Tarkovsky: Intersubjectividade e Tempo
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Trabalho para o Seminário
CINEMA CONTEMPORÂNEO
Mestrado Ciências da Comunicação - Cultura Contemporânea e
Novas Tecnologias
Docente Professora Doutora Inês Gil
-Tarkovsky
Intersubjectividade e tempo-___________________________________________________________
______
Ano lectivo 2013/2014
Paulo Moisés Silvestre de Figueiredo
Nota: este trabalho foi escrito de acordo com a ortografia antiga
"A vida é mais fantástica do que qualquer fantasia."
Fyodor Dostoyevsky
Falar de Andrei Tarkovsky é falar da arte como busca da verdade absoluta. Nas
palavras do próprio, “a arte, como a ciência, é um meio de assimilação do
mundo, um instrumento para conhecê-lo ao longo da jornada do homem em
direcção ao que é chamado "verdade absoluta".” (Pág. 39) Numa luta
particular contra um sistema totalitário e censurante que buscava
precisamente o mutilar do corpo e usar a arte como propaganda, Tarkovsky
utilizou o domínio da intersubjectividade como forma de luta contra uma
dimensão política-comunista, que forçou várias vezes o cineasta a rever os seus
filmes para que pudessem ser exibidos. A consequente emigração levou-o a
realizar filmes em associação com suecos e franceses. Viria a falecer em Paris a
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28 de Dezembro de 1986, data que apareceu vários anos antes numa
sequência de «Stalker» (imagem em cima). Para Tarkovsky, a função do cinema
deveria ser a de despertar a alma e os desejos, e como legado deixa-nos um
Sino, um Espelho, a Zona e Solaris, como pontos de encontro para reflexão
sobre a humanidade.
Introdução
O presente trabalho visa fazer uma análise a dois
filmes de Andrei Tarkovsky, «Solaris» e «Stalker», tendo
como pano de fundo o livro de Gilles Deleuze, «Cinema II:
Imagem – Tempo». Proponho-me a trabalhar a distinção entre
cinema clássico e moderno, mais concretamente a noção de
zona de indeterminabilidade e de que forma esta se
manifesta em Tarkovsky e que conclusões podemos daí
retirar. Se no primeiro filme é o próprio planeta Solaris
que traça esta zona, em «Stalker» o espaço de reflexão é
apelidado precisamente de Zona. Irei distinguir em
Tarkovsky dois conceitos principais: intersubjectividade e
tempo. No primeiro debruçar-me-ei na forma como o cineasta
convida o espectador a entrar na acção, interpretando-a e
construindo pontos de encontro entre todos os
intervenientes, actores, personagens, espectadores e o
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próprio Tarkovsky. Num segundo momento, irei referir as
consequências que os planos-sequência e outras
técnicas/aspectos em Tarkovsky têm no resultado dos filmes
e na sua interpretação.
Nestes dois momentos parece-me ser diagnosticável todo
o processo que Gilles Deleuze descreve em «Cinema II:
Imagem – Tempo». Seja a dimensão interpretativa ou a
reinvenção do tempo, Tarkovsky ao longo da sua filmografia
debruçou-se sobre os efeitos no espectador, sobre a função
do cinema e da arte em geral, condenou o cinema de
montagem, curiosamente a estrela mais brilhante do cinema
russo a partir de Sergei Eisenstein. Através de seu pai,
Arseny Alexandrovich Tarkovsky, poeta conceituado,
transformou os seus filmes em “poética das imagens”, usando
a vasta obra de Arseny quer directamente no argumento, quer
como inspiração para construír a mise-en-scène. Tarkovsky
afirmava que a mise-en-scène servia “para expressar o
significado do que está a acontecer; nada mais que isso.
Mas definir dessa forma os limites da mise-en-scène
equivale a seguir um caminho que leva a um único fim: a
abstracção.” Dessa forma Tarkovsky acreditava que o
“director tem de trabalhar a partir do estado psicológico
dos personagens, através da dinâmica interior da atmosfera
da situação, e reportar tudo isso à verdade do facto
directamente observado e à sua textura única. Só então a
mise-en-scène alcançará a importância específica e
multifacetada da verdade concreta” (Pág. 85-86). O
cineasta, na sua obra literária «Esculpir o Tempo»,
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exemplifica da seguinte forma o que pretende dizer com
apelar à “dinâmica interior”: “Friedrich Gorenstein, por
exemplo, escreveu num roteiro que o quarto cheirava a
poeira, flores mortas e tinta seca. Gosto muito disso, pois
me permite começar a imaginar como é aquele interior, e
sentir a sua "alma".” (Pág. 86). Tarkovsky gostava de
sentir o sabor das palavras e da sua alma. Gostava de
sentir a emoção que lhe transmitiam. Não era de todo fã de
argumentos puramente técnicos e racionais, e para ele a
melhor forma de transmitir essas emoções era através da
poesia. Depreendemos assim que Tarkovsky tinha a intenção
de convocar uma reacção, um estímulo, não estruturado ou
manipulatório, mas inteiramente subjectivo. “Através da
arte o homem conquista a realidade mediante uma experiência
subjectiva” (pág. 42) diz em «Esculpir o Tempo». Esta é a
condição premente na filmografia de Tarkovsky, pedir ao
espectador um investimento espiritual que o leve a
comunicar consigo e com o mundo. Veremos mais a fundo esta
característica em exemplos de «Solaris» e Stalker».
Primeiramente irei recapitular os principais pontos que
Deleuze aponta na passagem da imagem-movimento, para a
imagem-tempo.
