; escatologia; práxis religiosa.

AbstRAct Baptists, belonging to the same theological and historical matrix of the socalled Protestantism of Mission that came to in Brazil from the 19th century onward, are, in a sense, heirs of the mentality that produced in Modernity. The historical ecclesiastical development of the Baptist Church is linked to typical topics of Modernity as individual freedom and scientific progress. These values helped to sediment the denomination in the United States, and consequently, in Brazil. Beside this fact to be part of a denomination that has always shown the capacity to allied himself with the key issues of his time, Brazilian Baptists have not yet embraced a topic of great importance for society – the topic of ecology. This paper, based on some denominational documents, aims to contribute to a more significant involvement with the theme proposed – ecology and Baptists – by an engaged theological reading of the respective texts.Keywords: Ecology; protestantism; Baptist Church; eschatology; religious praxis.

Resumen Bautistas, que pertenecen a la misma matriz teológica e histórica del protes-tantismo de la misión que se instala en el Brasil con el siglo 19, son, en cierto sentido, los herederos de la mentalidad que produjo la Modernidad. El desarrollo histórico de las iglesias bautistas-tomó de los temas que estaban en la agen-

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da de la modernidad como la libertad individual y el progreso científico. Estos valores ayudaron a sedimentar la denominación en los Estados Unidos, y, en consecuencia, en el Brasil. Para una denominación que se ha demostrado en su carrera, siempre se alió con los temas de actualidad de su época, los bautistas brasileñas no han dado cuenta de un tema de gran importancia para la sociedad – las cuestiones ecológicas. Es a partir de algunas de las conclusiones en el documento confesional tiene como objetivo contribuir a un acto más significativo con el tema – la ecología y bautistas – con una lectura teológica comprometida.Palabras clave: Ecología; protestantismo; Iglesia Bautista; escatología; praxis religiosa.

Introdução Conversando com um jovem da igreja (batista), ele dizia que fora

visitar outra igreja e lá o assunto foi sobre o lixo e de como as pessoas deveriam cuidar do meio ambiente. Esse foi o tema do sermão naquele dia. Fiquei impressionado com o rapaz quando comentou: “Por que vou a uma igreja para ouvir sobre o lixo e o meio ambiente? Igreja não é lugar para se falar disso!”. Infelizmente a compreensão daquele jovem de que meio ambiente e igreja não tem qualquer relação é compartilhada por muitos membros das igrejas, acostumados a enxergar o cristianismo como tendo apenas um sentido, o vertical. É claro que existem alguns motivos para essa dissociação entre igreja e ecologia/sustentabilidade. Não se ouve sermões abordando o tema e quando há, ele é desqualificado como não sendo espiritual o bastante; a educação cristã fornecida no período que comumente chamamos de Escola Bíblica Dominical (EBD) não se aborda o assunto de maneira sistemática por entender que o mesmo não faz parte da missão da igreja e, por isso, não é necessário ficar ocupando o tempo das pessoas com esse assunto.

Indubitavelmente essa concepção não surgiu no vazio, ela é fruto de uma maneira de entender e enxergar a vida e suas ramificações como independentes entre si. No caso do protestantismo, gestado na gênese do progresso científico, ou seja, ele é herdeiro de uma era em que o futuro é pensado a partir da máquina tendo no avanço econômico o termôme-tro do desenvolvimento humano, essa dissonância entre vida religiosa e meio ambiente é ignorada, até porque os paradigmas que favoreciam o pensamento e a dinâmica da vida eram outros.

A Modernidade, enquanto produtora de conhecimento e ideologia teve como patrocinadores Francis Bacon e René Descartes, seus principais expoentes fornecendo subsídios teóricos. O primeiro viveu na opulência econômica da Inglaterra e elaborou um método científico que ia além da mera análise empírica. Para Bacon, a natureza deveria ser dissecada, inquirida, como se faz com um réu no tribunal (BRAGA; GUERRA; REIS, 2004, p. 54) para tirar dela todas as suas possibilidades. Quanto ao se-gundo, Descartes, este concebeu o ser humano como uma máquina e o

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cérebro com único meio de interação e conhecimento (BRAGA; GUERRA; REIS, 2004, p. 98).

Quando se estabeleceu a relação do ser humano com o mundo sob o paradigma do sujeito-objeto, inaugurou-se uma ideologia, a de que a ciência triunfa sobre a natureza, ignorando os seus limites e espaços. A proposta da Modernidade foi subjugar a natureza ao conhecimento cien-tífico, não se importando com as consequências que advinha disso. Não havia uma preocupação ecológica, o interesse era desvendar a natureza e tirar dela todo o proveito possível para o desenvolvimento econômico e científico. Hoje colhemos as consequências desse comportamento ao longo dos séculos.

O protestantismo, a rigor, é fruto da Modernidade, portanto, compar-tilhou, de certa forma, com essa ideologia. Com a ênfase no indivíduo e o processo de dessacralização do mundo, a natureza foi vista como sendo útil para se alcançar o desejado progresso. A natureza passa a ser meramente matéria-prima para a atividade econômica. Decorrente disso foi à omissão para com a natureza como criação de Deus e, como con-sequência, a ausência de uma espiritualidade ecologicamente militante. O protestantismo, como um dos protagonistas do sistema capitalista – se seguirmos aqui a compreensão de Max Weber (2001) – contribuiu para o aperfeiçoamento do atual sistema exploratório da natureza quando adotou a noção utilitarista1 dos recursos naturais ao invés de nutrir a indicação bíblica que apresenta a noção de mordomia e corresponsabilidade do povo de Deus para com o meio ambiente.

“sou forasteiro aqui, em terra estranha estou”: aspectos da ecle-siologia batista que ainda dificultam uma inserção significativa na sociedade

Ainda que de forma sintética, é preciso, a meu ver, esboçar algumas características da eclesiologia batista que, de um modo geral, se identifica com outros ramos do protestantismo de missão no nosso país. Até onde podemos ver, não apenas em pesquisas bibliográficas e notícias veicu-ladas na grande mídia, o protestantismo brasileiro abarca uma enorme diversidade litúrgica, teológica e hermenêutica tendo como consequên-cia a concepção de “mundo” e a noção de inserção na sociedade com diferentes ênfases. Há autores que contribuem para um mapeamento da mentalidade protestante e sua eclesiologia, nesse caso não apenas batista. Aqui importa alguns aspectos da eclesiologia protestante, de um

1 Faço uso do conceito Utilitarismo pensando na corrente filosófica que atribuía valor à finalidade prática de um elemento, fenômeno ou processo com o fim de produzir o má-ximo de felicidade ao maior número possível de pessoas. Um dos representantes dessa corrente foi o economista inglês John Stuart Mill (1806-1873).

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modo geral, que, de certa maneira, se expressa na eclesiologia batista, que é o nosso foco mais adiante.

Sobre a eclesiologia protestante, Antônio Gouvêa Mendonça é enfá-tico quando analisa a implantação do protestantismo de missão em terras tupiniquins e afirma que a igreja que se configurou no País tem uma forte “ligação com a cultura religiosa [norte] americana, menos estável e em constante ebulição, com tendência para manter confronto com a cultura brasileira” (MENDONÇA, 2002, p. 25). Essa igreja que, na sua gênese, teve uma forte ligação com a cultura norte-americana, desenvolveu uma eclesiologia com uma agenda missionária e pastoral a partir da teologia estadunidense. Isso se traduziu, por exemplo, na marginalização de temas que o País, na sua trajetória política, discutiu sendo a participação protes-tante ínfima como no caso do movimento pelas “Diretas Já”, mobilização em torno da redemocratização do Brasil.

Por um bom tempo, a eclesiologia que se forjou no País ignorou te-mas correntes como a pobreza e a exclusão social, por exemplo. Mesmo havendo exceções, como Richard Shaull e Rubem Alves que marcaram sua geração pela postura profética e articulada com teologias libertárias, não foi o suficiente para promover uma maior participação dos protestantes em temas recorrentes da sociedade. Isso se deve, dentre outros fatores, segundo Alves porque a igreja se propôs a “salvar almas, transformar corações. O problema estrutural não é esfera de sua competência, mas está sob o poder e a responsabilidade dos magistrados que Deus para isto estabeleceu” (ALVES, 2005, p. 260). Com uma teologia da espera sendo pregada e cantada, favoreceu para que a igreja tivesse uma participação tímida diante dos temas sociais e políticos do País.

Esse aspecto macro da eclesiologia protestante também se verifica na eclesiologia batista, não poderia ser ao contrário, uma vez que o pro-testantismo de missão tem sua matriz norte-americana.

Dentro desse aspecto, Israel Belo de Azevedo, fazendo uma análise do pensamento batista brasileiro2 pontua as consequências do imaginário celestial, ou seja, a ideia de que os cristãos estão apenas aguardando os “céus” contribuiu para que a igreja, de alguma forma, se sentisse des-compromissada com a sociedade e, como consequência, com os seus principais temas (AZEVEDO, 2004, p. 172ss). Essa noção de transitorie-dade da igreja decorre da ideia de que tudo que acontece ou irá acontecer está sendo direcionado pela bendita e soberana vontade de Deus e diante dessa verdade não há nada que se possa fazer para mudar a realidade.

Corolário a essa característica, ainda dentro da eclesiologia batis-ta, que a meu ver contribuiu para um distanciamento entre a igreja e a

2 Seu livro, A celebração do indivíduo: a formação do pensamento batista brasileiro, é fruto de sua tese de doutorado em Filosofia na Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro.

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sociedade, pelo menos no seu sentido de engajamento, é a concepção e o debate teológico em torno do milênio. A escatologia milenarista, mas principalmente a discussão sobre as diferentes interpretações milenaristas como amilenismo, pré-milenisno e pós-milenismo, sempre foram o principal motivo de disputas teológicas entre os pastores batistas. A correta inter-pretação acerca do milênio, significa também uma correta interpretação da igreja em relação ao mundo e a sociedade. A vertente do milênio que mais atraiu, e que ainda atrai adeptos em alguns ambientes teológicos, é o pré-milenismo. O teólogo batista mais influente na disseminação e ensino sobre o pré-milenismo em Seminários e Faculdades de Teologia foi o Prof. Dr. Russell P. Shedd (1983). O pré-milenismo entende que o ser humano é incapaz de se aperfeiçoar e quanto mais houver o caos, maior será a “glória de Deus”. Quando o Senhor Jesus Cristo retornar e instaurar o milênio (= Reino de Deus), as coisas entraram nos eixos definitivamente. Essa concepção ganhou força e o resultado foi o pro-gressivo distanciamento entre a igreja e a sociedade, de maneira sorra-teira. A igreja, voltada para si mesma, concentrou-se na evangelização e nas missões estrangeiras e outros temas foram solapados por essa concepção teológica, inclusive o tema da ecologia por entender que tudo que ocorre ou que irá ocorrer é sinal da “glória de Deus”. Um exemplo dessa concepção vem do pastor e teólogo presbiteriano John MacArthur Jr. que tem boa acessibilidade entre os pastores batistas e o universo presbiteriano de modo geral. Alguém que é lido e citado nos sermões de igrejas protestantes tradicionais. No seu livro, A sós com Deus: o poder e a paixão pela oração, no capítulo intitulado “Venha o teu reino” ele diz:

A igreja tem uma única missão neste mundo: levar pessoas destinadas a passar a eternidade no inferno ao conhecimento salvador de Jesus Cristo e à eternidade no céu. Se as pessoas morrerem em um governo comunista ou em uma democracia, sob um ditador tirano ou benevolente, acreditando que a homossexualidade é certa ou errada, ou acreditando que o aborto é direito fundamental de escolha da mulher ou simplesmente um homicídio em massa, nada disso tem relação com onde elas passarão a eternidade. Se elas nunca conheceram Cristo e nunca o receberam como Senhor e Sal-vador passarão a eternidade no inferno. [...] Um dia o Senhor voltará para estabelecer o seu próprio reino perfeito. Então finalmente perceberemos o que temos esperado com tanta ansiedade – e o que os discípulos de Cristo do primeiro século desejavam ver - Cristo governar na terra e os povos do mundo prostrados de joelhos perante Ele (MACARTHUR, 2009, p. 193).

Como se observa, a preocupação última se dá em “tirar pessoas do inferno”. Temas como política, casamento de pessoas do mesmo sexo, pobreza e marginalização social são colocados em segundo plano, por-que, afinal, quando da segunda vinda de Jesus tudo irá se resolver e um

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tempo de paz e prosperidade se estabelecerá por meio do milênio. Essa é a principal temática que ainda suscita disputas e debates teológicos entre os batistas de tendência progressiva (considerados “liberais”) e batistas conservadores (considerados “fundamentalistas”).

Livros de maior sucesso editorial no Brasil foram os de escatologia. Ricardo Quadros Gouvêa (2008), por exemplo, escrevendo sobre os prin-cipais livros que “fizeram a cabeça” dos evangélicos, lista quarenta livros e desses quatro são escatológicos de tendência pré-milenista. Em décadas passadas não há nenhum registro de uma publicação abordando o tema da ecologia, por exemplo, isso mesmo depois da “Eco 92” que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro. A Igreja Batista, enquanto denominação que se expressa pelo seu órgão maior que é a Convenção Batista Brasileira (CBB), não publicou nada a respeito.

O resultado desse imaginário celestial foi à completa apatia da igreja concernente a sua participação política e o seu engajamento em assuntos de interesses da sociedade. O isolamento social, sustentado pela concep-ção pré-milenista da história, ocasionou no ostracismo da igreja. A partir do momento em que a história é concebida como algo preexistente, já dada, consumada, o que se pode esperar da igreja é a ideia de que as pessoas precisam se separar do mundo (lê-se dos temas deste) e aguardarem o retorno iminente de Jesus enquanto se purificam dos pecados desta terra (AZEVEDO, 2004, p. 296).

Mas nem tudo se configurou desta maneira. É preciso dizer também que sempre houve, em décadas passadas e hoje, outra ala dentro da Igreja Batista que pensou em questões e temas capitais para o País. A maior expressão disso foi à participação de pastores batistas com desta-que na denominação como David Gomes, Hélcio da Silva Lessa, Merval Rosa e Isaías da Silva Rego dentre outros, presentes na Conferência do Nordeste que ocorreu em 1962 na cidade de Recife, PE, mobilizando cristãos militantes das causas sociais no País. O impacto da Conferên-cia foi grande no universo protestante evangélico, mas, infelizmente, as condições do País a partir de 1964 não favoreceram os desdobramentos da Conferência entre as principais denominações. O contexto político do País, mergulhado na ditadura militar, desfavoreceu o engajamento de muitos teólogos no País e, até mesmo, no interior das igrejas por serem taxados, inconsequentemente, de marxistas.3 Os batistas, na Assembleia da Convenção Batista Brasileira em 1963 (Vitória, ES), ou seja, um ano depois da Conferência do Nordeste, produziu um texto conhecido como Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil (LOPES; RENDERS, 2010, p. 212-221) em que assumem os desafios sociais do País e os compromis-3 A Conferência do Nordeste completou recentemente 50 anos. Para comemorar a data

foi lançado em 2012 o livro As igrejas e as mudanças sociais: 50 anos da Conferência do Nordeste.

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sos para com o tema. O texto só foi divulgado em 1964 (!) pelo pastor Hélcio da Silva Lessa (1926-2009). Um assunto que, infelizmente, não logrou êxito entre os batistas brasileiros porque não provocou reflexão e mudanças teológicas nas camadas estruturais da denominação. Hoje, é possível ver a Aliança de Batistas do Brasil – órgão ecumênico com representatividade no Nordeste brasileiro, mas com associados em quase todo o território nacional –, que vem se notabilizando pelo diálogo com a sociedade e suas demandas, propondo, sugerindo e refletindo (Cf. também SILVA, 2013).

os batistas e a ecologiaOs batistas, devido ao seu sistema de governo eclesiástico, no qual

cada igreja é autônoma e democrática, têm dificuldade em desenvolver algo que chame a atenção do País para a questão ecológica. O que é frequente entre as comunidades, em algumas, é o trabalho de base, a reflexão bíblica e teológica com os membros da igreja em relação ao tema. Quando essa reflexão for possível em âmbito nacional, poderemos ver pessoas que, acostumadas a enxergarem a igreja apenas como “porta para o céu”, a entender que a vida é uma teia que envolve todas as áreas da existência e a espiritualidade pode, perfeitamente, ser empregada na militância por um bairro mais arborizado, por um rio mais limpo, por uma área verde mais preservada.

A igreja não está isenta da atividade econômica do sistema globa-lizado capitalista que visa meramente o lucro e não respeita, na maior parte das vezes, a diversidade da vida, a formação geográfica natural de um lugar, a nascente de um rio, a biodiversidade de uma mata. Por viver neste contexto ela precisa enxergar o meio ambiente como alvo da missão de Deus, por entender que a presença de Deus perpassa a criação e que o ser humano é parte integrante desse ecossistema.

Dois importantes eventos mobilizaram os batistas para a reflexão ecológica. O primeiro deles foi a 91ª Assembleia da Convenção Batista Brasileira que aconteceu na cidade de Niterói, RJ e o tema, muito opor-tuno, foi “Vida plena e meio ambiente”. O segundo foi a Rio+20 que teve participação da Aliança Batista Mundial.

No primeiro evento, foi criada a chamada Carta de Niterói (2011).

carta de niteróiNós, batistas brasileiros, reunidos na cidade de Niterói/RJ, em janeiro de 20111. CREMOS que o Universo e o ser humano foram criados por Deus para a sua glória; a vida e o Universo, em todos os sentidos, foram dados ao ser humano como um presente de Deus; o Universo foi dado ao ser humano para a sua morada, sustento e para o desen-volvimento de sua história de vida; o ser humano foi criado como um

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ser livre, mas, ao mesmo tempo, dependente da soberania de Deus; Deus delegou ao ser humano a gestão sábia, criativa e sustentável de sua vida e da natureza; depois da queda e rebeldia após a cria-ção, o ser humano desvirtuou-se dos propósitos divinos da criação e passou a gerir sem sabedoria a sua vida e a natureza, sem se preocupar com a sua sustentabilidade; que o Evangelho de Jesus Cristo traz não somente a restauração espiritual do ser humano, mas uma nova vida e esperança à humanidade; que os ideais do Evangelho de Jesus Cristo recuperam os ideais originais da criação reconciliando-a com o Criador. Neste primeiro ponto, a Carta reconhece a criação e o ser humano

como obra de Deus, portanto, a relação ser humano e natureza estão interligados por vontade divina. Chama atenção o aspecto da dependência do ser humano do planeta, sendo este indispensável para o seu desenvol-vimento e história de vida. Uma vez tomando consciência disso, cabe ao ser humano cuidar, preservar, e de maneira sábia elaborar mecanismos sustentáveis para a vida no planeta tirando dele, de forma responsável, o sustento da vida. No quesito salvação, o texto esclarece que o Evangelho não pode se ater apenas ao aspecto redentivo, mas ele abarca todas as dimensões do ser humano, mesmo confundindo, em algum momento, a aceitação meramente doutrinária do Evangelho com as realizações do ser humano no seu cotidiano.

2. Neste sentido, DECLARAMOS que ao longo da história, o ser humano ultrapassou os limites da gestão sustentável da natureza e que, por conta dessa atitude, o Planeta Terra está em perigo; já não é possível mais o ser humano continuar a ser um consumidor da realidade, da vida e do Planeta Terra; os dilemas ambientais e ecológicos não afetam apenas o cosmos, mas também a natureza humana e, neste sentido, o ser humano como um micro-cosmo também tem prejudicado a sua saúde física, mental-emocional, social e espiritual pelo inconsequente e imediatista estilo de vida adotado; os cristãos, em geral, têm se preocupado mais com a redenção espiritual do ser humano, nem sempre considerando o ser humano e a vida em todos os seus aspectos.

A Carta assume a negligência humana para com o meio ambiente e denuncia a exploração predatória do planeta. A forma de vida adotada pela sociedade contemporânea vem afetando a natureza e prejudicando a vida humana. Quando o consumo se torna o único meio de entender a vida, o planeta sofre com as consequências dessa desenfreada busca por bens materiais.

3. Por fim, CONCLAMAMOS que os cristãos de toda a Terra busquem compreender que o Evangelho todo é para todo o ser humano e para o ser

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humano todo, incluindo a sustentabilidade da vida humana e da natureza; cada ser humano assuma o compromisso de cuidar com sabedoria, criativi-dade e sustentabilidade de sua vida, de seus relacionamentos e da natureza; os empresários assumam o compromisso de participar da preservação do ambiente em seus mais variados aspectos – social, ecológico, distribuição justa de bens e oportunidades para todos; os empreendimentos imobiliários sejam planejados e executados de modo a preservar o meio ambiente e a transformar o Planeta Terra numa habitação segura para a vida humana; que a educação ambiental e para a vida seja incluída na formação do sujeito histórico desde a sua infância em nossa Nação. As autoridades governamentais, em todos os níveis, lutem contra a inépcia, a corrupção, o imediatismo, estabelecendo legislação sábia, séria e res-peitosa à vida humana, à preservação e ocupação do meio ambiente; as autoridades assumam com seriedade o papel de agente fiscalizador do uso sustentável da natureza de modo a preservar também a vida humana, evitan-do assim os desastres ambientais como os que ultimamente temos sofrido. Tudo isto para que conquistemos a VIDA PLENA E O MEIO AMBIENTE. A Comissão da Carta de Niterói foi composta pelo pastor Lourenço

Stelio Rega, sua vez Diretor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo com a função de relator, pelo pastor Norton Riker Lages, sua vez Diretor do Seminário Teológico Batista Equatorial, Belém, PA e por Mere Márcia Prado Bello, ministra de música da Igreja Batista em Itacibá, Cariacica, ES. A Carta termina conclamando a um compromisso que leve em con-sideração as debilidades do nosso planeta. Para isso ser possível, é preciso viabilizar políticas públicas que de fato assumam os desafios de uma economia sustentável e, ao mesmo tempo, fiscalize com mais rigor o uso dos recursos naturais. Além disso, a Carta alerta que uma educação ambiental começa na infância e que crianças engajadas ecologicamente serão, no futuro, pessoas adultas com consciência ambiental.

A Carta de Niterói estabelece marcos para uma reflexão teológica, sendo o primeiro e o segundo ponto da Carta. No terceiro, ela aponta mediações pastorais para que a comunidade possa contribuir com a pre-servação do meio ambiente. Foi uma importante iniciativa dos batistas, principalmente quando coloca a questão do Evangelho de Jesus Cristo como algo que envolve a totalidade do ser humano e não apenas a sua “alma”. Com isso, a Carta aborda a questão da integralidade da cristã e do cristão com a sociedade e com o meio ambiente.

Outro evento com participação batista que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, RJ em 2012 foi a Rio+20. Organizado pela ONU, o evento contou com delegações estrangeiras, mas também com a ausência de no-mes importantes como o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Sua presença era esperada por ser o presidente do país que, além de não ter assinado o Protocolo de Quioto, também é contra a sua renovação.

