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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO RENAN LEOCADIO DE SOUZA A LUZ DISSIPA AS TREVAS A RAZÃO EMANCIPA AS CONSCIÊNCIAS Apropriações das ideias pedagógicas libertárias na Escola Moderna N.1 de São Paulo (1913-1919) Guarulhos Agosto/2020

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

RENAN LEOCADIO DE SOUZA

A LUZ DISSIPA AS TREVAS

A RAZÃO EMANCIPA AS CONSCIÊNCIAS

Apropriações das ideias pedagógicas libertárias na Escola Moderna N.1 de

São Paulo (1913-1919)

Guarulhos

Agosto/2020

RENAN LEOCADIO DE SOUZA

A LUZ DISSIPA AS TREVAS

A RAZÃO EMANCIPA AS CONSCIÊNCIAS

Apropriações das ideias pedagógicas libertárias na Escola Moderna N.1 de

São Paulo (1913-1919)

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação e Educação

da Escola de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da Universidade Federal de

São Paulo, campus Guarulhos, como

requisito para obtenção do título de

Mestre em Educação.

Linha de Pesquisa: História da Educação

– Sujeitos, Objetos e Práticas.

Orientador: Prof.ª Dra. Renata Marcílio

Cândido.

Guarulhos

Agosto/2020

SOUZA, Renan Leocadio de.

A luz dissipa as trevas. A razão emancipa as consciências : Apropriações das ideias

pedagógicas libertárias na Escola Moderna N.1 de São Paulo (1913-1919) / Renan

Leocadio de Souza – Guarulhos, 2020

188f.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Guarulhos : Universidade Federal de São

Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Humanas.

Orientador: Renata Marcílio Cândido

Título em inglês: The light dispels the darkness. The reason emancipates the

consciences: Appropriations of libertarian pedagogical ideas at Escola Moderna N.1

of São Paulo (1913-1919)

1. Educação anarquista. 2. Escola Moderna. 3. Apropriação do conhecimento. 4.

Práticas educativas. I. Cândido, Renata Marcílio. II. Título.

RENAN LEOCADIO DE SOUZA

A luz dissipa as trevas. A razão emancipa as consciências: apropriações das ideias

pedagógicas libertárias na Escola Moderna N.1 de São Paulo (1913-1919)

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação e Educação da

Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

da Universidade Federal de São Paulo, campus

Guarulhos, como requisito para obtenção do

título de Mestre em Educação.

Linha de Pesquisa: História da Educação –

Sujeitos, Objetos e Práticas.

Orientador: Prof.ª Dra. Renata Marcílio

Cândido.

Aprovada em: 21 de agosto de 2020

____________________________________________________

Prof.ª Dra. Renata Marcílio Cândido – Orientadora

Universidade Federal de São Paulo

____________________________________________________

Prof. Dr. Fernando Rodrigues de Oliveira – Examinador

Universidade Federal de São Paulo

____________________________________________________

Prof.ª Dra. Tatiana da Silva Calsavara – Examinador

Universidade de Santo Amaro

____________________________________________________

Prof. Dr. Bruno Bontempi Junior – Suplente

Universidade de São Paulo

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Renata Marcílio Cândido, que me oportunizou estudar pedagogia

libertária – assunto tão rico quanto complexo – e que, de maneira zelosa, fazia-me atentar ao

meu objeto, aos prazos, ao cuidado com a escrita, ao respeito aos autores e ao rigor

metodológico no tratamento das fontes.

Aos professores Fernando R. de Oliveira, Márcia A. Jacomini e Mirian J. Warde que

deram valiosas contribuições para minha formação e na construção desta dissertação.

A meus pais, Edna Maria Paes de Souza e Osvaldo Leocadio de Souza, que por toda a

vida foram minha maior referência, deram-me forças e o suporte necessários para minhas

empreitadas acadêmicas e tantas outras coisas. À minha querida irmã Juliana Leocadio

LoSchiavo, educadora que muito me inspirou. Sou e sempre serei imensamente grato por tudo!!

À Amanda R. Souza, esposa, e Matheus L. R. Souza, filho, cujo amor é inexprimível,

que tiveram de ser pacientes, ceder momentos de convívio para que eu pudesse me dedicar aos

estudos e à produção da dissertação. Após essa experiência e aprendizado, já me percebo melhor

como esposo e pai – tudo valeu a pena!

Aos amigos e companheiros, fundamentais nessa trajetória, que de diferentes maneiras

me deram muita força: Adriano Gambim, Alexandre Mohamad, Amanda Ebizero, Amaro Silva,

Anderson Jacomini, Cíntia Quina, Daniel Fontes, Diego Benjamim, Fabrício Carmo, Fernando

Balieiro, Flávia Corte, Gabriel Barros, Gilmar Alves, Leonardo Cini, Leonardo Silva, Lúcia

Amendola, Luciano Neves, Maicon Borges, Márcio Cohen, Pedro Silva, Reginaldo Barbosa,

Renato Macedo, Rúbia Freitas, Vandeicol Sabino e Vivian Paixão. Pessoas incríveis as quais

tenho profunda admiração.

Pelo generoso acolhimento e apoio recebido dos seguintes funcionários e colaboradores

durante a pesquisa: Alexandre, José Roberto, Márcia e Raquel (APESP), Maria Claudia e

Tatiana (CME/FEUSP); Gisele e Ricardo (UEIM/UFSCAR); Adriano (Biblioteca Terra Livre).

À espiritualidade, que sempre nos assiste...

RESUMO

A presente dissertação se propõe a analisar, do ponto de vista da apropriação (CHARTIER,

2002), algumas das práticas pedagógicas desenvolvidas na Escola Moderna N.1, instituição de

ensino vinculada ao movimento anarquista, que esteve em funcionamento em São Paulo entre

os anos de 1913 e 1919 com a direção de João Camargo Penteado. Para tanto, propôs-se fazer

um percurso no qual a pedagogia libertária fosse colocada em perspectiva histórica. Observou-

se que, assim como o movimento escolanovista, a pedagogia libertária também foi um

componente fundamental da renovação pedagógica realizada no final do século XIX e início do

século XX. Dentre as contribuições dos mais destacados pensadores e educadores libertários,

estavam o ensino antiautoritário e integral, a coeducação dos sexos e das classes, a autogestão

pedagógica e institucional, tendo como base valores morais elevados – elementos que poderiam

despertar as consciências dos alunos, se estes se colocassem enquanto sujeitos úteis e solidários

em uma sociedade que se pretendia construir sobre as bases da justiça e da liberdade – uma

educação pela e para a liberdade. O racionalismo pedagógico desenvolvido na Escola Moderna

de Barcelona, dirigida por Francisco Ferrer y Guardia, foi muito influente nos rumos que a

pedagogia libertária teria nas muitas instituições que seriam criadas nas primeiras décadas do

século XX, dentre elas a própria Escola Moderna N.1. Também se fez necessário percorrer

aspectos da sociedade e da educação paulistas no início do período republicano, de forma a

resgatar o contexto no qual a Escola Moderna N.1 surgiu e atuou. Compreender as influências

de João Penteado (anarquista, espírita, tolstoiano, ferrerista) e as pressões/interferências

exercidas sobre a Escola Moderna N.1 foi o caminho trilhado para analisar as apropriações

realizadas nesta instituição, que desenvolveu uma experiência educacional única e referencial.

Palavras-chave: Pedagogia Libertária. Educação Racionalista. Escola Moderna N.1. História

da Educação.

ABSTRACT

This thesis proposes to analyze, from the point of view of appropriation (CHARTIER, 2002),

some pedagogical practices developed in the Modern School No.1, an educational institution

linked to the anarchist movement, which has been operating in São Paulo between the years

1913 to 1919 under the direction of João Camargo Penteado. For this reason, it is proposed to

make a course of libertarian pedagogy in historical perspective. It was observed that, as the new

school movement, the libertarian pedagogy is also a fundamental component of the pedagogical

renewal carried out at the end of the 19th century and the beginning of the 20th century. The

contributions of the most prominent libertarian thinkers and educators is the anti-authoritarian

and integral education, the coeducation of sexes and classes, the pedagogical and institutional

self-management, based on high moral values – elements that could awaken the consciences of

the students, if they were helpful and supportive individuals in a society that was intended to

build on the basis of justice and liberty – an education for liberty. The pedagogical rationalism

developed in the Modern School of Barcelona, directed by Francisco Ferrer y Guardia, was

very influential to the libertarian pedagogy in many institutions that would be maids in the first

decades of the 20th century, among them Modern School No. 1. It is also necessary to explore

aspects of the society and education in São Paulo in the beginning of the republican period

during school operation. Understand the influences of João Penteado (anarchist, spiritist,

Tolstoian, Ferrerist) and the pressures/interferences exercised over Modern School No.1 was

the trodden pathh to analyze the appropriations carried out by this institution, which developed

a unique and referential educational experience.

Keywords: Pedagogia Libertária. Rationalist Education. Modern School N.1. História da

Educação.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Gravura de 1873 (F. Bouvin). Uma sala de aula conforme o Guia das Escolas Cristãs

(La Salle) .................................................................................................................................. 27

Figura 2: Gravura de 1839 (desconhecido). Uma escola lancasteriana britânica do início do

século XIX ............................................................................................................................... 28

Figura 3: Oficina de trabalhos manuais de tapeçaria e costura da Dewey´s Lab School –

Universidade de Chicago, ca. 1908 .......................................................................................... 32

Figura 4: Ilustração contemporânea ao Emílio, de Rousseau. (desconhecido, s. XVIII). “O

professor deixa seu aluno descobrir e refletir e o ensina a seguir a natureza” ......................... 36

Figura 5: A escola de Iasnaia Poliana, ca. 1862 ....................................................................... 58

Figura 6: Pavilhão central do Orfanato Prévost, cartão-postal de 1910 ................................... 62

Figura 7: “Saída para os campos”, 1906. Ao fundo, observa-se o edifício principal ............... 67

Figura 8: Sala de aula da Escola Moderna de Barcelona, 1906 ................................................ 77

Figura 9: Vista panorâmica do Gasômetro e do bairro do Brás, ca. 1890 ................................ 85

Figura 10: Avenida Higienópolis, ca. 1920 .............................................................................. 85

Figura 11: “Um contingente do 1º Batalhão da Força Pública, de armas embaladas, dispersando

os grevistas na Praça Antonio Prado, vendo-se ao fundo estabelecimentos comerciais

completamente fechados” ........................................................................................................ 91

Figura 12: Edifício da Escola Normal da Praça, 1900 .............................................................. 97

Figura 13: Escola Normal da Praça (formato de “E”, de Educação), 1986 .............................. 98

Figura 14: A Sagrada Família. In: A Lanterna. São Paulo, 12 de fevereiro de 1910 ............. 105

Figura 15: O carrasco-mór de Ferrer (rei Afonso XIII) ......................................................... 106

Figura 16: “Escola Moderna” Illustrada ............................................................................... 108

Figura 17: A Lanterna. São Paulo, 31 de maio de 1913 .......................................................... 111

Figura 18: Professores e alunos em frente à Escola Moderna N.1, 1913 ................................ 116

Figura 19: Saldo das Festas de 13 de outubro de 1918 e de 22 de fevereiro de 1919 ............. 118

Figura 20: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918 .......................... 119

Figura 21: Informativos sobre das Escolas Modernas N.1 N.2 ............................................... 132

Figura 22: A Lanterna. 19-7- 1913 ......................................................................................... 133

Figura 23: A Lanterna. 11-7-1914 .......................................................................................... 133

Figura 24: A Lanterna. 16 -1-1915 ........................................................................................ 133

Figura 25: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918 .......................... 134

Figura 26: A Lanterna, 20 de junho de 1914 ........................................................................... 137

Figura 27: O Início. São Paulo, 04 de setembro de 1915 ........................................................ 138

Figura 28: O Início. São Paulo, 04 de setembro de 1915 ........................................................ 139

Figura 29: O Início. São Paulo, 19 de agosto de 1916 ............................................................ 140

Figura 30: Caderno de Composição do aluno Antonio Amstalden – 5º Ano .......................... 141

Figura 31: CARVALHO, Felisberto de. Quinto Livro de Leitura .......................................... 148

Figura 32: DUMONT, Irmão Isidoro. Exercícios de Cálculo sem Problemas sobre as quatro

operações fundamentais para uso das aulas elementares ...................................................... 149

Figura 33: NERGAL, M. J. Evolución de los mundos ............................................................ 150

Figura 34: O Início. São Paulo, 19 de agosto de 1916 ............................................................ 156

Figura 35: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918 ........................ 159

Figura 36: Sujeitos individuais e coletivos das reformas em curso no Brasil ......................... 168

Figura 37: Retrato de João Penteado, s/d ................................................................................ 170

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Trabalhos acadêmicos sobre experiências pedagógicas libertárias ......................... 14

Tabela 2: População europeia da cidade de São Paulo, 1920 ................................................... 84

Tabela 3: Estado de São Paulo – concentração de estabelecimentos industriais por ramos

segundo o número de operários ocupados (1919) ..................................................................... 86

Tabela 4: São Paulo – Capital: causas das greves, 1917-1920 ................................................. 92

Tabela 5: Proporção de alfabetizados e de analfabetos na população brasileira de quinze anos e

mais .......................................................................................................................................... 99

Tabela 6: Dados da Escola Moderna N.1 e da evolução do ensino particular na capital (1913-

1919) ...................................................................................................................................... 119

Tabela 7: Dados da Escola Moderna N.1 de acordo com os jornais O Início e Boletim da Escola

Moderna (1913-1919) ............................................................................................................ 119

Tabela 8: Inventário da Escola Moderna N. 1 ......................................................................... 152

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Comparação entre a pedagogia do século XVIII e o pensamento educativo de

Rousseau .................................................................................................................................. 25

Quadro 2: Metodologias pedagógicas: heteroestruturação e autoestruturação ......................... 30

Quadro 3: Oposição entre pedagogia tradicional e pedagogia nova ......................................... 30

Quadro 4: Uma comparação entre as propostas da pedagogia escolanovista e da pedagogia

libertária ................................................................................................................................... 38

Quadro 5: Embates entre jornais ............................................................................................ 109

Quadro 6: Algumas obras da biblioteca de João Penteado ...................................................... 144

Quadro 7: Algumas obras do Acervo João Penteado .............................................................. 145

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AHM – Arquivo Histórico Municipal de São Paulo

APESP – Arquivo Público do Estado de São Paulo

CME/FEUSP – Centro de Memória e Educação da Faculdade de Educação da Universidade de

São Paulo

HDFBN – Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional

IMS – Instituto Moreira Salles

UEIM/UFSCAR – Unidade Especial de Informação e Memória da Universidade Federal de São

Carlos

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1 – RENOVAÇÃO PEDAGÓGICA: UMA BREVE DISCUSSÃO

1.1 A construção da oposição escola tradicional vs. escola nova ............................................ 23

1.2 Aproximações entre a escola nova e a pedagogia libertária .............................................. 35

1.3 Princípios da pedagogia libertária ...................................................................................... 41

CAPÍTULO 2 – EXPERIÊNCIAS PEDAGÓGICAS LIBERTÁRIAS

2.1 A escola-rural de Iasnaia Poliana ...................................................................................... 54

2.2 O orfanato Prévost .............................................................................................................. 60

2.3 A escola-comunidade “La Ruche” ..................................................................................... 65

2.4 A Escola Moderna de Barcelona ........................................................................................ 69

CAPÍTULO 3 – A ESCOLA MODERNA N.1 E A SÃO PAULO DA PRIMEIRA

REPÚBLICA

3.1 Organização e luta do operariado paulistano ...................................................................... 82

3.2 Considerações sobre a escolarização primária em São Paulo ............................................. 94

3.3 A Escola Moderna N.1 ..................................................................................................... 102

CAPÍTULO 4 – APROPRIAÇÕES PEDAGÓGICAS LIBERTÁRIAS NA ESCOLA

MODERNA N.1

4.1 Sobre os conceitos autonomia-heteronomia e apropriação ............................................. 124

4.2 O programa e o método da Escola Moderna N.1 .............................................................. 131

4.3 Os recursos didáticos ........................................................................................................ 143

4.4 Os periódicos escolares ................................................................................................... 154

4.5 Reflexões sobre as apropriações pedagógicas na Escola Moderna N.1 ............................ 161

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 165

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 170

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INTRODUÇÃO

Não preciso que me digam

De que lado nasce o Sol

Porque bate lá meu coração

(Belchior. Comentários a respeito de John)1

O presente trabalho é fruto de uma inquietação pessoal oriunda da minha vivência como

educador e professor de História na Educação Básica que encara a ação pedagógica como um

movimento duplo, 1) de instrução (apresentação de um vasto repertório que transita por

elementos da ciência e dos saberes acadêmicos, da cultura, da política, da economia, das

ideias/teorias, da configuração social etc., permeado por tensões e contradições tanto do campo

acadêmico quanto da realidade social) e 2) de afetividade (sensibilizar, inquietar, estimular a

alteridade, promover reflexões, despertar a criticidade).

No decorrer dos anos, perguntas como o que, por que e como ensinar passaram a ser

acompanhadas de perguntas como a importância social do conhecimento

histórico/historiográfico e, mais além, o papel do professor na construção de uma sociedade

mais justa, democrática e progressista.

Maurice Tardif (2014) contribui para essas reflexões com as seguintes questões:

Em que mundo queremos viver? Que futuro desejamos para os nossos filhos?

Entre todos os nossos conhecimentos atuais, quais são aqueles dignos de

serem transmitidos às novas gerações? O que merece ser olhado e visto, lido

e meditado, ouvido e escutado, apreendido e estudado? [...] que formas de vida

individuais e coletivas queremos favorecer pela educação, pela formação e

pela aprendizagem? (TARDIF, 2014, p. 29).

Ao dar conta de que focava demais em minha atuação pedagógica e motivações

pessoais, notei que dava pouca atenção aos alunos, suas dificuldades e conflitos, interesses,

relações que estabeleciam com o saber, apropriações e sentidos criados por eles2. Desde então,

1 BELCHIOR, Antonio Carlos; PENNA, José Luís. Comentários a respeito de John. Intérprete: Belchior. In:

__________ Era uma vez um homem e seu tempo. Rio de Janeiro: WEA, p1979. 1 LP (38 min). Faixa 7 (5 min

02 s). 2 Rubem Alves (1994) propõe uma reflexão sobre como a alegria na escola está mais ligada à amizade e companheirismo e não em estudar e aprender. Para ele, escolas intimidam a inteligência, oprimem os interesses e a curiosidade. Avaliações... classificações... métodos... “[...] poderá haver sofrimento maior para uma criança ou um adolescente que ser forçado a mover-se numa floresta de informações que ele não consegue compreender, e que nenhuma relação parece ter com sua vida? [...] Porque a alegria é uma condição interior, uma experiência de riqueza e de liberdade de pensamento e sentimentos” (p. 13-14).

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passei a considerar os interesses, gostos e críticas vindos dos alunos e apresentar minhas

premissas e escolhas teórico-metodológicas, de maneira mais transparente, estando aberto ao

diálogo e à introdução das contribuições dos alunos em meus planos de aula. Assim passou a

ser possível definir conjuntamente como trabalhar determinados conteúdos, as abordagens e os

recursos utilizados em aula, critérios de avaliação etc. – afinal, a quem interessa seguir o

currículo, o manual e as práticas institucionais à risca? Como poderia almejar colaborar para

uma sociedade mais justa, democrática e progressista sem propiciar em minhas aulas tal

ambiente e condições?

As questões acima me levaram a querer compreender melhor as teorias pedagógicas

contra-hegemônicas e antiautoritárias3 e, durante a elaboração do meu projeto de pesquisa para

ingressar no Programa de Pós-Graduação em Educação da Unifesp, optei por tratar da

pedagogia libertária, vinculada à tradição anarquista.

As relações entre os anarquistas e a educação, bem como as experiências pedagógicas

libertárias foram “sub-teorizadas”, dificultando a compreensão da colaboração destes para as

experiências educacionais contemporâneas (HAWORTH, 2012, p. 6). Durante a minha

graduação em História, nenhuma disciplina contemplou a história do movimento ou do

pensamento anarquista, tampouco a pedagogia libertária.

Mesmo ocultada das teorias pedagógicas e da história da educação, a

influência das propostas libertárias anarquistas foi marcante no século XX.

Muitos de seus princípios foram absorvidos pelas principais correntes

pedagógicas e reformas educacionais, como as propostas de Célestin Freinet

(1896-1966), a Escola Nova de John Dewey (1859-1952), a pedagogia de

Paulo Freire (1921-1997) e, atualmente, o movimento das Escolas

Democráticas. (MORAES, 2009b).

Contudo, observa-se um crescente interesse no meio acadêmico sobre experiências

pedagógicas libertárias. Abaixo, encontra-se um levantamento realizado em 15/02/2020 na

Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (IBICT) e no Catálogo de Teses e

Dissertações (CAPES), apresentando a quantidade de trabalhos produzidos sobre o assunto o

qual a presente pesquisa se debruça, dentro do campo da História da Educação4:

3 Por “pedagogia contra-hegemônica” entende-se correntes pedagógicas correspondentes aos interesses dos grupos e classes dominados, que buscam transformar a ordem vigente. “Pedagogia antiautoritária” são práticas que garantem liberdade de pensamento e de ação espontânea, que não age sob a lógica da recompensa e da punição, que prezam pela tolerância. Entre tantos pensadores/educadores considerados defensores de uma pedagogia contra-hegemônica e antiautoritária, destaco Lev Tolstoi, Francisco Ferrer y Guardia, Paulo Freire e Célestin Freinet. (Cf. MORIYÓN, 1989; RODRIGUES, 2006; SAVIANI, 2007; SILVA, S/D). 4 Em alguns casos um mesmo trabalho relaciona-se a duas ou mais categorias, sendo contabilizado cada registro.

14

Tabela 1 – Trabalhos acadêmicos sobre experiências pedagógicas libertárias

CATEGORIAS/PALAVRAS-CHAVE QUANTIDADE

a) Pedagogia libertária/Educação anarquista 67

b) Educação racionalista/Racionalismo pedagógico 25

c) João Penteado/Escola Moderna N.1 22 Fonte: IBICT e Capes

Para Francisco Ferrer y Guardia, diretor da Escola Moderna de Barcelona, e João

Camargo Penteado, diretor da Escola Moderna N.1, o ensino racionalista poderia colaborar para

a elevação intelectual e moral das pessoas em um processo que levaria à transformação social

e superação da lógica capitalista, desumanizadora. Ambos criticavam a maneira com a qual a

Igreja e o Estado se utilizavam da educação para seus próprios interesses e estavam

comprometidos com a educação das classes populares, emancipatória, livre e libertária.

Certamente, percebiam que a emergência da escola pública obrigatória impedia

a realização de programas de autoinstrução operária que atacavam a divisão e

a organização capitalista do trabalho ao exigir uma formação polivalente e

uma instrução unida ao trabalho e ministrada pelos próprios trabalhadores com

uma projeção política destinada à sua emancipação. (VARELA; ALVAREZ-

URIA, 1992, p. 21).

Se se pretende superar o ensino reprodutivista (tanto no sentido social, quanto no sentido

dos saberes), passivo, autoritário, centrado no livro e no professor, dentro de um sistema

excludente, classificatório e punitivo; se se entende ser possível transformar a atual forma

escolar5 e promover um modelo capaz de efetivar uma relação, ao mesmo tempo, científica,

crítica, prazerosa, significativa, também capaz de promover a autonomia do sujeito e emancipá-

lo intelectualmente, nesse processo construindo uma sociedade mais solidária e justa, é

fundamental que se debruce sobre as ideias pedagógicas e as experiências escolares libertárias

que se propuseram a concretizar estes princípios. Portanto, a História da Educação e o campo

da história da pedagogia libertária são, nesse sentido “paradas obrigatórias” para aqueles

comprometidos com uma educação transformadora, progressista.

O conhecimento histórico é um complexo constructo. Em cada contexto particular,

novas perguntas e novas reflexões são elaboradas. Para além da descrição e da análise, estão

em disputa diferentes versões e concepções de mundo abarcadas em uma narrativa – nas

5 Forma escolar é entendida como uma “unidade de uma configuração histórica particular, surgida em determinadas formações sociais, em certa época, e ao mesmo tempo que outras transformações” (VINCENT; LAHIRE; THIN. 2001, p. 09 e 10). Os autores também apresentam os traços que caracterizam essa mesma forma escolar: “a constituição de um universo separado para a infância; a importância das regras na aprendizagem; a organização racional do tempo; a multiplicação e a repetição de exercícios, cuja única função consiste em aprender e aprender conforme as regras, ou dito de outro modo, tendo por fim seu próprio fim” (Ibid., p. 37 e 38).

15

palavras de Peter Burke, “a narrativa não é mais inocente na historiografia do que o é na ficção.

[...] [com a ressalva de que] os historiadores não são livres para inventar seus personagens, ou

mesmo as palavras e os pensamentos de seus personagens” (BURKE, 1992, p. 330 e 340).

Ainda que o historiador seja um sujeito limitado pelas condições e questões de seu tempo, deve

pretender produzir um conhecimento sólido e consequente, se baseando em metodologias

científicas e sendo transparente quanto ao seu referencial teórico.

Com o aporte de outros campos, a tradição inaugurada pela Escola dos Annales produziu

um conhecimento historiográfico interdisciplinar, abrangendo uma grande diversidade

documental, tendo olhar crítico sobre o documento. Novos temas/abordagens/perspectivas

(surge uma história nova, problematizadora, que revê as fontes e a si própria: social, cultural,

quantitativa, das ideias, das mentalidades, das técnicas, do tempo presente, da infância, das

mulheres, do sonho, do corpo, do medo; a micro-história, com uma atenção especial para as

camadas “de baixo”)6 passaram a ser trabalhadas, alargando em muito o campo da pesquisa

histórica.

Os dois principais referenciais teórico-metodológicos para esta dissertação, Roger

Chartier e Pierre Bourdieu, são pensadores que deram amplas contribuições para o avanço dos

estudos do campo da cultura, transitando entre a história, a antropologia e a sociologia, sendo

de certa forma, tributários da tradição dos Annales. Roger Chartier, entre outras coisas, se

dedicou a compreender as relações que se estabelecem entre a cultura oral e a cultura escrita,

os usos e costumes derivados das leituras; Pierre Bourdieu, por sua vez, foi um sociólogo que

possibilitou conexões entre a história cultural e a história política (BARROS, 2005). Além de

possuírem uma preocupação comum com as práticas (BURKE, 1991), os conceitos autonomia

e heteronomia (BOURDIEU, 2004) e apropriação (CHARTIER, 2002) serão ferramentas

analíticas fundamentais para a compreensão do objeto principal da pesquisa: em que medida

as ideias pedagógicas libertárias foram apropriadas pela Escola Moderna N.1.

Na busca pela teorização da relação de forças existentes entre os agentes externos e

internos ao campo científico, Pierre Bourdieu explica que

Quanto mais um campo é heterônomo, mais a concorrência é imperfeita e é

mais lícito para os agentes fazer intervir forças não-científicas nas lutas

científicas. Ao contrário, quanto mais um campo é autônomo e próximo de

uma concorrência pura e perfeita, mais a censura é puramente científica e

exclui a intervenção de forças puramente sociais (argumento de autoridade,

6 Cf. LE GOFF, 1998; LE GOFF, 2003; BURKE, 1991; BURKE, 1992; CARDOSO; VAINFAS, 1991.

16

sanções de carreira etc.) e as pressões sociais assumem a forma de pressões

lógicas. (BOURDIEU, 2004, p. 32).

Empregando os conceitos autonomia-heteronomia para a compreensão do campo

educacional, pode-se identificar os agentes e suas formas de agir – aqueles que, numa ponta,

produzem os discursos oficiais, os dispositivos legais e atuam nas instituições de controle

conforme os interesses dominantes, e as instituições escolares e os professores que, na outra

ponta, podem simplesmente reproduzir tais discursos e práticas (com algum grau de refração)

ou produzir contradiscursos e outras práticas.

Para melhor compreender como teorias, diretrizes, modelos, métodos, programas e

prescrições educacionais são “consumidas” e se efetivam em práticas pedagógicas, é preciso

recorrer ao conceito de apropriação, desenvolvido por Roger Chartier (2002, p. 123), que

considera a tensão existente entre “a irredutível liberdade dos leitores e os condicionamentos

que pretendem refreá-la”. Do contrário, corre-se o risco de tomar a produção intelectual, o texto,

como uma realidade que se impõe soberana sobre todos os agentes, que por sua vez

simplesmente a reconhecem como legítima e a aplicam tal como foi concebida por seu autor,

sem levar em consideração as muitas possibilidades de aplicação de tais ideias. Dessa forma,

seria possível “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada

realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 2002, p. 16-17). Ou seja, nas

instituições escolares (gestores, alunos e professores), em suas práticas cotidianas, não são

meros consumidores, mas são também produtores, pois no desenvolvimento de uma aula, por

exemplo, interagem (recebem, filtram, reinterpretam, resistem, propõem) e dão novo

significado e usos às ideias e conceitos, recursos, objetos, espaços etc. de acordo com seus

interesses, motivações, valores.

Segundo Marta M. C. Carvalho, apropriação, como trabalhado por Roger Chartier, mas

também por Michel de Certeau, permitiu uma renovação do campo da história da

educação/pedagogia ao possibilitar a emergência de temas, problemas, sujeitos e objetos (em

interação) até então ausentes, superando algumas das limitações apresentadas pela abordagem

da história das ideias pedagógicas, deslocando o interesse do historiador dos modelos e sistemas

para as práticas.

O conceito de apropriação como tática que subverte dispositivos de

modelização está no cerne dessa história cultural dos saberes pedagógicos não

somente porque demarca o intento e as questões centrais desse tipo de

investigação mas, também, porque lhe indica um percurso: rastrear a presença

de modelos culturais inscritos nos usos dos saberes pedagógicos. Pois é a

partilha de um conjunto determinado de códigos culturais que distingue as

práticas de apropriação, definindo comunidades distintas de usuários e

17

configurando os usos que fazem de objetos e dos modelos culturais que lhes

são impostos. (CARVALHO, M., 2003, p. 273).

Assim, essa pesquisa terá o objetivo de identificar as referências teóricas

libertárias/anarquistas que inspiraram João Penteado, diretor e mais importante professor da

Escola Moderna N.1, e também as práticas pedagógicas registradas em diferentes fontes,

situando-as no tempo e no espaço, buscando compreender sua forma e conteúdo, bem como os

usos, particularidades, especificidades em relação aos modelos que lhes serviram de base.

O presente trabalho revisará/analisará as produções acadêmicas mais recentes que

tratam das práticas escolares desenvolvidas na Escola Moderna N.1, trazendo à tona fontes

primárias já conhecidas e outras relacionadas, tais como os periódicos A Lanterna (jornal

anticlerical paulistano)7, Gazeta do Povo (jornal ligado a lideranças conservadoras do meio

católico paulistano)8, O Início (periódico de divulgação das atividades escolares, produzido

pelos alunos da Escola Moderna N.1) e Boletim da Escola Moderna (periódico de divulgação

da escola e propaganda, sob a direção de João Penteado), livros didáticos (biblioteca da escola),

materiais de divulgação da pedagogia libertária/ensino racionalista, textos de João Penteado e

documentos oficiais (legislação de ensino, anuários do ensino e ofícios)9. Do levantamento

realizado no CME/FEUSP e nas bases da CAPES, houve retorno de um grande número de

produções em nível de mestrado e doutorado sobre a Escola Moderna N.1, das quais serão

destacadas algumas que mais se aproximam do objeto da presente dissertação.

Flávio Venâncio Luizetto (1984), em sua tese de doutorado – obra seminal sobre as

Escolas Modernas de São Paulo –, se propõe a analisar a chegada das obras anarquistas de

cunho político e pedagógico no Brasil, bem como sua disseminação. O autor dedica o capítulo

4 ao estudo das Escolas Modernas de São Paulo (resultado do esforço de militantes e

simpatizantes do anarquismo), destacando o papel da imprensa operária para a divulgação da

pedagogia libertária e captação de recursos necessários para a viabilização e manutenção das

atividades destas escolas. Ao tratar do funcionamento da escola (metodologia, adotada, rotina

da vida escolar, turmas, horários, cursos, inventário etc.), Luizetto pontua que

A “pedagogia moderna” [...] assim como os objetivos da Escola Moderna N.1,

pretendiam acompanhar de perto, como não poderia deixar de acontecer, aqueles do

modelo espanhol. Eram enunciados, portanto, em termos semelhantes – senão

7 Foram analisados diversos números da segunda fase d’A Lanterna (1909-1916). 8 Foram analisados alguns números da Gazeta do Povo publicados entre os anos de 1910 e 1911. 9 Tais documentos foram localizados no Centro de Memória e Educação (FEUSP), na Unidade Especial de Informação e Memória (UFSCar) e no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

18

idênticos – aos da Escola Moderna de Barcelona, como se pode constatar de O Início.

(LUIZETTO, 1984, p. 276).

Ao final deste capítulo, o autor apresenta as circunstâncias pelas quais as Escolas

Modernas de São Paulo foram fechadas. O anexo “separata da pesquisa” reúne variada

documentação: fotografias, listas de subscrição, exemplares do Boletim da Escola Moderna,

exemplares do periódico O Início e documentos referentes ao fechamento das Escolas

Modernas de São Paulo.

Tatiana da Silva Calsavara (2004) aborda em sua dissertação de mestrado a fundação e

o funcionamento das Escolas Modernas N.1 e N.2 de São Paulo, particularmente as práticas

anarquistas (festas, comícios, conferências, manifestações, apresentações teatrais, recitais,

circulação de informações via periódicos) a elas relacionadas.

A experiência da Escola Moderna em São Paulo estava ligada ao movimento

internacional dos trabalhadores por Educação Escolar e mais diretamente à proposta

de Ferrer. Embora encontremos referências à Paul Robin, Sebastien Faure, Tolstoi e

Adolfo Lima, assim como às escolas libertárias em que eles atuaram.

(CALSAVARA, 2004, p. 136).

Ao realizar o levantamento do acervo de João Penteado, diretor da Escola Moderna N.1,

a autora identificou uma grande diversidade de títulos e tipos, entre livros didáticos, poesia,

além de escritos anarquistas, cadernos, inventários, balancetes, periódicos, entre outros. Ao

tratar das práticas pedagógicas, destaca atividades como os passeios educativos, a produção

escrita crítica, o jornal como instrumento pedagógico. É importante ressaltar que, no período,

não havia um programa (“currículo”) fixo e determinado, possibilitando certa liberdade de

conteúdos e métodos.

Em sua dissertação de mestrado, Luciana Eliza dos Santos (2009) busca traçar o

contexto de implementação das Escolas Modernas em São Paulo, destacando a relação entre as

práticas educativas da Escola Moderna N.1 com os princípios da pedagogia libertária, tratando

de questões relativas ao funcionamento e cotidiano da escola.

As inovações proporcionadas pelo ensino libertário, na sociedade da época, foram

muitas. Abrangeram o plano concreto – co-educação sexual e social; utilização de

material didático e livros próprios – voltados especificamente para o ensino

racionalista; utilização da biblioteca e de um museu no ensino. Mas as inovações

também adentraram o plano das ideias, propondo uma relação crítica com o saber,

com a verdade, com a ciência, intencionalmente, anti-dogmática. Assim, o conteúdo

proposto foi orientado de acordo com as disposições e acompanhamento do aluno,

dispondo de matérias como leitura, caligrafia, gramática, aritmética, geometria,

geografia, botânica, zoologia, mineralogia, física, química, fisiologia, história,

desenho etc. Outro fator fundamental para o projeto educacional escolar libertário

foi a permanente relação entre a família e a escola que, como diziam, facilitaria a

19

“obra” dos pais e professores. Isso era possível através de reuniões organizadas em

torno de festivais nos quais se assistiriam as palestras, apresentações artísticas e

conferências científicas. (SANTOS, 2009, p. 123-124).

A autora dedica amplo espaço em sua dissertação para a compreensão do pensamento

educacional e libertário de João Penteado por meio de sua biblioteca pessoal, de seus escritos,

de seu ativismo político no Centro de Cultura Social e como educador em outras instituições

que dirigiu após o fechamento da Escola Moderna N.1.

A dissertação de mestrado de Samira Bueno Chahin (2013) traz os princípios da

pedagogia libertária, sobretudo a proposta de educação integral, tendo como objeto as

apropriações dos diversos lugares das práticas educativas das Escolas Modernas de Barcelona

e de São Paulo, dando ênfase a questões de ordem arquitetônica e do uso pedagógico do espaço

urbano.

Foi com a prática educativa, primeiro no orfanato Prévost dirigido por Paul Robin, e

anos depois com a Escola Moderna de Barcelona, entre outras experiências pontuais,

que a educação se tornou, inevitavelmente um programa espacial entre os

anarquistas. [...]

Em uma proposta educativa fundamentada pelo afastamento de todo tipo de

dogmatismo que pudesse induzir o aprendizado, aprender observando incidiria

necessariamente em vivenciar “fatos reais”. Por isso o contato com as dinâmicas

próprias da vida e dos fenômenos naturais era enfatizado por sua capacidade de

provocar o raciocínio infantil sem condicioná-lo a valores sócio-culturais –

necessariamente desprovidos de neutralidade moral – que, segundo acusações

anarquistas, impregnavam os conteúdos escolares determinados pelo Estado e pela

Igreja. (CHAHIN, 2013, p. 189).

Segundo a pesquisadora, as práticas libertárias desenvolvidas em ambas as escolas

modernas em suas saídas escolares se baseavam na observação atenta de “fatos reais”. Contudo,

as particularidades da Escola Moderna N.1 em relação à Escola Moderna de Barcelona se

deviam ao fato de que esta contaria com uma figura “centralizadora” (Ferrer), e assumiria um

papel mais decisivo na articulação com o movimento anarquista catalão, ocupando mais

intensamente os espaços de trabalho (fábricas), de sociabilidade e luta dos trabalhadores (locais

do centro de Barcelona).

A tese de doutorado de Rogério Cunha de Castro (2014) lança um olhar sobre a Escola

Moderna como um projeto de ação direta para a formação dos filhos da classe trabalhadora

paulistana (interface entre educação e revolução social). Preocupa-se em identificar as formas

de ação do movimento anarcossindicalista, que tinha como uma de suas bandeiras de luta a

promoção de projetos educacionais libertários.

[...] a partir das afinidades reconhecidas no seio de um agrupamento anarquista

específico, através do qual procuravam apoiar-se mutuamente, João Penteado,

20

Adelino de Pinho e Florentino de Carvalho recorreram aos organismos de classe para

estabelecer os “ninhos de liberdade” com os quais sonhavam, deixando a clara

percepção de que nenhuma pedagogia prescinde à ideologia em que foi originada.

(CASTRO, 2014, p. 215).

A Escola Moderna, segundo o autor, procurava desenvolver o mutualismo entre os

alunos e chegou mesmo a promover uma consciência que poderia contribuir para o futuro da

classe trabalhadora para além das conquistas mais imediatas.

Em sua tese de doutorado, Douglas Bahr Leutprecht (2018) busca compreender o

modelo pedagógico desenvolvido por Ferrer na Escola Moderna de Barcelona (imbuído de

práticas froebelianas e deweyanas) para, então, reconhecer as diferentes apropriações da

pedagogia racionalista nas escolas Moderna Nº1 (São Paulo) e de Stelton (Edison, Nova Jersei,

EUA), procurando articular as especificidades de cada caso à circulação das ideias e aos crivos

de apropriação daqueles que conduziam as escolas, bem como os diferentes contextos nos quais

as escolas estavam inseridas. O autor defende que

diferente do que grande parte da literatura acadêmica sobre a temática leva a

crer, a experiência da Escola Moderna Nº1 não estava totalmente à parte do

contexto educacional paulista do início do século XX. João Penteado e os

demais integrantes da instituição, pelo contrário, souberam se apropriar de um

repertório cultural presente na reforma do ensino paulista. (LEUTPRECHT,

2018, p. 166).

O título desta dissertação, A luz dissipa as trevas – A razão emancipa as consciências,

foi extraído do dístico presente no cabeçalho dos três números do periódico O Início, “Orgam

dos alunos da Escola Moderna N.º 1”. A mensagem tem conotação positivista, de crença no

poder transformador das ciências e, mesmo que seja de uma tradição tão diferente da anarquista,

ambos são movimentos de contestação à ordem vigente: “o cientificismo positivista consistia

em uma arma na luta contra o absolutismo e a Igreja, portanto, um instrumento revolucionário”

(LEUTPRECHT, 2018, p. 78), o racionalismo, enquanto defesa da razão em oposição às ideias

defendidas com base no discurso de autoridade ou “revelação”, é encarado por Ferrer como

ferramenta capaz de conduzir à verdade. Apesar de não ser possível identificar a autoria do

dístico, o cientificismo positivista e o racionalismo foram claramente as principais bases para o

saber produzido e difundido na Escola Moderna de Barcelona.

À hora atual, o sol não tão somente cobre os cumes; estamos em luz quase

meridiana que invade até os sopés das montanhas. A ciência, felizmente, já

não é patrimônio de um reduzido grupo de privilegiados; suas irradiações

benfeitoras penetram com mais ou menos consciência por todas as camadas

sociais. Por todas as partes, dissipa os erros tradicionais; com o procedimento

seguro da experiência e da observação, capacita os homens para que formem

uma doutrina exata, um critério real, acerca dos objetos e leis que os regulam,

e em dois momentos presentes, com autoridade inabalável, incontestável, para

21

o bem da humanidade, para que terminem de uma vez por todas os

exclusivismos e os privilégios, se constitui na única diretora da vida do

homem, procurando embebê-la em um sentimento universal, humano.

(FERRER, 2014, p. 42).

No primeiro capítulo, procurou-se apresentar uma discussão acerca da formação do

campo pedagógico da perspectiva do signo da ciência, no qual a psicologia daria importante

contribuição. Na esteira das recentes descobertas sobre a infância e o aprender, um amplo

movimento de renovação pedagógica, fundado no puerocentrismo, no ativismo pedagógico e

no antiautoritarismo, desenvolveu ideias que superariam o dito ensino “tradicional” e passariam

a circular nos meios acadêmicos e escolares – desse movimento, duas vertentes são comparadas

(o escolanovismo e a pedagogia libertária), evidenciando elementos em comum e suas

particularidades.

No segundo capítulo, foram apresentadas, cronologicamente, quatro experiências

pedagógicas libertárias (a escola-rural de Iasnaia Poliana, o orfanato Prévost, a escola-

comunidade “La Ruche” e a Escola Moderna de Barcelona), cujas práticas foram amplamente

difundidas no meio libertário, influenciando inúmeras outras experiências pedagógicas

antiautoritárias ao redor do mundo, dentre elas, a Escola Moderna N.1.

Já no terceiro capítulo, buscou-se traçar um panorama histórico de São Paulo dos últimos

anos do século XIX e dos primeiros anos do século XX, cidade que passava por um acelerado

processo de transformações as quais deixava latente grandes contradições e fissuras sociais –

nesse contexto, os trabalhadores se organizaram, apresentaram suas reivindicações e buscaram,

pela ação direta, realizar transformações imediatas, como as de ordem trabalhista e também na

área educacional; foram tratados alguns pontos nodais sobre a escolarização primária em São

Paulo, os discursos, as reformas e os resultados obtidos pelo governo na tentativa de expansão

do ensino primário e da difusão de bons modelos pedagógicos (o da Escola Normal); também

foram analisadas questões concernentes à criação, funcionamento e fechamento da Escola

Moderna N.1, com destaque para os esforços do Comitê “Pró-Escola Moderna”, para a figura

de João Penteado e a repressão governamental que resultou na interrupção das atividades da

escola.

Por fim, no quarto capítulo, foram apresentadas algumas práticas pedagógicas

desenvolvidas na Escola Moderna N.1; os conceitos autonomia-heteronomia (Bourdieu, 2004)

e apropriação (Chartier, 2002) foram empregados de forma a possibilitar uma interpretação e

despertar reflexões acerca das práticas, num cenário em que diferentes referenciais, modelos,

visões de mundo em disputa, mas que, acima de tudo, destacou-se a intencionalidade de

22

promover um saber emancipatório e autônomo por parte de João Penteado. Espera-se que o

presente trabalho tenha conseguido contemplar a maior parte destes objetivos.

23

CAPÍTULO 1

RENOVAÇÃO PEDAGÓGICA: UMA BREVE DISCUSSÃO

1.1 A construção da oposição escola tradicional vs. escola nova

A notícia veio de supetão: iam meter-me na escola. Já me haviam

falado nisso, em horas de zanga, mas nunca me convencera de que

realizassem a ameaça. [...] Arranjavam impiedosos o sacrifício — e eu

me deixava arrastar, mole e resignado, res infeliz antevendo o

matadouro.

(Graciliano Ramos, Infância)10

Semelhante à construção do conceito antigo regime11, o termo escola tradicional

também se dá por oposição, sendo introduzido pelo movimento de renovação pedagógica, no

qual se incluem o escolanovismo e a pedagogia libertária em fins do século XIX. Essa

renovação buscava reforçar suas ideias e práticas inovadoras diante do antiquado, fruto de uma

tradição caracterizada pela transmissão de conteúdos pelo professor, intelectualismo, cultura

livresca, primado do objeto, memorização, disciplina e controle pedagógico12. Se o antigo

regime foi superado, pouco a pouco, a partir das revoluções burguesas dos séculos XVII e

XVIII, a dita escola tradicional possui seus defensores e perdura sob várias formas até os dias

atuais.

É importante pontuar que, em alguns contextos, a tradição não possui conotação

negativa. De maneira geral, para as “sociedades fechadas”13, é

10 RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro/São Paulo: Record; Atalaya. Col. Mestres da Literatura Contemporânea, 1995. 11 De conotação depreciativa, o conceito antigo regime surgiu no meio revolucionário francês no qual objetivavam superar os entraves do passado (governo autoritário e centralizador, sociedade de tipo estamental, economia de tipo mercantilista, controle cultural e ideológico a cargo da Igreja). A revolução conceberia um novo regime (soberania reside no povo, isonomia, defesa dos direitos naturais, laicização), fazendo surgir a sociedade liberal burguesa. (Cf. SILVA; SILVA, 2009; BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998) 12 Cf. NOT, 1991; MANACORDA, 2002; GAUTHIER, 2014b; verbete “concepção pedagógica tradicional” (Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_ c_concepcao_pedagogica_ tradicional.htm>. Acesso em: 21 mar. 2020). 13 “As sociedades fechadas são baseadas em regras relativamente rígidas, tabus, interdições, costumes rituais, que determinam antecipadamente os modelos de conduta a seguir”. (TARDIF, 2014, p. 33) Trata-se, geralmente, de sociedades tradicionais, religiosas e autoritárias.

24

[...] um modelo [que] serve de padrão para avaliar as coisas, os homens, as

ações ou qualquer outra representação. [...] um modelo é carregado de valor

positivo; merece, pois, ser imitado ou seguido. [...] A tradição põe os

contemporâneos em relação direta com os modelos humanos do passado.

(TARDIF, 2014, p. 31-32).

O século XIX é marcado por profundas transformações: a consolidação de Estados

nacionais legitimados por uma constituição e governos representativos; a expansão da

industrialização e a mudança do perfil econômico e social de muitos países; a realização de

grandes avanços científicos14. São tempos de expansão do capitalismo, de sucessivas ondas

revolucionárias15 e do surgimento de propostas coletivistas, dentre as quais se encontra o

socialismo (seja de vertente “autoritária” ou “libertária”). Revolucionários, deste século,

resgatam o lema “liberdade, igualdade e fraternidade” posto que os rumos tomados pela

Revolução Francesa atenderam parcialmente os seus princípios, que o “progresso” não atingiu

todas as camadas sociais, e que o esclarecimento das massas ainda era um projeto inconcluso.

Foi neste contexto de profundas transformações que surgiram as bases científicas/pedagógicas

do movimento escolanovista.

De maneira preliminar, pode-se dizer que a escola tradicional fora fundamentada em

uma concepção essencialista, perspectiva associada à teoria das ideias de Platão (c. 428 a.C. –

347 a.C.) em A República, servindo de base para a educação jesuíta. A Escola Nova, por sua

vez, fora fundamentada numa concepção existencialista, perspectiva associada a Jean-Jacques

Rousseau (1712-1778) em seu livro Emílio, ou da Educação (GALLO, 2007, p. 33).

14 A título de exemplo, a Geologia avança com os estudos de Charles Lyell, a Química com os estudos de Louis Pasteur e Dmitri Mendeleiev, a Medicina Experimental com os estudos de Claude Bernard, a hereditariedade com os estudos de Gregor Mendel; o evolucionismo de Charles Darwin, o materialismo histórico de Karl Marx e o positivismo de Auguste Comte promoveram grandes debates e inspiraram muitos pensadores desde então. 15 Como Guerras de Independência ocorridas na América (1820-1824), as revoluções liberais (1829-1834), a “Primavera dos Povos” (1848) e a Comuna de Paris (1871). Segundo Eric J. Hobsbawm, a partir de 1830 observa-se “o aparecimento da classe operária como uma força política autoconsciente e independente na Grã-Bretanha e na França, e dos movimentos nacionalistas em grande número de países da Europa”. (HOBSBAWM, 2006, p. 162)

25

Quadro 1 – Comparação entre a pedagogia do século XVIII e o pensamento educativo de Rousseau

Uma comparação entre a pedagogia do século XVIII e o pensamento educativo de Rousseau

A pedagogia estabelecida no séc.

XVIII Novo ideal segundo Rousseau

A concepção

da criança ou

do discente

A criança deve imitar o mais possível o

adulto, que é seu modelo. No plano

educativo, a criança é, pois, um simples

meio cujo fim reside no adulto.

A criança é seu próprio modelo. Ela é

naturalmente boa e livre. Ela é até melhor do

que o adulto, pois este é corrompido pela

civilização.

A concepção

do mestre ou

do docente

O mestre constitui o polo importante e

ativo da relação pedagógica. A criança

deve, essencialmente, escutar. O saber

flui do mestre para o aluno.

O mestre constitui o polo secundário da

relação pedagógica. Deve estar a serviço da

criança. O saber nasce da criança.

Como fazer: os meios propostos nas

escolas

Como fazer: os meios propostos por

Rousseau

A concepção

de aprendiza-

gem*16

A aprendizagem* se faz de modo

tradicional: obediência e imitação dos

modelos, sofística, retórica.

A aprendizagem* parte do princípio de que

o ser humano possui em si mesmo a razão.

A educação procura favorecer o

desenvolvimento do homem completo.

Fonte: MARTINEAU, 2014, p. 170

Stéphane Martineau (2014) pondera que as ideias de Rousseau, para as práticas

educativas dos séculos XVIII e XIX, tiveram poucos efeitos, sendo recuperadas no século XX

pelos escolanovistas. Pontua que há uma contradição entre as práticas defendidas em O Emílio

– especificamente a ideia do preceptorado (reservado a uma classe mais privilegiada) – e a nova

realidade das escolas urbanas com salas de aula numerosas. A conclusão que segue permite

compreender melhor como as ideias de Rousseau influenciaram o movimento escolanovista:

A pedagogia deve ser fundada na observação da criança e ligada a uma teoria

geral da natureza humana. Existe uma natureza própria da alma infantil. É

preciso distinguir as etapas sucessivas do desenvolvimento natural. A

educação pelas coisas deve predominar sobre a educação por palavras e,

consequentemente, os métodos sensitivos, intuitivos e ativos devem ser

privilegiados. A aprendizagem só é válida na medida em que mobiliza o

interesse da criança. Não pode haver revolução das instituições e dos costumes

sem uma revolução da educação. (MARTINEAU, 2014, p. 171).

16 Neste quadro foram mantidas as expressões “aprendizagem”, extraídas do capítulo Jean-Jacques Rousseau: o Copérnico da pedagogia, de Stéphane Martineau (2014), presente em uma obra que busca apresentar novos olhares sobre as ideias e práticas pedagógicas da antiguidade aos nossos dias (TARDIF; GAUTHIER, 2014). Trata-se, portanto, de um “manual” voltado a um público específico (educadores em formação), que por sua natureza didática não se propõe a aprofundar, problematizar ou contextualizar certas questões. Segundo Agnela Giusta (2013), “aprendizagem”, como a concebemos, é um conceito mais bem compreendido quando se torna objeto de investigações empiristas na área da Psicologia, sobretudo a partir dos estudos produzidos pela linha behaviorista nas primeiras décadas do século XX.

26

Clermont Gauthier (2014b), que situa o movimento escolanovista em perspectiva,

reconhece a importância que o pensamento pedagógico de Rousseau exerceu sobre muitos

escolanovistas (Claparède e Cousinet o citam com frequência). Contudo,

[...] não se pode atribuir à educação nova um fundador específico.

Encontramos, antes, dispersos entre o fim do século XIX e a primeira metade

do XX, toda uma série de autores cujas iniciativas diversas, mas de espírito

aparentado, contribuem para a emergência desse movimento. (GAUTHIER,

2014b, p. 190).

Possivelmente, o maior legado de Rousseau para a Educação consiste no resgate da

essência do homem, boa por natureza e presente em estado “puro” na infância. É, portanto, nas

crianças que está a esperança da regeneração da humanidade e, por meio do exercício da

liberdade que elas, dotadas de razão e vontades, irão desenvolver todas as suas potencialidades.

Porém, tais ideias, seminais para a renovação pedagógica, não se traduzem em metodologias e

práticas aplicáveis às escolas. Será preciso que a Pedagogia avance em experiências, reflexões,

análises e teorias para dar novos sentidos à pedagogia rousseauísta.

A pedagogia tradicional, nas palavras de muitos escolanovistas, é aquela praticada nos

colégios jesuítas, nas escolas cristãs, e tantas outras instituições que os tomavam como modelo.

