UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

131
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO DIRETORIA DE PÓS -GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO CAROLINA CAMPOS ALVES Era Daniel um revolucionário macabeu? Os santos e a revolta macabaica a partir da análise exegética e histórica de Daniel 8,1-14 SÃO BERNARDO DO CAMPO 2020

Transcript of UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

DIRETORIA DE PÓS -GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

CAROLINA CAMPOS ALVES

Era Daniel um revolucionário macabeu?

Os santos e a revolta macabaica a partir da análise exegética e histórica de

Daniel 8,1-14

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2020

CAROLINA CAMPOS ALVES

Era Daniel um revolucionário macabeu?

Os santos e a revolta macabaica a partir da análise histórica e exegética de

Daniel 8,1-14

Dissertação apresentado à Universidade

Metodista de São Paulo, Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Religião, como

requisito parcial para conclusão do mestrado.

Orientação: Prof. Dr. José Ademar Kaefer

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2021

FICHA CATALOGRÁFICA

AL87e Alves, Carolina Campos

Era Daniel um revolucionário macabeu?: os santos e a revolta

macabaica a partir da análise histórica e exegética de Daniel 8,1-14 /

Carolina Campos Alves -- São Bernardo do Campo, 2020.

131 p.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) --Diretoria de Pós-

Graduação e Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Ciências da

Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do

Campo, 2020.

Bibliografia

Orientação de: José Ademar Kaefer.

1. Bíblia - A.T. - Daniel - Crítica e interpretação 2. Apocalipse 3.

Bíblia - A.T. - Macabeus 4. Helenismo I. Título

CDD 224.506

A dissertação de mestrado intitulada: “Era Daniel um revolucionário macabeu? Os

santos e a revolta macabaica a partir da análise exegética e histórica de Daniel 8,1-

14”, elaborada por CAROLINA CAMPOS ALVES, será apresentada em 10 de maio de

2021, perante banca examinadora composta por: Prof. Dr. José Ademar Kaefer

(Presidente/UMESP), Prof. Dr. João Batista Ribeiro Santos (Titular/UMESP) e Prof. Dr.

Luiz Alexandre Solano Rossi (Titular/PUC-PR).

Prof. Dr. José Ademar Kaefer

Orientadora e Presidente da Banca Examinadora

Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Mestrado em Ciências da Religião

Área de Concentração: Linguagens da Religião

Linha de Pesquisa: Literatura e Religião no Mundo Bíblico

Dedico esta pesquisa a Deus, aos meus pais e à minha irmã.

Ao meu orientador.

Agradecimentos

Primeiramente a Deus, a quem recorri em diversas madrugadas.

À minha família, que não só ficou me ouvindo compartilhar sobre as minhas

descobertas, como também me apoiou e me animou durante toda a minha jornada.

Ao meu orientador, Prof. Ademar, pela dedicação, competência e

a gigantesca confiança que depositou em mim desde o dia em que

conversamos sobre esta pesquisa.

Ao professor João Batista, a quem sempre serei imensamente grata.

À minha querida tia Monica, que sempre tem me apoiado em minha jornada

acadêmica; ao meu querido tio Esdras, que me incentivou nos estudos de hebraico;

e à Cheila, que pacientemente corrigiu esta pesquisa.

À minha igreja, que sempre intercedeu por mim.

“A dor e os problemas originam as canções

mais doces e as histórias mais absorventes”

Billy Graham

Resumo

O segundo século antes de Cristo foi um período muito conturbado na Judeia, especialmente durante o domínio selêucida regido por Antíoco IV Epífanes. No meio de tantos acontecimentos, um grupo rebelde se levanta contra o governo vigente. A presente pesquisa tem como texto base a perícope de Daniel 8,1-14, narrativa apocalítica sobre a visão tida por Daniel, onde um carneiro e um bode combatem até que o carneiro é aniquilado pelo seu oponente. Para uma melhor compreensão, dividimos nossa pesquisa em três partes. Na primeira parte apresentamos um panorama geral do livro de Daniel, seguido pelo estudo exegético da perícope de Dn 8,1-14. Na segunda parte apresentamos, a partir de elementos levantados na exegese, o contexto histórico que o autor deixou transparecer no decorrer da narrativa. Na última parte da pesquisa retomamos alguns conceitos abordados na primeira parte e aprofundamos o seu estudo tendo como objetivo identificar o grupo rebelde manifesto no texto e sua semelhança com os macabeus.

Palavras-chave: Daniel; apocalipse; revolta macabaica; helenismo; santos

Abstract

The second century BC was a very troubled period in Judea during the Seleucid rule under Antiochus IV Epiphanes. In the midst of so many events, a rebel group stands up against the current government. The present research has as its base text the passage of Daniel, the apocalyptic narrative about Daniel’s vision of a ram and a goat fighting with each other until the ram be annihilated by its opponent. For a better comprehension of our research we have divided it into three parts. In our first part, we presented an overview of Daniel’s book, followed by the presentation of out text and an exegetical study of our passage, Dn 8,1-14. In the second part, we presented from the elements raised in the exegesis carried out the historical context referred to by the author’s narrative. In our last part of our research, we resumed some concepts, words dealt with in the first part and deepened their study with the objective of analyzing the similarities between the narrative and a rebel group, the Maccabees.

Keywords: Daniel; apocalypse; rebellion of the maccabees; Hellenism; saints

SUMÁRIO

1 “DANIEL, HOMEM MUITO AMADO...” ................................................................... 14

1.1 Datação .......................................................................................................................... 14

1.2 Autoria ........................................................................................................................... 15

1.3 Estrutura ....................................................................................................................... 17

1.4 Idiomas .......................................................................................................................... 21

1.5 Gêneros Literários ........................................................................................................ 23

1.5.1 Relatos da Corte ...................................................................................................... 23

1.5.2 Visão Apocalíptica e Gênero Apocalíptico .............................................................. 23

1.6 Análise Exegética de Daniel 8,1-14 .............................................................................. 26

1.6.1 Tradução Interlinear ................................................................................................. 26

1.6.2 Tradução Literal ....................................................................................................... 31

1.6.3 Delimitação da Perícope .......................................................................................... 32

1.6.4 Coesão ..................................................................................................................... 33

1.6.5 Estrutura .................................................................................................................. 38

1.6.6 Análise Literária: Gênero Textual ............................................................................ 39

1.6.7 Comentário Exegético ............................................................................................. 42

1.7 Considerações Preliminares ......................................................................................... 56

2 O CONFRONTO ENTRE O CARNEIRO E O BODE: CONTEXTO HISTÓRICO ... 59

2.1 Belshazzar: a Queda da Babilônia .............................................................................. 59

2.2 Susan, em Elam; o Berço do Carneiro ........................................................................ 62

2.3 O Carneiro: o Início de um Novo Império ................................................................. 68

2.4 O Bode e o Grande Chifre: o Surgimento de uma Nova Era ................................... 73

2.5 O Inevitável Encontro Entre o Bode e o Carneiro ..................................................... 75

2.6 A exaltação do Bode e a Ruína do Grande Chifre ..................................................... 83

2.7 Os quatro chifres: Solução para o Inesperado ........................................................... 84

2.8 O Pequeno Chifre: a Nova Onde de Poder ................................................................. 87

2.9 Em direção ao “Belo”: o Ponto Estratégico Militar .................................................. 95

2.10 Considerações Preliminares ....................................................................................... 98

3 O LEVANTE DOS SANTOS: SURGIMENTO DENTRO DA NARRATIVA E SEU REFLEXO NA SOCIEDADE .................................................................................... 101

3.1 O Helenismo sob a Ótica Piedosa .............................................................................. 102

3.2 O Exército de os céus e das estrelas (ים וכב א ומן־הכ ים והצב א השמ 109 ........................... (צב

3.3 Denominação dos Santos e sua Proximidade aos Rebeldes .................................... 116

3.4 A Resposta para o Lamento dos Santos .................................................................... 122

3.5 Considerações Preliminares ....................................................................................... 125

4 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 126

BIBLIOGRAFIA: ...................................................................................................... 128

12

Introdução

A presente pesquisa tem como base principal a narrativa localizada no livro de

Daniel 8,1-14, cuja perícope discorre acerca da visão tida, atribuída ao personagem

Daniel, ainda nos dias do reinado de Belshazzar, rei da Babilônia.

A partir desta narrativa apocalíptica buscamos compreender os simbolismos

contidos nela e assim nos deparamos com o período ao qual ela descreve com

minuciosos detalhes acerca de um período muito posterior ao dito no início da

perícope, isto é, a revolta macabaica. Movidos por esta provocação que surgiu

conforme íamos nos aprofundando no estudo desta narrativa buscamos analisar a

perícope dividindo este estudo em três partes com o intuito de discorrer tanto quanto

possível acerca deste tema, contanto sem conseguir esgotá-lo.

No primeiro capítulo desta pesquisa introduzimos o tema, tendo como ponto de

partida uma apresentação geral sobre o livro de Daniel, apresentando assim uma base

sobre a obra, ao passo que se possibilitou observar os propósitos contidos dentro da

obra que corroboraram para nos manter seguindo a provocação mencionada acima.

Descrevemos ainda que de maneira breve os tópicos que ainda se encontram em

discussão para alguns autores sobre o livro de Daniel, como a sua autoria e datação

da obra.

Analisamos, também de maneira breve, os gêneros narrativos presentes no

livro, a estrutura e divisão da obra, os idiomas que compuseram os textos de Daniel.

Seguimos então para a análise exegética da nossa perícope de Daniel 8,1-14,

trazendo nossa própria tradução interlinear, seguida pela nossa tradução literal, o que

nos permitiu uma maior aproximação e conhecimento maior acerca da narrativa aqui

trabalhada.

Avançamos com nossa pesquisa delimitando nossa perícope, realizando a

análise da coesão, para que assim pudéssemos estruturar a nossa perícope. Após

estas etapas concluídas analisamos o gênero textual de nossa perícope o que

corroborou para a realização do comentário exegético. No comentário exegético

analisamos os simbolismos contidos em nossa perícope, não esgotamos neste

primeiro capítulo esta análise sobre os símbolos, mas abrimos links que buscamos

retomar no decorrer dos capítulos seguintes.

13

No segundo capítulo, sentimos a necessidade de realizar uma apresentação

histórica, visto que os símbolos, retomados do capítulo anterior, ilustravam períodos

históricos distintos. Ao realizar esta retomada e executar a leitura histórica deles, se

buscou compreender qual teria sido o motivo ou necessidade do autor, ou redator

final, em citar tais períodos históricos e expô-los em seu texto seguindo uma linha

cronológica. Ao realizar tal exercício nos preocupamos em apresentar cada período

histórico dentro deste capítulo, procurando não se deter de maneira exaustiva, afinal

nos focamos em analisar fundamentalmente o período helênico, principalmente

durante o ano em que surgiu a revolta macabaica. Entretanto notamos que não seria

possível fazer a correlação de símbolos se não citássemos a todos, ainda que

brevemente, se o fizéssemos poderíamos estar comprometendo a nossa análise e

possivelmente perdendo aspectos importantes da análise total.

No terceiro e último capítulo de nossa pesquisa, retomamos os aspectos mais

destacados de nossa pesquisa com o intuito de agora correlacioná-los com o período

macabaico e assim como a provocação do título desta pesquisa, buscar encontrar o

rebelde Daniel em meio aos macabeus. Para isso analisamos novamente alguns

indícios encontrados na perícope que não só apontaram para os macabeus, como

poderiam de alguma forma estar relacionado com a revolta organizada pelos

macabeus. Desta forma neste capítulo, nos propomos a observar como o discurso

religioso, seja por texto, ou através da tradição oral, pode influenciar aos judaítas para

que estes tomassem parte na revolta macabaica. Afinal eles se encontravam num

período difícil onde havia perseguição e morte, mas, ainda assim, eles se arriscaram

para tomar parte numa luta justificada pela fé, no qual buscaram proteger as suas

tradições, seus ideais, suas ideologias e os seus traços culturais intactos com a

chegada de uma nova cultura imposta pelo governo vigente.

14

1 “DANIEL, HOMEM MUITO AMADO...”

“E ele disse para mim: - Daniel, homem muito amado, entenda as palavras que eu digo para você”

Dn 10,11a (Tradução Própria)

O livro de Daniel é uma obra um tanto intrigante, quanto desafiadora. Com

narrativas cheias de coragem e desafios a serem encarados, podemos ver no decorrer

da obra o caráter de um herói ser apresentado ao seu leitor, ao mesmo tempo em que

este vai sendo formado conforme o desenrolar da sua história.

Ao desdobrar-se em acompanhar as aventuras de Daniel e seus amigos na

Babilônia, o leitor é envolvido a buscar compreender o que faz com que este jovem

lute com tanta força para manter os seus valores e as suas crenças intactas, ainda

que o seu cenário se apresente contrário às perspectivas ideais. Em terra estrangeira,

longe da família, com sua terra natal totalmente destruída, mas com as chamas da

esperança acesas, é nesta luta que vemos Daniel na terra da Babilônia.

1.1 Datação

As discussões sobre o livro de Daniel são inúmeras e começaremos com o

debate acerca da possível datação deste livro. Devido aos temas e relatos presentes

na obra, percebe-se uma soma de indicações temporais que distanciam em muito um

relato de outro contido na obra.

As duas datações mais defendidas acerca desta obra são a exílica e a pós

exílica. A primeira chega até mesmo a afirmar que “Daniel seria o autor do livro […].

O livro teria sido produzido durante o período do exílio babilônico no século VI a.C.”

(ANDRADE, 2013, p. 47). Esta teoria possui como bases os seguintes argumentos

que seriam as próprias passagens do livro de Daniel (ex: 1,5 – 5,29; 7,1; 8,1; 9,1; 10,1)

e o estilo em primeira pessoa (EU) principalmente nos capítulos de 7 a 13. Enquanto

as partes conflitantes da obra seriam “consequência de modificações posteriores do

texto dito original” (ANDRADE, 2013, p.47).

15

A segunda teoria afirma que a obra de Daniel pertence ao período pós-exílico,

possuindo suas bases principalmente em textos como o Dn 7,8, por exemplo, onde

há relações entre as figuras utilizadas nas narrativas e personagens históricos.

Para Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002, p.1264), é fato de que esta obra e o

seu personagem principal tenham sido muito populares no período pós-exílico, além

da obra também retratar em sua grande parte a situação vivida durante o século II a.C.

Segundo Andrade (2013, p.47):

[...] a teoria macabéia localiza o livro de Daniel no II século a.C. A argumentação desta teoria baseia-se nos textos de Dn 7. 8 e Dn 7. 25 nos quais “o chifre” é identificado com a figura de Antíoco IV, e a sua tentativa de “mudar os tempos” estaria se referindo ao decreto religioso expedido por este mesmo rei em 168/7 a.C. helenizando o culto no santuário Jerusalêmico [Dn 8. 9; 11. 13; compare 9. 27; 11. 21, 31].

Refletindo a perseguição religiosa vivida durante os tempos de Antíoco IV

Epífanes, o povo começará a se questionar acerca de até quando estas coisas

haveriam de acontecer. No meio deste período de grande necessidade, Daniel

assumirá o papel fundamental de ser o porta-voz dessa revelação divina de libertação

social e política.

Por isso, se leva a crer que esta obra não seja provinda do período anterior ao

pós-exílio, mas que pertença a ele tocando mais especificamente aos acontecimentos

que datam ao surgimento e rebelião Macabaica. Além de que, esta é uma obra que

contêm muitos detalhes específicos acerca da vida e situações enfrentadas pelas

pessoas do século II a.C., assim como aos desenlaces políticos como veremos mais

adiante.

1.2 Autoria

Podemos afirmar que nos deparamos com o mesmo problema quando partimos

para a discussão acerca da autoria desta obra. Inicialmente foi subentendido e

defendido que o próprio Daniel seria o autor, principalmente por Jerônimo de

Estridônia, um entusiasta da apologética, o que posteriormente foi contestado

veemente.

16

Um episódio curioso acerca da discussão sobre a autoria do livro de Daniel é

apresentado por Asurmendi (2004, p.415). Enquanto Jerônimo de Estridônia defendia

veemente a autoria de Daniel, um filósofo pagão chamado Porfírio discordava dele

argumentando que as profecias de Daniel eram prophetiae ex eventu. Até o século

XIX, este filósofo pagão foi a única exceção, até então documentada, de não

concordar com a autoria de Daniel.

Os motivos, segundo esses autores1, se devem à variação da figura no qual o

protagonista possui, que é diversificada quando comparada às tradições presentes na

própria narrativa. A exemplo dessa afirmação, podemos citar principalmente os

capítulos 4,5; 5,10-12, onde Daniel é retratado como um chefe dos magos e/ou

adivinho da corte Babilônica. Já nos capítulos 2,48; 6,3s; 8,27 é retratado como uma

figura política. Quando se analisa a tradição grega, isto é, o capítulo 13,45s, Daniel

aparece como um jovem desconhecido, porém em 14,2 ele assume o papel de um

importante membro da corte babilônica. A Septuaginta se refere a Daniel em 14,2

como um sacerdote.

Além dos motivos listados anteriormente se percebe que Daniel no decorrer da

história adquire traços lendários e/ou contraditórios. Sua obra ainda traz conteúdos

provindos de tempos e pano de fundo muito além do tempo retratado em algumas

narrativas. O que leva ao leitor a situar a sua leitura em dois períodos totalmente

diferentes e distintos, isto é, primeiramente o período babilônico, seguido pelo período

medo-persa.

Fazendo um cálculo rápido estamos lidando com um primeiro período que

ocorreu entre os anos 626-539 a.C. (babilônico) seguido por outro que aconteceu

entre 538-331 a.C. (persa). Seus textos apontam e retratam a história que culminará

com um período bem posterior ao helênico em 323-30 a.C. São datas longínquas

umas das outras, sem contar as dinastias pelas quais Daniel teria ‘visto’ e ‘servido’

durante a sua vida.

Observando a datação afirmada acima, se concorda que a autoria desta obra

também pertença a alguém que possua conhecimento sobre o desenrolar da história.

Leva-se “em conta o que já aconteceu sem preocupar-se com exatidões históricas”

(ANDRADE, 2013, p.48), principalmente quando estas envolvem datas históricas.

1 ALONSO SCHÖKEL, SICRE DÍAZ, 2002, p.1264-1265; PAGÁN, 2010, p.119-120; ASURMENDI,

2004, p.416.

17

Dessa forma, o autor faz uso de um personagem no qual há uma construção

que passa ao leitor confiança, é um jovem justo, fiel, que alcança a sabedoria por não

se misturar com o que era pagão. Alcança assim a graça de Deus que lhe permite

então ter visões acerca do período vivencial das pessoas do século II a.C. Não apenas

isso, mas os escritos de Daniel marcam uma profunda influência não apenas no

pensamento judaico, mas também corrobora para o desenvolvimento de uma

literatura. “Tal influência pode ser constatada nas referências feitas aos textos de

Daniel em outras obras como o livro dos Macabeus, os Oráculos Sibilinos, a obra de

Flávio Josefo e os textos da comunidade de Qumran” (ANDRADE, 2013, p. 46-47).

Logo, se compreende que Daniel foi mais do que apenas um texto religioso. Ao

que tudo indica, teve também um papel marcante dentro de uma sociedade, refletindo

assim na citação dele em diversas outras obras e sendo conhecido por diversos

círculos pertencentes a sociedade judaíta.

1.3 Estrutura

O livro de Daniel pode ser estruturado em três partes, se considerada a tradição

grega. Nesta parte da análise geral há uma grande concordância entre os estudiosos2

especialmente nos capítulos 1 a 6 no conteúdo histórico do livro que passeia pelos

reinados de Nabucodonosor, Belshazzar, Ciro e Dario. Segundo Kaefer (2005, p.163),

esta primeira parte do livro de Daniel se assemelha com a novela de José do Egito

em Gn 37,2-50,26, tendo como principal diferença que o conteúdo de suas revelações

nem sempre trazem algum favorecimento ao rei.

Embora a estruturação do livro nos apresente narrativas dissemelhantes,

segundo Asurmendi (2004, p.414), há uma série de elementos específicos que

pretendem relacionar as partes do livro, buscando fazê-lo parecer uma unidade.

O livro começa apresentando Daniel, o protagonista da obra e seus três amigos,

jovens sendo levados à Babilônia como cativos e sendo inseridos na corte. Estes se

apresentam como fiéis ao Deus de Israel, se recusando a se contaminar com as

iguarias servidas sob a ordem do rei babilônico. A escolha de se manter abstenho de

2 KAEFER, José Ademar, 2005, p.163; KRATZ, Reinhard G., 2001, p.91; ASURMENDI, J. 2004,

p.414 (embora ele acresça em sua divisão a terceira parte que possuí os relatos gregos), entre outros.

18

tais iguarias resulta em bênção divina que os torna mais fortes e sábios que os outros

jovens (Dn 1,15-17).

Então o rei Nabucodonosor tem um sonho no qual seu espírito fica ansioso, por

isso chama a todos os seus magos e adivinhos para que estes decifrem o seu sonho

e o interpretem. Não há ninguém na corte a não ser Daniel que seja capaz de fazer

isso, o jovem com a aprovação divina se apresenta perante o rei e traz tanto o sonho

quanto a sua revelação ao conhecimento deste (Dn 2, 26-45).

A seguir se narra o episódio em que o rei Nabucodonosor levanta uma estátua

de ouro no qual todos os seus convidados (sátrapas, magistrados, governadores,

conselheiros, etc.) devem se curvar e adorar ao ouvir a música ser tocada. Porém, os

amigos de Daniel, Sadraque, Mesaque e Abedenego, são os únicos que se recusam

a fazer tal referência preferindo ser jogados na fornalha de fogo ardente (Dn 3,16-19).

Segue-se com o cântico de Azarias (isto é, na versão grega), e dos três jovens dentro

da fornalha. Após a prova de fidelidade, o Deus dos jovens os salva e mais uma vez

o rei reconhece e professa o Deus deles como único.

É introduzido na narrativa mais um sonho que o rei Nabucodonosor tem (Dn

4,5-18), o qual Daniel interpreta e prediz ao rei que este será expulso do meio dos

homens, perdendo o seu posto como rei da Babilônia e se comportando como um

animal por um certo período, como um castigo a ser pago por causa da sua soberba.

Seu filho Belshazzar sobe ao trono no lugar do seu pai e certa vez deu uma

grande festa (Dn 5,1-4). Sob efeito do vinho mandou que trouxessem as taças de ouro

e prata trazidas pelo seu pai do templo de Jerusalém. Assim foi feito e enquanto estes

bebiam nos utensílios sagrados e entoavam aos seus deuses, eis que uma mão

apareceu e escreveu na parede. Ninguém soube decifrar os escritos, mesmo tendo

uma grande quantia oferecida como recompensa. Daniel foi convocado e, mais uma

vez, o herói tem êxito em interpretar a mensagem divina, revelando que o trono seria

retirado das mãos de Belshazzar. Isso ocorre na mesma noite, quando Dario toma o

controle da Babilônia pondo fim a este grande império e iniciando a era persa.

O sexto capítulo conta a história de Daniel que vai para a cova dos leões devido

à inveja dos sátrapas. Porém, ao decidir desobedecer ao decreto feito pelo rei Dario,

Daniel acaba achando graça aos olhos de YHWH que o livra da cova dos leões

impedindo que estes o atacassem, mas quanto aos seus inimigos o mesmo não ocorre

quando estes são lançados na mesma.

19

É a este forte herói que, tendo o favor de YHWH, é conferido o dom de ver as

‘revelações’ acerca do futuro. Pode-se analisar que nesta primeira parte da obra há

uma dedicação do seu autor em forjar o caráter do herói que é testado por diversas

situações, mas não se deixa desviar da vontade de YHWH que o acompanhou durante

o seu trajeto na terra do cativeiro. Destaca-se aqui que esta primeira parte do livro se

encontra narrada em terceira pessoa.

Na segunda parte do livro de Daniel os capítulos 7 a 12 são constituídos das

quatro visões com teor ‘profético’ apocalíptico envolvendo eventos que apontam para

o período helênico em que Antíoco IV Epífanes é líder na Judeia. Todas as narrativas

se encontram em primeira pessoa.

A primeira visão (Dn 7) é descrita como ocorrendo durante o reinado de

Belshazzar e diz respeito às quatro feras (leão com asas de águia, urso, leopardo,

fera com dentes enormes e com dez chifres). Daniel as viu em seu sonho, as quais

saiam do mar e somente com a ajuda de um intérprete este consegue compreender o

significado desta visão.

Logo em seguida outra visão é relatada (Dn 8), também ocorrendo durante o

reinado de Belshazzar, em que um carneiro é derrotado por um bode extremamente

forte. Assim como na primeira visão, Daniel é auxiliado por um intérprete (desta vez o

anjo Gabriel) para compreender o significado destas coisas. É indicado nesta visão o

poder crescente de Antíoco IV Epífanes.

Depois de orar e se consagrar (Dn 9,3) buscando em YHWH a resposta acerca

de quando os cativos voltariam a Jerusalém, Gabriel aparece para lhe explicar a

profecia das setenta semanas. Esta narrativa possui o enfoque em descobrir o

desfecho ao qual Jerusalém teria e quando haveria de ocorrer a sua salvação.

A próxima visão desta vez é relatada como recebida durante o reinado de Ciro

(Dn 10), desta vez sobre um homem vestido de linho, mais uma vez somente através

do auxílio de um intérprete lhe é dado o conhecimento de sua visão. É lhe feito um

anúncio profético sobre as primeiras guerras entre os selêucidas e lágidas,

destacando as grandes perdas e prejuízos que o povo haveria de enfrentar, lhe é dito

então acerca de Antíoco IV Epífanes. A narrativa prossegue e lhe é anunciado qual

será o fim do perseguidor.

Por fim, Daniel tem outra visão, a profecia de dois homens no rio, uma pergunta

acerca da duração de todas essas coisas enquanto o outro lhe fornece as respostas.

20

Quando Daniel questiona o significado de suas palavras lhe é dito que eram palavras

seladas para o fim dos tempos.

É nesta segunda parte da história que é conferido ao herói o privilégio de ter as

visões que “preconizam o fim dos impérios: julgamento, condenação e destruição”

(KAEFER, 2005, p.163). Além de apresentar dois fortes temas teológicos: a

ressurreição e o martírio.

Interessante observar, segundo Kratz (2001, p.91), que enquanto na primeira

parte do livro, Daniel é capaz de adivinhar e interpretar sonhos, na segunda parte da

obra ele é capaz de ser o receptor de visões no qual o significado sempre se

dependerá de um angelus interpres.

Nota-se que dentre estas visões apresentadas na segunda parte do livro que a

sua ênfase histórica possui certa proximidade, semelhança com as denúncias dos

livros de Macabeus acerca do período histórico em que eles estavam inseridos, isto é,

durante o reinado do império selêucida.

Na tradição grega3 (que pode ser considerada como uma terceira parte do livro,

Dn 13 – 14) ainda se encontra às segundas narrativas acerca de Daniel: o julgamento

de Daniel no caso de Susana filha de Helcias, mulher de Joaquim que sofreu falsa

acusação por se recusar a se entregar para os anciãos que buscaram por uma

oportunidade para estuprá-la. Neste episódio se revela mais uma vez ao leitor acerca

da sublime sabedoria de Daniel em resolver o caso; Daniel contra os sacerdotes de

Bel quando estes comiam os manjares oferecidos ao deus Bel e diziam que era o seu

próprio deus que os comia; Daniel e a serpente divina, que também era venerada

pelos babilônicos, quando indagado pelo rei do porquê Daniel não se prostrava diante

da serpente este entrou numa ‘competição’ com o rei e derrotou a serpente, trazendo

a indignação do povo sobre si; por pressão do povo o rei entrega Daniel na mão deles

que o jogam na cova dos leões, onde desta vez foi mantido preso lá por 6 dias.

Mais uma vez nada lhe aconteceu durante este tempo, pois Deus o susteve,

quando liberto o rei jogou aos leões todos os que lhe haviam feito mal. Além de

assinalar em seu final feliz “sob uma mesma perspectiva: ridicularizar os deuses

pagãos” (ASURMENDI, 2004, p.414). Apresenta-se como uma moral ao povo, isto é,

3 A Bíblia Jerusalém (2012, p.1579-1583) traz a tradução das adições gregas na forma dos

capítulos 13 e 14.

21

aos seus leitores de que o justo é resguardado pela Lei, porém o ímpio é sempre

derrotado.

1.4 Idiomas

Como se pôde analisar até aqui, o livro de Daniel possui diversos pontos em

que não há consenso entre os estudiosos em suas análises acerca da composição

desta obra e a questão do idioma não seria diferente. Talvez este até mesmo seja um

dos pontos mais complicados para os estudiosos de Daniel, a obra é composta por

três idiomas, sendo eles: aramaico, hebraico e grego (se levado em consideração as

edições católicas que têm por base a Septuaginta, enquanto que no livro do Texto

Massorético são apenas dois idiomas).

Asurmendi (2004, p.414-415) detalha que o hebraico utilizado em Daniel é

recente, porém não tanto quanto os manuscritos de Qumrã. O aramaico está antes da

evolução dos textos de Qumrã e depois dos papiros de Samaria (última fase do

período persa), isto é, primeiras décadas do império helenista. O grego possui

grandes problemas de tradução do hebraico, isto é, divergências entre o Texto

Massorético e a Septuaginta.

Segundo Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002, p.1261) este é um fenômeno

único e um tanto curioso dentro do Antigo Testamento, que faz com que seja difícil

prever o processo de formação do livro. Porém, facilmente localizamos os trechos

fragmentados de adições posteriores, os escritos nesta língua ou as traduzidas do

original semita. Embora tenham surgido inúmeras teorias com o intuito de fornecer

alguma explicação, nenhuma foi completamente aceita como uma solução plena.

As hipóteses que procuram justificar o porquê de haver os três idiomas neste

livro podem ser enumerados da seguinte maneira:

a) a obra original foi escrita em hebraico, e uma parte dela foi traduzida para o aramaico, língua corrente daquela época; b) o original era aramaico, e alguns capítulos foram traduzidos para o hebraico; c) o autor do livro empregou, por razões desconhecidas ambas as línguas; d) existia uma coleção aramaica de relatos sobre Daniel [caps. 1–6 ou 1–7]; um autor posterior traduziu o cap. 1 e acrescentou em hebraico as visões dos caps. 8–12; e) as narrações dos caps. 2–6 circulavam oralmente em aramaico; o autor do livro recopilou-as e as reelaborou nesta língua; acrescentou depois o sonho do cap. 7, redigindo-o igualmente em aramaico, e completou o conjunto com os caps. 8–12,

22

escritos em hebraico. (ALONSO SCHÖKEL E SICRE DÍAZ, 2002, p. 1261-1262)

Seguindo a linhas propostas por essas hipóteses, os autores estruturam a obra

de maneira diferente. Capítulo 1 como introdução, 2-7 como narrações; 8-12 visões;

e 13-14 narrações novamente. Ainda assim não parece ser a melhor maneira de

estruturar a obra, visto que já é no capítulo 7 onde se começa a primeira visão do livro

de Daniel. Por isso seguimos a estrutura, tendo como base o conteúdo e não segundo

a estrutura idiomática da obra.

Entretanto, Pagán (2010, p.121) argumenta que possivelmente este texto tenha

sido escrito em aramaico, e os textos posteriormente tenham tido diversas seções

traduzidas para o hebraico por questões nacionalistas, ou para que seu lugar no cânon

fosse garantido4.

A hipótese levantada acerca dessa divergência linguística pode ter ocorrido

devido ao período em que ela foi composta. Se a obra tiver sido escrita durante o

período dos macabeus, como foi dito acima, então tal divergência teria sido justificada.

O povo ao retornar do exílio guardou uma memória em aramaico sobre Daniel

passadas oralmente até que, por fim, foram redigidas, enquanto as visões

apocalípticas foram sintetizadas pelos escribas, sacerdotes que haviam se retirado da

cidade para o deserto. A tradição grega pode ter surgido durante o período em que a

Judeia foi subjugada pelos helênicos que impuseram o domínio de seu idioma, ou por

algum judeu que estivesse fora daquela região.

Embora não haja um consenso acerca das hipóteses, é fato de que o conteúdo

do livro de Daniel carrega em si profundos sentidos teológicos, que serviram de

incentivo a comunidade judaica para que conseguissem enfrentar os problemas. A

partir do modelo exposto e modelado por Daniel que, como bem repetido ao final de

cada narrativa acerca de suas decisões em diversas situações perante os reis, não se

deixou corromper com a enculturação estrangeira, ou teve medo das possíveis

consequências que suas ações poderiam lhe acarretar.

4 ASURMENDI, 2004, p.417 “a tradição judaica não aceita em seu cânon textos em grego, as

partes do livro de Daniel que estão escritas nessa língua [Dn 3,24-90; 13 – 14] não figuram no cânon judaico”.

23

1.5 Gêneros Literários

O livro de Daniel é composto principalmente por dois gêneros literários: os

relatos da corte, que vão se ocupar em retratar sobre a vida do jovem Daniel e os seus

amigos dentro da corte babilônica, e as visões/profecias apocalípticas.

1.5.1 Relatos da Corte

Os relatos da corte no livro de Daniel demonstram um caráter nacionalista em

jogo, assim como os relatos relacionados à Ester e José no Egito. Os jovens são

introduzidos no palácio do país ao qual foram levados cativos, obtendo assim uma

nova chance de se reerguer na vida de maneira “rápida” e “fácil” através da imersão

cultural. Porém, estes jovens se recusam a fazer isso e se dedicam em defender os

valores judaicos a todo custo, mesmo que isto os leve a sofrer castigos e sentenças

como a fornalha de fogo ardente e a cova de leões.

Conforme Asurmendi (2004, p.420) “Trata-se de mostrar a superioridade do

exilado submisso diante do possuidor autóctone do poder”. É notável a superioridade

se observarmos a figura de Daniel frente as bases primordiais, como: interpretação

de sonhos, mensagens divinas e sabedoria. Como apontado já no primeiro capítulo

da obra, são descritos como os mais inteligentes, pois tomaram a decisão de não se

abaixarem aos novos costumes e esquecerem assim a sua própria identidade.

É evidente como a influência religiosa e o brio nacional são realçados pela

intervenção divina como uma resposta positiva ao ato dos personagens em não se

submeter aos padrões e imposições dos estrangeiros. Além de salientar o poder

superior do Deus dos cativos judaítas sob todo e qualquer levante que ocorra contra

os “escolhidos”, estes permaneceram fiéis aos seus estabelecimentos e Lei.

1.5.2 Visão Apocalíptica e Gênero Apocalíptico

Há, pelo menos, dois tipos de visões dentro das narrativas bíblicas, são elas as

visões proféticas e as visões apocalípticas. Por isso ao analisar as visões contidas no

livro de Daniel é necessário se ater ao significado e características aos quais essas

narrativas estudadas pertencem.

24

As visões presentes no livro de Daniel são “a expressão literária de uma

experiência” (ASURMENDI, 2004, p.420). Define-se como experiência, pois as visões

são um meio de intercomunicação entre a esfera divina e o vidente. Porém não

podemos levar à risca está definição quando nos referimos às visões apocalípticas.

Há, pelo menos, três diferenças essenciais entre as visões proféticas e as

apocalípticas. Asurmendi (2004, p.420) assinala da seguinte forma:

A primeira é a presença do anjo intérprete, necessária nas visões apocalípticas para a compreensão da visão pelo vidente. Nas visões proféticas a compreensão do que se vê é imediata [cf., por exemplo, as visões de Isaías ou de Ezequiel], visto que o sentido do que é visto é explicado muitas vezes pelo próprio Deus, que é aquele que ‘faz ver’ [igualmente, nas visões de Jeremias ou Amós]. A proximidade de Deus nas visões proféticas [inclusive nas de Ezequiel e Isaías] contrasta com seu afastamento nas visões apocalípticas. A segunda diferença se refere à mensagem. A mensagem das visões proféticas tem uma evidente dimensão de imediaticidade em relação ao profeta e a seus contemporâneos; assim, a vocação dos três grandes profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel está relacionada intimamente com suas épocas e ao destino do povo, e o mesmo acontece com o anúncio do castigo imediato nas visões de Amós. A terceira e última diferença encontra-se na linguagem. A linguagem é normalmente simples e inteligível nas visões proféticas, ao passo que nas visões apocalípticas pertence já ao fantástico e mítico.