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Mas o assunto na Rio+20 foi o desenvolvimento sustentável e a Organização das Nações Unidas procurou dar um rumo para o Planeta chamando todos para o diálogo a fim de traçar metas, abrir caminhos para um mundo no qual o meio ambiente seja respeitado e valorizado como fundamento da vida. Houve conferências importantes como a do teólogo Leonardo Boff, hoje o intelectual que mais reflete sobre o tema tendo inúmeras obras publicadas sobre o assunto, e Marina Silva mili-tante do clima no País, mas que teve dificuldades com o Governo Lula quando ministra do meio ambiente. Além desses dois, o pastor batista Dr. Raimundo Barreto (2012), ex-aluno do Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil e atual Diretor da Área de Justiça e Liberdade da Aliança Batista Mundial, falou no Fórum Rio+20 enfocando a bandeira que os batistas sempre tremularam da liberdade religiosa e o respeito pelos direitos humanos. Barreto abordou o tema “Sustentabilidade: a perspectiva da ONU e das ONGs”, além de organizar um painel de debates, com o Conselho Geral da Igreja Metodista Unida, Conselho Metodista Mundial e várias outras organizações, com o tema “Dimensões éticas da sustentabilidade: perspectivas religiosas e éticas”.

Um dos pontos mais contundentes de sua fala, Barreto lembrou que durante muito tempo muitos batistas confundiram a separação entre Igreja e Estado com separação entre Igreja e sociedade. Lembra ainda que os batistas foram chamados não para a alienação social e política, mas, ao contrário, serem atuantes na sociedade, como Igreja. Este tem sido o trabalho da Aliança Batista Mundial, desenvolver um papel profético junto às instituições nacionais e internacionais, no sentido de levantar questões sobre práticas que desvirtuam a justiça nas diversas sociedades mundiais.

Sobre a Rio+20, a Convenção Batista Brasileira (CBB) deu o de-vido destaque ao evento e promoveu, junto aos meios disponíveis de comunicação, uma programação de incentivo e reflexão sobre o tema do meio ambiente, disponibilizando recursos visuais e textos para as igrejas serem direcionadas para o tema. Além disso, a CBB (2011) criou um blog, “Vida e o Meio Ambiente”, em que postagens sobre a ecologia estivessem disponíveis.

Com esses dois eventos, a Carta de Niterói e a participação da Aliança Batista Mundial por intermédio do Pr. Dr. Raimundo Barreto, ficou evidente uma nova direção na eclesiologia e, até mesmo, no tema da escatologia. Quando a CBB, na sua cúpula denominacional, percebe a importância do tema, reflete e ainda oferece subsídios para que as igre-jas assim o façam também, ela abre espaço para uma nova concepção eclesiológica, ou seja, a Igreja não é meramente uma sala de espera para o céu, ela é chamada para fomentar o Reino de Deus aqui. Para isso precisa se envolver com questões que ocupam a agenda da sociedade

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e uma pauta que está sendo debatida constantemente é o tema ecológi-co. Uma Igreja engajada com o meio ambiente consegue conceber uma espiritualidade integral que una ser humano e natureza.

Além da eclesiologia, foram dados novos ares ao tema da escato-logia. Passa a ser entendido de que o planeta é criação de Deus e por este fato é preciso refletir teologicamente sobre o seu futuro, não mais de destruição, mas de recriação. Com a preocupação ambiental, não é mais concebível falar em uma escatologia que aguarda o fim iminente de todas as coisas como se o planeta fosse um acidente da criação de Deus. Com o tema da ecologia, surge uma nova concepção escatológica que vem corrigir a maneira pré-milenista de interpretar o fim de todas as coisas. “Surge uma escatologia da corresponsabilidade para com o Pla-neta. É uma escatologia que desconstrói uma escatologia inadequada” (MOLTMANN; BASTOS, 2011, p. 158).

Considerações finais

“Quando a última árvore for abatida, quando o último rio for envenenado, quando o último peixe

for capturado, somente então nos daremos conta de que não se pode comer dinheiro” –

Cacique norte-americano Sattel apud Boff (1999, p. 137).

O clima pede socorro, e os mordomos de Deus na criação ignoram

esta tarefa quando discute sobre tantas outras coisas e esquecem o que está aí, a vida e suas mazelas causadas, na sua maioria, pela ganância humana. A narrativa bíblica da criação apresenta a superação de tensões, humanidade-natureza e oferece caminhos para um viver harmonizado com Deus, com o outro e com a natureza. A criação é fruto do amor de Deus. Com o ato de criar Deus permanece junto a sua criação, sustentando e se relacionando com toda a obra criada. Sendo assim, a criação está toda interligada, numa relação de interdependência, Deus-Terra-Humanidade.

Aos batistas, marcados pela sua história com valores tão insignes como a liberdade e os diretos humanos, promover meios, ainda mais efetivos, para uma participação mais contundente dos cristãos no tema ecologia. Se antes a noção de eclesiologia funcionou como um impedi-mento para uma militância em assuntos importantes da sociedade, hoje, pelos exemplos que a própria Convenção Batista Brasileira (Carta de Niterói) e a Aliança Batista Mundial (Rio+20) deram em relação ao tema, é possível pensar a participação da Igreja neste importante debate que é a ecologia. Com uma escatologia saudável, no sentido de fazer com

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que a Igreja se sinta corresponsável pelo futuro da criação, novos céus e novas terras ainda será o alvo da missão da Igreja.

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Submetido em: 8-9-2013Aceito em: 3-10-2013

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A religião e a educação: por uma consciência planetária pela vida

Religion and education: for a planetary consciousness for life

La religión y la educación: por uma consciência planetária por la vida

Lázara Divina CoelhoWellington Cardoso de Oliveira

RESUMOO tema deste artigo é a consciência planetária pela vida considerando as preo-cupações ambientais que afligem a humanidade e o planeta, e as consequentes mobilizações no âmbito da religião e da educação. Parte do surgimento do mundo como um novo objeto e busca resposta na concepção da religião como fornece-dora de sentido para uma consciência planetária pela vida e da educação como a impressora desses valores em todos os níveis da vida do educando. O texto passa pelo conceito de consciência planetária, detecta o problema da falta de consciência e da necessidade decorrente para, então, encontrar na educação seu lugar de consciência planetária.Palavras-chave: Desequilíbrio ecológico; religião; educação; consciência pla-netária.

ABSTRACTThe topic of this article is the planetary consciousness for life considering envi-ronmental concerns that plague humanity and the planet, and the consequent mobilization within the religion and education. Part of the rise in the world as a new object search and response in the design of religion as providing direction for a planetary consciousness for life and Education as the printer of these va-lues at all levels of the life of the student. The text is replaced by the concept of planetary consciousness, detects the problem of lack of awareness and the need arising to, then, find its place in the education of planetary consciousness.Keywords: Ecological imbalance; religion; education; planetary consciousness.

RESUMENEl tema de este artículo es la conciencia planetaria em favor de la vida teniendo en cuenta los problemas ambientales que afectan a la Humanidad y al Planeta, y las consiguientes movilizaciones dentro de la religión y de la educación. Parte del aparecimiento del mundo como un nuevo objeto y busca una respuesta en la concepción de la religión como un proveedor de sentido para una conciencia planetaria en favor de la vida y la educación como la impresora de estos valores en todos los niveles de la vida del alumno. El texto camina por el concepto de conciencia planetaria, detecta el problema de la falta de conciencia y la necesidad que surge a continuación, encontrar su lugar en la formación de la conciencia planetaria.Palabras clave: Desequilibrio ecológico; religión; educación; conciencia pla-netaria.

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IntroduçãoEsse é um artigo sobre consciência planetária pela vida entendida

como conjunto de ideias e valores que subsidiam as ações referentes à relação ser humano-natureza e passa pelo entendimento e sentimento de pertença mútua que une esse ser humano à sua primeira e última pátria, a Terra. Em outras palavras, consciência planetária é a relação entre o ser humano e o ambiente complexo e interdependente que nutre a vida do planeta Terra (BOFF, 2009; MORIN, 2000).

O problema em causa é a existência do que Jacques Levy (apud MORIN, 2000, p. 64) apontou como sendo “[...] o surgimento de um objeto novo, o mundo como tal” e a inconsciência de sua realidade. Este pro-blema vital, planetário, é um todo que se nutre de ingredientes múltiplos, conflitivos, nascidos de crises; ele os engloba, ultrapassa-os e nutre-os de volta, mas dele não se tem consciência, pois sua lógica se baseia em elementos inconscientes de consumo.

Tem o objetivo de discutir a contribuição da religião e da educação na afirmação dessa consciência. Seu texto parte da concepção de que a religião, na perspectiva de Peter Berger (1985), é produtora de sentido. Sendo assim, ela contribui para que os seres humanos tenham uma visão pautada na concepção de um mundo estruturado numa lógica racional e religiosa; e essa visão religiosa de mundo perpassa as fronteiras científicas.

Discute o lugar da educação nessa urgência a partir dos conceitos de condição humana para aprender, pelo antropólogo, sociólogo e filósofo francês Edgar Morin, na obra Os sete saberes necessários à educação do futuro (2000). Outro referencial teórico proposto encontra-se nos conceitos de religião como produtora de sentido, oferecidos pelo sociólogo e teólogo austro-americano Peter Berger em sua obra O dossel sagrado (1985).

Enfim, o artigo parte da especificação da dimensão do problema para, então, tratar da necessidade de uma resposta ao problema e apresentar a seleção de dois entes envolvidos nessa resposta: a religião e a educação.

1. Um problema planetárioNa perspectiva bíblica, o o ser humano foi criado da Terra (Gn 2.7) e

responsabilizado por seu cuidado e cultivo (Gn 1.28-30; 2.15). Contudo, esse homem vê a natureza não como o objeto de seu cuidado, mas como a fonte de sua riqueza; vê a Terra, não como a pátria primeira e última, mas como seu objeto inesgotável de exploração; ele a vê como o lugar para dominar, vencer e não como o lugar onde está e vive.

Nessa perspectiva, o filósofo francês Edgar Morin (2000) faz uma revisão histórica da era planetária. Retroage ao início da história humana, quando se deu a chamada diáspora planetária da Humanidade, pela qual o ser humano foi disperso pelo planeta afetando, assim, todos os conti-

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nentes na medida em que levou à diversidade linguística, cultural, entre outros, bem como aos “[...] destinos, fontes de inovação e de criação em todos os domínios” (2000, p. 65).

Contudo, esclarece que essa diáspora não provocou qualquer cisão genética, pois todos os seres humanos, de todos os tempos, lugares, etnias, classe social e religiosa vêm da mesma espécie e trazem “[...] os mesmos caracteres fundamentais da humanidade [sic]” (MORIN, 2000, p. 65). Essa solidariedade genética da raça humana é essencial na fun-damentação dos direitos humanos que subsidiam a necessidade de uma consciência planetária pela vida, especialmente pela vida humana.

Depois de passar pelos vários períodos, continua Morin (2000), o ser humano chega ao século 20 com suas guerras mundiais, crises econômicas, expansão dos meios de comunicação e transportes, entre outros.. Neste século, “O mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como um todo, está cada vez mais presente em cada uma de suas partes.” Desse modo, cada ser humano “[...] traz em si, sem saber, o planeta inteiro. A mundialização é ao mesmo tempo evidente, subconsciente e onipresen-te”, além de unificadora e conflituosa em sua natureza. “O mundo, cada vez mais, torna-se uno, mas torna-se, ao mesmo tempo, cada vez mais dividido” (MORIN, 2000, p. 67-69). Antagonizam-se nações, religiões, classes sociais, sistemas de governo, entre outros.

Desse modo, o século 20 tanto criou como dividiu um tecido plane-tário único deixando seus fragmentos dispersos como prova da situação criada e vivida. Nele emerge, quase que do anonimato, um dos grandes perigos: a morte ecológica. Trata-se de uma aliança mortífera, “[...] gélida, anônima, [que] vem do âmago da racionalização, que só conhece o cál-culo e ignora o indivíduo, seu corpo, seus sentimentos, sua alma, e que multiplica o poderio da morte e da servidão técnico-industriais” (MORIN, 2000, p. 70). Ele revisa:

Desde os anos 70 [sic], descobrimos que os dejetos, as emanações, as exalações de nosso desenvolvimento técnico-industrial urbano degradam a biosfera e ameaçam envenenar irremediavelmente o meio vivo ao qual pertencemos: a dominação desenfreada da natureza pela técnica conduz a humanidade [sic] ao suicídio (MORIN, 2000, p. 71). O uso indiscriminado dos recursos do planeta e sua consequente

degradação torna a vida cada vez mais insustentável principalmente quando se observa que a população encontra-se praticamente refém de seus próprios erros. Isso leva à necessidade de uma consciência humana pela preservação da natureza; especificamente, isso leva à urgência de uma consciência humana pela preservação da vida.

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2. Uma necessidade planetáriaDisso decorre que o ser humano carece da noção elementar de que

pertence à Terra na medida pois é seu habitat. Carece da noção do estar aqui no planeta Terra. Precisa compreender que “[...] todas as partes do mundo se tornaram solidárias, sem, contudo, ocultar as opressões e a do-minação que devastaram a Humanidade e que ainda não desapareceram” (MORIN, 2000, p. 15, 76); e que estar aqui se aprende na medida em que o ser humano é, vive, divide e comunica como humano do planeta Terra, não apenas como pertencente a uma cultura, mas como um ser terreno.

Além desta noção de estar na Terra, torna-se necessário compreen-der que o espaço onde vive é um bem comum. Assim sendo, esse bem comum precisa ser bem utilizado a fim de que todos tenham condições de existência e de consequente permanência no seu habitat natural.

Nesse ponto, Morin (2000, p. 76) indica que a consciência a ser inscrita em cada cidadão é múltipla: antropológica, “[...] que reconhece a unidade na diversidade”; ecológica, que trata do “[...] habitar com todos os seres mortais, a mesma esfera viva (biosfera)”; cívica terrena, que lida com a “[...] responsabilidade e a solidariedade para com os filhos da terra”; e espiritual da condição humana, que se refere ao “[...] exercício complexo do pensamento” que dá condições para a autocrítica humana e a compreensão mútua.

Essa consciência está no limiar do despertar da solidariedade e ci-dadania, segundo o Manual de Educação para o Consumo Sustentável 1:

É quando a noção de direitos e deveres transcende meros interesses indi-viduais para traduzir uma nova visão de mundo, que reflete a responsabili-dade de cada pessoa na construção de valores coletivos plenos, plurais e democráticos que assegurem o bem-estar humano e o respeito a todas as formas de vida em suas mais variadas manifestações (2005, p. 7).

Dentre esses valores está o direito que o ser humano tem a um meio ambiente saudável e seu igual, um “[...] dever ético, moral e político de preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (MANUAL, 2005, p. 7). A consolidação desse princípio é um ato de cidadania e uma condição essencial para a construção de uma sociedade sustentável no Brasil. Essa construção passa pelo reconhecimento da necessidade de preservação, além da possibilidade de percepção do outro.

Nessa perspectiva Morin (2000, p. 114) declara que “[...] enquanto a espécie humana continua sua aventura sob a ameaça de auto-destruição, o imperativo tornou-se salvar a Humanidade, realizando-a”. Essa necessi-

1 Considerado efetivo instrumento de política pública construída, conduzida e coordenada pelos atores governamentais, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Educação do Brasil.

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dade deve levar a uma consciência de pertença mútua que una os seres humanos em favor de sua primeira e última pátria, a Terra; e isso se faz pelo processo de conscientização pelo qual os indivíduos passam a com-preender sua realidade como um todo (sobrevivência individual), e cada um a cuidar mais da natureza pensando no todo (consciência coletiva).

Salvar a Humanidade, na perspectiva de Morin, está em promover melhorias possíveis tratando do problema dimensional para a civilização de cada ser humano, suas sociedades e a Terra. No caso, deveria haver uma conjunção de interesses com a “[...] política do homem, a política de civilização, a reforma do pensamento, a antropo-ética, o verdadeiro humanismo, a consciência da Terra-Pátria” (2000, p. 111).

Portanto, há a necessidade de uma consciência planetária com base na consciência da Terra-Pátria como fundamento dessa nova consciên-cia. Há, também, a necessidade de uma conjunção de interesses, como sugere Edgar Morin (2000). Tais interesses deixam de ser meramente individualistas, para se tornarem interesses comuns e coletivos, uma vez que refletirão no bem-estar comum e na vivência solidária no planeta.

3. Uma mobilização planetária A busca de uma consciência planetária pela vida, isto é, pela

Humanidade, será feita sob dois ângulos: a mobilização religiosa, que empresta sentido ao ser humano como um ser terreno, dando significado para o mundo e para vida no mundo; e a mobilização educacional, que ensina os valores planetários e que consequentemente redundam em consciência ambiental. São dois atos de salvação da Humanidade: no primeiro ato, desenvolvem-se os valores; no segundo, ensinam-nos.

3.1. A mobilização religiosa e a produção de uma consciência planetáriaA religião2 sempre desempenhou um papel de destaque na vida dos

indivíduos, especialmente quanto à produção de uma cosmovisão do que seja o mundo. Dessa forma, ela se configura como importante instrumen-to de organização e sentido deste mundo na medida em que orienta as pessoas para a vida no além e também a sua própria forma de viver e se organizar neste mundo.

Fornece contribuição para uma consciência planetária em favor da preservação ambiental na medida em que empresta ao ser humano valores compartilháveis. Esses valores advêm da cosmovisão pertinente a cada religião que, em sua função de cosmificar de maneira sagrada,

2 Os articulistas consideram que, apesar da secularização, a religiosidade não desapareceu e a crescente interdependência entre as várias partes do mundo, povos, culturas etc. se manifesta, inclusive, no plano religioso provocando a redescoberta do sobrenatural e, paradoxalmente, o chamado trânsito religioso (BERGER, 1996; COELHO, 2009; MORIN, 2005); reconhecem ainda uma maior consciência da pluralidade das religiões do planeta.

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define o comportamento possível em todos os aspectos da vida individual e comunitária de seus respectivos grupos sociais.

Assim, a religião se fundamenta dentro de uma lógica tão racional quanto a científica, pois parte de uma construção dotada de sentidos. Nesta perspectiva, Durkheim aponta que até a ciência tem origens re-ligiosas e que, durante muito tempo, as regras morais e do direito não se distinguiam das prescrições ritualísticas. Nesse sentido, destaca que as propostas das instituições sociais, ou a maioria delas, nasceram da religião. Sendo assim, “[...] as forças religiosas são [...] forças humanas, forças morais” (DURKHEIM, 2008, p. 494) na medida em que se objeti-vam no cotidiano das pessoas. Elas orientam e dão sentido de vida aos indivíduos no seu cotidiano.

A religião, então, é mediadora da ação do ser humano, tanto sobre si quanto sobre seu meio sociocultural. Constitui-se como elemento funda-mental da consciência e da identidade de seu grupo social, influenciando o desenvolvimento de determinada sociedade e desempenhando funções sociais. Além disso, os valores ambientais e planetários podem ser transmi-tidos e mantidos pelos fiéis religiosos conferindo-lhes, inclusive, sentido para seus enfrentamentos vividos coletivamente (BERGER, 1985; LEMOS, 2007).

A discussão sobre o papel da religião nessa construção desenvolve--se, a seguir, a partir do Cristianismo, sistema religioso de tradição judaico-cristã cuja cosmovisão parte das Escrituras Sagradas, a Bíblia; é uma religião que dá dignidade à criação material, pois ensina que “[...] o universo físico é bom e que reflete a glória do seu Criador (Sl 19.1; 1Tm 4.4)” (GEISLER, 2010, p. 382) e, claramente, prepõe sua posição com o tema “[...] o homem é guardião da criação e parceiro de Deus nessa obra” (FERREIRA; MYAT, 2007, p. 293).

3.1.1 A ecoteologiA

O termo ecoteologia é usado, aqui, no sentido estrito apontado por sua etimologia: ecologia (do grego oikos + logia), estudo sobre o lugar onde vivemos e theologia (do grego Theos + logia), estudo sobre Deus. Refere-se, portanto, estritamente ao estudo do meio ambiente da perspectiva teológica ou à teologia cristã da criação conforme narrada no Gênesis, e suas variadas inter-relações. Isso remete a abordagem ecológica à perspectiva bíblica.

A Bíblia é qualificada como Escrituras Sagradas do Judaísmo (Antigo Testamento) e do Cristianismo (Antigo e Novo Testamentos). A relação de vida ou morte entre o ser humano e a natureza encontra-se entranhada nesse livro e a teologia bíblica traz à luz a questão. Sendo assim, não se trata meramente de um tema pescado na literatura ecológica, nem de um mero termo captado dos noticiários sobre meio ambiente; trata-se, de fato, de uma ecologia cristã ou, em linguagem mais recente, de ecoteologia.

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Esse tema desenvolve-se, então, no âmbito da Teologia Bíblica a partir de uma visão de mundo teista.3 Isso significa que a concepção cristã do meio ambiente e da responsabilidade humana para com ele se desenvolve a partir da teologia da criação (doutrina da criação) do cosmos (mundo) cuja base são seus pressupostos:

a) o mundo é uma criação de Deus e sua propriedade, e está sob gerenciamento humano; b) o mundo pertence a Deus e, por isso, o ge-renciamento humano é fundamentado nele;

c) o mundo é um reflexo da glória de Deus e, por isso, Deus é per-cebido mediante as coisas criadas;

d) o mundo é sustentado e funciona pela ação de Deus e, por isso, interferências ecológicas nas operações divinas são atos de presunção com graves implicações éticas;

e) o mundo encontra-se debaixo de uma aliança com Deus e, sendo assim, o ser humano deve preservar todo tipo de ser vivo que Deus criou bem como cuidar deles e protegê-los;

f) o ser humano é o guardião do meio ambiente e, por isso, tem vá-rias obrigações: multiplicar-se e enchê-lo, sujeitá-lo e dominá-lo, cultivá-lo e guardá-lo.

Quanto à obrigação, como guardião do meio ambiente, de multipli-car-se e encher o mundo, refere-se à necessidade de estar no mundo, multiplicando-se como espécie humana à imagem de Deus tipificando a presença do Criador em seu povoamento; implícito nesse mandamento encontra-se a atenção que deve haver com a subsistência humana em termos de manter o equilíbrio entre plantas e animais necessários à sub-sistência. Quanto à segunda, refere-se ao domínio do ser humano sobre o restante da criação subentendendo-se que esse é colocado acima da criação e não como seu igual ou subserviente. E, quanto à terceira obri-gação, refere-se à preservação, isto é, à obrigação humana de trabalhar pelo mundo e cuidar dele (GEISLER, 2010, p. 382-386, passim).

3.2.1. os fundAmentos dA ecoteologiA

A teologia da criação, por sua vez, tem sua base na revelação de Deus dentro de uma estrutura pactual presente na Bíblia. Van Groningen situa a questão no antigo pacto que

... informa-nos a respeito do soberano: seu domínio, seu reino, seus vice--regentes [sic], seus preceitos para eles sobre como devem servir sob seu reinado, suas maravilhosas provisões, suas promessas quanto ao futuro e as ameaças, no caso de seus vice-regentes [sic] persistirem na infidelidade e rebelião (VAN GRONINGEN, 2003, p. 60-61).

