Caminhando - Universidade Metodista

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Caminhando Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista Universidade Metodista de São Paulo v. 16, n. 2 – p.1-224, jul./dez. 2011 0pgrosto.indd 1 28/2/2012 08:25:40

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CaminhandoRevista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista

Universidade Metodista de São Paulov. 16, n. 2 – p.1-224, jul./dez. 2011

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Caminhandov. 16, n. 2 – p.1-224, jul./dez. 2011

Revista da Faculdade de Teologia da Igreja MetodistaUniversidade Metodista de São Paulo

EDITEOSão Bernardo do Campo, 2011

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CaminhandoRevista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista

Universidade Metodista de São Paulov. 16, n. 2 – p.1-224, jul./dez. 2011

Catalogação preparada pela bibliotecáriaAparecida Cornelli Tavares (CRB 8-3781) – Biblioteca Dr. Jalmar Bowden

Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, v. 16, n. 2, 2º semestre de 2011. São Bernardo do Campo, SP: Editeo / Umesp, 1982. Semestral

Publicação da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Universidade Metodista de São Paulo ISSN 1519-7018

1. Teologia – Miscelânea 2. Teologia – Periódicos CDD 230.02

FaCUlDaDE DE TEOlOgIa Da IgREja METODISTa – FaTeoDiretor: Paulo Roberto garcia

Conselho Diretor Claudia Maria da Silva Nascimento Edson Cortásio Sardinha Lia Euniace Hack da Rosa Paulo Dias Nogueira (presidente) Paulo Tarso de Oliveira Lockmann (bispo assistente) Rute Kato Wesley Gonçalves dos Santos

Comissão Editorial Blanches de Paula Helmut Renders (coordenador da Editeo) José Carlos de Souza (presidente da comissão) Magali do Nascimento Cunha Tércio Machado Siqueira Conselho Consultivo Internacional Dr. Joerg Rieger (Perkings School of Theology, Southern Methodist University, Dallas, TX, EUA) Dr. Luís Wesley de Souza (Chandler School of Theology Emory University, Atlanta, EUA) Dr. Michael Nausner (Seminário Teológico da Igreja Metodista Unida na Alemanha, Reutlingen, RFA) Dr. Nestor Miguez (ISEDET, Buenos Aires, ARG) Dr. Ted Jennings (Chicago School of Theology, EUA) Dr. Tércio Bretanha Junker (Christian Theological Seminary, Indianapolis, EUA) Editor Helmut Renders Revisão Hideíde Britto Torres Tradução Glenn Ivan Ynguil Fernandez assistente editorial Fagner Pereira dos Santos Editoração eletrônica Maria Zélia Firmino de Sá Capa Cristiano Freitas

EditEoEditora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista

Rua do Sacramento, 230 – Rudge Ramos – 09640-000São Bernardo do Campo, SP – Telefone: (11) 4366-5958

Editora: [email protected] Editor da revista: [email protected]

Revista on-line: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA

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Sumário

Editorial Helmut Renders 9

DOSSIê / DOSSIER / DOSIER

Apresentação do Dossiê 15Presentation of the Dossier 17Presentación del Dosier 19Suely Xavier dos Santos, Margarida Fátima Souza Ribeiro

Uma leitura sócio-antropológica do sacrifício (estudo de caso Levítico 6,17-23) 21A socio-anthropological reading of sacrifice: case study based on Leviticus 6.17-23Una lectura socio-antropológica del sacrificio: estudio de caso sobre Levítico 6.17-23Suely Xavier dos Santos

Trajetória das mulheres metodistas: memória, presença e desafios 31Trajectory of Methodist Women: memory, presence and challengesTrayectoria de las Mujeres Metodistas: memoria, presencia y desafiósMargarida Fátima Souza Ribeiro O carisma social das primeiras pastoras metodistas do Brasil 41The social charisma of the first Methodist women pastors in BrazilEl carisma social de las primeiras pastoras metodistas en BrasilElena Alves Silva

História de vida como possibilidade metodológica para Educação Cristã 53Life History as a possible methodology for Christian EducationHistória de Vida como possibilidade metodológica para Educação CristãVera Luci Machado Prates da Silva Inclusão de pessoas com deficiência, a responsabilidade social das igrejas 65La inclusión de personas con discapacidad: la responsabilidad social de las iglesiasInclusion of people with disabilities: the social responsibility of the churchesElizabete Cristina Costa-Renders

Cuidados paliativos numa perspectiva brasileira: aspectos introdutórios 77e a contribuição das mulheres Palliative care in a Brazilian perspective: introductory aspects and contribution of womanLos cuidados paliativos en el punto de vista brasileño: aspectos introductorios y la contribución de las mujeresBlanches de Paula

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“Ser mais”: um princípio educativo 89To be more: an educational principleSer más: un principio educativo”Renilda Martins Garcia O telejornalismo global e suas relações discursivas a partir de Foucault 97Global tv-jornalism and its discursive relations in the perspective of FoucaultEl periodismo de la televisión mundial y sus relaciones discursivas según FoucaultHideide Brito Torres

ARTIGOS / ARTICLES / ARTíCULOS

Silêncio - crítica - aprendizado: uma análise teológica introdutória ao tema do mal 107Silence-critique-learning: a theological introductory analyses of the theme of evilSilencio-crítica-aprendizaje: un análisis teológico introductorio al tema del malClaudio de Oliveira Ribeiro

Edith Stein: concepções de ser finito e ser eterno, significados e manifestações 127Edith Stein: Design of Be finite and Be Eternal, expressions and meaningsEdith Stein: Diseño de Ser finito y Ser Eterno, significados y los expresionesJéferson Luis de Azeredo

Os dois caminhos: uma investigação dos fundamentos das atitudes do metodismo conservador na crise da década de sessenta 143The two paths: an investigation of the foundations of the attitudes of the conservative Brazilian Methodism in the crisis of the sixtiesLos dos caminos: una investigación de los fundamentos de las actitudes conservadoras brasileñas del Metodismo en la crisis de los años sesentaDaniel Augusto Schmidt

Centros de treinamento:entre o adestramento religioso e a educação cristã 161Training Centers: between religious formation and Christian education Centros del formación: entre la formación religiosa e la educación CristianaEdemir Antunes Filho Educação para os novos tempos 169Education for the new timesEducacíon antes de los nuevos tiemposElias Boaventura

RESENHAS / BOOK REVIEWS / RESEñAS

O Messias-Profeta e os pobres: desafios do evangelho de Lucas 185The Prophet-Messiah and the poor: challenges of the Gospel of LukeEl Profeta-Mesías y los pobres: desafíos del Evangelio de LucasPaulo Roberto Garcia

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O futuro da criação 189The future of creationEl futuro de la creaciónLeonardo Boff

Um olhar sobre a exclusão da população de rua 193A look at the exclusion of the homeless Una mirada a la exclusión de las personas sin hogarHelmut Renders

DOCUMENTOS E DECLARAçõES / DOCUMENTS AND STATEMENTS /DOCUMENTOS Y DECLARACIONES

Uma “mulher metodista pregadora” em 1775: capaz de mobilizar uma cidade inteira, mas – esquecida 199A “woman Methodist preacher” in 1775: capable of mobilizing an entire city, but – forgottenUna “predicadora metodista” en 1775: capaz de movilizar a toda una ciudad, pero – olvidadaHelmut Renders

REGISTROS / RECORDS / REGISTROS

Relação de autores e autoras 207Notes on the contributorsRelación de autores y autoras

Pareceristas em 2011 210 Reviewers in 2011Revisores y revisoras em 2011

Normas para colaboração 211Guides for contributors 213Normas para colaboradores y colaboradoras 215

Relação de permutas 217Journals exchangeIntercambio de revistas

Bibliotecas parceiras 223Partner librariesBibliotecas afiliadas Diretórios e indexações 224 Directories and indexationDirectorios y indización

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Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 9-11, jul./dez. 2011 9

Editorial

A segunda edição do ano 2011 da revista Caminhando evidencia, em primeiro lugar, a contribuição da mulher metodista na sociedade, na universidade e nas igrejas. Agradecemos às doutoras Suely Xavier dos Santos e Margarida Fátima Souza Ribeiro pela organização do Dossiê que comemora 40 anos do ministério pastoral feminino na Igreja Metodista.

A seção Artigos abriga as temáticas livres. Ela é aberta pelo Dr. Cláudio de Oliveira Ribeiro e sua introdução ao tema do mal na teologia. O texto encontrará, certamente, muitas pessoas interessadas, tanto na academia como nas igrejas. Em seguida, Jeferson Azeredo familiariza os leitores e leitoras com o pensamento de Edith Stein, filósofa cristã com raízes judaicas. Depois, o doutorando Daniel Augusto Schmidt apresenta parte da sua pesquisa de mestrado sobre a atuação de partes das lideran-ças da Igreja Metodista durante a ditadura. O texto de Dr. Edemir Antunes Filho foi preparado pelo Dossiê da edição do primeiro semestre 2011 e deve ser lido junto a estes textos. Terminamos com uma contribuição de Dr. Elias Boaventura, na área da educação.

As resenhas apresentam obras novas da exegese do Novo Testamen-to (Dr. Paulo Lockmann), da Teologia Sistemática (Dr. Jürgen Moltmann e Dr. Levy Bastos) e do trabalho pastoral prático (Alcides Barros).

Na seção Documentos e declarações, o registro do impacto de uma pregadora metodista em 1775 mostra que já há 237 anos pregadoras metodistas fizeram história e muita diferença.

Atenciosamente,

Helmut RendersPela equipe de Editoração

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10 Editorial

Editorial

The second edition in 2011 of the journal Caminhando shows, first, the contribution of Brazilian Methodist women in society, university and church. We are grateful to Dr. Xavier Suely dos Santos and Dr. Margarida Fátima Souza Ribeiro for the organization of the Dossier celebrating 40 years of the pastoral ministry of Women in the Methodist Church in Brazil.

The section Articles houses different contribution. It is opened by Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro and his introduction to the evil in theology. The text will certainly find the interest of many people, both in academic circles and in the churches. Next, Jefferson Azeredo familiarizes our readers with the thought of Edith Stein, Christian philosopher with Jewish roots. After this, the doctoral student Daniel Augusto Schmidt presents part of his research to obtain a Master Degree dedicated to the attitude of some of the leaders of the Methodist Church in Brazil during the dictatorship (1964-1988). The text of Dr. Antunes Filho Edemir originally has been prepared for the Dossier of the first edition 2011 of our journal and should be read together with these texts. The section is closed by a contribution of Dr. Elias Bonaventura focusing on education.

The reviews discuss new works from the fields of New Testament exegesis (Dr. Paul Lockmann), Systematic Theology (Dr. Levy Bastos and Dr. Jürgen Moltmann) and pastoral theology (Alcides Barros).

In the section Documents and statements the record of the impact of a Methodist woman preacher in 1775 shows that already since 237 years Methodist woman preachers made history and a lot of difference.

Sincerely,

Helmut RendersFor the Editorial Tam

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Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 9-11, jul./dez. 2011 11

Editorial

La segunda edición del año 2011 de la revista Caminhando demues-tra, en primer lugar, la contribución de la mujer metodista en la sociedad, en la universidad, en las iglesias y entre las iglesias. Agradecemos a las doctoras Suely Xavier dos Santos y Margarida Fátima Souza Ribeiro por la organización del Dossier que conmemora 40 anos del ministerio pastoral femenino en la Iglesia Metodista.

La sección Artículos recoge las temáticas libres. La abre el Dr. Clau-dio de Oliveira Ribeiro y su introducción al tema del mal en la teología. Con toda seguridad, el texto encontrará muchos/as interesados/as tanto en la academia como en las iglesias. En seguida, Jeferson Azeredo familiariza los lectores y lectoras con el pensamiento de Edith Stein, filósofa cristiana con raíces judaicas. Después, el doctorando Daniel Augusto Schmidt pre-senta parte de su investigación de maestría sobre la actuación de parte de los líderes de la Iglesia Metodista durante la dictadura. El texto del Dr. Edemir Antunes Filho foi preparado por el Dossier de la edición del primer semestre 2011 y debe ser leído junto con esos textos. Terminamos con una contribución del Dr. Elias Boaventura del área de educación.

Las reseñas presentan obras nuevas de la exégesis del Antiguo Testamento (Dr. Paulo Lockmann), de la Teología Sistemática (Dr. Jür-gen Moltmann y Dr. Levy Bastos) y del trabajo pastoral práctico (Alcides Barros).

El registro del impacto de una predicadora metodista en 1775 en la sección Documentos y declaraciones muestra que ya 237 años atrás, predicadoras metodistas hicieron historia y mucha diferencia.

Atentamente,

Helmut RendersPor el equipo de Editoración

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DOSSIÊ

DOSSIER

DOSIER

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15Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 15-16, jul./dez. 2011

Apresentação do Dossiê

No ano de 2011, a Igreja Metodista brasileira celebra os 40 anos de aprovação do ingresso de mulheres na ordem presbiteral. Dentre os vários frutos advindos desta abertura, temos na Faculdade de Teologia o Centro Otília Chaves, um espaço para capacitação, partilha e reflexão sobre o tema gênero-igreja-sociedade. No contexto das celebrações dos 40 anos, o Centro foi desafiado a participar também, organizando um Dossiê de reflexões de mulheres metodistas. A Revista Caminhando apresenta nesta edição o resultado deste trabalho, contendo artigos de Pastoras e Teólogas da Igreja Metodista, que atuam em diversas áreas na igreja e na sociedade. A proposta é partilhar um pouco sobre o que essas mulheres estão produzindo em seu campo de atuação.

Nesta Revista, você encontra, principalmente, reflexões a partir das três grandes áreas do saber teológico: Bíblia, Teologia/História e Pastoral. Sobre o tema Bíblia, Suely Xavier dos Santos, pastora professora e biblis-ta, apresenta uma leitura socioantropológica do sacrifício a partir do texto de Levítico 6.17-23, em diálogo com Marcel Mauss, Henri Hubert e René Girard, a fim de compreender um pouco mais a respeito das sociedades que convivem com o sacrifício.

Na área de Teologia/História, Margarida Ribeiro, pastora, professora e historiadora, destaca a trajetória de mulheres metodistas desde a Inglaterra até o Brasil, e como estas mulheres fizeram diferença em seu tempo. E Elena Silva, pastora e educadora, destaca o papel das primeiras pastoras metodistas, sobretudo, pastoras que exerceram seu ministério a partir do carisma social. Também a pastora e educadora Vera Silva, apresenta a vida no cotidiano como possibilidade de educação cristã, dialogando principalmente com o texto de Lucas 24.13-35, que narra uma cena do cotidiano e a postura educadora de Jesus.

Na perspectiva da Pastoral, temos diversos temas sendo abordados. Elizabete Costa-Renders, teóloga e educadora, apresenta o tema da inclusão e demonstra a importância de a igreja dialogar e ter ações efe-tivas de inclusão a fim de construir condições de acesso e permanência para todas as pessoas nos diversos espaços sociais. Blanches de Pau-la, pastora, professora e psicóloga, aborda a importância dos cuidados paliativos, uma área da saúde focada nas pessoas que estão passando por doenças terminais e encaram o processo de morrer. Renilda Garcia,

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16 Apresentação do Dossiê

pastora e educadora, dialoga com Paulo Freire acerca do conceito de “ser mais” e sua aplicabilidade na educação cristã. E Hideide Brito Torres, pastora, escritora e jornalista, oferece um estudo sobre as reportagens do Jornal Nacional com o tema “Os evangélicos”, que foram ao ar em maio de 2009, buscando compreender as relações discursivas entre telejorna-lismo, religião e ciência, especialmente em diálogo com Michel Foucault.

Com satisfação, entregamos este Dossiê às leitoras e aos leitores para que seja instrumento de estudo e, ao mesmo tempo, partilha nos espaços cotidianos tanto nas comunidades de fé como na academia. Boa leitura!

Centro Otília ChavesSuely Xavier dos Santos

Margarida RibeiroEditoras da sessão Dossiê

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17Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 17-18, jul./dez. 2011

Presentation of the Dossier

In2011, the Brazilian Methodist Church celebrates 40 years of the approval of the admission of women as elders of or pastor in the Church. Among the many fruits resulting from this opening, exists today at the Theology Seminary of the Methodist Church the Otilia-Chaves-Center, a space for training, sharing and reflection on issues concerning gender church and society. Within this context of the celebrations of these 40 years, the Otilia-Chaves-Center was also challenged to contribute by organizing a Dossier uniting articles written by Methodist women. The theological journal Caminhando presents in this edition the results of this initiative, containing articles of pastors and theologians of the Methodist Church, working in various areas within church and society. The proposal is to share what these women are producing in their field of knowledge.

In this journal, you find mainly reflections focusing on the three major areas of theological knowledge: biblical, systematic and pastoral theology. On the subject of the Bible, Suely dos Santos Xavier, elder of the Methodist Church and professor for the Old Testament, presents in dialogue with Marcel Mauss, Henri Hubert and Rene Girard,an anthropological reading of sacrifice interpreting Leviticus 6:17-23, in order to understand a little more about societies where sacrifice is a central part of its religion.

In the area of Theology / History, Margarida Ribeiro, elder of the Me-thodist Church and historian, points out the trajectory of Methodist women from England to Brazil, and how these women made a difference in their time. After this, Elena Silva, elder of the Methodist Church and educator, emphasizes the role of the first Methodist woman preachers, especially those who exercised their ministries based on what she calls their “social charisma”. In a similar direction, Vera Silva elder of the Methodist Church and educator presents the possibility of Christian education in everyday life, especially in dialogue with Luke 24:13-35, a narrative of a daily life situation showing the pedagogical attitude of Jesus .

In a pastoral perspective, several issues are addressed. Elizabete Cristina Costa Renders, theologian and educator, introduces into the uni-verse of inclusion and demonstrates how important it is that the church dialogues and develops effective initiatives of inclusion so that its mission will be directed to all people. Blanches de Paula, elder of the Methodist

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Church, professor of pastoral theology and psychologist, discusses the importance of palliative care, a health care able to attend people with a terminal illness and who are facing the process of dying. Renilda Garcia, elder of the Methodist Church and educator, dialogs with Paulo Freire and discusses the applicability of his concept of “To be more” in Christian education. Finally, Hideide Brito Torres, Methodist elder, writer and jour-nalist, offers a study about a series of programs concerning “Protestants” which have been broadcasted by the Journal Nacional, the major news program, at May 2009. The author seeks to understand the discursive re-lations between TV journalism, religion and science, based on a dialogue with Michel Foucault.

We deliver this Dossier with satisfaction to our readers and hope that it will serve as an instrument of study, and at the same time, as a space to sharing everyday’s live both in communities of faith and at university. We wish a pleasant reading.

Center Otília ChavesSuely Xavier dos Santos

Margarida RibeiroEditors of the Dossier

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Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 19-20, jul./dez. 2011 19

Presentación del Dosier

En 2011, la Iglesia Metodista del Brasil celebra 40 años de la aproba-ción de la admisión de mujeres a la Orden de Presbíteros/as de la Iglesia. Entre los múltiples frutos como resultado de esta apertura, tenemos en el Centro Otilia Chaves en la Facultad de Teología, un espacio de formación, intercambio y reflexión sobre el tema género, iglesia y sociedad. También en el marco de las celebraciones de los 40 años, el Centro fue movido a participar de la composición de un Dossier de reflexiones de mujeres metodistas. La revista Caminhando presenta, en esta edición, el resultado de este trabajo, que contiene artículos de los pastoras y los teólogas de la Iglesia Metodista, que trabajan en diferentes áreas de la iglesia y la sociedad. La propuesta es compartir un poco sobre lo que estas mujeres están haciendo en su campo.

En esta revista, usted encuentra, principalmente, las reflexiones de las tres grandes áreas del conocimiento teológico: Biblia, Teología e Historia, y Pastoral.

En cuanto al tema Biblia, Suely Xavier dos Santos, pastora, profesora y biblista, presenta una lectura socio-antropológica del sacrificio a partir del texto de Levítico 6.17-23, en diálogo con Marcel Mauss, Hubert Henri y René Girard, con el fin de entender un poco más sobre las sociedades que conviven con el sacrificio.

En el área de Teología e Historia, Margarida Ribeiro, pastora, profeso-ra e historiadora, subraya la trayectoria de las mujeres metodistas desde Inglaterra hasta el Brasil, y cómo estas mujeres marcaron la diferencia en su tiempo. También Elena Silva, pastora y educadora, hace hincapié en el papel de las primeras pastoras metodistas, sobretodo, pastoras que ejercieron su ministerio a partir del carisma social. Asimismo, la pastora y educadora Vera Silva, presenta la vida cotidiana como posibilidad de edu-cación cristiana, en diálogo, principalmente, con el texto de Lucas 24.13-35, que narra una escena cotidiana y la postura educadora de Jesús.

Dentro de la perspectiva de la Pastoral, se tratan varios temas. Eliza-bete Costa Renders, teóloga y educadora, presenta el tema de la inclusión y demuestra la importancia de que la Iglesia dialogue y tenga acciones efectivas para la inclusión con el fin de crear condiciones de acceso y permanencia de todas las personas en los diferentes espacios sociales. Blanches de Paula, pastora, profesora y sicóloga, habla de la importancia

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20 Apresentação do Dossiê

de los cuidados paliativos, un área de la salud centrada en las personas aquejadas de enfermedades terminales que enfrentan el proceso de morir. Renilda García, pastora y educadora, dialoga con Paulo Freire acerca del concepto de “ser más” y su aplicabilidad en la educación cristiana. También Hideide Brito Torres, pastora, escritora y periodista, ofrece un estudio sobre los reportajes del telenoticiero Jornal Nacional sobre el tema “Los evangélicos”, que se emitió en mayo de 2009, tratando de entender las relaciones discursivas entre periodismo televisivo, religión y ciencia, especialmente en diálogo con Michel Foucault.

Con satisfacción, entregamos a los lectores y lectoras, este Dossier para que sea un instrumento de estudio y, al mismo tiempo, de intercam-bio de ideas en los espacios cotidianos, tanto en las comunidades de fe como en la academia. ¡Feliz lectura!

Centro Otília Chaves Suely Xavier dos Santos

Margarida RibeiroEditoras del Dosier

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Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 21-30, jul./dez. 2011 21

Uma leitura sócio-antropológica do sacrifício: estudo de caso Levítico 6.17-23A socio-anthropological reading of sacrifice: case study based on Leviticus 6.17-23

Una lectura socio-antropológica del sacrificio: estudio de caso sobre Levítico 6.17-23

Suely Xavier dos Santos

ResumoA proposta deste artigo é estudar o texto de Levítico 6.17-231, à luz dos conceitos de Marcel Mauss, Henri Hubert e René Girard, que ajudam a compreender uma sociedade que convive com o sacrifício.Palavras-chave: Sacrifício; sacrificante; Levítico; pecado; oferta.

AbstRActThe purpose of this paper is to study the text of Leviticus 6.17-23 in light of the concepts of Marcel Mauss, Henri Hubert and Rene Girard, which help to unders-tand a society that coexists with the sacrifice.Keywords: Sacrifice; sacrificial; Leviticus; sin; offer.

ResumenEl propósito de este artículo es estudiar el texto de Levítico 6.17-23 a la luz de los conceptos de Marcel Mauss, Hubert Henri y René Girard, que ayudan a entender una sociedad que convive con el sacrificio.Palabras clave: Sacrificio; sacrificante; Levítico, pecado; ofrenda.

IntroduçãoA palavra sacrifício significa cumprir um ato ou ofício sagrado. Sen-

do assim, o sacrifício é um mecanismo social produtor de sagrado. Uma pessoa ou animal é culpabilizado pelas mazelas do grupo e, igualmente, será o doador da salvação depois de oferecido em sacrifício, havendo uma relação estreita entre sacrifício, sacrificado e sacrificador.

Na pesquisa bíblica, a leitura socioantropológica tem grande importân-cia, pois apresenta a sociedade como um organismo social e as relações que as regem como movimentos orgânicos, demonstrando, assim, que cada aspecto da vida social é parte de um conjunto integrado. E no caso da sociedade israelita não é diferente.

1 Na Bíblia editada pela SBB, este texto se encontra em 6.24-30.

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22 Suely Xavier doS SantoS: Uma leitura sócio-antropológica do sacrifício

Deste modo, será analisada inicialmente a estrutura da teoria sacrifi-cial de Mauss, Hubert e Girard para, a seguir, desenvolver tais conceitos e verificar sua aplicabilidade para a melhor compreensão da teologia bí-blica, especificamente, no texto de Levítico 6.17-23, que regula a prática sacrificial pelos pecados do povo.

Teoria sacrificial em Mauss e HubertPara Mauss e Hubert, “o sacrifício2 é um ato religioso que, mediante

a consagração de uma vítima, modifica o estado da pessoa moral que o efetua ou de certos objetos pelos quais ela se interessa” (MAUSS e HUBERT, 2005, p. 19). Esta modificação sacraliza o ato violento que se autojustifica pela purificação que executa.

Os autores apontam a “natureza e função social do sacrifício” (MAUSS e HUBERT, 2005, p. 21) a saber, que há nele uma força motriz que pro-voca a remissão de pecados e comunhão, além de ter uma finalidade na sociedade na qual ele se realiza. Alguns traços do sacrifício que, de alguma maneira, é possível observar em diversas culturas, são apontados pelos autores. Segundo eles, há que se destacar a presença de um esquema para a realização do sacrifício que ocorre com poucas variações, em muitos povos. Este esquema3 se expressa da seguinte maneira:

a. entrada: antes do sacrifício, o sacrificante, o sacrificador e os instrumentos próprios para sacrificar são profanos. Por isso, há que se introduzir estes elementos na esfera sagrada para que realize o rito sa-crificial.

b. sacrificante: há uma pretensa identificação entre sacrificante e deus; por isso, deve haver uma série de ritos e cerimônias para que o sacrificante atinja o status divino e assim possa sacrificar, porque “ a aproximação da divindade é perigosa para quem não é puro” (MAUSS e HUBERT, 2005, p. 28). Se o sacrificante não passar por um processo de purificação, ele pode até morrer no momento da cerimônia.

c. O sacrificador: neste caso, há uma pessoa destinada a realizar o sacrifício, que comumente é chamado de sacerdote4, ou seja, este tem a possibilidade, por estar mais próximo dos deuses, de sacrificar sem ser consumido junto com o sacrifício. O sacerdote, neste caso, torna-se o elo

2 Mauss e Hubert distinguem sacrifícios pessoais, em que o sacrificante é afetado pelo sacrifício, e sacrifícios objetivos – estes são os objetos que recebem ação sacrificial. (MAUSS e HUBERT, 2005, p. 19).

3 Posteriormente, este esquema será aplicado ao rito sacrificial dos israelitas, conforme Levítico 6.17-23, e, deste modo, será possível a observação e análise do mesmo em determinada cultura.

4 Entre os hebreus, o sacerdote, como representante de Deus, deveria seguir uma série de rituais para estabelecer um “contato” entre Deus-povo. No livro de Levítico, especial-mente, encontramos as normas para que esses rituais aconteçam.

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Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 21-30, jul./dez. 2011 23

entre o mundo sagrado e o profano, fazendo com que ambos participem de um mesmo status, sem, necessariamente, poluir-se mutuamente.

d. O lugar e os instrumentos: o sacrifício5 para ocorrer sem que haja contaminação, deve ser realizado em local específico, em horários determinados. Se a cerimônia for realizada fora do local estabelecido, segundo Maus e Hubert, “a imolação não é mais que um assassinato” (MAUSS e HUBERT, 2005, p. 32), o que desvincula completamente o sacrifício do ato sagrado. O lugar onde se sacrifica é parte do esquema sacrificial e é de extrema importância, pois não se pode sacrificar em qualquer lugar, ou ainda, utilizar instrumentos que não estejam devida-mente purificados para a realização da cerimônia (MAUSS e HUBERT, 2005, p. 51).

e. saída do sacrifício: as pessoas e objetos utilizados devem ser, necessariamente, purificados ou inutilizados. No caso do sacerdote e das demais pessoas que participaram do sacrifício, há uma série de ritos de purificação para que não haja contaminação. Do mesmo modo, os instru-mentos são purificados, enterrados ou até destruídos, de acordo com sua função no sacrifício, para que não contaminem o ambiente e as pessoas que fazem parte daquele determinado grupo.

Deste modo, vimos que o sacrifício, para Mauss e Hubert, obedece a um esquema próprio, que é seguido por algumas civilizações, com traços que lhe são essenciais e adaptados em cada cultura. Estes delimitam o que faz parte da esfera do sagrado e que faz parte do profano. No en-tanto, cada povo expressa, no rito sacrificial, o ato de unir-se, de alguma maneira, à divindade.

Estrutura sacrificial em GirardPara René Girard, o sacrifício é o fundamento das sociedades primi-

tivas, é uma saída apropriada para manter um equilíbrio social razoável, porque há a percepção de que, para manter a sociedade nos padrões, rejeitando a violência dentro dela, tem que haver o sacrifício reparador. Isto é, para apaziguar a violência do grupo há que se encontrar uma vítima alternativa.

Segundo Girard, a “imolação de vítimas animais desvia a violência de certos seres que se tenta proteger, canalizando-a para outros, cuja morte pouco ou nada importa” (GIRARD, 2000, p. 15), ou seja, quando se canaliza a violência para determinado animal, por exemplo, rompe-se uma cadeia de violência justificada pela eleição de um bode expiatório (GIRARD, 2004, p. 55).

5 Neste item os autores Mauss e Hubert, explicam sobre a ornamentação da vítima em alguns países, para maiores esclarecimento ver a obra citada.

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Assim, há um quadro de violência que se autojustifica pelo sacrifí-cio de uma vítima que é escolhida para “enganar a violência”. A vítima é sacrificada em nome do grupo. Ela se torna uma vítima fundadora ou bode expiatório que é o cerne da diferenciação primeira das sociedades: a comunidade de um lado; a vítima do outro. Com isso, a violência sacri-ficial apazigua e reconcilia.

O sacrifício tem sua eficácia enquanto processo preventivo, que coíbe uma violência recíproca desenfreada na comunidade. Para que cumpra seu papel enquanto última palavra da violência, o sacrifício precisa de uma vítima que não reaja violentamente ou vingue-se de outra maneira. Por isso, esta é sempre alguém à margem da sociedade (animal, criança, rei, estrangeiro, escravo, prisioneiro, bruxa, messias e outros).

1. Estereótipos da perseguiçãoNo texto “O bode expiatório”, René Girard apresenta quatro estere-

ótipos que marcam a perseguição (GIRARD, 2000, p. 33):

1. A descrição de uma crise social e cultural, ou seja, de uma indi-ferenciação generalizada;

2. Crimes “indiferenciadores”;3. Se os autores mencionados desses crimes possuem marcas de

seleção vitimária, marcas paradoxais de indiferenciação;4. A própria violência.

Segundo Girard, “os males que a violência pode causar são tão grandes e os remédios tão aleatórios, que a ênfase é colocada na pre-venção. E o domínio do preventivo é primordialmente religioso. A preven-ção religiosa pode ser um caráter violento. A violência e o sagrado são inseparáveis.” (GIRARD, 2000, p. 21).

Por isso, há dois momentos a serem considerados na execução do sacrifício: “O primeiro momento é a acusação de um bode expiatório ainda não sagrado, sobre o qual toda a força maléfica se aglutina. Ele é recoberto pelo segundo, o da sacralidade positiva, suscitada pela recon-ciliação da comunidade” (GIRARD, 2004, p. 67). Neste sentido, o sagrado é a ferramenta reguladora da qual as sociedades lançam mão diante da ameaça de violência generalizada. Este processo é a própria fundação da cultura. O âmbito do sagrado está pleno de violência, e a violência é sempre sacralizada.

Teoria sacrificial em diálogo com a teologia bíblica (Lv 6.17-23)A prática sacrificial acontece desde tempos remotos, embora não haja

relatos de onde aparece pela primeira vez nem de que o povo influenciou

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a teologia sacrificialista entre os israelitas. Contudo, é fato que a prática sacrificial é antiga e anterior à cultura israelita, pois é possível encontrá-la na Mesopotâmia, Arábia e Canaã6.

É provável que, quando da sedentarização dos hebreus na Palestina, os sacrifícios tenham sido tomados dos cananeus e combinados aos anti-gos ritos de sangue. Isso ocorreu principalmente no período monárquico em Israel7, quando a exigência do sacrifício era notória e assegurava a reis, governantes e, em menor grau, ao povo, a segurança de expiação dos pecados por meio do ato de sacrificar e, assim, eles participavam da esfera divina.

Os ritos sacrificiais, de um modo geral, compartilhavam a crença de que no ato de sacrificar ocorria uma união mística com a divindade. O ser que oferece o sacrifício e o próprio sacrificado participam da esfera sagrada. De Vaux explica esta crença da seguinte maneira (DE VAUX, 2003, p. 486):

1. A união com a divindade por comer uma vítima divina – neste o pressuposto é totêmico: há um parentesco entre os membros da tribo e o deus da tribo, que é o ancestral de todos e cuja vida circula no animal que lhe é consagrado, o totem. O sacrifício tem por fim reforçar esse parentesco, participar na vida do deus comendo seu animal sagrado.

2. A união com a divindade por intermédio da vítima que representa o ofertante – a vítima é o substituto do ofertante que, pela im-posição das mãos, lhe transferiu, ao mesmo tempo, seu pecado e seu princípio vital. Tal princípio está no sangue. Sendo assim, os diferentes ritos de sangue, unção do altar, efusão ao pé do altar, aspersões, colocam o princípio vital da vítima, a saber, do ofertante a quem ele substituiu, em contato com a divindade e estabelece ou restabelece o elo entre o deus e seu fiel.

Deste modo, observa-se que, no primeiro, há por parte da comuni-dade uma participação divina e o sacrifício ocorre para reafirmar essa comunhão. Já no segundo, há uma transferência do pecado, mas a própria

6 De acordo com de Vaux, o sangue no sacrifício mesopotâmico “tem uma função com-pletamente secundária; é até duvidoso que ele aparece nesses ritos, pois as libações de sangue não são atestadas explicitamente nos sacrifícios normais”. Sobre os árabes, De Vaux salienta que é difícil relacionar o sacrifício israelita com o árabe, “pois não há uma, mas muitas religiões árabes pré-islâmicas”, que são diferentes de acordo com a região. Sobre os sacrifícios cananeus, salienta-se que, segundo a Bíblia, “há uma se-melhança fundamental entre o sacrifício cananeu e o israelita, mas textos bíblicos não podem provar que os termos técnicos relativos ao sacrifício tenham sido idênticos entre israelitas e cananeus” (De VAUX, 2003, p. 471-475).

7 O período monárquico abarca de mais ou menos 1050 a.C. a 590 a.C.

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vítima participa da divindade e a restabelece no ofertante por meio do sangue. Nestes dois casos, o sacrifício é cruento e, para restabelecer o vínculo entre o fiel e seu deus, o sangue8 tem que ser ofertado, pois nele há o princípio vital de todos os seres, que deve unir-se à divindade.

1 Mauss e Hubert em diálogo com a teologia bíblicaLeis sobre os sacrifícios encontram-se em Levítico 1-7, contudo

observamos que Lv 6.17-23 apresenta, especificamente, a lei sobre a purificação do pecado. Neste texto encontramos o sacrifício de abate (zebah). Trata-se de um sacrifício de comunhão, do qual participam o sacerdote e o povo. O esquema apresentado por Mauss e Hubert sobre o sacrifício será, portanto, aplicado a esta perícope.

1.1 TexTo: LevíTico 6.17-2317. Javé falou a Moisés:18. Diga a Aarão e seus filhos:A vítima pelo pecado será imolada9 diante de Javé, no mesmo lugar onde se imola o holocausto.É porção sagrada.19. O sacerdote que oferecer a vítima poderá comer dela. Deverá comê-la em lugar sagrado, no átrio da tenda da reunião. 20. Tudo o que tocar a carne ficará consagrado.Se o sangue respingar na roupa, a mancha será lavada em lugar sagrado.21. A vasilha de argila em que a carne foi cozida será quebrada. E se foi cozida numa vasilha de bronze será esfregada e bem lavada com água.22. Todos os homens sacerdotes poderão comer dela. É porção sagrada.23. Mas não se comerá nenhuma das vítimas oferecidas pelo pecado, cujo sangue tenha sido levado à tenda da reunião, para ser oferecida no santuário pelo pecado; elas deverão ser queimadas.

Poderíamos subdividir esse texto em quatro seções, e fazer um pa-ralelo com as teorias de Mauss e Hubert, da seguinte maneira:

a. O mandamento divino e a vítima (entrada e sacrificante) v. 17-18b. Porção sacerdotal (sacrificador) v. 19c. O local do sacrifício (lugar, instrumentos e saída) v. 20-21d. O interdito no sacrifício (saída do sacrifício) v. 22-23

8 Segundo a nota da Bíblia Edição Pastoral, “o centro do sacrifício pelo pecado é o sangue, que é a sede da vida e tem força para perdoar o pecado (Cf Lv 17.11)”.

9 A imolação é um talho que se faz no pescoço da vítima para retirar-lhe todo o sangue. O sangue é a vida do animal e, no sacrifício, representa a vida da pessoa que o oferece.

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a. o mandamenTo divino e a víTima (enTrada e sacrificanTe) v. 17-1817. Javé falou a Moisés: 18. Diga a Aarão e seus filhos: A vítima

pelo pecado será imolada diante de Javé, no mesmo lugar onde se imola o holocausto. É porção sagrada.

Há nestes versos o que Mauss e Hubert chamam de entrada: uma apresentação dos personagens envolvidos no sacrifício – Javé, Sacerdo-te, povo, vítima. Deus ordena ao sacerdote e ao povo que ofereça uma vítima a ser imolada pelo pecado do povo. Claro que nem todo o povo pode participar do sacrifício em si, mas é parte dele no que diz respeito à finalidade do sacrifício, a saber, trata-se de uma celebração para perdão de pecado. O final do verso 18 legitima a ideia de que a vítima é sagrada. Ela saiu do ambiente profano e agora participa da esfera divina; por isso, é porção sagrada.

b. Porção sacerdoTaL (sacrificador) v. 1919. O sacerdote que oferecer a vítima poderá comer dela. Deverá

comê-la em lugar sagrado, no átrio da tenda da reunião.No v. 19, aparece o sacerdote como o sacrificador, aquele que tem

a função de restabelecer o contato entre deus e os seres humanos por meio do oferecimento da vítima a ser sacrificada. Como parte do ritual, o sacerdote pode comer dela, porém deverá fazê-lo em lugar sagrado, isso para que não haja “contaminação” daquilo que é sagrado no mundo profano, o que traria uma série de sortilégios para o grupo em que o sacerdote10 está inserido.

Ao oferecer a vítima e comer dela também, há no sacerdote o que Mauss e Hubert chamam de “natureza divina”, ou seja, o sacrificador recebe, após ritos de purificação, status divino. Isso aparece neste texto quando ao sacerdote é dada a autorização para comer um pedaço da vítima a ser sacrificada e como parte dessa sacralidade observa-se que ele deverá comer no átrio da tenda da reunião.

c. o LocaL do sacrifício (Lugar, insTrumenTos e saída) v. 20-2120. Tudo o que tocar a carne ficará consagrado.Se o sangue respingar na roupa, a mancha será lavada em lugar

sagrado.21. A vasilha de argila em que a carne foi cozida será quebrada.E se foi cozida numa vasilha de bronze será esfregada e bem lavada

com água.

10 Em Levítico, há normas específicas sobre os ritos de purificação do sacerdote para que este esteja apto a realizar qualquer sacrifício, sendo ele o representante ou até mesmo a própria divindade.

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Nestes versos, podemos observar que há no sagrado um interdito que o torna, ao mesmo tempo, puro e impuro11. Por isso, há prescrições que determinam como será feita a “desconsagração” daquilo que foi to-cado em parte ou totalmente pela vítima imolada. Neste caso, podemos perceber a ideia de que uma aproximação com o divino sem prévio es-tabelecimento de limites ou de consagração é perigoso. O que é impuro não pode participar daquilo que é puro, sob a condição de que o sagrado também pode tornar-se impuro.

Há aqui também o que Mauss e Hubert chamam de saída. É o que ocorre quando termina o sacrifício, o que é feito com as pessoas e objetos utilizados no sacrifício. Neste caso, o que tocou a vítima se tornou sagra-do, por isso todos os objetos que partilharam da porção sagrada devem ser destruídos, a fim de eliminar o “mal”, o que pode trazer impureza no meio do grupo. Os itens que não podem ser destruídos devem ser lavados abundantemente para retirar do objeto qualquer potencial de impureza.

d. o inTerdiTo no sacrifício (saída do sacrifício) v. 22-2322. Todos os homens sacerdotes poderão comer dela. É porção sagrada.23. Mas não se comerá nenhuma das vítimas oferecidas pelo pecado, cujo sangue tenha sido levado à tenda da reunião, para ser oferecida no santuário pelo pecado; elas deverão ser queimadas.

Nesta parte, observa-se um interdito sobre o sacrifício, em que não se deve comer nenhuma das vítimas oferecidas pelo pecado, estas não deve ser partilhadas nem pelo sacerdote. Há aqui uma restrição absoluta, pois se trata de um sangue que pode contaminar até mesmo quem já foi sacralizado. A contaminação se dá pelo sangue da vítima, que tem em si o poder de contaminar o que nela tocar, por isso deverá ser queimada. Em Mauss e Hubert, trata-se do fogo como algo purificador, “a incineração e o consumo pelo sacerdote tinham o fito de eliminar completamente do am-biente temporal as partes do animal” (MAUSS e HUBERT, 2005, p. 44).

11 Mary Douglas analisa ritos de pureza e sua função no meio do grupo. Para ela, na análise de religiões primitivas, é possível perceber que a pureza ou higiene não se trata apenas de um conceito estético, mas os “rituais de pureza e impureza criam unidade na experiência do grupo” (p.13). Os limites que organizam e dão unidade ao grupo são guardados por perigos que ameaçam os transgressores. Para que o grupo conserve as “ideias sobre separar, purificar, demarcar e punir transgressões”, os limites têm como sua “função principal impor sistematização numa experiência inerentemente desordenada” (p. 15), ou seja, há que se criar interditos para que não haja transgressões em ritos ou cerimônias sagradas. Para mais esclarecimentos, conferir: DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Debates, 1984.

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Este texto bíblico também apresenta a relação que Mauss e Hubert fazem entre sacrifício e consagração, uma vez que “o objeto passa do domínio comum ao domínio religioso” (MAUSS e HUBERT, 2005, p. 15). Aqui temos o animal que se torna puro e impuro ao mesmo tempo, além dos objetos e roupas que, quando entram em contato com alguma parte da vítima, tornam-se consagrados, e para sair desse estado e retornar ao mundo profano precisam passar por um ato de “desconsagração”.

Girard em diálogo com a teologia bíblicaNo caso de Levítico 6.17, observa-se o ritual para o sacrifício pelo

pecado, a saber, uma distinção entre aquilo que é puro e impuro. Para a realização do sacrifício neste caso é necessário obedecer alguns critérios. Talvez se aplique aqui o primeiro estereótipo apresentado por René Girard: “a descrição de uma crise social e cultural, ou seja, de uma indiferenciação generalizada” – o pecado, neste caso.

O pecado traz para a comunidade uma crise que pode desencade-ar um processo de morte. Neste sentido, há a indiferenciação, ou seja, rotula-se o que é o pecado e o pecador, mas para que este seja purifica-do há um ritual a ser seguido, que consiste na vitimização de um animal que representa o pecador. Após a imolação, o animal torna-se “porção sagrada” (v. 18), por isso o sacerdote poderá comer dela, porém há um local específico para conter a sacralidade desta porção, a saber, o lugar sagrado. Tudo o que tocar a carne fica consagrado, demonstrando que esta sacralidade apresenta o que Girard chama de “ambivalência” (GI-RARD, 2000, p. 13).

No caso do animal imolado, observa-se também o que Girard apre-senta da seguinte maneira: “a sociedade procura desviar para uma vítima relativamente indiferente, uma vítima ‘sacrificiável’, uma violência que talvez golpeasse seus próprios membros, que ela pretende proteger a qualquer custo” (GIRARD, 2000, p. 16). Deste modo, o animal passa a ser uma “vítima sacrificiável”, que carrega a ambivalência e, por isso, pode substituir aquele a quem a sociedade precisa proteger. Se não houvesse essa vítima, certamente haveria uma violência generalizada, uma vez que a vingança geraria um círculo vicioso. Com a substituição sacrificial, isso pode, num certo sentido, “enganar a violência”.

Temos neste texto a potência do “mal” que é o bode expiatório. Este é uma vítima escolhida para receber todo o pecado da comunidade (v. 18). Nele se expressa ou se projeta o pecado da comunidade que pode gerar uma crise no sistema. Por isso, a necessidade de se sacrificar para apaziguar os instintos de violência entre os seres humanos, para que não haja violência coletiva pela prática do pecado, e assim, a acolhida do “mal” na comunidade.

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considerações FinaisA partir dos conceitos estudados, pudemos observar como se aplicam

as teorias de Mauss, Hubert, assim como de Girard, na teologia bíblica do sacrifício expressa em Levítico 6.17-23. Deste modo, a conclusão é que os referenciais teóricos nos auxiliam numa leitura antropológica do texto bíblico e nos apresentam outra ótica que ajuda a compreender a importância de estabelecer limites na sociedade, para que ela não entre em colapso. Os referenciais nos mostraram a perspectiva do sacrifício como ato violento e legitimador na esfera sagrada da cultura israelita.

Também é possível observar que, diferentemente do processo de violência que a vítima pelo pecado desencadeia, conforme Girard, o Antigo Testamento propõe outro processo para lidar com vítimas em sua cultura: ao invés da figura do bode expiatório para coibir a vingança e a rivalidade generalizada, a Bíblia propõe o perdão e a dignidade da vítima, como se percebe posteriormente em Jesus Cristo. Neste caso, a Bíblia indica uma alternativa para a violência fundadora da cultura, que não foi possível analisar com profundidade neste trabalho, mas que nos deixa aberta outra porta para continuar a pesquisa.

Referências bibliográficasBíblia Sagrada, Edição Pastoral. São Paulo: Paulinas, 1999.BAUMGARTNER, W. e KOEHLER, Ludwig. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. v. 1. Leiden/New York/Köln: E. J. Brill, 1994.BORN, A. Van den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1992.DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Teo-lógica, 2003.DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Debates, 1984.GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra/ Unesp, 2000.HARRIS, Laird Harris et all. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testa-mento. São Paulo: Vida Nova, 1998.MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005.MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1984.RODRIGUES, Elisa. Regras de pureza e poluição no Novo Testamento. São Paulo: s/ed, 2005. Texto apresentado ao grupo de pesquisa em Apocalíptica Judaica e Cristã “Orácula.”SCHULTZ, Adilson. A violência e o sagrado segundo René Girard. Disponível em: <http://www.est.com.br/nepp/numero_03/violencia.htm>, acesso em 21 jun 2007.WERNER, Schmidt H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2004.WILLI-PLEIN, Ina. Sacrifício e culto no Israel do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2001.

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Trajetória das mulheres metodistas: memória, presença e desafios

Trajectory of Methodist Women: memory, presence and challengesTrayectoria de las Mujeres Metodistas: memoria, presencia y desafiós

Margarida Fátima Souza Ribeiro

ResumoEste artigo apresenta, num primeiro momento, uma breve trajetória das mulheres metodistas, desde a origem do movimento na Inglaterra, passando pelos Estados Unidos e chegando ao Brasil, demonstrando o trabalho desenvolvido por elas nos diversos ministérios, e particularmente no ministério pastoral. Num segundo momento, destaca-se a trajetória do ministério pastoral feminino no Brasil nas Igrejas históricas e nas Igrejas pentecostais.Palavras-chave: Mulheres; memória; ministério pastoral feminino.

AbstRActThis article presents, at first, a brief history of the Methodist women, since the origin of the movement in England, via the United States and arriving in Brazil, showing the work done by them in the various ministries, and particularly in the pastoral ministry. Secondly, there is the trajectory of pastoral ministry in Brazil in the women’s historic churches and the Pentecostal churches.Keywords: Women; memory; pastoral ministry for woman.

ResumenEste artículo presenta, en un primer momento, una breve trayectoria de las mujeres metodistas, desde el origen del movimiento en Inglaterra, pasando por los Estados Unidos y llegando al Brasil, lo que demuestra el trabajo realizado por ellas en los distintos ministerios, y en particular en el ministerio pastoral. En segundo lugar, subraya la trayectoria del ministerio pastoral femenino en el Brasil, en las iglesias históricas y en las iglesias pentecostales.Palabras clave: Mujeres; memoria; ministerio pastoral femenino.

mulheres metodistas da Inglaterra ao brasilSusana Wesley, mãe de João Wesley, considerado o fundador do

Metodismo, era uma mulher firme e metódica, que sabiamente educou dezenove filhos. Ela dominava o grego e o latim e tinha um bom conhe-cimento da língua francesa. Insistia na educação não somente dos filhos, mas também das filhas.

Em 06 de fevereiro de 1712, Susana escreveu uma carta a Samuel Wesley, seu esposo. Ele era pastor e estava em viagem, atendendo a uma convocação da assembleia deliberativa de bispos e clérigos angli-

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canos, em Londres, Inglaterra. Susana havia começado a ler os sermões para a sua família, como forma de educação religiosa. Mas os criados e amigos pediram permissão para assistir e, eventualmente, ela chegou a reunir em sua casa mais de quarenta pessoas. O marido, inquieto com essas práticas, a questionara em uma carta. Porém, Susana respondeu, escrevendo:

(...) como sou mulher, também sou a senhora de uma numerosa família. Muito embora a maior responsabilidade das almas nela contidas caia sobre ti, mesmo assim, na tua ausência, não posso deixar de encarar cada alma que tu deixas sob meus cuidados como um talento entregue a mim sob confiança, pelo grande Senhor de todas as famílias do céu e da terra. E se for infiel a Ele ou a ti, em aumentar estes talentos, como lhes responderei quando ele me mandar prestar contas da minha mordomia? (...) Quanto à sua proposta de deixar outra pessoa [do sexo masculino] ler, infelizmente tu não consideras que naipe de gente é este! Não acho que qualquer homem entre eles possa ler um sermão sem soletrar uma boa parte dele; nenhum membro de nossa família tem voz suficientemente forte para fazer-se ouvir por um número tão grande de pessoas (REILY, 1981, p. 50-52).

Susana Wesley persistiu, pois entendia que “maior era aquele que a mandava falar do que aquele que a mandava calar-se”. Por conta dessa influência, anos mais tarde João Wesley disse que o chamado ordinário de Deus para o ministério era para os homens e o chamado extraordinário era para mulheres. Depois de fortes resistências, “foi obrigado a aceitar que o Espírito de Deus queria falar através de homens e mulheres não formados, mas que receberam o poder de pregar a mensagem do Evan-gelho. Wesley aceitou a evidência dos fatos e os inseriu, de forma típica para ele, na organização de seu movimento” (KLaIBER; MARQUARDT, 1999, p. 190). Ele apoiou a pregação dos leigos e, no que tange às mu-lheres, aconselhou e autorizou cerca de vinte e sete pregadoras, entre elas Sarah Crosby, Grace Murray, Sarah Mallett, Hanah Ball e Elizabeth Ritchie. Entretanto, a questão das mulheres pregadoras foi sendo tratada conforme a inserção do movimento metodista nas diferentes culturas.

Já a Condessa de Huntington ajudou a sustentar o trabalho mis-sionário de João Wesley e Jorge Whitefield (pregador leigo). E Ana Ball organizou a Escola Dominical em 1769 (onze anos antes do jornalista Ro-bert Raikes). Muitas mulheres iniciaram o trabalho missionário em lugares em que o movimento wesleyano ainda não havia chegado. Por exemplo:

Leslie F. Church conta que, quando George Whitefield foi a Barnard Castle, em 1753, perguntou ao dono da hospedaria se havia metodistas na vizinhan-

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ça. O homem o olhou e disse: Não ouvi falar de nenhum, porém aqui tem as que chamamos “tamancos barulhentos”. Surpreso, Whitefield descobriu que esse era o nome dado no local às mulheres metodistas. Elas se loco-moviam desde suas casas, todas as manhãs muito cedo, para o local de reunião de oração, usando seus tamancos de madeira. Elas tinham que usar esses tamancos por causa dos pântanos e lama que havia na localidade. No silêncio da madrugada, tantos tamancos deviam realmente fazer muito barulho (CHURCH, 1996).