Como descrito anteriormente, acerca do conteúdo do livro de Daniel, se pode

perceber que as visões narradas apontam todas para o mundo fantástico e mítico,

com muitos simbolismos e imagens visuais, no qual o vidente, Daniel, não consegue

compreender o significado por si só. Essas revelações possuem elementos históricos

acerca do passado, presente e apontam para um futuro. A expressão de horror e

perturbação de espírito por parte do vidente também é muito presente nas visões,

característica encontrada na obra de Daniel após cada relato de visão apocalíptica

(Dn 7,28; 8,27; 10,1-3; 10,8).

A linguagem das visões é truncada por forte simbolismo e ao seu lado sempre

se encontra o anjo intérprete que ao final de cada visão apresenta a explicação

referente aquilo que foi visto pelo vidente, trazendo recomendações acerca de

comportamentos e ações durante algumas de suas explanações. São apontamentos

escatológicos, que também podem apresentar uma ânsia pelo reinado messiânico que

é favorecido por Deus.

25

Os contextos das visões apresentadas no livro de Daniel ilustram cenas de

guerras e perseguições, a assolação do povo fiel e a impiedade, crueldade de reis

“pagãos”. Porém não fica evidente nas visões ou explanações quais deveriam de ser

as respostas do povo frente a estes acontecimentos.

Muito embora Asurmendi (2004, p.422-423) afirme que a obra não defenda a

resistência ativa, mas que tenha por objetivo gerar esperança dos oprimidos em

YHWH, que através da sua intervenção trará a salvação aos necessitados. Talvez os

responsáveis pela difusão e circulação desta obra tenham sido o meio dos hassidim,

ou ‘piedosos’. Incentivo a uma resistência pacífica, alimentar a esperança, encorajar

e reconfortar aos oprimidos através da compreensão, leitura apocalíptica acerca dos

tempos atuais este pode ter sido o objetivo deste grupo de piedosos.

O gênero apocalíptico dentro do livro de Daniel é um dos porquês que torna

esta obra tão única, ainda mais quando as outras narrativas que possuem tal gênero

literário se encontram fora do cânon judaico. A outra literatura, inclusa no cânon, se

encontra no Novo Testamento.

Para Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002, p. 1259) o surgimento desta novidade

se manifesta como uma força criativa, dentro de um período em que havia apenas a

escassez da inspiração literária e finda a inspiração profética. Este gênero é herdeiro

do gênero profético, surge quando este se encontra extinto e procura continuar a sua

missão apresentando grande interesse no desenrolar da história. Atenta-se ao curso

dos impérios, que assumem o papel da predição, assim como a profecia aponta para

a esperança em Deus.

O ambiente propício para o surgimento e expansão do gênero apocalíptico,

segundo Pagán (2010, p. 122) é onde há extrema desesperança e crises, onde as

figuras políticas governamentais humanas, religiosas, militares perdem o crédito com

o povo. São receptores que vivem debaixo de opressão e abuso por parte de seus

governadores que normalmente os abusam agressivamente e impiedosamente.

No meio dessas comunidades que se encontram em tais situações extremas

estes textos são bem recebidos e espelham para todos um futuro esperançoso,

seguro e restaurador no qual as intervenções divinas mudarão a história.

26

1.6 Análise Exegética de Daniel 8,1-14

O objeto do presente estudo é a análise exegética de Dn 8,1-14. Esta perícope

se localiza na segunda parte do livro, sendo ela a segunda visão dentro deste bloco

da obra e evidentemente pertence à esfera das visões apocalípticas.

O foco de nossa análise será apenas a extensão da visão narrada neste

capítulo (Dn 8,1-14), sendo assim não nos estenderemos diretamente à explanação

acerca da mesma pelo anjo Gabriel (Dn 8,15-27).

Para a realização do estudo desta perícope iniciaremos com a tradução

interlinear desta narrativa. Seguindo para a apresentação da tradução literal, seguida

pela delimitação desta perícope. Então passaremos para a análise da coesão textual,

prosseguindo para a estruturação desta perícope e, por fim, apresentaremos o

comentário exegético.

1.6.1 Tradução Interlinear

Dn 8.1

ל ךהמ ר לוש למלכות בלאשצ תב ש ש

o rei Belshazzar do reinado de três No ano de

אל י י ד לי א ה א זון 5 רא חDaniel eu a mim, para

mim apareceu visão

ה׃ ל י בתח ל ה א י 6הנ רא אחר em o começo. a mim, para

mim a (que)

apareceu depois de

Dn 8.2

י וא י 7בראתי זון 8ויה ה ב ח רא א 9ו

e eu em ver-me (em meu ver)

e aconteceu na visão E vi

ה י ם המד יל ר בע ה אש ן הב יר בשושa província,

satrapia em Elam que o palácio em Susan

aparecer, parecer (nifal) – ראה 5 aparecer, parecer (nifal) – ראה 6 ver, enxergar, observar (qal) – ראה 7 ser, estar, existir (qal) – היה 8 ver, enxergar, observar (qal) – ראה 9

27

ל י על־אוב ית 10היי זון וא ח 11ואראה ב

junto ao rio estava eu e eu em a visão e vi

י׃ אול Ulai.

Dn 8.3

י ל ה׀ א נ ה וה 12ואראיי א ע ש 13וא

carneiro e eis que e vi olhos meus E levantei

ו ל ול אב י ה פ ד ל ד עמ ח א e direção

dele/para ele o rio perante faces

de o que parado um

ה אחת גבה ות וה י ם גבה י ם והקר קרalto, grande e o um altos, grandes e os chifres (dois) chifres

ה׃ ה באחר 14עלה גבה ית וה ן־הש מ

no depois. aquele que elevou [-se]

e o alto, grande

(mais que) do segundo

Dn 8.4

פוה ה וצ 15מנגח י מי ל א ת־ה י א ית 16רא

e ao Norte para o Ocidente

empurraste (brutalmente)

o carneiro Vi

ין יו וא ו לפ עמד א־י 17לגבה וכל־חיות ו

e nada perante faces dele

não pararam e todos seres

viventes

e ao Sul / Negeb

יל׃ גד 18והו רצ ה כ ש ו 19וע יד יל מ 20 מצ

e se fez importante/grande.

conforme [lhe] apraz

e fez da mão dele arrebatava

Dn 8.5

ז ים ע יר־ה ה צפ נ ין וה ב י 21 מ ית י י׀ 22 ה ואbode de as

cabras e eis que tornar a

compreender estava eu E eu

ser, estar, existir (qal) – היה 10 ver, enxergar, observar (qal) – ראה 11 ver, enxergar, observar (qal) – ראה 12 levantar, carregar, levar (qal) – נשא 13

subir, elevar-se, surgir (qal) – עלה 14

empurrar, derrubar, dar cabeçada/chifrada (piel) – נגד 15

ver, enxergar, observar (qal) – ראה 16

parar, ficar de pé, manter-se (qal) – עמד 17

ampliar, engrandecer, aumentar (hifil) – גדל 18

fazer, realizar, deter-se (qal) – עשה 19

arrebatar, remover, arrancar (hifil) – נצל 20

compreender, entender, perceber (hifil) – בין 21

ser, estar, existir (qal) – היה 22

28

ין ץ וא ר א י כל־ה ב על־פ ן־המער א מ 23 ב

e nada toda a terra sobre as faces de

do oeste veio

זות ן ח ר יר ק פ צ ץ וה ר א ע ב וגvisão chifre de e o bode na terra quem

tocas/tocador

יו׃ י ין ע ב os olhos dele. entre

Dn 8.6

ר י ם אש על הקר י ל ב א א עד־ה 24 ויב

que os chifres senhor, dono de

enquanto/até o carneiro

E veio

ץ ר ל 25 וי אב י ה פ ד ל י 26 עמ ית א 27 ר

e correu o rio perante faces de

que permanecia

vi

ו׃ ת כח יו בחמ ל א força, poder

dele. em a

exaltação

para dele/contra

ele

Dn 8.7

ר י ל 28 וי תמרמ א צ ל ה יע׀ א יו 29 מג ית 30ורא

e se enfureceu

o carneiro ao lado próximo que chegava E vi ele

י ת־שת ר א י ל 31 וישב א ת־ה יו 32 ויך א ל א

os dois e estraçalhou o carneiro e feriu para/contra ele dele

ד י ל 33 לעמ א ח ב יה כ 34ולא־היו קר

para se levantar

no carneiro capaz/capacidade e não era/havia

chifres dele

chegar, vir (qal) – בוא 23

chegar, vir (qal) – בוא 24

correr (qal) – רוץ 25

parar, ficar de pé, manter-se (qal) – עמד 26

ver, enxergar, observar (qal) – ראה 27

se enfurecer (hitpael) – מרר 28

alcançar, tocar (hifil) – נגע 29

ver, enxergar, observar (qal) – ראה 30

quebrar, despedaçar, aniquilar (piel) – שבר 31

ferir, atingir, bater (hifil) – נכה 32

parar, ficar de pé, manter-se (qal) – עמד 33

ser, estar, existir (qal) – היה 34

29

35ולא־היההו י רמס ה 36 ו רצ הו א יכ יו 37 וישל לפ

e não era/havia

e pisoteou ele

em terra e o arremessou

perante faces dele

ו׃ יד י ל מ א יל ל 38 מצ

da mão dele. para o carneiro

o que livrava

Dn 8.8

ו צמ ד 39 וכע יל עד־מא גד ים 40 ה ז ע יר ה וצפ e/mas como

poderoso dele enquanto /até

muito tornou-se

grande as cabras E bode de

ות ז ה ח תעל ה 41 ו ן הגדול ר ה הק 42 שבר

visão e subiu o grande o chifre foi quebrado

י ם׃ מ ות הש ע רוח יה לארב ארבע תחת os céus. ventos de para os quatro

de

por baixo, debaixo/em seu lugar

quatro

Dn 8.9

ה יר צע ת מ ן־אח ר א ק ם 43 יצ ה ת מ אח ן־ה ומ de o pequeno chifre um saiu deles E de o outro/um

י׃ ב ל־הצ ח וא זר ל־המ ג ב וא ל־הנ גדל־יתר א 44ות

e para direção à belo/gazela (Palestina).

e para o levante

para o Sul / Negeb

e crescendo demasiadamente

Dn 8.10

רצה ל א תפ י ם 45 ו מ א הש ל עד־צב גד 46 ות

a terra e fez cair os céus tanto quanto exército de

E se tornou grande

ם׃ רמס ת ים ו ב ן־הכוכ א ומ ב ן־הצ מ

e pisando-os. e de as estrelas

de o exército

Dn 8.11

ser, estar, existir (qal) – היה 35

pisar, esmagar (qal) – רמס 36

lançar, arremessar, expelir (hifil) – שלך 37

arrebatar, remover, arrancar (hifil) – נצל 38

ser forte, ser poderoso (qal) – עצם 39

ampliar, engrandecer, aumentar (hifil) – גדל 40

subir, elevar-se, surgir (qal) – עלה 41

ser quebrado, deixar de existir (nifal) – שבר 42

sair, ir adiante (qal) – יצא 43

crescer, se tornar grande, se tornar importante (qal) – גדל 44

causar queda, fazer cair, cair na ruína (hifil) – נפל 45

crescer, se tornar grande, se tornar importante (qal) – גדל 46

30

ים ר נו 47 ה מ יל ומ גד א 48 ה ב ד שר־הצ ועtornou

elevado

e por ele se tornou grande

chefe, oficial de o exército

E tanto quanto

ו׃ ש קד ון מ ך מכ יד 49 והשל מ ם] הת 50[הור

sagrado, santuário seu.

lugar, local de e foi lançado a continuidade foi tirado

Dn 8.12

ך שע 51 ותשל יד בפ מ ן על־הת נת 52ת א ב וצ

e arremessou em transgressão

sobre a continuidade

foi recebendo/dado

E exército

ה׃ יח צל ה ³53וה שת רצה 54 וע ת א אמ e fez

prosperar. e agiu a terra fidelidade /

verdade

Dn 8.13

ד ח ר א ר 55 ויאמ 56מדב דוש ד־ק ח ה א שמע 57 וא

outro/um e disse que falava outro/um santo

Então escutei

ון ז ח י ה ת ר עד־מ י 58המדב דוש לפלמו קa visão até quando? o que falava para alguém santo

ש ד ת וק ם 59 ת שע 60 שמ יד והפ מ הת

e santidade/santuário

estabelecer desolação e a transgressão

a continuidade

ס׃ רמ א מ ב וצ pisoteados. e exército

Dn 8.14

ר ק ב ב ר ד ע י ע ל ר א אמ 61 וי

manhã noite enquanto/até até/para mim E disse

elevar, erguer, exaltar (hifil) – רום 47

ampliar, engrandecer, aumentar (hifil) – גדל 48

ser jogado ao chão, ser derrubado, abater (hofal) – שלך 49

ser exaltado, ser removido (hofal) – רום 50

lançar, arremessar, expelir (hifil) – שלך 51

ser dado, ser entregue, ser permitido (nifal) – נתן 52

ser sucedido, prosperar, triunfar (hifil) – צלח 53

fazer, realizar, deter-se (qal) – עשה 54

dizer, falar, contar, relatar, mencionar (qal) – אמר 55

falar, dizer, conversar, ameaçar, prometer, ordenar (piel) – רבר 56

ouvir, escutar, prestar atenção (qal) – שמע 57

falar, dizer, conversar, ameaçar, prometer, ordenar (piel) – רבר 58

dar, permitir, entregar (qal) – נתן 59

desolar, devastar, assombrar-se (qal) – שמם 60

dizer, falar, contar, relatar, mencionar (qal) – אמר 61

31

ש׃ ד ק ק ש 62ו צד ותושל א מ י ם אלפ santidade,

santuário. então

justificarei e trezentos duas mil

1.6.2 Tradução Literal

¹ No ano terceiro do reinado de Belshazzar o rei, visão apareceu para mim, Daniel,

depois de a que apareceu para mim em o começo.

² E vi na visão, e aconteceu em ver-me e eu [estava] em Susan, o palácio que [fica]

em Elam, a satrapia. E vi na visão e eu estava junto ao rio Ulai.

³ E levantei [meus] olhos e vi, e eis que um carneiro parado perante as faces do rio, e

direção dele [dois] chifres. E os chifres [eram] grandes e um [era] grande [mais que]

do segundo grande aquele que elevou [-se] depois.

⁴ Vi o carneiro empurraste (brutalmente) para o Ocidente e ao Norte e ao Sul/Negeb.

E todos seres viventes não pararam perante faces dele e nada arrebatava da mão

dele. E fez conforme [lhe] apraz e se fez grande.

⁵ E eu estava tornar a compreender, e eis que bode veio do oeste sobre as faces de

toda a terra e nada tocou na terra. E o bode [tinha] chifre, [em] visão entre os olhos.

⁶ E veio enquanto o carneiro, senhor, dono dos chifres que vi que permanecia perante

[as] faces do rio. E correu contra ele, em exaltação [e] poder.

⁷ E vi ele que chegava ao lado próximo do carneiro. E se enfureceu contra ele, feriu

o carneiro e estraçalhou os dois chifres dele, e não havia capacidade no carneiro para

se levantar perante faces dele. Então o arremessou em terra e pisoteou ele, e não

havia o que livrava o carneiro da mão dele.

⁸ E [o] bode tornou-se grande até muito, mas como poderoso dele foi quebrado o

chifre, o grande. E subiu, [em] visão, quatro debaixo para os quatro ventos dos céus.

9 E do outro deles saiu outro chifre pequeno e crescendo demasiadamente para o

Sul/Negeb, e para o levante e para direção à belo (Palestina).

¹0 E se tornou grande tanto quanto exército de os céus e fez cair [em] terra o exército

e das estrelas e pisando-os.

¹¹ E tanto quanto oficial do exército se tornou grande e por ele tornou elevado, foi tirado

a continuidade e foi lançado local de santuário seu.

justificar, inocentar, ser justificado (nifal) – צדק 62

32

¹² E exército foi dado sobre a continuidade em transgressão e arremessou [a] verdade

[em] terra e agiu e fez prosperar.

¹³ Então escutei um santo que falava, e disse um santo para alguém o que falava: “até

quando?” a visão, a continuidade e a transgressão desolação estabelecer e santuário

e exército pisoteados.

¹⁴ E disse para mim até noite, manhã duas mil e trezentos, então justificarei santuário.

1.6.3 Delimitação da Perícope

O capítulo 7 inicia um novo bloco no livro de Daniel, a sequência das visões

apocalípticas. É neste capítulo que é descrita a primeira visão, que ocorre durante o

primeiro ano do reinado de Belshazzar. A visão de Daniel se sucede durante um sonho

no qual ele vê quatro animais diferentes saindo de dentro do mar. O primeiro era como

um leão que possuía asas semelhantes a de uma águia, o segundo tinha a aparência

de um urso e este tinha três costelas entre os seus dentes, o terceiro se parecia com

um leopardo e este tinha quatro asas. O quarto animal era aterrorizante, porém muito

poderoso, possuindo dentes de ferro e dez chifres.

O relato prossegue até chegar ao ponto em que Daniel se sente angustiado e

com o seu espírito muito agitado. Não compreendendo o significado da visão que

tivera até que, por fim, ele se aproximou de um dos que estavam ali, presentes em

sua visão, e lhe pergunta o significado dessas coisas. Só então lhe é revelado a

explicação daquilo que se tinha acontecido.

O último versículo do capítulo 7 (v.28), traz a finalização da visão e aponta para

os resultados que esta teria causado ao seu corpo (rosto empalidecido) e informa ao

seu leitor que, embora os pensamentos acerca da visão o assombrassem, Daniel

guardou essas coisas apenas consigo mesmo.

O capítulo 8,1 começa trazendo a seguinte informação לך ר המ ות בלאשצ למלכ

וש שנת של ב que significa no ano terceiro do reinado de Belshazzar, a narrativa traz

em seu início a informação acerca do tempo no qual ela teria ocorrido. Segundo Silva

(2015, p.70), uma das marcações do início de uma nova narrativa é a indicação do

tempo e o espaço no qual a perícope ocupa. É neste primeiro verso que o leitor recebe

a informação de que uma nova narrativa é introduzida.

33

Delimitamos esta perícope apontando com a sua conclusão no v.14, pois a

partir do v. 15 em diante há o acréscimo de dois outros personagens. Um deles era

um ser que tinha a aparência como a de um homem, que estava no rio Ulai. Ele

aparece diante de Daniel e manda que Gabriel lhe entregasse a interpretação desta

visão. Além de salientar no decorrer dos seguintes versos uma ação terminal, ou seja,

relata-se que Daniel ficou aterrorizado e caiu prostrado diante de tudo que lhe foi

confiado através da explicação de Gabriel.

A interpretação segue até o fim do capítulo, isto é, no verso 27 que assim como

o capítulo anterior informa ao leitor que esta visão fez com que Daniel ficasse

afadigado e caísse doente, porquanto muito assombrado ficou devido a esta revelação

desta visão.

1.6.4 Coesão

A perícope de Daniel 8,1-14 é composta de uma riqueza de símbolos nos quais

o leitor é levado a acompanhar de forma fluída o desenrolar de uma impiedosa batalha.

Esta só pode ser contemplada e melhor compreendida através do estudo de sua

coesão.

Seguiremos a seguinte ordem para ir de uma análise geral da narrativa, para

uma que se limitará aos entornos dos principais símbolos desta literatura apocalíptica.

Visualizaremos primeiramente as principais palavras e verbos que mais se repetem,

então buscaremos distinguir os verbos, isto é, a conjugação e modo no qual estes se

encontram. A partir desses levantamentos observaremos quais dessas repetições

estão ligados aos agentes dessa narrativa, sendo eles: o carneiro, o bode e o exército

do céu.

Dentro dos catorze versos que constituem nossa narrativa encontramos as

seguintes palavras repetidas no decorrer da visão:

Hebraico Quantidade Versos

13 ;8 ;5 ;2 ;1 6 חזון

1 2 הרא

34

7 ;6 ;1 4 אל

5 ;2 ;1 4 אני

7 ;6 ;4 ;3 ;2 7 ראה

5 ;2 2 היה

7 ;6 ;3 3 נשא

נה 5 ;3 2 ה

7 ;6 ;4 ;3 7 איל

4 ;3 2 עמר

7 ;6 ;5 ;4 ;3 5 פנה

6 ;3 ;2 3 אבל

9 ;8 ;6 ;5 ;3 6 קרן

4 ;3 4 גבה

4 1 צפון

9 ;4 2 נגב

8 ;5 3 צפיר

5 ;4 2 אין

12 ;10 ;7 ;5 5 ארץ

5 ;3 2 עין

14 ;10 ;7 3 רמס

7 2 היה

ו יד 7 ;4 2 מ

10 ;8 2 שמים

13 ;12 ;11 ;10 5 צבא

יד 13 ;12 ;11 3 תמ

13 2 דבר

Da soma das palavras repetidas elencadas no quadro acima, há um total de 91

palavras, das quais 23 são verbos, enquanto as demais são substantivos, preposições,

35

pronomes, adjetivos. Isto demonstra uma maior variedade verbal presente na

narrativa do que os outros itens comentados na oração anterior.

Mais intrigante ainda é se somarmos o valor total dos verbos presentes na

narrativa, que são 60, e apenas 23 se repetem. Se afunilarmos ainda mais nos

depararemos com as seguintes informações: há 35 verbos nas conjugações qal; 5 em

nifal; 4 em piel; 1 hithpael; 13 em hifil; 2 em hofal. Nota-se que a maioria das ações

são simples e causativas. Se fizermos o mesmo levantamento acerca dos tempos

verbais nos depararemos com os seguintes dados: 13 se encontram no particípio; 21

no perfeito; 23 no imperfeito; e 4 no infinitivo. Estes novos dados nos revelam que

estamos lidando com um texto no qual as suas ações em suma estão divididas entre

ações concluídas (perfeito) e ações incompletas (imperfeito), ou ainda em andamento

(particípio).

O resultado que estes dados levantados nos auxiliam a examinar a intensidade

e impetuosidade na qual o relato está direcionando o leitor. Nos revela que há diversos

movimentos ocorrendo conforme a leitura vai fluindo, ajudando a compreender a

dinâmica na qual a disputa entre o carneiro e o bode vai ocorrendo. Para ficar mais

claro e demonstrar a coesão da narrativa colocaremos/encaixaremos as informações

no entorno ao qual elas pertencem, coligadas aos personagens citados.

Os primeiros versos são marcados por expressões que situam onde Daniel,

personagem principal, receptor da visão está situado: no terceiro ano do reinado de

Belshazzar ( ר לך בלאשצ ת המ ש לושב למלכותש ) que Daniel recebeu esta visão. Ela

possui uma localização específica, ocorre em Susan (שושן), palácio da satrapia de

Elam (ילם .(אולי) no qual há um rio próximo, Ulai ,(ע

O carneiro surge na visão próximo ao rio, onde o vidente está em Ulai (אולי),

seus chifres (ן ר são o destaque já que eles são citados 2x no v.3. se acrescentando (ק

o adjetivo ‘grande’ (גבה) 3x no mesmo versículo sendo que um dos chifres estava

sendo elevado (עלה , qal particípio).

Após descrever o carneiro mostra-se as ações dele, empurra (גח, piel particípio)

nas direções do Norte (פון ה) ocidente ,(צ ninguém tem poder de arrebatar ,( ג ב) Sul ,( י מ

ו) da sua mão (hifil particípio ,צל) יד hifil , גדל) ’resultando no ‘se fez importante ;(מ

perfeito).

36

Então o bode é introduzido na visão, ele veio (בוא, qal particípio) do Oeste

ב) ץ) se foca na sua passagem sobre a terra ,(מער ר ,גע) 2x no v.5, não a tocando (א

qal particípio), destaca-se também sobre o seu chifre (ן ר no meio dos olhos. Este (ק

bode vem levantando-se (עמד, qal particípio), correndo (רוץ, qal imperfeito) para

alcançar (גע, hifil particípio), enquanto se enfurece (מרר, hithpael imperfeito) e fere

.o carneiro (hifil imperfeito ,כה)

A cena da luta é marcada pelas seguintes expressões: o carneiro é

despedaçado (שבר, piel imperfeito), lançado (שלך, hifil imperfeito), pisoteado ( מסר , qal

imperfeito) e não pode ser arrebatado (צל, hiphil particípio) da mão do bode.

O cenário ao fim da luta mostra a posição alcançada: se tornou grande (גדל,

hiphil perfeito); como poderoso (עצם, qal infinitivo).

Embora o seu chifre tenha se quebrado, o seu poder não é abalado e sim torna-

se ainda superior: quatro novos chifres surgem na direção dos quatro ‘ventos dos céus’

( ות י םרוח מ הש ); um outro chifre pequeno surge e cresce demasiadamente (גדל, qal

imperfeito) no v. 9. Ele se expande para a região que antes o carneiro estava, o Sul

ח) para o levante ,( ג ב) זר י ) à belo/gazela [Palestina] ,(מ .(צב

Este cresce até desafiar o exército dos céus e os faz cair (פל, hifil imperfeito)

na terra (ץ ר (hifil perfeito ,גדל) nestes. Se torna tão grande (qal imperfeito ,רמס) pisa ,(א

quanto o oficial do exército.

Suas ações enquanto tem o grande poder em mãos são: tirou (רום, hofal

perfeito) a continuidade (יד מ ,o local sagrado (hofal perfeito ,שלך) lançou ,(ת

arremessou (שלך, hifil imperfeito) a verdade em terra (ץ ר ,צלח) fazendo prosperar (א

hifil perfeito).

Suas ações não agradam aqueles que lhe são submetidos, pois há a pergunta

‘até quando?’ ( ת יעד־מ ), uma resposta é dada duas mil e trezentas ( י ם שאלפ ותושל א מ )

manhãs e noites.

Note que, enquanto as ações do carneiro estão em andamento, e seu resultado

já é completo, pois se encontra conjugado no perfeito, o bode chega também com

ações todas em andamento ou ainda não concluídas, porém as suas ações são

causativas e reflexivas.

37

Os campos centrais, ou linhas que conduzem essa perícope giram em torno do

campo visual. A visão (זון que ocorre 6 vezes do decorrer da narrativa, assim como (ח

o verbo ver (ראה) que também aparece 7 vezes. Essas repetições indicam que aquele

que recebe a visão não só deve se ater aos detalhes que estão se passando diante

das suas vistas, mas a todos os acontecimentos, pois eles não são aleatórios. Aquele

que os vê se torna o portador/visionário de um ambiente “futuro” dentro desse contexto

apocalíptico.

Além das figuras principais da narrativa, o carneiro e o bode, a disputa entre os

dois animais e a importância de seus chifres (ן ר que são sempre descritos como (ק

grande (גבה), elevado (עלה) demonstram o que de fato representava o poder e domínio

que estes animais possuíam.

Ao terem os seus chifres quebrados, há um momento de fraqueza, perda de

poder e domínio abalado, oportunidade para a sua total destruição, enquanto ao

aparecer novos chifres (como no caso do bode) indicam um aumento de poder, quatro

ventos dos céus ( ות י םרוח מ הש ) e regiões de domínio – Sul (ג ב ), para o levante (ח זר ,(מ

belo/Palestina (י Após essas novas conquistas, desafia-se um novo opositor o .(צב

exército ( אצ ב ) dos céus e das estrelas.

Não apenas diz respeito a domínio de povos e nações, mas interliga ações e

decisões que afetam o âmbito religioso de um povo específico, no qual são dados

detalhes. A continuidade (יד מ ) é interrompida, o sagrado/santuário (ת שק ד ) é profanado,

trazendo a desolação ( םש מ ) e estabelecendo as transgressões ( שעפ ). É motivo de

escândalo para quem vê e principalmente para aqueles que vivenciam, fazendo com

que se questionem acerca destes acontecimentos e obtenham como resposta que

após duas mil ( י םא לפ ) e trezentos ( שו ותשל א מ ), noites ( בע ר ) e manhãs ( רב ק ) para que

haja o fim da violação religiosa.

Percebe-se que a narrativa segue uma linha do seu início ao fim, além de

perpassar por todos os versos a utilização da conjunção waw (e) conectando as

orações, além da visão narrada também seguir uma ordem, como podemos ver acima

descrito minuciosamente e se conclui com o desfecho do poder adquirido por aquele

que venceu a batalha. Introduz-se também a voz daqueles que haveriam de ‘sofrer’

durante o processo. A resposta entregue ao questionamento que finda a narrativa

38

também aponta para a coesão do texto, não se evitou ou faltou esforços para que este

texto fosse completo.

1.6.5 Estrutura

Como já citamos diversas vezes no decorrer desta análise há, pelo menos, dois

tipos de visões proféticas na Bíblia. Schünemann (2009) sumariza as afirmações de

Von Rad acerca dessas visões proféticas do Antigo Testamento pelo qual podem ser

caracterizados:

por críticas sociais, avisos de castigos, mas utilizando-se de figuras de linguagens conhecidas e do cotidiano das pessoas, em linhas gerais apresentam em mensagem que o profeta ‘ouviu’. O segundo representado pelo livro de Daniel, e porção de alguns livros como Ezequiel e Zacarias, apresenta uma riqueza de símbolos que precisam ser decifrados, e de certa, se apresenta como uma forma de ‘tratado’ de história […] Esse tipo de livros narram o que o profeta ‘viu’.. (SCHÜNEMANN, 2009, p.2-3)

São essas narrativas de visões que, vistas pelo profeta cheias de simbolismos

e linguagem abreviada, dirigem o seu relato acerca do que está por vir no “futuro”,

sempre em seu fim apontando a salvação daqueles que são os “eleitos” de Deus.

Os mistérios revelados ao profeta, vidente de YHWH trazem como modelo

citações de animais, guerras, batalhas, anjos que se relacionam com o terror,

perseguição sofridos. A partir dessa sequência de ações que vão culminar com os

clamores dos santos no v.13 propomos a seguinte estruturação que visa uma melhor

compreensão da narrativa:

1) Introdução: tempo e espaço (v.1-2)

2) Animais Fantásticos e seu Combate (v.3-9)

a) o carneiro (v.3-4)

b) o bode (v.5-8)

3) Uma nova ameaça (v.9-12)

4) Lamento e Resposta aos santos (v.13-14)

39

Nossa perícope gira em torno do duelo ocorrido entre o bode e o carneiro,

apontando para as consequências que provêm desta batalha entre essas duas

grandes figuras. Assim como também aponta para um futuro desfecho pelo qual o

vencedor desta batalha haverá de passar, que vêm como resposta ao clamor

daqueles pelos quais verão essas coisas acontecerem.

1.6.6 Análise Literária: Gênero Textual

A partir da estrutura apresentada acima notamos que nossa perícope possuí

elementos concernentes a esfera do gênero apocalíptico, assim como a própria

localização dessa perícope dentro da obra também já o indica ao colocá-la na segunda

parte do livro como parte do bloco das visões apocalípticas. Parece ser necessário

retomarmos o assunto e assim aprofundarmos as normas aos quais as narrativas

pertencentes deste gênero literário seguem.

O apocalipse engloba em si três movimentos, sendo eles: o gênero literário, o

apocalipsismo e a escatologia apocalíptica. Amaral (2007, p.79) exemplifica cada um

desses movimentos das seguintes formas: o gênero literário carrega em si uma visão

de mundo, uma escatologia apocalíptica que é formada por um conjunto de ideias e

temas que não são limitados apenas a este gênero, mas também podem aparecer em

outros, assim como em ambientes sociais motivados religiosamente. O apocalipsismo

é o que aponta para a ideologia e/ou movimento social.

Essas três terminologias, movimentos apocalípticos expressam a “perspectiva

da escatologia apocalíptica e veículos para expressar a ideologia de um movimento

apocaliptico” (AMARAL, 2007, p.83). A mensagem apocalíptica expressa/aponta para

um determinado ápice da história de um Império ou período histórico.

O surgimento do apocalipse teria ocorrido no pós-exílio, “com o retorno do povo

à Judeia em 586 a.C. e se desenvolvido nos séculos posteriores. Ela possui duas

correntes contrapostas: uma hierocrática, outra popular” (AMARAL, 2007, p.87). A

primeira surge a partir da escatologia de Ezequiel e os primeiros exilados em sua volta

para a terra, com o partido sadoquita buscando a reconstrução de sua nação através

das estruturas. A segunda possui a sua base na apocalíptica do Deutero-Isaías, onde

a reconstrução da nação é resultado da própria reconstrução do povo.

Amaral (2007, p.87), acrescenta que o primeiro provém fundamentalmente da

elite e mantêm um caráter sacerdotal-institucional, enquanto o segundo é provindo do

40

povo da terra, tendo assim uma natureza profética-popular, onde as estruturas são as

causas de todas as coisas ruins.

Os pontos comuns que podem ser encontrados tanto na profecia quanto na

apocalíptica é a

orientação de ambas para o futuro como o contexto da redenção divina e sua atividade julgadora. A ação salvífica de Deus, na escatologia apocalíptica, é concebida como uma realidade ‘para fora’ da ordem presente. A transformação da escatologia profética em escatologia apocalíptica acontece quando se renuncia à tarefa de traduzir a visão cósmica para as categorias da realidade do mundo (AMARAL, 2007, p.82).

Págan (2010, p.123-124) concorda com a referência acerca da primeira parte

de Daniel, ele os considera mais antigos do que a parte apocalíptica da obra e

categoriza a narrativa como de sabedoria. Faz-se uso deste tipo de narrativa piedosa

para destacar a importância de se manter intactos e imutáveis os valores e cultura

judaica. A segunda parte de Daniel surge fundamentalmente no período em que os

ataques helenistas são contínuos. Neste quesito Daniel adiciona em seu conteúdo um

antigo comentário bíblico no qual apresenta Deus como um revelador de mistérios,

apokalyton mysteria.

Entretanto, não há conhecimento de algum texto apocalíptico a sui generis,

anterior a metade do terceiro século. Da Silva (2015, p.67-68) afirma que muitos

eruditos sugerem que a literatura apocalíptica tenha surgido da linguagem sapiencial,

como por exemplo os livros da Sabedoria de Salomão ou o de Daniel. Os conceitos

de sabedoria e profecia são adaptados fazendo com que muitos consigam ver a

apocalíptica como uma derivação da literatura sapiencial, porém conservando fortes

implicações proféticas. Há ainda propostas que indiquem influências de outras

tradições, provindas da mitologia cananita e até mesmo do zoroastrismo. Também

chegam a apontar para uma ausência do judaísmo “primário” e apontam para uma

interligação da apocalíptica com o dualismo persa.

Schünemann (2009, p. 3) afirma que os “apocalipses são um segredo revelado

por Deus a um iniciado, a um sábio, que por sua devoção, puderam ser iniciados por

Deus e assim compreender essas mensagens”.

Notamos assim que o gênero apocalíptico necessita de um receptor da

mensagem, que não é humana, mas vem da esfera divina para a humanidade, e este

41

não pode ser uma pessoa qualquer. O escolhido como receptor deve atender aos pré-

requisitos que passam a aqueles que ouvem a sua mensagem certa credibilidade.

Quando pensamos no panorama geral apresentado no início deste capítulo,

podemos reler a primeira parte do livro de Daniel, capítulos 1-6, como uma

apresentação da iniciação de Daniel. A representação de Daniel nestes capítulos

retrata a devoção do “jovem” a Deus, ao ponto de este não temer “entregar” palavras

de exortação duras aos reis, recusar aos banquetes oferecidos pelos mesmos, ou até

mesmo desobedecer às leis/decretos destes reis. Fazendo isto Daniel se tornaria apto

para ser “promovido” ao status de receptor dos segredos divinos, e as revelações

referentes a estas mensagens misteriosas.

