UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
DIRETORIA DE PÓS -GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
CAROLINA CAMPOS ALVES
Era Daniel um revolucionário macabeu?
Os santos e a revolta macabaica a partir da análise exegética e histórica de
Daniel 8,1-14
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2020
CAROLINA CAMPOS ALVES
Era Daniel um revolucionário macabeu?
Os santos e a revolta macabaica a partir da análise histórica e exegética de
Daniel 8,1-14
Dissertação apresentado à Universidade
Metodista de São Paulo, Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião, como
requisito parcial para conclusão do mestrado.
Orientação: Prof. Dr. José Ademar Kaefer
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2021
FICHA CATALOGRÁFICA
AL87e Alves, Carolina Campos
Era Daniel um revolucionário macabeu?: os santos e a revolta
macabaica a partir da análise histórica e exegética de Daniel 8,1-14 /
Carolina Campos Alves -- São Bernardo do Campo, 2020.
131 p.
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) --Diretoria de Pós-
Graduação e Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do
Campo, 2020.
Bibliografia
Orientação de: José Ademar Kaefer.
1. Bíblia - A.T. - Daniel - Crítica e interpretação 2. Apocalipse 3.
Bíblia - A.T. - Macabeus 4. Helenismo I. Título
CDD 224.506
A dissertação de mestrado intitulada: “Era Daniel um revolucionário macabeu? Os
santos e a revolta macabaica a partir da análise exegética e histórica de Daniel 8,1-
14”, elaborada por CAROLINA CAMPOS ALVES, será apresentada em 10 de maio de
2021, perante banca examinadora composta por: Prof. Dr. José Ademar Kaefer
(Presidente/UMESP), Prof. Dr. João Batista Ribeiro Santos (Titular/UMESP) e Prof. Dr.
Luiz Alexandre Solano Rossi (Titular/PUC-PR).
Prof. Dr. José Ademar Kaefer
Orientadora e Presidente da Banca Examinadora
Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Programa: Mestrado em Ciências da Religião
Área de Concentração: Linguagens da Religião
Linha de Pesquisa: Literatura e Religião no Mundo Bíblico
Agradecimentos
Primeiramente a Deus, a quem recorri em diversas madrugadas.
À minha família, que não só ficou me ouvindo compartilhar sobre as minhas
descobertas, como também me apoiou e me animou durante toda a minha jornada.
Ao meu orientador, Prof. Ademar, pela dedicação, competência e
a gigantesca confiança que depositou em mim desde o dia em que
conversamos sobre esta pesquisa.
Ao professor João Batista, a quem sempre serei imensamente grata.
À minha querida tia Monica, que sempre tem me apoiado em minha jornada
acadêmica; ao meu querido tio Esdras, que me incentivou nos estudos de hebraico;
e à Cheila, que pacientemente corrigiu esta pesquisa.
À minha igreja, que sempre intercedeu por mim.
Resumo
O segundo século antes de Cristo foi um período muito conturbado na Judeia, especialmente durante o domínio selêucida regido por Antíoco IV Epífanes. No meio de tantos acontecimentos, um grupo rebelde se levanta contra o governo vigente. A presente pesquisa tem como texto base a perícope de Daniel 8,1-14, narrativa apocalítica sobre a visão tida por Daniel, onde um carneiro e um bode combatem até que o carneiro é aniquilado pelo seu oponente. Para uma melhor compreensão, dividimos nossa pesquisa em três partes. Na primeira parte apresentamos um panorama geral do livro de Daniel, seguido pelo estudo exegético da perícope de Dn 8,1-14. Na segunda parte apresentamos, a partir de elementos levantados na exegese, o contexto histórico que o autor deixou transparecer no decorrer da narrativa. Na última parte da pesquisa retomamos alguns conceitos abordados na primeira parte e aprofundamos o seu estudo tendo como objetivo identificar o grupo rebelde manifesto no texto e sua semelhança com os macabeus.
Palavras-chave: Daniel; apocalipse; revolta macabaica; helenismo; santos
Abstract
The second century BC was a very troubled period in Judea during the Seleucid rule under Antiochus IV Epiphanes. In the midst of so many events, a rebel group stands up against the current government. The present research has as its base text the passage of Daniel, the apocalyptic narrative about Daniel’s vision of a ram and a goat fighting with each other until the ram be annihilated by its opponent. For a better comprehension of our research we have divided it into three parts. In our first part, we presented an overview of Daniel’s book, followed by the presentation of out text and an exegetical study of our passage, Dn 8,1-14. In the second part, we presented from the elements raised in the exegesis carried out the historical context referred to by the author’s narrative. In our last part of our research, we resumed some concepts, words dealt with in the first part and deepened their study with the objective of analyzing the similarities between the narrative and a rebel group, the Maccabees.
Keywords: Daniel; apocalypse; rebellion of the maccabees; Hellenism; saints
SUMÁRIO
1 “DANIEL, HOMEM MUITO AMADO...” ................................................................... 14
1.1 Datação .......................................................................................................................... 14
1.2 Autoria ........................................................................................................................... 15
1.3 Estrutura ....................................................................................................................... 17
1.4 Idiomas .......................................................................................................................... 21
1.5 Gêneros Literários ........................................................................................................ 23
1.5.1 Relatos da Corte ...................................................................................................... 23
1.5.2 Visão Apocalíptica e Gênero Apocalíptico .............................................................. 23
1.6 Análise Exegética de Daniel 8,1-14 .............................................................................. 26
1.6.1 Tradução Interlinear ................................................................................................. 26
1.6.2 Tradução Literal ....................................................................................................... 31
1.6.3 Delimitação da Perícope .......................................................................................... 32
1.6.4 Coesão ..................................................................................................................... 33
1.6.5 Estrutura .................................................................................................................. 38
1.6.6 Análise Literária: Gênero Textual ............................................................................ 39
1.6.7 Comentário Exegético ............................................................................................. 42
1.7 Considerações Preliminares ......................................................................................... 56
2 O CONFRONTO ENTRE O CARNEIRO E O BODE: CONTEXTO HISTÓRICO ... 59
2.1 Belshazzar: a Queda da Babilônia .............................................................................. 59
2.2 Susan, em Elam; o Berço do Carneiro ........................................................................ 62
2.3 O Carneiro: o Início de um Novo Império ................................................................. 68
2.4 O Bode e o Grande Chifre: o Surgimento de uma Nova Era ................................... 73
2.5 O Inevitável Encontro Entre o Bode e o Carneiro ..................................................... 75
2.6 A exaltação do Bode e a Ruína do Grande Chifre ..................................................... 83
2.7 Os quatro chifres: Solução para o Inesperado ........................................................... 84
2.8 O Pequeno Chifre: a Nova Onde de Poder ................................................................. 87
2.9 Em direção ao “Belo”: o Ponto Estratégico Militar .................................................. 95
2.10 Considerações Preliminares ....................................................................................... 98
3 O LEVANTE DOS SANTOS: SURGIMENTO DENTRO DA NARRATIVA E SEU REFLEXO NA SOCIEDADE .................................................................................... 101
3.1 O Helenismo sob a Ótica Piedosa .............................................................................. 102
3.2 O Exército de os céus e das estrelas (ים וכב א ומן־הכ ים והצב א השמ 109 ........................... (צב
3.3 Denominação dos Santos e sua Proximidade aos Rebeldes .................................... 116
3.4 A Resposta para o Lamento dos Santos .................................................................... 122
3.5 Considerações Preliminares ....................................................................................... 125
4 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 126
BIBLIOGRAFIA: ...................................................................................................... 128
12
Introdução
A presente pesquisa tem como base principal a narrativa localizada no livro de
Daniel 8,1-14, cuja perícope discorre acerca da visão tida, atribuída ao personagem
Daniel, ainda nos dias do reinado de Belshazzar, rei da Babilônia.
A partir desta narrativa apocalíptica buscamos compreender os simbolismos
contidos nela e assim nos deparamos com o período ao qual ela descreve com
minuciosos detalhes acerca de um período muito posterior ao dito no início da
perícope, isto é, a revolta macabaica. Movidos por esta provocação que surgiu
conforme íamos nos aprofundando no estudo desta narrativa buscamos analisar a
perícope dividindo este estudo em três partes com o intuito de discorrer tanto quanto
possível acerca deste tema, contanto sem conseguir esgotá-lo.
No primeiro capítulo desta pesquisa introduzimos o tema, tendo como ponto de
partida uma apresentação geral sobre o livro de Daniel, apresentando assim uma base
sobre a obra, ao passo que se possibilitou observar os propósitos contidos dentro da
obra que corroboraram para nos manter seguindo a provocação mencionada acima.
Descrevemos ainda que de maneira breve os tópicos que ainda se encontram em
discussão para alguns autores sobre o livro de Daniel, como a sua autoria e datação
da obra.
Analisamos, também de maneira breve, os gêneros narrativos presentes no
livro, a estrutura e divisão da obra, os idiomas que compuseram os textos de Daniel.
Seguimos então para a análise exegética da nossa perícope de Daniel 8,1-14,
trazendo nossa própria tradução interlinear, seguida pela nossa tradução literal, o que
nos permitiu uma maior aproximação e conhecimento maior acerca da narrativa aqui
trabalhada.
Avançamos com nossa pesquisa delimitando nossa perícope, realizando a
análise da coesão, para que assim pudéssemos estruturar a nossa perícope. Após
estas etapas concluídas analisamos o gênero textual de nossa perícope o que
corroborou para a realização do comentário exegético. No comentário exegético
analisamos os simbolismos contidos em nossa perícope, não esgotamos neste
primeiro capítulo esta análise sobre os símbolos, mas abrimos links que buscamos
retomar no decorrer dos capítulos seguintes.
13
No segundo capítulo, sentimos a necessidade de realizar uma apresentação
histórica, visto que os símbolos, retomados do capítulo anterior, ilustravam períodos
históricos distintos. Ao realizar esta retomada e executar a leitura histórica deles, se
buscou compreender qual teria sido o motivo ou necessidade do autor, ou redator
final, em citar tais períodos históricos e expô-los em seu texto seguindo uma linha
cronológica. Ao realizar tal exercício nos preocupamos em apresentar cada período
histórico dentro deste capítulo, procurando não se deter de maneira exaustiva, afinal
nos focamos em analisar fundamentalmente o período helênico, principalmente
durante o ano em que surgiu a revolta macabaica. Entretanto notamos que não seria
possível fazer a correlação de símbolos se não citássemos a todos, ainda que
brevemente, se o fizéssemos poderíamos estar comprometendo a nossa análise e
possivelmente perdendo aspectos importantes da análise total.
No terceiro e último capítulo de nossa pesquisa, retomamos os aspectos mais
destacados de nossa pesquisa com o intuito de agora correlacioná-los com o período
macabaico e assim como a provocação do título desta pesquisa, buscar encontrar o
rebelde Daniel em meio aos macabeus. Para isso analisamos novamente alguns
indícios encontrados na perícope que não só apontaram para os macabeus, como
poderiam de alguma forma estar relacionado com a revolta organizada pelos
macabeus. Desta forma neste capítulo, nos propomos a observar como o discurso
religioso, seja por texto, ou através da tradição oral, pode influenciar aos judaítas para
que estes tomassem parte na revolta macabaica. Afinal eles se encontravam num
período difícil onde havia perseguição e morte, mas, ainda assim, eles se arriscaram
para tomar parte numa luta justificada pela fé, no qual buscaram proteger as suas
tradições, seus ideais, suas ideologias e os seus traços culturais intactos com a
chegada de uma nova cultura imposta pelo governo vigente.
14
1 “DANIEL, HOMEM MUITO AMADO...”
“E ele disse para mim: - Daniel, homem muito amado, entenda as palavras que eu digo para você”
Dn 10,11a (Tradução Própria)
O livro de Daniel é uma obra um tanto intrigante, quanto desafiadora. Com
narrativas cheias de coragem e desafios a serem encarados, podemos ver no decorrer
da obra o caráter de um herói ser apresentado ao seu leitor, ao mesmo tempo em que
este vai sendo formado conforme o desenrolar da sua história.
Ao desdobrar-se em acompanhar as aventuras de Daniel e seus amigos na
Babilônia, o leitor é envolvido a buscar compreender o que faz com que este jovem
lute com tanta força para manter os seus valores e as suas crenças intactas, ainda
que o seu cenário se apresente contrário às perspectivas ideais. Em terra estrangeira,
longe da família, com sua terra natal totalmente destruída, mas com as chamas da
esperança acesas, é nesta luta que vemos Daniel na terra da Babilônia.
1.1 Datação
As discussões sobre o livro de Daniel são inúmeras e começaremos com o
debate acerca da possível datação deste livro. Devido aos temas e relatos presentes
na obra, percebe-se uma soma de indicações temporais que distanciam em muito um
relato de outro contido na obra.
As duas datações mais defendidas acerca desta obra são a exílica e a pós
exílica. A primeira chega até mesmo a afirmar que “Daniel seria o autor do livro […].
O livro teria sido produzido durante o período do exílio babilônico no século VI a.C.”
(ANDRADE, 2013, p. 47). Esta teoria possui como bases os seguintes argumentos
que seriam as próprias passagens do livro de Daniel (ex: 1,5 – 5,29; 7,1; 8,1; 9,1; 10,1)
e o estilo em primeira pessoa (EU) principalmente nos capítulos de 7 a 13. Enquanto
as partes conflitantes da obra seriam “consequência de modificações posteriores do
texto dito original” (ANDRADE, 2013, p.47).
15
A segunda teoria afirma que a obra de Daniel pertence ao período pós-exílico,
possuindo suas bases principalmente em textos como o Dn 7,8, por exemplo, onde
há relações entre as figuras utilizadas nas narrativas e personagens históricos.
Para Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002, p.1264), é fato de que esta obra e o
seu personagem principal tenham sido muito populares no período pós-exílico, além
da obra também retratar em sua grande parte a situação vivida durante o século II a.C.
Segundo Andrade (2013, p.47):
[...] a teoria macabéia localiza o livro de Daniel no II século a.C. A argumentação desta teoria baseia-se nos textos de Dn 7. 8 e Dn 7. 25 nos quais “o chifre” é identificado com a figura de Antíoco IV, e a sua tentativa de “mudar os tempos” estaria se referindo ao decreto religioso expedido por este mesmo rei em 168/7 a.C. helenizando o culto no santuário Jerusalêmico [Dn 8. 9; 11. 13; compare 9. 27; 11. 21, 31].
Refletindo a perseguição religiosa vivida durante os tempos de Antíoco IV
Epífanes, o povo começará a se questionar acerca de até quando estas coisas
haveriam de acontecer. No meio deste período de grande necessidade, Daniel
assumirá o papel fundamental de ser o porta-voz dessa revelação divina de libertação
social e política.
Por isso, se leva a crer que esta obra não seja provinda do período anterior ao
pós-exílio, mas que pertença a ele tocando mais especificamente aos acontecimentos
que datam ao surgimento e rebelião Macabaica. Além de que, esta é uma obra que
contêm muitos detalhes específicos acerca da vida e situações enfrentadas pelas
pessoas do século II a.C., assim como aos desenlaces políticos como veremos mais
adiante.
1.2 Autoria
Podemos afirmar que nos deparamos com o mesmo problema quando partimos
para a discussão acerca da autoria desta obra. Inicialmente foi subentendido e
defendido que o próprio Daniel seria o autor, principalmente por Jerônimo de
Estridônia, um entusiasta da apologética, o que posteriormente foi contestado
veemente.
16
Um episódio curioso acerca da discussão sobre a autoria do livro de Daniel é
apresentado por Asurmendi (2004, p.415). Enquanto Jerônimo de Estridônia defendia
veemente a autoria de Daniel, um filósofo pagão chamado Porfírio discordava dele
argumentando que as profecias de Daniel eram prophetiae ex eventu. Até o século
XIX, este filósofo pagão foi a única exceção, até então documentada, de não
concordar com a autoria de Daniel.
Os motivos, segundo esses autores1, se devem à variação da figura no qual o
protagonista possui, que é diversificada quando comparada às tradições presentes na
própria narrativa. A exemplo dessa afirmação, podemos citar principalmente os
capítulos 4,5; 5,10-12, onde Daniel é retratado como um chefe dos magos e/ou
adivinho da corte Babilônica. Já nos capítulos 2,48; 6,3s; 8,27 é retratado como uma
figura política. Quando se analisa a tradição grega, isto é, o capítulo 13,45s, Daniel
aparece como um jovem desconhecido, porém em 14,2 ele assume o papel de um
importante membro da corte babilônica. A Septuaginta se refere a Daniel em 14,2
como um sacerdote.
Além dos motivos listados anteriormente se percebe que Daniel no decorrer da
história adquire traços lendários e/ou contraditórios. Sua obra ainda traz conteúdos
provindos de tempos e pano de fundo muito além do tempo retratado em algumas
narrativas. O que leva ao leitor a situar a sua leitura em dois períodos totalmente
diferentes e distintos, isto é, primeiramente o período babilônico, seguido pelo período
medo-persa.
Fazendo um cálculo rápido estamos lidando com um primeiro período que
ocorreu entre os anos 626-539 a.C. (babilônico) seguido por outro que aconteceu
entre 538-331 a.C. (persa). Seus textos apontam e retratam a história que culminará
com um período bem posterior ao helênico em 323-30 a.C. São datas longínquas
umas das outras, sem contar as dinastias pelas quais Daniel teria ‘visto’ e ‘servido’
durante a sua vida.
Observando a datação afirmada acima, se concorda que a autoria desta obra
também pertença a alguém que possua conhecimento sobre o desenrolar da história.
Leva-se “em conta o que já aconteceu sem preocupar-se com exatidões históricas”
(ANDRADE, 2013, p.48), principalmente quando estas envolvem datas históricas.
1 ALONSO SCHÖKEL, SICRE DÍAZ, 2002, p.1264-1265; PAGÁN, 2010, p.119-120; ASURMENDI,
2004, p.416.
17
Dessa forma, o autor faz uso de um personagem no qual há uma construção
que passa ao leitor confiança, é um jovem justo, fiel, que alcança a sabedoria por não
se misturar com o que era pagão. Alcança assim a graça de Deus que lhe permite
então ter visões acerca do período vivencial das pessoas do século II a.C. Não apenas
isso, mas os escritos de Daniel marcam uma profunda influência não apenas no
pensamento judaico, mas também corrobora para o desenvolvimento de uma
literatura. “Tal influência pode ser constatada nas referências feitas aos textos de
Daniel em outras obras como o livro dos Macabeus, os Oráculos Sibilinos, a obra de
Flávio Josefo e os textos da comunidade de Qumran” (ANDRADE, 2013, p. 46-47).
Logo, se compreende que Daniel foi mais do que apenas um texto religioso. Ao
que tudo indica, teve também um papel marcante dentro de uma sociedade, refletindo
assim na citação dele em diversas outras obras e sendo conhecido por diversos
círculos pertencentes a sociedade judaíta.
1.3 Estrutura
O livro de Daniel pode ser estruturado em três partes, se considerada a tradição
grega. Nesta parte da análise geral há uma grande concordância entre os estudiosos2
especialmente nos capítulos 1 a 6 no conteúdo histórico do livro que passeia pelos
reinados de Nabucodonosor, Belshazzar, Ciro e Dario. Segundo Kaefer (2005, p.163),
esta primeira parte do livro de Daniel se assemelha com a novela de José do Egito
em Gn 37,2-50,26, tendo como principal diferença que o conteúdo de suas revelações
nem sempre trazem algum favorecimento ao rei.
Embora a estruturação do livro nos apresente narrativas dissemelhantes,
segundo Asurmendi (2004, p.414), há uma série de elementos específicos que
pretendem relacionar as partes do livro, buscando fazê-lo parecer uma unidade.
O livro começa apresentando Daniel, o protagonista da obra e seus três amigos,
jovens sendo levados à Babilônia como cativos e sendo inseridos na corte. Estes se
apresentam como fiéis ao Deus de Israel, se recusando a se contaminar com as
iguarias servidas sob a ordem do rei babilônico. A escolha de se manter abstenho de
2 KAEFER, José Ademar, 2005, p.163; KRATZ, Reinhard G., 2001, p.91; ASURMENDI, J. 2004,
p.414 (embora ele acresça em sua divisão a terceira parte que possuí os relatos gregos), entre outros.
18
tais iguarias resulta em bênção divina que os torna mais fortes e sábios que os outros
jovens (Dn 1,15-17).
Então o rei Nabucodonosor tem um sonho no qual seu espírito fica ansioso, por
isso chama a todos os seus magos e adivinhos para que estes decifrem o seu sonho
e o interpretem. Não há ninguém na corte a não ser Daniel que seja capaz de fazer
isso, o jovem com a aprovação divina se apresenta perante o rei e traz tanto o sonho
quanto a sua revelação ao conhecimento deste (Dn 2, 26-45).
A seguir se narra o episódio em que o rei Nabucodonosor levanta uma estátua
de ouro no qual todos os seus convidados (sátrapas, magistrados, governadores,
conselheiros, etc.) devem se curvar e adorar ao ouvir a música ser tocada. Porém, os
amigos de Daniel, Sadraque, Mesaque e Abedenego, são os únicos que se recusam
a fazer tal referência preferindo ser jogados na fornalha de fogo ardente (Dn 3,16-19).
Segue-se com o cântico de Azarias (isto é, na versão grega), e dos três jovens dentro
da fornalha. Após a prova de fidelidade, o Deus dos jovens os salva e mais uma vez
o rei reconhece e professa o Deus deles como único.
É introduzido na narrativa mais um sonho que o rei Nabucodonosor tem (Dn
4,5-18), o qual Daniel interpreta e prediz ao rei que este será expulso do meio dos
homens, perdendo o seu posto como rei da Babilônia e se comportando como um
animal por um certo período, como um castigo a ser pago por causa da sua soberba.
Seu filho Belshazzar sobe ao trono no lugar do seu pai e certa vez deu uma
grande festa (Dn 5,1-4). Sob efeito do vinho mandou que trouxessem as taças de ouro
e prata trazidas pelo seu pai do templo de Jerusalém. Assim foi feito e enquanto estes
bebiam nos utensílios sagrados e entoavam aos seus deuses, eis que uma mão
apareceu e escreveu na parede. Ninguém soube decifrar os escritos, mesmo tendo
uma grande quantia oferecida como recompensa. Daniel foi convocado e, mais uma
vez, o herói tem êxito em interpretar a mensagem divina, revelando que o trono seria
retirado das mãos de Belshazzar. Isso ocorre na mesma noite, quando Dario toma o
controle da Babilônia pondo fim a este grande império e iniciando a era persa.
O sexto capítulo conta a história de Daniel que vai para a cova dos leões devido
à inveja dos sátrapas. Porém, ao decidir desobedecer ao decreto feito pelo rei Dario,
Daniel acaba achando graça aos olhos de YHWH que o livra da cova dos leões
impedindo que estes o atacassem, mas quanto aos seus inimigos o mesmo não ocorre
quando estes são lançados na mesma.
19
É a este forte herói que, tendo o favor de YHWH, é conferido o dom de ver as
‘revelações’ acerca do futuro. Pode-se analisar que nesta primeira parte da obra há
uma dedicação do seu autor em forjar o caráter do herói que é testado por diversas
situações, mas não se deixa desviar da vontade de YHWH que o acompanhou durante
o seu trajeto na terra do cativeiro. Destaca-se aqui que esta primeira parte do livro se
encontra narrada em terceira pessoa.
Na segunda parte do livro de Daniel os capítulos 7 a 12 são constituídos das
quatro visões com teor ‘profético’ apocalíptico envolvendo eventos que apontam para
o período helênico em que Antíoco IV Epífanes é líder na Judeia. Todas as narrativas
se encontram em primeira pessoa.
A primeira visão (Dn 7) é descrita como ocorrendo durante o reinado de
Belshazzar e diz respeito às quatro feras (leão com asas de águia, urso, leopardo,
fera com dentes enormes e com dez chifres). Daniel as viu em seu sonho, as quais
saiam do mar e somente com a ajuda de um intérprete este consegue compreender o
significado desta visão.
Logo em seguida outra visão é relatada (Dn 8), também ocorrendo durante o
reinado de Belshazzar, em que um carneiro é derrotado por um bode extremamente
forte. Assim como na primeira visão, Daniel é auxiliado por um intérprete (desta vez o
anjo Gabriel) para compreender o significado destas coisas. É indicado nesta visão o
poder crescente de Antíoco IV Epífanes.
Depois de orar e se consagrar (Dn 9,3) buscando em YHWH a resposta acerca
de quando os cativos voltariam a Jerusalém, Gabriel aparece para lhe explicar a
profecia das setenta semanas. Esta narrativa possui o enfoque em descobrir o
desfecho ao qual Jerusalém teria e quando haveria de ocorrer a sua salvação.
A próxima visão desta vez é relatada como recebida durante o reinado de Ciro
(Dn 10), desta vez sobre um homem vestido de linho, mais uma vez somente através
do auxílio de um intérprete lhe é dado o conhecimento de sua visão. É lhe feito um
anúncio profético sobre as primeiras guerras entre os selêucidas e lágidas,
destacando as grandes perdas e prejuízos que o povo haveria de enfrentar, lhe é dito
então acerca de Antíoco IV Epífanes. A narrativa prossegue e lhe é anunciado qual
será o fim do perseguidor.
Por fim, Daniel tem outra visão, a profecia de dois homens no rio, uma pergunta
acerca da duração de todas essas coisas enquanto o outro lhe fornece as respostas.
20
Quando Daniel questiona o significado de suas palavras lhe é dito que eram palavras
seladas para o fim dos tempos.
É nesta segunda parte da história que é conferido ao herói o privilégio de ter as
visões que “preconizam o fim dos impérios: julgamento, condenação e destruição”
(KAEFER, 2005, p.163). Além de apresentar dois fortes temas teológicos: a
ressurreição e o martírio.
Interessante observar, segundo Kratz (2001, p.91), que enquanto na primeira
parte do livro, Daniel é capaz de adivinhar e interpretar sonhos, na segunda parte da
obra ele é capaz de ser o receptor de visões no qual o significado sempre se
dependerá de um angelus interpres.
Nota-se que dentre estas visões apresentadas na segunda parte do livro que a
sua ênfase histórica possui certa proximidade, semelhança com as denúncias dos
livros de Macabeus acerca do período histórico em que eles estavam inseridos, isto é,
durante o reinado do império selêucida.
Na tradição grega3 (que pode ser considerada como uma terceira parte do livro,
Dn 13 – 14) ainda se encontra às segundas narrativas acerca de Daniel: o julgamento
de Daniel no caso de Susana filha de Helcias, mulher de Joaquim que sofreu falsa
acusação por se recusar a se entregar para os anciãos que buscaram por uma
oportunidade para estuprá-la. Neste episódio se revela mais uma vez ao leitor acerca
da sublime sabedoria de Daniel em resolver o caso; Daniel contra os sacerdotes de
Bel quando estes comiam os manjares oferecidos ao deus Bel e diziam que era o seu
próprio deus que os comia; Daniel e a serpente divina, que também era venerada
pelos babilônicos, quando indagado pelo rei do porquê Daniel não se prostrava diante
da serpente este entrou numa ‘competição’ com o rei e derrotou a serpente, trazendo
a indignação do povo sobre si; por pressão do povo o rei entrega Daniel na mão deles
que o jogam na cova dos leões, onde desta vez foi mantido preso lá por 6 dias.
Mais uma vez nada lhe aconteceu durante este tempo, pois Deus o susteve,
quando liberto o rei jogou aos leões todos os que lhe haviam feito mal. Além de
assinalar em seu final feliz “sob uma mesma perspectiva: ridicularizar os deuses
pagãos” (ASURMENDI, 2004, p.414). Apresenta-se como uma moral ao povo, isto é,
3 A Bíblia Jerusalém (2012, p.1579-1583) traz a tradução das adições gregas na forma dos
capítulos 13 e 14.
21
aos seus leitores de que o justo é resguardado pela Lei, porém o ímpio é sempre
derrotado.
1.4 Idiomas
Como se pôde analisar até aqui, o livro de Daniel possui diversos pontos em
que não há consenso entre os estudiosos em suas análises acerca da composição
desta obra e a questão do idioma não seria diferente. Talvez este até mesmo seja um
dos pontos mais complicados para os estudiosos de Daniel, a obra é composta por
três idiomas, sendo eles: aramaico, hebraico e grego (se levado em consideração as
edições católicas que têm por base a Septuaginta, enquanto que no livro do Texto
Massorético são apenas dois idiomas).
Asurmendi (2004, p.414-415) detalha que o hebraico utilizado em Daniel é
recente, porém não tanto quanto os manuscritos de Qumrã. O aramaico está antes da
evolução dos textos de Qumrã e depois dos papiros de Samaria (última fase do
período persa), isto é, primeiras décadas do império helenista. O grego possui
grandes problemas de tradução do hebraico, isto é, divergências entre o Texto
Massorético e a Septuaginta.
Segundo Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002, p.1261) este é um fenômeno
único e um tanto curioso dentro do Antigo Testamento, que faz com que seja difícil
prever o processo de formação do livro. Porém, facilmente localizamos os trechos
fragmentados de adições posteriores, os escritos nesta língua ou as traduzidas do
original semita. Embora tenham surgido inúmeras teorias com o intuito de fornecer
alguma explicação, nenhuma foi completamente aceita como uma solução plena.
As hipóteses que procuram justificar o porquê de haver os três idiomas neste
livro podem ser enumerados da seguinte maneira:
a) a obra original foi escrita em hebraico, e uma parte dela foi traduzida para o aramaico, língua corrente daquela época; b) o original era aramaico, e alguns capítulos foram traduzidos para o hebraico; c) o autor do livro empregou, por razões desconhecidas ambas as línguas; d) existia uma coleção aramaica de relatos sobre Daniel [caps. 1–6 ou 1–7]; um autor posterior traduziu o cap. 1 e acrescentou em hebraico as visões dos caps. 8–12; e) as narrações dos caps. 2–6 circulavam oralmente em aramaico; o autor do livro recopilou-as e as reelaborou nesta língua; acrescentou depois o sonho do cap. 7, redigindo-o igualmente em aramaico, e completou o conjunto com os caps. 8–12,
22
escritos em hebraico. (ALONSO SCHÖKEL E SICRE DÍAZ, 2002, p. 1261-1262)
Seguindo a linhas propostas por essas hipóteses, os autores estruturam a obra
de maneira diferente. Capítulo 1 como introdução, 2-7 como narrações; 8-12 visões;
e 13-14 narrações novamente. Ainda assim não parece ser a melhor maneira de
estruturar a obra, visto que já é no capítulo 7 onde se começa a primeira visão do livro
de Daniel. Por isso seguimos a estrutura, tendo como base o conteúdo e não segundo
a estrutura idiomática da obra.
Entretanto, Pagán (2010, p.121) argumenta que possivelmente este texto tenha
sido escrito em aramaico, e os textos posteriormente tenham tido diversas seções
traduzidas para o hebraico por questões nacionalistas, ou para que seu lugar no cânon
fosse garantido4.
A hipótese levantada acerca dessa divergência linguística pode ter ocorrido
devido ao período em que ela foi composta. Se a obra tiver sido escrita durante o
período dos macabeus, como foi dito acima, então tal divergência teria sido justificada.
O povo ao retornar do exílio guardou uma memória em aramaico sobre Daniel
passadas oralmente até que, por fim, foram redigidas, enquanto as visões
apocalípticas foram sintetizadas pelos escribas, sacerdotes que haviam se retirado da
cidade para o deserto. A tradição grega pode ter surgido durante o período em que a
Judeia foi subjugada pelos helênicos que impuseram o domínio de seu idioma, ou por
algum judeu que estivesse fora daquela região.
Embora não haja um consenso acerca das hipóteses, é fato de que o conteúdo
do livro de Daniel carrega em si profundos sentidos teológicos, que serviram de
incentivo a comunidade judaica para que conseguissem enfrentar os problemas. A
partir do modelo exposto e modelado por Daniel que, como bem repetido ao final de
cada narrativa acerca de suas decisões em diversas situações perante os reis, não se
deixou corromper com a enculturação estrangeira, ou teve medo das possíveis
consequências que suas ações poderiam lhe acarretar.
4 ASURMENDI, 2004, p.417 “a tradição judaica não aceita em seu cânon textos em grego, as
partes do livro de Daniel que estão escritas nessa língua [Dn 3,24-90; 13 – 14] não figuram no cânon judaico”.
23
1.5 Gêneros Literários
O livro de Daniel é composto principalmente por dois gêneros literários: os
relatos da corte, que vão se ocupar em retratar sobre a vida do jovem Daniel e os seus
amigos dentro da corte babilônica, e as visões/profecias apocalípticas.
1.5.1 Relatos da Corte
Os relatos da corte no livro de Daniel demonstram um caráter nacionalista em
jogo, assim como os relatos relacionados à Ester e José no Egito. Os jovens são
introduzidos no palácio do país ao qual foram levados cativos, obtendo assim uma
nova chance de se reerguer na vida de maneira “rápida” e “fácil” através da imersão
cultural. Porém, estes jovens se recusam a fazer isso e se dedicam em defender os
valores judaicos a todo custo, mesmo que isto os leve a sofrer castigos e sentenças
como a fornalha de fogo ardente e a cova de leões.
Conforme Asurmendi (2004, p.420) “Trata-se de mostrar a superioridade do
exilado submisso diante do possuidor autóctone do poder”. É notável a superioridade
se observarmos a figura de Daniel frente as bases primordiais, como: interpretação
de sonhos, mensagens divinas e sabedoria. Como apontado já no primeiro capítulo
da obra, são descritos como os mais inteligentes, pois tomaram a decisão de não se
abaixarem aos novos costumes e esquecerem assim a sua própria identidade.
É evidente como a influência religiosa e o brio nacional são realçados pela
intervenção divina como uma resposta positiva ao ato dos personagens em não se
submeter aos padrões e imposições dos estrangeiros. Além de salientar o poder
superior do Deus dos cativos judaítas sob todo e qualquer levante que ocorra contra
os “escolhidos”, estes permaneceram fiéis aos seus estabelecimentos e Lei.
1.5.2 Visão Apocalíptica e Gênero Apocalíptico
Há, pelo menos, dois tipos de visões dentro das narrativas bíblicas, são elas as
visões proféticas e as visões apocalípticas. Por isso ao analisar as visões contidas no
livro de Daniel é necessário se ater ao significado e características aos quais essas
narrativas estudadas pertencem.
24
As visões presentes no livro de Daniel são “a expressão literária de uma
experiência” (ASURMENDI, 2004, p.420). Define-se como experiência, pois as visões
são um meio de intercomunicação entre a esfera divina e o vidente. Porém não
podemos levar à risca está definição quando nos referimos às visões apocalípticas.