Mary Bosanquet era guia de classe e pregadora leiga. João Wesley considerava a sua pregação como sendo “luz e fogo”; ou seja, ela era sábia e inteligente, cheia de ânimo e vivacidade. as mulheres também participavam no sustento do trabalho missionário, com recursos financeiros e atuação efetiva.

Nos Estados Unidos, destacamos a participação de Francis Willard. Ela chegou a ser Presidente Nacional da União Cristã de Mulheres pela Temperança. Também defendeu outras causas, referentes ao direito de voto feminino e à educação. O grupo liderado por Francis foi considerado a primeira organização de mulheres americanas.

No Brasil, em geral a trajetória da chegada do metodismo é descrita a partir do protagonismo dos missionários. Mas os caminhos foram trilhados inicialmente pelas mulheres visitadoras. Os jornais Expositor Cristão e O Testemunho contêm alguns rastros da trajetória dessas mulheres. além disso, há referências nas atas das primeiras conferências realizadas na Igreja Metodista do Brasil, ainda em processo de formação e pesquisas realizadas pelo historiador Duncan Alexander Reily.

Nas primeiras atas das conferências aparecem as seguintes palavras: visitantes e visitadoras. Inicialmente nos pareceu redundante, mas somente após percorrer aproximadamente quinze anos dessas atas, constatamos que as pessoas que são visitantes nestas primeiras conferências são pas-tores, missionários, autoridades locais. as visitadoras tratam-se de outra categoria, contudo, não é possível encontrar uma referência explícita ao trabalho desenvolvido por elas. Sabe-se que se deslocavam de casa em casa, especialmente para ler a Bíblia para as pessoas, num período em que a Bíblia era lida em latim e de difícil acesso ao povo, sem contar as di-ficuldades em relação à leitura, devido ao alto índice de analfabetismo1.

1 O site Reescrevendo a educação destaca: “As taxas de analfabetismo entre os brasileiros com 15 anos ou mais decresceram de 65% em 1920 para 13% em 2000. Esse decréscimo resulta da expansão paulatina dos sistemas de ensino público, ampliando o acesso à edu-cação primária. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tal como se faz em outros países, sempre apurou os índices de analfabetismo com base na autoavaliação da população recenseada sobre sua capacidade de ler e escrever.” Disponível em http://www.reescrevendoaeducacao.com.br/2006/pages.php?recid=28 Acesso em 29 de dezembro de 2007. Estes dados nos mostram as dificuldades enfrentadas pelas visitadoras.

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O historiador Reily descreve o seguinte:

Rev. Vollmer tem desenvolvido um grupo de líderes de classes e é ajudado por um grupo esplêndido de Mulheres da Bíblia que dão uma parte de cada dia à visita e leitura da Bíblia (...) a Reitora do Colégio Americano, “nossa mulher da Bíblia tem sido fiel na visitação e na distribuição de literatura cristã” (...) em “Santa Maria, (RS) uma mulher da Bíblia está empregada” (REILY, 1990, p. 82).

O Rev. Vollmer atuava em Porto Alegre, onde também é citado o trabalho desenvolvido pela reitora e pelo grupo de “mulheres da Bíblia”. A outra mulher está na cidade de Santa Maria, que fica no interior do Estado do Rio Grande do Sul. O historiador também se refere ao trabalho desenvolvido pela missionária amélia Elerding, registrado em uma das notas de rodapé do artigo Os metodistas no Brasil (1888 –1930):

O Trabalho em São Paulo foi liderado por uma missionária Amélia Ellerding, a qual trabalhou por uns sete anos, geralmente com a cooperação de quatro mulheres da Bíblia. Cada ano entre 1915 e 1922, menos 1919, há um rela-tório circunstanciado desse trabalho. Sofreu solução de continuidade com a volta da missionária para os Estados Unidos, mas foi retomado pelas próprias mulheres da Bíblia depois (AR 122, p.130; cf. REILY, 1990, p. 91).

A citação acima originalmente encontra-se no Annual Report of the Board of Missions of the Methodist Church South2, em que constava o relato das pessoas designadas pela Igreja Metodista dos Estados Unidos para exercer atividades missionárias em diversos países, especialmente África, américa Latina e China.

O trabalho desenvolvido por Amélia Elerding e as demais mulheres foi mais intenso em São Paulo: “Em 1914, quatro mulheres da Bíblia realizaram 3.493 visitas, quase 2.500 com leitura da Bíblia e oração” (REILY, 1990, p. 82).

Outra visitadora foi D. Elisa V. de Jesus, protestante de berço, nas-cida no Rio Grande do Sul, que desde 1896 exerceu essa função. D. Della V. Wright3, oriunda dos Estados Unidos, além de ensinar um grupo 2 Há outros relatos do trabalho desenvolvido pelas mulheres no Annual report of the

Woman´s. New York: Board of Missions and Church Extension of the Methodist Church. Esta publicação, a partir dos anos 40, passa a ser editada como revista. Na Biblioteca da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista há alguns números a partir de 1949.

3 “D. Della é moça que, a par de vastos conhecimentos possue um coração meigo e ca-rinhoso que a tornam a predilecta das crianças. Com geral satisfação tem ella dirigido o annexo n. 1 de nosso collegio, que funciona a rua do Parque n.76, onde nossa egreja possue uma missão muito prospera (...) DD. Clara Fullerton e Della Wright tem contribu-ído para o desenvolvimento de nossos collegios”. In: O TESTEMUNHO: Orgam da Egreja Methodista no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, vol. 2, 15 de janeiro de 1905, p. 1.

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de aproximadamente 40 a 50 crianças, também dedicou as suas tardes à visitação. Outra delas foi Adélia Mayer, natural da Alsacia Lorena, que chegou ao Brasil em 1899, casou-se e enviuvou muito cedo.

O jornal O Testemunho também destaca na primeira página, Eliza-beth Hafeley, que chegou ao Brasil depois de ter tido uma experiência na África. Seu trabalho em Porto Alegre era “limitado aos membros da vasta colônia alemã desta cidade a quem ela visita com assiduidade religiosa. E esta irmã, uma poetisa de fina tempera, e queremos crer que quando ela estiver familiarizada como o nosso idioma, nosso hynario evangélico será enriquecido com suas produções” (O TESTEMUNHO 1905. p. 1).

Há também breves relatos das atividades realizadas por Julia Ribeiro, Maria Araújo, Albertina Guimarães e Núncia Bevilacqua: o encaminhamen-to de 23 novas sócias à Sociedade Missionária de Senhoras, 16 novos membros à Igreja Metodista, 175 novos alunos à Escola Dominical, e 2 pessoas à Escola Paroquial. Quanto à venda de livros, constam 81, além das assinaturas do Expositor Cristão e do Bem-Te-Vi (revista destinada às crianças). Podemos dizer que além de visitar, ler a Bíblia, as visitadoras também realizavam o serviço de colportagem4, essencial na propagação do protestantismo brasileiro. Segundo o historiador Leonard:

Desde a Independência eram distribuídas Bíblias – primeiro pela Sociedade Bíblica Britânica, e depois pela Sociedade Bíblica Americana, que se valiam especialmente dos bons ofícios de comerciantes em viagem que colocavam caixas de Escrituras Sagradas, à disposição de quem as desejasse - deixan-do-as mesmo, algumas vezes pura e simplesmente abertas nas alfândegas (LEONARD, s/data, p. 42). O serviço de venda e distribuição era realizado pelos colportores,

que eram na maioria missionários, ou pessoas contratadas pelas Socie-dades Bíblicas para oferecer a Bíblia de casa em casa. algumas dessas pessoas contratadas eram mascates ou exerciam outra profissão além da colportagem. No entanto, pelo menos neste período de implantação do protestantismo não encontramos estas terminologias “colportores/ colportagem” sendo utilizadas para mulheres exercendo esta atividade. Somente “mulheres da Bíblia”, conforme dito anteriormente.

assim sendo, encontramos até o momento as seguintes visitado-ras: Elisa V. de Jesus, Della V. Wright, Adélia Mayer, Elizabeth Hafeley, Adelaide Vurlod, Amélia Elerding, Julia Ribeiro, Maria Araújo, Albertina Guimarães e Núncia Bevilacqua; além do grupo de mulheres da Bíblia 4 A palavra “colportagem” vem de “Colportor” que deriva do francês e significa “levar no

pescoço”. Esse nome originou-se do costume que tinham os colportores valdenses de levar os escritos sagrados debaixo da roupa, ou numa bolsa que pendia do pescoço. Disponível http://www.asdmr.org.br/html/colportagem.html acesso em 27 de dezembro de 2007.

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que atuava em Porto Alegre, Santa Maria e São Paulo. Eram mulheres solteiras, viúvas, estrangeiras, brasileiras que exerceram a função de vi-sitadoras; dirigindo reuniões, distribuindo e procedendo à leitura da Bíblia, dialogando sobre religião e preparando a trajetória dos missionários que implantaram igrejas a partir das bases por elas levantadas.

Quanto às missionárias e educadoras, ressalta-se Marta Watts, que fundou o Colégio Piracicabano e perseverou, em meio às dificuldades do seu tempo, pois no primeiro momento teve somente uma aluna, Maria Esco-bar. Do Colégio, nasceu a Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep. Destacamos ainda a educadora Carmem Chacon, de apenas 17 anos.

Em 21 de março de 1885 João Corrêa recebeu nomeação para o circuito do Rio Grande do Sul. João Corrêa, Maria Rejos (esposa), Ponciana C. Rejos (filha), e a professora Carmem Chacon mudaram-se para Porto Alegre (...) em 27 de setembro de 1885 iniciaram-se as reuniões na casa da família Corrêa. Em outubro, abrimos ao público um colégio misto que foi inaugurado com três alunos. No final de 1886 eram 187 crianças. Com o passar do ano chegamos a sustentar 4 escolas que atingiram a frequência de mais de 400 alunos matriculados (O TESTEMUNHO, 1905, p.1).

Havia mulheres de todas as idades e etnias. Encontramos, por exem-plo, o relato de uma missionária negra.

Um dos exortadores, de nome João de Barrios, que visitava os povoados mais distantes do Rio Grande do Sul, conta em um de seus relatórios, a história de uma mulher que liderou um trabalho metodista. Tratava-se de uma mulher negra que, após libertada da escravidão, tinha imigrado de São Paulo para a colônia de Ijuí, no Rio Grande do Sul. Mesmo sendo analfabeta, tinha uma Bíblia e organizou uma classe para Estudos Bíblicos e cânticos. A maneira de superar o analfabetismo foi pedir sempre que alguém lesse o texto e então ela fazia o comentário, interpretando o texto lido. Quanto aos hinos, ela conhecia 14 que tinha aprendido de memória e assim os ensina-va. Escreve o mesmo relator que ainda hoje há muitos convertidos pelos esforços d’ella (O TESTEMUNHO, 1904, p.15).

as mulheres também criaram a primeira Sociedade Metodista de Senhoras, no dia 5 de julho de 1885, na Igreja Metodista do Catete, Rio de Janeiro. E na área social, Eunice Weaver organizou escolas e abrigos para crianças saudáveis, cujos pais eram portadores de hanseníase. Ocorreram também outras iniciativas e ações das mulheres em favor da cidadania. Na área de comunicação, foi criada, em 18 de setembro de 1929, a Voz Missionária, revista da mulher metodista no Brasil.

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Também destacamos a participação de Ottília Chaves, que esteve presente em todos os Concílios Gerais da Igreja Metodista, no período de 1930 a 1970/71. Ela chegou a ser presidente da Federação Mundial de Mulheres Metodistas.

o ministério pastoral feminino na Igreja metodistaNo Concílio Geral realizado em 1930, houve uma proposta quanto

à ordenação de mulheres na Igreja Metodista, mas não foi aprovada. Todavia, a ordem das diaconisas foi criada em 1946, tornando-se lei canônica em 1954. Somente na sessão da tarde do dia 20 de julho de 1970, em Belo Horizonte, Minas Gerais, o X Concílio Geral da Igreja Metodista decidiu:

Projeto de Reforma da Constituição da Igreja Metodista do Brasil – Proposta: Odyr Gedeão Köeche propõe e é aprovado com emenda a nova redação aos artigos 12 e 13, os quais ficam assim redigidos: Art. 12: Ordens são categorias eclesiásticas nas quais a Igreja Metodista acolhe aqueles que reconhece vocacionados para serviços especiais no desempenho de sua missão. Art. 13: As ordens na Igreja Metodista são duas: presbiteral e diaco-nal, constituídas, respectivamente, de presbíteros e diáconos, sem distinção de sexo. (...) O Artigo 12 submetido à votação apresenta o resultado: Sim – 68; Não – zero; e o Art. 13: Sim – 64; Não – zero. (IGREJA METODISTA, 1970/1971, p. 29).

A primeira presbítera ordenada foi a revda. Zeni Lima Soares, em 1974. No Concílio Geral de 1997, pela primeira vez na história, temos a presença de três candidatas ao episcopado, sendo eleita, em julho de 2001, durante o XVI Concílio Geral, a primeira episcopisa da Igreja Metodista, a revda. Marisa de Freitas Ferreira. Hoje, mais de sessenta por cento dos membros da Igreja Metodista no Brasil são mulheres. Dessas, aproximadamente 400 mulheres (presbíteras e pastoras) exercem o ministério pastoral5.

o ministério pastoral em outras igrejas cristãs no brasilQuanto ao Ministério Pastoral Feminino no Brasil podemos ainda

informar que historicamente as Igrejas foram acolhendo e reconhecendo o ministério pastoral, conforme relação a seguir:

Exército da Salvação – a primeira pregadora no Brasil foi Stella De-lisle Miche, oficial e logo ministra, que chegou ao Rio de Janeiro no dia 8 de maio de 1922 (REILY, 2003, p. 384).

5 No quadro estatístico consta um total de 214.715 membros, sendo 132.049 mulheres. São 1073 presbíteros e presbíteras, sendo 344 mulheres e 209 pastores e pastoras, sendo 67 mulheres. Dados fornecidos pela Sede Geral da Igreja Metodista no dia 17/10/2011.

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Igreja do Evangelho Quadrangular – fundada por uma evangelista, Aimee Semple McPherson, tem prestigiado as mulheres no ministério da pregação. No ano de 1958, seis ministras foram ordenadas (REILY, 2003, p. 388).

Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) - a pri-meira pastora a assumir congregação na IECLB foi Rita Marta Panke, formada pela EST em julho de 1976. (IECLB, 2006).

Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) – O Sínodo realizado em junho de 1984 aprovou a ordenação feminina na IEAB, sendo ordenada a primeira presbítera ordenada em maio de 1985 – Carmem Etel Alves Gomes. Outra conquista importante foi a eleição, na Catedral da SS. Trindade Porto Alegre, da primeira deã brasileira a revda. Marinez Rosa dos Santos, em janeiro de 1999. É mais um marco histórico na caminha-da do ministério feminino ordenado do Brasil (DIOCESE MERIDIONAL, IaB, 2011).

Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPI) - O Supremo Concílio da IPI aprovou, no dia 28 de janeiro, o ingresso das mulheres ao Ministério Presbiteral Feminino, podendo atuar como pastoras e presbíteras. Esta lei entrou em vigor no dia o3 de fevereiro de 1999.

No que diz respeito às Igrejas Pentecostais, destacamos a Congre-gação Cristã e a Assembleia de Deus, que iniciaram seus trabalhos em 1910 em território brasileiro. As mulheres também estiveram desde a nascente dessas Igrejas, mas em relação ao ministério feminino consta que na primeira Convenção Geral das Assembleias de Deus (CGADB) realizada em 5 a 10 de setembro de 1930, foi feita uma solicitação por Gunnar Adolf Vingren para ordenar as mulheres:

Vingren era fervoroso defensor do ministério da mulheres na Igreja, chegan-do a separar uma diaconisa no Brasil, o que na época criou certa polêmica entre os líderes assembleianos. a primeira diaconisa das assembleias de Deus no Brasil foi a irmã Emília Costa, consagrada por Vingren no Rio de Janeiro em 1926. (CONDE, 2001. p.34).

as mulheres da assembleia de Deus podem assumir cargos no Cír-culo de Oração, também podem ser consagradas ao Diaconato e assim receber autorização para organizar o culto e distribuir a ceia, e atuar na área social. Há algumas que atuam como missionárias. Mas para o exercício do ministério pastoral há muitas dificuldades, por exemplo,

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na Convenção Geral de 2001 realizada de 15 a 19 de janeiro de 2001, consta que:

A sessão plenária da manhã de 17 tratou inicialmente de assuntos relaciona-dos ao batismo nas águas e sua aplicação conforme a Bíblia. Um dos temas mais esperados foi o que tratou da aceitação do pastorado para as mulheres. A votação foi rápida e fulminante, sendo rejeitada por maioria esmagadora de votos. Dos cerca de 2,5mil ministros presentes à sessão, apenas três foram favoráveis à ordenação de pastoras (DANIEL, 2004, p. 555).

Em meio às controvérsias, ocorreu em 2005, a consagração da pri-meira pastora assembleiana:

No último dia 23, ao ser consagrada pastora ao lado de seu marido Jairinho, Cassiane também entrou para a história da assembleia de Deus. ao ser consagrada a primeira pastora da denominação centenária, a cantora quebra um dos maiores tabus da instituição: o pastoreado feminino. Cassiane foi pega de surpresa. Jairinho já vinha se preparando para assumir o pastora-do há 1 ano, sempre apoiado pela esposa, mas nenhum dos dois poderia imaginar o que aconteceria durante a cruzada da ”Convenção Nacional das Assembleias de Deus do Brasil, Ministério Madureira”, com uma multidão por testemunha. (...) Cassiane e Jairinho foram consagrados, pelo Bispo Manoel Ferreira (Presidente das Assembleias de Deus - Madureira do Brasil), pelo Pr. Reverendo Samuel Ferreira (Pastor Presidente da AD-Madureira do campo de Campinas - SP) e pelos Pastores Presidentes presentes. (Site oficial da cantora, 2009).

Certamente há muitas histórias a serem contadas: mulheres que enfrentaram obstáculos para anunciar o Reino de Deus, que encararam as mais diversas situações, deixando as suas marcas e nos desafiando a continuar a trajetória, na certeza de que o Deus da Vida nos renova a força para prosseguir nos caminhos da Missão!

Referências bibliográficasCHURCH, Leslie F. The Early Methodist people. In: SIMEONE, Maria Inês. As extraordinárias irmãs metodistas. São Bernardo do Campo: IMS, 1996.CONDE, Emílio. História das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2001.DANIEL, Silas. História da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.IGREJA METODISTA. Atas, suplementos documentos do X Concílio Geral e do II Concílio Geral Extraordinário, 1970/1971.

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KLaIBER, Walter e MARQUARDT Manfred. Viver a Graça de Deus: um compêndio da teologia metodista. São Bernardo do Campo: Editeo, 1999.LEONARD, Emile G. O Protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. São Paulo: ASTE, s/data.REILY, Duncan A. Metodismo brasileiro e wesleyano. São Paulo: Imprensa Me-todista, 1981.REILY, Duncan Alexander. Os metodistas no Brasil (1889 – 1930). In: V.V.a.a. His-tória, Metodismo, libertações: Ensaios. São Bernardo do Campo: Editeo, 1990.REILY, Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Aste, 2003.

PeriódicosO TESTEMUNHO: Orgam da Egreja Methodista no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: vol. 2, 15 de janeiro de 1905.O TESTEMUNHO: Orgam da Egreja Methodista no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: vol. 2, 1º de julho de 1905.O TESTEMUNHO: Orgam da Egreja Methodista no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ano 1, n.º 4, 15 de fevereiro de 1904.

sítios na internetCaSSIaNE. Cassiane é primeira pastora da Assembleia de Deus. Disponível em: <http://meadd.com/cassianefan/news/422214> . acesso em: 7 out. 2011.http://www.reescrevendoaeducacao.com.br/2006/pages.php?recid=28 . acesso em: 29 dez. 2007.IGREJA ADVENTISTA. Colportagem. Disponível em: <http://www.ads-mr.org.br/html/colportagem.html> . acesso em: 27 dez. 2007.IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL. EST comemora 60 anos. Disponível em: <http://www.ieclb.org.br/noticia.php?id=7978> . acesso em: 7 out. 2011.

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O carisma social das primeiras pastoras metodistas no Brasil

The social charisma of the first Methodist women pastors in Brazil

El carisma social de las primeiras pastoras metodistas en Brasil

Elena Alves Silva

RESUMOEste artigo analisa o ministério feminino na Igreja Metodista com ênfase na figura das pastoras metodistas no Brasil que conquistaram o direito à ordenação no início da década de 70 e passaram a desenvolver a prática pastoral com maior envolvimento em questões sociais na ótica das novas tendências teológicas e pastorais latino-americanas. O momento social brasileiro, os ideais progressistas dos movimentos sociais organizados e o movimento ecumênico influenciaram este início da ação pastoral feminina nos ministérios ordenados na Igreja Metodista. O termo “carisma social” define a ação pastoral diferenciada desenvolvida pelas pastoras metodistas. Palavras-chave: Ação social; mulheres; ministérios; Igreja Metodista; pastoral.

ABSTRACTThis article analyses women’s ministry in the Methodist Church with its specific characteristics. Major emphasis is given to the case of Methodist women pastors in Brazil who acquired the right to ordination early in the 1970s and began to develop their pastoral activity with more involvement in social issues from the viewpoint of new Latin American theological and pastoral tendencies. The present Brazil-ian social situation, the progressive ideas of the organized social movements and the ecumenical movement also influenced the start of pastoral action by women’s ordained ministry in the Methodist Church. The term “social charism” defines this different pastoral action developed by Methodist women pastors. Keywords: Social action; women; ministries; Methodist Church in Brazil; pastoral care.

RESUMENEste artículo analiza el ministerio femenino en la Iglesia Metodista dando énfasis al caso de las pastoras metodistas en el Brasil que conquistaron el derecho a la ordenación al inicio de la década de 70 y comenzaron a desarrollar la práctica pastoral con mayor compromiso en cuestiones sociales bajo la óptica de las nuevas tendencias teológicas y pastorales latinoamericanas. El momento social brasileño, los ideales progresistas de los movimientos sociales organizados y el movimiento ecuménico influenciaron este inicio de acción pastoral femenina en los ministerios ordenados de la Iglesia Metodista. El término “carisma social” define la acción pastoral específica desarrollada por las pastoras metodistas.Palabras clave: Acción social; mujeres; ministerios; Iglesia Metodista en Brasil; pastoral.

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IntroduçãoA abertura oficial para a ordenação feminina ao ministério pastoral na

Igreja Metodista no Brasil deu-se no X Concílio Geral da Igreja Metodista, realizado em dois períodos (1970-1971) na cidade de Belo Horizonte, MG. A primeira ordenação feminina ocorreu em São Paulo somente em 20 de janeiro de 1974. A primeira presbítera metodista ordenada foi a Revda Zeni de Lima Soares.

No período de 1970 a 1990, 47 mulheres concluíram o curso de Bacharel em Teologia na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, em São Bernardo do Campo, SP e outras concluíram o Curso de Bacharel em Teologia no Seminário Metodista César Dacorso Filho, no Rio de Janeiro. Hoje atuam como pastoras. Este artigo apresenta uma síntese da pesquisa de mestrado que teve por base o estudo de caso da práti-ca pastoral em ministérios sociais realizados por um grupo de pastoras formadas no período de 1970-1990. Foram envolvidas 12 pastoras nas entrevistas.

As duas décadas referidas são marcadas por um momento de gran-de efervescência política, econômica e social no Brasil. Nelas, situam-se alguns episódios importantes na Igreja Metodista como o fechamento (1967) e reabertura (1968) da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, em São Bernardo do Campo, SP; o fechamento do Instituto de Educação na Chácara Flora, Santo Amaro, SP (1970); a formulação do Plano para a Vida e a Missão da Igreja Metodista (1982) e a implantação da estrutura de Dons e Ministérios (1987). A Igreja Católica experimentou o auge da Teologia da Libertação e o país viveu o tempo da ditadura militar e a pos-terior redemocratização, com a anistia de presos políticos e campanhas por eleições presidenciais livres e diretas.

O tema surge, inicialmente, como uma convergência das perspec-tivas pastorais dessas primeiras mulheres metodistas ordenadas – fruto de uma trajetória de reivindicações (REILY, 1984) – e o momento social brasileiro no período. Trata-se de demonstrar como a conjugação desses aspectos contribuiu para a formação de uma consciência social crítica, apta a enriquecer a experiência pastoral prática dessas mulheres.

A Igreja Metodista, historicamente marcada por seu compromisso social e a única a estabelecer um Credo Social, constitui um espaço privilegiado para essas mulheres pastoras refletirem teologicamente e agirem pastoralmente diante da realidade brasileira.

O ministério feminino na Igreja MetodistaCom a autonomia da Igreja Metodista no Brasil, em 1930, foi apre-

sentada a proposta de inclusão da ordenação ao presbiterado, sem dis-tinção de sexo, nas leis da igreja. A proposição não foi aprovada naquele

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momento. Até que fosse novamente apresentada e aceita, e os Cânones da Igreja Metodista fossem alterados, passaram-se quarenta anos.

A Igreja Metodista foi uma das primeiras no Brasil a eliminar a dis-tinção de sexos no ministério ordenado. Este fato se deu em 1971, na segunda fase do X Concílio Geral desta igreja. No item a seguir, serão tratados aspectos do processo político e o contexto social em que se dá a abertura oficial para a ordenação feminina na Igreja Metodista.

O período que antecede a aprovação do ministério feminino ordena-do foi marcado por momentos de transição e inquietações na história do país. Por essa razão, os acontecimentos na Igreja Metodista no Brasil, no início dos anos 70, não podem ser dissociados de fatos religiosos e políticos que ocorreram no país e grande parte da América Latina desde as décadas de 50 e 60, com movimentos reivindicatórios por justiça e melhores condições de vida na cidade e no campo.

Em decorrência do empobrecimento que provocava o êxodo rural, deu-se a mobilização dos trabalhadores do campo em todo o país, como também de estudantes e operários, que, juntos, pediam a reforma agrária. As Igrejas não estavam alheias a esse momento e reivindicavam também a justiça social e as reformas necessárias (BEOZZO, 1994).

Na Igreja Metodista, a Junta Geral de Ação Social começou a apontar a urgência da aplicação prática do Credo Social, com sua forte ênfase na justiça social. A atuação dos secretários desta junta – Robert Davis, Almir dos Santos (que foi eleito bispo em 1965) e João Parahyba Daronch da Silva – preconizava uma sociedade responsável.

Na sua experiência pastoral de busca de conciliação e tomada de consciência da responsabilidade social das Igrejas, o movimento ecu-mênico começa a ganhar força no Brasil. Animados por esse espírito, homens e mulheres de diferentes igrejas cristãs decidem lutar lado a lado, nos sindicatos e associações, por melhores condições de vida. Seguin-do o exemplo da Igreja Metodista e da Igreja Evangélica de Confissão Luterana que haviam se filiado ao CMI (Conselho Mundial de Igrejas), respectivamente em 1942 e 1950, outras igrejas1 fazem o mesmo na década de 60.

Assim, a década de 60 foi marcada por um sentimento ecumênico, pelo comprometimento social diante das graves questões colocadas pelo empobrecimento da população e pela mobilização de setores da sociedade contra as arbitrariedades do regime militar.

Nesse contexto político, histórico e eclesiástico, foi inserida na Igreja Metodista a decisão conciliar de ordenação “sem distinção de sexo”. Na expressão de uma das pastoras entrevistadas:

1 A Igreja Episcopal Anglicana e a Igreja Pentecostal “O Brasil para Cristo”.

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E, na verdade, se no Brasil ainda vivíamos sob a época da ditadura, havia os ventos contestatórios do ABC, e a emergência da consciência dos direitos das mulheres, tornados públicos na Conferência Mundial de Mulheres e, em seguida, a Década da Mulher (organizadas pela ONU), apoiados a nível reli-gioso pelas igrejas do Norte e o Conselho Mundial de Igrejas” (Rosângela)2

Foram os ventos contestatórios que, certamente, induziram a aprova-ção do ministério feminino ordenado na Igreja Metodista, embora não haja registros oficiais de conflitos em torno dessa questão. Testemunhas dessa luta importante para a transformação da Igreja relatam que o processo transcorreu tranquilamente. O relatório do III Encontro sobre Ministério Pastoral Feminino3 apresenta o resultado de pesquisa realizada no Jornal Expositor Cristão nos anos de 1968 e 1969, com a finalidade de verificar se a matéria canônica referente à alteração integrava as propostas da comissão de legislação, o que seria o procedimento normal, mas nada foi encontrado. Tudo leva a crer que a proposta surgiu no decorrer do X Concílio Geral da Igreja Metodista (IGREJA METODISTA, 1971).

A reforma canônica que estabeleceu o direito legal para a ordenação feminina ao ministério pastoral na Igreja Metodista foi proposta na primeira fase do X Concílio, em 1970. O texto da proposta e sua aprovação foram transcritos da Ata daquele conclave nos seguintes termos:

Na sessão da tarde do dia 20 de julho de 1970, em Belo Horizonte, MG, o X Concílio Geral da Igreja Metodista, com emendas à nova redação do art. 13, recebeu a proposta de Odyr Gideão Köeche, a qual fica assim redigida: ‘As ordens na Igreja Metodista são duas: presbiteral e diaconal, constituídas, respectivamente, de presbíteros e diáconos, sem distinção de sexo. Parágrafo único: os presbíteros ativos estão sujeitos à itinerância’. O resultado desta votação foi: Sim 64 e Não: Zero (IGREJA METODISTA, 1971).

O depoimento do Rev. Sergio Marcus Pinto Lopes4 conta os detalhes ainda não publicados da história da ordenação feminina. Segundo ele, a proposta original da inclusão da mulher na Ordem Presbiteral da Igreja Metodista partiu da Comissão Geral de Legislação, nomeada pelo IX Con-cílio Geral e composta dos seguintes membros: Marianna Allen Peterson,

2 A partir deste momento será usado este modelo, entre parênteses, para definir as citações das entrevistas realizadas com as pastoras. Encontra-se um quadro com o perfil de cada uma na pesquisa original.

3 No ano de 1971, as alunas da Faculdade de Teologia decidiram realizar encontros de reflexão sobre o Ministério Feminino e chamaram os professores para estar com elas. Foram realizados três encontros.

4 Cf. Anotações feitas pelo Prof. Dr. Sérgio Marcus Pinto Lopes para a defesa desta dis-sertação, realizada em 21 de março de 2002.

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presidente; James William Goodwin, Dácio Toledo Lima, Moacyr Louzada Machado, Aser d’Ávila Ramos, vogais, e ele próprio, secretário.

Essa comissão trabalhou durante os anos que antecederam o X Concílio e publicava regularmente um noticiário de seu trabalho no jornal O Expositor Cristão, destinado a incentivar toda a comunidade metodista a enviar sugestões de alteração da legislação canônica. Já na edição de 14 de abril de 1970 (três meses antes do X Concílio Geral da Igreja Me-todista), a Comissão propôs a inclusão de mulheres na ordem presbiteral e, nessa mesma edição, encontra-se a seguinte proposta de alteração constitucional, provinda da Comissão Geral de Legislação:

Art. 7º Ordens são categorias eclesiásticas nas quais a Igreja metodista acolhe aqueles que reconhece vocacionados para serviços especiais no Reino de Deus, sem distinção de sexo.Art. 8º As ordens na Igreja Metodista são duas: a presbiteral e a diaconal.Parágrafo Único: A ordem presbiteral é constituída de presbíteros e pres-bíteras ativos e aposentados e a ordem diaconal de diáconos e diaconisas ativos e aposentados.Art. 9º Os presbíteros e presbíteras ativos estão sujeitos à itinerância.5

Ainda em seu depoimento, o Rev. Sérgio Marcus considera importante acrescentar que o Concílio Regional da II Região Eclesiástica – realizado de 8 a 12 de fevereiro de 1969 e a cuja delegação pertencia o Sr. Odyr Gideão Köeche – havia aprovado um projeto substitutivo ao da Comissão Geral de Legislação, que fora enviado àquela Região. Neste projeto, não consta qualquer referência à possibilidade de ordenação feminina. Quem traz esta proposta – da qual se assenhoreia o Sr. Köeche – é a Comissão Geral de Legislação, que cunha a palavra “presbítera”, jamais ouvida antes em qualquer tradição religiosa cristã na língua portuguesa.

Depois de aprovada a redação da constituição como ficou registrada na ata da primeira fase do X Concílio Geral, chegou-se ao consenso de que as reformas deveriam ser reencaminhadas aos concílios regionais e retomadas numa segunda fase do mesmo Concílio Geral, a ser realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 7 de fevereiro de 1971. Nessa ocasião, a proposta foi aprovada quase por unanimidade nos Concílios Regionais.

Já vigorava na Igreja Metodista a ordem das diaconisas, estabelecida no VII Concílio Geral. Para tanto, as mulheres ingressavam numa escola preparatória e depois da conclusão do curso eram ordenadas diaconisas. Esta escola funcionou na Chácara Flora, Santo Amaro, São Paulo, de 1950 a 1967, quando foi proposto às interessadas prepararem-se para a mesma função diaconal na Faculdade de Teologia.

5 Jornal O Expositor Cristão, 14 de abril de 1970, p. 15

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A primeira mulher a ser ordenada presbítera foi Zeni de Lima Soa-res. Ela havia concluído seus estudos na Chácara Flora, em 1965, mas fez questão de cumprir todas as exigências normais feitas aos homens e somente depois de cumprir o período probatório tornou-se, enfim, pres-bítera, em janeiro de 1974.

Depois de 1971, a primeira turma de formandos em Teologia na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, em São Bernardo do Campo, SP, a ter a presença de mulheres foi a de 1977: Abigail da Silva e Eunice Roberto de Araújo Oliveira foram as primeiras a se tornarem Bacharéis em Teologia com direito a serem ordenadas presbíteras, o que ocorreu em suas Regiões Eclesiásticas de origem. Eunice já era casada com um pastor e não enfrentou muita rejeição. Mas, como toda história é construída com dificuldades, o caso da pastora Abigail da Silva, da Sexta Região Eclesiástica, foi marcado por vários conflitos com o corpo docente na comunidade acadêmica, embora ela fosse uma excelente aluna, e por uma incompreensão muito grande na Região. A Sexta Região recomen-dou ainda Ione da Silva e Kiomi Sakamoto (1978) para ingressarem na Faculdade Metodista de Teologia, mas exigiu que Marilia Schüller (1981) assinasse um termo de compromisso com a Região de que nunca plei-tearia nomeação pastoral. Marilia, apesar de ter concluído seu curso de Bacharel em Teologia, não foi ordenada presbítera.

Inicialmente, na realização dos trabalhos pastorais, as pastoras tiveram de criar estilos próprios, pois não havia modelo de pastorado feminino para seguir e, definitivamente, ser pastora não era idêntico a ser pastor. Este, em geral, sai da Faculdade de Teologia casado e segue para o ministério com a esposa. Este modelo de família pastoral repetia padrões estabelecidos havia tempo pelos missionários vindos dos Estados Unidos. Por outro lado, as mulheres formadas nesse período eram solteiras e jovens.

Naquele momento, a condição de pioneira acarretava um preço alto: em primeiro lugar, a dificuldade de ser aceita pela comunidade local, em segundo, a necessidade de construir um “estilo” de ser pastora. Tudo estava por ser feito, uma vez que os modelos existentes não se encaixa-vam no padrão feminino. Era preciso definir as roupas, a fala no púlpito, as visitas pastorais e tudo o mais.

Logo as mulheres decidiram reunir-se em encontros específicos para tratar do ministério feminino. Nesses encontros, homens e mulheres pen-savam juntos diversas questões. Chamavam a atenção os temas tratados: questões feministas, econômicas, políticas, teológicas, bíblicas e sociais.

As monografias versavam sobre temas que caracterizam o interesse social, a questão da mulher e vida litúrgica da comunidade. A leitura des-ses trabalhos monográficos deixava perceber o grau de consciência que essas mulheres tinham de sua opção pelo pastorado, pois todos falam da necessidade de uma ação mais concreta da Igreja na sociedade.

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No universo teórico dessas primeiras pastoras estavam os conteúdos do novo movimento feminista, evidenciado na França e Itália na década de 70. Nas referências bibliográficas do relatório produzido no III Encontro sobre o Ministério Pastoral Feminino encontram-se autoras como Simone de Beauvoir, Heleiet Saffioti e Heloneida Studart. O conteúdo de reflexão fez parte das ações concretas dessas mulheres que buscavam evidenciar sua especificidade. A mulher não é igual ao homem e nunca poderia sê-lo, mas quer oferecer exatamente essa especificidade como contribuição para o desenvolvimento de relações novas.

Dificilmente uma igreja acostumada a ter à frente um pastor e aco-modada a um determinado modelo poderia enfrentar com tranquilidade a presença de uma mulher na liderança. A mulher é, então, a diferença que está pedindo explicação. Embora haja um esforço para colocá-la em segundo plano, ela já é protagonista em muitas situações. É verdade que por séculos a mulher foi excluída da história e da vida pública; hoje, porém, esta exclusão se torna impossível.

A atuação das pastoras metodistasAo ingressar no ministério ordenado, as mulheres buscaram exercer

sua prática pastoral de forma própria, diferenciando-se do modelo pastoral masculino. A opção das pastoras representou uma busca por áreas ainda não trabalhadas para exercerem a sua vocação. Em geral, as mulheres organizam, em comunidades dirigidas por elas, grupos de reflexão ou trabalho com mulheres, crianças, adolescentes, doentes, pessoas caren-tes, e têm a predisposição para envolver-se com movimentos de luta por causas diversas: direitos humanos, ecumenismo, moradia, etc.

Mesmo depois de ter conquistado o direito de ordenar-se e ser considerada líder em uma comunidade religiosa, a mulher pastora ainda enfrenta as limitações impostas pela sociedade, que a vê como inferior por ser do sexo feminino. Embora a análise seguida na pesquisa realiza-da queira enfocar um aspecto da prática pastoral – o chamamento social das pastoras –, pressupõe-se que elas enfrentam os limites que lhes são impostos e ousam buscar a plenitude de seus direitos na vida da Igreja, conscientes de que são diferentes, mas não inferiores.

As teólogas cristãs começaram a tomar posição diante do sexismo da religião, iniciando a publicação de livros com sérias críticas e denún-cias a este respeito. Elas também passaram a utilizar o gênero6 como instrumental de análise em seus escritos.

As primeiras pastoras sentiam-se livres para descobrir, expressar e exercitar os seus dons e serviços no cotidiano da vida da Igreja, assim como as pioneiras do movimento metodistas visavam atender às pesso-

6 No seu uso mais recente, “gênero” aparece entre as feministas americanas que afirmam a questão fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, tais como Elisabeth Fiorenza e Rosemary Ruether.

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as necessitadas, pobres, famintas e abandonadas, levando a elas uma mensagem de urgência, renovação e amor (SIMEONE, 1993).

As primeiras manifestações das pastoras diziam respeito exatamente à necessidade de agir pastoralmente em favor dos marginalizados7. A pre-sença da mulher no ministério ordenado, na Igreja Metodista, possibilitou que as necessidades sociais fossem contempladas na ação pastoral.

Alguém poderia perguntar se esta opção por ministérios sociais não seria uma armadilha para que a mulher fosse colocada, novamente, no “seu lugar” na Igreja. Para responder a esta pergunta, vale a pena con-sultar as motivações que cada mulher entrevistada teve ao fazer a sua opção pastoral. Não se trata de ser colocada em algum lugar, mas de criar o seu próprio espaço. Segundo Ione da Silva, “não havia modelos para as primeiras pastoras e elas precisaram inventá-los”.

Feita a pergunta de como surgiu o seu interesse por este ministério específico, eis o teor das respostas de algumas pastoras:

Este interesse surgiu a partir das dificuldades enfrentadas na igreja local, dos desafios que as questões sociais me apresentavam, da criatividade e esperteza em aproveitar as brechas deixadas pela igreja que se propunha, primeiro em ser uma igreja voltada à missão, do ponto de vista do Plano de Vida e Missão e posteriormente da proposta de se tornar uma igreja comprometida e voltada para os Dons e Ministérios. (Ione)

Os modelos criados pelas pastoras são reconhecidos como compar-tilhados e não autoritários. Como foi assinalado anteriormente, houve um compromisso de dar voz e vez a quem, como as pastoras antes de con-quistarem o direito à ordenação, não gozavam deste privilégio. Há entre elas um esforço para contemplar as necessidades sociais das pessoas atendidas pastoralmente.

A pastora metodista Tânia Mara Vieira Sampaio indica as principais contribuições da mulher no campo social quando no exercício do minis-tério ordenado:

Os dramas de corte existencial, material e espiritual dos pobres, e muito particularmente da mulher e da criança pobre, têm desafiado a Igreja, e especialmente as pastoras, a redimensionar sua prática profética e pastoral, uma vez que o modelo de ministério tradicional masculino esgotou suas respostas aos anseios desse novo momento histórico. A novidade das es-truturas ministeriais inspiradas pelo espírito de Deus tem sido gerada pelas comunidades na proporção das exigências surgidas (SAMPAIO, 1989).

7 Relatório do I Encontro sobre Ministério Pastoral Feminino na Igreja Metodista, passim.

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No exercício do pastorado e em plena reflexão teológica, as mulheres recriaram espaços para desenvolver seu ministério. A teoria de relações de gênero também contribuiu para que elas pudessem reafirmar a sua identidade. Ana Maria Tepedino fala da inserção da mulher na reflexão teológica como um “desconhecer o seu lugar”:

As mulheres descobriram uma nova maneira de fazer teologia, a partir da tomada de consciência da fecundidade libertadora de uma releitura bí-blica e a partir da necessidade de descobrir sua identidade, ‘desconhecen-do o lugar’ que o homem lhe outorgou e que foi por ela introjetado. Assim busca corresponder aos desafios como um serviço aos marginalizados, comungando com eles o esforço da libertação (TEPEDINO, 1985).

Reafirma-se aqui a relação estreita entre a reflexão teológica da mulher e a sua ação pastoral com o compromisso social e empenho pela libertação na luta pela justiça.

Entende-se que essa opção das mulheres por uma ação pastoral mais radicada nas questões sociais e em sua motivação vem da constru-ção de uma consciência mais ampla do papel a ser desempenhado pelas pioneiras nessa trajetória ainda nova para a vida da Igreja Metodista. Nos anos 70 e 80, esse sentir esteve presente na origem do processo reivindicatório pela ordenação feminina e nas reflexões elaboradas pelas primeiras pastoras metodistas em seus Encontros sobre Ministério Femi-nino na Igreja Metodista.

Considerações finaisQuando se fala em carisma social, usa-se uma expressão que, por

certo, é ainda imperfeita para tratar da força específica das mulheres na ação pastoral.

As pastoras, juntamente com outros atores sociais, especialmente a juventude (SAMPAIO, 1998), deram, a partir da década de 70, os passos necessários para o retorno do empenho social na Igreja Metodista, algo esquecido desde as origens de um metodismo que nasceu do compro-misso social e foi sendo descaracterizado por mais de um século de existência no Brasil. Talvez esta afirmação seja ousada, mas ela precisa ecoar, como a notícia do gesto daquela mulher anônima para com Jesus e do que estas mulheres pastoras fizeram pela Igreja Metodista.

O que marcou a experiência pastoral das primeiras pastoras foi o sentido de grupo articulado. A organização das alunas em encontros para reflexão sobre a sua nova condição e a elaboração de modelos e parâ-metros para a ação pastoral, logo no início do processo de ordenação feminina ao ministério, foram essenciais na determinação da continuidade de suas atuações.

Houve uma convergência do momento social brasileiro, dos anseios de compromisso social da Igreja Metodista e a aprovação do ministério feminino ordenado. Desse modo, a opção social que as mulheres fizeram

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na implantação do modelo pastoral feminino era como um imperativo na-quele momento. Os homens também viveram esse processo, entretanto, sua ação não se caracterizava, prioritariamente, por um novo modelo, tão necessário às mulheres.

A sensibilidade das pastoras permitiu que elas enxergassem lacunas na ação pastoral da Igreja Metodista e penetrassem nelas. Na fala de uma pastora, “entraram nas brechas”, e só foi possível encontrá-las porque havia um desconhecimento do lugar e do modelo pré-estabelecido. Esta ansiedade por novos modelos de atuação pastoral e por um renovado compromisso social, presente na Igreja Metodista no início da década de setenta, foi saciada com a entrada da mulher no ministério ordenado. O novo não surgiria se sua necessidade não fosse premente. Na urgência de uma ação pastoral envolvida com as questões sociais e na elaboração de modelos alternativos para o pastorado feminino, a fome encontrou o seu alimento.

Referências bibliográficasBEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil: de João XXIII a João Paulo II, de Me-dellín a Santo Domingo. Petrópolis: Vozes, 1994.COLÉGIO EPISCOPAL DA IGREJA METODISTA. Credo social. São Paulo: Cedro, 1999 (Biblioteca Vida e Missão, Doc. 10).PINTO, Elena Alves Silva. O carisma social nas pastoras metodistas: estudo de caso da prática pastoral em ministérios sociais realizados por um grupo de pastoras formadas no período de 1970-1990. 2002. Dissertação (Ciências da Religião). Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, São Paulo. 2002.REILY, Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1984.SAMPAIO, Tânia Mara. A mulher e o ministério ordenado nas igrejas cristãs. In. BEOZZO, José Oscar (org.). Curso de Verão. 2. ed. Ano II. São Paulo: Paulinas/Cesep, 1989, p. 219.TEPEDINO, Ana Maria. Mulher: aquela que começa a desconhecer o seu lugar. In: Revista Perspectiva Teológica. Belo Horizonte: Faje, ano 17, n. 43, , p. 375-379 (1985).SIMEONE, Maria Inês, A presença da mulher no movimento metodista nascente. 1993. Monografia (Bacharel em Teologia). Faculdade de Teologia. São Bernardo do Campo, São Paulo, 1993.SAMPAIO, Jorge Hamilton. Sobre sonhos e pesadelos da juventude metodista brasileira nos anos sessenta. 1998. Tese. Instituto Metodista de Ensino Superior. São Bernardo do Campo, São Paulo, 1998.

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Registros, Atas e DocumentosIGREJA METODISTA. Cânones 1971. São Paulo: Imprensa Metodista, 1971.FACULDADE DE TEOLOGIA. Atas e Documentos, Atas, Suplementos e Do-cumentos do X Concílio Geral e da Igreja Metodista e Segundo Concílio Geral Extraordinário. São Paulo: Imprensa Metodista, 1971.VV. AA. Relatório do I e III Encontro de Reflexão sobre ministério feminino na Igreja Metodista. Não publicado, s/d.

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História de Vida como possibilidade metodológica para Educação Cristã

Life History as a possible methodology for Christian Education

História de Vida como possibilidade metodológica para Educação Cristã

Vera Luci Machado Prates da Silva

ResumoA História de Vida tem sido cada vez mais usada com possibilidade metodológica de pesquisa e formação. O intento deste artigo é refletir sobre esta possibilidade metodológica aplicada à Educação Cristã. O relato de Lucas 24.13-35 é aqui tomado como uma experiência pedagógica de Jesus, que aponta pistas para a utilização desta metodologia. Fazendo da bricolagem um referencial, História de Vida é entendida como composta de momentos vividos os quais, por sua vez, são constituintes de subjetividade.Palavras-chave: História de vida; Lucas 24.13-35; educação cristã; bricolagem.

AbstRActThe life history has been increasingly used with the possibility of methodological research and training. The intent of this paper is to discuss the methodological possibility applied to Christian Education. 24.13-35 Luke’s account is here taken as a teaching of Jesus, which aims to track the use of this methodology. Mak-ing bricolage a reference, life history is understood as being composed of lived moments which, in turn, are constituents of subjectivity.Keywords: Life History, Luke 24.13-35, Christian education; bricolage.

ResumenHistoria de Vida ha sido cada vez más usada como posibilidad metodológica de investigación y formación. Muchos cuestionamientos surgieron al respecto de este hecho, uno de ellos es sobre la posibilidad de utilizar este recurso en Educación Cristiana. La intención de este artículo es reflexionar sobre esta po-sibilidad metodológica. Tomamos el relato de Lc 24.13-35 como una experiencia pedagógica de Jesús que señala pistas para la utilización de esta metodología. Haciendo del Bricolaje, una analogía, la Historia de Vida es vista como consti-tuida de momentos vividos que, por su vez, son constituyentes de subjetividad. Palabras clave: Historia de Vida, Lucas 24.13-35, la educación cristiana; bri-colaje.

IntroduçãoA pesquisa social e educacional tem, há algum tempo, utilizado

histórias de vida como recurso metodológico para coleta de dados, com vistas a elucidar seu objeto de pesquisa. Costumeiramente, entende-se

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História de Vida como um relato de acontecimentos da existência indi-vidual, com começo meio e fim. No senso comum, o trabalho biográfico é entendido como uma linha de tempo, na qual se organizam fatos da vida em uma ordem cronológica, sem muito pensar nos fatores em que estes fatos estão imbricados. Segundo Bourdieu (1994), História de Vida é uma noção do senso comum que está entrando “como contrabando no universo do saber”. Este autor adverte que pode ser enganoso tomar-se a história como uma sucessão de acontecimentos.

Contudo, cada vez mais, a narrativa (oral ou escrita) tem sido usada como possibilidade de pesquisa para construção de conhecimento. Nas discussões sobre educação, a possibilidade da utilização de história de vida aparece como recurso educacional, ou seja, “biografia educativa”. Ter-minologias distintas são utilizadas para denominar as narrativas inseridas na temática Histórias de Vida. Na educação, as narrativas têm sido traba-lhadas a partir do processo de formação dos agentes educacionais.

As histórias de vida podem ser um recurso de pesquisa e construção de conhecimento, que tenha um caráter formativo para os agentes envol-vidos, não especificamente na formação de professores ou professoras. Nessa direção, tomo aqui, como ponto de partida, a História de Vida como constituída de momentos que possibilitam a construção da subjetividade de cada pessoa. As narrativas desses diversos momentos e suas imbri-cações podem contribuir para a construção de conhecimento universal e de formação pessoal dos envolvidos.

Algumas questões se colocam: Há possibilidade de se construir conhecimento a partir de histórias de vida? Como se faz a relação entre biografia e o capital cultural acumulado pela humanidade? É possível se construir conhecimento novo a partir de uma inter-relação entre a biografia e o conhecimento acumulado? A pergunta prévia colocada à elaboração deste texto é: É possível trabalhar história de vida em Educação Cristã? Em caso positivo, pode-se trabalhar com as histórias das próprias pessoas envolvidas no processo de aprendizagem? Tentaremos buscar alguma resposta a esta questão, tomando a bricolagem como referencial para refletir sobre Educação e História de Vida.

A seguir, apresentaremos a opção metodológica, a visão na sua construção, a visão de educação que a fundamenta e a discussão com o texto bíblico escolhido (Lucas 24.13-35). Esta narrativa (Jesus com os discípulos no caminho de Emaús) pode ser entendida como uma pérola da atuação pedagógica de Jesus. Dois discípulos abatidos, desiludidos, perplexos, sem entender os últimos acontecimentos, caminham em direção contrária ao centro desses eventos. Desistem de participar do processo em que vão desvendar, definitivamente, quem é este que os envolveu a ponto de o seguirem por algum tempo.

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opção metodológicaBricolagem vem da palavra francesa bricoleur, que se refere a um

indivíduo que faz tudo, lançando mão das ferramentas disponíveis para realização de uma tarefa; sugere criatividade. Em ciência, a bricolagem é um processo cognitivo de alto nível que envolve construção e reconstrução diagnóstico-contextual, negociação e readaptação. Emprega elementos inventivos e imaginativos na pesquisa formal como estratégia metodológica necessária para o desenvolvimento da pesquisa.

A bricolagem é tomada como referencial para construção deste texto porque propicia um olhar sob vários ângulos, com inúmeros elementos que enriquecem a pesquisa e possibilitam a aproximação do pesquisador e seu objeto de pesquisa. A proposta de relacionar bricolagem e História de Vida em pesquisa é propícia, porque dá a possibilidade de abertura a aspectos que a pesquisa instituída até aqui não dá conta, uma vez que a objetividade está na “frieza” da relação com o objeto.

Por isso mesmo, destaca-se aqui o relacionamento entre as formas de ver de um pesquisador; não há neutralidade, há uma aproximação com o objeto. “Os bricoleurs atuam a partir do conceito de que a teoria não é uma explicação do mundo – ela é mais uma explicação de nossa relação com o mundo” (KINCHELOE, 2007, p. 16).