3 O teísmo distingue-se das visões materialista e panteísta quanto ao tema.

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A Humanidade, como vice-gerente de Deus em favor de sua cria-ção, recebeu mandatos específicos que definem seus deveres pactuais e enfatizam seu caráter e posição real: o mandato espiritual, o mandato social e o mandato cultural. Este acentua sua relação com o cosmos. Por ele, a Humanidade deveria governar (Gn 1.26; rādâ) ou exercer domínio sobre os animais e a terra (v. 26; kôl-hā`āres).

Era para o homem e a mulher exercitarem suas prerrogativas re-ais governando sobre o cosmos, desenvolvendo-o e simultaneamente mantendo-o. Todas as formas de vida na terra foram, de forma específi-ca, colocadas sob a supervisão dos vice-gerentes humanos. Com essa responsabilidade veio o privilégio de usar as plantas, seus frutos e sua semente para manter a vida e a energia para realizar as tarefas reais (VAN GRONINGEN, 2002, p. 90).

Quanto às ordens para ser frutífero (pārâ), multiplicar-se (rādâ) e en-cher (mālē`), conferem significado ao termo governar (v. 28). Um exemplo do exercício desse mandato real encontra-se no fato de Adão dar nome aos animais (Gn 2.19).

Outro aspecto da revelação deve ser considerado em relação ao tema: seu propósito. Apologetas como Van Groningen (2002, p. 21-32) e Van Til (1953, p. 255-293) afirmam que o Deus que se revela nas Es-crituras revela-se também no reino cósmico, mas não se torna parte do cosmos (BOFF, 1995) e que essa revelação tem um propósito (Sl 19.1-7; Rm 1.20-23): levar o homem a reconhecer a Deus como o Criador (Sl 8, 19; Rm 1-2) e a perceber que ele está ligado à criação e o homem, como ser criado, ao restante da criação de Deus.

3.1.3. A responsAbilidAde AmbientAl impostA pelA ecoteologiA

Os pontos decorrentes são óbvios: homens e mulheres são capaci-tados a “[...] conhecer, entender e apreciar como divinamente designados seu lar e seu lugar de trabalho, culto e lazer”; que foram colocados “[...] onde poderiam viver, trabalhar, prestar culto e se divertir em comunhão viva com ele, um com o outro e com todos os outros aspectos do reino cósmico”, completando a comunicação bíblica de que “[...] são parte do cosmos criado, que elas ´se encaixam´ nele, que podem viver com se-gurança, contentamento e alegria no reino cósmico’; e, finalmente, que “[...] imprime na humanidade [sic] um senso de responsabilidade”, pois trata-se do lar que precisa ser cuidado (VAN GRONINGEN, 2002, p. 68) ou, na linguagem de Morin (2000), da pátria que precisa ser protegida. Além disso, a imensidão em todos os sentidos do cosmos criado (exten-são, beleza, poder) conforme revelado desde sua criação, “[...] desperta um senso de admiração, reverência e temor nos corações e mentes das pessoas.” E, como afirma, Van Groningen, “[...] por mais influenciadas

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que estejam pelo pecado, as pessoas compreendem, por natureza, sua responsabilidade” (2002, p. 68).

Decorre disso que a Terra é o lar (pátria) designado por Deus para ser a moradia do ser humano, que esse ser humano foi encaixado no cosmos pelo próprio Deus e isso imprime na Humanidade um senso de responsabilidade e que, mesmo que esse ser humano esteja demasiado influenciado pelo pecado, é capaz de compreender, por natureza, sua responsabilidade cósmica.

Em conclusão, afirma-se que o ser humano foi colocado, por meio do mandato cultural, em relação singular com o cosmos. Isso não significa, no entanto, que tenha lhe sido dada a permissão para arrogar para si o direito de despojar o meio ambiente natural, seja por meio de omissão, ignorando--o, inaptidão, usando-o de forma errada ou agressão, abusando dele.

Assim, o Cristianismo provê, pelo mandato cultural, uma base pactual suficiente para interesse real e profundo pela crise ecológica bem como para esforços práticos em favor da proteção ambiental; não compactua com a omissão, a agressão e nem mesmo a inaptidão em relação ao cosmos.

Logo, a teologia cristã da criação aponta para a responsabilidade que o ser humano tem para com o meio ambiente e o compromisso pac-tual de assumir essa responsabilidade. O conceito de sujeitar a terra (Gn 1.28) é compreendido no sentido positivo de cuidado, proteção; a criação é vista, no Antigo Testamento, como uma posse da Humanidade, o que significa dizer que foi confiada aos seus cuidados e manutenção. Enfim, da narrativa da criação (Gn 1-2) emergem quatro princípios ecológicos:

(1) O ‘princípio da conservação da terra’: assim como o criador cuida da Humanidade e a mantém, a Humanidade, por sua vez, deve cuidar da criação do criador e mantê-la.

(2) O ‘princípio do sábado’: deve-se permitir que a criação goze de períodos de recuperação em relação ao uso humano de seus recursos.

(3) O princípio ‘frutífero’: a fecundidade da criação deve ser apro-veitada e não destruída.

(4) O ‘princípio da realização e dos limites’: a Humanidade precisa conhecer seus limites na relação com a criação e respeitá-los (MCGRATH, 2005, p. 293).

Portanto, no primeiro ato, o Cristianismo dá ao ser humano a digni-dade de vice-gerente sobre a criação e à criação o status de ser servida e guardada por ele. Oferece, também, princípios ecológicos para nortear a vida no mundo de Deus. Segue-se o segundo ato, no qual a educação dá a sua contribuição.

90 Lázara Divina CoeLho; Wellington CarDoso De oLiveira: a religião e a educação

3.2. A mobilização educacionalOs valores defendidos pelo Cristianismo sobre o meio ambiente che-

gam ao cidadão por meio da educação que os processa, internalizando-os; essa área da educação é caracterizada como Educação Ambiental. De acordo com a Lei n. 9795/1999, Art. 1º, a Educação Ambiental refere-se aos

[...] processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências vol-tadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade.

Essa ação permanente pela qual a comunidade educativa desenvol-ve valores e atitudes promove, no educando, as habilidades e atitudes necessárias para uma transformação superadora da realidade global e do tipo de relações que são estabelecidos entre o ser humano e a natureza em seus aspectos naturais e sociais.

Patrícia Mousinho, em Meio Ambiente no Século 21 (2003), diz que a Educação Ambiental é um

Processo em que se busca despertar a preocupação individual e coletiva para a questão ambiental, garantindo o acesso à informação em linguagem adequada, contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência crítica e estimulando o enfrentamento das questões ambientais e sociais. [...] procu-rando trabalhar não apenas a mudança cultural, mas também a transforma-ção social, assumindo a crise ambiental como uma questão ética e política.

Trata-se, portanto, do segundo ato de uma operação em processo para salvar a Humanidade, realizando-a; e isso exige uma mobilização planetária que passa pelo processo de sua própria conscientização. Os movimentos pró-humanidade têm-se articulado em favor de uma consciên-cia humana que seja antropológica, cívica, terrena, ecológica e espiritual da condição humana; um movimento que transforme a realidade social, tornando os indivíduos livres e autônomos, isto é, conscientes de sua situação frente ao mundo.

Como dito alhures, um problema planetário é um problema da huma-nidade. Na verdade, a realidade do Planeta cria a necessidade da huma-nidade mobilizar-se para fazer algo, uma educação que leve o educando além de meras discussões. Talvez a maior prova dessa mobilização e de sua urgência, encontra-se no documento Compromisso de Dakar, originado no Fórum Mundial de Educação na cidade de Dakar, em 2000. Nele ficou registrado que é preciso educar para a sustentabilidade universal, “[...] um meio indispensável para participar nos sistemas sociais e econômicos do século XXI afetados pela globalização”.

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Já no Fórum Internacional de Organizações Não-Governamentais e Movimentos Sociais realizado no Brasil, conhecido como Eco 92, discutiu-se o tema fazendo surgir o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global,4 assim introduzido:

Nós signatários [...], reconhecemos o papel central da educação na formação de valores e na ação social. Nos comprometemos com o processo educativo transformador através do envolvimento pessoal, de nossas comunidades e nações para criar sociedades sustentáveis e eqüitativas (TRATADO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL 1992).

Hoje, a Educação para a Sustentabilidade Ambiental é reforçada pe-las Nações Unidas, por meio da Resolução 57/254 que declara a década 2005-2015 a Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável.

Cabe uma observação sobre a relevância desse entendimento. O termo educar deve referir-se a ensinar valores que fundamentem a vida do educando na condição de cidadão do planeta Terra. É mais que transmitir informações sobre o planeta, comunicar verdades sobre os biomas ou dar instruções sobre como agir na esfera humana. Educar para... deve ser entendido, antes de tudo, como ensinar valores planetários, cultivá-los, ampliá-los em todos os sentidos. Isso implica em começar pela educação para... e continuar educando para... a preservação da vida!

Na prática isso significa a tão sonhada autonomia libertária defendida por Paulo Freire, na qual os indivíduos teriam consciência de sua situação frente ao mundo. Esse processo de conscientização produziria indivíduos autônomos e capazes de fazerem uma leitura crítica de mundo.

No Brasil, o objetivo de educar para o meio ambiente acontece por meio do órgão gestor da Política Nacional de Educação Ambiental, integra-da pela Diretoria de Educação Ambiental do Ministério do Meio Ambiente (DEA/MMA) e pela Coordenação-Geral de Educação Ambiental (COEA/MEC). Para tanto, o Ministério da Educação, na qualidade de gestor e indutor de políticas públicas criou a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) com a responsabilidade de, entre outras, promover a valorização da riqueza de nossa diversidade ambiental (incluindo-se as diversidades étnica e cultural).

Além das politicas implantadas por esses órgãos governamentais, inúmeras outras instituições (corporativas, sociais, religiosas etc.) atuam no processo numa área conhecida como educação para o desenvolvimento sustentável, ou seja, um mundo que seja possível para as futuras gerações.

4 Esse tratado inspirou a Política Nacional de Educação Ambiental, que legisla sobre o tema desde 1999, e influencia os programas de responsabilidade socioambiental de empresas e instituições como a Itaipu Binacional.

92 Lázara Divina CoeLho; Wellington CarDoso De oLiveira: a religião e a educação

Para dar conta desses objetivos, algumas leis foram sancionadas: a Lei n. 9795/1999, dispondo sobre a Educação Ambiental e a Política Nacional de Educação Ambiental, e o Decreto n. 4281/2002, tornando a Educação Ambiental obrigatória em instituições educacionais públicas e privadas dos sistemas de ensino em todo o país.

A Lei n. 9795/1999, Art. 1º, define Educação Ambiental como:

[...] os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências vol-tadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade.

E o Decreto n. 4281/2002, em seu Art. 5º, afirma que a Educação Ambiental deve ser incluída em todos os níveis e modalidades de ensino, recomendando-se a observância dos Parâmetros e as Diretrizes Curriculares Nacionais observando-se os dois incisos:

I - a integração da educação ambiental às disciplinas de modo transversal, contínuo e permanente; e II - a adequação dos programas já vigentes de formação continuada de educadores.

A educação, neste sentido, oportuniza uma retomada da consciência ao criar mecanismos que direcionam para uma formação educacional de valorização e respeito ao planeta. Essa formação contempla todas as dimensões educacionais. Trata-se de um movimento que deve educar para a transformação da realidade social, tornando os indivíduos livres e autônomos, isto é, conscientes de sua situação e responsabilidade no mundo em que vive. Desse segundo ato, o processo de salvamento da humanidade caminha para seu último momento, aquele em que a própria sociedade mobiliza-se mundialmente por si mesma por meio de uma mo-bilização por sua pátria, a Terra.

Considerações finaisEsse artigo dimensionou o problema no âmbito mundial, tratou da

necessidade de uma resposta no mesmo nível e apresentou uma sele-ção de dois entes envolvidos nessa resposta: a religião e a educação. Foram dois atos de salvação da humanidade: no primeiro, os valores; no segundo, seu ensino.

Para atingir seu objetivo, trouxe o conceito de consciência planetária em favor da vida como sendo um conjunto de ideias e valores que sub-sidiam as ações referentes à relação ser humano-natureza cuja base é a compreensão e o sentimento de pertença mútua que une o ser humano à sua pátria primeira e última, a Terra.

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 81-94, jul./dez. 2013 93

Procurou demonstrar que há uma mobilização religiosa e educacional em favor dessa consciência; conquanto, isso está distante da realidade mun-dial tanto em nível de consciência quanto de ações concretas capazes de demonstrar que o mundo mudou em relação à problemática em questão.

Contudo, a humanidade tem todos os recursos para converter-se na direção de uma consciência planetária satisfatória. É portadora de “fontes de inovação e de criação em todos os domínios”, daí seu potencial para encontrar soluções, criar alternativas, reorientar-se para e pela vida. Isso justifica a intensa mobilização que vem tomando o mundo nas últimas quatro ou cinco décadas.

A diversidade inovadora e criadora da humanidade fecunda-se em sua unidade geradora. Na verdade, a mobilização social, seja a partir da cosmificação dos valores planetários pela religião ou da educação para a consciência planetária só é possível quando a riqueza da humanidade, residente na sua capacidade diversificada de criação, é fecundada em sua unidade geradora.

Portanto, o emergir de uma consciência planetária a favor do meio ambiente e da vida mobiliza esses dois níveis da realização humana: a religião, que atua como fornecedora de sentido para uma nova atitude do ser humano para com a preservação do meio ambiente uma vez que se apresenta como legitimadora da ordem social; e a educação, que contribui para o desenvolvimento dos valores ambientais e vitais na sociedade, uma vez que se apresenta como responsável pelo processo de desenvolvimento da capacidade moral do ser humano em geral.

Enfim, a religião, especialmente o Cristianismo, dá sentido aos va-lores planetários e a educação ensina-os. Quanto à mobilização pelas instituições governamentais e não governamentais, deve ser objeto de nova pesquisa.

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Submetido em: 30-8-2013Aceito em: 22-10-2013

ARTIGOS

ARTIcleS

ARTículOS

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 97-114, jul./dez. 2013 97

“The Words Get in the Way”: Rethinking John Wesley’s Idea of christian Perfection

“As palavras ficam no caminho”: Repensando a ideia de perfeição cristã em John Wesley

“las palabras en el camino”: repensar la idea de la perfección cristiana en Juan Wesley

Rex D. Matthew

ResumoO artigo explora o significado do conceito da perfeição cristã nas obras de John Wesley (1703-1791), as suas releituras pelo metodismo ao longo do tempo e às suas bases etimológicas. Depois, problematiza seu uso no século 21 e propõe no sentido da sua atualização contemporânea a metáfora da maturidade cristã. Palavras-chave: Metodismo; John Wesley; Perfeição cristã; maturidade cristã.

AbstRActThe article explores the meaning of the concept of Christian perfection in the works of John Wesley (1703-1791), their reinterpretations over the times by Me-thodism and its etymological bases. Then it discusses its use in the 21st century and proposes the metaphor of Christian maturity as a contemporary expression.Keywords: Methodism; John Wesley; Christian perfection; Christian maturity.

ResumenEl artículo explora el significado del concepto de la perfección cristiana en la obra de John Wesley (1703-1791), sus reinterpretaciones por el metodismo en el tiempo y sus bases etimológicas. A continuación se analiza su uso en el siglo 21, y propone a su actualización contemporánea mediante la metáfora de la madurez cristiana.Palabras-clave: Metodismo; John Wesley; la perfección cristiana; la madurez cristiana.

the Problem of “Perfection”All candidates for ordination in The United Methodist Church (2012, p.

250 e 262), whether as deacons or as elders, are asked these questions (among others) by their bishop:

1. Have you faith in Christ?2. Are you going on to perfection?3. Do you expect to be made perfect in love in this life?4. Are you earnestly striving after perfection in love?

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The ordination candidates are of course expected to answer “Yes” to all four of these questions … but what to they really mean when they do give the expected affirmative answer? We have a problem in The United Methodist Church, and perhaps in other parts of the Wesleyan/Methodist family. We have largely lost touch with the meaning of John Wesley’s teaching about Christian perfection.

There is a widespread consensus in modern culture that rejects the very idea of the “perfection” of any individual person as prima facie evi-dence of psychotic delusion. We have learned from modern psychology just how very far from “perfect” all human beings are. Any claim of human “perfection” is usually met with great suspicion and cynical dismissal. We have also learned just how imperfect all our human social, political, and economic systems and institutions are—including our churches. Dishonesty, corruption, and lack of integrity seem almost universal in both public and private life. Consequently the notion of “perfection” of any sort, whether of individuals or of institutions, is a very “hard sell” today.1

The Holiness Movement of the nineteenth century, first in America and then elsewhere, gave rise to distortions of Wesley’s teachings about Christian perfection. Wesley himself did not like or use the term “sinless perfection.” However that idea, understood simplistically as the power not to commit sinful acts, took root in the Holiness Movement. The result was the reduction of Christian perfection to a kind of behavoristic and legalistic moralism. This gave rise to popular notions that a “perfect” Christian was one who refrained from certain actions that were considered to be sinful. Lists of such actions varied but often included (for example) drinking, smoking, gambling, and having sex outside of marriage. The message was clear: “Good (= holy) people don’t…”—and vice versa.2

The Holiness Movement effectively shifted the emphasis from a no-tion of “perfecting perfection” [emphasis on the present/future tense] to a notion of “perfected perfection” [emphasis on the past/present tense]. Many “mainstream” Methodists were so alienated by what they regarded as very serious distortions of Wesley’s idea of Christian perfection in the Holiness Movement that they abandoned the doctrine altogether, “throwing the baby out with the bathwater” (as the saying goes). The sad result is that much (most?) modern Methodism, at least in North America and perhaps elsewhere, has largely lost sight of one of the central themes of

1 Scott J. Jones (2002, p. 210-216) provides a very similar assessment. William J. Abraham (2009, p. 587-601) expresses an even more pessimistic view in his article.

2 For an excellent case study of this sort of development in the American Holiness tradition, see (1993, p. 59-127). Cf. the broader historical account by Dieter (1996). For British Wesleyan traditions, the brief sketches provided by Bebbington (2000), are useful.

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Wesley’s theology: “holiness of heart and life.”3 The question now is whe-ther or not it may be possible to reclaim the theme of “holiness of heart and life” for our lives and our churches today by rethinking and reframing Wesley’s doctrine of Christian perfection. I believe that it is important for us to at least try to do this, and want to suggest here some ways in which we might begin.

christian Perfection in Wesley’s WritingsThe single most consistent theme in John Wesley’s thought over the

entire span of his life and ministry was “holy living” and its cognate goal: Christian perfection. His interest in the theme of “holiness of heart and life” is evident in some of his earliest surviving correspondence from 1725. That interest continued through every phase of his life, until his death in 1791. A Plain Account of Christian Perfection (1766) is Wesley’s most important single work on the topic (WESLEY, 1979 [vol. 11], p. 366-446). It was published to try to demonstrate the consistency of his teaching across the years. However, one can see in this work evidence of a subtle but sig-nificant shift in Wesley’s thinking about the nature of Christian perfection.

Through the 1730s and 1740s Wesley used mostly what can be characterized as a negative language in talking about perfection, descri-bing it primarily as freedom from, or the absence of, a host of bad things: freedom from sin; freedom from fear; freedom from doubt; freedom from guilt; freedom from sorrow; and so on. Beginning in the 1750s, Wesley began to use a more positive language, describing Christian perfection as the presence of love filling the heart and governing all one’s words and actions. This more positive language about Christian perfection as the presence of love filling the heart is dominant in his later writings.

Two documents dating from about the same time as A Plain Account of Christian Perfection provide both an important window into and an instructive reflection of this shift in Wesley’s thinking: “Short Propositions on Christian Perfection” (1764), and a letter to his brother Charles Wes-ley published as “Brief Thoughts on Christian Perfection” (1767). These documents come from a period of controversy within Methodism about the nature of Christian perfection (cf. MADDOX, 2001; HEITZENRATER, 1995, p. 209-211; TYSON, 1986, p. 227-301). Around 1760, John Wesley became convinced that he had been articulating such a high standard for Christian perfection that people were being hindered from experiencing its freedom. He began encouraging people to seek (through God’s grace) the immediate experience of Christian perfection while emphasizing the limits of the deliverance from sin that comes with such perfection. Two leaders

3 Albert C. Outler (1996, p. 117-131) outlined much of this development in his 1974 lectures on “Theology in the Wesleyan Spirit”.

100 Rex D. Matthew: “the words Get in the way”

of the London society, Thomas Maxfield and George Bell, took this to an extreme and began proclaiming a form of Christian perfection that could be instantaneously attained by the simple affirmation “I believe,” without the necessity for responsible growth preceding this event. They also portrayed this perfection as “angelic” or absolute, and consequently saw no need for continuing growth in grace after the event. They also claimed gifts of prophecy and healing, and Bell attempted to cure blind people and raise the dead. John Wesley was slow to act, but finally repudiated them when Bell predicted the end of the world on 28 February 1763. In reaction to these developments, Charles Wesley became progressively more critical of John’s heightened emphasis on the possibility of present attainment and moved toward a more exacting expectation of Christian perfection, which he came to believe could be attained only at or very near death. The “perfectionist controversy” lies behind the publication of A Plain Account of Christian Perfection and the related documents to which we now turn.

“short Propositions on christian Perfection” (1764)In 1764, prompted by the misinterpretations of his teachings by ex-

tremists such as Bell and Maxfield, which had resulted in the “perfectionist controversy” of the preceding years and the subsequent tensions with his brother Charles, John Wesley undertook “a review of the whole subject” of Christian perfection, and “wrote down the sum of what I had observed in the following short propositions”:

(1) There is such a thing as perfection; for it is again and again mentioned in Scripture.

(2) It is not so early as justification; for justified persons are to “go on unto perfection” (Hb 6.1).

(3) It is not so late as death; for St. Paul speaks of living men that were “perfect” (Phil. 3:15).

(4) It is not absolute. Absolute perfection belongs not to man, nor to angels, but to God alone.

(5) It does not make a man infallible: None is infallible, while he remains in the body.

(6) Is it sinless? It is not worthwhile to contend for a term. It is “salvation from sin.”

(7) It is “perfect love” (1 John 4:18). This is the essence of it; its pro-perties, or inseparable fruits, are, rejoicing evermore, praying wi-thout ceasing, and in everything giving thanks (1 Thess. 5:16, &c.).

(8) It is improvable. It is so far from lying in an indivisible point, from being incapable of increase, that one perfected in love may grow in grace far swifter than he did before.

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(9) It is amissible, capable of being lost; of which we have numerous instances. But we were not thoroughly convinced of this, till five or six years ago.

(10) It is constantly both preceded and followed by a gradual work (WESLEY, 1779 [vol. 11], p. 441-442).4

One can see John Wesley struggling here to articulate his views clearly. What kind of “perfection” is this, if it is something that can grow or increase? something that can be lost or destroyed? something that happens “in a moment” but is both preceded and followed by a gradual work? something that is not absolute? something that does not produce infallability or sinlessness? This seems to be a very imperfect sort of “perfection”! The paradox is that “perfection” as Wesley understood it could co-exist with “imperfections” or infirmities of various kinds, since its essence is an unbroken relationship of love of God and neighbor (Cf. NOBLE, 2013, p. 73-96).