Baseia-se na repetição irrefletida, desde o século XVII, de práticas quase ritualizadas de

controle dos alunos17, de gestão do tempo18 e do espaço19, e de um conjunto de saberes20 que,

de acordo com Clermont Gauthier,

17 Adota-se o método simultâneo no qual o professor situa-se sobre um tablado (“cátedra” ou “tribuna”), tendo visão geral do grupo, instruindo e ordenando de maneira que todos executem as ordens e atividades da mesma forma, ao mesmo tempo. Parte desse controle se dava por meio de ameaças (medo do inferno, “Deus te vigia”) e castigos humilhantes (encaminhamento para o “banco da infâmia”/“banco dos ignorantes”, uso do chapéu de asno, cópia de textos e punição física), mas também de recompensas (sistema de pontuação, localização privilegiada na sala, distribuição de livros e figurinhas), criando um ambiente de competição e rivalidade. Exige-se uma postura correta para cada situação (assistir às aulas, durante as preces, escrever, ler, deslocar-se) e respeito às ordens e tarefas a executar indicadas por um conjunto de sinais (estalos) (GAUTHIER, 2014a). 18 O horário é rigorosamente planejado, do início ao término das aulas, de forma a não desperdiçar tempo e manter as crianças permanentemente ocupadas. “As atividades se sucedem rapidamente: entrada, prece, refeição, aulas, missa, catecismo etc.” (GAUTHIER, 2014a, p. 136). 19 A escola deve estar fechada para o mundo exterior (para evitar distração), os alunos são vigiados por meio de uma pequena janela (“gelosia”), cada aluno possui um lugar fixo de permanência durante os estudos (definido por seu grau de adiantamento nos estudos ou condição “higiênica”/social) (GAUTHIER, 2014). 20 “Para as pequenas escolas, três ordens de saberes foram assim delimitadas: em primeiro lugar, a formação cristã [pelo catecismo, missa diária e preces]; em segundo lugar, o domínio dos rudimentos (ler, escrever, contar); e em terceiro lugar o aperfeiçoamento dos costumes, a civilidade [aparência, postura, comportamento]”. (GAUTHIER, 2014a, p. 142).

27

quer submeter os corpos e as almas aos bons costumes, fazendo de cada

criança um indivíduo policiado, instruído e cristão. [...] As habilidades dos

mestres são depois transmitidas a seus sucessores que, por sua vez, as legam

àqueles que os sucedem. Assim se cristaliza [...] o que se convencionou

chamar de “pedagogia tradicional”. (GAUTHIER, (2014a, p. 146).

Figura 1: Gravura de 1873 (F. Bouvin). Uma sala de aula conforme o Guia das Escolas Cristãs (La Salle)

Fonte: ROUSSET, 1979, p. 146 apud LEUBET; PAULY; SILVA, 2016, p. 45

O ensino mútuo, método lancasteriano ou ensino monitorial atualiza, para o século XIX,

diversos princípios e práticas da pedagogia tradicional seiscentista, sendo implantado em

diversos países dos cinco continentes. Este método, baseado na repetição e memorização,

difere-se do simultâneo por empregar monitores21. Dessa forma, é possível um professor

atender até 1000 alunos, satisfazendo uma demanda crescente por escolarização a baixo custo.

Observa-se uma maior racionalidade (rigor, ordem, detalhamento) no controle dos alunos22, na

21 Os monitores, alunos mais “fortes” ou em estágio mais “avançado” instruem os colegas do modo que foram orientados pelo professor. Há o monitor geral (“ponte” entre o professor e os demais monitores) e os monitores particulares (não ensinam propriamente, mas coordenam as correções; também são responsáveis pela organização geral, limpeza e ordem) – tais papéis podem ser alterados mediante o desempenho, o que cria um ambiente de constante competição: “taylorização” da instrução. 22 O professor, do alto do tablado/estrado, supervisiona todos os alunos, em especial os monitores. Cabe a ele dar os comandos (voz, sineta, apito ou sinais) que devem ser obedecidos. Como forma de estímulo, punições (retroceder no grupo, marcas de infâmia, perda do recreio) ou recompensas (avançar no grupo, marcas de honra, premiações) devem ser imediatas. Os castigos físicos são formalmente banidos, mas não as humilhações. (LESAGE, 1999; GAUTHIER, 2014b).

28

gestão do espaço23, do tempo e dos recursos24, atendendo melhor à nova realidade imposta pela

industrialização. As soluções pedagógicas25 apresentam resultados mais expressivos que as das

escolas de então. (Cf. LESAGE, 1999; GAUTHIER, 2014b)

Figura 2: Gravura de 1839 (desconhecido). Uma escola lancasteriana britânica do início do século XIX

Fonte: HAGER, 1959, p. 165

A pedagogia tradicional, portadora dos costumes dos séculos passados,

define-se como uma prática de saber-fazer [uso e experiência] conservadora,

prescritiva e ritualizada, e como uma fórmula que respeita e perpetua o método

de ensino do século XVII. Essa tradição, baseada na ordem, é levada ao

extremo no século XIX, no período dito de “ensino mútuo”, que corresponde

à revolução industrial. (GAUTHIER, 2014b, p. 175).

No meio político, as discussões sobre educação giravam em torno de reformas e

expansão da escolarização. A preocupação das classes dirigentes era sobretudo com a

moralização do povo, a manutenção da ordem social e o eventual retorno financeiro que a classe

trabalhadora poderia dar à agricultura, à indústria e ao comércio – em muitos países a educação

primária se torna obrigatória e gratuita. Há grupos políticos imbuídos dos ideais

23 Em um único e amplo salão retangular todos os alunos são reunidos. Os agrupamentos são feitos de acordo com o nível/classe dos alunos para aquilo que se está ensinando (que varia de 1 a 8). Nas laterais do salão pode-se localizar os semicírculos (para pequenos grupos) e os quadros-negros. (LESAGE, 1999). 24 São exigidos recursos específicos: relógio é fundamental pois as atividades são cronometradas em intervalos de cinco minutos aproximadamente; ardósia para aritmética; quadro-negro para os exercícios orais, localizados no interior do semicírculo (demandando poucos livros); telégrafo para a comunicação entre os monitores; varas para indicação do que se deve observar; bancos feitos sem encosto. (LESAGE, 1999; GAUTHIER, 2014b). 25 Até a segunda metade do século XIX, de forma semelhante ao modelo seiscentista, ensina-se basicamente leitura, escrita, aritmética e religião, só que de maneira simultânea (todas ao longo de um dia) e não mais sucessiva. O acompanhamento dos monitores, somado aos muitos exercícios, à leitura intensiva, à nova soletração e uma escrita clara e simples acelera o processo de aprendizado. (LESAGE, 1999).

29

iluministas/revolucionários que entendem que o progresso da sociedade e da democracia está

indissociavelmente ligado ao progresso da educação26.

O movimento escolanovista, que se constitui no final do século XIX enquanto um

conjunto de ideias pedagógicas propostas por pensadores de diferentes áreas27, buscava romper

com o modelo educacional hegemônico e apresentar novas concepções. Em 1919, logo após o

fim da Grande Guerra Mundial, o Bureau International des Écoles Nouvelles defendeu os 30

pontos que definiriam os princípios da Escola Nova:

I (1-10). A nova escola é um laboratório de pedagogia ativa, um internato

situado no campo, onde a coeducação dos sexos deu resultados intelectuais e

morais incomparáveis. Ela organiza os trabalhos manuais, de ebanisteria, de

agricultura, de criação e, ao lado dos trabalhos programados, solicita trabalhos

livres. Nela a cultura do corpo é assegurada pela ginástica natural e pelas

viagens a pé ou de bicicleta, e acampamentos em tendas.

II (11-20). Em matéria de educação intelectual, a escola nova procura abrir a

mente para uma cultura geral, à qual se une uma especialização inicialmente

espontânea e, em seguida, voltada para uma profissão. Nela o ensino está

baseado nos fatos e nas experiências, como também na atividade pessoal, que

surge dos interesses espontâneos da criança. O trabalho individual consiste na

pesquisa de documentos que servem também para a preparação de

conferências. A esse trabalho se acrescenta o trabalho coletivo. O ensino

propriamente dito é ministrado só na parte da manhã; à tarde se realiza o

estudo individual. Estudam-se somente uma ou duas matérias por dia, por mês

e por trimestre.

III (21-30). A autoridade imposta é substituída pela prática gradual do senso

crítico e da liberdade numa “república escolar”, com a eleição dos chefes e

dos cargos sociais. As sanções positivas (recompensas) consistem em oferecer

ocasiões para desenvolver as capacidades criativas; as sanções negativas

(punições) consistem em oferecer à criança a possibilidade de atingir os

objetivos considerados bons. A emulação consiste especialmente em

confrontar o trabalho presente e o trabalho passado da própria criança. A

escola deve ser um ambiente bonito e atraente, onde a música coletiva exerce

uma influência purificadora. A educação da consciência moral visa, mediante

as “leituras da noite” para as crianças, provocar reações espontâneas e juízos

de valor; a educação da razão prática consiste, para os adolescentes, em

reflexões sobre as leis naturais do progresso espiritual, individual e social.

Quanto à atitude religiosa, segue-se normalmente uma orientação não-

26 “O famoso projeto de lei de Condorcet, em 1792, ilustra perfeitamente a natureza dos debates escolares que ocorrem ao longo do século XIX. Seu plano de educação propõe, por um lado, uma escola única para os dois sexos, a instrução popular obrigatória, leiga e gratuita; e, por outro lado, um ensino secundário aberto a todos e centrado nas ciências”. (GAUTHIER, 2014b, p. 186). 27 J. Dewey (1859-1952), defensor da aprendizagem através de atividades livres enquanto experiências, formou-se em Filosofia; M. Montessori (1870-1952), pioneira na elaboração de recursos, materiais e mobiliários adequados às crianças para situações relacionadas à vida prática, especializou-se em Pediatria e Psiquiatria; W. H. Kilpatrick (1871-1965), reconhecido pelo método de projetos, inicialmente graduou-se em Matemática e Física; J.-O. Decroly (1871-1932), precursor do espontaneísmo (centros de interesse) e de um modelo de ensino não-autoritário e não-religioso, formou-se em Medicina; É. Claparède (1873-1940), atento a uma educação individualizada, sem negar sua importância socializadora, formou-se em Medicina e Psicologia; J. Piaget (1896-1980), que muito contribuiu sobre a investigação da natureza do desenvolvimento da inteligência infantil, formou-se em Biologia e Psicologia; R. Cousinet (1881-1973), quem desenvolveu o método de trabalho por equipes, graduou-se em Letras. (DI GIORGI, 1992).

30

confessional ou interconfessional, unida à tolerância. (MANACORDA, 2002,

p. 311).

Louis Not (1991) propõe novas categorias e expõe as características dos métodos

pedagógicos desenvolvidos nos séculos XIX e XX, encarregando-se de analisar, criticar e expor

os limites quanto às propostas e suas aplicações, suas contradições e abrangência. No início de

sua obra, apresenta a perspectiva pedagógica que toma a criança como algo a que se deve

moldar e equipar (o externo influi e determina o educando: heteroestruturação), e a que toma

a criança como um sujeito com vontades/anseios (pedagogia não-diretiva: autoestruturação).

No quadro a seguir, o autor sintetiza essas duas perspectivas:

Quadro 2: Metodologias pedagógicas: heteroestruturação e autoestruturação

HETEROESTRUTURAÇÃO AUTOESTRUTRAÇÃO

(TRANS)FORMAR O ALUNO AJUDAR O ALUNO A SE

TRANSFORMAR

AÇÃO PREPONDERANTE DE UM AGENTE EXTERNO

AÇÃO PRÓPRIA DO ALUNO

PRIMADO DO OBJETO PRIMADO DO SUJEITO

OBJ. TRANSMITIDO OBJ. CONSTRUÍDO SUJ. INDIVIDUAL SUJ. COLETIVO

M. TRADICIONAIS M. COATIVOS MÉTODOS DITOS ATIVOS

TRADIÇÃO ATIVA

BEHAVIORISMO E REFLEXOLOGIA (WASHBURNE E

DOTTRENS)

DESCOBERTA PELA OBSERVAÇÃO MONTESSORI / DECROLY / COUSINET

TRADIÇÃO CONSTITUÍDA (AÇÃO MODELADORA DA

HERANÇA CULTURAL) TRANSMISSÃO:

DURKHEIM REPRODUÇÃO: ALAIN,

CHATEAU

SISTEMATIZAÇÃO BEHAVIORISTA

SKINNER

INVENÇÃO PELA EXPERIÊNCIA DE ADAPTAÇÃO

PONTO DE VISTA CIBERNÉTICO

CROWDER LANDA

CLAPARÈDE DEWEY

FREINET LOBROT

Fonte: NOT, 1991, p. 21

Ao resgatar alguns nomes da Escola Nova, Clermont Gauthier (2014b) destaca o papel

recorrente que tais autores dão à subjetividade da criança (vontades, interesses, necessidades,

aptidões, capacidades, modos e ritmos de aprender, espírito crítico, espontaneidade), cabendo

ao professor reconhecer e estimular de forma ativa (especialmente por meio do trabalho). O

quadro a seguir sistematiza os discursos produzidos pelos escolanovistas enquanto negação

(contrários à pedagogia tradicional) e autoafirmação (como se veem, princípios, proposições):

Quadro 3: Oposição entre pedagogia tradicional e pedagogia nova

Oposição entre pedagogia tradicional e pedagogia nova (segundo os partidários da pedagogia

nova)

Características Pedagogia tradicional Pedagogia nova

Terminologia

• Pedagogia tradicional. • Pedagogia fechada e formal. • Abordagem mecânica.

• Pedagogia enciclopédica. • Ensino dogmático. • Pedagogia centrada na escola.

• Pedagogia nova. • Escola ativa. • Educação funcional.

• Escola renovada. • Abordagem orgânica. • Pedagogia aberta e informal.

31

• Escola nova (new school). • Educação puerocêntrica (pedagogia

centrada na criança).

Finalidade da

educação

• Transmitir uma cultura “objetiva” às novas gerações. • Formar a criança, modelá-la.

• Valores objetivos (o verdadeiro, o belo, o bem).

• “Transmitir” a cultura a partir das forças vivas da criança. • Permitir o desenvolvimento das forças

imanentes da criança. • Valores subjetivos, pessoais.

Método

• Educar “de fora” para “dentro”. • Ponto de partida: o sistema objetivo

da cultura que se recorta em partes que devem ser assimiladas pela criança. • Pedagogia do esforço.

• Escola passiva (a criança segue um modelo).

• Enciclopedismo.

• Educar “de dentro” para “fora”. • Ponto de partida: o lado subjetivo, pessoal

da criança. • Pedagogia do interesse. • Escola ativa (learning by doing).

• Educação funcional.

Concepção da

criança

• A criança é como cera mole.

• A infância tem pouco valor em relação à idade adulta.

• É preciso agir sobre a criança. • Visa-se principalmente a inteligência. • A criança gira em torno de um

programa definido fora dela.

• A criança tem necessidades, interesses,

uma energia criadora. • A infância tem um valor em si mesma.

• A criança age. • Preconiza-se o desenvolvimento integral da criança.

• O programa gira em torno da criança.

Concepção do

programa

• O conteúdo a ensinar às crianças não leva em conta os seus campos de interesse (cultura objetiva).

• Idealismo do programa (conteúdo desencarnado).

• Os campos de interesse das crianças determinam o programa (estrutura e conteúdo).

• Realismo do programa (conteúdo ligado ao ambiente em que vive a criança).

Autores

representativos

• É uma tradição cujas origens se perdem.

• Dewey, Kerschensteiner, Claparède, Decroly, Cousinet, Freinet, Montessori,

Ferrière.

Concepção da

escola

• A escola é um meio artificial.

• Repressão das emoções (distância). • Lá, longe, outrora.

• A criança resolve problemas artificiais. • A escola prepara para o futuro.

• A escola é um meio natural e social, no qual

decorre a vida da criança. • Espontaneidade infantil.

• Aqui e agora. • A criança resolve problemas reais. • A escola ajuda a criança a resolver seus

problemas do momento.

Papel do

professor

• O mestre dirige. • O mestre está no centro da ação: ele dá o seu saber.

• O mestre é ativo: faz o exercício diante da criança, é o modelo a imitar.

• O professor guia, aconselha, desperta a criança para o saber. É uma pessoa-recurso. • A criança está no centro da ação.

• A criança se exercita.

Disciplina

• Disciplina autoritária (motivação extrínseca: recompensas e punições).

• Disciplina exterior que visa coagir.

• Disciplina pessoal (motivação intrínseca). • Disciplina que vem do interior.

Tipo de

pedagogia

• Pedagogia do objeto: a cultura a transmitir. • Pedagogia de ordem mecânica.

• Pedagogia do sujeito: a criança a desenvolver. • Pedagogia da ordem espontânea (natural).

Fonte: GAUTHIER, 2014b, p. 194-195

A Escola Nova se legitima enquanto uma corrente pedagógica baseada na ciência28 para

superar aquilo que entendiam ser a pedagogia tradicional. Se a Pedagogia passa a ser

28 O termo ciência é empregado enquanto área do conhecimento em busca de certezas que, para tanto, faz uso de metodologia e referencial teórico próprios, propõe e verifica hipóteses, coloca-se em debate e apresenta críticas, cria leis e máximas, atualiza, complementa e supera conhecimentos então tidos como certos.

32

compreendida enquanto “ciência da educação”, é por conta da metodologia experimental29 e

suas bases teóricas partirem, sobretudo, da Psicologia.

Pedagogia e psicologia são agora dois termos inseparáveis, como a

consequência e o princípio. [...] sem um conhecimento preciso das leis da

organização mental, é impossível regular a ordem dos estudos, apreciar o valor

pedagógico dos diversos objetos do ensino, fazer uma escolha entre as ciências

e as letras, estabelecer, ano a ano, apropriando-os à idade e às disposições

naturais, os exercícios que convêm para educar os homens. (COMPAYRÉ

apud GAUTHIER, 2014b, p. 189).

Figura 3: Oficina de trabalhos manuais de tapeçaria e costura da Dewey´s Lab School – Universidade de

Chicago, ca. 1908

Fonte: University of Chicago Laboratory School's (Disponível em:

<https://www.researchgate.net/figure/Classroom-at-Deweys-Lab-School-Students-are-spinning-and-dyeing-

wool-This-picture-was_fig3_40845456>. Acesso em: 20 abr. 2020)

Por fim, as palavras de John Dewey reforçam a oposição entre a escola tradicional e a

escola nova:

À imposição de cima para baixo, opõe-se a expressão e o cultivo da

individualidade; à disciplina externa, opõe-se a atividade livre; a aprender por

livros e professores, aprender por experiência; à aquisição por exercício e

treino de habilidades e técnicas isoladas, a sua aquisição como meios para

atingir fins que respondem a apelos diretos e vitais do aluno; à preparação para

um futuro mais ou menos remoto opõe-se aproveitar-se ao máximo das

oportunidades do presente; a fins e conhecimentos estáticos opõe-se a tomada

de contato com um mundo em mudança. [...] Porque a educação velha

impunha ao jovem o saber, os métodos e as regras de conduta da pessoa

madura, não se segue, a não ser na base da filosofia dos extremos de ‘isto-ou-

aquilo’, que o saber da pessoa madura não tenha valor de direção para a

29 Alfred Binet e Édouard Claparède propuseram, cada um à sua forma, uma “pedagogia experimental”: observação controlada e provocada, sendo então analisada. Ambos, assim como Maria Montessori e Jean-Ovide Decroly são médicos experientes no método de observação científica. (GAUTHIER, 2014b).

33

experiência do imaturo. Pelo contrário, baseando-se a educação na experiência

pessoal, pode isto significar contatos mais numerosos e mais íntimos entre o

imaturo e a pessoa amadurecida do que jamais houve na escola tradicional e,

assim, consequentemente, mais e não menos direção e orientação por outrem.

(DEWEY, 1979, p. 6-7).

Depreende-se que o escolanovismo representou o surgimento de um novo paradigma

pedagógico ao reconhecer a centralidade no aluno e entender que ele pode aprender numa

relação imediata com o objeto do conhecimento, sendo este articulado com a vida, com o

contexto no qual a criança está inserida.

O saber pode ser adquirido por meio do raciocínio durante a realização de experiências

(“trabalho”, projetos, atividades práticas, preferencialmente manuais, jogos, excursão ou

estudos do meio, observação direta: métodos ativos e criativos que instiguem ou satisfaçam

uma curiosidade), resumidas na máxima deweyana learning by doing. Novos espaços, novos

recursos, nova relação professor-aluno e aluno-aluno são reconhecidos. A escola teria um

ambiente alegre e aprender seria uma realização prazerosa. A autodisciplina e o apreço à

democracia eram princípios elementares e se desenvolveriam, naturalmente, no ato e na

convivência.

Assim como Dewey, muitos escolanovistas compreendiam que à medida que o modelo

da Escola Nova fosse amplamente aceito e praticado, a sociedade se tornaria gradativamente

melhor, “aberta”, possibilitando que um indivíduo pudesse ascender socialmente conforme suas

qualidades, potencialidades, capacidades e aptidões – o processo educacional promoveria,

assim, maior “equidade”. (CAMPOS; SHIROMA, 1999).

Os educadores libertários e escolanovistas, contemporâneos compartilham diversos

elementos. Contudo, mudanças meramente pedagógicas não promoveriam por si só as

profundas transformações que os libertários defendiam como necessárias para a sociedade.

Félix G. Moriyón entende que

a escola baseada no princípio da igualdade de oportunidades leva a que os

alunos mais bem dotados, ou pela origem social ou pela própria capacidade,

se imponham aos outros e se transformem em vencedores de uma sociedade

em que inevitavelmente haverá perdedores, relegados às incumbências e

tarefas menos agradáveis e menos consideradas socialmente (MORIYÓN,

1989, p. 26).

Para Sílvio Gallo (2007, p. 48), o escolanovismo serviria “aos interesses políticos do

capitalismo, criando indivíduos adaptados ao laissez-faire absoluto, que procurarão o

desenvolvimento individual sem preocupar-se com o coletivo, com o social”. Neste sentido, a

pedagogia libertária é verdadeiramente radical, visando novas práticas pedagógicas somadas à

34

promoção dos princípios morais libertários, preparando as novas gerações para a sociedade do

porvir, anarquista.

35

1.2 Aproximações entre a escola nova e a pedagogia libertária

DISCAT A PUERO MAGISTER30

(lema do “Institut Rousseau”)

No meio pedagógico renovado, a figura de Rousseau é seminal e dúbia: para os

escolanovistas, o pensamento pedagógico do filósofo suíço é apropriado31 num aspecto muito

particular, o da pedagogia não-diretiva, de valorização da liberdade individual e do

espontaneísmo; outra apropriação é feita pelos libertários, para quem Rousseau torna-se

referência à medida que valoriza “o respeito ao indivíduo, o culto à liberdade, a educação ligada

à natureza, para despertar e garantir o desenvolvimento de toda a potencialidade humana”

(GALLO, 2007, p. 102), a razão e a ciência numa época em que imperava o dogmatismo, sendo

um duro crítico da desigualdade social e da ordem política num contexto de privilégios

garantidos pelo nascimento ou pela propriedade.

A sociedade por ele idealizada só estaria em harmonia com as leis fundamentais da

natureza, à medida em que a liberdade estivesse garantida. Tais pensamentos inspiraram grupos

radicais que defendiam a “[...] instauração de um modelo societário, no qual a ordem não fosse

resultado de acordos de interesses, mas sim proveniente do pacto político, fundado na

convergência das vontades e no consenso unânime em torno da lei” (SANTOS, 2009, p. 60).

As práticas educativas de Rousseau, enquanto preceptor de Emílio, representou um novo

paradigma na educação ao buscar garantir a liberdade/espontaneidade (não-diretividade),

porém individualmente (as práticas eram dirigidas apenas a ele) e isoladamente (afastado do

convívio social, em um espaço criado artificiosamente para este fim). Enquanto entre os

escolanovistas tais aspectos não foram devidamente problematizados, entre os pedagogos

libertários despertaram uma série de reflexões, questionamentos e críticas, que podem ser assim

resumidas: “Rousseau defendia a liberdade, mas a liberdade burguesa; defendia o

individualismo, mas o individualismo burguês; lutava por uma nova sociedade, a sociedade

burguesa” (GALLO, 2007, p. 103).

30 “Que o mestre aprenda com a criança” (trad. livre). 31 O conceito “apropriação” (CHARTIER, 2002), brevemente abordado na Introdução, será melhor discutido no Capítulo 4: Apropriações das ideias pedagógicas libertárias na Escola Moderna N.1.

36

Figura 4: Ilustração contemporânea ao Emílio, de Rousseau. (desconhecido, s. XVIII). “O professor deixa seu

aluno descobrir e refletir e o ensina a seguir a natureza”

Fonte: Wikibooks (Disponível em: <https://it.m.wikibooks.org/wiki/File:Emile.jpg>. Acesso em: 20 abr. 2020)

A pedagoga Clémence Jacquinet, colaboradora da imprensa libertária, autora de livros

publicados pela “Casa Editorial Publicaciones de la Escuela Moderna” e diretora da Escuela

Moderna de Barcelona, foi uma importante crítica à pedagogia rousseauísta. Para ela, seria um

erro educar uma criança afastada do mundo operário; mesmo vivendo livremente no campo,

estaria distante da natureza, pois se trata de um espaço artificial: tal educação seria, portanto,

elitista (SANTOS, 2014, p. 151). Mesmo compreendendo que esse isolamento do convívio

social trouxesse benefícios à criança – não sendo, portanto, corrompida –, como garantir que,

ao ser reintroduzida, ela teria condições de exercer uma influência positiva sobre esta

sociedade?

Além da inspiração rousseauísta, há outros pontos de convergência entre os princípios

do movimento escolanovista e os da pedagogia libertária. Ambas as perspectivas buscavam,

em termos gerais32:

• Orientar os estudos a partir do “ativismo”, do interesse e da participação, ou seja, dar

ênfase às atividades práticas que permitiriam aos alunos aprender mediante a

curiosidade, jogos, passeios ou saídas de campo, reflexão, pesquisa, levantamento de

32 Os elementos apresentados foram extraídos de Moriyón (1989), Di Giorgi (1992), Saviani (1999), Vidal (2003), Calsavara (2004), Marconi (2010), Santos (2014), Castro (2014), Quiqueto (2014), Oliveira (2014) e Leuprecht (2018).

37

hipóteses, de forma a apresentar suas próprias conclusões. O aprendizado seria

essencialmente ativo e colaborativo, pois demandava a interação dos alunos entre si e

com o objeto em estudo.

• Respeitar o desenvolvimento natural das crianças para que as atividades propostas e os

assuntos trabalhados fossem mais bem assimilados. Havia também o reconhecimento

das particularidades de cada criança, tendo programas e prazos flexíveis a fim de que

se aprenda de acordo com seu interesse, capacidade e ritmo. Consequentemente, o

ensino seria antiautoritário, sendo o professor não um sujeito opressor ou disciplinador,

mas atento, bom ouvinte, paciente, que não exigia a obediência da criança ou a mera

reprodução de conteúdos e valores, mas que procuraria despertar suas possibilidades e

desenvolver suas virtudes.

• Eliminar o sistema de premiação e castigos, pois as notas e menções honrosas seriam

entendidos como formas de hierarquizar e destacar os “melhores”, que mereceriam ser

admirados, em detrimento dos “fracos” ou “inferiores. Os castigos empreenderiam

medo, uma obediência garantida pela exposição vexatória, sofrimento físico,

cerceamento da liberdade.

• Garantir a coeducação dos sexos, de forma a oportunizar às meninas os mesmos

conteúdos e métodos dispensados aos meninos que, ao dividirem o mesmo espaço e ao

realizarem as mesmas tarefas, estariam convivendo e respeitando-se mutuamente,

contrapondo uma relação social que coloca homens hierarquicamente superiores às

mulheres, exercendo papéis sociais específicos, como se suas aptidões ou capacidades

fossem determinadas pelo gênero.

• Conscientizar alunos e familiares sobre a importância dos cuidados com a higiene

pessoal e com a salubridade dos espaços como forma de garantir boa saúde e o controle

da disseminação de doenças, fundamental para a garantia da vida e do vigor físico e

bem-estar das crianças e da sociedade como um todo.

Assegurar que no espaço escolar houvesse liberdade e espontaneidade representa o

respeito ao desenvolvimento natural da criança; trata-se de preservar o interesse genuíno e a

curiosidade, que são a base da vontade de aprender, premissas da renovação pedagógica.

Assim, cabe ao professor um mínimo de diretividade nas escolhas do que estudar e no processo

de aprendizagem para respeitar as demandas do aluno ou do grupo, sem com isso incorrer em

negligência daquilo que considera ser necessário abordar.

38

Quadro 4: Uma comparação entre as propostas da pedagogia escolanovista e da pedagogia libertária

Uma comparação entre as propostas da pedagogia escolanovista e da pedagogia libertária

Pedagogia escolanovista Pedagogia libertária

Autores

representativos

Rousseau*, Pestalozzi*, Froebel*, Herbart*, Dewey, Decroly, Claparède,

Ferrière.

Rousseau**, Tolstoi**, Robin, Faure, Ferrer y Guardia, Neill, Lobrot.

Concepção da

criança ou do

discente

Figura central no processo de aprendizagem, deve ser respeitada nas suas particularidades (necessidades, interesses,

vontades, aptidões, capacidades e ritmos) buscando se aperfeiçoar. Aprende fazendo

uso da razão.

Principal sujeito do processo peda-gógico, é a ela assegurada a esponta-neidade, a livre expressão e o respeito à

sua individualidade e liberdade. Enquanto sujeito racional, aprende

autonomamente e criticamente, em-pregando o raciocínio intuitivo.

Concepção do

mestre ou do

docente

O mestre deve estimular e orientar o raciocínio da criança, corrigindo-a quando

necessário para que o saber nasça a partir de suas próprias reflexões. Os valores positivos (bom senso e justiça) são

estimulados por leituras e reflexões.

O mestre deve estimular e orientar o raciocínio da criança, a livre expressão

e a correção entre pares, o debate e o pensamento crítico. Os valores libertários são “despertados” por meio

de leituras e reflexões sugeridas.

Concepção de

aprendizagem

Defesa da coeducação dos sexos, dos saberes baseados na cultura “geral” e na realidade local, de que o conhecimento é

descoberto pelos alunos por meio das coisas (atividades, projetos, saídas escolares) e do uso de método científico (observação,

hipótese, verificação, lei), da educação integral (intelectual, manual e emocional). A liberdade e a alegria estão no ato de

aprender.

Defesa da coeducação dos sexos e das classes sociais, do saber científico e crítico da realidade social, de que o

conhecimento é descoberto pelos alunos por meio das coisas (atividades, saídas escolares) e do uso de método

científico (observação, hipótese, verificação, lei), da educação integral (intelectual, manual e moral). Valoriza-

se o diálogo, a livre expressão e a defesa dos princípios libertários.

Concepção de

disciplina

Essencialmente, autodisciplina, garantida pelo interesse e respeito à criança, mas

também por recompensas (incentivos para aumentar o poder criativo) e correções

(punições para reconhecer que cometeu alguma falta ou não atingiu o esperado).

Essencialmente, autodisciplina, ga-rantida por meio da consciência dos

próprios atos. Abolição de sistema de recompensas e correções (expressa na

máxima “nem prêmios, nem castigos”) pois incentiva a competição e destroe laços de solidariedade.

Finalidade da

escolarização/

educação

“Transmitir” os saberes e a cultura.

Promover sujeitos tolerantes, criativos e dinâmicos, capazes de contribuir para o progresso e para a harmonia social, que

valorizem a democracia (liberal-burguesa), o mérito individual e busquem a realização pessoal.

“Transmitir” os saberes científicos por

meio da base racional. Promover sujeitos críticos, autônomos, responsáveis e solidários, capazes de

colaborar na construção da sociedade mediante as bases da liberdade, justiça e igualdade, por uma ordem plenamente

democrática. Fonte: o próprio autor

* Tais autores são anteriores ao movimento escolanovista, mas suas ideias e práticas pedagógicas, anos mais tarde,

serviriam de base para a Escola Nova.

** Tais autores não podem ser considerados libertários em decorrência do conjunto da sua obra ou de suas posições

políticas, mas suas ideias e práticas pedagógicas antiautoritárias viriam a ser assimiladas pelos libertários.

Como observado por diversos autores33, as características distintivas mais evidentes

entre a Escola Nova e a Pedagogia Libertária se resume a: 1) enquanto a Escola Nova educa

apenas por meio da liberdade, a Pedagogia Libertária educa por meio e para a liberdade; 2)

33 Cf. Moriyón (1989), Gallo (2007), Marconi (2010), Santos (2014).

39

enquanto a Escola Nova estimula a competitividade, valorizando a individualidade e as

capacidades adaptativas da criança ao meio social, a Pedagogia Libertária preocupa-se em

promover espíritos questionadores/críticos e, por que não dizer, combativos contra as injustiças

e desigualdades e solidários entre si.

A Pedagogia Libertária é, portanto, radicalmente transformadora, pois busca fazer

contraposição à escola dita tradicional (religiosa ou estatal) e à “escola burguesa” (que

apropriara de elementos do escolanovismo), de seu tempo, que não rompiam, mas atendiam aos

interesses dos grupos dominantes. Trata-se de defender um modelo de ensino que possa

contribuir para a construção de uma sociedade plenamente livre: quando as consciências

tiverem sido emancipadas de quaisquer preconceitos, que então hierarquizavam ou definiam

os papéis sociais por conta de gênero, cor, etnia, origem etc.; quando a sociedade tiver abolido

as hierarquias sociais, definidas pela posse de capitais e assim organizar a produção de base

coletivista; quando o Estado for superado por um sistema autogestionário, em que as decisões

seriam definidas pelos membros dessa sociedade, autonomamente. Assim, a máxima “[...] O

homem estará verdadeiramente livre apenas entre homens igualmente livres” (Bakunin apud

MARSHALL, 2008, p. 299 – trad. livre) se efetivaria.

Como visto, o resgate das ideias fundamentais de Rousseau é ponto fundamental do

escolanovismo e da pedagogia libertária. Pode-se dizer que ambos preconizavam um modelo

de ensino antiautoritário. Particularmente os libertários

retomaram também as grandes intuições de Fourier, que insistira na

necessidade de educar a criança mais pelo jogo do que pela disciplina,

propondo uma educação antiautoritária, e que teria enfatizado a importância

da educação e da união do trabalho intelectual e manual nas escolas. Mas

estavam também próximos a outros grandes educadores, como Dewey, que

haviam descoberto a importância de se propor uma educação ativa em que as

crianças não fossem obrigadas a receber passivamente tudo o que os

professores quisessem impor. E os anarquistas não só se dedicaram a receber

e aplicar essas novas correntes que pouco a pouco iam abrindo caminho nas

escolas europeias, como também estavam na linha de frente, contribuindo com

inovações, praticando métodos autenticamente revolucionários, que

posteriormente seriam aceitos, ou então criando movimentos e ligas de

pedagogos para difundir as novas propostas educativas. (MORIYÓN, 1989,

p. 16-17).

Em síntese, ambas as pedagogias (escolanovista e libertária) surgiram em um contexto

de grande desenvolvimento das ciências e de profundas transformações sociais, compartilhando

diversos referenciais, princípios e aspirações propondo um novo modelo de educação e de

sociedade. Entende-se que tais ideias transitavam pelas duas correntes, sendo problemática a

busca pela primazia de um ou de outro (LEUTPRECHT, 2018). Para Samira Chahin,

40

[...] realmente causa estranhamento qualquer tipo de aproximação entre

progressistas e libertários. Contudo, não se trata de uma aproximação. O que

houve foi o compartilhamento de um mesmo momento histórico que, por suas

características político-culturais, centrou seus esforços na formulação de uma

certa modernidade pedagógica. Libertários, progressistas e outros grupos, por

compartilharem o mesmo clima de renovação pedagógica, fizeram uso dos

mesmos instrumentos de ensino e, em certos casos, inclusive de uma mesma

linguagem educativa. A questão central, fundamental para entender um e outro

discurso, é o reconhecimento dos objetivos para os quais cada qual lançou

suas propostas de educação. (CHAHIN, 2013, p. 190).

Apesar das diversas tendências enquadradas na pedagogia escolanovista, muitos de seus

princípios e práticas seriam apropriados por reformadores educacionais, servindo à lógica

liberal-burguesa (incutindo valores individualistas, cívico-patrióticos, competitividade,

conformismo), regulando os comportamentos (governo da população). A pedagogia libertária,

por sua vez, procurava desenvolver todas as potencialidades dos indivíduos (aptidão,

inteligência, criatividade, autonomia, solidariedade), para que estes pudessem compreender a

realidade, sendo críticos, sensíveis e capazes de promover a transformação social – ela se

caracterizava, basicamente, pela autogestão institucional e pedagógica, antiautoritarismo,

educação integral e coeducação dos sexos e das classes.

41

1.3 Princípios da pedagogia libertária

LIBERTAS VIRORUM FORTIUM PECTARA ACUIT34

(filme La lengua de las mariposas)35

Os autores elencados para o estudo do anarquismo e da pedagogia libertária36

compreendem que o termo libertário é tratado, geralmente, como sinônimo de anarquista, cuja

origem remonta às discussões que dividiram a Primeira Internacional37 em 1872: de um lado,

os comunistas adeptos das teorias e propostas de Karl Marx, reconhecido por alguns como

“socialismo autoritário”; de outro, os anarquistas alinhados ao pensamento de Mikhail Bakunin,

definido como “socialismo libertário”. Enquanto a “anarquia” possui carga semântica de

negação (sem governantes; sem patrões; sem hierarquias), “libertário” possui carga semântica

afirmativa (defesa da liberdade, controle da própria vida, autogestão). Como alerta Felipe

Corrêa (2015), o termo anarquista é anterior ao termo libertário e, ao longo da história do

movimento, libertários viriam a ser chamados de anarquistas.

[...] outros termos vêm funcionando historicamente como sinônimos de

anarquismo: “socialismo libertário”, “comunismo libertário”, “socialismo

antiautoritário”, “comunismo antiautoritário” entre outros. Contudo, não se

pode assumir que todos eles sejam sinônimos; se eles foram frequentemente

reivindicados por anarquistas, em determinados casos extrapolaram fronteiras

e estenderam-se a outros setores da esquerda socialista e revolucionária.

(CORRÊA, 2015, p. 80).

O anarquismo “se insere em um contexto determinado, pode ser localizado no tempo

e no espaço, e define-se por princípios mais estritos” (CORRÊA, 2015, p. 91), uma ideologia

(aspirações, valores, motivações que impulsionam práticas) fundamentada em teoria (métodos

34 “A liberdade estimula o espírito dos homens fortes” (trad. livre) 35 LA LENGUA DE LAS MARIPOSAS. Direção: José Luis Cuerda. Produção: Canal+ España. Intérpretes: Fernando Fernán-Gomes; Manuel Lozano; Úxia Blanco; Gonzalo Uriarte; Aléxis de los Santos; Jésus Castejón; Guillermo Toledo e outros. Roteiro: Rafael Ascona, Manuel Rivas e José Luis Cuerda. Trilha sonora: Alejandro Amenábar. Espanha, 1999. 1 DVD (96 min), son. col. Baseado nos contos “A Lingua das Bolboretas”, “Carmiña” e “Un Saxo na Néboa”, de Manuel Rivas. 36 Refiro-me especialmente a Gallo (2007), Moriyón (1989), Arvon (1981), Rodrigues (1999), Marshall (2008) e Corrêa (2015). 37 A Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em Londres no ano de 1864, foi denominada “Primeira Internacional” (posto que houve diversas rupturas), destinada a unir os esforços de organizações trabalhistas ao redor do mundo para fins de articulação teórica e tática da luta de classes e de apoio mútuo.

42

de análise e busca conceitual de forma a compreender a realidade)38. De maneira geral, os

anarquistas apresentam uma crítica à ordem existente, rejeitando todas as formas coercitivas de

autoridade externa em vistas a conquistar uma sociedade livre e igualitária (MARSHALL,

2008).

Por sua vez, o libertarismo é algo mais abrangente, compreendendo diferentes posições

dentro do campo anticapitalista, tendo a liberdade como um valor supremo e buscando os

poderes governamentais ao mínimo possível (MARSHALL, 2008), “ligados às lutas

antiautoritárias que tem por base a oposição à dominação e a aspiração à liberdade [...] pautadas

em princípios mais amplos” (CORRÊA, 2015, p. 91). Sendo assim, os “princípios estritos” do

anarquismo estariam presentes no libertarismo e, consequentemente, aqueles que defendem a

causa libertária não seriam, necessariamente, enfáticos apoiadores da totalidade das pautas

anarquistas.

O anarquismo preconiza a fragmentação dos poderes e sua repartição equitativa entre

todos de forma a garantir os interesses do indivíduo e sua liberdade pessoal. Do ponto de vista

tático, segue-se o princípio de autoemancipação bakuninista de que a liberdade dos

trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores – entenda-se que a revolução se faz

necessária. Liberdade é entendida como negação da autoridade e possibilidade de pensar e agir

segundo a própria consciência ou leis naturais; ela só se realiza à medida que se coloca fim às

hierarquias e às instituições coercitivas que buscam controlar as pessoas (Estado, Capital,

Igreja), respeitando as individualidades e as diferenças de cada grupo ou comunidade.

Muitos dos anarquistas mais proeminentes do século XIX, conscientes dos males

trazidos pelas transformações ocorridas na vida dos operários (perda da autonomia e

individualidade, alienação, empobrecimento, superexploração), do aumento do capital nas

mãos das elites (ampliação de maquinário, apropriação de terrenos em áreas rurais, estilo de

vida mais requintado), da opressão exercida pelo Estado na vida das pessoas (leis coercitivas,

taxação injusta, obrigações civis, violência policial), propuseram um projeto mais radical do

que o defendido pelos liberais do século anterior.

A sociedade do porvir, para eles, seria uma sociedade sem Estado – cujas leis, normas

e obrigações seriam consensuais e definidas pelos próprios membros; sem abraçar a lógica do

punitivismo, mas criando meios para correção – e sem propriedade privada baseada em livres

38 Por isso Corrêa (2015) entende não ser apropriado falar em “anarquismo” ou “anarquista” anteriormente ao século XIX, pois suas bases não estavam suficientemente desenvolvidas e reconhecíveis dentro do campo dos movimentos antiautoritários, não havendo uma consciência em si.

43

acordos entre produtores autônomos (cooperados e autogestionários) e consumidores,

atendendo satisfatoriamente as necessidades humanas elementares (alimentação, vestuário,

moradia) e secundárias (educação, lazer, artes, conforto material).

Do ponto de vista moral, trata-se da busca por uma harmonia social baseada na

igualdade e na solidariedade entre as pessoas, na valorização do trabalho enquanto algo

positivo, pois atende as necessidades da comunidade sem haver exploração, permitindo que as

pessoas realizem o seu melhor, sejam plenas e contribuam para o bem comum e felicidade geral.

A liberdade é inquestionável, devendo ser respeitada e garantida a todos39.

Peter Marshall (2008) explica que o anarquismo40 é como um rio de muitas correntes e

redemoinhos, tanto do ponto de vista das ideias quanto das estratégias: as principais são a

mutualista-federalista41, a coletivista42, a comunista43 e a sindicalista44. Posto que sua natureza

é antidogmática, não há uma apenas uma vertente aceita nem uma rigidez na interpretação da

realidade ou no plano de ação revolucionária. Nesta linha, segue Sílvio Gallo, que entende não

ser adequado falar em anarquismo (no singular, devido à diversidade de perspectivas), mas em

39 “Para Bakunin, liberdade sem igualdade significa a escravidão da maioria; igualdade sem liberdade significa o despotismo do Estado e a regra injusta de uma classe privilegiada. Igualdade e liberdade são, portanto, inextricavelmente conectados. [...] Bakunin vê corretamente que liberdade não tem sentido a menos que as pessoas se tratem da mesma forma e tenham condições econômicas semelhantes para realizar seu potencial”. (MARSHALL, 2008, p. 292 – trad. livre) 40 Não está sendo considerada a corrente “individualista” do anarquismo devido à sua pouca influência no movimento anarquista europeu e brasileiro e, também, por suas concepções de indivíduo, propriedade, trabalho, ganhos e Estado estarem mais próximas do liberalismo clássico (e atualmente do “anarcocapitalismo”) do que do “anarquismo social”. 41 Pierre-Joseph Proudhon, a partir dos anos 1840, forneceu as bases do mutualismo, entendido como princípio econômico no qual a sociedade seria organizada sem a intervenção do Estado por indivíduos capazes de fazer contratos uns com os outros, por reciprocidade. Esta sociedade seria coordenada por um sistema federalista, partindo dos conselhos locais, regionais, nacionais, até os internacionais. 42 O principal expoente do coletivismo foi Mikhail Bakunin, que a partir de 1868, passou a defender um ideal de federações livres formadas por produtores e consumidores que organizariam a produção e a distribuição. Ao desmantelar o Estado sem um governo revolucionário de transição, os coletivistas desejavam restringir ao máximo a propriedade privada, sendo a produção baseada na propriedade comum e controlada por associações de produtores. Seu lema era “de cada um segundo sua capacidade, a cada um de acordo com seu trabalho”. 43 Os ditos anarcocomunistas acreditavam que os instrumentos e os produtos do trabalho deveriam ser comuns, pois não seria possível calcular o quanto de trabalho foi empregado por cada um devido à dependência/entrelaçamentos dos trabalhos. A economia seria gerida, portanto, por toda a sociedade (não apenas pelas associações de produtores), sem um sistema salarial ou de preços. As relações econômicas se dariam pela solidariedade e ajuda mútua. Esta vertente ganhou projeção com Piotr Kropotkin nos anos que se seguiram com o fim da Primeira Internacional. Seu lema era “de cada um segundo sua capacidade, a cada um de acordo com sua necessidade”. 44 A corrente anarcossindicalista, muito ativa e bastante representativa entre os anos de 1894 e 1914, compartilha do princípio da ajuda mútua. Os defensores do anarcossindicalismo consideram que os sindicatos não devem se preocupar apenas em melhorar as condições e salários de seus membros; Eles devem assumir um papel mais positivo e ter uma função educacional e social. Os sindicatos deveriam, portanto, estabelecer instituições de autogestão para que, quando a revolução viesse através de uma greve geral os trabalhadores estariam preparados para empreender a transformação social necessária. Os sindicatos devem assim ser considerados o meio da revolução, bem como um modelo da sociedade futura.

44

paradigma anarquista: “negação de toda e qualquer autoridade e afirmação da liberdade”

(GALLO, 2007, p. 20).

Justamente por ser libertário seria contraditório enquadrar o anarquismo como uma

“doutrina política”, fechada em suas certezas, estratégias, proposições de sociedade etc. Para o

autor (GALLO, 2007), o princípio gerador anarquista é formado por quatro aspectos básicos de

teoria e de ação: autonomia individual (o indivíduo, que não deve ser preterido em nome do

grupo, constrói sua autonomia em sociedade); autogestão social (gestão direta da sociedade, ou

seja, participação ativa dos indivíduos nos destinos políticos da comunidade),

internacionalismo (defesa da luta conjunta dos trabalhadores para sua emancipação e

construção de uma sociedade libertária em detrimento das limitações impostas pelos Estados-

nação) e ação direta (conjunto de táticas com fins reformadores, transformadores ou

revolucionários, visando mudanças profundas na sociedade ou apenas conquistas imediatas,

realizadas pelos próprios trabalhadores e não por instituições representativas; dá-se pela

propaganda por meio do teatro, literatura, jornais e educação e também por meio de

mobilizações coletivas, pacíficas ou violentas, de forma a realizar a pressão diante das

autoridades ao mesmo tempo em que organiza a luta constante e reforça as consciências).

Felipe Corrêa (2015), em um trabalho de análise crítica de estudos teóricos e históricos

de referência sobre o anarquismo, traça, em linhas gerais, alguns aspectos característicos do

pensamento anarquista: “um dos ramos do pensamento socialista, onde [sic] predominam,

fundamentalmente, o culto da liberdade e a vontade de abolir o Estado” (segundo Guérin),

“negação do Estado no futuro” (segundo Eltzbacher), “aspiração à liberdade” e “consciência de

uma existência livre” (segundo Nettlau), defesa da “substituição do Estado autoritário por

alguma forma de cooperação não-governamental entre indivíduos livres” (segundo Woodcock),

rejeição da “legitimidade do governo exterior e do Estado” e condenação da “autoridade

política, hierarquia e dominação impostas”, buscando uma “sociedade descentralizada e

autorregulada fundamentada em uma federação de associações voluntárias de indivíduos livres

e iguais” (segundo Marshall), ou ainda “uma oposição radical à hierarquia e, portanto, ao

capitalismo e ao Estado, e busca criar uma sociedade socialista, sem governo, fundamentada

nos interesses coletivos, na liberdade e na solidariedade” (segundo McKay).

Em busca de síntese, o mesmo autor procura definir o anarquismo como

uma ideologia socialista e revolucionária que se fundamenta em princípios

determinados, cujas bases se definem a partir de uma crítica da dominação e

de uma defesa da autogestão; em termos estruturais, o anarquismo defende

uma transformação social fundamentada em estratégias, que devem permitir

45

a substituição de um sistema de dominação por um sistema de autogestão.

(CORRÊA, 2015, p. 117 – grifos do autor).

A crítica à sociedade capitalista é clara: do ponto de vista material, a classe trabalhadora

é explorada e sua condição de vida é precária; do ponto de vista ideológico/filosófico, é

alienada, sendo mantida numa condição de ignorância; do ponto de vista social, é

marginalizada; do ponto de vista político, não há espaço para exercício autêntico do poder,

apenas a obediência – em uma palavra: opressão. Libertar a classe trabalhadora da opressão é,

ao mesmo tempo, libertar a classe dominante da condição de opressora – ambas as condições

são moralmente degradantes. Transformar essa sociedade, que “naturaliza” as desigualdades e

as injustiças em direção a uma sociedade livre, humana/humanizada, autogestionada/autônoma

e igualitária é o que anima o espírito dos anarquistas.

A liberdade anarquista, segundo Edgar Rodrigues é:

inerente ao indivíduo, propriedade comum de todos os homens, não é apenas

manifestação pública de desabafos emocionais e políticos com discursos.

Liberdade é tão necessária ao ser humano quanto o ar que respira, a água que

bebe, o alimento de que se nutre. [...] é o elemento mais importante na

formação psico-cultural, no equilíbrio emocional, no desenvolvimento das

potencialidades criativas, no campo artístico, científico, literário, da

solidariedade humana, do apoio mútuo e do amor fraterno. [...]

O homem livre detesta a violência porque sabe que ela só gera ódio e,

sobretudo, o firme propósito da desforra, detesta os sistemas governamentais

que adotam um só homem como dirigente, sistema de força, porque não

acredita nas soluções estatais e tem consciência de que a liberdade é parte

ativa do desenvolvimento do poder criador, constante evoluir para o

aperfeiçoamento das sociedades e dos povos. [...]

O homem só será livre, na medida em que possa viver isento de todos os tipos

de pressões: econômica, religiosa, política, jurídica, moral etc. Sem essa

isenção, jamais estará vivendo livremente, tanto do ponto de vista físico como

intelectual, será sempre uma presa de fácil condução, um ser condicionável às

conveniências dos líderes. (RODRIGUES, 1999, p. 218-219).

No meio anarquista, a educação possui destaque, pois é entendida como ação direta,

principal ferramenta de crítica e conscientização, fundamental para realizar a transformação

política e social. A educação é vista de maneira ampla, abrangendo tanto a educação formal

(oferecida pelas escolas e universidades populares) quanto a educação informal (jornais,

revistas, teatros, cinemas, centros de cultura, ateneus, festas, palestras, conferências, cursos em

sindicatos etc. e as mobilizações como boicotes e greves são também “educativas”).

Além de questões sociais, políticas e econômicas, nestes espaços e momentos,

privilegiavam-se apresentações artísticas e divulgação científica para as classes populares45. Os

45 Os anarquistas, de certa forma, anteciparam o conceito de reprodução (BOURDIEU; PASSERON, 2018) ao compreender a diferença de ensino assegurada às crianças das classes dominantes e aos filhos de camponeses

46

anarquistas tinham clareza de que a revolução tomaria o rumo desejado somente se houvesse

previamente uma base sólida, científica, voltada para promover autonomia do pensamento e

uma consciência libertária.

Pode-se dizer que nos estudos sobre educação anarquista seja consensual a visão de que

a educação desempenhou um papel particularmente importante na história do

pensamento e da prática anarquistas, talvez mais do que qualquer outra

filosofia política voltada para a transformação social. Isso ocorre em parte

porque, para anarquistas de todos os tipos, a educação nunca foi simplesmente

um meio de alcançar uma nova ordem social. Foi, antes, parte da própria

prática e prefiguração do ideal anarquista de criar mentes mais livres e críticas,

além de relações mais abertas, cooperativas e não-opressivas na sociedade.

(MUELLER, 2012, p. 14 – trad. livre).