Aceitando o fato de que a experiência humana é marcada por incer-tezas e que nem sempre a ordem é estabelecida, “o bricoleur se torna um navegador de águas agitadas, traçando um curso que descreve a jornada entre o científico e o moral, a relação entre o quantitativo e o qualitativo, e a natureza das ideias sociais, culturais, psicológicas e educacionais” (KINCHELOE, 2007, p. 18). Porém, não basta o envolvimento com o objeto de pesquisa, não se pode abdicar de um certo distanciamento, no sentido de uma escuta sensível. O pesquisador percebe o objeto de pesquisa em sua complexidade, deixa-se surpreender por ele, permite-se tomar consciência, interpretar, interferir, sem apresentar qualquer juízo.

Pensando em educaçãoTomamos educação na acepção de construção de cidadania e possibi-

lidade de desenvolvimento humano. Nesta perspectiva, o professor Antonio Joaquim Severino qualifica cidadania e educação da seguinte forma:

Cidadania vista como medida da qualidade da vida humana que se realiza constituída pelas mediações histórico-sociais do existir concreto do homem. Ou seja, o homem só é efetivamente humano na medida em que dispões das condições objetivas que lhe permitam exercer sua tríplice atividade prática: a prática produtiva, prática social, e a prática simbólica. ... Para ele

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a educação só se justifica e se legitima enquanto for um processo mediador dessas mediações, ou seja, se ela se der como forma de viabilizar condições de trabalho, de sociabilidade e de cultura simbólica. Portanto, se estiver construindo a cidadania. (SEVERINO, 2002, p. 11)

Já para Edgar Morin, “todo desenvolvimento verdadeiramente hu-mano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana” (MORIN, 2002, p. 55). Na perspectiva destes dois pensadores, queremos refletir sobre História de Vida como possibilidade metodológica para a Educação Cristã.

História de Vida e ação pedagógica de Jesus em Lc 24. 13-35O evangelista Lucas, ao narrar o episódio de Emaús, apresenta

elementos das atitudes de Jesus que considero importantes no fazer pe-dagógico. 1) Ele aproxima-se dos discípulos, caminha com eles, ouvindo, inteirando-se do que se passa com eles. Percebe sua tristeza, decepção, desistência de uma caminhada, sentimento de morte. 2) Ele questiona: pergunta sobre o que aconteceu, dá possibilidade para que eles digam a sua palavra. “O essencial do trabalho formador nesta pesquisa-formação reside na formulação das questões que permitem a cada participante colocar em movimento o seu próprio questionamento” (JOSSO, 2004, p. 132). Jesus tem para com os discípulos uma escuta sensível.

Remi Hess (2004) entende que a vida é constituída de momentos. De-fine momento como “tempo-espaço que o sujeito se dá para se construir”, dando, assim, a possibilidade da construção consciente de sua própria subjetividade. Os momentos não são tempos e espaços estanques, são vivências que vão se entrelaçando e construindo significados e identidade, são pilares para a construção da subjetividade. Para Hess, “o momento é constituído de um conjunto de elementos materiais, psicológicos(afetivos) e passionais” desencadeado por outro momento. Pode-se dizer que, a princípio, ele se alimenta de nossa herança, depois ele cresce e evolui. É um feixe de várias ramificações que vão constituindo nosso presente (Hess, 2004, p. 35).

Os discípulos, certamente, eram homens comuns que tinham suas vidas, suas famílias, seus trabalhos, mas que por algum tempo viveram ‘o momento’ como discípulos. Agora, Jesus os obriga a recordar o que havia acontecido e ajuda-os a refletir sobre o vivido. Estiveram com Je-sus, ouviram seus ensinamentos, presenciaram seus milagres, ouviram testemunhos de outros sobre sua atuação.

Esta vivência rememorada deu-lhes a possibilidade de refletir, a percepção do que se passava e a apropriação dessa realidade. Isto os autorizou a voltar a fazer parte da comunidade, não só como expectado-

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res, mas pessoas que têm algo a dizer. A percepção do que se passou deu-lhes a possibilidade de instituírem-se como seres que podem refletir e dizer sobre uma realidade.

Sérgio Borba (2004) afirma que “pelo vivo, e pelo vivido e no vivido, temos nossos afetos, nossas emoções, nosso inconsciente” se faz a his-toricidade no percurso de cada um. Certamente, este momento discípulos/companheiros de caminhada de Jesus possibilitou àqueles homens terem consciência de que há uma história sendo construída e que também fazem história, assim como os outros discípulos. Uma história construída pelo que foi vivido na carne de cada um, que vai muito além dos relatos que possam se encontrar na documentação daquele período.

Esta história deixou sulcos na vida de cada um e delineou cada mo-mento seu. De fato, é no vivido que temos nossas emoções, nossos afetos, nosso inconsciente. Certamente, aí também está um emaranhado de acon-tecimentos, sentimentos, situações que vão constituindo nossa vida.

Quando pensamos em nossas vivências, passamos a ter experiências (JOSSO, 2004). Tendo em vista tais vivências, elas deixam de ser passado, são constituidoras do presente e alicerces para o futuro. São constituintes de nossos momentos e, por consequência, esses momentos são consti-tuintes de nossa subjetividade. Trata-se de um processo de construção da própria subjetividade, tornando o ser um autor-cidadão. “(...) é uma cons-trução histórica, geográfica, social, psicanalítica, ecológica que, enquanto tal, exige politização não só de uma dimensão do sujeito, tal como a eco-nomia ou a política partidária, mas da vida em suas várias perspectivas, englobando seu modo de ser e de se expressar (BARBOSA, 2000, p. 90).

Pode-se dizer que a história de vida de cada pessoa, construída numa relação de intersubjetividades, é marcada por todas as pessoas que povoaram a caminhada e com ela conviveram. Tanto marcas positivas como negativas fazem parte da subjetividade, são trazidas junto, em um processo de construção de conhecimento. Não é possível se desvencilhar da instituição do outro, como outro, na dimensão do vivido. Na instituição do outro, se dá o encontro de heterogeneidade que, segundo Ardoino é “a experiência mais extrema, às vezes, a mais cruel, mas provavelmente tam-bém a mais enriquecedora” (ARDOINO apud MORIN, 2002, p. 23). Esta experiência possibilita um processo de alteração e ganha radicalidade na possibilidade de o outro reagir diferente do modo que esperamos, “que se opõe a nós, e do qual o desejo não responde ao nosso” (ARDOINO apud BARBOSA, 2004, p. 17). A esta “capacidade que o outro possui sempre de poder desmantelar, com suas próprias contraestratégias, aquelas das quais se sente objeto”, Ardoino chama de “negatricidade”.

Jesus traz à memória o que eles já conheciam sobre a Bíblia e o que tinha relação com os acontecimentos, valorizando a bagagem deles.

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Explora seu conhecimento acumulado, caminhando junto com eles. Neste percurso amoroso, torna-se parte do grupo, usa gestos conhecidos, como o partir do pão e é identificado.

Ouvir a própria história, refletir sobre ela e confrontá-la com as histó-rias de vida do outro faz-nos percebê-lo, com suas emoções e vivências, por vezes semelhantes às nossas ou totalmente díspares. Isto nos reporta ao pensamento de Certeau: “Essa maneira de ‘dar a palavra’ às pessoas ordinárias correspondia a uma das principais intenções da pesquisa, mas ela exigia na coleta das conversas uma intenção diretiva e uma capaci-dade de uma empatia fora do comum” (CERTEAU, 1994, p. 26).

Considerando ainda que o objeto em questão é o ser humano, é preciso examiná-lo na sua complexidade. Isto, vem do fato de que ele é constituído de bipolaridades que são, ao mesmo tempo, complementares e antagônicas e, ainda, que as fronteiras entre antagonismo e complexidade são tênues e permitem que os elementos permanentemente se entrecru-zem. Esta articulação entre o físico, biológico, social, cultural, psíquico e espiritual é o que desenha esta complexidade (MORIN, 2005, p. 140).

Esta complexidade situa-se não na ordem do complicado, mas na forma de se olhar para o objeto, percebendo os feixes de elementos en-volvidos em sua tessitura.

A complexidade, diferente de complicado, mais que uma característica do objeto, se constitui numa qualidade do olhar do observador que propõe “refletir ao invés de pensar nas propriedades assim emprestadas aos mate-riais da pesquisa”, particularmente quando os procedimentos clássicos de inteligibilidade se apresentam insatisfatórios e não dão mais conta do que se propõem (BARBOSA, 2004, p. 17).

Pode-se dizer que o ser humano é um ser político, social, cultural, econômico, religioso, que está envolvido em um mundo de relações, em cuja construção se constrói como ser humano. É fundamental a visão de Paulo Freire sobre o ser humano como inacabado; sujeito de história que não só sofre os efeitos dos acontecimentos, mas que faz história; que é capaz de ler o mundo; que tem a sua palavra e, ainda, considerar que a educação se constrói no diálogo.

Paulo Freire fala ainda na capacidade do ser humano de ler o mundo: “o ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1984, p. 11). A possibilidade de ler o mundo e envolver-se com ele propicia a alteração. Promove construção da subjetividade em relação, reforçando a ideia de Freire, do ser inacabado e a vocação de ser mais.

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Considerar o ser humano como inacabado, em construção, permite, ainda, a ideia de autoria e cidadania, defendida por Barbosa:

Educando é o sujeito que se percebe “não pronto” (fechado), como se fos-se um lugar definitivo, mas “pronto” (aberto), no sentido da capacidade de, per si, elaborar uma leitura do mundo e de se expressar nele, como numa linguagem em que a continuidade é propriedade importante, em resposta aos desafios das mais diferentes ordens e de velocidade cada vez mais acentuada, apresentados pela dinâmica social (BARBOSA, 2000, p. 90).

O centro deste processo é a pessoa, que vai se constituindo como ser humano à medida que se conscientiza de sua condição pessoal e so-cial. Para Ernani Maria Fiori, “a antropologia acaba por exigir e comandar uma política (FIORI, 1991, p. 53).

O trabalho com história da vida propicia a inclusão de todos em um processo antropológico, gnosiológico e político, porque traz a perspectiva de transformação. Ele aponta pelo menos dois aspectos relevantes para a construção do conhecimento. Primeiro, contribui para o alargamento da bagagem cultural da humanidade, à medida que dá voz aos calados. A história oficial se pauta pela narrativa dos grandes acontecimentos da humanidade, dos feitos heroicos de personagens que passaram pelo mundo deixando marcas, nem sempre heroicas no sentido de construção de humanidade cidadã, solidária e responsável. A história oficial, via de regra, narra a história dos vencedores, deixando de lado a voz dos que morreram nas batalhas, dos que deram o sangue para que houvesse uns poucos vencedores. De outro lado, não visibiliza o cotidiano que dá sa-bor e cor à vida, que perpetua valores e constrói identidades. Para Mary Del Priore, “os problemas colocados pelo cotidiano não são ‘menores’ e a história não é um produto exclusivo dos grandes acontecimentos; ao contrário, ela se constrói no dia a dia de discretos atores que são a maioria” (DEL PRIORE, 1997, p. 266).

Em uma experiência com histórias de vida em sala de aula, um grupo de quatro alunos e alunas conseguiu, a partir de suas próprias histórias, construir um quadro sociocultural e econômico da sociedade brasileira dos anos 70, explicitando os sulcos deixados em suas vida pela ditadura militar. Mostraram aspectos e marcas que não passaram pela oficialida-de, mas que foram influenciados pelo desenrolar desta história oficial, no dia a dia de cada um, cada uma. “A História de Vida reconstrói aspectos individuais, singulares de cada sujeito, mas, ao mesmo tempo, ativa uma memória coletiva, pois, à medida em que cada indivíduo conta sua história, esta se mostra em um contexto sócio-histórico que precisa ser hermeneu-ticamente reconstituído pelo pesquisador” (OLIVEIRA, 2011, p. 2).

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No caso dos discípulos de Emaús, eles se ouvem, tomam consciên-cia do que se passa e voltam à comunidade. “A tomada de consciência é entendida aqui como atenção voltada para qualquer coisa, como a entrada de um elemento até então não percepcionado no campo da consciência; há tomadas de consciência que podem provocar mudanças mais ou me-nos importantes no campo consciencial e, por esse motivo, necessitam de mais ou menos tempo para sua integração” (JOSSO, 2004, p. 132). Eles percebem o que aconteceu e retornam à comunidade dos discípulos, agora com sentimento de vida e não de morte, prontos para enfrentar os acontecimentos com a comunidade.

As narrativas de histórias de vida propiciam a explicitação dos con-dicionantes sociais e culturais que atuam no cotidiano do indivíduo que, por sua vez, condicionam sua atuação na sociedade. A relação entre o público e o privado é uma relação dialética. Via de regra, na família se constrói os valores que vão direcionar o modo como o indivíduo se co-locará na sociedade. Por exemplo, a questão de gênero é um aspecto marcante nesta perspectiva da dialética entre o cotidiano e a sociedade. O gênero sublinha o aspecto relacional entre o homem e a mulher. Em geral, na família é acentuada a relação assimétrica entre ambos e que vai perpetuar-se na esfera do público.

Em segundo lugar, contêm um caráter formativo, contribuem no processo de formação individual e coletivo no grupo envolvido. Explici-tar essas vivências e diferenças, dialogar com elas é algo que produz novos significados e um novo patamar de conhecimento da pessoa; por conseguinte, uma nova identidade do grupo. Para Josso, há uma autoin-terpretação e uma cointerpretação (JOSSO, 2004, p. 54), produzindo, assim, uma reformulação da subjetividade e do conhecimento. Kincheloe afirma: “Ao examinarmos o eu e sua relação com outros nesses contextos, adquirimos um sentido mais claro de nosso propósito no mundo, espe-cialmente em relação à justiça, à interconexão e à produção de sentido.” (KINCHELOE, 2007, p. 55).

Este exercício possibilita, aos participantes do grupo, um caminhar conscientizador de quem cada pessoa é e como se constitui no que é. As vivências, como já dito, deixam de ser passado, são constituidoras do presente e alicerces para o futuro. Passando por um processo de cons-trução da própria subjetividade, o ser torna-se autor-cidadão e produtor de saber. Para Ivone Gebara, ‘contar já é interpretar. O ouvir a narração já é reinterpretar o que foi contado” (GEBARA, 2000, p. 47).

A experiência do “contar” não só indispensável, mas revela nossa própria condição humana. Somos seres que nos contamos sempre e, a cada vez, guardamos os traços do passado à luz do presente. O presente muda a

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compreensão que temos do passado e de nós mesmos. O presente introduz novas mediações para compreender o passado e parece às vezes ampliar ou às vezes diminuir seu significado (GEBARA, 2000, p. 48).

Nesta perspectiva, as narrativas de História de Vida não se consti-tuem apenas no relato de uma história que passou, ela aponta para um vir a ser. Para Delory-Momberger (2008), a narrativa não é só o lugar no qual o indivíduo toma forma, mas é o espaço que lhe possibilita ser sujeito de uma história a ser construída. “A ‘história de vida’ não é a história da vida, mas a ficção apropriada pela qual o sujeito se produz, como projeto dele mesmo. Só pode haver sujeito de uma história a ser feita, e é, à emergência desse sujeito, que intenta sua história e que se experimenta com projeto, que responde o movimento da biografização” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 66).

considerações FinaisTemos aqui alguns elementos importantes: o entendimento sobre

educação, a história de vida como uma possibilidade metodológica e a atuação pedagógica de Jesus. Ele aproxima-se deles, pergunta sobre o que está acontecendo, sobre o que lhes está abatendo. Ouve suas histórias, traz à memória o que já sabiam, conversa com eles sobre os acontecimentos. Certamente, eles contam sobre os momentos vividos com Ele. Momentos estes que deixaram marcas que, ao serem trazidas à memória, começam a dar sentido a suas vidas. Jesus, assim, os capa-cita, os autoriza a voltar à comunidade apostólica e dizer: “Nós também fazemos parte com Cristo ressurreto”.

Consideramos o entendimento sobre educação, apontado nesta reflexão, como construção de cidadania, que se dá em relação entre se-res humanos, em diálogo e que entende o educando não como um ser fechado, pronto, mas com a possibilidade de ser mais, pensando História de vida como momentos vividos que são constituintes de subjetividades, numa dimensão individual e social.

Observando a atuação pedagógica de Jesus, nota-se que ele traba-lha com os discípulos na dimensão do cotidiano. Sua atuação se dá na relação com a própria vida deles, parte de suas vivências, utiliza recur-sos relacionados com elas e do conhecimento deles. A reflexão sobre os acontecimentos da vida propicia-lhes uma tomada de posição. A tomada de consciência leva-os a uma convicção e a uma mudança de sentimento (de morte para a vida). Despertados, voltam ao convívio da comunidade, prontos para enfrentar os desafios do momento. Diante disto, considero que é possível fazer Educação Cristã utilizando a História de Vida.

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Inclusão de pessoas com deficiência: a responsabilidade social das igrejas

La inclusión de personas con discapacidad: la responsabilidad social de las iglesias

Inclusion of people with disabilities: the social responsibility of the churches

Elizabete Cristina Costa-Renders

RESUMOO presente artigo trabalha a inclusão de pessoas com deficiência como uma responsabilidade social das igrejas. Conceitos como bem comum, acessibilida-de e inclusão darão o norte para o agir das igrejas no sentido da construção das condições de acesso e permanência s para todas as pessoas nos diversos espaços sociais, a começar pela educação e trabalho.Palavras-chave: Inclusão; bem comum; acessibilidade; igreja; pessoas com deficiência.

ABSTRACTIn this article it is proposed to understand the inclusion of people with disabilities as a social responsibility of the churches. Concepts such as the common good, accessibility and inclusion will conduct the churches towards the construction of the conditions of access and permanence for all people in all social spaces, starting with the of access to education and work.Keywords: Inclusion; common good accessibility; church; people with disabilities.

RESUMENEste artículo se propone entender la inclusión de personas con discapacidad como una responsabilidad social de las iglesias. Conceptos tales como el bien común, la accesibilidad y la inclusión indicarán la orientación para la acción de las iglesias en dirección a la construcción de condiciones de acceso y permanencia para todas las personas en os diversos espacios sociales, empezando por los espacios de educación y trabajo.Palabras clave: Inclusión; bien común; accesibilidad del bien común; iglesia; personas con discapacidad.

IntroduçãoBem comum, acessibilidade e inclusão serão os conceitos trabalhados,

nesse artigo, na perspectiva da pergunta pela responsabilidade social das igrejas no que diz respeito à inclusão social de pessoas com deficiência.

O bem comum nos remete à destinação originária de todos os bens em benefício de todas as pessoas e insere-se no chão da dignidade hu-mana. A acessibilidade, por sua vez, relaciona-se intrinsecamente com o caminho que nos remete à metáfora fundante do cristianismo – o acesso.

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Na contemporaneidade, a inclusão ganha força como paradigma que, amparado em políticas afirmativas, chama a igreja à construção de uma sociedade para todos a começar pelos espaços eclesiais.

O texto trabalha com três subtemas. Pergunta pelo Bem comum e pelo sentido de a pertença ao mundo amparando-se na tradição oral da criação. Na sequência, discorre sobre Acessibilidade e o sentido da inclu-são nas igrejas, com base na cristologia. Por fim, O desafio da inclusão à fé cidadã indaga pela responsabilidade social das igrejas e busca pistas no agir cotidiano de nossas comunidades, no sentido da construção das condições de acesso para as pessoas com deficiência, a começar pela educação e trabalho.

Bem comum e o sentido de pertença ao mundo

Agora as palavras ambíguas, cada uma delas com sua parte de verdade e sua parte de manipulação, são democracia, comunidade, coesão,

diálogo... e outras palavras relacionadas, como diversidade, tolerância, pluralidade, inclusão, reconhecimento, respeito.

Jorge Larrosa

É usual ouvirmos por aí: Nosso governo é o governo da inclusão! Nossa escola é a escola da inclusão! Nossa igreja é a igreja da inclusão! Tornou-se lugar comum, falar da inclusão na sociedade contemporânea. No entanto, ainda não se tornou o lugar comum para todas as pessoas. Ou seja, nem todas as pessoas podem usufruir de todos os espaços e bens sociais. Nossa pergunta nesse artigo é pela responsabilidade ecle-sial diante da demanda social pela inclusão de grupos historicamente excluídos no acesso aos bens e serviços sociais construídos no decorrer da história. Especialmente, trabalharemos a responsabilidade social da igreja quanto à inclusão das pessoas com deficiência e perguntamos pelo seu acesso ao bem comum.

Se considerarmos a perspectiva existencial, o bem comum nos re-mete imediatamente ao solo de nossa existência: o sentido de pertença ao mundo. Ou seja, a existência humana somente é possível no chão de todos nós – nosso primeiro bem comum.

Na perspectiva da fé judaico-cristã, a criação está expressa no dese-nho da Terra imersa no cosmos: ar, céu, terra, trevas, luz, mares, solos, plantas, sementes, frutos, animais, seres humanos – enfim, uma multidão de seres vivos vivendo juntos. O desenho desse chão comum apresenta todas as condições para gerar e preservar a vida, por isso, segundo o texto bíblico era bom – isto aponta para a compreensão ética da vida.

A narrativa de Genesis, portanto, nos desafia a pensar o bem comum em todas as esferas da existência humana, a começar pela afirmação

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de que todos nós, queiramos ou não, pertencemos ao mundo e temos necessidades.

Afirmar o sentido da pertença ao mundo e as necessidades ineren-tes à existência humana é importante porque traz, em si, a impertinência dos sistemas excludentes histórica e socialmente construídos. O silen-ciamento do direito à vida pode levar à violação da dignidade humana quando alimenta e legitima os sacrifícios humanos – de uns em prol de alguns outros. Nas palavras de Hugo Assmann, “... ao desconsiderar o ser humano como um ser-com-necessidades, eliminou-se também qualquer designação de um limite [...] do que poderíamos chamar de mínimo vital, cuja obtenção, devendo estar assegurada para todos, pudesse dar um conteúdo concreto mínimo ao conceito de dignidade humana inviolável” (ASSMANN, 1991, p. 18).

O conceito de bem comum emerge da afirmação do direito de todas as pessoas à vida e afirma uma doutrina cristã, a “destinação originária de todos os bens ao benefício de todos” (ASSMANN, 1991, p. 18). Ou seja, o bem comum exige a ruptura com sistemas sociais excludentes e a afirmação de ações, social e cooperativamente construídas, a fim de que “nossos conjuntos sociais preservem a solidariedade mínima em situações extremas, nas quais estão em jogo os direitos básicos da corporeidade humana em situações-limite” (ASSMANN, 2001, p.61).

O primeiro direito básico da corporeidade humana é o chão. A vida (e vida, não somente, humana) apenas é possível se localizada num meio ambiente. Terra, ar, água – são condições primordiais para a vida. Portanto, se nosso primeiro e inegociável bem comum é a vida, não po-demos perder de vista a perspectiva da interdependência dos seres vivos. Voltando ao ato da criação, o ser humano, por si só, não tem condições de sustentar a vida - a duras penas, parece que estamos redescobrindo esta realidade nos tempos contemporâneos.

Voltando-nos para a complexa condição humana (ser biológico e cultural, com necessidades e desejos), bem como para a complexidade da sociedade contemporânea, entendemos, tal qual Morin (2002, p. 54), que “viver exige, de cada um, lucidez e compreensão ao mesmo tempo, e, mais amplamente, a mobilização de todas as aptidões humanas”.

Assim, poderíamos sinalizar alguns bens necessários à garantia de uma vida digna para todas as pessoas, tais como: reconhecimento mútuo, moradia, alimentação, educação, esperança, trabalho, descanso, saúde, fé, produções culturais, informação, acessibilidade (física, comunicacional e atitudinal), amor, etc. Nesse emaranhado de bens, o sentido da pertença é o viés que traduzirá nossas intenções em ações, na operacionalização do bem comum em todas as esferas da vida.

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Acessibilidade e o sentido de inclusão nas igrejas

Respondeu-lhe Jesus: eu sou o caminho, e a verdade e a vida.

João 14.6

Precisamos retornar as nossas raízes cristãs para responder a essa pergunta dos discípulos. Ou melhor, precisamos voltar ao Cristo que nos trouxe os fundamentos do Evangelho como a abertura de Deus a todas as pessoas. É notório, no caminhar de Jesus entre as pessoas, que ele não respeitou espaços fixados ou territórios demarcados pela tradição de sua época. Ele achegava-se e se colocava com publicanos, pecadores, sacerdotes, mulheres, crianças, leprosos, pessoas com deficiência, auto-ridades políticas, etc. Enfim, Jesus estava com e dialogava com as mais diferentes pessoas de seu tempo.

Jesus, portanto, exercitou bem o seu direito de acesso, mesmo que, na sua época, este não fosse um direito. Ele achegava-se, circulava e ficava em todos os lugares nos quais desejava ou necessitava chegar e estar. Mas tal atitude exigia que o mesmo assumisse o compromisso com o rompimento das barreiras e dos impedimentos sociais e religiosos de seu tempo, a começar pelo seu nascer e morrer entre nós.

Foi preciso tanto nascer como o menino Jesus, rompendo as barrei-ras entre divino e humano – e o verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1.14), quanto crescer entre nós rompendo as barreiras da carne – não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, por-que ele mesmo sabia o que era a natureza humana (Jo 2.25). Na raiz do Evangelho, portanto, está o fato de que Jesus não somente abriu caminho, ele se fez caminho de acesso ao Pai – eu sou o caminho, e a verdade e a vida (Jo 14.6) e incluiu todas as pessoas – Pai nosso (...), o pão nosso de cada dia nos daí hoje (Mt 6.9-11). A sua própria existência traz na essência o romper barreiras. Jesus foi acesso e criou acesso no caminho.

O caminho acessível é dinâmico e segue a dinâmica da vida humana: na imprevisibilidade, na vulnerabilidade, na diferenciação e nas conversões exigidas pela caminhada. Neste sentido, falar de Deus no caminho acessível é uma tarefa bastante complexa, onde não cabem categorias generalizan-tes, pois estas não atendem a demanda pelo respeito à singular dignidade de cada pessoa. Falar de Deus no caminho acessível tem a ver com falar das pessoas com deficiência e dar visibilidade às necessárias condições de acessibilidade.(COSTA-RENDERS, 2009, p. 143)

Cristologicamente falando, a acessibilidade está na raiz do Evange-lho – ter novamente acesso ao Deus Criador e Sustentador da Vida é a

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boa nova que vem com Jesus Cristo. Se, por um modo, estamos do outro lado do abismo por causa do pecado. Por outro, estamos recebendo por meio do Cordeiro que tira todo o pecado do mundo, a possibilidade de acesso ao Pai pelo que possibilita a comunhão do povo com seu Deus novamente. Todavia, ao perguntarmos pelas práticas eclesiais no decorrer da história, contrariamente ao Evangelho do Cristo, as igrejas não estão isentas da prática segregadora e excludente – elas, por vezes, foram e, ainda, são espaços de exclusão e segregação, bem como foram e, ainda, são, coniventes com a exclusão social.

É legítimo falar de inclusão nas igrejas, pelo menos, por dois motivos. Primeiro, se o Cristo foi, ele mesmo, meio para a eliminação de barrei-ras e criação das condições de acesso ao Pai pela graça do Evangelho, nós, comunidade comprometida com os valores do Evangelho do Cristo, devemos assumir o compromisso com a inclusão social. Segundo, se no decorrer da história contribuímos para a construção de barreiras sociais e religiosas, na contemporaneidade, precisamos nos converter, nascer de novo e aplicar o princípio da Graça incondicional na construção de espaços eclesiais acessíveis para todas as pessoas. Isto exige um movi-mento em mão dupla. O quebrar barreiras e criar acesso deve começar em nós e seguir, profeticamente, na denúncia sobre a exclusão e no anúncio sobre os meios sociais para a eliminação de barreiras impostas a determinados grupos sociais.

Na contemporaneidade, acessibilidade é um conceito que vem da área da arquitetura e que tem muito a nos indicar no sentido da responsa-bilidade social das igrejas nos termos da inclusão que visa uma sociedade para todos numa via de mão dupla – onde todos assumam sua parcela de responsabilidade na construção das condições de acesso para todas as pessoas. Segundo o Decreto de Acessibilidade, Art 8º, inciso I, o termo acessibilidade nos remete à “condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e informação, por pessoas com deficiên-cia ou mobilidade reduzida”. Isto nos remete à pergunta pela fé cidadã.

O desafio da inclusão à fé cidadã

Não existe propriamente diferença entre “sãos” e “impedidos”, porque toda vida humana é limitada, vulnerável e débil. Nascemos carentes de ajuda e morremos no mais absoluto desamparo. Por isso não existe, na realidade,

uma vida “não-impedida”. Tão somente existem os ideais de saúde que se forjam na sociedade dos “eficazes e fortes”, que fazem com que uns determinados seres humanos se vejam condenados a ser “impedidos”.

Jürgen Moltmann

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Na história social das “pessoas com deficiência”1, localizamos mo-delos de inserção social marcados ora pelo assistencialismo caritativo, ora pela atuação clínico-terapêutica, que lançaram sobre a vida destas pessoas, as marcas da segregação e exclusão e, por conseguinte, sua invisibilidade social.2

A segregação e a exclusão decorrem de estigmas e objetivações im-postos às pessoas com deficiência, as o quais têm, muitas vezes, origens em antropologias religiosas, como por exemplo, quando, na antiguidade se colocava a pessoa com deficiência na categoria de sub-humana – a deficiência tinha origem divina (anjos) ou demoníaca (demônios). Ou ainda, quando, na Idade Média – no universo judaico-cristão, a deficiência era si-nônimo de castigo divino. Enfim, os estigmas trazem em si uma conotação de des-humanidade que leva à discriminação, segregação ou exclusão.

Localizamos, portanto, a dimensão simbólica deste fenômeno que, por sua vez, indica os desafios que são postos aos que entendem a fé na dimensão cidadã. Se, contemporaneamente, nossa compreensão da condição humana ainda está carregada de força simbólica - seja na religião (mito da criação) ou na ciência (mito do progresso) expressa no anseio pela perfeição humana, somos, também, desafiados a rever nos-sos conceitos e reconhecer a dignidade e os direitos sociais das pessoas com deficiência.

O rompimento do histórico de segregação e exclusão parece ser vislumbrado com o paradigma da inclusão3, onde as pessoas com defi-ciência ganham visibilidade e as incapacidades são compartilhadas com a sociedade (equiparação de oportunidades, ONU, 1990) no sentido da superação das barreiras (arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais, etc.) impostas às mesmas.

O paradigma da inclusão já encontra ressonância no ambiente cristão. Alguns documentos representativos de confissões religiosas têm aponta-do para uma antropologia inclusiva – no sentido do reconhecimento da diversidade da criação e do valor das diferenças. Podemos citar, como exemplo, os textos: Uma igreja de todos e para todos: uma declaração teológica provisória – documento produzido pelo Conselho Mundial das Igrejas em 2005 e Levanta-te, vem para o meio! – texto-base da Cam-panha da Fraternidade de 2006 da Igreja Católica Apostólica Romana no 1 Fazemos uso do termo “pessoas com deficiência” justamente no sentido de dar visibilidade

à dignidade destas pessoas e às necessárias condições de acessibilidade nos espaços sociais (SASSAKI, 1999).

2 Desenvolvo esse tema no livro Educação e espiritualidade: pessoas com deficiência, sua invisibilidade e emergência. Veja bibliografia final.

3 Antes do movimento pela inclusão, aconteceu o movimento pela integração (adaptação da pessoa com deficiência de acordo com as condições advindas da sociedade – caminho de uma via só) que, apesar de suas limitações teóricas, preparou o caminho histórico para a inclusão – caminho de mão dupla (incapacidades compartilhadas socialmente).

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Brasil. São iniciativas modestas, mas significativas no sentido da cons-trução de confissões de fé que contribuam para a inclusão das pessoas com deficiência.

O texto-base da Campanha da Fraternidade, de 2006, faz algumas denúncias bastante relevantes para os que pretendem contribuir na cons-trução de uma sociedade para todos, tais como:

Cabe denunciar o sentimentalismo e a piedade estéril, o paternalismo ma-nipulador, a cultura do corpo perfeito, os estigmas sociais e rótulos e, prin-cipalmente, a tendência ao saneamento da espécie humana e o eugenismo mascarado na rejeição das pessoas com deficiência. A exclusão daqueles que não são “tecnicamente” perfeitos, daqueles que são considerados “invi-áveis” numa sociedade de fortes, saudáveis e competitivos, a pretensão da espécie humana pura, sem defeitos, fragilidades ou fraquezas, já deu origem a horrendos crimes contra a humanidade. (CNBB, 2006, p. 93).

Rejeitar a máxima do ser humano perfeito 4 é um dos caminhos para a superação dos estigmas e objetivações impostos às pessoas com deficiência.

Tenho trabalhado, em outros textos, na busca de uma teologia da inclusão, sendo que para tal me sirvo de algumas ideias, tais como:

• precisamos utilizar novas metáforas em nossas celebrações no sentido do convite aberto a todos para celebrar: o Deus que se comunica no vento fala com todas as pessoas porque o vento nos toca - sejamos cegos, videntes, surdos ou ouvintes;

• precisamos resgatar a diversidade da criação fugindo das ciladas do eugenismo: o Deus Trino, que é diverso e uno, nos autoriza a sermos diferentes na unidade, bem como o Cristo, que é servo, nos autoriza a viver nossa corporeidade tal qual se apresenta;

• precisamos assumir nossa comum vulnerabilidade (incapacidade compartilhada) como espaço que potencializa nossa humanidade: o Deus que se fez passar pelos ciclos da vida em toda a sua condi-ção de vulnerabilidade (do nascimento à morte) nos autoriza a viver as diferentes funcionalidades inerentes à condição humana;

• precisamos garantir que o caminho seja acessível: o Deus, que atua em todos e para todos pela incondicional Graça, nos vocaciona à permanente construção do caminho acessível para todas as pessoas.

4 Refiro-me, aqui, ao conceito da perfeição acabada; também se usa, na teologia, o conceito de uma perfeição aperfeiçoando-se, no sentido de um processo contínuo e inacabado, tal qual um horizonte.

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Enfim, o paradigma da inclusão nos desafia a uma conversão de olhares: do foco na deficiência para o foco nas habilidades humanas e nas incapacidades compartilhadas socialmente. O que exige de todos nós, e especialmente das igrejas (pelo papel profético que têm) a construção das condições de acesso e permanência das pessoas com deficiências nos di-versos espaços sociais. Aponta-se, portanto, para dignidade de cada pessoa nos termos dos direitos humanos e dos valores do Reino de Deus.

Em que se traduz a responsabilidade social das igrejas com a inclu-são de pessoas com deficiência?

O Brasil tem construído uma política pública de inclusão que é re-ferência mundial, são vários os documentos que indicam os princípios fundamentais para a construção de uma sociedade para todos. Também existem inúmeras leis com disposições para a construção da acessibili-dade (física, comunicacional e atitudinal) nos diversos espaços sociais. Podemos citar: Constituição Federal de 1988; a Lei de Cotas na Empre-sas – 3298/1999; o Decreto de Acessibilidade -5296/2004; as Normas de Acessibilidade - NBR 9050/2004; o Decreto de LIBRAS - 5626/2005; a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, etc.

Se fizermos uma leitura atenciosa das leis e políticas acima citadas, notaremos rapidamente em que ações devem traduzir-se a responsabili-dade social das igrejas. Nesse artigo, me propus a elencar as principais ações no que diz respeito à garantia do acesso de todas as pessoas às comunidades eclesiais e seus templos, bem como à luta pela igualdade de condições de acesso e permanência das pessoas com deficiência na educação e trabalho.

1) Acessibilidade: um desafio legal para as igrejasMais do que conhecer o conceito de acessibilidade, precisamos

estar sensíveis às condições de uso dos espaços de nossas igrejas por todas as pessoas que nela desejam adentrar. Perguntas simples podem ser feitas. A entrada da igreja é convidativa? Há algum impedimento para chegar até o templo? Uma pessoa em cadeira de rodas consegue chegar e entrar no templo ou nas dependências da igreja? Caso ela deseje utilizar o banheiro, isto será possível?

Geralmente, os templos religiosos têm como característica o acesso através de escadas, na verdade, de escadarias. Isto foi parte da concep-ção arquitetônica de uma época. Todavia, para além de questões esté-ticas, hoje, somos desafiados a pensar as condições de acesso, do ir e vir nas dependências dos espaços coletivos, públicos. Além da beleza, consideram-se atualmente a segurança e a autonomia das pessoas nestes

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espaços. Isto é inclusão, pensar como um espaço deve ser utilizado por todas as pessoas.

Lembre-se que não estamos falando de preparar a igreja quando uma pessoa cadeirante se converte e começa a freqüentar nossa comunida-de. Estamos falando de pró-atividade, de pensar a acessibilidade antes mesmo das pessoas com diferenças significativas chegarem. Trata-se de ser acessível sempre, com a presença ou não de uma pessoa com deficiência na igreja.

Podemos seguir perguntando: Por um lado, caso uma pessoa com deficiência passe na calçada da igreja, ela se sentirá convidada a participar? Terá as condições de circular e assentar-se com conforto e segurança nas dependências da igreja? Terá condições de participar das nossas liturgias? Por outro lado, temos utilizado diferentes códigos de comunicação em nossas igrejas? A LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) e o Braile estão presentes no nosso cotidiano? Sabemos comunicar o amor de Deus fora dos padrões racionais? Muitas outras perguntas se-riam possíveis, todavia, basta-nos entender que acessibilidade é pensar e construir as condições de acesso para todas as pessoas antes mesmo delas desejarem estar conosco.

2) Ação profética rumo à educação inclusiva A Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional de 1996 afirmam a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”(LDB, art.3º, inciso I). Tal afirmação nos remete à necessária atuação no sentido da garantia desse direito às crianças com deficiência. Hoje, todas as crianças com deficiência devem matricular-se na rede regular de ensino, sendo amparadas por dotação dupla de recursos e pelo atendimento educacional especializado (segundo o Decreto 6571 de 2008).

Sabemos de uma série de contradições na operacionalização da educação inclusiva no Brasil, todavia, cabe às comunidades cristãs atu-arem na busca da garantia desses direitos. Inclusive, vale lembrar que a Lei 7853 de 1989 “... institui tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos das pessoas com deficiência, disciplina a atuação do Ministério Público e define como crime a recusa de alunos com deficiência pela escola regular”(Lei 7853, art 2º, inciso I, alínea f).

Se no passado, tínhamos a educação especial sendo oferecida em escolas segregadoras, hoje, precisamos o direito à convivência com as diferenças para todas as crianças, sejam com ou sem deficiência. Afir-mamos, na contemporaneidade, o modelo social de deficiência, quando se entende a incapacidade também como “resultante da relação entre as pessoas (com e sem deficiência) e o meio ambiente” (ONU, 1983). Sendo

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assim, não há legitimidade na separação ou segregação de alguns seres humanos com base na naturalização de sua incapacidade.

Nos termos das ações decorrentes dessa nova perspectiva para a educação no Brasil, as igrejas têm como responsabilidade:

• Agir no sentido da promoção de fóruns de discussão que abordem o preconceito e a discriminação que atingem as pessoas com deficiência nas diversas faixas etárias. Inclusive, perguntando pela abrangência do preconceito e discriminação a esse grupo nas nossas comunidades;

• Agir no sentido do apoio às famílias de crianças ou adultos com deficiência no sentido da aceitação da diferença significativa e do conhecimento e luta pela garantia de seus direitos educacionais desde a educação infantil até a educação superior;

• Agir no sentido do apoio às famílias na luta pelo direito ao trans-porte acessível – não basta a porta estar aberta, é preciso ter como chegar;

• Agir no sentido da implementação da educação inclusiva em nossas comunidades, perguntando pelas condições de acesso e permanência de pessoas com deficiência em nossas escolas dominicais e em nossas instituições de ensino;

• Agir no sentido de fazer cumprir a Meta no. 4 do PNE – Plano Nacional de Educação – cujo texto diz: “Universalizar para a população 4 a 17 anos, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, na rede regular de ensino”, do-cumento este que aguarda aprovação no Congresso Nacional desde dezembro de 2010.

• Agir no sentido da produção de materiais didáticos inclusivos que possam ser utilizados por todas as crianças.

Faz parte da tradição cristã, a prática educacional, inclusive, com a instituição de escolas e universidades confessionais. Nosso papel profético, no que diz respeito à educação inclusiva, começa em nossas instituições e visa à construção da educação com qualidade para todas as pessoas.

3) Ação profética rumo à inclusão no mercado de trabalhoO paradigma da inclusão exige que, não somente, mentalidades

sejam transformadas, mas também que práticas excludentes sejam supe-radas. Assim, as políticas afirmativas vem ao encontro da reparação de erros históricos e da garantia de direito de acesso aos diferentes espaços sociais. No caso do trabalho, o Brasil implementou uma cota para garantia

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de representatividade das pessoas com deficiência nos quadros funcionais das empresas. Segundo a Lei 3298/1999, art. 36, “a empresa com cem ou mais empregados está obrigada a preencher de dois a cinco por cento de seus cargos com beneficiários da Previdência Social reabilitados ou com pessoa portadora de deficiência habilitada”, nos seguintes termos:

I - até duzentos empregados, dois por cento;II - de duzentos e um a quinhentos empregados, três por cento;III - de quinhentos e um a mil empregados, quatro por cento; ouIV - mais de mil empregados, cinco por cento.

Tal política busca romper com os ciclos viciosos da exclusão e as-sistencialismo na sociedade brasileira. É notório o abismo entre pessoas com e sem deficiência quando se trata da formação para o trabalho. Uma das dificuldades na implementação dessas cotas é baixa formação esco-lar das pessoas com deficiência no Brasil. Assim, nos termos das ações decorrentes dessa nova política, as igrejas tem como responsabilidade:

• Agir no sentido da divulgação do direito que as pessoas com deficiência tem ao trabalho, zelando pelas condições de acessi-bilidade das empresas;

• Agir no sentido da capacitação ou do apoio às instituições que capacitem pessoas com deficiência para o uso das novas tecno-logias da informação e comunicação;

• Agir no sentido da inclusão de pessoas com deficiência nos qua-dros funcionais das igrejas, inclusive no corpo clerical.

Mais uma vez, a ação profética começa em nós, na implementação das condições de acesso e da representatividade do grupo social das pessoas com deficiência nos quadros funcionais de todas as nossas instituições. Todavia, isto exigirá a eliminação de barreiras físicas, atitu-dinais e comunicacionais, bem como uma gestão flexível que possibilite, inclusive, a formação no trabalho.

ConclusãoComo comunidades cristãs, temos um compromisso social com a

acessibilidade promovendo a inclusão social. Por um lado, devemos nos esforçar para iniciar imediatamente a construção das condições de acesso para todas as pessoas que desejarem participar de nossas igrejas. Por outro lado, devemos nos engajar socialmente na busca da garantia dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência nos termos do bem comum.

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As ações acima propostas não demandam muitos esforços financeiros – podemos trabalhar com parcerias, mutirões ou doações. Entendemos que, acima de tudo, tais ações demandam esforços pessoais no sentido de quebrarmos os círculos do preconceito e medo e, finalmente, de nos dispormos a incluir pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida em nossas comunidades e nos diversos espaços sociais. Podemos começar pela educação e trabalho.

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Cuidados paliativos numa perspectiva brasileira: aspectos introdutórios e a contribuição das mulheres

Palliative care in a Brazilian perspective: introductory aspects and contribution of woman

Los cuidados paliativos en el punto de vista brasileño: aspectos introductorios y la contribución de las mujeres

Blanches de Paula

Resumo Este artigo é uma introdução ao tema dos cuidados paliativos numa perspectiva brasileira. Trata-se, de forma geral, de um retrato histórico de seu nascedouro e a contribuição de mulheres que lutaram para a continuidade desse tipo de cuidado na área da saúde e educação. Ademais, apresenta desafios para a reflexão teológica e sua importância para o cuidado pastoral nos momentos de despedida da vida.Palavras-chave: Cuidados paliativos; protagonismo das mulheres; pastoral do consolo.

AbstRActThis article is an introduction to the issue of palliative care in a Brazilian pers-pective. This is generally developed in a historical perspective focusing on its origins and the contribution of women who fought for the continuation of this type of care in health and education. Beside this the article points out challenges for theological reflection and its importance for the pastoral care for those times of departure from life.Keywords: Palliative care; women’s leadership; pastoral care.

ResumenEste artículo es una introducción al tema de los cuidados paliativos desde una perspectiva brasileña. Se trata, de manera general, de un retrato histórico de su nacimiento y la contribución de mujeres que lucharon para la continuidad de ese tipo de cuidado en el área de la salud y la educación. Además, presenta retos para la reflexión teológica y su importancia para el cuidado pastoral en los últimos momentos de vida.Palabras clave: Cuidados paliativos; liderazgo de las mujeres; consuelo pastoral.

IntroduçãoQuem não sabe se entregar ao cuidado do outro terá mínimas possi-

bilidades de viver até o fim dos seus dias com a semente do amor. Quando

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falamos de cuidado, falamos de amor em todos os tempos. O tempo do viver e o tempo do morrer são inseparáveis. Cuidados Paliativos surgem de um amor à vida até o fim dos seus dias, ou seja, até seu momento derradeiro: a morte. Os Cuidados Paliativos foram definidos pela Organi-zação Mundial de Saúde (OMS, 2002)

... como uma abordagem ou tratamento que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças que ameacem a continuidade da vida. Para tanto, é necessário avaliar e controlar de forma impecável não somente a dor, mas, todos os sintomas de natureza física, social, emocional e espiritual.1

Esta definição de Cuidados Paliativos é uma bússola que tem di-recionado a intervenção na área da saúde ao redor do mundo. Mas, no caso do Brasil, os Cuidados Paliativos ainda são pouco conhecidos pelos profissionais de saúde, pacientes e famílias.

cicely saunders e os Hospices

As expressões curar e cuidar, médico-paciente-família têm sido en-focadas no campo brasileiro de cuidados paliativos. A chamada filosofia hospice2 tem sido gradativamente inserida nos estudos na área de saúde, embora ainda de forma muito tímida.

Os hospices surgiram há muitos séculos na Europa. Na Idade Média, já a partir do século IV, há relatos desses estabelecimentos albergando cristãos em pere-grinação. Dirigidos por religiosos cristãos, tinham esse caráter de acolhimento ao viajante, que lá recuperava suas forças para seguir adiante em sua jornada. Dessa época, permaneceu no moderno movimento a palavra hospice, que in-corpora em sua missão esse caráter acolhedor e a noção, bastante difundida, da doença como uma jornada a ser percorrida pelo paciente e por sua família ou cuidador (FLORIANI e SCHRAMM, 2010)

É importante destacar que, na realidade brasileira, encontramos um contexto semelhante ao nascimento dos hospices: eles foram criados para atender aos pobres que estavam morrendo. Porém, a população pobre não tem tido acesso a um sistema de saúde que inclua os cui-dados paliativos de forma ampla. Ou seja, os cuidados paliativos no contexto brasileiro inverteram a lógica do nascedouro dos hospices. Com exceções, o serviço de Cuidados Paliativos atinge uma população com situação econômica mais estável.

1 Já havia outras conceituações anteriores a esta que vigora nos dias atuais.2 O nascedouro dos hospices localiza-se na era medieval. Eram dirigidos por ordens reli-

giosas. Os hospices trazem nos seus objetivos o cuidado da pessoa de forma integral, incluindo o processo do morrer. O movimento hospice volta com muita força na década de 70 do século passado, com Cicely Saunders.

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1. Cicely Saunders: uma educadora dos cuidados paliativosMencionamos, como destaque de atuação, valorização do movimen-

to hospice e que influencia os cuidados paliativos até os nossos dias, a dedicação de Cicely Saunders3, médica britânica, que empenhou sua vida em prol dos que estavam em processo de morrer. Saunders nasceu em 22 de junho de 1918 e morreu em 2005. A dignidade, os conceitos teológicos e de cuidado formam a tônica desta mulher que de enfermeira tornou-se médica, para atuar de forma mais profunda na dedicação aos cuidados paliativos.

Antes dos estudos na área de saúde, Saunders havia iniciado filoso-fia, economia e política. Quando a segunda guerra eclodiu, dedicou-se à área de saúde. Cicely Saunders também tinha formação em assistência social e era uma pessoa que professava uma fé em ação. Saunders era anglicana. Seu conceito de dor total, ou seja, a dor que não separa “corpo, alma e espírito” contribuiu de forma significativa com o cuidado integral às pessoas no processo de morrer. Nesse sentido, encontramos um campo fértil de diálogo com a teologia quando no conceito de dor total é incluída a dimensão espiritual. Um questionamento que podemos nos fazer é a existência da dor “espiritual” e o que ela significa para pessoas que estão no processo do morrer, denominado também de FPT (fora de possibilidades terapêuticas)4. Há uma relação profunda com uma pastoral do consolo que precisa ser revisitada continuamente no meio cristão.

Cicely Saunders começou sua carreira profissional primeiro como enfermeira e assistente social. Depois estudou medicina, para, segundo ela mesma, “cuidar bem dos pacientes terminais, esquecidos pelos médicos tradicionais”. Ela é reconhecida como a fundadora do movimento moderno de Hospice. O St. Christopher´s Hospice, por ela fundado em 1967, foi o primeiro hospice que, numa visão holística da pessoa humana e cuidados integrados, ligou o alívio da dor e controle de sintomas com cuidado humanizado, ensino e pesquisa clínica. Essa nova filosofia de cuidados direcionados aos pacientes fora de possibilidades terapêuticas influenciou muito os cuidados em saúde ao redor do mundo, bem como gerou novas atitudes em relação à morte, ao morrer e diante da dor da perda de um ente querido, isto é, o período do luto (PESSINI e BARCHIFONTAINE, 2006, p. 364).

O St. Chirstopher’s Hospice permanece até hoje formando milhares de cuidadores/as na área da saúde. Esse legado deixado por Saunders

3 Atualmente, há o Cicely Saunders Institute em Londres, com o objetivo de cuidado integral no processo do morrer. (veja, nas referências bibliográficas, o endereço da sua página na internet).

4 Rachel Aisengart Menezes aborda a terminologia FPT (fora de possibilidades terapêuticas) em seu livro “Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos”..

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soma-se ao conceito de dor, mencionado anteriormente. Já como médi-ca, desenvolveu pesquisas que contribuíram para o controle da dor em pacientes oncológicos.

É relevante ressaltar que a vocação para o cuidado com pessoas consideradas no fim da vida trouxe novo sentido aos estudos da medicina na época de Saunders que, ao se tornar médica (aos 40 anos), procura um status de reconhecimento científico para os cuidados paliativos.

Outra dimensão relevante dos cuidados paliativos apregoados por Saunders era o acolhimento incondicional para quem estava no processo do morrer; essa incondicionalidade incluía a fé, sem perder a identidade cristã. Saunders não queria transformar o St. Christopher’s Hospice num gueto de cuidados. Mas, pelo que percebemos, seu legado permanece até hoje oferecendo capacitação aos profissionais de saúde que promovem a vida ao lidar com as perdas, o luto, o morrer.

2. Elizabete Kübler-Ross e os estágios do lutoElizabete Kübler-Ross foi uma das mulheres cuja biografia conquista

certa admiração, surpresas e um profundo espaço para questionamentos ligados à nossa existência. Kübler-Ross nasceu na Suíça em 1926 e mor-reu, aos 78 anos de idade, no dia 24 de agosto de 2004. Formada em medicina, mudou-se para os Estados Unidos logo após o término do curso. Desde tenra idade interessou pela arte do cuidado em meio às perdas.

Possivelmente Kübler-Ross seja mais conhecida pelos denominados estágios do processo de morrer. Mas sua contribuição vai bem mais além. Kübler-Ross adentrou num mundo subterrâneo de todos nós, onde estão alojadas nossas perguntas, buscas e, paradoxalmente, encontros e realizações.

Com sua ampla experiência em hospitais, começou sua pesquisa nos seminários interdisciplinares sobre a morte e o morrer no ano de 1965, incluindo estudantes do Seminário Teológico de Chicago. Esses pediram sua ajuda para compreender as crises da vida humana, das quais a morte era, para eles, a maior. Em linhas gerais, a crise, para Kübler Ross, está ligada a um processo de perda que tem fases distintas.