“brief thoughts on christian Perfection” (1767)In 1767 John Wesley wrote a letter to his brother Charles outlining

three main points relating to Christian perfection, seeking to “come to a good understanding” with Charles about them:

Some thoughts occurred to my mind this morning which I believe it may be useful to set down: the rather because it may be a means of our understan-ding each other clearly; that we may agree as far as we can, and then let all the world know it.I was thinking on Christian perfection, with regard to the thing, the manner, and the time.(1) By perfection I mean the humble, gentle, patient love of God and man ruling all the tempers, words, and actions, the whole heart by the whole life.I do not include an impossibility of falling from it, either in part or in whole. Therefore I retract several expressions in our Hymns which partly express, partly imply, such an impossibility.And I do not contend for the term sinless, though I do not object against it.Do we agree or differ here? If we differ, wherein?(2) As to the manner. I believe this perfection is always wrought in the soul by faith, by a simple act of faith, consequently in an instant. But I believe in a gradual work both preceding and following that instant.Do we agree or differ here?(3) As to the time. I believe this instant generally is the instant of death, the moment before the soul leaves the body. But I believe it may be ten, twenty, or forty years before.Do we agree or differ here?

4 The text goes on to consider at some length an 11th proposition about whether or not Christian perfection is “instantaneous”; that section is omitted here.

102 Rex D. Matthew: “the words Get in the way”

I believe it is usually many years after justification; but that it may be within five years or five months after it. I know no conclusive argument to the contrary. Do you?If it must be many years after justification, I would be glad to know how many. Pretium quotus arroget annus? [“What year must claim the reward?”—Horace]And how many days or months or even years can you allow to be between perfection and death? How far from justification must it be? And how near to death?If it be possible, let you and I come to a good understanding, both for our own sakes and for the sake of the people.5

The evidence of this letter shows John Wesley as being relatively clear in 1767 about what he understood the nature of Christian perfec-tion to be: “the humble, gentle, patient love of God and man ruling all the tempers, words, and actions, the whole heart by the whole life.” He was also relatively clear about the manner of perfection: like justification and regeneration, entire sanctification or Christian perfection comes to one sola fide, by faith alone, consequently in an instant—but with a “gradual work” both preceding and following that instant. But he does here express some uncertainty about the timing of perfection. How many years must pass between justification and perfection? Since Christian perfection comes through faith, it could come at any moment in a person’s life, and Wesley wants to encourage people to be constantly seeking, hoping, longing, and praying for that moment to come. But generally, he says here, most people probably don’t actually experience this until the moment just before death occurs—echoing the position of his brother Charles on this issue.

There is no surviving evidence that Charles Wesley ever replied to his brother’s letter. In fact, the Wesley brothers never did come to a complete agreement about these issues. One lasting result of the controversy was John’s more careful distinction after the 1760s between “inward sin” and “outward sin” and his conviction that “sin may remain but does not reign” in believers.6

christian Perfection in Wesley’s PreachingWesley first expressed the idea of Christian perfection through his

preaching in the sermon “The Circumcision of the Heart,” which was originally written in 1733 though not published until 1748.7 In 1741 he

5 Letter from John Wesley to Charles Wesley, 27 January 1767 (WESLEY, 1931 [vol. 5], p. 38-39). This letter was annexed to later editions of A Plain Account of Christian Perfection as “Brief Thoughts on Christian Perfection” (WESLEY, 1779 [vol. 11], p. 446).

6 In this regard see in particular his important sermons “On Sin in Believers” (1763), “The Scripture Way of Salvation” (1765), and “The Repentance of Believers” (1767).

7 Sermon 17 “The Circumcision of the Heart” (1733/1748), in John Wesley, Sermons, ed. Albert C. Outler, Vols. 1-4 in The Works of John Wesley (Nashville: Abingdon Press, 1984-87), 1:398-414. Hereafter Sermons.

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published his sermon entitled “Christian Perfection.”8 In 1785 he publi-shed “On Perfection,” his last sermon focused on the doctrine.9 The idea appears in numerous other sermons across more than 50 years. Across these five decades, two scriptural texts are dominant in Wesley’s preaching on this theme: Matt. 5:48 (eighteen times between 1740 and 1785) and Heb. 6:1 (fifty times between 1739 and 1785).10 Some consideration of the translation traditions of these two texts will help us to understand the difficulties caused for the Methodists of Wesley’s day, and also for modern Christians, by the words “perfect” and “perfection.”

Matthew 5.48Latin, Vulgate: estote ergo vos perfecti sicut et Pater vester caelestis per-fectus est.english, King James Version (KJV, 1611): Be ye therefore perfect, even as your Father which is in heaven is perfect. The New Revised Standard Version (NRSV, 1989) is very similar, also using perfect in both places.11

Portuguese, João Ferreira de Almeida Atualizada (AA, 1681): Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial. Almeida Revista e Atualizada (RA, 1959) is very similar, also using perfeitos / perfeito.spanish, Reina-Valera Antigua (RVA, 1602): Sed, pues, vosotros perfectos, como vuestro Padre que está en los cielos es perfecto. Reina-Valera Revi-sado (RVR, 1960) is identical.Italian, Giovanni Diodati Bible (GDB, 1649): Voi adunque siate perfetti, come è perfetto il Padre vostro, che è ne’ cieli. Nuova Riveduta Bible (NRB, 1927) is very similar, also using perfetti and perfetto.French, Ostervald (1744): Soyez donc parfaits, comme votre Père qui est dans les cieux est parfait. Louis Segond (LSG, 1927) and La Nouvelle Edi-tion de Genève (NEG, 1979) are very similar, also using parfaits and parfait.

The following chart highlights the similarity of forms of the key terms in the modern languages to the Latin of the Vulgate:

8 Sermon 40, “Christian Perfection” (1741), Sermons, 2:97-124. 9 Sermon 76, “On Perfection” (1784), Sermons, 3:70-87.10 These statistics come from Albert C. Outler’s introductory comments to Sermon 76, “On

Perfection” Sermons, 3:70. See also “Register of John Wesley’s Preaching Texts,” compi-led and annotated by Wanda Willard Smith, online at the Duke Center for Studies in the Wesleyan Tradition, https://divinity.duke.edu/initiatives-centers/cswt/research-resources/register (accessed 24 June 2013). The records in this register indicate the importance of Heb. 6:1 to the elderly Wesley: in the last three years of his life, he preached on this text a total of thirty times—eleven times in 1788, eight times in 1789, and eleven times in 1790.

11 It is interesting to note that John Wesley’s own translation of Matthew 5.48 is “There-fore ye shall be perfect; as your Father who is in heaven is perfect.” This converts the imperative of the KVJ (“be ye perfect”) into a promise (“ye shall be perfect”). See his Explanatory Notes Upon the New Testament, 3rd corrected edition (Bristol: Graham and Pine, 1760–62; reprinted Grand Rapids: Baker Book House, 1981). Hereafter NT Notes.

104 Rex D. Matthew: “the words Get in the way”

Latin: perfecti / perfectusEnglish: perfect / perfectPortuguese: perfeitos / perfeitoSpanish: perfectos / perfectoItalian: perfetti/ perfetto French: parfaits / parfait

Hebrews 6.1

Latin, Vulgate: quapropter intermittentes inchoationis Christi sermonem ad perfectionem feramur.

english, King James Version (KJV, 1611): Therefore leaving the principles of the doctrine of Christ, let us go on unto perfection. The New Revised Standard Version (NRSV, 1989) is very similar, also using perfection.

Portuguese, João Ferreira de Almeida Atualizada (AA, 1681): Pelo que deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até a perfeição. Almeida Revista e Atualizada (RA, 1959) is very similar, also using perfeição.

spanish, Reina-Valera Antigua (RVA, 1602): Por tanto, dejando la palabra del comienzo en la doctrina de Cristo, vamos adelante á la perfección. Reina--Valera Revisado (RVR, 1960) is identical.

Italian, Giovanni Diodati Bible (GDB, 1649): Perciò, lasciata la parola del principio di Cristo, tendiamo alla perfezione. Nuova Riveduta Bible (NRB, 1927) uses a different construction: Perciò, lasciando l’insegnamento ele-mentare intorno a Cristo, tendiamo a quello perfetto.

French, Ostervald (1744): C’est pourquoi, laissant les premiers principes de la doctrine de Christ, tendons à la perfection. Louis Segond (LSG, 1927) is very similar, also using perfection. The La Nouvelle Edition de Genève (NEG, 1979) uses a different construc-tion: C’est pourquoi, laissant les éléments de la parole de Christ, tendons à ce qui est parfait.

Again, the following chart shows the similarity of forms of the key terms in the modern languages to the Latin of the Vulgate:

Latin: perfectionemEnglish: perfectionPortuguese: perfeiçãoSpanish: perfecciónItalian: perfezione / a quello perfettoFrench: perfection / ce qui est parfait

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Perfection in Latin and GreekThe influence of the Latin perfectus on the other languages listed here

is obvious. The Latin term comes from the verb facere = “to make” or “to do” plus the prefix per = “completely” or “thoroughly.” In the root sense, then, something is “perfect” when it is “thoroughly done” or “completely made”—when it is finished. From this root meaning we get the English words factory (= a place where things are made) and manufacture (= the process of making something, literally by hand—manus + facere). From the same root meaning we also get the English theological terms justifi-cation (= being made or declared righteous) and sanctification (= being made holy)—in Portuguese, justificação and santificação, and in Spanish, justificación and santificación.

In the Greek of the New Testament, the words translated into Latin and the cognate languages above as “perfect” and “perfection” and related terms are forms of teleios and teleiosis, as shown by these transliterations of the Greek Textus Receptus:

(Mt 5.48) esesthe oun umeis teleioi, ōsper o patēr umōn o en tois ouranois teleios estin.(Hb 6.1) Dio, aphentes ton tēs archēs tou Christou logon, epi tēn teleiotēta pherōmetha.

Both teleios and teleiosis come from the root telos, which has the basic meaning of end, goal, objective, destination. Depending on context, both terms can also carry the sense of completion, fulfillment, consum-mation, accomplishment, wholeness, or maturity.12 At the risk of creating an artificially sharp dichotomy between them, the differences of meaning and implication of the Latin perfectus and the Greek teleiosis can be summarized as follows.

perfectus teleiosis• static state • dynamic process • finished action • ongoing development • passive/receptive • active/operative • past/present • present/future• flawless, unchangeable • improvable• fixed, unmovable • can change, increase or decrease

It seems clear that Wesley himself understood “perfection” in the sense of the Greek teleiosis—as “perfecting,” as an ongoing process of growth and development in grace. But as Albert Outler has noted, Wesley somehow never quite managed to grasp the point that most people in 12 See the extensive discussion of telos and related terms in Kittel & Friedrich (1964-76 vol.

8, p. 49-87).

106 Rex D. Matthew: “the words Get in the way”

his time, influenced as they were by the traditions of Latin Christianity, understood “perfection” in the sense of the Latin perfectus—as “perfec-ted,” as a final, finished, static, unchanging condition of completed growth (OUTLER, p. 121-22; MADDOX, 1994, p. 187; MANSKAR, HYNSON, SUCHOCKI, 2004, p. 9-10).

translating “Perfection”The Greek teleiosis was translated into the Latin of the Vulgate as

perfectus, and from there came into English as perfection (and the cognate terms in the other languages mentioned above). That is not a mistake: perfectus (Latin) or perfection (English) is an entirely good and appropriate translation of the Greek term teleiosis, at least in certain contexts. Howe-ver, in other contexts, the Greek terms teleios / teleiosis can equally well be translated into English as whole / wholeness, complete / completion, or mature / maturity. Several recent English versions of the Bible have chosen to use some of these terms rather than perfect / perfection in translating Matthew 5.48 and/or Hebrew 6.1.

New International Version (1973):(Mt 5.48) Be perfect, therefore, as your heavenly Father is perfect [maintai-ning the tradition of the KJV and NRSV].(Hb 6.1) Therefore let us move beyond the elementary teachings about Christ and be taken forward to maturity.

Contemporary English Version (1995):(Mt 5.48) But you must always act like your Father in heaven. [The actual terms disappear here, but the meaning is the much the same.](Hb 6.1) We must try to become mature and start thinking about more than just the basic things we were taught about Christ.

Bible in Basic English (2011):(Mt 5.48) Be then complete in righteousness, even as your Father in heaven is complete.(Hb 6.1) For this reason let us go on from the first things about Christ to full growth.

Common English Bible (2011):(Mt 5.48) Therefore, just as your heavenly Father is complete in showing love to everyone, so also you must be complete.(Hb 6.1) So let’s press on to maturity, by moving on from the basics about Christ’s word.

Some recent Portuguese, Spanish, Italian, and French translations of the Bible have retained the older rendering of Matt. 5:48, using some form of “perfect,” but have chosen different terms for translating Heb. 6:1.13

13 The same phenomenon occurs with certain related passages; the newer translations in all of the languages mentioned here tend to retain a form of “perfect” for the Greek teleios in 1 Cor. 13:10, but to substitute a form of “mature” for teleios in Eph. 4.13.

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Portuguese, Nova Versão Internacional (1999):(Mt 5.48) Portanto, sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês.(Hb 6.1) Portanto, deixemos os ensinos elementares a respeito de Cristo e avancemos para a maturidade.

Spanish, La Biblia de las Américas (1997):(Mt 5.48) Por tanto, sed vosotros perfectos como vuestro Padre celestial es perfecto.(Hb 6.1) Por tanto, dejando las enseñanzas elementales acerca de Cristo, avancemos hacia la madurez.

Italian, Nuova Riveduta (2006):(Mt 5.48) Voi dunque siate perfetti, come è perfetto il Padre vostro celeste.(Hb 6.1) Perciò, lasciando l’insegnamento elementare intorno a Cristo, ten-diamo a quello superior.

French, La Bible en français courant (1987):(Mt 5.48) Soyez donc parfaits, tout comme votre Père qui est au ciel est parfait.(Hb 6.1) Ainsi, tournons-nous vers un enseignement d’adulte, en laissant derrière nous les premiers éléments du message chrétien.

Rethinking “Perfection”These reflections and observations prompt an important question: Do

we face a situation today in which, to quote the 1980s hit song of Gloria Estefan, “the words get in the way”? Has the term “perfection,” even when qualified by the adjective “Christian,” become such a “turn off” that it has become essentially dysfunctional in the life of the church today? Could we today better express what John Wesley really meant by speaking about “Christian perfection” if we now speak instead about “Christian wholeness” or “Christian maturity”? Randy Maddox has suggested something like this move in his discussion of Christian perfection in Wesley’s thought: “One of Wesley’s most characteristic descriptions of those who have attained Christian perfection was that they are now adult—or mature—Christians.”14 Scott Jones agrees that the best way to interpret Wesley’s thinking about Christian perfection is “to use the image of maturity” (JONES, 2002, p. 213). And Stephen Rankin explores this trajectory in his recent book Aiming at Maturity: The Goal of the Christian Life, in which he provides what I find to be a profoundly sensible and pastoral reinterpretation of Wesley’s vision of Christian perfection without dwelling on the term:

grown-up Christians keep growing. Spiritual maturity is never a static state. It is always a maturing maturity. We have the blessed privilege of going from strength to strength as long as we live. As long as we live we can eagerly

14 Maddox, Responsible Grace, 187.

108 Rex D. Matthew: “the words Get in the way”

look forward to new levels of growth (RANKIN, 2011, p. 8).

Wesley himself regularly employs the analogy of physical birth with spiritual re-birth or “new birth” (regeneration). Just as the birth of a child is the beginning of natural life, just so the “new birth” of a Christian is the beginning of spiritual life. What follows in either case is a process of growth and development that moves toward maturity:

As in the natural birth a man is born at once, and then grows larger and stronger by degrees, so in the spiritual birth a man is born at once, then gradually increases in spiritual stature and strength. The new birth, therefore, is the first point of sanctifi-cation, which may increase more and more unto the perfect day.15

Wesley makes frequent use throughout his life of the language of 1 Cor. 3 and 1 John 2 about “babes in Christ” or “little children,” “young men,” and “fathers.”16 In his sermon “Christian Perfection” (1740) Wesley says that “there are several stages in Christian life as well as in natural: some of the children of God being but new-born babes, others having attained to more maturity.”17 In his sermon “On Patience” (1783), he com-ments that “there is as great a difference in the spiritual as in the natural sense between fathers, young men, and babes.”18 And in his sermon “The Wilderness State” (1760) Wesley admonishes his preachers: “Convince them [the Methodist people] that the whole work of sanctification is not (as they imagined) wrought at once; that when they first believe they are but as new-born babes, who are gradually to grow up, and may expect many storms before they come to the full stature of Christ.”19

15 Sermon 107, “On God’s Vineyard” (1787), §I.6-7, Sermons, 3:506-507. See also Sermon 19, “The Great Privilege of Those that are Born of God” (1748), §I.1-10, Sermons, 1:432-35; and Sermon 45, “The New Birth” (1760), §II.4-5, Sermons, 2:192-94.

16 A particularly important example is found in the journal entry for 6 June 1738: see John Wesley, Journal and Diaries, ed. W. Reginald Ward and Richard P. Heitzenrater, Vols. 18–24 in The Works of John Wesley (Nashville: Abingdon Press, 1988–2006), 1:254. Hereafter Journal and Diaries. The incident recounted here marks the beginning point of Wesley’s development of the notion of “degrees of faith” and thus “degrees of salvation.”

17 Sermon 40, “Christian Perfection” (1740), §II.1 Sermons, 2:105.18 Sermon 83, “On Patience” (1783), §10, Sermons, 3:175.19 Sermon 46, “The Wilderness State” (1760), §III.14, Sermons, 2:220. See also Sermon 8,

“The First-fruits of the Spirit” (1746), §II.5, Sermons, 1:239; Sermon 13, “On Sin in Believers” (1763), §II.1-III.7, IV.2-3 Sermons, 1:319-25; Sermon 24, “Upon our Lord’s Sermon on the Mount, IV” (1748, §I.4, Sermons, 1:534-35; Sermon 35 “The Law Established through Faith, I” (1750), §I.2, Sermons, 2:22; Sermon 55, “On the Trinity” (1775), §17, Sermons, 2:385-85; Sermon 61, “The Mystery of Iniquity” (1783), §12, Sermons, 2:456; Sermon 78, “Spiritual Idolatry” (1781), §1, Sermons, 3:103; Sermon 103, “What is Man?” (1788), introduction, Sermons, 3:455; Sermon 107, “On God’s Vineyard” (1787), §I.7, Sermons, 3:507; Sermon 117, “On the Discoveries of Faith” (1788), §§16-17, Sermons, 4:37-38.

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Wesley also refers frequently to the distinction between milk as (spi-ritual) “baby food” and meat as food for fully grown adults that is found in (e.g.) 1 Cor. 3, Heb. 5, and 1 Pet. 2. In commenting on Heb. 5:12-14, Wesley distinguishes the “babes in Christ,” those “who desire and can digest nothing but the doctrine of justification and imputed righteousness,” from those of “full age,” who embrace the “sublimer truths relating to ‘perfection’.”20 He characterizes the “milk of the word” in 1 Peter 2:2 as “that word of God which nourishes the soul as milk does the body” and which enables one to grow “unto the full stature of Christ.”21 In the sermon “Salvation by Faith” (1738) he combines the two sets of images involving the growth and development of Christians:

He who is thus justified or saved by faith is indeed ‘born again’. He is ‘born again of the Spirit’ unto a new ‘life which is hid with Christ in God’. And as a ‘newborn babe he gladly receives the adolon, the sincere milk of the word, and grows thereby’ [1 Pet. 2:2]; ‘going on in the might of the Lord his God’, ‘from faith to faith’, ‘from grace to grace’, ‘until at length he comes unto a perfect man, unto the measure of the stature of the fullness of Christ’ [Eph. 4:13].22

The process of a Christian’s growth and development in grace, or spiritual maturation, is what Wesley calls sanctification. The goal toward which that process moves he calls entire sanctification, which is a synonym for Christian perfection. He put it this way in a letter to Joseph Benson:

A babe in Christ (of whom I know thousands) has the witness sometimes. A young man (in St. John’s sense) has it continually. I believe one that is perfected in love, or filled with the Holy Ghost, may be properly termed a father. This we must press both babes and young men to aspire after—yea, to expect. And why not now? I wish you would give another reading to the Plain Account of Christian Perfection.23

He said much the same thing in a letter to John Fletcher:

It is certain every babe in Christ has received the Holy Ghost, and the Spirit witnesses with his spirit that he is a child of God. But he has not obtained Christian perfection. Perhaps you have not considered St. John’s threefold distinction of Christian believers: little children, young men, and fathers. All of these had received the Holy Ghost; but only the fathers were perfected in love.24

20 NT Notes, Heb. 5:12-14.21 NT Notes, 1 Peter 2:1-2.22 Sermon 1, “Salvation by Faith” (1738), §II.7, Sermons, 1:124-25.23 Letter to Joseph Benson (Mar. 16, 1771), Letters, 5:229.24 Letter to John Fletcher (Mar. 22, 1775), Letters, 6:146.

110 Rex D. Matthew: “the words Get in the way”

When Wesley speaks about Christian perfection, then, he is really painting a picture of what he thinks a fully grown-up, adult, mature Chris-tian would look like. As Randy Maddox has succinctly put it, “For Wesley, then, Christian perfection was that dynamic level of maturity within the process of sanctification characteristic of ‘adult’ Christian life.”25

Christian perfection for Wesley involves what might be considered to be a kind of developing sainthood. This is what Wesley thinks it means to “grow in grace, and in the knowledge of our Lord and Saviour Jesus Christ” (2 Pet. 3:18). Recent scholarship has suggested similarities between Wesley’s notion of Christian perfection and the concept of theosis of the Eastern Orthodox Church, with its implications of a constantly on-going process. Understood literally, theosis means divinization, deification, or making divine. It is the process through which a believer puts into practi-ce the spiritual teachings of Jesus Christ and His gospel and is gradually transformed thereby. In particular, theosis refers to the attainment of like-ness to God, or union with God, that is the final stage of this process of transformation and is as such the goal of the spiritual life. However, the “union” with God envisioned by theosis is never human participation in the divine substance, in the very being of God—that would be apotheosis, or actually becoming God, and such a claim would certainly be heretical! Instead, theosis involves participation in the divine energies of God, which are present to the believer in and through the Church and its sacraments and mysteries. The process is necessarily incomplete in this earthly life; it can only be fully consummated through the resurrection of the believer, when the power of sin and death, having been fully overcome by the ato-nement of Jesus, will lose hold over the believer forever.26

Wesley’s position is similar: the Christian in this earthly life really never is perfected, but is always being perfected. The “perfect” Christian never completely attains the fully restored image of God while living in this human life; such a perfected perfection is an eschatological reality that Wesley reserves for heaven, after the advent of the “new creation.” In this life, in this world, Wesley’s “perfect” Christians in fact become increasingly aware of their physical, moral, psychological, emotional, intellectual and spiritual weaknesses and imperfections, and thus increasingly conscious of their total dependence upon God’s grace and mercy. As T. A. Noble has helpfully put it,

25 Maddox, Responsible Grace, 187.26 On all of this see Maddox (1990, p. 29–53), McCormick (1991, p. 38-103), Christensen

(1996, p. 71-94); the collection of papers from the first Consultation on Wesleyan and Orthodox Spirituality edited by Kimbrough (2002); and Christensen and Jeffery (2008, p. 219-230).