Estas ideias podem ser complementadas pelas de Félix G. Moriyón (1989), para quem

os anarquistas estavam plenamente conscientes de que para modificar a sociedade não bastava

a educação crítica e engajada – a classe trabalhadora precisaria romper com a ignorância para

poder enfrentar a ordem social capitalista – pois somente a revolução efetivaria a abolição da

propriedade privada e do Estado. A educação, por assim dizer, “prepararia o terreno”, ativaria

as consciências, formaria homens novos (indivíduos completos, intelectual e moralmente,

autônomos, livres e solidários) que promoveriam a instauração de uma sociedade distinta,

totalmente libertária. A educação escolar e as questões pedagógicas e gestionárias vão, pouco

a pouco, ganhando forma e definindo o que se passou a chamar de pedagogia libertária46, cujos

principais elementos são:

• Autogestão, que busca subtrair ao Estado o controle de certas instituições sociais, sendo

realizado pelos próprios trabalhadores. Especificamente na educação, compreende a)

autogestão institucional: administração de organizações fundadas e geridas coletivamente por

seus membros, cujas deliberações como rumos, obtenção e aplicação de recursos são tomadas

horizontalmente; b) autogestão pedagógica: trata-se de uma “educação negativa”, ou seja, um

método de aprendizagem no qual o professor renuncia seu papel de autoridade, que

simplesmente transmitiria conhecimentos, e passa a organizar as tarefas na qualidade de

“consultor” que orienta grupos de alunos que definem, eles próprios, o que aprender conforme

seus interesses.

e operários, cuja finalidade seria perpetuar e consolidar a desigualdade social. “Logicamente, o que mais sabe dominará o que menos sabe e, como sublinha Bakunin, bastaria esta única diferença numa sociedade para que imediatamente aparecessem outras diferenças e acabasse havendo de novo exploradores e explorados, opressores e oprimidos” (MORIYÓN, 1989, p. 22). 46 Os elementos sobre a pedagogia libertária foram extraídos de Moriyón (1989), Pey (2000), Gallo (2007), Lipiansky (2007), Marshall (2008), Santos (2009), Silva (2013), Chahin (2013), Castro (2014) e Leutprecht (2018).

47

• Antiautoritarismo, que é uma das bases do pensamento anarquista, compreende a não

aceitação de uma autoridade imposta, pois é ilegítima, e se impõe diante do grupo por meios

opressivos. O antiautoritarismo pedagógico segue a tendência não-diretiva de ensino,

assumindo os princípios da liberdade infantil presente em Rousseau, mas vai além. Trata-se,

por um lado, da: a) negação da obediência, que se manifesta enquanto recusa à

heterodeterminação e à imposição de ordens, somada à visão de que se deve propiciar a

centralidade pedagógica no aluno, encorajando-o a ser espontâneo, solidário e exercer a

liberdade; por outro lado observa-se a b) negação do controle, ou seja, uma crítica ao

monopólio e consequente abuso do poder por parte do professor, não mais visto como dono do

saber, infalível, mas alguém que irá contribuir no aprendizado das crianças, servir de guia do

saber e da moralidade, sem com isso ter de apelar para recursos como “prêmios” ou “castigos”.

• Educação integral, que pressupõe o melhor ensino que se pode garantir a todos os

indivíduos a fim de desenvolverem suas potencialidades e tornarem-se completos e autônomos,

rompendo com a ideia hegemônica na época de que à classe trabalhadora caberia uma educação

voltada essencialmente para o trabalho. Contempla, de maneira harmônica, os aspectos a)

físicos (desenvolver músculos e cérebro, por meio de atividades recreativas, exercícios físicos,

esportes, trabalhos manuais, ensino técnico e prático voltados ao trabalho), b) intelectuais

(desenvolver o pensamento por meio do conhecimento teórico, racional, científico, livre de

dogmas, saber formular uma opinião e argumentar) e c) morais (valorização da autonomia do

indivíduo, estímulo à solidariedade e responsabilidade, somando-se as críticas anticapitalista,

antiestatal e anticlerical).

• Coeducação de sexos e classes, tendo em vista que turmas compostas por alunos de

ambos os sexos e de diferentes classes sociais têm um ambiente plural e igualitário. Meninos e

meninas, independentemente de suas origens, podendo receber a mesma educação, terão direito

de escolha, definirão seu futuro de acordo com suas aptidões e interesses, não sendo limitados

pelo papel social que deveriam cumprir, pela imposição de normas sociais ou por não ter tido

privilégios de estudo exclusivos de um grupo.

A partir do II Congresso da Internacional, ocorrido em Lausanne no ano de 1867, as

discussões acerca da educação integral ganharam cada vez mais espaço. Esboçada por

Proudhon e Bakunin, aperfeiçoada por Robin, a educação integral seria a solução anarquista

frente ao ensino religioso e estatal, bem como contraponto à educação burguesa. A primeira

grande sistematização destas ideias estão presentes no Programa Educacional do Comitê para

o Ensino Anarquista47 (1882), que entendia por “integral” o ensino que promovia os

47 Entre seus colaboradores, destacam-se Piotr Kropotkin, Élisée Reclus, Charles Malato e Paul Robin.

48

conhecimentos intelectual, físico, manual e profissional, trabalhados de maneira harmoniosa;

neste documento há ainda a defesa do ensino racional e científico (em oposição ao ensino

religioso), da visão libertária, da coeducação dos sexos, e da crítica à disciplina, aos programas

e às classificações.

Para Piotr Kropotkin, além de ofertar um ensino politécnico (“oficina-escola” defendida

por Pierre-Joseph Proudhon), devia-se evitar a divisão do trabalho, ou mesmo pela sua

fragmentação em pequenas tarefas a executar, o que manteria um pequeno grupo detentor do

conhecimento, ao invés de disseminá-lo, podendo com isso contar com pessoas cada vez mais

inventivas, criativas e colaborativas, pois compreenderiam bem todo o processo produtivo. A

educação integral, portanto, procura-se articular o ensino manual (“para o trabalho”), o ensino

intelectual (“para compreensão do mundo”) e o ensino moral (“para agir no mundo”). Caberia,

então, um ensino completo, de forma a possibilitar um desenvolvimento amplo, seja para o

trabalho, seja para a vida social.

Por um lado, a integralidade [...] tem como objetivo desenvolver todas as

possibilidades da criança, tirar tudo o que ela traz dentro de si sem abandonar

nenhum aspecto mental ou físico, intelectual ou afetivo. Por outro lado, o

ensino integral enfrenta diretamente o problema da divisão social e levanta a

questão da necessidade de uma divisão entre o trabalho braçal e o trabalho

intelectual que costuma reforçar e justificar a divisão em classes sociais,

dominante e dominada. Por último, a teoria e a prática pedagógica anarquista

rompe com os estreitos marcos da escola, tanto pelo desejo de integrar a vida

social nas atividades e preocupações cotidianas dos alunos, como pela

intenção de impregnar toda a sociedade de um talante pedagógico,

multiplicando os centros em que se tenta levar à prática todo um plano de

educação permanente (MORIYÓN, 1989, p. 21).

Dentre os elementos que compõem o ensino moral, um destaque deve ser dado à

coeducação de sexos, que pressupõe a igualdade entre homens e mulheres, o que na época

gerava polêmica em diversos meios, argumentando se tratar de “depravação moral”: além do

contato, que supostamente despertaria a sexualização, poderia ainda afeminar os meninos e

masculinizar as meninas48.

Os anarquistas justificavam a coeducação entre meninos e meninas como postulado de

convivência fraternal e quebra de preconceitos, estudando juntos. O mesmo vale para a

coeducação de classes, defendida principalmente entre anarcocomunistas, pois entendiam que

poderiam atrair mais adeptos para a causa libertária. Trata-se de uma pauta ainda mais avançada

ao levar em conta o conceito de luta de classes, fortemente presente no meio operário. Porém,

48 Contudo, em escolas rurais ou com poucos recursos, era comum que um professor lecionasse para ambos os sexos num mesmo espaço, o que não quer dizer que meninos e meninas conviviam ou aprendiam as mesmas coisas.

49

é notável que a maioria das escolas anarquistas se direcionava principalmente para a classe

trabalhadora. Trata-se, em ambos os casos, de erradicar as diferenças e privilégios decorrentes

da posse do saber e preparar todas as crianças para uma vida socialmente útil e fraterna.

Aspiravam

dar uma tal educação que, ao deixar as salas de aula com dezoito ou vinte anos

de idade, os jovens de ambos os sexos estariam dotados de um tal cabedal de

conhecimentos científicos que lhes permitisse trabalhar com proveito para a

ciência, e que ao mesmo tempo tivessem um conhecimento geral das bases do

ensino técnico e a habilidade necessária em qualquer indústria especial, para

poder ocupar seu posto dignamente no grande mundo da produção manual da

riqueza. (KROPOTKIN In: MORIYÓN, 1989, p. 52).

O ensino dito tradicional apresenta a figura de um professor de postura autoritária, cujo

saber e o dever de ensinar o autorizam a fazer uso de um repertório de práticas autoritárias, tais

como castigos físicos, comentários vexatórios, exclusão de alunos que não atendem às suas

ordens ou não atingem os objetivos esperados. Pelo ensino libertário aprende-se naturalmente,

intuitivamente, observando e empregando seu raciocínio na elaboração de hipóteses e na busca

por respostas, de forma colaborativa, entre pares e com o apoio do professor. No meio

anarquista, o respeito ao aluno demanda tratamento humano, sensível, como defendido por

Élisée Reclus em O Homem e a Terra, de que “o amor e o respeito do mestre pela criança

deveriam proibir-lhe empregar em seu trabalho de tutela e ensino o procedimento sumário dos

antigos déspotas, a ameaça e o terror” (RECLUS apud SILVA, 2013, p. 202).

O caráter antiautoritário da pedagogia libertária é coerente com a perspectiva política e

social anarquista, pois “se era imprescindível suprimir o Estado, isto seria impossível sem abolir

tanto a opressão que aquele gera como a submissão que fomenta entre os seres humanos, e os

lugares em que essa submissão se desenvolve, como a família e a escola” (MORIYÓN, 1989,

p. 17). Em suas escolas, portanto, punições e prêmios deveriam ser extintos, pois trazem

angústia e sofrimento. Busca-se, pelo contrário, fazer surgir a autodisciplina entre os alunos,

não sendo preciso recorrer à força ou atentar contra a liberdade de outrem.

Entre os libertários, a medida ou os limites da liberdade de ensinar, de aprender e do

convívio não é consensual. Há aqueles que defendem a total liberdade da criança, mesmo

incorrendo em possíveis prejuízos a seus valores, aprendizagem e desenvolvimento (Ricardo

Mella, Lev Tolstoi); há outros que entendem ser necessária certa diretividade e autoridade,

inclusive inculcando valores libertários em suas práticas (Mikhail Bakunin, Francisco Ferrer y

50

Guardia)49. Nesta perspectiva, ser antiautoritário não quer dizer não exercer nenhuma

autoridade, sendo, portanto, permissivo – o que seria prejudicial às próprias crianças –, mas

eliminar práticas e atitudes autoritárias que impediriam o desenvolvimento natural de cada

criança. Em outras palavras, fazer a transição da heteronomia para a autonomia para que as

crianças pensem por si mesmas, não sendo submissas às autoridades e supostas verdades a elas

impostas. Esta proposta parece ser a mais razoável e aplicável, sendo assim defendida por

Mikhail Bakunin:

O princípio de autoridade constitui na educação das crianças o ponto de

partida natural; é legítimo e necessário quando se aplica a crianças de tenra

idade num momento em que sua inteligência não está de nenhum modo

desenvolvida. Porém na medida em que o seu desenvolvimento total, e por

conseguinte o de sua educação, implique a gradativa negação do ponto de

partida, essa autoridade deve desaparecer, dando à criança uma crescente

liberdade. (BAKUNIN In: MORIYÓN, 1989, p. 17-18).

Portanto, compete ao professor uma “autoridade positiva”, pois direciona para um

comportamento racional, livremente aceito, útil e benéfico, ensinando “a solidariedade, a

cooperação, a negação aos vícios e o respeito à natureza” (SANTOS, 2009, p. 77).

De maneira geral, a autogestão anarquista decorre do princípio em que “a emancipação

dos trabalhadores é tarefa dos próprios trabalhadores.” Logo, estes devem assumir para si a

responsabilidade por conduzir suas organizações, articularem-se, de forma a não contar com

uma autoridade superior centralizadora, mas buscar a maior participação possível daqueles que

as compõem – trata-se do exercício de liberdade. Numa sociedade capitalista, pode ocorrer em

sindicatos, cooperativas, coletivos, centros de cultura, associações, escolas etc., apesar das

limitações de estar operando sob a fiscalização e um aparato jurídico estatal. Em uma sociedade

anarquista, idealmente, a autogestão pode se realizar também nos meios de produção, nas

relações de trocas, no estabelecimento de leis e normas.

Ainda relativo à autogestão, Sílvio Gallo identifica duas perspectivas:

uma, a que chamaria “tendência não-diretiva”, assume os princípios

metodológicos rousseanianos da educação, embora com críticas à sua

perspectiva sócio-política. Estaria representada na pedagogia antiautoritária

que tem em Max Stirner seu teórico mais radical e que animou diversas

experiências de escolas libertárias. Do ponto de vista metodológico e

psicológico, estaria muito próxima à tendência escolanovista e também da

Pedagogia Institucional, se bem que mais voltada para uma perspectiva de

49 O que seria supostamente paradoxal, à medida em que se propõe uma educação livre, imbuída de princípios libertários, não possibilitaria uma visão mais abrangente, pois exclui ou ataca frontalmente as manifestações políticas, culturais e intelectuais da burguesia ou a serviço dela, correndo o risco de, por conta disso, ser detratada como “doutrinadora”. Contudo, nenhuma ação humana, seja política, cultural ou educacional, é neutra, e mesmo que se busque a liberdade e a verdade, faz-se de uma determinada perspectiva.

51

educação política dos filhos do proletariado. A segunda, que poderia ser

denominada de “tendência mainstream”, assume Rousseau negativamente,

construindo-se como uma crítica radical de sua filosofia educacional. Essa

corrente estaria sustentada teoricamente em Proudhon e Bakunin,

apresentando como exemplos práticos as experiências de Robin, Faure e

Ferrer i Guàrdia. (GALLO, 2007, p. 47).

A perspectiva “não-diretiva” entende autogestão, especificamente, enquanto um meio,

uma opção metodológica na qual o professor exerce uma influência mínima, sem

direcionamentos: é a liberdade do educando, que se exerce no ato de aprender; educa-se pela

liberdade. A perspectiva “mainstream” é entendida enquanto o objetivo da ação pedagógica: é

a liberdade socialmente conquistada e vivida; educa-se para a liberdade. Segundo Felipe Corrêa

(2015, p. 134), “o conceito-chave da pedagogia libertária é a promoção da educação por meio

da liberdade e para a liberdade, estimulando, permanentemente, o aperfeiçoamento de uma

humanidade completa, com corpo e mente plenamente satisfeitos.”

A solidariedade, segundo Félix G. Moriyón (1989), é a chave de todo o projeto

pedagógico anarquista, iniciando-se pela eliminação das formas de competitividade, refletida,

por exemplo, em notas ou conceitos. Este princípio é compatível com o anarcocomunismo, na

medida em que pessoas com diferentes capacidades devem se ajudar mutuamente, os “mais

produtivos” ou “menos talentosos” colaborando para que não falte para os “menos produtivos”

ou “menos talentosos”. Deve-se também respeitar a diversidade, mas não de forma a destacar

as diferenças que poderiam reproduzir os preconceitos (de gênero, raça, origem social, credo

ou outro), sendo uma das facetas da luta por igualdade na sociedade. Como o sistema de prêmios

e castigos da escola tradicional envaidecia o ego de alguns e humilhava tantos outros, podendo

servir como instrumento de poder (por parte dos professores) e obediência (por parte dos

alunos), também deveria ser eliminado.

A pedagogia libertária compreende a liberdade como um meio e um fim. Meio enquanto

exercício de uma pedagogia não-diretiva, calcada no interesse do aluno, na observação, na

elaboração de hipóteses, na construção do conhecimento. Fim enquanto educação preocupada

com a construção social da liberdade, ou desconstrução da autoridade, aos moldes do

pensamento de Bakunin. Se a liberdade enquanto meio e enquanto fim é contra a sociedade e o

Estado capitalistas, não se poderia esperar que as escolas libertárias nascessem do sistema

público, das empresas privadas ou ligadas à Igreja, pois, segundo os anarquistas, “são

justamente essas instituições que [...] perpetuam a desigualdade, a exploração e a autoridade”

(SILVA, 2013, p. 67). Ao contrário, as escolas libertárias teriam de ser obra dos próprios

trabalhadores, única forma de autogerir a Educação.

52

É, portanto, indissociável da pedagogia libertária, a proposição de “uma formação para

a vida social, uma educação para a vivência da liberdade individual em meio à liberdade de

todos, da liberdade social” (GALLO, 2007, p. 36). Esse é seu leitmotiv: construir e viver a

liberdade. Cabe às escolas libertárias, portanto, propiciar um ambiente de liberdade e

desenvolver junto às crianças os valores libertários de autonomia, solidariedade, respeito à

liberdade e responsabilidade. Porém, uma escola libertária numa sociedade capitalista

certamente enfrentará inúmeros problemas. Um deles recai sobre os próprios professores, que

vivem

numa sociedade com valores distintos [dos que transmitem], que receberam

em sua educação valores contraditórios; ao mesmo tempo, as crianças

encontram, ao saírem da escola e voltarem à vida cotidiana ou ao terminarem

os seus estudos e incorporarem-se ao mundo dos adultos, uma sociedade

regida por valores da competitividade, da desigualdade, do triunfo do mais

forte, do autoritarismo etc. Neste meio social, todo projeto pedagógico

alternativo está fadado a fracassar; mas ao mesmo tempo, é impossível aceder

a um meio social distinto se não tentarmos desde já um processo educativo

que faça aparecer pessoas novas com novas exigências, pois elas não mudarão

com o simples advento de um processo revolucionário. (MORIYÓN, 1989, p.

27-28).

Piotr Kropotkin, ao se debruçar sobre este aspecto, procura resolver tal contradição:

Não se cria nem se improvisa a revolução, ela é um fato incontestável para os

anarquistas; para eles, é um fato matemático, decorrendo da má organização

social atual; seu objetivo é que os trabalhadores sejam bem instruídos sobre

as causas de sua miséria para que saibam aproveitar a revolução que

fatalmente realizarão [...]. A solidariedade internacional de todos os

trabalhadores é condição sine qua non do triunfo da revolução. Tal é a rigorosa

lógica das ideias anarquistas, estabelecidas como princípio e reconhecidas

como verdade pela união de trabalhadores de todos os países, que se coloca

desde o início como meio de luta social. A revolução social é uma estrada a

percorrer; deter-se no caminho equivaleria recuar. Ela só poderia parar quando

tiver realizado seu percurso e tiver alcançado o objetivo a conquistar: o

indivíduo livre na humanidade livre. (KROPOTKIN In: MORIYÓN, 1989, p.

41-44).

Concordando com a perspectiva de Kropotkin, a evolução da sociedade corresponde a

uma evolução moral, de preparo do espírito, da capacidade de pensar e agir, elementos

fundamentais para o sucesso da revolução e construção da sociedade libertária. A educação

escolar tem papel fundamental nesse processo, formando uma “barricada permanente”

(CASTRO, 2014) até que as consciências e as condições sociais estejam prontas.

Cientes dos limites impostos pela educação oferecida pelo Estado e pela Igreja,

escolanovistas e pedagogos libertários propuseram, cada qual à sua maneira, uma escola

53

renovada, que superasse o modelo tradicional e fosse alicerce para uma nova sociedade50. Mais

do que uma renovação pedagógica, buscavam uma ruptura no sentido institucional e político.

Semelhantes em alguns aspectos, desenvolveram-se com princípios, meios e fins bastante

distintos.

As experiências pedagógicas da escola rural de Iasnaia-Poliana, do orfanato Prévost, da

escola-comunidade La Ruche, da Escola Moderna de Barcelona e das Escolas Modernas N.1 e

N.2, que serão apresentadas no próximo capítulo, puderam colocar em prática diversos

elementos da pedagogia libertária aqui apresentados. O funcionamento destas instituições soava

às autoridades e aos setores conservadores como uma ameaça à ordem social, cabendo ao

Estado empregar seus instrumentos repressivos, perseguindo educadores e até mesmo fechando

instituições.

50 LEUTPRECHT (2018) defende que a pedagogia libertária e a escolanovista comungam de referenciais em comum. Ferrer y Guardia e demais envolvidos com a Escola Moderna de Barcelona apropriaram-se de diversos referenciais e experiências pedagógicas anteriores, tanto libertárias (Robin, Faure) quanto escolanovistas (Froebel e Dewey) na criação de seu próprio modelo; assim como membros da Escola Nova, reuniam-se em organizações internacionais (Bureau em 1899 e Ligue em 1921), houve organização semelhante entre pedagogos libertários, a exemplo da Liga Internacional pela Educação Racional da Infância, fundada em 1908 por escolamodernistas.

54

CAPÍTULO 2

EXPERIÊNCIAS PEDAGÓGICAS LIBERTÁRIAS

2.1 A escola-rural de Iasnaia Poliana

Não alcançamos a liberdade buscando a liberdade, mas sim a

verdade. A liberdade não é um fim, mas uma consequência.

(Lev Tolstói – A insubmissão)51

Na propriedade rural de Iasnaia Poliana, localizada próxima à Tula, Rússia, foi fundada

uma escola que viria a desenvolver experiências pedagógicas inovadoras, identificadas por

diversos pesquisadores como libertárias52. Em 1859, Lev Nikolayevich Tolstói, que ainda não

havia publicado as obras que lhe dariam grande projeção internacional como Guerra e Paz

(1864-1869) e Ana Karenina (1873-1877), iniciou as aulas na escola de Iasnaia Poliana,

reconhecida pela “aceitação até as últimas consequências da liberdade das crianças, pois [...]

nada era obrigatório, nem horário, nem assistência às aulas, nem programas e nem normas

disciplinares” (MORIYÓN, 1989, p. 19).

O “conde da paz”, nascido em 1828, reconhecido como um dos maiores escritores de

todos os tempos, teve uma vida tão intensa quanto contraditória53. Órfão desde os nove anos,

foi criado por suas tias e educado por preceptores; convivia entre os servos, preocupando-se

desde jovem com os problemas sociais. Suas vivências, somadas às suas leituras de Platão,

51 TOLSTOI, Lev. A Insubmissão e outros escritos. Cotia: Ateliê Editorial, 2010. 52 Cf. Moriyón (1989), Incontri (1991), Lipiansky (2007), Marshall (2008), Gonzalez (2015) e Teixeira (2017). 53 Apesar da sua origem aristocrática, por toda a vida compadeceu-se do sofrimento dos mais pobres. Tolstoi procurou socializar suas terras em favor dos camponeses que ali viviam, porém não pode concretizar seus planos devido à oposição de seus familiares. Durante sua infância foi educado por preceptores. Entre 1844 (quando ingressou na Universidade de Kazan para estudar línguas orientais e ciências jurídicas, vindo a abandonar os estudos devido à insatisfação com o ensino formal/tradicional) e 1851 (quando optou por acompanhar seu irmão Nikolai ao Norte do Cáucaso), desfrutou de prazeres da alta-sociedade russa: luxo, jogos e mulheres. Pouco tempo depois, presenciaria os horrores da guerra na Crimeia. Em 1857, durante viagem pela Europa, assistiu aterrorizado uma execução em Paris – tal experiência foi decisiva para sedimentar sua posição contra os governos, as punições e a crença no progresso. Envolveu-se com várias mulheres antes de seu tumultuado casamento com Sophie Andreyevna Behrs (1862). Em sua Confissão (1882), chegou a afirmar: “Mentira, roubo, adultério de todos os tipos, embriaguez, violência, assassinato – não houve nenhum crime que não tenha cometido.” Neste período, inaugura-se uma nova fase na vida de Tolstói, na qual encontra refúgio espiritual no que entendia ser o cristianismo primitivo: rejeitava as hierarquias, dogmas e liturgias, baseando-se em uma interpretação literal dos Evangelhos, o que lhe renderia a excomunhão da Igreja Ortodoxa em 1901 (MARSHALL, 2008).

55

Rousseau, Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Thoreau e da Bíblia lhe proporcionaram uma

perspectiva particular, de forma a ser reconhecido como “anarquista cristão” (rejeitava as

imposições religiosas e entendia ser preciso combater as injustiças, socializar, compartilhar,

amar-nos uns aos outros), pacifista (os problemas socias somente seriam resolvidos por meio

de uma transformação do sistema político, econômico e cultural, de forma não-violenta, pois

violência só geraria mais violência), anticlerical (atacava os abusos e as regras impostas pela

Igreja), ácrata (governos são opressores, promotores de guerras, punem o povo para proteger a

propriedade e se perpetuar), antidogmático (relativizava o discurso científico e, principalmente

o religioso), antiautoritário (defensor da liberdade do povo e das crianças, contrário às

hierarquias e instituições coercitivas), “antipedagogo” (não pretendia criar um modelo, mas

insistia na busca por uma prática que fosse apropriada a cada contexto, baseada na realidade,

no interesse e na espontaneidade dos alunos) e grande crítico da distribuição desigual da

propriedade (para combater “a origem do mal” incentivava as pessoas a não trabalharem para

outrem ou a se organizarem de forma cooperativa). (Cf. INCONTRI, 1991; LIPIANSKY, 2007;

MARSHALL, 2008).

O próprio Tolstói fazia questão de não se identificar como anarquista, sobretudo para se

afastar do estereótipo associado ao terrorismo. Suas convicções também não condiziam com as

anarquistas (particularmente pelo seu pacifismo, que contradizia com a visão preponderante de

que a violência revolucionária seria inevitável, por seu socialismo estar impregnado de

religiosidade e por não se articular com o movimento operário ou com pensadores e lideranças

anarquistas). A defesa intransigente da liberdade é a marca mais característica de seu

pensamento. Foi um dos maiores críticos do governo, do patriotismo e do militarismo de seu

tempo. Em uma palavra, foi um libertário. (MARSHALL, 2008)

Para Tolstói, acabar com os governos é acabar com a violência, pois

todos os governos se baseiam na violência na forma de polícia, exército,

tribunais e prisões. Como organizações militares, seu principal objetivo é fazer

guerra. Eles constantemente aumentam seus exércitos não apenas contra os

inimigos, mas também contra seus súditos oprimidos. Daqui resulta que um

governo legitimado pelo poder militar é a organização mais perigosa possível.

(MARSHALL, 2008, p. 373 – trad. livre).

No conto intitulado Iasnaia Poliana (três dias na aldeia), datado de 1909, em certo

momento retrata a miséria vivida por andarilhos que passavam pela propriedade em busca de

alimentação e abrigo para pernoitar. Apesar das suas condições, os pobres camponeses

ofereciam ajuda, como determina a caridade cristã, impelidos por uma bondade inconsciente.

O narrador observa:

56

Entre esses numerosos mendigos errantes, há muitas características diferentes:

há pessoas obviamente embriagadas, levadas a tal situação pela bebida, há

pessoas pouco alfabetizadas, mas há os muito inteligentes e cultos, há os

humildes envergonhados e, ao contrário, há os importunos, exigentes. [...]

[os alfabetizados] encaram os ricos não como fazem os antigos mendigos de

costume, pessoas que dão esmolas para salvar a alma, mas sim como bandidos,

ladrões, que sugam o sangue do povo trabalhador. (TOLSTOI, 2015, p. 901).

Sua linguagem direta e cortante expõe as “entranhas” da sociedade russa, hipócrita,

cujos valores morais estão distorcidos, bem como apresenta seu inconformismo diante do

sofrimento do povo. Acreditando na bondade natural do homem e que a redenção da

humanidade se daria pelas crianças, a promoção de uma educação verdadeiramente popular,

desvinculada da influência da Igreja e do Estado, poderia trazer desenvolvimento cultural,

econômico e político para o povo russo (GONZALEZ, 2015). A escola fundada em Iasnaia

Poliana seria sua maior contribuição nesse sentido. Sabe-se que funcionava apenas no inverno,

era mista e recebia crianças da comunidade, sem cobrança de mensalidade54.

Os escritos de Tolstói traziam “perspectivas inéditas na análise de problemas humanos

e simplicidade [em exprimir] esses ângulos novos” (INCONTRI, 1991, p. 103). Em suas obras

de cunho filosófico e pedagógico, não buscava teorizar, nem mesmo estabelecer um modelo

que deveria ser seguido, pois entendia que isso limitaria a ação pedagógica e que nenhuma

escola poderia ser igual à outra. Publicou mais de 630 trabalhos relativos à educação,

destacando-se a revista mensal Iasnaia Poliana (1862) e os livros A escola de Iasnaia Poliana

(1862), A liberdade na escola (1862) e Sobre a instrução do povo (1875) – material este que

permitiu o reconhecimento internacional de sua experiência pedagógica e, por meio dele,

extraem-se muitas informações sobre sua visão educacional, bem como organização, rotinas e

práticas de sua escola.

Tolstoi censura a instrução oficial por impor um modelo pré-estabelecido, por

fundamentar-se sobre um saber absoluto que escapa a toda crítica, por

negligenciar totalmente as necessidades do povo e, em definitivo, por

trabalhar “para as necessidades do governo e das classes superiores.”

(LIPIANSKY, 2007, p. 38).

Crítico da educação tradicional e ciente de que a força do governo repousa sobre a

ignorância do povo, Tolstói observou os alunos na condição de infelizes aprendizes mecânicos

54 “Inicialmente, a escola funcionava para 22 alunos numa casa de pedra, de dois pisos. Dois cômodos estavam reservados para crianças, outros dois para professores e havia ainda uma sala de estudos. Na citada carta a Kovalievski, de março de 1860, Tolstoi conta já ter reunido quase cinquenta alunos, e mais estava por vir. Estima-se que chegou a setenta. [...] Em agosto de 1861, conforme relata em carta a sua prima, a condessa Alexandra Tolstoi, finalizava a construção de três edificações para as classes. Cada uma serviria também de museu: ‘em prateleiras, ao longo das paredes, há borboletas expostas, pedras, esqueletos, ervas, flores, instrumentos físicos e outras coisas’.” (GONZALEZ, 2015, p. 21).

57

moldados de acordo com os interesses dos adultos, os professores enquanto figuras opressoras

e aplicadores de sistemas prontos, e a ideologia religiosa e/ou estatal presente nas práticas e nos

conteúdos ensinados. Da mesma forma que para continuar evoluindo a ciência era

constantemente corrigida e revista, com a pedagogia não poderia ser diferente.

Em 1857, antes de iniciar seu projeto educativo, Tolstói viajou pela Europa, visitando

escolas, conversando com professores, discutindo com importantes pedagogos e buscou

compreender as propostas de Pestalozzi e Froebel. Seu grande diferencial foi ouvir atentamente

o povo, em especial os alunos: o que aprendiam, como aprendiam, o que gostavam ou não na

escola – na perspectiva das crianças, a escola era um suplício: não havia prazer em estudar, pois

o método era antiquado e os conteúdos eram incompreensíveis; eram privadas do movimento,

do falar, não tinham escolhas; os desobedientes eram castigados; em suma, não eram livres.

(Cf. INCONTRI, 1991; GONZALEZ, 2015)

Sua proposta educativa era transformar a escola em um laboratório pedagógico. O fato

de inicialmente não saber como conduzir a instrução das crianças permitiu que Tolstói pudesse

fazer experimentações, estando sujeito a erros e acertos. Partindo do pressuposto de que o

conhecimento não deveria ser imposto e que não haveria programas pré-determinados, sua

pedagogia não poderia ser estabelecida em fórmulas prontas aplicáveis: o professor, atuando

como guia, não deveria se apoiar em um saber livresco, mas realizar uma prática de constante

reflexão, pesquisa e reconhecimento dos interesses de seus alunos, partindo de suas vivências,

buscaria promover um aprendizado espontâneo e contextualizado – o que lhe exigia grande

criatividade. Os alunos aprenderiam o que desejariam aprender.

Ao invés de maçantes exercícios, predominava a “conversa livre com os alunos durante

o qual as crianças aprendiam leitura, escrita, aritmética, religião, gramática e noções de história,

geografia e ciências naturais acessíveis para sua idade” (GONZALEZ, 2015, p. 22). Ao invés

das ideias gerais e abstratas, o conhecimento deveria partir da realidade imediata da criança,

pois a elas interessa o particular, o vivido e observável. A pesquisa, a observação direta e a

troca de percepções entre os alunos eram estimuladas. Para desenvolver a escrita, as aulas de

composição privilegiavam os temas livres. Jogos ajudavam nas matérias mais difíceis como a

gramática.

A flexibilidade, a mudança constante de conteúdos e formas de aprendizagem

era o principal componente da prática adotada. O tempo e os assuntos

abordados aconteciam de acordo com as exigências, necessidades e problemas

apresentados no transcorrer dos trabalhos educativos, e o andamento das aulas

podia mudar diariamente, mensalmente ou anualmente.

58

O conjunto de disciplinas e conteúdos ensinados foi sendo estruturado

gradualmente, em conformidade com as necessidades apresentadas pelos

alunos e formou basicamente o seguinte quadro: Leitura Mecânica e Gradual,

Escrita, Caligrafia, Gramática, História Sagrada, História Russa, Desenho

Técnico, Desenho, Canto, Matemática, Conversas sobre Ciências Naturais e

Religião. (TEIXEIRA, 2017, p. 67).

A liberdade desfrutada pelos alunos era tamanha ao ponto de não ser exigida frequência,

participação/atenção, nem mesmo onde ou como deveriam se sentar durante as aulas, tendo o

direito de manifestar seu descontentamento quanto ao desenvolvimento das aulas. “Sem

punições ou recompensas, sem anotações ou exames; a ordem deve nascer das próprias

necessidades da criança e instaurar-se espontaneamente fora de toda coação” (LIPIANSKY, p.

39-40). Os adultos não deveriam intervir na “indisciplina” dos alunos: para resolver a desordem

no início das aulas bastaria esperar que eles mesmos se acalmassem, os conflitos entre os alunos

deveriam ser resolvidos por eles próprios. Foi taxativo: “há apenas um único critério de

pedagogia – a liberdade”.

Figura 5: A escola de Iasnaia Poliana, ca. 1862

Fonte: Wikiwand (Disponível em: <https://www.wikiwand.com/en/Yasnaya_Polyana>. Acesso em: 01 mai.

2020)

Desenvolver a sensibilidade moral (“todos somos irmãos e iguais entre si”, “não

julgueis”, de fundamento acentuadamente cristão) e a capacidade de pensar por si mesmos e

serem criativos era, para Tolstói, a tarefa mais importante da escola.

[...] sua escola já está na vanguarda absoluta da sua época e contém propostas

libertárias radicais até mesmo para os padrões de hoje. [...] O ideal de libertar

a criança de todos os jugos que a escola e os adultos lhe impõem é irmão do

ato de libertar os operários dos patrões, os súditos dos estados, os crentes das

igrejas (INCONTRI, 1991, p. 105).

59

A origem aristocrática de Tolstói, bem como a influência que exercia em muitos meios,

não foi suficiente para garantir o pleno funcionamento da escola de Iasnaia Poliana. “Uma

batida policial em sua escola, que pretendia descobrir subversões a literatura e os

revolucionários o alienaram ainda mais do governo” (MARSHALL, 2008, p. 366). Suas críticas

à educação popular estatal, à monarquia, à servidão do povo e ao isolamento cultural russo

despertaram polêmicas e oposições, vindo a sofrer pressões do Ministério do Interior czarista

que culminaria no fechamento da escola em 1862. Suas cartilhas, livros de leitura escritos na

década de 1870, que traziam noções científicas, contos populares, rudimentos de matemática e

instruções para os professores, atingiram a cifra de 30 milhões de exemplares circulando em

seu país. Muitas escolas inspiradas em Iasnaia Poliana surgiram na Rússia, Japão, Estados

Unidos, Espanha, Argentina, além de tantas outras “escolas livres”.

60

2.2 O orfanato Prévost

Ter-se a plena consciência

Do DEVER e do DIREITO...

Sem o menor preconceito,

TRABALHO E AMOR E CIÊNCIA.

(trecho do poema Libertariamente, de Bezerra da Cunha)55

O orfanato Prévost56, localizado em Cempuis, França, foi palco de uma das mais

importantes experiências pedagógicas libertárias. Entre 1880 e 1894, Paul Robin dirigiu a

instituição e pôde colocar em prática o que havia desenvolvido anos antes: um ensino laico,

racionalista, antidogmático, desprovido de hierarquias, mas sobretudo integral, que em suas

palavras,

[...] tende ao desenvolvimento progressivo e bem equilibrado do ser por

inteiro; ela “contém e reúne os três fatores habituais, a saber: a educação física,

intelectual e moral”. E acrescenta: Não se deve esquecer que a educação física

e intelectual ou instrução deve compreender a ciência e a arte, o “saber” e o

“fazer”. Um verdadeiro ensino integral é ao mesmo tempo teórico e prático.

(ROBIN, apud LIPIANSKY, 2007, p. 45).

O conceito de educação integral seria melhor definido por Paul Robin, seu maior

propagador no meio pedagógico libertário. Não corresponde a um amontoado de saberes, mas

a “consecução de um desenvolvimento harmônico de todas as faculdades da criança, de sua

inteligência, mas também de sua saúde, de seu vigor físico, de sua bondade” (MORIYÓN, 1989,

p. 21).

Paul Robin, nascido em 1837 numa família burguesa e católica, romperia com estes

valores e se tornaria ateu e militante da causa anarquista. Formou-se na Escola Normal Superior,

passando a lecionar aulas de matemática e ciências entre os anos de 1861 e 1865, período no

qual demonstrava sua crítica ao sistema escolar francês: a disciplina, os programas, o ensino

religioso, o distanciamento da escola em relação à vida dos alunos. Entendia que a escola

poderia oferecer muito mais, tanto na realização de pesquisas de observação, trabalhos manuais,

55 Poesia datilografa, sem maiores referências (KHOURY, 1988). 56 O orfanato Prévost foi edificado em 1860 por Joseph Gabriel Prévost (rico comerciante, propagador do saint-simonismo), passando a funcionar oficialmente em 1871, atendendo inicialmente crianças de oito a catorze anos. Foi o primeiro estabelecimento a acolher ambos os sexos na França. Como no testamento do sr. Prévost exigia que a supervisão ficaria a cargo de um comitê, estando à margem do controle estatal (FLORESTA, 2007). A instituição era parcialmente mantida com recursos do governo francês.

61

atividades que pudessem colocar a criatividade dos alunos em ação. Ao longo dos anos que se

seguem, desenvolve uma visão pedagógica original, compreendendo “métodos e instrumentos

pedagógicos; a coeducação; a convivência harmoniosa entre os membros do grupo; a

importância do respeito à individualidade, ao desenvolvimento próprio da criança e o lugar

concedido à ciência” (FLORESTA, 2007, p. 122).

Em 1865, Robin decide viajar pela Europa, envolvendo-se na militância anarquista.

Dedica-se intensamente aos trabalhos relativos à educação popular na Primeira Internacional,

publicando inúmeros artigos sobre pedagogia em periódicos libertários. Fica encarregado do

relatório sobre a educação integral, cuja proposta seria aprovada no IV Congresso da AIT,

ocorrido em 186957. Seus trabalhos sobre educação integral foram incorporados ao Programa

Educacional do Comitê para o ensino anarquista (LUIZETTO, 1987). Entre seus

companheiros de luta, destaca-se Mikhail Bakunin, James Guillaume, Piotr Kropotkin e Élisée

Reclus, vindo a aproximar-se da corrente anarcocomunista. Participa ativamente da Comuna de

Paris (1871), colaborando nas iniciativas de reforma da instrução pública e nas suas convicções

a respeito do ensino laico e gratuito, bem como a formas alternativas de instrução para fins

revolucionários (CASTRO, 2014).

O projeto educacional de Robin, forjado ao longo de muitos anos de reflexão e luta,

esteve alicerçado em quatro pilares, cuja finalidade era formar homens livres que respeitassem

a liberdade alheia. Segundo ele, o ensino deveria ser a) integral: tendo por princípio romper

com a divisão entre trabalho intelectual/teórico e manual/prático/técnico (que seriam unidos de

forma orgânica), buscando garantir direitos iguais de ensino para todos, oportunizando às

crianças desenvolver suas aptidões e possibilidades; b) racional: tendo por base o laicismo,

enfrenta a influência exercida pela Igreja nas escolas (fundamentada na fé, na “autoridade

divina” e nos dogmas), emprega o método indutivo58, obtendo respostas através do seu próprio

raciocínio; c) misto: tomando como fundamento a isonomia entre homens e mulheres, para uma

vida livre de preconceitos seria preciso promover o relacionamento entre ambos os sexos, de

57 A ideia de “instrução integral” já havia sido esboçada por Proudhon (seria antiautoritária, racional, politécnica, de forma a desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais) e melhor estruturada por Bakunin (que entendia mais claramente o papel que a educação poderia ter no processo revolucionário, sendo aberta a crianças de ambos os sexos, composta por formação geral e formação para o trabalho, agregando o ensino intelectual/teórico ao manual/prático). 58 “[...] a criança é incitada a utilizar todos os meios de que dispõe para observar, controlar, verificar e comparar, por semelhança ou contraste, as observações feitas. Após essa etapa, encaminha-se para as classificações e, por último, é conduzida à descoberta da regra, do princípio; do particular decomposto é que se ascenderá ao geral, à formulação de leis e princípios demonstráveis e observáveis. Por isso, todo um arsenal de instrumentos e artefatos é colocado à disposição das crianças, desde a primeira idade. A criança aqui aprende por indução e o aprendizado assume um caráter flexível, permitindo a ruptura com a ideia de verdades ‘prontas’ e ‘acabadas’, procurando ultrapassar a cultura da mera reprodução e criar a cultura da construção”. (FLORESTA, 2007, p. 130).

62

forma fraterna, a se coeducarem (na interação entre si) e d) libertário: em busca da supressão

do autoritarismo pedagógico (as crianças devem desfrutar de liberdade, aprender o que querem,

sem imposições, constrangimentos ou violência), estimular a cooperação e ajuda mútua nas

atividades do dia e valorizar uma relação horizontalizada.

Após um período refugiado na Inglaterra em decorrência das perseguições sofridas pelos

membros da Comuna de Paris, Robin retorna à França, em 1879, tornando-se inspetor de ensino

primário. Pouco tempo depois, por indicação de Ferdinand Buisson, assume a direção do

orfanato Prévost, sendo-lhe garantida total liberdade de atuação. Suas ideias inovadoras seriam

aplicadas de forma praticamente irrestrita. (GUIMARÃES, 2014)

Figura 6: Pavilhão central do orfanato Prévost, cartão-postal de 1910

Fonte: Coleção do Museé National de l’Éducation (Disponível em: <https://www.reseau-

canope.fr/musee/collections/fr/museum/mne/cempuis-orphelinat-prevost-le-pavillon-central-la-cour-d-

honneur/0e39efb6-bdfa-41b6-862a-61a01a5fdc44>. Acesso em 01 mai. 2020)

O corpo era uma das grandes preocupações de Robin. As crianças atendidas tinham uma

alimentação saudável, eram estimuladas a realizar atividades físicas por meio da recreação,

ginástica, passeios, esportes, coreografias, e recebiam orientação quanto aos cuidados

higiênicos, evitando a disseminação de doenças. Durante os passeios, aulas ao ar livre, a

crianças mais velhas se responsabilizavam pelas mais novas, desenvolvendo assim o espírito

de solidariedade e ajuda mútua. Os jogos educativos não tinham finalidade competitiva e

63

visavam tornar mais compreensíveis alguns aspectos mais formais e teóricos. (Cf. MORAES,

1999; FLORESTA, 2007).

Dentre os recursos pedagógicos empregados no orfanato Prévost, alguns tinham como

objetivo despertar a curiosidade das crianças e aprimorar os sentidos para que buscassem

explicações e adquirissem noções científicas: lupas, microscópios, telescópios, fita métrica e

passeios de campo para desenvolver a visão; música, canto e instrumentos de medição para

desenvolver a audição; contato com superfícies de diferentes texturas e relevos, termômetro,

termoscópio, eletroscópio, balança e produção de trabalhos manuais para desenvolver o tato;

apreciação dos alimentos para desenvolver o olfato e o paladar.

Os recursos acima apresentados eram destinados, sobretudo à “primeira fase”, a partir

dos seis anos de idade. Na “segunda fase”, a partir dos doze anos de idade, o aluno se dedicava

mais ao ensino científico e profissional, procurando aplicar os conhecimentos desenvolvidos

em anos anteriores e progressivamente dedicar-se àquela profissão que escolheria como ofício

para sua vida. Havia hortas, granja, oficinas de carpintaria, sapato, costura e imprensa. Quanto

aos professores, longe de serem “detentores do saber” e hierarquicamente superiores, eram

sobretudo mediadores, estando à disposição dos alunos para estimulá-los e auxiliá-los, seja na

aprendizagem que se dava espontaneamente, ou nas pesquisas realizadas nas bibliotecas e

laboratórios, sem reprimi-los ou repreendê-los (eventuais faltas cometidas deveriam ser

discutidas e compreendidas pelo faltoso, sem emprego de violência). Não se aplicavam exames,

tampouco realizavam classificações, pois Paul Robin entendia as mensurações como injustas e

hierarquizantes, em alguma medida legitimadora das desigualdades, inibidora da criatividade e

da autonomia do pensamento. (Cf. MORIYÓN, 1989; CASTRO, 2014; FLORESTA, 2017)

Em Cempuis, as crianças, meninos e meninas, vivem na maior parte do tempo

ao ar livre, nos jardins ou no campo. Praticam todos os tipos de esportes, da

natação na piscina do orfanato, à equitação e à dança. Uma parte importante

do ensino desenvolve-se na oficina, trabalhando com a madeira ou com o

ferro, aprendendo a costurar ou a fazer sapatos; até os treze anos a criança

pratica “la paillone”, segundo a expressão emprestada de Fourier para

significar a passagem de uma oficina para outra; depois, engaja-se em uma

relativa especialização. Meninos e meninas têm as mesmas ocupações. Há em

Cempuis uma fazenda, uma oficina de sapateiro, uma tipografia, uma forja,

uma marcenaria e um ateliê de costura. Nos estudos teóricos que partem das

atividades práticas, “trata-se muito mais de treinar do que ensinar”. Robin

recomenda deixar a criança fazer suas descobertas e contentar-se com

responder às suas perguntas. O meio deve levar à curiosidade científica; Robin

organiza em Cempuis um jardim botânico, um museu matemático, um

laboratório de física e química, uma estação meteorológica. Sua pedagogia

funda-se no respeito pela liberdade da criança. (LIPIANSKY, 2007, p. 45-46).

64

De forma semelhante ao que propunha Piotr Kropotkin, Paul Robin entendia que o

aprendizado seria melhor se realizado por meio de atividades, partindo da realidade particular

e concreta dos alunos, de estímulos à curiosidade e observação, para posteriormente avançar

nos conhecimentos mais teóricos e gerais. Os valores morais como respeito à liberdade do outro,

solidariedade/cooperação seriam apreendidos pelo exemplo e vividos cotidianamente, jamais

inculcados. Ambos possuíam grande preocupação com relação à autonomia futura do aluno e

seu papel na sociedade, um indivíduo ao mesmo tempo ativo, produtivo, crítico, preocupado

com o bem-estar geral e defensor da liberdade. A educação, portanto, torna-se parte constitutiva

do projeto revolucionário, que é lento e evolutivo, de formação de um homem novo, rebelde,

que seria capaz de conduzir e gerir a sociedade anarquista. Segundo Kropotkin, cabe à educação

integral ensinar ao aluno

os elementos do conhecimento e os bons métodos de trabalho e, acima de tudo,

dar a ele aquela inspiração geral que irá induzi-lo, mais tarde, a colocar no que

quer que faça, sincero anseio pela verdade, gostar do que é belo, tanto na forma

como no conteúdo, sentir a necessidade de ser uma unidade útil em meio a

outras unidades humanas, e assim, sentir seu coração em uníssono com o resto

da humanidade” (KROPOTKIN apud MARSHALL, 2008, p. 331 – trad.

livre).

Leila Floresta (2017) notou o grande controle na condução do orfanato por parte de

Paul Robin. Se havia pouca autogestão institucional, a autogestão pedagógica era garantida,

tanto pela liberdade desfrutada pelos professores, quanto pela organização dos estudos por parte

dos alunos. Apesar desse centralismo, deve-se destacar o pioneirismo e a magnitude de seu

trabalho, que implementava a coeducação dos sexos, a educação integral e a metodologia

baseada em atividades práticas e colaborativas.

Justamente por promover uma educação tão avançada e alternativa, Paul Robin viria a

sofrer críticas e denúncias de pais dos alunos e ataques difamatórios de setores conservadores

e da imprensa clerical: alegavam que o orfanato seria um exemplo de “propaganda pela ação”

anarquista e que a coeducação seria imoral e perigosa. A experiência pedagógica desenvolvida

por Paul Robin seria encerrada em decorrência do processo sofrido que culminou em sua

exoneração. Contudo, suas práticas inspirariam Sébastien Faure (que criaria o orfanato La

Ruche), Francisco Ferrer (fundador da Escola Moderna de Barcelona), Adolphe Ferrière

(pedagogo que considerava Robin um dos precursores da “escola ativa”) e Célestin Freinet

(fundador da Escola Moderna em Saint Paul de Vence). (Cf. MORIYÓN, 1989; LIPIANSKY,

2007; CASTRO, 2014)

65

2.3 A escola-comunidade “La Ruche”

Ah, maldição, chegou o dia de acabar,

Ah, maldição, chegou o dia de acabar,

Já cansamos de sofrer,

Já cansamos de sofrer,

Não a meias-guerras,

Não a buracos de covardia,

Morte à burguesia!

Viva o som, Viva o som,

Morte à burguesia!

Viva o som

Da explosão!

(La Ravachole, paródia de Sébastien Faure)59

A escola-comunidade La Ruche (A Colmeia)60, localizada numa fazenda em Ramboillet,

França, representa um importante marco na história da pedagogia libertária. Fundada por

Sébastien Faure em 1904, inspirada na experiência de Paul Robin no orfanato Prévost, atendia

aproximadamente 40 crianças, órfãos e filhos de operários. Afirmava existências e não atuava

por um ideal a ser atingido. Era uma contundente resistência à sociedade disciplinar, “ao afirmar

a habilidade de cada um dissolvendo a distinção entre trabalho manual e intelectual”.

(UEHARA, 2010, p. 100)

Nascido em uma família burguesa conservadora no ano de 1858, Sébastien Faure foi

enviado para um colégio jesuíta, tornando-se seminarista. Abandonou a vida religiosa após o

falecimento de seu pai, passando a frequentar círculos de livres-pensadores, tornando-se

militante do movimento anarquista e anticlerical em 1888. Foi o fundador, juntamente com

Louise Michel, do periódico Le Libertaire (1895-1915), idealizador e coordenador da

Enciclopedia Anarquista (1925-1934, 4 vol.), e autor Escritos pedagógicos (s/d), A Dor

Universal (1895), Doze provas da inexistência de Deus (1908) e Meu Comunismo (1921).

59 Trecho final da paródia La Ravachole, publicado em “L’Almanach du père Peinard”, 1894. Homenageia o anarquista executado pelo governo francês em 1892 acusado de assassinatos, roubos e atentados – figura controversa tido por seus defensores como mártir do movimento anarquista que empregava bombas como estratégia de luta (MENENEZ; MATOS, 2015). 60 A escolha do nome colmeia se deve à metáfora das abelhas: segundo o próprio Faure, significa “que cada um na medida de suas capacidades aí trabalhará depois, porque os meninos e meninas que de lá saírem, irão como os enxames novos, espalhar um pouco por toda a parte, o puro mel das ideias sãs e dos sentimentos generosos.” (FAURE apud RODRIGUES, 1999, p. 215).

66

Após o fechamento de La Ruche, Faure se envolveu mais diretamente na militância

anarquista, sobretudo no sindicalismo revolucionário. Nos anos 1920, passou a defender a

unidade da luta anarquista e a formar uma base ampla, contando com o apoio de membros das

diferentes correntes (segundo ele composta pelo anarcossindicalismo, comunismo libertário e

anarco-individualismo), pois não eram contraditórias e poderiam buscar uma propaganda e ação

comuns num contexto de perda de adeptos do anarquismo (em parte pelo sectarismo) e diante

do crescimento do movimento socialista na Europa após a Revolução Bolchevique. (Cf.

MORIYÓN, 1989; RODRIGUES, 1999; CASTRO, 2014)

Faure possuía grande sensibilidade para com os problemas sociais e entendia que a via

libertária levaria à sua resolução.

Milhões de seres humanos trabalham 10 a 12 horas diárias, em odiosas

condições, em troca de um salário insuficiente. Milhões de velhos que, durante

uns vinte e cinco, trinta e quarenta anos laboriosamente têm formado a riqueza

pública e edificado fortunas particulares, estendem as mãos calosas e

descarnadas aos transeuntes, ou solicitam a sua entrada para os asilos. Milhões

de crianças encantadoras e inocentes que precisam de alimento e da cultura

indispensáveis. [...] Toda a pessoa inteligente e de coração deve querer que

isto termine. (FAURE apud RODRIGUES, 1999, p. 338).

Segundo Sébastien Faure, as crianças possuíam energia e vontade de experimentar o

novo, grande capacidade de imaginação e ideias puras; ainda não estavam moldadas por uma

determinada conduta e moral socialmente aceitas, pelas paixões e vícios que corroíam os

adultos.

Para evitar um ensino cansativo, preso aos currículos e horários, as aulas em La Ruche

ocorriam em diferentes espaços, de diferentes formas, buscando desenvolver harmonicamente

a inteligência e atividades manuais. Da mesma forma que no orfanato Prévost, havia uma

grande preocupação com a educação integral e, para possibilitar, a escola possuía uma grande

casa com diversas instalações (“favos”): granja, alfaiataria, marcenaria, forja, oficina de

encadernação e uma pequena gráfica61. Faure afirmava que La Ruche não possuía diretor no

sentido que comumente se atribui, mas que formavam uma comunidade, uma família, um

ambiente comunista. (MORIYÓN, 1989)

Nos passeios escolares, podia-se aprender pela observação e livre-discussão.