Kübler-Ross alertou sobre os procedimentos de acompanhamento ao paciente terminal nos seguintes aspectos: comunicação ao paciente de sua doença; a importância da participação da família; presença do conforto verbal e não-verbal; trabalho de equipe interdisciplinar;

2.1 Estágios do pesar A partir desses seminários e das pesquisas sobre o processo da

morte e do morrer, Kübler-Ross sistematizou esse momento por meio dos estágios do pesar, do luto para quem está na fase terminal da vida. O

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conhecimento desses estágios é de grande relevância para os cuidados paliativos. São eles:

Primeiro estágio: negação e isolamento

Como o próprio nome denomina, o primeiro estágio é a experiência da não-crença no que está acontecendo consigo mesmo. A negação pode ser seguida de um choque inicial. Evidentemente, trata-se de um mecanismo de defesa da pessoa, diante do limite da vida. “Em suma, a primeira reação do paciente pode ser um estado temporário de choque do qual se recupera gradualmente. Quando termina a sensação inicial de torpor e ele se recompõe, é comum no homem esta reação: ´Não, não pode ser comigo´” (KÜBLER-ROSS, 2000, p. 47). As atitudes diante da negação absorvem a pessoa, podendo ter momentos de quase completa fuga da realidade.

segundo estágio: raiva

O estágio da raiva expressa a impotência e a falta de controle para lidar com a situação.

“Quando não é mais possível manter firme o primeiro estágio de ne-gação, ele é substituído por sentimentos de raiva, de revolta, de inveja e de ressentimento. Surge a pergunta: Por que eu? (KÜBLER-ROSS, 2000, p. 55)”. A exposição dos sentimentos pode vir com uma roupagem de raiva da equipe de saúde, da família, do clérigo, de Deus, de si mesmo e até mesmo da pessoa que morreu. Por isso, nesse estágio, é essencial a compreensão e expressão da raiva pelo paciente.

terceiro estágio: barganha

O terceiro estágio é uma espécie de acordo com pessoas que signi-ficam segurança, proteção para a pessoa. Geralmente, as barganhas são feitas com Deus. A barganha está ligada a um sentimento de culpa. É uma dívida afetiva com alguém ou um comportamento realizado pelo paciente no passado e “não aceitável” socialmente e que, no seu inconsciente, pode ter desencadeado a enfermidade. Segundo Kübler-Ross, a barganha, na realidade, é uma tentativa de adiamento; inclui um prêmio, oferecido ´por bom comportamento`, estabelece também uma ´meta` autoimposta e uma promessa implícita de que o paciente não pedirá outro adiamento, caso o primeiro seja concedido.

Quarto estágio: dePressão

Essa fase é marcada por uma grande sensação de perda. A percep-ção da perda de si mesmo é mais presente do que em estágios anteriores. Kübler-Ross apresenta dois tipos de depressão: “Se eu tentasse diferenciar

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estes dois tipos de depressões, classificaria a primeira como uma depressão reativa e a segunda como uma depressão preparatória (KÜBLER-ROSS, 2000, p. 92)”. A família precisa de um acompanhamento no sentido de orientá-la a deixar o paciente expressar os sentimentos de perda.

Quinto estágio: aceitação

O estágio da aceitação advém quando cessam as possibilidades de tratamento e a morte se torna mais próxima. Nesse estágio, Kübler-Ross afirma que “é como se a dor tivesse esvanecido, a luta tivesse cessa-do e fosse chegado o momento “do repouso derradeiro antes da longa viagem” (KÜBLER-ROSS, 2000, p. 118). É também o período em que a família geralmente carece de ajuda, compreensão e apoio, mais do que o próprio paciente.

2.2 Heranças para morrer e viverKübler-Ross deixou-nos como herança que o processo de morrer

vai além de estágios, mas vincula-se às formas pelas quais podemos ser acompanhados ou não no processo de despedida da vida. Conflitos morais podem transformar em vitrines as angústias mais profundas do ser humano, desencadeadas pelo medo de morrer sem “completar” o ciclo da vida.

Destaca-se também o seu intenso acompanhamento com crianças. Por meio de desenhos das próprias crianças, Kübler-Ross oportunizava um diálogo sobre suas vidas no processo de morrer. Algumas contribui-ções que podemos destacar de seu trabalho foram: como as crianças enfrentam a morte; orientações para diálogo com pacientes terminais, orientação sobre diálogo entre membros da família sobre o processo de morrer; estímulo às pessoas para falarem sobre o processo de morrer; presença de familiares, religiosos e amigos com uma pessoa que está enfrentando o processo de morrer; comunicação no processo de morrer [O uso da linguagem simbólica].

Evidentemente, para lidar com tantas situações adversas, Kübler-Ross enfatizou as emoções tais como raiva, tristeza, medo. A falta de externali-zação da raiva causava (e causa) um sofrimento ainda maior às pessoas.

E, ainda, ao acompanhar as pessoas no processo de morrer, Kübler--Ross ressaltava as crises existenciais, os conflitos com a medicina e a possiblidade da criação de equipes multidisciplinares para o cuidado com pacientes em processo de morrer. Como ela própria ressaltou, “havia muito o que aprender sobre a vida escutando os pacientes terminais” (KÜBLER-ROSS, 1998, p. 145).

As últimas pesquisas de Kübler-Ross permearam a experiência quase-morte e a vida após a morte. Essas investigações trouxeram gran-

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de inquietação no mundo científico, que recebeu com imenso ceticismo suas afirmações. Kübler-Ross transmitia muita coragem e paixão pelo que fazia. Além disso, apresentava um desprendimento em prol do que mais acreditava: a vida. Por isso, sua dedicação à medicina e ao cuidado com as pessoas expressava claramente que viveu de modo intenso.

4. Aspectos gerais dos Cuidados Paliativos no contexto brasileiroOs Cuidados Paliativos levantam temas como a dor e o sofrimento,

que são aspectos próximos e que expressam também uma identidade cultural. No Brasil, há necessidade de uma educação para lidar com essas questões. É indispensável uma formação que estimule equipes multiprofissionais, como: pessoas doentes, médicos, enfermeiros, familia-res, farmacêuticos, psicólogos, assistentes sociais, capelães, religiosos, dentre outros, para o cuidado integral da pessoa.

O contexto da assistência médica em nosso país é ainda caracterizado em muitos segmentos populares por uma cultura que cheira ao conformismo dolorista (é assim mesmo) da sociedade enquanto tal. Num ethos social marcado por desigualdade e exclusão, herança de nosso período de escra-vidão, o pobre tem que sofrer, e o crente não menos, para ganhar o céu. Este manto dolorista que acaba sacralizando a desigualdade sociopolitica e cultural felizmente vai desaparecendo aos poucos. Alguns sinais positi-vos já começam a surgir no contexto clinico brasileiro. Foi criado em 1997, no âmbito do Ministério da Saúde, um Programa Nacional de Educação Continuada em Dor e Cuidados Paliativos para os profissionais da Saúde. (PESSINI e BERTACHINI, 2004)

No cenário brasileiro, percebe-se um processo de ampliação da importância dos cuidados paliativos para o bem-estar das pessoas nos últimos dias de vida, embora, na cultura brasileira, o tema da dor ainda esteja mais no nível da aceitação do que do questionamento e do enfrenta-mento com dignidade. A expressão “Pobre tem que sofrer” é um equívoco social/cultural muito presente na mentalidade brasileira. De certa maneira, é uma forma de acobertar o estigma da pobreza aliada a uma causa an-tropológica e de status social. Pode-se afirmar que a relação entre o tema da pobreza e os cuidados paliativos ainda é muito introdutório nas pesqui-sas brasileiras. Tratar sobre Cuidados Paliativos no contexto da pobreza torna-se um artigo de luxo, pois se nem em todos os serviços básicos na área de saúde, as pessoas têm sido tratadas como seres humanos, que se dirá de um acompanhamento digno no processo do morrer?! De fato, na experiência brasileira, encontramos muitas pessoas que, na fila de espera para um atendimento, muitas vezes acabam morrendo.

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Além disso, destacamos a comunicação com os pacientes, que tam-bém tem um caráter cultural muito presente nos países latinos. Vejamos uma afirmação sobre o assunto:

Nessas circunstâncias, não é rara, principalmente em países latinos, uma atitude falsamente paternalista, que leva a ocultar a verdade ao paciente. Com frequência, entra-se no círculo vicioso da chamada “conspiração do silêncio”, que além de impor novas formas de sofrimento para o paciente pode ser causa de grave injustiça. A comunicação de verdades dolorosas não deve destruir a esperança da pessoa. (PESSINI e BERTACHINI, 2004)

Como temos pontuado, no Brasil, os Cuidados Paliativos têm con-quistado seu espaço gradativamente. Por exemplo, o Programa Nacional de Humanização dos Serviços de Saúde, lançado em 24 de maio de 2000, é uma das iniciativas brasileiras para o processo de humanização, que prioriza o cuidado em todas as ações em prol das pessoas doentes. Há também serviços voltados para o nascimento de crianças, o pré-natal, e também para a saúde da família. O SUS, Sistema Único de Saúde, já tem um programa de Cuidados Paliativos, mas tem grandes desafios para atingir a população empobrecida do nosso país.

Outro destaque é a criação da Associação Brasileira de Cuidados Paliativos5, ocorrida em São Paulo, no ano de 1997. O objetivo primordial dessa associação é oferecer espaço para a criação de diretrizes para a implantação da filosofia hospice no Brasil respeitadas as diferenças so-cioculturais do país. Ela tem promovido eventos, cursos de capacitação e também parcerias com outros grupos afins como as Sociedades Bra-sileiras de Cancerologia e de Oncologia Clinica e também publicações como a Revista: o Mundo da Saúde, voltada especificamente para o tema dos Cuidados Paliativos. Hoje, podemos afirmar que existem cerca de 30 serviços de cuidados paliativos no Brasil, os quais incluem assistência em ambulatório, internação e domicílio.

O cenário brasileiro tem começado a semear as sementes de uma educação que, antes de ser para a morte, é para vida. Não há como separar uma da outra. Por isso, ao tratar o tema dos cuidados paliativos, tocamos também no tema do luto, que envolve um processo desencade-ado pela perda de si mesmo e também dos familiares. Evidentemente, a relação entre luto e cuidados paliativos envolve um acompanhamento da equipe de saúde e a família. Possivelmente, podemos abordar o luto ante-

5 A Associação Brasileira de Cuidados Paliativos tem oferecido orientações que são de grande relevância para a formação profissional no campo da saúde. Evidentemente, essa formação deveria ampliar seus ramos educacionais para outras expressões de cuidado com o ser humano, como: pedagogia, filosofia, teologia, sociologia, dentre outros (veja o endereço da sua página na itnernet nas Referências bibliográficas).

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cipatório em relação aos cuidados paliativos. Ou seja, o processo do luto pode ser desencadeado antes do momento derradeiro da vida. Este tema tem recebido atenção nas pesquisas brasileiras sobre os mais variados processos de perda existentes. Pesquisadoras, como Maria Júlia Kovacs e Maria Helena Pereira Franco, ambas psicólogas, têm defendido uma educação para a morte. O Laboratório de Estudos da Morte, coordenado por Maria Júlia Kovacs, criou um programa de DVDs para escolas públicas e privadas, com a série Falando de Morte: para criança, adolescentes, idosos e profissionais de saúde.

Em uma das pesquisas realizadas por Kovacs em uma unidade de cuidados paliativos no Brasil, foram encontrados os seguintes desafios:

problemas financeiros; manutenção da família após a morte do paciente; o futuro dos filhos; receio de se tornar uma sobrecarga para a família; sentimento de inutilidade por não trabalhar ou não realizar as atividades domésticas; pacientes relataram também não entenderem o que está acon-tecendo com eles, o que seus médicos dizem, e têm receio de perguntar, pelo medo de ser considerados ignorantes, porque crêem que o médico está muito ocupado para perder tempo com eles, ou que possa sentir que a sua autoridade está sendo questionada, e isto causar interferência no seu atendimento. (KOVACS, 1998)

Outros desafios vinculados aos Cuidados Paliativos no Brasil estão na capacitação de profissionais de saúde, estudos sobre a dor total (de-fendidos por Cicely Saunders) e carência de recursos financeiros para pesquisas na área.

Cabe destacar também que a história de vida de muitos brasileiros inclui a crença nos milagres e também do suporte da dor como parte de sua existência. Por ser um país onde a fé de certa forma está vinculada à cultura, o tema da dor e dos cuidados paliativos torna-se muito mais do que um tema na área de saúde, mas do contexto vivencial do brasileiro, na sua esfera social, política, econômica, cultural, espiritual. Os cuida-dos paliativos em terras brasileiras vêm assimilando a lógica do cuidado não somente no fim da vida, mas desde o estágio inicial de uma doença considerada incurável. Há também interesse crescente pela relação entre cuidados paliativos e geriatria. No Brasil, tem aumentado o número de pessoas idosas e também a expectativa de vida além dos 80 anos.

Independente da idade, etnia, situação socioeconômica, estado civil, consideramos que os cuidados paliativos no Brasil têm tocado no sentido da existência do cotidiano dos profissionais de saúde e também dos cuidadores espirituais. Este é um tema que tem levantado profundos questionamentos no sentido da palavra saúde em todas as etapas da vida.

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Além disso, tem evocado o sentido da existência e da finitude, temas tão caros tanto às ciências como a teologia.

Cabe, a título de desafio, a construção contínua de uma pastoral do consolo que viabilize o diálogo sobre o tema da vida e sua finitude, na formação de lideranças religiosas. Além disso, é indispensável para o desenvolvimento de uma pastoral do consolo, a inclusão de leigos/as como cuidadores/as. Uma pastoral do consolo é oferecer suporte, em uma espiritualidade de esperança, de diálogo e que caminhe com as pessoas até as terras desconhecidas daqueles/as que ainda não passaram pelo vale da sombra da morte. Nesse quesito é sempre salutar reafirmar a importância de uma pastoral que ofereça os ombros da ternura, da cora-gem, da graça e do amor que ama até o fim.

Referências bibliográficas

Livros e artigosARAUJO, M. Martins Trovo de; SILVA, M. J. Paes da. “A comunicação com o pa-ciente em cuidados paliativos: valorizando a alegria e o otimismo”. In: Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v. 41, n. 4, dez. 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342007000400018&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 set. 2011. OLIVEIRA, Reinaldo Ayer de Oliveira (coord.) Cuidado paliativo. São Paulo: Cremesp, 2008.KOVACS, M. J. “Bioética nas questões da vida e da morte”. In: Psicol. USP, São Paulo, v. 14, n. 2, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642003000200008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 set. 2011. FLORIANI, C. A.; SCHRAMM, F. R. “Casas para os que morrem: a história do desenvolvimento dos hospices modernos”. In: História, ciência e saúde - Man-guinhos, Rio de Janeiro (2011). Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702010000500010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 set. 2011. FLORIANI, C. A.; SCHRAMM, F. R. “Cuidados paliativos: interfaces, confli-tos e necessidades”. In: Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro (2011). Dis-ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413--81232008000900017&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 set. 2011. KÜBLER-ROSS, E. A roda da vida: memória do viver e do morrer. São Paulo: Sextante, 1998._____. Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes, 2000.______. O Túnel e a Luz: reflexões essenciais sobre a vida e a morte. Campinas: Verus, 2003.

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Páginas eletrônicasAssociação Brasileira de Cuidados Paliativos. Disponível em: < http://www.cuida-dospaliativos.com.br/site/inicio.php >. Acesso em: 25 set. de 2011.Cicely Saunders Institute, Londres. Disponível em: < http://www.cicelysaunders-foundation.org/cicely-saunders-institute >. Acesso em: 25 set. de 2011.Organização Mundial de Saúde Disponível em: < http://www.paliativo.org.br/ancp.php?p=oqueecuidados. Acesso em: 25 set. de 2011.Prática hospitalar. Disponível em: < http://www.praticahospitalar.com.br/pratica%2041/pgs/materia%2021-41.html >. Acesso em: 25 set. de 2011.

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Ser mais: um princípio educativo

To be more: an educational principle

Ser más: un principio educativo”

Renilda Martins Garcia

ResumoO presente artigo pretende refletir sobre a educação a partir do conceito de Ser Mais, postulado pelo educador Paulo Freire como elemento presente no processo educativo Intenta-se resgatar este conceito e compartilhar esta perspectiva freire-ana relevante para a educação, contribuindo, assim, para a análise da temática.Palavras-chave: Ser Mais; educação; querer bem; mundo; ser humano.

AbstRActThis paper reflects on education from the concept of To be more, postulated by the educator Paulo Freire as an element in the educational process. It is at tempted to rescue this concept and share this Freirean perspective relevant to education, thus contributing to the analysis of the issue.Keyword: To be More; to want the good; world; human being.

ResumenEl presente artículo pretende ser una reflexión sobre la educación a partir del concepto de Ser Más, postulado por el educador Paulo Freire como elemento presente en el proceso educativo. Se hace el intento de rescatar este concepto y compartir esta perspectiva freirena relevante para la educación, contribuyendo, así, para el análisis del tema.Palabras clave: Ser Más; desear el bien; educación; mundo; ser humano.

IntroduçãoO educador brasileiro Paulo Reglus Neves Freire, Paulo Freire,

pessoa de renome por suas contribuições na área da Educação em nível nacional e internacional, faz uma reflexão interessante concernente ao Ser Mais como elemento presente no processo educativo. O contato com esta vertente do conhecimento inspirou a elaboração deste artigo, Ser Mais: Um Princípio Educativo, objetivando resgatar este conceito e compartilhar esta perspectiva freireana relevante para a educação, contribuindo, assim, para a análise da temática.

O ser humano é essencialmente relacional e, por sê-lo, carece de outro para a construção de sua identidade. Como meio de suprimir esta carência, estabelece relações de convivência e, na doação de si mesmo, pode construir sentimentos de humanização. A atitude de ir ao encontro de outra pessoa não acontece por acaso. É decorrente da gênese humana como potencialidade relacional, capacidade de conviver.

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Nesta interação de saberes, marcada definitivamente por aproxi-mações, doações multifacetadas, a convivência é moldada por diversas mãos, toma formas e cores, conotações as mais variadas. Dessa maneira de viver e conviver, emerge um jeito peculiar de encarar o mundo, de interpretar e decidir a vida, de deixar a marca no tempo. Nasce a cultura.

Além de ser uma produção humana, a cultura é um processo comu-nicativo e é somente por meio do processo social, mediado pela cultura, que o ser humano consegue perceber-se como pessoa, como individua-lidade e nesta interface relacional se descobrir como gosto, apreciação e desejo, sonho. Descobre o sentido de pertença a um grupo social. A cultura ajuda o ser humano a descobrir este sentido e sua identidade.

Paulo Freire ilumina esta reflexão ao afirmar que a vocação para a humanização se caracteriza pela busca do ser mais por meio da qual o ser humano curiosamente busca o conhecimento de si mesmo e do mundo, em prol de sua liberdade. Mas quem é o ser humano? “O ser humano é um universo inesgotável de possibilidades; um projeto sempre aberto ao aperfeiçoamento” (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 416) e “existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. [...] Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 2008, p. 90). O ser humano é um ser em constante busca por sua autonomia:

Autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade (FREIRE, 2010, p. 107).

Tendo como horizonte a liberdade decorrente de experiências respei-tosas na educabilidade por parte do/a educando/a e educador/a, Freire introduz a autonomia como um processo de vir a ser. Processo, pois, é algo a ser construído, considerando a dinâmica da realidade em todas as suas dimensões, a partir de experiências estimuladoras. Tais expe-riências de aprendizagem possibilitam ao/a educando/a instrumentais, conhecimentos os mais variados, permitindo-lhe tomar decisões com responsabilidade e consciência de si, do/a outro/a e do mundo. Cabe destacar que o aprendizado e aplicabilidade destes instrumentais não dependem unicamente do/a educador/a. É resultado da interação entre educador/a e educando/a e do contexto em que vivem. O/a educando/a, em algum momento de sua vida, decodifica as informações recebidas, baseado/a em estímulos vivenciais, transformando-os em conhecimento, aprendizagem. Desta forma, cada pessoa tem o seu tempo de aprender.

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Tal compreensão é fundamental para evitar equívocos quanto à potencia-lidade de aprendizado do/a educando/a, ao mesmo tempo em que lança o desafio da construção de um processo educacional que, de fato, bus-que a autonomia deste/a, tendo como horizonte a liberdade humana. É o resgate da individualidade na arte de conhecer, sem, no entanto, excluir a influência do grupo social na construção deste mesmo saber. Assim, na construção de sua autonomia o ser humano anseia por ser e ser mais.

Neste sentido, Freire concebe o ser mais como desafio da libertação dos/as oprimidos/as como busca de humanização, em que a natureza hu-mana é programada para ser mais, porém não determinada por estruturas ou princípios inatos (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 369):

Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser determinado e o ser condicionado (FREIRE, 2010, p. 53).

No entanto, o fato de a natureza humana ser programada para “ser mais” não garante que, por si, só esta potencialidade se concretize na existência humana. Faz-se necessária a criação de espaços de ação--reflexão, reflexão-ação que propiciem que o ser mais se emancipe, pois este, “inscrito na natureza dos seres humanos” (FREIRE, 2010, p. 75), implica que o ser humano tenha consciência de si na qualidade de possibilidade. Este espaço pode e deve ser a escola, a academia, mas, essencialmente, a vida como espaço educativo, como “tempo de possibi-lidade, não de determinação” (FREIRE, 2010, p. 75) e o ser mais, regado pela afetividade.

Dentre os elementos que constituem a natureza humana, a afetivi-dade, a ternura, a sensibilidade delineiam de forma peculiar o humano. Dentre eles se destaca o querer, querer bem que tem como essência a dialogicidade, um princípio ético delineado pelo ouvir, ouvir a outra pessoa, percebê-la e considerá-la fonte inesgotável de vida (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 337). A dialogicidade pressupõe:

Fé na vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. [...] O homem dialógico, que é crítico sabe que, se o poder de fazer, de criar, de transformar, é um poder dos homens, sabe também que podem eles, em situação concreta, alienados, ter este poder prejudicado (FREIRE, 2008, p. 93 e 94).

Este ímpeto, a busca por construir significados, sentido para a sua existência, emana do querer que gera força, vigor, que faz mover os

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corpos na esperança da concretude de um ideal. O ser humano sempre está em busca de algo mais, de um motivo que estimule a razão de sua existência. Este sentimento que o impele a ir além, sem, às vezes, saber para onde, que o inquieta, o faz sair do lugar e mover-se em direção a… é algo que contagia todo o seu ser. É o querer pulsando o ser.

O ser humano é movido pelo querer, desejar. O querer antecede toda ação. A própria razão, reflexão, traz consigo o elemento desejante e esse é o fator decisório no processo de escolha. Por ser o desejo a mola propulsora da ação, e a ação promotora da experiência, e a expe-riência uma forma de conhecimento, o desejo carrega em si a dimensão educativa, tem em seu bojo a dimensão epistemológica.

Assim, o ser humano nasce com potência de querer bem e querer ser mais. O querer é pressuposto essencial para ser mais, porém é na inter-face, na interação com outros pressupostos, como a motivação-estímulo, oportunidade, possibilidade e principalmente por meio da educação que ele se potencializa e se manifesta. Tendo em vista que se o ser humano nasce com o ímpeto de ser mais, porém, sem rumo pré-definido subentende-se que o querer não é proveniente da ação individual, mas coletiva. Neste sentido, as ações humanas não são meramente ações isoladas ou es-tanques. São produtos de um sistema interativo bio-psico-social e político que determina formas de comportamento e posicionamentos regados pela esperança e o sonho de um outro mundo possível.

Mas de que mundo se está falando? “Para o homem, o mundo é contexto de sua existência (ex-sistência), e ele transforma, com sua ação, este contexto, fazendo dele um mundo da cultura e da história” (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 283). Esta categoria de mundo está intrinsecamente ligada à natureza, cultura, história, existência, consciência, trabalho, ação transformadora, palavra e práxis (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 283). Segundo Freire a “visão de mundo” reflete a “situação no mundo” em que as pessoas vivem (FREIRE, 2008, p. 100). Desta maneira, o mundo, para um grupo de pessoas, pode ter um significado que não o mesmo para outro grupo, em razão de cada contexto social e que influencia a maneira de pensar, de agir, o jeito de ser. Então, qual visão de mundo é a melhor, ou como determinar a visão de mundo mais adequada? Essa questão passa fundamentalmente pela escolha do tipo de mundo desejado e do perfil de ser humano que se deseja construir para habitar nele. Ao almejar um mundo em que caibam todas as pessoas, a abertura, a flexibilidade e a sinceridade para coexistir com pessoas e com o ecossistema são quesitos primordiais. Para tanto, é preciso conviver com o mundo e no mundo. É preciso estar por dentro dos acontecimentos, conviver. Desta convivência, emana a capacidade de superação das situações-limite, emana o inédito viável:

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O “inédito viável” é, na realidade, pois, uma coisa que era inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas quando se torna um “percebido desta-cado” pelo que pensam utopicamente, o problema não é mais um sonho, ele pode se tornar realidade (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 225).

Ana Maria Freire introduz o termo “inédito-viável” como alternativa construída coletivamente a partir da vivência crítica do sonho almejado. Sonhar coletivamente, na perspectiva da construção do “inédito-viável”, ocor-re, principalmente, por meio da educação (FREIRE, A. M., 2001a, p. 29).

Como referência à concepção de educação, Ana Maria Freire trans-creve o pensamento de Freire de “re-ad-mirar agora a educação mesmo como um fazer dos homens e das mulheres, um que fazer que se dá no domínio da cultura e da história” (FREIRE, A. M., 2001a, p. 45); enfatiza a educação como “... processo de conhecimento, formação política, ma-nifestação ética, procura da boniteza, capacitação científica e técnica, a educação é prática indispensável aos seres humanos e deles específica na História, como movimento, como luta” (FREIRE, 2001b, p. 10). É prática indispensável aos seres humanos e deles, específica na História. Nesse aspecto, Freire aborda a história como movimento, luta como possibilidade, como liberdade e sua demanda; como espaço em que se criam processos de emancipação, a partir do comprometimento na qua-lidade de sujeitos-objetos da História; como possibilidade não fixada ou predeterminada cujo critério é histórico-social e não individual (FREIRE, 2001b, p. 19), e acrescenta::

Pensar a História como possibilidade é reconhecer a educação também como possibilidade. É reconhecer que se ela, a educação, não pode tudo, pode alguma coisa. Sua força, como costumo dizer, reside na sua fraqueza. Uma de nossas tarefas, como educadores e educadoras, é descobrir o que historicamente pode ser feito no sentido de contribuir para a transformação do mundo, de que resulte um mundo mais “redondo”, menos arestoso, mais humano, e em que se prepare a materialização da grande Utopia: Unidade na Diversidade.

Porém, para que o ser humano resgate sua humanização, na supera-ção das situações-limite com o inédito viável em busca do ser mais e na construção de um mundo possível, faz-se necessária a promoção de uma educação que estimule a conscientização, que “não é apenas conheci-mento ou reconhecimento, mas a opção, decisão, compromisso” (FREIRE, 2008, p. 9). É engajamento numa causa que dá sentido à existência, é a concepção da educação como práxis, “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 2008, p. 42). E, ao transformar o mundo, o ser humano transforma-se a si mesmo, pois: “Ninguém educa

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ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediados pelo mundo” (FREIRE, 2008, p. 78).

Ana Maria Freire destaca a percepção de Freire quanto a neces-sidade de se considerar a educação como um dos meios prioritários do processo de mutação cultural; porém, tem sido um instrumento de manutenção do status quo. A educação pode vir a ser, realmente, um fator de transformação, no sentido da libertação de homens e de mu-lheres, mas ela é, ao mesmo tempo, promotora e expressão da cultura (FREIRE, A. M., 2001a, p. 45). E este é um dilema constante. Em sua trajetória educativa, Freire revela um profundo respeito pela autonomia total do/a educador/a; respeito pela identidade cultural dos/as educandos/as – respeito pela linguagem, pela cor, gênero, classe, orientação sexual, capacidade intelectual – por fim, a habilidade para estimular a criativida-de da outra pessoa. E acrescenta que a prática educacional pode trazer uma contribuição inestimável à luta política, principalmente pela criação de estruturas pedagógicas que promovam a autonomia do/a educando/a (FREIRE, A. M., 2001a, p. 260 e 265).

Ela acrescenta, que a prática educacional “não é o único caminho para a transformação social necessária à conquista dos direitos humanos, contudo, sem ela, jamais haverá a transformação social”, pois a educação propicia às pessoas maior clareza para “lerem o mundo”, e essa clareza abre a possibilidade de intervenção política (FREIRE, 2001a, p. 36). Este, pois, é um princípio que expressa potencialidades práticas da Pedagogia dos Sonhos Possíveis, sendo um dos seus princípios fundamentais a máxima: “Mudar é difícil, mas possível e urgente” (FREIRE, 2001a, p. 31).

No entanto, há que se destacar que uma educação que promova a transformação da realidade depende do processo de ensino e aprendi-zagem que a sustenta, pois estão intrinsecamente conectados e não é possível o ato de ensinar sem aprender, pois “não há docência sem dis-cência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 2010, p. 23). Essa dinâmica consiste em um ato político formador de consciência crítica em que a leitura da palavra implica a leitura crítica da realidade, leitura do mundo em que ambos, educador/a e educando/a, são sujeitos do ato de conhecer. Esse processo de formação política tem como ponto fundante o diálogo, como norte a realidade e possibilita a aprendizagem significativa, em que a pessoa interage-intervém nas situações do coti-diano com vistas a modificá-lo, numa constância da ação, reflexão, ação, enfim, a práxis educativa. Assim, no contexto da educação libertadora, o ensino-aprendizagem consiste numa relação recíproca na construção do conhecimento, para Ser mais, Ser mais humano.

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Referências bibliográficasFREIRE, A. M. Pedagogia dos sonhos possíveis (Org. Ana Maria de Araújo Freire). São Paulo: Unesp, 2001a (Série Paulo Freire).FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 27. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003._____. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 42. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010._____. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000._____. Pedagogia do Oprimido. 47. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008._____. Política e Educação. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001b (Coleção: Questões da nossa época, vol. 23).STRECK, Danilo, R. e ZITKOSKI, Jaime, J. (org.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

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O telejornalismo global e suas relações discursivas a partir de Foucault

Global tv-jornalism and its discursive relations in the perspective of Foucault

El periodismo de la televisión mundial y sus rela-ciones discursivas según Foucault

Hideíde Brito Torres

ResumoEste artigo aborda as relações discursivas entre telejornalismo, religião e ciência, a partir dos enunciados contidos na série especial “Os evangélicos”, levada ao ar pela rede Globo, no Jornal Nacional, entre os dias 26 a 29 de maio de 2009, à luz das obras “A ordem do discurso” e “Arqueologia do Saber”, de Michel Fou-cault. Temos como método a Análise de Discurso tal como Foucault a propõe. Algumas questões que nos instigam na reflexão são: quais as relações entre o saber religioso e outros saberes em sociedade? Como o discurso jornalístico aborda o saber religioso? Como a voz dos especialistas ganha roteiro neste discurso jornalístico? Palavras-chave: Discurso; Foucault; telejornalismo; evangélicos; Jornal Na-cional.

AbstRActThis article discusses the discursive relations between TV journalism, religion and science,based on the statements contained in the special series “The Protes-tants,” produced by Rede Globo and exhibited at the Jornal Nacional, between the 26th and 29th of May 2009, in the light of the books: “The order of Discourse” and “Archaeology of Knowledge”, by Michel Foucault. Our method is the Discourse Analysis suggested by Foucault. Some issues that are compelling in this reflec-tion are: what are the relations between religious knowledge and other forms of knowledge in society? How approaches the journalistic discourse religious knowledge? How the voices of the experts are transformed into the script of the journalistic discourse?Keywords: Discourse; Foucault; TV journalism; Protestants; Jornal Nacional.

ResumenEste artículo analiza las relaciones discursivas entre el periodismo de televisiEste artículo trata las relaciones entre periodismo televisivo, religión y ciencia, a partir de los enunciados contenidos en la serie especial “Los evangélicos”, emitida por la Cadena Globo, en el telenoticiero Jornal Nacional, entre los días 26 a 29 de Mayo de 2009, a partir de las obras “El Orden del discurso” y “Arqueología del saber”, de Michel Foucault. Tenemos como método, el análisis del discurso, tal como Foucault lo propone. Algunas cuestiones que nos instigan en la reflexión son: ¿Cuáles son las relaciones entre el saber religioso y las otras áreas del saber en la sociedad? ¿Cómo la voz de los especialistas se impone en este discurso religioso?Palabras clave: Discurso; Foucalt; periodismo; evangélicos; Jornal Nacional.

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o telejornalismo global e suas relações discursivas a partir de Foucault

Nos estudos de comunicação, a palavra “discurso” ocupa lugar privi-legiado. Tanto destaque, porém, não facilita o entendimento do conteúdo do conceito. Entre as diversas abordagens possíveis, tomaremos aqui, como referencial teórico, o intelectual francês Michel Foucault e, como método, a Análise de Discurso tal como ele a propõe. A partir destas referências, procuraremos verificar as relações discursivas (CASTRO, 2009, p. 178) entre o telejornalismo, a religião e a ciência na série espe-cial “Os evangélicos”, levada ao ar pela rede Globo, no Jornal Nacional, entre os dias 26 a 29 de maio de 2009, e produzida por Flávio Fachel e Tyndaro Menezes. As matérias na íntegra encontram-se disponíveis para consulta e visualização no site da emissora Globo, com os res-pectivos textos.

Iremos, num primeiro momento, expor algumas linhas de pensa-mento de Foucault, especialmente nas obras “A ordem do discurso” e “A arqueologia do saber”, postulando possíveis interações com o discurso jornalístico. A seguir, passaremos a refletir sobre as relações discursi-vas propostas, a partir dos enunciados contidos na série especial em análise. Para tanto, poderão nos auxiliar as reflexões foucaultianas acerca de como se dá a ordem do discurso, como operam as práticas discursivas em dado momento histórico e quais são as suas condições de existência.

o discurso (tele)jornalístico: fundamentos teóricos em FoucaultCorreia e Vizeu (2008, p. 11) afirmam que os brasileiros acreditam

mais na mídia do que no Governo. Segundo eles, uma pesquisa realizada no país aponta que 56% dos brasileiros têm a televisão como principal fonte de informação. Desta forma, para os autores, o telejornalismo re-presenta “um lugar de referência, muito semelhante ao da família, dos amigos, da religião e do consumo” (CORREIA e VIZEU, 2008, p. 12, grifos dos autores).

Esta relevância do jornalismo, especialmente em sua versão televi-siva, traz à tona, de imediato, a reflexão sobre a circulação dos saberes (que, em Foucault, é um conceito distinto de ciência) e a luta pelos pode-res na sociedade. O discurso jornalístico, por sua natureza, transita numa interseção de saberes (estético, religioso, científico, etc.). Embora utilize outras categorias, Resende comenta algo similar, quando afirma que

O campo dos media vive um processo de correlação de forças com vários campos sociais — políticos, econômicos, culturais, religiosos, entre outros —, já que ele se faz estrutural na constituição e composição desses lugares. Tendo em vista o fato de que ao jornalismo, mais especifica-

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mente, cabe a tarefa de dizer sobre e para as demais instâncias sociais, havemos de considerar que um dos lugares possíveis em que se instala a correlação de forças, com todas as suas assimetrias e fragmentações, é o campo do discurso (RESENDE, 2007, p. 81-82).

Para analisar essas correlações de forças, entendidas por Foucault, no plano discursivo, como lutas pelo poder, o intelectual francês não se interessa pela macroestrutura, nem pela ideologia ou pelo Estado, mas pelo discurso em si mesmo. Sua busca é “pelo projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos” (FOUCAULT, 2000, p. 30). Para ele, o discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 1999, p. 10). O discurso, portanto, não é “transparente ou neutro” como se pretende no jornalismo, mas é um dos lugares onde o poder pode ser exercido das formas mais temíveis (FOUCAULT, 1999, p. 9-10). Desta forma, ao abordar o discurso jornalís-tico na perspectiva foucaultiana, faz-se necessário abrir mão de alguns conceitos caros ao exercício profissional do jornalista, tais como a isenção e a imparcialidade, para compreender o discurso nas condições históricas que o fazem possível.

Existe no jornalismo uma pretensão de tradução do mundo. Este caráter se dá pela percepção dos “noticiários como um lugar de media-ção entre o mundo dos fatos, dos acontecimentos (...) e a sociedade” (CORREIA e VIZEU, 2008, p. 17, grifos meus). Desta forma, percebe-se, na leitura do jornalista, uma necessidade de “explicar/traduzir o mundo” e não apenas, como inicialmente pretende, reportar um acontecimento. Isso porque, na medida em que se produz um discurso sobre o acontecimento, gera-se um domínio, um poder sobre o que é dito, como é dito e também sobre aquilo que se opta em não dizer.

Esta prerrogativa aproxima-se daquilo que Foucault define como “di-reito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala” (FOUCAULT, 1999, p. 9). Ela é perceptível nos enunciados dos jornalistas sobre si mesmos, como, por exemplo: “a imagem que a mídia constrói da realidade é resultado de uma atividade profissional de mediação vinculada a uma organização que se dedica basicamente a interpretar a realidade social (...) a mídia não só transmite, mas prepara e apresenta uma realidade dentro das normas e regras do campo jornalístico (CORREIA e VIZEU, 2008, p. 13, grifos meus). As expressões em destaque demonstram que tal discurso é proferido por sujeitos autorreferidos como profissionais, organizados, portadores do conhecimento e dos rituais de normas e regras pelas quais elaboram os seus enunciados. É desta forma que o discurso jornalístico se torna restrito, não sendo possível a qualquer pessoa pronunciá-lo, senão aquela que se enquadra no

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ritual que define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso (...) que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos (FOUCAULT, 1999, p. 39).

“É a “ordem do discurso” que estabelece, para Foucault (1996), as possibilidades de organização do real. Esta ordenação, além de possuir uma função normativa e reguladora, age por meio da “produção de saber, de estratégias de poder e de práticas discursivas” (AGUIAR, 2007, p. 2). Desta forma, pode-se depreender que o jornalismo exerce esta “ordem” por meio de “um conjunto de procedimentos de controle, seleção, orga-nização e distribuição do discurso midiático que lhes são inerentes e que lhe conferem poder na sua interface” (SANTOS, 2008, p. 2) com outras esferas de saberes, como a religião, a política, a economia, etc. Por conta deste conjunto de procedimentos, o discurso jornalístico é atingido pelos sistemas de exclusão pontuados por Foucault: “a palavra proibida, a segregação e a vontade da verdade” (FOUCAULT, 1999, p. 19).

A palavra proibida refere-se ao fato de que nem tudo pode ser dito. No jornalismo em geral e no telejornalismo em particular, “qualquer um não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 1999, p. 9). Tal interdição dá, por exemplo, na edição, onde o que não possui valor-notícia é des-cartado, ou ainda pela posição do sujeito falante no roteiro da matéria (se seu nome e profissão são citados, o tempo que lhe é destinado, o status com que é apresentado, etc.), o que determina o seu lugar de fala.

Além disso, existe no discurso jornalístico a impressionante força daquilo que Foucault chama de vontade da verdade. Os discursos, para o pensador francês, não são nem falsos, nem verdadeiros em si mesmos, mas, na constituição das práticas discursivas existe um componente efetivo, que é o “regime da verdade”. “Seguindo essas proposições fou-caultianas, podemos entender a ‘verdade’ como um conjunto de proce-dimentos regulados para a produção, distribuição e funcionamento dos discursos” (AGUIAR, 2007, p. 4). Esta vontade da verdade se apoia num suporte institucional, isto é, há uma gama de estruturas/instituições que a reforçam e reconduzem. Foucault cita a pedagogia, o sistema de livros, as sociedades de sábios de outrora e os laboratórios hoje. A própria mí-dia ocupa, na sociedade contemporânea, a condição de instituição, pois também regula os discursos e fornece condições para sua existência, circulação e desaparecimento.

Mas Foucault acrescenta que o modo como o saber é aplicado na so-ciedade, como é “valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído”

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(FOUCAULT, 1999, p. 17-18) é, igualmente, de fundamental importância neste processo de estabelecimento da vontade de verdade. O fato de ter um suporte e uma distribuição institucional faz com que esta vontade de verdade exerça pressão e poder de coerção sobre outros discursos.

Interfaces do discurso jornalístico e do discurso religioso/evangélico nas matérias analisadas

A “disciplinarização dos saberes” (por meio da “seleção de saberes, institucionalização do conhecimento e, consequentemente, o desapare-cimento do sábio-amateur”, cf. CASTRO, 2009, p. 110-117) coloca aos saberes existentes na sociedade a necessidade de comprovação empírica para que alcancem a condição de ciência. No que tange à noção positivis-ta, a religião, embora constituindo um saber em circulação na sociedade, não possui o status de ciência ou de verdade, mas situa-se na esfera do que é comumente entendido como crença.

Conquanto não deixem de circular, tais saberes sofrem o que Fou-cault chama de segregação. Neste caso, o discurso da religião, em de-terminados contextos, “não pode circular como os outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância” (FOUCAULT, 2000, p. 10). Em relação ao dis-curso jornalístico, isso ocorre de modo bastante evidente, por exemplo, quando representantes da religião se manifestam publicamente acerca de temas tidos como científicos, como o aborto, a clonagem e as pesquisas com células-tronco, etc.

Há outros momentos, no entanto, em que a segregação ocorre de modo inverso, sendo-lhe atribuídos “estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber” (FOU-CAULT, 2000, p. 11). Na série “Os evangélicos”, esta relação discursiva entre a religião e o jornalismo se dá, por exemplo, na forma como o re-pórter abordou a capacidade da religião de dar sentido, de transcender ao problema do indivíduo, de levá-lo a alguma posição melhor de vida.

De qualquer modo, o lugar de fala da pessoa religiosa nas matérias analisadas é sempre testemunhal, particular, subjetivo. Isso explica, ainda, a fala da alteridade que os especialistas consultados expressam, uma vez que, na acepção científica, os religiosos não teriam ‘mérito’ em falar por si mesmos e o fazem somente ao nível da experiência, do emocional, no sentido de possibilitar a aproximação entre o telejornal e seu telespectador. Assim, mantém-se uma identidade evangélica calcada na alteridade, a partir das falas de autoridade dos portadores do saber legitimado e, portanto, detentor do poder de discurso sobre esses grupos. Fica, ainda, preservada a objetividade, categoria fundamental da projeção identitária do jornalista.

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O discurso jornalístico opera, aqui, na fronteira do discurso religioso/evangélico. Na primeira reportagem, sobre a presença evangélica numa tribo indígena, Flávio Fachel deixa a “confissão de fé” para a entrevistada, uma índia atendida na missão presbiteriana. Entretanto, a fala do repór-ter conduz a narrativa: “Ensinar, aprender, proteger e ajudar. Na missão evangélica encravada no cerrado, são os próprios índios os primeiros a reconhecer...” e entra a fala da entrevistada: “Foi Deus que mandou a missão, tanto os caciques, os rezadores falam disso também”. O repórte assume com a entrevistada o discurso religioso como fundamento da realidade experimentada por ela.

Na segunda reportagem, sobre o trabalho dos metodistas junto aos moradores de rua de São Paulo, Fachel faz uso de expressões como: “De ex-detento, o antigo capitão passou a ser salvador de almas”. A expressão “salvador de almas” vem do discurso dos missionários norte-americanos que primeiramente aportaram no Brasil, desde o início do século 19 e seu sentido está ligado ao proselitismo, ou seja, a conversão de pessoas à fé evangélica.

Na terceira matéria, sobre as crianças atendidas em um abrigo, Fachel afirma: “o abençoado pão de cada dia vem pelas mãos dos integrantes da Igreja Batista”, numa clara alusão à oração do Pai Nosso, citada por Cristo nos evangelhos da Bíblia e repetida nos cultos cristãos. Também diz: “seguidores do Evangelho viraram pescadores de crianças”. Essas expressões também encontram-se no discurso evangélico, baseadas em citações atribuídas a Jesus na Bíblia, chamando-os de “pescadores de homens”. Outra fala do repórter (“quem vive na prática os ensinamentos de Jesus”) utiliza-se do jargão religioso para descrever os integrantes da Igreja. Acrescente-se ainda a entonação de voz como fator agregador de emoção e certa postura reverencial de quem fala, evocando a ideia do ritual.

Na quarta matéria, sobre os luteranos e seu trabalho junto aos agricultores pomeranos, uma expressão típica do evangélico: “Uma bên-ção que ecoa há 15 décadas”. E ainda: “Nos corações, traziam uma fé incomum no Evangelho”, evangelho aqui como referência à pregação e à Bíblia, outra expressão bastante encontrada em falas e textos cristãos em geral. Talvez para os não iniciados na religiosidade evangélica, as expressões nada tenham de extraordinário, mas, para esses grupos religiosos, são termos de uso constante, enraizados tanto nas tradições religiosas quanto na própria Bíblia, seu livro sagrado.

Interfaces do discurso jornalístico e do discurso científico acerca da religião nas matérias analisadas

Se o repórter chega a enunciados próprios do discurso religioso evangélico, em contraparte, ele se resguarda na busca da objetividade,

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apoiando-se no conhecimento científico, pela presença dos especialistas na constituição das matérias.

Tais participações “muitas vezes se prestam apenas para reiterar o enquadramento do Jornal, criar maior identificação com o público teles-pectador ou abrir a possibilidade de que aquele tema possa ser visto sob outra perspectiva” (ROCHA, ALBUQUERQUE e OLIVEIRA, 2008, p. 10-11). Esses especialistas são entrevistados, sendo sua imagem acompanhada pela legenda de seus nomes e profissões, “donde podemos inferir que elas recebem uma espécie de ‘autorização’ para falar” acerca do tema proposto (ROCHA, ALBUQUERQUE e OLIVEIRA, 2008, p. 8).

Um dos procedimentos citados por Foucault para o controle dos discursos é a determinação das “condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras... Ra-refação dos sujeitos que falam: ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (FOUCAULT, 1999, p. 36-37). Esta é uma possibilidade de análise da inserção do especialista no discurso jornalístico, nas matérias da série especial “os evangélicos”. Quando se trata de falar acerca da religião a partir do ponto de vista do discurso da verdade (ou seja, neste caso, da ciência) e não do discurso da crença, requer-se o especialista. A partir dele, se legitimam certos enunciados do jornalismo.

Na primeira matéria, logo após a informação sobre a origem histórica do Protestantismo, temos a palavra da especialista, a socióloga Maria das Dores Machado. É a partir da palavra da Sociologia que é explicada a religião protestante nos seguintes termos: “Com o Lutero, você vai ter toda uma nova teologia muito calcada na interpretação, na leitura da Bíblia. Você tem que assumir para você que está tudo ali na Bíblia. As suas orientações estão na Bíblia para a sua vida”.

Neste ponto, a restrição do discurso se manifesta pelo “ritual” descrito por Foucault: quem fala é um sujeito qualificado, do ambiente acadêmico, que faz uma recitação acerca do tema proposto. Há uma série de gestos, comportamentos, circunstâncias e signos que acompanham o discurso científico: a postura professoral, os livros ao fundo, a legenda que tanto identifica quanto atribui autoridade ao sujeito falante (diferentemente do chamado “fala povo”, muito usado no telejornalismo, no qual o povo não tem nome nem profissão).

Na segunda matéria, a especialista é a antropóloga Christina Vital da Cunha, do Instituto de Estudos da Religião. Ela afirma que a fé é “uma crença importante porque acaba tendo uma interferência na vida dos indivíduos”. Embora os enunciados apresentados possam ser enqua-drados naquilo que se entende como “senso comum” (ou seja, poderiam ser ditos por qualquer um, não possuem linguagem especializada nem

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códigos que necessitem ser explicitados ao telespectador), eles se tornam autorizados e revestidos de verdade porque a Antropologia e a Sociologia são ciências sociais (embora com um grau de certeza ainda inferior às ciências entendidas como exatas, porém, mais qualificadas que outros saberes sociais). Suas vozes são autorizadas porque os âmbitos institu-cionais que circundam os falantes são os da academia, os da ciência, e também a própria mídia, capaz de dar visibilidade à verdade e, portanto, outorgadora de condições, rituais e circunstâncias nos quais os discursos podem ou não circular.

Mesmo assim, tais enunciados poderiam não passar de “comentá-rios”, pois não “fazem outra coisa senão repetir e retomar o que se diz nos textos primários, a fim de trazer à luz uma pretensa verdade originária que permaneceu oculta” (CASTRO, 2009, p. 119). Mas aqui também se manifesta, tanto nos enunciados do repórter quanto nos dos especialistas, a luta pelo poder e pelo saber – uma espécie de “quem dará a última palavra”, “quem exercerá o controle final do discurso?”

Ao indagar acerca de como o sujeito pode situar-se a respeito de determinados objetos ou grupos de objetos, Foucault faz-nos pensar, em relação ao telejornalismo, na possibilidade de este espaço atuar, também, num regime de exclusividade e de divulgação. Percebe-se que os sujeitos que pronunciam outros discursos, como, neste caso, os especialistas, devem adequar seus enunciados, de forma consciente ou não, às formas de difusão e de circulação propostas pelo discurso jornalístico, mesmo que este pretenda-se isento de censura. Nas matérias analisadas, as falas dos especialistas retomam o que foi anteriormente dito pelo repórter ou ele, logo depois, apresenta uma evidência que as corroboram.

Considerações finaisPudemos perceber que o telejornalismo, ao falar acerca da religião,

produz enunciados que gravitam, ao menos, em torno de duas posições possíveis. Primeiramente, são uma fala de fronteira: jornalismo e religião por vezes se tocam, o repórter chega a aproximar-se do lugar de fala da pessoa religiosa, absorve palavras e enunciados que geram um sentido de identidade para com o telespectador daquela religião. Mas, ao mesmo tempo, são uma fala de alteridade e, neste ponto, contam com a figura do especialista, proporcionando ao jornalista um lugar de fala relacionado com uma postura de profissionalismo e objetividade – marcas de verdade do discurso científico.

Outro aspecto do discurso que ainda vale aprofundar em outras pesquisas: quais são condições históricas atuais que favorecem os enun-ciados que compõem o discurso jornalístico sobre a religião evangélica encontrado nesta série? Como bem lembram os apresentadores do Jornal

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Nacional, ao início da apresentação da série, o IBGE aponta um grande crescimento deste segmento na sociedade brasileira. Este é um fator a ser levado em conta, uma vez que já houve outros momentos em que o discurso jornalístico sobre a religião evangélica no Brasil não se manifes-tava da forma como o encontramos nas matérias em análise. Ao abordar este aspecto, coloca-se em evidência a necessidade de considerar as situações históricas que possibilitam a emergência dos discursos, como pontua Foucault.

Consideramos, aqui, a figura do especialista e sua inserção no discur-so jornalístico na série analisada. Verificamos que o discurso jornalístico busca no científico um reforço de sua vontade de verdade; uma referência aos seus próprios enunciados. De fato, o que se verifica é que

é dada ao campo do jornalismo a tarefa de produzir saber acerca dos acontecimentos do mundo, tarefa que lhe é outorgada tanto porque detém a tecnologia — uma força maquínica incomensurável — como também porque outras instituições produtoras de saber — estas, de caráter pedagó-gico — conferem aos que proferem os discursos da mídia o direito da fala (RESENDE, 2007, p. 83).

Ao mesmo tempo, porém, ocorre uma restrição do discurso científico, tanto no sentido de que os sujeitos falantes apresentam seus enunciados sob a égide do comentário, isto é, repousam sobre o já-dito, quanto no sentido de que é o jornalismo a instância que determina as condições em que o discurso científico se apresenta. É possível, portanto, refletir sobre as condições nas quais se dá o discurso jornalístico em suas relações discursivas tanto com a religião quanto com o próprio discurso científico. Cabe a ressalva apontada pó r Resende, de que não basta saber o que se passa em relação àquilo de que o discurso jornalístico fala, “mas também dos modos que sobre [eles] se fala, instâncias nas quais várias vozes e vários sentidos podem, por vezes, revelar-se” (RESENDE, 2007, p. 92).