Há, pelo menos, três diferenças essenciais entre as visões proféticas e as
apocalípticas. Asurmendi (2004, p.420) assinala da seguinte forma:
A primeira é a presença do anjo intérprete, necessária nas visões apocalípticas para a compreensão da visão pelo vidente. Nas visões proféticas a compreensão do que se vê é imediata [cf., por exemplo, as visões de Isaías ou de Ezequiel], visto que o sentido do que é visto é explicado muitas vezes pelo próprio Deus, que é aquele que ‘faz ver’ [igualmente, nas visões de Jeremias ou Amós]. A proximidade de Deus nas visões proféticas [inclusive nas de Ezequiel e Isaías] contrasta com seu afastamento nas visões apocalípticas. A segunda diferença se refere à mensagem. A mensagem das visões proféticas tem uma evidente dimensão de imediaticidade em relação ao profeta e a seus contemporâneos; assim, a vocação dos três grandes profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel está relacionada intimamente com suas épocas e ao destino do povo, e o mesmo acontece com o anúncio do castigo imediato nas visões de Amós. A terceira e última diferença encontra-se na linguagem. A linguagem é normalmente simples e inteligível nas visões proféticas, ao passo que nas visões apocalípticas pertence já ao fantástico e mítico.
Como descrito anteriormente, acerca do conteúdo do livro de Daniel, se pode
perceber que as visões narradas apontam todas para o mundo fantástico e mítico,
com muitos simbolismos e imagens visuais, no qual o vidente, Daniel, não consegue
compreender o significado por si só. Essas revelações possuem elementos históricos
acerca do passado, presente e apontam para um futuro. A expressão de horror e
perturbação de espírito por parte do vidente também é muito presente nas visões,
característica encontrada na obra de Daniel após cada relato de visão apocalíptica
(Dn 7,28; 8,27; 10,1-3; 10,8).
A linguagem das visões é truncada por forte simbolismo e ao seu lado sempre
se encontra o anjo intérprete que ao final de cada visão apresenta a explicação
referente aquilo que foi visto pelo vidente, trazendo recomendações acerca de
comportamentos e ações durante algumas de suas explanações. São apontamentos
escatológicos, que também podem apresentar uma ânsia pelo reinado messiânico que
é favorecido por Deus.
25
Os contextos das visões apresentadas no livro de Daniel ilustram cenas de
guerras e perseguições, a assolação do povo fiel e a impiedade, crueldade de reis
“pagãos”. Porém não fica evidente nas visões ou explanações quais deveriam de ser
as respostas do povo frente a estes acontecimentos.
Muito embora Asurmendi (2004, p.422-423) afirme que a obra não defenda a
resistência ativa, mas que tenha por objetivo gerar esperança dos oprimidos em
YHWH, que através da sua intervenção trará a salvação aos necessitados. Talvez os
responsáveis pela difusão e circulação desta obra tenham sido o meio dos hassidim,
ou ‘piedosos’. Incentivo a uma resistência pacífica, alimentar a esperança, encorajar
e reconfortar aos oprimidos através da compreensão, leitura apocalíptica acerca dos
tempos atuais este pode ter sido o objetivo deste grupo de piedosos.
O gênero apocalíptico dentro do livro de Daniel é um dos porquês que torna
esta obra tão única, ainda mais quando as outras narrativas que possuem tal gênero
literário se encontram fora do cânon judaico. A outra literatura, inclusa no cânon, se
encontra no Novo Testamento.
Para Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002, p. 1259) o surgimento desta novidade
se manifesta como uma força criativa, dentro de um período em que havia apenas a
escassez da inspiração literária e finda a inspiração profética. Este gênero é herdeiro
do gênero profético, surge quando este se encontra extinto e procura continuar a sua
missão apresentando grande interesse no desenrolar da história. Atenta-se ao curso
dos impérios, que assumem o papel da predição, assim como a profecia aponta para
a esperança em Deus.
O ambiente propício para o surgimento e expansão do gênero apocalíptico,
segundo Pagán (2010, p. 122) é onde há extrema desesperança e crises, onde as
figuras políticas governamentais humanas, religiosas, militares perdem o crédito com
o povo. São receptores que vivem debaixo de opressão e abuso por parte de seus
governadores que normalmente os abusam agressivamente e impiedosamente.
No meio dessas comunidades que se encontram em tais situações extremas
estes textos são bem recebidos e espelham para todos um futuro esperançoso,
seguro e restaurador no qual as intervenções divinas mudarão a história.
26
1.6 Análise Exegética de Daniel 8,1-14
O objeto do presente estudo é a análise exegética de Dn 8,1-14. Esta perícope
se localiza na segunda parte do livro, sendo ela a segunda visão dentro deste bloco
da obra e evidentemente pertence à esfera das visões apocalípticas.
O foco de nossa análise será apenas a extensão da visão narrada neste
capítulo (Dn 8,1-14), sendo assim não nos estenderemos diretamente à explanação
acerca da mesma pelo anjo Gabriel (Dn 8,15-27).
Para a realização do estudo desta perícope iniciaremos com a tradução
interlinear desta narrativa. Seguindo para a apresentação da tradução literal, seguida
pela delimitação desta perícope. Então passaremos para a análise da coesão textual,
prosseguindo para a estruturação desta perícope e, por fim, apresentaremos o
comentário exegético.
1.6.1 Tradução Interlinear
Dn 8.1
ל ךהמ ר לוש למלכות בלאשצ תב ש ש
o rei Belshazzar do reinado de três No ano de
אל י י ד לי א ה א זון 5 רא חDaniel eu a mim, para
mim apareceu visão
ה׃ ל י בתח ל ה א י 6הנ רא אחר em o começo. a mim, para
mim a (que)
apareceu depois de
Dn 8.2
י וא י 7בראתי זון 8ויה ה ב ח רא א 9ו
e eu em ver-me (em meu ver)
e aconteceu na visão E vi
ה י ם המד יל ר בע ה אש ן הב יר בשושa província,
satrapia em Elam que o palácio em Susan
aparecer, parecer (nifal) – ראה 5 aparecer, parecer (nifal) – ראה 6 ver, enxergar, observar (qal) – ראה 7 ser, estar, existir (qal) – היה 8 ver, enxergar, observar (qal) – ראה 9
27
ל י על־אוב ית 10היי זון וא ח 11ואראה ב
junto ao rio estava eu e eu em a visão e vi
י׃ אול Ulai.
Dn 8.3
י ל ה׀ א נ ה וה 12ואראיי א ע ש 13וא
carneiro e eis que e vi olhos meus E levantei
ו ל ול אב י ה פ ד ל ד עמ ח א e direção
dele/para ele o rio perante faces
de o que parado um
ה אחת גבה ות וה י ם גבה י ם והקר קרalto, grande e o um altos, grandes e os chifres (dois) chifres
ה׃ ה באחר 14עלה גבה ית וה ן־הש מ
no depois. aquele que elevou [-se]
e o alto, grande
(mais que) do segundo
Dn 8.4
פוה ה וצ 15מנגח י מי ל א ת־ה י א ית 16רא
e ao Norte para o Ocidente
empurraste (brutalmente)
o carneiro Vi
ין יו וא ו לפ עמד א־י 17לגבה וכל־חיות ו
e nada perante faces dele
não pararam e todos seres
viventes
e ao Sul / Negeb
יל׃ גד 18והו רצ ה כ ש ו 19וע יד יל מ 20 מצ
e se fez importante/grande.
conforme [lhe] apraz
e fez da mão dele arrebatava
Dn 8.5
ז ים ע יר־ה ה צפ נ ין וה ב י 21 מ ית י י׀ 22 ה ואbode de as
cabras e eis que tornar a
compreender estava eu E eu
ser, estar, existir (qal) – היה 10 ver, enxergar, observar (qal) – ראה 11 ver, enxergar, observar (qal) – ראה 12 levantar, carregar, levar (qal) – נשא 13
subir, elevar-se, surgir (qal) – עלה 14
empurrar, derrubar, dar cabeçada/chifrada (piel) – נגד 15
ver, enxergar, observar (qal) – ראה 16
parar, ficar de pé, manter-se (qal) – עמד 17
ampliar, engrandecer, aumentar (hifil) – גדל 18
fazer, realizar, deter-se (qal) – עשה 19
arrebatar, remover, arrancar (hifil) – נצל 20
compreender, entender, perceber (hifil) – בין 21
ser, estar, existir (qal) – היה 22
28
ין ץ וא ר א י כל־ה ב על־פ ן־המער א מ 23 ב
e nada toda a terra sobre as faces de
do oeste veio
זות ן ח ר יר ק פ צ ץ וה ר א ע ב וגvisão chifre de e o bode na terra quem
tocas/tocador
יו׃ י ין ע ב os olhos dele. entre
Dn 8.6
ר י ם אש על הקר י ל ב א א עד־ה 24 ויב
que os chifres senhor, dono de
enquanto/até o carneiro
E veio
ץ ר ל 25 וי אב י ה פ ד ל י 26 עמ ית א 27 ר
e correu o rio perante faces de
que permanecia
vi
ו׃ ת כח יו בחמ ל א força, poder
dele. em a
exaltação
para dele/contra
ele
Dn 8.7
ר י ל 28 וי תמרמ א צ ל ה יע׀ א יו 29 מג ית 30ורא
e se enfureceu
o carneiro ao lado próximo que chegava E vi ele
י ת־שת ר א י ל 31 וישב א ת־ה יו 32 ויך א ל א
os dois e estraçalhou o carneiro e feriu para/contra ele dele
ד י ל 33 לעמ א ח ב יה כ 34ולא־היו קר
para se levantar
no carneiro capaz/capacidade e não era/havia
chifres dele
chegar, vir (qal) – בוא 23
chegar, vir (qal) – בוא 24
correr (qal) – רוץ 25
parar, ficar de pé, manter-se (qal) – עמד 26
ver, enxergar, observar (qal) – ראה 27
se enfurecer (hitpael) – מרר 28
alcançar, tocar (hifil) – נגע 29
ver, enxergar, observar (qal) – ראה 30
quebrar, despedaçar, aniquilar (piel) – שבר 31
ferir, atingir, bater (hifil) – נכה 32
parar, ficar de pé, manter-se (qal) – עמד 33
ser, estar, existir (qal) – היה 34
29
35ולא־היההו י רמס ה 36 ו רצ הו א יכ יו 37 וישל לפ
e não era/havia
e pisoteou ele
em terra e o arremessou
perante faces dele
ו׃ יד י ל מ א יל ל 38 מצ
da mão dele. para o carneiro
o que livrava
Dn 8.8
ו צמ ד 39 וכע יל עד־מא גד ים 40 ה ז ע יר ה וצפ e/mas como
poderoso dele enquanto /até
muito tornou-se
grande as cabras E bode de
ות ז ה ח תעל ה 41 ו ן הגדול ר ה הק 42 שבר
visão e subiu o grande o chifre foi quebrado
י ם׃ מ ות הש ע רוח יה לארב ארבע תחת os céus. ventos de para os quatro
de
por baixo, debaixo/em seu lugar
quatro
Dn 8.9
ה יר צע ת מ ן־אח ר א ק ם 43 יצ ה ת מ אח ן־ה ומ de o pequeno chifre um saiu deles E de o outro/um
י׃ ב ל־הצ ח וא זר ל־המ ג ב וא ל־הנ גדל־יתר א 44ות
e para direção à belo/gazela (Palestina).
e para o levante
para o Sul / Negeb
e crescendo demasiadamente
Dn 8.10
רצה ל א תפ י ם 45 ו מ א הש ל עד־צב גד 46 ות
a terra e fez cair os céus tanto quanto exército de
E se tornou grande
ם׃ רמס ת ים ו ב ן־הכוכ א ומ ב ן־הצ מ
e pisando-os. e de as estrelas
de o exército
Dn 8.11
ser, estar, existir (qal) – היה 35
pisar, esmagar (qal) – רמס 36
lançar, arremessar, expelir (hifil) – שלך 37
arrebatar, remover, arrancar (hifil) – נצל 38
ser forte, ser poderoso (qal) – עצם 39
ampliar, engrandecer, aumentar (hifil) – גדל 40
subir, elevar-se, surgir (qal) – עלה 41
ser quebrado, deixar de existir (nifal) – שבר 42
sair, ir adiante (qal) – יצא 43
crescer, se tornar grande, se tornar importante (qal) – גדל 44
causar queda, fazer cair, cair na ruína (hifil) – נפל 45
crescer, se tornar grande, se tornar importante (qal) – גדל 46
30
ים ר נו 47 ה מ יל ומ גד א 48 ה ב ד שר־הצ ועtornou
elevado
e por ele se tornou grande
chefe, oficial de o exército
E tanto quanto
ו׃ ש קד ון מ ך מכ יד 49 והשל מ ם] הת 50[הור
sagrado, santuário seu.
lugar, local de e foi lançado a continuidade foi tirado
Dn 8.12
ך שע 51 ותשל יד בפ מ ן על־הת נת 52ת א ב וצ
e arremessou em transgressão
sobre a continuidade
foi recebendo/dado
E exército
ה׃ יח צל ה ³53וה שת רצה 54 וע ת א אמ e fez
prosperar. e agiu a terra fidelidade /
verdade
Dn 8.13
ד ח ר א ר 55 ויאמ 56מדב דוש ד־ק ח ה א שמע 57 וא
outro/um e disse que falava outro/um santo
Então escutei
ון ז ח י ה ת ר עד־מ י 58המדב דוש לפלמו קa visão até quando? o que falava para alguém santo
ש ד ת וק ם 59 ת שע 60 שמ יד והפ מ הת
e santidade/santuário
estabelecer desolação e a transgressão
a continuidade
ס׃ רמ א מ ב וצ pisoteados. e exército
Dn 8.14
ר ק ב ב ר ד ע י ע ל ר א אמ 61 וי
manhã noite enquanto/até até/para mim E disse
elevar, erguer, exaltar (hifil) – רום 47
ampliar, engrandecer, aumentar (hifil) – גדל 48
ser jogado ao chão, ser derrubado, abater (hofal) – שלך 49
ser exaltado, ser removido (hofal) – רום 50
lançar, arremessar, expelir (hifil) – שלך 51
ser dado, ser entregue, ser permitido (nifal) – נתן 52
ser sucedido, prosperar, triunfar (hifil) – צלח 53
fazer, realizar, deter-se (qal) – עשה 54
dizer, falar, contar, relatar, mencionar (qal) – אמר 55
falar, dizer, conversar, ameaçar, prometer, ordenar (piel) – רבר 56
ouvir, escutar, prestar atenção (qal) – שמע 57
falar, dizer, conversar, ameaçar, prometer, ordenar (piel) – רבר 58
dar, permitir, entregar (qal) – נתן 59
desolar, devastar, assombrar-se (qal) – שמם 60
dizer, falar, contar, relatar, mencionar (qal) – אמר 61
31
ש׃ ד ק ק ש 62ו צד ותושל א מ י ם אלפ santidade,
santuário. então
justificarei e trezentos duas mil
1.6.2 Tradução Literal
¹ No ano terceiro do reinado de Belshazzar o rei, visão apareceu para mim, Daniel,
depois de a que apareceu para mim em o começo.
² E vi na visão, e aconteceu em ver-me e eu [estava] em Susan, o palácio que [fica]
em Elam, a satrapia. E vi na visão e eu estava junto ao rio Ulai.
³ E levantei [meus] olhos e vi, e eis que um carneiro parado perante as faces do rio, e
direção dele [dois] chifres. E os chifres [eram] grandes e um [era] grande [mais que]
do segundo grande aquele que elevou [-se] depois.
⁴ Vi o carneiro empurraste (brutalmente) para o Ocidente e ao Norte e ao Sul/Negeb.
E todos seres viventes não pararam perante faces dele e nada arrebatava da mão
dele. E fez conforme [lhe] apraz e se fez grande.
⁵ E eu estava tornar a compreender, e eis que bode veio do oeste sobre as faces de
toda a terra e nada tocou na terra. E o bode [tinha] chifre, [em] visão entre os olhos.
⁶ E veio enquanto o carneiro, senhor, dono dos chifres que vi que permanecia perante
[as] faces do rio. E correu contra ele, em exaltação [e] poder.
⁷ E vi ele que chegava ao lado próximo do carneiro. E se enfureceu contra ele, feriu
o carneiro e estraçalhou os dois chifres dele, e não havia capacidade no carneiro para
se levantar perante faces dele. Então o arremessou em terra e pisoteou ele, e não
havia o que livrava o carneiro da mão dele.
⁸ E [o] bode tornou-se grande até muito, mas como poderoso dele foi quebrado o
chifre, o grande. E subiu, [em] visão, quatro debaixo para os quatro ventos dos céus.
9 E do outro deles saiu outro chifre pequeno e crescendo demasiadamente para o
Sul/Negeb, e para o levante e para direção à belo (Palestina).
¹0 E se tornou grande tanto quanto exército de os céus e fez cair [em] terra o exército
e das estrelas e pisando-os.
¹¹ E tanto quanto oficial do exército se tornou grande e por ele tornou elevado, foi tirado
a continuidade e foi lançado local de santuário seu.
justificar, inocentar, ser justificado (nifal) – צדק 62
32
¹² E exército foi dado sobre a continuidade em transgressão e arremessou [a] verdade
[em] terra e agiu e fez prosperar.
¹³ Então escutei um santo que falava, e disse um santo para alguém o que falava: “até
quando?” a visão, a continuidade e a transgressão desolação estabelecer e santuário
e exército pisoteados.
¹⁴ E disse para mim até noite, manhã duas mil e trezentos, então justificarei santuário.
1.6.3 Delimitação da Perícope
O capítulo 7 inicia um novo bloco no livro de Daniel, a sequência das visões
apocalípticas. É neste capítulo que é descrita a primeira visão, que ocorre durante o
primeiro ano do reinado de Belshazzar. A visão de Daniel se sucede durante um sonho
no qual ele vê quatro animais diferentes saindo de dentro do mar. O primeiro era como
um leão que possuía asas semelhantes a de uma águia, o segundo tinha a aparência
de um urso e este tinha três costelas entre os seus dentes, o terceiro se parecia com
um leopardo e este tinha quatro asas. O quarto animal era aterrorizante, porém muito
poderoso, possuindo dentes de ferro e dez chifres.
O relato prossegue até chegar ao ponto em que Daniel se sente angustiado e
com o seu espírito muito agitado. Não compreendendo o significado da visão que
tivera até que, por fim, ele se aproximou de um dos que estavam ali, presentes em
sua visão, e lhe pergunta o significado dessas coisas. Só então lhe é revelado a
explicação daquilo que se tinha acontecido.
O último versículo do capítulo 7 (v.28), traz a finalização da visão e aponta para
os resultados que esta teria causado ao seu corpo (rosto empalidecido) e informa ao
seu leitor que, embora os pensamentos acerca da visão o assombrassem, Daniel
guardou essas coisas apenas consigo mesmo.
O capítulo 8,1 começa trazendo a seguinte informação לך ר המ ות בלאשצ למלכ
וש שנת של ב que significa no ano terceiro do reinado de Belshazzar, a narrativa traz
em seu início a informação acerca do tempo no qual ela teria ocorrido. Segundo Silva
(2015, p.70), uma das marcações do início de uma nova narrativa é a indicação do
tempo e o espaço no qual a perícope ocupa. É neste primeiro verso que o leitor recebe
a informação de que uma nova narrativa é introduzida.
33
Delimitamos esta perícope apontando com a sua conclusão no v.14, pois a
partir do v. 15 em diante há o acréscimo de dois outros personagens. Um deles era
um ser que tinha a aparência como a de um homem, que estava no rio Ulai. Ele
aparece diante de Daniel e manda que Gabriel lhe entregasse a interpretação desta
visão. Além de salientar no decorrer dos seguintes versos uma ação terminal, ou seja,
relata-se que Daniel ficou aterrorizado e caiu prostrado diante de tudo que lhe foi
confiado através da explicação de Gabriel.
A interpretação segue até o fim do capítulo, isto é, no verso 27 que assim como
o capítulo anterior informa ao leitor que esta visão fez com que Daniel ficasse
afadigado e caísse doente, porquanto muito assombrado ficou devido a esta revelação
desta visão.
1.6.4 Coesão
A perícope de Daniel 8,1-14 é composta de uma riqueza de símbolos nos quais
o leitor é levado a acompanhar de forma fluída o desenrolar de uma impiedosa batalha.
Esta só pode ser contemplada e melhor compreendida através do estudo de sua
coesão.
Seguiremos a seguinte ordem para ir de uma análise geral da narrativa, para
uma que se limitará aos entornos dos principais símbolos desta literatura apocalíptica.
Visualizaremos primeiramente as principais palavras e verbos que mais se repetem,
então buscaremos distinguir os verbos, isto é, a conjugação e modo no qual estes se
encontram. A partir desses levantamentos observaremos quais dessas repetições
estão ligados aos agentes dessa narrativa, sendo eles: o carneiro, o bode e o exército
do céu.
Dentro dos catorze versos que constituem nossa narrativa encontramos as
seguintes palavras repetidas no decorrer da visão:
Hebraico Quantidade Versos
13 ;8 ;5 ;2 ;1 6 חזון
1 2 הרא
34
7 ;6 ;1 4 אל
5 ;2 ;1 4 אני
7 ;6 ;4 ;3 ;2 7 ראה
5 ;2 2 היה
7 ;6 ;3 3 נשא
נה 5 ;3 2 ה
7 ;6 ;4 ;3 7 איל
4 ;3 2 עמר
7 ;6 ;5 ;4 ;3 5 פנה
6 ;3 ;2 3 אבל
9 ;8 ;6 ;5 ;3 6 קרן
4 ;3 4 גבה
4 1 צפון
9 ;4 2 נגב
8 ;5 3 צפיר
5 ;4 2 אין
12 ;10 ;7 ;5 5 ארץ
5 ;3 2 עין
14 ;10 ;7 3 רמס
7 2 היה
ו יד 7 ;4 2 מ
10 ;8 2 שמים
13 ;12 ;11 ;10 5 צבא
יד 13 ;12 ;11 3 תמ
13 2 דבר
Da soma das palavras repetidas elencadas no quadro acima, há um total de 91
palavras, das quais 23 são verbos, enquanto as demais são substantivos, preposições,
35
pronomes, adjetivos. Isto demonstra uma maior variedade verbal presente na
narrativa do que os outros itens comentados na oração anterior.
Mais intrigante ainda é se somarmos o valor total dos verbos presentes na
narrativa, que são 60, e apenas 23 se repetem. Se afunilarmos ainda mais nos
depararemos com as seguintes informações: há 35 verbos nas conjugações qal; 5 em
nifal; 4 em piel; 1 hithpael; 13 em hifil; 2 em hofal. Nota-se que a maioria das ações
são simples e causativas. Se fizermos o mesmo levantamento acerca dos tempos
verbais nos depararemos com os seguintes dados: 13 se encontram no particípio; 21
no perfeito; 23 no imperfeito; e 4 no infinitivo. Estes novos dados nos revelam que
estamos lidando com um texto no qual as suas ações em suma estão divididas entre
ações concluídas (perfeito) e ações incompletas (imperfeito), ou ainda em andamento
(particípio).
O resultado que estes dados levantados nos auxiliam a examinar a intensidade
e impetuosidade na qual o relato está direcionando o leitor. Nos revela que há diversos
movimentos ocorrendo conforme a leitura vai fluindo, ajudando a compreender a
dinâmica na qual a disputa entre o carneiro e o bode vai ocorrendo. Para ficar mais
claro e demonstrar a coesão da narrativa colocaremos/encaixaremos as informações
no entorno ao qual elas pertencem, coligadas aos personagens citados.
Os primeiros versos são marcados por expressões que situam onde Daniel,
personagem principal, receptor da visão está situado: no terceiro ano do reinado de
Belshazzar ( ר לך בלאשצ ת המ ש לושב למלכותש ) que Daniel recebeu esta visão. Ela
possui uma localização específica, ocorre em Susan (שושן), palácio da satrapia de
Elam (ילם .(אולי) no qual há um rio próximo, Ulai ,(ע
O carneiro surge na visão próximo ao rio, onde o vidente está em Ulai (אולי),
seus chifres (ן ר são o destaque já que eles são citados 2x no v.3. se acrescentando (ק
o adjetivo ‘grande’ (גבה) 3x no mesmo versículo sendo que um dos chifres estava
sendo elevado (עלה , qal particípio).
Após descrever o carneiro mostra-se as ações dele, empurra (גח, piel particípio)
nas direções do Norte (פון ה) ocidente ,(צ ninguém tem poder de arrebatar ,( ג ב) Sul ,( י מ
ו) da sua mão (hifil particípio ,צל) יד hifil , גדל) ’resultando no ‘se fez importante ;(מ
perfeito).
36
Então o bode é introduzido na visão, ele veio (בוא, qal particípio) do Oeste
ב) ץ) se foca na sua passagem sobre a terra ,(מער ר ,גע) 2x no v.5, não a tocando (א
qal particípio), destaca-se também sobre o seu chifre (ן ר no meio dos olhos. Este (ק
bode vem levantando-se (עמד, qal particípio), correndo (רוץ, qal imperfeito) para
alcançar (גע, hifil particípio), enquanto se enfurece (מרר, hithpael imperfeito) e fere
.o carneiro (hifil imperfeito ,כה)
A cena da luta é marcada pelas seguintes expressões: o carneiro é
despedaçado (שבר, piel imperfeito), lançado (שלך, hifil imperfeito), pisoteado ( מסר , qal
imperfeito) e não pode ser arrebatado (צל, hiphil particípio) da mão do bode.
O cenário ao fim da luta mostra a posição alcançada: se tornou grande (גדל,
hiphil perfeito); como poderoso (עצם, qal infinitivo).
Embora o seu chifre tenha se quebrado, o seu poder não é abalado e sim torna-
se ainda superior: quatro novos chifres surgem na direção dos quatro ‘ventos dos céus’
( ות י םרוח מ הש ); um outro chifre pequeno surge e cresce demasiadamente (גדל, qal
imperfeito) no v. 9. Ele se expande para a região que antes o carneiro estava, o Sul
ח) para o levante ,( ג ב) זר י ) à belo/gazela [Palestina] ,(מ .(צב
Este cresce até desafiar o exército dos céus e os faz cair (פל, hifil imperfeito)
na terra (ץ ר (hifil perfeito ,גדל) nestes. Se torna tão grande (qal imperfeito ,רמס) pisa ,(א
quanto o oficial do exército.
Suas ações enquanto tem o grande poder em mãos são: tirou (רום, hofal
perfeito) a continuidade (יד מ ,o local sagrado (hofal perfeito ,שלך) lançou ,(ת
arremessou (שלך, hifil imperfeito) a verdade em terra (ץ ר ,צלח) fazendo prosperar (א
hifil perfeito).
Suas ações não agradam aqueles que lhe são submetidos, pois há a pergunta
‘até quando?’ ( ת יעד־מ ), uma resposta é dada duas mil e trezentas ( י ם שאלפ ותושל א מ )
manhãs e noites.
Note que, enquanto as ações do carneiro estão em andamento, e seu resultado
já é completo, pois se encontra conjugado no perfeito, o bode chega também com
ações todas em andamento ou ainda não concluídas, porém as suas ações são
causativas e reflexivas.
37
Os campos centrais, ou linhas que conduzem essa perícope giram em torno do
campo visual. A visão (זון que ocorre 6 vezes do decorrer da narrativa, assim como (ח
o verbo ver (ראה) que também aparece 7 vezes. Essas repetições indicam que aquele
que recebe a visão não só deve se ater aos detalhes que estão se passando diante
das suas vistas, mas a todos os acontecimentos, pois eles não são aleatórios. Aquele
que os vê se torna o portador/visionário de um ambiente “futuro” dentro desse contexto
apocalíptico.
Além das figuras principais da narrativa, o carneiro e o bode, a disputa entre os
dois animais e a importância de seus chifres (ן ר que são sempre descritos como (ק
grande (גבה), elevado (עלה) demonstram o que de fato representava o poder e domínio
que estes animais possuíam.
Ao terem os seus chifres quebrados, há um momento de fraqueza, perda de
poder e domínio abalado, oportunidade para a sua total destruição, enquanto ao
aparecer novos chifres (como no caso do bode) indicam um aumento de poder, quatro
ventos dos céus ( ות י םרוח מ הש ) e regiões de domínio – Sul (ג ב ), para o levante (ח זר ,(מ
belo/Palestina (י Após essas novas conquistas, desafia-se um novo opositor o .(צב
exército ( אצ ב ) dos céus e das estrelas.
Não apenas diz respeito a domínio de povos e nações, mas interliga ações e
decisões que afetam o âmbito religioso de um povo específico, no qual são dados
detalhes. A continuidade (יד מ ) é interrompida, o sagrado/santuário (ת שק ד ) é profanado,
trazendo a desolação ( םש מ ) e estabelecendo as transgressões ( שעפ ). É motivo de
escândalo para quem vê e principalmente para aqueles que vivenciam, fazendo com
que se questionem acerca destes acontecimentos e obtenham como resposta que
após duas mil ( י םא לפ ) e trezentos ( שו ותשל א מ ), noites ( בע ר ) e manhãs ( רב ק ) para que
haja o fim da violação religiosa.
Percebe-se que a narrativa segue uma linha do seu início ao fim, além de
perpassar por todos os versos a utilização da conjunção waw (e) conectando as
orações, além da visão narrada também seguir uma ordem, como podemos ver acima
descrito minuciosamente e se conclui com o desfecho do poder adquirido por aquele
que venceu a batalha. Introduz-se também a voz daqueles que haveriam de ‘sofrer’
durante o processo. A resposta entregue ao questionamento que finda a narrativa
38
também aponta para a coesão do texto, não se evitou ou faltou esforços para que este
texto fosse completo.
1.6.5 Estrutura
Como já citamos diversas vezes no decorrer desta análise há, pelo menos, dois
tipos de visões proféticas na Bíblia. Schünemann (2009) sumariza as afirmações de
Von Rad acerca dessas visões proféticas do Antigo Testamento pelo qual podem ser
caracterizados:
por críticas sociais, avisos de castigos, mas utilizando-se de figuras de linguagens conhecidas e do cotidiano das pessoas, em linhas gerais apresentam em mensagem que o profeta ‘ouviu’. O segundo representado pelo livro de Daniel, e porção de alguns livros como Ezequiel e Zacarias, apresenta uma riqueza de símbolos que precisam ser decifrados, e de certa, se apresenta como uma forma de ‘tratado’ de história […] Esse tipo de livros narram o que o profeta ‘viu’.. (SCHÜNEMANN, 2009, p.2-3)
São essas narrativas de visões que, vistas pelo profeta cheias de simbolismos
e linguagem abreviada, dirigem o seu relato acerca do que está por vir no “futuro”,
sempre em seu fim apontando a salvação daqueles que são os “eleitos” de Deus.
Os mistérios revelados ao profeta, vidente de YHWH trazem como modelo
citações de animais, guerras, batalhas, anjos que se relacionam com o terror,
perseguição sofridos. A partir dessa sequência de ações que vão culminar com os
clamores dos santos no v.13 propomos a seguinte estruturação que visa uma melhor
compreensão da narrativa:
1) Introdução: tempo e espaço (v.1-2)
2) Animais Fantásticos e seu Combate (v.3-9)
a) o carneiro (v.3-4)
b) o bode (v.5-8)
3) Uma nova ameaça (v.9-12)
4) Lamento e Resposta aos santos (v.13-14)
39
Nossa perícope gira em torno do duelo ocorrido entre o bode e o carneiro,
apontando para as consequências que provêm desta batalha entre essas duas
grandes figuras. Assim como também aponta para um futuro desfecho pelo qual o
vencedor desta batalha haverá de passar, que vêm como resposta ao clamor
daqueles pelos quais verão essas coisas acontecerem.
1.6.6 Análise Literária: Gênero Textual
A partir da estrutura apresentada acima notamos que nossa perícope possuí
elementos concernentes a esfera do gênero apocalíptico, assim como a própria
localização dessa perícope dentro da obra também já o indica ao colocá-la na segunda
parte do livro como parte do bloco das visões apocalípticas. Parece ser necessário
retomarmos o assunto e assim aprofundarmos as normas aos quais as narrativas
pertencentes deste gênero literário seguem.
O apocalipse engloba em si três movimentos, sendo eles: o gênero literário, o
apocalipsismo e a escatologia apocalíptica. Amaral (2007, p.79) exemplifica cada um
desses movimentos das seguintes formas: o gênero literário carrega em si uma visão
de mundo, uma escatologia apocalíptica que é formada por um conjunto de ideias e
temas que não são limitados apenas a este gênero, mas também podem aparecer em
outros, assim como em ambientes sociais motivados religiosamente. O apocalipsismo
é o que aponta para a ideologia e/ou movimento social.
Essas três terminologias, movimentos apocalípticos expressam a “perspectiva
da escatologia apocalíptica e veículos para expressar a ideologia de um movimento
apocaliptico” (AMARAL, 2007, p.83). A mensagem apocalíptica expressa/aponta para
um determinado ápice da história de um Império ou período histórico.
O surgimento do apocalipse teria ocorrido no pós-exílio, “com o retorno do povo
à Judeia em 586 a.C. e se desenvolvido nos séculos posteriores. Ela possui duas
correntes contrapostas: uma hierocrática, outra popular” (AMARAL, 2007, p.87). A
primeira surge a partir da escatologia de Ezequiel e os primeiros exilados em sua volta
para a terra, com o partido sadoquita buscando a reconstrução de sua nação através
das estruturas. A segunda possui a sua base na apocalíptica do Deutero-Isaías, onde
a reconstrução da nação é resultado da própria reconstrução do povo.
Amaral (2007, p.87), acrescenta que o primeiro provém fundamentalmente da
elite e mantêm um caráter sacerdotal-institucional, enquanto o segundo é provindo do
40
povo da terra, tendo assim uma natureza profética-popular, onde as estruturas são as
causas de todas as coisas ruins.
Os pontos comuns que podem ser encontrados tanto na profecia quanto na
apocalíptica é a
orientação de ambas para o futuro como o contexto da redenção divina e sua atividade julgadora. A ação salvífica de Deus, na escatologia apocalíptica, é concebida como uma realidade ‘para fora’ da ordem presente. A transformação da escatologia profética em escatologia apocalíptica acontece quando se renuncia à tarefa de traduzir a visão cósmica para as categorias da realidade do mundo (AMARAL, 2007, p.82).
Págan (2010, p.123-124) concorda com a referência acerca da primeira parte
de Daniel, ele os considera mais antigos do que a parte apocalíptica da obra e
categoriza a narrativa como de sabedoria. Faz-se uso deste tipo de narrativa piedosa
para destacar a importância de se manter intactos e imutáveis os valores e cultura
judaica. A segunda parte de Daniel surge fundamentalmente no período em que os
ataques helenistas são contínuos. Neste quesito Daniel adiciona em seu conteúdo um
antigo comentário bíblico no qual apresenta Deus como um revelador de mistérios,
apokalyton mysteria.