Empregava-se o método positivo, semelhante ao que se convencionou chamar “lição de coisas”,

e os procedimentos de dedução e indução, “que colocava a criança em contato com realidades,

61 Exceto o trabalho gráfico, cuja produção era comercializada, as demais atividades visavam apenas suprir as demandas materiais de La Ruche. (CASTRO, 2014)

67

sendo incitadas a observar os fatos e conduzidas à descoberta da regra e do princípio”

(SANTOS, 2009, p. 84). As disciplinas eram mais momentos de aprendizado vivido do que

teorias; meninos e meninas aprendiam juntos, compartilhavam ideias e impressões, ajudavam-

se e divertiam-se, seja nos passeios, nas festividades ou nas atividades das oficinas. (UEHARA,

2010)

Figura 7: “Saída para os campos”, 1906. Ao fundo, observa-se o edifício principal.

Fonte: Commons. Wikimedia (Disponível em:

<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:La_Ruche,_départ_pour_les_champs.jpg>. Acesso em 01 mai. 2020)

Os ruchards, colaboradores de La Ruche que dispensavam contratos e salários,

cuidavam dos afazeres diários e educavam, de maneira semelhante ao que ocorria no orfanato

Prévost, como mediadores à disposição dos alunos para estimulá-los e auxiliá-los – não tinham

a obrigação de ensinar, da mesma forma que os alunos não tinham a obrigação de aprender –

apostando numa relação amigável, horizontal e solidária; comiam, dançavam e cantavam

juntos. Para instruir as crianças, empregava-se uma linguagem simples, sem recorrer a livros,

sem aplicar provas e, consequentemente, classificações e reprovações. Não cabia aos adultos

punir as crianças, mas investir em uma “‘atmosfera de liberdade e solidariedade, amor e respeito

mútuo’, pretendendo acrescentar aos ensinamentos intelectuais e físicos uma formação social

através do exemplo.” (CASTRO, 2014, p. 177)

Sébastien Faure entendia que as escolas cristãs estariam ligadas à Igreja e

representariam o passado, as escolas laicas, ligadas ao Estado, são as atuais escolas, mas La

Ruche seria a escola do futuro, onde a criança encontra o pão, o conhecimento e a ternura.

68

Por meio de vida ao ar livre por um regime regular, higiene, passeios,

desportos e movimento, formamos seres sãos, vigorosos e belos. Por meio do

ensino racional, pelo estudo atraente, pela observação, a discussão e o espírito

crítico; formamos inteligências cultas. Pelo exemplo, pela bondade, a

persuasão e a ternura, formamos consciências retas, vontades fortes, e

corações afetuosos. (FAURE apud RODRIGUES, 1999, p. 215).

Denúncias de supostas infrações às leis educacionais francesas levaram o inspetor da

academia de Versailles a visitar La Ruche em 1913. Segundo ele, a escola não possuía

autorização de funcionamento expedida pelo Estado, além de promover a coeducação dos

sexos. Em sua defesa, Faure declarou não se tratar de uma escola (afinal, não havia alunos e

professores), orfanato (pois as crianças não estavam sendo “assistidas”) ou pensionato (as

crianças que ali viviam não eram enviadas por pais que pagavam pela sua estadia). Procurava

assim demonstrar que La Ruche não estava contra a lei – simplesmente estava “fora” da lei.

Os recursos para a manutenção dos trabalhos não provinham do Estado ou de

mensalidades, mas das conferências realizadas por Faure pela Europa, das festividades

ocorridas em La Ruche e de doações de sindicatos, cooperativas e lojas maçônicas. A partir de

março de 1914, na gráfica da escola-comunidade, passaria a ser impresso o Bulletin La Ruche,

cujos artigos divulgavam as experiências pedagógicas ali realizadas, traziam informações sobre

higiene e medicina, informes gerais à comunidade e notícias sobre anarquistas – sua venda

também contribuía para o custeio da instituição.

Por conta das dificuldades enfrentadas em tempos de guerra, o periódico não pôde mais

ser produzido, muitos ruchards partiram e as crianças foram sendo retiradas por seus pais. Seu

fechamento, ocorrido em março de 1917, não esteve atrelado diretamente às pressões sociais

ou das instituições governamentais, mas às dificuldades de manter-se durante os anos da Grande

Guerra. (UEHARA, 2010)

La Ruche, contemporânea da Escola Moderna de Barcelona (Faure e Ferrer tiveram

grande proximidade), foi amplamente reconhecida nos meios operários; sua experiência foi

inspiradora para futuras escolas libertárias.

69

2.4 A Escola Moderna de Barcelona

As imagens dos celicos devassos

Em negro pó desfeitas o ar semeiam;

Levadas para o vento revolteiam

As crenças divinas em estilhaços.

Os deuses já morreram nos espaços

Os altivos e os templos bamboleiam;

Os tronos d’ouro estalavam ou baqueiam

e fogem dos reis trêmulos dos paços.

Dos credos sem sentido as densas brumas

Se dissolvem na noite, quais espumas

Na areia da praia que reluz!

O mundo velho dorme em longa treva

Enquanto ao longe vejo que se eleva

O Sol da nova ideia a branca luz!

(O sol da nova ideia, poema de Teixeira Bastos)62

As experiências ocorridas na escola-rural de Iasnaia Poliana (Lev Tolstoi), no orfanato

Prévost (Paul Robin), e na escola-comunidade La Ruche (Sébastien Faure) têm seu lugar de

destaque na história do pensamento e das práticas pedagógicas libertárias. Maior impacto seria

promovido pela Escola Moderna de Barcelona63, fundada por Francisco Ferrer y Guardia no

ano de 1901, cujo modelo foi adotado por muitas escolas ao redor do mundo, algumas delas

inclusive homônimas, sobretudo nos anos que se seguiram à sua execução, em 190964, pelo

governo espanhol.

O documentário “Viva la Escuela Moderna” (1999) apresenta a experiência pedagógica

de Francisco Ferrer y Guardia junto à Escola Moderna de Barcelona e destaca as questões que

levaram à execução do pedagogo por parte do governo espanhol. Em certo momento o narrador

problematiza: “[...] Mas por que essa desmesura nos ataques? Qual era a razão pela qual Ferrer

provocava tal aversão em determinados setores e tanta admiração em outros?”65. Desde seu

fuzilamento, trava-se uma batalha em relação à sua memória: setores conservadores, muitos

62 Publicado em “A Voz Operária”, Campinas, 05/10/1919. (KHOURY, 1988) 63 Ferrer foi inspirado pelo movimento das Escolas Modernas da França, que contava com Louise Michel, Paul Robin, Sébastien Faure entre outros educadores libertários. 64 Em 1906 havia 47 sucursais da Escola Moderna somente na Catalunha (FERNÁNDEZ, 2015). Entre 1909 e 1961 foram fundadas 21 escolas modernas nos EUA. (LEUTPRECHT, 2018) 65 “Viva la Escuela Moderna”, trecho 00:17-57 – 00:18:10.

70

ligados à monarquia espanhola e mesmo à Igreja Católica, reservaram-se a detratar sua

imagem66; setores progressistas, muitos ligados às correntes libertárias, reservam-se a exaltar

sua imagem como um mártir da educação67. Mesmo no meio libertário, autores que o

consideravam “um místico e fanático revolucionário, conspirador e atrevido” (Albano Rossel),

“sonhador impertinente” (Maria Lacerda de Moura) e “um racionalista obtusamente ortodoxo,

espírito racanho e prosaico” (George Woodcock) (LEUTPRECHT, 2018, p. 18).

Metodologicamente, deve-se manter o distanciamento dos julgamentos de seus

contemporâneos e buscar analisar as relações sociais que mantinha, bem como sua obra literária

e pedagógica.

Francisco J. R. Ferrer y Guardia, cujos pais, pequenos agricultores, eram monarquistas

e católicos, estudou em uma escola de estrutura precária que adotava o método escolástico68.

Trabalhou com Pablo Osório, comerciante de tecidos livre-pensador de orientação republicana,

dos catorze aos dezenove anos, sendo politicamente influenciado por ele; neste período

frequentou reuniões políticas e a aprendeu a língua francesa, o que permitiu ampliar seu

repertório intelectual. De seu casamento com Teresa Santimartí, em 1880, nasceram três filhas.

Alvo de perseguições políticas, em 1886, exila-se com sua família na França, onde tornou-se

membro ativo da maçonaria e das sociedades livres-pensadoras, meios nos quais havia ateus,

deístas e espíritas. Desiludido com o republicanismo, estabeleceu maior relação com uma rede

de anarquistas composta por Jean Grave, Louise Michel, Charles Malato, Paul Robin e

Sébastien Faure. Apesar de não haver muitos indícios de que Ferrer fosse atuante da causa

anarquista69, muitos de seus textos refletem grande afinidade com as ideias libertárias – ataques

à Igreja, à monarquia, à desigualdade social, desejava a revolução. (SILVA, 2013)

Neste período, conheceu a senhorita Ernestine Meunier, uma viúva católica muito rica,

que seria sua amiga e aluna de língua espanhola e, ao falecer, deixaria-lhe recursos para

66 Cf. Andía, para Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, “[...] Ferrer mescla de louco, tonto e criminoso covarde com delírio de grandeza [...] e se armou uma campanha ridícula de mentiras, embustes e calúnias. Ferrer era um imbecil e um malvado e não um inquietador” (00:16:17-00:16:37). 67 Cf. Andía, para Máximo Gorki, escritor e ativista russo, “Ferrer havia sido assassinado porque havia sincera e generosamente trabalhado em prol da humanidade” (00:14:00-00:14:08). O anarquista espanhol Anselmo Lorenzo foi um dos que mais contribuíram na criação do “mito” Ferrer (MORIYÓN, 1989, p. 19). Juan Avilés Farré (2006) apresenta Ferrer como “pedagogo, anarquista e mártir”. Sílvio Gallo (2013) atribui ao título de seu artigo “o mártir da Escola Moderna”. Antes dele, Maurício Tragtenberg (1978) também o definiu como “mártir”. 68 Na escola de Alella, povoado onde nasceu, Ferrer aprendeu as primeiras letras e chegou a cantar no coral, mas era frequentemente punido por contestar o professor. (RODRIGUES, 1992) 69 Considerava-se um “livre-pensador” republicano, “progressista”, “positivista” e até mesmo “idealista”. (FERRER, 2014) Ferrer temia que a alcunha de anarquista pudesse associá-lo a terrorista, inimigo da humanidade, e afastar simpatizantes do seu projeto educativo. (LEUTPRECHT; DALLABRIDA, 2018)

71

concretizar seu projeto educacional, a Escola Moderna de Barcelona70. (Cf. RODRIGUES,

1992; SILVA, 2013; LEUTPRECHT, 2018)

O seguinte texto de Ferrer (2014) tece uma crítica ao modelo escolar hegemônico,

reconhece a importância da renovação pedagógica e apresenta sua “profissão de fé” quanto ao

papel que as escolas libertárias poderiam ocupar:

Dois meios de ação são oferecidos àqueles que querem renovar a educação da

infância: trabalhar para a transformação da escola pelo estudo da criança, a

fim de provar cientificamente que a organização atual do ensino é defeituosa

e adotar melhoras progressivas; ou fundar escolas novas nas quais sejam

aplicados diretamente princípios encaminhados ao ideal que são formados da

sociedade e dos homens que reprovam os convencionalismos, as crueldades,

os artifícios e as mentiras que servem de base para a sociedade moderna.

[...] aqui triunfa a sociedade burguesa e republicana, lá vence o clericalismo.

Todos os partidos conhecem a importância do objetivo e não retrocedem

perante nenhum sacrifício para assegurar a vitória. Seu grito comum é: “Por e

para a escola!”, e o bom povo deve estar agradecido por tanta solicitude. Todo

mundo quer sua elevação pela instrução e sua felicidade por acréscimo. Em

outra época alguns podiam lhe dizer: “Estes tratam de lhe conservar na

ignorância para melhor lhe explorar; nós queremos você instruído e livre”.

(FERRER, 2014, p. 71-73).

Através do livro A Escola Moderna (FERRER, 2014), pode-se compreender o histórico

da instituição, princípios, valores, programa e práticas71. Ferrer se propunha a valorizar a

liberdade no ato de aprender, a integração dos alunos entre si e em contato com a realidade

social que se pretende compreender e transformar, em vistas da construção da sociedade

libertária.

70 A escola foi projetada e viabilizada pedagogicamente com o auxílio de inúmeros colaboradores, destacando-se Charles-Ange Laisant, Élisée Reclus, Élie Reclus, Charles Albert, Jean Grave, Piotr Kropotkin, Paul Robin, Sébastien Faure, Charles Malato, Anselmo Lorenzo, Louise Michel, Ricardo Mella, Clémence Jacquinet entre outros. Entre os professores, destacam-se Clemence Jacquinet (também diretora), José Casasola Samoerón, Soledad Villafranca Los Arcos, Leopoldina Bonnard, Adrián Esquerrá y Codina, Antonio Castells, Maria Ángeles Villafranca Los Arcos (SILVA, 2013). A escolha do nome moderna se devia à preocupação de Ferrer em neutralizar os preconceitos acerca de uma escola que pudesse ser mal vista pela sociedade como “libertária” ou “anarquista”, bem como para “não dar ao governo um pretexto para fechá-la” (FARRÉ apud FERNÁNDEZ, 2015, p. 26). Se colocava enquanto “moderna” diante da proposta metodológica e dos valores defendidos pelas escolas laicas e confessionais espanholas; seria a “negação positiva da escola do passado perpetuada no presente” (FERRER, 2014, p. 35). Inicialmente a escola atendeu 12 meninas e 18 meninos. alunos na faixa de 07 a 12 anos, nos cursos “párvulo”, “elemental” e “superior”. 71 O livro A Escola Moderna (2014) é composto pelos seguintes capítulos: 1. Explicação preliminar; 2. A Senhorita Meunier; 3. Responsabilidade aceita; 4. Programa primitivo; 5. Coeducação de ambos os sexos; 6. Coeducação das classes sociais; 7. Higiene escolar; 8. O professorado; 9. A renovação da escola; 10. Nem prêmio nem castigo; 11. Laicismo e biblioteca; 12. Conferências dominicais; 13. Resultados positivos; 14. Em legítima defesa; 15. Ingenuidade infantil; 16. Boletim da Escola Moderna; 17. Fechamento da Escola Moderna. Como alerta Douglas Leutprecht (2018), esta obra merece um especial cuidado por ter sido produzida no cárcere (1909). Este autor se utiliza do conceito representação proposto por Chartier (2002), que além de analisar o conteúdo do texto, também considera “sua organização discursiva e material, suas condições de produção, suas utilizações estratégicas” (LEUTPRECHT, 2018, p. 36). Logo, em alguma medida, Ferrer buscava produzir uma representação ideal da sua escola, construir uma imagem segundo sua própria perspectiva.

72

Demonstrar às crianças que enquanto um homem depender de outro homem

serão cometidos abusos e haverá tirania e escravidão, estudar as causas que

mantêm a ignorância popular, conhecer a origem de todas as práticas rotineiras

que dão vida ao atual regime insolidário, fixar a reflexão dos alunos sobre tudo

que à vista nos é apresentado, tal deve ser o programa de nossas escolas

racionalistas (FERRER, 2014, p. 91).

Os elementos teórico-práticos da Escola Moderna de Barcelona são oriundos de

diferentes perspectivas: do anarquismo, identifica-se a crítica ao autoritarismo, ao capitalismo,

às escolas estatais e confessionais, bem como a defesa do ensino integral, dos valores

comunistas e da solidariedade, do uso crítico-social da ciência; do laicismo e maçonaria,

identifica-se a defesa da coeducação das classes, o anticlericalismo e o otimismo racionalista;

da Escola Nova, identifica-se o paidocentrismo, a coeducação dos sexos, o contato com a

natureza, a aplicação de avanços técnico-educacionais, o higienismo e a abolição de prêmios e

castigos; do positivismo, identifica-se a valorização da ciência experimental em contraposição

ao dogmatismo, a extensão cultural por meio de conferências dominicais e o evolucionismo

segundo a perspectiva kropotkiniana (SOLÀ apud SILVA, 2013). Esse “ecletismo” teórico-

prático foi questionado por parte da historiografia que identificava ter Ferrer se apoiado em

[...] questões formuladas por um conjunto aparentemente incoerente de

ideologias, não manteve coerência pedagógica à altura da propagação do

programa de aprendizado que idealizou. Ainda que existam características de

fato peculiares, Ferrer, segundo esses autores, não fez nenhuma grande

contribuição ao desenvolvimento das ciências pedagógicas, apesar de ter sido

um paradigma para a fundação de inúmeras escolas modernas ao redor do

mundo.

[...] Moriyón [relativizando as críticas] concluiu pontuando que, por fim, ainda

que os libertários não tenham sido muito criativos no campo da educação,

deram a ela muita atenção e procuraram colocá-la em prática em diversos

âmbitos, propiciando à luta operária uma aproximação à discussão sobre

educação infantil, assimilando por um lado parte de seu repertório e, por outro,

também imprimindo seus ideais nos processos da institucionalização escolar

(CHAHIN, 2013, p. 98).

Posto isso, compreende-se a necessidade de empregar o conceito apropriação e, dessa

forma, evitar julgamentos de valor quanto a um suposto mérito da originalidade pedagógica e

mesmo da fidelidade aos princípios libertários por parte de Ferrer. Apropriação, no sentido

atribuído por Roger Chartier (2002), permite compreender que as ideias são produzidas pelo

seu autor, num determinado contexto e sob certos propósitos, mas são reinterpretadas de acordo

com o crivo do leitor, aplicadas conforme sua astúcia, capacidade de improvisar repertório

cultural ou mesmo disponibilidade de recursos (LEUTPRECHT, 2018). As ideias são, portanto,

maleáveis, sendo compreendidas de formas diferentes, gerando, consequentemente, usos e

práticas variados. O leitor usufrui da liberdade de se apoderar dos textos e cria novos sentidos,

de acordo com os interesses sociais e suas próprias motivações.

73

É notável que Ferrer se inspirou na noção de instrução integral defendida por

Bakunin e na concepção de educação integral, definida na Primeira

Internacional, por Paul Robin. [...] Ferrer dialogou com as concepções

pedagógicas anarquistas, [...] e as colocou em prática anos mais tarde. [...] a

proposta de educação racionalista se opunha fortemente ao ensino tradicional,

submisso ao dogmatismo, e compartilhava de uma tradição vinculada à

ilustração, à razão e ao espírito da ciência, opondo-se ao obscurantismo da

ignorância, subsídio do preconceito e da miséria. O ensino deveria se

estabelecer à serviço da transformação, atuando na formação de “homens

capazes de evoluir, incessantemente, capazes de destruir, renovar

constantemente, os meios e renovar-se a si mesmos” (SANTOS, 2009, p. 86).

Ferrer faz uso de um amplo repertório, de referências variadas da área da educação e

além dela para montar seu próprio modelo. De Herbert Spencer, por exemplo, extrai a ideia de

que a alegria de um passatempo, exercício corporal ou jogos são importantes estimulantes e

despertam o interesse pelo que propõe às crianças (FERRER, 2014, p. 60). De Friedrich Froebel

e Ellen Key depreendeu a necessidade de garantir a liberdade infantil, que o interesse parta dela,

de sua vontade de aprender (FERRER, 2014, p. 67).

Especificamente, sobre a “raiz” anarquista de sua proposta escolar, Ferrer tinha por base

as diretrizes traçadas pelo Comitê para o Ensino Anarquista (1898)72: o ensino libertário se

compromete a suprimir a disciplina (pois favorece a dissimulação e a mentira), os programas

(pois anulam, a originalidade a iniciativa e a responsabilidade) e as classificações (pois motivam

a rivalidade, o ciúmes e o ódio), de forma a promover um ensino verdadeiramente integral,

racional, misto e libertário (CHAHIN, 2013, p. 77).

A Escola Moderna de Barcelona educava com um “direcionamento firme, no sentido de

despertar o que há de melhor na criança, sem debilitá-la ou enfraquecê-la com brutalidades e

reprovações” (SANTOS, 2014, p. 86), para que possa ser “um membro útil à sociedade, mas

que, como consequência, eleve proporcionalmente o valor da coletividade. Ela ensinará os

verdadeiros deveres sociais, conforme a justa máxima: Não há deveres sem direitos; não há

direitos sem deveres” (FERRER, 2014, p. 37).

Ferrer criticava o ensino religioso lecionado nas escolas confessionais por seu

dogmatismo, resignação, sacrifício, respeito à autoridade religiosa e ser contrário à ciência e à

liberdade. Da mesma forma, tecia críticas contra o ensino ministrado nas escolas estatais

(laicas), nas quais o governo poderia controlar a educação e inculcar valores pátrios,

72 Entre os membros que assinam o manifesto do Comitê para o Ensino Anarquista estão Piotr Kropotkin, Lev Tolstoi, Élisée Reclus, Paul Robin, Louise Michel, Charles Malato, Jean Grave e Jean Ardouin.

74

capitalistas, de forma a obter um povo alienado e obediente à autoridade governamental73

(SANTOS, 2014). Em comum, ambas buscavam sujeitar física, intelectual e moralmente as

crianças, de forma que para “domá-las”, adaptá-las ao mecanismo social seria preciso recorrer

a instrumentos disciplinares empregados pelas autoridades e amplamente conhecido por

aqueles que se sentaram nos bancos escolares das ditas “escolas tradicionais”74. O modelo

educacional proposto por Ferrer baseava-se na educação integral, no racionalismo pedagógico,

no antiautoritarismo, na defesa da coeducação dos sexos e das classes sociais, num esforço para

que a comunidade se aproxime e se envolva com a escola e no uso de periódicos como meio de

divulgação dos princípios políticos e pedagógicos da escola (FERRER, 2014).

As bases da educação integral já estavam presentes em Bakunin e haviam sido aplicadas

no orfanato Prévost. No Programa Educacional do Comitê para o Ensino Anarquista, está

descrito que a educação integral se propõe a

favorecer o desenvolvimento harmonioso de todo o indivíduo e fornecer o

conjunto completo, coerente, sintético e paralelamente progressivo em todos

os domínios do conhecimento intelectual, físico, manual e profissional, sendo

as crianças exercitadas nesse sentido desde os primeiros anos (COMITÊ

PARA O ENSINO ANARQUISTA apud LUIZETTO, 1986, p. 24).

Aulas de desenho, atividades de manutenção e trabalhos manuais, aulas em laboratório,

atividades ao ar livre, passeios escolares, jogos espontâneos, além de aulas de Educação Física

e das demais disciplinas (com uma orientação científica e libertária) seriam desenvolvidas na

Escola Moderna de Barcelona. A organização do ambiente e a relação entre os alunos eram

pensadas de forma a promover a boa convivência e a solidariedade.75

Nas aulas, de maneira geral, empregava-se o racionalismo pedagógico, um método de

ensino baseado na razão e na ciência, fundamentado na pesquisa e na observação, utilizando o

método intuitivo.76 A intenção era permitir que o aluno pensasse por si mesmo, de maneira

crítica e autônoma, realizando descobertas, emitindo seus próprios juízos de valor e

73 Trata-se de um período no qual a instrução pública estava em amplo crescimento em muitos países ditos “civilizados”. Os governos compreendiam que não deveriam mais de manter o povo na ignorância, impossibilitando o acesso ao conhecimento, pois a instrução traria melhorias econômicas para o país e o conhecimento poderia ser empregado como forma de dominação (Cf. SILVA, 2013, SANTOS, 2014, FERNÁNDEZ, 2015). 74 Alguns exemplos foram apresentados no Capítulo 1. 75 As carteiras escolares possuíam dois assentos, de forma que houvesse colaboração e compartilhamento. 76 O método intuitivo, anteriormente aplicado no orfanato Prévost, consistia em um ensino essencialmente empírico, partindo “do simples para o complexo, do concreto para o abstrato, do particular para o geral, do conhecido para o desconhecido, das coisas para os nomes, das ideias para as palavras” (THEIVE apud LEUTPRECHT, 2018, p. 102). Douglas Leutprecht (2018) listou diversos dispositivos visuais como globos, cartazes, mapas, coleções de insetos, mineralogia, botânica, zoologia, lâminas de projeção e “quadros intuitivos” empregados nas aulas. Também havia laboratório e gabinete de Física.

75

entendimento. Tal método opunha-se ao ensino estatal e confessional nos quais tabus e

imposições religiosas e sociais impediam o desenvolvimento intelectual e o conhecimento de

determinados temas e conteúdos, optando pela primazia do saber livresco e do discurso de

autoridade (cf. SILVA, 2013; SANTOS, 2014; FERNANDÉZ, 2015). Trata-se de

“um método de defesa contra o erro e a ignorância”; [...] substituindo o estudo

dogmático pelo estudo das ciências naturais. Entendemos por ciências

naturais, “o estudo das noções positivas e verdadeiras” a transmitir por meio

da experiência e demonstração racionais. A criança adquirirá desse modo um

espírito observador e dedutivo que a prepare para receber todos os tipos de

estudos, estudos que abraçarão o conjunto dos conhecimentos, fundando-se,

para isso, não sobre uma instrução teórica, mas prática: pôr a criança em

contato com a natureza e em condição de adquirir e utilizar os ensinos que o

trabalho manual revela. “Em vez de racionalizar sobre o inconcebível”,

escreverá Reclus a Ferrer, “comecemos por ver, observar e estudar o que está

ao alcance de nossa vista, em contato com nossos sentidos e nossa

experimentação” (SAFÓN, 2003, p. 39-41).

Tal método foi tão destacado na Escola Moderna de Barcelona, que se fala em

“racionalismo ferrerista”, ou em “escolas racionalistas” aquelas que seguiam seu modelo. Nas

palavras de Ferrer, uma educação racional é “aquela que está baseada unicamente sobre as

necessidades naturais da vida; aquela que deixa essas necessidades manifestarem-se livremente;

aquela que facilite ao máximo possível o desenvolvimento e a efetividade das forças do

organismo” (FERRER, 2014, p. 146). No entanto, diferentemente das escolas libertárias

precedentes, a Escola Moderna de Barcelona precisou atender mais prontamente às

determinações legais que regulavam o ensino espanhol, em certa medida delimitando seu

programa. Quanto às disciplinas, o Real Decreto de 26 de outubro de 1901 determinava

claramente quais deveriam ser ministradas77, estando sujeito a sanções em caso de

descumprimento.

O antiautoritarismo pedagógico é identificável por diferentes formas, sendo o próprio

método intuitivo uma delas78. Os exames eram vistos como um mal em si, por isso deveriam

ser abolidos. Serviam para demonstrar que o conhecimento se fundava em uma aprendizagem

77 “[...] as disciplinas escolares para ensino primário eram distribuídas em : Doctrina Cristiana y nociones de Historia Sagrada; Lengua Castellana; Aritmética; Geografia e Historia; Rudimentos de Derecho; Nociones de Geometria; Nociones de Ciências Físicas, Químicas y Naturales; Nociones de Higiene y de Fisiología Humana; Dibujo; Canto; Trabajos Manuales; Ejercícios Corporales. Todas as disciplinas faziam parte do currículo escolar da Escola Moderna, com exceção de Doctrina Cristiana y nociones de História Sagrada e Rudimentos de Derecho, a primeira por apresentar conteúdos e concepções que destoavam do projeto racionalista e a segunda por entrar em questões cruciais às concepções de liberdade, direito, moral e leis que estruturavam a educação racionalista libertária de maneira diluída e transversal e não apartada da realidade cotidiana” (SANTOS, 2014, p. 123). 78 As orientações da pedagoga e diretora Clémence Jacquinet era para que os professores provocassem observações, afastassem os obstáculos e auxiliassem, mas não conduzissem o pensamento do aluno (CHAHIN, 2013).

76

meramente reprodutora, envaidecer os que obteriam bons desempenhos, humilhar os demais.

Enfim, proporciona um clima de competição que é contrário ao ideal de colaboração e

solidariedade. Os castigos, por sua vez, faziam parte de uma tradição religiosa e favoreciam

muito mais ao embrutecimento do que à emancipação dos estudantes (CASTRO, 2014). Na

Escola Moderna de Barcelona,

não havia prêmios, nem castigos, nem provas em que houvessem alunos

ensoberbecidos com a nota dez, medianias que se conformassem com a

vulgaríssima nota de aprovados nem infelizes que sofressem o opróbrio de se

verem depreciados como incapazes. (FERRER, 2014, p. 79).

A severidade resmungona, a impaciência, a ira às vezes beiram a crueldade e

devem desaparecer com os professores antiquados. Nas escolas livres tudo

deve ser paz, alegria e confraternidade. Acreditamos que este aviso bastará

para banir tais práticas em seguida, impróprias de pessoas que devem ter como

único ideal a formação de uma geração apta a estabelecer uma sociedade

verdadeiramente fraternal, solidária e justa. (FERRER, 2014, p. 85).

A coeducação dos sexos e das classes tinha “como intuito promover a emancipação e a

valorização da mulher na sociedade e desnivelar as diferenças sociais” (SANTOS, 2009, p. 87).

Inovador no contexto espanhol, a proposição de coeducação dos sexos foi inspirada na

experiência do orfanato Prévost, em que era uma opção deliberada reunir meninos e meninas

num mesmo ambiente, compartilhando conhecimentos e vivências. Ferrer entendia que homens

e mulheres eram complementares, necessitavam-se mutuamente, para o progresso da

humanidade (FERNÁNDEZ, 2015). Outra inovação seria reunir alunos ricos e pobres numa

mesma turma79, que apesar das suas origens sociais, haveria um ambiente de relativa igualdade

(como uma prévia da sociedade do porvir), sem despertar ódio de classe, mas preparar homens,

que futuramente podem se rebelar contra aqueles que os subjugam e exploram (FERRER, 2014,

p. 51).

Dessa forma, buscava-se condições para que homens e mulheres, independentemente de

suas origens sociais, pudessem se desenvolver intelectual e moralmente, tendo as mesmas

oportunidades de aprender e, consequentemente, condições de atuar na sociedade de maneira

colaborativa, solidária, sem preconceitos. Tal concepção igualitária se aproximava da corrente

anarcocomunista (kropotkiniana), segundo a qual as classes oprimidas e privilegiadas

79 As mensalidades eram pagas de acordo com as condições financeiras da família e, a depender do caso, poderia chegar à gratuidade (FERRER, 2014, p. 52). Além das mensalidades, a escola era mantida com recursos próprios (grande parte oriundos da editora). Trata-se de não se submeter à subvenção estatal.

77

partilhariam das mesmas condições, tendo uma mesma formação educacional, cultural, moral

e política80.

Higiene e saúde, assuntos da área médico-sanitarista, foram temas constantes das

conferências dominicais81. Algumas das orientações passadas ao público vão desde os cuidados

que deveriam ser tomados na construção de residências, boa alimentação, à atenção com relação

à disseminação de doenças como a tuberculose (SANTOS, 2014). “À parte dessas enfermidades

tão terríveis, a frieira, as doenças dos olhos, a sarna, o histerismo, as torceduras das costas etc.,

quase sempre saem da escola” (FERRER, 2014, p. 57). Noções de higiene era uma das

disciplinas ministradas na escola. Procurava-se promover os bons hábitos entre os alunos (lavar

as mãos, bocas, banhos, limpeza das unhas) e a salubridade do espaço escolar (distribuição dos

locais, iluminação, ventilação, calefação, instalação de banheiros) de forma a evitar que a escola

fosse um ambiente de contágio, contaminando membros da família, ou vice-versa.

Figura 8: Sala de aula da Escola Moderna de Barcelona, 1906

Fonte: Fundació Ferrer i Guàrdia (Disponível em: <https://www.ferrerguardia.org/escola-moderna>. Acesso em:

01 mai. 2020)

80 Piotr Kropotkin compreendia que até o advento da revolução social, caberia aos anarquistas organizar-se em grupos revolucionários e difundir seus princípios entre os trabalhadores de forma a despertar as consciências e inspirar a insurreição, pois uma sociedade libertária seria mais facilmente alcançada pelo gradual amadurecimento da opinião pública (a propaganda se faria por meio da imprensa operária, sindicatos, escolas), mas também pelas ações como greves e atentados. Defendeu que a educação deveria ser universal, compartilhada e problematizadora, de forma a considerar a vivência e a experiência como parte estruturante de suas práticas, privilegiando atividades práticas à teoria abstrata. Reconhecia a importância que a escola exercia na formação moral das crianças e, em oposição à moral burguesa e como alternativa à moral cristã, para que anseiem pela verdade, pelo belo e pelo bem da humanidade. A escola libertária deveria promover a liberdade, o apoio mútuo e a solidariedade, de forma a produzir o ser humano completo, útil para a sociedade. 81 Tais eventos tinham o propósito de divulgação científica, realizadas por especialistas renomados, voltados para familiares dos alunos e trabalhadores desejosos em aprender. Ocorriam aos domingos como forma de rivalizar com a missa católica.

78

No prefácio ao livro A Escola Moderna (2014), Sílvio Gallo descreve a escola como

“um local amplo e arejado, com salas bonitas e bem decoradas, espaços múltiplos e pátios

externos para atividades ao ar livre” (FERRER, 2014, p. 12).

Contudo, um problema se instala: como preparar os professores que, educados sob o

modelo tradicional, pudessem conduzir as aulas sob diretrizes radicalmente diferentes? De fato,

Ferrer se deparou com o desafio de formar professores para atender à crescente demanda devido

à abertura de novas turmas. Jovens de ambos os sexos, “despojados de preocupações,

superstições e crenças tradicionais absurdas” (anúncio no Boletim da Escola Moderna apud

FERRER, 2014, p. 69), seriam ensinados por professores numa Escola Normal, conduzida por

professor experiente da Escola Moderna.

O cientificismo era uma das principais armas da Escola Moderna para combater a forte

influência da Igreja no meio cultural espanhol. Ferrer, por inspiração positivista, propunha

disseminar os conhecimentos científicos e, assim, contribuir para a emancipação intelectual do

povo. A ciência e a moral libertária estariam mais presentes na vida da classe trabalhadora, em

diferentes espaços e para as diferentes idades. Nisso a Escola Moderna de Barcelona apresenta

uma clara diferença em relação às escolas estatais, religiosas e mesmo as que vieram a adotar

o escolanovismo. Conforme explica Chahin (2013),

Essa maneira de aproximar o ensino à ciência, levando o aluno à observação

incontida na natureza parece ser distinta da defendida por outros praticantes

do ensino ativo que mantiveram a orientação curricular como instrumento de

controle social, assumindo as inovações metodológicas sem reorientar a moral

norteadora da formação infantil. Ferrer questionava o simples uso de

metodologias modernas como via única de refutação da educação tradicional,

acreditando que não adiantaria modificar os métodos, caso não fossem

modificadas as mentalidades envolvidas na direção do processo educativo.

(CHAHIN, 2013, p. 96).

Para viabilizar os projetos pedagógicos da escola, como publicação de livros para uso

de alunos e professores, textos de divulgação científica e um periódico sobre os trabalhos

desenvolvidos na escola, a Casa Editorial Publicações da Escola Moderna teria papel

primordial. Fundada simultaneamente à escola, publicou 127 títulos, além do periódico Boletim

da Escola Moderna82, no qual havia espaço também para veicular as práticas pedagógicas:

82 “Pela Direção eram inseridos nele os programas da escola, notícias interessantes da mesma, dados estatísticos, estudos pedagógicos originais de seus professores, notícias do progresso do ensino racional no próprio país ou em países diferentes, traduções de artigos notáveis de revistas e periódicos estrangeiros em concordância com o caráter predominante da publicação, resenhas de conferências dominicais e, em último lugar, avisos dos concursos públicos para completar nosso professorado e os anúncios de nossa Biblioteca” (FERRER, 2014, p. 139).

79

Meninas e meninos, sem diferença apreciável em conceito intelectual por

causa do sexo, no choque com a realidade da vida, que as explicações dos

professores e as leituras lhes ofereciam, consignavam suas impressões em

notas simples que, se às vezes eram juízos simplistas e incompletos, muitas

mais resultavam de uma lógica incomparável, que tratavam de assuntos

filosóficos, políticos ou sociais de importância. (FERRER, 2014, p. 139).

Na Escola Moderna de Barcelona se observa uma maior diretividade da parte de Ferrer.

Não se exalta da mesma forma a liberdade e a espontaneidade das crianças, mas se valoriza o

conhecimento científico e o desenvolvimento moral das mesmas, além de estar mais “voltada

ao evidente propósito revolucionário” (SANTOS, 2014, p. 121) numa época em que houve uma

profusão de escolas libertárias na Espanha83.

Segundo Santos (2009), Ferrer

intentou um projeto educacional que constituía um caminho para a construção

de uma nova sociedade, sendo a escola, um espaço no qual a verdade e a

ciência, mediante o esforço coletivo, pudesse ser difundida e distribuída

igualmente. Valorizou o cultivo da liberdade na formação da criança, o

respeito a seu desenvolvimento natural, sua espontaneidade e as

características de sua personalidade com o intuito de desenvolver a

independência, juízo e espírito crítico. [...]

A Escola Moderna pensada por Ferrer buscou a emancipação total do homem,

abrangendo tudo aquilo que fosse favorável à liberdade do indivíduo e à

harmonia da coletividade’, partindo da educação infantil na condução das

crianças ao conhecimento da origem das injustiças sociais às perspectivas de

combatê-las (SANTOS, 2009, p. 87-88).

Se do ponto de vista estritamente pedagógico não se observou grandes inovações84,

pode-se destacar o empenho na promoção das práticas realizadas de forma que fossem

difundidas e inspirassem tantas outras escolas libertárias pelo mundo. O próprio Ferrer concluiu

que sua experiência escolar libertária “deu a norma, ainda sendo suscetível a aperfeiçoamentos

sucessivos, do que deve ser o ensino na sociedade regenerada; deu impulso criador este ensino”

(FERRER, 2014, p. 152).

83 Moriyón (1989) procura valorizar os esforços teóricos e práticos de Ricardo Mella em sua Escola Racionalista que foram ofuscados pela campanha feita por anarquistas em defesa da Escola Moderna e de Ferrer, sobretudo por conta da perseguição e da execução, o que daria ainda mais projeção para o legado do pedagogo catalão. Mella, ao passo que combatia o dogmatismo religioso presente nas escolas espanholas, também denunciava um novo “dogmatismo”, o da ciência e da revolução, que nas escolas anarquistas inculcavam nas crianças ideias preestabelecidas, doutrinando-as ao invés de buscar seu pleno desenvolvimento – “Mella denuncia, portanto, uma educação que se converte em simples proselitismo e propaganda, mas que não fomenta nem a liberdade de pensamento nem a liberdade do indivíduo, nem sequer uma atitude científica”. (MORIYÓN, 1989, p. 20) 84 A própria editora não produziu “nenhuma obra de teoria da educação, nenhuma obra de didática nem de organização escolar, nenhuma obra de Psicologia aplicada à infância” (DELGADO apud LEUTPRECHT, 2018, p. 110).

80

A Escola Moderna de Barcelona representou, na época, o maior exemplo educacional

de ação direta anarquista. Seu funcionamento despertou reações hostis dos setores mais

conservadores da Espanha, em particular das autoridades governamentais, da alta burguesia e

da Igreja Católica. Em 1906, após um julgamento claramente político por suposto envolvimento

no atentado da Calle Mayor85, Ferrer seria duplamente punido: sua escola seria fechada86 e sua

prisão seria decretada – permaneceu preso por um ano durante o qual houve ampla campanha

para sua soltura. Devido a dificuldades financeiras, a Escola Moderna não pôde ser reaberta.

Ferrer seria novamente acusado de liderar os atos violentos da “Semana Trágica”87 e, dessa vez,

sentenciado à pena de morte – condenado sem que se apresentasse provas factuais e sem ter

direito às testemunhas de defesa (SILVA, 2013).

O poeta Marques Guimarães legou-nos os seguintes versos em homenagem a Ferrer:

A ESCOLA MODERNA

A grande instituição, que o velho professor

Fundara, para dar à humanidade nova,

A luz de outro saber, o sol de um outro amor,

Não tinha inda o batismo, a convincente prova

Do seu real valor, da sua alta missão,

Que aos crentes inspirasse a fé que se renova...

Apóstolo tenaz, homem de convicção,

Ferrer se devotara ao bem da humanidade,

– Cavaleiro do Ideal e pioneiro da Ação!

Instruía; e pregava a solidariedade

Entre os homens, iguais no amor, visando um fim:

– Criar um novo tipo à velha sociedade.

E o novo ensino foi se difundindo assim,

Qual luz feral que à treva afugenta e combate,

Ou toque, a despertar, de estrídulo clarim!

Porém, a tão grandiosa e a tão profundo embate,

Contra as leis, contra o altar, contra a ordem e a rotina,

A reação se impou de igual força e quilate!

E a espada unida à cruz, a sentença assassina

Traço, na escuridão da “semana sangrenta”,

De imolação ao Justo, à alma sã que ilumina...

85 O atentado contra o rei espanhol Afonso XIII, ocorrido em 1906, contava com a participação de Mateo Morrao, ex-funcionário da Escola Moderna. As acusações eram de que Ferrer fosse o mentor intelectual da ação. 86 Segundo Ferrer, ao questionar ao ministro sobre o motivo do fechamento da escola, teria ouvido “Que a Escola Moderna havia sido fechada por questão de moralidade e que a ordem de fechamento havia sido solicitada desde Barcelona” (FERRER apud SILVA, 2013, p. 110). 87 Também denominada pela historiografia como “Revolução de Julho [de 1909]”, foi uma onda de protestos violentos – ocorreram enfrentamentos entre a classe operária e o exército, bem como ataques a edifícios públicos, igrejas, conventos e colégios religiosos – motivados pelo embarque de soldados da classe operária em direção ao front na África (Marrocos) – a repressão foi intensa, tendo dezenas de presos, exilados e executados (Cf. SILVA, 2013; LEUTPRECHT, 2018).

81

...Banhou com sangue o ideal! E o sangue, tumultuário,

Germina e faz-se luz e em fontes mil rebenta!...

E, religião do amor, o Ensino Humanitário

Em batismo de luz as almas dissedenta!88

Em 1908, seria fundada a Liga Internacional pela Educação Racional da Infância, que

buscava manter pedagogos reunidos, discutindo e difundindo o ensino racionalista e o legado

de Ferrer89, empregando a revista L’école Rénovée como veículo de divulgação, fomentando

iniciativas de criação de escolas modernas e libertárias pela Europa e Américas.

(LEUTPRECHT, 2018).

As experiências pedagógicas da escola-rural de Iasnaia Poliana, do orfanato Prévost, da

escola-comunidade La Ruche e da Escola Moderna de Barcelona, a despeito dos diferentes

contextos (ambiente cultural, relação com a comunidade, com a sociedade e com o Estado) e

de suas particularidades (visão de mundo de seus fundadores, metodologia e práticas

empregadas), possuíam em comum o fato de serem iniciativas voltadas para a educação

popular, sendo contrárias ao modelo hegemônico (seja na figura das escolas estatais, religiosas

ou burguesas/elitistas) e mesmo contra os novos modelos (escolanovistas ou destinadas a

formar apenas para o trabalho). Desenvolveram práticas visando superar a educação livresca,

empregando um ensino ativo, baseado na curiosidade, na espontaneidade, na observação e na

livre conversa e composição. Buscavam valorizar o repertório e as vivências das crianças.

Preocupavam-se com o desenvolvimento pleno dos alunos, suas virtudes, aptidões, formação

para o trabalho e sociedade, e, para tanto, a liberdade deveria ser a máxima educativa (liberdade

das ideias e dos corpos, dos horários, dos programas, das normas de conduta, somando-se ao

antiautoritarismo dos professores e a eliminação de um sistema de prêmios e castigos). Lutavam

para garantir a coeducação de meninos e meninas, apostavam na ciência e estimulavam a

solidariedade entre as crianças.

Tais experiências, alternativas educativas que subverteram a ideia de escola pelo Estado,

pela Igreja e pela elite, foram amplamente difundidas no meio pedagógico libertário, circulando

em periódicos operários em todo o mundo. Muitos libertários brasileiros, inclusive João

Penteado, tomaram conhecimento destas experiências e promoveram grandes conferências e

debates sobre a pedagogia libertária.

88 Publicada na “Revista Liberal”, Porto Alegre, outubro de 1921. Retirado de KHOURY, 1988. 89 Houve aproximação entre os membros da liga e pedagogos escolanovistas o que, ao longo dos anos, viria enfraquecer as teses mais radicais do racionalismo.

82

CAPÍTULO 3

A ESCOLA MODERNA N.1 E A SÃO PAULO DA PRIMEIRA REPÚBLICA

3.1 Organização e luta do operariado paulistano

Lá para as bandas do Ipiranga as oficinas tossem...

Todos os estiolados são muito brancos.

Os invernos de Paulicéia são como enterros de virgem...

Italianinha, torna al tuo paese!

(Mario de Andrade. Trecho do poema Paisagem Nº 2)90

A partir da década de 1860 a cidade de São Paulo passou por grandes transformações,

promovidas em grande parte pelo sucesso da exportação do café e pelo crescimento dos

serviços, principalmente o comércio, aquecido por conta das ferrovias. Muitos cafeicultores e

grandes empresários do setor da importação diversificaram seus capitais: investiam em

“estradas de ferro e docas, bancos e sociedades comerciais, necessários à expansão dos seus

negócios” (DEAN, 2006, p. 278), que além de permitir melhor atuar nas diferentes etapas do

processo produtivo, geraria um excedente que seria empregado na aquisição de maquinários91.

Uma cidade que possuía, até então, ares rurais, cuja área urbana limitava-se basicamente ao

interior do triângulo formado pelas ruas Direita, São Bento e do Rosário, inicia seu processo

modernizador impulsionado pela nascente “burguesia”. (MOTA, 2007)

Durante os períodos do Segundo Reinado e da Primeira República, a cafeicultura

correspondeu ao principal setor produtivo brasileiro, cuja exportação atingiu valores superiores

a 45%92. (FAUSTO, 2009, p. 191 e 292) Devido à crise do sistema escravista, a crescente

demanda por mão de obra nas grandes fazendas produtoras de café não seria satisfeita apenas

pela migração, fazendo-se necessário somar as iniciativas de particulares e, posteriormente, dos

esforços dos governos estaduais e federal para empreender uma ampla política de imigração93

90 ANDRADE, Mario de. Poesias completas. São Paulo: EDUSP, 1987. 91 Caso emblemático é o das empresas da família Matarazzo, que na década de 1920 já atuavam fabricação de “tecidos, farinha de trigo, alimentos enlatados, açúcar refinado, [e possuíam] agência de venda de automóveis e de filmes de cinema” (DEAN, 2006, p. 299). 92 Tendo como exceção o decênio de 1841-1850, no qual a exportação de café atingiu o valor de 41,4%.) 93 A Europa do fim do século XIX e início do século XX passava por uma grande pressão demográfica e, consequentemente, a obtenção de fontes de subsistência estava cada vez mais difícil – cerca de 50 milhões

83

que, somada à queda dos índices de mortalidade94, levariam a um “boom” populacional. A isso

se acrescenta o aumento do consumo de bens e serviços e o incremento da rede de comunicação

e transporte que, por sua vez, atraíam mais e mais pessoas. A cidade de São Paulo,

especificamente, teve um expressivo crescimento iniciado

entre 1872-1886, quando foi de 52% (de 31.385 para 47.697 habitantes), a

uma taxa geométrica anual de 3%, Entre 1886-1890, alcançou 36% (de 47.697

para 64.934 habitantes), o que representou uma taxa geométrica anual de 8%.

Mas a grande arrancada se deu entre 1880-1900, período em que a população

paulistana passou de 64.934 habitantes para 239.820, registrando uma

elevação de 268% em dez anos, a uma taxa geométrica de 14% de crescimento

anual. Em 1890, São Paulo era a quinta cidade brasileira, abaixo do Rio de

Janeiro, Salvador, Recife e Belém. No início do século, chegaria ao segundo

lugar, embora ainda muito distante dos 688.000 habitantes da Capital federal.

(FAUSTO, 2000, p. 17-18).

De acordo com a Sociedade Promotora de Imigração em São Paulo, instituição

organizada por grandes agricultores, mas subsidiada pelo Estado, “entre 1886 e 1888, embora

a maioria dos imigrantes fosse para a agricultura, muitos encontraram trabalho na capital ou em

outras cidades mais populosas do interior, desenvolvendo consideravelmente todos os ramos da

indústria”. (MORSE apud MOTA, .2007, p. 55) Informações do recenseamento de 192095,

indicam que os imigrantes compunham 52% da população adulta da cidade de São Paulo. De

acordo com Singer (apud MOTA, 2007, p. 55), a incorporação urbana da força de trabalho dos

imigrantes impulsionou sobremaneira a economia de mercado nos moldes do capitalismo

industrial, tanto na condição de operários como de consumidores. A prosperidade “sorriu” para

alguns destes: cerca de 64% dos estabelecimentos comerciais de São Paulo pertenciam a

imigrantes. (PETRONE, 2006)

abandonariam o “velho continente”. Concomitantemente, países como Canadá, Estados Unidos, México, Brasil e Argentina desenvolveram uma política de atração dessa mão de obra que, de uma só vez, “civilizaria” a nação e garantiria maior produtividade no campo e na cidade (SCHWARCZ; STARLING, 2015). Promotores da imigração viam nos imigrantes europeus “signos da operosidade, vigor e disciplina” (CARVALHO, 2003, p. 14) além de elemento capaz de branquear e moralizar a população (CARVALHO, 2003, p. 31). O que atraía os imigrantes para o Brasil era, em primeiro lugar, a expansão da cafeicultura (além dos bons preços atingidos pelo café, havia a possibilidade de plantar outras culturas e ter áreas para o pasto, garantindo meios para subsistência e comercializando o excedente); em menor grau os imigrantes se dirigiram para núcleos coloniais no sul do país; trabalhadores que já possuíam experiência em ofícios urbanos preferiram cidades como Rio de Janeiro, Santos e São Paulo, cujos setores do comércio, indústria, transporte e outros serviços possibilitariam a prosperidade almejada (PETRONE, 2006). 94 Principalmente em decorrência da “melhoria dos serviços de saúde pública, financiados sobretudo com os ganhos da exportação e destinados a tornar o Brasil mais atraente para os trabalhadores estrangeiros” (DEAN, 2006, p. 279). 95 Dados deste recenseamento apontam para uma realidade nacional eminentemente agrícola: 69,7% da população economicamente ativa dedicava-se à agricultura; 13,8% à indústria e 16,5% aos serviços como um todo.

84

Tabela 2: População europeia da cidade de São Paulo, segundo a nacionalidade e o sexo, 1920

Homens Mulheres Total

Alemanha 2.322 2.233 4.555

Áustria 894 878 1.772

Bélgica 175 202 377

Dinamarca 61 48 109

Espanha 12.354 12.548 24.902

França 767 1.092 1.859

Grécia 40 13 53

Holanda 75 61 136

Hungria 60 67 127

Inglaterra 683 529 1.212

Itália 47.753 43.791 91.544

Polônia 268 413 681

Portugal 36.685 28.002 64.687

Rússia 464 486 950

Sérvia 7 22 29

Suécia 55 56 111

Suíça 339 244 583

Outros países 293 203 496

Fonte: Recenseamento de 1920, v. IV, 1ª parte, p. 860-861 – grifo nosso

Estatísticas italianas apontam que de 1888 a 1897 o Brasil foi o destino da maioria dos

que emigravam. No ano de 1900, “92% dos operários industriais no Estado de São Paulo eram

estrangeiros e 81% eram italianos. Em 1912, no mesmo Estado, 80% dos operários têxteis eram

estrangeiros, sendo que 65% eram italianos”. (PINHEIRO, 2006, p. 150) A cidade de São Paulo,

embora cosmopolita, possuía uma influência italiana tremenda96 – como apresentado

numericamente na tabela acima –, sendo que os de origem napolitana se concentravam no Brás,

os de origem veneziana no Bom Retiro e os de origem calabresa no Bexiga. (MOTA, 2007, p.

131) A região do Brás (estendendo-se para os bairros da Mooca, Belém e Belenzinho), tanto

em decorrência da proximidade da Hospedaria dos Imigrantes quanto pela concentração de

indústrias, cresceu enormemente na última década do século XIX.

Nas primeiras décadas do século XX, a cidade de São Paulo passava a se configurar de

duas formas:

Enquanto a massa de imigrantes se concentra nas várzeas, bordando as faces

sul e leste do maciço paulistano, vão surgindo neste os bairros residenciais que

96 A média italiana Gina Lombroso-Ferrero relatou em seu livro de viagem ao Brasil Nell’América Meridionale (1908) a paisagem e a sociedade das cidades brasileiras, as condições dos colonos italianos nas fazendas e, ao passar por São Paulo, a definiu como uma “cidade italiana” (CARDOSO, 2019). No bairro do Brás, observava-se “grupos de italianinhos cantando alegremente pelas ruas. Jovens imigrantes a dar concertos de bandolim, flauta, clarinete. Junto às fábricas, à hora do almoço, a cortar com canivete o pão redondo que comiam com bananas ou queijo. À noite, um chianti legítimo, com uma ‘pizza’ ou um naco de ‘provolone’. Nos quintais, vez por outra, o jogo de ‘bochas’” (CENNI apud MOTA, 2007, p. 131).

85

sobem as encostas em busca de terrenos altos e saudáveis (Higienópolis) até

atingir o espigão, onde se abre a Avenida Paulista.