É claro que as reflexões aqui propostas podem ainda aprofundar-se e estender-se muito mais, considerando-se a densidade teórica de Foucault e a complexidade dos acontecimentos discursivos desde sua perspectiva. Não se pode correr o risco de deixar a análise estabelecer-se apenas na superfície dos discursos, pois, da forma como propõe Foucault, esta análise de discurso não é simples em sua efetivação. Entretanto, este é um exercício válido, no sentido de analisar o discurso como prática, de fugir às simplificações e essencializações, às universalizações do sentido, na tentativa de buscar compreender e evidenciar as condições tanto de surgimento e circulação quanto de controle do discurso a partir de seu momento, de sua concretude histórica.

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Silêncio-crítica-aprendizado: uma análise teológica introdutória ao tema do mal

Silence-critique-learning: a theological introductory analyses of the theme of evil

Silencio-crítica-aprendizaje: un análisis teológico introductorio al tema del mal

Claudio de Oliveria Ribeiro

ResumoO texto apresenta implicações para o tema do mal oriundas do encontro da teologia com o pensamento moderno, tanto o que se consolidou no final do século 19, fortemente marcado pelo racionalismo e pelo iluminismo, como o que resultou das críticas vindas das filosofias da existência já nas primeiras décadas do século 20. Trata também da relação entre o mal e o pecado e do mal e do sofrimento como fragilidades originais do ser humano. A referência interpretativa é a de evitar as visões de uma “teologia da retribuição”, meritória, capaz de em seu extremo gerar a ideia de um deus cruel. O mal é visto, sobretudo, por aquilo que prejudica ou fere a vida e a felicidade do humano e do mundo. Como decorrência da vocação prática da teologia, são indicadas posturas consideradas adequadas frente ao mal. Palavras-chave: Mal; pecado; teologia contemporânea; antropologia.

AbstRActThe paper presents implications for the issue of evil arising from the encounter of theology with modern thought, which were consolidated both, in the late nine-teenth century, strongly influenced by rationalism and the Enlightenment, and the first decades of the twentieth century, by the criticism of existentialist philosophy. It also addresses the relationship between evil and sin and evil and suffering as a unique human frailty. The interpretive reference is to avoid the visions of a “theology of retribution,” worthy, capable of generating at its extreme the idea of a cruel god. Evil is seen above all by what harms or injures life and happiness of the human and the world. As a result of the practical nature of theology, are indicated attitudes considered appropriate against the evil.Keywords: Evil; sin; contemporary theology; anthropology.

ResumenEl texto presenta las implicaciones para el tema del mal oriundas de la intersección de la teología con el pensamiento moderno, tanto el que se consolidó al final del siglo XIX, fuertemente influenciado por el racionalismo y la Ilustración, como el que resultó de las críticas provenientes de las filosofías existenciales ya en las primeras décadas del siglo XX. También trata de las relaciones entre el mal y el pecado y entre el mal y el sufrimiento como fragilidades inherentes al ser humano. La referencia en interpretación es evitar el enfoque de la "teología de la retribu-

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ción," basada en el mérito, capaz de generar en su extremo la idea de un dios cruel. El mal está representado sobre todo por lo que perjudica o daña la vida y la felicidad del ser humano y del mundo. Como resultado de la naturaleza práctica de la teología, se indican las actitudes consideradas apropiadas contra el mal.Palabras clave: Mal; pecado; teología contemporánea; antropología.

IntroduçãoA realidade do mal, presente na vida humana, sempre desafiou os

grupos religiosos e os círculos teológicos. Isso se deu sobretudo pelo questionamento da concepção de justiça na célebre pergunta “se Deus é bom por que há o mal no mundo?”. As pessoas e grupos ao enfrentarem a realidade do mal, marcada pelas mais distintas formas de sofrimento, por tragédias, por violências e pela morte sempre indagaram sobre a origem do mal que lhes acometia e se há um sentido a ser descoberto em todas essas experiências negativas da vida. Ao mesmo tempo, as representa-ções do mal, como as imagens do Diabo, do inferno e similares sempre fascinaram as pessoas e mobilizaram a atenção delas, quer seja pelo medo, ou pela disposição em combatê-los com rituais e práticas religiosas, ou pela crítica racional e ética. O mal sempre desafiou a humanidade.

A teologia moderna e atual percebeu logo de início que era impres-cindível que a realidade do mal, em especial suas origens, fosse analisada com as mediações do conhecimento científico, sobretudo o das ciências humanas e sociais. Isso se deu pelo próprio método teológico moderno, que requer tais mediações para abordar qualquer realidade ou questão. No caso do mal, a mediação científica para as abordagens teológicas ganharam relevância, especialmente em função da roupagem medieval que o tema possuía e ainda possui. O diabo, como personificação do mal, ainda assusta muito as pessoas nos dias de hoje!

As reflexões que propomos a seguir são introdutórias ao tema. Elas pressupõem todos os esforços que vêm das ciências sociais e antropoló-gicas especialmente, mas também da história, para compreender as repre-sentações sociais do mal e como elas foram e são utilizadas ideologica-mente para reforçar processos repressivos, excludentes e inquisitoriais.

Nosso modesto objetivo é fazer uma primeira aproximação ao tema, situando a questão do mal em perspectiva teológica. O ponto mais des-tacado de nossa reflexão é o balanço em relação às implicações que o pensamento teológico moderno, marcado pelo racionalismo e pelos ideais iluministas, conferiu à questão do mal, especialmente as dificuldades de ressignificação das imagens que o representam, como o diabo, o inferno, e outras, como a do pecado, por exemplo, que ganharam um perfil bem determinado no mundo medieval e que hoje são de difícil abordagem. Além disso, desejamos mostrar que o século 21 foi denso de contribuição no campo teológico em vários aspectos e, especificamente no tocante ao

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tema do mal, foram criadas melhores condições de abordagem especial-mente pela revisão e recriação teológica diante do contexto de sofrimento e de destruição vivenciados nos escombros das guerras mundiais, cujos efeitos não ficaram restritos à Europa, e pelo contexto socioeconômico de pobreza e de desigualdades sociais que marcou a vida e a morte de massas consideráveis da população em vários continentes. O mal e o diabo ganharam nomes próprios como o nazismo, o neoliberalismo eco-nômico, os totalitarismos ‘à direita e à esquerda’. Mas, o mal continua presente para além dessas forças e atinge as pessoas com doenças cuja origem não é facilmente explicada, com mortes súbitas, tragédias e uma lista enorme de situações que se tornam misteriosas e enigmáticas para a razão humana. Portanto, as reflexões sobre o mal, seja a de caráter filosófico, histórico, sociológico, antropológico, psicológico ou teológico cada vez mais se tornam relevantes.

Nessa abordagem teológica, temos como referência o universo que se consagrou denominar como civilização cristã ocidental. Reconhecemos que outros enfoques precisariam ser dados para uma abordagem mais consis-tente e abrangente em relação ao tema do mal. Nossa trajetória será a de apresentar em um primeiro momento, as implicações, em linhas gerais, para o tema do mal oriundas do encontro da teologia com o pensamento moderno, tanto o que se consolidou no final do século XIX, fortemente marcado pelo racionalismo e pelo iluminismo, como o que resultou das críticas vindas das filosofias da existência já nas primeiras décadas do século XX.

Na sequncia, por considerarmos inevitável, por diferentes razões, tratar da relação entre o mal e o pecado e por entendermos ser relevante olhar o mal e o sofrimento como fragilidades originais do ser humano, vamos apresentar tais questões, em síntese, buscando a contribuição de diferentes autores. Nossa referência interpretativa é de evitar as visões de uma “teologia da retribuição”, meritória, capaz de em seu extremo gerar a ideia de um deus cruel. O mal é visto, sobretudo, por aquilo que prejudica ou fere a vida e a felicidade do humano e do mundo. Dentro da tradição teológica judaico-cristã será a referência do profetismo que melhor caracterizará essa visão.

Como decorrência da vocação teológica, desejamos ao final também indicar posturas que consideramos adequadas frente ao mal. Não se trata de “receitas prontas” ou de um manual nos velhos esquemas de “o que fazer” da política ou da apologética, mas é que a teologia também se transforma diante do mal e dos sofrimentos conseqüentes dele. E isso in-terpela a todos: os que sofrem e buscam uma explicação e os que refletem e sofrem junto, pois a teologia é um corte profundo na alma! Ela requer revisão de vida, recriação de valores, busca de significados profundos. Assim como a fé, ela também é “aquilatada no sofrimento”.

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A teologia diante do pensamento moderno: implicações para o tema do mal

No campo da experiência judaico-cristã, as tensões entre a fé e a razão estão presentes desde os primórdios. Tais tensões marcam o contexto existencial de pessoas e grupos na longa jornada de busca de explicações sobre o mal no mundo. 1 As teodicéias, entendidas como “a justificação da bondade de Deus contra os argumentos tirados da exis-tência do mal no mundo e, por conseqüência, a refutação das doutrinas atéias ou dualistas que se apóiam sobre esses argumentos” (LALANDE, 1996, p. 1124), surgem e são recriadas dentro de diferentes épocas, culturais e realidade sociais.

Cada momento histórico expressou formas diferenciadas das referidas tensões entre fé e razão, mas foi, sobretudo, no século XIX, após os impac-tos do racionalismo e do iluminismo na civilização ocidental que a teologia precisou enfrentar mais detidamente as questões relativas ao método cien-tífico e isso implicou incisivamente nas reflexões (ou ausência delas) sobre o mal no mundo. No referido século, o liberalismo teológico de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), Albrecht Ritschl (1822-1899), Adolf Harnach (1851-1930) e outros foi a expressão que mais fortemente demonstrou o interesse pela articulação entre fé e ciência e entre teologia e história. Esta corrente, forte nos Estados Unidos e na Europa, especialmente no século XIX, está presente no Brasil, embora um tanto quanto desfigurada em relação às suas bases teóricas. De alguma forma o “Evangelho Social”, inspirado nas ideias de Walter Rauschenbusch (1861-1918) indicava, no Brasil, desde o início do século XX, suas pautas pastorais.

As ênfases da Teologia Liberal e os aspectos metodológicos principais dessa corrente formaram um criativo amálgama no qual houve uma dupla interação e influência mútua. Diante disso, houve certa desvalorização das reflexões em torno das imagens do Diabo, do inferno e similares, devido ao desgaste dessas imagens diante do pensamento moderno.

Entre as ênfases do liberalismo teológico podem ser listadas: a bus-ca de aproximação entre teologia e ciências e entre fé e racionalidade moderna; visão antropológica positiva, com forte expectativa em relação à educação como possibilidade de promoção humana; relativização das perspectivas cristocêntricas e eclesiocêntricas com vistas à perspectivas universalistas e seculares; abertura para as questões próprias da rela-ção entre Igreja e sociedade e a valorização do mundo como espaço do Reino de Deus; valorização da exegese bíblica e uma consequente visão histórico-crítica da Bíblia; aceitação dos valores culturais modernos; reforço das dimensões da individualidade e da subjetividade reduzindo a 1 Sobre a temática do mal vista na perspectiva teológica há uma boa bibliografia. Veja em

português, entre outros títulos: Evans (1995), Gebara (2000), Gesché (2003), Soares (2003), Sanford (1988), Estrada (2004, 2007), Queiruga (2007; 2011).

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religião à esfera dos sentimentos; interpretação predominantemente ética do Cristianismo, em especial em relação ao dado salvífico.

O liberalismo teológico foi encantador, porque pregava o futuro que se avizinhava do presente. Acreditou-se que, de fato, “o Reino de Deus está próximo”. Era possível construí-lo, ver sinais cada vez mais nítidos e crescentes da implantação do Reino. Nessa concepção, o ser humano é bom, é realizador, e o mundo caminha para a paz tão sonhada; a edu-cação, uma vez propiciada a todos, possibilitará evolução social, cons-cientização ética e justiça social. Orquestrando todo este projeto utópico, estava a razão iluminista. O mal, dentro desse quadro, portanto, fica sem o enfoque e a ênfase necessários. De forma mais aguda, “saem de cena”, o Diabo, o inferno, o purgatório e outros símbolos religiosos afins.

As análises sobre o ser moderno e autônomo indicaram que o ser humano tem-se tornado inseguro em sua autonomia, devido à fragmenta-ção da visão de mundo que outrora lhe concedia sustentação existencial. As diferentes correntes filosóficas que submeteram todas as referências humanas à crítica – em especial os pensamentos de Marx, Nietzsche e Freud – destruíram a antiga visão de mundo que o ser humano possuía. Por outro lado, pouco fizeram no sentido de construir outra visão, uma vez que encontram, justamente nesta perspectiva, os próprios objetivos. O ser humano moderno progressivamente passa a deixar de possuir uma visão integral do mundo e por isso considera-se mais perto da realidade e sente-se confrontado mais profundamente com os aspectos problemáticos de sua existência do que aqueles que escondem esses aspectos sob a proteção de uma visão geral do mundo.

Juan Antônio Estrada (2007, p. 205-206), ao analisar o desenvolvi-mento das visões sobre Deus e o mal, afirma que no contexto da moder-nidade, que busca a autonomia da razão humana,

... a teodicéia abre passagem para a antropodicéia. Deus deixa de ser o ponto de referência a partir do qual se compreende o mundo e o homem. Por isso, o problema do mal desaparece enquanto problema teológico para transformar-se em problema antropológico e histórico. A única desculpa que Deus tem é a de não existir; conseqüentemente é preciso voltar ao homem e à sua práxis para abordar o sem-sentido do mal. O desencantamento do mundo está unido à morte de Deus; com isso a resposta ao problema do mal é o humanismo que busca curar os males e pôr as bases de uma sociedade emancipada, nome secularizado que substitui a ideia cristã do reinado de Deus.

Em contraposição ao liberalismo, que poderíamos chamar de uma teologia moderna de cunho racionalista, a conhecida neo-ortodoxia te-

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ológica ou Teologia Dialética, de Karl Barth (1886–1968), Emil Brunner (1889–1966) e Dietrich Bonhoeffer (1906–1945) e outros, realçou, no sé-culo XX, outra metodologia teológica. Ao mesmo tempo as contribuições filosóficas e teológicas de Paul Tillich (1886-1965), de Karl Rahner (1904-1984) e de Hans Küng (1928 - ) e toda a teologia católica moderna vão oferecer de maneira incisiva elementos teológicos que podem, em boa medida, refletir mais adequadamente sobre o mal e suas representações. Poderíamos denominar muito genericamente todo esse bloco de teologia moderna de cunho existencialista.

As ênfases dessas visões não podem ser facilmente resumidas, mas em síntese revelam a inovação que a reflexão teológica vivenciou ao levar em conta, seguindo Pascal, que ‘a razão tem razões que a própria razão desconhece’. Entre as principais características que se contrapõem à visão liberal-moderna destacam-se: o esforço em não aprisionar a reflexão teológica aos limites da razão, destacando para isso os elementos da fé, da graça e do absoluto em permanente corre-lação com a vida humana; a visão antropológica negativa, baseada na corrupção humana resultante dos processos socioculturais; um destaque para o caráter cristológico e eclesiológico da reflexão teológica cristã, em abertura e conexão com a dimensão ecumênica; avaliação teológica permanente dos problemas sociais e políticos e as implicações deles para a fé cristã e para a Igreja; defesa da centralidade da Bíblia na vida da Igreja e na reflexão teológica, considerando os avanços da pesquisa e da exegese bíblica e os desafios hermenêuticos oriundos do contexto da vida; crítica aos valores da sociedade a partir de uma correlação com a fé cristã, com ênfase nos desafios que os agrupamentos empo-brecidos oferecem; distinção entre fé e religião, destacando a primeira como elemento fundamental da vida, que chega ao ser humano como dádiva graciosa de Deus.

Cada um desses elementos constitui possibilidades de se pensar o mal, sem nos tornarmos refém do racionalismo cientificista que caracteri-zou o pensamento teológico liberal. A partir da crítica à essa visão, ainda na primeira década do século 21, variadas correntes teológicas e pensa-dores surgiram, cada qual com especificidades metodológicas, incluindo aí as teologias políticas européias e latino-americanas, as de corte cultural como feminista, negra e indígena e a teologia das religiões.

Obviamente, não podemos nos pautar por idealizações ou mesmo generalizações sobre o mal. Cada pessoa, comunidade ou agrupamento que sofre o mal, ou mesmo a estigmatização de suas representações o sofre concretamente. É o que nos chamou a atenção a teóloga Ivone Gebara (2000, p. 241)., em sua obra Rompendo o Silêncio: uma fenome-nologia feminista do mal. Ela indica que

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... falar dos males das mulheres é abrir uma brecha nos discursos univer-salizantes de nossas teologias, é retomar experiências de proximidade, de lágrimas, de sofrimentos de pequenas alegrias como matéria de reflexão. É também fazer entrar a vida cotidiana, as relações breves, as paixões amorosas, a morte e o luto como vivência capaz de equilibrar a frieza das cifras, das estatísticas, dos discursos teológicos bem estruturados segundo normas preestabelecidas. Os discursos das mulheres, discursos literários, poéticos, teológicos, ou simplesmente gritos de aflição ou de alegria na vida rotineira de cada dia, dão um novo corpo à pesquisa teológica.

Essa mesma interpelação também surge de situações concretas de sofrimento vividas pelos setores pobres da sociedade e pelos grupos que sofrem discriminações de variadas procedências – étnica, de orientação sexual, sociocultural, religiosa, etc. – na maioria das vezes estigmatizados como representantes do mal.

Quais são, portanto, as possibilidades de uma interpretação teológica para o problema do mal no contexto atual? Destacaremos três pólos de reflexão: a relação com o pecado, o mal e o sofrimento vistos como fragili-dade original do ser humano, e as posturas que, do ponto de vista teológico, consideramos adequadas para nos situarmos frente à realidade do mal.

o mal e o pecadoO termo “mal”, como se sabe, pode ser usado em sentido amplo e em

um sentido estrito. Para o teólogo Paul Tillich, “o sentido mais amplo cobre tudo o que é negativo e inclui tanto destruição como alienação – a condi-ção existencial do homem em todas as suas características. Se a palavra é usada neste sentido, o pecado é visto como um mal ao lado de outros” (TILLICH, 1984, p. 291). Nesse sentido, as estruturas de auto-destruição existencial permitem-nos apenas dar um primeiro passo para a compreen-são daquilo que freqüentemente é descrito como sendo “o mal”

Se seguirmos os arquétipos míticos de interpretação do mal, apre-sentados por Paul Ricoeur em sua famosa obra A Simbólica do Mal não poderemos nos isentar em refletir sobre o pecado humano se desejarmos pensar sobre o mal. Os referidos arquétipos são: a) O drama cósmico, quando o mal vem do embate de dois poderes; b) O mito trágico, quando o mal resulta da ação de deuses vingativos; c) Os mitos gnósticos ou pu-rificação da alma, nos quais o mal é visto como um meio para se alcançar o bem; e d) O mito adâmico, onde o mal é visto como decorrência da rebelião humana (pecado) contra os preceitos divinos.

O teólogo Vitor Westhelle, que sintetiza o mal como “uma imperfeição da natureza, uma distorção de um estado de integridade, ou a privação do bem”, nos indica que “na tradição judaico-cristã encontramos, em di-ferentes teologias, a predominância de uma ou outra das três acepções

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básicas dos termos (imperfeição, distorção, ou a privação de bens) em combinação variada com os arquétipos míticos sobre a origem do mal, com clara predominância, mas não exclusividade, do mito adâmico” (WESTHELLE, 2008, p. 606). Mais uma vez, estamos diante da relação entre mal e pecado humano, ainda que realcemos que as situações de sofrimento e de mal no mundo não podem ser interpretadas meramente como resultado de pecado daquele que as enfrenta. O mal possui dimen-sões mais amplas e complexas, sendo que boa parte delas expressa de forma enigmática.

Pecado e salvação ganharam correlação na história do pensamento teológico, independentemente dos conteúdos e enfoques de cada um dos termos. Na visão da teologia cristã, o pressuposto da concepção de salvação é que o ser humano é justificado. A justificação introduz um “apesar de” no processo de salvação. Apesar das ambigüidades e das limitações, o ser humano é aceito por Deus (graça) e este também aceita essa situação (fé), na medida em que se abre para Deus. Tal abertura se baseia no reconhecimento de seu caráter de alienação e de pecado que o faz deixar de olhar a si mesmo em sua condição autodestrutiva, voltada para o mal e para o diabólico, para valorizar o ato salvífico e justificador de Deus. Trata-se da afirmação neotestamentária de que “não há distinção, pois todos pecaram e carecem da graça de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3. 23-24).

O pecado representa a ambigüidade, pessoal e coletiva, na vocação humana em não orientar-se para o Reino (= vontade) de Deus. Ao não reconhecer a sua finitude, o ser humano encontra-se na condição de pe-cador (cf. Gn 3). Portanto, ao não se compreender como finito, e, assim, desejoso de conhecer o bem e o mal, o ser humano intenta ser igual a Deus, o que o torna pecador.2

O reconhecimento do pecado faz com que o ser humano vislumbre a graça de Deus. Isso elimina a possibilidade, conforme indicou Juan Luis Segundo, de que o receio humano ao pecado transforme-se em angústia, falta de fé e falsa religiosidade. A ação criadora do ser humano é dom de Deus e objetivo da Criação, mas “é sempre uma mistura do amor com egoísmo e o pecado”. Nesse sentido, a impossibilidade de auto-salvação do ser humano, como defendemos, não se converte em inércia, despreo-cupação social, visão fatalista ou em apatia frente ao mal. Para o referido autor, “pelo contrário, se esquecemos nossa responsabilidade de criar um mundo que foi entregue (parcialmente) em nossas mãos ‘artesanais’, e preferimos esquecer nossa responsabilidade criadora para contabilizar 2 Além das obras gerais de antropologia, veja, para a discussão sobre o pecado, as se-

guintes obras: Berkouwer (1970), Bingemer E Yunes (2001), Hofstätter (2003), Libânio (1975; 1999), Thévenot (2003), Newbigin (1963), Scherzberg (1997), Moser (1996).

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nossos méritos diante de Deus, por mais que cumpramos todos os pre-ceitos de todos os decálogos, estaremos pecando. Porque não fomos criados para isso. E se, apesar de tudo, a isso pretendêramos chegar, estaríamos – como também disse Paulo – falhando para com a intenção criadora de Deus a nosso respeito, estaríamos deixando sua criação condenada à inutilidade” (SEGUNDO, 1995, p. 528-529).

Essa participação na graça (regeneração) e aceitação do amor de Deus pela fé (justificação) gera um novo estado de ser, uma transfor-mação (santificação). Assim se caracteriza, por exemplo, para Tillich, o caráter tríplice da salvação, apresentado por ele na segunda parte de seu sistema teológico intitulado A Existência e a Pergunta por Cristo (Cf. TILLICH, p. 380-383).

O aspecto da salvação como transformação adquire substancial re-levância se forem considerados o contexto latino-americano opressivo de exclusão social, de pobreza e de sofrimento e as intuições presentes em todo o processo de elaboração da Teologia Latino-Americana da Liber-tação. O ser humano não está simplesmente determinado pela bondade essencial ou pela alienação existencial, ele encontra-se determinado pelas ambigüidades da vida e da história e se abate sobremaneira na vida cotidiana especialmente a das pessoas pobres. O mal está à vista de todos. Analisar e compreender esse quadro complexo da existência humana, assim como extrair todas as conseqüências dele, permite que as reflexões presentes deixem de ser abstratas. O mal e os demônios possuem nomes completos e expressões concretas e tem sido difícil nos livrarmos deles. Tal perspectiva nos remete, então, à noção de pecado original, recorrente na história do Cristianismo.

As reflexões bíblicas sobre o pecado original indicam a realidade iníqua do ser humano. Não se trata de algo referente a um passado lon-gínquo, mas de algo profundamente relacionado à existência humana no aqui–e–agora. Aliás, a palavra “original” nos dá um bom caminho para a reflexão. “Original” é quando somente nós temos ou possuímos algo. Se considerarmos os relatos bíblicos sobre Adão, veremos que o pecado é algo original do ser humano; tem a ver com a sua marca; com a sua con-dição existencial. Mesmo em termos de pecado pessoal, veremos que o pecado concreto cometido somente pode ter sido cometido por alguém.

Uma perspectiva teológica mais substancial expressa que a preocu-pação prático-pastoral não deve ser, como nas interpretações literalistas, sobre um ‘autor’ do primeiro pecado. O que nos leva a ter uma preocu-pação maior é se o pecado tem sido uma influência marcante na vida humana, produtora e reprodutora do mal, a ponto de querermos sempre depender dele. John Haught (2001, p. 143) traduz essa perspectiva ao afirmar que

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... o pecado original, de acordo com a interpretação teológica contemporâ-nea, não se refere a um acto específico cometido por um par progenitor num passado remoto, mas sim ao presente estado geral do nosso afastamento de Deus, uns dos outros e também do nosso mundo natural. Todos nascemos num mundo que é já profundamente imperfeito, devido em grande medida à ganância humana e à violência. “Herdamos” de facto ambientes, culturas, hábitos e maneiras de ser que misturam o bom e o mal. Assim, a noção de pecado “original” indica-nos que, pelo simples facto de termos nascidos neste mundo ambíguo, somos condicionados não apenas por tudo aquilo que é promotor da vida, mas também por toda uma história de mal e de oposição à vida.

O pecado original, portanto, aponta para a situação negativa em que se encontra todo ser humano nesse mundo. Todavia, o amor e a providência de Deus são suficientes para superar esta situação negativa. Assim, a reflexão sobre o pecado original (e não inicial) é de fundamental importância para que o ser humano tenha a consciência de sua natureza pecadora, geradora do mal, e de que ele depende sempre da redenção que vem de Deus. O ser humano alcançado pela graça de Deus obtém o dom gratuito da fé e vive a sua vida simultaneamente como justo e peca-dor, como já indicava perspectivas teológicas desde Martinho Lutero.

o mal e o sofrimento como fragilidade original humana3

Na atualidade, as novas formas religiosas, substitutivas das tradi-cionais, em certo sentido, por possuírem propostas globalizadoras e de resultados práticos e imediatos, respondem mais adequadamente ao mito moderno do progresso ilimitado (prosperidade). Elegem com nitidez inimi-gos e adversários, reais ou imaginários (como, por exemplo, a “Nova Era” e os desenhos de Walt Disney, para alguns grupos evangélicos), e com isso mobilizam a atenção de muitos com a sedução de que é possível tornar o futuro presente, que podem acabar com o mal e vencer Satanás, e de que o ser humano pode salvar-se a si mesmo e livrar-se do mal ao cumprir as práticas religiosas indicadas.

No campo cristão, mas não somente, é a proposta de saúde e de riqueza pessoais, a explicação religiosa das vicissitudes da vida, especial-mente a partir das imagens dos demônios e das tentações e a da vitória sobre o mal e sobre Satanás, e a melhoria (suposta) da qualidade de vida pessoal que têm marcado mais substancialmente o cotidiano das igrejas e segmentos religiosos afins Parece óbvio afirmar que o crescimento desta proposta se dá no Brasil, em meio a um contexto de crescente exclusão e desigualdade social e de decréscimo dos índices de qualidade de vida. 3 Abordagens peculiares sobre o sofrimento podem ser vistas em: Barbarin (1997), Fernando

e Rezende (2002), Gerstenberger E Schrage (1987), Gutierrez (1987), Varone (2001).

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São muitos os traços e nuances desta perspectiva, o que dificulta enorme-mente as sínteses. No entanto, sob o nome de Teologia da Prosperidade podem se agrupar visões como a “Confissão Positiva” (não aceitação da fragilidade humana), o “Rhema” (poder direto de Deus concedido pesso-almente aos crentes), a “Batalha Espiritual” (deslocamento religioso para explicações dos projetos históricos) e a “Vida na Bênção” ou “na Graça” (transferência da escatologia para a vida terrena). Em todas essas visões a vitória sobre o mal e sobre os poderes vistos como diabólicos e malignos está em evidência.

O fato é que esta perspectiva religiosa encontra-se em sintonia com o estágio de desenvolvimento do sistema econômico capitalista. Se consi-derarmos o fato de que o socialismo real no final do século passado ruiu, entre outros fatores, pela incapacidade de prover o bem-estar social que estava no bojo de suas promessas utópicas e que o capitalismo, em sua face neoliberal, reforça as ideias de que é possível a satisfação pessoal a partir do consumo, as propostas religiosas de prosperidade reúnem as melhores condições para alargar as margens do seu rio. Nesse sentido, uma reflexão teológica sobre o mal e uma análise criteriosa sobre as formas com as teodicéias são recriadas, devidamente articuladas com as demais áreas do conhecimento, especialmente as ciências sociais, antropológicas, psicológicas e econômicas, ganham cada vez mais rele-vância e urgência.

A realidade do mal reside na esfera complexa do mistério da vida. Não é fácil refletir sobre ele. Um caminho pode ser o de respostas rápi-das e simplistas (como na linguagem comum que atribui meramente a responsabilidade do mal ao diabo). A pressuposição elementar é que em relação ao tema do mal, a teologia precisa ajudar a fé a se despir das vestimentas medievais que inibiam o ser humano a pensar sobre si mesmo e sobre o mundo e, dessa forma, entrar mais profundamente nos mistérios de Deus. A teologia, como interpretação de todas as realidades da vida, necessita identificar a ação diabólica no mundo. Ela precisa cumprir tal tarefa de forma robusta, não superficial ou ingênua, em diálogo profun-do e interpelador com as fontes do saber – fruto das dádivas de Deus ao mundo. Satanás está presente no mundo como tentador, dividindo (dia-bólico = o que divide), acusando, desintegrando a vida humana e a criação. Todavia, na maioria das vezes não o reconhecemos, por que o procuramos com a roupagem mitológica do mundo medieval.

Além da crítica moderna, tanto a de caráter racionalista quanto a de caráter existencialista, às formas medievais de pensamento – que, incrivel-mente, ganham espaço no mundo religioso atual, devido ao esgarçamento da razão moderna – faz-se necessário um olhar teológico, igualmente crítico, ao que se convencionou se chamar condição pós-moderna.

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Dentre os aspectos da vida que precisam ser repensados, uma das características da condição pós-moderna, como nos lembra Juan Antonio Estrada (2007, p. 206), é que

... a ideia linear do tempo, de inspiração cristã, foi substituída pela ideia de um presente absolutizado, que perde referências tradicionais e utópicas. Dessa forma, o mal está consumado e não há espaço para a pergunta pelo sofrimento das gerações passadas. A única que se deve fazer é lutar por um mal menor nas gerações futuras, não havendo nenhuma fundamentação última que responda a pergunta sobre porque lutar contra o mal, muito menos à referente ao sacrificar-se em função das gerações vindouras.

Tal perspectiva não elimina o imperativo de que o sofrimento humano deva ser compreendido dentro das contradições e das vulnerabilidades humanas. Ele é a conseqüência normal da fragilidade física e moral da humanidade e do mundo e, por isso, deve ter o seu sentido encontrado na imanência dos acontecimentos e das causas destes. Um exemplo comum são as doenças e demais fragilidades humanas. Elas não podem ser interpretadas meramente como resultado de pecado daquele que a contraiu. A doença está relacionada à condição da limitação humana; e essa possui, por mais que as análises científicas tenham se desenvolvido, incluindo a psicanálise, uma dimensão enigmática e misteriosa. Quem já não ficou perplexo ou mesmo atordoado ao se deparar com a jovem amiga que falece por ser vítima de um câncer que surge não sabemos bem de onde?

Assim, tanto o sofrimento humano como o mal podem ser explicados a partir das injunções intra-mundanas, que inclui a fragilidade original da humanidade. Ressaltando, como nos adverte Paul Ricoeur, em seu texto O Mal: um desafio à teologia e à filosofia, que “existe uma fonte de sofrimento fora da ação injusta dos homens, uns em relação aos outros, catástrofes naturais (...), doenças e epidemias (pensemos nos desastres demográficos gerados pela peste, a cólera e, ainda hoje, pela lepra, para não falar do câncer), envelhecimento e morte. A questão, desde então, torna-se não mais ‘por quê?’, mas ‘por que eu?’. A resposta prática não é mais suficiente” (RICOEUR, 1988, p. 49).

Não é preciso dizer que o fortalecimento de perspectivas fundamen-talistas e maniqueístas no campo religioso se dá, em geral, em contextos de crescimento do sofrimento humano e da degradação da vida resultante da inadequação de políticas públicas que gerem o bem-estar social, a sustentação e a dignidade da vida. Diante de quadros muitas vezes de-soladores emergem com intensidade as perguntas pela realidade do mal e do sofrimento. As respostas de caráter unívoco e imediatas, especial-

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mente as que destacam o papel e o poder do diabo, em geral são melhor acolhidas nesses momentos. O que fazer diante disso? Como a teologia poderia ser ao mesmo tempo consistente e relevante para as massas da população que enfrentam as crises, os males sociais e a morte?

Obviamente, não temos respostas acabadas para tais questões. Mesmo porque, se assim fizéssemos estaríamos incorrendo no mesmo equívoco que criticamos nas posturas de caráter fundamentalista. Toda-via, por intuição, consideramos que há pressuposições antropológicas que relativizariam as convicções fundamentalistas e, com isso, dariam uma base mais profunda e permanente para as respostas advindas das inquietações humanas. Um desses pressupostos é o ‘desejo de futuro’ que encontra guarida na existência humana. É o que nos indica John Haught (2009, p. 17):

No entanto, mesmo na melhor das circunstâncias, em alguma instância de nosso ser, ainda anelamos por um novo futuro, mesmo quando nos apega-mos ao passado ou ao presente. Um senso do porvir (adventus) de Deus nos atravessa, nos faz ansiar por uma liberdade mais profunda, por um horizonte existencial mais amplo. Não obstante, a exemplo dos bem esta-belecidos, permanecemos ligados àquilo que é ou foi, e não ao que será. Os destituídos, aqueles que agora não têm em que se amparar, são mais abertos à promessa de um mundo radicalmente novo. São seus ouvidos que o fogo do Evangelho primeiramente queima com as novas pertubadoras do advento de Deus.

Tais perspectivas revelam um forte otimismo, com o qual comunga-mos, diante da vida e também diante das possibilidades de superação do mal no mundo. Elas estão em sintonia com as visões que emergiram no contexto teológico latino-americano desde os anos de 1960, pois elas traduzem, de certa forma, a força histórica dos pobres. Elas também nos ajudam a olhar a vida de tantas comunidades religiosas, especialmente as do mundo popular pentecostal, tanto no universo evangélico como no católico, com a distinção necessária entre o vivido de fato e o visto su-perficialmente por nós. Pode ser que nem todas as realidades tachadas de fundamentalistas sejam de fato assim; ou, pelo menos, que possam ter elementos libertadores que gerem a sua própria superação. Além disso, é bom lembrar que as formas inclusivas e solidárias de relacionamento humano – e o mundo religioso pentecostal está repleto delas – possuem razões que a nossa própria razão calculista desconhece.

Também há outro aspecto antropológico que não pode ser esquecido. Trata-se da tendência humana ao mistério. Se o naturalismo, entendido como reducionismo científico, e o fundamentalismo são filhos da verdade

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“pronta e acabada”, o mesmo não se dá com a ciência, em sentido amplo e com a religião. Elas são filhas do mistério. O mesmo Haught (2009, p. 42), ao interpretar Pannenberg, nos mostra que

... a tendência ao mistério é traço fundamental da existência humana, e não apêndice alternativo, próprio dos retardatários pré-científicos. As pessoas são naturalmente abertas não só ao mundo, mas também à alteridade transcen-dente, muito antes de qualquer convicção efetiva de que são destinatárias de uma palavra reveladora.

Futuro e mistério não são, em geral, duas palavras muito freqüentes nos ‘dicionários teologicos’ atuais. Talvez, devêssemos reconhecer esse fato e fazer uma autocrítica. É fato que muitos outros fatores interferem nos processos da vida e da religião: o pecado como ambigüidade original do ser humano, a incapacidade de articulação da dimensão extática da razão humana com a que é cognitiva, os interesses presentes nas formas de exercício do poder, especialmente os que geram o mal, a violência e o sofrimento humano e tantas outras situações que abrem as margens para o rio cada vez mais caudaloso dos fundamentalismos. Mas, eles podem ser interpelados. Uma antropologia teológica e uma teologia da criação substancialmente bíblicas e em diálogo crítico com as perspectivas cien-tíficas representam um caminho frutífero e desafiador.

Na busca de uma conclusão: Posturas filosóficas e teológicas diante do mal

A posição teológica que advogamos leva-nos a entender que os ma-les que se abatem sobre o ser humano, para serem compreendidos, quer seja no seu sentido ou origem, devem primeiramente passar pela crítica racional e científica, não obstante ainda restar o caráter de mistério para as realidades negativas do ser humano que não encontram explicações racionais. A abertura ao mistério não é e nem pode ser uma negação da lógica racional e moderna de se compreender as vicissitudes da vida e as manifestações do mal no mundo. Mas, o reconhecimento das impos-sibilidades de explicação sobre o mal é também uma resposta plausível. Nas palavras de Juan Antonio Estrada: “O não-saber é também a resposta cristã diante do mal, por que o cristianismo não é uma gnose, nem uma nova forma de sabedoria como pretendem os gregos, mas põe em primeiro plano a loucura da cruz, a fim de afirmar que Deus está nas vítimas e que o mal é a ante-sala da ressurreição, e oposição à concepção grega da divindade” (ESTRADA, 2007, p. 212).

Do ponto de vista da teologia cristã, há uma diferença crucial entre o contexto de “satisfação compensatória” da experiência da cruz e o de

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“revelação divina” dessa mesma experiência. A diferença se dá, funda-mentalmente, na dimensão adquirida pelo sofrimento quando, pleno de sentido, refere-se ao seguimento de Jesus e às suas conseqüentes rela-ções e pressões. A experiência de seguimento revela, ao mesmo tempo, o aspecto (sofrido) da cruz e o sentido (prazeroso) da ressurreição. A revelação divina possibilita a liberação do desejo humano de liberdade e realização, sem se confundir com a visão religiosa que interpreta o sofrimento e o mal como ações meritórias. O sofrimento humano não é conseqüência direta e mecânica de um pecado original/inicial, não pos-sui para Deus qualquer valor compensatório ou reparador e tampouco é causado ou permitido por Deus como advertência ou castigo.

Portanto, ante ao sofrimento e ao mal, as pessoas assumem, den-tro da perspectiva teológica cristã, a tríplice atitude de silêncio-crítica-aprendizado, articulada intrinsecamente com a cruz de Jesus. Trata-se de assumir a cruz, com todos os seus riscos e com o reconhecimento da inevitabilidade do sofrimento deles derivados. Não se trata de assumir a cruz pela cruz, como mera identificação com a cruz/sofrimento de Jesus e sim de responder livre e positivamente ao chamado ao seguimento dele e de viver a vida dentro dos referenciais utópicos que antevêem a supe-ração do mal na sinergia divino-humana regida pelos valores da paz, da justiça e da integridade da criação, identificada na tradição cristã como sendo a vontade (= Reino) de Deus.

Em linhas gerais, a antropologia teológica indica que, diante do mal, as pessoas ou as comunidades não devem estar imobilizadas frente a qualquer situação, mas devem:

(a) procurar uma compreensão possível para as realidades em questão, levando em conta os aspectos mínimos da racionalidade humana. Isso se conecta ao que Paul Ricoeur chamou de “plano de pensamento”, em seu texto O Mal: um desafio à teologia e à filosofia, já referido.(b) reconhecer que a racionalidade possui limites e que as situações marca-das pelo mal, nem sempre apresentam explicações facilmente encontradas. Isso está associado, ainda que indiretamente, ao que Ricoeur no mesmo texto denominou de “transformação espiritual de sentimentos”. (c) transformar a apatia comum em situações marcadas pelo mal em atitude ativa e concreta de superação do mal e busca do bem-estar das pessoas e de toda a criação. Ou nas palavras de Ricoeur: “antes de acusar Deus ou de especular sobre a origem demoníaca do mal no próprio Deus, atuemos ética e politicamente contra o mal” (RICOEUR, 1988, pp. 48-49).

Diante dessas posturas, a resposta existencial e teológica, firmada no plano dos sentimentos, requer ainda três outros posicionamentos,

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como indicou Ricoeur, que, a nosso ver, são substanciais e significativos para a vida. São eles:

1. Reconhecimento da ignorância em relação aos mistérios profundos do mal. Trata-se de saber dizer: “não sei por que isso ocorreu”. Juan Antonio Estrada corrobora com essa visão ao afirmar que o postulado da fé cristã “não é uma explicação teórica do porquê e do para quê do mal, subsistindo ainda questões não resolvidas para as quais não há respostas convincentes. [A escatologia cristã] permite que o cristanismo seja acolhido não como uma gnose que oferece salvação pelo conhecimento, mas a partir de uma her-menêutica de sentido que parte da vida e da morte de Jesus e do anúncio da ressurreição” (ESTRADA, 2007, p. 214).2. Postura não passiva, baseada na aliança divino-humano, que justifica uma “teologia do protesto” contra a ideia de ‘permissão’ divina do mal. Trata-se, nesse caso, de poder dizer: “Até quando, Senhor?”. Seguindo ainda J.A. Estrada, vemos que a escatologia cristã “defende que a criação não é como deve ser (contra os que legitimam o mal porque é inerente a um mundo imperfeito, por ter sido criado), mas afirma que pode ser possível um mundo sem mal e que a esperança cristã é dirigida para essa utopia. É uma crença na salvação que dá sentido e gera o compromisso transformador” (ESTRADA, 2007, p. 214). 3. Fundamentação da fé em Deus independentemente do sofrimento e de suas causas. Ou seja, desejar dizer: “Eu creio em Deus apesar do mal”. O mesmo Estrada (2007, p. 213) afirma que “uma coisa é crer em Deus, afirmar que na mensagem bíblica há fundamento para a esperança e para a ânsia de sentido, e outra é pensar que há uma explicação racional para todas as dimensões do mal e que a partir de Deus poderíamos explicar tudo” (Tal perspectiva de fé encontra na esperança escatológica cristã a visão de que o mal venha a não mais ter poder na história, como expresso no Evangelho de Mateus que apresenta a oração de Jesus pela libertação de todo o mal e de suas formas de representações condenatórias como a do inferno, es-pecialmente quando afirma: “livra-nos do mal” (Mt 6.13).

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Edith Stein: Concepções de Ser finito e Ser Eterno, significados e manifestações

Edith Stein: Design of be finite and be Eternal, expressions and meanings

Edith Stein: Diseño de Ser finito y Ser Eterno, significados y los expresiones

Jéferson Luis Azeredo

RESUMOO contexto filosófico na qual viveu Edith Stein reflete em seu pensamento na reflexão do Ser finito e do Ser Eterno (Deus). A partir da concepção de Ser finito, como ser dotado de essência e existência numa unidade temporal, ela constrói sua reflexão fenomenológica-antropológica. Cada ser humano é singu-lar, possui uma consciência que vai se revelando (se descobrindo) na medida em que se relaciona com o Outro (indivíduo), que lhe vem como um “espelho” de seu próprio eu. Mas, ao refletir sobre si mesmo, surgem perguntas que lhe causa angústia: De onde vim? Para onde vou? Quem sou? Com esses ques-tionamentos, o Ser humano, descobre sua situação-limite, sua finitude, abrindo possibilidade à uma existência capaz de lhe sustentar o Ser. Nesta abertura, que se chama filosofia religiosa ou filosofia cristã na qual Edith Stein contribui, é que se torna possível o manifestar-se de Deus, esta, numa abertura de fé do Ser humano, em que Deus o busca numa experiência mística, confortando-o e dando-lhe novo sentido à sua vida.Palavras-chave: Ser finito; Ser eterno; situação-limite; fenomenologia.

ABSTRACTThe philosophical context in which Edith Stein lived in his thinking reflects the thinking of Being finite, the Eternal Being (God). From conception to be finite, as being endowed with essence and existence in a unit time, she builds her anthropological-phenomenological reflection. Every human being is unique, has a consciousness that reveals itself (if discovered) in so far as it relates to other (individual), it comes as a “mirror” of his own self. But, reflecting on itself, questions which causes him anguish: Where did I come? Where am I going? Who am I? With these questions, the human being discovers their situation limit their finitude, opening the possibility of a life can you sustain this opening Ser, which is called philosophy of religion or Christian philosophy in which Edith Stein contributes is that it is possible the manifestation of God, that, in an opening of faith of the human being, where God seeks a mystical experience, comforting him and giving new meaning to his life.Keywords: Finite being; Eternal Being; situation limit; phenomenology.

RESUMENEl contexto filosófico en el que Edith Stein vivió se refleja en su forma de pensar la idea de ser finito y del Ser Eterno (Dios). A partir de la concepción de ser finito, como ser dotado de esencia y existencia dentro de una unidad de tiempo, ella construye su reflexión fenomenológica-antropológica. Cada ser humano es único,

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tiene una conciencia que se va revelando (dando a conocer) en la medida en que establece relación con los demás, quienes lo ven como un "espejo" de su propio Yo. Sin embargo, al reflexionar sobre sí mismo, surgen preguntas que le causan angustia: ¿De dónde vengo? ¿A dónde voy? ¿Quién soy yo? Con estas preguntas, el ser humano descubre su situación límite, su finitud, abriendo la posibilidad a una vida que pueda ser capaz de sostenerle el Ser. Es en esta apertura, que se llama filosofía religiosa o filosofía cristiana y a la cual Edith Stein aporta, que se hace posible la manifestación de Dios, así, en la apertura de fe del ser humano, es donde Dios lo busca en una experiencia mística, con-fortándolo y dándole nuevo sentido a su vida.Palabras clave: Ser finito; Ser Eterno; situación límite; fenomenología.

IntroduçãoRelações entre o ser humano, o Outro (enquanto indivíduo), o mundo

e Deus são desde os primórdios do pensar humano discussão inquietante, pois trata-se de conceitos ligados a perguntas fundamentais da existência e do próprio agir humano (ALVES, 1999). Propõem-se Edith Stein – como fenomenóloga – para esta reflexão, pois todo leque de correntes filosóficas que a ela se apresentaram, a influenciaram de algum modo (destaca-se a influência de Edmund Husserl e o Círculo de Göttingen). Com efeito, ela não só sofreu influência de sua época, mas também trouxe originalidade para o mundo cultural moderno.

O ser humano em sua situação-limite (que é a consciência de suas próprias limitações) retoma questões de sua existência. Estas encontram não só horizontes que lhe fazem “movimentar-se” para sair dessa situação angustiante, mas, também, o faz buscar Deus. É aí que o manifestar-se de Deus encontra alvo (a abertura do Ser humano) e o olhar do homem apreensivo encontra conforto, reavendo a razão de ser, existir, encontrando sustentação.

O objetivo não é exclusivamente analisar a prova da existência de Deus, mas a manifestação Dele: atributos, temporalidade, atualidade e potencialidade.

Tem-se, segundo Stein, o ser humano não em “estado de solidão”, largado a existir até morrer; não é vazio, senão habitado por uma alma, regida por um eu, em cujo centro está a sede da liberdade, o ponto de união com Deus. Acha um meio, componentes, dinamismo e princípios; tudo o quanto permite que a aspiração à união com Deus não seja vis-ta, nem em privilégio do alto, nem mesmo como aventura arriscada das criaturas. A mesma natureza humana não só possibilita, senão que esti-mula este desejo: “Deus cria as almas para si. Deus quer uni-las a Si e comunicar-lhes a incomensurável plenitude e a incompreensível felicidade de sua própria vida divina” (STEIN, 1987, p. 33). A esta missão deve o Ser humano a sua existência.

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O Ser Finito1 em Edith SteinA busca do sentido do Ser é visto na história por meio de vários

pensadores, (Platão, Aristóteles… Tomás de Aquino). Com “olhar” feno-menológico, Stein procura assumir sua posição a tradição tomista do ato e potência do Ser finito (Ser humano) e do Ser eterno (Deus).

O Ser humano – finito, para ela tem um lugar especial concebido como uma criação, é “o espírito criado é uma imagem limitada de Deus, e enquanto imagem é semelhante a Deus, enquanto limitado é o oposto de Deus enquanto infinito” (SCIADINI, 1999, p. 43), também este tendo participação no plano divino. Ele é constituído de uma tríplice estrutura, tendo uma singular interioridade, que é posta em reflexão constante pela sua situação-limite. Mas a singularidade do Ser humano não pode ser entendida como isolamento, pois está em relação com o Outro, numa atitude empática (que o leva a descobrir coisas que sozinho não conse-guiria, sobre si e sobre o existente), e em relação com o mundo (pois é o mundo que lhe garante uma existência corpórea).

A observação atenta do fenômeno humano, a longa caminhada da reflexão que o Ser humano suscita, conduz a um ponto onde se vê cruzar em uma resposta de extraordinária amplitude o Finito e o Infinito. O Ser humano vive como consciência (das coisas), mas, evidentemente, como consciência de si. Faz de sua própria existência o objeto maior de sua reflexão, sob o impulso mesmo de seu ser conhecedor e de sua inteligên-cia inquieta. Numerosas são as interrogações que o Ser humano acumula nesse esforço visando conhecer-se inteiramente, e descobrir a arquitetura de sua existência. Pergunta-se o que significa ‘ser’, e por que ele ‘é’.

Sabendo que é conhecedor, procura apreender o fenômeno do co-nhecimento e, de pergunta em pergunta, de resposta em resposta, adquire uma consciência cada vez mais viva de sua capacidade e de seus limites. Sente assim sua própria natureza simultaneamente e paradoxalmente como uma riqueza: a do saber.

Em sua tese Empatia (“Einfühlung”), – sua primeira produção filosó-fica (1916), Stein uni-se com as contribuições de Husserl sobre o mundo intersubjetivo, questão básica para superar o eterno problema do solipsis-mo. Essa obra está centrada na aplicação da “redução fenomenológica”, a esse momento em que dois sujeitos são capazes de convergir tanto que a vivência de um é integrada na experiência do outro. Trata-se do fenômeno da empatia: este vai mais além do que o simples acordo de sintonia entre as criaturas (nível da simpatia), pois afeta o núcleo mais íntimo da pessoa. 1 Edith Stein usa em seus escritos as expressões: Ser finito ou Ser humano, para referir-

se ao homem (ou mulher), não possuindo uma distinção das duas expressões e nem prevalecendo o uso de uma ou de outra. São sempre usadas com a primeira letra em maiúscula não seguida por hífen para separar as duas palavras da expressão.

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Nesta capacidade de compreensão da experiência alheia estaria a base da sociabilidade humana, ou seja, porque podemos compreender, conviver e estabelecer relações pessoais, comunitárias. O elemento que vincula esta experiência é a capacidade empática; ou seja, não é o “Kör-per”, mas o “Leib”2.

O método fenomenológico numa concepção SteinianaOs resultados alcançados por Stein dão continuidade aos estudos

e pesquisas de Husserl. Assim como o mestre, ela discute e esclarece a relação entre o mundo, a questão da sua existência e o sujeito: uma relação que é analisada de uma forma peculiar pela fenomenologia (CA-PALBO, 1996, p. 40).

Há uma consideração essencial das coisas, “cada fenômeno é assumido como base exemplar para fins de uma consideração sobre a essência” (BELLO, 2000, p. 84). Coloca-se a questão referente a quem realiza tal operação, o sujeito psicológico (o eu-consciente), deve ser colocado entre parênteses, mas mesmo assim, permanece sempre o sujeito da experiência vivencial, quer dizer: “… eu considero o mundo e a minha pessoa como fenômenos, razão pela qual não é possível que sejam apagados ou colocados em dúvida tanto o eu como tão pouco a própria experiência…” (STEIN, 1987, p. 140).

O eu (indivíduo) identifica-se com o inteiro fluir das vivências e nisso consiste a sua vida, e o seu viver está no tempo, no sentido que procede de momento para momento. Pode-se observar que a operação teórica realizada por Stein consiste em ancorar tanto o tema da existência, como também os resultados da análise fenomenológica da subjetividade “no grande cenário metafísico do ser” (BELLO, 2000, p. 90).

Sendo que se trata de descobrir o sentido do ser, deve-se colocar a questão de sua essência, que para ela é inútil aceitar somente a análise essencial que Husserl propusera. Pois, a pesquisa sobre o ser não pode reduzir-se a uma mera busca do seu significado, permanecendo num ní-vel exclusivamente gnosiológico. É nisso que se revela um momento de profundo contato, e ao mesmo tempo de profunda distinção entre Husserl e Stein, para qual as essências tem uma existência.