Entretanto, não há conhecimento de algum texto apocalíptico a sui generis,
anterior a metade do terceiro século. Da Silva (2015, p.67-68) afirma que muitos
eruditos sugerem que a literatura apocalíptica tenha surgido da linguagem sapiencial,
como por exemplo os livros da Sabedoria de Salomão ou o de Daniel. Os conceitos
de sabedoria e profecia são adaptados fazendo com que muitos consigam ver a
apocalíptica como uma derivação da literatura sapiencial, porém conservando fortes
implicações proféticas. Há ainda propostas que indiquem influências de outras
tradições, provindas da mitologia cananita e até mesmo do zoroastrismo. Também
chegam a apontar para uma ausência do judaísmo “primário” e apontam para uma
interligação da apocalíptica com o dualismo persa.
Schünemann (2009, p. 3) afirma que os “apocalipses são um segredo revelado
por Deus a um iniciado, a um sábio, que por sua devoção, puderam ser iniciados por
Deus e assim compreender essas mensagens”.
Notamos assim que o gênero apocalíptico necessita de um receptor da
mensagem, que não é humana, mas vem da esfera divina para a humanidade, e este
41
não pode ser uma pessoa qualquer. O escolhido como receptor deve atender aos pré-
requisitos que passam a aqueles que ouvem a sua mensagem certa credibilidade.
Quando pensamos no panorama geral apresentado no início deste capítulo,
podemos reler a primeira parte do livro de Daniel, capítulos 1-6, como uma
apresentação da iniciação de Daniel. A representação de Daniel nestes capítulos
retrata a devoção do “jovem” a Deus, ao ponto de este não temer “entregar” palavras
de exortação duras aos reis, recusar aos banquetes oferecidos pelos mesmos, ou até
mesmo desobedecer às leis/decretos destes reis. Fazendo isto Daniel se tornaria apto
para ser “promovido” ao status de receptor dos segredos divinos, e as revelações
referentes a estas mensagens misteriosas.
O próprio nome de Daniel, o Senhor/Deus é o meu juiz, não parece ter sido
escolhido aleatoriamente, mas também aparenta exercer função para corroborar a
imagem de que o personagem se encontrava apto a assumir tal função como um
receptor das mensagens de Deus. E que posteriormente virá a anunciar esses
mistérios de Deus e dar a sua interpretação que indica que a justiça chega e anunciar
a sua intervenção através dessas visões. Nos revelando um pouco da intenção que
possa estar presente nesta obra.
O gênero apocalíptico é aprimorando no decorrer dos tempos principalmente
“entre o século II a.C e II d.C, […] marcados pelo uso de pseudônimos de personagens
da história bíblica, que justamente, buscaram na vida de santidade desse herói, a
validação da mensagem” (SCHÜNEMANN, 2009, p.3). É com a imposição helenista
e início da perda da identidade judaica, que o espírito apocalíptico é desperto e
dinâmico.
Sobre o surgimento desses escritos que envolvem personagens bíblicos,
Souza (2011, p.71) acentua que a longa convivência com os Persas fez com que os
judeus adquirissem diversos elementos provindos da religião persa, tais como o
dualismo e os anjos.
Daniel não é a única obra que pertence ao gênero apocalipse. Neste contexto
perseguições e guerras revolucionárias em outras obras são influenciadas, como por
exemplo: 4 Esdras, 2 Baruque, o Apocalipse das Semanas, o Apocalipse de João.
Além de ter surgido “no fim do terceiro século 1Enoque [Enoque Etíope],
essencialmente apocalíptico” (Amaral, 2007, p. 87). Entretanto embora haja mais
obras apocalípticas pertencentes a literatura judaica, Daniel é a única canonizada.
42
A matéria prima para a apocalíptica são os fatos históricos, que são relidos sob
a ótica divina, concedendo-lhes um sentido transcendente a apenas o mundo material.
Por isso este gênero faz uso e explora um simbolismo refinado, além de utilizar
elementos “místicos” como as visões extáticas, numerologia, diálogo com seres
celestiais, angelicais.
O poder soberano de Deus é revelado, sua ação poderosa é o que pode pôr
fim aos governos e soberanos terrestres. Esta é uma forte demarcação no qual se
torna explícito a diferença entre as visões proféticas e as apocalípticas, a linguagem
profética é simples e dirigida, interpretada ao povo e reis dentro de sua história
nacional e internacional, com grande enfoque na história da salvação no seu tempo
presente.
Este é o contexto propício para o surgimento, propagação e expansão. Amaral
(2007, p. 79) acentua que são os momentos de crise, onde buscar obter respostas
para sobreviver a estas situações-limite é indispensável. Ainda acrescenta os três
aspectos no qual o judaísmo primitivo apocalíptico possuí: “um gênero literário
denominado apocalipse, uma visão de mundo chamada ‘escatologia apocalíptica’ e
um movimento social motivado religiosamente denominado ‘apocalipsismo’”
(AMARAL, 2007, p.79-80).
O conteúdo final de uma visão apocalíptica é o combustível que move a
esperança do povo oprimido, indicando para a intervenção de Deus na história
humana e aponta para uma substituição de um governo “ímpio”, cruel para um ideal.
Desta forma se destina um castigo terrível aos que são denominados como “pagãos”,
“ímpios”, enquanto os justos recebem a recompensa.
1.6.7 Comentário Exegético
I) Introdução: Tempo e Espaço (v.1-2)
¹ No ano terceiro do reinado de Belshazzar o rei, visão apareceu para mim, Daniel, depois me a que apareceu para mim em o começo. ² E vi na visão, e aconteceu em ver-me e eu [estava] em Susan, o palácio que [fica] em Elam a satrapia. E vi em a visão e eu estava junto ao rio Ulai.
43
Nos primeiros versos da nossa perícope nos deparamos com talvez uma das
maiores preocupações do redator do texto, isto é, situar o seu leitor para que este não
tenha dúvidas acerca do “período” em que esta visão foi concebida. Ela começa no
“terceiro ano do reinado de Belshazzar” (v.1), a visão se situa em Susan, na satrapia
de Elam (v.2) próximo ao rio Ulai.
Essas informações parecem querer passar credibilidade ao leitor desta visão
apocalíptica, requerendo do texto um teor “profético” futurista. O visionário recebe a
visão no “passado” sobre uma mensagem que haveria de ocorrer no futuro, para que
seus leitores estejam atentos. A expressão utilizada ‘e vi’ torna o estilo da narrativa
parecido ao de Ezequiel, que também é transportado em “espírito” para outros lugares
(Ez 8,3; 11,24, etc).
Em sua visão, Daniel observa e se encontra em Susan, o palácio que fica em
Elam, a satrapia. O rio Ulai fica próximo à cidade de Susan, uma cidade a “230 milhas
leste da Babilônia, que se tornará mais tarde uma das capitais mais ricas dos reis
persas, a sua residência preferida, onde guardavam todos os seus tesouros”
(DOUKHAN, 2000, p.122, tradução nossa). O fato do rio estar próximo a esta
localização também indica forte prosperidade, e sua importância para reis persas a
ponto de levá-los a resguardar seus tesouros neste local.
Stefanovic (2007, p.296-297) acrescenta que a cidade de Susan foi uma das
três capitais do Império Medo-Persa. E sua localização ficava a leste dos rios Tigre e
Eufrates. O nome grego do rio Ulai é Eulaeus. E ao citar o elemento água nesta visão
o autor, parece fazer uma referência ao grande mar, um dos elementos presentes na
visão anterior (Dn 7,2).
Doukhan (2000, p.122) afirma que no mundo babilônico os canais eram uma
base importante para a riqueza e a abundância agrícola. Uma inscrição de
Nabucodonosor acerca de um canal chamado Libil-khigalla (que traga abundância)
utiliza uma palavra, libil (que traz), provêm da mesma raiz que a palavra ubal (rio,
canal). Esta indicação indica também a importância de Elam para o império babilônico?
Estes versos além de buscarem localizar o leitor acerca do período em que a
narrativa teria se passado, estes mesmos indicam a profundidade de conhecimento
que o autor possui acerca da história. Não há coincidências, mas indícios que
procuram servir de base sólida para a mensagem que está sendo transmitida.
Há uma reminiscência de Ez 1 e 8, segundo Alonso Schökel e Sicre Días (2002,
p.1317), no caráter visionário da narrativa, na vizinhança do rio e na mudança de local.
44
Antes mesmo que o Império Babilônico termine, Daniel é transladado para a capital
do império persa para então logo, após a breve descrição sobre este período, ser
transportado para o final deste império.
Porém, como podemos observar no decorrer do capítulo desta pesquisa, a
datação da obra indica o contrário e parece haver um consenso entre os estudiosos
de que essas narrativas sejam provindas do final do terceiro século e início do
segundo século d.C.
Como afirma Asurmendi (2004, p.424) esta parte apocalíptica deve ter sido
escrita durante a perseguição macabaica [167-164 a.C.] e se ter findado antes da
morte do líder grego Antíoco IV Epífanes, em Elam, norte do Golfo Pérsico em 164
a.C.
II) Animais Fantásticos e o seu combate (v.3-8)
a) carneiro (v.3-4)
³ E levantei [meus] olhos e vi, e eis que um carneiro parado perante as faces do rio, e direção dele [dois] chifres. E os chifres [eram] grandes e um [era] grande [mais que] do segundo grande aquele que elevou [-se] depois. ⁴ Vi o carneiro empurraste (brutalmente) para o Ocidente e ao Norte e ao Sul/Negeb. E todos seres viventes não pararam perante faces dele e nada arrebatava da mão dele. E fez conforme [lhe] apraz e se fez grande.
Daniel após situar a sua localização, ele então levanta os seus olhos e
vislumbra um carneiro que estava parado diante do rio Ulai, e eis que ele tinha chifres
muito altos.
O carneiro era um animal comum no meio do povo pastoril, segundo Siqueira
(2005, p.20-21) o carneiro era o “animal mais desejado” para os sacrifícios (Ex 12,5)
e estes nomes carneiro e ovelha, também possuem o significado metafórico que
exaltam a afetividade entre as pessoas. O enorme apreço ao animal provém da própria
história da nação, em seu início Israel foi um povo que basicamente viveu da criação
desse animal, além de ser um símbolo de mansidão.
De Blois e Mueller (2020) acrescentam que o carneiro era um animal
considerado limpo, e também era a fonte de carne, couro, lã e chifre que podia ser
usado como uma trombeta, também é associado a força e liderança. Ocorre como
45
substantivo cerca de 156 vezes no Antigo Testamento e 7 vezes aparece para se
referir a pessoas que ocupam uma posição de liderança.
Acerca dessa afirmação Vine, Unger e Junior (2002, p.64) corroboram
acrescentando que além de ser um animal de muito valor, é também uma palavra
utilizada para retratar chefes, em sentido de figura política.
As características do carneiro em Dn 8 indicam que ele esteja sendo utilizado
no sentido metafórico indicando o cargo de uma liderança política. Ele se encontra no
mesmo local onde Daniel está, no rio Ulai (v.2-4). Aparece logo demonstrando a
expansão do seu poderio, ao se agitar em várias direções territoriais – Norte, Sul e na
direção do mar.
Os chifres também são uma figura de destaque utilizada nesta perícope, não
indicando apenas que são projeções de osso envoltas em uma pele mais dura,
normalmente curvadas e pontudas. Nas cabeças de gado, carneiros, bodes, etc. onde
se encontra duas. Mas segundo De Blois e Mueller (2020) os chifres estão
correlacionados a honra e a força, assim como o chifre erguido também simboliza o
orgulho ou confiança.
A característica que sempre acompanha quando se refere aos chifres é serem
‘grandes’ denotando que a questão por trás dessa palavra depende de seu uso no
texto. Se utilizado como adjetivo significa o “estado em que uma pessoa ou objeto tem
altura grande ou maior que a média” (DE BLOIS; MUELLER, 2020). E o seu uso
também se encontra diretamente relacionado a status.
Como um substantivo, De Blois e Mueller (2020) indicam o alto conceito que as
pessoas têm de si mesmos, ligado ao orgulho e arrogância. Enquanto, se utilizado
como um verbo no hifil, é a condição no qual o ser humano ou uma divindade torna
um objeto muito grande, maior que a estatura média. No qal indica coisas que estão
além do alcance humano, também indicando metáforas que se encontram além da
compreensão.
A narrativa do capítulo 8, repete este termo chifre 8x no decorrer da narrativa,
indicando a sua importância dentro dos acontecimentos narrados. O enfoque nas
consequências do duelo entre o bode e o carneiro especificam diversas vezes sobre
os seus chifres, que sempre são correlacionados a este adjetivo ‘grande’. Dos chifres
que o bode recebe um deles, o menor ‘crescerá demasiadamente’, e se tornará tão
grande que alcançará os céus.
46
Através dos seus chifres muito altos e que se elevam demonstram a aquele que
está recebendo a visão a sua grande força, poder, honra e alto status. Ao se
movimentar parece que o carneiro mostra a Daniel as direções pelas quais ele exerce
o seu poder. Acrescenta-se a confirmação que estes símbolos indicam, ninguém
conseguia arrebatar da sua mão, ele faz conforme lhe apraz (v.4). Não há quem tenha
coragem de desafiá-lo, tamanha a força que a sua imagem possui e demonstra o quão
potente ele é.
Este quesito também é consenso entre a maioria dos estudiosos de que o
carneiro represente a Pérsia, tendo como uma das maiores indicações a citação de
uma das capitais do império persa, “no capítulo 8, o carneiro é ligado ao Império Medo-
Persa” (LENNOX, 2017, p.274).
Observando as características que acompanham o carneiro é perceptível esta
ligação. A sua estadia na cidade de Susan, sua proximidade com o rio e os seus
grandes chifres demonstram a grandeza de seu império, assim como a sua
prosperidade econômica e domínio sobre os povos que estavam sob a posse de suas
mãos. Não há grandes indícios de revoltas durante o seu governo, o que também é
indicado na narrativa ao afirmar que ‘nada arrebatava da mão dele’ (v.4.). Conforme
se aumenta o seu chifre, isto é, seu poder, novos lugares eram alcançados através de
seu avanço, fazendo com que governos locais fossem empurrados para longe do
controle estatal ou da detenção autônoma de poder nacional.
A questão aqui levantada é: porque utilizar o carneiro, que é um animal querido
do povo judeu e que representa a mansidão neste texto onde o enfoque é a luta por
poder e conquista?
Após a queda do império babilônico, a Pérsia assumiu todos os territórios que
antes pertenciam a Babilônia e mantiveram o seu estilo de conquista, isto é, não
impuseram sobre os povos dominados a sua cultura. Diferente da Assíria que
misturava os povos para que eles perdessem a sua identidade e assim evitavam
“dores de cabeça” com possíveis rebeliões.
Assim como a Babilônia, o império persa permite que os povos conquistados
permaneçam juntos, em grupos e até mesmo possibilita a volta deles para a sua terra
(Esdras e Neemias), desde que estes lhes paguem os devidos tributos. Foi uma
dominação mais “pacífica” em comparação as outras. Talvez estas informações
possam ter influenciado o escritor na hora de identificar, correlacionar a imagem do
47
carneiro com a figura deste império. Além de haver nos escritos proféticos textos nos
quais certos líderes persas assumem uma figura messiânica (Is 44; 45).
Porém, mesmo que a submissão a outro império tenha ocorrido de forma
“pacífica” isso não significa que o povo conquistado queira permanecer “para sempre”
sob o jugo de outra nação. Para isso se mantêm na memória textos que lembrem ou
deem esperança ao povo, como demonstram Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002,
p.1317):
O império medo-persa é duplo, com a preponderância do grupo persa. Na perspectiva do autor, os persas ocupam a região oriental, por isso sua expansão se realiza em três direções apenas. Ele não vence só uma única fera, os babilônios, mas também uma série de reinos que tentavam resistir. Esse plural indica um olhar menos esquemático na presente visão. A figura do carneiro pode estar inspirada em Ez 31,17-21 e 39,18, ‘comereis a carne de heróis e beberei sangue dos príncipes da terra: eles serão os carneiros... e os bodes’. ‘Ufanando-se’ [Jr 48,26.42].
Nenhum sistema opressor será eterno, todos eles chegam ao fim mesmo que
haja certos “privilégios” não há nada melhor do que gozar da sua liberdade nacional.
b) Bode (v.5-8)
⁵ E eu estava tornar a compreender, e eis que bode veio do oeste sobre as faces de toda a terra e nada tocou na terra. E o bode [tinha] chifre, [em] visão entre [os] olhos. ⁶ E veio enquanto o carneiro, senhor, dono dos chifres que vi que permanecia perante [as] faces do rio. E correu contra ele, em exaltação [e] poder. ⁷ E vi ele que chegava ao lado próximo do carneiro. E se enfureceu contra ele, feriu o carneiro e estraçalhou os dois chifres dele, e não havia capacidade no carneiro para se levantar perante faces dele. Então o arremessou em terra e pisoteou ele, e não havia o que livrava o carneiro da mão dele. ⁸ E [o] bode tornou-se grande até muito, mas como poderoso dele foi quebrado o chifre, o grande. E subiu, [em] visão, quatro debaixo para os quatro ventos dos céus.
De repente enquanto Daniel ainda buscava compreender o que estava
acontecendo com o carneiro, do lado oeste surge um bode. Este bode percorre as
faces da terra sem sequer tocá-la, ele também possui um chifre, ou seja, também é
um detentor de poder. Ele vem direto na direção do carneiro que ainda se encontrava
próximo ao rio, correndo em grande exaltação e poder. De repente na visão surge o
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adversário que estava a altura para duelar contra aquele que agia conforme a sua
própria vontade.
O bode é outro animal também considerado limpo e fonte de peles, pêlos,
chifres. Segundo De Blois e Mueller (2020) também pode ser usado em sacrifícios,
porém às vezes é associado a demônios, e é considerado agressivo.
No verso 5 de nossa perícope a figura do bode surge agressivamente, como
que se viesse a algum tempo com os olhos fixos em sua vítima. Embora os dicionários
indiquem que tanto o bode quanto a cabra pudessem ser criados pelos pastores juntos,
neste texto vemos que estes dois animais não são nem um pouco amigáveis. O bode
chega e inquire o território ao qual o carneiro domina, tomando-o para si. A narrativa
indica que um novo líder aparece neste cenário que se desenrola diante de Daniel.
Quando o bode alcança o carneiro, ele se enche de fúria e o fere, o golpeia,
sem dar chances para que este tente contra-atacar o seu agressor. Além de feri-lo há
ênfase na destruição dos seus dois chifres que assim denotam a sua fraqueza. Aquele
que tinha grande poder, status e força, agora se encontrava humilhado e tendo a sua
confiança arrancada de si, e o seu orgulho despedaçado. Interessante observar que
a luta envolve dois objetos de sacrifício no templo.
Os dois animais eram importantes para o ritual do sacrifício nos cultos no
templo. Ao utilizá-los para caracterizar figuras políticas estrangeiras, o autor também
parece indicar o envolvimento dessas autoridades com este local. O carneiro, a Pérsia,
permite a reconstrução e retomada dos costumes dos antepassados. Tornando-se
querido por tal permissão, enquanto o bode, isto é a Grécia, também possuíra uma
influência no templo, entretanto isto só ocorre muito posteriormente, exatamente como
a própria visão correlacionará ao aproximar a figura do pequeno chifre afetando ao
santuário e os costumes litúrgicos que o cercam.
Observe a importância do chifre nesta narrativa, após perder os seus grandes
chifres o carneiro não é mais capaz de sequer se levantar (v.7) contra o seu agressor.
Então ele é lançado em terra e o seu fim é ser pisoteado. Novamente ao ver este
acontecimento ninguém tinha capacidade de se levantar contra este novo líder
poderoso ou de resistir a sua dominação, já que nada se arrebatava das mãos do
carneiro.
O vocábulo terra (ץ ר nesta narrativa também chama a atenção, pois ela (א
designa território, nação. “É oposição ao céu; […] uma região ou lote específico” (DE
49
BLOIS; MUELLER, 2020). Ou seja, indica uma área que já está ocupada por uma tribo
ou nação.
Quando nossa narrativa tenta descrever o poder adquirido pelos líderes
animalescos ela afirma que ninguém pode arrebatar da mão deles (v.4; 7), ninguém
tem força o suficiente para se opor a estas fontes de poder que se levantaram.
A palavra mão (ו יד além de indicar uma parte do corpo humano, também pode (מ
ser utilizada para indicar poder e/ou domínio (VINE; UNGER; JUNIOR, 2002, p.177).
Siqueira (2005, p.25) corrobora esta afirmação e acrescenta que este termo pode
conotar além de poder, a força do ser humano e das suas instituições (Gn31,29; 41,35;
Jó 30,2).
O bode se torna ainda maior depois desta batalha e mui poderoso, entretanto
o seu chifre que ficava entre os olhos é quebrado, indicando uma mudança abrupta
dentro da narrativa. Ao contrário do que se espera ocorrer seguindo a lógica do que
aconteceu com o carneiro após este perder os seus dois chifres o bode em vez de
perder as suas forças, ganha novos chifres. Agora ele possui quatro novos chifres que
se expandem na direção dos quatro ventos dos céus.
Stefanovic (2007, p.299), observa que esses quatro chifres também
correspondem as quatro pontas do altar das ofertas queimadas em Ex 27,2 e 30,2,
pontas que apontavam também para as quatro direções da bússola. Indicando talvez
uma alusão ao texto de Amós 3,14.
Outro chifre então surge dentre estes quatro, um menor do que dos outros, mas
que logo cresce demasiadamente e toma o domínio das seguintes regiões: Sul/Negeb,
o Leste e à Judéia.
Segundo Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002, p.1315-1317) o capítulo
rapidamente dá um salto partindo de Alexandre o Grande para Antíoco IV Epífanes.
O material histórico que serve de pano de fundo para esta visão são os livros dos
Macabeus. O levante contra a Pérsia pode ser lido em 1Mc 1,1-3.
Lennox (2017, p.276) auxilia na datação desta batalha entre o bode e o carneiro,
que ocorreu em Isso no ano de 333 a.C, batalha em que Alexandre derrotou Dario III.
Dez anos depois Alexandre morre em 323 a.C (1Mc 1,4-9), no palácio de
Nabucodonosor, na Babilônia.
Como Alexandre o grande, não possuía herdeiros o seu reino foi dividido entre
os seus quatro generais (os quatro chifres que crescem nas quatro direções dos céus).
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Seus generais foram: Cassandro (Grécia e Macedônia), Lisímaco (Trácia e Ásia
Menor), Seleuco (Norte da Síria, Babilônia e a Pérsia), Ptolomeu (Sul da Síria, Egito
e Judéia). Quanto ao pequeno chifre que crescerá (v.9):
Antíoco encontrava-se em Roma como refém. Ao morrer envenenado o seu irmão Seleuco IV, Antíoco consegue fugir e suplantar o herdeiro, Demétrio, com a ajuda de Eumenes de Pérgamo. Ele lutou contra o Egito, ‘em direção do sul’, e contra a Pérsia, ‘em direção leste’ [1Mc 3,31.37; 6,1-4]. A pérola, ou jóia, são Jerusalém e Judá: ‘a pérola das nações em herança’ [Jr 3,19], ‘será a pérola das nações’ [Ez 20,6]. A expressão retorna em 11,16.41 (ALONSO SCHÖKEL; SICRE DÍAZ, 2002, p.1318)
Infelizmente por causa da sua localização geográfica, a Judeia, o belo, ficou
prensada entre estes dois poderosos reinos (selêucidas e ptolomeus) e acabou
sofrendo grandes danos quando estes entravam em batalha (denominadas de guerras
sírias).
Antíoco IV Epífanes, o pequeno chifre, assumirá ao poder por volta de 175 a.C
e terminará o seu reinado em 164 a.C. Lennox (2017, p.277) afirma que essa
conotação de chifre pequeno encaixa perfeitamente ao que se sabe da personalidade
de Antíoco IV Epífanes, que era considerado como um homem bajulador, cujo
temperamento era terrível.
3) Uma nova ameaça (v.9-12)
9 E do outro deles saiu outro chifre pequeno e crescendo demasiadamente para o Sul/Negeb e para o levante e para direção à belo (Palestina). ¹0 E se tornou grande tanto quanto exército de os céus e fez cair [em] terra o exército e das estrelas e pisando-os. ¹¹ E tanto quanto oficial do exército se tornou grande e por ele tornou elevado, foi tirado a continuidade e foi lançado local de santuário seu. ¹² E exército foi dado sobre a continuidade em transgressão e arremessou [a] verdade [em] terra e agiu e fez prosperar.
Assim como aconteceu anteriormente, o bode não tem nenhum adversário, o
que facilita a este pequeno chifre a continuar crescendo. E este crescimento chega a
ser comparado com a altura ao qual o próprio exército do céu se encontra e este chifre
consegue os fazer cair em terra, tanto o exército como as estrelas, e assim como fez
com o seu antigo adversário, o bode pisa nestes também.
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Um novo chifre surge no bode, desta vez menor do que os outros
aparentemente, porém isso não significa que ele seja fraco, pois ele crescerá
demasiadamente, logo se tornando capaz de tomar novos territórios.
Ele então se eleva até a altura do exército que não apenas conota um grupo
militar, como também pode indicar o coletivo de todos os corpos celestes que
possuem luz. Segundo De Blois e Mueller (2020), são a criação de Deus e
erroneamente eram adorados pelas pessoas, fazendo exatamente o contrário do que
se exigia a Lei de Deus. Mas em Daniel 8, possivelmente pode ter sido utilizado este
vocábulo como uma metáfora para indicar o povo de Deus. Afinal este termo também
pode ser utilizado para se referir as ‘hostes de Yhwh’ ou ‘hostes dos céus’, seres
celestiais que ficam ao redor do trono de Deus, executando a sua vontade na terra e
o louvando.
Os levantamentos acima acerca do que pode ser o exército, colaboram para
uma leitura mais próxima a do contexto ao qual este povo judaíta está inserido, isto é,
o século II a.C como veremos a seguir. A chegada deste bode desafia e chega a
pisotear no povo de Deus (v.10), mas a resposta é clara, esta humilhação não
perdurará por muito tempo (v.14).
Os céus são delimitados como uma área mais alta do que a terra. Vine, Unger,
Junior (2002, p.67), afirmam que o âmbito ao qual os corpos celestes (estrela, sol e
lua) pertencem, também podem denotar toda a criação. É também a localização da
habitação de Deus.
Como se não fosse o bastante seus atos contra o relacionamento do povo com
seu Deus, o bode se eleva até os céus e desafia o exército celeste, pisa no exército
das estrelas (v.10-11). Ele continua suas exaltações até que alcança o oficial do
exército.
Após expandir e fortificar o seu domínio, o reinado deste bode então desafia ao
exército dos céus. A liderança deste novo governo se apresenta sem qualquer
respeito, e mostra arrogância perante Deus ao se atrever chegar o lugar da sua
habitação (isto é, os céus). Ao jogar o seu exército em terra, a conotação utilizada
para descrever o povo de YHWH, este novo líder audaciosamente está contrapondo
o povo de YHWH levando-os a ficar em posição oposta aos céus, ou seja, ao seu
próprio Deus.
52
Ele consegue isso, pois se torna tão grande quanto o oficial do exército se
encontra, ou seja, quem assumiria o papel do oficial do exército de Deus que teria o
poder de ficar, ou se encontrar no local da habitação de Deus? O próprio sacerdote.
Somente se este novo líder ocupasse um cargo tão alto quanto o de um
sacerdote ele teria algum poder para cessar a continuidade.
Expressão, continuidade, que segundo Vine, Unger, Junior (2002, p.67)
normalmente vem acompanhada pela palavra pão, significando pão contínuo, está
relacionada a ações repetitivas, ou regulares. Em Ex 29,42 indicar-se-á o
sacrifício/holocausto contínuo. Oferta oferecida diariamente no período da manhã ou
a tarde. É um holocausto ininterrupto.
Os atos feitos após o bode sair em vitória de sua batalha é se tornar elevado,
tirar a continuidade e lançar/desolar o local sagrado (v.11-12). O sacrifício é um dos
elementos principais do culto judaico. É a forma pela qual o povo entra em concerto
com o seu Deus, podendo assim se redimir dos seus erros.
A interrupção dos sacrifícios faz com que o ato de purificação cesse, logo o
povo se torna impuro, e continuam lhes sendo acrescidos as suas transgressões. Sem
o rito de pureza o povo não pode se achegar a Deus. Quando o bode corta a
continuidade, ele corta a relação estreita de YHWH com o seu povo.
Este líder audacioso, contém poder suficiente para possuir o controle até
mesmo dentro da esfera religiosa a ponto de, insolentemente interromper o sacrifício
contínuo e adentrar no local sagrado. Como comentamos anteriormente, sem o
sacrifício não há a remissão de pecados, e sem remissão desses pecados, não há
santidade. Assim o tirano lança sobre a terra a verdade e têm êxito em seus feitos já
que consegue prosperar.
Corroborando com as afirmações acima, Shea (1998, p.40), analisa esta parte
da profecia de forma teológica e afirma que esta parte faz uma transição no qual é
denominada de:
‘dimensão vertical da apocalíptica’, pois ela nos leva até o santuário celestial. Ali vemos o Príncipe cumprindo o ministério diário (‘contínuo’ ou tamid) em favor de Seu povo aqui na terra. Em outras palavras. Ele aplica os benefícios de Seu sacrifício ao povo ela terra que respondeu a Seu chamado.
No início de seu governo Antíoco IV Epífanes havia permitido que o povo fruísse
de autonomia para exercer os seus costumes comumente, entretanto mais
53
posteriormente ele voltará atrás em sua palavra e impedirá que o povo siga com os
seus costumes e lhes imporá a cultura helenista.
Segundo Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002, p.1318) estes versículos são
difíceis e assim como, afirmamos anteriormente, pode ser lido de duas formas. Este
exército celeste pode se referir, ao qual Deus é o oficial, ao mesmo passo que também
pode indicar o sumo sacerdote, como ocupante deste cargo, se este for o caso estaria
então se referindo a 1Mc 1.
Em 2Mc 9,10 Antíoco IV Epífanes será descrito como “aquele que pouco antes
parecia capaz de tocar as estrelas”, talvez o autor aqui estivesse correlacionando a
passagem de Is 14,13. Enquanto formos pela opção de que este desafiou ao sumo
sacerdote se pode compreender
a) além dos exércitos estelares, Deus tem na terra um exército seu, ‘os esquadrões de Israel’ [Ex 12,7.41.51]; o autor sacerdotal descreve com prazer a marcha pelo deserto como o avanço, quase que o desfile de um exército. De modo particular são destinados a ‘fazer o serviço’ os empregados do santuário, preenchendo dessa forma o serviço militar que os outros cumprem: é isto que desenvolve, sem temor as repetições, o livro de Números, como 4,3.23.30.35.39.43; 8,24s. b) 1Cr utiliza a expressão hebraica s´ar seba’ aplicada aos chefes dos levitas [caps. 15; 19,16-18], também aplica o termo a chefes militares [cap.27]. c) O texto passa em seguida o templo e os sacrifícios, ampliando o tema do culto. Nessa leitura, tratar-se-ia dos sacerdotes e do sumo sacerdote, Onias (ALONSO SCHÖKEL; SICRE DÍAZ, 2002, p.1318)
Uma leitura que poderia ainda colaborar com esta interpretação se encontra
em Js 5,14, no qual Deus assume o papel de líder dos exércitos de Israel. Portanto,
ao mexer com o povo judaíta e todas as suas tradições, forma de culto, o intrépido
Antíoco IV Epífanes estaria desafiando assim o próprio YHWH. Este desafio contra a
divindade judaíta poderia ser lida em 1Mc 1,54.
A verdade ao qual o v.12 faz referência talvez esteja indicando diretamente “a
verdade ou fidelidade […] verdadeira religião, os livros autênticos [alusão ao fato de
1Mc 1,54ss]; cf. Ml 2,6 […] Sl 86,11” (ALONSO SCHÖKEL; SICRE DÍAZ, 2002,
p.1319). De forma que talvez possam estes livros autênticos serem um indício ou
referência acerca da própria Torá, pois se fosse incutido ao povo judaíta a inculturação
helênica não haveria mais motivos para que estes sigam as Leis de Moisés, ou seja,
a verdade da Torá.
54
O atrevimento de Antíoco IV Epífanes é tanto que o leva a se intrometer não
apenas no âmbito social e político do povo judaíta, mas interfere até mesmo na esfera
religiosa. E obviamente ao fazer isso ele fará com que desperte no povo um
sentimento de insatisfação e descrédito nas instituições humanas. Surge aqui o marco
histórico que é propício para a leitura apocalíptica. O povo necessita de uma resposta
divina sobre o que haveria de suceder e como esta história haveria de se concluir.
IV) Lamento e resposta aos santos (v.13-14)
¹³ Então escutei um santo que falava, e disse um santo para alguém o que falava: “até quando?” a visão, a continuidade e a transgressão desolação estabelecer e santuário e exército pisoteados. ¹⁴ E disse para mim até noite, manhã duas mil e trezentos, então justificarei santuário.
Após ver a sucessão de toda essa batalha, Daniel então ouve um santo indagar
a outro ‘até quando?’ (v.13). O clamor indica a insatisfação do espectador, ele soa em
sua fala como alguém que já não consegue mais ver um fim favorável a situação ao
qual tem presenciado. Sua esperança se esvai conforme vê o êxito na crueldade do
bode ser implementado. É o olhar de alguém que já não suporta ver essa humilhação
continuar e nada ser feito a respeito disso.
O santo nesta narrativa segundo Stefanovic (2007, p.308) indica ao usar as
palavras ‘ehad-qadc que correspondem ao vocábulo qaddis do aramaico e indicam
um ser angelical, era “’um santo’ que ministra no ‘lugar santo’”. Se observado o cenário
do templo, esse santo era aquele que ministrava diretamente perante o local santo.
Stefanivic ainda acrescenta que este santo seria um dos seres pertencentes as
miríades que ficavam ao redor do trono do capítulo 7, enquanto neste capítulo seria
parte dos membros do exército do céu citados nos versos 10-12.
Collins (1999, p.85-86) corrobora neste quesito afirmando que há
interpretações acerca dos santos os correlacionando a anjos que se analisados em
contexto apocalíptico poderiam ser uma indicação aos judeus piedosos. Em outras
leituras esses santos seriam símbolos mítico-realistas contrapondo os símbolos
alegóricos do carneiro e da cabra. A justificação para tal linha de pensamento se
baseia na mudança verbal que sugere uma mudança do autor na descrição da
alegoria, ele poderia ter utilizado tal artifício como já o fez no capítulo anterior, Dn 7.