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Wesley constantly struggles, particularly in his later years, to clarify what he meant by this “imperfect perfection” and explains it in terms of two linked are-as of imperfection. First there is our physical constitution as fallen creatures, and second there is our consequent liability to involuntary or unintentional transgressions and to faults of character so long as we live in the body. The consequence of this continuing fallen condition and continuing involuntary transgressions is that we are always dependent on forgiveness through the atonement of Christ.27

For Wesley, Christian perfection (or real Christian maturity) “is nothing higher and nothing lower than this: the pure love of God and man—the loving God with all our heart and soul and our neighbor as ourselves. It is love governing the heart and life, running through all our tempers, words, and actions” (WESLEY, 1779 [vol. 11], p. 397). In Wesley’s view, “Pure love reigning alone in the heart and life … is the whole of scriptural perfection.”28 He put it this way in one of the most poetically beautiful images in his writings: “What is the most perfect creature in heaven or earth in thy presence but a void, capable of being filled with thee and by thee?”29 Theodore Runyon beautifully captures the point of this powerful Wesleyan language:

The best starting point for reinterpreting and reappropriating Wesley’s doc-trine of Christian perfection ... is the perfection of God’s love as we receive it from Christ through the Holy Spirit. But in rethinking this doctrine it is im-portant to focus first of all not on our own perfection but on the perfection of that which we receive. God’s love is perfect … We receive and participate in perfect love.30

Perhaps if we focus less on our own efforts to become “perfect” and seek to open ourselves more fully to being filled by God’s presence and grace, with God’s perfect (whole, complete) love, we can grow toward greater maturity as Christians. Steve Manskar ably summarizes this convic-tion: “Christian perfection is the work of divine grace that, through faith in Jesus Christ, restores the human soul, damaged by sin, to wholeness and helps babes in Christ grow up to maturity in faith and love” (MANSKAR, HYNSON, SUCHOCKI, 2004, p. 10). And perhaps if we reframe John Wesley’s teaching about Christian perfection in terms of growth in grace toward real Christian “adulthood,” or maturity, we can reclaim his notion

27 Noble, Holy Trinity: Holy People, 91.28 Ibid., Works (Jackson) 11:401.29 Ibid., Works (Jackson) 11:440.30 See Runyon (1998, p. 225). Although he has a somewhat different reading of Wesley’s

soteriology, Collins (2007, p. 302) agrees that in the final analysis “Christian perfection . . . is another term for holy love”.

112 Rex D. Matthew: “the words Get in the way”

of “holiness of heart and life” in a way that is more useful for our people and our churches and our world today. As Theodore Runyon has put it,

We are called not just to receive but to reflect this perfect love into the world, to share it with our fellow creatures—and to share it perfectly, that is, to share it in such a way that it can be received and appropriate by others as a love whose source is God. . . . Our sanctifying is linked to and directed toward the sanctifying of the world, and as such is an ever-beckoning, never-finished project, even though the love we redirect is complete as it comes from the divine source (Runyon, 1998, p. 225). In commenting on the questions noted at the beginning of this arti-

cle, the questions that are put to all ordination candidates in The United Methodist Church, Scott Jones (now himself one of the bishops who asks those questions) comments that the last question could be phrased in contemporary language as “Are you earnestly trying to grow up?” and observes that in the Wesleyan understanding, “the goal of human life is to allow God’s grace to shape us into the kind of mature human beings God intended us to be” (JONES, 2002, p. 214-215).

May it be so!

A note on ResourcesIn addition to the now-standard works on John Wesley and his the-

ology as whole by Colin Williams, Albert Outler, Dick Heitzenrater, Ted Runyon, Walter Klaiber & Manfred Marquardt, Randy Maddox, and Ken Collins, the classic works exploring Wesley’s idea of Christian perfection, or entire sanctification, include Flew (1934), Lindström (1946/1998); and Greathouse (1979). More recent studies that are particularly relevant to the issues discussed here include Mann (2006); Rankin (2011); and Noble (2013). Given the current theological environment of the Methodist Church in Brazil, readers there may be particularly interested in the exchange of views presented in the article by Wood (1999, p. 24-63); and the response by Maddox (1999, p. 78–110).

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114 Rex D. Matthew: “the words Get in the way”

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Submetido em: 26-6-2013Aceito em: 22-10-2013

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 115-121, jul./dez. 2013 115

Conversão e colonização na América Latina e Brasil: desconstruir e destruir para salvar

Conversion and Colonization in Latin America and Brazil: deconstruct and destroy to save

Conversión y colonización de América Latina y Brasil: deconstruyen y destruir para salvar

Guilherme Burjack

ResumoEste artigo trata da evangelização e doutrinamento ocorrido no período da co-lonização da América Latina, com destaque ao Brasil e os motivos pelos quais não se levou em conta o nativo como individuo autônomo. Analisa os aspectos da teologia que reforçava a ideia da construção religiosa imposta pela Igreja Apostólica Católica Romana provocando a marginalização do nativo, assim sendo, partia-se da concepção de que o nativo era apenas um pagão carente de salvação e de doutrinamento, não levando em conta que esse modelo de evangelização provocava a sua anulação como indivíduo e como agente de si mesmo no processo de escolha ou não de uma religião.Palavras chaves: América Latina; Brasil; povos indígenas; evangelização; co-lonização; conversão.

AbstRActThis article deals with evangelism and indoctrination occurred during the coloni-zation of Latin America and especially in Brazil and the reasons why not to take into account the individual as autonomous native. We analyze aspects of theology that reinforced the idea of building and hence the marginalization of the native, treating it as Pagan needy of salvation and indoctrination costing its annulment as an individual and as agent for itself in the selection process or not a religion.Keywords: Conversion; Latin America; Brazil; native Latin Americans; evangeli-zation; colonization; conversion.

ResumenEste artículo trata de la evangelización y adoctrinamiento ocurrido durante la colonización de América Latina, especialmente en Brasil y las razones por las cuales no se tienen en cuenta los nativos como un ser individual. Examina los aspectos de la teología que reforzaban la idea de las construcciones religiosas impuestas por la Iglesia Católica Apostólica Romana provocando la marginación de los nativos, por lo tanto, su origen en la idea de que el nativo era un pagano en necesidad de salvación y el adoctrinamiento, sin tener en cuenta de que este modelo de evangelización causó su cancelación como individuo y como agente para sí mismo en la elección de una religión o no.Palabras clave: América Latina, Brasil, indígenas, la evangelización, la coloni-zación y la conversión.

116 Guilherme Burjack: conversão e colonização na américa Latina e Brasil

Introdução Determinar o lugar é mais do que simplesmente fincar estacas ou

estabelecer os limites por quaisquer meios, são “as correlações semân-ticas entre um campo espacial e um sujeito interpretante” (QUADROS, 2008, p. 29). A construção do ideário da conversão passa por entender de onde se está para que/quem converteu. É preciso avaliar quais os conceitos e a imagem de quem interpreta e de quem é interpretado no processo de conversão.

O processo de cristianização na América Latina andou a reboque do processo de posse das novas terras “descobertas”. Mignolo (2003) afirma que “A ‘descoberta’ da América contribuiu para a formação do mundo colonial/moderno”. Ou seja, não só fomos interpretados como também ajudamos a reinterpretar os nossos colonizadores a partir das “novidades” deste neomundo.

É nesse cenário que se estabelece a construção de uma identidade, não nativa, mas miscigenada e plural, pois, a arte de inventar nomes é a invocação dos traços da identidade de um grupo (QUADROS, 2008 p. 28) é assim que foi criada a América, recebendo um nome dado por Martin Waldseemüller. Cosmógrafo alemão em honra a Amerigo Ves-ppucci. Mas foi com os miscigenados nas Américas e seus intelectuais que se permitiram por autodefinição serem chamados de americanos. A cosmologia, a cultura, as memórias e as relações sociais nativas agora estavam descoladas da própria terra e da sua história, pois, o outro agora incorporara neles “palavras de fora” (MIGNOLO, 2003).

Afinal de contas quem somos nós? Existe uma cultura latino-ameri-cana? Retamar (1988) responde com outra pergunta: “Vocês existem?”. Nós não somos o retrato fidedigno de uma nação autóctone, a língua que nos comunicamos é a língua do colonizador. Até as nossas queixas são grafadas na língua de quem nos agoniza. Todo este emblemático desen-volvimento religioso e cultural em solo brasileiro prosperou ao ponto desta nação ser conhecida como a maior nação católica do mundo.

A nossa história de conversão perpassa pela análise da mente dos primeiros missionários em terras latinas principalmente no Brasil. Como eles se viam e a forma como eles enxergavam os nativos da nova terra esclarece um pouco as razões pelas quais tanta violência e desrespeito aos donos legítimos desta terra nos primeiros séculos de cristianização financiada pelo reino de Portugal por estas bandas.

Direito de posse – Autoridade Papal sobre toda a humanidadeNa cosmologia cristã medieval, todo e qualquer homem ou mulher

que não aceitasse o imperador de Roma como seu senhor era considerado estrangeiro e de tabela pagão. A exceção seriam os povos que possuíam algum tratado de parceria ou submissão ao Império Romano.

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Alguém pode ser infiel por jamais ter ouvido algo sobre a verdade cristã, como acontece com os pagãos. Mas também poderia alguém repudiar a fé aceita, como sucede com os judeus que se tornaram infiéis à promessa, ou com os hereges que chegaram a renegar a realização da promessa em Jesus Cristo (HÖFFNER, 1977, p. 47).

A associação entre o império e o papado correspondia a um anseio da união entre o Estado e a Igreja onde um legitimava o outro. “A propagação do Reino de Cristo era imposta aos imperadores e reis, como dever sagra-do, através um solene ritual litúrgico” (HÖFFNER, 1977, p. 21). Daí então a necessidade de construir uma distinção entre o infiel, o herege e o inimigo, mesmo que este último seja em tese os dois primeiros. As atitudes decor-rentes destas conclusões interferem na maneira como os “descobridores” encaram os legítimos habitantes das terras recém-encontradas.

Foi através de Tomás de Vio Caetano que se passou a distinguir e estabelecer normas de comportamento para com os pagãos. O entendi-mento era que as categorias herege, judeus e pagãos sofreriam da parte da Igreja e do Estado sanções proporcionais ao entendimento que Caetano estabelecera como critérios. No caso dos pagãos a compreensão era de que eles nunca fizeram parte dos domínios do Império Romano, logo não ofenderam o imperador e nem a Igreja. Sendo assim, nem o Estado e nem tão pouco a Igreja poderiam fazer algo contra estes. Isso não significa o pleno reconhecimento de um Estado pagão livre (HÖFFNER, 1977).

O Papa, o vigário de Cristo, possui toda autoridade sobre a humani-dade, ela está debaixo de seu sacerdócio e caso um pagão não reconheça esta autoridade, passa a ser lícito o enfrentamento pelas armas e o confisco de bens até que os mesmos sejam totalmente dominados e subjugados.

De acordo com Höffner, Egídio Romano produziu a declaração mais contundente e radical a respeito do tratamento ao Estado pagão. Para ele toda a terra estava sujeita à Igreja, e esta era a portadora das chaves do Reino a intermediadora entre Cristo e a vida humana. Portan-to, sendo os pagãos infiéis a Deus são declaradamente inimigos Dele, tendo eles posses, a teriam de maneira imprópria, pois, a Terra e a sua plenitude pertenciam aos filhos de Deus sob os cuidados da santa Igreja Romana, daí então a sentença: “os pagãos não dispõe nem mesmo de um direito particular de propriedade. Pagão algum é, justamente, proprietário de sua casa, de seu campo ou de sua vinha ou de outra coisa qualquer” (HÖFFNER, 1977, p. 60).

como o colonizador se via e via o mundoQuem de fato ou o que de fato era ou se constituía os nativos das

Américas? Ao partirem da Europa rumo ao novo mundo, não passava pela cabeça dos desbravadores a possibilidade de haver para além do

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Oceano Atlântico, nações numerosas e estabelecidas com seus traços particulares em seu próprio mundo.

No século 16 já era possível verificar o debate acerca da origem da raça indígena, Höffner narra que José de Acosta, missionário jesuíta lota-do no Peru elaborou uma hipótese que aproxima muito do que se aceita recentemente como as Américas foram povoadas, ele conjecturava que a ocupação teria sido feita por terra (HÖFFNER, 1977, p. 106).

A população nativa em 1492 era de cerca 22 milhões de pessoas, dis-tribuídas em cerca de um milhão na América do Norte, 6 milhões no México e 15 milhões na América do Sul. O quadro de desenvolvimento econômico, social e cultural era bem diverso. Era possível encontrar sociedades desen-volvidas como os maias, no México, até tribos ainda viviam como coletores primitivos na Califórnia. Las Casas, segundo Höffner, estabeleceu uma classificação dos nativos onde “todas elas cabiam em alguma das quatro espécies de bárbaros: primeiro os sub homens, animalescos; segundo, os que desconhecem a escrita; em terceiro, os capazes de se governarem e em quarto, o grupo de todos homens cristãos” (1977, p. 109).

sem língua e sem cultura

O processo de colonização e catequização da América roubou a pre-sença do aborígene, a identidade e a língua. Estipulou padrões razoáveis para que o nativo fosse considerado humano e aos que não alcançaram este padrão restou-lhes serem dizimados.

Desconsiderou-se a possibilidade de que os nativos tivessem entre si a heterogeneidade da língua e da cultura. Para o colonizador - “índio era índio” - são todos iguais. A língua dos nativos que se constitui como item importante na constituição de sua identidade foi desprezada e sofreu por parte dos colonizadores uma desconstrução a fim de homogeneizar e subjugá-los.

Havia no Brasil, segundo Quadros, “a língua Geral falada pelos índios da costa do Brasil”, não sendo produto das aldeias, mas preparada e orga-nizada a partir delas para o trabalho missionário. Apesar de que, no entanto, não fosse também uma forma de segregação, pois “os povos indígenas que a desconheciam, denominados genericamente de ‘tapuias’, aprendiam-na logo ao serem descidos para os aldeamentos” (2001, p. 212).

Manuel da Nóbrega, padre jesuíta, por não compreender a dinâmica linguística dos povos indígenas, em suas primeiras cartas a respeito dos povos que ele conhece em terras brasileiras, ele descreve os nativos como “tão brutos que nem vocábulos têm” (NÓBREGA apud QUADROS, 2001 p. 213).

A busca por anular as diversas línguas nativas tinha por finalidade normatizar a evangelização, pois não se podia confiar se de fato o ín-

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dio havia se convertido ao cristianismo, e se convertido estava de fato vivendo-o (QUADROS, 2001, p. 214).

Em Las Casas vemos a construção de um diálogo entre “mundos” diferentes. Apesar de que o “mundo” se reduzia a vila representada por sua forma europeia de ver-se e ver o outro. A pregação não queria de-sassociar da religião a moda do colono. Não é diferente o que pensava o frade franciscano Las Casas, ele vê o índio enquadrado na mesma pastoral da Igreja Católica, igual a que deixou na Espanha (HOORNAERT, 1994, p. 391). Para ele não dava para associar a missão e a colonização. Uma não seria braço da outra apesar das suas prédicas serem católicas e canônicas, paroquiais e totalitárias. Apesar de que na velhice, ele tentou transformar o sacrifício dos astecas em um bom sinal de religiosidade.

Las Casas relativizou tudo em favor de uma etnia, ao invés de tratá--la como uma distinta. Sua visão apesar de ampla no sentido ao nativo, não era ampla o suficiente, pois para com o negro sua atitude não foi igual. Outra contradição é a sua necessidade de assegurar a autonomia dos povos indígenas e a hegemonia da instituição cristã concreta, ou seja, ambos são distintos, mas a religião de um é maior do que a do outro (HOORNAERT, 1994 p. 394). O caminho natural é achar que não possuímos uma cultura própria afinal

Pôr em dúvida nossa cultura é duvidar da nossa própria existência, da nos-sa própria realidade humana, e, portanto, manifestar a disposição de tomar partido a favor de nossa irremediável condição colonial, uma vez que se suspeita que não passamos de um eco desfigurado daquilo que acontece em outro lugar (RETAMAR, 1988, p. 13).

A classificação de mestiços, imposta para declarar a qualidade de quem não é da metrópole e nem é da terra imposta pelos intelectuais metropolitanos não consegue ser sustentada, pois a priori todo homem é mestiço, inclusive o europeu e com certeza o espanhol, este por possuir um pé na África. Os latino-americanos são constantemente associados a uma cópia mal feita da burguesia europeia o que não se confirma se por acaso dentro de um saguão de aeroporto estiverem um alemão e um guatemalteco e colocá-los para dançarem suas danças típicas. Veremos que não há cópia de ninguém, veremos distinção entre um e outro.

Desconstruídos, fragmentados e dispersos, mas com suas almas salvas

Com base em uma ideologia de uma salvação universalista e de uma prática missionária de doutrinamento dos povos, os missionários que aportaram em terras brasileiras estabeleceram princípios norteadores para o trabalho de conversão dos índios pagãos. Entre estes princípios

120 Guilherme Burjack: conversão e colonização na américa Latina e Brasil

o aniquilamento da língua dos povos, por meio da universalização do uso do português. A imposição de uma língua padrão entre os colonos servia para “civilizar”, retirar-lhes quaisquer traços de barbárie. Entre os missionários tornou-se consenso o que Anchieta afirmou ser necessário para a rotina das paróquias, afinal, como tomar uma confissão a partir de um intérprete? (QUADROS, 2001, p. 214).

A evangelização esconde o espírito guerreiro com que os colonizadores chegaram e, portanto participa e legitima o mesmo projeto. A terminologia evangelização, afirma Hoornaert, “passou a ser justificati-va da opressão e escravização de indígenas e africanos” (1979, p. 26). O efeito mais devastador desta visão foi o total descaso com a cultura, pois a imagem “vendida” a respeito do Brasil fora de uma terra linda, um verdadeiro paraíso na Terra, gerou uma falsa expectativa que não foi consumada quando os colonizadores tomaram ciência dos fatos. A igreja que evangelizou o Brasil foi uma igreja que entrou armada e em pé de guerra contra ele (HOORNAERT, 1979, p. 27).

O espírito empreendedor dos missionários pode ser compreendido pela capacidade e amor que estes tinham pela sua missão. Era este talvez, o motivo pelo qual não levou em conta a existência do “outro” a partir do “outro”. O amor pelo seu serviço era maior do que pelo ser. Viu-se isso em quase todos os missionários, de Nóbrega a Las Casas.

O processo de conversão tornou-se, na verdade, um processo de desconstrução. Converter-se ao cristianismo era, a priori, descaracterizar--se totalmente do seu ser. A língua, os costumes e a geografia tudo foi desconsiderado. O padrão era o do colonizador. Não foi possível aos primeiros missionários observarem a transformação que a religião cristã traria a vida dos nativos a partir da sua própria cultura. Para estes, a mudança só era verdadeira se os índios se tornassem cópias fiéis do modelo estabelecido em terras europeias.

Perdeu-se a possibilidade de ver o que o texto bíblico no livro do Apocalipse relata ser a visão de São João na ilha de Patmos a respeito da multiplicidade étnica e cultural daqueles que foram salvos: “Depois disso olhei, e diante de mim estava uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, de pé, diante do trono e do Cordeiro, com vestes brancas e segurando palmas” (Ap 7.9).

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Submetido em: 13-5-2013Aceito em: 28-10-2013

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 123-128, jul./dez. 2013 123

Reflexões sobre a escravidão na América: uma perspectiva wesleyana (a propósito dos 125 anos da abolição da escravidão no Brasil)

Reflections on Slavery in America: A Wesleyan perspective (Reminding the 125th anniversary of the abolition of slavery in Brazil)

Reflexiones sobre la esclavitud en America: Una perspectiva wesleyana (El propósito del 125 aniversario de la abolición de la esclavitud en Brasil)

Gercymar Wellington Lima e Silva

ResumoA escravidão havia sido drasticamente reduzida no mundo no começo do século 16, quando o descobrimento da América e das costas ocidentais e orientais da África ofereceram ocasião para o seu ressurgimento. Este artigo pretende avaliar as reflexões de Wesley sobre a escravidão a partir das suas publicações sobre o tema, ocorridas no ano de 1774. O diálogo sobre o tema na atualidade é favorecido por este esforço para mapear os debates sobre a escravidão negra no contexto do metodismo nascente.Palavras-chave: Escravidão negra; metodismo; teologia wesleyana; ética cristã.

AbstRActSlavery had been drastically reduced in the world at the beginning of the sixteenth century, when the discovery of America and the western and eastern coasts of Africa offered the occasion for its revival. This article aims to assess the reflec-tions of Wesley on slavery from their publications on the subject, occurred in the year 1774. The dialogue on the topic today is favored by this effort to map the debates about black slavery in the context of Methodism spring.Keywords: Slavery of african americans; methodism; wesleyan theology; chris-tian ethics.

ResumenLa esclavitud se ha reducido drásticamente en el mundo a principios del siglo 16, cuando el descubrimiento de América y las costas este y oeste de África ofreció la ocasión para su reactivación. Este artículo tiene como objetivo evaluar los reflejos de Wesley sobre la esclavitud de sus publicaciones sobre el tema, se produjo en el año 1774. El diálogo sobre el tema de hoy es favorecido por este esfuerzo para asignar los debates sobre la esclavitud negro en el contexto de la primavera metodismo.Palabras clave: La esclavitud de los afroamericanos; metodismo; teología wesleyana; ética cristiana.

124 Gercymar Wellington Lima e SiLva: Reflexões sobre a escravidão na América

IntroduçãoÉ preponderante observar que Wesley tece suas reflexões sobre a

escravidão fundamentado em leituras e informações, buscando embasar seu pensamento sobre uma questão que não era amplamente debatida. Assim, ele passa a combater a indústria da escravidão e a somatória de sua vilania em todos os estágios e setores do processo escravista. Ainda que legalmente o sistema de escravidão e seus agentes pudessem estar protegidos, Wesley lembrava que nenhuma lei humana está acima do direito da lei natural, uma vez que a liberdade é direito de toda criatura humana, tão certo como podemos respirar o ar vital (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 127).

Certamente, se o interesse pelo trabalho escravo se tornasse ine-xistente, todos os estágios perderiam sua motivação econômica – a lei da procura. Mas, não eram somente os donos de terras, fazendeiros e senhores de escravos que se interessavam pelo negócio da escravidão negra nos tempos de Wesley. O comerciante de escravos representava o que havia de mais vil no comércio escravista – a lei da oferta. Portanto, o comerciante era (e ainda é nos lugares em que se pratica a escravidão) o motivador pertinaz do sistema escravista na América e na Grã-Bretanha. Chamam-nos a atenção, portanto, as palavras de Wesley dirigidas aos comerciantes de escravos ingleses e americanos:

Tu és o que induz o vilão africano a vender seus companheiros; e isso para roubar, pilhar e assassinar um sem-número de homens, mulheres e crianças, ao permitir que o vilão inglês lhe pague por assim fazê-lo. [...] De modo que o que quer que [o investidor inglês] ou o africano façam nesse sentido, é tudo ação e obra tuas. E a tua consciência satisfaz-se com isso? [...] Terá o ouro cegado inteiramente os teus olhos e empobrecido o teu coração? [...] Sê misericordioso, para que possas obter misericórdia! (WESLEY apud RUNYON, 2002, p. 226).