1. Passagem do cinema clássico ao cinema moderno
Deleuze propõe nos dois volumes de Cinema 1 e 2 a
existência de dois grandes regimes de imagens do Cinema: o
da imagem-movimento, que irá dominar até à Segunda Guerra
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Mundial e o da imagem-tempo, que se começará a assumir a
partir dos anos 40 durante o período que conhecemos como
neo-realismo italiano.
Jacques Rancière sintetiza da seguinte forma a
primeira destas imagens: “A imagem-movimento seria a imagem
organizada segundo a lógica do esquema sensório-motor, uma
imagem concebida como elemento de um encadeamento natural
com outras imagens dentro de uma lógica de montagem análoga
àquela do encadeamento finalizado das percepções e das
acções.” (Rancière 2001) A imagem paradigmática deste
regime será precisamente o da imagem-acção, que explora
essencialmente o valor da acção num movimento de causa-
efeito, acção-reacção, que nos é dado pelo plano e a
montagem organizados de forma a percepcionarmos uma
continuidade sem cortes das situações e do movimento das
coisas. É uma imagem que Deleuze identifica como realista,
ou do “Realismo”. Como diz Deleuze, “o que o espectador
apreendia era então uma imagem sensorial motora em que ele
participava mais ou menos, por identificação com as
personagens (…) [em que] a banalidade quotidiana é
submetida a esquemas automáticos já montados”. (Deleuze
1985/2006, 13-14) O cinema explorava situações do tipo
acção-reacção, estímulo-resposta através da planificação
racional e montagem de planos que dela decorre.
Deleuze diz-nos no último capítulo de Cinema 1 e no
primeiro de Cinema 2 que será justamente pela crise da
imagem-acção que um outro tipo de imagem irá surgir. Esta
mudança da imagem não é súbita, e a imagem-acção não deixa
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simplesmente de existir. O que nos vamos apercebendo é que
algumas das suas características mais importantes, os elos
das situações sensoriais motoras, se vão enfraquecendo.
Surge um cinema do banal ou excepcional, com montagem
frágil e precária. Uma narrativa aberta, incerta, seguindo
as pisadas do real que procurará restituir e interpretar.
Como diz Rossellini, “as coisas está aí, para quê manipulá-
las?”. Este regime instaura o corpo, o gesto, a
plasticidade dos corpos, uma “descrição visual que tende
para um ponto de indiscernibilidade do real e do
imaginário” (Deleuze 1985/2006, 25). A “impressão” realista
da imagem que nos dava uma descrição e continuidade totais
(do Todo) do movimento do real, vai cedendo lugar a uma
imagem que em vez de nos dar o Todo do real nos passa a
“apontar” partes desse universo. No cinema do anterior
“regime” o olhar do herói mediante determinada situação
estimulava nele uma acção ou reacção, situação na qual, por
empatia com a personagem, o espectador imergia. Com o neo-
realismo a relação do herói com a imagem é de uma outra
natureza: mais do que reagir a ela o herói “demora-se” a
vê-la e a analisa-la. Mas não só os personagens, é também o
espectador que em vez de ser alvo de um estímulo-resposta
passa a ser requisitado para que interprete o que está a
ver. Passamos assim de um cinema reactivo para um cinema
reflexivo, onde a percepção deixa de se transformar em
acção para se transformar em tempo. “Grava mais do que
reage” as imagens e os sons dos espaços que atravessa
(Deleuze 1985/2006, 13). Deleuze descreve a chegada do
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herói de «Ossessione» de Visconti à pensão como alguém que
“toma posse visual” do espaço. (Deleuze 1985/2006, 15) Não
é a situação de alguém que chega, domina e transforma com
as suas acções o espaço, é a situação puramente óptico-
sonora de alguém que o apreende com os olhos e com os
ouvidos, “apontando” com eles objectos, gestos e sons, que
perdem eles também uma relação com os aspectos mais ligados
à acção para adquirirem um valor próprio, distanciado da
sua funcionalidade como ferramentas. Deleuze assinala a
importância do papel da criança como protagonista em alguns
destes filmes neo-realistas, pois ela é, a partir do lugar
que ocupa no mundo, mais um espectador que um actor, mais
vidente que agente, relativamente impotente ao mundo
dominado pelos adultos. Deleuze identifica ainda, para além
da percepção, duas outras dimensões de distinção entre a
imagem-movimento e a “nova imagem”. A primeira resulta de
uma “indeterminabilidade” entre real e imaginário. Sendo
que o real são as imagens da acção que contêm coordenadas
percepcionáveis (um lugar, um espaço, um personagem, uma
narrativa)..., mas que está em constante tensão com o
imaginado, ou seja, com a interpretação que se faz desse
próprio real. A segunda dimensão tem que ver com a
indiscernibilidade resultante do processo anterior que se
traduz em incerteza sobre o tempo e que origina um
conflito. Os acontecimentos por vezes surgem desafiando uma
lógica linear do tempo e do espaço, camadas do passado
coexistem como ponte do presente desarticulado, misturam-se
e deixam-nos na dúvida.
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Assistimos a uma performatividade dos corpos com
gestos teatrais em que, sem marcações ou linhas
demarcadoras rígidas, não parece existir um limite
estabelecido mas um amplo espaço para a improvisação. Os
personagens revelam-se a si próprios e ao espectador nesse
exercício de performatividade dos corpos e gestos. Esta
sequência demonstra o que Deleuze identifica como
“enfraquecimento da imagem-acção”. Quer ele dizer que não
há ruptura entre imagens, a imagem-movimento e a nova
imagem (-facto), mas uma sobreposição de ambas (com a
imagem-tempo a emergir) alterando a percepção do espectador
que deixa de se resumir a um exercício de estímulo-
resposta, para ser convidado a interpretar situações que
ficam em aberto.