55
Ao analisar tais símbolos, em comparação aos outros utilizados nesta narrativa
que estão ligados a figuras históricas, podemos compreender que esta expressão não
esteja fazendo referência a seres angelicais, mas sim aos próprios judaítas piedosos,
assim como Collins indicou. A indagação utilizada em sua conversa aponta para uma
inquietação do espectador que aparentemente está pronto para agir se assim for
necessário ou requisitado. Portanto, se levarmos em consideração o contexto histórico
por trás desta visão, quem poderia ser esses judaítas piedosos que estavam inseridos
justamente no século II a.C.? Teríamos aí, talvez uma referência direta aos macabeus
na própria visão de Daniel 8.
A pergunta “até quando?” parece indicar que este santo aguarda apenas uma
aprovação para que realize alguma ação em resposta a todos estes atos realizados
que a seu ver devem ser retaliados. Há uma tensão na narrativa, parece que ele
espera apenas por uma palavra como “prossiga” para poder então contra-atacar este
inimigo “iníquo”.
A visão então se encerra com a resposta de que isso perduraria até que se
passassem duas mil e trezentas manhãs e noites (v.14), então aquele que responde
justificaria o local sagrado.
O santo que se encarrega de entregar a resposta ao questionamento levantado,
segundo Stefanovic (2007, p.309) faz referência a um dia simbólico, segundo o
modelo de Gênesis 1, que consiste numa tarde e manhã. Os números 3, 4, 7, 10, etc.,
geralmente são números simbólicos dentro dos textos apocalípticos. Entretanto 2.300
não seria um desses números, mas se dividindo os números procurando obter
igualmente o número de noites e manhãs, se chega a 1.150 dias, podendo assim
harmonizar os tempos de ‘meio período’ em Dn 7,25, que totalizam 1.260 dias.
Entretanto não há razão para separar as manhãs e tardes, ou noites.
Esta justificação assim como o sentido ao qual a palavra se refere também
pode ser lida de duas maneiras. Primeiro, o próprio YHWH punirá aquele que se
atreveu a desafiá-lo se achegando a sua posição, ou que tentou tomar o seu trono.
Segundo, somente o sumo sacerdote poderia fazer algo a respeito de todos estes
acontecimentos e, portanto, todos deveriam ficar atentos a sua posição ou comando.
Desta forma Pagán (2010, p.126) afirma que
Quem redatou finalmente o livro de Daniel durante esta época de crise nacional [c.164 a.C.] deveria fazer parte de um grupo de pessoas muito religiosas e espirituais [conhecidas como <<hassidim>> ou
56
piedosos] que decidiram ser fieis a Deus em meio as abominações extraordinárias relacionadas as políticas helenistas de Antíoco IV Epífanes. Este grupo de judeus leais as tradições ancestrais do povo não se animaram frente aos ataques e avanços violentos dessas políticas de dominação continua e sistemático extermínio. O livro de Daniel surge em meio a essas pessoas de fé.
Esperar no sumo sacerdote também apontava para um problema, pois a classe
sacerdotal parecia estar calçada nos pés de Antíoco IV Epífanes. Segundo Souza
(2011, p.74), se afirma que a ganância por dinheiro e poder corrompeu a classe
sacerdotal de Jerusalém. Em 174 a.C Jasão, o irmão do sumo sacerdote Onias III,
compra a função do sumo sacerdócio pagando uma grande soma de dinheiro ao rei
(2Mc 4,7-9). Em 172 a.C, Menelau fará o mesmo aumentando o lance da compra do
título sacerdotal e conseguirá tomar para si a posição (2Mc 4,23-24. Este novo sumo
sacerdote em 170 a.C será o mandante do assassinato do legítimo sacerdote, Onias
III (2Mc 4,30-35).
Este cenário dentro do âmbito religioso apenas serve para piorar o quadro de
esperança do povo. E agora o que poderia ser feito se aquele que poderia livrar o seu
próprio povo acabou se corrompendo? A corrupção fez com que o povo ficasse sem
um rei próprio, seus profetas e agora também eles haviam perdido o seu sumo
sacerdote.
A resposta para esta insegurança parece surgir no meio de uma classe que
foge para o deserto, é a família sacerdotal dos macabeus. Este grupo corajoso, parece
ler esta profecia e subentender que o tempo da remissão havia chegado. Em vez de
aguardar, eles se levantam e decidem que estava na hora de assumirem o papel do
exército celeste, e sob a liderança de um dos irmãos macabeus, buscarão remir o
local sagrado e colocar em prática novamente o holocausto contínuo.
1.7 Considerações Preliminares
A perícope de Daniel 8,1-14 é um texto pertencente ao gênero apocalíptico, no
qual é possível remontar ao período histórico vivido durante o século II a.C conhecido
como a revolta macabaica.
Para um melhor aproveitamento na pesquisa sobre esta perícope,
preocupamo-nos em trazer, na introdução deste capítulo um breve panorama geral
sobre a obra de Daniel. Desta forma foi possível compreender o ambiente da obra em
57
que este texto foi concebido por seu autor, ou introduzido na obra através do seu
redator final. Aos olhos dos leitores a existência e a colocação deste texto dentro do
segundo bloco da obra, a parte apocalíptica, faz sentido e é facilmente aceito por
quem está lendo a obra. Isto facilmente pode ser afirmado, visto que a datação da
obra aponta para um período muito posterior ao que inicialmente a narrativa indica
pertencer. Além dos detalhes específicos provindos do século II a.C. entretanto numa
rápida leitura da obra, tais detalhes, principalmente acerca dos símbolos adotados
pelo autor ao escrever as narrativas apocalípticas não são notados tão facilmente.
Ao realizarmos a análise exegética desta perícope, podemos identificar os
principais símbolos a serem analisados em nossa pesquisa, assim como podemos
aprofundar nosso conhecimento acerca daquilo que o autor, ou redator final, procurou
assinalar, chamando a atenção de seus leitores. Ao compreendermos sobre o gênero
apocalíptico e o cenário ao qual ele está propenso a se difundir, vemos que tal texto
tem um propósito, utilidade e papel a exercer dentro de um grupo que se encontra em
determinados momentos delicados dentro de uma sociedade.
A crise que assusta e leva a muitos a se desesperarem, através dos textos
apocalípticos são encorajados a buscar desenvolver e manter as suas esperanças,
por menores que sejam, vivas. Assim tais narrativas não trabalham no individual
apenas, mas no encorajamento e engajamento do grupo que tem contato com tal
literatura para que um influencie o outro.
Este estudo e grande esforço em destacar os símbolos utilizados neste gênero
possibilitaram uma melhor compreensão também no que se refere aos
acontecimentos históricos. Em suma, na narrativa há a menção de, pelo menos, três
grupos que são considerados fontes de poder: o carneiro, império persa; o bode,
Império helênico; e o exército dos céus, que aqui lemos na designação do oficial deste
exército dos céus, que pode estar simbolizando a ocupação do sumo sacerdote, e o
povo como fazendo parte do corpo deste exército. Isto sem contar a menção do
próprio rei Belshazzar no início desta perícope, que é utilizado pelo autor apenas como
um mecanismo ou recurso para datar o “acontecimento” de tal relato.
Por ora, optamos por não adentrar muito profundamente no contexto histórico
ao qual esta perícope pertence e faz referência. Mas apenas pincelar esses períodos
(persa, helênico e macabaico), visto que nos próximos capítulos nos ocuparemos em
aprofundá-los retomando a sequência aqui estudada e todos os simbolismos
58
empregados no decorrer de nossa narrativa. Dessa forma prosseguiremos em
empregá-los dentro dos indícios históricos aos quais eles pertencem.
59
2 O CONFRONTO ENTRE O CARNEIRO E O BODE: CONTEXTO HISTÓRICO
O pano de fundo da visão apresentada a Daniel é tão complexo e, carrega no
corpo do texto, minuciosos detalhes históricos. Estes detalhes, à primeira vista,
parecem ser utilizados com a simples função de compor parte de um elemento maior,
fornecendo maiores particularidades e características que compõe esses símbolos
presentes no relato. O que demonstra ao leitor de seu texto que de fato, aquele que o
escreveu possuía um enorme conhecimento histórico acerca dos acontecimentos
muito antigos que envolveram não apenas uma grande força política-histórica, mas
três delas, sendo apresentadas no relato na sequência temporal: babilônica, persa e
grega.
Para nos aprofundarmos nesses aspectos envolvidos dentro desta narrativa,
retomaremos esses símbolos e elementos citados no decorrer do capítulo anterior
com o intuito de aprofundá-los em seu sentido semântico e principalmente histórico.
2.1 Belshazzar: a Queda da Babilônia
“No ano terceiro do reinado de Belshazzar o rei...” (Dn 8,1)
Daniel data a sua visão neste capítulo como recebida durante o reinado de
Belshazzar, filho de Nabônido, o último governador do império babilônico. Não é à toa
que tal figura esteja sendo citada. Como mencionado anteriormente, o escritor de
Daniel procura passar credibilidade ao seu leitor e o faz costurando em seu relato
figuras e períodos de forma que aquele que lê consiga se localizar facilmente dentro
da linha temporal proposta.
Sendo assim, dentro de uma única visão são sinalizadas três grandes forças
políticas que estabeleceram fortes influências sobre o povo judeu. Interessantemente
elas aparecem no texto mantendo a ordem cronológica histórica. A primeira é a
Babilônia, a qual, durante o domínio de Nabucodonosor II (604-562 a.C.), levou em
cativeiro o povo de Judá em 598 a.C., durante o reinado de Jeoaquim.
Durante o período de governo de Nabucodonosor II, a Babilônia passou por
uma grande reforma, na qual trabalhos de reconstrução e embelezamento foram um
60
dos seus principais projetos realizados. Rosa (2018, p.210) detalha que “respeitada e
enaltecida, a cidade constituía o centro político de um extenso território. Na sua
arquitetura monumental, transparecia toda a grandeza e majestade do poder real”.
Dentre as obras realizadas podemos citar: a finalização das fortificações iniciadas pelo
seu antecessor, construção de fossos, jardins suspensos, abertura de canais, entre
outros.
Foi durante o seu reinado que a Babilônia alcançou o seu período de maior
glória. Na periferia, não somente babilônios, mas os estrangeiros trazidos cativos de
diversas nações, também conviviam. Ao contrário, portanto, da prática assíria em
relação aos povos conquistados, a Babilônia não misturava os povos cativos ao ponto
de eles perderem a sua própria identidade. Era permitido que os exilados
constituíssem as suas vidas, próximos entre si, e se desenvolvessem na sociedade.
Esses povos eram trazidos através das deportações, como as que ocorreram em 598
a.C. e em 587 a.C, por exemplo.
O poder no qual os reis possuíam e faziam uso, era normalmente justificado
através de uma “graça” superior, isto é, o poder de governar era conferido pelos seus
deuses, ou por um deus tutelar da nação. Na Babilônia este caso também não era
diferente dos outros povos, Marduk era o deus babilônico que não só fornecia proteção
ao império, mas era ele quem também concedia o poder de governo ao rei em
exercício. E assim, como outros costumes, o favor do deus dependia de certa
obediência dos soberanos, evitando assim que a nação mergulhasse no caos.
Acerca da celebração ao deus tutelar da Babilônia, Rosa (2018, p.211) aponta
que este culto ocorria simultaneamente em três vezes distintas, sendo elas: o culto à
cidade babilônica, um culto nacional (ao país babilônico) e por fim, mas não menos
importante o culto à realeza babilônica. Sendo o culto mais importante celebrado no
mês de nisannu e durava em torno de 12 dias, no qual um poema (enūma eliš) era
citado como um lembrete sobre a ameaça constante que a população e a monarquia
viviam, caso Marduk retirasse a sua proteção deles. Se isto acontecesse, segundo o
mito relacionado a divindade, se relata que o mundo mergulharia novamente no caos.
Portanto, a fidelidade dos reis babilônicos ao seu deus patrono era considerada
de extrema importância, pois a rejeição deles por sua divindade resultaria em
desastres que seriam sentidos não apenas pela monarquia, mas também por toda a
população de seu reino. Compreender este detalhe por trás da crença babilônica
permite que se capte o jogo de poder e a influência que o sacerdócio babilônico
61
possuía, assim como a estratégia utilizada por Ciro quando este investiu contra a
Babilônia.
A citação de Belshazzar na visão de Daniel nos leva a questionar o porquê de
tal figura ser indicada no relato. Nabônido é considerado o último rei babilônico, ele
curiosamente não é citado por Daniel em sua obra, e governou entre os anos de 556-
539 a.C., ele nomeou Belshazzar, o seu filho, como seu corregente durante o mesmo
período de seu governo, isto é, entre os anos de 556-539 a.C., e com a sua morte foi
marcado o fim do Império Neo-Babilônico.
Quando se analisa os relatos acerca do governo de Nabônido e Belshazzar, se
nota que há mais queixas do que elogios. A principal denúncia é feita pela insatisfação
do próprio sacerdócio de Marduk, deus tutelar babilônico, contra os seus monarcas.
Ao mesmo tempo que Marduk servirá de base para que Ciro, o grande, receba o apoio
desses mesmos sacerdotes quando este tomar posse da Babilônia.
Segundo o relato do cilindro de Ciro63 sobre o princípio da queda da Babilônia,
Marduk afirma ter enviado a ele, Ciro, uma ordem para que este marchasse para lá e
a tomasse, pois o próprio Marduk estaria indo a batalha junto dele. Ao fazer este tipo
de afirmação ao povo babilônico, Ciro astuciosamente tornou mais fácil a anexação
da Babilônia para o seu domínio.
O apoio religioso foi um dos principais pontos que facilitaram à tomada da
Babilônia, pois o apoio de Marduk a Ciro influenciou que as camadas mais populares
o vissem positivamente. Entretanto, segundo Rosa (2018, p.210), podemos elencar
mais alguns aspectos que também acabaram servindo para que Ciro fosse favorecido:
tudo aponta para que as reformas religiosas a cabo por Nabónido e a sua prolongada ausência da capital tenham levado a um crescente descontentamento da população. Assim, ao entrar na Babilónia, Ciro pôde aproveitar este descontentamento para se apresentar perante os seus habitantes como um verdadeiro libertador. O discurso de Ciro pretendia certamente angariar uma base de apoio local que lhe permitisse proceder a uma integração segura da Babilónia no império Persa.
63 “Descoberto em Hormuzd Rassam em Esagila, ou grandioso templo de Marduk, na Babilônia em
1879 […].Dos três textos, o Cilindro de Ciro é o único que dá informação genealógica. Neste texto, composto certamente pelo sacerdote de Marduk na Babilônia, Ciro é chamado ‘filho de Kambuziya [Cambyses], grande rei, rei de Anshan, neto de Kurash [Ciro], grande rei, rei de Anshan, bisneto de Shishpish [Teipes], grande rei, rei de Anshan” (POTT, 2005, p.13).
62
De maneira perspicaz Ciro utiliza da situação enfrentada no país a seu favor e
traça uma estratégia em cima do ponto fraco de seu inimigo.
Uma das primeiras medidas tomadas por Nabônido durante o seu governo foi
cessar as celebrações de Marduk e se ausentar da capital preferindo ir residir no oásis
de Teima. Deixando assim Belshazzar, seu filho, encarregado de coordenar a capital
do império logo no início de seu reinado. Além disso se conta que o soberano parecia
favorecer ao deus da lua Sîn, que tinha por residência a cidade de Teima, local de seu
santuário. Esta seria a justificativa do porquê o soberano se retirou para este local,
com o intuito de reestruturar o lugar da morada do deus da lua. Essa preferência teria
sido induzida pela mãe do soberano que era devota ao deus Sîn.
Acerca desta decisão tomada por Nabônido, Rosa (2018, p.212) explana que
ao abandonar o culto a Marduk, o próprio Nabônido estava abrindo mão de duas
esferas em seu governo. Na esfera cosmológica o renovo de sua aliança com o deus
tutelar da nação, que significava proteção e benção nas colheitas, o que causou
grande preocupação na população. Durante a celebração se traziam os deuses de
diferentes locais do reino, como que para que assim pudessem renovar as suas
alianças para com o deus-rei. Na esfera política essa presença de outras divindades
assegurava a submissão de outras regiões à Babilônia.
Ao tomar tal decisão, talvez Nabônido e Belshazzar não tenham levado em
consideração o que elas poderiam acarretar ao seu governo como, por exemplo, o
enfraquecimento de suas alianças políticas, insatisfação popular frente as
inseguranças, resultado do abandono a Marduk. Também a forma pela qual os
sacerdotes do deus tutelar agiriam com base no desfavor do rei em relação as
celebrações, etc.
Ao levar em consideração esta breve citação de Daniel, sobre o governo
“vigente”, esse governo de Belshazzar que foi em síntese marcado por insatisfação e
desejo para que seus políticos tivessem ao menos mantido os compromissos para
com seu povo e classe sacerdotal. Como veremos mais adiante o que refletirá este
descontentamento da classe sacerdotal, quando abordarmos o surgimento do
carneiro.
2.2 Susan, em Elam; o Berço do Carneiro
63
“E vi na visão, e aconteceu em ver-me e eu [estava] em Susan, o palácio que [fica] em Elam a satrapia. E vi na visão e eu estava junto ao rio Ulai” (Dn 8,2)
A citação de um local específico para o recebimento de tal visão também é um
tanto quanto curiosa, por isso nos atentaremos para Susan a província de Elam, mais
especificamente a localidade próxima ao rio Ulai. Mas qual a importância por citar tal
cidade neste relato e qual o peso que ela poderia exercer dentro de nossa narrativa?
Como citado no capítulo anterior, a localização de Susan e o rio Ulai servem
para dois propósitos, indicar o conhecimento do autor sobre aquilo que está relatando
e localizar o seu leitor acerca da localização onde ocorreu tais acontecimentos. Não
são afirmações do acaso ou de seu próprio imaginário. Assim como também aponta
para a importância do local, principalmente para a próxima figura que será introduzida
na narrativa.
Burgan (2010, p.20) afirma que das tribos que já existiam, os elamitas eram
considerados os mais importantes dentre eles, além de ser um povo antigo, eles já
possuíam a sua própria escrita cuneiforme. Não apenas isso, mas também
dominavam certas habilidades metalúrgicas, com olaria e até mesmo na área de
arquitetura.
Como podemos observar Elam já era um local bem desenvolvido, e assim como
os sumérios já faziam, em Elam também se escrevia em tábuas de argila. Quando
observamos a história persa podemos observar a presença de Elam em vários
aspectos como, por exemplo, a língua elamita sendo um dos idiomas oficiais do
Estado. Logo, se percebe que este local, sua cultura e história eram considerados
importantes para os persas.
Neste sentido, Pott (2005, p.11) aponta que a pedra utilizada para a construção
de uma coluna no palácio de Dário veio de um vilarejo elamita chamado Hapiradush
ou Abiradu, o que ilustra outra contribuição elamita. Os elamitas também possuíam
uma técnica de contagem, textos de fortificação e tesouraria, alguns destes
documentos foram recuperados em Persépolis, e assim revelam mais evidências de
um legado elamita dentro do procedimento administrativo persa.
As áreas consideradas mais importantes do território elamita eram Anshan
(localizado no lado oriental de Elam) e Susa (localizada no lado ocidental). Susan era
uma “terra ao sul da Mesopotâmia que se estendia pelas montanhas Zagros da Pérsia
até o Leste” (FREEMAN, 2016, p.259).
64
Anshan e as cidades vizinhas foram governadas pela dinastia persa fundada
por Teipes (635-610 a.C.). “Teipes era filho de Arquemenes [data desconhecida],
dando o nome da dinastia – os arquemênedes. O neto de Teipes, Cambises I [585-
559 b.c.e.] concordou com uma aliança com a Média […]. Por volta de 575 b.c.e.,
Cambises teve um filho, Ciro” (BURGAN, 2010, p.23). Ressalta-se aqui que as
histórias acerca do nascimento de Ciro e a sua infância possuem muitas discordâncias
e versões diferenciadas.
Ciro assumirá o trono de Anshan por volta de 559 a.C., a Pérsia neste período
ainda não passava de dois reinos pequenos, até que Ciro através de campanhas
militares une a Pérsia e procura prosseguir dando início a sua busca por conquistar
mais locais e assim subjugá-los ao seu domínio.
Vemos, portanto, que a escolha deste local, assim como a sua citação de
Belshazzar estão devidamente correlacionados no desenvolvimento histórico narrado
dentro da visão tida por Daniel. Como afirma Vaux e M.A. (1893, p.25-26) antes de se
denominar rei da Pérsia, Ciro já se autodenominava como rei de Anshan, distrito de
Elam. Segundo o próprio, ele provinha de uma linhagem que liderava a região,
entretanto Ciro não se tornou o rei da Pérsia até os anos de 550 e 547 a.C., sendo
que a primeira vez na qual ele se intitulou como ‘rei da Pérsia’ ocorreu somente em
547 a.C. Waters (2014, p.21) corrobora afirmando que os elamitas dominaram aquela
área desde o quarto milênio a.C. até que os medos e persas se estabeleceram na
região.
Não é à toa que o carneiro, no verso 3, se encontre diante das faces do rio, o
local do surgimento da figura poderosa vem literalmente do berço desta nação. Não é
um cenário desconhecido para o carneiro, ele sabe onde tem a água para beber e o
conforto para se estabelecer. Como citado anteriormente, não se surpreende o fato
de Susan ser uma das residências favoritas dos soberanos persas ou o local onde
seriam depositados os seus tesouros.
Anshan se localizava a aproximadamente 30 milhas a leste de Persépolis, uma
das grandes capitais da Pérsia. Enquanto,
Susan ficava na extremidade oriental da planície de montanha da Babilônia e, como consequência, sua história estava entrelaçada com seus vizinhos da Mesopotâmia desde o seu início. Sua importância persistiu no período persa, quando se tornou uma das capitais persas (WATERS, 2014, p.22)
65
Os reis elamitas se autodenominavam como ‘rei de Anshan e Susan’. Sendo
que o período mais conhecido da história elamita se passa, por volta de 750-650 a.C.
no qual documentos históricos apontam a Assíria como fonte originária de Elam,
embora esta seja considerada uma grande rival de Elam.
O próprio rei Dário, anos após a morte do rei Ciro, ao retornar de Sadis tem
como seu destino Susan, onde ele ordena a construção de um grande palácio na
tentativa de mostrar a sua soberania e poder a todos. Ora Susan havia sido destruída
por volta de 640 a.C. quando os assírios invadiram Elam. Mesmo após Ciro ter
conquistado Susan, a cidade permaneceu sem sofrer mudanças durante o seu
governo, permanecendo na mesma configuração do período elamita. Anos mais tarde,
quando Dário I assumisse o governo persa, ele se encarregaria de melhorar Susan,
construindo uma residência para si. Vaux e M.A. (1893, p.47) afirmam que Dário
aparentemente permaneceu em Susan por muitos anos. Wiesehöfer (2001, p.26)
detalha sobre a construção de Dário, em Susan da seguinte forma
Dário I construiu um palácio sobre um terraço artificial […]. Com suas colunas no hall principal, esta servia como modelo para Persépolis. Outros vestígios aquemênidas neste local, que já havia sido habitado em tempos pré-históricos, são uma cidadela na acrópole, o bairro dos ‘artesãos’ a leste da ‘cidade real’ e o palácio de Artaxerxes II na margem oeste do Shaur, que passa por Susan. Particularmente bem conhecidos são os relevos em azulejos de Susan que representam leões, criaturas compostas e guardas.
O interesse do rei Dário por Elam fica mais evidente quando este se interessa
por desenvolvê-la numa cidade marítima. Para assegurar a autoridade marítima no
golfo persa, Wiesehöfer (2001, p.78) afirma que, Dário procuraria conectar Susan ao
mar através do auxílio de deportados, dentre eles gregos e cários, aqueles que
especialmente possuíam alguma experiência marítima no sul da Babilônia e Elam.
Não apenas isso, mas Burgan (2010, p.36) corrobora ao apontar que ele até mesmo
melhorou a estrada real que corria entre Sardis e Lídia, fazendo ainda diversas outras
estradas buscando conectar as cidades-chave do império.
A localização e o interesse por Susan acabaram favorecendo esta região, que
acabou se tornando num ponto importante de “canal de comércio entre o Oriente e a
Mesopotâmia para bens, tais como madeira e minérios” (FREEMAN, 2016, p.259).
Entretanto mesmo aparentemente gostando de ficar em Elam, Dário foi
confrontado com uma revolta elamita em 520 a.C.. Acerca disto Holland (2005, p.56)
66
descreve que o próprio sogro de Dário conduziu o exército persa à Elam e aniquilou a
revolta de forma peremptória, quase desdenhosa para aqueles que ousaram se voltar
contra o carneiro.
Exatamente como descrito na visão de Daniel “nada arrebatava da mão dele”
(Dn 8,4), nenhum ser vivente, isto é, povo conquistado tinha poder suficiente para
escapar das suas mãos. E este fazia conforme lhe aprazia, transformando a cidade,
ligando localidades através de estradas, entre outros.
Resumidamente o interesse por Susan, como vimos até aqui, pelos persas
ocorre pelas seguintes razões: uma forte ligação com a origem de seu povo, como
indica a autodenominação de Ciro, de forma que simbolizou uma unificação entre o
seu passado e o presente; a localização de Susan, próximo a Babilônia e outras tribos
conquistadas, além de ficar próximo as fronteiras com Pérsis; não era um local de
extrema importância por si só, mas através da sujeição as autoridades, representando
parte de uma organização política maior.
Entretanto, sendo um local que era considerado como de extrema importância,
Briant (2005, p. 166) lembra que mesmo com todos estes detalhes apontando para a
importância de Susan, ela ainda era uma cidade sem fortificações. As muralhas que
Dário havia reconstruído na cidade, não eram nem mesmo apropriadas o suficiente
para se defender contra o ataque de os inimigos.
Susan era o local para onde os presentes dados pelos líderes subjugados eram
trazidos, com o intuito de serem entregues a Dário. Lá eles eram levados para serem
contados e listados no inventário do tesouro. Acerca do palácio construído em Susan,
se acredita que não havia muitos residentes permanentes, assim como se supõem
que também tenha sido a realidade do palácio em Persépolis. A seguinte imagem
ilustra os portões do palácio de Dario em Susan:
Imagem 1: Portões do palácio de Susan
67
(BRIANT, 2005, p.278)
No período de Dario I, soldados babilônicos tinham permissão para irem até
Elam para prestarem serviço militar por um período específico. Após o período pré-
determinado eles deveriam voltar para o seu local de origem.
A navegação da Babilônia e Elam não estavam restritos apenas aos grandes
rios Tigre e Eufrates, Briant (2005, p.381) atesta que os afluentes desses rios também
possibilitaram a conexão com diversos canais facilitando especialmente o comércio
entre os dois centros aquemênidas, Babilônia e Elam (Susan). Informações de frotas
macedônias em 324 a.C., atestam também para esse uso de navegação, Nearchus e
Alexandre estavam indo se encontrar em Susan. Um piloto persa guiou Nearchus de
Pasitigris até Ahwaz, depois de Ulai até Susan. No ano seguinte, Alexandre deixou
Susan descendo o rio Ulai até chegar ao rio Tigre.
Mais do que apenas apontar para o berço persa, a citação de Daniel, estaria
indicando a utilidade do local tanto no período persa, quanto no período grego?
Percebe-se que a localização, Susan próximo ao rio Ulai, indica o multiuso da
localidade, atendendo a diversos propósitos como os elencados no decorrer do
capítulo.
No período grego, Briant (2005, p.257-258), afirma que segundo Chares,
Alexandre, o Grande fez refeições com seus convidados em uma tenda suntuosa em
Susan.
68
Além de fazer esta grande festa em Susan, Alexandre, o Grande, chegou até
mesmo a realizar diversos casamentos entre seus homens e mulheres persas. Sobre
isso detalha Kaefer (2016, p.55), que foram efetuados cerca de 10 mil casamentos em
Susan, sendo que dentre eles, até mesmo o próprio Alexandre teria se casado com
as filhas de Artaxerxes III e Dario. Esta prática teria sido uma estratégia utilizada para
que houvesse uma fusão entre as culturas oriental e ocidental. Buscando assim
facilitar a aceitação da cultura helênica aos conquistados, outro artifício utilizado foi a
iniciação desses povos na vida comercial grega.
Nota-se, portanto, que a citação do local, Susan, a indicação do rio Ulai em
Elam é conhecido do autor e destacado, embora tenha sido numa breve citação, como
um local importante. Não apenas por estar correlacionado com o surgimento do povo
que veio a dominar Judá e todo o território babilônico, mas também como o local onde
ficava guardado o tesouro persa e indicando o meio de transporte que facilitou o
comércio e deslocamento naquela região.
Este também era o local donde adveio conhecimento para a contagem
administrativa do império persa e, portanto, era considerado um polo importante para
os seus sucessores. O rio como mencionado acima além de banhar e tornar os
arredores propícios para o cultivo, posteriormente veio a ser utilizado como rota de
embarcações. Assim como o local Susan permanece intocado na visão, se nota que
no decorrer dos anos, mesmo após a derrota dos persas pelos macedônios, Susan
continuou intacta, isto é, sem sofrer grandes danos por seus invasores.
2.3 O Carneiro: o Início de um Novo Império
“E levantei [meus] olhos e vi, e eis que um carneiro parado perante as faces do rio, e direção dele [dois] chifres…” (Dn 8,3)
É neste exato momento de ausência do soberano da Babilônia que o cenário
político começa a passar por algumas mudanças. A primeira que podemos apontar é
o começo do levante do carneiro em 550 a.C. através do comando de Ciro, o grande,
com seus primeiros movimentos e logo os Medos são derrotados. O saque da
conquista contra a Média em Ecbatana foi levado para Anshan. Esta vitória gera
grande influência ao imperador persa para que ele prossiga em sua busca por novas
conquistas, expandindo assim o seu poder.
69
Como afirmado previamente o carneiro surge e possui dois chifres, sinônimos
de poder, status e força. Por conseguinte, o carneiro se move nas direções pelas quais
o império persa se expande, assim como o comportamento do carneiro combina com
o dos soberanos persas. Nada escapa de suas mãos.
Em 547 a.C., Ciro anexa as suas conquistas a tomada de Urartu, e entre 545 e
542 a.C. é a vez de Lídia entrar na lista de conquistas. Prosseguiu confrontando todas
as cidades gregas que se localizavam no litoral, e no ano de 540 a.C. todos estes
territórios também já podiam ser contados como parte da Pérsia. Posteriormente
anexou ao seu território a Alta Mesopotâmia, parte da Ásia Menor chegando até o mar
Egeu. Assim o carneiro começou com o seu movimento de dar chifradas para o oeste,
seguindo para o norte.
De fato, essas movimentações persas não passaram desapercebidas pelo
soberano babilônio que regressa a capital após tais acontecimentos. Rosa (2018,
p.216) acrescenta que a traição de alguns aliados contribuiu também para que o seu
regresso ocorresse. Curiosamente esse seu retorno ocorre as vésperas da queda do
império babilônico. Nesse sentindo Kriwaczek (2018, p.378) afirma que um sacerdote
do templo de Marduk encarregado de escrever as crônicas oficiais do reino de
Nabônido, descreve o acontecimento como um ato pacífico atendendo ao povo que
esperava ansiosamente por uma mudança frente ao governo babilônico.
Não só a classe sacerdotal estava desgostosa com as reformas de Nabônido,
como do mesmo modo os cativos que expressavam do seu modo uma gradual
aceitação a Ciro. Burgan (2010, p.27) afirma que até mesmo um general babilônio,
chamado Ugbaru (538 a.C.) também havia se comprometido a dar o seu apoio a Ciro.
A política exercida por Ciro é marcada pelo seu respeito aos diferentes
costumes religiosos segundo cada cultura e povo em sua diversidade. Ele foi um líder
tolerante e isto lhe trouxe como resultado êxito na conquista do apoio popular,
principalmente da classe sacerdotal babilônica. Posteriormente o rei Xerxes
similarmente se destacará por seguir esta linha política tolerante de governo.
A primeira tentativa da tomada da Babilônia ocorreu numa batalha entre os neo-
babilônios e as tropas de Ciro próximo ao rio Tigre, onde o confronto revelou uma
força de resistência babilônica. Briant (2005, p.42) aponta que o acontecimento
ocorreu provavelmente pouco tempo antes ou depois da conquista de Susan por Ciro,
assegurando dessa forma que o reinado neo-elamita desaparecesse para sempre.
70
Embora Ciro tenha conquistado a capital babilônica sem grandes atos de
violências, Kriwaczek (2018, p.379-380) afirma que isso só foi possível, pois Ciro,
havia se dedicado a travar uma guerra “psicológica” iniciando-a tempos antes de sua
invasão física na Babilônia. Para que fosse bem-sucedido Ciro teria plantado a ideia
aos vizinhos da Babilônia de que o soberano babilônio representava uma ameaça não
só a eles, como também a todo o seu povo que era oprimido por ele e suas ações.
Percebe-se aqui onde Ciro busca aplicar a estratégia teológica citada
anteriormente, ele como sendo o invasor surge como o “enviado” de Marduk para
reestabelecer a vida do caos causado pelos atos irresponsáveis de Nabônido. A
melhor maneira de “ajudá-los” então seria depondo o rei em exercício, assim
restabelecendo a justiça e liberdade ao reino sob um novo domínio, onde ele iria
liderá-los.
Enviaram cartas sigilosas à comissão que administrava o Esagila e a seu xatamu, ou chefe, assegurando-lhes a firme intenção de Ciro de apoiar o culto a Marduk e a todas as outras divindades sagradas nas cidades da Mesopotâmia. Aos líderes dos povos [...], confirmaram que era intenção de Ciro permitir seu retorno. Aos que integravam a corte da cidade chamada Neardeia e serviam aos filhos de Jeoiaquim, último rei legítimo de Judá, e ao grande agitador e propagandista religioso que viria a ser conhecido pela posteridade como Segundo Isaías, eles prometeram a vingança de Ciro contra a cidade que havia humilhado Jerusalém. Foram despachados agentes para frequentar as adegas e tabernas e incitar os cidadãos insatisfeitos a abandonar sua lealdade a Nabonido e acolherem um novo governante, que restabeleceria todas as antigas tradições tão negligenciadas pelo usurpador do trono do imortal Nabucodonosor e que a todos trataria com misericórdia e justiça (KRIWACZEK, 2018, p.380)
A imagem apresentada, segundo as propagandas de Ciro não representava
ameaça alguma a aqueles que faziam parte da elite babilônica. E obviamente
trouxeram vantagens ao invasor que não encontrou resistência deste grupo ao
assumir o poder. O líder persa se apodera da Babilônia em 538 a.C. anexando-a como
mais uma vitória digna de entrar para a sua lista de conquistas.
Frente a este grande crescimento de poder, a origem da pequena tribo
subordinada a Média, com certeza havia ficado para trás. Como indicado na visão o
segundo chifre, que havia surgido depois, cresce mais do que o primeiro. Venâncio e
Vieira (2011, p.137) argumentam que o maior oponente enfrentado pelos persas, no
71
entanto, não havia sido a Babilônia, mas sim a própria Média liderada por Astíages,
no início do século VI a.C.