De um lado, delineia-se “um ininterrupto suceder de pequenas habitações,

quase sempre térreas e sem nenhum jardim à frente, geralmente geminadas

(duas a duas, quatro a quatro), todas mais ou menos iguais, de estilo pobre e

indefinível. Estendem-se assim, em sua monotonia e em sua humildade, em

filas intermináveis, que chegam a ocupar quarteirões inteiros. No meio delas,

porém, surge de quando em quando em vez a pesada e característica fachada

de uma fábrica ou, então, pequenas oficinas ou fabriquetas”. Do outro lado,

residência e trabalho estão separados, a triste uniformidade desaparece,

despontando as construções onde se reúnem “desde a pureza de uma frontaria

fria à normanda, dos arabescos sinuosos e ilógicos da arte-nova, até o risonho

‘cottage’ inglês; do ponteagudo dos chalés da neve aos alpendrados espanhóis,

às cúpulas e minaretes orientais, às varandas cobertas do norte, às vilas

graciosas da Itália, às galerias do Renascimento, ao exagero do barroco ou do

plateresco, ao rústico suíço, até a horrível simetria esburacada do estilo

pombalino, pesado e bruto.” (FAUSTO, 2000, p. 19).

Figura 9: Vista panorâmica do Gasômetro e do bairro

do Brás. Fotografia de Guilherme Gaensly, ca. 1890 Figura 10: Avenida Higienópolis. Fotografia de

Guilherme Gaensly, ca. 1920

Fonte: Acervo do Instituto Moreira Salles

(Disponível em:

<http://acervos.ims.com.br/#/detailpage/70506>

Acesso em: 04 mai. 2020)

Fonte: Acervo do Instituto Moreira Salles

(Disponível em:

<http://acervos.ims.com.br/#/detailpage/12465>

Acesso em: 04 mai. 2020)

Não restam dúvidas de que tais mudanças na sociedade paulistana é resultado de uma

nova realidade econômica: “Em 1907, a metade do café do mundo era cultivada em São Paulo

[...]. Por volta de 1920, o Estado também era o primeiro do país em produção industrial”

(LOVE, 2006, p. 59). “[...] De 1910 a 1930, as vendas de café passaram a representar 50% a

70% dos lucros da exportação nacional” (Ibid., p. 75). Apesar de incompleto e subestimado, o

recenseamento de 1920 “mencionou 727 firmas em São Paulo fundadas antes de 1905 e ainda

existentes catorze anos depois”. (DEAN, 2006, p. 286)

86

Tabela 3: Estado de São Paulo – concentração de estabelecimentos industriais por ramos segundo o

número de operários ocupados (1919)

RAMOS EMPRESAS

COM 200 OU +

EMPRESAS

COM 500 OU +

EMPRESAS

COM 1000 OU +

Alimentação 4 2 1

Cerâmica 1 2 1

Indústria cultural 1 - -

Metalurgia 10 - -

Móveis - - -

Química 5 1 -

Têxtil 16 17 7

Vestuário e toucador 10 1 -

Fonte: Recenseamento de 1920 apud FAUSTO, 2000, p. 116

Uma das principais causas para viabilizar a industrialização em São Paulo decorre do

aumento da demanda interna por artigos de consumo de massa (tecidos, alimentos, utensílios),

cujos produtos manufaturados eram em grande medida importados. Industriais paulistanos

passariam a pressionar o governo para ampliação de barreiras alfandegárias que, juntamente

com a inflação, dificultavam o acesso a produtos importados por se tornarem mais caros e

menos disponíveis, apesar de melhor qualidade se comparado aos nacionais.

O crescimento industrial já era sensível duas décadas antes do início da Grande Guerra97,

o que contraria a tese de que a industrialização em São Paulo seria um fenômeno de “produção

por substituição”, quando a escassez de produtos oriundos dos países beligerantes pressionaria

para uma solução doméstica. Mais do que isso, observa-se queda no ritmo de crescimento da

indústria durante o conflito: segundo Dean (2006, p. 311), de 8% na década anterior, o índice

caiu para 4% no período em questão.

Em decorrência da ausência de legislação que regulasse as relações de trabalho, somada

a uma certa dose de taylorismo, as condições que muitos operários passaram a vivenciar nas

fábricas de São Paulo eram

primitivas e perigosas. Trabalhavam-se, em regra, dez ou onze horas por dia

e seis dias por semana. [...] Até para os experimentados habitantes da cidade

o emprego na fábrica era episódico. Os trabalhadores sempre o consideraram

uma alternativa desagradável e preferiam empregos no comércio, nos

transportes e mesmo na construção, quando conseguiam encontrá-los.

(DEAN, 2006, p. 307).

97 Observa-se também que muitos alimentos anteriormente importados passariam a ser produzidos e comercializados internamente: arroz, vinho, vinagre, toicinho e banha, manteiga e queijo, conservas de frutas e óleos vegetais.

87

Soma-se à essa realidade a ausência de férias, uma férrea disciplina98 e baixos salários

que, de acordo com Wilson Cano (1975), eram inferiores à média paga nos Estados do Sul, do

Norte e do Distrito Federal. Em alguma medida, isso ser devia à significativa presença de

mulheres e crianças (cerca de 41%), o que pressionava o nível salarial do homem adulto para

baixo.

Para a classe operária, ficava cada vez mais claro que a conquista por melhores

condições de trabalho e vida deveria ser travada nas lutas diárias, e não pela via parlamentar,

posto que “menos de 6% da população nacional participaram das eleições durante todo o

período que está sendo analisado [Primeira República], a política nessa época resumia-se,

claramente, numa disputa entre setores da elite política nacional.” (LOVE, 2006, p. 61) Não

restava outra alternativa a não ser se organizarem em associações, sindicatos e partidos

operários99. Nas duas primeiras décadas do século XX, cerca de metade da mão de obra

empregada na indústria paulistana era composta por imigrantes, muitos deles simpatizantes da

causa libertária. O jornal Correio Paulistano, ligado ao Partido Republicano Paulista, publicou,

em 1893, uma série de reportagens alertando sobre o “perigo” que os imigrantes anarquistas

representavam. As matérias alertavam o público e as autoridades “para a presença desses

indivíduos por elas considerados ‘chefes e partidários desse terrível seita destruidora [...] virem

implantar a desordem e uma luta fratricida’.” (CALSAVARA, 2012, p. 254)

A diversidade étnica e os interesses específicos de cada categoria ou grupo de

trabalhadores dificultavam uma maior articulação entre os trabalhadores nestes tempos. A

realização do Congresso Operário Brasileiro de 1906 (I COB), ocorrido no Rio de Janeiro,

correspondeu ao primeiro grande esforço para superar esse quadro. Reunindo 43 delegados dos

estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Ceará, foram definidas as formas de

98 Erros, falhas e atrasos eram frequentemente punidos com castigos corporais, no caso de menores e aprendizes, ou multas, no caso dos adultos (PINHEIRO, 2006, p. 159-160). 99 Tais entidades de representação e de luta política organizavam-se de maneira muito precária durante a Primeira República. A título de exemplo, havia grupos positivistas (preocupados em garantir uma “cidadania social” ao povo, possuía reivindicações ligadas à melhoria das condições de vida e trabalho sem recorrer à greve), socialistas (seja pela corrente reformista e de ação política institucionalizada, ou pela corrente revolucionária inspirada no PSI, formaram o Centro Socialista Internazionale em 1894, responsável pelo periódico Avanti!, o Partido Operário Socialista em 1896, o Partido Socialista Brasileiro em 1902 etc.), sindicatos “amarelos” (ou reformistas, eram pragmáticos e buscavam ganhos imediatos, que nos anos 1920 possuíam algum apoio e articulação junto ao governo), católicos reformistas (apesar das denúncias dos males da industrialização, buscavam o entendimento entre patrões e operários, além de proferir ataques contra a ação sindical radical; sua maior entidade era o Centro dos Operários Católicos, fundado em 1899 na cidade de São Paulo), comunistas (movimento incipiente nos anos 1920, buscava unir e centralizar a luta operária; o PCB conseguiu atuar nas décadas seguintes dentro da legalidade de maneira intermitente, inclusive participando do processo eleitoral), além dos “anarcossindicalistas” (em atividade desde a década de 1890, possuíam lideranças vindas da base; eram tidos como “reformistas” e “não-revolucionários” por anarquistas de outras correntes), todos disputando espaço no meio operário (Cf. BATALHA, 2000; PINHEIRO, 2006; BIONDI, 2009; GODOY, 2013).

88

organização dos sindicatos (por ramo de atividade, por ofício ou pluriprofissionais), bem como

as ações de luta (a greve parcial ou geral, o boicote, a crítica, a manifestação pública)100; foi

colocado como pauta de luta a redução da jornada de trabalho, o pagamento dos salários em

dia, a solidariedade internacional dos trabalhadores, o antimilitarismo, o antialcoolismo, o

mutualismo, a neutralidade sindical entre outros pontos. Aprovou-se a realização da primeira

greve geral, que ocorreria em São Paulo em 1º de maio de 1907, apresentando como principal

bandeira a jornada de 8 horas diárias. Em síntese, as teses do sindicalismo revolucionário foram

vencedoras. Deste congresso, nasceria as bases da Confederação Operária Brasileira (Cf.

BATALHA, 2000; PINHEIRO, 2006; BIONDI, 2009; GODOY, 2013; CASTRO, 2014).

As greves de 1906 em São Paulo, restrita aos trabalhadores da Companhia Paulista de

Estradas de Ferro, e uma outra, policlassista e mais abrangente, de 1907 em São Paulo, Santos,

Ribeirão Preto e Campinas, tiveram como resposta a escalada de arbitrariedades e intimidação

policial, espancamentos, prisões e demissões, além da perseguição a imigrantes com base na

Lei Adolfo Gordo (decreto nº 1.641 de 7 de janeiro de 1907) que, entre outras medidas, previa

a expulsão de estrangeiros que viessem a “comprometer a segurança nacional ou a tranquilidade

pública”. Consequentemente, houve um arrefecimento nas lutas operárias nos anos seguintes101,

mas ainda inúmeros esforços para articular as demandas dos trabalhadores, posto que o

movimento anarquista havia se “vascularizado” desde o início do século XX, não apenas

concentrado entre italianos de São Paulo, mas também para outras regiões do país. Se observa

a definição da ação direta como padrão de atuação, havendo esforços no sentido da fomento de

iniciativas culturais como forma de propaganda da causa e conscientização, destacando-se a

criação de periódicos, grupos de afinidade, centros de estudos sociais, além de campanhas para

a criação de escolas racionalistas e modernas. (GODOY, 2013)

Particularmente em São Paulo, o grupo que exerce maior influência, com propostas mais

claras, era o dos sindicalistas revolucionário102, contrários à luta política pelas instituições do

Estado, pois entendiam que a emancipação dos trabalhadores deveria ser feita pelos próprios

100 “Os sindicatos por ofício constituem a base da organização operária na Primeira República, sendo o tipo de organização predominante e tendendo a ser a forma priorizada pelo movimento operário, pelo menos até a segunda metade dos anos 1910” (BATALHA, 2000, p. 17). 101 As greves escasseiam entre os anos 1908-1916 em São Paulo, destacando-se a ocorrida em janeiro de 1912, envolvendo principalmente a categoria dos sapateiros, gráficos e têxteis. Apesar da recessão econômica iniciada em 1913, “as raras greves que ocorrem nos anos de 1914, 1915 e 1916 são motivadas por reclamação do pagamento de salários atrasados” (PINHEIRO, 2006, p. 171-172). 102 Conforme analisa Castro (2014), a posição preponderante dos sindicatos no período se aproxima do sindicalismo revolucionário de inspiração francesa (CGT). O termo “anarcossindicalista”, apesar de amplamente presente na historiografia (p. ex. FAUSTO, 2000) para identificar esta corrente, não corresponde à autoidentificação da imensa maioria dos anarquistas que atuavam nos sindicatos no período (BATALHA, 2000).

89

trabalhadores, sendo o sindicato o principal agente de conscientização e articulação,

empregando a “propaganda pela ação”. As greves, mais do que uma forma de luta para melhorar

as condições de vida dos trabalhadores, seriam “ensaios revolucionários” capazes de imprimir

forte resistência que levaria a uma greve geral com vistas à abolição do Estado e do capital,

para a construção de uma nova sociedade fundada sob princípios libertários. Trata-se de uma

das correntes anarquistas103, porém a mais representativa no meio operário brasileiro, em que a

maioria dos anarquistas “eram seguidores das posições do russo Pedro Kropotkin e do italiano

Errico Malatesta, representantes da corrente que se convencionou chamar anarcocomunista e

que dominou o anarquismo internacional a partir dos anos 1880.” (BATALHA, 2000, p. 24)

No Congresso Operário Brasileiro de 1913 (II COB), também realizado no Rio de

Janeiro, mais abrangente do que o ocorrido em 1906, contou com a participação de

representantes de 59 associações de trabalhadores dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo,

Minas Gerais, Pernambuco, Ceará, Alagoas, Rio Grande do Sul, Amazonas e Pará, delegados

argentinos e uruguaios, bem como representantes de periódicos considerados defensores da

causa operária. Além de reforçar as resoluções definidas no primeiro congresso, acrescentou-

se a pauta do salário mínimo e enfatizou-se a importância da propaganda (conferências,

palestras, distribuição de material escrito) como meio de arregimentar novos

apoiadores/membros e instruir/conscientizar. O sindicalismo revolucionário reafirma suas

estratégias na luta organizada dos trabalhadores. (Cf. BATALHA, 2000; PINHEIRO, 2006)

Muitos colonos migraram das fazendas de café em direção às cidades, ocupando-se de

atividades na indústria, construção civil e carpintaria nos anos que precederam a Grande Guerra.

Porém, em 1913, a crise econômica internacional repercute no Brasil na forma de inflação e,

103 Convém somente identificar algumas outras correntes importantes do movimento anarquista. Mutualismo (a partir de 1840, sob influência de Joseph-Pierre Proudhon): princípio econômico no qual a sociedade seria organizada sem a intervenção do Estado por indivíduos capazes de fazer contratos uns com os outros, por reciprocidade, coordenada por conselhos locais, regionais, nacionais e internacionais, sob o princípio do sistema federalista. Coletivismo (mais expressivo a partir de 1868, sob a influência de Mikhail Bakunin): buscavam uma federação livre formada por produtores e consumidores para organizar a produção e a distribuição. Ao desmantelar o Estado sem um governo revolucionário de transição, desejavam restringir ao máximo a propriedade privada, sendo a produção baseada na propriedade comum e controlada por associações de produtores. Lema: “A cada um segundo sua capacidade, a cada um de acordo com seu trabalho”. Anarcocomunismo (influente no meio operário após o fim da I Internacional, sob a influência de Piotr Kropotkin): acreditavam que os instrumentos e os produtos do trabalho deveriam ser comuns, pois não seria possível calcular o quanto de trabalho foi empregado por cada um devido à dependência/entrelaçamentos dos trabalhos. A economia seria gerida, portanto, por toda a sociedade (não apenas pelas associações de produtores), sem um sistema salarial ou de preços. As relações econômicas se dariam pela solidariedade e ajuda mútua. Onde os individualistas falam em “soberania da autonomia individual e pessoal”, os comunistas enfatizam a necessidade solidariedade e cooperação. Lema: “A cada um segundo sua capacidade, a cada um de acordo com sua necessidade”. (Cf. MARSHALL, 2008; CORRÊA, 2015).

90

com o advento da guerra, houve queda inicial da produção, acarretando na diminuição das horas

de trabalho e demissões. A recessão perdura pelos próximos anos, com o agravante da queda

da exportação do café. (PINHEIRO, 2006) O Departamento Estadual do Trabalho reencaminha

40.000 pessoas sem ocupação para trabalhos agrícolas no interior. (BIONDI, 2009, p. 274) A

recuperação econômica se inicia em 1916, sobretudo por conta do crescimento da produção

industrial para atender a demanda por manufaturados anteriormente importados, como também

da exportação de gêneros alimentícios básicos para os aliados. Os salários não acompanhavam

o aumento da produtividade/jornada e do custo de vida. Nos anos de 1917 e 1919, deflagram-

se duas grandes ondas grevistas em São Paulo, a maior mobilização operária ocorrida durante

a Primeira República, que se espalha por outras capitais do país.

A greve se inicia [em 09/06/1917] no Cotonifício Crespi, onde os operários se

revoltam contra o prolongamento do serviço noturno e respondem com uma

exigência de 15 a 20% de aumento salarial. Uma seção da fábrica com

quatrocentos trabalhadores entra em greve e as reivindicações se colocam:

abolição das multas, regulamentação do trabalho das mulheres e menores,

modificação do regime interno da empresa, supressão da contribuição pró-

pátria. A indústria se recusa, paralisa a fábrica e torna obrigatória a volta ao

trabalho, no dia 22. No dia 26 de junho, outra greve surge, numa empresa

têxtil, a Estamparia Ipiranga. Nas mobilizações se destacam as mulheres, que

constituem uma parcela considerável nas indústrias têxteis. No dia 7 de julho

a greve alcança uma fábrica de bebidas, a Antarctica, situada na Moóca, com

cerca de 1.000 operários.

Um Comitê de Defesa Proletária é constituído e publica um programa de

quinze pontos, de modo a articular as exigências dos operários e obter um

apoio popular para sua causa. Seis das exigências dizem respeito às condições

de trabalho: jornada de oito horas, semana de cinco dias e meio, fim ao

trabalho do menor, segurança do trabalho, pagamento pontual e aumento de

salários. Sete outros pontos requeriam a ação do Governo e do capital: redução

de aluguéis e do custo dos gêneros fundamentais, requisição de gêneros

essenciais para evitar especulações, medidas que impedissem a venda de

mercadorias adulteradas, respeito ao direito de sindicalização, libertação dos

operários presos e recontratação dos grevistas. Nesse meio-tempo, a polícia

realizava prisões, desfazia manifestações e invadia sedes de sindicatos. A

morte de um sapateiro de 21 anos é um marco importante na evolução dos

acontecimentos. A paralisação se estende a 35 empresas, com mais de 15.000

grevistas, incluindo os trabalhadores da Mariângela e da estamparia Ipiranga,

em greve de solidariedade. Nos três dias seguintes ao enterro, a greve é total.

Os bondes deixam de funcionar. Os choques com a força pública se

amplificam. Há assaltos a armazéns, padarias, aos veículos que se arriscam a

transitar nas ruas, a algumas casas particulares. Diante da recusa do Comitê

de Defesa Proletária em estabelecer negociações diretas com os patrões ou o

Governo, é criado um Comitê de Jornalistas, que fará a mediação entre os dois

pólos. Os representantes da indústria concordaram em dar um aumento de

20%, pagar salários fixos durante cada mês, recontratar os grevistas e fazer

esforços para melhorar as condições de vida dos operários em São Paulo. [...]

Houve intensas investidas da polícia e as negociações pouco trouxeram para

os trabalhadores. Apesar da limitação dos objetivos atingidos, as greves, tanto

no Rio como em São Paulo, incentivaram a organização operária, em diversos

setores da indústria. Vários sindicatos foram formados durante as greves ou

91

logo depois delas; os membros de antigos sindicatos aumentaram

intensamente. Em São Paulo, o Comitê de Defesa Proletária se dedicou a

reconstruir a Federação Operária, que recebeu a adesão de 16 sindicatos de

ofícios e de fábricas e de oito ligas operárias.” (PINHEIRO, 2006, p. 173-

174).

Em termos gerais, as exigências levantadas pelas lideranças, em 1917, giravam em torno

do papel que o Estado poderia assumir nas relações de trabalho, sem questionar a existência do

Estado em si, crítica permanente do pensamento. Além de São Paulo, cidades no Rio de Janeiro,

Paraíba, Minas Gerais e Rio Grande do Sul seriam palco de levantes operários.

Figura 11: “Um contingente do 1º Batalhão da Força Pública, de armas embaladas, dispersando os grevistas na

Praça Antonio Prado, vendo-se ao fundo estabelecimentos comerciais completamente fechados”

Fonte: Revista A Cigarra, Ano IV, Número 71, 26 de julho de 1917 - Acervo do APESP

No fim de 1917, o movimento vai perdendo força à medida que a repressão policial

persistia nas ruas e as empresas realizavam algumas concessões. Soma-se a isso o emprego de

diferentes recursos, da parte do Estado, para desarticular o movimento operário e punir

lideranças: campanha patriótica (buscando o enfraquecimento da consciência de classe e o

escanteamento de estrangeiros, bastante influentes no movimento), restrição das liberdades

públicas (principalmente a partir da decretação do estado de sítio), ampla aplicação da Lei

Adolfo Gordo para expulsar imigrantes, sobretudo anarquistas, com a alegação de que “não

podiam ser considerados residentes, pois constituíam um elemento flutuante, que vagava pelo

país para propagar seus ideais e seus métodos.” (FAUSTO, 2000, p. 235)104

Ainda em um contexto de elevação do custo de vida, irrompe uma segunda grande onda

grevista iniciada em maio de 1919, que se estende até os primeiros meses de 1920. Nela ecoa

muitas das reivindicações não atendidas ou parcialmente atendidas em 1917, tais como

104 Clandestinamente nove militantes anarquistas são embarcados no navio Curvello, na condição degredados, em viagem que vai até a América do Norte e retorna para o Brasil. Alguns membros ficam detidos no Rio de Janeiro até março de 1918 (FAUSTO, 2000).

92

melhoria de “salários, condições de trabalho, readmissão de operários demitidos na greve de

novembro de 1918, mas tinha como eixo o reconhecimento da organização sindical por parte

dos empresários.” (FAUSTO, 2000, p. 189) Iniciou-se

em São Paulo, depois do licenciamento de um operário na fábrica Matarazzo,

no Brás, cerca de 10 mil operários entram em greve. Nos dias seguintes, mais

operários param o trabalho e julgou-se que no dia quatro os grevistas já

somavam 20 mil. Segundo o jornal A Plebe (n° 12, 10 de maio de 1919), havia

cerca de 50 mil grevistas, entre os quais se incluíam têxteis, padeiros, gráficos,

costureiras, metalúrgicos e operários em frigoríficos. A reivindicação

principal era a jornada de oito horas e, ainda, a proibição do trabalho para as

crianças, bem como do trabalho noturno para as mulheres. Em meados do mês,

os operários voltaram ao trabalho e em inúmeras indústrias se chegou ao

acordo da jornada de oito horas.” (PINHEIRO, 2006, p. 174-175).

Ocorrem 64 greves na capital paulista e catorze no interior, incluindo na pauta o

reconhecimento dos sindicatos e a solidariedade de classe. Nos estados do Rio de Janeiro, Bahia

ocorrem grandes agitações grevistas. Contudo, a classe patronal e o Estado empenham-se no

processo de criminalização do movimento operário. Medidas punitivas são tomadas: novamente

as autoridades recorrem a prisões, expulsões e deportações; as Escolas Modernas N.1 e N.2 são

fechadas e seus professores são fichados pela polícia. (CALSAVARA, 2012)

Tabela 4: São Paulo – Capital: causas das greves, 1917 - 1920

DISCRIMINAÇÃO TOTAL

SALÁRIO

55

Aumento, horas extras 34

Descontos e multas 10

Atraso 7

Redução 4

CONDIÇÕES DE TRABALHO

37

Gerais (trabalhos por peça, matéria-prima,

acidentes)

17

Contramestres 12

Menores, mulheres 5

Descanso semanal 2

A favor do mestre 1

SOLIDARIEDADE (com outras greves,

despedidos, prisões)

23

LEGALIDADE SINDICAL 14

HORÁRIO 12

NÃO CUMPRIMENTO DE ACORDO 6

CARESTIA, CONSUMO EM GERAL 3

TOTAL 150

Fonte: O Combate, A Plebe apud FAUSTO, 2000

No Congresso Operário Brasileiro de 1920 (III COB), em decorrência da forte

repressão, o movimento operário passa a se reconfigurar tendo em vista as poucas conquistas

efetivas dos últimos catorze anos. Fica claro o enfraquecimento das estratégias de luta do

93

sindicalismo revolucionário de modelo francês, crescendo a defesa do modelo estadunidense

de sindicalismo de massa. (BATALHA, 2000, p. 57) A Confederação Operária Brasileira já

não existia mais e se instala uma crise no movimento operário, tanto de articulação e

organização de greves de grande adesão, quanto de ideologias105. Fato é que a partir dos anos

1920 o anarcossindicalismo perde espaço enquanto movimento aglutinador e catalisador das

demandas e anseios sociais da classe trabalhadora. O movimento anarquista como um todo

permanece ativo em São Paulo, mas sob uma “roupagem” mais teórica e cultural: ocorrem

festivais de propaganda com apresentações teatrais e musicais e declamação de poemas; o

Centro de Cultura Social e a “Nossa Chácara” como espaços de formação, debates e

preservação da memória anarquista; os jornais A Plebe, Ação Direta e Dealbar (CALSAVARA,

2012).

105 “As principais correntes ideológicas até então presentes no movimento passam por mudanças ao longo dos anos 1920: o socialismo [...] praticamente desaparece no movimento operário; o sindicalismo reformista associa-se, cada vez mais, a reivindicações setoriais específicas [...]; já o anarquismo tende a assumir um caráter mais ideológico, inclusive dentro dos sindicatos, à medida que o sindicalismo revolucionário vai declinando. Não chega a ser surpreendente, neste contexto, a multiplicação das iniciativas e organizações católicas no meio operário” (BATALHA, 2000, p. 58).

94

3.2 Considerações sobre a escolarização primária em São Paulo

Saber ler, escrever e contar não constitui instrução; é apenas um

instrumento de aquisição. [...] Precisamos educar, precisamos

revolucionar a nossa massa popular.

(Luiz P. Barreto. Palestra proferida no Clube de Engenharia do Rio de

Janeiro em 23/04/1901)106

Com a superação do regime imperial, os republicanos107 se encarregam de uma

importante tarefa: a da produção de alegorias visuais (símbolos pátrios, pinturas, edifícios

públicos), ritos (festividades cívicas) e mitos (sustentados pelos discursos em revistas, jornais

e conferências, bem como pela literatura e história nacionais) para legitimar a nova ordem e

apresentar ao povo seus valores e anseios. Inspirando-se no ideário francês, muitos republicanos

insistiam no projeto do “homem novo”, em “formar as almas”, papel em grande medida

atribuído à educação pública. (CARVALHO, J., 2007)

Para os positivistas ortodoxos brasileiros, incorporar o trabalhador à sociedade era uma

forma de conter os conflitos entre as diferentes classes; o Estado agiria como um agente

encarregado por defender o bem comum. A educação seria capaz de “regenerar as populações

brasileiras, núcleo da nacionalidade, tornando-as saudáveis, disciplinadas e produtivas”

(CARVALHO, M., 2003, p. 14), tarefa compartilhada entre agraristas e industrialistas, posto

que havia um “interesse comum: o de minimizar os efeitos, tido como perniciosos, dessa massa

popular no cotidiano das cidades.” (CARVALHO, M., 2003, p. 20)

A educação é finalmente alçada a “grande problema nacional”, e sobre ela repousa

muitas das expectativas de mudança que o novo regime ambicionava: progresso econômico e

106 Luiz Pereira Barreto, deputado geral por São Paulo (1877), presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo (1891-1892), é considerado representante ilustre do “positivismo ilustrado” brasileiro. Crítico da “tradição jesuítica”, foi defensor de primeira hora do laicismo na educação pública, bem como de certo grau de autonomia das escolas, sobretudo as rurais, mais voltadas para a realidade do trabalhador, unindo a teoria com a prática – essa era sua concepção de educação “revolucionária”. (PORTO JÚNIOR, 2003). 107 Neste contexto, José Murilo de Carvalho (2007) identifica três diferentes correntes: a positivista (que identificava a república enquanto promotora do progresso; defendiam a representação política com centralidade e eventual ditadura), a americana (com ênfase no interesse e nas liberdades individuais, inspirados pelo modelo político de Montesquieu, visavam a baixa participação popular) e a jacobina (ideia de República e liberdade próxima ao modelo clássico; maior participação popular, igualdade). Do ponto de vista político, saiu vitoriosa a corrente americana; do ponto de vista simbólico/ideológico, destacou-se a corrente francesa.

95

social, esclarecimento e formação do cidadão108. Nesse contexto, observa-se o entusiasmo pela

educação, que Jorge Nagle (2009, p. 115) define como a “crença de que, pela multiplicação das

instituições escolares, pela disseminação da educação escolar, será possível incorporar grandes

camadas da população na senda do progresso nacional e colocar o Brasil no caminho das

grandes nações do mundo”. Se resolve sobretudo na esfera política, no sentido de engajar

governantes para assumir o dever de promover a educação.

Nos termos da Constituição da República (1891), a educação poderia ser ofertada pelo

Estado (devendo o ensino ser laico) e pela iniciativa privada (garantidas a liberdade de

pensamento e credo). Devido a seu caráter federativo, o texto constitucional estabelece que a

gratuidade e a obrigatoriedade ficariam a cargo dos Estados, contudo, sem definir claramente a

vinculação das verbas destinadas a este fim, o que compromete, ao longo de todo o período da

Primeira República, a realização dos projetos de expansão do ensino público e da sua melhoria

qualitativa. (Cf. CURY, 2012; SAVIANI, 2012)

As reformas Benjamin Constant (1890-1891) determinavam a gratuidade da instrução

primária, a liberdade e a laicidade no ensino. Ao acrescentar estudos científicos, às tradicionais

matérias humanísticas, o ensino tornou-se “enciclopédico”. “Fornecer tal ensino inteiro,

completo, de base científica, condição efetiva da cidadania plena, é o que se entendia como

tarefa republicana.” (CARVALHO, M., 2003, p. 29)

Porém, na hierarquia dos problemas da educação, identificou-se o analfabetismo como

o grande inimigo a ser combatido, que impede o progresso109. O dilema enfrentado pelos

educadores do período passaria a ser “atender menos e melhor, ou mais e pior.” (RIBEIRO,

1987, p. 78)

O código Epitácio Pessoa (1901) acentua a parte literária ao incluir a lógica e

retirar a biologia, a sociologia e a moral; a reforma Rivadávia (1911) retoma

a orientação positivista tentando infundir um critério prático ao estudo das

disciplinas, ampliando a aplicação do princípio de liberdade espiritual o pregar

a liberdade de ensino (desoficialização) e de frequência, abolindo o diploma

em favor de um certificado de assistência e aproveitamento, e transferindo os

exames de admissão ao ensino superior para as faculdades, com o objetivo que

o secundário se tornasse formador do cidadão e não do candidato ao nível

seguinte. Os resultados, no entanto, foram desastrosos. Daí as reformas de

108 José M. Carvalho (1987) emprega os termos cidadão ativo (aquele que possuía direitos civis e políticos) e cidadão simples (aquele que possuía apenas os direitos civis) para definir os dois tipos de cidadania que existiam no período. O elemento que os distinguia era justamente o acesso à educação que, por meio da alfabetização, garantia os plenos direitos. 109 O censo de 1890, considerando a população geral, apontava a cifra de 82,21% de analfabetos.

96

1915 (Carlos Maximiliano) e de 1925 (Luis Alves/Rocha Vaz). (RIBEIRO,

1987, p. 73).

Neste cenário, o Estado de São Paulo protagonizou reformas do ensino que serviram de

modelo para outras reformas estaduais110. Em 1890 realizou-se uma reforma que implementava

o ensino graduado na Escola Normal111; em 1892 elaborou-se uma reorganização das escolas

primárias, culminando na implantação dos grupos escolares112; em 1920, a Reforma Sampaio

Dória, que para garantir a universalização do ensino primário, modificou o programa e reduziu

sua duração para dois anos113. O protagonismo paulista pode ser explicado se for considerado

o impulsionamento dado

pelas ideias republicanas, pela lavoura de café, pela imigração e pela

urbanização, mas foi mais beneficiado, sobretudo, pela Constituição de 1891,

que determinou a retenção dos impostos de exportação pelos Estados, [...]

110 Trata-se do modelo paulista: “ensino seriado; classes homogêneas e reunidas em um mesmo prédio, sob uma única direção; métodos pedagógicos modernos dados a ver na Escola Modelo anexo à Escola Normal e monumentalidade dos edifícios em que a Instrução Pública se faz signo do Progresso. Viagens de estudo ao Estado de São Paulo e empréstimo de técnicos passam a ser rotina administrativa na hierarquia das providências com que os responsáveis pela Instrução Pública dos outros Estados tomam iniciativas de remodelação escolar na Primeira República.” (CARVALHO, M., 2003, p. 124) 111 A Escola Normal de São Paulo, criada e fundada em 1846, está relacionada ao Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, que atribuía às Províncias a promoção da instrução pública primária. Como o nome sugere, tem como função normalizar e produzir regras dos procedimentos didáticos, programas curriculares e condutas aceitáveis por parte dos professores ali formados. Voltada inicialmente para a formação de professores do sexo masculino, funcionando em um edifício contíguo à catedral do Largo da Sé – o curso tinha a duração de dois anos. A segunda fase da Escola Normal se deu entre os anos de 1875 e 1878, cuja seção masculina funcionaria em uma sala anexa à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e a seção feminina no Seminário da Glória. Em sua terceira fase, com a reabertura em 1880, funcionou na Rua do Tesouro, sendo transferida para um edifício na atual Rua do Carmo em 1881 – o curso passaria a ter três anos de duração. Com o advento do regime republicano, um novo projeto de Escola Normal se consubstancia, sendo delegada a direção ao dr. Antônio Caetano de Campos que, entre outras medidas, elaborou a reforma do ensino na Escola Normal, determinou a criação da Escola Modelo (em lugar das “escolas preliminares anexas”), sob os princípios do método intuitivo, e a construção de um edifício de grandes dimensões e impacto arquitetônico, na atual Praça da República. (Cf. REIS, 1994; SOUZA, 1998; MONARCHA, 1999; ROCCO, s/d; CARVALHO, 2003) 112 “Os grupos escolares [que representam maior eficiência quanto à divisão do trabalho escolar] foram se disseminando pelo Estado de São Paulo de onde o modelo se irradiou pelos demais Estados, tendo conformado a organização pedagógica da escola elementar que se encontra em vigência, atualmente, nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental. [...] Mas se a organização da escola primária na forma de grupos escolares levou a uma mais eficiente divisão do trabalho escolar na forma de grupos escolares com alunos de mesmo nível de aprendizagem, essa forma de organização conduzia, também, a mais refinados mecanismos de seleção. No fundo, era uma escola mais eficiente para o objetivo de seleção e formação das elites. A questão da educação das massas populares ainda não se colocava.” (SAVIANI, 2012, p. 30-31) 113 A Reforma Sampaio Dória “fixa a faixa etária a ser atendida em nove e dez anos e concentra os programas existentes para atender à nova situação. Imbuído da doutrina republicana e julgando o combate ao analfabetismo um grande problema político, o reformador não hesita em dar essa solução para o seguinte problema: [...] ‘Dar instrução a alguns e não a todos é profundamente injusto; é tratar com diferença aos filhos, para os quais foi assentado o lema da igualdade; é criar o privilégio da instrução; é alimentar uma classe de instruídos ao lado de uma casta de ignorantes; é inconscientemente estabelecer a inferioridade de uns sobre outros desde a meninice, e com isso fazer dominadores e servis, cidadãos ao lado de escravos, é tudo isso que não é democrático nem republicano.’ As críticas não tardaram à ‘escola primária alfabetizante’: umas pedagógicas – tempo exíguo para a aprendizagem, injustificada fixação da idade de nove anos para ingresso —, outras ‘morais’ – humilhante para São Paulo, Estado mais rico do país.” (NAGLE, 2006, p. 293-294)

97

aumentando substancialmente a receita do Estado de São Paulo. (RAZZINI,

2012, p. 102).

Para oferecer este ensino primário não restrito apenas a ensinar a ler, escrever e calcular,

mas também formar o cidadão – seus valores e saberes – era preciso formar melhor o professor

que iria pôr em prática tais transformações. A Escola Normal Caetano de Campos, cuja nova

sede fora inaugurada em 1894, correspondeu a um novo projeto de ensino e, portanto, a uma

reconfiguração da antiga Escola Normal de São Paulo. Seria ela responsável por inovações

didáticas (na Escola Modelo empregava-se o método intuitivo)114 e “difusão dos valores

republicanos e comprometida com a construção e consolidação do novo regime.” (SOUZA,

1998, p. 29)

Para fazer ver, a escola devia se dar a ver. Daí os edifícios necessariamente

majestosos, amplos e iluminados, em que tudo se dispunha em exposição

permanente. Mobiliário, material didático, trabalhos executados, atividades

discentes e docentes – tudo devia ser dado a ver de modo que a conformação

da escola aos preceitos da pedagogia moderna evidenciasse o Progresso que a

República instaurava (CARVALHO, M., 2003, p. 24).

Figura 12: Edifício da Escola Normal da Praça. Fotografia de Guilherme Gaensly, 1900

Fonte: O Estado de S. Paulo (Disponível em: <https://acervo.estadao.com.br/noticias/lugares,casa-caetano-de-

campos,11770,0.htm>. Acesso em: 31 mai. 2020)

114 Os processos intuitivos (fundamentados na pedagogia pestalozziana), empregados na “escola em que se aprende a ensinar”, era “uma arte da minúcia, da dosagem, da gradação, que se queria fundada na observação de cada aluno, na experiência de cada situação, na concatenação minuciosa dos conteúdos de ensino pacientemente isolados e colecionados no cultivo de cada faculdade da criança numa ordenação que se pretendia fundada na natureza. Seria por meio desses processos, ‘sem o descuido de um instante, que a criança, graças à sua natural atividade’, tornava-se ‘produtiva em vez de vadia, amiga da verdade e induzida a procura-la por hábito, porque tudo o que sabe deve a seu próprio esforço, muito apta para a conquista das noções, porque aperfeiçoam-lhe os sentidos e com eles a aquisição de ideias’; tornava-se também ‘hábil e fecunda, porque só se lhe deu o que ela podia receber; porque o que se lhe deu tinha a medida na sua própria psicologia, e tudo o que adquiriu estava baseado na formação do seu caráter, na justiça das coisas...’” (CAETANO de CAMPOS, Carta à Imprensa, 1890 apud CARVALHO, M., 2003, p. 28).

98

Figura 13: Escola Normal da Praça (formato de “E”, de Educação). Fotografia de Reginaldo Manente, 1986

Fonte: Acervo do jornal O Estado de S. Paulo (Disponível em:

<https://acervo.estadao.com.br/noticias/lugares,casa-caetano-de-campos,11770,0.htm>. Acesso em: 31 mai.

2020)

O deslocamento de percepção que se opera na transição de um modelo

pedagógico centrado na memorização para outro, centrado no que Caetano

de Campos chamava de “processos intuitivos”, não deve ser minimizado.

Neste deslocamento, o prédio escolar passa a ser elemento constitutivo das

novas relações pedagógicas, descentrando-as da figura do professor e do

saber que ele detém. A escola passa a estruturar-se tomando como referência

um espaço público, materialmente delimitado como edifício próprio e

apropriado a usos pedagógicos determinados. O primado da visibilidade se

impõe, determinando requisitos em termos de arquitetura escolar. Não se

tratava mais de unificar as diferenças de idade e competência na audição e

repetição, mediatizada pela memória, da palavra do mestre. Tratava-se,

agora, de pluralizar os modos de ver e agir do professor e do aluno, em

consonância com os preceitos de uma pedagogia que se propunha cultivo

das “faculdades em sua ordem natural”. Como significativamente advertia

Cesário Motta, no discurso que proferiu na inauguração do novo prédio da

Escola Normal de São Paulo, era preciso não se esquecer “de que a criança

precisa de aprender vendo.” (CARVALHO, M., 2003, p. 74).

A Escola Normal, que se destina à formação de professores primários, oferece uma

formação geral e, com o passar dos anos, amplia seu programa para matérias diretamente

ligadas ao ensino, como Metodologia, Pedagogia e Psicologia. (NAGLE, 2006) Dados do

Anuário do Ministério da Educação e Saúde Pública (1º Ano) indicam que, entre 1907 e 1929,

cerca de 15% dos alunos da Escola Normal eram do sexo masculino.

Oferecia a Escola Normal uma formação enciclopédica com forte conteúdo

de cultura geral: línguas (português, francês, latim, inglês), aritmética,

álgebra, geometria, trigonometria, caligrafia, desenho, física, química,

astronomia, geografia (geral e do Brasil), mecânica, história natural,

anatomia, fisiologia e noções de higiene, história (geral e do Brasil),

trabalhos manuais, ginástica e exercícios militares, música, escrituração

99

mercantil, exercícios de ensino, pedagogia e educação cívica. (SOUZA,

1998, p. 64).

Além de um novo modelo de Escola Normal, São Paulo também “exporta” os primeiros

grupos escolares, sendo o modelo predominante de ensino primário durante aproximadamente

sete décadas. (SOUZA, 1998) Os grupos escolares reuniam em um mesmo espaço diferentes

escolas de “primeiras letras”, dividindo os estudantes em faixas etárias correspondentes às

respectivas séries, com uma nova organização curricular e administrativa (a figura do diretor

escolar surge em 1894), empregando-se o método intuitivo. No entanto, “ainda em 1907, o tipo

comum de escola primária é a de um só professor e uma só classe, agrupando alunos de vários

níveis de adiantamento.” (RIBEIRO, 1987, p. 77)

Apesar dos esforços em modernizar os métodos e práticas de ensino, a escola primária

fundamentava-se, essencialmente, em princípios como a progressividade, a memorização e a

autoridade do professor, que fazia uso de prêmios e castigos como recurso disciplinador. O

curso, em linhas gerais, possuía

quatro anos de duração, nas zonas urbanas, e de três, na zona rural, com um

currículo formado por Leitura, Escrita, Língua Pátria, Aritmética, Geografia e

História do Brasil, Noções de Ciências Físicas e Naturais, Instrução Moral,

Trabalhos Manuais e Ginástica. (Diferencia-se da escola primária do Império

especialmente por não conter disciplinas como a História Sagrada ou Doutrina

Cristã.) A ela se segue a escola complementar, com dois anos de duração e

com um currículo basicamente formado pelas matérias da escola primária,

com um acréscimo de uma ou duas línguas estrangeiras, geralmente francês e

latim (alemão em escolas do Sul do país). Quando existia, a escola

complementar era via de acesso à escola normal. (NAGLE, 2006, p. 292).

Ao longo das duas primeiras décadas do século XX, os resultados das políticas

educacionais do período são bastante modestos. Apesar do aumento da oferta absoluta de vagas,

não houve mudança nos números relativos de analfabetos entre a população em idade escolar.

Tabela 5: Proporção de alfabetizados e de analfabetos na população brasileira de quinze anos e mais

Especificação 1900 1920

Total 9.752.111 17.557.282

Sem declaração 22.791 –

Sabem ler e escrever 3.380.451 6.155.567

Não sabem ler e escrever 6.348.869 11.401.715

% de analfabetos 65 65

Fonte: Florestan Fernandes, “Educação e sociedade no Brasil” apud RIBEIRO, 1987, p. 75

As informações do Relatório de 1922 mostram um cenário alarmante, seja pela evasão,

seja baixa oferta em alguns Estados:

100

a matrícula nas escolas primárias de todo o país era de 1.030.752 alunos –

enquanto a frequência era de 678.684 – representando apenas 29% da

população escolar; embora o Distrito Federal possuísse 41% da população

infantil sem escolas, e Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo, 43%,

44% e 56%, respectivamente, Goiás apresentava 95%, juntamente com o

Piauí, seguido de Alagoas com 94%. Mesmo tomando cuidado com o emprego

de dados estatísticos da época, a situação real não deveria ser muito diferente.

O descaso pela educação primária (educação do povo) foi um dos mais

combatidos nesse tempo; lembre-se de que essa foi uma das fontes do

entusiasmo pela educação, especialmente pela mediação das campanhas

nacionalistas. (NAGLE, 2006, p. 292).

De maneira geral, durante a Primeira República, as sucessivas reformas educacionais

empreendidas pelos governos nacional e dos diferentes estados não trouxeram grandes

mudanças, não foram suficientemente abrangentes e/ou não foram de longa permanência. Maria

Luisa S. Ribeiro (1987) atribui este fracasso à não-priorização da agenda educacional, que se

reflete no desinteresse em relação à organização escolar e na ausência de recursos para efetivar

tais projetos (a elite do setor agrícola-comercial-exportador pressionava por investimentos nesta

área), somado ao “idealismo estreito e inoperante” das autoridades e profissionais da educação,

que se valiam de modelos importados defasados e pouco adaptados às realidades locais,

havendo, na prática, ineficiência e improvisos – doutrina do “transplante cultural”.

Jorge Nagle (2009) entende, por um lado, que apesar do esforço daqueles que

depositavam sua fé na educação enquanto ferramenta para superação do atraso, elevando o

Brasil ao nível de nação civilizada, o conjunto de soluções apresentadas eram contraditórias e

descontínuas; por outro lado, como a força das oligarquias estava na ignorância do povo, a

expansão do ensino primário não lhe interessava, pois representaria ameaça à sua própria

existência. Marta M. C. Carvalho (2003) destaca o caráter excludente da escola primária que,

apesar dos discursos e dos investimentos em defesa da Instrução Pública (p.ex. Escola Normal

e Escola Modelo) para enfim inserir o Brasil no “concerto das nações” – regenerando as

populações brasileiras, “tornando-as saudáveis, disciplinadas e produtivas” (CARVALHO,

2003, p. 14) – não se pôde concluir com este projeto, posto que a sociedade mesma era

excludente.

Contraditoriamente ao propugnado pelo “entusiasmo pela educação”, a União pouco

contribuiu para multiplicar as escolas primárias, ocupando-se dos aspectos administrativos e

pedagógicos115; os Estados, por sua vez, consideravam-se incapazes de arcar com as despesas

115 Contradição que se evidencia pela extinção do Ministério da Instrução em 1892, transferindo os assuntos da educação para a pasta do Ministério da Justiça e Negócios Interiores.

101

decorrentes da ampliação destas escolas. (NAGLE, 2006) A demanda pela educação ficava,

sobretudo a cargo da iniciativa individual.

Conclui-se que a oferta do ensino público primário não atendia à maioria da população

em idade escolar, e este estava comprometido com a ordem republicana e os valores da elite

que se materializava nos conteúdos e práticas escolares. As escolas particulares ocuparam este

espaço, sejam escolas confessionais ou laicas, sendo algumas delas geridas por associações de

trabalhadores ou pela própria comunidade.

Anteriormente à fundação da Escola Moderna N.1 (1913), surgiram, no Brasil, diversas

escolas fundadas por princípios pedagógicos libertários: Escola União Operária (Porto Alegre,

1895), Escola Libertária Germinal (São Paulo, 1903), Escola Sociedade Internacional (Santos,

1904), Escola Emilio Zola (1904), Escola Elisée Reclus (Porto Alegre, 1906), Escola Germinal

(Fortaleza, 1906), Escola União Operária (Franca, 1906), Escola Noturna (Santos, 1907),

Escola Livre (Campinas, 1909), Escola Racionalista da Água Branca (São Paulo, 1909);

Escolas da Liga Operária (Sorocaba, 1911), Escola Operária 1º de Maio (Rio de Janeiro, 1912),

Escola da União Operária (Franca, 1912), Escola Moderna (Petrópolis, 1913) entre outras. (Cf.

LUIZETTO, 1984; RODRIGUES, 1992; ROMANI, 2006)

102

3.3 A Escola Moderna N.1

A felicidade não está nessas tantas coisas que constituem a aspiração

dos homens das cidades [...]. A felicidade resulta mais da prática do

amor e da justiça do que das conquistas de posições elevadas, porque

só é elevado o que nasce do amor e da justiça.

(João Penteado. Antídio)116

A recente produção acadêmica sobre a Escola Moderna N.1117 apresenta importantes

reflexões, análises complementares, diferentes abordagens e leituras acerca da relevância que

esta instituição passou a ter para aqueles que se enveredam pela difícil trilha da educação

libertária enquanto objeto da cultura, de ação social e mesmo de uma forma de resistência e

luta. Algumas delas serão tratadas aqui de forma a entender as muitas questões que envolvem

a recepção das ideias libertárias no Brasil, os esforços de anarquistas em promover escolas

libertárias, o histórico da Escola Moderna N.1, bem como as práticas educativas ali

desenvolvidas.

Como foi tratado anteriormente, a cidade de São Paulo da Primeira República foi palco

do surto urbano e industrial e, em decorrência das dificuldades econômicas dos anos 1913, 1917

e seguintes, viu estourar grandes greves promovidas por um operariado combativo, em grande

medida organizado pelo sindicalismo revolucionário. A influência anarquista neste meio,

percebida em São Paulo desde, pelo menos, 1893, foi crescendo nos primeiros anos do século

XX. Importante ferramenta de propaganda destas ideias, a imprensa operária teve grande

penetração, destacando-se os periódicos A Lanterna (1901-1904; 1909-1916; 1933-1953),

Germinal (1902-1913), O Amigo do Povo (1902-1904), La Battaglia (1904-1913), A Terra

Livre (1905-1910), A Voz do Trabalhador (1908-1915), A Plebe (1917-1919).

116 Antídio – adaptação d’As aventuras de Nono (Jean Grave) – narra a história de um jovem de origem sertaneja, “a mais feliz criatura desse mundo”, bom e dedicado ao trabalho e aos estudos, que decide migrar para o Rio de Janeiro para “sentir o influxo direto da civilização e as belezas estupendas do progresso”. Ao se deparar com palácios, automóveis, padres, soldados, hospício, “casa de lenocínio” e ao compreender por experiência própria os males dessa “sociedade [que] vive de monstruosas mentiras”, não suporta mais “a hipocrisia desta civilização, que além de infame, é assassina, provocando-nos sentimento de rebeldia revolucionária”, e decide partir de volta para sua terra natal (SANTOS, 2009). 117 Destaco Calsavara (2004), Santos (2009), Chahin (2013), Castro (2014), Santos (2014).

103

Nestes jornais, excertos de livros, artigos, análises e comentários de grandes expoentes

do pensamento anarquista brasileiro e europeu estavam presentes118; publicavam-se contos,

romances, anedotas e sátiras; noticiavam-se ações do movimento operário internacional e

faziam-se críticas a governos, ao capital, à Igreja, às guerras; anunciavam-se greves, boicotes,

livros, encontros, espetáculos, implantação de escolas libertárias – possuíam, portanto, papel

educativo, informativo, de conscientização política e engajamento na luta operária. (Cf.

OLIVEIRA, 2008; CALSAVARA, 2012; MARCONI, 2015)

O tema da formação do trabalhador e da educação das novas gerações, tão caro aos

anarquistas, foi debatido no Congresso Operário Brasileiro de 1906 (I COB), no qual se fez

críticas ao ensino oficial (inculcando valores burgueses, contrários à emancipação operária) e

se defendeu a criação de escolas fundadas por sindicatos ou pelas federações sindicais.

(CASTRO, 2014) De acordo com essa perspectiva, a educação, numa sociedade

capitalista/liberal, estimulava a competitividade e o individualismo, além das muitas formas de

dominação e a negação da autodeterminação dos indivíduos. O projeto social anarquista previa

a necessidade de uma educação libertária, entendida como instrumento de emancipação

individual, de formação moral, de conscientização social e política, de exercício da liberdade,

da solidariedade e da autogestão, antecipando, em alguma medida, a sociedade libertária do

porvir. Segundo Clovis N. Kassick,

O movimento libertário influenciado pelas ideias pedagógicas que chegavam

da Europa, assimilou os pressupostos de duas vertentes pedagógicas: o

ensino integral - sistematizado e aplicado por Paul ROBIN, no Orfanato de

Cempuis; e o ensino racional – organizado e difundido por Ferrer, fundador

da Escola Moderna de Barcelona/Espanha. (KASSICK, 2008, p. 139 –

grifos do autor).

Nas resoluções do Congresso Operário de 1913 (II COB), há referências mais claras

para que se adotassem o racionalismo pedagógico ferrerista (método racional e científico)

nestas escolas (CASTRO, 2014). Entre os anos de 1894 e 1922, identificou-se que cinquenta e

três escolas anarquistas estiveram em funcionamento no Brasil, estando a maioria delas ligada

ao movimento operário. Deste universo, doze se autodenominavam “escolas modernas”,

118 Dentre os pensadores anarquistas europeus, nota-se a recorrência de textos ou referências a Mikhail Bakunin, Elisée Reclus, Errico Malatesta, Charles Malato, Piotr Kropotkin, Carlo Cafiero. Destacam-se Benjamim Motta, Oreste Rigoni (italiano), Edgard Leuenroth, José Oiticica, Everardo Dias, Florentino de Carvalho (espanhol), Manuel Moscoso (espanhol), Astrojildo Pereira, Fábio Luz, Neno Vasco (português), Adolfo lima (português), entre os pensadores/militantes anarquistas que atuavam no Brasil. (cf. OLIVEIRA, 2008; CALSAVARA, 2012; MARCONI, 2015).

104

buscando seguir os princípios do racionalismo pedagógico proposto por Ferrer. (CORRÊA,

2006)

Maria Oly Pey (2000), ao tratar da difusão e dos impactos das ideias anarquistas no

Brasil, indica que as práticas destas escolas eram radicalmente diferentes daquelas promovidas

pelo ensino regular tradicional.

Onde e quando a religião funcionasse como exercício de poder, de

submetimento, a pedagogia anarquista foi anticlerical. Onde e quando a

organização política e a representação parlamentar constituíssem mais uma

armadilha do abuso da elite jurídico-parlamentar no poder, a pedagogia

anarquista foi antiestatal. Onde e quando o trabalho representasse a exploração

das energias de muitos em favor de privilégios para poucos, a pedagogia

anarquista rebelou-se contra o trabalho assalariado. Onde e quando uma

determinada moral fizesse funcionar esquemas repressivos das vontades

soberanas, a pedagogia anarquista foi amoral. Em síntese: a pedagogia

anarquista tem mantido suas balizas num ideário não hierarquizante. (PEY,

2000, p. 08).