É uma imagem objectiva ou subjectiva, realidade ou
fantasia, aquele momento terá ou não acontecido? Embora o
espectador se sinta tentado a procurar resposta para estas
perguntas, o filme deliberadamente não esclarece nem nos
desassombra essas dúvidas. Há um princípio de
indeterminabilidade que é explorado. Os factos não deixam
de ser factos pelo facto de serem visões. Lembremo-nos que
este é um cinema de videntes, de pessoas que são mais
impressionáveis do que impressionam. É um cinema regido por
um “princípio de indeterminabilidade” que se nos revela
oscilante, “ora é a banalidade quotidiana, ora são
circunstâncias excepcionais ou limites. Mas, sobretudo, são
imagens subjectivas, recordações de criança, sonhos ou
fantasmas auditivos e visuais, em que a personagem não age
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sem se ver agir, espectadora complacente do papel que ela
própria representa”. (Deleuze 1985/2006, 17) Onde se criam
zonas de indistinção e se exploram “tempos mortos da
banalidade quotidiana (...), um tratamento das situações
limite que as impele até paisagens desumanizadas, espaços
esvaziados” (Deleuze 1985/2006, 16). O autor acrescenta que
“somos remetidos à primeira forma do espaço qualquer:
espaços desconectados”.(Deleuze 1985/2006, 20) Deleuze
interpreta-os como sendo “espaços quaisquer” ou como Bazin
os chama, de “puros” onde um tempo e espaço próprios
emergem de dentro da acção.
O facto é um facto (mesmo que seja do passado) é um
sempre presente num espaço qualquer. O espaço qualquer
também já não é um espaço particular, “o da situação
sensorial motora, um meio bem qualificado, que supõe uma
acção que a faz descobrir, ou suscita uma reacção que a ela
se adapta ou a modifica. Mas uma situação puramente óptica
ou sonora estabelece-se naquilo a que chamamos «espaço
qualquer», quer desconectado; quer vazio” (Deleuze
1985/2006, 16-17).
Resumindo, a emergência do novo realismo instaura-se a
partir de uma cisão entre o formalismo do cinema clássico e
um novo regime que procura nos signos e na imagem
interpretações diferentes para tratar a realidade. Ao
primeiro regime corresponde uma descrição que supõe
independência do objecto, valendo como realidade pré-
existente. Ao segundo corresponde pelo contrário uma
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realidade que corresponde ao objecto e que contradiz,
desloca ou modifica descrições precedentes.
2. Intersubjectividade
Voltemos definitivamente para Tarkovsky e para a sua
obra, começando por delinear o conceito de
intersubjectividade. Nos termos filosóficos conhecidos,
intersubjectividade remete-nos para o relacionamento
dialógico entre dois sujeitos ou mais sujeitos e para um
“interaccionismo simbólico” como apontado por George Mead e
Erving Goffman. Pressupõe um diálogo ou uma negociação no
campo do simbólico entre dois actores sociais e podem ter
ou não um objecto sobre o qual incidem esse diálogo.
Goffman afirmava no entanto que a intersubjectividade
estava condicionada pelo conjunto de máscaras e
apresentações múltiplas que cada individuo faz de si mesmo,
tentando na negociação com outros, conseguir prevalecer a
sua identidade. Goffman considera a interacção como um
processo fundamental de identificação e de diferenciação
dos indivíduos e grupos. De resto, estes não existem
isoladamente: só existem e procuram uma posição de
diferença pela afirmação, na medida em que, justamente, são
"valorizados" e usando uma expressão de Paul Ricoeur,
“reconhecidos” por outros.
A diferença fundamental que encontramos em Tarkovsky é
de que esta intersubjectividade não pretende valorizar esta
ou aquela posição, mas tal como Deleuze afirma pretende
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“restituir-nos a crença na nossa relação com o mundo”
(capítulo 7). O cineasta russo entendia que a grande função
da arte “é a comunicação, uma vez que o entendimento mútuo
é uma força a unir as pessoas, e o espírito de comunhão é
um dos mais importantes aspectos da criação artística.”
(Pág. 42) Ou seja, não se trata de como no cinema clássico
veicular por persuasão uma ordem de ideias, mas levar o
espectador a reflectir sobre si próprio, os outros e desta
forma, sobre o mundo. Trata-se portanto de uma
intersubjectividade imersa em reflexividade e
performatividade, já que é entregue ao espectador uma
função de partilha e de interpretação, não de uma suposta
mensagem que o filme trata, mas uma interpretação sobre a
relação do individuo com o mundo em seu redor. “A arte é
uma metalinguagem com a ajuda da qual os homens tentam
comunicar-se entre si, partilhar informações sobre si
próprios e assimilar a experiência dos outros.” (Pág. 43)
Estamos portanto perante, como muitos afirmam, um
cinema poético. Tarkovsky era apelidado de “Dostoyevsky do
cinema”. Como o escritor, Tarkovsky procura nos seus filmes
empreender um resgate da espiritualidade do Homem. Algo
comum em personagens como Rodion Raskolnikov ou Mitya
Karamazov1. Ele era na verdade um profundo crítico da
“cultura de massas” que emergia no Ocidente, apesar de
reconhecer que provavelmente tivesse tido um maior sucesso
e reconhecimento se tivesse nascido um pouquinho mais a
Oeste da Rússia. Dizia Tarkovsky que um dos mais
1 Personagens dos livros «Crime e Castigo» e «Os Irmãos Karamazov» deFyodor Dostoyevsky
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desoladores aspectos da sua época é a “total destruição na
consciência das pessoas de tudo que está ligado a uma
percepção consciente do belo. A moderna cultura de massas,
voltada para o "consumidor", a civilização da prótese, está
a mutilar as almas das pessoas, criando barreiras entre o
homem e as questões fundamentais da sua existência, entre o
homem e a consciência de si próprio enquanto ser
espiritual.” (Pág. 48).