Ciro, o persa, filho de Cambises, havia chegado ao trono de Anshan, terra persa-elamita submetida ao poderio de Astíages, por volta de 557, por ocasião da morte de seu pai. Já em 553 se tinham notícias da batalha empreendida contra a Média, que, segundo as fontes histórias, teve êxito a partir de uma desestabilidade interna no estado medo, da qual Ciro se aproveitou. Ciro, então tomou a cidade de Ecbátana, levou todas as suas riquezas para Anshan e destronou Astíages, tomando o vasto território medo (VENÂNCIO; VIEIRA, 2011, p.137)
A partir de então as conquistas na região do Oriente Próximo foram ficando
cada vez mais recorrentes. Como relatado em Daniel 8,4, o carneiro prosseguiu em
dar chifradas nas direções oeste, norte e sul. Nenhum outro podia conter o avanço do
carneiro, a Pérsia não apenas conseguia anexar novos territórios com grande
facilidade, como também conseguia suprimir as revoltas que iam surgindo.
Corroboram Venâncio e Vieira (2011, p.146):
A Pérsia constituiu-se como o primeiro grande império que a história mundial conheceu. Sua extensão pode ser estimada em mais de cinco mil quilômetros de leste a oeste, e entre mil e três mil quilômetros de norte a sul. Cerca de 30% da população mundial habitava regiões de domínio persa. O auge de sua hegemonia se deu sob o reinado de Ciro, o Grande, rei tolerante, de uma visão política expansionista sem precedentes, que soube fazer-se aclamado pelos povos que conquistava.
Um exemplo disso é citado por Burgan (2010, p.28) a respeito de Ciro não fazer
grandes mudanças na forma pela qual a Babilônia já estava acostumada a correr os
seus negócios. Ele manteve o grupo de líderes de governo permitindo-os a continuar
a reger seus domínios, tendo como única diferença que agora o faziam sob o controle
de uma satrapia persa. Ciro concedia certa liberdade aos conquistados ao passo que
eles se submetiam as leis persas.
No primeiro ano do reinado de Ciro, após a tomada da Babilônia, foi expedido
o seu decreto para que o templo de Jerusalém fosse reconstruído e não apenas isso,
mas também devolveu os tesouros que haviam sido saqueados por Nabucodonosor.
Enquanto outros povos puderam carregar as suas divindades de volta para os seus
lares, os judaítas levaram consigo “os vasos sagrados do templo […] em seu retorno
a Jerusalém” (VAUX; M. A., 1893, p.27).
72
O relato é descrito no livro de Esdras (1,2-4; 6,3-5). “O mesmo decreto foi
encontrado nos arquivos de Ecbátana num pergaminho escrito em aramaico […]. Com
o decreto, estava consolidado o fim do exílio e a teórica liberdade de Israel”
(VENÂNCIO; VIEIRA, 2011, p.144). Ter os judaítas como aliados de Ciro trouxe
benefícios para os persas, não apenas com a coleta de tributos, mas também como
um ponto estratégico-militar para que pudessem atacar ao Egito, do mesmo modo
como poderiam se proteger contra o ataque egípcio.
Mas voltando a Babilônia, Ciro fez algo que, embora os soberanos da Babilônia
tivessem possuído diversas nacionalidades, nunca pensaram em fazer ou
simplesmente não tiveram a coragem de fazê-lo. A mudança de capital da Babilônia,
provavelmente não havia passado pela cabeça de seus habitantes. Entretanto, a
escolha de situar a capital do império persa se baseou nas terras natais de seus
monarcas, sendo elas: Pasárgada, Ecbatana, Persérpolis, Susan, a cidade mais
importante de um grande inimigo da Mesopotâmia, isto é, Elam. A exclusão assim da
Babilônia não demonstrou que tenha afetado a forma de governo e política no local,
visto que não há registros de “protestos” contra esta decisão.
Acerca da escrita persa Kriwaczek (2018, p.382) afirma que os persas
adotaram uma grafia cuneiforme, já que eles não possuíam uma escrita própria. Então
para fins formais e acadêmicos utilizavam do acádio babilônico, enquanto para a
diplomacia e comércio utilizavam o aramaico mesopotâmico.
Não nos estenderemos muito a discorrer sobre o império persa, visto que o
enfoque de nossa pesquisa é outro, porém não seria correto pular anos de história e
ignorar a análise de tais símbolos contidos em nossa visão por tal justificativa. Por
isso apresentaremos uma breve tabela com os governantes persas contendo o
período de seu reinado e as suas principais conquistas:
Tabela 1 – Reis persas e suas principais conquistas
Principais Reis Persas Períodos Principais Conquistas
Ciro, o Grande -529 a.C. - Derrotou Média
- Conquistou: Babilônia,
Lídia, Alta Mesopotâmia,
parte da Ásia Menor
- Permitiu os judaítas a
retornarem para Jerusalém
e reconstruir o templo
73
Cambises 530-522 a.C. - Batalhou contra o Egito
Bardes 522 a.C. - Mago que se passou pelo
irmão morto de Cambises
para assumir o trono
Dário 521-486 a.C. - Desmascarou o falso
Bardes
- Passou 6 anos tentando
conter rebeliões por todo o
império, dentre elas
podemos listar: Babilônia,
Assíria e Egito
- Dividiu o domínio do
império em satrapias
- Construiu um grande
palácio em Susa
- Construiu a capital
Persépolis
Xerxes 486-466/5 a.C.
Artaxerxes I (longânimo) 465-424 a.C. - Conteve a revolta de
Bactrians e Inarus e
Amyrtaeus
Dário II Nothus 425/4-404 a.C. - Marcado por rebeliões,
assassinatos e intrigas
Artaxerxes II Mnemon 405-360/59 a.C. - Parisates tentou
substituí-lo no trono por
seu filho Ciro, o jovem
Ciro o jovem - Falhou em sua
conspiração
- Governou a Ásia
Ocidental, com ajuda de
gregos mercenários.
Artaxerxes III (Ochus) 358-338 a.C. - Marcado por atrocidades
- Restaurou medidas
militares da monarquia
persa
Darios Codomannus 336-330 a.C. - Último monarca persa
Fonte: elaborada pela autora com base em BRIANT, 2005; BURGAN, 2010; HOLLAND, 2005; VAUX,
M.A., 1893; WATERS, 2014; WIESEHÖFER, 2001.
2.4 O Bode e o Grande Chifre: o Surgimento de uma Nova Era
74
“E eu estava tornar a compreender, e eis que bode veio do oeste sobre as faces de toda a terra e nada tocou na terra. E o bode [tinha] chifre, [em] visão entre os olhos” (Dn 8,5)
Durante o período em que Dario Codomannus estava no poder da Pérsia, surge
na Macedônia um grande general, filho do imperador Felipe II com Olímpia, filha de
Neoptolemo I do Epiro, Alexandre III Magno, mais conhecido como Alexandre, o
Grande.
Sobre a concepção e nascimento de Alexandre, Kaefer (2016, p.51) atesta que
sua mãe era uma mulher devota a Amon-Rá, e prestava-lhe cultos em companhia das
serpentes sagradas. Ela conheceu Felipe II em 358 a.C. quando ele visitou a ilha de
Samostrácia, casaram-se e então tiveram Alexandre. Entretanto, Olímpia acreditava
piamente que Alexandre fosse na verdade, filho de Zeus-Amon.
Alexandre assumiu o trono grego no ano de 336 a.C., tendo apenas 20 anos
de idade, quando o seu pai foi assassinado. Segundo Carlan e Faria (2011, p. 45),
Alexandre buscou castigar severamente os envolvidos neste crime. Seu pai havia sido
um líder que tinha mudado o mundo grego, quando buscou expandir o seu domínio
conquistando a hegemonia política das cidades-estados da Grécia clássica64. Felipe
II visionava não apenas a vitória sobre os gregos, mas livrar os seus compatriotas que
estavam sob o domínio persa, como por exemplo, as cidades gregas localizadas na
Ásia Menor, lutando dentro do próprio território persa.
O que destacou Alexandre na história não foram apenas as suas conquistas,
ou porque ele teve como o seu tutor na juventude Aristóteles, mas sim as suas
estratégias táticas e a rapidez na qual ele e o seu exército conseguia cruzar grandes
territórios. Destaca-se que o jovem imperador, assim como a sua mãe, acreditava que
possuía uma origem divina.
Ao subir ao trono, Alexandre teve de rapidamente consolidar o seu poder sobre
a elite macedônia, enquanto extinguia rapidamente revoltas que surgiram nos
territórios ao norte e sul no intuito de se tornarem independentes. Destaca-se Tebas,
uma cidade que ousou se rebelar contra o novo jovem líder e foi totalmente aniquilada
por Alexandre. Foram poupados apenas os templos e a casa de Píndaro, enquanto os
seus habitantes foram escravizados servindo de exemplo para as outras cidades que
logo se submeteram a liderança de Alexandre.
64 Kaefer (2016, p.50) observa que essa hegemonia, embora tenha sido alcançada por Felipe II teria
sido concretizada de fato quando Alexandre assumiu o poder.
75
O bode surge vindo do Oeste, local de origem do líder representado pelo
grande chifre, isto é, Alexandre, o Grande.
2.5 O Inevitável Encontro Entre o Bode e o Carneiro
“E veio enquanto o carneiro, senhor, dono dos chifres que vi que permanecia perante [as] faces do rio. E correu contra ele, em exaltação [e] poder. E vi ele que chegava ao lado próximo do carneiro. E se enfureceu contra ele, feriu o carneiro” (Dn 8,6-7a)
Alexandre e seu exército partiram de Helesponto indo para a Ásia Menor, vindo
do Oeste, onde ele venceu em batalhas ágeis os persas tanto em alto-mar quanto em
terra. Essa locomoção rápida rumo ao território pertencente ao império persa, descrita
no v. 6 “em exaltação e poder”, tinha como base cumprir as palavras do antecessor a
Alexandre que sustentava a ideia de “se vingar” dos persas que haviam humilhado os
gregos quando tomaram alguns de seus territórios.
Assim como Ciro, Alexandre se apresentou a cada um dos povos que ia
conquistando como aquele que os livraria da opressão persa. Entretanto a “mudança”
de um governo (persa) para o outro (grego) era apenas relacionado ao imposto pago
que mudou de nomenclatura para contribuição, pois o não pagamento desta
contribuição infligia uma situação que obrigava ao povoado “liberto” a mudar de
opinião.
A primeira grande vitória de Alexandre sobre o império persa ocorreu em 334
a.C., no rio Granico, seguiram-se outras batalhas pela costa oriental do mar
mediterrâneo, até que encontraram o exército de Dario Codomannus, na batalha de
Issos no final do ano de 333 a.C.. Neste confronto de Issos, Alexandre não apenas
venceu os persas como levou cativa a mãe, a esposa e as filhas de Dario enquanto
ele fugiu para o leste. Conforme Alexandre investia cada vez mais contra Dario, mais
este se “escondia”, enquanto Alexandre obtinha conquistas cada vez maiores. Esta
batalha poderia facilmente ilustrar o primeiro grande golpe dado pelo bode ao carneiro
que não foi capaz de revidar ao ataque sofrido.
Apesar de a tremenda derrota sofrida por Dario, Cawkwell (2005, p.199) afirma
que se fosse feito uma avaliação sobre o episódio levantam-se alguns
questionamentos acerca da vantagem que Dario deu a Alexandre, seja ela
considerada como sorte ou uma administração mais efetiva. Cawkwell afirma que o
76
exército persa possuía tanto talento quanto o grego, mas quando Dario foge todas as
probabilidades da batalha acabam mudando. Corrobora neste argumento Kaefer
(2016, p.52) apontando que ao levar a corte real junto a batalha com parte do tesouro
real, se indicava que o monarca persa acreditava que a batalha seria favorável para
si.
Devido ao extenso tamanho do domínio persa, Alexandre decide criar alianças
com os sátrapas locais e dominar o Egito, um ponto considerado importante
estrategicamente. E foi assim que Alexandre fez, facilmente conseguiu convencer o
sátrapa local e foi recebido como um libertador pelos egípcios. Como de costume
Alexandre, ainda no Egito, foi ao santuário de Amon, interpretado como a versão local
de Zeus e lá foi saudado como sendo o próprio filho da divindade. Após a cerimônia
Alexandre funda a pólis de Alexandria, intencionalmente este seria um local de
administração que viria a agregar macedônios e gregos naquela região.
Após esta conquista Alexandre segue para seu próximo alvo a ser conquistado,
era a vez de se investir contra a Babilônia. Em Gaugamela o exército persa se
concentra próximo ao rio Tigre esperando pelo confronto contra Alexandre e todo o
seu exército. Embora os persas estivessem em maior número, a estratégia e a falange
de Alexandre foram o suficiente para que Dario fosse forçado a fugir novamente.
Dessa forma o chifre do carneiro começa a ser despedaçado pelo bode de forma que
tal ato só vai se tornando cada vez mais consolidado conforme o avanço de Alexandre
e o seu exército dentro das terras persas.
Dessa forma a tomada da Babilônia foi extremamente fácil, Alexandre
implantou lá modelos de administração orientais, embora tenha mantido os sátrapas
locais em seus postos, já que eles haviam jurado lealdade a Alexandre e nomeou a
nobreza local para que administrassem outras regiões. Embora os “nativos”
possuíssem papéis importantes para desempenhar dentro da nova estrutura política,
eram os gregos e macedônios que ficavam encarregados de cuidar da parte financeira
do império, de modo que fosse assegurada a continuidade da lealdade dessas elites
persas.
Quando o inverno chegou na Babilônia, Alexandre com o seu exército, maior
do que antes, partiram para a capital Susan. Dario se encontrava nas montanhas de
Meda, e a maior preocupação de Alexandre acerca do seu movimento rumo a Susan,
estava voltado para os tesouros que havia lá e em Persépolis de que fossem levados
para outro local antes de sua chegada. “Susan era a mais próxima das duas capitais,
77
e mais de 160 quilômetros da estrada real percorria todo o caminho até Sardes, na
Lídia […]. A viagem levou os macedônios para o norte dos pântanos […], onde as
bocas dos rios Tigre e Eufrates se reuniam no Golfo Pérsico” (FREEMAN, 2016, p.258).
A linguagem elamita era muito diferente dos povos que habitavam ao seu redor,
por isso Alexandre precisou empregar pessoas que fossem fluentes no idioma. A
marcha até Susan levou cerca de 20 dias. Durante o combate de Gaugamela em 331
a.C., Alexandre enviou um oficial de confiança para Susan para que ele confrontasse
o sátrapa persa local. Dessa forma o encarregado da cidade deveria de se certificar
que a mesma se rendesse e assegurasse que o tesouro permanecesse intocado até
que Alexandre chegasse.
Neste combate de Gaugamela, Cawkwell (2005, p.199) aponta que Dario havia
se preparado mais prudentemente para o confronto. Desde a escolha do terreno ao
qual os seus homens estariam dispostos quanto as dificuldades que o caminho
percorrido por Alexandre para chegar ao local lhe custaria, lhe bloqueando a rota para
a Babilônia. Mas isso não foi o bastante, para segurar Alexandre e os seus planos de
anexar não apenas novos locais sob seu domínio, como “comprar” os encarregados
das satrapias e deixá-los a seu dispor.
O sátrapa não apenas concordou com as condições impostas como se
certificou de cumprir cada uma das exigências cobradas. Ele chegou até mesmo a
enviar o “seu próprio filho para conhecer o rei e escoltá-lo até a cidade pelo vizinho
Quoaspes – um importante gesto simbólico, uma vez que era desse rio que o Grande
Rei bebia” (FREEMAN, 2016, p.260). Além disso, o sátrapa recebeu Alexandre e o
seu exército com grandes presentes (como por exemplo: tecidos púrpura, elefantes
indianos e dromedários, etc.).
O melhor caminho para se tomar entre Susan e Persépolis que Alexandre e o
seu exército tiveram de atravessar, era o território de um primo de Dario. Ele era um
rei uxiano cujo nome era Madates. A passagem por seu domínio significava que era
necessário pagar uma quantia generosa, o que era feito desde os tempos de Ciro, o
que certamente não agradou a Alexandre. Entretanto o trajeto que eles possuíam era
vantajoso ao povo uxiano que habitavam as montanhas. E estas ofereciam um difícil
caminho que lhes propiciava segurança contra-ataques e ameaças de subjugação, o
que definitivamente não intimidou o líder grego.
O jovem conquistador juntou alguns dos seus melhores soldados e pessoas
que conheciam o caminho para Susan e em seu caminho encontrou aldeias uxianas.
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Freeman (2016, p.266-267) detalha que Alexandre atacou cada uma das aldeias e
matou a todos que encontrava, sendo que a maioria ainda se encontrava deitada em
suas camas. Quanto aos bens, ele tomou a todos espalhando terror entre os uxitas.
Em poucos dias Alexandre havia realizado o que os persas não haviam sido capazes
de fazer em cerca de duzentos anos.
O caminho rumo a Persépolis transpassava os Portões Pérsicos, “uma abertura
precária, cercada por falésias intransitáveis em todos os lados. A única outra opção
era um longo desvio para o sul, mas isso levaria muitos dias a mais de viagem”
(FREEMAN, 2016, p.267). Era uma corrida contra o relógio no qual os dias a mais de
viagem seriam uma desvantagem a Alexandre e seu exército. Por isso, o líder
macedônio partiu em direção aos Portões Pérsicos a todo vapor, embora isso
significasse cruzar um caminho extremamente difícil e perigoso. Todavia isto não
importava, pois Alexandre havia se decidido que atacaria próximo a parte estreita do
vale, onde ficava a muralha da cidade.
Ariobarzanes, um líder militar leal a Dario estava em Persépolis e havia lutado
na batalha de Gaugamela, em outras palavras, era um homem determinado a impedir
o avanço dos macedônios em seu pátrio. A investida de Alexandre próximo a muralha
foi lastimável, o sabor da derrota e o grande número de perdas do seu lado foram uma
grande decepção sofrida pelo líder e os sobreviventes. Entretanto desistir não era uma
opção. Alexandre soube através de um pastor lício acerca de um caminho comumente
utilizado pelos pastores para entrar em Persépolis. Logo, Alexandre concluiu que este
iria ser o caminho que os levaria para dentro da cidade.
Talvez esta tenha sido uma das decisões mais insanas que Alexandre possa
ter tomado ao fazer com seu exército enfrentasse uma trilha escura e extremamente
perigosa. Seu trajeto foi concluído ao despontar do novo dia, e como era de se esperar
todos estavam exaustos. “Seu plano era dividir suas forças mais uma vez, enviando
um destacamento considerável sob as ordens de Ptolomeu diretamente pela encosta
da montanha para atacar a lateral da muralha no momento certo” (FREEMAN, 2016,
p.271).
Seu plano de ataque foi bem-sucedido e os persas foram aniquilados enquanto
inutilmente tentavam impedir que os seus atacantes invadissem sua terra. Entretanto
não havia tempo para descanso, era necessário continuar a luta para chegar primeiro
ao centro da cidade antes de Ariobarzanes. Tiridates mandou uma carta para
Alexandre, ele era “o tesoureiro real em Persépolis, provavelmente um eunuco,
79
informando ao rei que ele entregaria a cidade e a tesouraria para Alexandre se ele
pudesse chegar rapidamente” (FREEMAN, 2016, p.273). Além disso, Tiridates
esperava receber em troca o tratamento especial que, outros que havia entregue seus
territórios de bom grado, haviam recebido.
A consecução de Persépolis teve uma grande importância para Alexandre entre
todas as suas conquistas, afinal aquela era a principal cidade persa. Esta capital era
um tanto quanto diferente das outras capitais conquistadas (Susan, Ecbatana e
Babilônia, por exemplo). Freeman (2016, p.277) detalha a cidade da seguinte forma:
A maioria da população vivia fora do território do palácio na cidade circundante. Estes eram funcionários do governo, empresários e comerciantes que possuíam casas de luxo decoradas com belas obras de arte. O povo de Persépolis foi a elite do mundo persa e tinha lucrado muito com os tributos que iam para a capital por duzentos anos.
Agora aquela parte da história havia sido conquistada pelo grande chifre do
bode, isto é, Alexandre, o Grande. Rapidamente o bode foi tomando em exaltação e
poder, assim como descrito na visão de Daniel, todo o território que antes o carneiro
tinha posse. Foi destroçado assim o poder deste último que ninguém sequer ousava
tentar se meter nesse confronto, de forma que os chifres do carneiro, seu poder e
força foram destroçados. Dario se escondia da forma que podia, pois, a ameaça de
Alexandre cada vez mais se fortalecia e era apenas questão de tempo até que Dario
fosse, por fim, deposto de seu trono. Era o fim do carneiro que agora estava sendo
pisoteado pelo bode.
Com a cidade sob seu domínio, o exército esperava apenas pela permissão
para que pudessem iniciar o despojo dos bens e das mulheres cativas. Alexandre
poupou apenas o palácio para si, o resto da cidade ficou à disposição de seus homens
para que estes fizessem o que bem entendessem. Esta permissão havia sido
extraordinária, pois “de Tebas a Gaza, seu exército já havia saqueado cidades antes,
mas esta foi a primeira vez que ele permitiu que uma cidade que se rendeu
pacificamente fosse devastada” (FREEMAN, 2016, p.278). Alexandre preferiu esta
opção a consolidar a confiança com a população conquistada.
Havia muito mais tesouros em Persépolis do que os que se encontraram em
Susan. Havia milhares de moedas de ouro que foram expressamente ordenados para
serem levados à Susan, assim como Alexandre já havia feito ao transportar o tesouro
obtido em Pasárgada para lá também.
80
Infelizmente a história de Persépolis não terminou muito bem e o palácio
acabou sendo incendiado. Não há uma explicação clara do porquê isso teria ocorrido,
mas há uma antiga tradição grega na qual se culpava as mulheres pelos estultos atos
masculinos. A história ligada ao incêndio de Persépolis foi relacionada a Thaïs, amante
de Ptolomeu, um antigo amigo de Alexandre:
Ela não era uma prostituta comum como as seguidoras de exércitos, mas uma mulher conhecida para os atenienses como uma hetaira: uma linda, educada e encantadora mulher que compartilhava a cama de seu patrocinador, mas também servia como sua confidente e conselheira. Essas mulheres se davam bem na sociedade grega e, muitas vezes, acabavam como parceiras de seus amantes pela vida toda. Thaïs, como uma ateniense, conhecia a história do conflito persa melhor que a maioria dos soldados macedônios em torno dela e aproveitou esse momento de festa para fazer um discurso exaltado para Alexandre e seus amigos. Era uma bela recompensa, ela proclamou, depois de vagar sobre a Ásia, ter um jantar de luxo no esplêndido palácio de Xerxes. Mas seria um prazer muito mais doce incendiar a casa do homem que incendiou a sua própria cidade. Thaïs era uma oradora comovente, de modo que aplausos e vivas irromperam de toda a multidão e ecoaram pelo corredor. Todos começaram a pedir que o rei desse início a um incêndio. Alexandre ansiosamente concordou e pegou a tocha mais próxima. (FREEMAN, 2016, p.284-285)
Curioso o fato de que esta narrativa tenha sido encontrada em documentos
antigos, entretanto há outro relato sobre o episódio que é considerado um tanto mais
sinistro. Freeman (2016, p.285) afirma que na obra do historiador Arriano, relata-se
que o rei havia planejado o incêndio do palácio, e Parmênio, o velho general, tentou
fazer com que Alexandre mudasse de ideia, em vão. Parmênio alertou que os povos
veriam o conquistador como uma pessoa furiosa que não possuía intenção de
construir um império. Na versão relatada por Arriano, Alexandre confessa que tal ação
pagaria a vingança contra tudo o que os persas haviam feito contra os gregos.
Após o episódio Alexandre partiu com o seu exército indo para além das
montanhas de Zagros, onde outro sátrapa local, Phrasaortes, jurou lealdade ao novo
conquistador. Depois partiu para Ecbatana com os seus homens o mais rápido
possível com o objetivo de alcançar Dario antes que ele fosse capaz de escapar
novamente.
Em Ecbatana, Dario havia recebido reforços enviados pela Cítia. Alexandre já
precavia isto e por isso dividiu as suas tropas. Deste modo o comboio que continha o
81
abastecimento podia seguir um ritmo mais lento, ao mesmo tempo em que os outros
soldados puderam se locomover com maior rapidez.
[...] poucos dias depois, recebeu um relatório atualizado de que os reforços persas não tinham de fato chegado, fazendo com que Dário mudasse de planos. O líder persa tinha enviado à frente seu harém e vagões de suprimentos para uma passagem chamada Portões do Mar Cáspio nas montanhas a leste de Raga (Teerã), que levava a Báctria. A três dias de Ecbátana, um nobre persa chamado Bistanes chegou ao acampamento de Alexandre. Esse homem era o filho único do Grande Rei anterior, Artaxerxes III, e havia escapado do massacre engendrado pelo eunuco Bagoas que levou Dário ao poder. (FREEMAN, 2016, p.288)
Não era de se estranhar que Bistanes não morresse de amores ou jurasse
lealdade a aquele que exterminou sua família. Por conta disso aos seus olhos, aliar-
se com Alexandre poderia lhe trazer mais benefícios e vantagens do que o líder persa.
“Bistanes relatou que Dário fugira da capital da Média e estava a caminho dos Portões
do Cáspio. Ele também tinha em suas carroças ouro suficiente para pagar seus
homens e contratar guerreiros locais por anos” (FREEMAN, 2016, p.288).
Caso Dario escapasse mais uma vez a guerra que eles estavam travando
continuaria, visto que o rei persa poderia facilmente comprar homens para lutar pela
sua causa. Além desta prolongação traria diversos resultados negativos aos povos
conquistados por Alexandre. O jovem conquistador então se aproveitou da situação e
decidiu, por fim, se “livrar” de Parmênio um velho militar que havia lutado e servido
seu pai Felipe II. Além do mais Alexandre a esta altura julgava também já ter
comprovado o seu valor através das experiências obtidas em batalhas e em liderar
seu exército.
Sobre a perseguição ao inimigo persa, Freeman (2016, p.290) afirma que
Alexandre estava tão focado em alcançar Dario a todo custo que seus cavalos
começaram a morrer devido a pressão ao qual foram expostos, alguns dos seus
soldados até mesmo ficaram para trás. Em apenas 11 dias eles chegaram a Raga e
já eram capazes de visualizar as montanhas de Elburz a sua frente. Entretanto, isto
ainda não havia sido o suficiente visto que Dario a apenas alguns dias, havia
transpassado os portões do Mar Cáspio.
Cawkwell (2005, p.212) afirma que a este ponto a derrota de Dario já era
inevitável pois Alexandre já possuía o controle da Pérsia. Alexandre havia enviado
uma mensagem aos gregos relatando que os persas haviam sido destruídos. Por
82
conseguinte, as promessas que seu pai outrora lhes fizera haviam sido cumpridas, e,
portanto, todos os gregos poderiam comemorar.
Contudo uma notícia delicada fez com que Alexandre prosseguisse viagem só
parando quando seus acompanhantes estavam extremamente exaustos. Dario havia
sido preso e transportado numa carroça por Bessos, sátrapa de Báctria, parente de
Dario, apoiado por outro sátrapa cujo nome era Barsaentes. Quando chegou ao local
onde Dario havia sido preso descobriu que Bessos havia se autoproclamado o grande
rei. Felizmente Bessos não havia conquistado a lealdade de diversos soldados persas,
que eram leais a Dario, e mercenários gregos que fugiram numa tentativa de voltar
para casa.
Vista tal situação, Bessos tinha um segundo plano, que era tentar entrar num
acordo com Alexandre e assim lhe entregar Dario. Caso o exército de Alexandre
prosseguisse os perseguindo então eles “recuariam para as montanhas e
engrenariam uma campanha de guerrilha contra Alexandre, formando um governo
persa no exílio das terras altas da Báctria” (FREEMAN, 2016, p.291)
Bessos possuía certa vantagem sobre Alexandre, pois o exército macedônio
estava muito cansado para continuar. Por causa deste fato, Alexandre abandonou os
que estavam mais cansados e com os outros valentes de sua infantaria seguiram
viagem junto a toda velocidade.
Esta insistência foi o suficiente para que eles alcançassem os persas, deixando
claro a Bessos que a sua fuga com Dario não teria êxito algum. Diante disso, o
usurpador rapidamente foi até o rei deposto e o esfaqueou, em seguida matou os seus
servos e feriu os cavalos que levavam a sua carroça. Então partiu para o leste rumo
a montanhas onde julgava ser o melhor local para escapar das mãos de Alexandre.
Novamente o grupo que estava com o jovem conquistador se separou a fim de
que Dario fosse encontrado e Bessos não fugisse. Os relatos que envolvem a morte
de Dario possuem diversas versões, sendo algumas delas:
um jovem soldado macedônio cansado chamado Polístrato encontrou o carro quando parou para pegar água em seu capacete […] ouviu gemidos vindo de dentro e afastou as cortinas, encontrando os dois escravos mortos e a figura sangrenta de Dário, quase morto […]. Em algumas versões, o próprio Alexandre está lá para dizer adeus a Dário e chorar a morte de seu adversário. Nessas histórias, Dário entrega sua família e o reino aos cuidados de Alexandre e, em seguida, dá seu último suspiro. Em outros relatos, Dário se dirige a Polístrato em um grego macarrônico, pedindo-lhe para dar a sua bênção a seu rei e
83
agradecer-lhe por ser um adversário tão nobre. Mas a verdade, na medida em que pode ser conhecida, é mais simples e mais triste. Dário viu Polístrato entrar no vagão e se ajoelhar ao lado dele. Ele fez um gesto para a água, que o jovem lhe serviu em seu próprio capacete. Então, com apenas um único soldado inimigo assistindo-o em um vale desértico e estéril, o Grande Rei da Pérsia fechou os olhos e morreu (FREEMAN, 2016, p.292-293)
O fim do carneiro foi estarrecedor, não havia nada muito menos alguém que
fosse capaz de deter o avanço do bode, a maior potência militar que a história havia
visto até então.
2.6 A exaltação do Bode e a Ruína do Grande Chifre
“E [o] bode tornou-se grande até muito, mas como poderoso dele foi quebrado o chifre, o grande” (Dn 8,8a)
Alexandre não se contentou em apenas conquistar o território persa, mas logo
começou a traçar planos de forma que pudesse expandir o seu território, indo agora
na direção das Arábia e das Índias.
Sobre a conquista das Índias, Kaefer (2016, p.54) acentua que a região indiana
foi alcançada cerca de 4 anos mais tarde, não havendo muita resistência dos nativos.
Assim como suas forças estavam sendo renovadas, o Eufrates havia sido
transformado num local de treinamento para os navios, patrulhas averiguavam a
extensão terrestre com seus relatórios e ilhas que fossem encontradas no Golfo
Pérsico. A ideia do que viria a ser encontrado e poderia ser utilizado através das terras
conquistadas já eram o bastante para causar empolgação ao jovem novo rei a medida
que as suas ambições aumentavam.
Sua nova rotina era baseada em manhãs onde se oferecia diariamente um
sacrifício aos deuses e passava-se os “dias organizando os detalhes para a viagem,
mas as noites eram repletas de banquetes e bebedeiras ao estilo macedônio”
(FREEMAN, 2016, p.417).
Uma dessas comemorações aconteceu na casa de Médio, seu amigo de
Tessália. Nesta ocasião estavam festejando honras a Hércules, quando Alexandre
bebeu seu vinho e então se ouviu seu grito “como se tivesse sido atingido por um
golpe e foi levado para a cama pelos amigos” (FREEMAN, 2016, p.418).
84
Foi a partir de então que Alexandre começou a adoecer, sofrendo uma febre
alta. Ainda assim ele buscava cumprir com os seus compromissos tanto para com os
deuses como nas reuniões militares. Com o passar do tempo ele precisava ser
carregado para conseguir continuar sua rotina, contudo a sua febre não passava e a
fome apenas diminuía.
Alexandre ainda acreditava que seria capaz de acompanhar seus homens na
expedição para a arábia, embora estivesse cada vez mais fraco. Não demorou muito
para que boatos se espalhassem entre os soldados de que seu poderoso líder
estivesse definhando devido uma doença. Outros ainda acreditavam que ele até
mesmo já estivesse morto e que a notícia havia sido abafada. Para controlar tal
situação Alexandre permitiu que seus soldados lhe prestassem uma visita.
A condição ao qual ninguém imaginava aconteceu com Alexandre, “uma
doença que o pretensioso deus não pôde enfrentar realizou aquilo que nenhum
homem alcançara fazer […]. Só a morte pôde pôr fim à insaciável ambição do jovem
conquistador” (KAEFER, 2016, p.56).
Prestes a completar 33 anos de vida, Alexandre havia entregue seu anel sinete
para Pérdicas que foi incumbido de ser o regente do rei. Logo a preocupação acerca
do sucessor de Alexandre começou a afligir a muitos de seus súditos. Roxane, sua
esposa, estava grávida, entretanto mesmo com o nascimento da criança ela seria
muito nova para subir ao trono. O grande chifre do bode inusitadamente se quebrou.
Alexandre morrera, entretanto, a pergunta ainda prosseguia sem resposta, quem seria
capaz de assumir a posição deste deus-rei?
2.7 Os quatro chifres: Solução para o Inesperado
“E subiu, [em] visão, quatro debaixo para [os] quatro ventos dos céus” (Dn 8,8b)
A perda de Alexandre foi um grande impacto não apenas na vida daqueles que
conviviam junto ao jovem rei, mas para todos que se encontravam sob o seu domínio.
“Tanto os macedônios quanto os nativos choraram ao saber da morte de Alexandre,
correndo em pânico pelas ruas. Súditos persas rasparam suas cabeças, como era o
costume quando da morte de um Grande Rei” (FREEMAN, 2016, p.422).
Pérdicas foi, segundo Green (2014, p.56), a maior figura que havia surgido após
a morte do grande conquistador e o único que havia recebido, em frente a
85
testemunhas, o anel selo de Alexandre, sendo esta a única transferência organizada
de poder. Entretanto, por ele não ter um “sangue real”, ele foi rejeitado para assumir
tal papel.
Não demorou muito para que aqueles que eram companheiros começassem a
lutar entre si buscando obter poder, muito sangue foi derramado enquanto os
poderosos lutavam e armavam estratégias que pudessem derrotar seus concorrentes.
Não houve acordos, até que nomearam o meio-irmão de Alexandre, Arrideu como
Felipe III. Ele havia sido incumbido de cuidar do trono até que o filho de Alexandre
alcançasse idade suficiente para governar. Esta solução havia sido dada por Pérdicas,
que o auxiliaria até que o filho ainda não nascido de Alexandre pudesse ascender ao
trono. Entretanto, Arrideu tinha um problema mental e mesmo adquirindo o título não
foi levado a sério como governante macedônio. Tanto ele quanto o filho de Alexandre
não passavam de uma distração enquanto as intrigas continuavam.