Dentre os jornais mais influentes no meio operário, destaca-se A Lanterna, que em sua

segunda fase (1909-1916), sob a direção de Edgard Leuenroth e com a colaboração de

Benjamim Motta, possuía teor francamente anticlerical119, elemento que poderia agregar entre

seus membros pessoas de diferentes orientações e posicionamentos: espíritas, protestantes,

maçons, livres-pensadores, socialistas e libertários.

A Lanterna buscava combater o “clericalismo e sua influência na sociedade, seus artigos

estiveram mais voltados a ataques às figuras dos padres e à divulgação de crimes sexuais

cometidos por clérigos” (OLIVEIRA, 2008, p. 10) atraindo, por sua vez, leitores de diferentes

opiniões. Um dos casos mais explorados pelo jornal referia-se ao desaparecimento da órfã

Idalina Stamato, ocorrido no orfanato Cristóvão Colombo, no Ipiranga, cujas investigações

viriam a apontar para estupro seguido de assassinato e ocultação de cadáver – crimes cometidos

em fevereiro de 1908. (MARCONI, 2015) Tal acontecimento esteve presente em diversos

números do jornal entre 1909 e 1914.

119 De acordo com um editorial, o anticlericalismo consiste em “a) Luta contra os padres, para mostrar as contradições da sua vida com a sua doutrina, o seu sacerdócio como profissão, tendo o interesse material por base [...]; b) Discussão filosófica e histórica dos dogmas e mitos, isto é, o anti-religiosismo, luta contra a base teórica da Igreja; c) Luta contra a influência política da Igreja – pela acção directa, pela propaganda extra parlamentar; d) Propaganda para mostrar o poder econômico da Igreja, a Igreja como empresa, como auxiliar da exploração capitalista, como divisora do proletariado, fautora de crumirismo” (A Lanterna. São Paulo, 08 de março de 1913. p. 01).

105

Figura 14: A Sagrada Família. In: A Lanterna. São Paulo, 12 de fevereiro de 1910

Fonte: HDFBN

Além dos conteúdos anticlericais, principal temática d’A Lanterna, havia artigos com

indicações de leitura, resenhas de livros, anedotas, publicação de obras em capítulos, incitações

a greves e boicotes. No primeiro número da segunda fase de publicação do periódico, o artigo

intitulado “Giordano Bruno em pleno século XX” apresenta protestos contra o fuzilamento de

Ferrer, ocorrido quatro dias antes; o rei Afonso XIII é chamado de “assassino”, “degenerado”

e “impotente nato”; entre as muitas críticas à Igreja, compara os perseguidores católicos a

Torquemada (famoso inquisidor espanhol). Uma breve biografia de Ferrer, seguida do histórico

da formação da Escola Moderna de Barcelona são apresentados ao leitor. Por fim, há uma nota

convocando para comício público no Largo São Francisco em defesa de Ferrer. “Nas edições

seguintes, o educador barcelonês é sempre lembrado. São notícias sobre sua atuação, tradução

de trechos de suas obras e discussões/denúncias sobre a prisão/tortura/morte de homens que

empreenderam atividades como as de Ferrer.” (MARCONI, 2015, p. 132)

106

Figura 15: O carrasco-mór de Ferrer (rei Afonso XIII). In: A Lanterna. São Paulo, 17 de outubro de 1909

Fonte: HDFBN

O jornal empregava linguagem carregada de adjetivos fortes, numa lógica discursiva

dicotômica, exaltando a luta dos libertários, combatendo os valores e ações de seus

antagonistas. A Igreja era recorrentemente detratada: “Os papas e a Egreja nunca foram

contrários á guerra e aos morticinios”120; “[...] a Igreja nada fez para o progresso dos povos por

ela dominados. [...] Ela decididamente foi e será enquanto perdurar a maior inimiga do

homem”121. A memória de Ferrer, em contrapartida, era sempre exaltada como “o grande martyr

da educação popular [...] victima do fanatismo inquisitorial da canalha jesuítica”122; “Ferrer

meteu ombros á generosa tarefa de, arcando com ódios e rancores, sussitados pela sua ardente

fé num futuro melhor, [...] se dedicar á obra racional, redentora e libertadora”123.

No terceiro número do jornal, a matéria “A Renovação da Escola” apresenta um texto

do próprio Ferrer:

[...] Em face disto, os governos quiseram a instrução, quiseram uma

organização cada vez mais completa da escola, não porque esperam pela

educação renovar a sociedade, mas sim porque precisam de indivíduos, de

operários, de instrumentos humanos de trabalho mais aperfeiçoados para

fazerem frutificar as empresas industriais e os capitais nelas empenhados. E

viram-se os mais reacionários governos seguir este movimento. (A Lanterna.

São Paulo, 30 de outubro de 1909, p. 02).

120 A Lanterna. São Paulo, 19 de setembro de 1914. p. 01 (Fonte: HDFBN). 121 A Lanterna. São Paulo, 07 de novembro de 1914. p. 01 (Fonte: HDFBN). 122 A Lanterna. São Paulo, 17 de outubro de 1909. p. 01 (Fonte: HDFBN). 123 A Lanterna. São Paulo, 07 de novembro de 1914. p. 02 (Fonte: HDFBN).

107

A Escola Moderna de Barcelona representava os ideais educacionais libertários que

estavam sendo amplamente desenvolvidos em dezenas de escolas libertárias na Europa e na

América. Neste modelo escolar, destaca-se o ensino racional, antiestatal e o anticlerical por

definição, elemento que poderia atrair a atenção (e possivelmente matrículas) daqueles que

sabiam dos limites do ensino público e religioso, além da formação moral sob princípios

libertários. Os editores d’A Lanterna procuram manter a imagem de Ferrer atrelada à ideia de

livre-pensador comprometido com uma educação emancipadora e libertadora, cujas ideias

avançadas e revolucionárias para o contexto espanhol, o que teria gerado a reação da realeza,

das elites e do clero espanhol, sendo por isso condenado e executado.

Ao longo do ano de 1910, A Lanterna publicou diversos artigos sobre Ferrer e sobre o

processo para implementação da Escola Moderna N.1, além de divulgar os cursos que seriam

oferecidos pela instituição, realizando assim uma “espécie de ‘prestação de contas’ àqueles que

doam recursos para a fundação da escola.” (MARCONI, 2015, p. 133) Diversos artigos

apresentavam a futura Escola Moderna de São Paulo como continuadora da “obra do grande

Ferrer”, que poderia ofertar ensino integral e profissional.

O jornal Gazeta do Povo, fundado na cidade de São Paulo em 1910, teve entre seus

editores João Ribeiro D´Ávila, Arthur Vieira Gomes dos Santos e o cônego Manfredo Leite.

Desde seus primeiros números, dedicou-se a publicar duras críticas à maçonaria (que “apodera-

se do governo das nações, adulando os chefes de Estado e os ministros e exaggerando a sua

autoridade”124; “pondo em pratica o naturalismo nas suas principaes fórmas de racionalismo,

sensualismo e cesarismo, tem conseguido confundir e transtornar a mente de muitos as ideias,

até ao ponto de fazer-lhes desconhecer oou duvidar da existência de Deus”125) e ao espiritismo

(“o espiritismo é máo [...] porque é uma doutrina herética, de funestissimas consequencias. [...]

[conduz] fatalmente á incredulidade, á loucura, ao suicidio e ás obsessões e até à

immoralidade”126; “Deus permitir que uma alma boa venha ao mundo, a chamado de um

qualquer curioso, para ensinar immoralidades, cousas contra a fé, doutrinas ridículas, e para

praticar acções deshonestas!”127).

O crescimento da influência anarquista no meio operário paulistano gerava temor entre

os católicos conservadores. A possibilidade da fundação de escolas modernas em São Paulo fez

com que o jornal Gazeta do Povo atacasse insistentemente o ensino laico (cuja finalidade seria

124 Gazeta do Povo. São Paulo, 26 de fevereiro de 1910, p. 02 (Fonte: APESP). 125 Gazeta do Povo. São Paulo, 30 de abril de 1910, p. 02 (Fonte: APESP). 126 Gazeta do Povo. São Paulo, 26 de fevereiro de 1910, p. 01 (Fonte: APESP). 127 Gazeta do Povo. São Paulo, 15 de agosto de 1910, p. 01 (Fonte: APESP).

108

“banir da intelligencia das crianças as ideias de Deus e de religião [...] Não vêm que sem religião

o ensino é uma mentira”128, “ ) e a imagem de Ferrer (“para quem o casamento era uma

prostituição, a pátria uma ignominia, a religião um amontoado de idéas nocivas e inúteis, a

bandeira um farrapo sujo erguido na ponta de um pau, o exercito uma escola de imoralidade e

de crime”129).

Segue uma charge ridicularizando a Escola Moderna:

Figura 16: “Escola Moderna” Illustrada. In: Gazeta do Povo. São Paulo, 26 de fevereiro de 1910

Fonte: APESP

As charges da Gazeta do Povo, mesmo não sendo tão recorrentes se comparadas às d’A

Lanterna, ainda assim atendem a seu propósito de criar uma imagem negativa e estereotipada

dos anarquistas, maçons e espíritas, difundindo uma visão distorcida e caluniosa destes grupos.

No quadro a seguir, destacam-se alguns dos recorrentes “embates” entre os jornais A

Lanterna e a Gazeta do Povo, respectivamente.

128 Gazeta do Povo. São Paulo, 19 de fevereiro de 1910, p. 01 (Fonte: APESP). 129 Gazeta do Povo. São Paulo, 04 de junho de 1910, p. 01 (Fonte: APESP).

109

Quadro 5: Embates entre jornais

Sobre o caso Idalina Stamato

Não resta a menor duvida – os padres do Orfanato

Cristóvão Colombo commetteram com a órfã

Idalina Stamato, ali internada, um desses crimes

infames a que são arrastados pela sua condição de

celibatários e pela vida de ociosidade que levam.

Sim, um crime foi commettido e Idalina ocultada,

ou quem sabe mesmo se não a assassinaram para

que não se pudesse apresentar a prova do

delicto?130

Domandiamo poi sia chamato il Revmo. Canonico

Nunzio Greco davanti le autoritá ecclesiastiche e

civili per dare spiegazioni di questa frase

pronunziata ad un Padre de dell’Orfanotrofio

quando furitirata la Idalina: Idalina non troverano

piú i Padri.

Domandiamo che venga in polizia Salvatore Greco,

nipote del canonico, la cui moglie é quella Maria

Luisa, he ritiró l’Idalina.131

Sobre os aspectos morais da vida de Ferrer

[...] victima do maior crime do século XX [...] Então

Ferrer, o esposo honesto e dedicado, o pai

extremamente carinhoso, o evangelisador devotado

é violador de sepulturas e de mulheres indefesas?132

Ferrer não abandonou sua mulher: foi antes

abandonado por ella, que o atraiçoou varias vezes

[...] Ferrer nunca abandonou as filhas e apesar de

não ser rico (pois o dinheiro que herdado de

Meunier não lhe pertencia, mas á Escola) sempre

as auxiliou.133

[...] [Carmelita Ferrer] foi abandonada por seu

pae, e, emquanto ele vivia na abundancia e no

prazer, a pobre filha viu-se obrigada a entrar num

theatro para não morrer de fome. [...] uma das

maiores victimas de Ferrer, do homem que

ensinava que o casamento é uma prostituição e o

amor da patria uma ignominia. [...] nunca se

lembrou de sua mulher legitima, mãe de suas filhas,

nem destas próprias, e, em lucta com a miséria as

deixou.134

Sobre a fundação da Escola Moderna em São Paulo

A Escola Moderna propõi-se libertar a criança do

progressivo envenenamento moral que por meio de

um ensino baseado no mysticismo e na bajulação

política, lhe communica hoje a escola religiosa ou

do governo; – provocar junto com o

desenvolvimento da intelligencia a formação do

caracter, apoiando toda a concepção moral sobre

a lei de solidariedade; fazer do mestre um

vulgarizador das verdades adquiridas e livra-lo das

peias das congregações ou do Estado, para que sem

medo e sem restricções lhe seja possive (sic)

ensinar honestamente, não falseando a historia e

não escondendo as descobertas scientificas.135

[...] o patife canonizado pela maçonaria, a

perpetuar-lhe a odienta memoria, terá em breve

uma estatua em Paris e, em S. Paulo, a escola

moderna, continuação da sua obra de demolição da

ordem social. Escola que será um ninho de

anarchistas, de desvairados irresponsáveis, para

quem a bandeira é um farrapo sujo, a patria uma

ficção monstruosa [...] a religião uma cousa inutil

e nociva. Esse será o ensino ministrado na tal

escuela moderna em S. Paulo que já tem o seu

ferrerzinho, o Oreste Ristori.136

Fontes: A Lanterna e A Gazeta do Povo

De acordo com Fernando Peres (2010, p. 89), “enquanto os católicos, em pleno século

XX, recomendavam deitar ao fogo os textos dos acatólicos, A Lanterna fomentava a leitura e a

discussão das obras vinculadas às mais diferentes orientações filosóficas e doutrinárias” e,

como se pode observar, a educação tornou-se um campo de disputa entre setores mais

conservadores (ou reacionários) e os libertários. Faltava a estes viabilizar escolas que pudessem

130 A Lanterna. São Paulo, 10 de setembro de 1910. p. 02 (Fonte: HDFBN). 131 Tradução livre: “Pedimos então que seja chamado o Revmo. canônico Nunzio Greco perante as autoridades eclesiásticas e civis para dar explicações sobre essa sentença pronunciada a um pai do orfanato quando ele roubou a Idalina: Idalina não encontrará mais os pais. Pedimos que Salvatore Greco, neto do cânone, cuja esposa é essa Maria Luisa, que retirou a Idalina, vá à polícia”. Gazeta do Povo. São Paulo, 31 de março de 1911, p. 01 (Fonte: APESP). 132 A Lanterna. São Paulo, 06 de novembro de 1909. p. 01-02 (Fonte: HDFBN). 133 A Lanterna. São Paulo, 11 de junho de 1910. p. 01 (Fonte: HDFBN). 134 Gazeta do Povo. São Paulo, 04 de junho de 1910, p. 01(Fonte: APESP). 135 A Lanterna. São Paulo, 27 de novembro de 1909, p. 01 (Fonte: HDFBN). 136 Gazeta do Povo. São Paulo, 26 de fevereiro de 1910, p. 01 (Fonte: APESP).

110

colocar em prática os princípios do racionalismo pedagógico que Ferrer aplicou em sua escola

e que foram amplamente discutidos e disseminados nos anos que sucederam a sua morte. A

Escola Moderna N.1, que funcionou em São Paulo entre os anos de 1913 e 1919, seria a

materialização desse projeto, tornando-se a escola libertária brasileira de maior destaque e

longevidade (LEUTPRECHT, 2018). Ela foi

criada e gerida por um comitê composto por dirigentes e militantes do

movimento operário e também por representantes de outros segmentos da

sociedade, como profissionais liberais e maçons. Os anarquistas exerceram

hegemonia sobre o grupo. [...] com ideias simples, porém contundentes, os

libertários atacaram os fundamentos da ideologia dominante, criticaram a

educação fornecida pelo Estado e pela Igreja. Para os libertários, a luta pela

instrução se inseria no contexto das demais batalhas que se desenrolavam no

sentido de recuperar instrumentos de atuação social historicamente

monopolizados pelas classes dirigentes. Insistiam na necessidade da educação

como instrumento de atuação social. (CALSAVARA, 2004, p. 139 e 152).

O Comitê137 Pró-Escola Moderna, composto por dirigentes e militantes do movimento

operário, anarquistas, profissionais liberais e maçons, foi criado no contexto dos protestos em

decorrência do fuzilamento de Ferrer ocorrido em 13/10/1909. “Norteados pelo princípio da

autogestão e do mutualismo” (CASTRO, 2014, p. 115) seu objetivo era arrecadar recursos para

divulgar o ensino racionalista, bem como fundar escolas, tendo como modelo a Escola Moderna

de Barcelona138. Era possível acompanhar os esforços do comitê (lista de subscrição, festas,

assembleias, conferências e comícios) em diversas cidades pelos jornais A Lanterna e Terra

Livre. (SANTOS, 2009)

Os informes e anúncios relativos aos pedidos de donativos para a realização

da obra e à organização do Comitê se direcionavam a livres-pensadores,

simpatizantes pela causa libertária e partidários em geral de um projeto de

escolarização fundamentado na emancipação intelectual como valor essencial,

afastando a educação de qualquer tipo de dogma ou inculcamento de ideias –

de origem religiosa ou política (CHAHIN, 2013, p. 43).

As referências sobre as atividades do Comitê diminuíram nas páginas d’A Lanterna

entre os anos de 1911 e 1912, intervalo no qual continuou o processo de implantação da escola,

137 A prática de organizar lista de subscrições em solidariedade a determinada causa é observada, por exemplo, no jornal O Amigo do Povo, edição de 27 de dezembro de 1903, no qual busca arrecadar recursos para viabilizar o funcionamento do próprio jornal (Fonte: APESP); no jornal A Terra Livre, edição de 07 de fevereiro de 1906, em prol dos revolucionários russos, cujo destinatário direto seria Piotr Kropotkin. 138 “Em São Paulo houve duas Escolas Modernas, cujo processo de implantação ocorreu a partir do comitê; são elas a Escola Moderna nº. 1, no Belenzinho, dirigida por João Penteado e a Escola Moderna nº. 2, no Brás, dirigida por Florentino de Carvalho e posteriormente Adelino de Pinho. Ambas foram fundadas entre 1912 e 1913 e funcionaram até 1919, seguindo as mesmas propostas. Outras Escolas Modernas foram sendo instaladas por iniciativa deste comitê, como a Escola Moderna de São Caetano, fundada em dezembro de 1918, uma em Bauru e outra em Cândido Rodrigues.” (SANTOS, 2009, p. 120-121)

111

seja pela procura por professores “idôneos”, seja pela arrecadação de recursos necessários139

para a instalação em prédio adequado, material escolar apropriado, bem como obtenção de

licença para seu funcionamento. (LUIZETTO, 1984) João de Camargo Penteado, militante

ativo de jornais anarquistas como A Lanterna, A Plebe, A Rebelião, A Terra Livre, A Vida e

Guerra Social (CASTRO, 2014) apresenta suas convicções acerca do papel que a educação

poderia desempenhar na construção da sociedade libertária:

O edifício arquitetado em nossa imaginação precisa de alicerces firmes, muito

firmes, lançados sobre a rocha, para que não ceda ao embate das tempestades

reacionárias, nem aconteça ruir por terra esmagando sob seus escombros a

milhões de obreiros que debalde amaldiçoarão a inércia dos próprios

trabalhos, vítimas irremediáveis de uma condenável imprevidência. Mas

companheiros, sabeis em que devem ser lançados tais alicerces? Na

consciência. Sabeis de que alicerce vos falo? A instrução. E o edifício? O

comunismo social. Aquela nos brada: escola moderna. E este nos traduz:

revolução. (João Penteado. Texto publicado no jornal anarquista A Guerra

Social. Rio de Janeiro, 03 de abril de 1912 apud SANTOS, 2009, p. 118).

Dentre tantos colaboradores, João Penteado parece ter sido decisivo no processo final

de efetivação da escola. Em maio de 1913, sob sua direção, é anunciado o início das atividades

da “Escola Livre”, que formará as bases da futura Escola Moderna N.1:

Figura 17: A Lanterna. São Paulo, 31 de maio de 1913

Fonte: HDFBN

139 Segundo o jornal A Lanterna (edição de 28 de janeiro de 1911), estimava-se o valor de 80:000$ para a fundação da Escola Moderna.

112

De acordo com o anúncio acima, na “Escola Livre” o que se deve observar não seriam

suas instalações (muito modestas se comparadas à monumentalidade dos grupos escolares, por

exemplo), mas sua proposta libertária, “obedecendo aos principios do ensino racionalista”, em

contraste com as “escolas clericais e do Estado [nas quais] as crianças [...] saem com todas as

suas faculdades atacadas pelo vírus terrivel da peste religiosa e pelos não menos maleficos

preconceitos militaristas-patrioticos que provocam os sentimentos belicosos de odios entre os

homens”.

Pela primeira vez, faz-se menção ao diretor da Escola Livre/Escola Moderna N.1, João

Camargo Penteado140. Nascido em Jaú, cidade no centro da economia cafeeira no interior

paulista, no ano de 1877, em uma família da classe trabalhadora, João Penteado frequentou a

escola primária masculina da cidade, que, como muitas escolas públicas primárias do período,

era carente dos materiais necessários para o ensino. Reconhecia que estudar era um “suplício”

em decorrência da rigorosa disciplina (frequentes castigos) e da metodologia antiquada. Em

decorrência do falecimento de seu pai, quando João Penteado tinha 14 anos, passou a assumir

parte das responsabilidades familiares, trabalhando em uma tipografia – o que o aproximou do

“universo letrado” da imprensa local.

As figuras de seu professor primário Caetano Lourenço de Camargo (seja por sua

cultura, seja por sua adesão ao espiritismo) e do autodidata, guarda-livros prático e escrivão

Paulino de Oliveira Maciel (proprietário de uma biblioteca, organizador de reuniões espíritas)

exerceram alguma influência sob João Penteado em sua mocidade, seja em sua formação

intelectual, seja moral/espiritual141.

Desde então o espiritismo142 fez parte de toda trajetória de João Penteado, que

frequentou os círculos de sociabilidade espírita de Jaú e São Paulo. Na visão espírita, cujo

140 Os elementos biográficos de João Camargo Penteado foram extraídos da pesquisa de Fernando Peres (2010). 141 “[...] os círculos espíritas mantinham então um diálogo com as três mais notáveis manifestações destas ideias de origem europeia: o positivismo, o cientificismo e o catolicismo. [...] os espíritas aproximaram-se dos positivistas através dos maçons, defendendo causas abolicionistas e republicanas; dialogaram com o cientificismo através dos embates com a classe médica brasileira; e conflitaram com o catolicismo de orientação ultramontana.” (PERES, 2010, p. 49-50) 142 Manifestações dos espíritos, seja por meio de “mesas volantes”, fotografias, aparelhos de rádio e telégrafo, seja pelos médiuns (psicografia, psicofonia) geraram grande interesse de parte da sociedade letrada europeia e estadunidense na segunda metade do século XIX – dentre eles, destacam-se Thomas Edison, Robert Owen, Alfred Russel Wallace, Arthur Conan Doyle, Victor Hugo, Alexandre Dumas e Camille Flammarion. O mais importante estudioso dos fenômenos espíritas foi o pedagogo pestalozziano e autor de livros pedagógicos e didáticos Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), que em 1854 adotaria o nome de Allan Kardec. Ao comparar diversas comunicações e diálogos mediúnicos, Kardec buscava compreender a essência de tais mensagens e elaborar as leis da “ciência espírita”. Fruto do trabalho entre Kardec e os espíritos surgiram as obras básicas do espiritismo: O livro dos espíritos (1857), O livro dos médiuns (1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868). O espiritismo kardecista, por muitos entendido como ciência, filosofia, doutrina

113

princípio elementar é o da reencarnação, “A Humanidade progride através dos indivíduos que

se melhoram pouco a pouco e se esclarecem; quando estes se tornam numerosos, tomam a

dianteira e arrastam os outros” (KARDEC, 1991, p. 296). Assim, cada indivíduo/espírito está

em evolução e seu progresso depende dos seus esforços diante dos estudos, da busca pelo

aperfeiçoamento moral e das escolhas que faz diante das provas e expiações. Do mandamento

“Amar a Deus de toda a tua alma e a teu próximo como a ti mesmo” decorre a lei de caridade,

um dos maiores imperativos da doutrina espírita – “Fora da caridade não há salvação”143

(KARDEC, 2013, Cap. XV) – condição absoluta da felicidade futura, dos esforços coletivos

para o progresso da humanidade. É por meio das associações caritativas, de cooperativas de

trabalhadores, das ligas de ensino laico que muitas das obras assistenciais são realizadas.

Segundo Fernando Peres (2010),

“Rivail [Kardec] era depositário do pensamento do século XIX, baseado nas

ideias de tolerância, fraternidade e universalidade; nos ideias republicanos e

anticlericais da burguesia liberal; no conhecimento científico; e nas ideias

progressistas do século XVIII, que buscavam mudar o mundo apoiando-se

sobre as descobertas técnicas e sobre a educação, tendo como base a razão.”

(PERES, 2010, p. 58).

No ano de 1907, João Penteado assistiu à conferência “Cristianismo perante a história e

a sociologia”, cuja temática versava sobre reforma social e anticlericalismo, apresentada por

Oreste Ristori – este episódio poderia ter instigado em Penteado o interesse pelas teses

libertárias. (PERES, 2010)

O autodidata João Penteado, mesmo sem ter frequentado o curso do magistério144, passa

a lecionar na escola primária do distrito de Bica da Pedra, em Jaú, a partir de março de 1908,

sem maiores registros sobre esta experiência. Algum tempo depois opta por sair da cidade, fato

que pode ter sido motivado pelas dificuldades enfrentadas enquanto professor não diplomado,

e/ou religião, tem como pilares a reencarnação (sob o princípio da evolução), a pluralidade dos mundos habitáveis pelos espíritos, a lei de causa e efeito, a lei do progresso espiritual-moral-intelectual. A questão social era encarada como algo natural, que não deveria ser resolvida por meio de soluções violentas (revoluções), mas como parte do processo de provas e expiações que os indivíduos deveriam passar; contudo, a caridade era entendida como um dever moral. As primeiras traduções das obras de Kardec no Brasil foram realizadas pela editora francesa Garnier, sediada no Rio de Janeiro, na década de 1870, circulando inicialmente nos meios mais intelectualizados e socialmente elevados. (DEL PRIORE, 2014) 143 Essa máxima contradiz a ideia comumente disseminada nos meios católicos de que “Fora da Igreja não há salvação”, posto que restringe a uma fé em especial e seus dogmas particulares. Segundo essa máxima, de nada valeria frequentar, fazer parte da comunidade e seguir formalmente os preceitos religiosos se não conduzir sua vida conforme os princípios de caridade e humildade. 144 Em decorrência do grande aumento da demanda, sobretudo em escolas isoladas do interior paulista, professores não diplomados exerciam o cargo mediante nomeação ou concurso público, como foi o caso de João Penteado. (PERES, 2010, p. 65)

114

pelo preconceito religioso por parte de setores tradicionais da cidade, ou mesmo por vontade

própria, interessado em ampliar horizontes. Em 1911, recém-chegado em São Paulo, passa a

lecionar tipografia na Associação Feminina Beneficente e Instrutiva de São Paulo (fundada pela

educadora espírita Anália Franco) e na seção masculina do Instituto Natalício de Jesus; torna-

se redator e colaborador das revistas espíritas Nova Revelação e Natalício de Jesus. Uma das

suas contribuições foi um artigo sobre o dia de finados:

Elles [os espíritos] são mais livres que nós porque mais facilmente podem

acompanhar e proteger áquelles a quem amam sobre a terra. [...] Os mortos

estão manos nos campos santos que junto das pessoas a quem estiveram

ligados por laços de parentesco, sympathia, amor ou amizade. [...] para as

nossas dores, ha um consolo: “a morte não é senão a mudança de modo de

existir”. Por isso, não pensemos que ella seja o epilogo da existencia, mas sim

um prolongamento, porque “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir

sempre, tal é a lei.” (PENTEADO, João. 2 de Novembro. In: Natalício de Jesus

São Paulo, setembro e outubro de 1911)145.

Em outra contribuição, João Penteado procura dar pistas de como o espiritismo e o

anarquismo não são inconciliáveis, tampouco deveriam ser temidos por aqueles que os

desconhecem. No conto Antídio, o protagonista passeia pelo Rio de Janeiro e, pela primeira

vez, ouve falar em espiritismo. O rapaz que o acompanha diz se tratar de uma “heresia

detestável [...] não acredita no céu, no inferno, nem no purgatório, nem no valor das missas, da

confissão, das comunhões [...] pregam o transformismo, a reencarnação, a pluralidade dos

mundos e a comunicação dos espíritos”. Antídio é informado de que os anarquistas são

“desordeiros terríveis [...] atentam contra a vida dos reis, presidentes da república. Eles não

querem o governo e negam a obediência às leis constituídas pelos homens”. Porém, ao conviver

com um espírita, este “lhe mostrara sentimento de respeito a Deus e ao próximo”, e o anarquista,

“conquanto não acreditasse senão na natureza, não o deixava de maravilhar, também com seu

sentimentalismo revolucionário que até certo ponto lhe parecia tão justo e admirável” – ambos

não eram perigosos, nem o espírita lhe parecera “louco”, nem o anarquista “assassino”.

Concluiu que a loucura e o crime eram provocados pela miséria e ignorância.146 Luciana Santos

(2009) e Fernando Peres (2010) destacam o aspecto autobiográfico de João Penteado projetado

em Antídio, que, em certo momento, chega a citar os nomes de Tolstói e Kardec como autores

de grande impacto na formação moral da personagem147.

145 Fonte: Acervo João Penteado – CME/FEUSP. 146 Natalício de Jesus. Dezembro de 1911 (Fonte: Acervo João Penteado – CME/FEUSP). 147 “[...] Tolstói pode muito bem representar uma área de intersecção entre as faces anarquista e espírita de João Penteado. Afinal, aquele escritor russo havia criado uma escola para camponeses em Iasnaia Poliana e, sem romper com a crença cristã (apenas com a Igreja ortodoxa), aproximara-se dos anarquistas pelas proposições em defesa da escola laica e popular, desde que essa não fosse apropriada pelo Estado.” (PERES, 2010, p. 86)

115

Apesar da forma diferente com que atuam e vislumbram a transformação das

consciências e da humanidade, observa-se similitudes entre o espiritismo (pensamento de

Kardec e do movimento espírita brasileiro) com alguns dos princípios do anarquismo da

corrente comunista148. Cada um, à sua maneira, defendia justiça social, igualdade,

cooperativismo, mutualismo, internacionalismo, pacifismo, racionalismo, liberdade de

pensamento, esclarecimento pela educação, conduta moral exemplar, anticlericalismo.

Assim, ao se inserir nos círculos anarquistas, João Penteado não precisou abandonar

suas convicções morais espíritas; a forma com que se apropriou das teses libertárias e dos

ensinamentos kardecistas tornava-nos compatíveis. Sua experiência docente, seu espírito

libertário, suas contribuições para a imprensa operária e sua militância pela educação seriam as

qualidades que o Comitê Pró-Escola Moderna buscava encontrar naquele que conduziria a

Escola Moderna N.1. (LUIZETTO, 1986)

Não há por certo, o que de modo melhor e mais eficaz que a instrução possa

servir para o alevantamento moral e intelectual de um povo. [...] A

solidariedade humana e a paz internacional, que constituem a suprema

aspiração moderna, dependem de uma coisa que é a instrução [...]. E a

instrução que é, senão fonte perene de luz? (João Penteado. A Instrução

Pública. apud CALSAVARA, 2012, p. 240).

Pode-se atribuir a oficialização da Escola Moderna a partir da publicação, no Diário

Oficial de 07 de outubro de 1913, do Estatuto da Sociedade “Escola Moderna”, lavrada no

Registro de Notas Cartoriais em 10 de outubro de 1913149:

Art. 1º. A sociedade “Escola Moderna”, cuja duração é por tempo

indeterminado, fundada na capital do Estado de S. Paulo, em 17 de novembro

de 1909, onde tem a sua sede, é o conjunto de número ilimitado de sócios de

ambos os sexos, que queiram contribuir para os fins da sociedade, que são:

A – Criar escolas para nelas se ministrar a educação às crianças e adultos,

baseada no método objetivo e racional de ensino, e consequentemente

separada de qualquer noção mística ou sobrenatural;

B – Criar bibliotecas e promover conferências de educação popular;

C – Publicar uma revista pedagógica com o escopo de propagar o método

objetivo e racional de ensino entre o professorado e as famílias.

Neste mesmo mês, o jornal A Lanterna anuncia a Escola Moderna N.1, localizada em

novo endereço, na rua Saldanha Marinho, 58, Belenzinho, em um “prédio mais espaçoso, onde

148 Nesta corrente, destacam-se Errico Malatesta (1853-1932), defensor da propriedade comunal e da socialização da produção tendo por base a solidariedade humana, Piotr Kropotkin (1842-1921), que compreendia o progresso enquanto um movimento simultâneo de evolução e revolução, teorizou a “ajuda mútua” como princípio anarquista, e Élisée Reclus (1830-1905), que dizia que a distribuição deveria ser regulada de acordo com a solidariedade/voluntarismo, resultado da consciência da interdependência entre os indivíduos e da superioridade moral atingida pela sociedade. (MARSHALL, 2008) 149 A comissão administrativa era composta por Antonio Candeias Duarte, Edgard Leuenroth, Francisco [Gamori], Vitorino Correia, Francisco de Paula e José Sanz Duro (Fonte: APESP).

116

está bastante melhor instalada, permitindo agora a inscrição de maior número de alunos” (A

Lanterna. São Paulo, 11 de outubro de 1913). No dia 19 de outubro, foi realizada a inauguração

das Escolas Modernas em uma sessão solene no Salão Gil Vicente.150

Figura 18: Professores e alunos em frente à Escola Moderna N.1, 1913

Fonte: CME/FEUSP

A Escola Moderna teria ainda um terceiro (e último) endereço, instalando-se, em 1915,

na Avenida Celso Garcia, 262, também no Belenzinho. Vizinho aos bairros da Mooca e do

Brás, mas de urbanização mais recente, o Belenzinho poderia ser considerado um bairro

operário, apesar da menor concentração de fábricas e de população operária. Dentre os setores

de maior presença estavam o vidreiro, o têxtil, o comerciário e o tipográfico.

150 Douglas Leutprecht (2018) questiona o ano da inauguração da Escola Moderna N.1. Segundo ele, “praticamente toda a produção analisada sobre o assunto [...] identifica a data de 13 de maio de 1912 como o dia da fundação da instituição, inicialmente com o nome de Escola Livre. Porém, ao analisar as edições do periódico A Lanterna no período 11 de maio e 1º de junho desse ano, não há menção alguma sobre a inauguração de escolas racionalistas, o que seria improvável, considerando o esforço despendido pelo periódico para tal realização. Paralelamente a isso, o periódico, no ano de 1912, apresenta diversos textos de Penteado descrevendo longas viagens de propaganda anticlerical, o que talvez não seria possível se estivesse no cargo de diretor de uma escola tão visada pelo movimento operário” (LEUTPRECHT, 2018, p. 137). No artigo intitulado “Festa escolar e quermesse” do jornal O Início, de 05/09/1914, informa que o evento ocorreu “em beneficio da Escola Moderna de S. Paulo, cuja obra benefica de saneamento social se acha iniciada desde o ano passado com a fundação da Escola Moderna N.1, no bairro do Belemzinho, e da N.3, no do Braz” (p. 3). Em um anúncio do Jornal A Lanterna, de 15/04/1916, destaca-se que a Escola Moderna N.1 foi “Fundada em 1913”. Contudo, em diferentes números do Boletim da Escola Moderna constam que a escola foi fundada em 1912.

117

Ao longo de seu funcionamento, a Escola Moderna N.1 empregou diversos princípios e

práticas libertários, destacando-se o racionalismo pedagógico, a introdução de passeios

educativos e do teatro, o incentivo à produção escrita em periódicos, o princípio de que não se

educa pela punição ou premiação, a ausência de exames, a defesa da coeducação dos sexos, um

esforço para que a comunidade se aproxime e se envolva com a escola, o laicismo, o pacifismo,

o anticlericalismo e o antiestatismo151. (Cf. CALSAVARA, 2004; CASTRO, 2014; CHAHIN,

2013; GALLO, 2009; LEUTPRECHT, 2018; LUIZETTO, 1984; SANTOS, 2014; SILVA,

2013)

Como destaca Tatiana Calsavara (2004), “a ação anarquista cotidiana estava organizada

através de associações livres no interior dos bairros operários [...] [os quais] mantinham uma

agitada vida cultural e sindical por onde operários, militantes e intelectuais circulavam”

(CALSAVARA, 2004, p. 62). Segundo narra Jacob Penteado, “muitos dos anarquistas que

andavam pelo Belenzinho nada tinham de tétrico, de sombrio. Na maioria, pais de família, bons

amigos e parceiros numa farrinha.” (PENTEADO apud CALSAVARA, 2004, p. 74) O mesmo

Jacob Penteado dizia que “das escolas desse tempo, a mais importante foi a Escola Moderna,

do Professor João Penteado”. Duas matérias jornalísticas parecem reforçar uma memória

positiva que a comunidade mantém da figura de João Penteado. “Belém Histórico” do jornal

Diário Popular assim apresenta o diretor da Escola Moderna N.1, chegando a mencionar suas

convicções anarquistas:

Desde jovem, escrevia muito bem crônicas e poesias e tinha interesse pela área

da educação. Chegou em São Paulo para tentar melhorar a vida e, em 1908, já

no Belenzinho, criou um curso maternal que acabou dando origem à escola.

Era um homem inteligente, de personalidade forte e autoritário. Exigia muita

disciplina dos alunos. (Diário Popular. São Paulo, 22 de fevereiro de 1997)152.

A matéria “Escola festeja 86 anos de tradição”, do jornal O Estado de S. Paulo,

apresenta um breve histórico da instituição e menciona, mas não explica, as razões das

mudanças de nome; destaca a inovação pedagógica promovida por João Penteado sem

relacioná-la ao racionalismo pedagógico/pedagogia libertária:

A história da tradicional instituição de ensino da região começou em 1912,

quando o professor João Penteado decidiu criar a Escola Moderna. Dizia-se

que ele tinha ideias anarquistas e seu objetivo era ampliar a participação dos

alunos nas atividades pedagógicas.

Numa época em que a maioria das instituições de ensino se limitava a

transmitir o currículo básico, Penteado criou um jornal interno, organizou um

151 Muitos destes elementos serão melhor abordados no próximo capítulo. 152 Fonte: AHM.

118

grêmio literário e promoveu sessões de cinema e passeios campestres para os

estudantes. (O Estado de S. Paulo. São Paulo, 16 de abril de 1998)153.

Diferentemente do que ocorreu na Escola Moderna de Barcelona, cuja fundação se

deveu a uma grande herança deixada pela senhorita Meunier, a implantação da Escola Moderna

N.1 foi fruto de uma grande campanha de arrecadação de fundos que se iniciou em 1909 e se

viabilizou em 1913. A manutenção da escola barcelonesa se dava por meio das mensalidades e

das publicações da editora, rendimentos mais que suficientes para sua manutenção. Sua

congênere paulistana possuía condições financeiras mais frágeis, dependendo das

mensalidades154, da colaboração de militantes anarquistas e simpatizantes do ensino

racionalista, bem como da arrecadação realizada em eventos e do auxílio de sindicatos e lojas

maçônicas, não conseguindo atingir a gratuidade, como chegou a se cogitar. (Cf. SANTOS,

2009; CHAHIN, 2013; LEUTPRECHT, 2018)

Figura 19: Saldos das Festas de 13 de outubro de 1918 e de 22 de fevereiro de 1919, as quais se

pretendiam arrecadar fundos. Boletim da Escola Moderna, 18 de março de 1919

Fonte: CME/FEUSP

Nos quatro números do Boletim da Escola Moderna (1918-1919), jornal publicado por

João Penteado que visava difundir o ensino racionalista e disseminar as “modernas correntes

de ideias que tendem a rehabilitar a humanidade para a vida, redimindo-a e tornando-a livre e

feliz”155, consta que a Escola Moderna N.1 ofertava cursos primários diurnos (para menores de

ambos os sexos156) e noturnos (para trabalhadores – neste caso, frequentavam apenas rapazes),

além do curso de “Dactylographia, Portuguez, Arithmetica”. A relação dos alunos matriculados

em outubro 1918 segue abaixo:

153 Fonte: AHM. 154 Há poucas menções às mensalidades cobradas pela Escola Moderna N.1. Na edição de 05/09/1914 do jornal O Início, as mensalidades do ensino primário variavam de 3$000 a 5$000 “segundo o adiantamento”. A Escola Moderna N.2 e a Escola Nova cobravam de 3$000 a 4$000 para a mesma modalidade de ensino (O Início. São Paulo, 04 de setembro de 1915). No Grupo Escolar da Parochia de São João, localizado na Rua Bresser, nº 376, a mensalidade do ensino primário era de 2$000 (conforme panfleto anexo ao ofício encaminhado à Diretoria de Instrução Pública em 06/08/1917. Fonte: APESP). Guardadas as particularidades dos “produtos” e desconsiderando o fator inflacionário, a título de comparação, 2$000 era o valor cobrado pelo exemplar do livro Escuela Moderna de Ferrer, importado, vendido pela Bibliotheca D’A Lanterna (A Lanterna. São Paulo, 18 de dezembro de 1909). O exemplar d’A Escola Moderna, de W. Heaford, custava 1$000 (A Lanterna. São Paulo, 09 de julho de 1910). Entende-se que o princípio da coeducação de classes só poderia ser assegurado à medida em que as mensalidades fossem relativamente baixas, como é o caso. Daí a necessidade da complementação financeira por meio de doações e arrecadação em festividades. 155 Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918 (Fonte: CME/FEUSP). 156 Sendo, portanto, coerente com o princípio da coeducação dos sexos.

119

Figura 20: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918

Fonte: CME/FEUSP

Tabela 6: Dados da Escola Moderna N.1 e da evolução do ensino particular na capital (1913-1919)

1913 1914 1915 1916 1917 1918 1919

TOTAL DE

ALUNOS DA

EMN1

42 – 60 60 60 117 “FECHOU-

SE” PROFESSORES

DA EMN1 3 – – – 2 –

TOTAL DE

ESCOLAS

PARTICULARES

DA CAPITAL

73 93 179 179 272 414 461

Fonte: o próprio autor a partir de Directoria Geral da Instrução Pública. Annuario do ensino do estado de São

Paulo. São Paulo, 1913-1919157.

Tabela 7: Dados da Escola Moderna N.1 de acordo com os jornais O Início e Boletim da Escola Moderna (1913-

1919)

1913 1914 1915 1916 1917 1918 1919

AULA DIURNA (1º ANO, 2º

ANO E 3º ANO) – 34 36 38 – 45 48

AULA NOTURNA (SEÇÃO

MASCULINA + SEÇÃO

FEMININA)

– – 18 19 – 24* 16*

CURSO DE DATILOGRAFIA,

PORTUGUÊS, ARITMÉTICA – – – – – 17 8

TOTAL DE ALUNOS DA

EMN1 – – 54 57 – 86 72

Fonte: o próprio autor a partir dos periódicos O Início, São Paulo, 05 de setembro de 1914; O Início, São Paulo,

04 de setembro de 1915, n. 2; O Início, São Paulo, 19 de agosto de 1916, n. 3; Boletim da Escola Moderna, 13 de

outubro de 1918; Boletim da Escola Moderna, 18 de março de 1919158.

*Apenas seção masculina.

157 Fonte: APESP. 158 Fonte: CME/FEUSP.

120

Apesar da divergência do número de matriculados apresentado pelo Anuário e o dos

periódicos O Início e Boletim da Escola Moderna (possivelmente pela movimentação de

alunos, não atualização ou não apresentação de dados da Escola Moderna N.1), houve

crescimento do número de alunos.

A obra realizada por esta benefica instituição, se bem que modesta, não deixa

de ser digna de interessar todos os espíritos elevados e todas as inteligecias

esclarecidas que se preocupem seriamente com o renovamento social operado

nas consciências, pela escola.

Obra modesta dissemos, porque sem dispor dos meios necessários para

proporcionar, em larga escala, ensino racional e intuitivo a toda infância que

dele carece, é apezar de tudo uma tarefa que tende a alargar-se, a firmar-se no

espirito publico e a conquistar os seus incontestáveis direitos á consideração

dos homens de saber e de pensamento.

A Escola Moderna é um ideal a realizar-se. Como o vejetal que nasce duma

simples semente, primeiro débil e frágil, sem dar nas vistas de alguem, depois

se vai desenvolvendo e robustecendo, até se tornar planta copada e frutifera,

proporcionando nos sombra, frutos, lenha, madeira e embelezando a

paizagem, assim também a Escola Moderna, hoje obra humilde, amanhã sé

robustecerá, se alargará e se imporá á consideração publica quando com a

criação de escolas em todos os bairros de S. Paulo e por todo o interior for

espalhando os beneficios do seu ensino, disciplinando os espiritos, elevando

as inteligencias, estofando o entendimento, enfim orientando e libertando.

O que é preciso é que todos que compreendam o alcance deste

empreendimento não neguem seu concurso a esta obra em que andamos

empenhados e concorram com o seu grão de areia para o edificio colectivo.

E todos, por modestos que sejam seus conhecimentos, podem ajudar a criar

uma mentalidade nova na infância e concorrer para o alargamento da obra da

Escola Moderna. (A Lanterna. São Paulo, 09 de agosto de 1914, p. 02)159.

A esperança dos apoiadores da Escola Moderna era que sua iniciativa se consolidasse e

crescesse, com novas matrículas e unidades, e ofertasse diferentes modalidades de ensino, como

o profissional. As condições financeiras da Escola Moderna N.1 dificultou a ampliação de seu

projeto160. Mas os esforços de libertários e livres-pensadores que apoiavam o ensino racionalista

ainda renderia outros frutos: no Estado de São Paulo, até 1919, haviam sido inauguradas a

Escola Moderna N.2, a Escola Moderna de São Caetano, uma “Escola Nova” no bairro da

Mooca, e escolas modernas em Cândido Rodrigues e Bauru.

A partir do momento em que Oscar Thompson assume a direção da Diretoria Geral da

Instrução Pública (1917), observa-se novos rumos no ensino paulista. Diante de um cenário de

crise econômica, de “caos social” (greves gerais) e de guerra, o discurso de maior controle do

Estado em relação às escolas, sobretudo as particulares e estrangeiras tornou-se patente. Crítico

159 Fonte: HDFBN. 160 Castro (2014) evidencia os problemas financeiros da escola ao apontar para as dificuldades em publicar os periódicos O Início e Boletim da Escola Moderna, que deveriam ser mensais, mas tiveram, respectivamente, apenas três e quatro números. O autor também destaca a dependência da arrecadação de recursos por meio de quermesses.

121

das liberdades desfrutadas por estas escolas, Thompson elaborou uma nova rotina, mais

sistematizada, de observação durante as visitas dos inspetores escolares, defendeu a

implantação de um programa mais bem definido a ser cumprido, dando ênfase aos elementos

nacionais e cívicos, supostamente não atendidos pela maioria destas escolas161. Eram tempos

de entusiasmo pela educação (NAGLE, 2009), de uma ampla campanha de combate ao

analfabetismo (o maior entrave para o desenvolvimento da Nação), que Thompson ainda

acrescentaria uma tentativa de implantar as práticas escolanovistas nas escolas paulistas.

Tornou-se evidente que “a disputa pelo controle ideológico deste ‘instrumento de dominação’

[...] passou a ser acirrada e portas foram fechadas para impedir o prosseguimento de ações

politicamente independentes, como a dos libertários.” (CHAHIN, 2013, p. 55)

Os impactos sociais das Escolas Modernas e a expansão deste modelo pareciam

incomodar os setores mais conservadores da sociedade paulista, justamente no momento em

que as greves gerais (sob forte influência do sindicalismo revolucionário) estouraram na capital.

A repressão aos grupos de contestação foi de natureza variada. O fechamento das Escolas

Modernas ocorreu logo após um incidente com bomba que levou à morte de José Alves, diretor

da Escola Moderna de São Caetano162. O ofício de Oscar Thompson determinava a cassação da

autorização do funcionamento da Escola Moderna N.1 sob alegação de que “as escolas

modernas, de que sois diretor, visando a propagação de ideias anárquicas e a implantação do

regime comunista, ferem de modo iniludível a organização política e social do país”163,

evocando para tal, o descumprimento das exigências da Lei 1.579 de 1917, em seu artigo 30,

relativo aos documentos que deveriam ser apresentados à Diretoria Geral da Instrução Pública

para autorizar o funcionamento de escolas particulares:

I. Attestado ou titulos que provem a capacidade moral e technica do director

e dos professores;

II. Planta do predio em que haja de funccionar a escola, instruída com relatório

do inspetor médico escolar sobre as condições hygienico-pedagogicas do

mesmo;

161 Nos anuários do ensino do Estado de São Paulo dos anos de 1917 e 1918 se encontram diversas menções às bandeiras da Liga Nacionalista de São Paulo (defesa do fim do analfabetismo, pela promoção dos valores nacionalistas e cívicos, do alistamento militar) e ao nome de Olavo Bilac. 162 No incidente estavam envolvidos os militantes anarquistas Joaquim dos Santos Silva, Belarmino Fernandes, José Prol e José Alves. (SANTOS, 2014, p. 124) “O fato foi aproveitado pela polícia e pelo governo para reprimir as atividades culturais e educativas dos libertários. Segundo os jornais da grande imprensa, a explosão teria ocorrido devido a um erro de cálculo dos anarquistas, que estariam preparando um ataque armado. O acidente no Brás foi o pretexto que o governo e a polícia aguardavam para fechar as escolas”. (CALSAVARA, 2012, p. 98) 163 Ordem de habeas corpus, destinada ao presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Fonte: CME/FEUSP.

122

III. Compromisso de confiar a professores brasileiros o ensino de Portuguez,

Geographia e Historia do Brasil, bem como de fazer que todo o ensino, salvo

em se tratando de línguas extrangeiras, seja ministrado em idioma patrio164.

Trata-se, portanto, de uma medida de cunho claramente político, de sufocamento de

experiências pedagógicas alternativas ao modelo escolar estatal, incompatível com a lógica de

inculcação de valores morais, cívicos e patrióticos, de formação de um povo ordeiro e obreiro

que os entusiastas da educação pretendiam promover tendo à frente figuras como Oscar

Thompson, Sampaio Doria e Olavo Bilac. (Cf. CARVALHO, M., 2003; NAGLE, 2006)

As acusações contra João Penteado foram fundamentadas em provas que, supostamente,

o relacionavam a ações revolucionárias, como o “frustrado” plano terrorista (explosão acidental

da bomba), a propaganda anarquista (veiculada no Boletim da Escola Moderna) e a denúncia

isolada do Sr. Castrucci, pai de ex-aluno (que alegou ter retirado seu filho da escola pelo fato

de que apregoava o anarquismo e o comunismo). Mesmo defendendo-se de cada uma dessas

acusações, a medida de fechamento não havia sido revogada. (SANTOS, 2009) João Penteado

ainda procurou defender as “ideias anárquicas” em texto dirigido ao ministro do Tribunal de

Justiça de São Paulo:

O anarquismo é a mais alta, a mais sublime e a mais dignificante expressão do

ideal comunista concebido e divulgado pelos seus grandes apóstolos tais como

Tolstoi, Kropotkin, Eliseu Reclus, A. Hamon, Jean Grave, Sébastien Faure e

tantos outros, cujas obras literárias e científicas constituem atestado de

superioridade moral dos ideais anarquistas sobre todos os outros princípios

filosóficos, políticos e sociais até hoje pregados entre os homens.

(PENTEADO, João. Escola Moderna: um caso curioso)165.

As práticas pedagógicas libertárias desenvolvidas na Escola Moderna N.1, como se verá

no próximo capítulo, foram, de fato, inovadoras no contexto da educação paulista do início do

século XX. Tanto é verdadeiro que mesmo após seu fechamento, João Penteado permaneceria

à frente de uma outra escola, inaugurada em 1920, com o nome de “Escola Nova” de Comércio,

em funcionamento até 1958166 ,empregando um método “rápido, intuitivo e racional” às “lições

práticas, o verdadeiro conhecimento das matérias constantes do seu programa que encerra e

condensa todos os conhecimentos indispensáveis a quem se dedica à carreira comercial” (O

Início, 28/05/1923 apud PERES, 2010, p. 143), sugerindo continuidade de algumas práticas

desenvolvidas na Escola Moderna N.1.

164 Fonte: APESP. 165 Fonte: CME/FEUSP. 166 Neste intervalo, se chamaria Academia de Comércio, Escola Técnica e Ginásio e Escola Técnica “Saldanha Marinho”.

123

Em sua tese de doutorado, Tatiana Calsavara explora a militância anarquista de João

Penteado nas décadas que se seguiram ao fechamento da Escola Moderna N.1. Segundo ela,

Penteado “[...] encontrou outras formas de resistência e seu nome aparece ligado a diversas

atividades da comunidade libertária” (CALSAVARA, 2012, p. 31-32), como o Centro de

Cultura Social e a Nossa Chácara, além de diversas produções escritas sobre educação

libertária.

124

CAPÍTULO 4

APROPRIAÇÕES PEDAGÓGICAS LIBERTÁRIAS NA ESCOLA MODERNA N.1

4.1 Sobre os conceitos autonomia-heteronomia e apropriação

A Escola Moderna [de Barcelona] era um pesadelo para os elementos

da retrogradação social, pó que com a luz da razão e da verdade

fazia desaparecer as trevas das consciências proletárias, dando-lhes

uma orientação aferida pelos sentimentos da Liberdade e da Justiça.

(João Penteado. 13 de Outubro)167

No capítulo anterior, foram apresentados aspectos relativos à viabilização de uma escola

moderna em São Paulo, “baluarte poderoso de emancipação”, continuadora da “obra grandiosa

de Ferrer” (A Lanterna. São Paulo, 24 de setembro de 1910); também foram trazidos elementos

biográficos de João Penteado e alguns pontos relativos ao funcionamento e fechamento da

Escola Moderna N.1. Tratava-se de um grande projeto educacional e grandes expectativas

foram depositadas:

Porque em S. Paulo não se trata de fundar apenas uma aula, uma escola sem

grande alcance, limitando a sua acção e influencia á educação racional de

poucas dezenas de crianças.