Religar o espectador a este lado espiritual foi um dos
objectivos que Tarkovsky perseguiu em toda a sua
filmografia. A sua visão de arte assim o exigia e para tal,
recorreu diversas vezes à obra poética do pai Arseny
Tarkovsky por forma a conseguir transmitir toda a
espiritualidade e emotividade que pretendia. «Stalker»
(1979) é precisamente sobre essa busca.
Comecemos, trocando a ordem cronológica, por
«Stalker». Filmado duas vezes entre 1976 e 1979, devido a
defeitos técnicos dos primeiros negativos, «Stalker» (em
russo, «Сталкер», e que em português pode ser traduzido
para “perseguidor”) foi filmado, na sua maior parte, na
Estónia, então integrante da União Soviética. O argumento é
uma adaptação livre da novela de ficção científica
«Piquenique à Beira da Estrada», dos irmãos Strugatsky.
Numa entrevista, Tarkovsky chegou a declarar que as
semelhanças do filme com o livro restringiam-se ao uso das
palavras "zona" e "stalker". «Stalker» conta a história de
um homem humilde com a alcunha de Stalker que se torna um
guia especializado em levar curiosos até à Zona, um local
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vedado por militares onde supostamente acontecem fenómenos
inexplicáveis.
Stalker é assim contratado por um “escritor” e um
“cientista” (Stalker faz um acordo com eles para nunca se
revelarem os nomes verdadeiros) para os levar até ao
epicentro da Zona onde, segundo se diz, os desejos dos
viajantes são concedidos. A Zona é um local de reunião, mas
que provoca simultaneamente desejo e pavor. Diz-se que
perante o epicentro da Zona (o Quarto), os viajantes podem
ver os seus desejos realizados. Porém, tal como Stalker
conta ao Escritor e ao Cientista, não são os desejos
conscientemente formulados que se materializam, mas os
inconscientes. É contada durante o filme, a história de um
outro Stalker que ter-se-á atrevido a atravessar o Quarto
para que o seu desejo fosse materializado (o de ser rico),
no entanto, quando regressa a casa, encontra não a riqueza
esperada mas o irmão morto. Depois de regressar várias
vezes ao mesmo local a fim de pedir o retorno do irmão, em
casa descobre que fica a cada viagem ainda mais rico. O
Stalker desgostoso acaba por se suicidar.
Desse modo, quando confrontado com a pergunta do
Escritor, “porque não formulas o teu desejo, já que vieste
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à Zona muitas vezes?”, a resposta de Stalker é algo
ambígua, diz que o seu destino é ser Stalker, que a sua
vida está profundamente ligada à Zona, mas que nunca se
atreveria a desejar-lhe algo, pois sabe-se lá o que povoa o
seu inconsciente. A sequência final do filme em que a sua
filha que não tem pernas move objectos com a mente parece
responder a essa questão. O interessante nesta troca de
impressões um tanto quanto enigmáticas é que são provocadas
por um espaço invisível ao qual é atribuído uma mitologia
própria e que permite aos três viajantes se conhecerem a
eles próprios. Conhecerem não o mundano, mas as suas
reacções mais intempestivas. A Zona faz sobressair nos
viajantes o seu lado profundamente humano, que são as
emoções e fá-lo com a ajuda dos avisos de Stalker quando
diz por exemplo, que a Zona está sempre a mudar, que os
caminhos nunca são iguais e que perigos vários espreitam.
Na verdade, durante toda a viagem nunca Tarkovsky coloca
aos viajantes um perigo real ao não ser curiosamente quando
têm de fugir dos militares na entrada da Zona. Parece haver
mais perigo fora do que dentro da Zona. Mas ao longo da
acção, através principalmente dos diálogos, constrói-se uma
mitologia própria ao Quarto da Zona que quando lá chegamos
o quarto desolado e em ruínas não impede que sintamos que
ali se passam coisas estranhas ao nosso mundo. Ainda assim,
apesar de a Zona ser o objecto de auto e mútuo
reconhecimento entre os viajantes e de suscitar as mais
diversas reacções no espectador, o que interessa no final,
não é tanto a Zona em si, mas a influência das experiências
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acontecidas durante a viagem nos três personagens. É neles
que Tarkovsky centra as suas atenções e não na Zona em si
que nunca passa de casas desabitadas, campos enevoados,
rios e cenários pouco idílicos como constatamos na
sequência dentro dos esgotos.
Tarkovsky nunca quis privilegiar a componente da
ficção-científica nos seus filmes. Em «Stalker» e «Solaris»
que são assumidamente filmes com premissas sci-fi retiradas
directamente de livros do género, o cineasta optou por
reduzir o aparato tecnológico em «Solaris», decisão pela
qual foi criticado pelo autor do livro, Stanislaw Lem.