Um dos resultados dessa reunião foi a divisão do império. Ptolomeu recebeu o Egito, enquanto Seleuco, um amigo de Pérdicas, manteria a maior parte da Ásia naquele momento. Antípatro e seu filho, Cassandro, ficariam com a Macedônia e a Grécia, e Lisímaco, o ex-guarda-costas do rei, tomaria a Trácia (FREEMAN, 2016, p.423)
Nem mesmo o rito funerário de Alexandre pôde ser concretizado em paz,
Ptolomeu roubou o corpo de Alexandre o carregando consigo para o Egito. Não
demorou muito para que a paz recém-estabelecida através do acordo logo fosse
quebrada e várias revoltas emergissem. Pérdicas assassinou Maleagro, quando este
se encontrava dentro de um templo, e seus seguidores tiveram um fim trágico, foram
pisoteados por elefantes.
As mulheres de Alexandre também não ficaram de fora das brigas pelo poder,
Roxane, por exemplo se livrou de Estatira, filha de Dario e a sua irmã, envenenado-
as, tendo como seu apoiador Pérdicas. Ele a apoiou lutando pelo direito dela e de seu
filho, visando o que poderia ganhar deles quando foi morto no Egito. Roxane e seu
filho também fugiram para a Macedônia, sendo hospedados por Olímpia. Porém, nem
mesmo eles encontraram paz por muito tempo, pois Cassandro os assassinou
findando assim a linhagem de Alexandre.
Aos poucos os próprios amigos de Alexandre foram sendo eliminados um a um.
Seu meio-irmão foi assassinado por um guarda trácio, Barsine e Hércules, o último
86
filho de Alexandre, foram envenenados em Pérgamo. Aristóteles foi obrigado a deixar
Atenas às pressas.
Seleuco […], estendeu seu domínio pessoal por boa parte do antigo reino de Alexandre, desde o Egeu até as estepes da Ásia Central. A dinastia que ele estabeleceu continuaria a reinar por muitos anos, até ser engolfada no Oriente pelos partos e no ocidente pelos romanos. Da mesma forma, Ptolomeu consolidou seu controle do Egito e viveu para escrever seu relato da grande guerra com Alexandre do Danúbio até o Indo. Sua família manteve o trono dos faraós por gerações até a morte de sua descendente Cleópatra (FREEMAN, 2016, p.425)
Como analisado anteriormente os chifres, vocábulo muito utilizado nesta
perícope, denomina poder e exaltação. O grande chifre do bode que derrotou seu
oponente e deteve grande poder nas mãos, temido por todos, tem o seu chifre
quebrado. A doença que acometeu Alexandre, foi a causa que resultou no chifre
quebrado do poderoso bode.
Todas essas intrigas e traições em busca de que alguém pudesse assumir o
lugar do grande chifre resultaram no surgimento de quatro outros chifres que se
elevaram na direção dos quatro ventos dos céus. Em 301 a.C. ocorreu a Batalha de
Ipsus na Frígia, Ásia Menor, este entrave entre os sucessores rivais resultou na
dissolução do império de Alexandre, o Grande. Os quatro generais (Cassandro,
Lisímaco, Seleuco e Ptolomeu) que serviram ao grande conquistador haviam
adquirido o que muitos morreram buscando.
Entretanto, as influências deixadas pelo jovem conquistador, embora tenha
durado pouco tempo no poder devido a esta doença que o consumiu, foi o suficiente
para que deixasse raízes fortes que acabaram influenciando diversas culturas por
séculos. Com ele, o helenismo passou a ser imposto a todos os dominados, que
tinham de pôr a cultura estrangeira acima de seus próprios costumes e ritos religiosos.
Os sucessores de Alexandre, o Grande, cessam de batalhar entre si no fim do
século IV a.C., por um período para que assim consolidem a sua autoridade sobre as
áreas que lhes foram designadas para estarem sob o seu domínio. Martin e Blackwell
(2012, p.168) apontam que estes sucessores fundaram dinastias que dominaram a
história política e militar na Grécia, Egito e sudoeste da Ásia por mais de 200 anos,
até o momento em que ocorreu a conquista dessas regiões pelos romanos. Sendo
que as dinastias dos ptolomeus e dos selêucidas se mantiveram por mais tempo ao
87
poder. Seus reinos helenísticos, semelhantes aos gregos, tinham a frente dos
governos e sociedades locais gregos e macedônios.
Dentre os quatro, se destacarão duas dinastias, os ptolomeus e os selêucos,
que continuaram brigando entre si, desejando tomar as terras um dos outros.
2.8 O Pequeno Chifre: a Nova Onde de Poder
“E do outro deles saiu outro chifre pequeno e crescendo demasiadamente para o Sul/Negeb e para o levante e para direção à belo (Palestina). ” (Dn 8,9)
Após o consentimento na reunião realizada onde se dividiu o extenso império
grego de Alexandre entre os seus quatro grandes generais, o império selêucida
ocupou uma vasta área indo do Oeste, Anatólia, até a leste, Báctria. Sobre os dilemas
nos quais os reis selêucidas se esforçavam ao máximo em resolver, Koester (1995,
p.27-28) comenta que sua ânsia era a busca do equilíbrio entre defesa e segurança
ligado ao desenvolvimento econômico de suas primordiais províncias, Mesopotâmia
e a Síria. O reino selêucida possuía importantes centros de comércio na costa síria e
também acesso às rotas marítimas no Mediterrâneo oriental, que foram essenciais
para a base econômica do império selêucida. Enquanto as regiões da Palestina,
Fenícia e sul da Síria pertenciam aos ptolomeus no Egito.
Com o estabelecimento dos ptolomeus no Egito e dos selêucidas na Síria, após
quase um século do fim da batalha entre os sucessores, um novo ciclo de batalhas se
inicia em 274 a.C. As chamadas guerras sírias, que ocorreram entre as duas dinastias
citadas. O motivo para que as batalhas fossem travadas novamente entre esses dois
sucessores era a recuperação de territórios (como foi mencionado anteriormente) ou
busca de expansão de domínio pelos líderes, com o intuito de assim obter os seus
poderes consolidados politicamente. Podemos listar os entraves da seguinte maneira:
Tabela 2 – Guerras Sírias
Período Combatentes
1ª Guerra Síria 274-271 a.C. Ptolomeu II Filadelfo e
Antíoco I Sóter
2ª Guerra Síria 260-253 a.C. Ptolomeu II Filadelfo e
Antíoco II Theos
88
3ª Guerra Síria 246-241 a.C. Ptolomeu III Evérgeta e
Seleuco II Kallinikos
4ª Guerra Síria 221-217 a.C. Ptolomeu IV Filópator e
Antíoco III Magno, o
Grande
5ª Guerra Síria 202-195 a.C. Ptolomeu V Epífanes e
Antíoco III Magno, o
Grande
6ª Guerra Síria 170-168 a.C. Ptolomeu VI Filómetor e
Antíoco IV Epífanes
Fonte: elaborada pela autora com base em CAWKWELL, 2005; GREEN, 2014; KOESTER, 1995.
Como principal resultado de estar a tanto tempo fazendo campanhas militares,
não seria possível que tais ações não tivessem custado caro para essas dinastias.
Manter um exército durante a batalha e no deslocamento dele não era algo gratuito,
assim como lidar com as perdas correlacionadas ao resultado dessas diversas
batalhas que foram ocorrendo no decorrer dos anos. No início do século II a.C., para
os selêucidas particularmente, as consequências que estavam sendo enfrentadas
eram principalmente econômicas e políticas.
Analisando o quadro acima que resumidamente demonstra as guerras sírias,
pode-se identificar um dos principais dilemas que os reis selêucidas procuravam
manter em controle e melhorar sempre que possível, isto é, a receita imperial para
que dessa forma seu exército estivesse sempre engajado em suas batalhas.
E para cobrir as despesas sempre crescentes da corte real e seus oficiais. Uma administração fiscal centralizada era, portanto, importante, embora não houvesse um sistema unificado de taxas e impostos. O governo central controlava as casas da moeda e as políticas monetárias das cidades e principados dependentes, tomando decisões sobre a exportação dos bens e produtos manufaturados que eram por direito devidos ao rei. Caso contrário, a administração real gerenciava apenas as propriedades de posse direta do rei […]. É difícil avaliar o tamanho real dessas terras; eles podem ter chegado a metade de toda a área governada pelos selêucidas (KOESTER, 1995, p.51)
Seguindo o modelo deixado por Alexandre, o Grande, em relação aos cargos
ligados à administração monetária do império, se confiava apenas em gregos e
macedônios para ocupá-los. Esses homens de confiança eram trazidos de suas terras
natais para realizarem este trabalho.
89
Em meio a estas disputas a Judeia se encontrava numa situação delicada
durante este período, visto que a sua localização geográfica era considerada como
estratégica aos combatentes. Segundo Santos e Plautz (2019, p.59), esta era
[...] uma espécie de corredor entre os ptolomeus (sul) e os selêucidas (norte) (…), era disputada por essas duas dinastias não só pela posição estratégica em relação ao inimigo e ao mar mediterrâneo, mas também pela possibilidade de aumento de arrecadação via imposto
Esta foi uma região que se encontrou em constante mudança política durante
este período. Perante tal situação não seria incomum haver um burburinho no meio
dos judaítas. Santos e Plautz (2019, p.60) apontam que tal comoção envolvia a
existência de três grupos que também estavam ativamente em disputa dentro de
Jerusalém. Isto é, judeus favoráveis aos selêucidas, outro aos ptolomeus e ainda os
que defendiam a autonomia política judaíta.
A questão era que até meantes do século III a.C. a Judeia era subordinada aos
ptolomeus, entretanto em torno de 225 a.C., surge um grupo no meio dos judaítas que
começa a se opor ao governo vigorante. Contribuem neste sentido Santos e Plautz
(2019, p.60) apontando que posteriormente esta cisão se intensificaria no conflito
entre os oníadas e tobíadas. Eles proclamaram apoio a Antíoco III em 223 a.C.,
quando este assumiu o poder. A instigação deste grupo teria surgido quando Onias II,
o sumo sacerdote, foi deposto de seu cargo, sendo ele membro de uma tradicional e
antiga família judaíta.
O grupo oposto, segundo alguns estudiosos, pertencia a um grupo de judaítas
aristocratas que enriqueceram ligeiramente e seu líder José65 , filho de Tobias foi
incumbido de representar os judaítas frente aos egípcios. Este cenário propiciou uma
oportunidade que, logo foi percebida por Antíoco III e colocada em prática, durante o
a sucessão de Ptolomeu V. É neste momento que estoura a quinta guerra síria, no
qual se obteve o apoio de blocos judaítas que apoiavam aos selêucidas.
A Judeia é tomada em 198 a.C. por Antíoco III, assim como a Fenícia e a Síria
também. Entretanto, Antíoco III sofre grandes perdas anos mais tarde, principalmente
no âmbito econômico durante a Batalha de Magnésia travada contra Roma em 189
a.C. E teve de carregar este problema durante o fim do seu governo (pagar a dívida
65 “José, filho de Tobias, que havia sido anteriormente coletor de impostos para os ptolomeus na
Judeia” (SANTOS; PLAUTZ, 2019, p.60).
90
de guerra) e ainda assim passar este compromisso para ser cumprido pelos seus
sucessores.
Antíoco III foi morto três anos mais tarde e Selêuco IV (187-175 a.C.), seu filho,
assume o trono em seu lugar. Seu governo é marcado por fracassos e como resultado
em Jerusalém se intensifica a briga pelo poder tão disputada entre os oníadas e os
tobíadas.
Após Selêuco IV, é a vez de Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.) assumir o
governo do império selêucida. Ele é apontado como o pequeno chifre que surge dentre
os quatro que tomaram o lugar do grande chifre, que foi quebrado e iam na direção
dos quatro ventos dos céus.
Sobre a figura de Antíoco IV Epífanes estar relacionado ao pequeno chifre,
Hassler (2016, p.35) correlaciona com a forma pela qual o Antíoco IV Epífanes chega
ao poder. Seu irmão Selêuco IV Filopátor foi assassinado pelo seu próprio chanceler
e o sobrinho de Antíoco IV Epífanes, Demetrius I Sóter, era o sucessor legal ao trono.
Durante este período em que o seu irmão foi assassinado Antíoco IV Epífanes se
encontrava “preso” em Roma como refém. Entretanto Antíoco IV Epífanes usurpa o
poder, através de suborno e adulação, tendo assim uma ascensão incomum, peculiar
ao trono do império selêucida. Sua importância até então era pequena, assim como a
figura que surge na visão.
Barry (1910, p.126-127) discorre sobre Antíoco o caracterizando como um
homem que possuía ideais e ambições de unificar o seu império, buscando construí-
lo sob uma base sólida que viria da tradição e costumes gregos. Porém, essa sua
imagem acabou sendo trocada pôr a de um grande perseguidor religioso. Sua
devoção a Zeus resulta no propósito de realocar as diversidades locais e fé tribais
numa única religião estatal, o que turbinaria e corroboraria na solidificação do
processo de unificação de seu império.
Durante este mesmo período da ascensão de Antíoco IV Epífanes surgem no
cenário político duas novas ameaças, especialmente ao império selêucida, do lado
oeste Roma, que anteriormente já tinha se demonstrado como uma ameaça, visto que
ao assumir o trono Antíoco IV Epífanes havia sido encarregado de tentar liquidar a
dívida de seu antepassado, e ao leste a Pártia.
Como relatado na visão, o pequeno chifre cresce demasiadamente em direção
ao sul, leste e na direção ao belo (Dn 8,9). Quanto a região Sul, Antíoco IV Epífanes
investe duas campanhas contra o Egito (170-168 a.C.). Sendo que na primeira,
91
Ptolomeu recua (1Mc 1,17) e na segunda ele só não prevaleceu contra o Egito porque
Roma se intromete na batalha com o intuito de pôr um fim na sexta guerra síria,
favorecendo ao Egito e permitindo que o seu governo continuasse em vigor.
É durante esta sexta guerra síria que, Antíoco IV Epífanes, acentua Koester
(1995, p.31) conquista toda a região do Egito, com a exceção de Alexandria. Antíoco
IV Epífanes então é forçado para ir a Síria por um breve período, é neste momento
que ele “saqueia” o tesouro do templo de Jerusalém e retorna ao Egito.
Sobre o templo de Jerusalém e o saque a ele cometido, Tcherikover (1959,
p.155) o aponta como ocupando o centro da religião judaíta, assim como também
possuía uma importância econômica considerável. Era comum aos povos deste
período (babilônios, gregos, egípcios e romanos) utilizarem os templos não apenas
um lugar santo, mas como um centro financeiro. Estes templos possuíam uma riqueza
acumulada em seus depósitos com prata e ouro que eram pagos pelos seus fiéis.
Em Jerusalém não era diferente o meio shekel, moeda judaíta, com a qual eles
pagavam todos os anos o templo, provavelmente, conseguia cobrir a maioria dos ritos
diários e com o passar das gerações, esta renda pode ter alcançado uma soma
considerável. Por ser considerado um local extremamente seguro, algumas pessoas
depositavam seu dinheiro, fazendo do templo uma espécie de banco no sentido
moderno. De forma que Tcherikover aponta que o templo de Jerusalém
desempenhava um papel erário do estado, “resultado direto do fato de que o governo
da Judeia era ‘teocrático’ ou ‘hierocrático’” (1959, p.155, tradução nossa). Isto também
refletia no papel desempenhado pelos sacerdotes que não só possuíam poder frente
ao culto, como também no lado secular.
Ainda sobre os avanços do pequeno chifre na direção sul, Hassler (2016, p.36)
detalha que ao avançar sobre o Baixo Egito, Antíoco IV Epífanes se depara com as
tropas romanas de Gaius Popillius Laenas que chegaram até Antíoco IV Epífanes o
forçando a recuar, e renunciar a seu triunfo sobre os ptolomeus.
A intromissão romana neste episódio, particularmente, se deu com o intuito de
que o império selêucida não se tornasse um grande ponto de poder e ficasse em seu
caminho tendo de ser tolerado. Para não criar mais problemas com Roma, Antíoco IV
Epífanes não persiste em investir contra o Egito. Entretanto tal ação custou caro ao
senhorio selêucida, pois além de ter uma dívida com Roma para pagar, ele agora
carregava nas costas o custo de duas campanhas e ainda tinha de lidar com uma
província que estava borbulhando em disputas para alcançar o poder.
92
A leste, pontua Hassler (2016, p.36) ele teve grande êxito em sua campanha
que durou cerca de dois anos na Armênia, Média, Pérsia e Babilônia. Entretanto ele
mesmo sofreu uma derrota devastadora quando intentou contra Elamais e Persépolis,
onde ele veio a falecer.
Se comparado as conquistas de Antíoco III, o grande, as conquistas de Antíoco
IV Epífanes não foram tão grandiosas, visto que o seu antecessor avançou até chegar
na Índia. A bela terra, descrita na visão que se refere a Judeia, já era uma região que
havia sido conquistada e anexada ao domínio selêucida por Antíoco III.
Entretanto Antíoco, segundo Tcherikover (1959, p. 178) era conhecido no
mundo antigo como um entusiasta helenista, sendo descrito como o primeiro e único
rei selêucida a proporcionar diversos benefícios ao povo grego e se preocupar com
as suas necessidades. Sendo para com os seus contemporâneos gregos
extremamente generoso ao ponto de: construiu um esplêndido templo para Zeus
Olímpios em Antenas; erguer estátuas e altares para os deuses em Delos; fazer
doações para a construção de uma muralha para a cidade de Megápólis; fez as
fundações de um teatro de mármore em Tegea; doou vasos para os cidadãos de
Cízico. E ainda, dentro dos limites de seu império se esforçou para fundar mais
cidades gregas. Tcherikover afirma que “se a sua obra não pode ser comparada com
a dos primeiros reis da linha, isso não foi por falta de vontade, mas sim porque ele
nasceu pelo menos um século depois de sua época” (1959, p.178).
A primeira reação de Antíoco IV Epífanes, após se retirar do Egito foi se dirigir
para a Judeia em busca de arrecadações ao passo que pretendia acabar com as
disputas que estavam ocorrendo, sufocando qualquer intenção de apoio ao Egito que
pudessem emergir. Para concretizar tais ambições na província da Judeia, Antíoco IV
Epífanes tomou algumas decisões, como por exemplo, interferiu no cargo sacerdotal.
O que deveria ser decidido pela linhagem, como era ordenado pela tradição judaíta,
agora podia ser adquirido desde que o interessado estivesse disposto a pagar uma
alta quantia ao líder selêucida.
A briga pelo título de sumo sacerdote, para manter o poder em mãos teve início
em 174 a.C., quando o irmão de Onias III, comprou o título e função de sumo
sacerdote pagando um grande valor (2Mc 4,7-9). Este acontecimento abriu uma
brecha para que outros interessados vissem uma chance de tentar obter tal título
excelentíssimo. O segundo concorrente para sumo sacerdote surge em 172 a.C.,
93
Menelau que negocia com o próprio rei a compra do título oferecendo pagar 300
talentos a mais (2Mc 4,23-24).
Ao realizar a compra do título, por Jasão, pela primeira vez do cargo de Sumo
Sacerdote, Tcherikover (1959, p.160-161) aponta que o encargo que, até então era
hereditário ao qual o rei apenas concedia ou poderia negar a sua ratificação em
relação ao novo candidato, agora torna o cargo do sumo sacerdócio em um cargo
oficial selêucida dependente do favor do rei. Jasão não apenas conquistou tudo isso,
como também obtêm a permissão do soberano grego para converter Jerusalém numa
pólis grega, chamada Antioquia, lançando assim as bases necessárias para ocorrer
uma reforma helenística abrangente. Além de ser concedido a Jasão a permissão de
registrar em uma lista o povo que, em sua opinião, eram dignas de serem cidadãos
antioquinos. “Cada pólis grega reconhecia a diferença de princípio entre cidadãos e
meros habitantes […], e mesmo uma cidade democrática como Atenas insistia
rigorosamente nessa distinção” (TCHERIKOVER, 1959, p.161). O que se pode supor
que nem todos os moradores de Jerusalém tenham sido introduzidos no corpo
cidadão, entraram assim para a sua lista os ricos e nobres de sua cidade.
A transformação de Jerusalém numa pólis, tendo como base para que esta
reforma ocorresse a classe sacerdotal, sendo liderados pelo Sumo Sacerdote, trouxe
mais uma nova mudança. “O templo pertencia a nova pólis, não mais a velha cidade,
e sem o templo Jerusalém não tinha mais uma base religiosa ou econômica”
(TECHERIKOVER, 1959, p.165).
Como se não bastasse tal repugnância, principalmente aos olhos dos
tradicionais fiéis, Onias III é assassinado sob o comando de Menelau (2Mc 4,30-35).
O título de sumo sacerdote, favoreceu a Menelau o poder de tomar decisões
relacionadas ao âmbito religioso judaíta. Ele concedeu seu apoio a Antíoco IV
Epífanes, em 167 a.C., para que este invadisse o templo de Jerusalém e impedisse a
realização do sacrifício contínuo.
Outra medida tomada pelo governante foi o decreto real que foi publicado em
168 a.C., no qual se proibiu a prática da religião judaíta. O seu próximo passo ocorreu
no final do ano de 167 a.C., nesta ocasião ele buscou implementar a cultura helenista
e os seus costumes por todo o seu império. Para isso Barry (1910, p.131) detalha que
Antíoco instituiu a celebração de um festival em Dafne, onde ele mesmo havia
ordenado a construção de um grandioso templo a Apolo, o que lhe custou caríssimo.
A comemoração se estendeu por um mês inteiro.
94
O teor de sua tentativa, no fundo, era que a religião estatal de culto a Zeus
tivesse êxito ao ser implementada por todo o seu império. Mais detalhes sobre a
peculiar forma de culto no império selêucida foram “inspirados” na deificação do
primeiro Ptolomeu, “o segundo Selêucida decretou que seu pai Seleukos I fosse
adorado como ‘Zeus Nikator’. Muito em breve, o culto ao rei vivo também foi
introduzido. [...] O culto ao governante selêucida estava intimamente associado à
adoração de Zeus e Apolo” (KOESTER, 1995, p.38). Estes eram os principais deuses
cultuados no império selêucida.
Obviamente o líder não contava que tal decisão pudesse gerar uma revolta
armada, que ficou conhecida como a Revolta dos Macabeus.
No ano seguinte (166 a.C.) seu domínio entra em decadência, por um lado os
romanos se intrometiam em suas conquistas, no outro surge a revolta armada na
Judeia, liderada por Judas Macabeu. Antíoco IV Epífanes se encontrava agora numa
encruzilhada, pois os cofres do império estavam praticamente vazios, ainda mais após
tal grandioso evento que havia sido realizado no glorioso templo em Dafne.
Barry (1910, p.133-135) pontua que Antíoco IV Epífanes resolve partir para a
Pérsia com o intuito de arrecadar contribuições. Ele parte e dá a ordem para que uma
parte de seus homens fique e combata a revolta. O que Antíoco IV Epífanes não
contava era que desta viagem, que durou por volta de dois anos, ele nunca mais fosse
voltar. Sua morte ocorre no ano de 164 a.C., e se aponta que em sua viagem para a
Pérsia, Antíoco IV Epífanes tenha encontrado o país extremamente insatisfeito.
Afirma-se que então para arrecadar os fundos que ele necessitava era preciso que se
começasse a saquear os tesouros de diversos templos (como o da deusa Babilônia-
Persa Nannaea-Anahid).
Os nativos desses lugares não viram a ação de Antíoco IV Epífanes com bons
olhos e o contra-atacaram o forçando a retroceder, foi então que lhe trouxeram notícias
de que Judas Macabeu havia derrotado as forças selêucidas restaurando os
sacrifícios contínuos e reconstruindo o templo em Jerusalém.
Em resumo Antíoco IV Epífanes governa o império selêucida por apenas 11
anos (entre os anos de 175 a.C. – 164 a.C.), no qual Hassler (2016, p.35) pontua que
o soberano gastou cerca de sete anos perseguindo aos judaítas, tendo como o ponto
de partida o assassinato do Sumo Sacerdote Onias III (em 170 a.C.) e findando
próximo a sua morte em 164 a.C.. Neste período de perseguição somente na cidade
de Jerusalém, por volta de oitenta mil judaítas foram mortos (2Mc 5,14).
95
2.9 Em direção ao “Belo”: o Ponto Estratégico Militar
A Judeia fazia parte do domínio ptolomaico quando começa a ficar cada vez
mais nítido uma divisão de grupos entre os judaítas relacionados a ideais políticos.
Um dos grupos decide continuar apoiando aos ptolomeus, enquanto o outro grupo
decide demonstrar o seu apoio aos selêucidas, que estava sob a liderança de Antíoco
III, o Grande. O seu suporte dos judaítas dados durante a guerra síria, resultou na sua
anexação ao império selêucida (em 197 a.C., na batalha de Pânias).
A região da Judeia, como mencionado anteriormente, era um território que
oferecia um excelente ponto estratégico que possibilitava certa vantagem a quem o
possuísse para futuros ataques ao Egito, e acesso as rotas marítimas. Tanto o governo
ptolomaico quanto o de Antíoco III não interferiram nos costumes e tradições judaítas,
dando-lhes certa autonomia para exercer os cargos religiosos segundo a lei dos seus
antepassados. Quando Antíoco III intentou implantar seus deuses no templo de
Jerusalém, houve protestos que o fizeram retroceder.
Quando Antíoco IV Epífanes assume o poder do império selêucida, ele traz
consigo um ideal que buscará implementar por todo o seu domínio, um plano um tanto
quanto ambicioso. Ele buscará trazer uma unificação por toda extensão de seu reino,
para isso ele terá de tomar medidas que propiciarão uma facilidade para que ocorra
esta unificação, inspirada no governo de Alexandre, o Grande, e assim alcançar como
resultado a consolidação de seu reinado.
Para isso, Antíoco IV Epífanes procura continuar aquilo que Alexandre, o
Grande, havia começado anteriormente ao intentar implantar o helenismo (Era
Helenística 323-30 a.C.) disseminando a língua grega, estudos, filosofias, teatro, entre
outros, o que facilitaria a padronização de seu governo. Além de haver uma grande
expansão no nível comercial e mercenário durante este período e a lei grega ser a
base de toda a base política e econômica.
Não demorou muito para que os nativos percebessem as grandes vantagens
de aderir a cultura helenística conforme esta se expandia, “visto que essa cultura
assinalava a classe dominante. Muitos assumiram nomes gregos e envolveram-se nos
estudos em estabelecimentos de ensino” (LENNOX, 2017, p.282). De igual modo a
religião helênica também se popularizava entre aqueles que se tornaram adeptos da
96
nova cultura e não demorou muito para que templos em honra a estes deuses fossem
construídos em diversas cidades.
Em contrapartida os gregos conforme iam entrando com diferentes culturas
orientais identificaram diversas combinações entre sua religião e a de outros povos,
percebendo assim que havia um mesmo deus embora ele possuísse diversos nomes.
Neste mesmo período o ocultismo e a magia se tornam também populares.
O início do governo de Antíoco IV Epífanes é marcado pela semelhança de
liderança com a de seu pai, Antíoco III, pois ele mantém o mesmo comportamento
ante as autorizações dadas. Entretanto após a forçada retirada do Egito sob ordens
de Roma, Antíoco retorna a Judeia onde ele saqueia os tesouros do templo, sendo
esta uma das primeiras decisões tomadas que desagrada aos judaítas.
Outro ponto que serviu para que se desencadeasse ainda mais o
descontentamento entre os judaítas e o pequeno chifre, estavam correlacionados a
sede por poder, ganância, ambição que somados ao dinheiro corroborou para que a
classe sacerdotal se perdesse. Como citado anteriormente a compra, e a luta pelo
título de sumo sacerdote, passando por cima da tradição pela qual assegurava a
sucessão da posse através da linhagem sanguínea, fez com que se aumentasse cada
vez mais a apreensão do povo e dos judaítas mais tradicionais com o governo de
Antíoco IV Epífanes. Eles agora se viam desamparados, ainda mais com o
assassinato do legítimo sumo sacerdote, Onias III.
O novo sumo sacerdote Menelau propiciou, apoiou e providenciou que a
implementação do helenismo ocorresse de forma quase que “natural” na Judeia.
Como Souza assinala sobre uma das responsabilidades incumbidas de ser realizada
pelos sumos sacerdotes, “o sacerdote passa a exercer também o poder civil. A
administração passa não mais ser feita por um governador, mas por um conselho de
anciões, composto de sacerdotes e leigos, presidido pelo sumo sacerdote (1Mc 12,6;
2Mc 1,10; 11,27)” (SOUZA, 2011, p.74). Mais tarde seria conhecido como o sinédrio,
isto concedeu ao sumo sacerdote ainda mais poder e lhe acresceu funções dentro da
comunidade, especialmente correlacionadas a administração.
O Helenismo também possuía valores totalmente diferentes aos da cultura
judaíta, o padrão e ideologias presentes na sociedade helênica se tornaram muito
atrativos aos nativos. A classe alta era composta por três grupos, como demonstra
Koester (1995, p.56): a casa do rei (família, conselheiros e amigos mais achegados),
altos oficiais administrativos e membros da corte (tais como servos, subordinados e
97
escravos) e os gregos independentes. Estas seriam pessoas ricas que provavelmente
eram comerciantes atacadistas ou proprietários de terras. Os não-gregos ainda
podiam entrar no segundo e terceiro grupos descritos, estes grupos possuíam
privilégios.
As opções de papéis a serem desempenhados dentro da sociedade helênica
eram inúmeros, poderiam ser funcionários públicos, fazendeiros, comerciantes,
artesãos, médicos, filósofos, etc. Estas funções não estavam restritas apenas para os
gregos e macedônios, tanto que posteriormente os não-gregos exploraram estas
opções. Koester (1995, p.56-57) aponta que essa decisão se baseava na crença de
que a educação grega permitia as pessoas formação que desencadeava aptidão, para
que assim pudessem desempenhar um papel relevante dentro da sociedade. Além de
que as profissões eram dependentes de uma educação geral na escrita e leitura
elementares fornecidas pelas escolas e ginásios. Associações e guildas profissionais
desempenhavam um importante papel, pois eram elas que faziam a supervisão de
admissão e treinamentos em certos tipos de trabalhos e incluíam estrangeiros,
cidadãos e até mesmo os escravos.
No período helenístico os escravos começaram a ser colocados à venda e a
serem comprados como se não passassem de apenas uma outra compra qualquer.
Ainda havia a condição do homem-livre e da mulher-livre, esta categoria social
abrangia ex-escravos (as) e permitiam que “pelo menos se pudesse encontrar um
emprego adequado, o que poderia ser difícil para mulheres solteiras […], seu status
de dependência não terminou. Houve alguns benefícios. Eles agora receberiam um
nome real […], tinham o direito de se casar” (KOESTER, 1995, p.61).
Quanto ao papel desempenhado pelas mulheres dentro da sociedade helênica
não se possuía um padrão, em cidades egípcias, por exemplo, havia a permissão para
que elas possuíssem direitos de propriedades e de testemunho perante tribunais.
Entretanto seu domínio era limitado ao lar e sujeição a maridos e pais. É importante
acentuar que no período helenístico houve uma “maior mobilidade, o fato de famílias
tornarem-se autossuficientes e uma ênfase crescente na educação deu às mulheres
oportunidades e mais lazer […]. casamentos não eram mais um arranjo econômico
entre famílias” (KOESTER, 1995, p.63). No período considerado como clássico, os
maridos podiam ensinar as suas esposas sobre artes liberais e até mesmo filosofia,
isto refletirá na aparição de mais escritoras e poetas na sociedade.
98
Em outras cidades era até mesmo possível identificar algumas mulheres
exercendo cargos públicos, ou administrando famílias. Desta forma, o casal unia-se
para que assim pudessem sobreviver através de seus trabalhos.
Certas habilidades domésticas, como fiar e tecer, eram tradicionalmente exigidas das mulheres. A prostituição ou outras ocupações de serviço aos homens eram o destino de muitas mulheres solteiras. Entre as artesãs, as mulheres casadas podiam ajudar os maridos em seu ofício (KOESTER, 1995, p.63).
Outro ponto extremamente atrativo para os nativos foi a questão econômica e
monetária que veio junto com o helenismo. O comércio explode ainda mais com a
possibilidade de fazer contatos no exterior, como, por exemplo, com a Índia, Pártia
entre outras localidades. Também se ampliou o acesso à matéria-prima, o que resultou
na expansão do comércio doméstico e importação. Esta também foi uma facilidade
para manter os exércitos, realidade necessária ainda mais quando se vivia em meio
às guerras sírias. Enquanto no quesito do sistema monetário caótico do mundo antigo
foi substituído por um padrão mais uniforme, que surgiu com Alexandre, o Grande,
quando ele introduziu um padrão conciso de moedas por todo o império.
Como aponta Koester (1995, p.93), que não houve escassez de prata para que
fossem produzidas mais moedas que permaneceram estáveis durante a maior parte
da era helenística, isto até o período de guerras de Diadochi, que foi uma exceção.
No domínio selêucida, não havia muitas moedas de ouro, como entre os ptolomeus,
elas eram utilizadas somente em ocasiões especiais. Nos mercados locais se utilizava
as moedas de cobre. Antíoco IV Epífanes permitiu que algumas cidades selêucidas
pudessem cunhar prata.
Eram diversos itens que se tornaram atrativos para os nativos que estavam
chegando, uma cultura totalmente diferente em que via no corpo a beleza e induzia
as pessoas que buscassem a própria felicidade. Os ginásios atraíram os jovens e o
contato com essas novas esferas fizeram com que a sua cultura tradicional perdesse
o brilho, enquanto essas novidades os seduziam cada vez mais.
2.10 Considerações Preliminares
99
No decorrer deste capítulo buscamos fazer uma breve exposição acerca do
contexto histórico que está por trás da narrativa de Daniel capítulo 8,1-14, dando maior
enfoque na história que envolve os principais símbolos apocalípticos da visão.
A começar pela menção de Belshazzar no início da visão, que embora não
tivesse sido simbolicamente citado, indicava também o ponto de transição para o
aparecimento e estabelecimento do carneiro, a Pérsia, no poder político. Belshazzar
foi o último rei que esteve no poder juntamente ao seu pai Nabônido, com eles foi
marcado o fim do poder babilônico, que foi subjugado a dominação persa.
Quando analisando esta transição babilônica para persa, observamos o papel
religioso nesta troca de liderança política. Principalmente na forma como a religião
facilitou na aceitação de uma nova liderança política que havia sido “aceita” e
“abençoada” por Marduk. Destaca-se aqui que esta aceitação e apoio da classe
sacerdotal foi fundamental para que Ciro se estabelecesse sem haver muita oposição.