O próprio nome de Daniel, o Senhor/Deus é o meu juiz, não parece ter sido

escolhido aleatoriamente, mas também aparenta exercer função para corroborar a

imagem de que o personagem se encontrava apto a assumir tal função como um

receptor das mensagens de Deus. E que posteriormente virá a anunciar esses

mistérios de Deus e dar a sua interpretação que indica que a justiça chega e anunciar

a sua intervenção através dessas visões. Nos revelando um pouco da intenção que

possa estar presente nesta obra.

O gênero apocalíptico é aprimorando no decorrer dos tempos principalmente

“entre o século II a.C e II d.C, […] marcados pelo uso de pseudônimos de personagens

da história bíblica, que justamente, buscaram na vida de santidade desse herói, a

validação da mensagem” (SCHÜNEMANN, 2009, p.3). É com a imposição helenista

e início da perda da identidade judaica, que o espírito apocalíptico é desperto e

dinâmico.

Sobre o surgimento desses escritos que envolvem personagens bíblicos,

Souza (2011, p.71) acentua que a longa convivência com os Persas fez com que os

judeus adquirissem diversos elementos provindos da religião persa, tais como o

dualismo e os anjos.

Daniel não é a única obra que pertence ao gênero apocalipse. Neste contexto

perseguições e guerras revolucionárias em outras obras são influenciadas, como por

exemplo: 4 Esdras, 2 Baruque, o Apocalipse das Semanas, o Apocalipse de João.

Além de ter surgido “no fim do terceiro século 1Enoque [Enoque Etíope],

essencialmente apocalíptico” (Amaral, 2007, p. 87). Entretanto embora haja mais

obras apocalípticas pertencentes a literatura judaica, Daniel é a única canonizada.

42

A matéria prima para a apocalíptica são os fatos históricos, que são relidos sob

a ótica divina, concedendo-lhes um sentido transcendente a apenas o mundo material.

Por isso este gênero faz uso e explora um simbolismo refinado, além de utilizar

elementos “místicos” como as visões extáticas, numerologia, diálogo com seres

celestiais, angelicais.

O poder soberano de Deus é revelado, sua ação poderosa é o que pode pôr

fim aos governos e soberanos terrestres. Esta é uma forte demarcação no qual se

torna explícito a diferença entre as visões proféticas e as apocalípticas, a linguagem

profética é simples e dirigida, interpretada ao povo e reis dentro de sua história

nacional e internacional, com grande enfoque na história da salvação no seu tempo

presente.

Este é o contexto propício para o surgimento, propagação e expansão. Amaral

(2007, p. 79) acentua que são os momentos de crise, onde buscar obter respostas

para sobreviver a estas situações-limite é indispensável. Ainda acrescenta os três

aspectos no qual o judaísmo primitivo apocalíptico possuí: “um gênero literário

denominado apocalipse, uma visão de mundo chamada ‘escatologia apocalíptica’ e

um movimento social motivado religiosamente denominado ‘apocalipsismo’”

(AMARAL, 2007, p.79-80).

O conteúdo final de uma visão apocalíptica é o combustível que move a

esperança do povo oprimido, indicando para a intervenção de Deus na história

humana e aponta para uma substituição de um governo “ímpio”, cruel para um ideal.

Desta forma se destina um castigo terrível aos que são denominados como “pagãos”,

“ímpios”, enquanto os justos recebem a recompensa.

1.6.7 Comentário Exegético

I) Introdução: Tempo e Espaço (v.1-2)

¹ No ano terceiro do reinado de Belshazzar o rei, visão apareceu para mim, Daniel, depois me a que apareceu para mim em o começo. ² E vi na visão, e aconteceu em ver-me e eu [estava] em Susan, o palácio que [fica] em Elam a satrapia. E vi em a visão e eu estava junto ao rio Ulai.

43

Nos primeiros versos da nossa perícope nos deparamos com talvez uma das

maiores preocupações do redator do texto, isto é, situar o seu leitor para que este não

tenha dúvidas acerca do “período” em que esta visão foi concebida. Ela começa no

“terceiro ano do reinado de Belshazzar” (v.1), a visão se situa em Susan, na satrapia

de Elam (v.2) próximo ao rio Ulai.

Essas informações parecem querer passar credibilidade ao leitor desta visão

apocalíptica, requerendo do texto um teor “profético” futurista. O visionário recebe a

visão no “passado” sobre uma mensagem que haveria de ocorrer no futuro, para que

seus leitores estejam atentos. A expressão utilizada ‘e vi’ torna o estilo da narrativa

parecido ao de Ezequiel, que também é transportado em “espírito” para outros lugares

(Ez 8,3; 11,24, etc).

Em sua visão, Daniel observa e se encontra em Susan, o palácio que fica em

Elam, a satrapia. O rio Ulai fica próximo à cidade de Susan, uma cidade a “230 milhas

leste da Babilônia, que se tornará mais tarde uma das capitais mais ricas dos reis

persas, a sua residência preferida, onde guardavam todos os seus tesouros”

(DOUKHAN, 2000, p.122, tradução nossa). O fato do rio estar próximo a esta

localização também indica forte prosperidade, e sua importância para reis persas a

ponto de levá-los a resguardar seus tesouros neste local.

Stefanovic (2007, p.296-297) acrescenta que a cidade de Susan foi uma das

três capitais do Império Medo-Persa. E sua localização ficava a leste dos rios Tigre e

Eufrates. O nome grego do rio Ulai é Eulaeus. E ao citar o elemento água nesta visão

o autor, parece fazer uma referência ao grande mar, um dos elementos presentes na

visão anterior (Dn 7,2).

Doukhan (2000, p.122) afirma que no mundo babilônico os canais eram uma

base importante para a riqueza e a abundância agrícola. Uma inscrição de

Nabucodonosor acerca de um canal chamado Libil-khigalla (que traga abundância)

utiliza uma palavra, libil (que traz), provêm da mesma raiz que a palavra ubal (rio,

canal). Esta indicação indica também a importância de Elam para o império babilônico?

Estes versos além de buscarem localizar o leitor acerca do período em que a

narrativa teria se passado, estes mesmos indicam a profundidade de conhecimento

que o autor possui acerca da história. Não há coincidências, mas indícios que

procuram servir de base sólida para a mensagem que está sendo transmitida.

Há uma reminiscência de Ez 1 e 8, segundo Alonso Schökel e Sicre Días (2002,

p.1317), no caráter visionário da narrativa, na vizinhança do rio e na mudança de local.

44

Antes mesmo que o Império Babilônico termine, Daniel é transladado para a capital

do império persa para então logo, após a breve descrição sobre este período, ser

transportado para o final deste império.

Porém, como podemos observar no decorrer do capítulo desta pesquisa, a

datação da obra indica o contrário e parece haver um consenso entre os estudiosos

de que essas narrativas sejam provindas do final do terceiro século e início do

segundo século d.C.

Como afirma Asurmendi (2004, p.424) esta parte apocalíptica deve ter sido

escrita durante a perseguição macabaica [167-164 a.C.] e se ter findado antes da

morte do líder grego Antíoco IV Epífanes, em Elam, norte do Golfo Pérsico em 164

a.C.

II) Animais Fantásticos e o seu combate (v.3-8)

a) carneiro (v.3-4)

³ E levantei [meus] olhos e vi, e eis que um carneiro parado perante as faces do rio, e direção dele [dois] chifres. E os chifres [eram] grandes e um [era] grande [mais que] do segundo grande aquele que elevou [-se] depois. ⁴ Vi o carneiro empurraste (brutalmente) para o Ocidente e ao Norte e ao Sul/Negeb. E todos seres viventes não pararam perante faces dele e nada arrebatava da mão dele. E fez conforme [lhe] apraz e se fez grande.

Daniel após situar a sua localização, ele então levanta os seus olhos e

vislumbra um carneiro que estava parado diante do rio Ulai, e eis que ele tinha chifres

muito altos.

O carneiro era um animal comum no meio do povo pastoril, segundo Siqueira

(2005, p.20-21) o carneiro era o “animal mais desejado” para os sacrifícios (Ex 12,5)

e estes nomes carneiro e ovelha, também possuem o significado metafórico que

exaltam a afetividade entre as pessoas. O enorme apreço ao animal provém da própria

história da nação, em seu início Israel foi um povo que basicamente viveu da criação

desse animal, além de ser um símbolo de mansidão.

De Blois e Mueller (2020) acrescentam que o carneiro era um animal

considerado limpo, e também era a fonte de carne, couro, lã e chifre que podia ser

usado como uma trombeta, também é associado a força e liderança. Ocorre como

45

substantivo cerca de 156 vezes no Antigo Testamento e 7 vezes aparece para se

referir a pessoas que ocupam uma posição de liderança.

Acerca dessa afirmação Vine, Unger e Junior (2002, p.64) corroboram

acrescentando que além de ser um animal de muito valor, é também uma palavra

utilizada para retratar chefes, em sentido de figura política.

As características do carneiro em Dn 8 indicam que ele esteja sendo utilizado

no sentido metafórico indicando o cargo de uma liderança política. Ele se encontra no

mesmo local onde Daniel está, no rio Ulai (v.2-4). Aparece logo demonstrando a

expansão do seu poderio, ao se agitar em várias direções territoriais – Norte, Sul e na

direção do mar.

Os chifres também são uma figura de destaque utilizada nesta perícope, não

indicando apenas que são projeções de osso envoltas em uma pele mais dura,

normalmente curvadas e pontudas. Nas cabeças de gado, carneiros, bodes, etc. onde

se encontra duas. Mas segundo De Blois e Mueller (2020) os chifres estão

correlacionados a honra e a força, assim como o chifre erguido também simboliza o

orgulho ou confiança.

A característica que sempre acompanha quando se refere aos chifres é serem

‘grandes’ denotando que a questão por trás dessa palavra depende de seu uso no

texto. Se utilizado como adjetivo significa o “estado em que uma pessoa ou objeto tem

altura grande ou maior que a média” (DE BLOIS; MUELLER, 2020). E o seu uso

também se encontra diretamente relacionado a status.

Como um substantivo, De Blois e Mueller (2020) indicam o alto conceito que as

pessoas têm de si mesmos, ligado ao orgulho e arrogância. Enquanto, se utilizado

como um verbo no hifil, é a condição no qual o ser humano ou uma divindade torna

um objeto muito grande, maior que a estatura média. No qal indica coisas que estão

além do alcance humano, também indicando metáforas que se encontram além da

compreensão.

A narrativa do capítulo 8, repete este termo chifre 8x no decorrer da narrativa,

indicando a sua importância dentro dos acontecimentos narrados. O enfoque nas

consequências do duelo entre o bode e o carneiro especificam diversas vezes sobre

os seus chifres, que sempre são correlacionados a este adjetivo ‘grande’. Dos chifres

que o bode recebe um deles, o menor ‘crescerá demasiadamente’, e se tornará tão

grande que alcançará os céus.

46

Através dos seus chifres muito altos e que se elevam demonstram a aquele que

está recebendo a visão a sua grande força, poder, honra e alto status. Ao se

movimentar parece que o carneiro mostra a Daniel as direções pelas quais ele exerce

o seu poder. Acrescenta-se a confirmação que estes símbolos indicam, ninguém

conseguia arrebatar da sua mão, ele faz conforme lhe apraz (v.4). Não há quem tenha

coragem de desafiá-lo, tamanha a força que a sua imagem possui e demonstra o quão

potente ele é.

Este quesito também é consenso entre a maioria dos estudiosos de que o

carneiro represente a Pérsia, tendo como uma das maiores indicações a citação de

uma das capitais do império persa, “no capítulo 8, o carneiro é ligado ao Império Medo-

Persa” (LENNOX, 2017, p.274).

Observando as características que acompanham o carneiro é perceptível esta

ligação. A sua estadia na cidade de Susan, sua proximidade com o rio e os seus

grandes chifres demonstram a grandeza de seu império, assim como a sua

prosperidade econômica e domínio sobre os povos que estavam sob a posse de suas

mãos. Não há grandes indícios de revoltas durante o seu governo, o que também é

indicado na narrativa ao afirmar que ‘nada arrebatava da mão dele’ (v.4.). Conforme

se aumenta o seu chifre, isto é, seu poder, novos lugares eram alcançados através de

seu avanço, fazendo com que governos locais fossem empurrados para longe do

controle estatal ou da detenção autônoma de poder nacional.

A questão aqui levantada é: porque utilizar o carneiro, que é um animal querido

do povo judeu e que representa a mansidão neste texto onde o enfoque é a luta por

poder e conquista?

Após a queda do império babilônico, a Pérsia assumiu todos os territórios que

antes pertenciam a Babilônia e mantiveram o seu estilo de conquista, isto é, não

impuseram sobre os povos dominados a sua cultura. Diferente da Assíria que

misturava os povos para que eles perdessem a sua identidade e assim evitavam

“dores de cabeça” com possíveis rebeliões.

Assim como a Babilônia, o império persa permite que os povos conquistados

permaneçam juntos, em grupos e até mesmo possibilita a volta deles para a sua terra

(Esdras e Neemias), desde que estes lhes paguem os devidos tributos. Foi uma

dominação mais “pacífica” em comparação as outras. Talvez estas informações

possam ter influenciado o escritor na hora de identificar, correlacionar a imagem do

47

carneiro com a figura deste império. Além de haver nos escritos proféticos textos nos

quais certos líderes persas assumem uma figura messiânica (Is 44; 45).

Porém, mesmo que a submissão a outro império tenha ocorrido de forma

“pacífica” isso não significa que o povo conquistado queira permanecer “para sempre”

sob o jugo de outra nação. Para isso se mantêm na memória textos que lembrem ou

deem esperança ao povo, como demonstram Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002,

p.1317):

O império medo-persa é duplo, com a preponderância do grupo persa. Na perspectiva do autor, os persas ocupam a região oriental, por isso sua expansão se realiza em três direções apenas. Ele não vence só uma única fera, os babilônios, mas também uma série de reinos que tentavam resistir. Esse plural indica um olhar menos esquemático na presente visão. A figura do carneiro pode estar inspirada em Ez 31,17-21 e 39,18, ‘comereis a carne de heróis e beberei sangue dos príncipes da terra: eles serão os carneiros... e os bodes’. ‘Ufanando-se’ [Jr 48,26.42].

Nenhum sistema opressor será eterno, todos eles chegam ao fim mesmo que

haja certos “privilégios” não há nada melhor do que gozar da sua liberdade nacional.

b) Bode (v.5-8)

⁵ E eu estava tornar a compreender, e eis que bode veio do oeste sobre as faces de toda a terra e nada tocou na terra. E o bode [tinha] chifre, [em] visão entre [os] olhos. ⁶ E veio enquanto o carneiro, senhor, dono dos chifres que vi que permanecia perante [as] faces do rio. E correu contra ele, em exaltação [e] poder. ⁷ E vi ele que chegava ao lado próximo do carneiro. E se enfureceu contra ele, feriu o carneiro e estraçalhou os dois chifres dele, e não havia capacidade no carneiro para se levantar perante faces dele. Então o arremessou em terra e pisoteou ele, e não havia o que livrava o carneiro da mão dele. ⁸ E [o] bode tornou-se grande até muito, mas como poderoso dele foi quebrado o chifre, o grande. E subiu, [em] visão, quatro debaixo para os quatro ventos dos céus.

De repente enquanto Daniel ainda buscava compreender o que estava

acontecendo com o carneiro, do lado oeste surge um bode. Este bode percorre as

faces da terra sem sequer tocá-la, ele também possui um chifre, ou seja, também é

um detentor de poder. Ele vem direto na direção do carneiro que ainda se encontrava

próximo ao rio, correndo em grande exaltação e poder. De repente na visão surge o

48

adversário que estava a altura para duelar contra aquele que agia conforme a sua

própria vontade.

O bode é outro animal também considerado limpo e fonte de peles, pêlos,

chifres. Segundo De Blois e Mueller (2020) também pode ser usado em sacrifícios,

porém às vezes é associado a demônios, e é considerado agressivo.

No verso 5 de nossa perícope a figura do bode surge agressivamente, como

que se viesse a algum tempo com os olhos fixos em sua vítima. Embora os dicionários

indiquem que tanto o bode quanto a cabra pudessem ser criados pelos pastores juntos,

neste texto vemos que estes dois animais não são nem um pouco amigáveis. O bode

chega e inquire o território ao qual o carneiro domina, tomando-o para si. A narrativa

indica que um novo líder aparece neste cenário que se desenrola diante de Daniel.

Quando o bode alcança o carneiro, ele se enche de fúria e o fere, o golpeia,

sem dar chances para que este tente contra-atacar o seu agressor. Além de feri-lo há

ênfase na destruição dos seus dois chifres que assim denotam a sua fraqueza. Aquele

que tinha grande poder, status e força, agora se encontrava humilhado e tendo a sua

confiança arrancada de si, e o seu orgulho despedaçado. Interessante observar que

a luta envolve dois objetos de sacrifício no templo.

Os dois animais eram importantes para o ritual do sacrifício nos cultos no

templo. Ao utilizá-los para caracterizar figuras políticas estrangeiras, o autor também

parece indicar o envolvimento dessas autoridades com este local. O carneiro, a Pérsia,

permite a reconstrução e retomada dos costumes dos antepassados. Tornando-se

querido por tal permissão, enquanto o bode, isto é a Grécia, também possuíra uma

influência no templo, entretanto isto só ocorre muito posteriormente, exatamente como

a própria visão correlacionará ao aproximar a figura do pequeno chifre afetando ao

santuário e os costumes litúrgicos que o cercam.

Observe a importância do chifre nesta narrativa, após perder os seus grandes

chifres o carneiro não é mais capaz de sequer se levantar (v.7) contra o seu agressor.

Então ele é lançado em terra e o seu fim é ser pisoteado. Novamente ao ver este

acontecimento ninguém tinha capacidade de se levantar contra este novo líder

poderoso ou de resistir a sua dominação, já que nada se arrebatava das mãos do

carneiro.

O vocábulo terra (ץ ר nesta narrativa também chama a atenção, pois ela (א

designa território, nação. “É oposição ao céu; […] uma região ou lote específico” (DE

49

BLOIS; MUELLER, 2020). Ou seja, indica uma área que já está ocupada por uma tribo

ou nação.

Quando nossa narrativa tenta descrever o poder adquirido pelos líderes

animalescos ela afirma que ninguém pode arrebatar da mão deles (v.4; 7), ninguém

tem força o suficiente para se opor a estas fontes de poder que se levantaram.

A palavra mão (ו יד além de indicar uma parte do corpo humano, também pode (מ

ser utilizada para indicar poder e/ou domínio (VINE; UNGER; JUNIOR, 2002, p.177).

Siqueira (2005, p.25) corrobora esta afirmação e acrescenta que este termo pode

conotar além de poder, a força do ser humano e das suas instituições (Gn31,29; 41,35;

Jó 30,2).

O bode se torna ainda maior depois desta batalha e mui poderoso, entretanto

o seu chifre que ficava entre os olhos é quebrado, indicando uma mudança abrupta

dentro da narrativa. Ao contrário do que se espera ocorrer seguindo a lógica do que

aconteceu com o carneiro após este perder os seus dois chifres o bode em vez de

perder as suas forças, ganha novos chifres. Agora ele possui quatro novos chifres que

se expandem na direção dos quatro ventos dos céus.

Stefanovic (2007, p.299), observa que esses quatro chifres também

correspondem as quatro pontas do altar das ofertas queimadas em Ex 27,2 e 30,2,

pontas que apontavam também para as quatro direções da bússola. Indicando talvez

uma alusão ao texto de Amós 3,14.

Outro chifre então surge dentre estes quatro, um menor do que dos outros, mas

que logo cresce demasiadamente e toma o domínio das seguintes regiões: Sul/Negeb,

o Leste e à Judéia.

Segundo Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002, p.1315-1317) o capítulo

rapidamente dá um salto partindo de Alexandre o Grande para Antíoco IV Epífanes.

O material histórico que serve de pano de fundo para esta visão são os livros dos

Macabeus. O levante contra a Pérsia pode ser lido em 1Mc 1,1-3.

Lennox (2017, p.276) auxilia na datação desta batalha entre o bode e o carneiro,

que ocorreu em Isso no ano de 333 a.C, batalha em que Alexandre derrotou Dario III.

Dez anos depois Alexandre morre em 323 a.C (1Mc 1,4-9), no palácio de

Nabucodonosor, na Babilônia.

Como Alexandre o grande, não possuía herdeiros o seu reino foi dividido entre

os seus quatro generais (os quatro chifres que crescem nas quatro direções dos céus).

50

Seus generais foram: Cassandro (Grécia e Macedônia), Lisímaco (Trácia e Ásia

Menor), Seleuco (Norte da Síria, Babilônia e a Pérsia), Ptolomeu (Sul da Síria, Egito

e Judéia). Quanto ao pequeno chifre que crescerá (v.9):

Antíoco encontrava-se em Roma como refém. Ao morrer envenenado o seu irmão Seleuco IV, Antíoco consegue fugir e suplantar o herdeiro, Demétrio, com a ajuda de Eumenes de Pérgamo. Ele lutou contra o Egito, ‘em direção do sul’, e contra a Pérsia, ‘em direção leste’ [1Mc 3,31.37; 6,1-4]. A pérola, ou jóia, são Jerusalém e Judá: ‘a pérola das nações em herança’ [Jr 3,19], ‘será a pérola das nações’ [Ez 20,6]. A expressão retorna em 11,16.41 (ALONSO SCHÖKEL; SICRE DÍAZ, 2002, p.1318)

Infelizmente por causa da sua localização geográfica, a Judeia, o belo, ficou

prensada entre estes dois poderosos reinos (selêucidas e ptolomeus) e acabou

sofrendo grandes danos quando estes entravam em batalha (denominadas de guerras

sírias).

Antíoco IV Epífanes, o pequeno chifre, assumirá ao poder por volta de 175 a.C

e terminará o seu reinado em 164 a.C. Lennox (2017, p.277) afirma que essa

conotação de chifre pequeno encaixa perfeitamente ao que se sabe da personalidade

de Antíoco IV Epífanes, que era considerado como um homem bajulador, cujo

temperamento era terrível.

3) Uma nova ameaça (v.9-12)

9 E do outro deles saiu outro chifre pequeno e crescendo demasiadamente para o Sul/Negeb e para o levante e para direção à belo (Palestina). ¹0 E se tornou grande tanto quanto exército de os céus e fez cair [em] terra o exército e das estrelas e pisando-os. ¹¹ E tanto quanto oficial do exército se tornou grande e por ele tornou elevado, foi tirado a continuidade e foi lançado local de santuário seu. ¹² E exército foi dado sobre a continuidade em transgressão e arremessou [a] verdade [em] terra e agiu e fez prosperar.

Assim como aconteceu anteriormente, o bode não tem nenhum adversário, o

que facilita a este pequeno chifre a continuar crescendo. E este crescimento chega a

ser comparado com a altura ao qual o próprio exército do céu se encontra e este chifre

consegue os fazer cair em terra, tanto o exército como as estrelas, e assim como fez

com o seu antigo adversário, o bode pisa nestes também.

51

Um novo chifre surge no bode, desta vez menor do que os outros

aparentemente, porém isso não significa que ele seja fraco, pois ele crescerá

demasiadamente, logo se tornando capaz de tomar novos territórios.

Ele então se eleva até a altura do exército que não apenas conota um grupo

militar, como também pode indicar o coletivo de todos os corpos celestes que

possuem luz. Segundo De Blois e Mueller (2020), são a criação de Deus e

erroneamente eram adorados pelas pessoas, fazendo exatamente o contrário do que

se exigia a Lei de Deus. Mas em Daniel 8, possivelmente pode ter sido utilizado este

vocábulo como uma metáfora para indicar o povo de Deus. Afinal este termo também

pode ser utilizado para se referir as ‘hostes de Yhwh’ ou ‘hostes dos céus’, seres

celestiais que ficam ao redor do trono de Deus, executando a sua vontade na terra e

o louvando.

Os levantamentos acima acerca do que pode ser o exército, colaboram para

uma leitura mais próxima a do contexto ao qual este povo judaíta está inserido, isto é,

o século II a.C como veremos a seguir. A chegada deste bode desafia e chega a

pisotear no povo de Deus (v.10), mas a resposta é clara, esta humilhação não

perdurará por muito tempo (v.14).

Os céus são delimitados como uma área mais alta do que a terra. Vine, Unger,

Junior (2002, p.67), afirmam que o âmbito ao qual os corpos celestes (estrela, sol e

lua) pertencem, também podem denotar toda a criação. É também a localização da

habitação de Deus.

Como se não fosse o bastante seus atos contra o relacionamento do povo com

seu Deus, o bode se eleva até os céus e desafia o exército celeste, pisa no exército

das estrelas (v.10-11). Ele continua suas exaltações até que alcança o oficial do

exército.

Após expandir e fortificar o seu domínio, o reinado deste bode então desafia ao

exército dos céus. A liderança deste novo governo se apresenta sem qualquer

respeito, e mostra arrogância perante Deus ao se atrever chegar o lugar da sua

habitação (isto é, os céus). Ao jogar o seu exército em terra, a conotação utilizada

para descrever o povo de YHWH, este novo líder audaciosamente está contrapondo

o povo de YHWH levando-os a ficar em posição oposta aos céus, ou seja, ao seu

próprio Deus.

52

Ele consegue isso, pois se torna tão grande quanto o oficial do exército se

encontra, ou seja, quem assumiria o papel do oficial do exército de Deus que teria o

poder de ficar, ou se encontrar no local da habitação de Deus? O próprio sacerdote.

Somente se este novo líder ocupasse um cargo tão alto quanto o de um

sacerdote ele teria algum poder para cessar a continuidade.

Expressão, continuidade, que segundo Vine, Unger, Junior (2002, p.67)

normalmente vem acompanhada pela palavra pão, significando pão contínuo, está

relacionada a ações repetitivas, ou regulares. Em Ex 29,42 indicar-se-á o

sacrifício/holocausto contínuo. Oferta oferecida diariamente no período da manhã ou

a tarde. É um holocausto ininterrupto.

Os atos feitos após o bode sair em vitória de sua batalha é se tornar elevado,

tirar a continuidade e lançar/desolar o local sagrado (v.11-12). O sacrifício é um dos

elementos principais do culto judaico. É a forma pela qual o povo entra em concerto

com o seu Deus, podendo assim se redimir dos seus erros.

A interrupção dos sacrifícios faz com que o ato de purificação cesse, logo o

povo se torna impuro, e continuam lhes sendo acrescidos as suas transgressões. Sem

o rito de pureza o povo não pode se achegar a Deus. Quando o bode corta a

continuidade, ele corta a relação estreita de YHWH com o seu povo.

Este líder audacioso, contém poder suficiente para possuir o controle até

mesmo dentro da esfera religiosa a ponto de, insolentemente interromper o sacrifício

contínuo e adentrar no local sagrado. Como comentamos anteriormente, sem o

sacrifício não há a remissão de pecados, e sem remissão desses pecados, não há

santidade. Assim o tirano lança sobre a terra a verdade e têm êxito em seus feitos já

que consegue prosperar.

Corroborando com as afirmações acima, Shea (1998, p.40), analisa esta parte

da profecia de forma teológica e afirma que esta parte faz uma transição no qual é

denominada de:

‘dimensão vertical da apocalíptica’, pois ela nos leva até o santuário celestial. Ali vemos o Príncipe cumprindo o ministério diário (‘contínuo’ ou tamid) em favor de Seu povo aqui na terra. Em outras palavras. Ele aplica os benefícios de Seu sacrifício ao povo ela terra que respondeu a Seu chamado.

No início de seu governo Antíoco IV Epífanes havia permitido que o povo fruísse

de autonomia para exercer os seus costumes comumente, entretanto mais

53

posteriormente ele voltará atrás em sua palavra e impedirá que o povo siga com os

seus costumes e lhes imporá a cultura helenista.

Segundo Alonso Schökel e Sicre Díaz (2002, p.1318) estes versículos são

difíceis e assim como, afirmamos anteriormente, pode ser lido de duas formas. Este

exército celeste pode se referir, ao qual Deus é o oficial, ao mesmo passo que também

pode indicar o sumo sacerdote, como ocupante deste cargo, se este for o caso estaria

então se referindo a 1Mc 1.

Em 2Mc 9,10 Antíoco IV Epífanes será descrito como “aquele que pouco antes

parecia capaz de tocar as estrelas”, talvez o autor aqui estivesse correlacionando a

passagem de Is 14,13. Enquanto formos pela opção de que este desafiou ao sumo

sacerdote se pode compreender

a) além dos exércitos estelares, Deus tem na terra um exército seu, ‘os esquadrões de Israel’ [Ex 12,7.41.51]; o autor sacerdotal descreve com prazer a marcha pelo deserto como o avanço, quase que o desfile de um exército. De modo particular são destinados a ‘fazer o serviço’ os empregados do santuário, preenchendo dessa forma o serviço militar que os outros cumprem: é isto que desenvolve, sem temor as repetições, o livro de Números, como 4,3.23.30.35.39.43; 8,24s. b) 1Cr utiliza a expressão hebraica s´ar seba’ aplicada aos chefes dos levitas [caps. 15; 19,16-18], também aplica o termo a chefes militares [cap.27]. c) O texto passa em seguida o templo e os sacrifícios, ampliando o tema do culto. Nessa leitura, tratar-se-ia dos sacerdotes e do sumo sacerdote, Onias (ALONSO SCHÖKEL; SICRE DÍAZ, 2002, p.1318)

Uma leitura que poderia ainda colaborar com esta interpretação se encontra

em Js 5,14, no qual Deus assume o papel de líder dos exércitos de Israel. Portanto,

ao mexer com o povo judaíta e todas as suas tradições, forma de culto, o intrépido

Antíoco IV Epífanes estaria desafiando assim o próprio YHWH. Este desafio contra a

divindade judaíta poderia ser lida em 1Mc 1,54.

A verdade ao qual o v.12 faz referência talvez esteja indicando diretamente “a

verdade ou fidelidade […] verdadeira religião, os livros autênticos [alusão ao fato de

1Mc 1,54ss]; cf. Ml 2,6 […] Sl 86,11” (ALONSO SCHÖKEL; SICRE DÍAZ, 2002,

p.1319). De forma que talvez possam estes livros autênticos serem um indício ou

referência acerca da própria Torá, pois se fosse incutido ao povo judaíta a inculturação

helênica não haveria mais motivos para que estes sigam as Leis de Moisés, ou seja,

a verdade da Torá.

54

O atrevimento de Antíoco IV Epífanes é tanto que o leva a se intrometer não

apenas no âmbito social e político do povo judaíta, mas interfere até mesmo na esfera

religiosa. E obviamente ao fazer isso ele fará com que desperte no povo um

sentimento de insatisfação e descrédito nas instituições humanas. Surge aqui o marco

histórico que é propício para a leitura apocalíptica. O povo necessita de uma resposta

divina sobre o que haveria de suceder e como esta história haveria de se concluir.

IV) Lamento e resposta aos santos (v.13-14)

¹³ Então escutei um santo que falava, e disse um santo para alguém o que falava: “até quando?” a visão, a continuidade e a transgressão desolação estabelecer e santuário e exército pisoteados. ¹⁴ E disse para mim até noite, manhã duas mil e trezentos, então justificarei santuário.

Após ver a sucessão de toda essa batalha, Daniel então ouve um santo indagar

a outro ‘até quando?’ (v.13). O clamor indica a insatisfação do espectador, ele soa em

sua fala como alguém que já não consegue mais ver um fim favorável a situação ao

qual tem presenciado. Sua esperança se esvai conforme vê o êxito na crueldade do

bode ser implementado. É o olhar de alguém que já não suporta ver essa humilhação

continuar e nada ser feito a respeito disso.

O santo nesta narrativa segundo Stefanovic (2007, p.308) indica ao usar as

palavras ‘ehad-qadc que correspondem ao vocábulo qaddis do aramaico e indicam

um ser angelical, era “’um santo’ que ministra no ‘lugar santo’”. Se observado o cenário

do templo, esse santo era aquele que ministrava diretamente perante o local santo.

Stefanivic ainda acrescenta que este santo seria um dos seres pertencentes as

miríades que ficavam ao redor do trono do capítulo 7, enquanto neste capítulo seria

parte dos membros do exército do céu citados nos versos 10-12.

Collins (1999, p.85-86) corrobora neste quesito afirmando que há

interpretações acerca dos santos os correlacionando a anjos que se analisados em

contexto apocalíptico poderiam ser uma indicação aos judeus piedosos. Em outras

leituras esses santos seriam símbolos mítico-realistas contrapondo os símbolos

alegóricos do carneiro e da cabra. A justificação para tal linha de pensamento se

baseia na mudança verbal que sugere uma mudança do autor na descrição da

alegoria, ele poderia ter utilizado tal artifício como já o fez no capítulo anterior, Dn 7.

55

Ao analisar tais símbolos, em comparação aos outros utilizados nesta narrativa

que estão ligados a figuras históricas, podemos compreender que esta expressão não

esteja fazendo referência a seres angelicais, mas sim aos próprios judaítas piedosos,

assim como Collins indicou. A indagação utilizada em sua conversa aponta para uma

inquietação do espectador que aparentemente está pronto para agir se assim for

necessário ou requisitado. Portanto, se levarmos em consideração o contexto histórico

por trás desta visão, quem poderia ser esses judaítas piedosos que estavam inseridos

justamente no século II a.C.? Teríamos aí, talvez uma referência direta aos macabeus

na própria visão de Daniel 8.

A pergunta “até quando?” parece indicar que este santo aguarda apenas uma

aprovação para que realize alguma ação em resposta a todos estes atos realizados

que a seu ver devem ser retaliados. Há uma tensão na narrativa, parece que ele

espera apenas por uma palavra como “prossiga” para poder então contra-atacar este

inimigo “iníquo”.

A visão então se encerra com a resposta de que isso perduraria até que se

passassem duas mil e trezentas manhãs e noites (v.14), então aquele que responde

justificaria o local sagrado.

O santo que se encarrega de entregar a resposta ao questionamento levantado,

segundo Stefanovic (2007, p.309) faz referência a um dia simbólico, segundo o

modelo de Gênesis 1, que consiste numa tarde e manhã. Os números 3, 4, 7, 10, etc.,

geralmente são números simbólicos dentro dos textos apocalípticos. Entretanto 2.300

não seria um desses números, mas se dividindo os números procurando obter

igualmente o número de noites e manhãs, se chega a 1.150 dias, podendo assim

harmonizar os tempos de ‘meio período’ em Dn 7,25, que totalizam 1.260 dias.

Entretanto não há razão para separar as manhãs e tardes, ou noites.

Esta justificação assim como o sentido ao qual a palavra se refere também

pode ser lida de duas maneiras. Primeiro, o próprio YHWH punirá aquele que se

atreveu a desafiá-lo se achegando a sua posição, ou que tentou tomar o seu trono.

Segundo, somente o sumo sacerdote poderia fazer algo a respeito de todos estes

acontecimentos e, portanto, todos deveriam ficar atentos a sua posição ou comando.

Desta forma Pagán (2010, p.126) afirma que

Quem redatou finalmente o livro de Daniel durante esta época de crise nacional [c.164 a.C.] deveria fazer parte de um grupo de pessoas muito religiosas e espirituais [conhecidas como <<hassidim>> ou

56

piedosos] que decidiram ser fieis a Deus em meio as abominações extraordinárias relacionadas as políticas helenistas de Antíoco IV Epífanes. Este grupo de judeus leais as tradições ancestrais do povo não se animaram frente aos ataques e avanços violentos dessas políticas de dominação continua e sistemático extermínio. O livro de Daniel surge em meio a essas pessoas de fé.