Todavia, no que diz respeito à análise das estruturas dos sujeitos, tomados na sua individualidade ou analisados coletivamente, ela sempre permaneceu fiel à fenomenologia husserliana. Mas seu olhar se ampliou para investigações da realidade nos seus múltiplos aspectos (verdadeira atitude realista), tais como: natureza, sociedade, moral e Deus, mas em especial o Ser humano, pois foi neste que mostrou originalidade com

2 Na língua alemã Körper se refere ao corpo material e Leib ao corpo animado.

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suas diversas manifestações: espiritual, comunitária e intrapessoal. “O estudo do Ser humano, das suas experiências e da sua interioridade fascina a fenomenóloga, que prossegue as suas pesquisas…” (BELLO, 2000, p. 314).

O problema do SerO confronto entre o pensamento tomista e o pensamento fenome-

nológico é tratado de maneira objetiva. É Stein mesma quem indica seu objetivo: “delinear uma exposição sistemática de uma doutrina do Ser, não um sistema filosófico” (STEIN, 1996, p. 33).

Stein recorda a tríplice subdivisão tomista do ente em: ente mate-rial, ente espiritual e Ente primeiro (Deus), acenando a importância dos conceitos de potência e ato para definir a natureza dos entes criados por Deus. Ela começa o primeiro capítulo, de sua principal obra de filosofia, Ser finito y Ser eterno, tratando do problema do Ser: “Introduccíon, la cuestión del ser” (STEIN, 1994, p.19). Ela faz uma distinção clara entre os dois (o Ser eterno, ver-se-á no segundo capítulo deste trabalho), também chamados de criatura e criador, ou ainda Ser humano e Deus.

Seguindo uma tradição tomista, Stein afirma que no Ser finito a potência se difere do ato (sendo este o coração da filosofia tomista). O ato das criaturas é uma “ação ou atividade que começa, termina e supõe como fundamento uma potência passiva” (Idem, p. 20). Já para o Ser eterno, que é Deus, diz: “A ação de Deus não tem nem princípio nem fim; subsiste desde a eternidade, até a eternidade, repousa na imutabilidade mesma de seu ser: (…) é ato puro. Não tem necessidade de nenhuma fa-culdade passiva que exija ser posta em movimento” (Idem). Sendo assim, sua faculdade e seu poder, repercute no ato: potência ativa e faculdade ativa, sua potência é com o ato, não existe em Deus uma potência não atualizada, “e no ato a potência está inteiramente atualizada” (Idem).

Para Stein o Ser finito possui uma experiência vital que é um todo que se constrói na vida consciente do eu com certa duração3. “O pensa-mento que atualmente vive é uma unidade de experiência vital diferente do meu pensamento de algumas horas atrás em relação à mesma coisa” (STEIN, 1987, p. 60-61). A vida do eu vai do passado ao futuro. Assim, o que está em potência se converte constantemente em atual e o que é atual volta a cair em potencialidade (não interpretado aqui como uma circularidade perfeita que não tem “escapes” ou uma mudança a cada atualidade e potencialidade).

3 Como diz Edith: “… el pensamiento forma un todo que se construye en el tiempo” (STEIN, 1994, p. 60), ou seja, nosso pensamento, como consequência nossa vida possui um tempo de duração, que acaba com a morte.

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A tríplice estrutura humanaEm relação às inquietudes existencialistas, Stein entende a vida

do ser humano como um projeto, algo inacabado, em aperfeiçoamento, porém, pertencente ao ser humano mesmo. O fato de o ser humano vi-ver em comunidade, não significa esquivar-lhe de sua singularidade. A liberdade humana possui um potencial suficiente para conseguir fazer a passagem a um indivíduo, à uma pessoa singular na busca de sua intei-ra subjetividade, como diz Stein (1996, p. 134): “o homem é chamado a viver em seu íntimo e, consequentemente, a governar-se a si próprio…”. O mesmo processo de crescimento (corporal, intelectual e espiritual) é também uma autocriação. Somos responsáveis por nós mesmos “… a pessoa é portadora de sua vida, no sentido de que a têm em sua mão” (Idem, p. 342).

A principal crítica de Stein ao seu tempo consiste em colocar o Ser humano como um ‘modelado’ de sua exterioridade, do ambiente que o circunda. Ao invés, ela o tem como um Ser livre, um Ser que está aberto ao mundo, que se comunica com o outro e se encontra consigo mes-mo. “Negar a liberdade é diminuir a capacidade do ser do homem ser racional” (Idem, p. 339), modo intrinsecamente humano, que é elemento indispensável à sua antropologia, pois segundo ela: “razão e liberdade, são distintivos essenciais das pessoas” (Idem, p. 341). Assim, para ela, a razão agrega-se à liberdade, que faz do interior do Ser humano uma forma de escolha em suas decisões diárias à sua vida. Somente o Ser humano tem em suas mãos o transformar da natureza, que se apresenta a ele trazendo uso de seus privilégios.

Essa inquietude humana, de sempre buscar novas metas e respostas a tão variados “porquês” e essa liberdade de poder buscar seu sujeito, é que leva a pensar no que constitui o Ser humano, para entender essas duas características. Para Stein, é uma estrutura composta de três ele-mentos: corpo, alma, e espírito. “[…] alma, espírito, corpo, estão com toda evidência ligados estreitamente” (STEIN, 1994, p. 389). O Ser humano é composto de três partes que não podem ser pensadas individualmente sem ligação umas com as outras, para o entender. Sendo assim, não se trata só de uma alma que vive num corpo, senão de uma unidade do corpo, alma e espírito.

A alma é o espaço em meio do total que está formado pelo corpo, a alma e o espírito. Enquanto alma sensível, habita em todos os membros e partes do corpo, recebe dele e opera sobre ele formando-o e mantendo-o. Enquanto princípio espiritual ele transcende-o ‘de lá’ de si mesma e olha um mundo situado mais ‘para lá’ de seu próprio eu: um mundo de coisas, de pessoas, de fatos; comunica-se com ele inteligentemente, e dele recebe impressões;

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enquanto alma no sentido própria habita em si mesma e nela o eu pessoal está como na sua própria casa (STEIN, 1994, p. 388).

Para compreender o Ser humano é necessário levar em conta esta complexa realidade. Enquanto o homem é por sua própria essência, espírito que é dado por Deus e dá as características (da singularidade), ultrapassa a si mesmo com sua vida espiritual, entra em um novo mundo sem se perder. “O espírito criado é uma imagem limitada de Deus… sendo imagem é semelhante a Ele; sendo limitado é reflexo Dele” (STEIN, 1996, p. 128). A alma humana se eleva na vida espiritual acima dela mesma4.

A alma é algo em si: tal como Deus a colocou no mundo. E esse algo tem natureza própria, à qual impõe caráter próprio na vida toda, na qual desa-brocha… Ela sente aquilo que a acolhe em si é compatível com o seu ser próprio, se é proveitoso ou não e se aquilo que faz é próprio para o seu ser ou não. E aquilo corresponde à natureza, na qual ele se encontra a cada contato e reencontro conflitivo com o mundo (STEIN, 1987, p. 56).

O espírito humano está condicionado pela alma e pelo corpo. “En-quanto instrumento de meus atos, o corpo pertence à unidade de minha pessoa. O eu humano não é um eu puro, nem só um eu espiritual, mas também um eu corporal” (GARCIA, 2003, p. 59). O corpo do Ser humano não é simplesmente corpo, massa corporal, afirma Stein, é corpo animado (não Körper, mas Leibe). O Leib (corpo) não pode ser considerado uma espécie de ‘prisão’ da alma, como afirmava Platão5, que lhe coloca obs-táculo impedindo que se eleve; mas, é como o seu ‘espelho’, no qual a vida interior se reflete e através do qual a alma entra no mundo visível. O homem tem alma e esta se manifesta, não só nos atos vitais, que exer-ce a semelhança dos animais. A vida do “eu” está constituída pelo jogo de estímulos e respostas, e é aí que a alma exerce sua função peculiar como mediadora entre corpo e espírito, participando tanto da vida sen-sível, quanto da vida espiritual. A alma é como o espaço interior no qual o eu se move livremente. É a tríplice estrutura, em: acima o espírito, no lado de fora o corpo e no centro a alma, tendo esta, um significado muito próximo a de Platão6 que tinha a “função mediadora entre as idéias e a

4 A alma eleva-se acima dela mesma, na experiência mística, que se verá no terceiro capítulo: 3.1 Mística e Atualidade Espiritual.

5 A alma para Platão está presa no corpo humano como em prisão, “… decaiu do mundo das idéias (que é seu lugar natural) e está condenada ao mundo material em particular ao corpo humano” (PADOVANI, 1970, p. 139).

6 Para Platão “… a alma tem uma função mediadora entre as idéias e a matéria, a que comunica ordem e vida. Platão distingue duas espécies de alma: concupiscível (vegeta-tiva), racional (inteligente), que são próprias, respectivamente, da planta e do homem…” (PADOVANI, 1970, p. 139-140).

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matéria, a que comunica ordem e vida.” Só que mediando entre o corpo e o espírito e fazendo assim, essa ligação. [em verde: favor verificar se grafia do original tem acento]

O Ser humano como indivíduo em relação com o outroNão é por acaso que Stein, no momento de escolher sua tese de

formatura7 se orientasse para tratar desse tema, isto é, para a descrição fenomenológica da forma em que os sujeitos humanos se reconhecem mutuamente tais como são (Seres humanos), isto é, sujeitos e não obje-tos, como as coisas do mundo físico ou os produtos manufaturados, bem como diferente dos animais. Já na sua experiência na guerra, percebe-se que ela tem grande atenção pela comunidade, pelo outro… “A análise da Empatia quer responder à pergunta: o que significa “tomar conhecimento da experiência vivencial alheia?” (BELLO, 2000, p. 160). Stein por vezes, serviu-se de exemplos tirados da sua vida cotidiana. Como o exemplo de sua amiga Anna Reinach, sentia ela dor pela perda do marido, essa dor pode ser “entendida” por outra pessoa, mas não vivida, é preciso esfor-ço para entender a dor alheia é um tomar consciência do sentimento do outro. “… é possível distinguir o ato originário de eu tomar consciência que o outro sente dor a partir da dor experimentada pelo outro que se torna para mim um conteúdo do meu ato de sentir, sem contudo tê-lo vivido originariamente” (Idem, p. 161). Essa é a experiência da empatia propriamente dita. É por essa via que constitui-se o Ser humano, mediante atos de empatia.

Stein diz: “A matéria enquanto é naturalmente, não é nenhum modo comunicável; para consigo e ao de fora de si não há nenhum sentido e eficiência, em qualquer coisa à poder comunicar, nem há força de comu-nicar, essa há tem que recebe, participa, e tem que é divisível” (BELLO, 2004). O fundamento da individualidade deve-se encontrar antes na for-ma. É ela quem declara esta posição vizinha àquela de Duns Scoto que considera como ‘principium individuationis’ uma qualidade positiva do ente que separa a forma essencial individual daquela universal. Por individuum, entende-se, não somente uma coisa numericamente una e diferente de todas as outras, mas, antes de tudo, uma coisa que se distingue de outra pelo seu conteúdo.

O indivíduo para Stein é um membro do todo, do universo do qual faz parte. Que o homem seja um membro é um dado de fato. Para com-preender a humanidade como um todo que circunda e sustenta a todos, é importante conhecer os elementos comuns que une, não obstante todas as diferenças, aos seres humanos de todos os tempos.

7 Zum Problem der Einfühlung.

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O outro, neste todo, é um mistério para o indivíduo8, porque quando se apresenta num primeiro momento não é conhecido, apenas se conhece esse outro após inúmeros relacionamentos, e assim, o indivíduo (meu-eu) vai também se ‘revelando’, ou construindo-se. O outro vai se revelando assim como ele é e o indivíduo vai existindo:

De fato, a constituição do indivíduo fora de mim é a constituição do indivíduo em si mesmo; pois, quando capto o corpo de um outro como meu seme-lhante, capto também a mim mesmo como igual a ele, desse modo a nível psíquico me situo no seu ponto de vista para olhar a minha vida psíquica, adquirindo a imagem que o outro tem de mim. [referências]

O nome que o outro carrega é um segundo momento para conhecer-lhe, o que está por detrás do nome é um mistério a ser desvendado. E pelo contato com o outro que posso conhecer realidades até então não entendidas ou manifestas à mim. Acontece qual uma identificação, o indivíduo identifica em si dimensões/características vistas no outro (AL-VES, 1999b). O outro leva a descobrir coisas que sozinho o indivíduo não perceberia.

Assim, Stein afirma:

está na essência do homem, que cada um individualmente e toda a huma-nidade, para a qual são determinados pela sua natureza, devam tornar-se primeiro um desabrochar temporal e permanente e que esse evoluir esteja intimamente ligado à livre colaboração de cada um individualmente e à co-operação comum de todos (STEIN, 1987, p. 57-58).

Cada ser humano é membro de um todo, que se realiza como uni-dade vital e que não pode desenvolver-se a não ser no conjunto vital constituído pelo todo com a participação dos outros membros.

Esse outro, afirma Stein, é um Ser de essência e não só de existên-cia, que leva o indivíduo a tomar conhecimento de sua essência. Tomar conhecimento dessa realidade essencial permite conduzir o indivíduo a ver-se não como fragmentado, mas sim, como uma articulação de es-sência e existência. Na medida em que o outro fala de sua existência é que o indivíduo começa a refletir mais sobre o seu próprio interior. É um processo de revelação da própria interioridade, sendo assim, da es-sência. Mas, essa revelação por ser constante nunca se esgota. Quanto mais o indivíduo é levado para dentro da interioridade do outro, mais o indivíduo se conhece, ou seja, quanto mais empatia mais conhecimento do Ser humano, vai afirmando-se. Mas não significa que todo encontro será somente para chegar à interioridade e que o outro ou só o outro

8 Indivíduo: refere-se aqui, ao sujeito: “outro”.

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determina o indivíduo, mas sim, num nível de comparação, onde há uma percepção exterior (do outro) permitindo uma reflexão interior, assim, nessa perspectiva quanto mais relacionamento (que seja de “qualidade”) maior o conhecimento do indivíduo.

Em sua filosofia, que se fundamenta na empatia, o encontro é a possibilidade de revelação que só acontece se ambos quiserem. “… de onde parte a reflexão sobre os atos e sobre a constituição dos seres hu-manos? Pelo encontro concreto desses seres, no qual não se privilegia um ponto de partida subjetivo” (BELLO, 2000, p. 162). Se apenas um deles revela-se, não há encontro, mas apenas presença de um e reve-lação de outro.

O Ser EternoUm dos mais perturbadores enigmas que envolvem o Ser finito é

a existência de Deus. A filosofia [“o lugar da reflexão humana” (Idem, p. 229)], não pretende forçar um convencimento, mas sim, fornecer evi-dências e reflexões, que se sustentam numa busca da “certeza” diversa daquela oferecida pela fé religiosa.

Superpõem-se dois mistérios, que o olhar atento sobre o Ser finito revela: o mistério do homem e o mistério de Deus (este vem esclarecer o primeiro). Frente ao mistério, que é a maravilhosa dúvida que propicia percorrer os limites humanos: de sua inteligência, de seu poder criativo, de sua autonomia, de sua capacidade de amor etc; a fé para quem a vive pode ser um importante movente e estímulo de humanização e busca da “verdade”.

Em sua situação-limite o Ser humano, no Outro, encontra sua singu-laridade afirmada, mas não, uma explicação à sua existência e essência. A dúvida e as incertezas ainda se encontram bem presentes. No encontro com o mistério, nasce a filosofia, que consiste em uma atividade elabo-radora de raciocínio, como Carvalho ressalta:

… traduz em palavras a realidade de um mundo que o homem cria, de um mundo que realiza projetando e exteriorizando valores, mas um mundo nunca perfeitamente descritível. A filosofia gira, mais ou menos explicitamente, em torno das questões que procuram traduzir algo que não possui uma tradução perfeita (CARVALHO, 1998, p. 214).

O homem ‘cria’ um mundo e nele as dúvidas se tornam problemas. É preciso permitir que os problemas sempre possam emergir, não se deve repudiá-los de antemão.

Quando a fé se propõe a resolver o “mistério”, tanto no plano huma-no (em sua situação-limite), como no plano divino, ela é senão apelo a

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uma inteligência superior. Por essa razão a fé não tem nada a ver com antirracional, ela é ao contrário, um impulso potente que impele a razão além da razão. E por consequência, longe de destruir a razão, ela a completa e lhe confere uma força que lhe dá um tal alcance que ela se põe, até mesmo, em condições de desvendar, ao mesmo tempo o sentido misterioso da existência, quanto o da presença misteriosa de Deus na vida humana e do mundo.

O ato e a potência do Ser EternoA respeito de Deus se pode e se deve falar de potência, e esta não

contradiz ao ato e nem O reduz em forma ou simplificação de seu Ser. Pode-se dizer que há duas espécies de potência: a passiva que nenhum modo existe em Deus, pois tem o princípio de sofrer uma ação exterior, e a ativa, que Lhe pode-se atribuir soberanamente. A potência de Deus é ativa. Da mesma maneira, o ato de Deus não é um ato no mesmo sentido que os das criaturas. “O ato da criatura, segundo um dos significados, difere ainda muito, relacionado com o sentido profundo do termo, quer dizer ação ou atividade que começa, termina e supõe como fundamento uma potência passiva” (STEIN, 1994, p. 54). Os Seres finitos, quanto mais participarem da atualidade do Ser eterno, mais atuais se tornam, ou seja, há graus de ser, e este é de acordo com a proximidade ao Ser eterno, mas nunca chegam a ser eternos ou totalmente ato puro.

Todo o que existe é, enquanto existe, uma coisa enquanto o modo do ser divino. Porém todo ser, a exceção de ser divino, contém um pouco de não-ser. Esta união de ser e não ser tem suas conseqüências em tudo o que é. Quanto mais participa uma criatura do ser, maior é sua atualidade. Sempre que um ser é, do que é, é atual, porém não é jamais inteiramente. Pode ser mais ou menos atual, e o que é atual pode ser em maior ou menor grau. A atualidade traz consigo várias diferenças segundo sua extensão e seu grau. O que existe sem ser atual é potencial… (Idem, p. 58-59).

A ação de Deus não tem nem princípio nem fim, subsiste desde a eternidade até a eternidade, repousa na imutabilidade mesma de seu ser, como afirma Stein “Deus está necessariamente no ato” (idem, p. 59). Não existe nada em que não seja ato: é ato puro. Por isso o ato de Deus não pressupõe nenhuma potência prévia, não tem necessidade de nenhuma faculdade passiva que exija ser posta em movimento. No entanto, tão pouco a potência ativa que possui Deus subsiste separadamente ou fora do ato: suas faculdades e seu poder repercutem no ato. Certamente sem a relação com o mundo exterior – na criação e na conservação e a organização do mundo criado – na realidade a potência não é maior

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que o ato, não existe potência não atualizada, porque a autolimitação da potência em seu efeito tinha o exterior e em si um ato e é a explicação do poder. “A potência de Deus é una, seu ato é uno, e no ato a potência está eternamente atualizada” (Idem, p. 20).

Relação entre finitude e infinitudeComo visto, Stein afirma que um ser temporal (Ser humano) é movi-

mento existencial9 com início e fim no tempo. Assim, se tem definido um dos significados da finitude; o ser das coisas seria então: finito.

Se o ser Eterno for realmente conservado sem fim em seu ser, não seria infinito no verdadeiro sentido da palavra, “É verdadeiramente infinito o que não pode acabar e que está em posição de ser, é dono do ser, e em verdade é o ser mesmo” (STEIN, 1994, p. 78), é pois, “infinito”, num sentido bem mais amplo, de não ter nem começo e por isso não simples-mente um não fim “é um brotar de atualidade contínuo e perpétuo” (Idem, p. 78). E este, então, chama-se: o Ser Eterno. Não tem necessidade do tempo, pois é também o dono do tempo. O ser temporal é finito. O ser Eterno é infinito. Porém a finitude significa mais que a temporalidade, e a eternidade significa mais que a impossibilidade de um fim no tempo. O que é finito tem a necessidade do tempo para chegar a ser o que é. É algo materialmente limitado: aquele que recebe o ser o recebe como algo; algo que não é nada, porém que não é, tampouco, todo. De acordo com esse sentido, a eternidade enquanto plena posição de ser, significa não ser nada, é dizer, ser todo (NABUCO, 1955, p. --).

O Ser Eterno em relação ao Ser FinitoDeus é o fundamento do ser. É preciso compreender o Ser humano

como uma unidade de essência e existência para poder chegar a essa conclusão, de forma que, não exclua a relação com o mundo e com o Outro, uma vez que é também por meio destes que Deus se revela ao Ser humano e o convida à encontrá-Lo no mais íntimo de si.

Stein fundamenta a angústia metafísica do homem na existência inata de segurança que ele experimenta. Esta segurança ela a encontra tão somente no repouso em Deus. Refutando o pessimismo, cuja concepção do mundo está ligado ao nada (Dasein), ela abre para si e para quem desejar segui-la, sem preconceitos, o caminho do otimismo de uma filosofia cheia de fé (GARCIA, 2003, p. 24).

Uma vez encontrado com Deus, que é o amor e por meio desse amor faz vínculo com a eternidade, o Ser humano/Ser finito, encontra o sentido da vida: em Deus o Ser eterno.

9 Ou seja, é uma potência passiva.

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A análise fenomenológica se apresenta como um ótimo instrumento de elucidação da mística. Sabe-se que a elucidação das experiências vivenciais caracteriza a investigação fenomenológica. As experiências próprias da experiência mística são dirigidas à atenção da fenomenólo-ga, que capta a peculiaridade das mesmas por uma sutil distinção entre aquelas vivências que constituem o momento intelectual da dimensão afetiva. Tal descrição permite facilmente

[…] uma “visita” ao interior humano, em primeiro lugar porque a interiori-dade é o terreno privilegiado da investigação fenomenológica, como já se constata em Husserl, em segundo lugar porque, certamente, o objetivo é interpretar, mas no sentido de “seguir”, ou “acompanhar” as experiências do mundo interior sem sobrepor qualquer espécie de intelectualismo (BELLO, 2000, p. 240-241).

Stein está convencida de que, quem melhor experimentou o mundo interior, e que com maior claridade têm conseguido relatar-nos estas experiências, são os místicos. Não estamos vazios, senão habitados por uma alma, regida por um eu, e em cujo centro está a sede da liberdade e o ponto de união com Deus. A entrar no reino do espírito o ser humano, acha uma estrutura, componentes, dinamismo e princípios; tudo o quan-to permite que a aspiração à união com Deus não resulte nem só num privilégio do alto nem numa aventura arriscada do Ser finito. A mesma natureza humana não só possibilita, senão que estimula este desejo.

Deus tem criado as almas para si. Deus queria uni-las a Si e comunicar-lhes a incomensurável plenitude e a incompreensível felicidade de sua própria vida divina, e isto, já aqui na terra. Esta é a meta para a que as orienta e à que devem tender com todas suas forças. O fim natural – originário – do homem é a amizade com Deus; a esta sublime missão deve a existência o Ser humano (STEIN, 1996, p. 133).

ConclusãoBuscou-se acentuar de forma clara e sucinta, na concepção filo-

sófica de Edith Stein, (como desenvolvimento na área de antropologia fenomenológica), baseado principalmente na obra Ser eterno y Ser finito; un ensayo de una ascensión al sentido del ser, o problema do Ser finito, como se manifesta, qual sua temporalidade e atualidade; do Ser Eterno (Deus); e a relação dos dois.

Stein entende o Ser humano primeiramente como um Ser finito, que se encontra num tempo e num espaço determinado, constituíndo-se de três partes (a tríplice estrutura humana) que embora possuam funções

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diferentes e determinadas, não o torna divisível, mas caracteriza-se de uma única forma: Ser humano.

É a partir dessa estrutura que ele se faz único, ou seja, com uma interioridade que lhe é singular, própria. Essa interioridade que é carac-terizada pela consciência de si mesmo e do mundo em que vive, é com-provada (vista) no relacionamento com o Outro, no qual lhe é possível analisar sua própria maneira de ser e existir. Mas, mesmo encontrando no Outro uma consciência esclarecedora, fica ainda uma questão sem resposta clara: qual é sua fonte de sustentação inicial, vendo no Outro, também, uma finitude? Ou seja, o questionamento da existência primeira, da procedência do existir humano e, em consequência, da vida, e de seu fim. Essa situação de questionamento, que gera uma angústia, é compre-endida como situação-limite, que lhe abre novos horizontes na busca de respostas de si e sobre o mundo, por vezes difíceis de ser esclarecidas pela reflexão racional, somente.

Stein, a partir de sua conversão ao cristianismo, abre sua vida a uma nova fonte de conhecimento: a fé. Para alcançar verdades, da vida, do existir humano e de Deus, é imprescindível a contribuição da fé. Esta é entendida como um caminhante ao lado da razão que, por si só, tam-bém não se sustenta e fica à beira do caminho, presa por suas próprias limitações. É a fé que sustenta a razão e a razão que dá sustento à fé. Uma não é maior que a outra.

É pela via da fé que se chega ao encontro com Deus. Na tríplice estrutura humana observa-se que a alma é a ligação entre o homem e Deus, é por ela que se dá esse encontro. E a partir daí, surge a experi-ência religiosa. Deus é infinito, existente por si só, antes do início e do fim, sem tempo nem espaço: o Eterno. Aquele que é antes de tudo.

O grau máximo dessa experiência é a contemplação de Deus, Ver-dade máxima. Esta se dá pela ascese, pela experiência mística. Mas, é Deus quem privilegia o Ser humano, e não por força humana que alcança a contemplação suprema de Deus. Analogicamente, é o Pai que leva a seu colo o filho pequeno, que sozinho não consegue fazê-lo. A força do filho está em abrir seus braços e pedir carinho.

Novamente volta-se ao Outro, que agora é visto não só com os olhos da razão, mas é interpretado com os olhos da fé, como sendo uma mani-festação de Deus, em virtude da descoberta do eu e (do existir humano), sendo assim, o Outro um “espelho” da existência concreta do indivíduo que com ele convive.

Referências bibliográficasALVES, E. F. “Edith Stein: da cátedra filosófica aos horrores da câmara de gás”. In: Grande Sinal, Petrópolis, vol. 41, n. 2, p. 133-150 (mar./abril. 1999).

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Os dois caminhos: uma investigação dos fundamentos das atitudes do metodismo brasileiro conservador na crise da década de sessenta

The two paths: an investigation of the foundations of the attitudes of the conservative Brazilian Methodism in the crisis of the sixties

Los dos caminos: una investigación de los fundamentos de las actitudes conservadoras brasileñas del Metodismo en la crisis de los años sesenta

Daniel Augusto Schmidt

RESUMOEste artigo estuda uma crise vivida pela Igreja Metodista na segunda metade da década de sessenta. Influenciado pelo ambiente político da ditadura militar, o metodismo brasileiro foi campo de um embate entre as alas liberais e conser-vadoras da denominação. Palco deste embate foi a Faculdade de Teologia e o II Concílio Geral Extraordinário, em 1968, além de uma série de eventos que a ele se seguiram durante os anos de 1969 e 1970. A pesquisa problematiza os fundamentos teológicos e ideológicos que fundamentaram as atitudes das alas conservadoras do metodismo neste conflito, um aspecto pouco considerado pela historiografia sobre o tema. A principal suspeita é a de que as posturas conserva-doras decorreram de uma tradição centenária, trazida pelos missionários norte-americanos, quando da implantação do Protestantismo no Brasil. Esta tradição transformou-se numa espécie de Ethos do protestantismo brasileiro, entre o final do século XIX e meados do XX. A postura dos conservadores configura-se, assim, numa reação ao Ethos ameaçado por novos atores do campo religioso e pelas demandas da sociedade em conflito. Palavras-chave: Protestantismo; Igreja Metodista; década de sessenta; con-servadorismo; crise.

ABSTRACTThis article studies the crisis experienced by the Methodist Church of Brazil in the second half of the 1960’s. Influenced by the political environment of the military dictatorship, Brazilian Methodism was a space of collision between liberal and conservative groups of the denomination. The principle space of this collision was the School of Theology and the II Extraordinary General Council, in 1968, as well as a series of events that followed during the years 1969 and 1970. The research raises questions regarding the theological and ideological foundations that provided the bases for the attitudes of the conservative groups of Methodism

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in this conflict, which is an aspect rarely considered by historical studies regarding the theme. The principle suspicion is that the conservative positions originated from a centuries old tradition, brought by North American missionaries during the implantation of Protestantism in Brazil. This tradition was transformed into an Ethos of Brazilian Protestantism between the end of the XIX and the middle of the XX century. The conservative position was configured, as such, in reaction to the Ethos threatened by new actors in the religious field and by the demands of a society in conflict.Keywords: Protestantism; Methodist Church; decade of the sixties; conserva-tism; crisis.

RESUMEnEste trabajo estudia una crisis vivida por la Iglesia Metodista durante la segunda mitad de los años sesenta. Influenciado por el entorno político de la dictadura mi-litar, el metodismo brasileño fue campo de un enfrentamiento entre las alas liberal y conservadora de la denominación. El palco de este embate fue la Facultad de Teología y la II Asamblea General Extraordinaria, en 1968, además de una serie de sucesos que le siguieron durante los años de 1969 y 1970. La investigación problematiza los fundamentos teológicos e ideológicos que cimentaron las actitudes del ala conservadora del metodismo en este conflicto, un aspecto poco considerado por la historiografía sobre el tema. Se sospecha, principalmente, que las actitudes conservadoras fueron consecuencia de una tradición centenaria traída por los misioneros estadounidenses, en la época de la implantación del Protestantismo en el Brasil. Esta tradición se convirtió en una especie Ethos del protestantismo brasileño, entre fines del siglo XIX y mediados del XX. Así, la postura de los conservadores, se configura en una reacción a ese Ethos amenazado por nuevos actores en el campo religioso y por las demandas de la sociedad en conflicto. Palabras clave: Protestantismo brasileño; Iglesia Metodista; años sesenta; conservadurismo religioso; crisis.

Um período de rupturas

Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos... em suma, o perí-odo era de tal maneira semelhante ao presente que algumas de suas mais ruidosas autoridades insistiram em seu recebimento, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo de comparação.

Com estas palavras, Charles Dickens (1812- 1870) inicia um de seus mais conhecidos romances: Um Conto de Duas Cidades, escrito em 1859 (Dickens, 2002, p.15). Apesar de a obra se referir a um período- chave da História Ocidental- o final do séc. XVIII na Europa- atrevo- me a adaptar suas linhas iniciais a outro período histórico, igualmente chave e também “recebido para o bem e para o mal, no grau superlativo de comparação”: a década de sessenta.

Os anos sessenta foram um período de rupturas, de contestação. Na França, vivia- se o Maio de 68: é proibido proibir! Nos Estados Unidos, a Guerra do Vietnã, protestos juvenis e a luta do doutor Martin Luther King (1929- 1968) pelos Direitos Civis. No Caribe, Cuba fazia a Revolução e se tornava socialista.

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O Brasil dos anos sessenta viu a ressaca da maré desenvolvimentista, o Golpe Civil e Militar de 1964 e o recrudescimento da ditadura em 1968.

O Catolicismo mundial buscava um aggiornamento com o Concílio Vaticano II. E colocava-se ao lado dos pobres na Conferência de Medellín. No Brasil, surgia o clero progressista em protesto contra a ditadura. No Protestantismo internacional, era o momento do Movimento Ecumênico. No Protestantismo brasileiro, aqueles eram tempos de um forte engajamento social e renovação teológica através da obra do missionário presbiteriano Richard Shaull (1917-2002).

O metodismo brasileiro nos anos sessentaE no meio de todo este ambiente estava a Igreja Metodista do Bra-

sil. Na primeira metade da década, embalada pelo momento de apelo ao engajamento, ela assumiu uma postura de forte conscientização social.

Porém, na segunda metade dos anos sessenta (logo após o Golpe Civil e Militar de 1964), grupos de tendência conservadora chegaram ao poder na Igreja. Começaram aí os atritos entre a liderança conservadora e os defensores do engajamento social. Estes atritos chegaram a seu auge no ano de 1968 com a Crise da Faculdade de Teologia, o II Concílio Geral Extraordinário e em todo um clima de perseguição político- ideológica nos anos de 1969 e 1970.

A crise da Faculdade de teologia foi motivada pelo fechamento da ins-tituição- por ordem da liderança conservadora- em resposta a uma greve iniciada pelos alunos no primeiro semestre de 1968. O Segundo Concílio Geral Extraordinário foi realizado em setembro daquele ano para resolver a questão. Porém, ele acabou servindo apenas para ratificar as decisões já tomadas pela liderança. O que se seguiu foi todo um clima de “caça às bruxas” na denominação entre 1969 e 1970. Refletindo o momento de endurecimento político vivido pelo país, estes setores conservadores acirraram ainda mais seu atrito com as lideranças defensoras do enga-jamento social da Igreja. Representantes destas últimas foram acusados de comunismo, retirados de seus cargos e por vezes até delatados aos órgãos de repressão do regime militar.

Um questionamentoA questão motivadora de meu trabalho (que resultou em minha dis-

sertação de mestrado em Ciências da Religião defendida em 20081) surgiu

1 Cf. SCHMIDT, Daniel Augusto. Herdeiros de uma Tradição: uma investigação dos fun-damentos teológico-ideológicos do conservadorismo metodista na crise da década de sessenta. 2008. 216 f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Ciências da Religião)- Curso de Pós Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2008.

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da leitura da obra historiográfica metodista sobre o período. Percebi que existe uma tradição entre os autores de se interessar unicamente pelos fundamentos teológicos e ideológicos das alas que defendiam um enga-jamento social da Igreja. Porém nada é dito a respeito dos fundamentos teológicos e ideológicos das atitudes das alas conservadoras. Não esta-riam elas vinculadas a toda uma tradição teológico- doutrinária centenária trazida pelos missionários norte-americanos no século XIX? Esta tradição foi interpretada no Brasil como o Ethos do Protestantismo. Tais atitudes seriam então uma forma de defesa da identidade herdada.

Porém, para falar do conservadorismo metodista eu necessitava de uma leitura da mentalidade conservadora protestante. Ela foi- me fornecida no pensamento do teólogo brasileiro Rubem Alves. Mais especificamente em sua obra Religião e Repressão2.

No capítulo VII de seu livro, Alves trabalha a questão da Identidade Protestante. Segundo o autor, quando um grupo define quem são seus inimigos, define também sua identidade (ALVES, 2005, p.285): ”Sei quem sou quando sei contra quem me oponho. Ao me afirmar estou implicita-mente negando tudo aquilo que me nega e que me ameaça de dissolução. Identidade pressupõe conflito. E, inversamente, conflito cria identidade.”

Porém, no caso do Protestantismo brasileiro (e mais especificamente do Metodismo) optei por inverter esta afirmação. Quando ele assumiu uma identidade, determinou quem eram os “inimigos”. A identidade criou o conflito.

A identidade do Protestantismo BrasileiroE que identidade era esta? A meu ver esta identidade era a tradi-

ção centenária do Pietismo, trazida ao Brasil pelos missionários norte-americanos. Foi a defesa desta herança que fundamentou as atitudes do conservadorismo metodista quando seus valores começaram a ser questionados na década de sessenta.

Mas o que era o Pietismo? Explicando de uma forma mais didática, pode-se dizer que este movimento religioso surgido dentro do ambiente luterano alemão do séc. XVIII era um mix de aspectos do Luteranismo e do Puritanismo. Tendo a figura do pastor Phillip Jacob Spener (1635- 1705) como sua maior expressão, o Pietismo foi levado aos Estados Unidos pelo grupo dos Morávios, liderado pelo conde alemão Nicolaus von Zinzendorf (1700- 1760). E ali, imprimiu suas características ao Pro-testantismo que já existia desde os Pais Peregrinos. No caso específico do Metodismo, a influência pietista se deu através do contato de seu

2 Cf. ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Edições Loyola, 2005. Publicada em 1979 com o título inicial de Protestantismo e Repressão, esta foi a obra básica. Porém, em outros momentos, utilizei- me também da introdução de seu livro Da Esperança.

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fundador, John Wesley (1703- 1791) com a missão morávia na colônia norte- americana da Geórgia.

E quais eram as características do Pietismo?A primeira delas é um profundo sentimentalismo, influência da dou-

trina luterana da Ordo Salutis. Esta doutrina -pouco lembrada no período da Ortodoxia que se seguiu à morte de Lutero- dizia que a fé na justi-ficação só viria depois de uma união mística do fiel com o Senhor. Ela ressurgiu no Pietismo, que passou a dar uma forte ênfase à experiência sentimental e mística da conversão, ou do encontro pessoal com Cristo. A experiência deveria fundamentar a certeza. Este tom sentimental pode ser encontrado, por exemplo, na narrativa da conversão do próprio John Wesley (op. cit. Heitzenrater, 2006, p. 80):

À noite, fui de muito má vontade à Sociedade da Rua Aldersgate, onde alguém estava lendo o prefácio de Lutero para a Epístola aos Romanos. Cerca de um quarto para as nove, enquanto ele estava descrevendo a mu-dança que Deus opera no coração pela fé em Cristo, eu senti meu coração estranhamente aquecido, senti que acreditava em Cristo, apenas em Cristo para a salvação...

A segunda é uma visão bastante negativa do mundo (influência pro-vável do Puritanismo): o cristão deveria morrer para o mundo, manter- se afastado dele. Um exemplo desta visão negativa pode ser encontrado nas paredes de alguns antigos templos protestantes, inclusive metodistas: o famoso quadro “Os dois Caminhos”. Sua origem é alemã e vinculada a círculos pietistas3. O assunto da tela é o destino eterno dos seres humanos. No topo de algumas cópias desta pintura vê-se o olho de Deus. Porém é na base inferior do quadro que a ação realmente acontece. Do lado esquerdo, ladeado por uma estátua de Baco e de Vênus, aparece o Caminho Largo. Ele é encimado por uma grande placa em que está escrito “Bem-vindo!”. Neste caminho, que retrata um ambiente urbano, são representadas todas as fontes de pecado para o Protestantismo. A primeira imagem é a de um grupo de pessoas bebendo vinho. Logo acima, um salão de baile. Do outro lado do caminho, um teatro. Mais acima, um cassino. No meio do caminho, são mostrados todos os tipos de perversão: brigas, roubos, as-sassinatos etc. E no canto superior esquerdo da tela é retratado o destino a que aqueles que trilham o Caminho Largo vão chegar: a destruição com labaredas e fumaça. Porém, no canto direito da tela a paisagem é bastante diferente: o clima é rural e bucólico. A primeira imagem que aparece são

3 O desenho original foi feito por uma diaconisa da Igreja Luterana, Charlotte Reihlen (1805-1868), no ano de 1862 na cidade de Stuttgart. Cf. http://www.britishmuseum.org. Acesso em: 15 de maio de 2008.

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as tábuas do Decálogo. Logo acima, um grupo de pessoas com roupas modestas se dirige a uma porta, atendendo ao convite de um pregador. O caminho retratado deste lado do quadro é estreito e íngreme. De um lado, uma fonte debaixo de um cruzeiro faz jorrar a Água da Vida. De outro, aparece uma igreja protestante com um prédio de Escola Dominical. Não existe uma única construção dedicada ao prazer. Ao contrário do que se vê no Caminho Largo, as cenas ao longo do Caminho Estreito são pias: benevolência, cultos ao ar livre, serviço cristão. O caminho termina numa Cidade Dourada situada no céu. Mas um olhar sobre esta pintura permite a visão de outras características do Pietismo.

O quadro Os dois Caminhos

Uma delas é a Ética cristã estrita. A influência aqui é da Doutrina da Predestinação calvinista. Para Calvino, a questão se o indivíduo estava predestinado ou não à Salvação se resolvia de forma bastante simples: o Eleito era aquele que simplesmente aceitava a doutrina e perseverava em sua fé apesar das perseguições. Porém, para as gerações que o seguiram, a dúvida começou a pairar. Como era possível garantir que se pertencia ao grupo dos salvos? Vendo que a questão provocava verda-

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deiro tormento na vida de muitos paroquianos, os cura d’almas definiram que a prática de uma vida cristã absolutamente ética e regrada serviria para garantir a eleição. Surgiu aqui aquilo que Max Weber chamou em seu livro A ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo de ascese in-tramundana (Weber, 2004, p.110) 4. A vida metódica e correta no mundo era uma maneira de agradar a Deus. E a ética cristã pietista, herdeira que era do Puritanismo, também deveria ser rigorosa. O crente deveria se afastar de coisas “mundanas” como teatro, baile, vícios.

Outra característica do Pietismo presente em Os Dois Caminhos é um certo individualismo (influência também da Doutrina da Predes-tinação): a Salvação era um assunto individual. A Porta para entrar no caminho da direita é estreita, cabendo uma única pessoa. Diz Max Weber (Weber, 2004, 95):

Ora, em sua desumanidade patética, esta doutrina não podia ter outro efeito sobre o estado de espírito de uma geração que se rendeu à sua formidável coerência, senão este, antes de mais nada: um sentimento de inaudita so-lidão interior do indivíduo. No assunto mais decisivo da vida nos tempos da Reforma- a bem- aventurança eterna- o ser humano se via relegado a traçar sozinho sua estrada de encontro ao destino fixado desde toda a eternidade. Ninguém podia ajudá-lo.

A fé puritana era, então, um caminho solitário. Um exemplo pode ser encontrado em O Peregrino, de John Bunyan (1628-1688), obra literária que serviu de inspiração na composição da tela. Depois de falar a sua família do desejo divino de destruir sua cidade, Cristão (o protagonista) é dado como louco e inicia sua viagem solitária com destino à Cidade Celestial (Bunyan, 1992, pp. 20-21): “Ao ouvir estas palavras, grande foi o susto que se apoderou daquela família, não porque julgasse que o vaticínio viesse a realizar-se, mas por se persuadir de que o seu chefe não tinha em pleno vigor as suas faculdades mentais”

No Pietismo, este individualismo se exacerbou. Ele se manifestava não só na conversão, como também nas práticas de piedade: leitura in-dividual da Bíblia, devocionários, culto familiar etc.

Porém, existem outras características do movimento pietista que não estão presentes no quadro. Características estas que foram deter-

4 Segundo Weber, na Idade Média o asceta por excelência era o monge que vivia uma vida cristã absolutamente racionalizada dentro das celas dos mosteiros. Era o que ele chama de ascese extramundana, ou seja, fora do mundo. Porém, depois da Reforma, esta postura se transforma. Iniciando em Lutero e se exacerbando no puritanismo, esta ascese passa a ser vivida dentro da vida cotidiana. Cada cristão agora seria um monge.

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minantes para a crise que se estabeleceu no metodismo brasileiro dos anos sessenta.

Uma delas é o forte desinteresse pelas questões sociais. Aqui ocor-re talvez um desvirtuamento das raízes puritanas do Pietismo. O crente puritano se via como instrumento divino para impor a Vontade de Deus no meio social. Porém, quando o movimento pietista chegou aos Esta-dos Unidos, a experiência pessoal com Jesus passou a assumir uma feição cada vez mais individualista e desconectada da realidade. Alguns fatores podem ser elencados para este desvirtuamento. Um deles está ligado especificamente ao Metodismo norte- americano. Transformado em uma denominação de classe média ele passou a resumir a Doutrina da Santificação de Wesley a uma mera experiência subjetiva. Outro fator foi a Escola Dispensacionalista de interpretação bíblica, encabeçada por Cyrus Ingerson Scofield (1843-1921). Segundo esta linha de interpretação, a História da Salvação poderia ser dividida em sete etapas ou “Dispen-sações.” Na etapa atual, a sexta, cabia unicamente à Igreja a pregação do Evangelho. Para Scofield somente a pregação era a solução para as questões sociais. Um último fator é específico do ambiente religioso do Sul dos Estados Unidos, região de onde veio boa parte dos missionários que atuaram no Brasil. Para dar uma resposta à questão da legitimidade cristã da escravidão, surgiu por ali a Teologia da Igreja Espiritual. Criada por James Henley Thornwell (1812-1862) esta doutrina dizia, baseada em textos como o do Evangelho de Mateus, capítulo 22, versículo 21 da Bíblia Sagrada, que à Igreja cabia unicamente a jurisdição sobre assuntos espirituais. Questões sociais, como a libertação dos escravos, estavam unicamente sob a alçada do Estado.

A outra é a sacralização da ordem política (influência tanto do Lute-ranismo como do Calvinismo), fruto de uma interpretação literal de alguns textos bíblicos como o da Epístola de Paulo aos Romanos capítulo 13, versículos 1 a 5: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores, por que não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas.”

O nome da doutrina luterana para a relação entre a Igreja e o Estado era a Doutrina dos Dois Reinos. Segundo o reformador alemão, estes dois reinos estariam nas mãos de Deus: a Igreja seria o Reino da Mão Direita e o Estado, o da mão esquerda. Para Lutero, este último havia sido estabelecido pela vontade de Deus. Sua função era estabelecer a ordem, a paz, proteger a Igreja e reprimir o pecado através da espada. Os governantes eram representantes de Deus, através dos quais Ele atuaria de forma disfarçada. Lutero diz em Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência (Lutero, 1996, pp.79-114):

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Ao reino do mundo ou sob a lei pertencem todos os não-cristãos. Pois, visto que são poucos os crentes e somente a minoria age como cristãos... Deus criou para esses, ao lado do estado cristão e do reino de Deus, outro regime e os submeteu à espada, a fim de que, ainda que o queiram, não possam praticar a maldade e, caso a praticarem, não o possam fazer sem temor e em paz e felicidade. Do mesmo modo como se domina com correntes e cordas um animal feroz, para que não possa morder e dilacerar, como é próprio de sua raça, mesmo que o quisesse: um animal manso e dócil, ao contrário não precisa disso. É inofensivo mesmo sem correntes e peias.

A Doutrina da Providência calvinista tinha visão semelhante. Em suas Institutas da Religião Cristã, o reformador francês dedicou boa parte do tratado sobre a liberdade cristã à administração do Estado. Levando sempre em conta a Providência Divina, Calvino acreditava que a organização política era fruto da vontade de Deus (Calvino, 1958, vol. II p. 177): “Mas se tal é a vontade de Deus, de que peregrinemos sobre a terra ainda que aspiremos à verdadeira pátria, e se tais auxílios nos são necessários para nosso caminho, aqueles que os querem tirar aos homens, lhes tiram o ser homem.”

Estas idéias podem ser encontradas também no líder do movimento metodista, John Wesley. Em pleno Século das Luzes, o reverendo angli-cano era um ferrenho monarquista. Teve de igual forma extrema dificul-dade em aceitar a Guerra de Independência das Treze Colônias. Para o fundador do Metodismo, ao contrário de Rousseau, o poder civil emanava de Deus e não do povo. Ele diz em seu sermão 1305:

... Eu tenho ouvido destes que estão vigilantes que, em nossas colônias, mui-tos têm feito as pessoas beberem, tão largamente, do mesmo vinho mortal, milhares dos quais são, por meio disto, mais e mais inflamados, até que suas mentes estejam completamente mudadas... A razão se perde na violência; suas vozes ainda pequenas sucumbem no clamor popular... Aqui está a es-cravidão... Nem mesmo a liberdade de imprensa é permitida... Ninguém se atreve a imprimir uma página, ou uma linha, a menos que seja exatamente em conformidade com os sentimentos de nossos senhores, o povo... Ninguém se atreve a proferir uma palavra quer em favor do rei George, ou em desfavor do ídolo que eles estabeleceram- um governo novo, ilegal, inconstitucional, extremamente desconhecido para nós, e de nossos antepassados6.

5 Cf. RENDERS, Helmut e outros (ed.). Sermões de Wesley: texto inglês com duas tra-duções em português. São Bernardo do Campo: EDITEO, 2006. CD- ROM.

6 A República, provavelmente.

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Porém, as colônias se tornaram independentes. E a sacralização da ordem continuou a acontecer, agora não mais com uma face monarquista. Nos Estados Unidos do séc. XIX, devido à Doutrina do Destino Manifesto, a ordem política republicana e protestante foi vista como a vontade suprema de Deus. Cabia aos norte- americanos levá-la ao restante do mundo.

E foi com estas características que o Protestantismo foi transplantado para o Brasil pelos missionários estadunidenses em meados do século XIX. Aqui, elas passaram a definir a identidade protestante.

Uma identidade sob ataquePorém, na década de sessenta, esta tradição centenária começou

a ser contestada. O desejo por um Protestantismo nacional (e por um metodismo nacional) mais engajado na realidade social levava a uma necessidade de romper o dualismo Igreja-Mundo. Pedia a quebra da ética individualista e da experiência com Jesus subjetiva e desconectada da História. Levava também à visão de que a situação de extrema pobreza e dependência do país estava ligada não à vontade de Deus, mas sim a uma ordem política e social que deveria ser modificada. Era o que dizia Caio Navarro de Toledo nas páginas de Cruz de Malta (o principal órgão informativo da juventude metodista da época) em março de 1961:

Nossa tarefa, pois, como cristãos do século XX é estar presentes a tudo o que se passa; jamais nos alhearmos da política, participar do crescente movimento sindical, lutar por uma educação mais acessível e humana, com-bater a torpe exploração do homem pelo homem que se vem fazendo, não somente no setor econômico, como também no campo cultural e político.7

Aos olhos dos conservadores, a identidade, o Ethos, do Metodismo brasileiro estava em risco. Era preciso defendê-lo. E como se deu esta defesa da identidade?

A defesa da identidade do Protestantismo Conservador se dá segun-do Rubem Alves, através de dois instrumentos: a Disciplina Eclesiástica e a Delação.

A Disciplina Eclesiástica tem o propósito de exercer o controle sobre a ética individual pietista, que é vista pelo Protestantismo Conservador como a face externa do crente, o seu retrato perante o mundo. É ela que define os padrões e condiciona a participação do fiel no grupo à obedi-ência a estes padrões (ALVES, 2004, pp. 205-206).

7 Cf. TOLEDO, Caio N. Igreja, consciência do mundo. Cruz de Malta, São Paulo, pp. 5 e 6, março de 1961.

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Disciplina Eclesiástica se define como um conjunto de mecanismos, regula-mentados por um texto universalmente aceito dentro dos limites da Igreja, que cataloga as faltas passíveis de punição, recebe queixas e denúncias contra os transgressores, julga-os e pune-os com penas que podem ser admoesta-ções, afastamento da participação nos sacramentos e exclusão, pela qual o faltoso é eliminado da comunhão da Igreja. Mediante a institucionalização da disciplina eclesiástica, a Igreja afirma que o conhecimento ético é monopólio seu. Afirma, ainda mais, que a condição para a participação do indivíduo na comunidade é a sua conformidade com este conhecimento.

No caso do Metodismo, os dois grandes exemplos desta disciplina foram a Crise da Faculdade de Teologia e o Concílio Geral Extraordiná-rio. Jovens seminaristas foram excluídos do grupo por ferirem o retrato externo do crente: eles dançavam, bebiam e fumavam.

Porém, nos dois anos que se seguiram ao Concílio Geral Extraor-dinário o conflito assumiu um teor político. Aqueles que defendiam uma Igreja mais engajada na realidade social brasileira se aproximavam das esquerdas. Por vê- los como perigosos “comunistas”8, representantes do conservadorismo optaram então pela Delação aos órgãos da repressão. Segundo Alves, a Delação tem uma função bastante semelhante à da Disciplina Eclesiástica: faz a separação entre os “verdadeiros” e os “fal-sos” crentes (ALVES, 1987, pp.9-44). A identidade herdada precisava ser mantida a qualquer custo.

A delação é também parte desta liturgia de separação. Delatar é dizer ao carrasco quem é que deve ser sacrificado. E, com isto, uma nova operação matemática: sou diferente dele, separo-me do inimigo, entrego-o ao sacrifício, e assim afirmo-me como membro do corpo sacerdotal. A delação faz isto: ela afirma a pertinência a um grupo através do estabelecimento prático do ódio a um outro. Delatar, portanto não é transgredir a ética; é enunciar uma metafísica e confessar uma lealdade.

MetodologiaA metodologia utilizada na realização deste trabalho foi basicamente

a análise de documentação. Neste ponto foi importante a pesquisa em bibliotecas, arquivos institucionais e pessoais.

A Biblioteca da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista apresenta coleções (infelizmente não tão completas) de dois materiais imprescin-

8 O termo é colocado entre aspas por que uma análise mais acurada de textos da época permite perceber que muito do que era visto como comunismo pelas alas conservadoras nada mais era do que um fruto da histeria da Guerra Fria. O que havia, muitas vezes, era uma aproximação funcional com o Marxismo. Mas isso nem sempre significou uma adesão à doutrina comunista.