Wesley apela para a consciência ética do indivíduo, perguntando se a consciência humana pode se satisfazer com a obra vil que a prática escravista gera a homens, mulheres e crianças.

Buscaremos ponderar como Wesley elabora alguns pontos de suas “Reflexões sobre a escravidão”, considerando os elementos éticos que perpassam seu pensamento. Nossa abordagem procurará conhecer aquilo que Wesley pensava sobre o tipo de ser humano que é o negro. Seria ele diferente do ser humano branco? Em seguida, consideraremos o pro-blema da escravidão na Inglaterra e na América. Seria a escravidão um problema que afetaria a riqueza da nação? Isso ajudará no entendimento e na fundamentação do último item – Considerações sobre a questão da escravidão a partir de uma ética wesleyana.

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 123-128, jul./dez. 2013 125

1. o tipo de ser humano que é o negroA cor da pele é o primeiro item que tipifica, pelo menos, exteriormen-

te, se a pessoa é negra ou não. Mas, se formos perguntar pelo tipo de seres humanos que eram os negros em seu próprio país, não encontrare-mos dificuldade de entendê-los no ambiente de uma sociedade específica, da mesma forma que compreendemos o que é uma pessoa branca no seu meio cultural, ou o indígena no seu habitat. Porém, o tipo físico africano foi e ainda é um parâmetro para o negro sofrer bloqueios no processo de ascensão social (PAIXÃO apud OLIVEIRA, 2005, p. 64). A cor da pele influencia o que a própria pessoa negra pensa de si, especialmente por causa do axioma de uma sociedade racista que destila preconceitos e que discrimina constantemente, subtraindo à pessoa negra o direito de ir e vir, sem que seja molestada, maltratada e desprezada (PAIXÃO apud OLIVEIRA, 2005, p. 63).

Da mesma forma, a cor da pele negra subtrai o direito de se expres-sar sem que seja caracterizado como delinquente, assim como subtrai o direito de não se sentir envergonhado pelo que é (PAIXÃO apud OLI-VEIRA, 2005, p. 64). Naturalmente, isso tolhe o direito de ser feliz de qualquer pessoa. No que tange à discussão multirracial, como tais fatores são considerados pela herança wesleyana na atualidade? Mas, não po-demos nos ater somente ao tipo físico do negro quando lemos esse item em Wesley. O pensamento wesleyano é mais abrangente na leitura desse aspecto. Quando Wesley pergunta pelo tipo de ser humano que era o negro em seu próprio país nas “Reflexões sobre a escravidão”, será que estaria preocupado apenas com a origem do ser humano do tipo negro? Talvez a preocupação com uma resposta absoluta não nos ajudaria a ver a questão no seu todo no pensamento wesleyano.

Constatações como essas requerem que analisemos os dados que caracte-rizam o desprezo vil e outras atitudes que alijaram o negro e seus descen-dentes ao longo do processo histórico. Sabemos que o tipo físico do negro, especificamente a cor da pele, o tipo de cabelo, o formato dos lábios ou do nariz são aspectos efetivos para os tais serem preteridos (PAIXÃO apud OLIVEIRA, 2005, p. 64). Mas, como estão sendo consideradas suas capa-cidades e competências, para citar apenas alguns exemplos, na questão “o tipo de ser humano que é o negro”, especialmente nos estudos de ciências da religião e na aplicação técnica desses estudos? Para Wesley, existia uma liberdade verdadeira no paraíso que outrora a África representou (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 101-107 passim).

2. o problema da escravidão como riqueza para a naçãoEm todos os tempos, a escravidão esteve, na prática, associada ao

ideal de enriquecimento de pessoas, grupos, nações e reinos. Nos tempos

126 Gercymar Wellington Lima e SiLva: Reflexões sobre a escravidão na América

de Wesley não era diferente. Como podemos lembrar, o comércio escra-vista da Inglaterra com a América era alimentado a partir de Bristol. Do porto de Bristol “mercadores importavam tabaco e açúcar e exportavam produtos manufaturados e escravos africanos” (HEITZENRATER, 1996, p. 98-99). E ainda que isso significasse ou representasse riqueza para o seu reino e nação, Wesley argumentou que a escravidão e a concepção de enriquecimento às expensas do trabalho escravo representavam vá-rios erros. Um deles ou o primeiro, constatava Wesley, é que a riqueza não é necessária para a glória da nação. Existem outros bens acima da riqueza, muito mais nobres e com significados, como: sabedoria, virtude, justiça, misericórdia, generosidade, bem-estar público, amor ao próprio país (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 119).

Wesley continua: estas coisas sim são necessárias para a glória de uma nação; mas não a riqueza em abundância (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 119). Aliás, aqui Wesley lembra a glória plena e proeminente, além da abundância, existente no período do reinado de Isabel I1, ainda que as riquezas e comércio da Inglaterra fossem nesse tempo tão pequenas, como era grande a virtude da nação (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 119). Pelo que vemos notadamente nas “Reflexões sobre a escravidão”, Wesley, segundo, tinha imensa preocupação com as Ilhas Britânicas e igualmen-te com a América inglesa no que tange a prática da escravidão negra. Quanto ao trabalho de negros e brancos, considerou: “Es demostrable, que la gente blanca acostumbrándola de a poco y dándole el estímulo adecuado, puede trabajar tam bien como ellos; y lo harían si no hubiera negros (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 119).

Considerando que é melhor não comercializar escravos do que fazê--lo ou realizá-lo com vilania, Wesley afirma: “Es mucho mejor no tener riquezas, que ganar riquezas a expensas de la virtud. Es mejor la pobreza honesta, que todas las riquezas compradas com las lágrimas, el sudor e la sangre de nuestros prójimos” (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 119). Wesley é enérgico em condenar os maus-tratos e a severidade com que os senhores tratavam os escravos na sua época. As “Reflexões sobre a escravidão” se originam num estágio de sua vida e ministério em que ele se encon-trava mais maduro e respeitado pelos seus ouvintes e críticos, elemento necessário a um tema que dividia a opinião da sociedade de seu tempo.

3. considerando a questão a partir da ética wesleyanaNo artigo O metodismo primitivo e a valoração da cultura africana,

já refletimos sobre os Direitos Humanos em Wesley. Naquela oportuni-dade, pudemos afirmar que “o metodismo esteve, mais do que qualquer outro movimento de seu tempo, preocupado com o ser humano e a sua 1 Isabel I, da casa dos Tudor, filha de Henrique VIII e Ana Bolena, que reinou de 1558 a

1603 (Cf. WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 119).

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integralidade” (SILVA, 2008, p. 138). O pensamento de Wesley sobre a escravidão e, principalmente, sua prática no combate à ela corrobora a ideia de que o movimento wesleyano estava extremamente preocupado com o ser humano e a sua integralidade, independentemente de gênero, etnia, condição social ou econômica. Neste sentido, podemos considerar que Wesley baseava sua ética no pensamento paulino: “Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo” (Gl 3.28). Ou ainda: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livre. E a todos foi dado beber de um só Espírito” (1Co 12.13).

Wesley não poupou nem as pessoas que viessem a herdar escravos, considerando esta particularidade a partir do ponto: “Tal vez dirás: ‘Yo no compro negros; solo uso los que me dejó me padre.’ Hasta ahí está bien, pero no es suficiente para satisfacer tu propia conciencia” (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 126). Inevitavelmente, haveremos de nos lembrar da história do bispo Andrew (REILY, 1991, p. 83), bispo metodista americano que, sem comprar escravos, passou a possuir dois seres humanos, tendo se negado a dar-lhes a liberdade. Na sequência, Wesley ataca a concepção de possuir escravos, sejam os adquiridos por compra ou por herança, com uma indagação muito pertinente: “Teu pai tem, ou você tem, ou qualquer pessoa vivente tem o direito de usar outra pessoa como escrava” (WES-LEY, 1997 [vol. 7], p. 127)? Assim, nenhuma lei humana pode contrariar o direito que provém da lei natural, uma vez que a liberdade é o direito de toda criatura humana (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 127). Wesley termina suas “Reflexões sobre a escravidão” implorando o amor e misericórdia divinos, rogando especialmente para que Deus levante e ajude aos que não tem quem lhes ajude. A escravidão negra era tão cruel aos olhos humanos, que Wesley via o sangue dos negros derramado sobre a terra como água (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 127). Pelo que se pode analisar, a morte e destruição do povo negro ocorriam com extrema facilidade, como a água é derramada e desperdiçada sobre a terra.

Considerações finaisWesley conclui as “Reflexões sobre a escravidão” com uma oração e

um desejo: “Que Deus tenha compaixão desta gente desprezada, pisada como esterco sobre a terra!” Seguindo o pensamento paulino, Wesley lembra em sua oração: “No son éstos obre de tus manos, adquirida por la sangre de tu Hijo?” (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 127). Para Wesley, mesmo a descendência escrava de Cam foi comprada pelo sangue do Filho de Deus. Sua oração e desejo é que Jesus, o Salvador de todos, possa fazê-los livres, para que sejam livres de verdade (WESLEY, 1997 [vol. 7], p. 128).

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Conforme o pensamento wesleyano, o Deus de amor é um Deus que ama a toda a humanidade e que sua misericórdia está sobre todas as pessoas e sobre toda a sua obra criadora. Uma releitura da teologia wesleyana hoje não pode desprezar a aplicação do método cristão-bíblico, que é, sobretudo, um parâmetro ético à luz da Bíblia em conexão com a contemporaneidade hermenêutica da Palavra da Justiça.

Referências BARBOSA, J. C. Negro não entra na igreja – espia da banda de fora. Protestan-tismo e escravidão no Brasil Império. Piracicaba: UNIMEP, 2002. HEITZENRATER, R. P. Wesley e o povo chamado metodista. Rio de Janeiro/São Bernardo do Campo: EDITEO/Pastoral Bennett, 1996. OLIVEIRA, M. D. de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.REILY, D. A. Momentos decisivos do metodismo. São Bernardo do Campo: Im-prensa Metodista, 1991. RUNYON, T. A nova criação: a teologia de João Wesley hoje. São Bernardo do Campo: EDITEO, 2002. SILVA, G. W.. Lima e. Herança maldita? A inserção do metodismo no Brasil: uma interpretação histórico-teológica da ação missionária metodista na segunda metade do século XIX. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2005. Monografia.______. “O metodismo primitivo e a valoração da cultura africana: reflexões sobre os direitos humanos em Wesley”. In: Caminhando, vol. 13, n. 2 [antigo n. 21], p. 135-146 (jan./jun. 2008).VVAA. Teologia em perspectiva wesleyana. São Bernardo do Campo: EDITEO, 2005.WESLEY, J. Obras de Wesley. Editor General: Justo L. González. Franklin, Ten-nessee: Providence House Publishers, 1996-1998.

Submetido em: 19-9-2013Aceito em: 19-11-2013

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Missão cristã e compromisso ecumênico

Christian mission and ecumenical engagement

Misión cristiana y compromiso ecuménico

Claudio de Oliveira Ribeiro

ResumoA pesquisa relacionou duas dimensões fundamentais da fé cristã que é a missão e a perspectiva ecumênica. As bases metodológicas de análise foram avaliações de contribuições de diferentes perspectivas teológicas para o tema da missão diante do pluralismo religioso, como as de Michael Amaladoss e de Christine Lienemann-Perrin e a dos teólogos metodistas Wesley Ariarajah e Inderjit Bhogal. Como resultado, indicamos perspectivas fundadas no valor do humano e da ética social para o diálogo inter-religioso e para a prática missionária, as possibilidades de uma unidade aberta, convidativa e integradora no âmbito das religiões e como a aproximação e diálogo influem na defesa dos direitos humanos e como eles redimensionam a missão cristã. Nossa intenção foi realçar as possibilidades de uma teologia da missão, de inspiração dialogal e ecumênica, tendo como eixo articulador a preocupação pela paz, pela justiça e pela integridade da criação.Palavras-chave: Missão; teologia das religiões; direitos humanos, diálogo, metodismo.

AbstRActThis paper brings together two fundamental dimensions of the Christian faith: mission and the ecumenical perspective. The methodological framework is composed of some critical contributions from different theological perspectives on mission and religious pluralism: those of Michael Amaladoss and Christine Lienemann-Perrin, and two Methodist theologians, Wesley Ariarajah and Inderjit Bhogal. As a result we will indicate some perspectives based on human value and social ethics for interreligious dialogue, and for missionary practice; we will consider the possibilities of an open unity that invites and integrates religious life. We show how this proximity and dialogue have an influence in the struggle for human rights, and reshape Christian mission. We will highlight the possibilities of a theology of mission, inspired by dialogue and ecumenism, and oriented by peace, justice and the integrity of creation.Keywords: Mission; theology of religions; human rights; dialogue, Methodism.

ResumenEste texto relacionó dos dimensiones fundamentales de la fe cristiana: la misión y la perspectiva ecuménica. Las bases metodológicas del análisis se componen del uso crítico de las contribuciones de diferentes perspectivas teológicas para el tema de la misión delante del pluralismo religioso: las de Michel Amaladoss, y Christine Lienemann-Perrin; y las de dos teólogos metodistas: Wesley Ariarajah e Inderjit Bhogal. Como resultado, indicamos perspectivas fundadas en el valor de lo humano y de la ética social para el diálogo inter-religioso y para la práctica misionera; consideramos las posibilidades de una unidad abierta, que nos invita e integra constantemente en el ámbito de las religiones; indicamos también como este acercamiento y diálogo influyen en la cuestión de la defensa de los derechos

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humanos y como, a su vez, se redimensiona la misión cristiana. Nuestra intención fue la de realzar las posibilidades de una teología de la misión, marcada por el diálogo y el ecumenismo, teniendo como eje articulador la preocupación por la paz, por la justicia y por la integridad de la creación.Palabras clave: Misión; teología de las religiones; derechos humanos; diálogo; metodismo.

IntroduçãoO tema da missão é algo crucial na prática da fé cristã e que tem

sido analisado e reinterpretado diante do horizonte de uma cultura religio-samente plural. Trata-se de tema desafiador, pois a perspectiva do diálogo pode ser interpretada em diferentes sentidos, incluindo o receio pela perda da identidade religiosa e da assimilação de práticas sincréticas e também o temor em relação ao fato da missão ser inviabilizada pelo diálogo inter--religioso. Daí ser fundamental a reflexão sobre a prática missionária no contexto de uma teologia ecumênica das religiões.

A perspectiva do diálogo leva os grupos cristãos a repensarem a missão que se centrou em um mero exercício de tentar convencer as pessoas com crenças distintas ao cristianismo para se converterem à re-ligião cristã e aos seus princípios e crenças tradicionalmente construídas. No espaço do diálogo, as tradições religiosas interpelaram-se levando as suas vivências para caminhos mais profundos. Trata-se de uma abertura para a escuta, para a mudança e para uma maior compreensão do próprio espaço de fé, pois no diálogo há uma mudança e a criação de um lugar fértil para a espiritualidade.

Como referência teórica e metodológica, temos as reflexões de destacadas pessoas no campo teológico, todas comprometidas com ações missionárias relevantes. O primeiro passo metodológico utilizado na pesquisa foi avaliar a importância do diálogo e da defesa dos direitos humanos na visão missionária, a partir de escritos de Michael Amaladoss e de Christine Lienemann-Perrin. Ambos indicam que uma comunicação mais dialógica entre as religiões oferece condições para que todas identifi-cassem suas próprias limitações e se voltassem, assim, para a promoção dos valores humanos e para a justiça e para o bem-estar de todas as pessoas, pressupondo que esse é o sentido missionário fundamental.

O segundo passo metodológico foi sintetizar a visão de Wesley Ariarajah que elabora uma teologia da missão dentro do horizonte da teologia das religiões, a partir de sua vivência missionária inter-religiosa. Para tanto, ele procura uma releitura do texto bíblico relacionada com as pessoas de outras fés e pesquisa, entre outros temas, o diálogo entre o evangelho e as culturas. Nessa mesma perspectiva está a contribuição de Inderjit Bhogal. O aporte teórico-prático, relevante nas reflexões sobre a missão cristã em perspectiva ecumênica vem a partir da sua experi-ência de sikh-cristão. A pesquisa procura identificar a importância que o

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autor dá para as experiências cotidianas de encontro com as diferenças culturais e religiosas. Da mesma forma, a importância dada à ideia de uma “teologia em trânsito”, com relatos das experiências em contextos diferentes e diversificados; e ao destaque para a sua intuição, já referida, de um Deus que é “imenso, insondável e não-confinado”, não conhecendo limites em sua graça e amor.

1. A importância do diálogo e da defesa dos direitos humanos na visão missionária

A espiritualidade ecumênica, como sabemos, requer capacidade de diálogo e profunda sensibilidade para a afirmação da vida e para a pro-moção da paz. Para refletirmos nessa direção ressaltamos inicialmente a contribuição teológica de Michel Amaladoss. Esse autor tem se destacado pelo seu interesse pelas reflexões em torno da espiritualidade ecumênica e pelo diálogo do Evangelho com as culturas e demais religiões. Em relação a esse último tema, o autor apresenta suas principais preocupações e postulados em Missão e Inculturação (2000). Para ele, a missão consiste em anunciar o Evangelho que se fez carne em determinada cultura. Mas, nem o Evangelho e nem as culturas existem por si mesmos. Esses dois polos se interagem e, com isso, o Evangelho confere à missão um aspecto profético, compreendido como Reino de Deus que, por sua vez, requer transformação crescente da sociedade e das culturas nela inseridas. A dimensão profética, que Amaladoss traduz como “luta contra Mamon”, ainda que assuma inicialmente os aspectos econômicos e políticos, deve ser orientada para uma transformação cultural. Para o autor, do ponto de vista da fé cristã um caminho alternativo

[...] deverá ter, entre outras, três características: apoio à vida, experiência de vida em comunidade e consciência da transcendência. Para dar corpo a essas perspectivas, temos necessidade de comunidades contraculturais que às vezes serão ‘modelos de’ e ‘modelos para’ as comunidades do Reino de Deus. Elas não devem ser institucionais, nem liminares. No mundo de hoje, essas comunidades serão inter-religiosas, formadas por pessoas de diferentes credos e ideologias, mas unidas na mesma luta contra Mamon (AMALADOSS, 2000, p. 150).

No aprofundamento da questão cristológica, Amaladoss enfatiza algo óbvio, mas que nem sempre está presente nas compreensões religiosas e teológicas do mundo cristão: “Jesus nasceu, viveu, pregou e morreu na Ásia. Contudo, é visto com freqüência como um ocidental”. Em Jesus o Profeta do Oriente: imagem e representação do messias na tradição cristã, hindu e budista (2009), o autor seleciona imagens de Jesus – o sábio, o caminho, o guru, o avatar, o satyagrahi, o servidor, o compassi-

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vo, o dançarino e o peregrino – e mostra o significado delas na tradição religiosa e cultural oriental. Isso deveria levar as pessoas e grupos a conhecerem melhor a Jesus e quando se perguntassem como ele é o salvador a resposta não seria “uma explicação metafísica da tecnologia da salvação, embora ela possa ser relevante em certas circunstâncias”, mas “como Sua graça salvadora é capaz de transformar nossa vida e nos qualificar para enfrentar desafios” (AMALADOSS, 2009, p. 187).

Amaladoss considera que a religião e a espiritualidade se destinam à vida. Ou seja, elas representam a ajuda para que pessoas e comuni-dades vivam de forma melhor a realidade atual. São esses aspectos que o autor apresenta em O Cosmo Dançante: um caminho para a harmonia (2007), a partir de um elenco de situações da vida – como o sentido dela, a liberdade, o mal, a interioridade e a consciência, a criatividade humana e outros – que são vistos dentro de diferentes tradições religiosas, justa-mente para indicar “um caminho” dialógico que valorize o presente, mas que revele possibilidades para o futuro, especialmente de harmonia e de paz para o universo, de reconciliação nos conflitos e de construção de relações de amor mútuo e de serviço uns aos outros.

Na obra Pela Estrada da Vida: prática do diálogo inter-religioso (1995), Michael Amaladoss mostra que, ao mesmo tempo em que a reli-gião torna-se causa de divisão e conflito entre povos de todas as partes do mundo, ela também abre os seus caminhos para o diálogo e para a promoção da paz. O autor considera que esse diálogo é uma incumbência das religiões e que ele precisa ir além da partilha de opiniões e experiên-cias e chegar ao desafio mútuo e à cooperação conjunta tendo em vista à construção de uma nova humanidade.

Amaladoss examina os problemas do pluralismo religioso, especial-mente no tocante aos símbolos, rituais de cura e automanifestação divina revelada. No caso dos símbolos, eles são vistos como mediadores das experiências religiosas e podem ser canais frutíferos de comunicação entre as religiões se vistos como possibilidade de compreensão da expe-riência do outro. Para isso, precisam ser experimentados por dentro. “Tal cruzamento de fronteiras não nos destrói a identidade, mas aprofunda-a porque os símbolos do outro não tem a mesma significação fundadora que os nossos. Eis porque o diálogo inter-religioso, em especial quando atrelado a uma ação comum em prol da justiça, inevitavelmente levanta a questão do compartilhamento do culto ou da ação simbólica” (AMALA-DOSS, 1995, p. 42). O autor também destaca a natureza social do ritual religioso e as implicações das práticas conjuntas de oração e de ação de membros de diferentes religiões

O autor mostra que o diálogo inter-religioso não precisa se restringir em nível de especialistas, mas pode igualmente ocorrer nas camadas

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populares. Nesse campo, não se pode menosprezar o valor e o signifi-cado das curas e dos milagres e como eles revelam fontes genuínas de espiritualidade, quase sempre provenientes de distintas tradições religio-sas. O pensamento moderno não pode ser refém da lógica meramente racionalista e também não precisa abdicar-se dela. Mas, ao se abrir para o mistério na vida e ao perceber que o compromisso de fé em relação a Deus está integrado aos fatores psíquicos, físicos, sociais, culturais e religiosos, é possível perceber a presença de Deus para além de uma religião específica. Como exemplifica o autor:

[...] o processo de oração em comum deve conduzir não a uma equalização das experiências em termos matemáticos, mas a uma valorização mútua, que lhes confirme sua identidade na diferença. Um encontro assim na ora-ção é talvez não apenas irênico, mas também mutuamente profético. Essa interação profética ocorre talvez, de modo especial, na leitura comum de cada Escritura e na reflexão sobre elas, porque em particular as Escrituras são narradoras da experiência do encontro divino-humano. O ato de se ler as Escrituras em comum é diferente de se ler as Escrituras das outras re-ligiões como um elemento do próprio culto de cada um. Neste último caso, a outra Escritura é interpretada no contexto geral da tradição própria de cada um. Todavia, na leitura comum, cada fiel interpreta sua Escritura e o que temos é um desafio e uma inspiração mútuos, num contexto pluralista (AMALADOSS, 1995, p. 89).