Esperar no sumo sacerdote também apontava para um problema, pois a classe

sacerdotal parecia estar calçada nos pés de Antíoco IV Epífanes. Segundo Souza

(2011, p.74), se afirma que a ganância por dinheiro e poder corrompeu a classe

sacerdotal de Jerusalém. Em 174 a.C Jasão, o irmão do sumo sacerdote Onias III,

compra a função do sumo sacerdócio pagando uma grande soma de dinheiro ao rei

(2Mc 4,7-9). Em 172 a.C, Menelau fará o mesmo aumentando o lance da compra do

título sacerdotal e conseguirá tomar para si a posição (2Mc 4,23-24. Este novo sumo

sacerdote em 170 a.C será o mandante do assassinato do legítimo sacerdote, Onias

III (2Mc 4,30-35).

Este cenário dentro do âmbito religioso apenas serve para piorar o quadro de

esperança do povo. E agora o que poderia ser feito se aquele que poderia livrar o seu

próprio povo acabou se corrompendo? A corrupção fez com que o povo ficasse sem

um rei próprio, seus profetas e agora também eles haviam perdido o seu sumo

sacerdote.

A resposta para esta insegurança parece surgir no meio de uma classe que

foge para o deserto, é a família sacerdotal dos macabeus. Este grupo corajoso, parece

ler esta profecia e subentender que o tempo da remissão havia chegado. Em vez de

aguardar, eles se levantam e decidem que estava na hora de assumirem o papel do

exército celeste, e sob a liderança de um dos irmãos macabeus, buscarão remir o

local sagrado e colocar em prática novamente o holocausto contínuo.

1.7 Considerações Preliminares

A perícope de Daniel 8,1-14 é um texto pertencente ao gênero apocalíptico, no

qual é possível remontar ao período histórico vivido durante o século II a.C conhecido

como a revolta macabaica.

Para um melhor aproveitamento na pesquisa sobre esta perícope,

preocupamo-nos em trazer, na introdução deste capítulo um breve panorama geral

sobre a obra de Daniel. Desta forma foi possível compreender o ambiente da obra em

57

que este texto foi concebido por seu autor, ou introduzido na obra através do seu

redator final. Aos olhos dos leitores a existência e a colocação deste texto dentro do

segundo bloco da obra, a parte apocalíptica, faz sentido e é facilmente aceito por

quem está lendo a obra. Isto facilmente pode ser afirmado, visto que a datação da

obra aponta para um período muito posterior ao que inicialmente a narrativa indica

pertencer. Além dos detalhes específicos provindos do século II a.C. entretanto numa

rápida leitura da obra, tais detalhes, principalmente acerca dos símbolos adotados

pelo autor ao escrever as narrativas apocalípticas não são notados tão facilmente.

Ao realizarmos a análise exegética desta perícope, podemos identificar os

principais símbolos a serem analisados em nossa pesquisa, assim como podemos

aprofundar nosso conhecimento acerca daquilo que o autor, ou redator final, procurou

assinalar, chamando a atenção de seus leitores. Ao compreendermos sobre o gênero

apocalíptico e o cenário ao qual ele está propenso a se difundir, vemos que tal texto

tem um propósito, utilidade e papel a exercer dentro de um grupo que se encontra em

determinados momentos delicados dentro de uma sociedade.

A crise que assusta e leva a muitos a se desesperarem, através dos textos

apocalípticos são encorajados a buscar desenvolver e manter as suas esperanças,

por menores que sejam, vivas. Assim tais narrativas não trabalham no individual

apenas, mas no encorajamento e engajamento do grupo que tem contato com tal

literatura para que um influencie o outro.

Este estudo e grande esforço em destacar os símbolos utilizados neste gênero

possibilitaram uma melhor compreensão também no que se refere aos

acontecimentos históricos. Em suma, na narrativa há a menção de, pelo menos, três

grupos que são considerados fontes de poder: o carneiro, império persa; o bode,

Império helênico; e o exército dos céus, que aqui lemos na designação do oficial deste

exército dos céus, que pode estar simbolizando a ocupação do sumo sacerdote, e o

povo como fazendo parte do corpo deste exército. Isto sem contar a menção do

próprio rei Belshazzar no início desta perícope, que é utilizado pelo autor apenas como

um mecanismo ou recurso para datar o “acontecimento” de tal relato.

Por ora, optamos por não adentrar muito profundamente no contexto histórico

ao qual esta perícope pertence e faz referência. Mas apenas pincelar esses períodos

(persa, helênico e macabaico), visto que nos próximos capítulos nos ocuparemos em

aprofundá-los retomando a sequência aqui estudada e todos os simbolismos

58

empregados no decorrer de nossa narrativa. Dessa forma prosseguiremos em

empregá-los dentro dos indícios históricos aos quais eles pertencem.

59

2 O CONFRONTO ENTRE O CARNEIRO E O BODE: CONTEXTO HISTÓRICO

O pano de fundo da visão apresentada a Daniel é tão complexo e, carrega no

corpo do texto, minuciosos detalhes históricos. Estes detalhes, à primeira vista,

parecem ser utilizados com a simples função de compor parte de um elemento maior,

fornecendo maiores particularidades e características que compõe esses símbolos

presentes no relato. O que demonstra ao leitor de seu texto que de fato, aquele que o

escreveu possuía um enorme conhecimento histórico acerca dos acontecimentos

muito antigos que envolveram não apenas uma grande força política-histórica, mas

três delas, sendo apresentadas no relato na sequência temporal: babilônica, persa e

grega.

Para nos aprofundarmos nesses aspectos envolvidos dentro desta narrativa,

retomaremos esses símbolos e elementos citados no decorrer do capítulo anterior

com o intuito de aprofundá-los em seu sentido semântico e principalmente histórico.

2.1 Belshazzar: a Queda da Babilônia

“No ano terceiro do reinado de Belshazzar o rei...” (Dn 8,1)

Daniel data a sua visão neste capítulo como recebida durante o reinado de

Belshazzar, filho de Nabônido, o último governador do império babilônico. Não é à toa

que tal figura esteja sendo citada. Como mencionado anteriormente, o escritor de

Daniel procura passar credibilidade ao seu leitor e o faz costurando em seu relato

figuras e períodos de forma que aquele que lê consiga se localizar facilmente dentro

da linha temporal proposta.

Sendo assim, dentro de uma única visão são sinalizadas três grandes forças

políticas que estabeleceram fortes influências sobre o povo judeu. Interessantemente

elas aparecem no texto mantendo a ordem cronológica histórica. A primeira é a

Babilônia, a qual, durante o domínio de Nabucodonosor II (604-562 a.C.), levou em

cativeiro o povo de Judá em 598 a.C., durante o reinado de Jeoaquim.

Durante o período de governo de Nabucodonosor II, a Babilônia passou por

uma grande reforma, na qual trabalhos de reconstrução e embelezamento foram um

60

dos seus principais projetos realizados. Rosa (2018, p.210) detalha que “respeitada e

enaltecida, a cidade constituía o centro político de um extenso território. Na sua

arquitetura monumental, transparecia toda a grandeza e majestade do poder real”.

Dentre as obras realizadas podemos citar: a finalização das fortificações iniciadas pelo

seu antecessor, construção de fossos, jardins suspensos, abertura de canais, entre

outros.

Foi durante o seu reinado que a Babilônia alcançou o seu período de maior

glória. Na periferia, não somente babilônios, mas os estrangeiros trazidos cativos de

diversas nações, também conviviam. Ao contrário, portanto, da prática assíria em

relação aos povos conquistados, a Babilônia não misturava os povos cativos ao ponto

de eles perderem a sua própria identidade. Era permitido que os exilados

constituíssem as suas vidas, próximos entre si, e se desenvolvessem na sociedade.

Esses povos eram trazidos através das deportações, como as que ocorreram em 598

a.C. e em 587 a.C, por exemplo.

O poder no qual os reis possuíam e faziam uso, era normalmente justificado

através de uma “graça” superior, isto é, o poder de governar era conferido pelos seus

deuses, ou por um deus tutelar da nação. Na Babilônia este caso também não era

diferente dos outros povos, Marduk era o deus babilônico que não só fornecia proteção

ao império, mas era ele quem também concedia o poder de governo ao rei em

exercício. E assim, como outros costumes, o favor do deus dependia de certa

obediência dos soberanos, evitando assim que a nação mergulhasse no caos.

Acerca da celebração ao deus tutelar da Babilônia, Rosa (2018, p.211) aponta

que este culto ocorria simultaneamente em três vezes distintas, sendo elas: o culto à

cidade babilônica, um culto nacional (ao país babilônico) e por fim, mas não menos

importante o culto à realeza babilônica. Sendo o culto mais importante celebrado no

mês de nisannu e durava em torno de 12 dias, no qual um poema (enūma eliš) era

citado como um lembrete sobre a ameaça constante que a população e a monarquia

viviam, caso Marduk retirasse a sua proteção deles. Se isto acontecesse, segundo o

mito relacionado a divindade, se relata que o mundo mergulharia novamente no caos.

Portanto, a fidelidade dos reis babilônicos ao seu deus patrono era considerada

de extrema importância, pois a rejeição deles por sua divindade resultaria em

desastres que seriam sentidos não apenas pela monarquia, mas também por toda a

população de seu reino. Compreender este detalhe por trás da crença babilônica

permite que se capte o jogo de poder e a influência que o sacerdócio babilônico

61

possuía, assim como a estratégia utilizada por Ciro quando este investiu contra a

Babilônia.

A citação de Belshazzar na visão de Daniel nos leva a questionar o porquê de

tal figura ser indicada no relato. Nabônido é considerado o último rei babilônico, ele

curiosamente não é citado por Daniel em sua obra, e governou entre os anos de 556-

539 a.C., ele nomeou Belshazzar, o seu filho, como seu corregente durante o mesmo

período de seu governo, isto é, entre os anos de 556-539 a.C., e com a sua morte foi

marcado o fim do Império Neo-Babilônico.

Quando se analisa os relatos acerca do governo de Nabônido e Belshazzar, se

nota que há mais queixas do que elogios. A principal denúncia é feita pela insatisfação

do próprio sacerdócio de Marduk, deus tutelar babilônico, contra os seus monarcas.

Ao mesmo tempo que Marduk servirá de base para que Ciro, o grande, receba o apoio

desses mesmos sacerdotes quando este tomar posse da Babilônia.

Segundo o relato do cilindro de Ciro63 sobre o princípio da queda da Babilônia,

Marduk afirma ter enviado a ele, Ciro, uma ordem para que este marchasse para lá e

a tomasse, pois o próprio Marduk estaria indo a batalha junto dele. Ao fazer este tipo

de afirmação ao povo babilônico, Ciro astuciosamente tornou mais fácil a anexação

da Babilônia para o seu domínio.

O apoio religioso foi um dos principais pontos que facilitaram à tomada da

Babilônia, pois o apoio de Marduk a Ciro influenciou que as camadas mais populares

o vissem positivamente. Entretanto, segundo Rosa (2018, p.210), podemos elencar

mais alguns aspectos que também acabaram servindo para que Ciro fosse favorecido:

tudo aponta para que as reformas religiosas a cabo por Nabónido e a sua prolongada ausência da capital tenham levado a um crescente descontentamento da população. Assim, ao entrar na Babilónia, Ciro pôde aproveitar este descontentamento para se apresentar perante os seus habitantes como um verdadeiro libertador. O discurso de Ciro pretendia certamente angariar uma base de apoio local que lhe permitisse proceder a uma integração segura da Babilónia no império Persa.

63 “Descoberto em Hormuzd Rassam em Esagila, ou grandioso templo de Marduk, na Babilônia em

1879 […].Dos três textos, o Cilindro de Ciro é o único que dá informação genealógica. Neste texto, composto certamente pelo sacerdote de Marduk na Babilônia, Ciro é chamado ‘filho de Kambuziya [Cambyses], grande rei, rei de Anshan, neto de Kurash [Ciro], grande rei, rei de Anshan, bisneto de Shishpish [Teipes], grande rei, rei de Anshan” (POTT, 2005, p.13).

62

De maneira perspicaz Ciro utiliza da situação enfrentada no país a seu favor e

traça uma estratégia em cima do ponto fraco de seu inimigo.

Uma das primeiras medidas tomadas por Nabônido durante o seu governo foi

cessar as celebrações de Marduk e se ausentar da capital preferindo ir residir no oásis

de Teima. Deixando assim Belshazzar, seu filho, encarregado de coordenar a capital

do império logo no início de seu reinado. Além disso se conta que o soberano parecia

favorecer ao deus da lua Sîn, que tinha por residência a cidade de Teima, local de seu

santuário. Esta seria a justificativa do porquê o soberano se retirou para este local,

com o intuito de reestruturar o lugar da morada do deus da lua. Essa preferência teria

sido induzida pela mãe do soberano que era devota ao deus Sîn.

Acerca desta decisão tomada por Nabônido, Rosa (2018, p.212) explana que

ao abandonar o culto a Marduk, o próprio Nabônido estava abrindo mão de duas

esferas em seu governo. Na esfera cosmológica o renovo de sua aliança com o deus

tutelar da nação, que significava proteção e benção nas colheitas, o que causou

grande preocupação na população. Durante a celebração se traziam os deuses de

diferentes locais do reino, como que para que assim pudessem renovar as suas

alianças para com o deus-rei. Na esfera política essa presença de outras divindades

assegurava a submissão de outras regiões à Babilônia.

Ao tomar tal decisão, talvez Nabônido e Belshazzar não tenham levado em

consideração o que elas poderiam acarretar ao seu governo como, por exemplo, o

enfraquecimento de suas alianças políticas, insatisfação popular frente as

inseguranças, resultado do abandono a Marduk. Também a forma pela qual os

sacerdotes do deus tutelar agiriam com base no desfavor do rei em relação as

celebrações, etc.

Ao levar em consideração esta breve citação de Daniel, sobre o governo

“vigente”, esse governo de Belshazzar que foi em síntese marcado por insatisfação e

desejo para que seus políticos tivessem ao menos mantido os compromissos para

com seu povo e classe sacerdotal. Como veremos mais adiante o que refletirá este

descontentamento da classe sacerdotal, quando abordarmos o surgimento do

carneiro.

2.2 Susan, em Elam; o Berço do Carneiro

63

“E vi na visão, e aconteceu em ver-me e eu [estava] em Susan, o palácio que [fica] em Elam a satrapia. E vi na visão e eu estava junto ao rio Ulai” (Dn 8,2)

A citação de um local específico para o recebimento de tal visão também é um

tanto quanto curiosa, por isso nos atentaremos para Susan a província de Elam, mais

especificamente a localidade próxima ao rio Ulai. Mas qual a importância por citar tal

cidade neste relato e qual o peso que ela poderia exercer dentro de nossa narrativa?

Como citado no capítulo anterior, a localização de Susan e o rio Ulai servem

para dois propósitos, indicar o conhecimento do autor sobre aquilo que está relatando

e localizar o seu leitor acerca da localização onde ocorreu tais acontecimentos. Não

são afirmações do acaso ou de seu próprio imaginário. Assim como também aponta

para a importância do local, principalmente para a próxima figura que será introduzida

na narrativa.

Burgan (2010, p.20) afirma que das tribos que já existiam, os elamitas eram

considerados os mais importantes dentre eles, além de ser um povo antigo, eles já

possuíam a sua própria escrita cuneiforme. Não apenas isso, mas também

dominavam certas habilidades metalúrgicas, com olaria e até mesmo na área de

arquitetura.

Como podemos observar Elam já era um local bem desenvolvido, e assim como

os sumérios já faziam, em Elam também se escrevia em tábuas de argila. Quando

observamos a história persa podemos observar a presença de Elam em vários

aspectos como, por exemplo, a língua elamita sendo um dos idiomas oficiais do

Estado. Logo, se percebe que este local, sua cultura e história eram considerados

importantes para os persas.

Neste sentido, Pott (2005, p.11) aponta que a pedra utilizada para a construção

de uma coluna no palácio de Dário veio de um vilarejo elamita chamado Hapiradush

ou Abiradu, o que ilustra outra contribuição elamita. Os elamitas também possuíam

uma técnica de contagem, textos de fortificação e tesouraria, alguns destes

documentos foram recuperados em Persépolis, e assim revelam mais evidências de

um legado elamita dentro do procedimento administrativo persa.

As áreas consideradas mais importantes do território elamita eram Anshan

(localizado no lado oriental de Elam) e Susa (localizada no lado ocidental). Susan era

uma “terra ao sul da Mesopotâmia que se estendia pelas montanhas Zagros da Pérsia

até o Leste” (FREEMAN, 2016, p.259).

64

Anshan e as cidades vizinhas foram governadas pela dinastia persa fundada

por Teipes (635-610 a.C.). “Teipes era filho de Arquemenes [data desconhecida],

dando o nome da dinastia – os arquemênedes. O neto de Teipes, Cambises I [585-

559 b.c.e.] concordou com uma aliança com a Média […]. Por volta de 575 b.c.e.,

Cambises teve um filho, Ciro” (BURGAN, 2010, p.23). Ressalta-se aqui que as

histórias acerca do nascimento de Ciro e a sua infância possuem muitas discordâncias

e versões diferenciadas.

Ciro assumirá o trono de Anshan por volta de 559 a.C., a Pérsia neste período

ainda não passava de dois reinos pequenos, até que Ciro através de campanhas

militares une a Pérsia e procura prosseguir dando início a sua busca por conquistar

mais locais e assim subjugá-los ao seu domínio.

Vemos, portanto, que a escolha deste local, assim como a sua citação de

Belshazzar estão devidamente correlacionados no desenvolvimento histórico narrado

dentro da visão tida por Daniel. Como afirma Vaux e M.A. (1893, p.25-26) antes de se

denominar rei da Pérsia, Ciro já se autodenominava como rei de Anshan, distrito de

Elam. Segundo o próprio, ele provinha de uma linhagem que liderava a região,

entretanto Ciro não se tornou o rei da Pérsia até os anos de 550 e 547 a.C., sendo

que a primeira vez na qual ele se intitulou como ‘rei da Pérsia’ ocorreu somente em

547 a.C. Waters (2014, p.21) corrobora afirmando que os elamitas dominaram aquela

área desde o quarto milênio a.C. até que os medos e persas se estabeleceram na

região.

Não é à toa que o carneiro, no verso 3, se encontre diante das faces do rio, o

local do surgimento da figura poderosa vem literalmente do berço desta nação. Não é

um cenário desconhecido para o carneiro, ele sabe onde tem a água para beber e o

conforto para se estabelecer. Como citado anteriormente, não se surpreende o fato

de Susan ser uma das residências favoritas dos soberanos persas ou o local onde

seriam depositados os seus tesouros.

Anshan se localizava a aproximadamente 30 milhas a leste de Persépolis, uma

das grandes capitais da Pérsia. Enquanto,

Susan ficava na extremidade oriental da planície de montanha da Babilônia e, como consequência, sua história estava entrelaçada com seus vizinhos da Mesopotâmia desde o seu início. Sua importância persistiu no período persa, quando se tornou uma das capitais persas (WATERS, 2014, p.22)

65

Os reis elamitas se autodenominavam como ‘rei de Anshan e Susan’. Sendo

que o período mais conhecido da história elamita se passa, por volta de 750-650 a.C.

no qual documentos históricos apontam a Assíria como fonte originária de Elam,

embora esta seja considerada uma grande rival de Elam.

O próprio rei Dário, anos após a morte do rei Ciro, ao retornar de Sadis tem

como seu destino Susan, onde ele ordena a construção de um grande palácio na

tentativa de mostrar a sua soberania e poder a todos. Ora Susan havia sido destruída

por volta de 640 a.C. quando os assírios invadiram Elam. Mesmo após Ciro ter

conquistado Susan, a cidade permaneceu sem sofrer mudanças durante o seu

governo, permanecendo na mesma configuração do período elamita. Anos mais tarde,

quando Dário I assumisse o governo persa, ele se encarregaria de melhorar Susan,

construindo uma residência para si. Vaux e M.A. (1893, p.47) afirmam que Dário

aparentemente permaneceu em Susan por muitos anos. Wiesehöfer (2001, p.26)

detalha sobre a construção de Dário, em Susan da seguinte forma

Dário I construiu um palácio sobre um terraço artificial […]. Com suas colunas no hall principal, esta servia como modelo para Persépolis. Outros vestígios aquemênidas neste local, que já havia sido habitado em tempos pré-históricos, são uma cidadela na acrópole, o bairro dos ‘artesãos’ a leste da ‘cidade real’ e o palácio de Artaxerxes II na margem oeste do Shaur, que passa por Susan. Particularmente bem conhecidos são os relevos em azulejos de Susan que representam leões, criaturas compostas e guardas.

O interesse do rei Dário por Elam fica mais evidente quando este se interessa

por desenvolvê-la numa cidade marítima. Para assegurar a autoridade marítima no

golfo persa, Wiesehöfer (2001, p.78) afirma que, Dário procuraria conectar Susan ao

mar através do auxílio de deportados, dentre eles gregos e cários, aqueles que

especialmente possuíam alguma experiência marítima no sul da Babilônia e Elam.

Não apenas isso, mas Burgan (2010, p.36) corrobora ao apontar que ele até mesmo

melhorou a estrada real que corria entre Sardis e Lídia, fazendo ainda diversas outras

estradas buscando conectar as cidades-chave do império.

A localização e o interesse por Susan acabaram favorecendo esta região, que

acabou se tornando num ponto importante de “canal de comércio entre o Oriente e a

Mesopotâmia para bens, tais como madeira e minérios” (FREEMAN, 2016, p.259).

Entretanto mesmo aparentemente gostando de ficar em Elam, Dário foi

confrontado com uma revolta elamita em 520 a.C.. Acerca disto Holland (2005, p.56)

66

descreve que o próprio sogro de Dário conduziu o exército persa à Elam e aniquilou a

revolta de forma peremptória, quase desdenhosa para aqueles que ousaram se voltar

contra o carneiro.

Exatamente como descrito na visão de Daniel “nada arrebatava da mão dele”

(Dn 8,4), nenhum ser vivente, isto é, povo conquistado tinha poder suficiente para

escapar das suas mãos. E este fazia conforme lhe aprazia, transformando a cidade,

ligando localidades através de estradas, entre outros.

Resumidamente o interesse por Susan, como vimos até aqui, pelos persas

ocorre pelas seguintes razões: uma forte ligação com a origem de seu povo, como

indica a autodenominação de Ciro, de forma que simbolizou uma unificação entre o

seu passado e o presente; a localização de Susan, próximo a Babilônia e outras tribos

conquistadas, além de ficar próximo as fronteiras com Pérsis; não era um local de

extrema importância por si só, mas através da sujeição as autoridades, representando

parte de uma organização política maior.

Entretanto, sendo um local que era considerado como de extrema importância,

Briant (2005, p. 166) lembra que mesmo com todos estes detalhes apontando para a

importância de Susan, ela ainda era uma cidade sem fortificações. As muralhas que

Dário havia reconstruído na cidade, não eram nem mesmo apropriadas o suficiente

para se defender contra o ataque de os inimigos.

Susan era o local para onde os presentes dados pelos líderes subjugados eram

trazidos, com o intuito de serem entregues a Dário. Lá eles eram levados para serem

contados e listados no inventário do tesouro. Acerca do palácio construído em Susan,

se acredita que não havia muitos residentes permanentes, assim como se supõem

que também tenha sido a realidade do palácio em Persépolis. A seguinte imagem

ilustra os portões do palácio de Dario em Susan:

Imagem 1: Portões do palácio de Susan

67

(BRIANT, 2005, p.278)

No período de Dario I, soldados babilônicos tinham permissão para irem até

Elam para prestarem serviço militar por um período específico. Após o período pré-

determinado eles deveriam voltar para o seu local de origem.

A navegação da Babilônia e Elam não estavam restritos apenas aos grandes

rios Tigre e Eufrates, Briant (2005, p.381) atesta que os afluentes desses rios também

possibilitaram a conexão com diversos canais facilitando especialmente o comércio

entre os dois centros aquemênidas, Babilônia e Elam (Susan). Informações de frotas

macedônias em 324 a.C., atestam também para esse uso de navegação, Nearchus e

Alexandre estavam indo se encontrar em Susan. Um piloto persa guiou Nearchus de

Pasitigris até Ahwaz, depois de Ulai até Susan. No ano seguinte, Alexandre deixou

Susan descendo o rio Ulai até chegar ao rio Tigre.

Mais do que apenas apontar para o berço persa, a citação de Daniel, estaria

indicando a utilidade do local tanto no período persa, quanto no período grego?

Percebe-se que a localização, Susan próximo ao rio Ulai, indica o multiuso da

localidade, atendendo a diversos propósitos como os elencados no decorrer do

capítulo.

No período grego, Briant (2005, p.257-258), afirma que segundo Chares,

Alexandre, o Grande fez refeições com seus convidados em uma tenda suntuosa em

Susan.

68

Além de fazer esta grande festa em Susan, Alexandre, o Grande, chegou até

mesmo a realizar diversos casamentos entre seus homens e mulheres persas. Sobre

isso detalha Kaefer (2016, p.55), que foram efetuados cerca de 10 mil casamentos em

Susan, sendo que dentre eles, até mesmo o próprio Alexandre teria se casado com

as filhas de Artaxerxes III e Dario. Esta prática teria sido uma estratégia utilizada para

que houvesse uma fusão entre as culturas oriental e ocidental. Buscando assim

facilitar a aceitação da cultura helênica aos conquistados, outro artifício utilizado foi a

iniciação desses povos na vida comercial grega.

Nota-se, portanto, que a citação do local, Susan, a indicação do rio Ulai em

Elam é conhecido do autor e destacado, embora tenha sido numa breve citação, como

um local importante. Não apenas por estar correlacionado com o surgimento do povo

que veio a dominar Judá e todo o território babilônico, mas também como o local onde

ficava guardado o tesouro persa e indicando o meio de transporte que facilitou o

comércio e deslocamento naquela região.

Este também era o local donde adveio conhecimento para a contagem

administrativa do império persa e, portanto, era considerado um polo importante para

os seus sucessores. O rio como mencionado acima além de banhar e tornar os

arredores propícios para o cultivo, posteriormente veio a ser utilizado como rota de

embarcações. Assim como o local Susan permanece intocado na visão, se nota que

no decorrer dos anos, mesmo após a derrota dos persas pelos macedônios, Susan

continuou intacta, isto é, sem sofrer grandes danos por seus invasores.

2.3 O Carneiro: o Início de um Novo Império

“E levantei [meus] olhos e vi, e eis que um carneiro parado perante as faces do rio, e direção dele [dois] chifres…” (Dn 8,3)

É neste exato momento de ausência do soberano da Babilônia que o cenário

político começa a passar por algumas mudanças. A primeira que podemos apontar é

o começo do levante do carneiro em 550 a.C. através do comando de Ciro, o grande,

com seus primeiros movimentos e logo os Medos são derrotados. O saque da

conquista contra a Média em Ecbatana foi levado para Anshan. Esta vitória gera

grande influência ao imperador persa para que ele prossiga em sua busca por novas

conquistas, expandindo assim o seu poder.

69

Como afirmado previamente o carneiro surge e possui dois chifres, sinônimos

de poder, status e força. Por conseguinte, o carneiro se move nas direções pelas quais

o império persa se expande, assim como o comportamento do carneiro combina com

o dos soberanos persas. Nada escapa de suas mãos.

Em 547 a.C., Ciro anexa as suas conquistas a tomada de Urartu, e entre 545 e

542 a.C. é a vez de Lídia entrar na lista de conquistas. Prosseguiu confrontando todas

as cidades gregas que se localizavam no litoral, e no ano de 540 a.C. todos estes

territórios também já podiam ser contados como parte da Pérsia. Posteriormente

anexou ao seu território a Alta Mesopotâmia, parte da Ásia Menor chegando até o mar

Egeu. Assim o carneiro começou com o seu movimento de dar chifradas para o oeste,

seguindo para o norte.

De fato, essas movimentações persas não passaram desapercebidas pelo

soberano babilônio que regressa a capital após tais acontecimentos. Rosa (2018,

p.216) acrescenta que a traição de alguns aliados contribuiu também para que o seu

regresso ocorresse. Curiosamente esse seu retorno ocorre as vésperas da queda do

império babilônico. Nesse sentindo Kriwaczek (2018, p.378) afirma que um sacerdote

do templo de Marduk encarregado de escrever as crônicas oficiais do reino de

Nabônido, descreve o acontecimento como um ato pacífico atendendo ao povo que

esperava ansiosamente por uma mudança frente ao governo babilônico.

Não só a classe sacerdotal estava desgostosa com as reformas de Nabônido,

como do mesmo modo os cativos que expressavam do seu modo uma gradual

aceitação a Ciro. Burgan (2010, p.27) afirma que até mesmo um general babilônio,

chamado Ugbaru (538 a.C.) também havia se comprometido a dar o seu apoio a Ciro.

A política exercida por Ciro é marcada pelo seu respeito aos diferentes

costumes religiosos segundo cada cultura e povo em sua diversidade. Ele foi um líder

tolerante e isto lhe trouxe como resultado êxito na conquista do apoio popular,

principalmente da classe sacerdotal babilônica. Posteriormente o rei Xerxes

similarmente se destacará por seguir esta linha política tolerante de governo.

A primeira tentativa da tomada da Babilônia ocorreu numa batalha entre os neo-

babilônios e as tropas de Ciro próximo ao rio Tigre, onde o confronto revelou uma

força de resistência babilônica. Briant (2005, p.42) aponta que o acontecimento

ocorreu provavelmente pouco tempo antes ou depois da conquista de Susan por Ciro,

assegurando dessa forma que o reinado neo-elamita desaparecesse para sempre.

70

Embora Ciro tenha conquistado a capital babilônica sem grandes atos de

violências, Kriwaczek (2018, p.379-380) afirma que isso só foi possível, pois Ciro,

havia se dedicado a travar uma guerra “psicológica” iniciando-a tempos antes de sua

invasão física na Babilônia. Para que fosse bem-sucedido Ciro teria plantado a ideia

aos vizinhos da Babilônia de que o soberano babilônio representava uma ameaça não

só a eles, como também a todo o seu povo que era oprimido por ele e suas ações.

Percebe-se aqui onde Ciro busca aplicar a estratégia teológica citada

anteriormente, ele como sendo o invasor surge como o “enviado” de Marduk para

reestabelecer a vida do caos causado pelos atos irresponsáveis de Nabônido. A

melhor maneira de “ajudá-los” então seria depondo o rei em exercício, assim

restabelecendo a justiça e liberdade ao reino sob um novo domínio, onde ele iria

liderá-los.

Enviaram cartas sigilosas à comissão que administrava o Esagila e a seu xatamu, ou chefe, assegurando-lhes a firme intenção de Ciro de apoiar o culto a Marduk e a todas as outras divindades sagradas nas cidades da Mesopotâmia. Aos líderes dos povos [...], confirmaram que era intenção de Ciro permitir seu retorno. Aos que integravam a corte da cidade chamada Neardeia e serviam aos filhos de Jeoiaquim, último rei legítimo de Judá, e ao grande agitador e propagandista religioso que viria a ser conhecido pela posteridade como Segundo Isaías, eles prometeram a vingança de Ciro contra a cidade que havia humilhado Jerusalém. Foram despachados agentes para frequentar as adegas e tabernas e incitar os cidadãos insatisfeitos a abandonar sua lealdade a Nabonido e acolherem um novo governante, que restabeleceria todas as antigas tradições tão negligenciadas pelo usurpador do trono do imortal Nabucodonosor e que a todos trataria com misericórdia e justiça (KRIWACZEK, 2018, p.380)

A imagem apresentada, segundo as propagandas de Ciro não representava

ameaça alguma a aqueles que faziam parte da elite babilônica. E obviamente

trouxeram vantagens ao invasor que não encontrou resistência deste grupo ao

assumir o poder. O líder persa se apodera da Babilônia em 538 a.C. anexando-a como

mais uma vitória digna de entrar para a sua lista de conquistas.

Frente a este grande crescimento de poder, a origem da pequena tribo

subordinada a Média, com certeza havia ficado para trás. Como indicado na visão o

segundo chifre, que havia surgido depois, cresce mais do que o primeiro. Venâncio e

Vieira (2011, p.137) argumentam que o maior oponente enfrentado pelos persas, no

71

entanto, não havia sido a Babilônia, mas sim a própria Média liderada por Astíages,

no início do século VI a.C.

Ciro, o persa, filho de Cambises, havia chegado ao trono de Anshan, terra persa-elamita submetida ao poderio de Astíages, por volta de 557, por ocasião da morte de seu pai. Já em 553 se tinham notícias da batalha empreendida contra a Média, que, segundo as fontes histórias, teve êxito a partir de uma desestabilidade interna no estado medo, da qual Ciro se aproveitou. Ciro, então tomou a cidade de Ecbátana, levou todas as suas riquezas para Anshan e destronou Astíages, tomando o vasto território medo (VENÂNCIO; VIEIRA, 2011, p.137)

A partir de então as conquistas na região do Oriente Próximo foram ficando

cada vez mais recorrentes. Como relatado em Daniel 8,4, o carneiro prosseguiu em

dar chifradas nas direções oeste, norte e sul. Nenhum outro podia conter o avanço do

carneiro, a Pérsia não apenas conseguia anexar novos territórios com grande

facilidade, como também conseguia suprimir as revoltas que iam surgindo.

Corroboram Venâncio e Vieira (2011, p.146):

A Pérsia constituiu-se como o primeiro grande império que a história mundial conheceu. Sua extensão pode ser estimada em mais de cinco mil quilômetros de leste a oeste, e entre mil e três mil quilômetros de norte a sul. Cerca de 30% da população mundial habitava regiões de domínio persa. O auge de sua hegemonia se deu sob o reinado de Ciro, o Grande, rei tolerante, de uma visão política expansionista sem precedentes, que soube fazer-se aclamado pelos povos que conquistava.

Um exemplo disso é citado por Burgan (2010, p.28) a respeito de Ciro não fazer

grandes mudanças na forma pela qual a Babilônia já estava acostumada a correr os

seus negócios. Ele manteve o grupo de líderes de governo permitindo-os a continuar

a reger seus domínios, tendo como única diferença que agora o faziam sob o controle

de uma satrapia persa. Ciro concedia certa liberdade aos conquistados ao passo que

eles se submetiam as leis persas.

No primeiro ano do reinado de Ciro, após a tomada da Babilônia, foi expedido

o seu decreto para que o templo de Jerusalém fosse reconstruído e não apenas isso,

mas também devolveu os tesouros que haviam sido saqueados por Nabucodonosor.

Enquanto outros povos puderam carregar as suas divindades de volta para os seus

lares, os judaítas levaram consigo “os vasos sagrados do templo […] em seu retorno

a Jerusalém” (VAUX; M. A., 1893, p.27).

72

O relato é descrito no livro de Esdras (1,2-4; 6,3-5). “O mesmo decreto foi

encontrado nos arquivos de Ecbátana num pergaminho escrito em aramaico […]. Com

o decreto, estava consolidado o fim do exílio e a teórica liberdade de Israel”

(VENÂNCIO; VIEIRA, 2011, p.144). Ter os judaítas como aliados de Ciro trouxe

benefícios para os persas, não apenas com a coleta de tributos, mas também como

um ponto estratégico-militar para que pudessem atacar ao Egito, do mesmo modo

como poderiam se proteger contra o ataque egípcio.

Mas voltando a Babilônia, Ciro fez algo que, embora os soberanos da Babilônia

tivessem possuído diversas nacionalidades, nunca pensaram em fazer ou

simplesmente não tiveram a coragem de fazê-lo. A mudança de capital da Babilônia,

provavelmente não havia passado pela cabeça de seus habitantes. Entretanto, a

escolha de situar a capital do império persa se baseou nas terras natais de seus

monarcas, sendo elas: Pasárgada, Ecbatana, Persérpolis, Susan, a cidade mais

importante de um grande inimigo da Mesopotâmia, isto é, Elam. A exclusão assim da

Babilônia não demonstrou que tenha afetado a forma de governo e política no local,

visto que não há registros de “protestos” contra esta decisão.