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díveis para a pesquisa sobre a denominação no período em estudo: o Expositor Cristão (órgão informativo oficial da Igreja) e a revista Cruz de Malta (o já citado informativo oficial dos grupos de juventude metodistas). Neles ficam patentes as diferentes orientações do Metodismo brasileiro na década de sessenta.

A pesquisa em material de arquivo também teve importante papel. E foi de um destes arquivos, o do CEPEME9, que foi extraída a sua principal fonte primária: os diários do bispo metodista Isaías Fernandes Sucasas (1896-1972)10. Eles acabaram se tornando a voz conservadora de que eu necessitava11.

Os diários do velho bispoOs diários são formados por vinte e três cadernos escolares. Aparen-

temente a motivação de sua escrita era a de uma leitura e análise pelas futuras gerações. O bispo disse ao final da entrada de 7 de maio de 1970 (Sucasas, 1970, p. 382): “Aqui encerro mais este caderno em que tenho escrito o meu diário... Um dia, quando eu morrer, alguém poderá ler este diário e ver ou sentir alguma inspiração.” O período coberto pelas notas vai de 1948 a 1971. Porém, por motivos de delimitação, resumi meu interesse aos diários dos anos de 1968, 1969 e 1970, época em que o reverendo Sucasas já era bispo emérito e testemunhou a crise vivida pela Igreja.

Neles há espaço para todo tipo de anotação. Contém, por exemplo, referências típicas do dia-a-dia de um homem de setenta e dois anos: a anotação minuciosa de preços de compras, considerações sobre seu estado de saúde, referências aos seus gostos pessoais como televisão e futebol e às suas práticas espirituais fortemente influenciadas pelo Pie-tismo. Esta anotação é de 11 de abril de 1969 (SUCASAS, 1969, p.180): ”Levantei-me às 6 horas, após ter feito o culto doméstico com a Jacira no No Cenáculo12...”

Porém, o diário também reserva espaço para outro tipo de anotação, que foi de grande importância para meu trabalho. Por vezes, as páginas revelam o profundo conservadorismo presente na personalidade do velho bispo. Optei por defini-lo em dois aspectos: o religioso-doutrinário e o político. O primeiro caso aparece claramente na entrada de 26 de junho

9 Centro de Estudos e Pesquisas sobre Metodismo e Educação, vinculado à Universidade Metodista de Piracicaba.

10 O reverendo Isaías Sucasas ocupou este cargo entre os anos de 1946 e 196511 Em princípio, minha intenção não era trabalhar com a figura do bispo Isaías Sucasas.

Meu interesse recaia sobre uma das figuras mais interessantes e menos pesquisadas do Metodismo brasileiro: a do reverendo Nathanael Innocêncio do Nascimento. Porém, a dificuldade de encontrar material sobre o reverendo Nathanael forçou-me a uma mudança de rumos.

12 No Cenáculo é o nome de um conhecido devocionário metodista.

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de 1968, já durante a Crise da Faculdade de Teologia, quando ele se refere às atitudes que tomaria em relação a professores e alunos caso ainda fosse bispo ativo. Os professores seriam inquiridos quanto a suas posições teológicas e doutrinárias. E os alunos também. A ética pietista estava presente (Sucasas, 1968, p. 135): “... O mesmo faria com cada aluno- submetendo a um interrogatório severo, quanto às suas convicções em relação à vocação... seu amor ao metodismo, suas convicções sobre o vício do fumo, do álcool, da dança e do jogo...”

Com relação ao conservadorismo político pode-se dizer que se ele não levou a um adesismo explícito ao regime militar13, pelo menos fez com que existisse uma aproximação ideológica. Esta aproximação ideo-lógica vai num crescendo que culmina com a delação. A anotação de 31 de março de 1969 diz (Sucasas, 1969, pp. 159-160):

... aprontei-me e fui juntamente com o Rev. Sucasas14 até o Círculo Militar do 2º Exército em Birapuera (sic). O culto que se realizou foi de Ação de Graças pelo 5º aniversário da revolução de 1964...O salão estava repleto - Uma assistência seleta de civis e militares de todas as patentes15.

Em 25 de março daquele ano a aproximação se tornou ainda maior (Sucasas, 1969, p. 149):

... Então eu e o Rev. Sucasas fomos até o quartel do DOPS. Lá estivemos das 3:30 às 4:30 da tarde. Conseguimos o que queríamos, de maneira que recebemos o documento que nos habilita aos serviços secretos desta orga-nização nacional da alta polícia do Brasil.

E tudo culminou na delação do jovem metodista Anivaldo Padilha aos órgãos de repressão da ditadura militar: “Encaminhe-se com os termos de declarações de José Sucasas Filho (sic) e seu irmão Izaías (sic) Fernandes Sucasas ao ‘SS’16 do DOPS. São Paulo, 28/08/6917.” O motivo da denúncia foi a publicação de um jornal clandestino, o UNIDADE III, que divulgava informações censuradas pelas autoridades da igreja.

13 Em algumas anotações do diário, quando lhe convinha, o bispo tecia críticas ao regime. Cf. Sucasas, 1969, pp. 226- 229.

14 Seu irmão mais novo, José Sucasas Júnior.15 Este não é o único culto militar narrado no diário. A entrada do dia 5 de Junho de 1969

narrou um culto militar realizado na Igreja Metodista Central de São Paulo. O púlpito ficou ao cargo do reverendo Sucasas e do Capelão Evangélico do 2° Exército. O bispo participou representando a Igreja Metodista do Brasil. Cf. Idem, pp. 263-264.

16 Serviço Secreto, provavelmente.17 São Paulo, UNIDADE III, novembro de 1968. Cópia parcial pertencente ao arquivo do

Sr. Anivaldo Padilha.

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A seguir, reproduzo algumas de suas páginas. Notem-se os comentários escritos a mão, talvez pelos próprios irmãos Sucasas: “é preciso ‘apertar ‘os jovens que respondem por este jornal... subversivo”, ”é um insulto, um desrespeito”, “ex-padre revoltado”... O nome do delatado também aparece grifado várias vezes.

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Mas o trabalho com os diários requereu alguns cuidados. Fruto do surgimento da idéia de individualidade no séc. XVIII, o diário

é um documento histórico bastante específico. Diz a historiadora Angela de Castro Gomes: ”Existe um certo consenso, na literatura que trata da

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escrita de si, segundo o qual sua prática dataria, grosso modo, do século XVIII quando indivíduos “comuns” passaram a produzir, deliberadamente, uma memória de si18.”

E por ser uma escrita de si, o trabalho com diários requer um cuidado especial. Principalmente quando se trata de uma documentação recente como as anotações do reverendo Sucasas. O diário é uma exposição, por vezes tremendamente franca, de opiniões não apenas relativas a fatos como também a pessoas. Pessoas estas que por vezes não gostariam de ser expostas. Isso me levou a manter em sigilo o nome de certos personagens presentes em suas páginas.

A realização deste trabalho acabou resultando também em algumas percepções e em novos questionamentos.

Ela me permitiu uma compreensão, ainda que limitada, da mentali-dade do Protestantismo Conservador. Fez- me perceber também o quanto ela estava impregnada do ideário do Pietismo. E o quanto a defesa desta identidade serviu para fundamentar atitudes autoritárias, como no caso do Metodismo da década de sessenta.

Este trabalho fez-me perceber também a existência um novo nicho de pesquisa: o olhar sobre a Igreja Metodista do período sob um novo ângulo, o das alas conservadoras. Ele permitiu também a percepção de que a História, de tempos em tempos, muda de mãos. A memória muda de donos. E que este processo é, ao mesmo tempo, positivo e negativo. Positivo porque faz com que a memória daqueles que foram oprimidos seja recuperada. Memórias convenientemente esquecidas vêm à tona. Negativo porque neste processo, novos esquecimentos convenientes são criados. E a compreensão da História prossegue truncada.

A elaboração deste trabalho serviu também para que questões fossem levantadas. E destas questões surgem novas propostas de pesquisa.

Uma pergunta que surgiu foi a do papel ocupado pela defesa da tra-dição. No mundo pós- moderno e globalizado em que vivemos, a defesa da tradição vem ligada à idéia de identidade. O que é positivo. Porém, a partir de quando esta defesa da identidade se transforma em algo des-trutivo? Em qual momento deve haver uma abertura da tradição para a realidade exterior? É possível uma relação de equilíbrio? Como se dá o processo de estabelecimento de uma tradição?

Outra questão surge a respeito da figura do jovem protestante que se revoltou contra as autoridades eclesiásticas na década de sessen-ta. Na historiografia metodista sobre o tema, o jovem daquele período ainda é retratado de uma forma ainda um tanto mitificada. Ele é visto apenas como o herói. Não tem “corpo”. Porém, existem questões que

18 Cf. GOMES, Angela de Castro. Escrita de si, escrita da História. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n. 9, p. 98, abril de 2006.

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não foram respondidas. Qual era o perfil deste jovem, por exemplo? Qual a sua origem social? Qual era a sua formação cultural? Até que ponto esta formação não representou um perigo para as lideranças da denominação? Nota-se também a carência de trabalhos que vinculem de forma mais nítida esta juventude com tudo o que ocorria a sua volta. A Crise da Faculdade de Teologia não poderia ser inserida dentro do ambiente de rebelião do Movimento Estudantil no Brasil e no Mundo? A rediscussão da ética pietista não estaria de certa maneira relacionada também a toda uma mudança de costumes ocorrida naquele período? O campo ainda é muito vasto.

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160 Daniel Augusto Schmidt: Os dois caminhos

Séries e coleçõesÉtica: Fundamentação da Ética Política. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia: 1996. (Coleção Martinho Lutero Obras selecionadas, vol. VI).Documento eletrônicoRENDERS, Helmut e outros (ed.). Sermões de Wesley: texto inglês com duas traduções em português. São Bernardo do Campo: EDITEO, 2006. CD- ROM.

DissertaçãoSCHMIDT, Daniel Augusto. Herdeiros de uma Tradição: uma investigação dos fundamentos teológico-ideológicos do conservadorismo metodista na crise da década de sessenta. 2008. 216 f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Ciências da Religião)- Curso de Pós Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2008.

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Centros de treinamento: entre o ades-tramento religioso e a educação cristã

Training Centers: between religious formation and Christian education

Centros del formación: entre la formación religiosa e la educación Cristiana

Edemir Antunes Filho

RESUMOApresenta-se no artigo um modelo norte-americano de educação cristã marcado pelo pragmatismo e eficiência de ações missionárias, seus reflexos em igrejas evangélicas brasileiras, as lacunas que facilitaram a adesão deste no Brasil e os desafios que ele levanta para a práxis cristã hoje.Palavras-chave: Centros de treinamento; educação cristã; pragmatismo; missão; igrejas evangélicas; Brasil.

ABSTRACTThis article presents an American model of Christian education characterized by pragmatism and efficiency of its missionary action, its effects on Brazilian Evan-gelical churches, the gaps that facilitated its success in Brazil and the challenges it poses to the Christian practice today.Keywords: Training Centers, Christian education, pragmatism, a mission, pro-testant churches, Brazil.

RESUMENEl artículo muestra un modelo estadounidense de educación cristiana caracteri-zado por el pragmatismo y la eficiencia de la acción misionera, sus efectos las iglesias evangélicas brasileñas, las brechas que facilitaron la adhesión del Brasil a este modelo y los desafíos que este plantea para la práctica cristiana de hoy.Palabras clave: Educación cristiana; pragmatismo; misión; iglesias evangélicas; Brasil.

IntroduçãoNeste texto discutir-se-á sobre o ensino cristão em algumas igrejas

evangélicas brasileiras. Mais especificamente um modelo educacional desenvolvido nos EUA no final dos anos 1980 e que se estabelece no Brasil na década de 1990 como uma solução para as comunidades cristãs históricas e pentecostais que pretendiam edificar os/as irmãos/ãs, aumen-tar o número de membros e ampliar o seu domínio e influência social.

É certo que não foram todas as igrejas que implantaram este mode-lo, mas houve um diálogo sobre a temática em diversas congregações e círculos teológicos. Propunha-se com este uma reestruturação da forma

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com que se geriam os negócios eclesiásticos. Tal reformulação tocava também na maneira como a igreja promovia a educação cristã, as formas de ensino e os propósitos educacionais.

Feitas estas considerações, inicialmente falar-se-á sobre os Centros de Treinamento adotados pelo mundo corporativo e a sua influência no meio evangélico norte-americano. Em seqüência, apresentar-se-á o impac-to deste em igrejas brasileiras. Num terceiro momento, será apresentado o ensino na Bíblia. Posteriormente, avaliar-se-á aquilo que fora anunciado e o artigo será concluído.

Os centros de treinamento: parte da proposta de expansão corporativa

Nas grandes corporações, especialmente nos EUA as transformações político-econômicas do capitalismo ocorridas entre os anos 1965 a 1973 (HARVEY, 1992, p. 135-162), a busca por outros mercados, a expansão dos comércios, a utilização adequada dos recursos, a gestão eficaz dos negócios e das pessoas, levou pesquisadores a proporem novas estru-turas, conceitos e ações a fim de corresponderem a estes anseios. Den-tre as diversas ações corporativas se encontrava o aprimoramento dos Centros de Treinamento nas empresas outrora pensados por estudiosos como Taylor (1990) e Fayol (1994).

Em resposta à necessidade de aperfeiçoamento corporativo, nas equipes de profissionais em treinamento procurava-se: dar instruções sobre o trabalho, inculcar uma efetivação habitual de instruções, desen-volver uma consciência crítica, desestimular e impedir a acomodação dos funcionários, corrigir vícios, e ajustar performances e comportamentos divergentes em relação àqueles adotados pela empresa.

O êxito de diversas empresas foi notório. A mudança radical se fez em decorrência do investimento em conscientização, propaganda da ideologia empresarial, novos modelos de atuação e reflexão viabiliza-das, dentre outros meios, pelos Centros de Treinamento. Nos EUA, para exemplificar, estes feitos repercutiram em vários setores sociais. Líderes evangélicos entusiasmados passaram a reestruturar as igrejas que pas-toreavam na linha de gestão eficaz.

A cultura norte-americana era muito marcada pelo capitalismo, pela competição e pela eficiência. Estes elementos construídos socialmente se difundiam de tal maneira que a grande maioria apenas os reproduzia e atualizava-os sem tantas crises e tensões. Conseqüentemente, reformular as maneiras de atuação e reflexão de comunidades evangélicas segundo os padrões do mundo corporativo não era tão complexo.

Pastores de igrejas diversas passaram a tomar como exemplo os modelos empresariais em vigência, e a consultarem e estudarem as obras

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de grandes estudiosos, administradores e gestores como Drucker, Welch, Collins, Hamel e Branson. Para exemplificar, Rick Warren e Bill Hybels, clérigos norte-americanos, passaram a aplicar os ensinos sobre Gestão por Objetivos de Drucker (2001) associados à Bíblia. Estes pastores forjaram um modelo que concilia índice de desempenho empresarial, avaliação e investimento em ações missionárias eficazes e vida de santidade.

Neste artigo não há espaço nem intenção de fazer uma análise pro-funda deste mix entre negócios, gestão e igrejas evangélicas. Cabe pontuar apenas que, com esta mistura, tais igrejas passaram a ensinar a Bíblia de modo prático, treinar pessoas, formar e acompanhar líderes, e a expansão religiosa ocorreu. Indica-se, tão somente, que igrejas aumentaram sua membresia pela adoção deste modelo de gestão,1 tendo como chamariz os cultos regados a diversas expressões artísticas, utilização da tecnologia, uso de imagens e sermões com orientações práticas e motivacionais.

Os centros de treinamento no Brasil: crescimento e reducionismoCom o passar dos anos parte do meio evangélico brasileiro cedeu à

proposta que visava uma atuação das igrejas mais focada em objetivos e enérgica a fim de conquistarem mais pessoas. Para tanto, anunciava-se que o treinamento dos/as irmãos/ãs alavancaria o tão pretendido crescimento numérico. Com isso, as Escolas Dominicais destas comuni-dades cristãs que acolheram o modelo estrangeiro se enfraqueceram e os Grupos ou Centros de Treinamento passaram a se multiplicar com os nomes “Escola de Líderes”, “Escola de Profetas”, “Escola de Adoradores” e “Escola Bíblica Avançada”.

O problema é que o Brasil tem poucas semelhanças com os EUA (LESSA, 2008). As culturas e produções culturais são diferentes, as men-talidades variáveis e a maneira com que se vivencia a fé cristã também é outra. Desta forma, em solo brasileiro, o treinamento deixou de ter a fun-ção pela qual foi inicialmente pensada e utilizada nas empresas e igrejas norte-americanas. Aqui, boa parte das comunidades cristãs que adotaram os Grupos de Treinamento, cometeu um grande reducionismo.

Os Grupos Brasileiros de Treinamento não conseguiram atuar segun-do o modelo de treinamento empresarial e eclesiástico norte-americano. Se no exterior o Treinamento era um dos braços do ensino cristão, no Brasil se tornou o principal. Porém, aqui, longe de ter uma função de promover a melhoria nas formas de preparação e execução do trabalho, transformou-se em Escolas que impunham e formatavam os procedimentos dos/as irmãos/ãs e o conteúdo da fé intencionando sedimentar práticas

1 A configuração e proposta do Centro de Treinamento “Crotonville” (Ossining – EUA) da General Electric Company, fundado em 1956, exerceu forte influência no desenvolvimento da gestão eclesiástica.

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que dessem resultados expansionistas e tocassem de algum modo nas demandas cotidianas dos membros das igrejas.

Algumas igrejas batistas, presbiterianas e pentecostais cresceram de maneira vertiginosa e se tornaram as vitrines deste modelo importado de gestão e ação missionária. Ao invés de Escolas Dominicais e Estudos Bí-blicos, adotaram-se Escolas de Treinamento marcadas pelo pragmatismo. Estudava-se majoritariamente a doutrina eclesiástica correta, a aplicação de elementos práticos que fizesse mais sentido para a vida e culminasse com o crescimento numérico das igrejas.

Nos Grupos de Treinamento do mundo corporativo procurava-se estimular e ensinar os/as funcionários/as a refletirem, a analisarem critica-mente, a discutirem sobre as ações e melhorá-las, a criarem e aprenderem a manter-se em contínuo aprendizado. Por outro lado, no Brasil, parte das igrejas reduziram suas atividades a uma formação pragmática promovida pelas Escolas de Treinamento e reforçadas em cultos impactantes, teste-munhos pessoais e coletivos, encontros nos lares e acampamentos.

É inegável que os Centros de Treinamento alavancaram o crescimen-to de algumas comunidades cristãs. Estes se instalaram em igrejas, sem tantas tensões, porque, junto ao mote expansionista, anunciavam uma vida devocional emotiva, intimista e individual; propunham um diálogo entre fé cristã e o cotidiano dos indivíduos; procuravam dar respostas práticas e fórmulas prontas para uma melhor vivência na igreja, na família, no trabalho, na escola e nos círculos de amizade.

Uma influência sofrida pelos Centros de Treinamento no Brasil e que culminou com a restrição do ensinamento em igrejas e transformação do modelo importado vem da própria realidade brasileira. Esta é marcada por um ensino público deficiente; pela falta de qualificação profissional; por uma minoria de empresas que leva a sério os Centros de Treinamento; por uma visão expansionista religiosa que se mostrava superior ao investimento numa educação cristã integral; pela busca do sucesso de qualquer maneira.

O ensino na BíbliaDiante do quadro acima, antes de prosseguir, é necessário avaliar

brevemente o ensino no Antigo e Novo Testamentos. Na Bíblia as formas de ensino adotadas objetivavam estimular a reflexão, e transformar os pensamentos, as emoções, os comportamentos e as ações das pessoas conforme o padrão aprovado por Deus. Internalizando os conteúdos e por eles se movendo, a pessoa teria condições de analisar criticamente o mundo à sua volta, se realizaria como indivíduo e integrante da coleti-vidade, também como se tornaria agente do Senhor na história.

Os lares das pessoas eram propícios para se ensinar sobre Deus e espiritualidade. O ensino muitas vezes se deu pela via oral e no contexto

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familiar. Em Deutereonômio 5,1 está escrito: “Chamou Moisés a todo o Israel e disse-lhe: Ouvi, ó Israel, os estatutos e juízos que hoje vos falo aos ouvidos, para que os aprendais e cuideis em os cumprirdes. E em Deutereonômio 6.1-2: “Estes, pois, são os mandamentos, os estatutos e os juízos que mandou o Senhor, teu Deus, se te ensinassem, para que os cumprisses na terra a que passas para possuir; para que temas ao Senhor (...) e que teus dias sejam prolongados.”

No processo ensino-aprendizagem havia espaço para perguntas. Exemplificando, em Êxodo 12.25-27, quando são dados os direcionamen-tos sobre a celebração da Páscoa os pais são orientados a responderem o questionamento dos filhos sobre o rito. Mas não cabia apenas à família o ensino religioso. Os sacerdotes também tinham a função de ensinar. Isto se evidencia no livro de Samuel. O sacerdote Eli cuidou da formação de Samuel ensinando, tirando dúvidas e preparando-o para ser um líder religioso no meio do povo.

Jesus Cristo, segundo o evangelista Mateus (28.18-20), após a ressurreição se apresenta aos discípulos e lhes ordena que discipulem pessoas ensinando-as a serem fiéis ao Senhor. Talvez por isso Paulo em sua Carta aos Efésios (4.11-12) destaca que algumas pessoas foram vocacionadas para ensinarem, contudo todas as funções exercidas na igreja visavam a edificação e aperfeiçoamento dos membros para que cada um pudesse desempenhar bem o seu serviço.

Ao ensinar era comum a utilização de exemplos e testemunhos pes-soais para facilitar a apreensão dos conteúdos e estimular os/as apren-dizes a se permitirem conduzir pela vida de Jesus Cristo. Ao escrever uma carta à igreja em Colossos (3.12-17), Paulo estimula os/as irmãos/ãs a instruírem-se e aconselharem-se mutuamente fundamentando-se na vida do Mestre. Na II Carta a Timóteo (2.2,25) há uma exortação para que Timóteo traga a memória os ensinamentos de Cristo, os exemplos de pessoas fiéis, ensine outras pessoas disciplinando-as com mansidão ao ensinar a outros.

O ensino cristão além da via oral e testemunhal se fazia por meio de textos e pesquisas. Nas considerações iniciais do Evangelho segundo Lucas (1.1-4), o escritor ressalta que ele fez uma investigação acurada sobre Jesus Cristo, seus discípulos e outras testemunhas, e preparou um texto ordenado para que Teófilo, receptor deste, se certificasse das verdades outrora recebidas por meio de instruções.

O ensino bíblico, portanto, acontecia através da Palavra, do testemu-nho, de exemplos, de diálogos, de questionamentos, das correções, das festas, dos cultos públicos, do treinamento, da leitura e reflexão sobre um texto das Escrituras, da memorização, da repetição, da auto-avaliação, de poesias e canções, e das caminhadas nas estradas da vida. Para di-

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namizar o processo educacional, em Gálatas 4.1-2 encontra-se menção aos tutores que acompanhavam e instruíam os novos convertidos. Em suma, o ensino religioso parecia ser dinâmico e abrangente.

Os Grupos de Treinamento à luz das EscriturasA impressão que se tem ao fazer uma análise do ensino na Bíblia é

que as pessoas tinham tempo e disposição para vivenciar amplamente a educação cristã. A realidade contemporânea brasileira traz muitas dife-renças em relação ao mundo bíblico. O ensino cristão continua ocorren-do, mas diferente. Há quem aproveite o tempo que fica no trânsito para ouvir palestras e mensagens cristãs. Em casa assistem-se pela TV, pelo DVD ou pela internet a cultos, debates e conferências. Se por um lado o acesso à informação está melhor, por outro se nota o crescimento da impessoalidade e do individualismo.

Uma vez que o egoísmo se proliferou (Bauman: 2008), os relaciona-mentos arrefeceram e a educação cristã enfraqueceu-se, tornou-se mais difícil motivar as pessoas à prática de evangelização, ao investimento nos relacionamentos e às mudanças de comportamento segundo princípios e valores cristãos. Neste contexto, inserir na agenda da igreja um momento para o desenvolvimento dos dons e serviços é desafiador e necessário. Mas este deve ser uma, dentre várias frentes, de ensino cristão.

Resgatar o valor do “treino” é imprescindível. Aqui não se trata de reproduzir um modelo empresarial, tampouco criar um centro cristão de treinamento para adestrar os/as irmãos/ãs. Fora pontuado que as motiva-ções e propósitos de certas igrejas, ao criarem Escolas de Treinamento, estavam equivocados.2 Entretanto, além dos alvos expansionistas de líderes religiosos, é preciso destacar que tal implementação visava sanar lacunas no contexto das comunidades cristãs. Como exemplo: um discur-so religioso que ajudasse os membros das igrejas a aplicarem o ensino cristão em suas realidades.

Quando se usa a expressão “treino”, o fundamento bíblico desta encontra-se em algumas recomendações apresentadas no texto de I Ti-móteo 4,6-16. Timóteo foi exortado a permanecer firme e desenvolver o seu ministério. Uma vez que ele era o pastor da igreja cabia-lhe manter ativa sua vida devocional, estudar as Escrituras, ensinar, estimular os/as irmãos/ãs, exercitar o amor, dar bom testemunho, cuidar de si, não abrir mão do Evangelho e melhorar as ações que executava.

Só é possível aprimorar os atos se há uma observação profunda des-tes para corrigir os erros, fortalecer os acertos e buscar novas ações. Desta forma, a sugestão que se faz é compreender os “Centros de Treinamento” 2 Uma tentativa de amenizar os efeitos negativos experimentados no Brasil foi a fundação

em 2002 do Ministério Propósito Brasil, que tem mais de quinhentas igrejas associadas, e está ligado ao Purpose Driven Ministries dirigido por Rick Warren.

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ou “Grupos de Treinamento” como “Classes de desenvolvimento dos dons e serviços”. Juntamente com este nome mais apropriado ao ambiente da igreja o objetivo destas Classes (ou Centros) seria a melhoria dos serviços em harmonia com os dons dos membros das comunidades cristãs.

O que se faria, então, com as “Escolas de Líderes”, “Escolas de Profetas”, “Escolas de Adoradores” e “Escolas Bíblicas Avançadas” não afinadas ao objetivo especificado neste artigo? Uma medida radical seria acabar com elas. Outra mais salutar e trabalhosa seria valer-se de todo potencial que elas possuem e reestruturá-las com a proposta de desen-volver dons e serviços.

ConclusãoNão se pretendeu com as sugestões “inventar a roda”. Considerando

o que fora pontuado sobre os Centros de Treinamentos nos EUA e Brasil, a proposta foi mudar o espírito que move a educação cristã em algumas igrejas brasileiras, isto é, abandonar a tentativa de adestramento religioso e adotar uma reflexão profunda das Escrituras com vistas à promoção integral dos/as irmãos/ãs.

Atualmente há Centros de Treinamento em diversos países. Poucos têm o propósito de desenvolver os dons e os serviços.3 A maioria objetiva a formatação religiosa. Se as Escrituras ainda dão o tom para a caminhada cristã é importante que a igreja faça uma análise sobre o seu compromis-so, as suas ações e as suas intenções com o ensino cristão.

Destacou-se que o treinamento também é importante se considera-do como um elemento integrante do ensino cristão. Mas para evitar as associações com o mundo corporativo ou com as distorções evangélicas, foi sugerida a ressignificação das “Classes ou Centro de desenvolvimento dos dons e serviços”. Os textos produzidos por pastores como Warren e Hybels são muito interessantes e podem ampliar a visão sobre a vida cristã, especialmente sobre o tema tratado neste artigo. Mas como se faz com todas as obras lidas e estudadas: é importantíssimo fazer as devidas ponderações.

As “Escolas de Líderes”, “Escolas de Profetas”, “Escolas de Adorado-res” e “Escolas Bíblicas Avançadas” que ainda permanecem com o intento de adestramento religioso podem mudar este objetivo. É necessário que utilizem de seu potencial para melhor contribuírem com o Reino. Embora existam barreiras e dificuldades para isso, é possível agir diferente.

É evidente que a área da Administração apresenta contribuições para a vida da igreja. Os escritos e atuações de gestores como Peter

3 Duas instituições dignas de menção são as seguintes: Centro de Entrenamiento Cristiano Internacional (Córdoba-Argentina) e o Centro de Treinamento para Plantadores de Igrejas (Campinas, SP – Brasil).

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Drucker podem ajudar as comunidades cristãs. No entanto, não se pode abrir mão das Escrituras e dos princípios evangélicos que são caros ao povo cristão. A adoção de certos fundamentos e práticas pode colocar em xeque a educação cristã. Por isso, a Palavra deve continuar iluminando a vida da igreja para que esta permaneça sensível à voz de Deus, atente-se às ocorrências sociais, promova o Reino e caminhe com esperança na salvação.

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Educação para os novos tempos

Education for the new times

Educacíon antes de los nuevos tiempos

Elias Boaventura

RESUMONeste texto, o autor se propõe a examinar se a educação pode ser útil no comba-te à violência onde quer que ela se manifeste. O autor entende que a educação, como ministrada atualmente, é adequada a este combate e sugere a examinar a possibilidade de uma mudança de paradigma e uma revisão do pensamento que leve à prática da educação complexa, baseada na Teoria da Complexidade. Palavras-chave: Violência; complexidade; educação.

ABSTRACTIn this paper the author proposes to examine whether education can be helpful in combating violence wherever it manifests. The author dismisses the education, as currently conducted, as suited to this purpose and suggests examining the possibility of a paradigm change and a revision of the thought that leads to the practice of the complex education, based on Complexity Theory.Keywords: Violence; complexity; education.

RESUMENEn este artículo el autor se propone examinar si la educación puede ser útil en la lucha contra la violencia donde quiera que se manifieste. El autor rechaza que la educación, tal como se imparte actualmente, sea apropiada para esa lucha y sugiere examinar la posibilidad de un cambio de paradigma y una revisión del pensamiento que nos lleve a la práctica de la educación compleja, basada en la Teoría de la Complejidad.Palabras clave: Violencia; complejidad; educación.

IntroduçãoEm outro texto, intitulado “Violência, uma visão complexa”1 trabalha-

mos com algumas premissas que embasam também este artigo e que rapidamente aqui esboçamos:

• • Violência não pode ser tratada com os olhos voltados apenas

para o sujeito e o sítio onde ela se manifesta.• As origens da violência encontram-se fincadas muito além de

onde comumente a detectamos como, por exemplo, na família.• Devemos estar atentos, inicialmente, para o caráter instável de

nosso próprio planeta que, agônico, se revela agressivo contra os seres vivos que o ocupam.

1 No prelo.

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• Esta condição planetária contamina o ser humano, o coloca em situação de espreita e divide homens e mulheres em seres expansivos ou agressivos e em outros acuados e defensivos.

• Ambos os grupos vivem necessariamente uma perspectiva de morte sempre ameaçadora e presente.

• Diante deste quadro de ameaça de instabilidade, a questão que se levanta é: há uma saída para que se consiga viver com algum sentido, mesmo admitindo que somos seres para a morte?

• Descartamos como resposta a proposta de fuga, que só vislumbra a solução com a saída para outra dimensão, que não se sabe qual é e como seria, o que justificaria a afirmação de que aqui vivemos o evangelho da perdição, “a vida é uma guerra sem tréguas, e morre-se com as armas na mão” (SCHOPENHAUER, 1959, p. 7)

Com este caráter instável e agressivo, o Planeta penetra nos ho-

mens e mulheres, que passam a ser hospedeiros da violência. Queremos examinar a possibilidade de se trabalhar o ser humano e prepará-lo para uma vida que tenha sentido, mesmo que se admita um mundo que traga a violência na sua própria estrutura.

Neste artigo, nos propomos a trabalhar a hipótese de ver na edu-cação formal, como prática da instituição escolar, um instrumento que nos permita dialogar com essa violência natural e perceber que posturas teríamos que assumir, como educadores, para ajudar na amenização do problema. Até este momento, a educação formal tem sido altamente seletiva, extremamente agressiva, incentivadora da exclusão e da com-petitividade desigual, bem como embasada em um tipo de conhecimento pretensioso, autoritário, que imagina ser possível equacionar a questão, tentando desprezar o erro e dispensar tratamento de ordenamento artificial à realidade, o qual acaba por ser retilíneo e mutilador.

Infelizmente, a visão mutiladora e unidimensional paga-se cruelmente nos fenômenos humanos: a mutilação corta a carne, deita sangue, espalha o sofrimento. (MORIN, s/d, p. 19).Daí a necessidade, para o conhecimento, de pôr ordem nos fenômenos ao rejeitar a desordem, de afastar o incerto, isto é, de selecionar os elementos de ordem e de certeza, de retirar a ambiguidade, de clarificar, de distinguir, de hierarquizar... (MORIN, s/d, p. 20).

A violência, suas manifestações e a educaçãoSeria enfadonho insistir que o mundo vive um momento tomado por

extrema violência e sem nenhum sinal de saída. A violência aparece de modo contundente, em primeiro lugar, na acelerada destruição do planeta, mediante a qual vêm ocorrendo vários fenômenos:

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• Várias áreas incendiadas em todos os continentes como nunca antes aconteceu.

• Grandes tempestades e inundações destruidoras, a exemplo do Paquistão e da China , sem precedentes.

• Ao mesmo tempo, se vê crescer a desertificação e o número de regiões avassaladas por secas intermináveis.

• Destruição acelerada de áreas florestais como acontece no Ama-zonas, na África e em muitas outras regiões, com consequências danosas para o meio ambiente, incluindo a acelerada extinção de espécies.

Além disto, nunca ocorreram tantos tornados e furacões como nos últimos tempos. Esta violência tem levado autores a se referirem à Terra como “planeta agônico”, no qual, cada vez mais, se fazem visíveis os sinais de morte e o homem existe como um ser acuado, que se torna predador violento, causador e vítima da morte. Este estado de espírito tem se revelado de vários modos, para os quais as mediações não têm alcançado êxito, tais como:

• a existência de conflitos nacionais em vários continentes, que se transformam em guerras.

• a acirrada luta pelo poder, nos mais altos escalões do Estado, na qual os atores insistem em lançar mãos de iniciativas agressivas sórdidas e corruptas.

Contudo, é no interior da família que vêm ocorrendo as mais estranhas

e detestáveis manifestações de violência, atingindo mais frequentemente a mulher e as crianças. Mas sua explicação não se encontra aí. Talvez porque é nela que ocorra o mais forte espaço de aproximação dos conflitos vividos e reais. Enfim, a manifestação geral de violência, além dos fatores mencionados, também nos parece ser fruto da má-distribuição das riquezas uma vez que o desregramento da economia gera crises que enchem as burras de alguns e violentam milhares que, atingidos pela fome, prosse-guem trôpegos. As razões da violência que assolam a família não podem, portanto, ser encontradas nela e explicadas por eventuais limitações, mas em sítios distantes, onde deixam suas raízes mais profundas. Querer ex-plicar a brutalidade existente como defeito de caráter, maldade imanente ou, simplesmente, como as falhas da família constitui simplificação eivada de crueldade, que pouco ajuda a solucionar a situação.

Considerar a educação formal, praticada em diferentes níveis, como instrumento de ajuda à difícil tarefa de combater a violência pode ser positivo. O que se pergunta, entretanto, é: qual seria a educação ne-cessária para se obter êxito neste aspecto? Certamente não é esta que

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estamos praticando – competitiva, baseada no sistema de trocas, que já traz em si a violência embutida contra os menos dotados, que são aque-les que mais precisam. Esta educação é baseada em um conhecimento que não se conhece, parcelado, retilíneo, mutilador e que, a rigor, só se preocupa com os melhores. Wagner Rossi, referindo-se à educação que atualmente se pratica na escola brasileira, esclarece:

A um nível individual, o trabalhador é levado a acreditar que a escola é a via do seu acesso às classes dominantes. Essa crença pressupõe que ele tenha aceito os valores veiculados e disseminados na sociedade capitalista, através de todos os meios disponíveis: a escola, os meios de comunicação de massa, as artes, etc. O trabalhador que é levado a querer “subir”, já aceitou implicitamente a “competitividade” essencial do sistema. Competirá com os companheiros de trabalho, para ele transfigurados em rivais. Aceitou também a meritocracia que garante a vitória, a ascensão dos mais capazes, numa triagem “justa”. E mais que isso, predispôs-se a aceitar as condições existenciais desumanas a que são condenadas as classes trabalhadoras como resultado da própria incapacidade (e ignorância) destas. Submete-se à hegemonia da classe capitalista cujos pontos de vista endossa, muitas vezes tentando identificar-se com aqueles que o convencem da própria in-capacidade, inferioridade e ignomínia (ROSSI, 1943, p. 28-29).

O que repassam as agências de educação? • Fazem crer que a escola é via de acesso.• Incentivam a adesão a valores do sistema de troca, como a com-

petitividade, que reduz o companheiro de trabalho a rival.• Reduzem os fracassos dos trabalhadores à incompetência pes-

soal, com fortes reflexos na autoestima.

Como pode se perceber nas análises de Rossi, a educação escolar atual traz em si instrumentos da violência. Ele prossegue, referindo-se ao modelo educacional vigente: “Não é, afinal, na educação que se en-contrará a solução para os problemas da desigualdade e miséria, cuja solução não se poderá obter sem se alterar a distribuição da riqueza e da renda, pela alteração das relações sociais de produção” (ROSSI, 1943, p.37). E, ainda: “Nos tempos históricos mais afastados, a dominação era exercida, de modo mais aberto, pela predominância física ou militar do dominante sobre o dominado que, vencido em combate, era reduzido à coisa de propriedade do vencedor, através da escravidão” (ROSSI, 1943, p. 39). Desses comentários se pode concluir que a educação formal atual, como ministrada, estimula a dominação dos mais fortes sobre os mais

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fracos e os conduz à “violência justa”, que, por vezes, explode de modo equivocado na família e na sociedade, como reação à discriminação.

Pierre Bordieu, examinando a situação na França (que, em muitos aspectos, pode ser universalizada), faz uma afirmação interessante, referindo-se aos “excluídos do interior”:

Se, até fins da década de 50, a grande clivagem se fazia entre, de um lado, os escolarizados, e, de outro, os excluídos da escola, hoje em dia ela opera, de modo bem menos simples, através de uma segregação interna ao sistema educacional que separa os educandos segundo o itinerário escolar, o tipo de estudos, o estabelecimento de ensino, a sala de aula, as opções curriculares. Exclusão “branda”, “contínua”, “insensível”, “despercebida”. A escola segue, pois, excluindo, mas hoje ela o faz de modo bem mais dissimulado, conservando em seu interior os excluídos, postergando sua eliminação, e reservando a eles os setores escolares mais desvalorizados (BOURDIEU, 1998, p. 13).

Em outro texto, diz o mesmo autor:

É provável, por um efeito de inércia cultural, que continuemos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da “escola libertadora”, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural (BOURDIEU, 1998, p.41).

Desta forma, os autores apontam que a educação escolar, incen-tivadora do individualismo, constitui um dos instrumentos produtores de violência por ser discriminatória e cruelmente seletiva, dispensando tratamento igual a pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades e, por isto, são diferentes. Não pretendemos analisar as teorias de Bour-dieu, mas aqui o invocamos no sentido de esclarecer nossa afirmação de que a educação que praticamos, por trazer em si mesma as marcas da violência, não é aquela de que precisamos.

Insistimos, portanto, em admitir que a educação tenha papel impor-tante no combate à violência, mas o que desejamos continuar indagando é: que tipo de educação precisamos para alcançar este fim, uma vez que, aparentemente, as manifestações de violência que tudo atingiram?

Na educação atual formal praticada entre nós, não se vê sinais de solidariedade entre homens e mulheres. Se a examinarmos mais de perto, veremos que ela tenta simplificar o complexo sem levar em conta o tecido que envolve o ser humano; trata-o de modo coercitivo e agressivo, fazendo

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dele um ser predisposto à violência para vencer a condição de acuado e discriminado em que é colocado. Todo desvio educacional e seu conse-quente fracasso estão ligados profundamente à natureza do conhecimento com que se trabalha, mais do que a qualquer outra insuficiência, como a falta de planejamento, de recursos financeiros ou de quadros preparados. Vamos, para entender a questão, examinar o pensamento de Morin, um dos brilhantes articuladores da teoria da complexidade, muito requisitado pela Unesco para auxiliar na reflexão sobre a educação do futuro.

Em primeiro lugar, a constatação do crescimento da ignorância que avança junto com o conhecimento e que este não consegue deter

... por toda a parte, o erro, a ignorância, a cegueira progridem ao mesmo tempo que os nossos conhecimentos. Existe uma nova ignorância ligada ao desenvolvimento da própria ciência; existe uma nova cegueira ligada ao uso degradado da razão. As ameaças mais graves em que a Humanidade incorre estão ligadas ao progresso cego e descontrolado do conhecimento... (MORIN, s/d, p. 13 e 14).

E ele acrescenta: “Ignorâncias, cegueiras, perigos têm um caráter co-mum que resulta de um modo mutilador de organização do conhecimento, incapaz de reconhecer e aprender a complexidade do real” (MORIN, s/d, p.14). Portanto, não se trata apenas de conhecer mais, de dominar mais contundentemente o processo, mas de conhecer melhor o sentido de ser, adquirir uma maior sensibilidade para a apreensão do sentido da vida.

Que características possui esse conhecimento que criticamos? Em princípio, destacamos seu caráter cartesiano, que quer tratar a realidade de modo separado e mutilador.

A inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e redu-cionista rompe o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que está unido, torna unidimensional o multidimensional. É uma inteligência míope que acaba por ser normalmente cega. (MORIN, 2000, p. 43).

Este princípio disjuntivo, que examina tudo de modo isolado, separa o sujeito do objeto e as disciplinas afins entre si. No problema em questão, este princípio quer tratar a violência na família como se aquela se origi-nasse e terminasse nesta. Esse mesmo princípio de disjunção, que almeja ver na natureza uma ordem que não é dela, que não quer ver o todo na parte e esta no todo, que é simplificador e mutilador do real, precisa ser substituído para superar a educação que contribui como trincheira da vio-lência neste mal-estar que, se percebe, avança em todas as direções.

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...existe hoje uma sensação vaga, mas generalizada, de que a violência se instalou na vida social do país, atingindo até a intimidade dos espaços reservados à vida privada, isso revela que a sociedade, enquanto ordena-mento social e legal, está sendo corroída na sua base, o que constitui um problema social sério (SANTOS, 2002, p. XV).

Percebe-se o equívoco da disjunção na dificuldade de convívio entre as diversas ciências na própria universidade, como se fossem compar-timentos estanques, independentes e isolados. Esse princípio de parce-lamento e disjunção do saber também não consegue tratar a escola, a família, a igreja como instituições que se complementam, especialmente no ato de educar.

Em “Cabeça Bem-Feita”, Morin diz:

Todas as consequências sairiam da conscientização de que a História não obedece a processos deterministas, não está sujeita a uma inevitável lógica técnico-econômica, ou orientada para um progresso imprescindível. A Histó-ria está sujeita a acidentes, perturbações e, às vezes, terríveis destruições de populações ou civilizações em massa. Não existem “leis” da História, mas um diálogo caótico, aleatório e incerto, entre determinações e forças de desordem, e um movimento, às vezes rotativo, entre o econômico, o sociológico, o técnico, o mitológico, o imaginário. Não há mais progresso prometido; em contrapartida, podem advir progressos, mas devem ser in-cessantemente reconstruídos. Nenhum progresso é conquistado para todo o sempre. (MORIN, 2000, p. 42).

Ensinar a incerteza e tentar preparar o ser humano para conviver com ela, evitando assim as frustrações desestabilizantes da falsa certeza, que produzem violência, constituem o papel da nova educação, que se pretende libertadora:

Grande conquista da inteligência seria poder, enfim, se libertar da ilusão de prever o destino humano. O futuro permanece aberto e imprevisível. (MORIN, 2000, p.79)O devenir é doravante problematizado e o será para sempre. O futuro chama-se incerteza. (MORIN, 2000, p.81).O conhecimento é, pois, uma aventura incerta que comporta em si mesma, permanentemente, o risco de ilusão e de erro. Uma vez mais repetimos: o conhecimento é a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipé-lagos de certezas. (MORIN, 2000, p. 86).

A tomada de consciência de que as incertezas do viver não repre-sentam fruto de erro e de incapacidade de gerenciar bem o próprio ser,

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mas se encontram na própria estrutura do universo, parece-nos antídoto forte para auxiliar uma melhor compreensão de eventuais fracassos.

Por fim, convém anotar:

É nossa constante desgraça e também é nossa graça e nosso privilégio: tudo que há de precioso na terra é frágil, raro e destinado a futuro incerto. O mesmo acontece com a nossa consciência. Assim, quando conservamos e descobrimos novos arquipélagos de certezas, devemos saber que nave-gamos em um oceano de incertezas. Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza. (MORIN, 2000, p.59).

A educação que pretenda ser uma alavanca a favor do combate à violência, além de evitar o parcelamento do conhecimento, deve também propor o convívio com a incerteza como fenômeno próprio da vida, pre-sente na própria estrutura do universo. O convívio com a incerteza como parte da existência em hipótese alguma significa resignação diante dos acontecimentos, mas sim, encarar com melhor compreensão o incerto, o imprevisível e o acaso, presentes na complexidade do real.

De fato, “a cosmologia moderna mostra que o mundo não tem fun-damento: ele saiu do ‘vazio’. Nosso mundo é um mundo onde existem a imprevisibilidade e a desordem, ou seja, o incerto” (MORIN, 2000, p.163). Imprevisibilidade e desordem não podem ser descartadas nos currículos de uma educação que se pretende libertadora. A vida real é um oceano de incerteza, complexo, um tecido e só pode ser entendida no seu conjunto.

A educação para a superação da violência

A partir deste ponto, propomo-nos a examinar a possibilidade de ver a educação contribuindo para solução da violência onde quer que ela esteja, por meio de uma postura dialogal com a desordem, partindo do pressuposto que ordem e desordem não podem ser tratadas separada-mente, porque ao mesmo tempo em que se opõem, se complementam. Se quisermos, de fato, buscar uma solução para o problema, não podemos ser disjuntivos, tratar a ordem como o bem posto e a desordem como mal inevitável, que se deve abandonar. A desordem se manifesta na própria estrutura do universo que ora se desintegra, ora se expande, ora explode. Os ventos, a morte de estrelas e tantas outras manifestações de desordem revelam esse caráter instável do universo.

Nosso universo é catastrófico desde o início. Desde a deflagração formidável que o fez nascer, ele é dominado pelas forças de deslocações, de desinte-grações, de colisões, de explosões e de destruição. É constituído no e pelo

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genocídio da antimatéria pela matéria, e sua aventura aterradora prossegue nas devastações, nos massacres e nas dilapidações singulares. A saída é impiedosa. Tudo morrerá (MORIN, 1997, p.271).

Nosso planeta Terra, ora agônico, é originado também de uma de-sintegração de movimentos desorganizadores e imprevisíveis.

Nossa crosta viveu e continua a viver uma aventura prodigiosa, feita de movi-mentos dissociativos, reassociativos, verticais horizontais, de derivas, encontros, choques (tremores de terra), curtos circuitos (erupções vulcânicas), quedas catas-tróficas de grandes meteoritos, glaciações e aquecimentos (MORIN, 1995, p.50).

O autor radicaliza um pouco mais e indaga:

– o que é desordem? – estão as agitações, dispersões, colisões, ligadas ao fenômeno calorífico; estão também as irregularidades e as instabilidades; os desvios que aparecem num processo, que o perturbam e transformam; os choques, os encontros aleatórios, os acontecimentos, os acidentes; as desorganizações; as desintegrações; em termos de linguagem informacional, os ruídos, os erros (MORIN, 1996, p. 199).

Do que temos até aqui trabalhado, fica difícil admitir a existência de um universo sempre regular, cumulativo e contínuo que não dá lugar para o imprevisível e para o incerto.

Pode-se dizer também que a desordem invadiu o universo; é certo que a desordem não substituiu totalmente a ordem no universo, mas já não existe nenhum setor em que não haja desordem (MORIN, 1966, p. 200).

Desordem semelhante se percebe na organização da vida humana que, açoitada por forças imprevisíveis, corre perigo de ficar sem senti-do e vazia. A prática revela que, em relação ao social, o tratamento de punição como solução para o problema do desvio, da desordem e da agressividade não funciona, por ser ele mesmo portador de violência. A educação para os novos tempos tem que levar em conta de modo não disjuntivo este dado: a desordem vem ganhando espaço e não pode ser desconsiderada. Atentemos para esta afirmação:

Em outras palavras, a desordem pouco perceptível no nível planetário traduz-se por efeitos absolutamente maciços que transformam o ambiente e as condições de vida, e afetam todos os seres vivos; de fato, a idEia de desordem é não só ineliminável do universo, mas também necessária para concebê-lo em sua natureza e evolução. (MORIN, 1966, p. 200).

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Nesse contexto, vale a pena analisar o poema de Chico Buarque de Holanda para compreender melhor o problema ordem-desordem.

O que será que será...Que andam suspirando pelas alcovas?Que andam sussurrando em versos e trovas?Que andam combinando no breu das tocas?Que anda nas cabeças, anda nas bocas?Que andam acendendo velas nos becos?Que estão falando alto pelos botecos?Que gritam nos mercados, que com certezaEstá na natureza?Será que seráO que não tem certeza nem nunca terá?O que não tem tamanho? O que será que seráQue vive nas ideias desses amantes?Que cantam os poetas mais delirantes? Que juram os profetas embriagados?Que está na romaria dos mutilados?Que está na fantasia dos infelizes?Que está no dia-a-dia das meretrizes?No plano dos bandidos, dos desvalidos?Em todos os sentidos, será que seráO que não tem decência nem nunca terá?O que não tem censura nem nunca terá?O que não faz sentido?

O que será que seráQue todos os avisos não vão evitar?Porque todos os risos vão desafiar?Porque todos os sinos irão repicar?Porque todos os hinos irão consagrar?E todos os meninos vão desembestar?E todos os destinos irão se encontrar?E o mesmo Padre Eterno que nunca foi láOlhando aquele inferno, vai abençoarO que não tem governo nem nunca teráO que não tem vergonha nem nunca teráO que não tem juízo.

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Devemos notar, em primeiro lugar, a existência de uma “ordem” au-toritária que quer inibir a “desordem”, mas não consegue. A desordem, inicialmente, apenas suspira e sussurra. Ganha as cabeças e as bocas. Passa a uma contundência maior acendendo velas, falando alto nos bote-cos e gritando. O poeta prossegue afirmando que seu avanço ocorre por estar na ordem natural, embora não disponha de nenhuma certeza. Quem são os sujeitos desse avanço? Os filhos da desordem: poetas delirantes, profetas embriagados ou mutilados, infelizes, meretrizes, bandidos e desvalidos. Para a ordem estabelecida esta ação subversiva não admite censura, não tem decência e nunca terá.

Continua o poeta a afirmar que esta “desordem” com a qual a ordem não dialoga ganha uma força que resiste aos avisos que a não poderão evitar, faz movimentar os hinos, os risos e desembestar as crianças. Como avanço desta luta, os destinos vão se encontrar, o Padre Eterno vai abençoar o inferno que, embora não tenha vergonha nem governo, tem sentido e abre espaço para o diálogo ordem-desordem, violentos-violentados. Alguns analistas detectam fenômeno semelhante entre nós.

Há um projeto que indevidamente vamos chamar de projeto lum-pensinato, mas que talvez melhor fosse considerado como projeto dos marginalizados e dos desvalidos. Nesse projeto, andam todos aqueles que, de algum modo, foram lesados em sua possibilidade de prosseguir, foram roubados enquanto trabalhadores, desrespeitados em sua dignidade e que em função desses fatores perderam o sentido da vida. Violentados tornaram-se violentos até em relação àqueles que deveriam amar. Contra esse exército de estropiados, a prática da punição não resolve, até porque os repressores não conseguem ficar imunes à contaminação da dor do oprimido e não possuindo a sua força de resistência, desestruturam-se e passam a ter comportamentos fortemente geradores de mais violência. A benção do Padre Eterno, pela nossa leitura, representa o início do diálogo ordem-desordem e sem nenhuma imposição, porque a desordem, força inovadora, certamente continuará não tendo governo, vergonha ou juízo.