Trata-se de muito mais:

De organizar uma boa bibliotheca de livros escolares: livros destinados á

criança e ao professor e guias para o educador; de fundar uma casa de edições.

De estabelecer um nucleo; de procurar o melhor material e os melhores

processos de ensino, assim como educadores capazes; de propagar os bons

resultados obtidos. De realizar o maior numero de extensões possiveis desse

nucleo e dos methodos nelle adoptados.

Não é, pois, uma obra estreitamente local; nella podem colaborar todos e de

todas as partes. (A Lanterna. São Paulo, 19 de março de 1910).

As escolas libertárias do período extrapolavam os aspectos meramente educativos,

ganhando uma dimensão política à medida que se colocava enquanto elemento fundamental

para “a construção de uma nova sociedade e de um novo homem, fundados na liberdade, na

justiça e na igualdade.” (GALLO, 2007, p. 41) Com as escolas modernas paulistas não seria

diferente, e para viabilizá-las foram anos de esforços individuais e coletivos, seja por meio de

167 Texto de autoria de João Penteado em homenagem ao legado de Francisco Ferrer y Guardia, por conta da “data aniversária do hediondo crime perpetrado” contra ele, s/d. (SANTOS, 2009, p. 241)

125

doações em dinheiro ou em produtos que pudessem servir de premiações nas festividades,

evento que reunia apoiadores, divulgava as propostas do ensino racional e arrecadava fundos:

No dia 21 de abril p.p., realizou-se em Mayrink, com grande concorrencia, a

brilhante festa, anteriormente anunciada, em beneficio da Escola Moderna.

[...]

Em conclusão: foi uma festa que muito honrou os seus esforçados

organizadores e o povo de Mayrink, pelos grandes resultados moraes e

materiaes que produziu em favor dessa obra alevantada que tem por fim

plasmar os cidadãos do futuro, cujas bases moraes serão o trabalho, a

solidariedade e a liberdade individual, como elementos de uma sociedade

onde não mais haverá assassinos por fanatismo ou por interesse... (A Escola

Moderna em S. Paulo – A festa em Mayrink. In: A Lanterna. São Paulo, 14 de

maio de 1910).

Conforme visto no capítulo 2, as experiências pedagógicas libertárias analisadas foram

alvo, em algum momento, de duras críticas e repressão das autoridades governamentais. No

caso da Escola Moderna N.1, o maior regramento e controle se dariam em seus anos finais,

culminando em seu fechamento – por motivação política –, em um momento em que a educação

paulista passava por mudanças que impunham certos limites à atuação das escolas, bem como

novas exigências.

Esses limites e exigências das autoridades oficiais são chamados por Guilherme Corrêa

(2000) de “garantias de escolarização”, um conjunto de determinações que definem os espaços

onde a educação se realiza (arquitetura escolar e configuração da sala de aula), o tempo (duração

das aulas e das tarefas; duração do dia escolar, do ano letivo, do curso), os saberes

(conhecimentos provenientes dos centros da cultura, programas selecionados por burocratas) a

frequência (o direito compulsório, exercido rotineiramente, para melhor uniformizar os

cidadãos), as séries (valida apenas a instrução obtida em instituições reconhecidas pelo poder

público), a avaliação (de forma a medir o conhecimento transferido ao aluno, sua aptidão para

seguir para a próxima série), a certificação (tem como objetivo oficializar a instituição e

habilitar o estudante) entre outras normas e diretrizes que as escolas estavam submetidas.

No ano de 1913, o diretor-geral da Instrução Pública, João Chrysostomo Bueno dos Reis

Junior, reconhecia as limitações quanto às normas e fiscalização das instituições de ensino,

especialmente as particulares:

Todas essas instituições [privadas] gosam duma liberdade tão ampla, tão

extensa [...]. Não temos ainda, como é para desejar, uma lei que estabeleça e

regule as relações officiaes que devem existir entre taes estabelecimentos e o

Estado; neste particular é limitadissima a acção do governo (DIRECTORIA

126

GERAL DA INSTRUCÇÃO PÚBLICA. Annuario do ensino do estado de

São Paulo. São Paulo, 1913, p. XXII)168.

No ano seguinte, o mesmo diretor-geral reclama a participação do Estado quanto ao

ensino ministrado nas escolas particulares, cuja qualidade, a seu ver, estava aquém do esperado:

[...] não póde o Estado alienar de si o direito ou, antes, o dever de intervir

muito diretamente no ensino ministrado por esses institutos acompanhando de

perto a organização e a execução de seus programas, os processos e methodos

de ensino, a hygiene escolar, todas as condições, enfim, garantidoras de uma

instrução real, solida e proveitosa.

A inacção do Estado nesse sentido concorrerá para o abastardamento do

ensino, em muitos desses institutos, que se transformarão, muitos deles, em

casas commerciaes, com pingues lucros para os seus diretores, mas com grave

damno para a infancia e consideravel prejuizo para os fóros e o futuro de nosso

Estado (DIRECTORIA GERAL DA INSTRUCÇÃO PÚBLICA. Annuario do

ensino do estado de São Paulo. São Paulo, 1914, p. 19)169.

Finalmente, em 1915, João Chrysostomo apresenta várias medidas tomadas pela

Diretoria-Geral da Instrução Pública, tais como a aprovação de obras didáticas (20 títulos no

total), melhorias quanto a facilitação dos serviços médico-escolares e os serviços de inspeção e

fiscalização (visitas de inspetores escolares, inclusive nas escolas particulares). Contudo, a falta

de inspetores prejudica a cobertura dessa demanda170. Novamente, queixa-se da ausência de

regulação do ensino privado:

É quasi nulla a acção governamental com relação a este importante assumpto

a que estão ligados os mais altos interesses nacionaes. Urge que uma lei

especial, federal ou do Estado, regule a acção do Governo para com essas

escolas, de modo que se tornem ellas um elemento benefico, em vez de um

elemento damnoso, como acontece em muitas delas [preocupação maior em

relação às escolas estrangeiras] (DIRECTORIA GERAL DA INSTRUCÇÃO

PÚBLICA. Annuario do ensino do estado de São Paulo. São Paulo, 1915, p.

XXII)171.

João Chrysostomo, em seu relatório de 1916, destaca os esforços em relação à execução

do artigo 196 da Consolidação das Leis do Ensino, relativo à obrigatoriedade do ensino para

menores em idade escolar; lamenta o baixo número de inspetores escolares para o grande

número de escolas que precisam visitar; apresenta uma proposta de reforma no ensino;

168 FONTE: APESP. 169 FONTE: APESP. 170 “Para que a inspecção produza os resultados que com ella se tem em vista: a boa organisação escolar, a assiduidade do professor e a frequencia dos alunos, de que o progresso do ensino é função, indispensável se torna que seja feita o mais frequente e demoradamente possível. Entretanto o número existente de inspectores [21] não permite a necessaria frequencia de visitas, à vista do avultado numero de escolas providas, presentemente cerca de 3.700, incluidas as classes dos grupos escolares” (DIRECTORIA-GERAL DA INSTRUÇÃO PÚBLICA. Annuario do ensino do estado de São Paulo. São Paulo, 1915, p. XVI). FONTE: APESP. 171 FONTE: APESP.

127

novamente realiza uma série de considerações negativas acerca do ensino particular. Segundo

ele,

As escolas particulares, salvo raras excepções, por isso mesmo muito

honrosas, não preenchem satisfactoriamente os seus fins. Os seus directores e

professores não offerecem provas de sua capacidade moral e technica para o

ensino; não installam suas escolas em predios com as condições hygienicas e

pedagogicas exigidas; não estabelecem programas e horarios, concórdes com

a edade e as condições das crianças; não fornecem dados estatísticos nas

épocas regulamentares (DIRECTORIA GERAL DA INSTRUCÇÃO

PÚBLICA. Annuario do ensino do estado de São Paulo. São Paulo, 1916, p.

12)172.

No ano de 1917, o novo diretor-geral da Instrução Pública, Oscar Thompson, informa

sobre as alterações contidas no atual anuário do ensino, propondo uma nova rotina aos

inspetores escolares (em número de 18), e novas orientações pedagógicas condizentes com o

objetivo da escola nova, que se pretende implantar:

Escola nova, para nós, é a formação do homem, sob o ponto de vista

intellectual, sentimental e volitivo; é o desenvolvimento integral desse

trinomio psychico; é o estudo individual de cada alumno; é, também, o ensino

individual de cada um deles, muito embora em classes; é a adaptação do

programma para cada typo de educando; é a verificação das lacunas do ensino

do professor pelas sabbatinas e exames; é o emprego de processos especiaes

para a correção de deficiencias mentaes; é a educação physica e a educação

profissional, caminhando, parallelamente, com o desenvolvimento mental da

criança; é a preparação para a vida civica, do cultivo da iniciativa individual,

do estudo vocacional, da diffusão dos preceitos de hygiene, e, principalmente,

dos ensinamentos da puericultura; é, em summa, a escola brasileira, no meio

brasileiro, com um só lábaro: – formar brasileiros, orgulhosos de sua terra e

de sua gente. [...]

Não mais o programma norteará o ensino, mas o typo de cada alumno será a

nova bussola da educação. Fazer para aprender, mas fazer só, assistido,

acompanhado do professor, é o processo da escola nova; fazer tudo, todas as

lições, todos os exercicios, todas as experiencias, de maneira que os

conhecimentos adquiridos pelo alumno não sejam mais do que resultados da

sua propria atividade mental e physica. É a self-activity, ou melhor, a self-

education, dos anglo-saxões (DIRECTORIA GERAL DA INSTRUCÇÃO

PÚBLICA. Annuario do ensino do estado de São Paulo. São Paulo, 1917, p.

07-08)173.

O diretor-geral da Instrução Pública encara as escolas particulares como iniciativas que

devem ser bem acolhidas pelo Estado, de forma a contribuir para o combate ao analfabetismo.

Contudo, também questiona a ampla liberdade concedida às particulares sem a comprovação

da aptidão dos professores no exercício de suas atribuições. Sobre a regulação destas escolas,

comemora a aprovação da Lei nº 1.579, de 19 de dezembro de 1917,

172 FONTE: APESP. 173 FONTE: APESP.

128

[...] para que o Estado possa tirar do ensino particular todo o proveito, todas

as vantagens, afim de que se dissemine, o mais possivel, a instrucção.

Melhorará, extraordinariamente, as condições das escolas particulares e

garantirá a intervenção benefica da Diretoria Geral da Instrucção Publica para

que essas escolas, de braço dado com os estabelecimentos officiaes, possam

attingir o mesmo fim, que é a nacionalização do ensino, a formação, em todas

ellas, do cidadão brasileiro (DIRECTORIA GERAL DA INSTRUCÇÃO

PÚBLICA. Annuario do ensino do estado de São Paulo. São Paulo, 1917, p.

292)174.

No relatório de Oscar Thompson, de 1918, evidencia-se a defasagem e o baixo efetivo

técnico (mantém-se 18 inspetores) para poder cumprir com as exigências legais e realizar,

satisfatoriamente, seus serviços, sobretudo por conta da expansão do ensino em São Paulo.

Também apresenta um plano para extinguir o analfabetismo (obstáculo para o progresso, o

“maior mal do Estado”, causa de problemas econômicos), a Reforma Sampaio Doria, que previa

a redução do analfabetismo de maneira rápida, sem aumento de despesas: diminuição da jornada

de aulas, ampliação do número de turmas, simplificação do programa do ensino primário

(reduzido a ler, escrever e contar), concessão de gratificação anual aos professores, entre outras

medidas. Relativo ao ensino particular, dá ênfase à Lei nº 1.579, de 19 de dezembro de 1917,

sobretudo no tocante à autorização para funcionamento (documentação).

Ainda que haja esforços por parte das autoridades educacionais paulistas em prescrever

(ou conformar) certo modelo pedagógico, saberes, rotinas e práticas – sob a forma de leis,

regulamentos ou doutrinas –, no interior de cada unidade escolar ocorrem inúmeros

procedimentos de apropriação e transformação dessas prescrições em práticas singulares. Nesse

sentido é pertinente questionar “o que é que as pessoas fazem com os modelos que lhes são

impostos ou com os objetos que lhes são distribuídos?” (BOURDIEU apud CARVALHO, M.,

2003, p. 260). Se não há uma mera aplicação das prescrições é porque as determinações

impostas pelos agentes externos sobre determinado campo (que refletem pressões de ordem

política e econômica) são refratadas pelos agentes internos ao campo enquanto práticas175

distintas (aquilo que é feito) – ou seja, se retraduz “sob uma forma específica as pressões ou as

demandas externas” (BOURDIEU, 2004, p. 22). Pierre Bourdieu (2004) assim identifica a

relação de autonomia-heteronomia existente entre os agentes do campo científico:

Quanto mais um campo é heterônomo, mais a concorrência é imperfeita e é

mais lícito para os agentes fazer intervir forças não-científicas nas lutas

científicas. Ao contrário, quanto mais um campo é autônomo e próximo de

uma concorrência pura e perfeita, mais a censura é puramente científica e

exclui a intervenção de forças puramente sociais (argumento de autoridade,

174 FONTE: APESP. 175 Por “práticas”, entende-se um vasto conjunto de atitudes, normas, modos, usos etc. realizados por uma coletividade, agrupados para um fim comum.

129

sanções de carreira etc.) e as pressões sociais assumem a forma de pressões

lógicas (BOURDIEU, 2004, p. 32).

Os termos autonomia e heteronomia de Pierre Bourdieu, enquanto conceitos, não podem

ser tomados como absolutos posto que seu grau varia a depender das leis que se operam dentro

do próprio campo, bem como da relação entre os agentes internos e externos e da relação que

um campo estabelece com outros campos. Empregando os conceitos autonomia e heteronomia

para a compreensão do campo educacional, é possível identificar os agentes externos

(lideranças e organismos ligados à Igreja Católica, nomes relacionados aos setores da indústria

e mesmo ao sindicalismo revolucionário e livres-pensadores) e os agentes internos

(legisladores, diretores de instrução/secretários de educação, inspetores, diretores de escola,

professores, alunos etc.) a este campo, bem como suas formas de agir – aqueles que, numa

ponta, atuam na produção dos discursos, elaboram os dispositivos legais e exercem controle ou

fiscalizam conforme os interesses dominantes e, na outra ponta, aqueles que poderiam

reproduzir (ao menos formalmente) tais discursos e práticas, mas que, em alguma medida,

produziriam contradiscursos e outras práticas.

Como será abordado neste capítulo, a Escola Moderna N.1 desenvolveu diversas

práticas pedagógicas alternativas às realizadas pelas demais escolas e, apesar das circunstâncias

por vezes adversas, encontrou soluções coerentes com os valores e princípios pedagógicos

libertários. Samira Chahin (2013) defende que para a implantação da Escola Moderna N.1

“houve a adaptação de um contexto teórico às condições e propósitos próprios das

circunstâncias políticas enfrentadas pelos libertários em São Paulo” (CHAHIN, 2013, p. 31).

Douglas Leutprecht (2018) defende que, da mesma forma que João Penteado se valeu de

diferentes referenciais (doutrina espírita, obra de Tolstói, modelo de Ferrer, pensamento

anarquista) e os ressignificou num projeto coerente de vida e de condução da Escola Moderna

N.1, aqueles que lhe serviram de referência também haviam realizado, a seu modo, suas

apropriações.

O conceito apropriação (CHARTIER, 2002) pressupõe a interdependência entre

criação/produção e recepção/consumo do texto. Aquele que se apropria passa a ser, também,

um produtor cultural, posto que (re)cria o produto cultural conforme seus interesses e suas

capacidades, dando a ele um novo sentido, fazendo os mais variados usos. As múltiplas leituras

possíveis pressupõem múltiplas interpretações. Essa abordagem compreende que

a leitura de um texto, pode assim escapar à passividade que tradicionalmente lhe é

atribuída. Ler, olhar ou escutar são, efetivamente, uma série de atitudes intelectuais

que – longe de submeterem o consumidor à toda poderosa mensagem ideológica e/ou

130

estética que supostamente o deve modelar – permitem na verdade a reapropriação, o

desvio, a desconfiança ou a resistência (CHARTIER, 2002, p. 59-60).

Portanto o texto não possui um sentido único, estático, atribuído pelo seu autor, pois, ao

circular em determinados meios, passa a ser compreendido de formas variadas, tendo em vista

que o leitor faz uso da liberdade interpretativa e possui suas próprias intenções de usos do texto.

Na visão de Marta M. C. de Carvalho (2003, p. 277-278), “uma vez produzido e distribuído, o

impresso de destinação escolar pode ganhar vida própria, sendo objeto de usos não previstos

pelas regras que presidiram a sua produção”, alertando aos historiadores sobre a ênfase que

deve ser dada às práticas em relação ao texto em si. Dessa forma, o conceito apropriação176

torna-se bastante profícuo à medida que podemos estender esta ideia às fontes relativas à Escola

Moderna N.1, buscando compreender as particularidades do racionalismo pedagógico que ali

se desenvolveu a partir de algumas práticas pedagógicas. Articulando os conceitos autonomia-

heteronomia (BOURDIEU, 2004) ao de apropriação (CHARTIER, 2002), talvez seja possível

compreender quais eram os sujeitos e as relações que se desenvolveram nesse processo.

176 O conceito apropriação permite inserir como objeto da História Cultural não somente os sujeitos produtores de cultura, mas também os receptores, pois o consumo ou uso de um bem cultural é uma prática (re)ativa, que cria novos objetos culturais, a partir de qualquer uso que se faça dele, por exemplo, no simples ato de ler.

131

4.2 O programa e o método da Escola Moderna N.1

O mundo é um livro aberto em cujas páginas aprendemos sempre que

temos boa vontade e aplicação ao estudo das coisas.

Assim, as ruas, as avenidas, as praças públicas são escolas onde os

homens se instruem nas lições do exemplo, e se educam na

experimentação continuada de todos os seus esforços para a

consecução da liberdade de pensar e sentir, que primeiro nasce dos

comícios para depois triunfar por meio da revolução.

(João Penteado. Cenas da Rua)177

As determinações legais elaboradas pelas autoridades estatais de Educação visam

uniformizar o ensino, bem como assegurar condições adequadas quanto às instalações das

escolas primárias públicas e particulares, sob a lógica da eficiência e da eficácia. Como visto,

ao longo da década de 1910, os diretores gerais lamentavam o baixo efetivo de inspetores de

ensino, cuja atuação fica comprometida devido ao elevado número de escolas que cada um

deveria fiscalizar. Tais agentes disciplinadores, responsáveis por orientar e controlar as

condutas dos profissionais que atuavam nas escolas, também se prestavam a observar a

implantação do programa de ensino, documento que prescreve as bases do que deve ser

ministrado aos alunos178. João Crysostomo Reis Junior (1911-1912) indicava as matérias que

deveriam ser ensinadas nas escolas, mesmo sem definir com rigor os conteúdos: Português179,

Aritmética, Geometria, Física e Química, Ciências Naturais, Geografia, História Pátria,

Educação Moral e Cívica, Desenho, dentre outras.

A Escola Moderna N.1 parece não ter sofrido interferência direta da Sociedade “Escola

Moderna”, nem do próprio governo em seus anos iniciais. A conformação de seu programa e

177 Texto de autoria de João Penteado, s/d. (SANTOS, 2009, p. 237). 178 Os registros dos inspetores de ensino nos livros de visitas apresentam, no geral, o funcionamento da escola (se se encontra “regular”), a quantidade de alunos matriculados e frequentes (divididos em classes), se se encontra em “disciplina” e “ordem”, e o número de alunos analfabetos (E02726 – SECRETARIA DO INTERIOR / LIVRO DE VISITAS. Escola feminina do Belenzinho, em 08/03/1912. Fonte: APESP). Eventualmente, alguma orientação é formalmente dada ao diretor da instituição: “Chamei a atenção da srª professora para as disposições regulamentares quanto à adoção de livros e cadernos” (E02766 – SECRETARIA DO INTERIOR / LIVRO DE VISITAS. Escola [feminina] do Belenzinho, 26/03/1913. Fonte: APESP), ou ainda “Peço ao senhor professor tomar maior consideração às recomendações que verbalmente lhe fiz” (E02794 – SECRETARIA DO INTERIOR /LIVRO DE VISITAS. Escola [masculina] do Belenzinho, 06/05/1914). 179 Com relação à matéria de Português, as orientações eram as seguintes: I – caligráfica – vertical – cuidado com a posição do aluno e disposição do papel. II – leitura em grupos escolares – aos analfabetos pelo método analítico; em escolas isoladas pela palavração. III – leitura e linguagem (em todas as classes) exigir fiel observância do manual “Como ensinar leitura e linguagem nos diversos anos” (DIRECTORIA GERAL DA INSTRUCÇÃO PÚBLICA. Annuario do ensino do estado de São Paulo. São Paulo, 1911-12, p. 21).

132

as práticas ali desenvolvidas, possivelmente, seriam frutos da própria experiência pretérita de

João Penteado como professor primário em Jaú, das suas influências acerca do ensino libertário

(sendo Ferrer a mais facilmente identificável), em conformidade com as determinações legais

para a garantir seu funcionamento. O programa em si não permite compreender mais

profundamente a rotina, os temas abordados, quais exercícios eram propostos em sala de aula,

e mesmo como os livros didáticos ou de referência eram trabalhados dada a ausência de uma

fonte que seria valiosa: os cadernos escolares.

O fator autonomia/autogestão é preocupação recorrente para Samira Chahin (2013), que

entende que as Escolas Modernas N.1 e N.2 não possuíam “um único líder, com claras

convicções, como feito por Ferrer na Escola Moderna de Barcelona. O projeto paulista se abriu

à participação da sociedade como um todo” (CHAHIN, 2013, p. 44), havendo também certa

independência das duas escolas entre si e em relação ao comitê da Sociedade “Escola

Moderna”, que pode ser observado pela diferença de programas:

Figura 21: Informativos sobre das Escolas Modernas N.1 N.2

Escola Moderna N.1 Escola Moderna N.2

Programa:

O programa com que foram

iniciados seus trabalhos

consta de portuguez,

aritmetica, geografia,

historia e principios de

sciencias naturais.

O seu programa, todavia,

como está determinado, será

ampliado de acordo com as

necessidades futuras e com

a aceitação que o ensino

racionalista for merecendo

da parte dos homens livres

da capital e do interior do

Estado.

O director,

Prof. João Penteado

Materias:

As materias a serem

ensinadas, segundo o

alcance das faculdades de

cada aluno, constarão de –

leitura, caligrafia,

gramatica, aritmetica,

geometria, geografia,

botanica, zoologia,

mineralogia, física,

quimica, fisiologia, historia,

desenho, etc.

Fonte: A Lanterna. São Paulo, 20 de junho de 1914, p. 04 (HDFBN)

É razoável pensar que os programas pouco têm a dizer sobre os conteúdos abordados e

a maneira como as aulas eram conduzidas. Nos três primeiros anos de funcionamento da Escola

Moderna N.1, não foram observadas alterações no programa, apesar do reconhecimento de que

poderia ser alterado e ampliado, a depender não das pressões dos agentes externos ao campo da

133

pedagogia libertária, mas da aceitação de sua proposta junto ao próprio grupo que acompanhava

a evolução da escola.

Figura 22: A Lanterna. 19-7- 1913 Figura 23: A Lanterna. 11-7-1914 Figura 24: A Lanterna. 16 -1-1915

Fonte: HDFBN

Fonte: HDFBN

Fonte: HDFBN

O livro de William Heaford, A Escola Moderna de Barcelona (edição portuguesa de

1910), “parece ter sido uma importante referência para o professor João Penteado, pois trata do

método racionalista e do papel do professor na Escola Moderna.” (CALSAVARA, 2004, p.

187-188) Nesta obra o autor explica que os livros adotados pela escola eram ali mesmo editados

e também apresenta suscintamente o programa da Escola Moderna de Barcelona e seu método:

as creanças se habitúam a observar e a raciocinar sobre os objectos fisicos que

as rodeia e compreendem os fenomenos ordinarios da vida diaria. Entre as

série de estudos, a gramatica, a zoologia, a geometria, a geografia, a fisica e a

quimica, também existe o ensino de francês, solfejo o trabalho manual e a

botanica. Os livros foram escritos expressamente para a escola, e para o fim

exclusivamente racionalista para que ela foi fundada. (HEAFORD, 1910, p.

47).

Uma ausência significativa no programa da Escola Moderna N.1 em relação ao da

Escola Moderna de Barcelona é a relativa ao “trabalho manual”. Trata-se de elemento

fundamental do desenvolvimento integral da criança e que desierarquiza a relação entre o

trabalho intelectual e o manual. Contudo, os elementos relativos aos saberes manuais poderiam

se fazer presentes nas diferentes matérias escolares, de forma mais integrada e não explícita nos

documentos da escola ou nos textos de João Penteado. O programa apresentado no Boletim da

Escola Moderna chega mesmo a suprimir algumas matérias:

134

Figura 25: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918

Fonte: CME/FEUSP

Em 1918, no primeiro número do periódico escolar Boletim da Escola Moderna, um

texto de Francisco Ferrer y Guardia é divulgado, resgatando a memória do “apóstolo da

Humanidade”, reforçando o vínculo que a instituição paulistana possuía com a barcelonesa.

Este texto encerra defendendo o ensino racionalista como científico e “favoravel á liberdade do

individuo e á harmonia da collectividade, mediante um regimen de paz, amor e bem estar para

todos, sem distinção de classes, nem de sexos”180. Neste mesmo número, um texto de Adelino

de Pinho, diretor da Escola Moderna N.2, tece duras críticas ao ensino religioso, cujo intuito

era “corromper o espirito da humanidade desvial-o do caminho do progresso”, e estatal, que se

ocupava de uma “instrucção civica os direitos e deveres dos cidadãos, a instrucção militar desde

os tenros anos, etc., etc.”, exaltando a Escola Moderna de Ferrer, que se propunha “despida de

preconceitos, alheia á moral corrente do venha á nós, baseada nos factos e phenomenos natuaes,

na observação e na critica racional”181.

A educação racionalista proposta por Ferrer está pautada em oito conceitos: a educação

é inseparável da revolução; a educação deve desenvolver-se na e para a liberdade; a educação

deve desenvolver o ser humano integralmente; a educação deve promover o específico de cada

pessoa; a educação deve fazer um ser humano moral e solidário; uma nova educação exige um

meio social livre; a educação não reduz sua ação à infância; a educação não está circunscrita a

algumas instituições escolares.

O ensino racionalista seria defendido abertamente pelos anarquistas, pois iria ao

encontro de muitos dos valores libertários, tais como anticapitalismo, anticlericalismo,

antiestatismo, antiautoritarismo, autonomia e emancipação do indivíduo, transformação social.

Outros elementos caros aos educadores libertários, que existiam na Escola Moderna de

180 Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918. (FONTE: CME/FEUSP) 181 Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918. (FONTE: CME/FEUSP)

135

Barcelona, era a coeducação das classes e dos sexos e a disseminação do conhecimento

científico, seja por meio de periódicos e livros, seja pelos eventos e aulas abertas.

Como se pode notar, a Escola Moderna N.1 não apresenta um programa propriamente

inovador, porém o diferencial para seu contexto se encontra no método empregado nos estudos.

O jornal A Lanterna define o ensino racionalista ministrado na Escola Moderna N.1 como

“método inductivo demonstrativo e objectivo, e basear-se-á na experimentação, nas afirmações

scientificas e raciocinadas, para que os alunos tenham ideia clara do que se lhes quer ensinar”

(A Lanterna. São Paulo, 30 de agosto de 1913).

Contrariamente ao método dito “tradicional”, de aulas maçantes baseadas na

memorização, na ausência de sentido no discurso de autoridade e na inculcação dos valores que

interessam à Igreja/classe dominante, o racionalismo propunha ocupar o aluno com reflexões

que partiam do próprio entorno do aluno, dando-lhe voz, valorizando a espontaneidade/vontade,

o aprendizado em diferentes ambientes para além da sala de aula, a possibilidade de empregar

elementos lúdicos, as brincadeiras livres, a não imposição de tarefas e ideias – presente nas

práticas pedagógicas em Iasnaia Poliana, no Orfanato Prévost e em “La Ruche” por exemplo.

O método intuitivo possui como expoentes figuras como Francis Bacon, John Locke,

Jean Jacques-Rousseau, e pedagogos como Johann Heinrich Pestalozzi, Norman Calkins e

Ferdinand Buisson, cuja aplicação escolar visava despertar a atenção e a curiosidade das

crianças, baseando-se na observação empírica, partindo do mais simples para o mais complexo.

Sendo contrário ao método dedutivo, parte da premissa que “toda interpretação da natureza

começa pelos sentidos e, das percepções dos sentidos e por uma via direta, firme e segura

alcança as percepções do intelecto, que constituem as noções verdadeiras e axiomas” (BACON,

2002, p. 149). Ferdinand Buisson explica que o método intuitivo se divide em três graus: a

intuição sensível, a intuição intelectual e a intuição moral.

A intuição sensível é considerada como a primeira etapa do método, conhecida

no ensino primário e nos jardins de infância sob a denominação de lições de

coisas, consiste em ensinar as crianças a observar: ver, sentir, tocar, distinguir,

medir, comparar, nomear, para depois conhecer, ou seja, educar os sentidos

para depois exercê-los. A segunda forma de intuição – a intelectual – consiste

no desenvolvimento da inteligência por meio do raciocínio, da abstração e

reflexão, ultrapassando a intuição sensível. A intuição moral ocupa o terceiro

grau no desenvolvimento do ensino intuitivo e consiste em educar a criança

quanto nos aspectos morais e sociais (SCHELBAUER, verbete “método de

ensino intuitivo”)182.

182 Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_metodo_de_ensino_ intuitivo2.htm>. Acesso em: 05 jul. 2020.

136

O mesmo Ferdinand Buisson explica que a intuição “é um ato o mais natural e o mais

espontâneo da inteligência humana, pelo qual o espírito compreende uma realidade, sem

esforço, sem intermediário, sem hesitação” e que seria por meio dela que “nosso espírito, seja

pelos sentidos, seja pelo julgamento, seja pela consciência, conhece as coisas com o grau de

evidência e de facilidade que apresenta ao olho, à visão distinta de um objeto” (BUISSON apud

BASTOS, 2013, p. 239-240).

O método intuitivo teria grande circulação em congressos pedagógicos e exposições

universais durante a segunda metade do século XIX, sendo também uma das bases do

escolanovismo. “No caso da Escola Moderna de Barcelona, tal método, o qual se restringia às

classes preparatórias, se adequou perfeitamente ao modelo pedagógico racionalista,

especialmente por partir da mesma ideia naturalista de educação.” (LEUTPRECHT, 2018, p.

102) Promover práticas pelas quais os alunos seriam agentes de seu aprendizado é algo

compartilhado entre os escolanovistas e os pedagogos libertários, pois entendem que a educação

pelas coisas (empírica) deveria vir antes da educação pelas palavras. Conforme a inteligência

se desenvolve, bem como o pensamento crítico e o senso de observação, os alunos passariam a

fazer uso maior de outros recursos didáticos, como coleções, cartazes e livros.

Assim Charles Delon (1887) entendia a “lição de coisas” enquanto aplicação do método

intuitivo na educação, presente em todas as atividades de ensino:

Só a lição de coisas coloca o aluno na presença dos fatos materiais, com

realidades visíveis e tangíveis, não mais de abstrações. A lição intuitiva dá às

coisas e palavras, às palavras com as coisas – observação dos fatos e

comunicação da linguagem. Mas é do ponto de vista educativo que a lição de

coisas tem mais valor. Ela tem essencialmente por objetivo desenvolver e

exercitar os órgãos, a inteligência, o julgamento; de suscitar o espírito de

observação e pesquisa, a iniciativa pessoal; comparar com outros objetos,

generalizar suas observações, raciocinar e concluir. Apela para todas as

faculdades e operações de sua inteligência. Convida a pensar e a exprimir seu

pensamento, a imaginar. Desenvolve o ser física e intelectualmente, os

sentidos e a alma, o senso prático e o senso moral e estético. Serve para o

ensino coletivo e essencialmente oral. (DELON apud BASTOS, 2013, p. 234)

137

Figura 26: A Lanterna, 20 de junho de 1914

Fonte: HDFBN

Algumas das práticas da educação racionalista poderiam ser reconhecidas como “lição

de coisas”, como a observação dos fatos e fenômenos naturais. Mas iam além ao propor críticas

racionais da realidade, registradas em vários textos publicados no periódico O Início. Em sua

edição de número 2, o jornal que fica a cargo dos próprios alunos apresenta 17 exercícios

escolares, atividades de produção textual como “descrição”, “epistolar”, e “exercícios vários”.

Tais exercícios são assim apresentados aos leitores:

Na nossa Escola se realizam exercicios de composição e descrição, que são

dados aos alunos, gradualmente, todas as semanas, afim de que eles aprendam,

de modo prático, a escrever os seus pensamentos, a redigir cartas e a fazer

descrições de objétos com observancia da devida ordem classificativa e

emprego de pontuação precisa. (O Início. São Paulo, 04 de setembro de 1915).

O exercício que segue é ilustrativo não apenas da composição de um texto descritivo,

que informa o trajeto, elementos da paisagem urbana e situações “inusitadas” dignas de registro,

mas também de uma atividade que reflete outros aspectos do ensino libertário ministrado na

Escola Moderna N.1: a solidariedade e reciprocidade (“Fomos bem recebidos. Os meninos de

là recitaram e cantaram e nós tambem fizemos a mesma cousa”) e o respeito (apesar de não

descrever se houve uma reprimenda ou advertência, o desentendimento entre um aluno e um

rapaz na rua não foi bem aceito pelo professor). Segue o exercício:

138

Figura 27: O Início. São Paulo, 04 de setembro de 1915

Fonte: CME/FEUSP

Nota-se que o exercício do aluno Pedro G. Passos emprega uma linguagem simples,

com alguma formalidade e gravidade, mas, acima de tudo, reflete a espontaneidade da escrita.

Possivelmente, se houve interferência do professor, não teria sido no sentido de alterar seu

conteúdo ou mensagem, mas um eventual erro ortográfico, gramatical, de pontuação etc. O

texto transmite as impressões, sensações, juízos, valores de um aluno, o que demonstra o

propósito de tais exercícios: desenvolver no aluno sua capacidade de observar, de descrever, de

chegar às conclusões por si, empregando seu raciocínio.

No seguinte exercício, é possível identificar a forma com a qual se buscava promover

um ensino autônomo, no qual o entendimento do aluno iria se formando a partir de uma série

de interações entre ele, o objeto do conhecimento, os colegas e o professor. As reflexões e as

conclusões dos alunos são, novamente, resultado da observação atenta e de seu raciocínio. A

maneira como descreve a aula é reveladora da liberdade que se pretende garantir ao aluno:

UM PASSEIO À MARGEM DO RIO TIETÊ

No sábado, dia 6 de março, nós nos reunimos todos às 7 horas da manhã na nossa Escola e

cantamos os hinos “A Mulher” e o “Primeiro de Maio”. Depois [de] meia hora saímos, e descemos a

rua Catumbi. [...] Eu vi pelo caminho uma pontezinha na travessa da rua Catumbi. Lá o nosso professor

nos explicou que os troncos de taquara se chamam rizoma e que esses troncos caminham debaixo da

terra. [...]

Vimos as barcas no meio do Tietê e também uns meninos caçarem peixes. Depois brincamos de

Caracol e Ciranda-Cirandinha [...].

EDMUNDO MAZZONE. O Início. São Paulo, 04 de setembro de 1915 (Fonte: CME/FEUSP).

Dentre as práticas descritas, os alunos cantavam hinos que exaltavam o papel da mulher

e do trabalhador (sujeitos oprimidos, mas que deveriam lutar e contribuir para a construção da

sociedade do porvir); realizavam observação empírica, tomando contato direto com o objeto do

conhecimento, havendo, quando necessária, a mediação do professor (trata-se de um momento

139

em que a curiosidade é o guia para novas descobertas); o brincar e a interação livre entre as

crianças (meninos e meninas) é privilegiado, sendo a última parte do passeio. Tomando estas

três práticas, evidencia-se que se trata de um ensino diferente daquele ministrado nas demais

escolas, desenvolvendo outros valores, outras práticas pedagógicas e garantido condições para

a liberdade do pensamento e do corpo.

Tatiana Calsavara (2004) destaca a inovação pedagógica promovida na Escola Moderna

N.1 ao realizar os “estudos do meio” (passeios/saídas), ao incentivar a produção escrita dos

alunos (crítica e científica), e de fazer uso do periódico O Início como instrumento pedagógico

– práticas que se diferenciavam, radicalmente, das realizadas nas escolas públicas ou religiosas

do período (CALSAVARA, 2004, p. 136). As aulas de “estudos do meio” foram bem

exploradas por Paul Robin, que “destacou a importância do meio natural, enfatizando os fatos

e o ambiente da natureza como contexto propício para o aprendizado e alcance dos objetos da

educação integral: desenvolvimento intelectual, físico e moral” (CHAHIN, 2013, p. 189).

O exercício a seguir, simples no formato e proposta, apresenta dois elementos essenciais

da metodologia racionalista: a valorização da observação e o estímulo à escrita livre

(espontânea, mas que demanda os cuidados do professor com relação à ortografia e gramática,

por exemplo).

Figura 28: O Início. São Paulo, 04 de setembro de 1915

Fonte: CME/FEUSP

Outra modalidade de composição eram os exercícios epistolares desenvolvidos na

Escola Moderna N.1 os alunos eram instigados a refletir sobre questões da atualidade,

desenvolverem a sensibilidade e o poder de crítica à ordem estabelecida. Um tema

particularmente sensível daqueles tempos era o da Primeira Grande Guerra, tratado pelo aluno

João Bonilha nos seguintes termos:

140

Figura 29: O Início. São Paulo, 19 de agosto de 1916

Fonte: CME/FEUSP

O aluno argumenta que a guerra foi conduzida pelo Estado a partir dos interesses

burgueses, promove um massacre sem sentido, deixando seus familiares desamparados. Como

salienta Rogério Castro (2014, p. 195), “o internacionalismo dos libertários se contrapunha ao

nacionalismo dos setores conservadores”, um sentimento de solidariedade entre os membros da

classe trabalhadora, que independentemente de sua nacionalidade, não devem lutar entre si, mas

se unirem para promover a revolução, derrubando a sociedade de classes capitalista e

construindo uma sociedade fraterna e igualitária. O antimilitarismo se coloca enquanto um

princípio básico do “anarquismo cristão”, que advoga as transformações pela via não violenta,

cuja grande referência foi Lev Tolstói, muito influente na formação intelectual e moral de João

Penteado. (LEUTPRECHT, 2018)

De maneira bastante diversa, o caderno de composição de aluno da Escola São Nicolau

de Flüe, fundada na Colônia Helvetia por imigrantes suíços na atual cidade de Idaiatuba,

representa práticas recorrentes do modelo escolar do período, em que prepondera os valores

cívicos e religiosos:

141

Figura 30: Caderno de Composição do aluno Antonio Amstalden – 5º Ano

Fonte: APESP (Caixa C7138)

Observa-se que o texto descritivo (esquerda) de Antonio Amstalden possui rigor

técnico, empregando termos específicos, e certamente não se trata apenas da descrição de “uma

flor” observada pelo aluno – possivelmente retirou tais informações de um livro ou reproduziu

de sua professora. A maioria dos textos do caderno são composições de cartas destinadas a

familiares. Os textos de cunho religioso possuem uma estrutura que se inicia por uma série de

questões que devem ser contempladas na redação, à semelhança do catecismo. As orações

simples e breves do texto sugerem se tratar de uma produção do próprio aluno, mas dada a

linguagem e o teor, conclui-se não se tratar de uma produção espontânea, fruto de suas

reflexões, questionamentos e conclusões, mas simplesmente a reprodução daquilo que conhece

por repetição.

A interpretação acerca das duas práticas quanto à composição textual pode caracterizar

um contraste de perspectivas quanto ao sujeito em formação. Enquanto as práticas evidenciadas

no caderno de Antonio Amstalden levam a supor a sujeição, a alienação e o conformismo, o

respeito às autoridades sob uma certa lógica e disciplina, os documentos que evidenciam as

práticas pedagógicas da Escola Moderna N.1 faz entender que se trata, de maneira muito

semelhante, das interpretações sobre a Escola Moderna de Barcelona, que o método racional

142

tem o “intuito de evocar, desenvolver e cultivar as aptidões particulares de cada aluno, a fim de

fazer evoluir a capacidade latente de cada creança, tornando-o capaz de ser um componente util

da sociedade”. (HEAFORD, 1910, p. 46)

143

4.3 Os recursos didáticos

A solidariedade humana e a paz internacional, que constituem a

suprema aspiração moderna, dependem apenas de uma coisa, a

instrução. Não porém dessa instrução que se destina sòmente aos

previlegiados, mas sim da que trás consigo o grande objetivo de

iluminar as consciências das classes menos favorecidas da fortuna.

(João Penteado. Instrução Pública)183

A formação intelectual/literária de João Penteado e, em alguma medida, dos professores

e alunos da Escola Moderna N.1, bem como de seu círculo de sociabilidade, é reconhecível

pelo seu expressivo acervo bibliotecário, formado por obras de tipos e tendências variados.

Livros sobre a teoria e o pensamento anarquistas dividem prateleira com obras científicas,

pedagógicas e didáticas (“tradicionais” e racionais), biografias, de idiomas, além de textos

filosóficos, literários, legislativos e revistas. Como observado por Luciana Santos (2009),

através da análise das obras que compõem esta biblioteca, é possível identificar um “amálgama

de muitos nomes, ideias, verdades, que convergem num pensamento, numa visão de mundo”

(SANTOS, 2009, p. 177) fundamentada, sobretudo, “no anarquismo, no espiritismo, no

cientificismo, no positivismo e no internacionalismo” (SANTOS, 2009, p. 143).

Os livros reunidos por João Penteado não foram preservados (após sua morte)

segundo o critério de origem das obras (grêmio, escola, acervo pessoal). O

acervo misturou-se e atualmente encontra-se dividido em três conjuntos. Um

deles, constituído de 1.699 títulos, acha-se desde fins da década de 1980 sob

guarda da UFSCAR, constituindo o Acervo João Penteado – trata-se da

coleção de obras pertencentes a Penteado que foram recolhidas por Flávio

Luizetto. Outro conjunto (objeto de recente recolhimento) encontra-se no

Centro de Memória da Educação – FEUSP. E os demais livros – não

catalogados nem referenciados – acham-se ainda no prédio do Colégio

Saldanha Marinho (PERES, 2010, p. 25),

Parte deste acervo bibliotecário pertence atualmente à Coleção João Penteado

(CME/FEUSP), composta por 1703 livros, 69 títulos de periódicos, 153 fascículos e 73 folhetos.

Das relações dos livros da biblioteca pessoal de João Penteado feitas por Tatiana Calsavara

(2004) e Luciana Santos (2009), destaco os seguintes títulos (apenas aqueles cuja

publicação/impressão foi anterior a 1920):

183 Texto datilografado de autoria de João Penteado, s/d (FONTE: CME/FEUSP).

144

Quadro 6: Algumas obras da biblioteca de João Penteado

BAKUNINE, Mijail. Dios y el Estado. Barcelona: Casa Editora Spena, s/d.

EAUGUET, Emílio. Iniciação Literária. Lisboa: Guimarães e Cia. Biblioteca de Educação Racional,

vol. XI, 1914.

FAURE, Sebatien. Il problema della popolazione. (Le conseguenze sociali dell’amore). Firenze:

Società Editoriale Neo-Malthusiana, s/d.

GAMA, Luiz. Primeiras trovas burlescas. São Paulo: Typ. Bentley Junior & Comp., 1904.

GUARDIA, Francisco Ferrer. La Escuela Moderna. Barcelona: Imprenta Elzeviriana, Borra Mestres

y Cia., 1912.

HEAFORD, William. A Escola Moderna de Barcelona. Lisboa: Guimarães e Cia., 1910.

Hynario da Escola Moderna. Caderno Escolar de aluno.

KROPOTKINE, Pedro. Em volta de uma vida. Lisboa: Tipografia do Commercio, 1907.

KROPOTKINE, Pedro. A questão social – o anarquismo em face da ciência. São Paulo: Biblioteca

Prometeu, s/d.

KROPOTKINE, Pedro. Palavras de um revoltado. Lisboa: Guimarães e Cia, 1912.

KROPOTKINE, Pedro. A conquista do pão. Rio de Janeiro: Saverio Fittipaldi, s/d.

La escuela popular (Organo de La Liga de Educación). Revista Mensal, ano I – 1912 – nov. v.2 e 3,

ano II – 1913 – jan.v.4-10.

La societe nouvelle. Revue Internacionale. Seleicher Fréres Editeurs. Mensal, ano 17 – 1911 –

dezembro n.6, ano 17 – 1912 – n.7, 9, 10.

LEÃO, Antonio Carneiro. O Brasil e a educação popular. Recife: Typ. Do Jornal do Commercio,

1917.

LUZ, Fabio. Os emancipados. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1906.

MENDONÇA, Manuel Curvello de. Regeneração. Rio de Janeiro: Garnier, 1904.

NERGAL, M. J. Evolución de los mundos. Publicaciones de la Escuela Moderna de Barcelona, s/d.

OITICICA, José. A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 2a. ed.,

s/d.

PENTEADO, Juvenal. O methodo directo. São Paulo: Siqueira, Salles & Comp. 1910.

PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é propriedade? São Paulo: Edições Cultura Brasileira, s/d.

RECLUS, Eliseu. La Vida en la Tierra. Valencia: F. Sempere y Cia. Editores, s/d.

RECLUS, Eliseu. Evolução, Revolução e Ideal Anarquista. São Paulo: La Tribuna Española, 1904.

Revista de ensino (Orgam da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo).

Publicação trimestral. São Paulo: Typographia Nacional de Carlos Borba, ano VIII n.4 – 1909 e ano

XII n.2 e 3 – 1913.

145

SAFFRAY, Charles. Lições de cousas. Porto: Chardron, s/d.

SPENCER, Herbert. O que é a moral? Lisboa: José Bastos e Cia. Editores.

SPENCER, Herbert. Da liberdade à escravidão. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1904.

TOLSTOI, Leon. A Próxima Revolução. Lisboa: Livraria Central, 1908.

WHITE, Emerson. A arte de ensinar: um mannual para mestres, alumnos e para todos que

se interessam pelo verdadeiro ensino da mocidade. São Paulo: Siqueira, Nagel & Comp.

1911. Fonte: Coleção João Penteado (CME/FEUSP)

O Acervo João Penteado (UEIM/UFSCAR) é composto por muitos livros didáticos

graduados (por série ou sequenciados, preparatórios), como “História do Brasil”, “Geografia

Geral”, “Lições de Matemática Elementar”, “Merceologia e tecnologia merceológica”, “O

ensino da Contabilidade”, “Medicina Homeopatica” “Escripturação Mercantil”, “Admissão ao

Ginásio”, gramáticas (latim, francês, inglês) além de obras literárias brasileiras e portuguesas,

filosofia (Comte, Confúcio, Descartes, Kant, Krishnamurti, Montaigne, Nietzsche, Pascal),

anarquismo (Kropotkin, Nicolai, Oiticica), higiene, legislação geral (Constituição, Escolar,

estatutos, CLT). Como não há um catálogo, inventário ou outro instrumento para busca, foi

necessário prospectar os livros, um a um, registrando informações importantes daqueles cuja

publicação/impressão foi anterior a 1920184. Segue uma relação dos livros, possivelmente,

disponíveis para professores e alunos da Escola Moderna N.1:

Quadro 7: Algumas obras do Acervo João Penteado

JPD^A3661 – ALEGRE, Achylles Porto. Lições de Analyse Grammatical. Porto Alegre: Typographia

de Echenique Irmãos e Cia. 1903.

JPD^A368ae – ALENCAR, José de. Alfarrábios. Ermitão da Glória. (s/d).

JPD^A6681 – Arcesiláo. O Livro do Democrata. São Paulo: Typogaphia Americana. 1866.

JPD^B273f – BARRETO, Arnaldo; ROCA, Ramon; MORAES, Theodoro (orgs. inspetores

escolares). Festa das Aves – prosa e verso. São Paulo: 1911, Typographia do “Diario Official”.

Publicação feita pela Diretoria Geral da Instrução Pública.

JPD^B273v – BARRETO, Arnaldo de Oliveira (org.). Varios estylos – selecta de trabalhos literarios

de autores modernos e contemporaneos. SP e RJ: Weiszflog Irmãos, 1916.

JPD^B274p – BARRETO, L. P. Positivismo e Theologia – uma polemica. São Paulo: Livraria Popular

de Abilio A. S. Marques, 1880.

JPD^B327s.2 – BASTOS, J. A Saude e a longevidade (um grito de alarme). Porto: Editora Sociedade

Vegetariana, 1911.

184 Há alguns livros que estão presentes nesta lista, apesar de não possuírem data de publicação, mas devido ao estado de suas folhas, marcas de uso, bem como a linguagem empregada, sugerem ser anteriores a 1920.

146

JPD^B595t.2 – BILAC, Olavo; PASSOS, Guimaraens. Tratado de versificação. Rio de Janeiro:

Livraria Francisco Alves, 1910.

JPD^B732ea.4 – BORGES, João; CARDIM, Gomes. Elementos de Algebra. Rio de Janeiro: Livraria

Francisco Alves, 1911.

JPD^B745e.2 – BOSI, Emilio. A Egreja e a Liberdade. Lisboa: Livraria Internacional, s/d.

JPD^B783d – BOVIO, Juan. Las Doctrinas de los partidos politico en Europa. Valencia: F. Sempre

y Compañia Editores, s/d.

JPD^C117f – CABRAL, Mariano José. Flores Litterarias. Rio de Janeiro: Typographia de M. J. de

Moraes, 1854.

JPD^C331q1.8 – CARVALHO, Felisberto de. Quinto Livro de Leitura. Rio de Janeiro: Livraria

Clássica de Francisco Alves & Cia, 1905.

JPD^C697 – COLLECÇÃO de Bellas Poesias – próprias para recitação nas Escolas e festas infantis.

Polyanthéa Escolar. Rio de Janeiro: Livraria Viuva Azevedo & C., 1903.

JPD^C824e – CORRÊA, José Augusto. Evolução Philosophica do Espirito Humano. Lisboa:

Imprensa de Manuel Lucas Torres, 1916.

JPD^C831c – CORUJA, Antonio Alvares Pereira. Compendio da Grammatica da Lingua Nacional.

Rio de Janeiro: Alves & Cia, 1894.

JPD^C977 – CURSO DE COSMOGRAPHIA ELEMENTAR [...] Programma do Collegio D. Pedro

II e de admissão às Escolas Superiores. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves & Cia., 1918.

JPD^D148b – D’ALMEIDA, Fialho. Barbear, Pentear – jornal d’um vagabundo. Porto: Imp.

Portuguesa, 1911.

JPD^D148c.3 – D’ALMEIDA, Fialho. Obras completas de Fialho D’Almeida – IV - Contos. Lisboa:

Livraria Classica Editora de A. M. Teixeira, 1914.

JPD^D148g.2 – D’ALMEIDA, Fialho. Os gatos. Lisboa: Livraria Classica Editora de A. M. Teixeira,

1911.

JPD^D148p.3 – D’ALMEIDA, Fialho. Obras completas de Fialho D’Almeida – V – O paiz das uvas.

Lisboa: Livraria Classica Editora de A. M. Teixeira, 1915.

JPD^D148c.3 – D’ALMEIDA, Fialho. Obras completas de Fialho D’Almeida – II – Saibam

Quantos... Porto: Typ. Da Emp. Litter. E Typographica, 1912.

JPD^D148cv.2 – D’ALMEIDA, Fialho. Obras completas de Fialho D’Almeida – VI – Vida Ironica.

Lisboa: Livraria Classica Editora de A. M. Teixeira, 1914.

JPD^D148c.3 – D’ALMEIDA, Fialho. Obras completas de Fialho D’Almeida – IV – Contos. Lisboa:

Livraria Classica Editora de A. M. Teixeira, 1914.

JPD^D148c.3 – D’ARRIAGA, Manoel. Harmonias Sociaes – O problema humano e a futura

organisação social (no debute da sua phase definitiva) – A paz dos povos. Coimbra: Lumen 1907.

JPD^D445r – DESCARTES. Regras para a Direção do Espírito. (s/d).

JPD^D795c^t2 – DRAPER, William. Conflictos entre la religión e la ciencia. Barcelona: Casa

Editorial Sopena (s/d).

147

JPD^D893e – DUMONT, Irmão Isidoro. Exercícios de Cálculo sem Problemas sôbre as quatro

operações fundamentais para uso das aulas elementares. São Paulo: Livraria Francisco Alves

[Marista-FTD] (s/d).

JPD^F581c – FLAMMARION, Camilo. Cuentos Filosóficos – por L. Soto. Madrid: Ediciones

‘Góngora’, 1912.

JPD^F673d – FONCIN, P. La Deuxième Année de Géographie a l’usage de l’enseignement primaire

supérieur [...]. Paris: Librairie Armand Colin, 1905.

JPD^G288t – GAYO, Manuel da Silva. Torturados. Porto: Livraria Chardron, 1911.

JPD^H228c – HAMON, Augustin. A Conferencia da Paz e a sua obra – O que ela foi e o que deveria

ser. Lisboa: Guimarães e Cia, 1919.

JPD^K93c – KROPOTKIN, P. A Conquista do Pão. (s/d)

JPD^K93v – KROPOTKIN, P. Em volta duma vida. Lisboa: Typographia do Commercio, 1907.