Ainda assim, Tarkovsky achou que muitas das cenas continham
demasiadas distracções e achava que isso tinha desviado o
espectador das propostas de reflexão que tinha incluído no
argumento. Por essa razão, o consequente «Stalker» que é
também uma adaptação literária foi totalmente despido de
efeitos especiais. Se lermos a sinopse parece algo saído de
Hollywood (espanta-me não haver um remake!), mas na prática
a acção de «Stalker» nada tem a ver com o cinema americano.
Aspecto que desenvolverei no capítulo dedicado aos aspectos
mais técnicos.
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Considerado o contraponto soviético ao filme «2001:
Odisseia no Espaço», de Stanley Kubrick, sendo chamado de
"anti-2001", «Solaris» é uma adaptação do livro com o mesmo
título do escritor Stanisław Lem que por pouco não permitiu
a adaptação de Tarkovsky, uma vez que o realizador
inicialmente insistia em retirar do argumento toda a alusão
à ficção científica, o que desagradou profundamente o
escritor polaco. Tarkovsky acabou por ceder um pouco e
considerou o filme como parcialmente falhado por desviar a
atenção do espectador do que realmente importava. No filme,
Solaris é o nome de um planeta recém-descoberto que é um
oceano em toda a sua extensão. Os cientistas encetam uma
série de estudos a que dão o nome de solarística e que tentam
perceber se existe vida inteligente em Solaris, uma vez que
são recorrentes acontecimentos estranhos como alucinações e
sonhos por parte dos astronautas a bordo da estação em
órbita do planeta. Para tal, um famoso psiquiatra, o Dr.
Chris Kelvin (Donatas Banionis) é enviado para a estação
espacial para compreender os eventos ocorridos. Uma vez no
local, Kelvin começa a ser visitado de noite por Khari
(Natalya Bondarchuk), um antigo amor que se suicidara dez
anos antes. Kelvin lentamente começa a perceber que o
planeta comunica com ele, materializando os seus desejos
mais íntimos.
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Neste filme a “zona” é o próprio planeta Solaris que
intermedeia uma relação entre materialidade e
espiritualidade que Tarkovsky tanto gostava de abordar.
Mais que uma relação, tanto «Solaris» como «Stalker» falam
de auto-confrontação, de encontrar um ponto de equilíbrio
entre o que se deseja e um ideal estético e ético nem
sempre fácil de encontrar. Tal como Tarkovsky tão bem
salienta nem sempre o que desejamos conscientemente
encontra esse equilíbrio, motivo pelo qual, o realizador
entrega à materialidade cósmica de Solaris (e quem diz
Solaris, diz a Zona de «Stalker») a tarefa de revelar que
não é a busca por mais conhecimento científico que nos
guia, mas um profundo desejo de reconexão com a humanidade
como tão a sequência de «Solaris» entre 01:45:10 e 01:49:44
em que o protagonista Dr. Kelvin abandona a demanda de
entrar no laboratório em que iria fazer uma série de
experiências que poderiam levar a que Khari se
desmaterializasse, para correr de volta para os braços de
aparição da sua esposa Khari, uma redenção que acaba com
Tarkovsky a filmar o planeta Solaris como que mediando o
reencontro entre Homem e o seu Sonho. O próprio Tarkovsky
encarava a sua obra como uma busca que leva um artista a
“fazer descobertas espirituais, e a emprega o máximo de
esforço espiritual. A aspiração ao absoluto é a força que
impele o desenvolvimento da humanidade. Para mim, a ideia
de realismo na arte está ligada a esta força. A arte é
realista quando se empenha em expressar um ideal ético. O
realismo é uma aspiração à verdade, e a verdade sempre é
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bela. Neste ponto, o estético e o ético coincidem.”
(133/134)
Mas tal como Deleuze nos aponta2, a vontade maior (ou
necessidade) que leva o artista a expressar-se
artisticamente através de um objecto só é realizada no
espectador, tal como também Marcel Duchamp nos havia
apontado em «O Acto Criativo». Embora no caso de Duchamp,
este acto criativo não se expressa conscientemente através
do artista, o artista não é senão um meio através do qual a
arte se expressa. Esta ideia de uma obra de arte que se
realiza no espectador faz abandonar o regime da
contemplação (característica do cinema reactivo clássico)
para uma cultura da mediação. Isto é, a obra de arte ao
incluir o espectador na sua realização organiza uma
experiência e uma percepção, mediando uma relação ou uma
experiência estética do homem com o mundo. Esta é de resto
uma ideia moderna de comunidade e um processo que faz de
novo emergir a arte como intersubjectividade, como
comunicação.
Tarkovsky cita ainda Vyacheslav Ivanov sobre a imagem
artística a que chama de símbolo: "Um símbolo só é um2 Gilles Deleuze on Cinema - What is the Creative Act? (1987) http://www.youtube.com/watch?v=7DskjRer95s
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símbolo verdadeiro quando é inesgotável e ilimitado em seu
significado, quando exprime, em sua linguagem oculta
(mágica e hierática) de sinais e alusões, alguma coisa de
inexprimível, que não corresponde às palavras. Tem uma
multiplicidade de faces e abriga muitas ideias,
permanecendo inescrutável em suas mais recônditas
profundezas. E formado por processos orgânicos, como um
cristal." (Pág. 53)
Esse interstício das palavras, o não-dito é o lugar de
reflexividade do espectador e onde este se coloca perante
outros espectadores e o mundo. Permite-lhe encontrar-se
consigo próprio mas também com a restante comunidade,
construindo-se como sujeito único mas partilhando um lugar-
comum.