Agarrar-se a estes fundamentos mencionados e preservados nas circunstâncias seria simplesmente transformar-se numa ordem injusta; de fato, uma verdadeira desordem, e abandonar a marcha do exército dos estropiados que lutam contra as forças aviltantes sem nenhuma certeza, mas na esperança de um dia serem abençoados. Neste momento, esta-mos tentados a afirmar que desconhecer a força da desordem e tentar prosseguir em um esforço de construir sem ela, constitui imprudência, não funciona e acarretará maiores danos ainda. A punição da desordem – em si mesma violenta – como método para equacionar o problema não só não faz sentido como o agrava. A tomada de consciência deste fato pode ser vista na cidade do Rio de Janeiro, onde a desordem resistiu, deteve

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o processo de repressão e avança sobre ele, como se pode perceber nas constatações que seguem:

• A morte violenta vem aumentando significativamente.• A criação de pelotões especializados como o COBE não se tem

mostrado eficaz, pois são hospedeiros de uma ação violenta.

De fato, a romaria dos mutilados, em função da necessidade de viver com dignidade, está descendo os morros, ocupando espaços, aumentando sua força, como resposta à agressão que sofre no mundo do trabalho, na discriminação educacional, na falta de moradia e até na fome aviltante que os dizima. Se a repressão continuar, não haverá peni-tenciária e prisões de todos os tipos suficientes. Por força da demanda, os presídios encontram-se superlotados e a voz oprimida já passa pelas grades e desestabiliza as forças que a querem desconhecer e isolar; como acontece com o PCC.

Neste momento já aparece uma luz no fim do túnel com a criação da Polícia Pacificadora em muitas favelas cariocas e o crescimento de ações de educação popular, a partir deles e para eles. É estimulante a afirmação de um favelado: “Agora sentimos que o policial é um dos nossos e que se encontra aqui para nos ajudar e não nos reprimir”. Encontra-se ainda muito distante a solução do problema, mas já é um bom início do diálogo desordem-ordem.

Considerações finaisConstata-se que há um acelerado aumento da violência que se ex-

pande e penetra na igreja, escola e família e as perturba. Está pressuposto que a simples repressão não detém tal violência e até a amplia. Neste artigo, buscamos responder à questão: Pode a educação formal atual, como praticada no Brasil, contribuir para a solução deste problema?

Considerando que não se trata apenas de um problema educacional, embora ele esteja presente, a resposta à questão seria negativa. Por quê? Porque, de fato, ver e tratar a realidade com uma visão disjuntiva é não entendê-la, agredi-la e concorrer para o aumento da violência.

Esse conhecimento também simplificador desconhece a natureza do real, “destrói” os conjuntos e só chega à “inteligência cega”.

... esta nova, maciça e prodigiosa ignorância, é ela mesma ignorada pelos sábios. Estes, que não dominam, praticamente, as consequências das suas descobertas, também não controlam intelectualmente o sentido e a natureza da sua pesquisa (MORIN, s/d., p. 18).

A educação atual oferece certezas e promessas que não são cumpri-das e, por isto, gera frustrações e agressividade. Esta educação não ensina

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o convívio com a incerteza, é mutiladora e torna-se, ela mesma, violenta e violentadora, sem possibilidade de auxiliar no combate à violência.

Por fim, a educação atual, com base em um conhecimento simplifi-cador e disjuntivo, não dá conta de resolver o conflito ordem-desordem, que não pode ser tratado com uma visão compartimentada. O que a ordem e desordem podem representar para o combate à violência só ganha sentido quando encaradas juntas e como parte do real, porque “a desordem e a ordem crescem uma e outra no seio de uma organização que se complexificou” (MORIN, s/d., p. 92). Se esta educação não resol-ve, existe uma que pode ajudar? Estamos certos que sim. A Educação Complexa é uma das possibilidades.

Referências bibliográficasMORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996._______. Meus Demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997a._______. O Método – 1. A Natureza da Natureza. 3. ed. Publicações Europa- América, 1997b.______. Cabeça Bem-Feita; repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.______. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez/ Brasília: Unesco, 2000.______. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.ROSSI, Wagner G. Capitalismo e Educação. 2. ed. São Paulo: Editora Moraes, 1982.SANTOS, Sheila Daniela Medeiros dos. Sinais dos Tempos: marcas da violência na escola. Campinas: Autores Associados, 2002 (Coleção Educação Contempo-rânea).SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do Mundo. A metafísica do amor, a morte, a arte, a moral, o homem e a sociedade. 3. ed. São Paulo: Brasil Editora S.A., 1959.

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Reseñas

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O Messias-Profeta e os pobres: desa-fios do evangelho de Lucas

The Prophet-Messiah and the poor: challenges of the Gospel of Luke

El Profeta-Mesías y los pobres: desafíos del Evangelio de Lucas

Paulo Roberto Garcia

ResumoResenha do Livro Lockmann, Paulo Tarso de Oliveira. Jesus, o Messias Profeta. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2011. 220p.

AbstRActBook review of Lockmann, Paulo Tarso de Oliveira. Jesus, o Messias Profeta. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2011. 220p.

ResumenReseña del libro Lockmann, Paulo Tarso de Oliveira. Jesus, o Messias Profeta. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2011. 220p.

IntroduçãoO presente livro do Revmo Bispo Paulo Lockmann inaugura uma nova

série das publicações da EDITEO, a série “Teses”. O objetivo dessa série é de resgatar e socializar o resultado de pesquisas doutorais. As teses de doutorado no passado estavam relegadas às prateleiras dos programas de pós-graduação e, em alguns casos, ganhavam espaço em algumas bibliotecas de faculdades. Quando surgia a oportunidade de publicação, para tornar o texto mais agradável à leitura, as teses sofriam mutilações e adaptações. Com isso, uma parte significativa da pesquisa (em espe-cial nas indicações das notas de rodapé) se perdiam. Com o surgimento dessa nova série, temos acesso à pesquisa com toda a profundidade e abrangência definida pelo pesquisador.

Jesus, o Messias Profeta é um olhar aprofundado que cobre pratica-mente todo o evangelho de Lucas, tendo como ponto de partida os relatos da grande viagem encontrados em Lucas 9.51-19.48. Esse estudo é o resultado da tese de doutorado concluído pelo Bispo Lockmann, intitulada “A marcha do Messias-Profeta: Um estudo do relato da viagem de Jesus à Jerusalém no Evangelho de Lucas” defendida na PUC – Pontifícia Uni-versidade Católica – do Rio de Janeiro.

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186 Paulo Roberto GaRcia: O Messias-Profeta e os pobres: desafios do evangelho de Lucas

o livro: uma visão geralO livro está organizado em três capítulos que organizam a trajetória

de pesquisa. O primeiro capítulo é intitulado: O Evangelho de Lucas e o Lugar do

Interlucano. Ele abre a discussão acerca do lugar e das inter-relações do grande bloco da viagem de Jesus à Jerusalém, que o autor chama de interlucano, com o conjunto do evangelho. Deste modo, ao mesmo tem-po em que estabelece os vínculos entre a viagem e o evangelho, esse capítulo mapeia os temas principais do início do evangelho, analisando os relatos da infância, o ministério do Batista e, como não poderia deixar de lado, um olhar sobre as bem-aventuranças de Lucas.

O segundo capítulo é intitulado: O Interlucano – A narrativa da via-gem a Jerusalém – Lc 9.51-19.48. Nele temos o cerne da pesquisa e o desenvolvimento da tese: o interlucano como organizador do conceito do Messias-Profeta. Para isso o autor analisa e apresenta as ocorrências do verbo poreuomai (caminhar/marchar) nesse grande bloco e o define como o fio condutor dessa marcha do Messias-Profeta. Se a tese analisa essa marcha, em cada etapa dela surge um tema corolário que são os pobres como objeto dessa ação messiânica-profética. Esse é um tema recorrente em todas as unidades.

O terceiro capítulo é intitulado: A Morte do Messias-Profeta (Lc 13.31-35). Esse capítulo encerra a pesquisa abordando essa perícope central nessa marcha do Messias-Profeta e o confronto com Jerusalém, a cidade que mata os profetas. A relação Messias-Profeta é fundante na medida em que a esperança na Parusia do Filho do Homem une essas duas categorias.

Finalmente, há um Anexo intitulado Status questiones que na tese era o primeiro capítulo e onde encontramos um balanço geral das pes-quisas realizadas no evangelho de Lucas. Nele encontramos uma vasta bibliografia comentada e organizada que oferece uma visão da caminhada da pesquisa em torno do evangelho de Lucas.

A pesquisa exegética – um caminhoA metodologia exegética, paixão de todos os pesquisadores da Bí-

blia, é sempre um ponto que chama a atenção em todas as investigações científicas. O Método Histórico Crítico, que durante muito tempo foi quase um dogma na pesquisa do texto bíblico, hoje passa por um período de crítica. Há, inclusive, quem decrete a falência do método. Se por um lado devemos concordar com a crítica de que os seus pressupostos, ao priori-zarem a diacronia, tendem a se fixar nas tradições mais antigas, muitas vezes desejando se aproximar ao máximo do Jesus Histórico, excluindo, com isso, a memória de fé das diversas comunidades do cristianismo

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primitivo, por outro lado, essa posição crítica quanto ao método e seus pressupostos, não invalida os seus diversos passos e a contribuição que eles podem dar à pesquisa do texto. Aqui destacamos a contribuição desse livro. A crítica da redação (um dos passos metodológicos do Mé-todo Histórico Crítico) é base para reconstruir a intenção que formatou o evangelho como o conhecemos hoje. Ao invés de identificar e destacar o tipicamente lucano para, em um processo de exclusão da interferência redacional, encontrar as tradições primitivas que foram recebidas pelo evangelista, a pesquisa nesse livro valoriza e tem seu foco no tipicamente lucano. A redação é o objeto da pesquisa. Nela encontramos o sentido. O processo redacional aponta para, em uma percepção polissêmica, a possibilidade de interpretação do relato/evangelho. Ao mesmo tempo, uma vez que a redação é o objeto, a atenção recai sobre a realidade da comunidade. A ênfase aos pobres é constante no texto. Com isso, a abordagem exegética nos aproxima da realidade social da comunidade lucana, seus desafios e sua fé.

O Messias-Profeta - desafio para a caminhada da comunidadeAo final dessa apresentação, cabe destacar que na grande viagem de

Jesus à Jerusalém – bloco específico de Lucas e objeto dessa pesquisa – encontramos um confronto de expectativas teológicas. Em um mundo povoado pela fé em um Messias Rei, a viagem à Jerusalém, descrita por Lucas, descreve um Messias Profeta, crítico da realidade social e anunciador de um novo momento em que a sorte daqueles que sofrem é assumida por Ele, Jesus, e na Sua marcha à Jerusalém o enfrentamento dos poderes e a morte não são o último capítulo dessa história, e sim apenas o ponto de partida da caminhada missionária dos participantes dessa comunidade.

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O futuro da criação

The future of creation

El futuro de la creación

Leonardo Boff

RESUMOResenha do livro MOLTMANN, Jürgen; BASTOS, Levy. O futuro da criação. Com prefácio de Leonardo Boff e posfácio de Luiz Longuini Neto. Rio de Janeiro: Instituto Mysterium / Mauad X, 2011. 207p.

ABSTRACTReview of the book MOLTMANN, Jürgen; BASTOS, Levy. O futuro da criação. Com prefácio de Leonardo Boff e posfácio de Luiz Longuini Neto. Rio de Janeiro: Instituto Mysterium / Mauad X, 2011. 207p.

RESUMEN Reseña del libro MOLTMANN, Jürgen; BASTOS, Levy. O futuro da criação. Com prefácio de Leonardo Boff e posfácio de Luiz Longuini Neto. Rio de Janeiro: Instituto Mysterium / Mauad X, 2011. 207p.

Jürgen Moltmann, da Igreja Reformada alemã, talvez seja atualmente o teólogo mais representativo da cristandade. Possui uma vasta obra que recobre os tratados principais da teologia.

A importância dele se deriva de dois fatores principais: em primeiro lugar, sabe redizer o legado da tradição cristã em geral e em sua versão evangélica em especial, na linguagem do tempo atual, complexo e plu-rivalente. Não apenas rediz em nova linguagem, mas alarga o horizonte clássico e introduz correções quando necessárias. Prolonga a tradição com grande conhecimento das fontes e, ao mesmo tempo, inova.

Em segundo lugar estabelece um bem fundado diálogo com as correntes contemporâneas de pensamento seja humanístico seja científi-co. Famosa é sua Teologia da Esperança surgida como reação positiva à grandiosa obra de Ernst Bloch O Princípio Esperança. É um dos poucos teólogos que dialoga, com conhecimento de causa, com a questão ecoló-gica mostrando a cumplicidade do cristianismo com a crise ecológica e, ao mesmo tempo, as contribuições positivas que pode trazer.

Foi um dos primeiros teólogos europeus a reconhecer a Teologia da Libertação como uma contribuição original e positiva vinda da perife-ria, mas direcionada a toda a Igreja. A causa dos pobres e da justiça é inerente ao evangelho de Jesus.

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É neste contexto que Jürgen Moltmann reflete o tema clássico dos reformadores, o da Justificação. Mas não se pense que faça um discurso convencional de viés apologético. Ao contrário. Reconhece a importância do tema para toda e qualquer teologia cristã mas que ganhou centralidade com Lutero e com os demais reformadores. No processo da Justificação emerge o mistério da Trindade, a situação real do ser humano, decaída e necessitada de resgate, a gesta redentora do Crucificado e a ação do Espírito no refazimento da nova criação.

A cruz é chave para entender a ação da Trindade. A cruz é expressão do amor trinitário que, através do Filho, vai ao ponto de participar da dor do mundo e ir até ao inferno da solidão e da morte por estar junto dos seres humanos acorrentados pelo pecado e então libertá-los.

O pecado invadiu todas as dimensões da vida, a pessoal, a social e a cósmica. Ele representa uma maneira de destruição da vida em todas as suas formas, especialmente atualmente, como degradação da nature-za. A Justificação se estende a todas estas áreas. Critica Lutero por ter acentuado apenas o lado do sujeito e não ter percebido o social, a socie-dade feudal em decomposição e a relevância da revolta dos camponeses. A Justificação é reconciliação dos pecadores mas também das vítimas que ele fizeram com seus pecados, dimensão que a Teologia da Li-bertação acentuou e da qual Moltmann fez uma recepção criativa. Sem essa dimensão das vítimas a Justificação não aparece como reconci-liação integral. Ela é universal e envolve a todos, os culpados e suas vítimas. Somente assim se alcança o que a Justificação visa que é a restituição da criação original de Deus. A integridade destruída é desta forma restaurada. Aqui entra o perdão como categoria central, perdão a partir do reconhecimento do pecado e da culpa. Ele não permite que se fique preso ao passado, mas cria uma abertura para o futuro. O presente livro – O futuro da criação – é uma pareceria entre Jürgen Moltmann e um de seus discípulos e colaboradores, o teólogo brasileiro Levy da Costa Bastos.

Moltmann reúne quatro estudos, cada um de grande atualidade. No primeiro discute a teoria da evolução de Darwin. Aceitando sua visão de fundo, afasta-se dela, no entanto, ao sustentar, como tantos o fazem atualmente vindos das ciências da vida e da Terra, que a lei fundamental do universo não é a vitória do mais apto, portanto, da competição, mas a colaboração de todos com todos, garantindo assim a perpetuidade da biodiversidade e a coevolução de todos.

No capítulo segundo aborda um tema espinhoso do Juízo final so-bre o qual os teólogos têm pouco a dizer. Distancia-se da versão con-vencional católica e medieval do dies irae e da moderna evangélica, da aniquilatio mundi, para afirmar a instauração da justiça criativa de Deus

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em favor das vítimas e de uma justiça reparadora para os causadores das vítimas que serão transmutados pelo fato de serem redimidos junto com suas vítimas.

No terceiro capítulo sobre a Teologia Política ressalta a responsa-bilidade dos cristãos face à situação política deste mundo e se pergun-ta em que medida se realizam ou não os bens do Reino e como são tratados os pobres. Mostra os pontos de contato e de convergência entre a Teologia Política e a Teologia da Libertação latino-americana. Especial interesse ganha o quarto capítulo sobre o direito à resistência face a um mundo marcado por injustiças, guerras e violência generalizada. Aqui Moltmann revela grande coragem ao enfrentar diretamente as ques-tões polêmicas da resistência, da não-violência ativa e da antiviolência contra uma violência primeira. Face à tirania todo cidadão, afirma, tem o dever da resistência ativa. Em casos extremos, por amor às vítimas e por não fazer-se cúmplice dos crimes, às vezes, não lhe resta outra alternativa senão a resistência violenta. É o “engajamento amargo” que, ao assassinar o tirano, não dispensa o reconhecimento da culpa, pois tal ato não deixa de ser um assassinato para o qual, no entanto, há a absolvição.

Diz claramente: nossa questão básica não é quanto podemos avançar no progresso, mas em que medida nos é possível chegar a uma justiça que seja maior que a violência reinante.

De sua experiência de guerra e de prisioneiro por três anos, tirou as seguintes conclusões pessoais que cabe aqui referir por sua determi-nação e sinceridade: “primeira: nunca mais serviço militar: ‘Viver a vida sem armamentos’ (melhor é ser executado por ter rejeitado o serviço militar, do que tombar em Stalingrado!); segunda: esteja preparado para tirar a vida de um tirano, se você tiver forças e oportunidade para isso”. Como se infere, estamos diante de um teólogo de primeira grandeza, corajoso e determinado, cujo pensamento merece ser conhecido, pois é inspirador para a nossa própria realidade.

A segunda parte, maior, é a contribuição de Levy Costa Bastos. Talvez seja a melhor introdução ao pensamento de Jürgen Moltmann. Passam em revista os grandes temas do autor alemão, sempre com muito conhecimento da obra e com o rigor dos conceitos. Vai da Justificação, da teologia da cruz, da Santíssima Trindade, da cristologia centrada no Crucificado, do Espírito Santo como o motor da nova criação até culminar no Reino da Trindade.

Somos gratos ao Levy Costa Bastos por iluminar nossos problemas brasileiros e latino-americanos com as fecundas chaves de leitura de Jürgen Moltmann. Todos saímos admirados e enriquecidos.

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Um olhar sobre a exclusão da população em situação de rua

A look at the exclusion of the homeless

Una mirada a la exclusión de las personas sin hogar

Helmut Renders

RESUMOResenha do livro BARROS, Alcides Alexandre de Lima. População em situação de rua: um olhar sobre exclusão. São Paulo: Arteliterária, 2011. 248 p.

ABSTRACTReview of the book BARROS, Alcides Alexandre de Lima. População em situação de rua: um olhar sobre exclusão. São Paulo: Arteliterária, 2011. 248 p.

RESUMEN Reseña del libro BARROS, Alcides Alexandre de Lima. População em situação de rua: um olhar sobre exclusão. São Paulo: Arteliterária, 2011. 248 p.

Nos últimos trinta anos tem-se falado mais e mais em pastoral urbana. É o mérito de Alcides Alexandre de Lima Barros por ter contribuído para esta discussão com um estudo inédito a partir das suas experiências no trabalho com a população em situação de rua na cidade de São Paulo.

Em todas as partes da sua publicação, o autor conduz o/a leitor/a a uma perspectiva a partir das particularidades dessa população e desenvolve seu argumento em cinco capítulos. Em A problemática das ruas (p. 27-58), o autor problematiza os conceitos usados para descrever esta população, contextualiza o debate na história e especifica sua proposta através do “mapa da exclusão” de São Paulo. Segue O poder público e o povo em situação de rua (p. 59-86), capítulo importante para descrever o espaço legal do trabalho proposto e desenvolvido. Destacamos a importância desse capítulo para a construção da filosofia do trabalho junto à essa população: a contribuição cristã ou eclesiástica é vista como parte de um esforço maior da sociedade civil, tanto pelo poder governamental, como pela iniciativa privada, inclusive pelas ONGs (p. 67-70). Explicitamente são mencionados também os direitos da população em situação de rua (p. 75-79) e forma e atuação da assistência social em São Paulo (p. 80-87). Com introdução da questão dos direitos, o autor prepara a proposta de enfatizar no tra-balho, em primeiro lugar, a promoção da cidadania, que vai além daquilo que a assistência social oficial oferece. No próximo capítulo, A trajetória

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da exclusão: o circuito e as opções (p. 87-130), mostra-se mais uma vez a capacidade do autor de se entender em rede com outras iniciativas, desta vez, especificamente religiosas, tanto evangélicas como católicas e espíritas, mas também municipais e comerciais. Em tudo se percebe que o autor fala com profundo conhecimento do trabalho realmente desenvolvido pelas instituições diversas. No quarto capítulo, O perfil da população em situação de rua (p. 131-158), o mais curto, entretanto, para mim, o mais tocante e alarmante, conhecemos o cotidiano dessa população a partir de descrições e estatísticas; um trabalho minucioso e de grande valor para propor ações e programas. Muito interessante também o quinto capítulo, A religiosidade dentro de uma situação limite (p. 159-184), que mais uma vez oferece perspectivas e dados valiosos especialmente para igrejas que entendem o ser humano tanto como ser social e cidadão e também como ser cultural e religioso, com direito de acesso à religião e, especialmente, no momento do primeiro contato, o direito de acesso a uma oferta próxima do seu jeito de viver. Segundo o nosso ver, o autor abre, especialmente com este capítulo, o conceito da cidadania pelo aspecto do direito à religião, contribuição única e raramente discutida quanto à população em situação de rua. E não para por aí. Nos Anexos encontramos uma entrevista, o texto da lei referente à população em situação de rua, exemplos da produ-ção cultural (poesia) e religiosa (canções usadas nas celebrações) como um mapeamento de lugares que oferecem alimentação, hospedagem e, finalmente, um glossário, não dos termos teológicos da teologia urbana, mas das palavras usadas pelos/as moradores/as em situação de rua. É nesta combinação de relatos do cotidiano, do mapeamento de iniciativas, de estatísticas e descrições da vida real dessa população e do trabalho desenvolvido junto com ela que o livro representa um gênero próprio, mul-tifacetário, prático e muito concreto.

Pela natureza dessa obra, não esperávamos muita ênfase numa fundamentação bíblico-teológica, porém, gostaríamos de indicar o nosso interesse numa continuação nessa direção. Quais são os eixos bíblicos que dão sustento à proposta tão única e necessária de estar como igreja ao lado do povo em situação de rua? Quais são as ênfases teológicas que, eventualmente, impedem ou facilitam este tipo de ação? Quais são os impulsos bíblico-teológicos que por sua vez possam aprofundar o “olhar sobre a exclusão” (subtítulo do livro) por introduzir aspectos da existência humana que até possam ir além das experiências especialmente consi-deradas pelo autor?

Aconselhamos que todos que trabalham ou querem trabalhar com a população em situação de rua estudem este livro e entendam a neces-sidade da colaboração entre Estado, ONGs e Igreja para o bem dessa população, sem perder de vista uma contribuição importante da Igreja

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em lembrar que a recuperação do ser humano passa, muitas vezes, pelo atendimento adequado às suas necessidades religiosas. Que isso, nesta proposta, é desenvolvido com uma ampla sensibilidade de não ferir a dignidade humana e seu direito à escolha, representa um belo testemunho cristão.

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Documentos e DeclaraçõesDocument and Declarations

Documentos y Declaraciones

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Uma “mulher metodista pregadora” em 1775: capaz de mobilizar uma cidade inteira, mas – esquecida

A “woman Methodist preacher” in 1775: capable of mobilizing an entire city, but – forgotten

Una “predicadora metodista” en 1775: capaz de movilizar a toda una ciudad, pero – olvidada

Helmut Renders

A tarefa contínua de valorizar o ministério feminino, pastoral e leigoA história do papel da mulher no movimento metodista passou por

três grandes fases: no século 18, acompanhamos a conquista do re-conhecimento das suas atuações vanguardistas. Depois, no século 19, somos confrontados pelo seu progressivo silencionamento nas igrejas metodistas majoritárias, a Igreja Metodista Wesleyana da Inglaterra e a Igreja Metodista Episcopal nos Estados Unidos e, a partir do início do século 20, acontece uma reavaliação do seu papel fundamental e finalmente seu reconhecimento pleno enquanto o ministério pastoral feminino na década de 1930 do século passado.

Até 1930 a história do papel da mulher no metodismo brasileiro acompanha estas tendências. Assim, a Igreja Metodista Episcopal che-gou ao Brasil sem a bandeira da pastora metodista, mas, por outro lado, com o modelo da professora metodista, inclusive, no papel da liderança como diretoras de instituições de educação. Assim, já nas discussões que levaram à autonomia em 1930 e a consequente criação da Igreja Metodista do Brasil, ou seja, quando se formulava e discutia as carac-terísticas da igreja nacional, o tema esteve presente e foi até a votação. O que na época não ganhou a maioria necessária, passou pela criação de uma escola de diaconisas na década de 1950 e tornou-se realidade uma geração depois em 1970.

Entretanto, apesar desses avanços, houve paralelamente movimentos de silencionamento da importância da mulher metodista (RIBEIRO, 2009), ou seja, apesar do fato da existência do ministério pastoral feminino na

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Igreja Metodista desde 1970, precisa-se continuamente lembrar-se da sua história1, explicar suas bases bíblico-teológicas2 e refletir sobre as suas contribuições pastorais3.

Isso é por que as igrejas majoritárias brasileiras, como a Igreja Ca-tólica, uma boa parte das igrejas da missão como as comunidades batis-tas e a maioria das igrejas presbiterianas, inclusive as igrejas clássicas pentecostais como a Igreja Assembleia de Deus, não institucionalizaram o ministério pastoral feminino pleno. Para os metodistas isso deveria servir como uma alerta e, consequentemente, ser assumido como sua vocação contínua: o que não passa pela matriz religiosa do país, ou seja, o que não é ancorado na cultura precisa ser assunto contínuo do discipulado, da catequese e da educação cristã para se instalar (no caso de novos membros, especialmente aqueles recebidos por assunção de votos) e permanecer com convicção e firmeza.

O problema das fontes enquanto à participação da mulher metodista nas obras do próprio Wesley

Há uma linha de pesquisa metodista que destaca o caráter “progres-sivo” de John Wesley enquanto à participação da mulher metodista no movimento. Mais correto seria dizer: Wesley apreendeu com as mulheres: enquanto os homens leigos conquistaram seu espaço no movimento já na década de 1740 do século 18, as mulheres precisavam esperar até a década de 1770 (do século 18)4. Em seguida documentamos o impacto dessa decisão e – o silêncio de Wesley... Trata-se de uma notícia de uma mulher metodista pregadora do ano 1775, numa revista não religiosa inglesa chamada Gentleman’s Magazine:

1 Perspectivas históricas veja Reily (1989; 2ª edição 1997), Mesquita (2001; 2002, p. 99-105), Soares (2005, p. 35-50), Silva (2008, p. 25-37) e Ribeiro (2009).

2 Perspectivas teológicas veja Perreira (2003, p. 188-200), Boelher (2008, p. 107-122) e Renders (2010b, p. 91-106; 2011, p. 100-115).

3 Perspectivas pastorais veja Coutinho (2005, p. 137-150), Paula (2005, p. 121-136); Renders (2010a, p. 296-301), Ribeiro (2005, p. 151-160).

4 Isso se repetiu no metodismo brasileiro no século 20.

Gentleman’s Magazine, 08-09-1775*

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Como tradução propomos: “Uma mulher pregadora, que acompanhou o sr. John Wesley a Plymouth, foi até a [praça da] Parada, e juntou a maior multidão de pessoas já vista lá. A novidade de uma pregadora--metodista [woman-Methodist-preacher] tinha atraído a metade [da popula-ção] de Plymouth para escutá-la”. Quem procura comentário qualquer nas obras de John Wesley sobre esta ocasião, especialmente na suas cartas ou no seu diário, vai se descepcionar. Wesley documenta ter pregado no respectivo dia duas vezes em Plymouth (WESLEY, [08/09/1775 Diário], 1983, p. 465)5, mas não menciona a certamente memorável cena – que acabou ser tão inesquecível no imaginário inglês que foi capaz de fazer seu caminho até nas crônicas da Inglaterra (!) - , nem o fato de ter sido acompanhado por uma pregadora metodista neste dia. Isso surpreende, por que naquela época ele já tinha defendido publicamente o ministério pastoral feminino, visto por ele como extraordinário enquanto aos cos-tumes anglicanos, mas, tão característico para os metodistas como o ministério “extraordinário” da pregação leiga por homens. Assim afirma numa carta para Mary Bosanquet, primeira pregadora metodista aceita oficialmente por Wesley:

Creio que a força da causa repousa aí – no fato de teres um chamado extra-ordinário. Estou convencido de que o tem cada um dos nossos pregadores leigos; de outro modo não poderia aprovar sua pregação de modo algum. É claro para mim que toda a obra de Deus chamada metodismo é uma dis-pensação extraordinária da sua providência. Portanto, não me admiro que diversas coisas aconteçam aí que não se encaixam nas regras habituais de disciplina... (WESLEY, 1960, vol. 5 [13/071771], p. 257).

Há certa probabilidade que a pregadora que virou assunto nacional era a própria Mary Bosanquet, mas, infelizmente, não sabemos disso...

E nós hoje? Reparei-me num encontro de mulheres da 6ª Região Eclesiástica que precisamos de exercícios contra o esquecimento. Nesta ocasião, mulheres contaram as histórias de mulheres importantes para as suas vidas. Demorou até às 2h da madrugada... Tantas histórias, cheias de vida, de drama, de atitude... tanto impacto... Com certeza há também hoje em dia muitas histórias memóraveis de mulheres metodistas atuando nas igrejas locais, em ministérios distritiais, regionais e nacionais, na igreja e na vida pública, lembradas somente pelas pessoas que as diretamente testemunharam. Estas testemunhas desaparecem em nossa memória, da

5 Eu agradeço Dr. Randy Maddox pela ajuda na a identificação da data no diário.* Agradecemos pelo direito de reprodução a Bridwell Library da Perkins School of Theol-

ogy, Southern Methodist University, Dallas, Texas, EUA.

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mesma forma como o impacto deixado pela mulher metodista pregadora no dia 9 de setembro de 1775. Mas, não precisamos do seu exemplo de fé, amor, esperança, discernimento, coragem e liderança para orientar as futuras gerações?

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______. Rastros e rostos do protestantismo brasileiro: uma historiografia de mu-lheres metodistas. São Leopoldo: Oikos, 2009. 242p.SILVA, E. M. “Gênero, religião, missionarismo e identidade protestante norte--americana no Brasil ao final do século XIX e inícios do XX”. In: Mandrágora, vol. 14, p. 25-37 (2008). Disponível em: < https://www.metodista.br/revistas/revistas--metodista/index.php/MA/article/view/694/695 >. Acesso em: 20 ago. 2011.SIMONE, M. I. “A participação das mulheres no movimento metodista nascente: as extraordinárias irmãs metodistas”. In: Caminhando, vol. 8, n. 2, p. 57-65 (jul./dez. 2003). Disponível em: < https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/article/view/1418/1441 >. Acesso em: 20 ago. 2011. SOARES, Z. L. “Trinta anos de ministério pastoral feminino na Igreja Metodista”. In: RENDERS, H. (org.). Vocação pastoral em debate: Inclusive reflexões sobre 30 anos do ministério pastoral feminino na Igreja Metodista. São Bernardo do Campo: Editeo, 2005, p. 35-50.S.N. “8.” In: Gentlemans´s Magazine, [secção: Historical Cronical]” vol. 9, p. 428c (out. 1775).WESLEY, J. The Letters of Rev. John Wesley, A.M., sometime fellow of Lincoln College, Oxford. TELFORD, John (ed.), vol. 1-8. London: The Epworth Press, 1960. (1.ed.: London: The Epworth Press, 1931).WESLEY, J. The Bicentennial Edition of Works of John Wesley, vol. 22 BAKER, Frank (editor geral). Oxford: Clarendon Press, 1983.

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Registros

Records

Registros

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Relação de autores e autoras

Notes on contributors

Relación de autores y autoras

Dra. Blanches de PaulaPastora da Igreja Metodista em Santa Isabel, SP. É professora da Univer-sidade Metodista de São Paulo (UMESP) na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista e sua coordenadora do Curso Teológico Pastoral E-mail: [email protected]

Dr. Claudio de Oliveira RibeiroPastor da Igreja Metodista em Vila Floresta, Santo André, SP. É professor da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) na Faculdade de Teo-logia da Igreja Metodista e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.E-mail: [email protected]

Ms. Daniel Augusto SchmidtDoutorando em Ciências da Religião pela UMESP e professor no Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos.E-mail: [email protected]

Dr. Edemir Antunes FilhoPastor na Igreja Metodista em Vila Nivi, SP. Professor do Instituto Betel de Ensino Superior, SP.E-mail: [email protected]

Ms. Elena Alves SilvaPastora Metodista na Igreja em Jardim Colorado - 3ª RE. Professora e Coordenadora do Núcleo de Formação Cidadã da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Doutoranda em Ciências da Religião na UMESP.E-mail: [email protected]

Dr. Elias BoaventuraProfessor do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba, SP (UNIMEP).E-mail: [email protected]

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208 Helmut RendeRs: Registros

Ms. Elizabete Cristina Costa RendersPastora Metodista. Professora da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) na Faculdade de Humanidades e Direito, responsável pela Coor­denadoria de Extensão e Inclusão nesta mesma instituiçao.E­mail: [email protected]

Dr. Helmut RendersPastor nomeado para a Igreja Metodista em Rudge Ramos, São Bernardo do Campo, SP. Professor, Secretário do Centro de Estudos Wesleyanos e Coordenador da Editora Editeo da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).E­mail: [email protected]

Ms. Hideíde Brito TorresPastora metodista, escritora, jornalista, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).E­mail: [email protected]

Ms. Jéferson Luis de AzeredoProfessor na Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) e na Universidade Barriga Verde (UNIBAVE).e­mail: [email protected]

Dr. Leonardo BoffTeólogo e escritor. E­mail: [email protected]

Dra. Margarida Fátima Souza RibeiroPastora da Igreja Metodista em Santa Isabel, SP. É professora da Univer­sidade Metodista de São Paulo (UMESP) na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista e coordenadora do Centro Otília Chaves. E­mail: [email protected]

Dr. Paulo Roberto GarciaPastor da Igreja Metodista em Campos do Jordão, SP. É reitor e professor da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e professor no Programa de Pós­Graduação em Ciências da Religião da UMESP.E­mail: [email protected]

Ms. Renilda Martins GarciaPastora da Igreja Metodista. Doutorando em Educação na Pontifícia Uni­versidade Católica de São Paulo, PUC­SP.E­mail: [email protected]

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Dra. Suely Xavier dos SantosPastora Metodista. Professora da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista. E-mail: [email protected]

Ms. Vera Luci Machado Prates da SilvaPastora da Igreja Metodista, Mestre em Teologia Prática e doutoranda em Ciências da Religião pela UMESP.E-mail: [email protected]

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210 Helmut RendeRs: Registros

Pareceristas em 2011

Reviewers in 2011

Revisores y revisoras em 2011

Dra. Blanches de PaulaDr. Claudio de Oliveira RibeiroDra Débora Barbosa Agra Junker Ms. Edson Pereira LopesDr. Fernando Bortolleto FilhoDr. Helmut RendersDr. James Reaves FerrisDr. João Batista SantosDr. Josué Adam LazierDr. José Carlos de SouzaDr. Júlio AdamDr. Levy de Souza Bastos Ms. Luciano José de LimaDr. Luís Wesley de SouzaDr. Luiz Carlos RamosDra. Magali de Nascimento CunhaDra. Margarida Fátima Souza Ribeiro Ms. Marcelo da Silva Carneiro Dr. Marcos Paulo BailãoMs. Marcus Oliver ThroupMs. Nicanor LopesDr. Paulo Ayres MattosDr. Paulo Dias NogueiraDr. Rosa Gitana Krob Meneghetti Dr. Rui de Souza JosgrilbergDr. Saulo BaptistaDra. Suely Xavier dos SantosDr. Tércio Bretanha JunkerDr. Tércio Machado Siqueira

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Normas para colaboração

A Caminhando é uma revista científica publicada semestralmente pela Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo. Ela está aberta para pesquisadores/as e docentes/as da área da Teologia e das Ciências da Religião que possuam o grau de doutor ou mestre ou

estejam prestes a obtê-lo.

Apresentação de artigosO texto poderá ter no máximo 25.000 caracteres com espaços (digita-

das em espaço duplo, fonte Times New Roman Times 12 ou equivalente, margem 2,5 cm) incluindo-se notas e bibliografia. Os artigos submetidos à revista Caminhando deverão ser nacionalmente inéditos e não estar, no momento, sendo objeto de apreciação por quaisquer outros meios de publicação impressa. A página de rosto deverá conter o título do artigo, nome do autor, um resumo em português e, se for possível, também em inglês e espanhol (no máximo 250 caracteres com espaços). Como infor-mações sobre o/a autor/a solicitamos a titulação, a ocupação e o e-mail do/a autor/a. Os artigos serão encaminhados para um/a parecerista, com base nos quais o editor tomará a sua decisão. A remessa do artigo poderá deve ser feita via Internet no portal da revista Caminhando:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/user

Normas para rodapé e referências bibliográficasAs citações devem ser inseridas no corpo do texto, seguindo as for-

mas (Autor, ano) ou (Autor, ano, página) como no exemplo (WEBER, 1991, p. 95). Se houver, do mesmo autor, mais do que um título citado, deve-se acrescentar uma letra após a data, tal como no exemplo: (WEBER, 1991b, p. 32). As notas de rodapé estão reservadas para informações comple-mentares. A bibliografia ou referências bibliográficas, quando houverem, devem ser colocadas no final do texto e obedecer à norma NBR 6023 da ABNT, 2002. Seguem alguns exemplos:

Livro:

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212 Helmut RendeRs: Registros

SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. Título da obra: subtítulo. Número da edição se não for a primeira, Local de publicação, estado: editora, data.

RIBEIRO, Claudio de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

Artigo:SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. “Título do artigo”. In: Título

do periódico, número da edição, páginas (data).PAULA, Blanches de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11,

n. 17, p. 105-114 (2006).

Coletânea:SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. “Título do capítulo”. In:

iniciais do nome seguidas do sobrenome do organizador. Título da cole-tânea. Número da edição quando não for a primeira. Local de publicação, Estado: editora, data.

MENDONÇA, Antonio Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pós-graduação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Referências da Internet:Acresce-se, depois da citação do livro ou do artigo: Disponível em:

< link >. Acesso em: dia[s]/mês/ano (somente números).RAUSCHENBUSCH, Walter. For God and the People. Prayers of the

Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910. Disponível em: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rau-suoft >. Acesso em: 20/03/2009.

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Guides for contributors

Caminhando is an scientific journal published semesterly by the Faculty of Theology of the Methodist University of Sao Paulo. It is open to resear-chers and professors in the area of Theology and Religious Studies who have a doctor’s or master’s degree or who are about to acquire one.

The presentation of articlesThe text may have a maximum of 25,000 characters including spa-

ces (typed in double line spacing, Times New Roman font or equivalent, with a margin or 2.5 cm) notes and bibliography included. The articles submitted to Caminhando must be unpublished nationally and cannot be under appreciation by any means of press publication at the time. The title page must contain the article title, name of the author, an abstract in Portuguese and, if possible, in English and Spanish also (in a maximum of 250 characters including spaces). As information about the author we request the author’s academic degree, occupation and e-mail address. The articles will be submitted to an analyzer, and based upon his/her evaluation the editor shall decide. The article may be submitted by internet on the website of the Journal Caminhando:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/user

Criterions for quotations and bibliographical referencesThe quotations must be inserted in the text body following the format

(Author, year) or (Author, year, page), e.g. (WEBER, 1991, p. 95). Existing more than one title quoted by the same author, a letter must be added after the date, e.g. (WEBER, 1991b, p. 32). The footnotes are reserved for complementary information. A few examples on the rules above:

Book:AUTHOR’S SURNAME, first name. Title of the book: subtitle. Num-

ber of edition if it is not the first, place of publication, state: publishing house, date.

RIBEIRO, Claudio de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

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214 Helmut RendeRs: Registros

Article:AUTHOR’S SURNAME, first name. “Title of the article”. In: Title of

the periodical, number of edition, pages (date).PAULA, Blanches de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11,

n. 17, p. 105-114 (2006).

Collection of articles:AUTHOR’S SURNAME, first name. “Title of the article”. In: name

initials followed by organizer’s surname. Title of the collection of texts. Number of edition if it is not the first, place of publication, state: publishing house, date.

MENDONÇA, Antonio Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pósgraduação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Internet references:After the quoting of the book or article add: Available in:<link>. Access

in: day[s]/month/year (only numbers).RAUSCHENBUSCH, Walter. For God and the People. Prayers of the

Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910. Available in: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rausuoft >. Access in: 20/03/2009.

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Normas para colaboradores

Caminhando es una revista cientifica publicada semestralmente por la Facultad de Teología de la Universidad Metodista de São Paulo. Está abierta para investigadores/as y docentes del área de Teología y Cien-cias de la Religión que posean el grado de doctor o máster, o que estén próximos de obtenerlo.

Presentación de artículosEl texto podrá tener como máximo 25.000 caracteres con espacios

(digitados a doble espacio, tipografía Times New Roman 12 o equivalente y márgenes de 2,5 cm) incluyendo notas y bibliografía. Los artículos so-metidos a la revista Caminhando deberán ser nacionalmente inéditos y no estar, siendo objeto de apreciación por ningún otro medio de publicación impreso. La portada deberá contener el título del artículo, nombre del autor, un resumen en portugués y, caso sea posible, también en inglés y español (con un máximo de 250 caracteres con espacios). Solicitamos, como informaciones sobre el/la autor/a, la titulación, la ocupación y el e-mail. Los artículos serán enviados a un/a parecerista, basado en el/la cual el editor

tomará su decisión. La remesa del artículo se podrá hacer vía portal de la revista on-line:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/user

Normas para notas al pie y referencias bibliográficasLas citaciones deben figurar en el cuerpo del texto, siguiendo las

formas (Autor, año) o (Autor, año: Página) como en el ejemplo (WEBER, 1991, p. 95). Caso haya más de un título citado del mismo autor, se debe añadir una letra después de la fecha, tal como en el ejemplo: (WEBER, 1991b, p. 32). Se deben reservar las notas al pie para informaciones complementarias.

La bibliografía o referencias bibliográficas, caso existan, se deben colocar al fin del texto y seguir la norma NBR 6023 de la ABNT, 2002. A continuación, algunos ejemplos:

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216 Helmut RendeRs: Registros

Libro:APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. Título de la obra:

subtítulo. Número de la edición en caso de no ser la primera, Lugar de publicación, estado: editora, año.

RIBEIRO, Claudio de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

Artículo:APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. “Título del artí-

culo”. In: Título del periódico, número de la edición, páginas (año).PAULA, Blanches de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11,

n. 17, p. 105-114 (2006).

Coletánea:APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. “Título del capí-

tulo”. In: iniciales del nombre seguidas del apellido del organizador. Título de la coletánea. Número de la edición en caso de no ser la primera. Lugar de publicación, Estado: editora, año.

MENDONÇA, Antonio Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pós-graduação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Referencias de Internet:Añádase, después de la citación del libro o del artículo: Disponible

en: < link >. Acezado a: día[s]/mes/año (solamente números).RAUSCHENBUSCH, Walter. For God and the People. Prayers of the

Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910. Disponible en: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rausuoft >. Acezado a: 20/03/2009.

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Relação de Permutas

Journals exchange

Intercambio de revistas

ACTUALIDAD LITÚRGICA Boletín de La Comisón Episcopal para La Pastoral Litúrgica de México – MEX.

ANÁLISE E SÍNTESE Faculdade São Bento da Bahia – BRA.

THE ASBURY THEOLOGICAL JOURNAL Asbury Theological Seminary – EUA.

CADERNOS DA ESTEF Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, Porto Alegre, RS – BRA.

CADERNOS DE TEOLOGIA PÚBLICAUNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos São Leopoldo - BRA

CARTHAGINENSIAInstituto Teológico de Murcia, Murcia – ESP.

CAMINOS: REVISTA CUBANA DE PENSAMIENTO SOCIOTELÓGICOCentro Martin Luther King, Jr, La Habana – CUB.

CIÊNCIA DA RELIGIÃO, HISTÓRIA E SOCIEDADEInstituto Presbiteriano Mackenzie, São Paulo, SP – BRA.

COLETÂNEA Instituto Filosofia e Teologia do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, RJ – BRA.

COMPARTILHAR PASTORAL – REMNE Seminário Metodista Teológico do Nordeste – Região Missionária do Nor-deste da Igreja Metodista – BRA.

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218 Helmut RendeRs: Registros

CONTANDO NOSSA HISTÓRIA Instituto Teológico João Wesley, Centro Universitário Metodista IPA, Porto Alegre, RS – BRA.

CUADERNOS DE TEOLOGIA Instituto Universitário ISEDET – ARG.

DAVAR LOGOS Associación Colégio Adventista Del Plata – ARG.

DESAFIOS DA REMA Revista da Região Missionária da Amazônia da Igreja Metodista – BRA.

DIDASKALIA Faculdade de Teologia de Lisboa / Universidade Católica Portuguesa – POR.

ENCONTROS TEOLÓGICOS Instituto Teológico de Santa Catarina, Florianópolis, SC – BRA.

ESPAÇOS Instituto São Paulo de Estudos Superiores, São Paulo, SP – BRA.

ESTUDOS TEOLÓGICOS Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, São Leopoldo, SP – BRA.

FIDES REFORMATA Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper do Instituto Pres-biteriano Mackenzie, São Paulo, SP – BRA.

FRAGMENTOS DE CULTURAUniversidade Católica de Goiás, Goiânia, GO – BRA.

HERMENÊUTICA Seminário Adventista Latino Americano de Teologia, Cachoeira, BA – BRA.

HORIZONTE Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte, MG – BRA.

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HORIZONTE TEOLÓGICO Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos religiosos do Instituto Santo Tomás de Aquino, Belo Horizonte, MG – BRA.

IGREJA LUTERANA Seminário Concórdia, São Leopoldo, RS – BRA.

INICIAÇÃO CIENTÍFICA CESUMARCentro Universitário de Maringá-Cesumar, Maringá, PR – BRA.

KAIRÓS: REVISTA ACADÊMICA DA PRAINHA Faculdade Católica da Prainha, Fortaleza, CE – BRA.

LITTERARIUS Faculdade Palotina, Santa Maria, RS – BRA.

LOGOS: REVISTA DE FILOSOFIA Universidad La Salle – MEX.

MAIÊUTICA DIGITAL: REVISTA DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS AFINS Faculdade Batista Brasileira, Salvador, BA – BRA.

MIRADA Centro Ignaciano de Espiritualidad de Guadalajara – MEX.

MISSIONEIRA Instituto Missioneiro de Teologia, Santo Ângelo, RS – BRA.

OIKODOMEINComunidad Teológica de México, Coyoacan – MEX.

PASSO A PASSO Tear Fund.

PERSPECTIVA TEOLÓGICA Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – BRA.

PHRONESISPontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP – BRA.

PISTIS & PRÁXISPontifícia Universidade Católica de Curitiba, PN – BRA.

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220 Helmut RendeRs: Registros

PRÁXIS EVANGÉLICA Faculdade Teológica Sul Americana – BRA.

PREGAÇÃO & PREGADORESOPBB - Ordem dos Pastores Batistas do Brasil – BRA.

RAZÃO E FÉ Universidade Católica de Pelotas, RS – BRA.

REDES: REVISTA CAPIXABA DE FILOSOFIA E TEOLOGIAInstituto de Filosofia e Teologia, Vitória, ES – BRA.

REFLEXUS Faculdade Unida de Vitória, ES – BRA.

REFLEXÃO E FÉSeminário Teológico Batista do Norte do Brasil, Recife, PE – BRA.

REFLEXÃO TEOLÓGICA: ESTUDOS E PESQUISAS EM TEOLOGIA E MISSÕESSeminário Teológico Evangélico do Betel Brasileiro, São Paulo, SP – BRAS.

REFLEXUSFaculdade Unida de Vitória, Vitória, ES – BRAS.

REVISTA BRASILEIRA DE TEOLOGIASeminário Teológico Batista do Sul do Brasil, Rio de Janeiro, RJ – BRA.

REVISTA DE EDUCAÇÃO DO COGEIME Conselho Geral das Instituições Metodistas de Educação, São Paulo, SP – BRA.

REVISTA 18 Centro de Cultura Judaica – Casa de cultura de Israel, São Paulo, SP – BRA.

REVISTA DE CATEQUESE Centro Universitário Salesiano de São Paulo – BRA.

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Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. , jul./dez. 2011 221

REVISTA DE CULTURA TEOLÓGICA Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, SP – BRA.

REVISTA DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO UNICAPUniversidade Católica de Pernambuco, Recife, PE – BRA.

REVISTA DE FILOSOFIA Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR – BRA.

REVISTA IMPULSO Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP – BRA.

REVISTA INCLUSIVIDADECentro de Estudos Anglicanos, Londrina, PR – BRA.

REVISTA TEOLÓGICA Seminário Presbiteriano do Sul da Igreja Presbiteriana do Brasil, Campi-nas, SP – BRA.

REVISTA REFLEXÃOPontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP – BRA.

REVISTA REDESInstituto Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Faculdade Sa-lesiana de Vitória, ES – BRA.

REVISTA RELIGIÃO & CULTURAPontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – BRA.

RHEMA-REVISTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antonio, Juiz de Fora, MG – BRA.

TEAR: LITURGIA EM REVISTACentro de Recursos Litúrgicos da Escola Superior de Teologia, São Le-opoldo, RS – BRA.

TEO-COMUNICAÇÃOPontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS – BRA.

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222 Helmut RendeRs: Registros

THEOPHILOS: REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS – BRA.

TEOLOGIA Y VIDA: ANALES DE LA FACULDAD DE TEOLOGÍAPontifícia Universidad Católica de Chile, Santiago – CHL.

THEOLOGIE FÜR DIE PRAXISRevista do Seminário Teológico da Igreja Metodista Unida na Alemanha, Reutlingen – RFA..

TQ TEOLOGIA EM QUESTÃOFaculdade Dehoniana, Taubaté, SP – BRA.

REVISTA UNICLARUnião das Faculdades Claretianas, São Paulo, SP – BRA. VIA TEOLÓGICA Faculdade Teológica Batista do Paraná, Curitiba, PR – BRA.

VIDA Y PENSAMIENTOUniversidad bíblica Latino Americana, San Jose – CRI.

VISÃO TEOLÓGICAFaculdade de Teologia Batista Ana Wollerman, Dourados, MS – BRA.

VOX SCRIPTURAE: REVISTA TEOLÓGICA BRASILEIRAFaculdade Luterana de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Lute-rana no Brasil, São Leopoldo, RS – BRA.

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Bibliotecas parceiras

Partner libraries

Bibliotecas afiliadas

BIBLIOTECA DO CENTRO METODISTA DE CAPACITAÇÂO [CEMEC]São Paulo, SP.

BIBLIOTECA DA ESCOLA DAS MISSÕES [INFORM]Rio de Janeiro, RJ.

BIBLIOTECA DA FACULDADE DE TEOLOGIA CÉSAR DACORSO FILHORio de Janeiro, RJ.

BIBLIOTECA DO INSTITUTO METODISTA DA AMAZÔNIA [IMA]Porto Velho, RO.

BIBLIOTECA DO INSTITUTO TEOLÓGICO JOÃO WESLEYPorto Alegre, RS.

BIBLIOTECA DO INSTITUTO TEOLÓGICO METODISTA JOÃO RAMOSBelo Horizonte, MG.

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO METODISTA DE TEOLOGIA [CEMETRE]Maringa, PE.

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO METODISTA TEOLÓGICO DO NORDESTERecife, PR.

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO REGIONAL SCILLA FRANCOCampinas, SP.

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224 Helmut RendeRs: Registros

Diretórios e Indexações

Diretórios

Directories

Directorios

1. DOAJ – Directory of Open Access Journals [DOAJ]2. Ibict – Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas3. LivRE! – Portal para periódicos de livre acesso na Internet4. Methodistische Kirche WELTWEIT5. Online Wesleyan/Methodist Journals – Duke Center for Studies in the Wesleyan Tradition

Indexações

Indexation

Indización

Nacional:1. Sumários.org – Indexação de Revistas Eletrônicas Brasileiras2. J-Gate [India] - Informatics (India) Ltd.3. Portal de periódicos da CAPES Internacional4. DOAJ Content – Directory of Open Access Journals5. Latinindex

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