Acerca da escrita persa Kriwaczek (2018, p.382) afirma que os persas

adotaram uma grafia cuneiforme, já que eles não possuíam uma escrita própria. Então

para fins formais e acadêmicos utilizavam do acádio babilônico, enquanto para a

diplomacia e comércio utilizavam o aramaico mesopotâmico.

Não nos estenderemos muito a discorrer sobre o império persa, visto que o

enfoque de nossa pesquisa é outro, porém não seria correto pular anos de história e

ignorar a análise de tais símbolos contidos em nossa visão por tal justificativa. Por

isso apresentaremos uma breve tabela com os governantes persas contendo o

período de seu reinado e as suas principais conquistas:

Tabela 1 – Reis persas e suas principais conquistas

Principais Reis Persas Períodos Principais Conquistas

Ciro, o Grande -529 a.C. - Derrotou Média

- Conquistou: Babilônia,

Lídia, Alta Mesopotâmia,

parte da Ásia Menor

- Permitiu os judaítas a

retornarem para Jerusalém

e reconstruir o templo

73

Cambises 530-522 a.C. - Batalhou contra o Egito

Bardes 522 a.C. - Mago que se passou pelo

irmão morto de Cambises

para assumir o trono

Dário 521-486 a.C. - Desmascarou o falso

Bardes

- Passou 6 anos tentando

conter rebeliões por todo o

império, dentre elas

podemos listar: Babilônia,

Assíria e Egito

- Dividiu o domínio do

império em satrapias

- Construiu um grande

palácio em Susa

- Construiu a capital

Persépolis

Xerxes 486-466/5 a.C.

Artaxerxes I (longânimo) 465-424 a.C. - Conteve a revolta de

Bactrians e Inarus e

Amyrtaeus

Dário II Nothus 425/4-404 a.C. - Marcado por rebeliões,

assassinatos e intrigas

Artaxerxes II Mnemon 405-360/59 a.C. - Parisates tentou

substituí-lo no trono por

seu filho Ciro, o jovem

Ciro o jovem - Falhou em sua

conspiração

- Governou a Ásia

Ocidental, com ajuda de

gregos mercenários.

Artaxerxes III (Ochus) 358-338 a.C. - Marcado por atrocidades

- Restaurou medidas

militares da monarquia

persa

Darios Codomannus 336-330 a.C. - Último monarca persa

Fonte: elaborada pela autora com base em BRIANT, 2005; BURGAN, 2010; HOLLAND, 2005; VAUX,

M.A., 1893; WATERS, 2014; WIESEHÖFER, 2001.

2.4 O Bode e o Grande Chifre: o Surgimento de uma Nova Era

74

“E eu estava tornar a compreender, e eis que bode veio do oeste sobre as faces de toda a terra e nada tocou na terra. E o bode [tinha] chifre, [em] visão entre os olhos” (Dn 8,5)

Durante o período em que Dario Codomannus estava no poder da Pérsia, surge

na Macedônia um grande general, filho do imperador Felipe II com Olímpia, filha de

Neoptolemo I do Epiro, Alexandre III Magno, mais conhecido como Alexandre, o

Grande.

Sobre a concepção e nascimento de Alexandre, Kaefer (2016, p.51) atesta que

sua mãe era uma mulher devota a Amon-Rá, e prestava-lhe cultos em companhia das

serpentes sagradas. Ela conheceu Felipe II em 358 a.C. quando ele visitou a ilha de

Samostrácia, casaram-se e então tiveram Alexandre. Entretanto, Olímpia acreditava

piamente que Alexandre fosse na verdade, filho de Zeus-Amon.

Alexandre assumiu o trono grego no ano de 336 a.C., tendo apenas 20 anos

de idade, quando o seu pai foi assassinado. Segundo Carlan e Faria (2011, p. 45),

Alexandre buscou castigar severamente os envolvidos neste crime. Seu pai havia sido

um líder que tinha mudado o mundo grego, quando buscou expandir o seu domínio

conquistando a hegemonia política das cidades-estados da Grécia clássica64. Felipe

II visionava não apenas a vitória sobre os gregos, mas livrar os seus compatriotas que

estavam sob o domínio persa, como por exemplo, as cidades gregas localizadas na

Ásia Menor, lutando dentro do próprio território persa.

O que destacou Alexandre na história não foram apenas as suas conquistas,

ou porque ele teve como o seu tutor na juventude Aristóteles, mas sim as suas

estratégias táticas e a rapidez na qual ele e o seu exército conseguia cruzar grandes

territórios. Destaca-se que o jovem imperador, assim como a sua mãe, acreditava que

possuía uma origem divina.

Ao subir ao trono, Alexandre teve de rapidamente consolidar o seu poder sobre

a elite macedônia, enquanto extinguia rapidamente revoltas que surgiram nos

territórios ao norte e sul no intuito de se tornarem independentes. Destaca-se Tebas,

uma cidade que ousou se rebelar contra o novo jovem líder e foi totalmente aniquilada

por Alexandre. Foram poupados apenas os templos e a casa de Píndaro, enquanto os

seus habitantes foram escravizados servindo de exemplo para as outras cidades que

logo se submeteram a liderança de Alexandre.

64 Kaefer (2016, p.50) observa que essa hegemonia, embora tenha sido alcançada por Felipe II teria

sido concretizada de fato quando Alexandre assumiu o poder.

75

O bode surge vindo do Oeste, local de origem do líder representado pelo

grande chifre, isto é, Alexandre, o Grande.

2.5 O Inevitável Encontro Entre o Bode e o Carneiro

“E veio enquanto o carneiro, senhor, dono dos chifres que vi que permanecia perante [as] faces do rio. E correu contra ele, em exaltação [e] poder. E vi ele que chegava ao lado próximo do carneiro. E se enfureceu contra ele, feriu o carneiro” (Dn 8,6-7a)

Alexandre e seu exército partiram de Helesponto indo para a Ásia Menor, vindo

do Oeste, onde ele venceu em batalhas ágeis os persas tanto em alto-mar quanto em

terra. Essa locomoção rápida rumo ao território pertencente ao império persa, descrita

no v. 6 “em exaltação e poder”, tinha como base cumprir as palavras do antecessor a

Alexandre que sustentava a ideia de “se vingar” dos persas que haviam humilhado os

gregos quando tomaram alguns de seus territórios.

Assim como Ciro, Alexandre se apresentou a cada um dos povos que ia

conquistando como aquele que os livraria da opressão persa. Entretanto a “mudança”

de um governo (persa) para o outro (grego) era apenas relacionado ao imposto pago

que mudou de nomenclatura para contribuição, pois o não pagamento desta

contribuição infligia uma situação que obrigava ao povoado “liberto” a mudar de

opinião.

A primeira grande vitória de Alexandre sobre o império persa ocorreu em 334

a.C., no rio Granico, seguiram-se outras batalhas pela costa oriental do mar

mediterrâneo, até que encontraram o exército de Dario Codomannus, na batalha de

Issos no final do ano de 333 a.C.. Neste confronto de Issos, Alexandre não apenas

venceu os persas como levou cativa a mãe, a esposa e as filhas de Dario enquanto

ele fugiu para o leste. Conforme Alexandre investia cada vez mais contra Dario, mais

este se “escondia”, enquanto Alexandre obtinha conquistas cada vez maiores. Esta

batalha poderia facilmente ilustrar o primeiro grande golpe dado pelo bode ao carneiro

que não foi capaz de revidar ao ataque sofrido.

Apesar de a tremenda derrota sofrida por Dario, Cawkwell (2005, p.199) afirma

que se fosse feito uma avaliação sobre o episódio levantam-se alguns

questionamentos acerca da vantagem que Dario deu a Alexandre, seja ela

considerada como sorte ou uma administração mais efetiva. Cawkwell afirma que o

76

exército persa possuía tanto talento quanto o grego, mas quando Dario foge todas as

probabilidades da batalha acabam mudando. Corrobora neste argumento Kaefer

(2016, p.52) apontando que ao levar a corte real junto a batalha com parte do tesouro

real, se indicava que o monarca persa acreditava que a batalha seria favorável para

si.

Devido ao extenso tamanho do domínio persa, Alexandre decide criar alianças

com os sátrapas locais e dominar o Egito, um ponto considerado importante

estrategicamente. E foi assim que Alexandre fez, facilmente conseguiu convencer o

sátrapa local e foi recebido como um libertador pelos egípcios. Como de costume

Alexandre, ainda no Egito, foi ao santuário de Amon, interpretado como a versão local

de Zeus e lá foi saudado como sendo o próprio filho da divindade. Após a cerimônia

Alexandre funda a pólis de Alexandria, intencionalmente este seria um local de

administração que viria a agregar macedônios e gregos naquela região.

Após esta conquista Alexandre segue para seu próximo alvo a ser conquistado,

era a vez de se investir contra a Babilônia. Em Gaugamela o exército persa se

concentra próximo ao rio Tigre esperando pelo confronto contra Alexandre e todo o

seu exército. Embora os persas estivessem em maior número, a estratégia e a falange

de Alexandre foram o suficiente para que Dario fosse forçado a fugir novamente.

Dessa forma o chifre do carneiro começa a ser despedaçado pelo bode de forma que

tal ato só vai se tornando cada vez mais consolidado conforme o avanço de Alexandre

e o seu exército dentro das terras persas.

Dessa forma a tomada da Babilônia foi extremamente fácil, Alexandre

implantou lá modelos de administração orientais, embora tenha mantido os sátrapas

locais em seus postos, já que eles haviam jurado lealdade a Alexandre e nomeou a

nobreza local para que administrassem outras regiões. Embora os “nativos”

possuíssem papéis importantes para desempenhar dentro da nova estrutura política,

eram os gregos e macedônios que ficavam encarregados de cuidar da parte financeira

do império, de modo que fosse assegurada a continuidade da lealdade dessas elites

persas.

Quando o inverno chegou na Babilônia, Alexandre com o seu exército, maior

do que antes, partiram para a capital Susan. Dario se encontrava nas montanhas de

Meda, e a maior preocupação de Alexandre acerca do seu movimento rumo a Susan,

estava voltado para os tesouros que havia lá e em Persépolis de que fossem levados

para outro local antes de sua chegada. “Susan era a mais próxima das duas capitais,

77

e mais de 160 quilômetros da estrada real percorria todo o caminho até Sardes, na

Lídia […]. A viagem levou os macedônios para o norte dos pântanos […], onde as

bocas dos rios Tigre e Eufrates se reuniam no Golfo Pérsico” (FREEMAN, 2016, p.258).

A linguagem elamita era muito diferente dos povos que habitavam ao seu redor,

por isso Alexandre precisou empregar pessoas que fossem fluentes no idioma. A

marcha até Susan levou cerca de 20 dias. Durante o combate de Gaugamela em 331

a.C., Alexandre enviou um oficial de confiança para Susan para que ele confrontasse

o sátrapa persa local. Dessa forma o encarregado da cidade deveria de se certificar

que a mesma se rendesse e assegurasse que o tesouro permanecesse intocado até

que Alexandre chegasse.

Neste combate de Gaugamela, Cawkwell (2005, p.199) aponta que Dario havia

se preparado mais prudentemente para o confronto. Desde a escolha do terreno ao

qual os seus homens estariam dispostos quanto as dificuldades que o caminho

percorrido por Alexandre para chegar ao local lhe custaria, lhe bloqueando a rota para

a Babilônia. Mas isso não foi o bastante, para segurar Alexandre e os seus planos de

anexar não apenas novos locais sob seu domínio, como “comprar” os encarregados

das satrapias e deixá-los a seu dispor.

O sátrapa não apenas concordou com as condições impostas como se

certificou de cumprir cada uma das exigências cobradas. Ele chegou até mesmo a

enviar o “seu próprio filho para conhecer o rei e escoltá-lo até a cidade pelo vizinho

Quoaspes – um importante gesto simbólico, uma vez que era desse rio que o Grande

Rei bebia” (FREEMAN, 2016, p.260). Além disso, o sátrapa recebeu Alexandre e o

seu exército com grandes presentes (como por exemplo: tecidos púrpura, elefantes

indianos e dromedários, etc.).

O melhor caminho para se tomar entre Susan e Persépolis que Alexandre e o

seu exército tiveram de atravessar, era o território de um primo de Dario. Ele era um

rei uxiano cujo nome era Madates. A passagem por seu domínio significava que era

necessário pagar uma quantia generosa, o que era feito desde os tempos de Ciro, o

que certamente não agradou a Alexandre. Entretanto o trajeto que eles possuíam era

vantajoso ao povo uxiano que habitavam as montanhas. E estas ofereciam um difícil

caminho que lhes propiciava segurança contra-ataques e ameaças de subjugação, o

que definitivamente não intimidou o líder grego.

O jovem conquistador juntou alguns dos seus melhores soldados e pessoas

que conheciam o caminho para Susan e em seu caminho encontrou aldeias uxianas.

78

Freeman (2016, p.266-267) detalha que Alexandre atacou cada uma das aldeias e

matou a todos que encontrava, sendo que a maioria ainda se encontrava deitada em

suas camas. Quanto aos bens, ele tomou a todos espalhando terror entre os uxitas.

Em poucos dias Alexandre havia realizado o que os persas não haviam sido capazes

de fazer em cerca de duzentos anos.

O caminho rumo a Persépolis transpassava os Portões Pérsicos, “uma abertura

precária, cercada por falésias intransitáveis em todos os lados. A única outra opção

era um longo desvio para o sul, mas isso levaria muitos dias a mais de viagem”

(FREEMAN, 2016, p.267). Era uma corrida contra o relógio no qual os dias a mais de

viagem seriam uma desvantagem a Alexandre e seu exército. Por isso, o líder

macedônio partiu em direção aos Portões Pérsicos a todo vapor, embora isso

significasse cruzar um caminho extremamente difícil e perigoso. Todavia isto não

importava, pois Alexandre havia se decidido que atacaria próximo a parte estreita do

vale, onde ficava a muralha da cidade.

Ariobarzanes, um líder militar leal a Dario estava em Persépolis e havia lutado

na batalha de Gaugamela, em outras palavras, era um homem determinado a impedir

o avanço dos macedônios em seu pátrio. A investida de Alexandre próximo a muralha

foi lastimável, o sabor da derrota e o grande número de perdas do seu lado foram uma

grande decepção sofrida pelo líder e os sobreviventes. Entretanto desistir não era uma

opção. Alexandre soube através de um pastor lício acerca de um caminho comumente

utilizado pelos pastores para entrar em Persépolis. Logo, Alexandre concluiu que este

iria ser o caminho que os levaria para dentro da cidade.

Talvez esta tenha sido uma das decisões mais insanas que Alexandre possa

ter tomado ao fazer com seu exército enfrentasse uma trilha escura e extremamente

perigosa. Seu trajeto foi concluído ao despontar do novo dia, e como era de se esperar

todos estavam exaustos. “Seu plano era dividir suas forças mais uma vez, enviando

um destacamento considerável sob as ordens de Ptolomeu diretamente pela encosta

da montanha para atacar a lateral da muralha no momento certo” (FREEMAN, 2016,

p.271).

Seu plano de ataque foi bem-sucedido e os persas foram aniquilados enquanto

inutilmente tentavam impedir que os seus atacantes invadissem sua terra. Entretanto

não havia tempo para descanso, era necessário continuar a luta para chegar primeiro

ao centro da cidade antes de Ariobarzanes. Tiridates mandou uma carta para

Alexandre, ele era “o tesoureiro real em Persépolis, provavelmente um eunuco,

79

informando ao rei que ele entregaria a cidade e a tesouraria para Alexandre se ele

pudesse chegar rapidamente” (FREEMAN, 2016, p.273). Além disso, Tiridates

esperava receber em troca o tratamento especial que, outros que havia entregue seus

territórios de bom grado, haviam recebido.

A consecução de Persépolis teve uma grande importância para Alexandre entre

todas as suas conquistas, afinal aquela era a principal cidade persa. Esta capital era

um tanto quanto diferente das outras capitais conquistadas (Susan, Ecbatana e

Babilônia, por exemplo). Freeman (2016, p.277) detalha a cidade da seguinte forma:

A maioria da população vivia fora do território do palácio na cidade circundante. Estes eram funcionários do governo, empresários e comerciantes que possuíam casas de luxo decoradas com belas obras de arte. O povo de Persépolis foi a elite do mundo persa e tinha lucrado muito com os tributos que iam para a capital por duzentos anos.

Agora aquela parte da história havia sido conquistada pelo grande chifre do

bode, isto é, Alexandre, o Grande. Rapidamente o bode foi tomando em exaltação e

poder, assim como descrito na visão de Daniel, todo o território que antes o carneiro

tinha posse. Foi destroçado assim o poder deste último que ninguém sequer ousava

tentar se meter nesse confronto, de forma que os chifres do carneiro, seu poder e

força foram destroçados. Dario se escondia da forma que podia, pois, a ameaça de

Alexandre cada vez mais se fortalecia e era apenas questão de tempo até que Dario

fosse, por fim, deposto de seu trono. Era o fim do carneiro que agora estava sendo

pisoteado pelo bode.

Com a cidade sob seu domínio, o exército esperava apenas pela permissão

para que pudessem iniciar o despojo dos bens e das mulheres cativas. Alexandre

poupou apenas o palácio para si, o resto da cidade ficou à disposição de seus homens

para que estes fizessem o que bem entendessem. Esta permissão havia sido

extraordinária, pois “de Tebas a Gaza, seu exército já havia saqueado cidades antes,

mas esta foi a primeira vez que ele permitiu que uma cidade que se rendeu

pacificamente fosse devastada” (FREEMAN, 2016, p.278). Alexandre preferiu esta

opção a consolidar a confiança com a população conquistada.

Havia muito mais tesouros em Persépolis do que os que se encontraram em

Susan. Havia milhares de moedas de ouro que foram expressamente ordenados para

serem levados à Susan, assim como Alexandre já havia feito ao transportar o tesouro

obtido em Pasárgada para lá também.

80

Infelizmente a história de Persépolis não terminou muito bem e o palácio

acabou sendo incendiado. Não há uma explicação clara do porquê isso teria ocorrido,

mas há uma antiga tradição grega na qual se culpava as mulheres pelos estultos atos

masculinos. A história ligada ao incêndio de Persépolis foi relacionada a Thaïs, amante

de Ptolomeu, um antigo amigo de Alexandre:

Ela não era uma prostituta comum como as seguidoras de exércitos, mas uma mulher conhecida para os atenienses como uma hetaira: uma linda, educada e encantadora mulher que compartilhava a cama de seu patrocinador, mas também servia como sua confidente e conselheira. Essas mulheres se davam bem na sociedade grega e, muitas vezes, acabavam como parceiras de seus amantes pela vida toda. Thaïs, como uma ateniense, conhecia a história do conflito persa melhor que a maioria dos soldados macedônios em torno dela e aproveitou esse momento de festa para fazer um discurso exaltado para Alexandre e seus amigos. Era uma bela recompensa, ela proclamou, depois de vagar sobre a Ásia, ter um jantar de luxo no esplêndido palácio de Xerxes. Mas seria um prazer muito mais doce incendiar a casa do homem que incendiou a sua própria cidade. Thaïs era uma oradora comovente, de modo que aplausos e vivas irromperam de toda a multidão e ecoaram pelo corredor. Todos começaram a pedir que o rei desse início a um incêndio. Alexandre ansiosamente concordou e pegou a tocha mais próxima. (FREEMAN, 2016, p.284-285)

Curioso o fato de que esta narrativa tenha sido encontrada em documentos

antigos, entretanto há outro relato sobre o episódio que é considerado um tanto mais

sinistro. Freeman (2016, p.285) afirma que na obra do historiador Arriano, relata-se

que o rei havia planejado o incêndio do palácio, e Parmênio, o velho general, tentou

fazer com que Alexandre mudasse de ideia, em vão. Parmênio alertou que os povos

veriam o conquistador como uma pessoa furiosa que não possuía intenção de

construir um império. Na versão relatada por Arriano, Alexandre confessa que tal ação

pagaria a vingança contra tudo o que os persas haviam feito contra os gregos.

Após o episódio Alexandre partiu com o seu exército indo para além das

montanhas de Zagros, onde outro sátrapa local, Phrasaortes, jurou lealdade ao novo

conquistador. Depois partiu para Ecbatana com os seus homens o mais rápido

possível com o objetivo de alcançar Dario antes que ele fosse capaz de escapar

novamente.

Em Ecbatana, Dario havia recebido reforços enviados pela Cítia. Alexandre já

precavia isto e por isso dividiu as suas tropas. Deste modo o comboio que continha o

81

abastecimento podia seguir um ritmo mais lento, ao mesmo tempo em que os outros

soldados puderam se locomover com maior rapidez.

[...] poucos dias depois, recebeu um relatório atualizado de que os reforços persas não tinham de fato chegado, fazendo com que Dário mudasse de planos. O líder persa tinha enviado à frente seu harém e vagões de suprimentos para uma passagem chamada Portões do Mar Cáspio nas montanhas a leste de Raga (Teerã), que levava a Báctria. A três dias de Ecbátana, um nobre persa chamado Bistanes chegou ao acampamento de Alexandre. Esse homem era o filho único do Grande Rei anterior, Artaxerxes III, e havia escapado do massacre engendrado pelo eunuco Bagoas que levou Dário ao poder. (FREEMAN, 2016, p.288)

Não era de se estranhar que Bistanes não morresse de amores ou jurasse

lealdade a aquele que exterminou sua família. Por conta disso aos seus olhos, aliar-

se com Alexandre poderia lhe trazer mais benefícios e vantagens do que o líder persa.

“Bistanes relatou que Dário fugira da capital da Média e estava a caminho dos Portões

do Cáspio. Ele também tinha em suas carroças ouro suficiente para pagar seus

homens e contratar guerreiros locais por anos” (FREEMAN, 2016, p.288).

Caso Dario escapasse mais uma vez a guerra que eles estavam travando

continuaria, visto que o rei persa poderia facilmente comprar homens para lutar pela

sua causa. Além desta prolongação traria diversos resultados negativos aos povos

conquistados por Alexandre. O jovem conquistador então se aproveitou da situação e

decidiu, por fim, se “livrar” de Parmênio um velho militar que havia lutado e servido

seu pai Felipe II. Além do mais Alexandre a esta altura julgava também já ter

comprovado o seu valor através das experiências obtidas em batalhas e em liderar

seu exército.

Sobre a perseguição ao inimigo persa, Freeman (2016, p.290) afirma que

Alexandre estava tão focado em alcançar Dario a todo custo que seus cavalos

começaram a morrer devido a pressão ao qual foram expostos, alguns dos seus

soldados até mesmo ficaram para trás. Em apenas 11 dias eles chegaram a Raga e

já eram capazes de visualizar as montanhas de Elburz a sua frente. Entretanto, isto

ainda não havia sido o suficiente visto que Dario a apenas alguns dias, havia

transpassado os portões do Mar Cáspio.

Cawkwell (2005, p.212) afirma que a este ponto a derrota de Dario já era

inevitável pois Alexandre já possuía o controle da Pérsia. Alexandre havia enviado

uma mensagem aos gregos relatando que os persas haviam sido destruídos. Por

82

conseguinte, as promessas que seu pai outrora lhes fizera haviam sido cumpridas, e,

portanto, todos os gregos poderiam comemorar.

Contudo uma notícia delicada fez com que Alexandre prosseguisse viagem só

parando quando seus acompanhantes estavam extremamente exaustos. Dario havia

sido preso e transportado numa carroça por Bessos, sátrapa de Báctria, parente de

Dario, apoiado por outro sátrapa cujo nome era Barsaentes. Quando chegou ao local

onde Dario havia sido preso descobriu que Bessos havia se autoproclamado o grande

rei. Felizmente Bessos não havia conquistado a lealdade de diversos soldados persas,

que eram leais a Dario, e mercenários gregos que fugiram numa tentativa de voltar

para casa.

Vista tal situação, Bessos tinha um segundo plano, que era tentar entrar num

acordo com Alexandre e assim lhe entregar Dario. Caso o exército de Alexandre

prosseguisse os perseguindo então eles “recuariam para as montanhas e

engrenariam uma campanha de guerrilha contra Alexandre, formando um governo

persa no exílio das terras altas da Báctria” (FREEMAN, 2016, p.291)

Bessos possuía certa vantagem sobre Alexandre, pois o exército macedônio

estava muito cansado para continuar. Por causa deste fato, Alexandre abandonou os

que estavam mais cansados e com os outros valentes de sua infantaria seguiram

viagem junto a toda velocidade.

Esta insistência foi o suficiente para que eles alcançassem os persas, deixando

claro a Bessos que a sua fuga com Dario não teria êxito algum. Diante disso, o

usurpador rapidamente foi até o rei deposto e o esfaqueou, em seguida matou os seus

servos e feriu os cavalos que levavam a sua carroça. Então partiu para o leste rumo

a montanhas onde julgava ser o melhor local para escapar das mãos de Alexandre.

Novamente o grupo que estava com o jovem conquistador se separou a fim de

que Dario fosse encontrado e Bessos não fugisse. Os relatos que envolvem a morte

de Dario possuem diversas versões, sendo algumas delas:

um jovem soldado macedônio cansado chamado Polístrato encontrou o carro quando parou para pegar água em seu capacete […] ouviu gemidos vindo de dentro e afastou as cortinas, encontrando os dois escravos mortos e a figura sangrenta de Dário, quase morto […]. Em algumas versões, o próprio Alexandre está lá para dizer adeus a Dário e chorar a morte de seu adversário. Nessas histórias, Dário entrega sua família e o reino aos cuidados de Alexandre e, em seguida, dá seu último suspiro. Em outros relatos, Dário se dirige a Polístrato em um grego macarrônico, pedindo-lhe para dar a sua bênção a seu rei e

83

agradecer-lhe por ser um adversário tão nobre. Mas a verdade, na medida em que pode ser conhecida, é mais simples e mais triste. Dário viu Polístrato entrar no vagão e se ajoelhar ao lado dele. Ele fez um gesto para a água, que o jovem lhe serviu em seu próprio capacete. Então, com apenas um único soldado inimigo assistindo-o em um vale desértico e estéril, o Grande Rei da Pérsia fechou os olhos e morreu (FREEMAN, 2016, p.292-293)

O fim do carneiro foi estarrecedor, não havia nada muito menos alguém que

fosse capaz de deter o avanço do bode, a maior potência militar que a história havia

visto até então.

2.6 A exaltação do Bode e a Ruína do Grande Chifre

“E [o] bode tornou-se grande até muito, mas como poderoso dele foi quebrado o chifre, o grande” (Dn 8,8a)

Alexandre não se contentou em apenas conquistar o território persa, mas logo

começou a traçar planos de forma que pudesse expandir o seu território, indo agora

na direção das Arábia e das Índias.

Sobre a conquista das Índias, Kaefer (2016, p.54) acentua que a região indiana

foi alcançada cerca de 4 anos mais tarde, não havendo muita resistência dos nativos.

Assim como suas forças estavam sendo renovadas, o Eufrates havia sido

transformado num local de treinamento para os navios, patrulhas averiguavam a

extensão terrestre com seus relatórios e ilhas que fossem encontradas no Golfo

Pérsico. A ideia do que viria a ser encontrado e poderia ser utilizado através das terras

conquistadas já eram o bastante para causar empolgação ao jovem novo rei a medida

que as suas ambições aumentavam.

Sua nova rotina era baseada em manhãs onde se oferecia diariamente um

sacrifício aos deuses e passava-se os “dias organizando os detalhes para a viagem,

mas as noites eram repletas de banquetes e bebedeiras ao estilo macedônio”

(FREEMAN, 2016, p.417).

Uma dessas comemorações aconteceu na casa de Médio, seu amigo de

Tessália. Nesta ocasião estavam festejando honras a Hércules, quando Alexandre

bebeu seu vinho e então se ouviu seu grito “como se tivesse sido atingido por um

golpe e foi levado para a cama pelos amigos” (FREEMAN, 2016, p.418).

84

Foi a partir de então que Alexandre começou a adoecer, sofrendo uma febre

alta. Ainda assim ele buscava cumprir com os seus compromissos tanto para com os

deuses como nas reuniões militares. Com o passar do tempo ele precisava ser

carregado para conseguir continuar sua rotina, contudo a sua febre não passava e a

fome apenas diminuía.

Alexandre ainda acreditava que seria capaz de acompanhar seus homens na

expedição para a arábia, embora estivesse cada vez mais fraco. Não demorou muito

para que boatos se espalhassem entre os soldados de que seu poderoso líder

estivesse definhando devido uma doença. Outros ainda acreditavam que ele até

mesmo já estivesse morto e que a notícia havia sido abafada. Para controlar tal

situação Alexandre permitiu que seus soldados lhe prestassem uma visita.

A condição ao qual ninguém imaginava aconteceu com Alexandre, “uma

doença que o pretensioso deus não pôde enfrentar realizou aquilo que nenhum

homem alcançara fazer […]. Só a morte pôde pôr fim à insaciável ambição do jovem

conquistador” (KAEFER, 2016, p.56).

Prestes a completar 33 anos de vida, Alexandre havia entregue seu anel sinete

para Pérdicas que foi incumbido de ser o regente do rei. Logo a preocupação acerca

do sucessor de Alexandre começou a afligir a muitos de seus súditos. Roxane, sua

esposa, estava grávida, entretanto mesmo com o nascimento da criança ela seria

muito nova para subir ao trono. O grande chifre do bode inusitadamente se quebrou.

Alexandre morrera, entretanto, a pergunta ainda prosseguia sem resposta, quem seria

capaz de assumir a posição deste deus-rei?

2.7 Os quatro chifres: Solução para o Inesperado

“E subiu, [em] visão, quatro debaixo para [os] quatro ventos dos céus” (Dn 8,8b)

A perda de Alexandre foi um grande impacto não apenas na vida daqueles que

conviviam junto ao jovem rei, mas para todos que se encontravam sob o seu domínio.

“Tanto os macedônios quanto os nativos choraram ao saber da morte de Alexandre,

correndo em pânico pelas ruas. Súditos persas rasparam suas cabeças, como era o

costume quando da morte de um Grande Rei” (FREEMAN, 2016, p.422).

Pérdicas foi, segundo Green (2014, p.56), a maior figura que havia surgido após

a morte do grande conquistador e o único que havia recebido, em frente a

85

testemunhas, o anel selo de Alexandre, sendo esta a única transferência organizada

de poder. Entretanto, por ele não ter um “sangue real”, ele foi rejeitado para assumir

tal papel.

Não demorou muito para que aqueles que eram companheiros começassem a

lutar entre si buscando obter poder, muito sangue foi derramado enquanto os

poderosos lutavam e armavam estratégias que pudessem derrotar seus concorrentes.

Não houve acordos, até que nomearam o meio-irmão de Alexandre, Arrideu como

Felipe III. Ele havia sido incumbido de cuidar do trono até que o filho de Alexandre

alcançasse idade suficiente para governar. Esta solução havia sido dada por Pérdicas,

que o auxiliaria até que o filho ainda não nascido de Alexandre pudesse ascender ao

trono. Entretanto, Arrideu tinha um problema mental e mesmo adquirindo o título não

foi levado a sério como governante macedônio. Tanto ele quanto o filho de Alexandre

não passavam de uma distração enquanto as intrigas continuavam.

Um dos resultados dessa reunião foi a divisão do império. Ptolomeu recebeu o Egito, enquanto Seleuco, um amigo de Pérdicas, manteria a maior parte da Ásia naquele momento. Antípatro e seu filho, Cassandro, ficariam com a Macedônia e a Grécia, e Lisímaco, o ex-guarda-costas do rei, tomaria a Trácia (FREEMAN, 2016, p.423)

Nem mesmo o rito funerário de Alexandre pôde ser concretizado em paz,

Ptolomeu roubou o corpo de Alexandre o carregando consigo para o Egito. Não

demorou muito para que a paz recém-estabelecida através do acordo logo fosse

quebrada e várias revoltas emergissem. Pérdicas assassinou Maleagro, quando este

se encontrava dentro de um templo, e seus seguidores tiveram um fim trágico, foram

pisoteados por elefantes.

As mulheres de Alexandre também não ficaram de fora das brigas pelo poder,

Roxane, por exemplo se livrou de Estatira, filha de Dario e a sua irmã, envenenado-

as, tendo como seu apoiador Pérdicas. Ele a apoiou lutando pelo direito dela e de seu

filho, visando o que poderia ganhar deles quando foi morto no Egito. Roxane e seu

filho também fugiram para a Macedônia, sendo hospedados por Olímpia. Porém, nem

mesmo eles encontraram paz por muito tempo, pois Cassandro os assassinou

findando assim a linhagem de Alexandre.

Aos poucos os próprios amigos de Alexandre foram sendo eliminados um a um.

Seu meio-irmão foi assassinado por um guarda trácio, Barsine e Hércules, o último

86

filho de Alexandre, foram envenenados em Pérgamo. Aristóteles foi obrigado a deixar

Atenas às pressas.

Seleuco […], estendeu seu domínio pessoal por boa parte do antigo reino de Alexandre, desde o Egeu até as estepes da Ásia Central. A dinastia que ele estabeleceu continuaria a reinar por muitos anos, até ser engolfada no Oriente pelos partos e no ocidente pelos romanos. Da mesma forma, Ptolomeu consolidou seu controle do Egito e viveu para escrever seu relato da grande guerra com Alexandre do Danúbio até o Indo. Sua família manteve o trono dos faraós por gerações até a morte de sua descendente Cleópatra (FREEMAN, 2016, p.425)

Como analisado anteriormente os chifres, vocábulo muito utilizado nesta

perícope, denomina poder e exaltação. O grande chifre do bode que derrotou seu

oponente e deteve grande poder nas mãos, temido por todos, tem o seu chifre

quebrado. A doença que acometeu Alexandre, foi a causa que resultou no chifre

quebrado do poderoso bode.

Todas essas intrigas e traições em busca de que alguém pudesse assumir o

lugar do grande chifre resultaram no surgimento de quatro outros chifres que se

elevaram na direção dos quatro ventos dos céus. Em 301 a.C. ocorreu a Batalha de

Ipsus na Frígia, Ásia Menor, este entrave entre os sucessores rivais resultou na

dissolução do império de Alexandre, o Grande. Os quatro generais (Cassandro,

Lisímaco, Seleuco e Ptolomeu) que serviram ao grande conquistador haviam

adquirido o que muitos morreram buscando.

Entretanto, as influências deixadas pelo jovem conquistador, embora tenha

durado pouco tempo no poder devido a esta doença que o consumiu, foi o suficiente

para que deixasse raízes fortes que acabaram influenciando diversas culturas por

séculos. Com ele, o helenismo passou a ser imposto a todos os dominados, que

tinham de pôr a cultura estrangeira acima de seus próprios costumes e ritos religiosos.

Os sucessores de Alexandre, o Grande, cessam de batalhar entre si no fim do

século IV a.C., por um período para que assim consolidem a sua autoridade sobre as

áreas que lhes foram designadas para estarem sob o seu domínio. Martin e Blackwell

(2012, p.168) apontam que estes sucessores fundaram dinastias que dominaram a

história política e militar na Grécia, Egito e sudoeste da Ásia por mais de 200 anos,

até o momento em que ocorreu a conquista dessas regiões pelos romanos. Sendo

que as dinastias dos ptolomeus e dos selêucidas se mantiveram por mais tempo ao

87

poder. Seus reinos helenísticos, semelhantes aos gregos, tinham a frente dos

governos e sociedades locais gregos e macedônios.

Dentre os quatro, se destacarão duas dinastias, os ptolomeus e os selêucos,

que continuaram brigando entre si, desejando tomar as terras um dos outros.