Com a dominação Persa, vimos o retorno dos judaítas a sua terra, assim como
outros povos que puderam retornar sob a condição de pagarem impostos aos seus
“benfeitores”. Assim como a expansão da área de domínio, ultrapassando para outros
limites que o império Babilônico não havia conseguido alcançar. Como descrito na
visão, por um longo tempo o carneiro deteve o poder em suas mãos e ninguém
conseguia tirar o poder dele.
Tudo estava bem, calmo como a cena descrita do carneiro bebendo água no
rio Ulai, quando a Grécia se levantou e partiu em direção a seus inimigos, os persas
buscando assim se vingar deles. Alexandre, o Grande, o bode com o grande chifre
não permitiu que sua pouca idade se mostrasse incapaz de lutar pelos interesses de
seu povo e de concretizar o desejo de seu pai, derrotar os persas em seu próprio
território. O exército grego se mostrou persistente e rápido a ponto de não só formular
estratégias e ataques bem elaborados.
Assim como apontado na visão, tudo seguiu de forma positiva para os gregos
quando de forma inesperada seu poderoso líder caiu enfermo, e assim o grande chifre
se quebrou. Através de muito derramamento de sangue se dividiu o império entre seus
quatro grandes generais.
Seguimos o afunilamento histórico indicado pela nossa narrativa, focando no
pequeno chifre que surge desses quatro chifres (que se erguem nos quatro ventos do
céu) e cresce em poder e exaltação. Nos preocupamos em não abrir de forma
exaustiva este contexto histórico, mas em nos atermos voltados nos principais
100
símbolos apresentados na narrativa, seguindo na mesma provocação do início desta
pesquisa. Isto é, na ligação entre o contexto histórico do segundo século a.C. e a
redação desta visão apocalíptica.
Através desta análise minuciosa dos símbolos que compõem a narrativa
podemos observar os acontecimentos que ocorreram em cadeia durante os anos que
culminaram na Revolta Macabaica. Assim como se pode visualizar tanto os aspectos
positivos que foram trazidos e proporcionados pelo helenismo, assim como os
aspectos negativos, que se deram principalmente pela rejeição dos judaítas piedosos
à imposição estrangeira. Como também por causa da perseguição política que causou
a morte de milhares de judaítas como justificativa de desobediência do decreto de
Antíoco IV Epífanes.
Vimos no decorrer deste capítulo, que foram vários os fatores que tornaram a
nova cultura numa ameaça à sociedade e por isso foram combatidos tão
fervorosamente pelos judaítas. Que não só buscaram se “purificar” da cultura imposta,
como posteriormente se aproveitaram do impulso e animação que resultaram das
conquistas e lutarão para que alcancem a tão sonhada independência política.
101
3 O LEVANTE DOS SANTOS: SURGIMENTO DENTRO DA NARRATIVA E SEU
REFLEXO NA SOCIEDADE
A visão de Daniel 8,1-14, como temos visto no decorrer desta pesquisa é repleta
de detalhes históricos que demonstram ao leitor o profundo nível de conhecimento
que o seu autor possui. Encontramos nesta visão um autor que, de forma sucinta e
bem organizada, expõe ao seu leitor um longo período histórico sem sobrecarregá-lo
com as suas breves, mas bem colocadas informações. Ao mesmo passo que ao trazer
essas diversas informações, o seu leitor é preenchido de expectativas e sentimentos
que os conduz ao clímax dos acontecimentos, tudo isso sem sair ou sobrepesar o
gênero literário, cumprindo as “exigências” dele.
De igual modo, quando introduzimos um panorama geral sobre a obra de Daniel,
notamos como nossa perícope se encaixa dentro do bloco ao qual ela pertence,
apocalíptico, como a sua mensagem também condiz com o assunto abordado pelas
outras perícopes presentes neste bloco da obra. Os textos apocalípticos, não se
repetem ou cansam o seu leitor, mas trazem diferentes focos acerca de um momento
delicado que vem sendo exposto e tratado nesta parte da obra.
A linguagem ou as figuras de linguagem, símbolos utilizados em nosso texto
não causaram dificuldades de comunicação e compreensão entre o autor-leitor. Como
vimos no decorrer de nossa pesquisa, encontramos facilmente a relação entre esses
símbolos com a realidade histórica dessa sociedade judaíta pertencente ao século II
a.C. Ao realizarmos a nossa análise exegética além de nos aproximarmos melhor da
perícope a ser estudada, nos foi possibilitado separar alguns dos principais símbolos
para aprofundá-los no segundo capítulo.
Realizamos uma análise cuidadosa em nosso segundo capítulo, ao retomar os
principais símbolos de nossa perícope os relacionando ao contexto histórico que
serviu como base para o nosso relato. Nisto identificamos a presença de um enorme
contexto histórico que vem pavimentando a visão aqui estudada lhe dando uma firme
base histórica. Esta base serviu tanto para informar ao seu leitor sobre estes principais
acontecimentos, como encaminhou a narrativa para a sua finalização. Levando a um
momento em que a narrativa culmina no lamento dos santos, que vem acompanhada
por uma resposta. Este lamento parece ser a reação daqueles que viam de fora a
102
visão e já não conseguiam se controlar diante de tais acontecimentos. Passam a
impressão de que já não eram mais capazes de se manter apenas como meros
expectadores.
A visão de Daniel continua após o combate entre os dois animais em ritmo
acelerado. Símbolos que representaram as grandes nações, persa e grega, que
haviam se enfrentado anos antes do surgimento do império selêucida. Para a sua
representação o autor utiliza os animais utilizados nos sacrifícios apresentados diante
de YHWH.
A visão está envolta em diversos movimentos, que em sua maioria envolvem
ou apontam para resultados dessas ações e refletem no que ocorrerá com os chifres.
Estes surgem em várias ocasiões no transcorrer da visão (crescem [גרל], se elevam
etc.), proporcionando os saltos temporais no contexto histórico. O autor não se ,[עלה]
preocupa com detalhes antigos da história, no qual ele utiliza apenas para introduzir
os acontecimentos que vieram a desencadear no surgimento do pequeno chifre e nas
ações relacionadas a ele. Aqui está o “prato principal” da visão.
As ações lincadas ao pequeno chifre são narradas pelo autor como uma
ameaça, cujo alvo se fixa nos exércitos dos céus (ים אהשמ ן־) e das estrelas (צב אומ הצב
ים א) bem como também ao seu oficial do exército ,(הכוכב É este chifre que .(שר־הצב
prevalece contra os seus alvos, vindo a pisoteá-los após atacá-los brutalmente. A
narrativa segue listando as condutas religiosas judaítas que vão sendo interrompidas
após este pequeno chifre prevalecer contra seus alvos, ele prospera em tudo o que
faz.
Até este momento retratado aqui na visão, não há reações seja de
expectadores ou dos elementos descritos na visão que sejam capazes de deter os
avanços deste chifre. Tudo ocorre de forma natural, quando enfim os santos são
introduzidos na narrativa, no desfecho da visão.
Neste terceiro capítulo nos dedicaremos em resgatar a figura destes santos e
nos manteremos em analisar o levante deste pequeno chifre, o correlacionando
principalmente com a reação dos judaítas, isto é, dos rebeldes macabeus.
Manteremos como base o texto de Daniel 8,1-14.
3.1 O Helenismo sob a Ótica Piedosa
103
De fato, aceitar a cultura helênica não foi um grande problema para uma parcela
da população judaíta. Havia diversas regalias que a “nova” cultura proporcionava
enquanto a sua própria cultura não retratava ou tinha algo relacionado. Um exemplo
disso são os direitos que as mulheres da sociedade helênica possuíam, entre outros.
Entretanto para a outra parcela da população, isto não foi nada natural ou fácil, ainda
mais ao ver as novidades que foram sendo introduzidas uma a uma em sua sociedade.
Estas mudanças não só começaram a lhes incomodar, como posteriormente vieram a
interferir em sua comunicação com YHWH.
Como se as mudanças por si só não fossem suficientemente difíceis para
serem assimiladas, o assassinato de Onias III e a impunidade de seu assassino
continuava exercendo seu poder sobre o povo. Foi um duro golpe para aqueles que
acreditavam na possibilidade de que alguma melhora viesse ocorrer em sua
sociedade. Entretanto para estes piedosos, por onde quer que olhassem só
conseguiam ver a corrupção se espalhando por todos os lados. A gota d'água foi
quando se interferiu nos ritos sacrificiais e, a figura que deveria defender essas
tradições, foi justamente aquela que apoiou e se desdobrou em garantir que tal ato
fosse posto em prática por todos.
A visão de Daniel 8, sumariza tais feitos “desprezíveis” aos olhos de seu autor
nos v. 11-12, onde afirma-se que o pequeno chifre, interfere nos ritos do templo e atira
verdade em terra, prosperando em tudo aquilo que faz.
Antíoco IV Epífanes “foi o primeiro rei selêucida a gravar sua alegação de
divindade nas moedas do seu reino, escolhendo o título Epífanes para expressar a
crença de que ele era ‘Deus manifestado’[…], o título foi parodiado como Epimênio,
que significa ‘louco’” (LENNOX, 2017, p.283). Essa paródia veio devido ao
comportamento bizarro e excêntrico do soberano. O próprio autor de Daniel parece
ter exposto a sua opinião sobre o soberano ao identificá-lo como o “pequeno chifre”,
visto que o próprio é descrito como quem possuía um ‘curto’ temperamento. O fato da
narrativa possuir a opinião acerca da figura política, indica proximidade entre o
autor/redator final com a figura do líder político mencionada.
Entretanto, segundo fontes gregas, como a descrição feita por Políbio, por
exemplo, apresenta outra visão acerca do soberano selêucida. Os escritos gregos
dizem que Antíoco IV Epífanes “não tinha um tato político e não compreendia como
deveria de se comportar como convinha a um rei” (TCHERIKOVER, 1959, p.176,
tradução nossa). Em seus relatos acerca de Antíoco IV Epífanes surge a figura de um
104
rei travesso, que gostava de se misturar as festas com pessoas comuns, assim como
saia nas ruas para ir a lojas ou o local de trabalho dos artesãos e conversava por um
longo tempo com pessoas “insignificantes”.
Há relatos de que até mesmo Antíoco IV Epífanes participava pessoalmente de
apresentações teatrais. Tcherikover (1959, p.176-177) acrescenta ainda que o seu
comportamento em relação as outras pessoas era cheio de surpresas, à companhia
de amigos ele se calava, mas com estranhos desatava a falar. Chegou até mesmo a
dar presentes extravagantes, como ouro e prata para algumas pessoas, enquanto
para outras eram entregues como presente tâmaras e dados. Uma pessoa cheia de
grandes contradições internas, mas que sempre se esforçava em fazer algo
extraordinário para surpreender a todos. Esta era a faceta de Antíoco IV Epífanes aos
olhos de seus contemporâneos gregos.
Essas divergências não se limitavam apenas na forma como viam o líder
selêucida, ou acerca de suas opiniões sobre a cultura helênica, mas abrangiam os
interesses de algumas classes sociais judaítas. Isto fica claro quando o ponto de
partida para a implementação da cultura helenista parte do lado judaíta. Provindo da
classe sacerdotal que ofereceu uma grande soma de dinheiro a Antíoco IV Epífanes
para lhes fossem permitidos construir um ginásio (2Mac 4,8-9).
As “transgressões” relatadas por Daniel começaram a surgir durante o
sacerdócio de Jasão. Aqui entendemos por transgressão a quebra da obediência a
Lei e dos costumes rigorosos da religião judaica. Como a visão correlaciona a
interrupção da continuidade, transgressão é atirar a verdade em terra (v.12). Sendo
assim a primeira transgressão a forma pela qual Jasão tomou para si o sacerdócio ao
pagar para Antíoco IV Epífanes uma soma de dinheiro a fim de obter de forma ilícita o
cargo de sumo sacerdote. Em 2 Macabeus 4 se descreve o momento em que lhes foi
permitido construir um ginásio e uma efebia 66 em Jerusalém; de igual forma foi
incorporado o modo de vida helênico e se construiu uma praça de esportes próximo
ao Templo (v.12). Não demorou muito para que a própria classe sacerdotal perdesse
o interesse na realização das liturgias (v.14). Jasão até mesmo doou trezentas
dracmas de prata para o sacrifício de Hércules (v.19).
66 Instituição grega onde rapazes entre a idade de 18 e 20 anos aprendiam a manejar armas, e se
dedicavam a realização de exercícios corporais, assim como também eram introduzidos a cultura literária grega.
105
Embora o estabelecimento da efébia e do ginásio fossem realizações básicas
para a constituição de uma pólis e que ambas estivessem em harmonia com o caráter
aristocrático, o ginásio era uma instituição educacional típico. Tcherikover (1959, p.162)
afirma que a educação na efébia acarretava despesas que resultavam no monopólio
de filhos ricos. Ao estabelecer uma efébia junto ao ginásio na Judeia, Jasão
demonstraria quais eram as aulas que as pessoas pertencentes a nova pólis
frequentavam.
Como vimos no capítulo anterior, Jasão tinha a autoridade de conceder a quem
ele quisesse o título de cidadão da pólis, pois Jerusalém havia sido transformada. Tal
concessão atraiu a muitos aristocratas o desejo de obter o “passaporte” grego, pois
isto lhes conferiria diversas regalias helenistas, comerciantes não ficavam de fora
desta lista, visto que o comércio no mundo grego significava uma oportunidade de
crescer e expandir economicamente e assim possuir mais influência dentro da
sociedade. Deste modo, se tornar grego virou um sonho de consumo para diversas
camadas da sociedade judaíta, inclusive no meio da classe sacerdotal.
Flávio Josefo (2004, p.463) detalha este episódio de abandono aos costumes
judeus da seguinte forma:
Disseram ao soberano que haviam decidido renunciar os costumes de seu país para abraçar a religião e a maneira de viver dos gregos e pediram-lhe permissão para construir uma praça de esportes em Jerusalém. Ele consentiu, e então eles ocultaram os sinais da circuncisão, para não serem distinguidos dos gregos quando, correndo ou lutando, tivessem de se despir. Eles abandonaram assim todas as leis de seus antepassados e não se diferenciavam em nada dos estrangeiros.
O modo de vida helenista era totalmente tentador aos olhos daqueles que
viviam se dedicando a cumprir a lei de Moisés. Era de certo modo mais fácil, pois o
desejo e os impulsos possuíam outra conotação para os gregos, não tão negativa
quanto vista pela lei. O ideal helênico enfatizava a busca da felicidade que tinha como
porta de acesso a razão humana e não uma resposta da divindade correlacionada ao
comportamento comunitário. Havia uma maior facilidade e estímulo para que
houvesse uma livre troca de ideias, onde muitos gozaram da oportunidade dada para,
assim entrar no meio intelectual. Esta é uma das acusações que é feita, os sacerdotes
não querem mais ler as liturgias, mas querem se dedicar em participar da distribuição
do óleo, utilizado para massagear os atletas (2Mac 4,16).
106
Não muito tempo depois, Menelau assume o lugar de Jasão, se tornando o
sumo sacerdote ao oferecer um pagamento maior do que Jasão havia feito.
Entretanto por não cumprir com o acordo feito, seu irmão Lisímaco o substitui (2Mac
4,27-29). Durante este tempo Onias III, o legítimo sumo sacerdote é assassinado
(2Mac 4,30-38). Novamente vemos a ordem sendo quebrada, ao passo que o cargo
sacerdotal, mais uma vez se dobra a vontade do soberano estrangeiro que conforme
se lhe agrada e convêm tem o poder de pôr e tirar quem quiser do cargo sacerdotal.
Há um primeiro combate entre os próprios judeus contra Lisímaco, estes
estavam indignados com o sumo sacerdote que foi acusado de saquear o templo e
Lisímaco é morto neste episódio (2Mac 4,39-42). Menelau é levado a julgamento e faz
acordo com Ptolomeu sendo absolvido das acusações feitas pelos judeus piedosos,
enquanto estes são mortos por Antíoco IV Epífanes (2Mac 4,43-50).
Logo após estes acontecimentos, estoura a segunda campanha da sexta
guerra síria contra o Egito. Neste período Antíoco IV Epífanes está investindo contra
o império ptolomaico, Jasão incita uma revolta na Judéia instigado por boatos de que
Antíoco IV Epífanes havia morrido na batalha (2Mac 5,1-14). Durante a revolta, Jasão
não poupa nem ao menos os seus concidadãos e mata muitos deles, depois foge para
o Egito, onde vem a falecer.
Macabeus 5 descreve que ao receber as notícias sobre a Judeia, quando
Antíoco IV Epífanes retorna de sua campanha e invade a cidade, muitos perdem a
vida nesta ocasião. Menelau então guia Antíoco IV Epífanes para dentro do templo
onde ele fará um grande saque, tomando os talentos, vasos sagrados, e, por fim,
encarrega Menelau, Andrônico e Felipe, frígio de raça (2Mac 5,22-23a) para
guardarem a Judeia.
Neste episódio, mais uma vez vemos a mudança acerca das responsabilidades
a serem zeladas pelo cargo sacerdotal que não fica limitado a esfera religiosa, mas
passa para o mundo secular. Assim como este cargo foi transformado em uma posição
oficial que agora também é encarregada de trabalhar para o império e garantir os seus
interesses.
Não muito tempo depois, Apolônio segue com 22 mil homens com a missão
dada por Antíoco IV Epífanes para que trucidasse os judaítas (2Mac 5,23b-27). O
plano executado por Apolônio foi convocar o povo para que assistissem a uma parada
militar, num sábado. Aqueles que compareceram foram mortos (v.25-26).
107
Estes episódios descrevem certos momentos em que o exército dos céus e das
estrelas foram lançados em terra e pisoteados pelo bode, a comando do pequeno
chifre (Dn 8,9-10). Não só o poder de Antíoco IV Epífanes sob a Judeia era grande ao
ponto de ser “chefe” do sumo sacerdote, igualizando o poder secular ao religioso
(tornou-se tão grande quanto o oficial do exército, v.11), mas também é capaz de
destruir este exército que se encontra submetido a sua vontade.
Após tal circunstância, Judas Macabeu junto com outros dez homens formam
um grupo e se retiram para o deserto a fim de não se “contaminar”. Neste momento
se institui cultos “pagãos” no templo, se proíbe a execução de costumes judaítas, ao
mesmo tempo em que surgem diversos relatos sobre as punições sofridas por aqueles
que se rejeitavam a aceitar tais imposições.
Segundo o relato de Segundo Macabeus, se relata que foram introduzidas
dentro do Templo dissoluções, orgias e meretrizes, altares para oferendas “proibidas”,
ritual mensal no dia do aniversário do rei, enquanto se aboliu o shabat, celebração de
festas dos antepassados judaítas, a leitura da lei de Moisés e a confissão sobre ser
judaíta. Reafirma-se a punição para aqueles que rejeitam se encaixar na nova forma
de culto, a morte.
Em concordância com o texto de Daniel, nossa base para esta pesquisa, os
relatos do segundo livro de Macabeus vão listando diversas ações que diante da Lei
moisaica são consideradas como transgressões graves que resultam no
distanciamento entre YHWH e o seu povo. Nos versos 11 e 12 de nossa perícope, a
visão descreve como o Templo e as principais ações ligadas a ele, vão sendo desfeitas
e desprezadas uma a uma.
Dentre as ações que começaram a ser impostas dentro do templo, Josefo (2004,
p.465) retrata que o altar construído no templo servia para que fossem sacrificados
porcos, além da renúncia ao culto dos antepassados judaítas foram espalhados por
todas as cidades a construção de novos templos.
Acerca destes novos templos foi decretado que não se poderia passar um só
dia sequer sem que ali fosse imolado um porco. Fez-se isso para que houvesse uma
garantia de que os judaítas haviam abandonado, de fato, os seus costumes abraçando
assim a sua nova religião. Também foram nomeados fiscais encarregados de se
certificar acerca do cumprimento das novas normas. Acrescenta a esta lista que
Antíoco IV Epífanes
108
ordenou que todas as cópias da Lei fossem recolhidas e queimadas. […] proibiu a prática judaica da circuncisão, indo ao ponto de matar os bebês judeus que haviam sido circuncidados, pendurando-os no pescoço de suas mães e atirando-os dos muros de Jerusalém (LENNOX, 2017, p.287).
Neste átimo Judas Macabeu acompanhado do seu grupo, começou a se infiltrar
em aldeias e cidades convocando a todos que haviam permanecido fiéis aos
costumes de seus antepassados para que lutassem ao seu lado contra o domínio
selêucida (2Mac 8,1-7). Seus atos ocorriam durante a noite e se limitavam a invadir
outras cidades e aldeias para incendiá-las.
As incursões macabaicas chamam a atenção dos selêucidas e Felipe pede por
reforços (2Mac 8,8-29), Nicanor, amigo do rei, recebe a missão de combater os
macabeus. Quando tais notícias chegam até Judas, muitos fogem com medo. Após
um discurso encorajador feito por seu líder rebelde, eles partem para a batalha e
derrotam Nicanor. Em outra batalha travada contra Timóteo e Báquides, os macabeus
saem vitoriosos novamente.
Em 2Mac 9 é narrado acerca da morte de Antíoco IV Epífanes, onde se
descreve que ele morreu de uma causa “natural desconhecida”. Neste relato é
descrito detalhadamente os horrores sofridos pelo “tirano” e o castigo de sua morte.
No próximo capítulo se introduz o relato acerca da purificação do templo e o
estabelecimento da comemoração do Hanuká.
As acusações feitas no livro de 2 Macabeus durante os anos de governo de
Antíoco IV Epífanes seriam as transgressões citadas na visão de Daniel, na última
parte nos versos 11 e 12 do capítulo 8. É neste ponto que o autor da visão termina de
apresentar a realidade vivida pelo seu próprio povo que sofre por habitar numa área
disputada, por ser considerada uma zona estratégica militar.
O autor de Daniel, não expõe fatos ou se preocupa em apresentar a situação
daqueles que abraçaram a cultura helênica, eles nem ao menos são citados ou há
algum simbolismo que os represente. Também não faz qualquer tipo de menção
acerca das facilidades que a cultura helênica poderia trazer como uma contribuição
para a sociedade. Estas pessoas, pelo contrário, são totalmente desprezadas e
odiosas aos olhos daqueles que se mantiveram fiéis as suas tradições. São até
mesmo, consideradas como a causa dos males e do pisoteamento que o bode faz em
seu povo.
109
Lembra o comportamento do profeta Jonas ao se negar a ir para Nínive, os
estrangeiros não merecem a “salvação”, mas os testemunhos deles acerca de quem
era o “único e verdadeiro” Deus, reconhecendo a YHWH como o soberano, sempre
são contados e mantidos na memória do povo.
O segundo livro de macabeus até mesmo reconhece tais situações como
permissões para que eles pudessem pagar as iniquidades cometidas pelos seus pais
e reafirma que através desta fidelidade paga, mesmo que ocorra através da entrega
da própria vida, seria a chave para alcançar o favor divino. Seria esta negação em
aceitar a realidade vivida o que leva os santos a se questionarem “até quando?”?
3.2 O Exército de os céus e das estrelas (ים וכב א ומן־הכ ים והצב א השמ (צב
A realidade que cerca o povo judaíta durante este período do século II a.C.,
principalmente os momentos que precedem à revolta dos macabeus, nos fazem
perceber que: para surgir tal reação contrária ao poder vigente na proporção que
houve, seria necessário a adoção de uma estratégia que pudesse atrair centenas de
simpatizantes com a causa de forma rápida e eficaz.
Mas afinal, onde é que Daniel se encaixa no meio de tantas informações, datas
e novos personagens que foram surgindo no decorrer desta pesquisa? Para
responder este questionamento retomaremos certos ponto-chaves que exemplificarão
a corroboração da visão apocalíptica de Daniel 8,1-12 para com a revolta macabaica.
Um dos pontos mais delicados abordados anteriormente, acerca da datação da
obra, aponta para um favorecimento da relação do livro de Daniel ao período
macabaico. Como citado no primeiro capítulo de nossa pesquisa, esta obra teria sido
muito popular exatamente durante o período pós-exílico, principalmente por descrever
cenários vividos no século II a.C. Criando a possibilidade da população facilmente se
identificar e se simpatizar com o enredo descrito na literatura.
Se a narrativa de Daniel 8,1-14, tiver sido utilizada por esses rebeldes e
piedosos judaítas, a escolha do gênero textual, apocalíptico, e dos símbolos aqui
empregados poderia ser justificado, como uma forma muito eficaz para que os leitores
desta obra pudessem compreendê-la e se identificassem com o enredo de forma
rápida. Quando analisamos as narrativas históricas dos livros de Macabeus e de
Flávio Josefo, acerca do período do século II a.C. na Judeia, podemos identificar
110
facilmente a similaridade entre o cenário histórico com a retratação narrada no livro
de Daniel.
O povo judaíta também se encontra sob o domínio de um líder não apenas
rigoroso e “incrédulo” (ou comumente chamado de “ímpio”), mas também de curto
temperamento que ao ser contrariado não se incomodava de tomar medidas extremas
para exterminar os seus opositores. E mais uma vez este confronto de ideais tem pôr
fim a esfera religiosa que determinará aqueles que serão castigados, por
desobediência ao rei, ou não. Assim como também aponta para uma ação miraculosa
capaz de anular poderes governamentais e mudar o segmento histórico.
Além da mensagem principal da obra possuir um ponto crucial que perpassa
todo livro de Daniel, que era o de se manter fiel as suas raízes ainda que isto viesse
a custar a sua própria vida. Isso fica evidente em alguns trechos pertencentes a
primeira parte entre os relatos da corte, especificamente nas partes onde há os relatos
de Sadraque, Mesaque e Abednego diante da estátua de Nabucodonosor; Daniel na
cova dos leões ou quando Daniel teve a coragem de recusar a sua participação no
banquete do rei. São sempre decisões públicas tomadas por estes personagens de
não aceitarem assimilar cultura ou a imposição de normas, ou decretos estrangeiros
antes, eles escolhem permanecer veemente fiel as leis de seus antepassados.
Nos relatos presentes no livro de segundo macabeus, por exemplo, vemos no
decorrer da obra, diversas situações em que os judaítas, assim como Daniel e os seus
amigos, retaliam as imposições estrangeiras publicamente que sempre vem
acompanhados de um discurso acerca de fidelidade. Assim como também são
trazidos certos “testemunhos” de fidelidade que chegam a transformar até mesmo a
estes “ímpios”, ou de fazê-los confessar uma mensagem que exaltam os judaítas.
Como no caso de Heliodoro (2Mac 3,35-40); Nicanor (2Mac 34-36) ao ser derrotado
pelos macabeus e a carta de Antíoco IV Epífanes ao fim de sua vida endereçada aos
judaítas (2Mac 9,18-29).
De modo semelhante é possível encontrarmos no livro de Daniel, passagens
onde se narram confissões que exaltam as ações, ou situações que envolvem
decisões que colocam a fidelidade a YHWH em xeque obrigando aos judaítas a
tomarem uma decisão. Sempre que escolhem permanecer fiéis aos seus ideais há um
grande livramento. Como, por exemplo, Daniel e seus amigos quando se recusam a
participar dos banquetes oferecidos aos “ídolos” (Dn 1,15-20), ao interpretar o sonho
111
de Nabucodonosor (Dn 2,46-49), Sadraque, Mesaque e Abedenego na fornalha (Dn
3,24-30) e Daniel na cova dos leões (Dn 26-39).
Nisto se compreende um grande esforço do autor/redator final para convencer
a todos aqueles que têm permanecido fiéis a continuarem ao passo que também envia
uma mensagem a aqueles que abandonaram a sua identidade judaíta. Para os que
guardaram a sua identidade sempre haverá uma saída milagrosa, ao passo que, para
aqueles que se “venderam” não há uma garantia de que aquilo que foi conquistado
permanecerá quando o juízo de YHWH chegar.
A mensagem teológica aplica uma pressão a aqueles que têm contato com ela,
pois ao mesmo passo que traz consolo aos fiéis, os infiéis são confrontados e negados
por ela. Além da exclusão social que os aguarda pelos que se mantiveram fiéis, que
esperam ser vingados através do socorro divino, ainda há a ameaça endereçada a
todos os que se permitiram “corromper” com os costumes estrangeiros. Como
demonstra a própria visão de Daniel 8,1-14, os reinos humanos são passageiros e
sempre provisórios, pois vão sendo mudados e substituídos, enquanto as ações
indicadas como obras de YHWH são delineadas como permanentes.
No segundo capítulo onde apresentamos o contexto histórico seguindo a ordem
apresentada na visão dos símbolos apocalípticos aplicados. Observamos que mesmo
narrado de forma breve, o autor possuía um profundo conhecimento daquilo que havia
sucedido até chegar aos acontecimentos do presente (isto é, a época de Antíoco IV
Epífanes). Não há um desfecho detalhado sobre como este período irá se desenrolar,
pois assim que se cita as características, relacionadas ao pequeno chifre, a visão se
finda apenas com o questionamento dos santos e um breve apontamento sobre até
quando isto tudo aconteceria até que, por fim, viesse o juízo de YHWH. Esta falta de
informações sobre o fim deste período, também parecem indicar que até o momento
de conclusão da narrativa, a situação parecia não ter sido concluída. Deste modo, a
melhor forma foi finalizar a visão com o breve diálogo dos santos (וש .nos v.13-14 ( קד
Seguindo o ciclo literário e histórico mais uma vez, surge uma situação no qual
os personagens principais são encurralados tendo de tomar uma decisão crucial
acerca de onde depositarão a sua fidelidade no socorro humano ou na espera da
ajuda ou justiça divina. É um cenário no qual todas as esperanças parecem ter sido
massacradas, pois eles veem a verdade ser lançada em terra, a continuidade sendo
interrompida e a derrota dos seres celestes. São situações-limite que não permitem
112
ao protagonista visualizar um socorro em sua visão periférica. Logo não há como
saber qual solução haverá após a sua decisão ser tomada.
Percebemos que na primeira parte do livro de Daniel essas decisões de
permanecerem fiéis já foram tomadas e fazem parte do passado histórico, na parte
apocalíptica encontramos essas situações semelhantes sem um desfecho. As
decisões dos novos protagonistas inseridos neste período narrado não foram
registradas. Isto é, para que haja o desfecho onde a justiça divina age sobre a ação
humana, ainda é necessário que os protagonistas desta era tomem a sua própria
decisão, assim como Daniel o fez em seu passado, entre outros personagens
pertencentes a história da nação.
Logo o surgimento de tal escrito e sua divulgação no meio de círculos de judeus
piedosos corroboraria para um crescente sentimento nacional que os apontaria como
aqueles (protagonistas da história atual) que detinham a escolha de se permitirem ser
os agentes, como Daniel e seus amigos escolheram ser, para permitir que houvesse
a ação direta de YHWH na história ou não.
Na visão narrada em Daniel 8,1-14, mais do que apenas um breve resumo de
longos anos de história, é possível também identificar um costume comum dos judeus
que é realizado em certos momentos. Um exercício simples, mas que a sua execução
trazia benefícios e precavia os seus praticantes de caírem em certas armadilhas. Este
exercício consistia em refletir e trazer a memória certos momentos históricos vividos
pela sua nação. Principalmente quando há uma certa necessidade de relembrar
coisas que normalmente trazem à tona esperança e mantêm na mente daqueles que
praticam este exercício a clareza sobre a sua identidade. São relembrados acerca dos
momentos em que estiveram longe de sua terra, no exílio, a causa teológica de terem
sido levados para lá, assim como as profecias acerca deste momento. Estes
prenúncios que sempre indicavam sobre o período em que YHWH os socorreria e os
libertaria desde que voltassem a sua fidelidade a ele.
Também elenca as qualidades que devem ser buscadas e adquiridas para que
este socorro e libertação sejam merecidos, se manter fiel. Conforme a ilustração
presente no livro de Daniel, sempre nos momentos que antecedem a morte do
protagonista ocorre um milagre que o livra, seguido de uma justificativa sobre o tal
livramento vivido. Esta sequência não muda assim como a justificativa permanece
igual, houve tal milagre, pois, ele se manteve fiel em primeiro lugar. Esta narrativa,
portanto, se dirige ao grupo específico, como já afirmado anteriormente, que mesmo
113
em meio as perseguições religiosas se negam a aceitar a aquilo que lhes vem sendo
imposto que os obriga a ir contra o que acreditam ser o certo.
O mesmo ocorre quando os macabeus começam a entrar de cidade em cidade,
de aldeia em aldeia e convocam judaítas para participarem do seu movimento. O
convite tem um endereçamento específico é estendido somente aos judaítas piedosos
e leais a lei de Moisés que são recebidos e aceitam de “prontidão” a entrar neste
embate. Há um pré-requisito acerca de quem pode ou não participar dessa revolução,
assim como há uma preliminar a ser cumprida para que haja a salvação e o livramento.
No livro de 2Mac 6,12-17, há uma explicação do porquê eles estavam sofrendo
tantas perseguições e castigos. Uma espécie de reafirmação que indica aos seus
leitores que o passar por este sofrimento era lícito, pois isso acarretaria uma mudança
social, entretanto isso somente faria sentindo para aqueles que fossem capazes de
compreender esta mensagem. “Agora, aos que tiverem entre as mãos este livro,
gostaria de exortar que não se desconcertem diante de tais calamidades, mas pensem
antes que esses castigos não sucederam para a ruína, mas para a correção da nossa
gente” (2Mac 6,12). Entretanto este sofrimento possui um limite de tempo, assim como
a ira de YHWH que vai se acumulando até que, por fim, venha a transbordar.
É um ciclo que sempre se repete nas histórias judaítas, as reviravoltas
principalmente quando relacionadas a vitória nacional são correlacionadas a
fidelidade do povo a Deus, enquanto os fracassos, derrotas, exílio estão sempre
ligados a idolatria e abandono da “verdadeira” fé. Aqui não é diferente, quando
pressionados a abandonar a sua fé e tradições logo trazem a memória aquilo que o
seu passado diz sobre fazer tais escolhas.
No âmbito político, como indicamos no capítulo anterior, facilmente
conseguimos identificar alguns grupos concentrados em criar burburinhos e
analisando possíveis estratégias ou esquemas, buscando criar laços e alianças que
trouxessem algum tipo de benefícios, sejam eles monetários ou ligados ao acúmulo
de poder. Um exemplo disso é a figura do sacerdote que vai mudando, aumentando a
influência deste dentro da sociedade no tocante a vida cívica, deixando de exercer
influência assim, somente dentro do círculo religioso.