Do ponto de vista pastoral, Amaladoss compreende que as religiões em geral e as igrejas cristãs em particular, são desafiadas ao protesto contra todas as formas de discriminação e ao incentivo à reconciliação e ao sentido de comunidade no mundo. Elas devem igualmente contribuir para consensos públicos e debates regionais e nacionais que podem formar a base de uma comunidade maior de liberdade, igualdade, fraternidade e justiça. É fato que o vínculo entre religiões e direitos humanos na atualidade é bastante ambíguo e complexo. As interfaces entre religião e cultura, por exemplo, não podem ser desprezadas nas análises. Não basta meramente condenar as formas fundamentalistas, pois elas possuem raízes mais vigorosas e na maioria das vezes com significado social profundo. No caso de movimentos fundamentalistas contemporâneos no islã, por exemplo, muitos têm sido vistos como reação defensiva aos impactos da cultura ocidental, percebida como destruidora de valores sociais e religiosos. Algo similar pode se di-zer sobre o conversionismo exacerbado de grupos cristãos, que gera uma identidade rígida, mas forma um sentimento de pertença em um mundo de despersonificação e anomia. Talvez, uma comunicação mais dialógica entre as religiões pudesse contribuir para que todas identificassem suas próprias limitações e se voltassem, assim, para a promoção dos valores humanos e para o bem-estar de todas as pessoas.

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Outro aporte relevante é o da teóloga reformada Christine Lienemann--Perrin. Para ela, a relação entre missão e diálogo inter-religioso requer uma articulação “recíproca de tensão e intercâmbio” e uma interação mútua necessária diante de um contexto religioso plural. Assim, a reflexão sobre uma teologia da missão no contexto de pluralismo religioso envolve as relações externas do cristianismo: “[...] de como ele percebe outras religiões, se encontra com as pessoas de outras religiões e se modifica pelo contato com elas” (LIENEMANN-PERRIN, 2005, p.10) que implica em sua própria concepção interna. Como reinterpretar a missão no espaço intracristão e inter-religioso? Como as comunidades cristãs precisam lidar neste ambiente de diversidade e novas experiências de fé?

A proposta de Christine Lienemann-Perrin é, pois, a compreensão da oikoumene como casa de encontros inter-religiosos, de abertura e escuta a vivências de fé. Assim, a relação entre missão e diálogo necessita ser constantemente construída, elaborada, revisitada, repensada. Não é algo estático, mas uma articulação em constante movimento de “tensão e in-tercâmbio”, de percepções e mudanças, de encontros e parcerias. Como afirma a própria autora:

[...] a ecumene necessita do diálogo inter-religioso, porque este a abre para as pessoas de outras religiões, resguardando-a de preocupar-se somente consigo própria. Na ecumene das igrejas, o diálogo com as religiões man-tém viva a lembrança da não rescindida aliança de Deus (aliança de Noé) com todo o gênero humano. Inversamente, o diálogo também precisa da comunhão de igrejas que em seu engajamento inter-religioso lembrem umas às outras os seus fundamentos. Somente em conjunto é que a ecumene das igrejas e seu diálogo com outras religiões terão futuro (LIENEMANN--PERRIN, 2005, p.164).

A pressuposição da autora de que o cristianismo é uma religião entre muitas outras leva-nos ao reconhecimento do ambiente plural em que distintas experiências de fé encontram-se, relacionam-se em um quadro plural que vai além das fronteiras estabelecidas em cada limite de espiritualidade. Para a autora, todavia, isto não é novo. Desde o início a fé cristã é uma vivência de fé entre muitas outras. O seu nascimento não se dá em um espaço monolítico. Além disso, o desenvolvimento histórico da fé cristã se deu em contextos muito variados e boa parte deles conflitivos e marcados por violência concreta ou simbólica. Nesse sentido, a vivência missionária precisa:

[...] aprender dos erros do passado; encontrar-se de forma respeitosa com pessoas de outras religiões e outras religiões; tentar entender outras religi-ões; submeter os conteúdos da fé cristã a uma nova reflexão no encontro com as pessoas de outras religiões, verificando o que liga as diferentes

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religiões, onde estão as suas diferenças e onde há incompatibilidade entre elas (LIENEMANN-PERRIN, 2005, p. 11).

Aqui reside algo significativo para se pensar a relação entre a missão e o diálogo inter-religioso: a importância da memória, colocan-do a prática atual diante de espelhos do passado para um reorientar da prática; e a relevância do encontro com outras fés, com respeito e aprendizado com a alteridade.

As experiências contextuais apresentadas pela autora, além da releitura bíblica e as vozes das comunidades de fé, apontam para uma reinterpretação da missão e estabelecem “um princípio que precisa vigorar independente do contexto e da situação: a renúncia à violência, coação, pressão, doutrinação para fins de difusão da fé” (LIENEMANN-PERRIN, 2005, p. 161). Este princípio estruturador da prática missionária ganha a sua relevância no espaço da ecumene e sinaliza a efetivação do direito à liberdade religiosa e a superação de variadas maneiras de intolerância e de violência. A autora lembra que

[...] as experiências feitas até aqui na história da missão necessariamente ditam um princípio que precisa vigorar independentemente do contexto e da situação: a renúncia à violência, coação, pressão e doutrinação para fins de difusão da fé. Isto constitui, por assim dizer, o duplo mandamento do amor para a missão, no qual estão compreendidos todos os demais requisitos (LIENEMANN-PERRIN, 2005, p. 161).

2. missão ecumênica de inspiração wesleyanaA perspectiva ecumênica marcou os esforços missionários do movi-

mento metodista desde os seus primórdios. É exemplar a visão de John Wesley, seu fundador, quando, no século 18, reconheceu a supremacia da experiência religiosa e humana das nações indígenas americanas frente à vivência europeia e mesmo em relação à sua própria convicção religiosa.

De lá para cá, diferentes e até mesmo contraditórias interpretações do legado wesleyano estão presentes; ora marcando práticas missionárias em que prevalecem o conversionismo, intolerante ou não, ora marcando práticas mais dialogais, respeitosas e ecumênicas. Nosso foco é ressaltar a segunda visão. Entre tantos autores, temos como referência as reflexões dos teólogos metodistas Wesley Ariarajah e Inderjit Bhogal.

Ariarajah elabora uma teologia da missão dentro do horizonte da teologia das religiões, a partir de sua vivência missionária inter-religiosa. Para tanto, o autor procura uma releitura do texto bíblico relacionada com as pessoas de outras fés e pesquisa, entre outros temas, o diálogo entre o Evangelho e as culturas. Em Repensando a missão para os nossos dias:

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a propósito do Centenário da Primeira Conferência Missionária Mundial em Edimburgo, o autor parte da seguinte pressuposição:

A área mais difícil para o diálogo e missão tem a ver com a nossa compre-ensão de Cristo e de sua relação com o mundo. Muito do pensamento da missão se baseia em três ou quatro versos-chave na Bíblia. Estes incluem a chamada Grande Comissão de Mateus 28, de “ir por todo o mundo e pregar o Evangelho a todas as nações”, a afirmação de João 14.6, de que Jesus é o “caminho, a verdade e a vida, e ninguém vem ao Pai exceto por mim”, e as afirmações de Atos dos Apóstolos de que Jesus é o único mediador entre Deus e os seres humanos. Muitas vezes, estes versos são isolados de seus contextos imediatos e isolados de todo o restante da mensagem da Bíblia para argumentar que cada ser humano deve aceitar Jesus Cristo como seu salvador para ser salvo.Aqueles que dialogam demonstraram que a mensagem geral de Bíblia é muito mais complexa do que se presume por uma leitura seletiva da Bíblia. Ela começa com Deus como criador de todo o mundo; que Deus é alguém que cuida e nutre a todos. Nas Escrituras hebraicas, mesmo que Israel seja escolhido como “luz para as nações” e para “viver a justiça de Deus entre as nações”, Deus permanece sendo o Deus de todas as nações. Nenhuma nação e ninguém estão fora do amor providencial de Deus (ARIARAJAH, 2011, p. 34).

O autor afirma que “a missiologia continua a ser um dos campos menos desenvolvidos da teologia cristã, porque nunca houve a coragem de pensá-lo de maneira nova” (ARIARAJAH, 2011, p. 60). Ao reorientar a missiologia, o teólogo metodista relaciona diálogo e missão. Para tanto, procura se afastar de uma prática missionária e de uma teologia que a sustente, profundamente relacionada com a colonização, a ocidentalização e cristianização. Ao se falar em diálogo no horizonte missionário, Ariarajah aparta a possível presença de um sincretismo entre as diferentes religiões. Para o autor, o diálogo evoca a aceitação e respeito à alteridade do outro, da sua fé e crença. Constrói-se, aqui, um “encontro de comprometimen-tos”. Assim, o diálogo provoca um crescimento mútuo, com correção e autocrítica; e a compreensão do significado da própria fé.

Além destas considerações sobre o sincretismo, outro tema importan-te na produção deste autor se dá a partir de uma questão bem presente nas comunidades de fé: “o diálogo solapa a missão?”. Como se sabe, o termo missão é uma palavra que pode ser carregada de distintos conceitos e interpretações, por essa razão, Ariarajah caminha com certa cautela, propondo, antes de uma resposta rápida, sim ou não; a clareza na com-preensão que se tem do conceito de missão e de sua implicação para o diálogo. Como interpelação, o diálogo “questiona a ênfase excessiva sobre o ‘converter o mundo todo a Cristo’, e coloca maior ênfase no testemunho e vida cristãos e no serviço ao mundo” (ARIARAJAH, 2011, p. 35). A chave

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não está em uma missão com bases coloniais de encobrimento do outro em sua fé e cultura, mas no testemunho do Evangelho que é boa notícia.

Wesley Ariarajah, em função das diferentes visões missionárias que marcam o cenário missionário das igrejas, muitas até mesmo antagôni-cas, e, a partir das experiências inter-religiosas, traz algo novo e criativo, repensa a missão e confronta-se com seus dilemas mais comuns, como a singularidade de Jesus e a comissão de fazer discípulos por todo o mundo. Confronta-se, ainda, com uma visão de uma cultura ocidental marcadamente superior. Para o autor,

Hoje em dia, conflito e violência são grandes preocupações. Infelizmente, há muitos conflitos em diferentes partes do mundo nos quais a identidade religiosa desempenha um papel direto ou indireto. Muitos destes conflitos não são “guerras religiosas”, como eram no passado; são provocados por outras questões sociais, políticas e econômicas. No entanto, os sentimentos religiosos, as identidades e os ensinamentos são, frequentemente, como forças de mobilização em certo tipo de situação de conflito. Como resultado, há um sentimento generalizado em nossos dias de que as religiões estão contribuindo para os conflitos. Alguns pesquisadores argumentaram que não deveríamos excluir tão rapidamente as tradições religiosas e insistir que os ensinamentos de algumas religiões, de fato, constroem muros de separação, exclusivismo e, de qualquer modo, não promovem paz e harmonia através das fronteiras religiosas.

O segundo principal desenvolvimento que leva à urgência do diálogo é a globalização. Hoje em dia, quase todas as principais questões sociais, eco-nômicas e políticas atravessam todas as fronteiras. As questões da paz e da justiça, econômicas, ambientais e mesmo questões que afetam pessoas individualmente têm dimensões globais. A revolução das comunicações aproximou os povos e nações. Não há mais apenas questões cristãs que requeiram respostas cristãs. Há também outras, que só poderão ser re-solvidas trabalhando para além de barreiras religiosas ou de outros tipos. Esta realidade tem levado muitos cristãos a trabalhar em colaboração com outros. Até agora, só puderam encontrar bases seculares para fazer isso, por medo de que as crenças religiosas introduzissem conflitos. Precisamos prosseguir na busca de uma base religiosa para tal engajamento (ARIARA-JAH, 2011, p. 37-38).

Ao repensar a missão, Ariarajah compreende o testemunhar como algo basilar na fé cristã, o testemunho das “boas-novas aos pobres, a libertação dos cativos...” (Lc 4). Portanto, “considera o diálogo como a missão de que precisamos em nossos dias. Porque por meio dele é que nos engajamos na tarefa curativa e reconciliadora que Deus tem empre-endido no mundo” (ARIARAJAH, 2011, p. 38).

138 Claudio de Oliveira RibeiRO: Missão cristã e compromisso ecumênico

Outro aporte relevante nas reflexões sobre a missão cristã em pers-pectiva ecumênica vem do teólogo metodista Inderjit Bhogal. A partir da sua experiência de sikh-cristão, ele reflete sobre a construção de uma “teologia em trânsito”, com crônicas de suas experiências cotidianas, e de suas vivências e viagens, em contextos diferentes e diversificados. Em sua visão está a intuição de um Deus que é “imenso, insondável e não-confinado”, não conhecendo limites em sua graça e amor. Bhogal envereda-se para compreender a missão da Igreja diante do pluralismo religioso. Em português temos o registro desse testemunho ecumênico em Pluralismo e a missão da Igreja na atualidade (2007).

Para o autor, diante do pluralismo religioso a missão reconstrói-se a partir de um triplo compromisso. O respeito como elemento central na teo-logia cristã, com a importância do relacionamento com pessoas excluídas, empobrecidas; com pessoas de outras confissões de fé, outras culturas e etnias; e com o meio ambiente: “isso significa que a criação é sagrada, que deve ser tratada com respeito e que todas as pessoas são sagradas e abençoadas, de igual dignidade e valor” (BHOGAL, 2007, p.115). O segundo compromisso é a aceitação, cruzando fronteiras, construindo espaços de encontro e relação, na experiência de escuta e aprendizado com o outro. Há uma voz que interpela e um corpo que se coloca frente a frente em diálogo. Por último, a vida, a busca por uma vida abundante, não consentido com as realidades que provoquem a morte como: a pobre-za imposta, a intolerância religiosa e o fundamentalismo e a degradação ambiental. A promoção da vida, considerando todas as implicações práticas e políticas decorrentes dela, é o critério central da missão.

No contexto das práticas missionárias surgem perguntas tais como: “nossa decisão, priorizará os mais pobres e ajudará na erradicação da pobreza? Ajudará a promover boas relações entre pessoas de diferentes credos, culturas e etnias? Protegerá e acrescentará qualidade à vida, inclu-sive ao meio ambiente?” (BHOGAL, 2007, p. 118). Entre os tantos desafios que uma visão ecumênica e plural possibilita para a missão, o autor destaca os seguintes questionamentos que, na verdade, representam perspectivas bíblicas de fundamental importância para a prática missionária:

• Se todos somos feitos à imagem de Deus e, portanto, de uma só raça, o que precisa acontecer para que cresçamos no respeito um ao outro, qualquer que seja a cor de nossa pele, o nosso credo ou a nossa cultura?

• Se Deus é um só – que precisa acontecer para que cresçamos no respeito à iluminação, ao entendimento e à experiência de Deus que cada um tem?

• Se o Deus Único relaciona-se com todos nós – o que precisa acontecer para que cresçamos no respeito ao compromisso sal-vador de Deus nas histórias de cada um?

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 129-141, jul./dez. 2013 139

• Se Jesus é o dom especial das igrejas aos mundos das religiões – o que precisa acontecer para que possamos compartilhar sua história e reconhecer os dons especiais de Deus por meio das outras religiões?

• Se o desejo de Deus para toda a criação e para todas as pesso-as é que todos tenham vida e a tenham em abundância – como podemos trabalhar em parceria com cristãos e com pessoas de diferentes expressões de fé para cumprir o propósito de Deus? (BHOGAL, 2007, p. 85-86).

Falamos de missão em uma perspectiva cristã. E como se pode constatar neste e em outros textos aqui introduzidos, o tema da plurali-dade religiosa dentro e fora do cristianismo esteve sempre em pauta e revela-se reflexão imprescindível para se pensar a vocação existencial da Igreja. O movimento missionário, decerto, contribuiu significativamente na introdução do tema na agenda das igrejas principalmente ao chamar a atenção para a relação evangelho-culturas e para o tema da salvação.

A contribuição dos pensadores, teólogos e pastoralistas, com as diferentes ênfases na interpretação teológica da diversidade de expres-sões religiosas intra e extracristãs, torna-se fundamental para o tempo presente. A humanidade vive um momento histórico em que a pluralidade das confissões de fé é cada vez mais evidente por conta do fenômeno da globalização, concretizado não só por meio das mídias, mas também dos fluxos migratórios, das diásporas contemporâneas.

Vive-se hoje no mundo um significativo intercâmbio de fés não planejado, na medida em que um cristão europeu, por exemplo, assiste a um documentário na TV sobre um grupo religioso asiático, e em que, instantes depois, este mesmo cristão dobra a esquina e passa à frente de uma mesquita, na mesma calçada em que há um cartaz-convite para participação em uma igreja pentecostal com cultos em língua espanho-la, que fica a cem metros de um templo hindu. Esta realidade, que se compõe também com a explosão de guerras religiosas e étnicas, ao lado de discursos religiosos que reforçam a violência, demanda de todos os segmentos sociais, e muito especialmente as igrejas, que o tema do pluralismo religioso tenha espaço privilegiado nas agendas de reflexão e ação de quem lida com a reflexão e a prática sobre missão.

Vale reafirmar que num mundo plural e diverso, as perspectivas ecumênicas do respeito e do diálogo são fundamentais para qualquer es-forço missionário. Nesse sentido respeito e diálogo devem se reverter em atitudes concretas em relação a culturas diferentes daquela hegemônica ocidental e a experiências religiosas diferentes do padrão estabelecido pelo cristianismo anglo-saxão. A missão deve ser realizada e o cristianismo precisa ser vivido entre essas culturas, que carecem de solidariedade,

140 Claudio de Oliveira RibeiRO: Missão cristã e compromisso ecumênico

respeito e tolerância – e aqui o critério ético é a vida. Comunhão e re-conciliação são fundamentos da perspectiva ecumênica que, junto com as dimensões do diálogo e do serviço, representam a compreensão da unidade cristã com a qual o movimento ecumênico, nascido no século 20, sempre trabalhou e estimula que se trabalhe, motivado pela leitura do evangelho de João e da clássica oração de Jesus: “que sejam um para que o mundo creia” (Jo 17.21).

Considerações finaisNossa reflexão girou em torno da reflexão missionária diante do plura-

lismo religioso e do papel das religiões nos processos de estabelecimento da paz, da justiça e da sustentabilidade da vida. Consideramos, por suposto, que as grandes questões que afetam a humanidade e toda a criação re-querem indicações teológicas consistentes e que há processos de abertura e de diálogo entre distintas religiões, em diversas frentes de ação, assim como há processos de enrijecimento das perspectivas religiosas, fortale-cimento de práticas e valores fundamentalistas, acirramento de conflitos e reforço de culturas de violência. O quadro religioso vive intensamente essa ambiguidade e as reflexões teológicas precisam considerá-la atentamente.

Outra pressuposição importante com que trabalhamos foi que diante das diversas indagações sobre a vida, em especial os temas que envolvem a paz e a justiça no mundo, são necessários eixos norteadores para que a reflexão teológica possua a abrangência capaz de ser relevante diante dos desafios que a sociedade apresenta na atualidade. Nossa proposição é que a perspectiva ecumênica, uma vez articulada com as dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais, dentro dos variados contextos históricos, pode oferecer densidade e amplitude para a reflexão teológica. Os esforços que valorizam a capacidade de diálogo e de sensibilidade ecumênica e aqueles que destacam a importância pública das religiões partem da concepção de que a perspectiva ecumênica, tanto em nível prático quanto em nível teórico-metodológico, requer e possibilita uma compreensão mais apurada da realidade, um aperfeiçoamento de visões dialógicas e o cultivo de maior sensibilidade para a valorização da vida e para a promoção da paz e da justiça.

Destacamos, com base nas contribuições de diferentes perspectivas teólógicas, o valor do humano e da ética social para o diálogo inter-reli-gioso, as possibilidades de uma unidade aberta, convidativa e integradora no âmbito das religiões e como esse influi na defesa dos direitos humanos e como ele redimensiona a missão cristã. Nossa intenção foi realçar as possibilidades de uma teologia da missão, de inspiração dialogal e ecu-mênica, tendo como eixo articulador a preocupação pela paz, pela justiça e pela integridade da criação.

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Referências AMALADOSS, M. Pela estrada da vida: prática do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1995.______. Missão e inculturação. São Paulo: Loyola, 2000.______. O cosmo dançante: um caminho para a harmonia. Aparecida: Santu-ário, 2007.______. Jesus o Profeta do Oriente: imagem e representação do messias na tradição cristã, hindu e budista. São Paulo: Pensamento, 2009.ARIARAJAH, W. Repensando a missão para os nossos dias: a propósito do Cen-tenário da Primeira Conferência Missionária Mundial em Edimburgo (1910). são bernardo do campo: Editeo, 2011.BHOGAL, I. Pluralismo e a missão da Igreja na atualidade. São Bernardo do Campo: Editeo, 2007.LIENEMANN-PERRIN, C. Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

Submetido em: 30-8-2013Aceito em: 3-10-2013

Documentos e DeclaraçõesDocument and Declarations

Documentos y Declaraciones

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 145-148, jul./jez. 2013 145

Uma expressão da ética parental 69 anos antes de Jonas: a oração “Pelos que virão depois de nós” de Walter Rauschenbusch, representante batistado Evangelho Social

An expression of parental ethics 69 years beforeJonas: the prayer “For those who come after us”from Walter Rauschenbusch, Baptist representa-tive of the Social Gospel

Una expresión de la ética de los padres 69 añosantes de Jonas: la oración “Para los que vengandespués de nosotros” de Walter Rauschenbusch, representante Bautista del Evangelio Social

Helmut Renders

IntroduçãoA ética de Hans Jonas (1979, port: 2006) reflete sobre a responsabi-

lidade da nossa geração a respeito das futuras gerações. Com isso ela é, por um lado, uma terceira forma da ética de responsabilidade – depois da proposta de Max Weber (1919, 1992, por. 2000) de uma ética da respon-sabilidade em prol da polis, e da ética de Dietrich Bonhoeffer (1949, 1992, port.: 2008) da responsabilidade diante de Deus, ou, segundo Hartmann (1992), uma ética da responsabilidade existencial – e, por outro lado, pa-recida com uma ética parental, uma ética na tradição da responsabilidade de pais para com os seus filhos. Com isso, ela combina dois aspectos importantes para o exercício do discernimento moral, os elementos da responsabilidade em sociedade e da afetividade, construindo uma respon-sabilidade motivada, no mínimo, de forma secundária, pela afetividade.

O texto em seguida, escrito por Walter Rauschenbusch (1861-1918), se destaca pelo fato de articular uma idéia parecida, a da responsabilida-de com as futuras gerações, ou como ele escreve, para com aqueles que “virão depois de nós”, e a da construção de uma relação afetiva, mediante

146 Helmut RendeRs: Uma expressão da ética parental 69 anos antes Jonas

da oração. A proposta de Rauschenbusch é interessante por não construir a relação com as futuras gerações pela pertença a mesma família biológi-ca – ou, eventualmente, também a família da nação, construção típica da época dos estados nacionais e do imperialismo em geral –, mas, pela fé que se responsabiliza para com o destino da humanidade – e não somente com o da sua confissão, denominação ou religião em geral – e seu futuro. Rauschenbusch conhecia Max Weber (e Ernst Troeltsch) dos seus estudos na Alemanha, apesar de ter estudado mais diretamente com Albrecht Ritschl. De qualquer forma, publicou a oração nove anos antes da famosa palestra de Weber e 69 anos antes de Jonas. Assim, é um exemplo, como ideais posteriormente relacionadas com certas pessoas ou pensadores, pertencem a uma época e podem ter diversas expressões paralelas. Já a construção de uma relação afetiva mediante da oração representa um aspecto original.