2.8 O Pequeno Chifre: a Nova Onde de Poder

“E do outro deles saiu outro chifre pequeno e crescendo demasiadamente para o Sul/Negeb e para o levante e para direção à belo (Palestina). ” (Dn 8,9)

Após o consentimento na reunião realizada onde se dividiu o extenso império

grego de Alexandre entre os seus quatro grandes generais, o império selêucida

ocupou uma vasta área indo do Oeste, Anatólia, até a leste, Báctria. Sobre os dilemas

nos quais os reis selêucidas se esforçavam ao máximo em resolver, Koester (1995,

p.27-28) comenta que sua ânsia era a busca do equilíbrio entre defesa e segurança

ligado ao desenvolvimento econômico de suas primordiais províncias, Mesopotâmia

e a Síria. O reino selêucida possuía importantes centros de comércio na costa síria e

também acesso às rotas marítimas no Mediterrâneo oriental, que foram essenciais

para a base econômica do império selêucida. Enquanto as regiões da Palestina,

Fenícia e sul da Síria pertenciam aos ptolomeus no Egito.

Com o estabelecimento dos ptolomeus no Egito e dos selêucidas na Síria, após

quase um século do fim da batalha entre os sucessores, um novo ciclo de batalhas se

inicia em 274 a.C. As chamadas guerras sírias, que ocorreram entre as duas dinastias

citadas. O motivo para que as batalhas fossem travadas novamente entre esses dois

sucessores era a recuperação de territórios (como foi mencionado anteriormente) ou

busca de expansão de domínio pelos líderes, com o intuito de assim obter os seus

poderes consolidados politicamente. Podemos listar os entraves da seguinte maneira:

Tabela 2 – Guerras Sírias

Período Combatentes

1ª Guerra Síria 274-271 a.C. Ptolomeu II Filadelfo e

Antíoco I Sóter

2ª Guerra Síria 260-253 a.C. Ptolomeu II Filadelfo e

Antíoco II Theos

88

3ª Guerra Síria 246-241 a.C. Ptolomeu III Evérgeta e

Seleuco II Kallinikos

4ª Guerra Síria 221-217 a.C. Ptolomeu IV Filópator e

Antíoco III Magno, o

Grande

5ª Guerra Síria 202-195 a.C. Ptolomeu V Epífanes e

Antíoco III Magno, o

Grande

6ª Guerra Síria 170-168 a.C. Ptolomeu VI Filómetor e

Antíoco IV Epífanes

Fonte: elaborada pela autora com base em CAWKWELL, 2005; GREEN, 2014; KOESTER, 1995.

Como principal resultado de estar a tanto tempo fazendo campanhas militares,

não seria possível que tais ações não tivessem custado caro para essas dinastias.

Manter um exército durante a batalha e no deslocamento dele não era algo gratuito,

assim como lidar com as perdas correlacionadas ao resultado dessas diversas

batalhas que foram ocorrendo no decorrer dos anos. No início do século II a.C., para

os selêucidas particularmente, as consequências que estavam sendo enfrentadas

eram principalmente econômicas e políticas.

Analisando o quadro acima que resumidamente demonstra as guerras sírias,

pode-se identificar um dos principais dilemas que os reis selêucidas procuravam

manter em controle e melhorar sempre que possível, isto é, a receita imperial para

que dessa forma seu exército estivesse sempre engajado em suas batalhas.

E para cobrir as despesas sempre crescentes da corte real e seus oficiais. Uma administração fiscal centralizada era, portanto, importante, embora não houvesse um sistema unificado de taxas e impostos. O governo central controlava as casas da moeda e as políticas monetárias das cidades e principados dependentes, tomando decisões sobre a exportação dos bens e produtos manufaturados que eram por direito devidos ao rei. Caso contrário, a administração real gerenciava apenas as propriedades de posse direta do rei […]. É difícil avaliar o tamanho real dessas terras; eles podem ter chegado a metade de toda a área governada pelos selêucidas (KOESTER, 1995, p.51)

Seguindo o modelo deixado por Alexandre, o Grande, em relação aos cargos

ligados à administração monetária do império, se confiava apenas em gregos e

macedônios para ocupá-los. Esses homens de confiança eram trazidos de suas terras

natais para realizarem este trabalho.

89

Em meio a estas disputas a Judeia se encontrava numa situação delicada

durante este período, visto que a sua localização geográfica era considerada como

estratégica aos combatentes. Segundo Santos e Plautz (2019, p.59), esta era

[...] uma espécie de corredor entre os ptolomeus (sul) e os selêucidas (norte) (…), era disputada por essas duas dinastias não só pela posição estratégica em relação ao inimigo e ao mar mediterrâneo, mas também pela possibilidade de aumento de arrecadação via imposto

Esta foi uma região que se encontrou em constante mudança política durante

este período. Perante tal situação não seria incomum haver um burburinho no meio

dos judaítas. Santos e Plautz (2019, p.60) apontam que tal comoção envolvia a

existência de três grupos que também estavam ativamente em disputa dentro de

Jerusalém. Isto é, judeus favoráveis aos selêucidas, outro aos ptolomeus e ainda os

que defendiam a autonomia política judaíta.

A questão era que até meantes do século III a.C. a Judeia era subordinada aos

ptolomeus, entretanto em torno de 225 a.C., surge um grupo no meio dos judaítas que

começa a se opor ao governo vigorante. Contribuem neste sentido Santos e Plautz

(2019, p.60) apontando que posteriormente esta cisão se intensificaria no conflito

entre os oníadas e tobíadas. Eles proclamaram apoio a Antíoco III em 223 a.C.,

quando este assumiu o poder. A instigação deste grupo teria surgido quando Onias II,

o sumo sacerdote, foi deposto de seu cargo, sendo ele membro de uma tradicional e

antiga família judaíta.

O grupo oposto, segundo alguns estudiosos, pertencia a um grupo de judaítas

aristocratas que enriqueceram ligeiramente e seu líder José65 , filho de Tobias foi

incumbido de representar os judaítas frente aos egípcios. Este cenário propiciou uma

oportunidade que, logo foi percebida por Antíoco III e colocada em prática, durante o

a sucessão de Ptolomeu V. É neste momento que estoura a quinta guerra síria, no

qual se obteve o apoio de blocos judaítas que apoiavam aos selêucidas.

A Judeia é tomada em 198 a.C. por Antíoco III, assim como a Fenícia e a Síria

também. Entretanto, Antíoco III sofre grandes perdas anos mais tarde, principalmente

no âmbito econômico durante a Batalha de Magnésia travada contra Roma em 189

a.C. E teve de carregar este problema durante o fim do seu governo (pagar a dívida

65 “José, filho de Tobias, que havia sido anteriormente coletor de impostos para os ptolomeus na

Judeia” (SANTOS; PLAUTZ, 2019, p.60).

90

de guerra) e ainda assim passar este compromisso para ser cumprido pelos seus

sucessores.

Antíoco III foi morto três anos mais tarde e Selêuco IV (187-175 a.C.), seu filho,

assume o trono em seu lugar. Seu governo é marcado por fracassos e como resultado

em Jerusalém se intensifica a briga pelo poder tão disputada entre os oníadas e os

tobíadas.

Após Selêuco IV, é a vez de Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.) assumir o

governo do império selêucida. Ele é apontado como o pequeno chifre que surge dentre

os quatro que tomaram o lugar do grande chifre, que foi quebrado e iam na direção

dos quatro ventos dos céus.

Sobre a figura de Antíoco IV Epífanes estar relacionado ao pequeno chifre,

Hassler (2016, p.35) correlaciona com a forma pela qual o Antíoco IV Epífanes chega

ao poder. Seu irmão Selêuco IV Filopátor foi assassinado pelo seu próprio chanceler

e o sobrinho de Antíoco IV Epífanes, Demetrius I Sóter, era o sucessor legal ao trono.

Durante este período em que o seu irmão foi assassinado Antíoco IV Epífanes se

encontrava “preso” em Roma como refém. Entretanto Antíoco IV Epífanes usurpa o

poder, através de suborno e adulação, tendo assim uma ascensão incomum, peculiar

ao trono do império selêucida. Sua importância até então era pequena, assim como a

figura que surge na visão.

Barry (1910, p.126-127) discorre sobre Antíoco o caracterizando como um

homem que possuía ideais e ambições de unificar o seu império, buscando construí-

lo sob uma base sólida que viria da tradição e costumes gregos. Porém, essa sua

imagem acabou sendo trocada pôr a de um grande perseguidor religioso. Sua

devoção a Zeus resulta no propósito de realocar as diversidades locais e fé tribais

numa única religião estatal, o que turbinaria e corroboraria na solidificação do

processo de unificação de seu império.

Durante este mesmo período da ascensão de Antíoco IV Epífanes surgem no

cenário político duas novas ameaças, especialmente ao império selêucida, do lado

oeste Roma, que anteriormente já tinha se demonstrado como uma ameaça, visto que

ao assumir o trono Antíoco IV Epífanes havia sido encarregado de tentar liquidar a

dívida de seu antepassado, e ao leste a Pártia.

Como relatado na visão, o pequeno chifre cresce demasiadamente em direção

ao sul, leste e na direção ao belo (Dn 8,9). Quanto a região Sul, Antíoco IV Epífanes

investe duas campanhas contra o Egito (170-168 a.C.). Sendo que na primeira,

91

Ptolomeu recua (1Mc 1,17) e na segunda ele só não prevaleceu contra o Egito porque

Roma se intromete na batalha com o intuito de pôr um fim na sexta guerra síria,

favorecendo ao Egito e permitindo que o seu governo continuasse em vigor.

É durante esta sexta guerra síria que, Antíoco IV Epífanes, acentua Koester

(1995, p.31) conquista toda a região do Egito, com a exceção de Alexandria. Antíoco

IV Epífanes então é forçado para ir a Síria por um breve período, é neste momento

que ele “saqueia” o tesouro do templo de Jerusalém e retorna ao Egito.

Sobre o templo de Jerusalém e o saque a ele cometido, Tcherikover (1959,

p.155) o aponta como ocupando o centro da religião judaíta, assim como também

possuía uma importância econômica considerável. Era comum aos povos deste

período (babilônios, gregos, egípcios e romanos) utilizarem os templos não apenas

um lugar santo, mas como um centro financeiro. Estes templos possuíam uma riqueza

acumulada em seus depósitos com prata e ouro que eram pagos pelos seus fiéis.

Em Jerusalém não era diferente o meio shekel, moeda judaíta, com a qual eles

pagavam todos os anos o templo, provavelmente, conseguia cobrir a maioria dos ritos

diários e com o passar das gerações, esta renda pode ter alcançado uma soma

considerável. Por ser considerado um local extremamente seguro, algumas pessoas

depositavam seu dinheiro, fazendo do templo uma espécie de banco no sentido

moderno. De forma que Tcherikover aponta que o templo de Jerusalém

desempenhava um papel erário do estado, “resultado direto do fato de que o governo

da Judeia era ‘teocrático’ ou ‘hierocrático’” (1959, p.155, tradução nossa). Isto também

refletia no papel desempenhado pelos sacerdotes que não só possuíam poder frente

ao culto, como também no lado secular.

Ainda sobre os avanços do pequeno chifre na direção sul, Hassler (2016, p.36)

detalha que ao avançar sobre o Baixo Egito, Antíoco IV Epífanes se depara com as

tropas romanas de Gaius Popillius Laenas que chegaram até Antíoco IV Epífanes o

forçando a recuar, e renunciar a seu triunfo sobre os ptolomeus.

A intromissão romana neste episódio, particularmente, se deu com o intuito de

que o império selêucida não se tornasse um grande ponto de poder e ficasse em seu

caminho tendo de ser tolerado. Para não criar mais problemas com Roma, Antíoco IV

Epífanes não persiste em investir contra o Egito. Entretanto tal ação custou caro ao

senhorio selêucida, pois além de ter uma dívida com Roma para pagar, ele agora

carregava nas costas o custo de duas campanhas e ainda tinha de lidar com uma

província que estava borbulhando em disputas para alcançar o poder.

92

A leste, pontua Hassler (2016, p.36) ele teve grande êxito em sua campanha

que durou cerca de dois anos na Armênia, Média, Pérsia e Babilônia. Entretanto ele

mesmo sofreu uma derrota devastadora quando intentou contra Elamais e Persépolis,

onde ele veio a falecer.

Se comparado as conquistas de Antíoco III, o grande, as conquistas de Antíoco

IV Epífanes não foram tão grandiosas, visto que o seu antecessor avançou até chegar

na Índia. A bela terra, descrita na visão que se refere a Judeia, já era uma região que

havia sido conquistada e anexada ao domínio selêucida por Antíoco III.

Entretanto Antíoco, segundo Tcherikover (1959, p. 178) era conhecido no

mundo antigo como um entusiasta helenista, sendo descrito como o primeiro e único

rei selêucida a proporcionar diversos benefícios ao povo grego e se preocupar com

as suas necessidades. Sendo para com os seus contemporâneos gregos

extremamente generoso ao ponto de: construiu um esplêndido templo para Zeus

Olímpios em Antenas; erguer estátuas e altares para os deuses em Delos; fazer

doações para a construção de uma muralha para a cidade de Megápólis; fez as

fundações de um teatro de mármore em Tegea; doou vasos para os cidadãos de

Cízico. E ainda, dentro dos limites de seu império se esforçou para fundar mais

cidades gregas. Tcherikover afirma que “se a sua obra não pode ser comparada com

a dos primeiros reis da linha, isso não foi por falta de vontade, mas sim porque ele

nasceu pelo menos um século depois de sua época” (1959, p.178).

A primeira reação de Antíoco IV Epífanes, após se retirar do Egito foi se dirigir

para a Judeia em busca de arrecadações ao passo que pretendia acabar com as

disputas que estavam ocorrendo, sufocando qualquer intenção de apoio ao Egito que

pudessem emergir. Para concretizar tais ambições na província da Judeia, Antíoco IV

Epífanes tomou algumas decisões, como por exemplo, interferiu no cargo sacerdotal.

O que deveria ser decidido pela linhagem, como era ordenado pela tradição judaíta,

agora podia ser adquirido desde que o interessado estivesse disposto a pagar uma

alta quantia ao líder selêucida.

A briga pelo título de sumo sacerdote, para manter o poder em mãos teve início

em 174 a.C., quando o irmão de Onias III, comprou o título e função de sumo

sacerdote pagando um grande valor (2Mc 4,7-9). Este acontecimento abriu uma

brecha para que outros interessados vissem uma chance de tentar obter tal título

excelentíssimo. O segundo concorrente para sumo sacerdote surge em 172 a.C.,

93

Menelau que negocia com o próprio rei a compra do título oferecendo pagar 300

talentos a mais (2Mc 4,23-24).

Ao realizar a compra do título, por Jasão, pela primeira vez do cargo de Sumo

Sacerdote, Tcherikover (1959, p.160-161) aponta que o encargo que, até então era

hereditário ao qual o rei apenas concedia ou poderia negar a sua ratificação em

relação ao novo candidato, agora torna o cargo do sumo sacerdócio em um cargo

oficial selêucida dependente do favor do rei. Jasão não apenas conquistou tudo isso,

como também obtêm a permissão do soberano grego para converter Jerusalém numa

pólis grega, chamada Antioquia, lançando assim as bases necessárias para ocorrer

uma reforma helenística abrangente. Além de ser concedido a Jasão a permissão de

registrar em uma lista o povo que, em sua opinião, eram dignas de serem cidadãos

antioquinos. “Cada pólis grega reconhecia a diferença de princípio entre cidadãos e

meros habitantes […], e mesmo uma cidade democrática como Atenas insistia

rigorosamente nessa distinção” (TCHERIKOVER, 1959, p.161). O que se pode supor

que nem todos os moradores de Jerusalém tenham sido introduzidos no corpo

cidadão, entraram assim para a sua lista os ricos e nobres de sua cidade.

A transformação de Jerusalém numa pólis, tendo como base para que esta

reforma ocorresse a classe sacerdotal, sendo liderados pelo Sumo Sacerdote, trouxe

mais uma nova mudança. “O templo pertencia a nova pólis, não mais a velha cidade,

e sem o templo Jerusalém não tinha mais uma base religiosa ou econômica”

(TECHERIKOVER, 1959, p.165).

Como se não bastasse tal repugnância, principalmente aos olhos dos

tradicionais fiéis, Onias III é assassinado sob o comando de Menelau (2Mc 4,30-35).

O título de sumo sacerdote, favoreceu a Menelau o poder de tomar decisões

relacionadas ao âmbito religioso judaíta. Ele concedeu seu apoio a Antíoco IV

Epífanes, em 167 a.C., para que este invadisse o templo de Jerusalém e impedisse a

realização do sacrifício contínuo.

Outra medida tomada pelo governante foi o decreto real que foi publicado em

168 a.C., no qual se proibiu a prática da religião judaíta. O seu próximo passo ocorreu

no final do ano de 167 a.C., nesta ocasião ele buscou implementar a cultura helenista

e os seus costumes por todo o seu império. Para isso Barry (1910, p.131) detalha que

Antíoco instituiu a celebração de um festival em Dafne, onde ele mesmo havia

ordenado a construção de um grandioso templo a Apolo, o que lhe custou caríssimo.

A comemoração se estendeu por um mês inteiro.

94

O teor de sua tentativa, no fundo, era que a religião estatal de culto a Zeus

tivesse êxito ao ser implementada por todo o seu império. Mais detalhes sobre a

peculiar forma de culto no império selêucida foram “inspirados” na deificação do

primeiro Ptolomeu, “o segundo Selêucida decretou que seu pai Seleukos I fosse

adorado como ‘Zeus Nikator’. Muito em breve, o culto ao rei vivo também foi

introduzido. [...] O culto ao governante selêucida estava intimamente associado à

adoração de Zeus e Apolo” (KOESTER, 1995, p.38). Estes eram os principais deuses

cultuados no império selêucida.

Obviamente o líder não contava que tal decisão pudesse gerar uma revolta

armada, que ficou conhecida como a Revolta dos Macabeus.

No ano seguinte (166 a.C.) seu domínio entra em decadência, por um lado os

romanos se intrometiam em suas conquistas, no outro surge a revolta armada na

Judeia, liderada por Judas Macabeu. Antíoco IV Epífanes se encontrava agora numa

encruzilhada, pois os cofres do império estavam praticamente vazios, ainda mais após

tal grandioso evento que havia sido realizado no glorioso templo em Dafne.

Barry (1910, p.133-135) pontua que Antíoco IV Epífanes resolve partir para a

Pérsia com o intuito de arrecadar contribuições. Ele parte e dá a ordem para que uma

parte de seus homens fique e combata a revolta. O que Antíoco IV Epífanes não

contava era que desta viagem, que durou por volta de dois anos, ele nunca mais fosse

voltar. Sua morte ocorre no ano de 164 a.C., e se aponta que em sua viagem para a

Pérsia, Antíoco IV Epífanes tenha encontrado o país extremamente insatisfeito.

Afirma-se que então para arrecadar os fundos que ele necessitava era preciso que se

começasse a saquear os tesouros de diversos templos (como o da deusa Babilônia-

Persa Nannaea-Anahid).

Os nativos desses lugares não viram a ação de Antíoco IV Epífanes com bons

olhos e o contra-atacaram o forçando a retroceder, foi então que lhe trouxeram notícias

de que Judas Macabeu havia derrotado as forças selêucidas restaurando os

sacrifícios contínuos e reconstruindo o templo em Jerusalém.

Em resumo Antíoco IV Epífanes governa o império selêucida por apenas 11

anos (entre os anos de 175 a.C. – 164 a.C.), no qual Hassler (2016, p.35) pontua que

o soberano gastou cerca de sete anos perseguindo aos judaítas, tendo como o ponto

de partida o assassinato do Sumo Sacerdote Onias III (em 170 a.C.) e findando

próximo a sua morte em 164 a.C.. Neste período de perseguição somente na cidade

de Jerusalém, por volta de oitenta mil judaítas foram mortos (2Mc 5,14).

95

2.9 Em direção ao “Belo”: o Ponto Estratégico Militar

A Judeia fazia parte do domínio ptolomaico quando começa a ficar cada vez

mais nítido uma divisão de grupos entre os judaítas relacionados a ideais políticos.

Um dos grupos decide continuar apoiando aos ptolomeus, enquanto o outro grupo

decide demonstrar o seu apoio aos selêucidas, que estava sob a liderança de Antíoco

III, o Grande. O seu suporte dos judaítas dados durante a guerra síria, resultou na sua

anexação ao império selêucida (em 197 a.C., na batalha de Pânias).

A região da Judeia, como mencionado anteriormente, era um território que

oferecia um excelente ponto estratégico que possibilitava certa vantagem a quem o

possuísse para futuros ataques ao Egito, e acesso as rotas marítimas. Tanto o governo

ptolomaico quanto o de Antíoco III não interferiram nos costumes e tradições judaítas,

dando-lhes certa autonomia para exercer os cargos religiosos segundo a lei dos seus

antepassados. Quando Antíoco III intentou implantar seus deuses no templo de

Jerusalém, houve protestos que o fizeram retroceder.

Quando Antíoco IV Epífanes assume o poder do império selêucida, ele traz

consigo um ideal que buscará implementar por todo o seu domínio, um plano um tanto

quanto ambicioso. Ele buscará trazer uma unificação por toda extensão de seu reino,

para isso ele terá de tomar medidas que propiciarão uma facilidade para que ocorra

esta unificação, inspirada no governo de Alexandre, o Grande, e assim alcançar como

resultado a consolidação de seu reinado.

Para isso, Antíoco IV Epífanes procura continuar aquilo que Alexandre, o

Grande, havia começado anteriormente ao intentar implantar o helenismo (Era

Helenística 323-30 a.C.) disseminando a língua grega, estudos, filosofias, teatro, entre

outros, o que facilitaria a padronização de seu governo. Além de haver uma grande

expansão no nível comercial e mercenário durante este período e a lei grega ser a

base de toda a base política e econômica.

Não demorou muito para que os nativos percebessem as grandes vantagens

de aderir a cultura helenística conforme esta se expandia, “visto que essa cultura

assinalava a classe dominante. Muitos assumiram nomes gregos e envolveram-se nos

estudos em estabelecimentos de ensino” (LENNOX, 2017, p.282). De igual modo a

religião helênica também se popularizava entre aqueles que se tornaram adeptos da

96

nova cultura e não demorou muito para que templos em honra a estes deuses fossem

construídos em diversas cidades.

Em contrapartida os gregos conforme iam entrando com diferentes culturas

orientais identificaram diversas combinações entre sua religião e a de outros povos,

percebendo assim que havia um mesmo deus embora ele possuísse diversos nomes.

Neste mesmo período o ocultismo e a magia se tornam também populares.

O início do governo de Antíoco IV Epífanes é marcado pela semelhança de

liderança com a de seu pai, Antíoco III, pois ele mantém o mesmo comportamento

ante as autorizações dadas. Entretanto após a forçada retirada do Egito sob ordens

de Roma, Antíoco retorna a Judeia onde ele saqueia os tesouros do templo, sendo

esta uma das primeiras decisões tomadas que desagrada aos judaítas.

Outro ponto que serviu para que se desencadeasse ainda mais o

descontentamento entre os judaítas e o pequeno chifre, estavam correlacionados a

sede por poder, ganância, ambição que somados ao dinheiro corroborou para que a

classe sacerdotal se perdesse. Como citado anteriormente a compra, e a luta pelo

título de sumo sacerdote, passando por cima da tradição pela qual assegurava a

sucessão da posse através da linhagem sanguínea, fez com que se aumentasse cada

vez mais a apreensão do povo e dos judaítas mais tradicionais com o governo de

Antíoco IV Epífanes. Eles agora se viam desamparados, ainda mais com o

assassinato do legítimo sumo sacerdote, Onias III.

O novo sumo sacerdote Menelau propiciou, apoiou e providenciou que a

implementação do helenismo ocorresse de forma quase que “natural” na Judeia.

Como Souza assinala sobre uma das responsabilidades incumbidas de ser realizada

pelos sumos sacerdotes, “o sacerdote passa a exercer também o poder civil. A

administração passa não mais ser feita por um governador, mas por um conselho de

anciões, composto de sacerdotes e leigos, presidido pelo sumo sacerdote (1Mc 12,6;

2Mc 1,10; 11,27)” (SOUZA, 2011, p.74). Mais tarde seria conhecido como o sinédrio,

isto concedeu ao sumo sacerdote ainda mais poder e lhe acresceu funções dentro da

comunidade, especialmente correlacionadas a administração.

O Helenismo também possuía valores totalmente diferentes aos da cultura

judaíta, o padrão e ideologias presentes na sociedade helênica se tornaram muito

atrativos aos nativos. A classe alta era composta por três grupos, como demonstra

Koester (1995, p.56): a casa do rei (família, conselheiros e amigos mais achegados),

altos oficiais administrativos e membros da corte (tais como servos, subordinados e

97

escravos) e os gregos independentes. Estas seriam pessoas ricas que provavelmente

eram comerciantes atacadistas ou proprietários de terras. Os não-gregos ainda

podiam entrar no segundo e terceiro grupos descritos, estes grupos possuíam

privilégios.

As opções de papéis a serem desempenhados dentro da sociedade helênica

eram inúmeros, poderiam ser funcionários públicos, fazendeiros, comerciantes,

artesãos, médicos, filósofos, etc. Estas funções não estavam restritas apenas para os

gregos e macedônios, tanto que posteriormente os não-gregos exploraram estas

opções. Koester (1995, p.56-57) aponta que essa decisão se baseava na crença de

que a educação grega permitia as pessoas formação que desencadeava aptidão, para

que assim pudessem desempenhar um papel relevante dentro da sociedade. Além de

que as profissões eram dependentes de uma educação geral na escrita e leitura

elementares fornecidas pelas escolas e ginásios. Associações e guildas profissionais

desempenhavam um importante papel, pois eram elas que faziam a supervisão de

admissão e treinamentos em certos tipos de trabalhos e incluíam estrangeiros,

cidadãos e até mesmo os escravos.

No período helenístico os escravos começaram a ser colocados à venda e a

serem comprados como se não passassem de apenas uma outra compra qualquer.

Ainda havia a condição do homem-livre e da mulher-livre, esta categoria social

abrangia ex-escravos (as) e permitiam que “pelo menos se pudesse encontrar um

emprego adequado, o que poderia ser difícil para mulheres solteiras […], seu status

de dependência não terminou. Houve alguns benefícios. Eles agora receberiam um

nome real […], tinham o direito de se casar” (KOESTER, 1995, p.61).

Quanto ao papel desempenhado pelas mulheres dentro da sociedade helênica

não se possuía um padrão, em cidades egípcias, por exemplo, havia a permissão para

que elas possuíssem direitos de propriedades e de testemunho perante tribunais.

Entretanto seu domínio era limitado ao lar e sujeição a maridos e pais. É importante

acentuar que no período helenístico houve uma “maior mobilidade, o fato de famílias

tornarem-se autossuficientes e uma ênfase crescente na educação deu às mulheres

oportunidades e mais lazer […]. casamentos não eram mais um arranjo econômico

entre famílias” (KOESTER, 1995, p.63). No período considerado como clássico, os

maridos podiam ensinar as suas esposas sobre artes liberais e até mesmo filosofia,

isto refletirá na aparição de mais escritoras e poetas na sociedade.

98

Em outras cidades era até mesmo possível identificar algumas mulheres

exercendo cargos públicos, ou administrando famílias. Desta forma, o casal unia-se

para que assim pudessem sobreviver através de seus trabalhos.

Certas habilidades domésticas, como fiar e tecer, eram tradicionalmente exigidas das mulheres. A prostituição ou outras ocupações de serviço aos homens eram o destino de muitas mulheres solteiras. Entre as artesãs, as mulheres casadas podiam ajudar os maridos em seu ofício (KOESTER, 1995, p.63).

Outro ponto extremamente atrativo para os nativos foi a questão econômica e

monetária que veio junto com o helenismo. O comércio explode ainda mais com a

possibilidade de fazer contatos no exterior, como, por exemplo, com a Índia, Pártia

entre outras localidades. Também se ampliou o acesso à matéria-prima, o que resultou

na expansão do comércio doméstico e importação. Esta também foi uma facilidade

para manter os exércitos, realidade necessária ainda mais quando se vivia em meio

às guerras sírias. Enquanto no quesito do sistema monetário caótico do mundo antigo

foi substituído por um padrão mais uniforme, que surgiu com Alexandre, o Grande,

quando ele introduziu um padrão conciso de moedas por todo o império.

Como aponta Koester (1995, p.93), que não houve escassez de prata para que

fossem produzidas mais moedas que permaneceram estáveis durante a maior parte

da era helenística, isto até o período de guerras de Diadochi, que foi uma exceção.

No domínio selêucida, não havia muitas moedas de ouro, como entre os ptolomeus,

elas eram utilizadas somente em ocasiões especiais. Nos mercados locais se utilizava

as moedas de cobre. Antíoco IV Epífanes permitiu que algumas cidades selêucidas

pudessem cunhar prata.

Eram diversos itens que se tornaram atrativos para os nativos que estavam

chegando, uma cultura totalmente diferente em que via no corpo a beleza e induzia

as pessoas que buscassem a própria felicidade. Os ginásios atraíram os jovens e o

contato com essas novas esferas fizeram com que a sua cultura tradicional perdesse

o brilho, enquanto essas novidades os seduziam cada vez mais.

2.10 Considerações Preliminares

99

No decorrer deste capítulo buscamos fazer uma breve exposição acerca do

contexto histórico que está por trás da narrativa de Daniel capítulo 8,1-14, dando maior

enfoque na história que envolve os principais símbolos apocalípticos da visão.

A começar pela menção de Belshazzar no início da visão, que embora não

tivesse sido simbolicamente citado, indicava também o ponto de transição para o

aparecimento e estabelecimento do carneiro, a Pérsia, no poder político. Belshazzar

foi o último rei que esteve no poder juntamente ao seu pai Nabônido, com eles foi

marcado o fim do poder babilônico, que foi subjugado a dominação persa.

Quando analisando esta transição babilônica para persa, observamos o papel

religioso nesta troca de liderança política. Principalmente na forma como a religião

facilitou na aceitação de uma nova liderança política que havia sido “aceita” e

“abençoada” por Marduk. Destaca-se aqui que esta aceitação e apoio da classe

sacerdotal foi fundamental para que Ciro se estabelecesse sem haver muita oposição.

Com a dominação Persa, vimos o retorno dos judaítas a sua terra, assim como

outros povos que puderam retornar sob a condição de pagarem impostos aos seus

“benfeitores”. Assim como a expansão da área de domínio, ultrapassando para outros

limites que o império Babilônico não havia conseguido alcançar. Como descrito na

visão, por um longo tempo o carneiro deteve o poder em suas mãos e ninguém

conseguia tirar o poder dele.

Tudo estava bem, calmo como a cena descrita do carneiro bebendo água no

rio Ulai, quando a Grécia se levantou e partiu em direção a seus inimigos, os persas

buscando assim se vingar deles. Alexandre, o Grande, o bode com o grande chifre

não permitiu que sua pouca idade se mostrasse incapaz de lutar pelos interesses de

seu povo e de concretizar o desejo de seu pai, derrotar os persas em seu próprio

território. O exército grego se mostrou persistente e rápido a ponto de não só formular

estratégias e ataques bem elaborados.

Assim como apontado na visão, tudo seguiu de forma positiva para os gregos

quando de forma inesperada seu poderoso líder caiu enfermo, e assim o grande chifre

se quebrou. Através de muito derramamento de sangue se dividiu o império entre seus

quatro grandes generais.

Seguimos o afunilamento histórico indicado pela nossa narrativa, focando no

pequeno chifre que surge desses quatro chifres (que se erguem nos quatro ventos do

céu) e cresce em poder e exaltação. Nos preocupamos em não abrir de forma

exaustiva este contexto histórico, mas em nos atermos voltados nos principais

100

símbolos apresentados na narrativa, seguindo na mesma provocação do início desta

pesquisa. Isto é, na ligação entre o contexto histórico do segundo século a.C. e a

redação desta visão apocalíptica.

Através desta análise minuciosa dos símbolos que compõem a narrativa

podemos observar os acontecimentos que ocorreram em cadeia durante os anos que

culminaram na Revolta Macabaica. Assim como se pode visualizar tanto os aspectos

positivos que foram trazidos e proporcionados pelo helenismo, assim como os

aspectos negativos, que se deram principalmente pela rejeição dos judaítas piedosos

à imposição estrangeira. Como também por causa da perseguição política que causou

a morte de milhares de judaítas como justificativa de desobediência do decreto de

Antíoco IV Epífanes.

Vimos no decorrer deste capítulo, que foram vários os fatores que tornaram a

nova cultura numa ameaça à sociedade e por isso foram combatidos tão

fervorosamente pelos judaítas. Que não só buscaram se “purificar” da cultura imposta,

como posteriormente se aproveitaram do impulso e animação que resultaram das

conquistas e lutarão para que alcancem a tão sonhada independência política.

101

3 O LEVANTE DOS SANTOS: SURGIMENTO DENTRO DA NARRATIVA E SEU

REFLEXO NA SOCIEDADE

A visão de Daniel 8,1-14, como temos visto no decorrer desta pesquisa é repleta

de detalhes históricos que demonstram ao leitor o profundo nível de conhecimento

que o seu autor possui. Encontramos nesta visão um autor que, de forma sucinta e

bem organizada, expõe ao seu leitor um longo período histórico sem sobrecarregá-lo

com as suas breves, mas bem colocadas informações. Ao mesmo passo que ao trazer

essas diversas informações, o seu leitor é preenchido de expectativas e sentimentos

que os conduz ao clímax dos acontecimentos, tudo isso sem sair ou sobrepesar o

gênero literário, cumprindo as “exigências” dele.

De igual modo, quando introduzimos um panorama geral sobre a obra de Daniel,

notamos como nossa perícope se encaixa dentro do bloco ao qual ela pertence,

apocalíptico, como a sua mensagem também condiz com o assunto abordado pelas

outras perícopes presentes neste bloco da obra. Os textos apocalípticos, não se

repetem ou cansam o seu leitor, mas trazem diferentes focos acerca de um momento

delicado que vem sendo exposto e tratado nesta parte da obra.

A linguagem ou as figuras de linguagem, símbolos utilizados em nosso texto

não causaram dificuldades de comunicação e compreensão entre o autor-leitor. Como

vimos no decorrer de nossa pesquisa, encontramos facilmente a relação entre esses

símbolos com a realidade histórica dessa sociedade judaíta pertencente ao século II

a.C. Ao realizarmos a nossa análise exegética além de nos aproximarmos melhor da

perícope a ser estudada, nos foi possibilitado separar alguns dos principais símbolos

para aprofundá-los no segundo capítulo.

Realizamos uma análise cuidadosa em nosso segundo capítulo, ao retomar os

principais símbolos de nossa perícope os relacionando ao contexto histórico que

serviu como base para o nosso relato. Nisto identificamos a presença de um enorme

contexto histórico que vem pavimentando a visão aqui estudada lhe dando uma firme

base histórica. Esta base serviu tanto para informar ao seu leitor sobre estes principais

acontecimentos, como encaminhou a narrativa para a sua finalização. Levando a um

momento em que a narrativa culmina no lamento dos santos, que vem acompanhada

por uma resposta. Este lamento parece ser a reação daqueles que viam de fora a

102

visão e já não conseguiam se controlar diante de tais acontecimentos. Passam a

impressão de que já não eram mais capazes de se manter apenas como meros

expectadores.

A visão de Daniel continua após o combate entre os dois animais em ritmo

acelerado. Símbolos que representaram as grandes nações, persa e grega, que

haviam se enfrentado anos antes do surgimento do império selêucida. Para a sua

representação o autor utiliza os animais utilizados nos sacrifícios apresentados diante

de YHWH.

A visão está envolta em diversos movimentos, que em sua maioria envolvem

ou apontam para resultados dessas ações e refletem no que ocorrerá com os chifres.

Estes surgem em várias ocasiões no transcorrer da visão (crescem [גרל], se elevam

etc.), proporcionando os saltos temporais no contexto histórico. O autor não se ,[עלה]

preocupa com detalhes antigos da história, no qual ele utiliza apenas para introduzir

os acontecimentos que vieram a desencadear no surgimento do pequeno chifre e nas

ações relacionadas a ele. Aqui está o “prato principal” da visão.