3. Tempo: planos-sequência, enquadramento, montagem, som e
paisagem
Analisemos algumas questões concretas e mais técnicas,
nomeadamente as perspectivas de ritmo e montagem em
Tarkovsky, usando exemplos dos filmes em análise.
3.1 Planos-sequência
O cinema de Tarkovsky com os seus longuíssimos planos-
sequência abre um espaço para a penetração do filme pelo
espectador (que, penetrando no filme, penetra em si mesmo)
desconhecido até mesmo do cinema moderno. O tempo rápido,
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fragmentado e remontado – um tempo comprimido que se
desdobra imaginariamente – foi uma marca do cinema moderno
que reflectia a ideologia da duração do quotidiano. O
procedimento de Tarkovsky é o exacto contrário: o tempo é
uma célula de duração que se expande progressivamente pelo
plano, tomando conta de todo ele e da sequência, do filme e
do espectador. E em tempo real, não imaginário. Em ambos os
filmes encontramos esta marca de Tarkovsky. Em «Stalker»,
ao entrar na Zona os três personagens colocam-se em cima de
um comboio e sem cortes, é filmada a sua viagem (33:40 –
36:55). Parece tratar-se de um travelling em que são os
próprios personagens que o protagonizam. Relembrando Serge
Daney quando reverte para o travelling uma condição moral,
Tarkovsky parece responder colocando o espectador na
posição exacta dos protagonistas e de integrante no próprio
travelling. Citando Daney: “o travelling era imoral pelo motivo
que ele nos colocava lá onde nós não estávamos. Lá onde eu,
em todo caso, não podia nem queria estar. Porque ele me
“deportava” da minha situação real de espectador e me
transformava em testemunha me incluindo forçosamente no
quadro. Ora, que sentido poderia ter a fórmula de Godard
senão que é necessário não se colocar lá onde não se está, nem falar em
lugar dos outros.” Normalmente, vemos um travelling acompanhar o
movimento dos personagens, neste caso Tarkovsky enquadra
simultaneamente o movimentos dos corpos e a técnica do
travelling, não esquecendo de colocar o espectador dentro do
comboio também. É de notar que o ângulo percorrido pela
câmara é a de alguém que se encontra no comboio e não fora.
21
Esta técnica pretende colocar ambos espectadores e
personagens no mesmo ponto de partida, ou seja, a entrada
num local místico e até perigoso do qual pouco ou nada se
sabe, nem mesmo o Stalker que admite a constante mudança
que a Zona opera dentro de si própria. Com isto, altera
profundamente a designação de espectador em si mesma.
Em «Solaris», estes plano-sequência também são
frequentes, contudo, limitado pelo espaço, Tarkovsky
promove uma série de sequências num mesmo espaço, mas fica
como que obrigado a recorrer a cortes para mudar o
enquadramento. Por exemplo, entre 01:09:26 – 01:12:00 temos
uma sequência onde pouco acontece, Kris acaba de ver o
vídeo do suicídio de Gribaryan (Sos Sargsyan) e está no seu
quarto. Tira as botas, deita-se, deambula pelo espaço sem
que a narrativa se desenvolva, sabemos que o personagem
pensa no vídeo assim como nós somos convidados a pensar
naquela mensagem mórbida. Kris deita-se acompanhado da arma
e adormece. Solaris irá por fim comunicar com ele…
Estes planos-sequência permitem assim não só cristalizar
o tempo, como atribuir como veremos uma consciência a
elementos não materializados na acção. Uma fixação do tempo
num plano ou em uma sequência é algo que seria praticamente
impossível ter em conta no cinema clássico mas que se
revela essencial para compreender a obra de Tarkovsky. Como
o próprio referia “do momento de acção e até ao corte,
está-se a fixar tempo (…) o cinema fixa o tempo”. Fixar o
tempo significa não uma aparente estagnação, mas uma
aproximação aos tempos circunscritos entre acções. O que o
22
realizador tenta é cristalizar o tempo através de ritmos
pulsantes mas vagarosos, recorrendo a planos-sequência
longos, quase silêncios e enquadramentos (por norma)
aproximados. Os filmes de Tarkovsky estão impregnados da
forte gravidade da Terra, que parece exercer pressão sobre
o próprio tempo, esta “paisagem terrestre” como lhe chama
Zizek e que na qual me debruço mais à frente é construída
através da forma como Tarkovsky se expressa com o ritmo dos
seus filmes, “o factor dominante e todo-poderoso da imagem
cinematográfica é o ritmo, que expressa o fluxo do tempo no
interior do fotograma.” (Pág. 134) Cada plano seria para
ele o testemunho do tempo capturado, quase uma série de
quadros artísticos colocados perante o espectador para que
este experiencie não só uma narrativa mas também uma
percepção estética e sensível do mundo colocado perante
ele, uma característica que se encontra em outras formas de
arte. Porém, Tarkovsky distingue o cinema das demais artes,
“se compararmos o cinema com artes baseadas no tempo, como
digamos, a música ou o ballet, veremos que a marca
distintiva do cinema consiste em dar ao tempo forma real e
visível. Uma vez registrado na película, o fenómeno ali
está, dado e imutável, mesmo quando o tempo o for
intensamente subjectivo.” (Pág. 140) Ficamos com a noção de
materialização de um tempo real através da sua captura, ao
mesmo tempo que esse registo se perfila como subjectivo.
Isto é, capturando o tempo por intermédio do jogo de
ritmos, como diz Brian Masterson, “his contemplative,
imagistic style emphasized the integration of characters
23
with the world around them, both through their positioning
in the frame and through the slow, probing camera movements
he frequently employed.”