Anos atrás, mais precisamente durante o combate entre Antíoco III, o Grande,
e os ptolomeus, dois partidos disputam entre si ao demonstrarem apoio ao governo
ptolomaico e o outro favorável aos selêucidas. Havia ainda uma terceira via que
defendia a independência e soberania judaíta. Obviamente após tantos saques e anos
114
pagando impostos, assentados numa região de intensa e extensa disputa entre dois
grandes impérios, por fim, sendo explorados por um estado preso a uma grande crise
financeira, seria natural a ânsia por autonomia e libertação de tais condições. A
realidade do império selêucida se agravou no período de Antíoco IV Epífanes,
principalmente o saldo para com Roma. Portanto a opção de se libertar de tal
circunstância parecia ser a melhor proposta a ser buscada.
Um motivo que capturou a atenção e o engajamento da população judaíta na
adoção do estilo de vida helenista, principalmente para a alta classe, eram algumas
oportunidades que vinham coligadas ao título de cidadãos da pólis. Uma delas era a
maior facilidade de entrar no mundo comercial e consequentemente acumular
riquezas, esta regalia somada a outras (como: direitos, costumes, filosofias, entre
outros) serviram de tentação para que muitos mudassem de ideia resultando na busca
por se tornar um grego, abandonando a sua própria nacionalidade.
Nos anos iniciais do domínio selêucida a cultura helenista não apresentou uma
grande ameaça e a convivência entre as duas culturas, judaíta e grega, pode ter sido
possível. Não há relatos ou grandes acusações contra Antíoco III, o Grande, ou o seu
filho Selêuco IV, que buscou seguir a mesma forma de governo que a de seu pai.
Entretanto, quando Antíoco IV Epífanes sobe ao poder e muda a base de governo
impondo o helenismo como um dos principais pilares de seu governo aí então é que
surgem as faíscas. O quadro geral deste grande momento de tensão do século II a.C.,
exemplifica que era apenas uma questão de tempo até que aqueles três grupos
distintos começassem a entrar em atrito novamente e, por fim, colidissem de forma
irrevogável.
Estes tipos de literaturas, portanto, não só alimentavam a fé ou a esperança
daqueles que estavam sendo perseguidos, como também serviu da melhor forma para
favorecer um grupo que não possuía nenhum apoio político ou militar que os
assegurasse pela retaguarda.
O grupo que apoiava os ptolomeus poderia negociar e planejar em conjunto
formas para contra-atacar os selêucidas quando despontasse um momento de
fraqueza do governo em vigor. Enquanto os apoiadores do império selêucida, ao
conseguirem seu “passaporte” helenista dissecaram tantas oportunidades quanto
possível para enraizar o poder ganho e se certificar de que nada oferecesse o menor
tipo de ameaça para tirá-lo de suas mãos. Assim como também era de grande
interesse do governo vigente que não houvesse qualquer tipo de mudança na forma
115
de administração para que a consolidação do poder ocorresse de forma pacífica e,
consequentemente mais econômica para os cofres fracos. Pois assim que o poder
estivesse estabilizado, de fato, as chances de revoltas emergirem seriam
praticamente nulas, e se surgissem, estas instâncias consolidadas poderiam
facilmente controlá-las não sobrecarregando o estado que já se encontrava preso a
uma grave crise financeira.
Para as pessoas que defendiam a autonomia da Judeia não havia um governo
que enxergasse tal conquista como uma vantagem, de forma que lhes oferecessem
qualquer tipo de apoio. Não havia muitos recursos que pudessem ser utilizados para
bancar um grande exército que ainda por cima se encontrasse a altura de enfrentar
os selêucidas, ou prevenir um futuro ataque ptolomaico. Assim como não havia muitos
recursos para se investir na compra de materiais, nem tempo o suficiente para treinar
homens para a guerra.
As perseguições e mortes em massa do povo judaíta surgiram como um
elemento que acabou originando o momento ideal para o surgimento de uma revolta,
ainda que macabra, mas acabou possibilitando o início da caminhada para a tão
sonhada autonomia. Mas como fazer com que os concidadãos aceitassem o convite
de entrar em tal batalha? Primeiro era necessário distinguir aqueles que não se
encaixavam as novas exigências impostas, depois animá-los a buscar, lutar por uma
nova solução que de preferência pudesse auxiliar também na resolução de outros
problemas.
Qual seria a forma mais natural e efetiva do que correlacionar as histórias do
passado com a situação atual, onde os novos heróis seriam aqueles que aceitassem
o desafio, além de que a possibilidade de alcançarem êxito na revolta resultaria na
oportunidade de que os participantes tivessem suas vidas mudadas. A vitória
asseguraria uma mudança de rumo, não apenas relacionado a vida religiosa, mas as
instâncias de poder, como ocorreu posteriormente a purificação do templo.
Após a família do sacerdote Matatias, de uma aldeia chamada Modim se retirar
para o deserto, este teria sido o sacerdote que começou a influenciar os seus filhos a
lutarem contra o helenismo mesmo que para isso tivessem de ir para a guerra, Josefo
(2004, p.467) descreve:
Esse virtuoso e nobre judeu queixava-se frequentemente a seus filhos do estado deplorável em que a nação se encontrava: da ruína de
116
Jerusalém, da desolação do Templo e de tantos outros males que a afligiam. E acrescentava que lhes seria muito melhor morrer pela defesa das leis e da religião de seus pais que viver sem honra em meio a tantos sofrimentos.
Após a morte de seu pai, Judas Macabeu e os seus irmãos se dedicaram em
prosseguir com a missão um dia iniciada por seu pai. Era necessário, reforços para
que pudessem alcançar a ordem, a princípio, religiosa da Judeia. Ao entrarem em
aldeias e cidades, conseguem convocar 6 mil homens que os seguem e começam a
invadir outras aldeias e cidades protegidos pela noite e incendiando elas (2Mac 8,1-
7).
Quando os avanços dos rebeldes macabeus chegam a Antíoco IV Epífanes
este havia se retirado para o Leste rumo a Babilônia e as regiões circunvizinhas em
busca de arrecadações. O soberano selêucida não pensou que enfrentar os rebeldes
iria lhe custar tanto esforço, ou que em tão pouco tempo ele viria a ficar gravemente
doente. E muito menos que esta doença o levaria a morte em 164 a.C.
3.3 Denominação dos Santos e sua Proximidade aos Rebeldes
O que fazer quando o poder governamental é desafiado por um grupo e acende
uma luz de alerta ao líder do império? Ao ser contraposto pelos piedosos judaítas que
se negavam a comer, carne de porco, ou oferecer sacrifícios a outros deuses, Antíoco
IV Epífanes soube que seria necessário tomar uma decisão que não só controlasse a
situação na Judeia. Por isso, ele sabiamente orquestrou uma lição cujo objetivo
alcançado fez com que as outras regiões dominadas por ele esquecessem a menor
tentação de se opor a suas ordens. Assim como o seu “líder inspiração”, Alexandre, o
Grande, o fez no início de sua ascensão ao trono.
Ademais que transformar a forma de governo dentro do império para algo que
fosse mais linear e uniforme facilitaria o encargo de Antíoco IV Epífanes. Por sua vez
diminuiriam as chances de surgirem revoltas e asseguraria que a dívida contraída com
Roma por seu antecessor seria honrada. Isto justificaria o porquê de se aplicar tão
duras punições para aqueles que ousassem infringir os seus decretos. O medo da
morte ou da perda de pessoas que eram a garantia do sustento do lar, era o suficiente
para que muitos repensassem as suas ações e, portanto, a ideia de aceitar o
helenismo agora quando reanalisada não parecia ser tão ruim assim.
117
Quando colocado na balança seu “antigo” estilo de vida com o que estava
sendo proposto, no helenismo havia muitas outras oportunidades e novas portas que
eram abertas para que a qualidade de vida melhorasse. Seja ela através de uma nova
profissão, entrada no círculo intelectual, entre outros. Por isso, as punições podem até
mesmo ter servido como o ponto que faltava para impulsionar a muitos para ter
coragem de publicamente renegar suas raízes e abraçarem as novas vantagens
propostas.
Com as novas leis e punições contra aqueles que ainda assim se negavam a
abandonar o seu “antigo” estilo de vida, abandonando a sua identidade, surge a
necessidade de ancorar a sua decisão em algo que pudesse lhes dar forças para
continuar firme em sua decisão. Uma base de apoio e incentivo para que
continuassem unidos era o ideal para este grupo que começava a se destacar e ficar
cada vez mais evidente no meio da nova realidade na Judeia.
Não é à toa que o gênero apocalíptico tenha se difundido tão rapidamente neste
período e que Daniel tenha ganho um destaque no meio dos círculos tradicionais
piedosos. O ambiente no qual ele surge era propício para que houvesse uma difusão
de sua mensagem com grande facilidade. São trazidas em sua obra, mensagens de
esperança que apontam para um futuro diferente e que influenciam as pessoas a
seguirem em frente, a continuarem lutando, se impondo quando presas em situações
limites. Embora o horizonte para esses grupos estivesse muito obscuro por tempo
indeterminado, essas leituras incentivavam a preservação da fé, através de
reafirmações acerca da soberania de YHWH.
Ao correlacionar o poder de YHWH com as memórias do passado, o autor de
Daniel, consegue fazer o “jogo” de memória onde os seus leitores associam a situação
presente a outras já vividas no passado, esperando que o desfecho se assemelhe
desde que as suas atitudes e escolhas permaneçam dentro do parâmetro exigido. Um
exemplo disso, o castigo do exílio que foi considerado como uma consequência,
segundo a denúncia dos profetas, por causa da idolatria, logo se eu negar esses
“outros deuses” alcançarei o livramento e serei bem-sucedido naquilo que eu fizer.
Pois não há o porquê de haver castigo quando há obediência, portanto, o momento
de correção das iniquidades passadas haveria de passar e as coisas começariam a
melhorar.
A visão de Daniel abordada em nossa pesquisa, teria sido talvez, dentre as
visões contidas nesta obra, a mais próxima da realidade dessas pessoas que estavam
118
desesperançadas e sofrendo o luto, seja por parentes que perderam ou por ver a
desolação do seu povo em massa (2Mac 5,12-14 e v.26). Ela traz através de seus
símbolos a descrição do que estava ocorrendo, “fez cair em terra o exército das
estrelas pisando-os” (Dn 8,10b). Exército (צבא) este, como afirmado no primeiro
capítulo desta pesquisa, que simboliza o povo de YHWH.
Nossa perícope contêm uma denúncia sobre as coisas terríveis que estavam
atingindo ao corpo deste exército celeste. Eles estavam sendo lançados em terra e
pisoteados, golpeados duramente, sofrendo de machucaduras profundas, resultando,
por fim, na morte de muitos. Logo este tipo de relato dentro da narrativa teria
corroborado para que os fiéis compreendessem que a passagem pela dor seria algo
necessário a ser enfrentado.
Entretanto, logo após a denúncia não há nenhum apontamento sobre como
este exército será livrado ou resgatado de tal humilhação. Pelo contrário, rapidamente
a narrativa coloca o pequeno chifre, Antíoco IV Epífanes, no mesmo patamar do
grande oficial deste exército (א Figura que aponta tanto para a posição .(שר־הצב
humana de sumo sacerdote, quanto no sentido teológico, para o próprio YHWH. O
pequeno chifre “detêm” até mesmo o poder sobre a vida, pois é ele quem dita acerca
de quem será morto ou não, determinando através de seu poder governamental. Ele
também é referido como o próprio “ditador” do culto, visto como ele até mesmo chegou
a se autointitular como deus manifesto.
Antes que o povo cometesse o mesmo erro, recorrente do seu passado, a visão
logo alerta sobre a fragilidade do templo, o local sagrado (ו קדש וןמ pois ele ,( מכ
também sofre com as consequências das ações de Antíoco IV Epífanes. Parece que
propositalmente há este tipo de alerta na visão, se preocupa em frisar sobre depositar
a confiança no templo, local físico, em vez de confiar em sua divindade. Este tipo de
confiança depositado num lugar não faria diferença alguma, como havia sido dito ao
povo no passado, através das profecias do profeta Jeremias. Agora não só o templo
lhes havia sido confiscado e tornado em local de “transgressão” como também lhes
foi cortado o sacrifício da continuidade (יד resultando num “corte” do ,( תמ
relacionamento do povo com YHWH. Se não há oferecimento de sacrifícios para o
abono de pecados, logo por ficarem impuros não há como entrar na presença do santo
YHWH, o seu Deus imaculado.
119
Isto logo justifica a indignação ou insatisfação do santo no v.13, assim como os
leitores da visão que também levantam tal questionamento. Se todas as coisas que
eram feitas e que garantiam para o povo judaíta as obtenções da segurança divina
foram cortadas, como poderia haver uma certeza de que seria possível alcançar o
favor de YHWH? Diante de seus olhos havia apenas um cenário negativo, onde
segundo as suas tradições há uma distorção da justiça e o encobrimento da maldade
(ex. o assassinato do legítimo sumo sacerdote e dos mártires).
A visão de Dn 8,1-14 introduz e desenrola-se em volta da figura de dois animais
(um carneiro [יל יר] e um bode [ א travando um combate violento que só se finda ([ צפ
quando um deles é totalmente aniquilado. Vimos até aqui um consenso entre
estudiosos (tanto no primeiro quanto no segundo capítulo de nossa pesquisa) quanto
as representações desses animais, que parecem retratar dois impérios, sendo eles: o
persa e o grego. Os animais sacrificiais que representam países estrangeiros que
subjugaram a Judeia, impondo caros impostos e tiraram proveito de suas terras. Um
questionamento a se fazer seria o porquê de se utilizar dois animais sacrificiais nesta
visão?
Antes do exílio, os profetas traziam em suas profecias denúncias contra a
classe sacerdotal que estava tirando proveito do povo, entretanto o cenário “atual” era
diferente daquele tempo, então por que utilizar tais figuras? Aparentemente as
denúncias continuam sendo feitas contra os sacerdotes, que talvez no século II a.C.
não estivessem tirando proveito diretamente do povo, mas estavam se vendendo a
governos estrangeiros visando alcançar benefícios e favores desses impérios
expandindo o seu poder.
Além disso havia a inserção e utilização da figura do santo (וש cujo papel é (קד
primeiramente realizar o lamento, um questionamento no v.13 frente aos
acontecimentos narrados. Como vimos no primeiro capítulo de nossa pesquisa, tal
figura estava correlacionada a presença de YHWH, podendo ser aplicada em duplo
sentido, designando tanto a um ser angelical67 , quanto para se referir a um judeu
piedoso68 . Servindo, portanto, dentro de nossa narrativa como um contrapeso aos
outros símbolos já empregados pertencendo ao templo e a esfera religiosa.
67 (STEFANOVIC, 2007, p.308) 68 (COLLINS, 1999, p.85-86)
120
Esta figura dos santos também é mencionada em Dn 7,18 e 27 (vocábulo
utilizado י יש וש enquanto o vocábulo utilizado em Dn 8,13 é ,קד nestes dois versos ,(קד
é afirmado que o reino e o poder serão dados aos santos do Altíssimo, El Elyon.
Embora não seja exatamente o mesmo vocábulo utilizado em nossa narrativa, vemos
concordância na ideia de correlacionar os santos, um grupo diferenciado dos outros
presentes na narrativa, a Deus, sendo estes mesmos santos aqueles que agradam a
YHWH ao ponto de receberem o “poder” de herdar o reino e purificar o local sagrado.
Outra semelhança entre esses dois capítulos de Dn (7 e 8) é que se findam
após dizer algo sobre, ou relatar a fala de um dos santos. Estas finalizações nas
narrativas mostram ao leitor que a ação final dos acontecimentos está ligada ao
comportamento dos santos. Seja para receber os reinos ou para purificar o local
sagrado é necessário que os santos passem pelo cenário terrível narrado nos
capítulos mencionados.
O autor/redator final de nossa perícope parece sentir a necessidade em deixar
nas entrelinhas da narrativa este contraste de figuras dentro da sociedade, aqueles
que se indignam com a situação são aqueles que não estão envolvidos diretamente
com as figuras centrais da cena. Ou seja, são pessoas que não se encontram em
contato direto com o mundo grego ou estão diretamente inseridos no templo de
Jerusalém. Este poderia ser um indicativo ou pista deixada pelo autor/redator final na
visão apontando para sua presença dentro deste mundo conflituoso. Não só está em
cena, como se põe ao lado daqueles que pertencem a um grupo que se retira para
longe deste contato com aquilo que ao tocar no que é santo o corrompe e acumula
transgressão. Este grupo que é representado pelos santos na narrativa, não só estão
insatisfeitos como estão prontos para intervir no cenário.
Como então seria sequer possível haver qualquer tipo de mudança no cenário
atual de sua sociedade? Não havia quaisquer indícios de que a situação pudesse ser
mudada ou transformada. A única segurança que servia de sinal para que os tempos
fossem mudados haviam sido aniquilados. E a visão está apenas refletindo a sua
realidade.
Neste momento o v. 14 surge como a resposta ou o “milagre” esperado que
povo precisava, para que tudo pudesse ser concertado e assim colocado novamente
na forma que costumava ser. Tudo isso perdurará, o outro santo afirma ao primeiro
que estava se indagando acerca de tais acontecimentos “E dizendo para mim até noite,
121
manhã duas mil e trezentos, então justificarei
santuário”דש׃ ק ק ות ונצד א ש מ ים ושל קר אלפ רב ב ד ע י ע ל אמר א .(וי
Quando se cumprisse o tempo estabelecido então certamente haveria uma
nova separação entre os piedosos fiéis, que se preocuparam em guardar as leis e os
que se permitiram ser “misturados” com a nova cultura, perdendo assim a sua
“essência”. Os “imaculados” que perseveram até o fim receberiam a sua recompensa,
enquanto os “infiéis” passariam pela penitência a fim de que cumprissem o que seria
“justo”.
Durante os tempos difíceis narrados no livro de Segundo Macabeus, no meio
desses relatos surgem duas narrativas de martírio. A primeira acerca de Eleazar, um
idoso judaíta piedoso, que ao se negar a comer carne de porco ou até mesmo de fingir
que havia comido para não “dar mau exemplo” aos jovens, é surrado até a morte. O
discurso antes de morrer leva o seu ouvinte a ser incentivado a procurar a morte em
vez de se dobrar a vontade de “homens”. O segundo relato traz a tragédia de uma
família, onde a mãe vê os seus sete filhos morrerem por negarem a dar as costas as
suas tradições e fé, por fim ela mesma vêm a ser morta, após incentivá-los a
permanecerem fiéis até o fim.
Estas narrativas buscam fortalecer um grupo quando esses tipos de notícias
tristes chegam à comunidade e lhes tiram as forças de continuar lutando. Os dois
relatos citados têm por fim, frases de incentivo onde reafirmam que YHWH continua
soberano sobre todas as coisas e que a fidelidade a ele vale mais do que a própria
vida. Exatamente como vemos na obra de Daniel.
Como citado no primeiro capítulo desta pesquisa, o gênero apocalíptico tem
esta função de reafirmar a soberania de YHWH sobre os acontecimentos históricos,
onde se defende que a ação divina pode intervir na história humana. Logo, morrer por
escolher não abandonar YHWH acaba ganhando uma certa conotação honrosa e não
de profunda tristeza. Servindo como um incentivo para que a luta em combater as
imposições “culturais” não se finde, garantindo que estas vidas não tenham sido
perdidas em vão. Além de que estes discursos conferem forças para que prossigam
corajosamente evitando que outros sejam abatidos futuramente e mais inocentes
sejam condenados.
De igual forma, ao empregar os símbolos na narrativa de Daniel 8,1-12,
percebemos um cuidado do autor na sua escolha, pois para alcançar êxito na
transmissão de sua mensagem era necessário empregar símbolos que tivessem um
122
significado simples e de fácil correlação com a realidade vivida. Senão o propósito do
texto não haveria de atingir o seu objetivo principal, que é fazer sentido ao leitor. Não
adiantava, portanto, utilizar de símbolos que estivessem fora da realidade dos seus
leitores, assim como não podia ficar preso no passado, isto é, utilizar-se de linguagens
fora de época.
A compreensão do texto era a base fundamental para a sua utilização, ainda
mais quando se visava atrair simpatizantes a causa defendida. Sendo este um meio
eficaz de incentivar e convencer os seus compatriotas a tomar parte no grupo de
corajosos que iria se impor publicamente, se opondo radicalmente as medidas
impostas pelo governo. Este grupo de rebeldes se levantaria e buscaria reconquistar
não só a confiança do povo ou proporcionar a sua própria segurança, mas o resultado
visava a tão sonhada autonomia nacional.
3.4 A Resposta para o Lamento dos Santos
Em meio a tantas repostas e cenários negativos e sangrentos, quase comuns
durante o segundo século, era necessário apenas uma faísca de esperança para que
assim muitos pudessem se engajar na busca de um ideal que há muito tempo existia
apenas no imaginário de alguns judaítas. Um discurso simples que pudesse trazer
aos seus ouvintes esta centelha que apontava para um caminho que ao menos
prometia que dias melhores eram possíveis.
Em nossa visão de Daniel 8,1-14, particularmente encontramos esta
mensagem nos versos finais. Após relatar tudo o que haveria de ocorrer e de ser
suportado, se finda a visão pondo um limite a ser calculado, (ות א ש מ ים ושל קר אלפ רב ב ,(ע
duas mil e trezentas noites e manhãs (Dn 8,14). Isto significava que o sofrimento não
duraria para sempre, mas que eles estavam limitados.
Esses números somados, duas mil e trezentas noites e manhãs, como
apresentado anteriormente, no primeiro capítulo, segundo a observação feita por
Stefanovic (2007, p.309) são apenas números simbólicos. Entretanto decidimos por
partir da provocação de Stefanovic e do cruzamento de informações levantadas até a
presente etapa da pesquisa e assim reanalisar os números simbólicos da visão sob
uma nova ótica.
Seguindo a sugestão do autor, começamos por dividir o número de 2.300
manhãs e noite por dois (separando assim quantas manhãs e noites havia dentro
123
deste número, seguindo a lógica de Gn 1) chegamos ao número de 1.150 dias, que
equivalem a cerca de 3,15… anos.
Embora esses números aparentem ser apenas simbólicos 69 , quando
observamos o período em que ocorreu a profanação do templo, a retirada dos
macabeus para o deserto e por fim a purificação do templo (no vigésimo quinto dia do
mês de Casleu, 2Mac 10,5) conseguimos nos aproximar do período, embora não
alcancemos os três anos exatos (168-164 a.C.)70. Vemos, portanto, ao utilizar estes
números no meio da narrativa uma tentativa do autor/redator em reforçar ainda mais
a presença de Daniel neste círculo rebelde macabaico.
Ao nos questionarmos acerca dessa escolha do autor/redator final, preferindo
separar a contagem de manhãs e noites, em vez de simplesmente juntá-las, pode
também indicar que, a redação final desta narrativa, tenha ocorrido antes do desfecho
da revolta macabaica. Podendo esta ser então uma data limite para que a “reconquista”
do templo ocorresse.
Ao analisarmos em conjunto os versos 13-14, é possível encontrar pistas o
suficiente para conseguir vislumbrar a figura deste autor/redator final em meio aos
rebeldes macabeus. A visão toda se passa aos olhos de Daniel, personagem principal
que não tem nenhum tipo de ação, a não ser o condicionamento de observar o
desenrolar da história. Sua proximidade com os santos indica que as ações que os
exércitos do céu e estrelas sofrem não lhe atingem diretamente causando qualquer
dano corpóreo, a não ser indignação e repulsa. Como os santos descritos na visão,
Daniel não se sente tentado em abraçar a prosperidade alcançada pelo pequeno
chifre, ou a participar de suas transgressões. Esta semelhança de comportamento
parece indicar que estes personagens (os santos e Daniel) compartilhem não só
opiniões, mas sejam próximos, muito embora Daniel não participe diretamente da
conversa entre os santos.
A afirmação que vem depois do tempo limite imposto para que continuem
ocorrendo as ações do pequeno chifre é de suma importância “então justificarei
santuário” (דש קק Está é a resposta de um santo a outro, que indica que ambos .(ונצד
estão em conjunto. Portanto, os encarregados a cumprir esta justificação do local
santo são identificados como os santos, que representam os macabeus que cumprem
69 Isto é na afirmação de Stefanovic (2007, p.309) que sejam apenas números simbólicos. 70 Por não serem números exatos, sobraria apenas alguns números após a vírgula, “sobrando” ou
indicando a margem que normalmente aparecem em alguns cálculos de períodos.
124
esta purificação por volta de 164 a.C., quando estes reconquistaram o templo e o
purificaram. Ao seu lado participando a conversa, mesmo sem dizer uma palavra se
encontra Daniel, representando na narrativa o autor/redator final.
No capítulo 9 de Daniel é introduzido na narrativa, a terceira visão do segundo
bloco da obra, a questão do tempo para remissão das transgressões. Ao contrário da
nossa perícope a contagem de tempo não é feita em manhãs e tardes (Dn 8,14), mas
em semanas (Dn 9,24). Ambas as visões se findam enfatizando sobre a purificação
em Dn 8 relacionado ao lugar santo, enquanto em Dn 9 está ligado a Jerusalém. O
tempo de purificação vem após a um lamento, questionamento acerca das coisas que
estão acontecendo ou após uma oração de súplica e penitência (como em Dn 9,3-19).
Embora ambas as narrativas tenham a contagem de tempo diferentes e não sejam
totalmente exatas, ambas remontam a um tempo de preparo, enquanto aguardam a
purificação que apontam para a aceitação de YHWH. Pois a purificação significava
também a restauração do povo, cura de feridas e perdão. Vemos nisto uma
preocupação maior do que apenas relatar um tempo exato para que ocorra a
justificação, o autor também parece estar sinalando para um momento em que YHWH
se reconectará com o seu povo. Sobre isso 2Mac 6,12-17 e 7,32-33, o autor explana
o sentido de eles estarem passando por perseguição, vemos em seu discurso que
este momento de castigo e penitência era necessário para que após a punição divina
houvesse a reconciliação.
Nisto podemos compreender que em todo movimento realizado na narrativa de
Dn 8,1-14 há uma grande preocupação do autor/redator final em identificar um grupo
que é destinatário desta mensagem apocalíptica. A mensagem desta visão tem um
propósito, é a esperança que este círculo de piedosos necessita para se manter fiel e
firme no seu propósito. É a voz que contrasta com a nova realidade enfrentada, sendo
a força de muitos em prosseguir.
Os rebeldes macabeus, como identificamos anteriormente em nossa pesquisa,
é o grupo do século II a.C. ao qual esta mensagem se destina, é o entusiasmo para
que prossigam em sua luta. As semelhanças sobre alguns temas tratados entre as
próprias obras de 2 Macabeus e Daniel, são um indicativo desta aproximação, que é
desenhada de forma mais direta como vimos em nossos versos 13-14, quando Daniel
ouve a conversa dos santos. O cálculo sobre a purificação nos aponta para o futuro
no qual eles se empenham em alcançar ao iniciar as suas incursões contra o poder
selêucida.
125
Aqui vimos, portanto, o gênero apocalíptico cumprindo a sua função, ao ser
inserido no meio de um grupo desestruturado, sem esperanças cuja fé não estava
firmada ou baseada no que os governos e poderes humanos podiam fazer. Para estas
pessoas que viviam em situações-limite as respostas humanas, forças institucionais
ou fomentos governamentais não tinham habilidades para fornecer a segurança que
era desejada. Sua base se encontrava enfraquecida, sem o templo e vivendo entre
infortúnios, é neste meio que nosso texto encontrou o público-alvo e buscou fortalecê-
los para enfim eles conseguirem mudar a situação a sua volta.
Com tudo isso nos foi possível perceber diversos sinais sobre a presença do
autor/redator final no meio desses rebeldes macabeus de forma direta. Além de nos
possibilitar perceber a forma como os textos religiosos, são capazes de exercer
influência direta na conduta e no proceder de um grupo distinto. Especialmente
quando os seus leitores se deparam com diversas semelhanças entre uma narrativa
e a sua vida real.
3.5 Considerações Preliminares
Neste último capítulo da nossa pesquisa, procuramos retomar um pouco do
contexto histórico referente ao período de governo de Antíoco IV Epífanes o
analisando a partir da reação macabaica. Procuramos correlacionar por fim, as
atitudes desses líderes da revolta com o relato da visão de Daniel 8,1-14. Com esse
cruzamento de informações buscamos observar as influências e semelhanças
encontradas entre os eventos históricos e a narrativa base desta pesquisa.
Através de tal exercício encontramos muitos pontos que se ligaram
demonstrando que de fato, há uma estreita proximidade entre as fontes que podem
fornecer explicações para o porquê de tais posturas serem tomadas pelo grupo
macabeu. Como também servem para um apontamento da afirmação de que tal
resposta possibilitou o “cumprimento” da visão apocalíptica. Desta maneira a narrativa
indica mais uma vez, ainda que de maneira indireta, a soberania de YHWH, dos
costumes e Leis dos antepassados sobre a cultura estrangeira. Reafirmando-se,
dessa forma, mais uma vez dentro da história judaíta a vitória de YHWH sobre os
deuses estrangeiros.
As figuras utilizadas principalmente dentro deste capítulo foram o exército dos
céus e das estrelas, que representaram o povo de YHWH que padeceu nas mãos de
126
uma classe que se deixou seduzir pelos benefícios encontrados na cultura helênica.
Retomamos brevemente as figuras do carneiro e do bode, buscando compreender o
uso desses itens sacrificiais na narrativa e sua relação com o oficial do exército que
na narrativa foi igualado ao poder do pequeno chifre. Assim como também
observamos os elementos semelhantes, como os santos em Dn 7 e as setenta
semanas em Dn 9 realizamos um breve paralelismo entre estas narrativas observando
a utilização de tais símbolos. Através desta aproximação entre as narrativas
compreendemos o papel de tais figuras dentro dessas visões que mesmo empregadas
de forma diferente se complementam dentro deste segundo bloco apocalíptico da obra
de Daniel.
Por fim, retomamos a figura dos santos e o seu lamento. Percebemos diversas
pistas sobre a presença do autor/redator final no meio da revolta macabeia entre os
versos 13-14 de nossa perícope. Nestes versos, o autor/redator final, apresenta-se ao
lado desses santos, que representam o círculo de judeus piedosos, que buscam se
manter longe para não se “contaminar”, mas perto o suficiente para agir quando
permitidos.
A menção do tempo marcado pelas manhãs e noites da mesma forma, se
encaixou dentro do prazo em que os macabeus restauraram o templo aos velhos
costumes, o purificando das “transgressões” sofridas.
4 CONCLUSÃO
No decorrer desta pesquisa, nos desdobramos em detalhadamente analisar a
perícope de Daniel 8,1-14 partindo inicialmente de uma apresentação geral da obra
de Daniel. A partir desta breve análise sobre o panorama geral da obra possibilitou-
nos compreender melhor a perícope em questão, assim como o seu lugar dentro da
obra. Assim como sobre o gênero apocalíptico, os elementos que o compõe, assim
como as situações propícias para que ele se prolifere com maior facilidade. Esta
informação foi essencial para podermos correlacionar nossa perícope com o período
macabaico e o cenário que o compõe.
127
Seguimos com a execução do exercício da exegese onde encontramos os
principais símbolos utilizados em nossa perícope, assim como a estrutura de nossa
narrativa. Utilizamos esta estrutura como base para levantar e apresentar as
informações históricas e relermos a realidade do século II a.C. sob a ótica piedosa e
macabaica, sem nos esquecermos de nosso texto base.
Os símbolos encontrados em nossa perícope foram brevemente introduzidos
em nosso comentário exegético. Procuramos ter o cuidado de não esgotar o assunto
e se aprofundar demais na análise destes símbolos logo no primeiro capítulo, visto
que o retomaríamos nos capítulos seguintes. Nosso primeiro capítulo foi a base
principal para a construção de nossa pesquisa, pois a partir dele encontramos as
ferramentas e as direções para dar sequência com as análises realizadas
posteriormente, assim como para que compreendêssemos o mundo ao qual nossa
narrativa estava envolvida.
Em nosso segundo capítulo, retomamos alguns dos principais símbolos
utilizados em nossa pesquisa, apresentando o contexto histórico que cada um
daqueles símbolos representava. Com a análise histórica percebemos a preocupação
do autor em, ainda que brevemente, apresentar de maneira sucinta o desenrolar
histórico que culminou no estabelecimento do império selêucida na Judeia.
Localizamos em meio a esta transição histórica o aparecimento de três grupos
importantes na Judeia, sendo eles: os que apoiavam o controle selêucida; aqueles
que defendiam o poderio ptolomaico; e o menos favorecido dentre eles, o grupo dos
judeus piedosos, mais conhecidos como macabeus que se reuniram e corajosamente
se levantaram em oposição ao governo vigente.
Em meio a este período conturbado no qual a briga por quem acumularia mais
riquezas, influência e poder estava a todo vapor, muitos perderam as suas vidas, e
ainda outros foram perseguidos por não se encaixarem as novas imposições culturais.
É neste meio que surge um novo gênero literário que se prolifera rapidamente,
principalmente no meio daqueles que já não tinham mais qualquer tipo de esperanças
nas instituições humanas. Procuramos em nosso segundo capítulo comedidamente
expor o contexto histórico, sem perder o foco de nossa pesquisa, o que foi de fato, um
trabalho muito tentador. No entanto, a realização de tal investigação nos aproximou
da realidade retratada em nossa visão, podendo assim aprofundar o sentido de cada
símbolo utilizado em nossa narrativa.
128
Em nosso terceiro e último capítulo, além de aprofundar a nossa análise acerca
de outros símbolos, como: os santos; os exércitos dos céus e das estrelas; o oficial
do exército; o pequeno chifre; e as duas mil e trezentas manhãs e tardes. Neste
capítulo, tendo como base as informações que foram levantadas até aqui
encontramos algumas pistas que fundamentalmente corroboraram para nossa
compreensão acerca do autor/redator final. Percebemos a sua presença não apenas
no período narrado, como também a sua proximidade a este grupo de piedosos que
se rejeitaram a se submeter a tentação oferecida pela cultura helenista. Refutando a
busca de saciar os seus próprios desejos ambiciosos, como a classe sacerdotal e
aristocrática se debruçaram em acumular, se mantendo fiéis a seus princípios mesmo
quando perseguidos e condenados a duras penas.
Nos foi possível ainda observar em nossa pesquisa o poder de influência que
um texto religioso pode ganhar em meio a um círculo piedoso que se encontra
enfraquecido e ameaçado. Desta forma vimos que nossa perícope não só serviu para
informar os seus leitores, mas encontrou um nicho fragilizado dentro da sociedade e
colaborou para que estes se fortalecessem ao se unirem e apresentassem essa sua
força ao se erguer contra o líder de seu império. Teologicamente nosso autor/redator
final reafirmou, por fim, mais uma vez a soberania de seu Deus que não só podia
submeter a si governos, impérios e outros deuses, mas que também podia intervir e
derrotar as culturas humanas.
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