As ações lincadas ao pequeno chifre são narradas pelo autor como uma

ameaça, cujo alvo se fixa nos exércitos dos céus (ים אהשמ ן־) e das estrelas (צב אומ הצב

ים א) bem como também ao seu oficial do exército ,(הכוכב É este chifre que .(שר־הצב

prevalece contra os seus alvos, vindo a pisoteá-los após atacá-los brutalmente. A

narrativa segue listando as condutas religiosas judaítas que vão sendo interrompidas

após este pequeno chifre prevalecer contra seus alvos, ele prospera em tudo o que

faz.

Até este momento retratado aqui na visão, não há reações seja de

expectadores ou dos elementos descritos na visão que sejam capazes de deter os

avanços deste chifre. Tudo ocorre de forma natural, quando enfim os santos são

introduzidos na narrativa, no desfecho da visão.

Neste terceiro capítulo nos dedicaremos em resgatar a figura destes santos e

nos manteremos em analisar o levante deste pequeno chifre, o correlacionando

principalmente com a reação dos judaítas, isto é, dos rebeldes macabeus.

Manteremos como base o texto de Daniel 8,1-14.

3.1 O Helenismo sob a Ótica Piedosa

103

De fato, aceitar a cultura helênica não foi um grande problema para uma parcela

da população judaíta. Havia diversas regalias que a “nova” cultura proporcionava

enquanto a sua própria cultura não retratava ou tinha algo relacionado. Um exemplo

disso são os direitos que as mulheres da sociedade helênica possuíam, entre outros.

Entretanto para a outra parcela da população, isto não foi nada natural ou fácil, ainda

mais ao ver as novidades que foram sendo introduzidas uma a uma em sua sociedade.

Estas mudanças não só começaram a lhes incomodar, como posteriormente vieram a

interferir em sua comunicação com YHWH.

Como se as mudanças por si só não fossem suficientemente difíceis para

serem assimiladas, o assassinato de Onias III e a impunidade de seu assassino

continuava exercendo seu poder sobre o povo. Foi um duro golpe para aqueles que

acreditavam na possibilidade de que alguma melhora viesse ocorrer em sua

sociedade. Entretanto para estes piedosos, por onde quer que olhassem só

conseguiam ver a corrupção se espalhando por todos os lados. A gota d'água foi

quando se interferiu nos ritos sacrificiais e, a figura que deveria defender essas

tradições, foi justamente aquela que apoiou e se desdobrou em garantir que tal ato

fosse posto em prática por todos.

A visão de Daniel 8, sumariza tais feitos “desprezíveis” aos olhos de seu autor

nos v. 11-12, onde afirma-se que o pequeno chifre, interfere nos ritos do templo e atira

verdade em terra, prosperando em tudo aquilo que faz.

Antíoco IV Epífanes “foi o primeiro rei selêucida a gravar sua alegação de

divindade nas moedas do seu reino, escolhendo o título Epífanes para expressar a

crença de que ele era ‘Deus manifestado’[…], o título foi parodiado como Epimênio,

que significa ‘louco’” (LENNOX, 2017, p.283). Essa paródia veio devido ao

comportamento bizarro e excêntrico do soberano. O próprio autor de Daniel parece

ter exposto a sua opinião sobre o soberano ao identificá-lo como o “pequeno chifre”,

visto que o próprio é descrito como quem possuía um ‘curto’ temperamento. O fato da

narrativa possuir a opinião acerca da figura política, indica proximidade entre o

autor/redator final com a figura do líder político mencionada.

Entretanto, segundo fontes gregas, como a descrição feita por Políbio, por

exemplo, apresenta outra visão acerca do soberano selêucida. Os escritos gregos

dizem que Antíoco IV Epífanes “não tinha um tato político e não compreendia como

deveria de se comportar como convinha a um rei” (TCHERIKOVER, 1959, p.176,

tradução nossa). Em seus relatos acerca de Antíoco IV Epífanes surge a figura de um

104

rei travesso, que gostava de se misturar as festas com pessoas comuns, assim como

saia nas ruas para ir a lojas ou o local de trabalho dos artesãos e conversava por um

longo tempo com pessoas “insignificantes”.

Há relatos de que até mesmo Antíoco IV Epífanes participava pessoalmente de

apresentações teatrais. Tcherikover (1959, p.176-177) acrescenta ainda que o seu

comportamento em relação as outras pessoas era cheio de surpresas, à companhia

de amigos ele se calava, mas com estranhos desatava a falar. Chegou até mesmo a

dar presentes extravagantes, como ouro e prata para algumas pessoas, enquanto

para outras eram entregues como presente tâmaras e dados. Uma pessoa cheia de

grandes contradições internas, mas que sempre se esforçava em fazer algo

extraordinário para surpreender a todos. Esta era a faceta de Antíoco IV Epífanes aos

olhos de seus contemporâneos gregos.

Essas divergências não se limitavam apenas na forma como viam o líder

selêucida, ou acerca de suas opiniões sobre a cultura helênica, mas abrangiam os

interesses de algumas classes sociais judaítas. Isto fica claro quando o ponto de

partida para a implementação da cultura helenista parte do lado judaíta. Provindo da

classe sacerdotal que ofereceu uma grande soma de dinheiro a Antíoco IV Epífanes

para lhes fossem permitidos construir um ginásio (2Mac 4,8-9).

As “transgressões” relatadas por Daniel começaram a surgir durante o

sacerdócio de Jasão. Aqui entendemos por transgressão a quebra da obediência a

Lei e dos costumes rigorosos da religião judaica. Como a visão correlaciona a

interrupção da continuidade, transgressão é atirar a verdade em terra (v.12). Sendo

assim a primeira transgressão a forma pela qual Jasão tomou para si o sacerdócio ao

pagar para Antíoco IV Epífanes uma soma de dinheiro a fim de obter de forma ilícita o

cargo de sumo sacerdote. Em 2 Macabeus 4 se descreve o momento em que lhes foi

permitido construir um ginásio e uma efebia 66 em Jerusalém; de igual forma foi

incorporado o modo de vida helênico e se construiu uma praça de esportes próximo

ao Templo (v.12). Não demorou muito para que a própria classe sacerdotal perdesse

o interesse na realização das liturgias (v.14). Jasão até mesmo doou trezentas

dracmas de prata para o sacrifício de Hércules (v.19).

66 Instituição grega onde rapazes entre a idade de 18 e 20 anos aprendiam a manejar armas, e se

dedicavam a realização de exercícios corporais, assim como também eram introduzidos a cultura literária grega.

105

Embora o estabelecimento da efébia e do ginásio fossem realizações básicas

para a constituição de uma pólis e que ambas estivessem em harmonia com o caráter

aristocrático, o ginásio era uma instituição educacional típico. Tcherikover (1959, p.162)

afirma que a educação na efébia acarretava despesas que resultavam no monopólio

de filhos ricos. Ao estabelecer uma efébia junto ao ginásio na Judeia, Jasão

demonstraria quais eram as aulas que as pessoas pertencentes a nova pólis

frequentavam.

Como vimos no capítulo anterior, Jasão tinha a autoridade de conceder a quem

ele quisesse o título de cidadão da pólis, pois Jerusalém havia sido transformada. Tal

concessão atraiu a muitos aristocratas o desejo de obter o “passaporte” grego, pois

isto lhes conferiria diversas regalias helenistas, comerciantes não ficavam de fora

desta lista, visto que o comércio no mundo grego significava uma oportunidade de

crescer e expandir economicamente e assim possuir mais influência dentro da

sociedade. Deste modo, se tornar grego virou um sonho de consumo para diversas

camadas da sociedade judaíta, inclusive no meio da classe sacerdotal.

Flávio Josefo (2004, p.463) detalha este episódio de abandono aos costumes

judeus da seguinte forma:

Disseram ao soberano que haviam decidido renunciar os costumes de seu país para abraçar a religião e a maneira de viver dos gregos e pediram-lhe permissão para construir uma praça de esportes em Jerusalém. Ele consentiu, e então eles ocultaram os sinais da circuncisão, para não serem distinguidos dos gregos quando, correndo ou lutando, tivessem de se despir. Eles abandonaram assim todas as leis de seus antepassados e não se diferenciavam em nada dos estrangeiros.

O modo de vida helenista era totalmente tentador aos olhos daqueles que

viviam se dedicando a cumprir a lei de Moisés. Era de certo modo mais fácil, pois o

desejo e os impulsos possuíam outra conotação para os gregos, não tão negativa

quanto vista pela lei. O ideal helênico enfatizava a busca da felicidade que tinha como

porta de acesso a razão humana e não uma resposta da divindade correlacionada ao

comportamento comunitário. Havia uma maior facilidade e estímulo para que

houvesse uma livre troca de ideias, onde muitos gozaram da oportunidade dada para,

assim entrar no meio intelectual. Esta é uma das acusações que é feita, os sacerdotes

não querem mais ler as liturgias, mas querem se dedicar em participar da distribuição

do óleo, utilizado para massagear os atletas (2Mac 4,16).

106

Não muito tempo depois, Menelau assume o lugar de Jasão, se tornando o

sumo sacerdote ao oferecer um pagamento maior do que Jasão havia feito.

Entretanto por não cumprir com o acordo feito, seu irmão Lisímaco o substitui (2Mac

4,27-29). Durante este tempo Onias III, o legítimo sumo sacerdote é assassinado

(2Mac 4,30-38). Novamente vemos a ordem sendo quebrada, ao passo que o cargo

sacerdotal, mais uma vez se dobra a vontade do soberano estrangeiro que conforme

se lhe agrada e convêm tem o poder de pôr e tirar quem quiser do cargo sacerdotal.

Há um primeiro combate entre os próprios judeus contra Lisímaco, estes

estavam indignados com o sumo sacerdote que foi acusado de saquear o templo e

Lisímaco é morto neste episódio (2Mac 4,39-42). Menelau é levado a julgamento e faz

acordo com Ptolomeu sendo absolvido das acusações feitas pelos judeus piedosos,

enquanto estes são mortos por Antíoco IV Epífanes (2Mac 4,43-50).

Logo após estes acontecimentos, estoura a segunda campanha da sexta

guerra síria contra o Egito. Neste período Antíoco IV Epífanes está investindo contra

o império ptolomaico, Jasão incita uma revolta na Judéia instigado por boatos de que

Antíoco IV Epífanes havia morrido na batalha (2Mac 5,1-14). Durante a revolta, Jasão

não poupa nem ao menos os seus concidadãos e mata muitos deles, depois foge para

o Egito, onde vem a falecer.

Macabeus 5 descreve que ao receber as notícias sobre a Judeia, quando

Antíoco IV Epífanes retorna de sua campanha e invade a cidade, muitos perdem a

vida nesta ocasião. Menelau então guia Antíoco IV Epífanes para dentro do templo

onde ele fará um grande saque, tomando os talentos, vasos sagrados, e, por fim,

encarrega Menelau, Andrônico e Felipe, frígio de raça (2Mac 5,22-23a) para

guardarem a Judeia.

Neste episódio, mais uma vez vemos a mudança acerca das responsabilidades

a serem zeladas pelo cargo sacerdotal que não fica limitado a esfera religiosa, mas

passa para o mundo secular. Assim como este cargo foi transformado em uma posição

oficial que agora também é encarregada de trabalhar para o império e garantir os seus

interesses.

Não muito tempo depois, Apolônio segue com 22 mil homens com a missão

dada por Antíoco IV Epífanes para que trucidasse os judaítas (2Mac 5,23b-27). O

plano executado por Apolônio foi convocar o povo para que assistissem a uma parada

militar, num sábado. Aqueles que compareceram foram mortos (v.25-26).

107

Estes episódios descrevem certos momentos em que o exército dos céus e das

estrelas foram lançados em terra e pisoteados pelo bode, a comando do pequeno

chifre (Dn 8,9-10). Não só o poder de Antíoco IV Epífanes sob a Judeia era grande ao

ponto de ser “chefe” do sumo sacerdote, igualizando o poder secular ao religioso

(tornou-se tão grande quanto o oficial do exército, v.11), mas também é capaz de

destruir este exército que se encontra submetido a sua vontade.

Após tal circunstância, Judas Macabeu junto com outros dez homens formam

um grupo e se retiram para o deserto a fim de não se “contaminar”. Neste momento

se institui cultos “pagãos” no templo, se proíbe a execução de costumes judaítas, ao

mesmo tempo em que surgem diversos relatos sobre as punições sofridas por aqueles

que se rejeitavam a aceitar tais imposições.

Segundo o relato de Segundo Macabeus, se relata que foram introduzidas

dentro do Templo dissoluções, orgias e meretrizes, altares para oferendas “proibidas”,

ritual mensal no dia do aniversário do rei, enquanto se aboliu o shabat, celebração de

festas dos antepassados judaítas, a leitura da lei de Moisés e a confissão sobre ser

judaíta. Reafirma-se a punição para aqueles que rejeitam se encaixar na nova forma

de culto, a morte.

Em concordância com o texto de Daniel, nossa base para esta pesquisa, os

relatos do segundo livro de Macabeus vão listando diversas ações que diante da Lei

moisaica são consideradas como transgressões graves que resultam no

distanciamento entre YHWH e o seu povo. Nos versos 11 e 12 de nossa perícope, a

visão descreve como o Templo e as principais ações ligadas a ele, vão sendo desfeitas

e desprezadas uma a uma.

Dentre as ações que começaram a ser impostas dentro do templo, Josefo (2004,

p.465) retrata que o altar construído no templo servia para que fossem sacrificados

porcos, além da renúncia ao culto dos antepassados judaítas foram espalhados por

todas as cidades a construção de novos templos.

Acerca destes novos templos foi decretado que não se poderia passar um só

dia sequer sem que ali fosse imolado um porco. Fez-se isso para que houvesse uma

garantia de que os judaítas haviam abandonado, de fato, os seus costumes abraçando

assim a sua nova religião. Também foram nomeados fiscais encarregados de se

certificar acerca do cumprimento das novas normas. Acrescenta a esta lista que

Antíoco IV Epífanes

108

ordenou que todas as cópias da Lei fossem recolhidas e queimadas. […] proibiu a prática judaica da circuncisão, indo ao ponto de matar os bebês judeus que haviam sido circuncidados, pendurando-os no pescoço de suas mães e atirando-os dos muros de Jerusalém (LENNOX, 2017, p.287).

Neste átimo Judas Macabeu acompanhado do seu grupo, começou a se infiltrar

em aldeias e cidades convocando a todos que haviam permanecido fiéis aos

costumes de seus antepassados para que lutassem ao seu lado contra o domínio

selêucida (2Mac 8,1-7). Seus atos ocorriam durante a noite e se limitavam a invadir

outras cidades e aldeias para incendiá-las.

As incursões macabaicas chamam a atenção dos selêucidas e Felipe pede por

reforços (2Mac 8,8-29), Nicanor, amigo do rei, recebe a missão de combater os

macabeus. Quando tais notícias chegam até Judas, muitos fogem com medo. Após

um discurso encorajador feito por seu líder rebelde, eles partem para a batalha e

derrotam Nicanor. Em outra batalha travada contra Timóteo e Báquides, os macabeus

saem vitoriosos novamente.

Em 2Mac 9 é narrado acerca da morte de Antíoco IV Epífanes, onde se

descreve que ele morreu de uma causa “natural desconhecida”. Neste relato é

descrito detalhadamente os horrores sofridos pelo “tirano” e o castigo de sua morte.

No próximo capítulo se introduz o relato acerca da purificação do templo e o

estabelecimento da comemoração do Hanuká.

As acusações feitas no livro de 2 Macabeus durante os anos de governo de

Antíoco IV Epífanes seriam as transgressões citadas na visão de Daniel, na última

parte nos versos 11 e 12 do capítulo 8. É neste ponto que o autor da visão termina de

apresentar a realidade vivida pelo seu próprio povo que sofre por habitar numa área

disputada, por ser considerada uma zona estratégica militar.

O autor de Daniel, não expõe fatos ou se preocupa em apresentar a situação

daqueles que abraçaram a cultura helênica, eles nem ao menos são citados ou há

algum simbolismo que os represente. Também não faz qualquer tipo de menção

acerca das facilidades que a cultura helênica poderia trazer como uma contribuição

para a sociedade. Estas pessoas, pelo contrário, são totalmente desprezadas e

odiosas aos olhos daqueles que se mantiveram fiéis as suas tradições. São até

mesmo, consideradas como a causa dos males e do pisoteamento que o bode faz em

seu povo.

109

Lembra o comportamento do profeta Jonas ao se negar a ir para Nínive, os

estrangeiros não merecem a “salvação”, mas os testemunhos deles acerca de quem

era o “único e verdadeiro” Deus, reconhecendo a YHWH como o soberano, sempre

são contados e mantidos na memória do povo.

O segundo livro de macabeus até mesmo reconhece tais situações como

permissões para que eles pudessem pagar as iniquidades cometidas pelos seus pais

e reafirma que através desta fidelidade paga, mesmo que ocorra através da entrega

da própria vida, seria a chave para alcançar o favor divino. Seria esta negação em

aceitar a realidade vivida o que leva os santos a se questionarem “até quando?”?

3.2 O Exército de os céus e das estrelas (ים וכב א ומן־הכ ים והצב א השמ (צב

A realidade que cerca o povo judaíta durante este período do século II a.C.,

principalmente os momentos que precedem à revolta dos macabeus, nos fazem

perceber que: para surgir tal reação contrária ao poder vigente na proporção que

houve, seria necessário a adoção de uma estratégia que pudesse atrair centenas de

simpatizantes com a causa de forma rápida e eficaz.

Mas afinal, onde é que Daniel se encaixa no meio de tantas informações, datas

e novos personagens que foram surgindo no decorrer desta pesquisa? Para

responder este questionamento retomaremos certos ponto-chaves que exemplificarão

a corroboração da visão apocalíptica de Daniel 8,1-12 para com a revolta macabaica.

Um dos pontos mais delicados abordados anteriormente, acerca da datação da

obra, aponta para um favorecimento da relação do livro de Daniel ao período

macabaico. Como citado no primeiro capítulo de nossa pesquisa, esta obra teria sido

muito popular exatamente durante o período pós-exílico, principalmente por descrever

cenários vividos no século II a.C. Criando a possibilidade da população facilmente se

identificar e se simpatizar com o enredo descrito na literatura.

Se a narrativa de Daniel 8,1-14, tiver sido utilizada por esses rebeldes e

piedosos judaítas, a escolha do gênero textual, apocalíptico, e dos símbolos aqui

empregados poderia ser justificado, como uma forma muito eficaz para que os leitores

desta obra pudessem compreendê-la e se identificassem com o enredo de forma

rápida. Quando analisamos as narrativas históricas dos livros de Macabeus e de

Flávio Josefo, acerca do período do século II a.C. na Judeia, podemos identificar

110

facilmente a similaridade entre o cenário histórico com a retratação narrada no livro

de Daniel.

O povo judaíta também se encontra sob o domínio de um líder não apenas

rigoroso e “incrédulo” (ou comumente chamado de “ímpio”), mas também de curto

temperamento que ao ser contrariado não se incomodava de tomar medidas extremas

para exterminar os seus opositores. E mais uma vez este confronto de ideais tem pôr

fim a esfera religiosa que determinará aqueles que serão castigados, por

desobediência ao rei, ou não. Assim como também aponta para uma ação miraculosa

capaz de anular poderes governamentais e mudar o segmento histórico.

Além da mensagem principal da obra possuir um ponto crucial que perpassa

todo livro de Daniel, que era o de se manter fiel as suas raízes ainda que isto viesse

a custar a sua própria vida. Isso fica evidente em alguns trechos pertencentes a

primeira parte entre os relatos da corte, especificamente nas partes onde há os relatos

de Sadraque, Mesaque e Abednego diante da estátua de Nabucodonosor; Daniel na

cova dos leões ou quando Daniel teve a coragem de recusar a sua participação no

banquete do rei. São sempre decisões públicas tomadas por estes personagens de

não aceitarem assimilar cultura ou a imposição de normas, ou decretos estrangeiros

antes, eles escolhem permanecer veemente fiel as leis de seus antepassados.

Nos relatos presentes no livro de segundo macabeus, por exemplo, vemos no

decorrer da obra, diversas situações em que os judaítas, assim como Daniel e os seus

amigos, retaliam as imposições estrangeiras publicamente que sempre vem

acompanhados de um discurso acerca de fidelidade. Assim como também são

trazidos certos “testemunhos” de fidelidade que chegam a transformar até mesmo a

estes “ímpios”, ou de fazê-los confessar uma mensagem que exaltam os judaítas.

Como no caso de Heliodoro (2Mac 3,35-40); Nicanor (2Mac 34-36) ao ser derrotado

pelos macabeus e a carta de Antíoco IV Epífanes ao fim de sua vida endereçada aos

judaítas (2Mac 9,18-29).

De modo semelhante é possível encontrarmos no livro de Daniel, passagens

onde se narram confissões que exaltam as ações, ou situações que envolvem

decisões que colocam a fidelidade a YHWH em xeque obrigando aos judaítas a

tomarem uma decisão. Sempre que escolhem permanecer fiéis aos seus ideais há um

grande livramento. Como, por exemplo, Daniel e seus amigos quando se recusam a

participar dos banquetes oferecidos aos “ídolos” (Dn 1,15-20), ao interpretar o sonho

111

de Nabucodonosor (Dn 2,46-49), Sadraque, Mesaque e Abedenego na fornalha (Dn

3,24-30) e Daniel na cova dos leões (Dn 26-39).

Nisto se compreende um grande esforço do autor/redator final para convencer

a todos aqueles que têm permanecido fiéis a continuarem ao passo que também envia

uma mensagem a aqueles que abandonaram a sua identidade judaíta. Para os que

guardaram a sua identidade sempre haverá uma saída milagrosa, ao passo que, para

aqueles que se “venderam” não há uma garantia de que aquilo que foi conquistado

permanecerá quando o juízo de YHWH chegar.

A mensagem teológica aplica uma pressão a aqueles que têm contato com ela,

pois ao mesmo passo que traz consolo aos fiéis, os infiéis são confrontados e negados

por ela. Além da exclusão social que os aguarda pelos que se mantiveram fiéis, que

esperam ser vingados através do socorro divino, ainda há a ameaça endereçada a

todos os que se permitiram “corromper” com os costumes estrangeiros. Como

demonstra a própria visão de Daniel 8,1-14, os reinos humanos são passageiros e

sempre provisórios, pois vão sendo mudados e substituídos, enquanto as ações

indicadas como obras de YHWH são delineadas como permanentes.

No segundo capítulo onde apresentamos o contexto histórico seguindo a ordem

apresentada na visão dos símbolos apocalípticos aplicados. Observamos que mesmo

narrado de forma breve, o autor possuía um profundo conhecimento daquilo que havia

sucedido até chegar aos acontecimentos do presente (isto é, a época de Antíoco IV

Epífanes). Não há um desfecho detalhado sobre como este período irá se desenrolar,

pois assim que se cita as características, relacionadas ao pequeno chifre, a visão se

finda apenas com o questionamento dos santos e um breve apontamento sobre até

quando isto tudo aconteceria até que, por fim, viesse o juízo de YHWH. Esta falta de

informações sobre o fim deste período, também parecem indicar que até o momento

de conclusão da narrativa, a situação parecia não ter sido concluída. Deste modo, a

melhor forma foi finalizar a visão com o breve diálogo dos santos (וש .nos v.13-14 ( קד

Seguindo o ciclo literário e histórico mais uma vez, surge uma situação no qual

os personagens principais são encurralados tendo de tomar uma decisão crucial

acerca de onde depositarão a sua fidelidade no socorro humano ou na espera da

ajuda ou justiça divina. É um cenário no qual todas as esperanças parecem ter sido

massacradas, pois eles veem a verdade ser lançada em terra, a continuidade sendo

interrompida e a derrota dos seres celestes. São situações-limite que não permitem

112

ao protagonista visualizar um socorro em sua visão periférica. Logo não há como

saber qual solução haverá após a sua decisão ser tomada.

Percebemos que na primeira parte do livro de Daniel essas decisões de

permanecerem fiéis já foram tomadas e fazem parte do passado histórico, na parte

apocalíptica encontramos essas situações semelhantes sem um desfecho. As

decisões dos novos protagonistas inseridos neste período narrado não foram

registradas. Isto é, para que haja o desfecho onde a justiça divina age sobre a ação

humana, ainda é necessário que os protagonistas desta era tomem a sua própria

decisão, assim como Daniel o fez em seu passado, entre outros personagens

pertencentes a história da nação.

Logo o surgimento de tal escrito e sua divulgação no meio de círculos de judeus

piedosos corroboraria para um crescente sentimento nacional que os apontaria como

aqueles (protagonistas da história atual) que detinham a escolha de se permitirem ser

os agentes, como Daniel e seus amigos escolheram ser, para permitir que houvesse

a ação direta de YHWH na história ou não.

Na visão narrada em Daniel 8,1-14, mais do que apenas um breve resumo de

longos anos de história, é possível também identificar um costume comum dos judeus

que é realizado em certos momentos. Um exercício simples, mas que a sua execução

trazia benefícios e precavia os seus praticantes de caírem em certas armadilhas. Este

exercício consistia em refletir e trazer a memória certos momentos históricos vividos

pela sua nação. Principalmente quando há uma certa necessidade de relembrar

coisas que normalmente trazem à tona esperança e mantêm na mente daqueles que

praticam este exercício a clareza sobre a sua identidade. São relembrados acerca dos

momentos em que estiveram longe de sua terra, no exílio, a causa teológica de terem

sido levados para lá, assim como as profecias acerca deste momento. Estes

prenúncios que sempre indicavam sobre o período em que YHWH os socorreria e os

libertaria desde que voltassem a sua fidelidade a ele.

Também elenca as qualidades que devem ser buscadas e adquiridas para que

este socorro e libertação sejam merecidos, se manter fiel. Conforme a ilustração

presente no livro de Daniel, sempre nos momentos que antecedem a morte do

protagonista ocorre um milagre que o livra, seguido de uma justificativa sobre o tal

livramento vivido. Esta sequência não muda assim como a justificativa permanece

igual, houve tal milagre, pois, ele se manteve fiel em primeiro lugar. Esta narrativa,

portanto, se dirige ao grupo específico, como já afirmado anteriormente, que mesmo

113

em meio as perseguições religiosas se negam a aceitar a aquilo que lhes vem sendo

imposto que os obriga a ir contra o que acreditam ser o certo.

O mesmo ocorre quando os macabeus começam a entrar de cidade em cidade,

de aldeia em aldeia e convocam judaítas para participarem do seu movimento. O

convite tem um endereçamento específico é estendido somente aos judaítas piedosos

e leais a lei de Moisés que são recebidos e aceitam de “prontidão” a entrar neste

embate. Há um pré-requisito acerca de quem pode ou não participar dessa revolução,

assim como há uma preliminar a ser cumprida para que haja a salvação e o livramento.

No livro de 2Mac 6,12-17, há uma explicação do porquê eles estavam sofrendo

tantas perseguições e castigos. Uma espécie de reafirmação que indica aos seus

leitores que o passar por este sofrimento era lícito, pois isso acarretaria uma mudança

social, entretanto isso somente faria sentindo para aqueles que fossem capazes de

compreender esta mensagem. “Agora, aos que tiverem entre as mãos este livro,

gostaria de exortar que não se desconcertem diante de tais calamidades, mas pensem

antes que esses castigos não sucederam para a ruína, mas para a correção da nossa

gente” (2Mac 6,12). Entretanto este sofrimento possui um limite de tempo, assim como

a ira de YHWH que vai se acumulando até que, por fim, venha a transbordar.

É um ciclo que sempre se repete nas histórias judaítas, as reviravoltas

principalmente quando relacionadas a vitória nacional são correlacionadas a

fidelidade do povo a Deus, enquanto os fracassos, derrotas, exílio estão sempre

ligados a idolatria e abandono da “verdadeira” fé. Aqui não é diferente, quando

pressionados a abandonar a sua fé e tradições logo trazem a memória aquilo que o

seu passado diz sobre fazer tais escolhas.

No âmbito político, como indicamos no capítulo anterior, facilmente

conseguimos identificar alguns grupos concentrados em criar burburinhos e

analisando possíveis estratégias ou esquemas, buscando criar laços e alianças que

trouxessem algum tipo de benefícios, sejam eles monetários ou ligados ao acúmulo

de poder. Um exemplo disso é a figura do sacerdote que vai mudando, aumentando a

influência deste dentro da sociedade no tocante a vida cívica, deixando de exercer

influência assim, somente dentro do círculo religioso.

Anos atrás, mais precisamente durante o combate entre Antíoco III, o Grande,

e os ptolomeus, dois partidos disputam entre si ao demonstrarem apoio ao governo

ptolomaico e o outro favorável aos selêucidas. Havia ainda uma terceira via que

defendia a independência e soberania judaíta. Obviamente após tantos saques e anos

114

pagando impostos, assentados numa região de intensa e extensa disputa entre dois

grandes impérios, por fim, sendo explorados por um estado preso a uma grande crise

financeira, seria natural a ânsia por autonomia e libertação de tais condições. A

realidade do império selêucida se agravou no período de Antíoco IV Epífanes,

principalmente o saldo para com Roma. Portanto a opção de se libertar de tal

circunstância parecia ser a melhor proposta a ser buscada.

Um motivo que capturou a atenção e o engajamento da população judaíta na

adoção do estilo de vida helenista, principalmente para a alta classe, eram algumas

oportunidades que vinham coligadas ao título de cidadãos da pólis. Uma delas era a

maior facilidade de entrar no mundo comercial e consequentemente acumular

riquezas, esta regalia somada a outras (como: direitos, costumes, filosofias, entre

outros) serviram de tentação para que muitos mudassem de ideia resultando na busca

por se tornar um grego, abandonando a sua própria nacionalidade.

Nos anos iniciais do domínio selêucida a cultura helenista não apresentou uma

grande ameaça e a convivência entre as duas culturas, judaíta e grega, pode ter sido

possível. Não há relatos ou grandes acusações contra Antíoco III, o Grande, ou o seu

filho Selêuco IV, que buscou seguir a mesma forma de governo que a de seu pai.

Entretanto, quando Antíoco IV Epífanes sobe ao poder e muda a base de governo

impondo o helenismo como um dos principais pilares de seu governo aí então é que

surgem as faíscas. O quadro geral deste grande momento de tensão do século II a.C.,

exemplifica que era apenas uma questão de tempo até que aqueles três grupos

distintos começassem a entrar em atrito novamente e, por fim, colidissem de forma

irrevogável.

Estes tipos de literaturas, portanto, não só alimentavam a fé ou a esperança

daqueles que estavam sendo perseguidos, como também serviu da melhor forma para

favorecer um grupo que não possuía nenhum apoio político ou militar que os

assegurasse pela retaguarda.

O grupo que apoiava os ptolomeus poderia negociar e planejar em conjunto

formas para contra-atacar os selêucidas quando despontasse um momento de

fraqueza do governo em vigor. Enquanto os apoiadores do império selêucida, ao

conseguirem seu “passaporte” helenista dissecaram tantas oportunidades quanto

possível para enraizar o poder ganho e se certificar de que nada oferecesse o menor

tipo de ameaça para tirá-lo de suas mãos. Assim como também era de grande

interesse do governo vigente que não houvesse qualquer tipo de mudança na forma

115

de administração para que a consolidação do poder ocorresse de forma pacífica e,

consequentemente mais econômica para os cofres fracos. Pois assim que o poder

estivesse estabilizado, de fato, as chances de revoltas emergirem seriam

praticamente nulas, e se surgissem, estas instâncias consolidadas poderiam

facilmente controlá-las não sobrecarregando o estado que já se encontrava preso a

uma grave crise financeira.

Para as pessoas que defendiam a autonomia da Judeia não havia um governo

que enxergasse tal conquista como uma vantagem, de forma que lhes oferecessem

qualquer tipo de apoio. Não havia muitos recursos que pudessem ser utilizados para

bancar um grande exército que ainda por cima se encontrasse a altura de enfrentar

os selêucidas, ou prevenir um futuro ataque ptolomaico. Assim como não havia muitos

recursos para se investir na compra de materiais, nem tempo o suficiente para treinar

homens para a guerra.

As perseguições e mortes em massa do povo judaíta surgiram como um

elemento que acabou originando o momento ideal para o surgimento de uma revolta,

ainda que macabra, mas acabou possibilitando o início da caminhada para a tão

sonhada autonomia. Mas como fazer com que os concidadãos aceitassem o convite

de entrar em tal batalha? Primeiro era necessário distinguir aqueles que não se

encaixavam as novas exigências impostas, depois animá-los a buscar, lutar por uma

nova solução que de preferência pudesse auxiliar também na resolução de outros

problemas.

Qual seria a forma mais natural e efetiva do que correlacionar as histórias do

passado com a situação atual, onde os novos heróis seriam aqueles que aceitassem

o desafio, além de que a possibilidade de alcançarem êxito na revolta resultaria na

oportunidade de que os participantes tivessem suas vidas mudadas. A vitória

asseguraria uma mudança de rumo, não apenas relacionado a vida religiosa, mas as

instâncias de poder, como ocorreu posteriormente a purificação do templo.

Após a família do sacerdote Matatias, de uma aldeia chamada Modim se retirar

para o deserto, este teria sido o sacerdote que começou a influenciar os seus filhos a

lutarem contra o helenismo mesmo que para isso tivessem de ir para a guerra, Josefo

(2004, p.467) descreve:

Esse virtuoso e nobre judeu queixava-se frequentemente a seus filhos do estado deplorável em que a nação se encontrava: da ruína de

116

Jerusalém, da desolação do Templo e de tantos outros males que a afligiam. E acrescentava que lhes seria muito melhor morrer pela defesa das leis e da religião de seus pais que viver sem honra em meio a tantos sofrimentos.

Após a morte de seu pai, Judas Macabeu e os seus irmãos se dedicaram em

prosseguir com a missão um dia iniciada por seu pai. Era necessário, reforços para

que pudessem alcançar a ordem, a princípio, religiosa da Judeia. Ao entrarem em

aldeias e cidades, conseguem convocar 6 mil homens que os seguem e começam a

invadir outras aldeias e cidades protegidos pela noite e incendiando elas (2Mac 8,1-

7).

Quando os avanços dos rebeldes macabeus chegam a Antíoco IV Epífanes

este havia se retirado para o Leste rumo a Babilônia e as regiões circunvizinhas em

busca de arrecadações. O soberano selêucida não pensou que enfrentar os rebeldes

iria lhe custar tanto esforço, ou que em tão pouco tempo ele viria a ficar gravemente

doente. E muito menos que esta doença o levaria a morte em 164 a.C.

3.3 Denominação dos Santos e sua Proximidade aos Rebeldes

O que fazer quando o poder governamental é desafiado por um grupo e acende

uma luz de alerta ao líder do império? Ao ser contraposto pelos piedosos judaítas que

se negavam a comer, carne de porco, ou oferecer sacrifícios a outros deuses, Antíoco

IV Epífanes soube que seria necessário tomar uma decisão que não só controlasse a

situação na Judeia. Por isso, ele sabiamente orquestrou uma lição cujo objetivo

alcançado fez com que as outras regiões dominadas por ele esquecessem a menor

tentação de se opor a suas ordens. Assim como o seu “líder inspiração”, Alexandre, o

Grande, o fez no início de sua ascensão ao trono.

Ademais que transformar a forma de governo dentro do império para algo que

fosse mais linear e uniforme facilitaria o encargo de Antíoco IV Epífanes. Por sua vez

diminuiriam as chances de surgirem revoltas e asseguraria que a dívida contraída com

Roma por seu antecessor seria honrada. Isto justificaria o porquê de se aplicar tão

duras punições para aqueles que ousassem infringir os seus decretos. O medo da

morte ou da perda de pessoas que eram a garantia do sustento do lar, era o suficiente

para que muitos repensassem as suas ações e, portanto, a ideia de aceitar o

helenismo agora quando reanalisada não parecia ser tão ruim assim.