Tarkovsky demarca-se assim do cinema clássico pela
incisiva utilização destes planos-sequência longos que
cristalizam o tempo, limitando a montagem dos seus filmes.
3.2 Montagem
A relação de Tarkovsky com a montagem foi problemática.
O cineasta contrapunha o trabalho do seu compatriota
Eisenstein dizendo não aceitar os princípios do cinema de
montagem porque eles “não permitem que o filme se prolongue
para além dos limites da tela, assim como não permitem que
se estabeleça uma relação entre a experiência pessoal do
espectador e o filme projectado diante dele. O "cinema de
montagem" propõe ao público enigmas e quebra-cabeças,
obriga-o a decifrar símbolos, diverte-se com alegorias,
recorrendo o tempo todo à sua experiência intelectual.”
(Pág. 140)
Fica claro que Tarkovsky pretendia que o espectador
construísse uma relação emotiva e não puramente racional
com os seus filmes. Daí que os planos-sequência de que
falámos fixassem o tempo por forma a permitir uma
deambulação livre por parte de quem assiste. Mais uma vez
recorro ao travelling do comboio quando os três personagens
entram na Zona. A ausência de cortes ou de planos distantes
(gerais, médios ou de conjunto) evidenciam a tentativa de
24
tocar o menos possível no mundo que é apresentado ao
espectador. Aliás, mais à frente falarei mais
aprofundadamente da paisagem, mas em todo o filme «Stalker»
prevalece um ambiente de natureza selvagem, onde os
resquícios da sociedade se resumem a resíduos esquecidos no
rio e a casas e carros abandonados reivindicados entretanto
pela natureza da Zona. Tarkovsky prefere manter a paisagem
intocada e a opção de usar longos planos em ângulos fixos
(01:31:40 – 01:33:30), faz sobressair um realismo
documental desconcertante, como se fossemos um quarto
viajante: o Espectador. A montagem é preenchida em
«Stalker» de campos abertos e proximidade humana
(panorâmicas e grandes planos), e decorre em tempos lentos,
evitando o que Tarkovsky apelidava de “enigmas e quebra-
cabeças”. Olhando para «Stalker» ou para «Solaris», sabemos
exactamente o que temos diante de nós, sendo a
interpretação de cada momento entregue a um domínio que
exclui um regime de “causa-efeito, acção-reacção, que nos é
dado pelo plano e a montagem organizados de forma a
percepcionarmos uma continuidade sem cortes das situações e
do movimento das coisas”. Em suma, a montagem não coloca o
espectador necessariamente num campo exterior resumido a um
interpretante, no caso de Tarkovsky a montagem visa incluir
o espectador dentro da própria obra.
3.3 Enquadramento
25
Um comentário comum relativamente a «Stalker» é a
utilização de enquadramentos enigmáticos. Como Geoff Dyer
aponta, “you don’t know who is doing the looking” (2012).
Espreitemos alguns exemplos:
Na sequência à entrada do túnel, por exemplo, (01:27:51)
vemos os personagens a partir de dentro do túnel, e
sentimos a diferença espacial palpável entre o estar à
porta a olhar para o túnel e o estar de costas para o
túnel. Sentimos os três personagens a olharem para algo
estranho, mas a perspectiva do espectador não deixa ver o
quê. Depois de vermos o túnel de frente, o receio dos três
sobre o caminho a seguir e o desconforto quase nos faz
olhar por cima do ombro, pois a partir daquele primeiro
ângulo o perigo está nas costas do espectador.
No final, no plano-sequência em que a esposa de Stalker
faz o discurso para a câmara (02:28:00 – 02:30:40), o
enquadramento não é fixo, a câmara oscila ligeiramente, e
tenta captar os movimentos aleatórios de Zhena. O seu
discurso é confessional, alterna entre secretismos e
revelações. Tarkovsky escolhe um plano centrado que capta
Zhena dos joelhos para cima (plano americano, Zhena até
puxa de um cigarro, imagem de marca da independência no
cinema americano) passando progressivamente para um meio
primeiro plano, com um enquadramento da cintura para cima,
e no final para um primeiro plano, com o enquadramento do
peito para cima. Tudo isto à medida que Zhena aprofunda a
sua confissão ao espectador. Esta escolha de enquadramento
é peculiar na medida em que todo o filme foge bastante a
26
esta formalidade/sequencialidade, preferindo enquadramentos
mais enigmáticos como por exemplo os que se seguem.
Comecemos pela estranha mudança de planos na sequência
(56:00 – 58:50). O Escritor decide investigar umas ruínas
contra indicação do Stalker. Após acatar uma série de
conselhos, o Escritor dirige-se para o local. O primeiro
enquadramento fica nas costas dos personagens num plano
geral dos três a discutir como será a aproximação às
ruínas. A câmara mantem-se fixa e observamos o Escritor
lentamente a afastar-se do Cientista e de Stalker,
começando a integrar no enquadramento o destino (as ruínas
propriamente ditas) do Escritor. De repente, Tarkovsky faz
um corte e ainda que continuando nas costas do personagem,
surgimos na nuca do Escritor (56:46), como se escolhêssemos
não ficar para trás, mas arriscar uma aproximação às ruínas
misteriosas. Tarkovsky tem aqui um momento digno de um
filme de suspense, poderíamos dizer que é em «Stalker» um
momento à Hitchcock. O silêncio dos personagens prevalece,
mantendo-se os ruídos de animais distantes. Não fazemos
ideia do que irá acontecer e este tempo suspenso refugia o
espectador entre o real e o imaginário, uma zona de
indeterminabilidade, como Deleuze havia diagnosticado. O
mais surreal acontece a partir daqui.