JPD^K93p – KROPOTKIN, P. Palavras d’um revoltado. Lisboa: Guimarães e Cia., 1912.

JPD^K93q – KROPOTKIN, P. A questão social – o anarquismo em face da ciência. São Paulo:

Biblioteca Prometheu (s/d).

JPD^L228s – LAMENNAIS, Roberto. Sobre el passado y el porvenir del pueblo. Barcelona: Casa

Editorial Sopena, 1841.

JPD^L685e.56 – LEYSSENNE, P.; BOUSQUET, E. Exercices et problèmes d’Arithmétique de

Première Année [...]. Paris: Librairie Armand Colin, 1906.

JPD^M884e – MORSELLI, Emilio. Manuali Hoepli – Elementi di Sociologia Generale. Milano:

Ulrico Hoepli, 1898.

JPD^N444e – NERGAL, M. J. Evolución de los mundos. Barcelona: Publicaciones de la Escuela

Moderna, 1909.

JPD^N852e – NORONHA, Eduardo de. Evolução do Theatro. Lisboa: Livraria Classica Editora de

A. M. Teixeira e Cia.: 1909.

JPD^N938f – NOVEL, C. A Felicidade pelo Socialismo. Lisboa: Livraria Classica Editora de A. M.

Teixeira e Cia.: 1904.

JPD^N943 – NOVO MANUAL DE LINGUA PORTUGUEZA – GRAMMATICA, LEXICOLOGIA,

ANALYSE, COMPOSIÇÃO. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1918.

JPD^N943e – NOVICOW, J. A emancipação da mulher. Lisboa: Antiga Casa Bertrand, (s/d).

JPD^O39d – OITICICA, José. A Doutrina Anarquista ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Editora

Mundo Livre (s/d). Fonte: Acervo João Penteado (UEIM/UFSCAR)

Dos livros acima relacionados, alguns merecem destaque pelo seu caráter didático e seus

possíveis usos na Escola Moderna N.1. O “Quinto Livro de Leitura”, de Felisberto de Carvalho,

era um dos livros amplamente empregados nas escolas primárias paulistas, assim como as obras

148

de João Köpke, Thomas Galhardo, César Martines e Puiggari-Barreto. Diferentemente da série

de Puiggari-Barreto (cujos textos possuem conotação cívico-patriótica, exaltação dos símbolos

e heróis nacionais, ao valores familiares e bons hábitos), a série de Carvalho dá ênfase aos

conteúdos científicos do programa estabelecido pelo Estado, mas também compreende

ensinamentos morais que podem contribuir para a formação do caráter do cidadão republicano

que se pretende formar (OLIVEIRA; SOUZA, 2000). O professor encontra orientações de como

organizar, preparar e conduzir a aula, bem como informações teóricas que servem de base para

o que será desenvolvido.

Figura 31: CARVALHO, Felisberto de. Quinto Livro de Leitura. Rio de Janeiro: Livraria Clássica de Francisco

Alves & Cia, 1905

Fonte: Acervo João Penteado (UEIM/UFSCAR)

O livro possui lições de Botânica, Zoologia, Agronomia, Química, Física, Geografia,

História do Brasil, Gramática, Redação e outras, em linguagem simples e concisa, é ricamente

ilustrado, tornando-se mais atraente e de mais fácil compreensão ao público infantil. Ainda que

muitas das lições pudessem ser desenvolvidas de forma prática, elas não previam aulas de

observação em laboratório, mas conduzidas através da exposição oral por parte do professor,

da leitura por parte dos alunos e da resolução de exercícios ao final, de forma a facilitar a

memorização.

149

Outro livro que merece destaque é o “Exercícios de Cálculo sem Problemas sobre as

quatro operações fundamentais para uso das aulas elementares”, de autoria do Irmão Isidoro

Dumont, que faz parte da coleção de livros didáticos da Editora F.T.D.185, com diversos

exemplares na Coleção João Penteado.

Figura 32: DUMONT, Irmão Isidoro. Exercícios de Cálculo sem Problemas sobre as quatro operações

fundamentais para uso das aulas elementares. São Paulo: Livraria Francisco Alves [Marista-FTD] (s/d)

Fonte: Acervo João Penteado (UEIM/UFSCAR)

Os capítulos deste livro são distribuídos da seguinte maneira: Preliminares (com

definição de aritmética, grandeza, número, unidade etc.), Numeração, Operações fundamentais,

Decimais, Sistema métrico, Divisibilidade, Prova dos noves, Frações ordinárias e Operações

com frações, Método da Unidade, Juros, Geometria. Em cada capítulo, há um sem-número de

exercícios, além de ênfase na memorização (repetição oral e escrita, diversas tabelas e

185 As iniciais F.T.D. referem-se a Frère Théophane Durand, irmão superior-geral do Instituto Marista, quem “determinou a vinda dos primeiros irmãos maristas para o Brasil, em com eles vieram também os livros da FTD. Em 1902, os maristas publicaram o primeiro livro FTD no Brasil: Exercícios de Cálculo sobre as Quatro Operações, acompanhado de problemas, traduzido e adaptado pelo Irmão Andrônico, que foi diretor de colégios Maristas no Brasil. Esse livro teve várias edições. O Irmão Isidoro Dumont (1874-1941), sucessor do irmão Andrônico na direção do Colégio do Carmo, em São Paulo, dedicou-se à produção de livros novos de Aritmética, Álgebra, Geometria, Trigonometria, Logaritmo e outros. Tudo sempre de acordo com o Método FTD, que incluía a edição de Livros do Mestre. O Livro do Mestre passou a ser visto como um guia para os professores farto material para os alunos trabalharem” (FRANÇA, 2016, p. 286).

150

tabuadas). Os exercícios são, em sua maioria, descontextualizados, meramente exigindo a

aplicação do conceito ou fórmula, em detrimento do raciocínio e intuição. Destaca-se o fato de

que muitas ilustrações apresentam crianças brancas, geralmente meninos, e quando retratam

uma sala de aula, esta, invariavelmente, possui um crucifixo.

A obra de Nergal, “Evolución de los mundos” (1909), é uma das poucas do acervo de

João Penteado impressa pela Publicaciones de la Escuela Moderna. Esta obra, assim como

tantas outras da coleção “Enciclopedia de Enseñanza Popular Superior”, tem como propósito

produzir manuais que sistematizem uma ampla produção científica sobre um determinado

campo ou área e, consequentemente, promover sua divulgação – há de fato uma disputa na

Espanha entre os livros racionalistas dessa editora e os livros didáticos produzidos pela Igreja

ou sob sua influência, posto que a religião era vista como um entrave para o progresso do

conhecimento. Em “Evolución de los mundos” identifica-se elementos teóricos de base

mecanicista (citações diretas a Laplace, Herschel, Guynemer, Lockyer etc.) e evolucionista

(“nada está fijo en el universo [...] los hechos observados se explican por los datos de la doctrina

de la evolución”, p. 74).

Figura 33: NERGAL, M. J. Evolución de los mundos. Barcelona: Publicaciones de la Escuela Moderna, 1909

Fonte: Acervo João Penteado (UEIM/UFSCAR)

Os capítulos deste livro são os seguintes: El sistema solar, Sistemas estelares,

Transformación de los mundos, Transformación de los mundos (continuación), Teorías

comsogónicas, Exposición de los principales progresos de la Astronomía. Tal obra, coadunando

151

com o cientificismo e o racionalismo, emprega linguagem coloquial, aproximando os

conhecimentos técnicos aos leitores leigos, como no exemplo “La Tierra forma parte de una

familia de astros cuyo conjunto ha ricibido el nombre de sistema solar. El Sol el jefe de él”

(NERGAL, 1909, p. 23). Seu autor reconhece que a obra está inacabada, pois a ciência continua

avançando em suas descobertas, da mesma forma que “Copérnico y Tycho-Brahe prepararon a

Képler, como por lo demás, la obra de Képler preparó la de Newton” (Ibid., p. 116).

Das duas primeiras coleções tratadas anteriormente, certamente, a de autoria de

Felisberto de Carvalho poderia dialogar facilmente com os princípios e as práticas racionalistas

defendidas por João Penteado. A ênfase em um saber científico pautado na observação dos

fenômenos, por exemplo, poderia ser replicada em aulas “práticas”. Já a coleção da F.T.D.

destoa bastante do restante do acervo, tendo em vista o método baseado na repetição e as

referências religiosas recorrentes. No entanto, considerando que ambas as coleções fossem

empregadas corriqueiramente nas aulas, professores e alunos poderiam fazer usos variados e

“subversivos” delas. Em ambos os casos, eram obras acessíveis e amplamente utilizadas nas

escolas primárias paulistas. Devido à especificidade e à complexidade da última obra

(“Evolución de los mundos”), publicada em língua espanhola, seus usos devem ter sido mais

limitados, possivelmente lido por um público adulto ou iniciado nos assuntos astronômicos. É

certo que houve esforços para a criação de uma casa editorial cujas obras pudessem servir às

escolas modernas186, mas não foi possível obter recursos para tal empreendimento.

Não é possível afirmar se tais livros foram adquiridos posteriormente ao fechamento da

Escola Moderna N.1, nem afirmar quais eram as condições de acesso e uso por parte de

professores e alunos, se se tratavam de livros empregados com frequência para fins didáticos,

se serviam de apoio para o professor, para fins de consulta ou pesquisa etc. O que poderia dar

maior clareza sobre como estes materiais teriam sido empregados na Escola Moderna N.1,

permitindo “penetrar a caixa preta escolar”, seriam os registros de movimentação (empréstimo)

dos livros, bem como registros de aula realizados pelos professores ou mesmo os cadernos dos

alunos, materiais não encontrados nos acervos do CME/FEUSP e da UEIM/UFSCAR. O “hiato

entre os usos e suas prescrições”, em outras palavras, as apropriações realizadas na Escola

Moderna N.1 poderiam, assim, ser reconhecíveis, caracterizando “tática que subverte

dispositivos de modelização” (CARVALHO, M., 2003, p. 273).

186 “É intento do Comitê tratar, nos princípios do anno vindouro [1911], da installação da Casa Editora annexa á Escola e que vai, necessariamente, precede-la para o preparo das edições de livros escolares segundo o programma da Escola Moderna” (A Lanterna. São Paulo, 03 de dezembro de 1910).

152

Como apresentado, a biblioteca da Escola Moderna N.1 possuía títulos diversos, não

limitados a obras didáticas, pedagógicas ou relacionadas ao pensamento anarquista. Por um

lado, tal diversidade é condizente com o princípio da “neutralidade escolar” (CASTRO, 2014),

defesa da apresentação de diferentes correntes de pensamento para construir um debate livre e

franco. Por outro, constata-se a limitação de títulos no catálogo brasileiro e as dificuldades, da

época, para se obter os livros que dialogavam com o racionalismo e o libertarismo.

Segundo Samira Chahin (2013), não foram localizados nos arquivos brasileiros nenhum

boletim escolar editado em Barcelona187, que poderia servir de base e ampliar o repertório de

possibilidades pedagógicas a serem desenvolvidas pelos professores da Escola Moderna N.1.

Em síntese,

Ao lado da questão social, a temática predominante na biblioteca de João

Penteado é a educação. Há diversas obras, revistas, semanários, catálogos,

anais de congressos [...]. Muitas são obras didáticas e condizem às variadas

disciplinas [...] além das cartilhas específicas para a alfabetização e para o

ensino primário. Por não se tratar de uma biblioteca de educação libertária,

mas da biblioteca de um educador, as obras abrangem perspectivas amplas

sobre a educação. As obras especificamente de educação libertária, como a de

Ferrer e as de Maria Lacerda de Moura, são certamente mais raras do que a

grande quantidade de publicações oficiais acerca da educação. Possivelmente

articulado ao propósito de atender às demandas oficiais impostas pelo

governo, no processo de gestão escolar, João Penteado acumulou em sua

biblioteca inúmeras obras oficiais e publicações governamentais de controle e

de gestão estatal sobre a educação. [...]

As obras pedagógicas não apresentam grandes diferenças de uma biblioteca

pedagógica convencional, deste período. (SANTOS, 2009, p. 174-175).

No “Inventário da Escola Moderna No.1” (CALSAVARA, 2004), registrado pelo

próprio João Penteado, foram relacionados os seguintes materiais didáticos:

Tabela 8: Inventário da Escola Moderna N. 1

5 lâmpadas;

1 projetor;

1 globo geográfico;

33 relevos;

1 coleção de sólidos;

1 livro de botânica;

1 livro de mineralogia;

1 livro de gramática;

1 atlas zoológico;

1 globo geográfico pequeno;

1 bússola;

1 giroscópio;

27 carteiras;

2 quadros negros pequenos;

1 mapa do Brasil (novo);

1 mapa de São Paulo (novo);

1 mapa da Itália (velho);

1 mapa da América do Sul (velho);

1 mapa da América do Norte (velho);

1 mapa do sistema métrico decimal (velho);

1 mapa do Brasil (velho);

3 cartazes com mapas da França;

3 atlas geográficos em francês;

caixas de giz;

livros: Iniciação Química, Iniciação

Astronômica, Iniciação Zoológica, Iniciação

Botânica;

cadeiras de palhinha;

187 O Boletín de la Escuela Moderna servira, ao mesmo tempo, “como dispositivo de normatização pedagógica mas também como suporte material das práticas escolares” (CARVALHO, 2003, p. 272).

153

1 quadro negro grande;

2 estantes para livros;

1 quadro com o retrato de Ferrer;

1 armário para arquivo;

1 mesa;

2 cabides;

escovas para lousa (estragadas);

1 livro de ponto (já usado);

14 cadernos de caligrafia (em branco);

1 jogo de barra-fixa (para recreio);

diversas coleções de postais ilustrados;

1 biombo para gabinete de toalete. Fonte: Inventário da Escola Moderna N. 1 (CME/FEUSP)

O uso de recursos como projetor, globo geográfico, sólidos geométricos, giroscópio,

além de mapas, atlas e postais diversos, comuns em muitas escolas graduadas do período,

sugerem relação com o método indutivo-intuitivo. O racionalismo pedagógico se estrutura no

método intuitivo que, como propugnado por Paul Robin, estimularia “a capacidade de

observação, a lógica, o juízo crítico, a sensibilidade estética e a criatividade” (CASTILLO apud

LEUTPRECHT, 2018, p. 54). Tais recursos didáticos indicam a importância do contato com o

objeto a ser estudado e, “quando não fosse possível a presença direta destes/as, o contato da

criança com imagens e ilustrações, as quais, pouco a pouco, tornaram-se tão importantes quanto

o texto dos livros didáticos”. (TEIVE apud LEUTPRECHT, 2018, p. 107)

154

4.4 Os periódicos escolares

Uma é luz, e outra trevas, uma é eternização do ódio entre os povos, e

outra condição indispensável para o estreitamento dos laços de

solidariedade; uma divide a humanidade, demarcando-lhe fronteiras

e limites, e outra reúne, ajunta, congrega os povos, como formando

deles uma só família.

(João Penteado. Pregando no Deserto)188

Os periódicos escolares foram recursos amplamente empregados pelas escolas

renovadas e libertárias, como as revistas Iasnaia Poliana, o Bulletin La Ruche e o Boletín de la

Escuela Moderna, que serviram para divulgar seus princípios pedagógicos, as práticas escolares

desenvolvidas nestas instituições, ou ainda para publicizar as atividades produzidas pelos

alunos.

Tolstoi é um grande exemplo de intelectual ligado aos conceitos libertários

que fez uso da imprensa em sua atividade pedagógica. A partir de 1862, sob

sua direção, começou a ser publicada a revista Iasnaia Poliana que trazia,

mensalmente, artigos pedagógicos de colaboradores e do próprio Tolstoi. A

revista tinha ainda por objetivo divulgar os trabalhos realizados com base na

teoria do autor, além de discutir o sistema de ensino da época. Assim, a

publicação era aberta a professores e educadores que eram convidados a

colaborar, independente de suas concepções educativas. [...] Na França, o

“continuador da obra de Robin, Sebastien Faure, em La Ruche, instituiu a

imprensa na escola e editou um opúsculo de canções, coros, e comédias para

crianças” [...]. Já na Espanha, Ferrer y Guardia, fez amplo uso da imprensa

para noticiar e propagandear sua escola por meio do Boletín de la Escuela

Moderna. Além disso, mais tarde, ainda pela imprensa libertária, os ideais do

educador catalão foram amplamente divulgados em território brasileiro

(MARCONI, 2015, p. 54-55).

João Penteado, escritor prolífico da imprensa operária, com grande experiência em

tipografia e editoração, empregou estes conhecimentos na divulgação das atividades

desenvolvidas na Escola Moderna N.1 e das ideias pedagógicas racionalistas por meio dos

periódicos O Início (1914-1916) e Boletim da Escola Moderna (1918-1919), fazendo destes

veículos um “recurso didático pedagógico” (GHIRALDELLI, 1987, p. 134) assim, como o fez

Ferrer. As dificuldades financeiras enfrentadas pela escola impossibilitaram que as publicações

fossem mensais, intenção anunciada nos primeiros números de cada periódico, justificada nos

números seguintes. O Início teve apenas três números (05 de setembro de 1914, 04 de setembro

de 1915 e 19 de agosto de 1916) e o Boletim da Escola Moderna apenas quatro números (13 de

188 Texto de autoria de João Penteado, s/d. (SANTOS, 2009, p. 224-225).

155

outubro de 1918, 18 de março de 1919 e 1º de maio de 1919 – sendo publicados os números 3

e 4).

Nos três números do jornal estudantil O Início, foi possível identificar quatro artigos

sobre festividades as quais os alunos da escola participaram189; um balancete de festa190; três

informativos com a relação dos alunos matriculados; cinco artigos de conteúdo moralizante

(antimilitarismo191 e antialcoolismo192); 34 “exercícios escolares” (relatos sobre passeios, com

textos descritivos e reflexivos sobre o que os alunos observavam; exercícios epistolares e

descritivos); entre outros. Esta publicação, em que predominavam conteúdos pedagógicos (52%

do total dos textos), tinha como escopo “cultivar os sentimentos de amor pela paz, pela

instrução, pelas letras e pela humanidade, fazendo despertar na infância o desejo de uma vida

fraternal, humana, livre dos prejuízos resultantes das convenções sociais” (O Início. São Paulo,

05 de setembro de 1914) e, segundo seu editorial, visava “exercitar os alunos na imprensa, a

fim de se habilitarem para a luta do pensamento na sua cooperação para o progresso moral e

intelectual da Humanidade” (Ibid.). Como mencionado na Introdução, foi deste jornal que se

retirou o dístico presente no título desta dissertação: “A luz dissipa as trevas – a razão emancipa

as consciências”.

189 “A festa realizada no dia 14 do corrente pela nossa Escola esteve devéras magnífica, produzindo a mais bela impressão no espírito da assistência que não nos regateou aplausos. [...] No desempenho do programa tomaram parte, também, os alunos da Escola Moderna N.2, que nos ajudaram no côro, cantando alguns de nossos hinos escolares e recitando poesias. [...] Alêm dêsses, foram cantados outros hinos: ‘Ladainha’ e “De Manhã’, acompanhados de música e gesticulação, tomando parte no côro os nossos colegas Antonieta Moraes, Catarina e Marcelina Bari, Elisa Santiago, Lucilia Haas, Edmundo Mazzone, Edmundo Scala, Ernesto Tozzatto, Bruno Bertolaccine e Francisco Tognoli. [...] No desempenho da comédia ‘A Questão’, original de nosso professor, tomaram parte Bruno Bertolaccine, Edmundo Scala, Pedro Passos, e como comparsas Edmundo Mazzone, Francisco Tognoli, Antonieta de Morais, Ernesto Tozzato e Catarina Bari. O dialogo ‘O Vagabundo’ foi desempenhado por Pedro Passos e Bruno Bertolaccine. [...] O festival foi encerrado com o canto do hino A Instrução, seguindo se logo uma bela conferência pelo professor Adelino Pinho, da Escola Moderna N.º 2. A quermésse, a este tempo (pouco menos de meia noite) já tinha sido exgotada até a última prenda” (“A nossa festa”. In: O Início. São Paulo, 04 de setembro de 1915). 190 Como a festa em questão se voltava à arrecadação de fundos para a escola, se faz necessário “prestação de contas” à comunidade. 191 “A guerra é a luta mais terrivel do mundo. [...] A guerra tem origem no crime e traz consigo a morte, a peste, a forme, etc. Ela existe por causa da perversidade dos reis. Assim os paizes se declaram em guerra, e os operarios vão morrer a titulo de defeza da pátria” (Galante, “A Guerra”. In: O Início. São Paulo, 05 de setembro de 1914). 192 “O alcool é o mais terrivel inimigo do homem. [...] diante dos olhos se lhe afiguram trez caminhos: primeiro é o da cadeia, o segundo é o da morte no hospital, e o terceiro é o do hospício. [...] Nós todos devemos combater este vício, abstendo-nos o mais possivel de bebidas alcoolicas. Nem por brinquedo devemos beber” (Palenaz, “O Alcoolismo”. In: O Início. São Paulo, 05 de setembro de 1914).

156

Figura 34: O Início. São Paulo, 19 de agosto de 1916

Fonte: CME/FEUSP

O periódico O Início publicava os textos escritos pelos alunos e também tinha alguns

deles na comissão de redação. Dessa forma, possibilitava aos alunos o ativismo pedagógico e,

em alguma medida, contemplava o que se defendia como “ensino integral”, bem como um

ambiente de colaboração e horizontalidade na relação aluno-professor, sendo todos

corresponsáveis pela (auto)gestão deste veículo.

157

Como observou Tatiana Calsavara, as informações contidas n’O Início, asseguram que

ambas as escolas modernas de São Paulo eram “escolas mistas, sem exames, sem promoções,

sem castigos, combinando um currículo convencional com a difusão dos princípios anarquistas”

(CALSAVARA, 2004, p. 179), e que desenvolveram práticas pedagógicas semelhantes às de

Barcelona.

Nos quatro números do periódico Boletim da Escola Moderna, observa-se uma grande

mudança em relação à forma e ao conteúdo do que era publicado n’O Início – os editores

indicavam ter intenção de manter ambos os jornais ativos, mas O Início não pôde mais ser

produzido por razões financeiras.193 As práticas educativas desenvolvidas pelos alunos

aparecem de maneira indireta, quando menciona-se a participação em eventos festivos da

escola, ou ao fazer alusão ao ensino racionalista ministrado pela escola, mas sem apresentar as

atividades dos alunos ou explicitar mais claramente quais práticas foram desenvolvidas. Foi

possível identificar cinco artigos em defesa do ensino racionalista194; dois artigos em defesa dos

valores libertários (crítica ao capitalismo195 e às escolas da Igreja e as escolas oficiais196 197);

193 “O Início, publicação dos alumnos dessa escola, que devia hoje reapparecer, ficou substituído pelo Boletim da Escola Moderna, em virtude de não ser possível a publicação dos dous jornaes, que embora pequenos, accarretar-nos-iam despezas além das possibilidades no momento actual” (Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918). 194 “O clamor geral elevado pela imprensa clerical contra a Escola Moderna, a que poderemos dever um anno de carcere, prova-nos que acertamos na escolha do methodo de ensino e nos ha de dar a todos os racionalistas novos alentos para prosseguir a obra com mais ardor que nunca e engrandecel-a, propagando-a até onde o nosso poder alcance. [...] O ensino racionalista e scientifico da Escola Moderna ha de abarcar, como se vê, o estudo de tudo o que seja favorável á liberdade do individuo e á harmonia da collectividade” (Francisco Ferrer y Guardia, “Racionalismo Humanitário”. In: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918). 195 “Quem primeiro te instituiu, ó dinheiro, que tão poderoso te impões a teus adoradores?! Quem, se não o espirito do mal; quem se não ele?! És a eterna synthese da escravidão, da ruina, da miseria e das depravações que nos vêm assoberbando desde tempos imemoriaes! [...] o deslumbrar do ouro que fascina e faz quebrar os laços de fraternidade entre os homens, cujos corações são mais affeitos ao amor do metal sonante que ao do proximo” (João Penteado, “O Dinheiro”. In: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 1º de maio de 1919). 196 “A Escola, com raras excepções, até aqui, tem sido instrumento de exploração religiosa, dirigida, protegida e inspirada por padres, frades e caterva de ambos os sexos, com o intuito evidente de corromper o espirito da humanidade e desvial-o do caminho do progresso, sustentando indefinidamente o dominio dessas chagas daninhas que são verdadeiras peias moraes e intellectuaes para a marcha ascendente do progresso. [...] Mais tarde quando o poder político quiz sacudir o jugo religioso, isto é, sobrepor-se á egreja e conserval-a como subordinada e aliada, todos os estados do universo tomaram como cavallo de batalha a instrução popular [...] a instrucção civica, os direitos e deveres dos cidadãos, a instrucção militar” (Adelino de Pinho, “A Escola”. In: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918). 197 “[...] convem deixar a criança entregue á plenitude da sua intelligencia, de modo a fazel-a acreditar ou não no que lhe parecer, sem sugestões, sem imposições de qualquer especie, uma educação, emfin, que seja o complemento da instrucção que lhe fôr ministrada. [...] Banir os dogmas é um dever que se impõe. A escola não é um templo religioso nem um centro político. [...] guerreêmos a instrucção oficial, embrutecedora e cheia de prejuizos, e dediquemo-nos simplesmente a propagar a luz sublime da Sciencia e da Razão!” (Elmano de Andrade, “A Instrucção Racional – Base da Liberdade Humana”. In: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 1º de maio de 1919).

158

seis artigos sobre festas realizadas para arrecadação de recursos para a escola198; sete artigos

sobre efemérides (13 de outubro – memória de Ferrer na data de seu falecimento199, 1º de maio

– Dia do Trabalhador200, 18 de março – aniversário da Comuna de Paris201); quatro balancetes

de festas e doações à escola; quatro sobre estatísticas da escola (cursos ofertados, programas,

alunos matriculados, frequência, horários), entre outros. O objetivo deste periódico passa a ser

o de “prestar valiosissima contribuição para a obra de propaganda racionalista, que temos

emprehendido, servindo de vehiculo para a disseminação das modernas correntes de ideias que

tendem a rehabilitar a humanidade para a vida, redimindo-a e tornando-a livre e feliz.” (Boletim

da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918)

198 “A festa realizada a 22 de fevereiro na séde da Escola Moderna N.º 1, correu a contento da assistencia, que não regateou applausos aos alunos, que cantaram hymnos e recitaram belas poesias. [...] conferencia sobre o thema ‘O signal dos tempos’, por João Penteado. Terminada esta parte, passou-se ao baile familiar, que esteve bastante animado. Houve também leilão de prendas” (“A festa de fevereiro”. In: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 18 de março de 1918). 199 “[...] os homens de boa vontade, os espiritos esclarecidos, não deixarão de fazer surgir do somno do esquecimento essa figura de emérito educador que foi Francisco Ferrer e, o que mais interessa, fazer reviver a sua incomparavel obra. A Escola Moderna de Barcelona foi um monumento grandioso erigido por um paladino da instrucção e da liberdade para felicidade e gloria das gerações novas. O seu plano de conjuncto, isto é, os fins a que visava Ferrer com a sua Escola eram de tríplice objectivo: escolar, familiar e social. [...] E como premio de tantos merecimentos foi varado pelas descargas dum pelotão de inconscientes soldados, e morreu bradando: ‘Viva a Escola Moderna!’” (Pinho de Riga, “Francisco Ferrer” In: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918). 200 “Não, os vossos filhos não terão mais, pensando na infancia dos trabalhadores, a visão horripilante que nos enche de tristeza e de vergonha. A infância será poupada porque todos os homens trabalharão e a producção terá por fim a satisfação das necessidades communs e não o lucro de poucos, e a machina sera auxiliar e não tyranna do homem; vossos filhos frequentarão tambem a escola, porque todos terão o direito a cultivar o espirito até o limite reconhecido pelas tendencias, capacidade e dignidade do homem civilizado; elles crescerão contentes e benévolos, porque não crescerão mais na miseria tetrica e na canceira bestial que confunde a consciencia e perverte o coração; eles amarão o trabalho e a vida, porque o trabalho será humanamente medido e compensado, e a vida não será mais uma guerra fratricida para a qual uns nascem armados e outros inermes, na qual por um forte ou um astuto que triumpha, milhares de debeis mordem o chão [...]. E vós, crianças, fixai na mente a data do 1º de Maio, que nada talvez vos diz ainda. Um dia chegará em que tambem signifique para vós: concordia, esperança, victoria, pacificação” (Edmundo de Amicis, “Salvé 1.º de Maio”. In: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 1º de maio de 1919). 201 “Tudo hoje nos convida á luta para a conquista dos direitos da Humanidade, que depois da conflagração [Revolução Russa] começa a agir, despertando para a vida. É o que estamos vendo. [...] Somos os continuadores daquelles que nos antecederam na luta pela redempção da Humanidade; viemos do Passado e marchamos para a frente, certos da victoria, que nos sorri. E assim, hoje, brademos: Viva a Comuna” (João Penteado, “Salvé, 18 de Março”. In: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 18 de março de 1919).

159

Figura 35: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 de outubro de 1918

Fonte: CME/FEUSP

Nas páginas do Boletim, há poucas referências diretas aos grandes expoentes do

pensamento libertário/anarquista. As palavras de Ferrer ou menções a seu nome e ao ensino

racionalista aparecem em 5 artigos; um artigo de Élisée Reclus intitulado “Tudo Muda” que

trata das grandes transformações pelas quais a natureza constantemente e lentamente passa; os

nomes de Louise Michel e Louis Blanqui são mencionados ao tratar de suas lutas em defesa

dos valores libertários/igualitários no contexto da Comuna de Paris; há a divulgação do folheto

“Porque vence o Porvir?” da pedagoga anarquista Maria Lacerda de Moura; uma breve citação

160

do maçom jurista e antimonarquista Édouard Laboulaye. O restante (2/3) trata de assuntos

diversos da própria Escola Moderna N.1. A escolha, que podemos atribuir a João Penteado, de

não vincular-se explicitamente ao ideário anarquista, mas de trazer conteúdos fortemente

ligados à justiça social, igualdade, cientificismo, antiestatismo, anticlericalismo e

antiautoritarismo pode ser interpretada como uma tática (semelhante ao que Ramón Safón

identificou em Ferrer) “para evitar as interferências governamentais, por um lado, e por outro,

na esperança de encorajar todas as boas vontades de esquerda a juntar-se a ele” (SAFÓN, 2003,

p. 25).

Nas palavras do próprio João Penteado, o Boletim da Escola Moderna era produzido,

não mais em colaboração com os alunos da escola, como era o jornal O Início, “mas sim por

pessoas de convicções formadas, professores ou não, tendo em mira a divulgação das ideas

racionalistas e assumptos de interesse social” (defesa formalizada por João Penteado dirigida

ao Secretário de Justiça e Segurança Pública em decorrência do fechamento da Escola Moderna

N.1 apud LUIZETTO, 1984, anexos).

No primeiro número do Boletim, consta o esclarecimento de que a interrupção da

publicação d’O Início teria ocorrido por dificuldades financeiras, mas que seria retomado

“quando as cousas melhorarem”. Caso ambos os periódicos fossem publicados

simultaneamente, teria o propósito muito semelhante ao adotado no Boletín de la Escuela

Moderna, que buscava tornar conhecido

os programas da escola, notícias interessantes da mesma, dados estatísticos,

estudos pedagógicos originais de seus professores, notícias do progresso do

ensino racional no próprio país ou em países diferentes, traduções de artigos

notáveis de revistas e periódicos estrangeiros em concordância com o caráter

predominante da publicação, resenhas das conferências dominicais e, em

último lugar, os avisos dos concursos públicos para completar nosso

professorado e os anúncios de nossa Biblioteca.

Uma das seções do Boletim que alcançaram maior êxito foi a destinada à

publicação de pensamentos dos alunos. Mais que uma exposição de seus

avanços, em cujo conceito jamais tinham sido publicados, era a manifestação

espontânea do senso comum. Meninas e meninos, sem diferença apreciável

em conceito intelectual por causa do sexo, no choque com a realidade da vida

que as explicações dos professores e as leituras lhes ofereciam, consignavam

suas impressões em notas simples que, se às vezes eram juízos simplistas e

incompletos, muitas mais resultavam de uma lógica incomparável, que

tratavam de assuntos filosóficos, políticos ou sociais de importância

(FERRER, 2014, p. 139).

161

4.5 Reflexões sobre as apropriações pedagógicas libertárias na Escola Moderna N.1

[...] justamente nelas [as escola], nos seus bancos e nos seus livros

que se preparam as novas gerações, que fatalmente serão arrastadas

para a felicidade ou para a desgraça, para o bem ou para o mal, para

a liberdade ou para a escravidão, para a paz ou para a guerra, para

a vida ou para a morte, segundo o critério em que elas se baseiam,

segundo o espírito bom ou mau que os anima e o objetivo a que elas

se destinam.

(João Penteado. As escolas e sua influencia social)202

Este capítulo não se propôs a identificar o grau de fidelidade da Escola Moderna N.1 ao

ensino ferrerista, racionalista ou libertário, mas compreender em que medida as ideias

pedagógicas que circularam no meio operário paulista e que chegaram até as mãos dos

educadores desta instituição foram apreendidas, (re)interpretadas, ganhando um sentido e uma

aplicação dentro dos limites do contexto de funcionamento da escola (legislação, recursos

financeiros, preparo técnico dos professores, horizonte teórico dos envolvidos) e das

possibilidades metodológicas das fontes disponíveis (não permitem avançar no entendimento

das práticas).

A Escola Moderna N.1 foi, em muitos aspectos, tributária da Escola Moderna de

Barcelona. Alguns dos elementos que reforçam esta relação são constantes as referências ao

racionalismo pedagógico, à introdução de passeios educativos, ao incentivo à produção escrita,

ao princípio de que não se educa pela punição ou premiação, à defesa da coeducação dos sexos,

à ausência de exames, a um esforço para que a comunidade se aproxime e se envolva com a

escola, ao laicismo e ao antiestatismo. Segundo Samira Chahin (2013)

[...] é possível perceber que a predominância da influência do modelo da

Escola Moderna de Ferrer em detrimento de outros referenciais educacionais

libertários – como o Orfanato Prévost, de Paul Robin, ou La Ruche, de

Sebastien Faure – decorreu sobretudo da ênfase de Ferrer no combate a

programas dogmáticos de educação (CHAHIN, 2013, p. 44).

Mais adiante, a mesma pesquisadora diz que

Pelas distinções entre suas experiências, é preciso ter em mente que a Escola

Moderna de Barcelona não funcionou como um modelo propriamente dito,

mas como uma inspiração para a realização de outros programas semelhantes.

Ou seja, as Escolas fundadas no Brasil não seguiram uma receita educativa,

mas sim se inspiraram na obra de Ferrer i Guàrdia, sobretudo pelo ímpeto

combativo fortalecido com o seu fuzilamento e, posteriormente, pelo

202 Publicado no jornal A Vida. São Paulo, 15 de dezembro de 1914 (FONTE: CME/FEUSP).

162

programa ecoado da publicação póstuma do conjunto de textos reunidos em

‘La Escuela Moderna’. No conjunto do referencial teórico aportado pela obra

de Ferrer, e por outros autores anarquistas também lidos no Brasil, bem como

pelo próprio contexto sócio-político de modernização da cidade, emergiu o

programa de São Paulo. [...] não houve na proposta editorial da Escola

Moderna de Barcelona uma publicação que tenha atentado objetivamente para

os procedimentos didáticos, em termos de operacionalizações cotidianas, de

maneira instrumentalmente pormenorizada. Independentemente das razões,

tal postura deixou margem para que as experiências locais se desenvolvessem

com liberdade programática de modo a se adequarem às condições próprias

de seus contextos sócio-políticos. A experiência brasileira, dessa maneira,

parece ter acontecido por seus próprios meios e a partir do referencial que lhe

esteve ao alcance das mãos (Ibid., p. 150 e 158).

Para Douglas Leutprecht (2018), as obras sobre a Escola Moderna de Barcelona (o

Boletín de la Escuela Moderna, os livros editados pela casa editorial Publicaciones de la

Escuela Moderna), mas sobretudo o livro La Escuela Moderna teriam sido os principais

dispositivos de modelização.

É provável que, no processo de elaboração da obra, Ferrer y Guardia tinha

noção de que ela seria o principal dispositivo de circulação do modelo

pedagógico racionalista após sua morte, de modo que podemos considerá-la o

livro-manifesto do movimento escolamodernista. E como todo manifesto, seu

objetivo, mais do que registrar uma dada realidade, é interpelar os sujeitos e

convencê-los da importância de um dado pensamento (LEUTPRECHT, 2018,

p. 116).

Por sua vez, as autoridades estatais procuram impor seus modelos e normas (programa,

livros, práticas “para imitar”, horários e rotina, inspeção etc.) e, como foi visto, alguns desses

elementos também foram adotados na Escola Moderna N.1.

Os dispositivos de modelização visam manter a coerência do modelo pedagógico. No

entanto, como o autor opera com o conceito de apropriação, entende-se que o processo de

implantação das práticas não é passivo, não se submete a aplicar o modelo sem que se faça sua

própria interpretação e imponha seus interesses, dentro de certas possibilidades, pois

Os conflitos entre os diversos grupos sociais envolvidos em um processo de

apropriação definem, em grande parte, o que será apropriado e como será

apropriado. Envolve pensar características sociais e culturais que alteram a

forma com que os sujeitos leem suas respectivas realidades, bem como a

forma com que consomem um dado modelo pedagógico (LEUTPRECHT,

2018, p. 23-24).

Se, por um lado, os periódicos O Início e Boletim da Escola Moderna foram tratados

enquanto fontes primárias privilegiadas sobre as práticas (“modos de fazer”), valores e

funcionamento da Escola Moderna N.1, por outro deve ser visto com certa reserva, já que se

trata de um material produzido para circular entre os apoiadores, colaboradores e eventuais

interessados em conhecer o ensino racionalista propugnado por esta instituição. Dada essa

163

característica do material em questão, seria preciso encará-lo sob a ótica da representação

(“modo de ver”), enquanto um discurso produzido por agentes que constroem uma certa

imagem de si mesmos para seu leitor, pois trata-se de uma obra de propaganda (CHARTIER,

2002).

Entre as práticas e as representações se inserem as reflexões trazidas por Pierre

Bourdieu (2004) acerca do grau de autonomia que a Escola Moderna N.1 poderia usufruir, já

que possuía vínculo identitário com a pedagogia racionalista e o ideário anarquista, por um lado

e, por outro, deveria acatar as determinações legais para garantir seu direito de funcionamento

junto às autoridades governamentais.

Pode-se concluir que a Escola Moderna N.1 possuiu grande autonomia durante

praticamente todo o período de seu funcionamento, já que a “censura” (enquanto limites e

características das práticas pedagógicas e dos valores morais libertários) que havia era

essencialmente do próprio campo da pedagogia libertária ou racionalista, das pressões ou

expectativas oriundas do próprio meio social a quem João Penteado deveria “prestar contas”

(alunos, pais de alunos, comunidade, interessados, livres-pensadores, libertários, anarquistas,

sindicatos etc.). Só não se pode afirmar que a autonomia era perfeita, pois havia certos limites

estabelecidos nos programas e determinações legais que deveriam ser cumpridos (ainda assim,

realizados por agentes internos ao campo educacional), bem como pressões sob a forma de

críticas e sanções vindas de setores sociais contrários às teses anarquistas/libertárias (agentes

externos ao campo).

Autores como Samira Chahin (2013) e Douglas Leutprecht (2018) apontaram para uma

independência programática da Escola Moderna N.1 e para práticas que, se não eram originais

(pois tomavam como referência o racionalismo pedagógico desenvolvido na Escola Moderna

de Barcelona, mas também o método de “lição de coisas”, amplamente difundido entre as

escolas primárias paulistas) eram inovadoras para o contexto em que a escola estava inserida.

Mais do que isso, as práticas e os valores estavam alinhados aos princípios libertários.

As apropriações, ou seja, os crivos, as intepretações e as aplicações de práticas

pedagógicas são escolhas que se operam em um campo no qual as disputas entre manter-se fiel

aos princípios e práticas do modelo em questão – seja por convicção pessoal seja por conta das

expectativas que os agentes internos e externos depositavam na escola – e comprometer-se a

ponto de sofrer perseguições e represálias como tantas outras escolas libertárias sofreram (maior

autonomia), ou ter de abandonar tais princípios e práticas para poder manter a escola em

funcionamento, mesmo que descaracterizada dos seus propósitos originais (maior

164

heteronomia). João Penteado procurou assegurar a autonomia, a autogestão institucional e

pedagógica, promover um ensino antiautoritário sob o método racionalista, desenvolvendo a

coeducação dos sexos e das classes, buscando desenvolver o espírito crítico, a solidariedade e

o sentimento de justiça.

O fechamento da escola se explica enquanto resultado oriundo de uma força heterônoma

ao campo propriamente educacional, que se justificava sob alegação de que os fins da escola

visavam “á propaganda de idéas terroristas no seio dos seus alunos”, que “o programma dessas

escolas visa a propagação de idéas anarchistas e a implantação do regimen comunista, ferindo

de modo inilludivel a organisação politica e social do paiz” e ainda promoviam ideias que

excitavam “á revolta, á destruição da propriedade, ao damno, ao assassínio ou qualquer atentado

pessoal, sobretudo por meio de folhas distribuidas gratuitamente [referindo-se ao Boletim da

Escola Moderna]” (ALVES, Oscar Rodrigues. Relatório. 1919). João Penteado, diante das

acusações formalizadas para o fechamento da Escola Moderna, assim a defendeu e o

movimento anarquista:

O anarquismo é a mais alta, a mais sublime e a mais dignificante expressão do

ideal comunista concebido e divulgado pelos seus grandes apóstolos tais como

Tolstoi, Kropotkini, Eliseu Reclu, A. Hamon, Jean Grave, Sebastien Foure

(sic) e tantos outros, cujas obras literárias e científicas constituem atestado de

superioridade moral dos ideais anarquistas sobre todos os outros princípios

filosóficos, políticos e sociais até hoje pregado entre os homens. [...] É certo

que defendemos a teoria do amor livre, que será, de certo, a norma da

organização social futura, mas ainda assim e apesar de todas as transformações

econômicas, políticas e sociais por que fatalmente a humanidade há de passar

a família será sempre admitida como um fato natural, indispensável, que

traduzirá a condição ‘sine-qua-non’ da nossa existência” (Ofício redigido por

João Penteado endereçado ao então ministro do Supremo Tribunal do Estado

de São Paulo, dr. Miguel José de Brito Bastos apud LUIZETTO, 1984,

anexos).

Diferentemente de quaisquer outras, as escolas modernas (ou racionalistas como um

todo) estariam inseridas em um projeto mais amplo, formando, à sua maneira, um homem novo

para uma sociedade nova, libertária, objetivando

a perfeição do individuo. Logo, para que as novas gerações sejam educadas

integral, racional e scientificamente; para que a humanidade de amanhã seja

formada de organismos robustos, cerebros illustrados, corações affectuosos e

caracteres dignos, só uma instituição se torna preciso erguer: a Escola

Moderna (Elmano de Andrade, “A Instrucção Racional – Base da Liberdade

Humana”. In: Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 1º de maio de 1919).

165

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Les profs pénétres / Par les académiques

Donnent un savoir oriente / De facon systematique

Les programmes si selectifs / Sont les preuves de la censure

Guider les memes passifs / Vers la patrie ordure

Système scolaire / Un mode, un mode autoritaire203 (Trecho da canção “Système scolaire”)204

Procurei expor ao longo desta dissertação que a Educação não se restringe ao campo da

cultura, pois esta, por si, está imbrincada pelo social, econômico e político; é um campo no qual

diferentes agentes, com diferentes interesses e pesos, estão em disputa, não havendo

neutralidade, mas intencionalidades. Como foi explorado nos capítulos 3 e 4, a Escola Moderna

N.1 conquistou/assegurou sua autonomia durante praticamente todo o período de seu

funcionamento, pois

Uma das manifestações mais visíveis da autonomia do campo é sua

capacidade de refratar, retraduzindo sob uma forma específica as pressões e

as demandas externas. [...] Dizemos que quanto mais autônomo for um campo,

maior será o seu poder de refração e mais imposições externas serão

transfiguradas. (BOURDIEU, 2004, p. 22).

Articulando esse grau de autonomia à capacidade de apropriação, vimos que a Escola

Moderna N.1 foi capaz de desenvolver suas próprias soluções, diante de um contexto particular,

produzindo e desenvolvendo práticas educativas que, espera-se, possam ser continuamente

estudadas e, por que não, apropriadas?

No primeiro capítulo, Renovação pedagógica, uma breve discussão, procurou-se

demonstrar que o movimento escolanovista e a pedagogia libertária surgiram num mesmo

contexto de grandes transformações sociais, cientificismo e expansão da escolarização. Ambas

compartilhavam do propósito de superação da “escola tradicional”, com vistas a formar um

novo homem e, nesse sentido, defenderam novos elementos educacionais (“pedagogia do

ativismo”, respeito ao desenvolvimento natural e à liberdade das crianças, eliminar o sistema

203 “Professores impregnados / Pelos [saberes] acadêmicos / Dão um conhecimento orientado / De uma maneira sistemática / Os programas tão seletivos / São as provas da censura / Guiando os mesmos passivos / Para o lixo da pátria / Sistema escolar / Um modo, um modo autoritário” (trad. livre). 204 Ya Basta! Système scolaire. Intérprete: Ya Basta! In: __________ Lucha y Fiesta. Pfinztal (Alemanha): Twisted Chords, p1979. 1 LP/1 CD (36 min 45 s). Faixa 4 (2 min 27 s).

166

de premiações e castigos, garantir a coeducação dos sexos). Foi destacado o aspecto

revolucionário da pedagogia libertária, que propunha uma educação para formação de

indivíduos completos (nos termos da educação integral) e preparados para serem membros

ativos e solidários, transformadores da realidade social em que vivem.

No segundo capítulo, Experiências pedagógicas libertárias, foram apresentados os

casos da escola-rural de Iasnaia Poliana, do orfanato Prévost, da escola-comunidade La Ruche

e da Escola Moderna de Barcelona de forma a destacar algumas das suas diretrizes e práticas

libertárias (foco no aluno e em seus interesses, valorização da espontaneidade, estímulo à

observação direta, à pesquisa e à discussão entre pares e à escrita livre, ausência de prêmios e

castigos, inclusão de trabalhos manuais e atividades lúdicas, coeducação, valorização da ciência

etc.), que, na época, ganharam bastante projeção e serviram de referência para diversas

instituições pedagógicas libertárias, como a Escola Moderna N.1.

No terceiro capítulo, a ênfase recaiu sobre o contexto no qual a Escola Moderna N.1

atuou, o panorama social da cidade de São Paulo do fim do século XIX e início do século XX,

da constituição, organização e formas de luta do operariado, dentre elas, a promoção de escolas

racionalistas, por influência do pensamento anarquista. Aspectos da fundação, funcionamento

e fechamento da Escola Moderna N.1 também foram abordados, relacionados às tensões sociais

do período, particularmente às agitações grevistas dos anos de 1917 e 1919. Importante

destaque foi dado à biografia de João Penteado, diretor e professor da Escola Moderna N.1

durante os anos de 1913 a 1919.

No quarto e último capítulo, buscou-se apresentar as fontes da Escola Moderna N.1 que

pudessem evidenciar as práticas pedagógicas libertárias (aulas-passeio, ênfase na observação-

raciocínio-descrição-registro, uso do periódico escolar, ), mas também as práticas comuns às

escolas primárias paulistas do período (programa, “livro de leitura”, “lição de coisas”). Era de

se esperar que as práticas não fossem meras “cópias” das realizadas na Escola Moderna de

Barcelona, pois se fazia necessário adequar tais modelos à realidade da Escola Moderna N.1 e

interesse/intencionalidade de João Penteado e demais colaboradores, bem como ao grau de

heteronomia exercido pelas autoridades educacionais e políticas do período.

Ao apresentar as diferentes e complementares ideias defendidas pelos pesquisadores que

se debruçaram sobre o tema205, analisando documentos conhecidos e tantos outros inéditos, a

presente dissertação buscou melhor situar a pedagogia libertária no contexto da renovação

205 Refiro-me especialmente a Flávio Luizetto (1984), Tatiana Calsavara (2004), Luciana dos Santos (2009), Samira Chahin (2013), Rogério de Castro (2014) e Douglas Leutprecht (2018).

167

pedagógica, bem como expor práticas e valores que se retroalimentam, que de uma experiência

para outra geraram ideias que são apropriadas e repercutem no meio, com ênfase nas

particularidades observadas na Escola Moderna N.1.

Trata-se de mais um trabalho que se soma a tantos outros sobre a história do anarquismo

da pedagogia libertária, exemplo reforça o crescente o interesse sobre o assunto, num período

de resgate dos conceitos, bandeiras e táticas anarquistas, de formação de coletivos para

enfrentar as políticas antidemocráticas e repressivas do Estado, particularmente suas medidas

neoliberais, em diversos lugares do mundo. É certo que um dos conceitos fortes do anarquismo

é o da autogestão, e cada vez mais instituições da sociedade civil vêm reclamando por isso,

buscando maior autonomia. (ZÚQUETE, 2016)

Governos, alinhados ao modelo neoliberal206, têm realizado uma política de

desinvestimentos207 e confiando a um conglomerado composto por ONGs, grandes empresas,

lideranças da indústria e do mercado financeiro (ver imagem a seguir) medidas que

supostamente reverteriam o cenário supostamente desalentador do setor educacional por meio

de reformas no ensino208.

206 As reformas neoliberais, melhor definidas após o “Consenso de Washington” se expressam na defesa de medidas como disciplina fiscal, reforma tributária, liberalização financeira, abertura do comércio exterior, desregulação da economia, privatização e investimento em setores de maior retorno econômico imediato em detrimento de programas sociais, educacionais e culturais (BRANDÃO, 2017) a fim de reforçar o papel do setor privado na economia. No contexto sul-americano, os governos de Ollanta Humala (Peru, 2011-2016), Juan Manuel Santos (Colômbia, 2010-2018), Maurício Macri (Argentina, 2015-2019) e Jair Bolsonaro (Brasil, 2019-2021) levaram a cabo uma agenda neoliberal. 207 A título de exemplo: PEC 241/2016 (fixação dos gastos públicos, que representa, entre outras medidas econômicas a nível federal, redução de valores repassados para a Educação), MP 746/2016 (Reforma do Ensino Médio, que estabelece flexibilização curricular, determinando apenas Língua Portuguesa e Matemática como disciplinas obrigatórias), piso salarial do magistério (fixado em 2020 no valor R$2.886,24 para jornada de 40 horas semanais, sendo que o salário mínimo em 01/02/2020 passou a ser de R$1.045,00, mas pelos cálculos do DIEESE, referente a fevereiro de 2020, deveria ser fixado em R$4.366,51). 208 BNCC... Reforma do Ensino Médio...

168

Figura 36: Sujeitos individuais e coletivos das reformas em curso no Brasil

Fonte: PERONI; CAETANO; LIMA, 2017, p. 419

No Brasil notamos que os discursos que defendem as reformas educacionais

contemporâneas frequentemente resgatam conceitos e práticas escolanovistas, atualizando-as,

na intenção de encontrar respostas para as novas “crises educacionais”, sem levantar questões

acerca dos elementos que estruturam tais “crises”. Tampouco problematizam o modelo de

sociedade que temos e a que se pretende construir. Pelo contrário, buscam por meio delas

adequar os alunos às novas exigências do capital:

Esta concepção seria, segundo os organismos multilaterais [Banco Mundial,

Cepal, Unesco, OCDE], mais adequada à formação de novos requisitos de

qualificação profissional, requeridos pelo mundo do trabalho contemporâneo,

caracterizados por novas disposições cognitivas, comportamentais e

atitudinais (CAMPOS; SHIROMA, 1999, p. 485).

Adotar tais reformas é, justamente, reforçar a lógica capitalista e aprofundar as

distorções no ensino e na sociedade. Dessa forma, a escola perde autonomia e volta-se para o

controle dos corpos, reprodução de conteúdos, valores e condutas. Nesse cenário, as

contribuições das experiências libertárias podem auxiliar no sentido de refratar e mesmo

apresentar uma proposta educacional “contra-hegemônica” – resta que aqueles de espírito

libertário realizem suas apropriações.

169

Se há um lugar e um sentido para uma escola anarquista hoje, esse é o do

enfrentamento; uma pedagogia libertária de fato é incompatível com a

estrutura do Estado e da sociedade capitalista. [...] trata-se, portanto, de testar

essa elasticidade, tensionando-a permanentemente, buscando os pontos de

ruptura que possibilitariam a emergência do novo, através do

desenvolvimento de consciências e atos que busquem escapar aos limites do

capitalismo (GALLO, 2007, p. 27-28).

Figura 37: Retrato de João Penteado (s/d)

Fonte: CEM/FEUSP

E é assim que os anarquistas, hoje e no futuro, poderão demonstrar com fatos que o

anarquismo é a única força que defende, protege, ampara e respeita a causa da justiça, em

busca do ideal de amor, de paz e de felicidade, que se realizará na Terra, transformando-a

num paraíso, em que sem fronteiras para separar as nações umas das outras e sem exército

para garantir as suas linhas divisórias, sem escravos nem amos, sem déspotas nem governos,

nem autoridades nem chefes, o homem será livre sobre a terra livre.

(João Penteado. A Doutrina Libertária e Seus Adversários)

170

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Periódicos

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A PLEBE. São Paulo, 1917-1921.

A VIDA. São Paulo, 1914.

BOLETIM DA ESCOLA MODERNA. São Paulo, 1918-1919.

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GAZETA DO POVO. São Paulo, 1910-1911.

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