117

Quando colocado na balança seu “antigo” estilo de vida com o que estava

sendo proposto, no helenismo havia muitas outras oportunidades e novas portas que

eram abertas para que a qualidade de vida melhorasse. Seja ela através de uma nova

profissão, entrada no círculo intelectual, entre outros. Por isso, as punições podem até

mesmo ter servido como o ponto que faltava para impulsionar a muitos para ter

coragem de publicamente renegar suas raízes e abraçarem as novas vantagens

propostas.

Com as novas leis e punições contra aqueles que ainda assim se negavam a

abandonar o seu “antigo” estilo de vida, abandonando a sua identidade, surge a

necessidade de ancorar a sua decisão em algo que pudesse lhes dar forças para

continuar firme em sua decisão. Uma base de apoio e incentivo para que

continuassem unidos era o ideal para este grupo que começava a se destacar e ficar

cada vez mais evidente no meio da nova realidade na Judeia.

Não é à toa que o gênero apocalíptico tenha se difundido tão rapidamente neste

período e que Daniel tenha ganho um destaque no meio dos círculos tradicionais

piedosos. O ambiente no qual ele surge era propício para que houvesse uma difusão

de sua mensagem com grande facilidade. São trazidas em sua obra, mensagens de

esperança que apontam para um futuro diferente e que influenciam as pessoas a

seguirem em frente, a continuarem lutando, se impondo quando presas em situações

limites. Embora o horizonte para esses grupos estivesse muito obscuro por tempo

indeterminado, essas leituras incentivavam a preservação da fé, através de

reafirmações acerca da soberania de YHWH.

Ao correlacionar o poder de YHWH com as memórias do passado, o autor de

Daniel, consegue fazer o “jogo” de memória onde os seus leitores associam a situação

presente a outras já vividas no passado, esperando que o desfecho se assemelhe

desde que as suas atitudes e escolhas permaneçam dentro do parâmetro exigido. Um

exemplo disso, o castigo do exílio que foi considerado como uma consequência,

segundo a denúncia dos profetas, por causa da idolatria, logo se eu negar esses

“outros deuses” alcançarei o livramento e serei bem-sucedido naquilo que eu fizer.

Pois não há o porquê de haver castigo quando há obediência, portanto, o momento

de correção das iniquidades passadas haveria de passar e as coisas começariam a

melhorar.

A visão de Daniel abordada em nossa pesquisa, teria sido talvez, dentre as

visões contidas nesta obra, a mais próxima da realidade dessas pessoas que estavam

118

desesperançadas e sofrendo o luto, seja por parentes que perderam ou por ver a

desolação do seu povo em massa (2Mac 5,12-14 e v.26). Ela traz através de seus

símbolos a descrição do que estava ocorrendo, “fez cair em terra o exército das

estrelas pisando-os” (Dn 8,10b). Exército (צבא) este, como afirmado no primeiro

capítulo desta pesquisa, que simboliza o povo de YHWH.

Nossa perícope contêm uma denúncia sobre as coisas terríveis que estavam

atingindo ao corpo deste exército celeste. Eles estavam sendo lançados em terra e

pisoteados, golpeados duramente, sofrendo de machucaduras profundas, resultando,

por fim, na morte de muitos. Logo este tipo de relato dentro da narrativa teria

corroborado para que os fiéis compreendessem que a passagem pela dor seria algo

necessário a ser enfrentado.

Entretanto, logo após a denúncia não há nenhum apontamento sobre como

este exército será livrado ou resgatado de tal humilhação. Pelo contrário, rapidamente

a narrativa coloca o pequeno chifre, Antíoco IV Epífanes, no mesmo patamar do

grande oficial deste exército (א Figura que aponta tanto para a posição .(שר־הצב

humana de sumo sacerdote, quanto no sentido teológico, para o próprio YHWH. O

pequeno chifre “detêm” até mesmo o poder sobre a vida, pois é ele quem dita acerca

de quem será morto ou não, determinando através de seu poder governamental. Ele

também é referido como o próprio “ditador” do culto, visto como ele até mesmo chegou

a se autointitular como deus manifesto.

Antes que o povo cometesse o mesmo erro, recorrente do seu passado, a visão

logo alerta sobre a fragilidade do templo, o local sagrado (ו קדש וןמ pois ele ,( מכ

também sofre com as consequências das ações de Antíoco IV Epífanes. Parece que

propositalmente há este tipo de alerta na visão, se preocupa em frisar sobre depositar

a confiança no templo, local físico, em vez de confiar em sua divindade. Este tipo de

confiança depositado num lugar não faria diferença alguma, como havia sido dito ao

povo no passado, através das profecias do profeta Jeremias. Agora não só o templo

lhes havia sido confiscado e tornado em local de “transgressão” como também lhes

foi cortado o sacrifício da continuidade (יד resultando num “corte” do ,( תמ

relacionamento do povo com YHWH. Se não há oferecimento de sacrifícios para o

abono de pecados, logo por ficarem impuros não há como entrar na presença do santo

YHWH, o seu Deus imaculado.

119

Isto logo justifica a indignação ou insatisfação do santo no v.13, assim como os

leitores da visão que também levantam tal questionamento. Se todas as coisas que

eram feitas e que garantiam para o povo judaíta as obtenções da segurança divina

foram cortadas, como poderia haver uma certeza de que seria possível alcançar o

favor de YHWH? Diante de seus olhos havia apenas um cenário negativo, onde

segundo as suas tradições há uma distorção da justiça e o encobrimento da maldade

(ex. o assassinato do legítimo sumo sacerdote e dos mártires).

A visão de Dn 8,1-14 introduz e desenrola-se em volta da figura de dois animais

(um carneiro [יל יר] e um bode [ א travando um combate violento que só se finda ([ צפ

quando um deles é totalmente aniquilado. Vimos até aqui um consenso entre

estudiosos (tanto no primeiro quanto no segundo capítulo de nossa pesquisa) quanto

as representações desses animais, que parecem retratar dois impérios, sendo eles: o

persa e o grego. Os animais sacrificiais que representam países estrangeiros que

subjugaram a Judeia, impondo caros impostos e tiraram proveito de suas terras. Um

questionamento a se fazer seria o porquê de se utilizar dois animais sacrificiais nesta

visão?

Antes do exílio, os profetas traziam em suas profecias denúncias contra a

classe sacerdotal que estava tirando proveito do povo, entretanto o cenário “atual” era

diferente daquele tempo, então por que utilizar tais figuras? Aparentemente as

denúncias continuam sendo feitas contra os sacerdotes, que talvez no século II a.C.

não estivessem tirando proveito diretamente do povo, mas estavam se vendendo a

governos estrangeiros visando alcançar benefícios e favores desses impérios

expandindo o seu poder.

Além disso havia a inserção e utilização da figura do santo (וש cujo papel é (קד

primeiramente realizar o lamento, um questionamento no v.13 frente aos

acontecimentos narrados. Como vimos no primeiro capítulo de nossa pesquisa, tal

figura estava correlacionada a presença de YHWH, podendo ser aplicada em duplo

sentido, designando tanto a um ser angelical67 , quanto para se referir a um judeu

piedoso68 . Servindo, portanto, dentro de nossa narrativa como um contrapeso aos

outros símbolos já empregados pertencendo ao templo e a esfera religiosa.

67 (STEFANOVIC, 2007, p.308) 68 (COLLINS, 1999, p.85-86)

120

Esta figura dos santos também é mencionada em Dn 7,18 e 27 (vocábulo

utilizado י יש וש enquanto o vocábulo utilizado em Dn 8,13 é ,קד nestes dois versos ,(קד

é afirmado que o reino e o poder serão dados aos santos do Altíssimo, El Elyon.

Embora não seja exatamente o mesmo vocábulo utilizado em nossa narrativa, vemos

concordância na ideia de correlacionar os santos, um grupo diferenciado dos outros

presentes na narrativa, a Deus, sendo estes mesmos santos aqueles que agradam a

YHWH ao ponto de receberem o “poder” de herdar o reino e purificar o local sagrado.

Outra semelhança entre esses dois capítulos de Dn (7 e 8) é que se findam

após dizer algo sobre, ou relatar a fala de um dos santos. Estas finalizações nas

narrativas mostram ao leitor que a ação final dos acontecimentos está ligada ao

comportamento dos santos. Seja para receber os reinos ou para purificar o local

sagrado é necessário que os santos passem pelo cenário terrível narrado nos

capítulos mencionados.

O autor/redator final de nossa perícope parece sentir a necessidade em deixar

nas entrelinhas da narrativa este contraste de figuras dentro da sociedade, aqueles

que se indignam com a situação são aqueles que não estão envolvidos diretamente

com as figuras centrais da cena. Ou seja, são pessoas que não se encontram em

contato direto com o mundo grego ou estão diretamente inseridos no templo de

Jerusalém. Este poderia ser um indicativo ou pista deixada pelo autor/redator final na

visão apontando para sua presença dentro deste mundo conflituoso. Não só está em

cena, como se põe ao lado daqueles que pertencem a um grupo que se retira para

longe deste contato com aquilo que ao tocar no que é santo o corrompe e acumula

transgressão. Este grupo que é representado pelos santos na narrativa, não só estão

insatisfeitos como estão prontos para intervir no cenário.

Como então seria sequer possível haver qualquer tipo de mudança no cenário

atual de sua sociedade? Não havia quaisquer indícios de que a situação pudesse ser

mudada ou transformada. A única segurança que servia de sinal para que os tempos

fossem mudados haviam sido aniquilados. E a visão está apenas refletindo a sua

realidade.

Neste momento o v. 14 surge como a resposta ou o “milagre” esperado que

povo precisava, para que tudo pudesse ser concertado e assim colocado novamente

na forma que costumava ser. Tudo isso perdurará, o outro santo afirma ao primeiro

que estava se indagando acerca de tais acontecimentos “E dizendo para mim até noite,

121

manhã duas mil e trezentos, então justificarei

santuário”דש׃ ק ק ות ונצד א ש מ ים ושל קר אלפ רב ב ד ע י ע ל אמר א .(וי

Quando se cumprisse o tempo estabelecido então certamente haveria uma

nova separação entre os piedosos fiéis, que se preocuparam em guardar as leis e os

que se permitiram ser “misturados” com a nova cultura, perdendo assim a sua

“essência”. Os “imaculados” que perseveram até o fim receberiam a sua recompensa,

enquanto os “infiéis” passariam pela penitência a fim de que cumprissem o que seria

“justo”.

Durante os tempos difíceis narrados no livro de Segundo Macabeus, no meio

desses relatos surgem duas narrativas de martírio. A primeira acerca de Eleazar, um

idoso judaíta piedoso, que ao se negar a comer carne de porco ou até mesmo de fingir

que havia comido para não “dar mau exemplo” aos jovens, é surrado até a morte. O

discurso antes de morrer leva o seu ouvinte a ser incentivado a procurar a morte em

vez de se dobrar a vontade de “homens”. O segundo relato traz a tragédia de uma

família, onde a mãe vê os seus sete filhos morrerem por negarem a dar as costas as

suas tradições e fé, por fim ela mesma vêm a ser morta, após incentivá-los a

permanecerem fiéis até o fim.

Estas narrativas buscam fortalecer um grupo quando esses tipos de notícias

tristes chegam à comunidade e lhes tiram as forças de continuar lutando. Os dois

relatos citados têm por fim, frases de incentivo onde reafirmam que YHWH continua

soberano sobre todas as coisas e que a fidelidade a ele vale mais do que a própria

vida. Exatamente como vemos na obra de Daniel.

Como citado no primeiro capítulo desta pesquisa, o gênero apocalíptico tem

esta função de reafirmar a soberania de YHWH sobre os acontecimentos históricos,

onde se defende que a ação divina pode intervir na história humana. Logo, morrer por

escolher não abandonar YHWH acaba ganhando uma certa conotação honrosa e não

de profunda tristeza. Servindo como um incentivo para que a luta em combater as

imposições “culturais” não se finde, garantindo que estas vidas não tenham sido

perdidas em vão. Além de que estes discursos conferem forças para que prossigam

corajosamente evitando que outros sejam abatidos futuramente e mais inocentes

sejam condenados.

De igual forma, ao empregar os símbolos na narrativa de Daniel 8,1-12,

percebemos um cuidado do autor na sua escolha, pois para alcançar êxito na

transmissão de sua mensagem era necessário empregar símbolos que tivessem um

122

significado simples e de fácil correlação com a realidade vivida. Senão o propósito do

texto não haveria de atingir o seu objetivo principal, que é fazer sentido ao leitor. Não

adiantava, portanto, utilizar de símbolos que estivessem fora da realidade dos seus

leitores, assim como não podia ficar preso no passado, isto é, utilizar-se de linguagens

fora de época.

A compreensão do texto era a base fundamental para a sua utilização, ainda

mais quando se visava atrair simpatizantes a causa defendida. Sendo este um meio

eficaz de incentivar e convencer os seus compatriotas a tomar parte no grupo de

corajosos que iria se impor publicamente, se opondo radicalmente as medidas

impostas pelo governo. Este grupo de rebeldes se levantaria e buscaria reconquistar

não só a confiança do povo ou proporcionar a sua própria segurança, mas o resultado

visava a tão sonhada autonomia nacional.

3.4 A Resposta para o Lamento dos Santos

Em meio a tantas repostas e cenários negativos e sangrentos, quase comuns

durante o segundo século, era necessário apenas uma faísca de esperança para que

assim muitos pudessem se engajar na busca de um ideal que há muito tempo existia

apenas no imaginário de alguns judaítas. Um discurso simples que pudesse trazer

aos seus ouvintes esta centelha que apontava para um caminho que ao menos

prometia que dias melhores eram possíveis.

Em nossa visão de Daniel 8,1-14, particularmente encontramos esta

mensagem nos versos finais. Após relatar tudo o que haveria de ocorrer e de ser

suportado, se finda a visão pondo um limite a ser calculado, (ות א ש מ ים ושל קר אלפ רב ב ,(ע

duas mil e trezentas noites e manhãs (Dn 8,14). Isto significava que o sofrimento não

duraria para sempre, mas que eles estavam limitados.

Esses números somados, duas mil e trezentas noites e manhãs, como

apresentado anteriormente, no primeiro capítulo, segundo a observação feita por

Stefanovic (2007, p.309) são apenas números simbólicos. Entretanto decidimos por

partir da provocação de Stefanovic e do cruzamento de informações levantadas até a

presente etapa da pesquisa e assim reanalisar os números simbólicos da visão sob

uma nova ótica.

Seguindo a sugestão do autor, começamos por dividir o número de 2.300

manhãs e noite por dois (separando assim quantas manhãs e noites havia dentro

123

deste número, seguindo a lógica de Gn 1) chegamos ao número de 1.150 dias, que

equivalem a cerca de 3,15… anos.

Embora esses números aparentem ser apenas simbólicos 69 , quando

observamos o período em que ocorreu a profanação do templo, a retirada dos

macabeus para o deserto e por fim a purificação do templo (no vigésimo quinto dia do

mês de Casleu, 2Mac 10,5) conseguimos nos aproximar do período, embora não

alcancemos os três anos exatos (168-164 a.C.)70. Vemos, portanto, ao utilizar estes

números no meio da narrativa uma tentativa do autor/redator em reforçar ainda mais

a presença de Daniel neste círculo rebelde macabaico.

Ao nos questionarmos acerca dessa escolha do autor/redator final, preferindo

separar a contagem de manhãs e noites, em vez de simplesmente juntá-las, pode

também indicar que, a redação final desta narrativa, tenha ocorrido antes do desfecho

da revolta macabaica. Podendo esta ser então uma data limite para que a “reconquista”

do templo ocorresse.

Ao analisarmos em conjunto os versos 13-14, é possível encontrar pistas o

suficiente para conseguir vislumbrar a figura deste autor/redator final em meio aos

rebeldes macabeus. A visão toda se passa aos olhos de Daniel, personagem principal

que não tem nenhum tipo de ação, a não ser o condicionamento de observar o

desenrolar da história. Sua proximidade com os santos indica que as ações que os

exércitos do céu e estrelas sofrem não lhe atingem diretamente causando qualquer

dano corpóreo, a não ser indignação e repulsa. Como os santos descritos na visão,

Daniel não se sente tentado em abraçar a prosperidade alcançada pelo pequeno

chifre, ou a participar de suas transgressões. Esta semelhança de comportamento

parece indicar que estes personagens (os santos e Daniel) compartilhem não só

opiniões, mas sejam próximos, muito embora Daniel não participe diretamente da

conversa entre os santos.

A afirmação que vem depois do tempo limite imposto para que continuem

ocorrendo as ações do pequeno chifre é de suma importância “então justificarei

santuário” (דש קק Está é a resposta de um santo a outro, que indica que ambos .(ונצד

estão em conjunto. Portanto, os encarregados a cumprir esta justificação do local

santo são identificados como os santos, que representam os macabeus que cumprem

69 Isto é na afirmação de Stefanovic (2007, p.309) que sejam apenas números simbólicos. 70 Por não serem números exatos, sobraria apenas alguns números após a vírgula, “sobrando” ou

indicando a margem que normalmente aparecem em alguns cálculos de períodos.

124

esta purificação por volta de 164 a.C., quando estes reconquistaram o templo e o

purificaram. Ao seu lado participando a conversa, mesmo sem dizer uma palavra se

encontra Daniel, representando na narrativa o autor/redator final.

No capítulo 9 de Daniel é introduzido na narrativa, a terceira visão do segundo

bloco da obra, a questão do tempo para remissão das transgressões. Ao contrário da

nossa perícope a contagem de tempo não é feita em manhãs e tardes (Dn 8,14), mas

em semanas (Dn 9,24). Ambas as visões se findam enfatizando sobre a purificação

em Dn 8 relacionado ao lugar santo, enquanto em Dn 9 está ligado a Jerusalém. O

tempo de purificação vem após a um lamento, questionamento acerca das coisas que

estão acontecendo ou após uma oração de súplica e penitência (como em Dn 9,3-19).

Embora ambas as narrativas tenham a contagem de tempo diferentes e não sejam

totalmente exatas, ambas remontam a um tempo de preparo, enquanto aguardam a

purificação que apontam para a aceitação de YHWH. Pois a purificação significava

também a restauração do povo, cura de feridas e perdão. Vemos nisto uma

preocupação maior do que apenas relatar um tempo exato para que ocorra a

justificação, o autor também parece estar sinalando para um momento em que YHWH

se reconectará com o seu povo. Sobre isso 2Mac 6,12-17 e 7,32-33, o autor explana

o sentido de eles estarem passando por perseguição, vemos em seu discurso que

este momento de castigo e penitência era necessário para que após a punição divina

houvesse a reconciliação.

Nisto podemos compreender que em todo movimento realizado na narrativa de

Dn 8,1-14 há uma grande preocupação do autor/redator final em identificar um grupo

que é destinatário desta mensagem apocalíptica. A mensagem desta visão tem um

propósito, é a esperança que este círculo de piedosos necessita para se manter fiel e

firme no seu propósito. É a voz que contrasta com a nova realidade enfrentada, sendo

a força de muitos em prosseguir.

Os rebeldes macabeus, como identificamos anteriormente em nossa pesquisa,

é o grupo do século II a.C. ao qual esta mensagem se destina, é o entusiasmo para

que prossigam em sua luta. As semelhanças sobre alguns temas tratados entre as

próprias obras de 2 Macabeus e Daniel, são um indicativo desta aproximação, que é

desenhada de forma mais direta como vimos em nossos versos 13-14, quando Daniel

ouve a conversa dos santos. O cálculo sobre a purificação nos aponta para o futuro

no qual eles se empenham em alcançar ao iniciar as suas incursões contra o poder

selêucida.

125

Aqui vimos, portanto, o gênero apocalíptico cumprindo a sua função, ao ser

inserido no meio de um grupo desestruturado, sem esperanças cuja fé não estava

firmada ou baseada no que os governos e poderes humanos podiam fazer. Para estas

pessoas que viviam em situações-limite as respostas humanas, forças institucionais

ou fomentos governamentais não tinham habilidades para fornecer a segurança que

era desejada. Sua base se encontrava enfraquecida, sem o templo e vivendo entre

infortúnios, é neste meio que nosso texto encontrou o público-alvo e buscou fortalecê-

los para enfim eles conseguirem mudar a situação a sua volta.

Com tudo isso nos foi possível perceber diversos sinais sobre a presença do

autor/redator final no meio desses rebeldes macabeus de forma direta. Além de nos

possibilitar perceber a forma como os textos religiosos, são capazes de exercer

influência direta na conduta e no proceder de um grupo distinto. Especialmente

quando os seus leitores se deparam com diversas semelhanças entre uma narrativa

e a sua vida real.

3.5 Considerações Preliminares

Neste último capítulo da nossa pesquisa, procuramos retomar um pouco do

contexto histórico referente ao período de governo de Antíoco IV Epífanes o

analisando a partir da reação macabaica. Procuramos correlacionar por fim, as

atitudes desses líderes da revolta com o relato da visão de Daniel 8,1-14. Com esse

cruzamento de informações buscamos observar as influências e semelhanças

encontradas entre os eventos históricos e a narrativa base desta pesquisa.

Através de tal exercício encontramos muitos pontos que se ligaram

demonstrando que de fato, há uma estreita proximidade entre as fontes que podem

fornecer explicações para o porquê de tais posturas serem tomadas pelo grupo

macabeu. Como também servem para um apontamento da afirmação de que tal

resposta possibilitou o “cumprimento” da visão apocalíptica. Desta maneira a narrativa

indica mais uma vez, ainda que de maneira indireta, a soberania de YHWH, dos

costumes e Leis dos antepassados sobre a cultura estrangeira. Reafirmando-se,

dessa forma, mais uma vez dentro da história judaíta a vitória de YHWH sobre os

deuses estrangeiros.

As figuras utilizadas principalmente dentro deste capítulo foram o exército dos

céus e das estrelas, que representaram o povo de YHWH que padeceu nas mãos de

126

uma classe que se deixou seduzir pelos benefícios encontrados na cultura helênica.

Retomamos brevemente as figuras do carneiro e do bode, buscando compreender o

uso desses itens sacrificiais na narrativa e sua relação com o oficial do exército que

na narrativa foi igualado ao poder do pequeno chifre. Assim como também

observamos os elementos semelhantes, como os santos em Dn 7 e as setenta

semanas em Dn 9 realizamos um breve paralelismo entre estas narrativas observando

a utilização de tais símbolos. Através desta aproximação entre as narrativas

compreendemos o papel de tais figuras dentro dessas visões que mesmo empregadas

de forma diferente se complementam dentro deste segundo bloco apocalíptico da obra

de Daniel.

Por fim, retomamos a figura dos santos e o seu lamento. Percebemos diversas

pistas sobre a presença do autor/redator final no meio da revolta macabeia entre os

versos 13-14 de nossa perícope. Nestes versos, o autor/redator final, apresenta-se ao

lado desses santos, que representam o círculo de judeus piedosos, que buscam se

manter longe para não se “contaminar”, mas perto o suficiente para agir quando

permitidos.

A menção do tempo marcado pelas manhãs e noites da mesma forma, se

encaixou dentro do prazo em que os macabeus restauraram o templo aos velhos

costumes, o purificando das “transgressões” sofridas.

4 CONCLUSÃO

No decorrer desta pesquisa, nos desdobramos em detalhadamente analisar a

perícope de Daniel 8,1-14 partindo inicialmente de uma apresentação geral da obra

de Daniel. A partir desta breve análise sobre o panorama geral da obra possibilitou-

nos compreender melhor a perícope em questão, assim como o seu lugar dentro da

obra. Assim como sobre o gênero apocalíptico, os elementos que o compõe, assim

como as situações propícias para que ele se prolifere com maior facilidade. Esta

informação foi essencial para podermos correlacionar nossa perícope com o período

macabaico e o cenário que o compõe.

127

Seguimos com a execução do exercício da exegese onde encontramos os

principais símbolos utilizados em nossa perícope, assim como a estrutura de nossa

narrativa. Utilizamos esta estrutura como base para levantar e apresentar as

informações históricas e relermos a realidade do século II a.C. sob a ótica piedosa e

macabaica, sem nos esquecermos de nosso texto base.

Os símbolos encontrados em nossa perícope foram brevemente introduzidos

em nosso comentário exegético. Procuramos ter o cuidado de não esgotar o assunto

e se aprofundar demais na análise destes símbolos logo no primeiro capítulo, visto

que o retomaríamos nos capítulos seguintes. Nosso primeiro capítulo foi a base

principal para a construção de nossa pesquisa, pois a partir dele encontramos as

ferramentas e as direções para dar sequência com as análises realizadas

posteriormente, assim como para que compreendêssemos o mundo ao qual nossa

narrativa estava envolvida.

Em nosso segundo capítulo, retomamos alguns dos principais símbolos

utilizados em nossa pesquisa, apresentando o contexto histórico que cada um

daqueles símbolos representava. Com a análise histórica percebemos a preocupação

do autor em, ainda que brevemente, apresentar de maneira sucinta o desenrolar

histórico que culminou no estabelecimento do império selêucida na Judeia.

Localizamos em meio a esta transição histórica o aparecimento de três grupos

importantes na Judeia, sendo eles: os que apoiavam o controle selêucida; aqueles

que defendiam o poderio ptolomaico; e o menos favorecido dentre eles, o grupo dos

judeus piedosos, mais conhecidos como macabeus que se reuniram e corajosamente

se levantaram em oposição ao governo vigente.

Em meio a este período conturbado no qual a briga por quem acumularia mais

riquezas, influência e poder estava a todo vapor, muitos perderam as suas vidas, e

ainda outros foram perseguidos por não se encaixarem as novas imposições culturais.

É neste meio que surge um novo gênero literário que se prolifera rapidamente,

principalmente no meio daqueles que já não tinham mais qualquer tipo de esperanças

nas instituições humanas. Procuramos em nosso segundo capítulo comedidamente

expor o contexto histórico, sem perder o foco de nossa pesquisa, o que foi de fato, um

trabalho muito tentador. No entanto, a realização de tal investigação nos aproximou

da realidade retratada em nossa visão, podendo assim aprofundar o sentido de cada

símbolo utilizado em nossa narrativa.

128

Em nosso terceiro e último capítulo, além de aprofundar a nossa análise acerca

de outros símbolos, como: os santos; os exércitos dos céus e das estrelas; o oficial

do exército; o pequeno chifre; e as duas mil e trezentas manhãs e tardes. Neste

capítulo, tendo como base as informações que foram levantadas até aqui

encontramos algumas pistas que fundamentalmente corroboraram para nossa

compreensão acerca do autor/redator final. Percebemos a sua presença não apenas

no período narrado, como também a sua proximidade a este grupo de piedosos que

se rejeitaram a se submeter a tentação oferecida pela cultura helenista. Refutando a

busca de saciar os seus próprios desejos ambiciosos, como a classe sacerdotal e

aristocrática se debruçaram em acumular, se mantendo fiéis a seus princípios mesmo

quando perseguidos e condenados a duras penas.

Nos foi possível ainda observar em nossa pesquisa o poder de influência que

um texto religioso pode ganhar em meio a um círculo piedoso que se encontra

enfraquecido e ameaçado. Desta forma vimos que nossa perícope não só serviu para

informar os seus leitores, mas encontrou um nicho fragilizado dentro da sociedade e

colaborou para que estes se fortalecessem ao se unirem e apresentassem essa sua

força ao se erguer contra o líder de seu império. Teologicamente nosso autor/redator

final reafirmou, por fim, mais uma vez a soberania de seu Deus que não só podia

submeter a si governos, impérios e outros deuses, mas que também podia intervir e

derrotar as culturas humanas.

BIBLIOGRAFIA:

DICIONÁRIOS:

DE BLOIS, Reinier; MUELLER, Enio R. Dicionário Semântico do Hebraico Bíblico. Sociedades Bíblicas Unidas. Disponível em: <http://semanticdictionary.org/dictionary/>Acesso em: 2020.

BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGREN, Helmer; FABRY, Heinz-Josef. (Org.). Theological Dictionary of the Old Testament. Vol. XII. Michigan/Cambridge: Willian B. Eerdmans Publisher Company, 2004.

BROWM, Francis. The New – Brown – Driver – Briggs – Gesenius – Hebrew and English Lexicon. Massachusetts, Hendrickson Publisher, 1979.

129

CLINES, David. (ed.). The Concise Dictionary of Classical Hebrew. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2009. The Dictionary of Classical Hebrew. Vol. IV. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998.

FREEDMAN, David Noel (Editor). The Anchor Bible Dictionary. Vol.4 K-N. New York: Doubleday, 1992.

HARRIS, R. Laird; ARCHER, Gleason; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.

KIRST, Nelson, et al. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. 18ª Ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 2004.

ALONSO SCHÖKEL, L. Dicionário bíblico hebraico-português. São Paulo: Paulus, 1997.

SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2015.

VINE, W. F.; UNGER, Merril F; JR. William White. Dicionário Vine: O significado exegético e expositivo das palavras do antigo e do novo testamento. Rio de Janeiro, CPAD, 2002.

GRAMÁTICAS:

FRANCISCO, Edson de Faria. Hebraico Bíblico: Introdução Panorâmica. São Bernardo do Campo: 2015.

KELLEY, Page H. Hebraico Bíblico: Uma Gramática Introdutória. 5ª Ed. São Leopoldo: Sinodal, 1998.

MENDES, Paulo. Noções de Hebraico Bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2011.

ROSS, Alen P. Gramática do Hebraico Bíblico para iniciantes. São Paulo: Vida, 2005.

BÍBLIAS:

Bíblia Sagrada com Concordância. Ed. Revista e Atualizada. Trad. João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblia do Brasil, 2008.

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002

LIVROS:

ALONSO SCHÖKEL, L.; SICRE DÍAZ, J. L. Profetas II. São Paulo: Paulus, 2002.

BALDWIN, Joyce G. Daniel: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nove, 2008.

BOYS-STONES; George; GRAZIOSI, Barbara; VASUNIA Phiroze. Hellenic Studies. New York: Oxford University, 2009.

BRIANT, Pierre. From Cyrus to Alexander: a history of the Persian Empire. Indiana: Eisenbrauns, 2005.

BURGAN, Michael. Empires of Ancient Persia. New York: Chelsea House, 2010.

130

CAWKWELL, George. The Greek Wars: The failure of Persia. New York: Oxford University Press, 2005.

COLLINS, John J.; FLINT, Peter W.(orgs). The Book of Daniel: Composition & Reception. Boston, Brill, 2001. (TRADUÇÃO PRÓPRIA)

_________, John J. Daniel with an Introduction to Apocalyptic Literature. Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company, 1999.

DOUKHAN, Jacques B. Secrets of Daniel: Wisdom and Dreams of a Jewish Prince in Exile. USA: Review and Herald Publishing Association, 2000.

FREEMAN, Philip. Alexandre, O Grande. Tamboré: Editora Manole Ltda, 2016.

GREEN, Peter. Alexandre, o Grande e o período helenístico. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2014.

HASSLER, Mark A. The Identity of the Little Horn in Daniel 8: Antiochus IV Epiphanes, Rome, or the Antichrist? MSJ 27/1 (Spring 2016)

HOLLAND, Tom. Persian Fire: The first world empire and the battle for the West. New York: Anchor Books, 2005.

JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus: de Abraão à queda de Jerusalém. Rio de Janeiro: CPAD, 2004. (8ª edição)

KAEFER, José Ademar. Coélet e a Idolatria ao Dinheiro: Um estudo do livro de Eclesiastes. São Paulo: Novas Edições Acadêmicas, 2016.

KOESTER, Helmut. Introduction to the New Testament: History, Culture, and Religion of the Hellenistic Age. New York, Berlim: Walter de Gruyter, 1995.

KRIWACZEK, Paul. Babilônia: A Mesopotâmia e o nascimento da civilização. São Paulo: Editora Zahar, 2018.

LAMADRID, A. González; SANTIGO, Campos J.; JULIÁN, V. Pastor, PUERTO, M. Navarro; ASURMENDI, J.; CARO, J. M. Sánchez (Ed.). Introdução ao Estudo da Bíblia: história, narrativa, apocalíptica. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2004.

LENNOX, John C. Contra a Correnteza: A inspiração de Daniel para uma época de Relativismo. Bangu: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2017.

MARTIN, Thomas R.; BLACKWELL, Christopher W. Alexander the Great: the story of an ancient life. New York: Cambridge, 2012.

PAGÁN, Samuel. Ezequiel y Daniel. Minnesota: Augsburg Fortress Publishing, 2010. (TRADUÇÃO PRÓPRIA)

ROWLEY, H. H. A Importância da Literatura Apocalíptica. São Paulo: Paulinas, 1980.

SIQUEIRA, Tércio Machado. Tirando o pó das palavras: história e teologia de palavras e expressões bíblicas. São Paulo, Editora Cedro, 2005.

STEFANOVIC, Zdravko. Daniel Wisdom to the Wise: Commentary on the book of Daniel. Idaho: Pacific Press Publishing Association, 2007.

TCHERIKOVER, Victor. Hellenistic Civilization and the Jews. Philadelphia, The Jewish Publication Society of America, 1959.

VAUX, W. S. W.; M. A.; F.R.S. Persia from the Earliest Period to the Arab Conquest. London: Society for Promoting Christian Knowledge, 1893.

WATERS, Matt. Ancient Persia: A concise history of the Achaemenid Empire, 550 – 330 BCE. New York: Cambridge Universoty Press, 2014.

131

WIESEHÖFER, Josef. Ancient Persia from 550 BC to 650 AD. New York: I. B. Tauris & Co Ltd, 2001.

ARTIGOS:

AMARAL, André Luiz. Considerações Sobre Pesquisa Das Origens da Apocalíptica. Revista Orácula, São Bernardo do Campo, 3.6, 2007. ISSN 1807-8222.

ANDRADE, Almir Lima. Apresentação dos Contos de Corte no Livro de Daniel: Análise de sua estrutura. Revista Oracula, São Paulo, ano 9, n. 14, p. 46-63, 2013.

BARRY, Phillips. Antiochus IV, Epiphanes. Journal of Biblical Literature, Vol 29, No 2 (1910), p. 126-138.

CARLAN, Cláudio Umpierre; FARIA, Estela. A Política de Alexandre, o Grande, e suas Representações Monetárias. Rio Grande: Historiae, p. 43-52, 2011.

DA SILVA, Ângelo Vieira. Aspectos Históricos-Sociais da Apocalíptica. Revista Orácula, ano 11, n. 16, 2015.

KAEFER, José Ademar. Bem-aventurado aquele que perseverar (Dn 12,12): Uma Introdução ao livro de Daniel. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, n. 52, p.160-168, 2005.

ROSA, Maria de Fátima. A Queda da Babilónia em 539 a.C. Nabónido e Ciro: Duas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk. Universidade Nova de Lisboa, CHAM; Universidade dos Açores, 2018.

SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos; PLAUTZ, Daniel. Antíoco IV Epífanes e a Intervenção Selêucida em Jerusalém: breves considerações a partir do livro de Daniel (11,29-30). NEARCO: Revista Eletrônica de Antiguidade e Medievo. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, volume XI, número I – ISSN 1982-8713

SCHÜNEMANN, Haller Elinar Stach. A História como Profecia: uma forma de relação entre Ciência e Religião no fundamentalismo protestante. Sociabilidades religiosas: mitos, ritos e identidades. XI Simpósio nacional da associação brasileira de história das religiões. Goiânia - UFG – Campus II, 25 a 27 de maio 2009. ISBN: 978-85-7103-564-5

SHEA, William H. História e Escatologia no Livro de Daniel. Revista Teológica do SALT-IAENE, volume 2, 1998, número 1.ISSN 2317-0573

SOUZA, Joana D’Arc de. O Movimento Apocalíptico em seu Contexto Sociopolítico e Histórico. Revista Fragmento de Cultura, Goiânia, v.21, n.1/3, p.69-78, jan./mar. 2011.

VENÂNCIO, Mariana Aparecida; VIEIRA, Geraldo Dondici. O Alvorecer de uma Nova Esperança: A ascensão do império Persa e a libertação de Israel, RHEMA, v. 15, n. 48/49/50, p. 135-148, jan./dez. 2011 – Edição Unificada.