Tradução

For those who come after us1

GOD, we pray thee for those who come after us, for our children, and the children of our friends, and for all the young lives that are mar-ching up from the gates of birth, pure and eager, with the morning simshine on their faces. We re-member with a pang that these will live in the world we are making for them. We are wasting the resources of the earth in our headlong greed, and they will suffer want. We are building sunless houses and joyless cities for our profit, and they must dwell therein. We are making the burden heavy and the pace of work pitiless, and they will fall wan and sobbing by the wayside. We are poisoning the air of our land by our lies and our uncleanness, and they will breathe it.

O God, thou knowest how we have cried out in agony when the sins of our fathers have been vi-sited upon us, and how we have 1 Walter Rauschenbusch (1910, p. 109-110).

Pelos que virão depois de nósÓ DEUS, rogamos-te por

aqueles que virão depois de nós, pelos nossos filhos e os filhos de nossos amigos e por todas as jo-vens vidas que vêm do berço, pu-ras e ardentes, com o resplendor da manhã nos seus semblantes. Lembramo-nos com ânsia de que estes viverão no mundo que es-tamos preparando para eles. Des-perdiçamos as reservas da terra na nossa precipitada cobiça, e eles sofrerão necessidade. Construímos casas sem sol e cidades sem ale-gria para nosso proveito e nelas eles morarão. Tornamos o fardo pesado e o passo do trabalho sem misericórdia e eles cairão pálidos e soluçando à beira da estrada. Enve-nenamos o ar de nossa terra com as nossas mentiras e impurezas e eles o respirarão.

Ó Deus, tu conheces a ago-nia com que choramos quando os pecados de nossos pais foram vi-sitados em nós, e como lutamos

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 145-148, jul./jez. 2013 147

struggled vainly against the inexo-rable fate that coursed in our blood or bound us in a prison-house of life. Save us from maiming the in-nocent ones who come after us by the added cruelty of our sins. Help us to break the ancient force of evil by a holy and steadfast will and to endow our children with purer blood and nobler thoughts. Grant us grace to leave the earth fairer than we found it; to build upon it cities of God in which the cry of needless pain shall cease; and to put the yoke of Christ upon our business life that it may serve and not des-troy. Lift the veil of the future and show us the generation to come as it will be if blighted by our guilt, that our lust may be cooled and we may walk in the fear of the Eternal. Grant us a vision of the far-off ye-ars as they may be if redeemed by the sons of God, that we may take heart and do battle for thy children and ours.

em vão contra a lei inexorável que corria em nosso sangue ou fazia de nossa vida um cárcere. Livra-nos de mutilar os inocentes que vêm depois de nós com a crueldade de nossos pecados. Ajuda-nos a que-brar a velha força do mal com a nossa santa e firme vontade para dotarmos nossos filhos com sangue mais puro e mais nobres pensa-mentos. Concede-nos a graça de deixarmos a terra mais bela do que a encontramos; de construirmos nela cidades de Deus nas quais não haverá o pranto de desneces-sário sofrimento; e de pormos o jugo de Cristo na nossa vida de negócios, para que ela sirva e não destrua. Levanta o véu do futuro e mostra-nos as gerações vindouras tais como serão, se forem arruina-das pela nossa culpa, a fim de que se arrefeça a nossa concupiscência e possamos caminhar no temor do Eterno. Concede-nos a visão de como hão de ser os dias futuros, se forem redimidos pelos filhos de Deus, para que nos animemos e combatamos pelos teus filhos e pelos nossos.

Referências BONHOEFFER, Dietrich. Ethik. Ed. Eberhard Bethge. München: C. Kaiser, 1949. 300p. Edição crítica: Ethik. Ilse Tödt et al. (ed.). Obras de Dietrich Bonhoeffer, vol. 6. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 1992 [Português: BONHOEFFER, Dietrich. Ética: Tradução de Helberto Michel; Compilação de Eberhard Bethge. 8. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2008. 217p.].HARTMANN, Wolfgang. Existenzielle Verantwortungsethik: eine moraltheologische Denkform als Ansatz in den theologisch-ethischen Entwürfen von Karl Rahner und Dietrich Bonhoeffer. Münster: Lit Verlag, 2005. [Tradução do título: Ética existencial da responsabilidade: uma forma moral-teológica de pensar como ponto de partida nos esboços de Karl Rahner e Dietrich Bonhoeffer].

148 Helmut RendeRs: Uma expressão da ética parental 69 anos antes Jonas

JONAS, Hans. Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik für die technologi-sche Zivilisation. Frankfurt: Suhrkamp, 1979 [Português: JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução do original alemão, Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2006]. RAUSCHENBUSCH, H. For God and the people: Prayers of the social awakening. Boston, New York, Chicago:The Pilgrim Press, 1910. [Português: Preces Frater-nais. Tradução A. Rocha. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade, 1936].WEBER, Max: Politik als Beruf (pósfácio de Ralf Dahrendorf). Berlim: Reclam Verlag, 1992. “Politik als Beruf, versão de 1919”. In: Wikisource. Disponível em: < http://de.wikisource.org/wiki/Politik_als_Beruf >. Acesso em: 10 dez. 2013. Português: WEBER, Max. A Política como Profissão. Tradução: Paulo Osório de Castro. Prefácio: Rafael Gonçalo Gomes Filipe. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2000. Veja também: Página de Bresser Perreira. Disponível em: http://www.bresserpereira.org.br/Terceiros/Cursos/09.08.Weber,A_politica.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2013].

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 149-152, jul./dez. 2013 149

10 anos da aliança anglicano-metodista inglesa

10 Years of the English Anglican-Methodist Covenant

10 años del Pacto Anglicano-Metodista Inglés

Luciano José de Lima*

IntroduçãoA aliança entre a Igreja Metodista da Grã-Bretanha e da Igreja da

Inglaterra foi assinada 10 anos atrás em 1º de novembro de 2003. Depois de um breve preâmbulo do texto do convênio estabelece sete afirmações mútuas e seis compromissos mútuos. O pacto coloca as duas Igrejas em um caminho de sempre, além de aprofundar as relações de confiança mútua e da cooperação na estrada para uma unidade mais rica envolven-do todos os que chamam a si próprios discípulos de Cristo. A Igreja da Inglaterra e a Igreja Metodista da Grã-Bretanha entraram no seu compro--misso de aliança após conversas de vários anos. Na sua reunião em Llandudno, em junho de 2003, a Conferência Metodista aprovou o pacto por uma maioria substancial. Pouco depois, em uma reunião em Nova York em julho de 2003, o Sínodo Geral da Igreja da Inglaterra também votou por uma maioria substancial para entrar na aliança.

A assinatura formal nacional do pacto teve lugar na Metodista Cen-tral Hall, Westminster, no sábado, 1º de novembro de 2003, na presença de Vossa Majestade a Rainha e antes de uma assembleia convidados. Os arcebispos de Canterbury e York e do secretário-geral do Sínodo Ge-ral, assinado em nome da Igreja da Inglaterra. O Presidente, Vice--Presidente e Secretário da Conferência Metodista, assinado em nome da Igreja Metodista. A cerimônia prosseguiu na Aba-dia de Westminster com um culto de agradecimento e dedicação. A Igreja da Inglaterra e a Igreja Metodista da Grã-Bretanha entraram no seu compromisso de aliança após conversas de vários anos.

Uma página na internet informa sobre diversos aspectos da colabo-ração em nível da igreja local1 .

* Introdução e tradução.1 Disponível em: <http://www.anglican-methodist.org.uk/index.htm>. Acesso em: 10 maio

2013.

150 Luciano José de Lima: 10 anos da aliança anglicano-metodista inglesa

O texto na sua integra: Uma aliança anglicano-metodista

O preâmbuloNós da Igreja Metodista da

Grã-Bretanha e da Igreja da In-glaterra, sobre a base da nossa história comum, a nossa plena con-cordância na fé apostólica, o nosso entendimento teológico com-parti-lhado sobre a natureza e a missão da Igreja e do seu ministério e su-pervisão e os nossos acor dos sobre o objetivo da plena unidade visí-vel, tal como definido nas seções anteriores da nossa Declaração comum, decidimos fazer o pacto seguinte sob a forma de afirmações interdependentes e compromissos. Fazemo-lo em um espírito de peni-tência diante de todos os pecados humanos e estreiteza de visão que contribuíram para as nossas divi-sões do passado, acreditando que a nossa separação nos empobre-ce e que o nosso testemunho do Evangelho tem sido enfraquecido por conseguinte; e em um espírito de agradecimento e alegria para a convergência de fé e de colabo-ração na missão que temos vivido nos últimos anos.

As afirmações 1. Afirmamos ambas as igrejas

como igrejas verdadeiras pertencen-tes à Igreja Una, Santa, Ca-tólica e Apostólica de Jesus Cristo e como tal, realmente participa na missão apostólica de todo o povo de Deus.

2. Afirmamos que, em ambas as igrejas, a Palavra de Deus é

An English Anglican-Methodist Covenant

The PreambleWe the Methodist Church of

Great Britain and the Church of En-gland, on the basis of our shared history, our full agreement in the apostolic faith, our shared theolo-gical understandings of the nature and mission of the Church and of its ministry and oversight, and our agreement on the goal of full visi-ble unity, as set out in the previous sections of our Common Statement, hereby make the following Cove-nant in the form of interdependent Affirmations and Commitments. We do so in a spirit of penitence for all that human sinfulness and narro-wness of vision have contri-buted to our past divisions, believing that we have been impoverished throu-gh our separation and that our wit-ness to the gospel has been weake-ned accordingly, and in a spirit of thanksgiving and joy for the conver-gence in faith and collaboration in mission that we have experienced in recent years.

The Affirmations 1. We affirm one another's

churches as true churches belon-ging to the One, Holy, Catholic and Apostolic Church of Jesus Christ and as truly participating in the apostolic mission of the whole pe-ople of God.

2. We affirm that in both our churches the word of God is au-thentically preached, and the sa-

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 149-152, jul./dez. 2013 151

autenticamente pregada e os sacra-mentos do Batismo e da Eucaristia são devidamente administrados e celebrados.

3. Nós afirmamos que ambas as nossas igrejas têm sua confissão firmada na palavra e na vida da fé apostólica revelada nas Sagradas Escrituras e definidas nos credos ecumênicos.

4. Afirmamos que uma outra pessoa ordenada, bem com minis-térios leigos, são dados por Deus como instrumentos de sua graça, para edificar o povo de Deus na fé, esperança e amor, para o ministério da palavra, sacramento e cuidado pastoral e para participar da missão de Deus no mundo.

5. Afirmamos que pessoas no ministério ordenado possuem tan-to o chamado interior do Espí-rito Santo como da Comissão de Cristo dada por meio da Igreja.

6. Nós afirmamos que ambas as nossas igrejas incorporam a natu-reza, conexional e conciliar da Igreja e que a supervisão pessoal (episco-pal), comunal ou colegial e é exerci-da dentro delas em várias formas.

7. Afirmamos que existe já uma base para um acordo sobre os princípios de supervisão episcopal como um sinal visível e instrumento de comunhão da Igreja no tempo e no espaço.

Autorizações/compromissos1. Comprometemo-nos, como

prioridade, trabalhar para superar os obstáculos para a unidade or-gânica das nossas duas igrejas, a

-craments of Baptism and the Eu-charist are duly administered and celebrated.

3. We affirm that both our churches confess in word and life the apostolic faith revealed in the Holy Scriptures and set forth in the ecumenical Creeds.

4. We affirm that one another's ordained and lay ministries are gi-ven by God as instruments of God's grace, to build up the people of God in faith, hope and love, for the mi-nistry of word, sacrament and pas-toral care and to share in God's mission in the world.

5. We affirm that one another's ordained ministries possess both the inward call of the Holy Spi-rit and Christ's commission given through the Church.

6. We affirm that both our chur-ches embody the conciliar, conne-xional nature of the Church and that communal, collegial and personal oversight (episkope) is exercised within them in various forms.

7. We affirm that there already exists a basis for agreement on the principles of episcopal over-sight as a visible sign and instrument of the communion of the Church in time and space.

The Commitments 1. We commit ourselves, as

a priority, to work to overcome the remaining obstacles to the or-ga-nic unity of our two churches, on the way to the full visible unity of Christ's Church. In particular, we look forward to the time when the

152 Luciano José de Lima: 10 anos da aliança anglicano-metodista inglesa

fuller visible unity of our churches makes possible a united, interchan-geable ministry.

2. We commit ourselves to re-alize more deeply our common life and mission and to share the distinc-tive contributions of our traditions, taking steps to bring about closer collaboration in all areas of witness and service in our needy world.

3. We commit ourselves to continue to welcome each other's baptized members to participate in the fellowship, worship and mission of our churches.

4. We commit ourselves to encourage forms of Eucharistic sharing, including Eucharistic hos--pitality, in accordance with the ru-les of our respective churches.

5. We commit ourselves to listen to each other and to take account of each other's concerns, especially in areas that affect our relationship as churches.

6. We commit ourselves to continue to develop structures of joint or shared communal, collegial and personal oversight, including shared consultation and decision--making, on the way to a fully uni-ted ministry of oversight.

caminho da plena unidade visível da Igreja de Cristo. Em particular, estamos ansiosos para o momento da plena unidade visível de nossas igrejas torne possível um ministério unido, intercambiável.

2. Comprometemo-nos a com-preender mais profundamente a nossa vida comum missionária e compartilhar as contribuições distin-tivas de nossas tradições, tomando medidas para trazer mais estreita colaboração em todas as áreas de testemunho e serviço em nosso mundo carente.

3. Comprometemo-nos a conti-nuar a acolher os membros batiza-dos uns dos outros na partici-pação na comunhão, adoração e missão de nossas igrejas.

4. Nós nos comprometemos a incentivar formas de partilha da eucaristia, incluindo hospitali-dade eucarística, em conformidade com as regras de nossas respectivas igrejas.

5. Comprometemo-nos a ou-vir uns aos outros e ter em conta as preocupações de cada um, es--pecialmente em áreas que afetam a nossa relação como igrejas.

6. Comprometemo-nos a con-tinuar a desenvolver as estruturas de conjunto ou compartilhamento comunal, colegial e supervisão pes-soal, incluindo a consulta comparti-lhada e de tomada de decisão, no caminho para um ministério total-mente unido quanto à supervisão.

ResenhaBook Review

Reseña

Revista Caminhando v. 18, n. 2, p. 155-158, jul./dez. 2013 155

Reflexões bíblicas sobre o tema da sustentabilidade: fundamentação necessária para a prática das igrejas [Resenha de Revista Bíblica]

Biblical Reflections about Sustainability: necessary foundation for the practice of the churches [Biblical Journal Review]

Reflexiones bíblicas sobre la sostenibilidad: base necesaria para la práctica de las iglesias [Reseña del Revista Bíblico]

Marcelo da Silva Carneiro

RESUMOResenha de Revista Bíblica: GARMUS, Ludovico. Ética e Sustentabilidade. Estudos Bíblicos, vol. 30, n. 117, jan./mar. 2013. Petrópolis: Vozes, 2013. 101 p. ISSN 1676-4951.

ABSTRACTBiblical Journal Review: GARMUS, Ludovico. Ética e Sustentabilidade. Estudos Bíblicos, vol. 30, n. 117, jan./mar. 2013. Petrópolis: Vozes, 2013. ISSN 1676-4951.

RESUMENReseña del Revista Bíblico: GARMUS, Ludovico. Ética e Sustentabilidade. Es-tudos Bíblicos, vol. 30, n. 117, jan./mar. 2013. Petrópolis: Vozes, 2013. ISSN 1676-4951.

O tema da sustentabilidade tem ganhado corpo em diversos seg-mentos, não se limitando a uma reflexão da área de economia. Até pouco tempo, não se viam reflexões bíblicas sobre o tema que pudessem auxi-liar a caminhada das igrejas nesse processo. A cultura eclesial tem por premissa que todas as ações têm seu fundamento nas Escrituras, porque elas apontam para a missão da Igreja. Sendo assim, materiais que tratem do tema nesta perspectiva têm muito a contribuir para a missão da Igreja em seu papel de sinalizar o reino de Deus.

Com essa premissa, o grupo da revista Estudos Bíblicos decidiu rea-lizar várias reflexões sobre o tema da sustentabilidade, sob a coordenação de Carlos Frederico Schlaepfer. Biblistas do Antigo e do Novo Testamentos

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refletiram sobre diferentes aspectos da temática, a partir dos textos que iluminam a vida. O volume foi produzido com nove artigos, sendo quatro do Antigo Testamento e cinco do Novo Testamento.

O artigo que abre o conjunto é de Lília Dias Marianno, com o tema “Estes servos de Yahweh... os animais. Anotações sobre o cuidado a partir do Deuteronômio” (p. 9-19). Nele, a partir do livro de Deuteronômio, dentre outros do cânon bíblico, a autora mostra a relação dos seres humanos com os animais dentro de princípios de misericórdia e cuidado, num prin-cípio de harmonia. Em relação ao sistema de sacrifícios de animais que aparecem nos textos legais, segundo Marianno, “é mais provável que a Torá tenha estabelecido normas e principalmente limites para o abate e consumo dos animais em sacrifícios que já eram praticados em Canaã” (p. 14). Além disso, o artigo mostra como nas Escrituras os animais têm um papel pedagógico e simbólico a serviço de Javé e seus oráculos.

Ludovico Garmus tem por enfoque “A ‘pegada ecológica’ dos Impérios do Médio Oriente nas denúncias proféticas” (p. 21-31). Em seu artigo, a partir dos textos proféticos de denúncia, ele aborda a forma como os im-périos da Antiguidade, exemplificados na Assíria, Babilônia e até mesmo na monarquia de Salomão, exploraram os recursos naturais e depredaram as riquezas de fauna e flora durante seus domínios. A “pegada ecológica” é um termo técnico que se refere exatamente a essa situação.

Ainda na ótica profética, Célia Maria Patriarca Lisbôa trata das “Águas purificadoras em Ezequiel” (p. 33-41). Analisando Ezequiel 36.16-28, a autora mostra como a situação do exílio e o retorno à terra de Israel fazem parte de um processo de purificação dos israelitas, com o fim de mostrar a necessidade de relações justas e humanas entre seus habitantes, in-dependente da classe social a que pertençam.

Mercedes Lopes avalia o tema na literatura sapiencial no artigo “Quem encontrou sabedoria, encontrou vida. Nas sendas da justiça e do direito (Pv 8)” (p. 42-50). Fazendo uma extensa análise exegética de Provérbios 8, Mercedes Lopes aponta a relação entre sabedoria, criação, justiça e direito, como premissas fundamentais para a continuidade da vida e das relações entre todos os seres. Como ponto de partida, ela aponta para a comparação da sabedoria com a mulher, indicando que no feminino está o princípio de reconstrução da relação entre os sistemas sociais e cósmicos.

A reflexão sobre sustentabilidade a partir do Novo Testamento contém três artigos no Evangelho de Mateus. Paulo Lockmann trata da observação das aves no Sermão do Monte no artigo “Observai as aves do céu (Mt 6.25-34)” (p.51-62). Em seu artigo, Lockmann faz uma detalhada descrição geoeconômica da Galileia, para demonstrar como a pregação do Reino de Deus por parte de Jesus não se relacionava com um futuro escato-

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lógico, mas tinha profunda relação com a vida dos pobres e desvalidos pelo sistema de acumulação que os impérios submetiam à região. Em Mateus essa pregação fica bastante evidente no Sermão do Monte. Com base no mesmo trecho, Marcelo da Silva Carneiro traz o tema “Olhai as aves do céu; buscai o Reino dos Céus: observação e busca no Sermão do Monte como princípios da sustentabilidade (Mt 6.25-34)” (p.63-73). O autor aprofunda a discussão, defendendo que o Sermão do Monte aponta para uma ética da sustentabilidade nas relações entre os seres humanos e o cosmos. Para tanto, a pregação de Jesus desafia seus ouvintes a saírem de si mesmos e olhar para o outro como prioridade. Assim, a busca pelo acúmulo e a riqueza dão lugar à solidariedade e partilha, além de reduzir a degradação do meio ambiente.

O terceiro artigo com base no Evangelho de Mateus é de Isidoro Ma-zzarolo, que trata do tema “A Ética da sustentabilidade e da re-inclusão. Uma leitura hermenêutica da parábola dos trabalhadores da undécima hora (Mt 20.1-16)” (p.74-82). Sua perspectiva aponta para a questão do ambiente da produção e trabalho, que hoje é dominada pela lógica capi-talista, mas que mesmo no tempo de Jesus tinha como parâmetro o mais forte e capaz e o que produzia mais. Na parábola, segundo Mazzarolo, Jesus rompe com este paradigma, indicando um caminho diferente, em que os mais fracos, os “últimos”, são preferidos por Deus numa socie-dade em que a graça e a misericórdia, e não o lucro e a força, sejam a força motriz. Assim o Evangelho recusa a ideia dos seres humanos como máquinas a serem exploradas, ecoando protestos proféticos contra a opressão e indignidade.

Outro artigo com base nos evangelhos é de Francisco Orofino, “Multiplicar as marmitas dos trabalhadores. Ética e sustentabilidade ali-mentar a partir de João 6 (p.83-89). Nele, Orofino trata de uma questão fundamental no processo da sustentabilidade, a alimentação, por meio da análise da multiplicação dos pães no Evangelho de João. O autor de-fende a necessidade de políticas de Soberania Alimentar, que garantam qualidade de vida e dignidade entre todos os habitantes do planeta, num processo de bem-viver que tem a ver com a comida, a bebida, a festa e mesmo o trabalho.

Fechando a série de artigos, Dionísio Oliveira Soares reflete sobre “A ética na sustentabilidade das relações de trabalho: o caso de Onésimo e Filemom” (p.90-98). Retomando o tema do trabalho, ele analisa a carta de Filemom, em que o apóstolo Paulo defende Onésimo, escravo fugitivo, e que segundo as leis romanas, poderia até ser morto. Em sua defesa, mesmo sem questionar a estrutura escravagista romana, Paulo aponta para uma relação entre senhor e escravo com base no amor de Cristo, o que para a época era algo inédito. Atualizando o tema, Oliveira aponta

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para a necessidade de metanoia, ou mudança de atitude, nas relações entre as pessoas dos diferentes segmentos sociais, especialmente patrões e empregados.

Avaliando as temáticas e abordagens das autoras e autores, percebe--se nestes artigos as preocupações pastorais que têm sido o motor da reflexão bíblica latino-americana. Sua perspectiva tem no pobre o centro da reflexão como o sujeito da história para o qual o reino de Deus aponta; e na reflexão da sustentabilidade, a harmonia entre os seres humanos com a criação como um todo. Eis o desafio apontado, e algumas pistas de transformação na realidade que se vivencia.