27
Aos 57:10, após uma indecisão do Escritor e consequente
entrada do seu rosto frontal no plano, subitamente,
Tarkovsky abandona este “plano de nuca” (usados até à
exaustão por Tarkovsky e recuperados por Gus Van Sant em
«Elephant» em 2003) e coloca-nos na perspectiva das ruínas
(ou da Zona, se quisermos) como se esta ficasse também
subitamente consciente da indecisão do Escritor em
efectivar a sua aproximação. Neste momento também perdemos
do enquadramento os restantes viajantes, até que uma voz
lhe pede que pare. A câmara recua para dentro das ruínas,
como se percebesse que o Escritor não está sozinho e que um
Stalker o acompanha. A câmara coloca em enquadramento
Stalker e o Cientista que discutem quem terá pedido ao
Escritor para parar, saltando de novo para o “plano de
nuca” (que podemos interpretar como sendo o quarto
viajante, o Espectador) do Escritor que recua acatando o
conselho vindo não se sabe bem de onde. A câmara volta à
primeira forma, ficando por detrás do Cientista e de
Stalker, observando o Escritor a regressar ao grupo,
desistindo da sua solitária demanda. Este jogo de
enquadramentos, com diversos cortes, pretende colocar em
acção diversas perspectivas, até de intervenientes (que eu
28
diria serem a Zona e o Espectador) que não estão
materializados no filme, requerem uma percepção do
espectador para tal.
Na sequência 47:52 – 49:25, Tarkovsky faz aproximar a
câmara de um carro abandonado por intermédio de um travelling.
A sensação inicial é de que se trata da perspectiva dos
personagens. Porém, assim que a câmara alcança o veículo,
estes aparecem do outro lado, um por um. Notamos
inclusivamente o pormenor aos 48:26 de um som de pisar da
relva como se tratasse de um travar de passada (a relva
mexe-se inclusivamente). De quem se tratava o ponto de
vista? Do espectador? Estará ele também dentro da zona? Ou
é a perspectiva da própria Zona? Neste caso e/ou no caso
anterior, a Zona adquire um estatuto de sentiente.
Estas não são as únicas vezes que Tarkovsky aufere a
Zona uma vida própria. Na sequência quando o Escritor tenta
arrancar o que parece ser uma raíz de uma árvore (53:18-
53:50), Stalker responde violentamente atirando-lhe um
ferro, “já disse que isto não é um passeio. A Zona exige
respeito, caso contrário, castiga”. Os diálogos quase
mitológicos de Stalker ao contar os perigos que espreitam e
os episódios ali passados, constituem à Zona uma
subjectividade própria, um pouco como nós personificamos a
o planeta em Mãe-Terra. Porém, Tarkovsky sempre rejeitou
simbolismos superficiais. Aqui trata-se de construir uma
consciência que oscile livremente entre materialidade e
espiritualidade. Essa tentativa de personificar a Terra é
29
confrontada precisamente pela condição consciente que
Tarkovsky imprime aos objectos.
Isto acontece, por exemplo, na sequência no Quarto no
centro da Zona, em que um telefone inesperadamente toca
(01:48:45 – 01:52:00). Esta sequência é desconcertante em
vários aspectos. Primeiro porque sai totalmente fora de
contexto com a conversa séria entre os personagens que
decidem quem será o primeiro a pedir o seu desejo. Segundo,
porque obviamente não se espera que no ambiente
apocalíptico da Zona algum telefone toque. Terceiro porque
é no preciso em que um cão que os persegue (e que pode ser
eventualmente a perspectiva não revelada na sequência do
carro) entra na sala e passamos a ver os três personagens
pelo que tudo indica que são seus olhos (ou os olhos da
Zona, caso se queira ir mais longe). Tarkovsky relativiza
assim a subjectividade de cada um colocando na mesma
sequência diferentes ângulos e todos de características
extremamente pessoais. Depois a conversa que o Cientista
tem ao telefone pode ter variadíssimas interpretações: uma
conversa factual entre ele e um seu rival, ou uma conversa
entre ele e uma alucinação provocada pela Zona, ou seja,
uma conversado Cientista com a sua própria consciência.
Num outro caso, já no Quarto quando após o Escritor
renunciar ao desejo e o Cientista desistir de armar a bomba
que levava com ele para destruir a Zona, subitamente a
câmara passa para dentro do Quarto (02:12:58) e passamos a
ver os personagens a partir de dentro do Quarto num plano
aberto de ambientação, como se a Zona ou o espectador
30
tivesse o seu desejo satisfeito. A câmara afasta-se
lentamente dos personagens e revela o interior do Quarto
(até aí escondido do espectador), com a tonalidade de cores
a mudar inclusivamente sobressaindo assim um diferencial
entre dimensão em que os personagens se encontram e o
enigmático interior do Quarto.
As diferenças entre este jogo de enquadramentos e
perspectivas de «Stalker» e em «Solaris» estão na
materialização/ imaterialização dos desejos. Se em
«Stalker», Tarkovsky optou por nunca colocar directamente a
Zona ou os desejos dos viajantes num plano objectal, em
«Solaris», os desejos do profundo inconsciente destes
aparecem na sua forma humana, sendo personagens no filme. A
irrupção de Khari na sequência 01:31:10 – 01:32:20,
pretende precisamente inferir que o inconsciente quer
queiramos ou não, encontra forma de emergir no consciente.
Tarkovsky parece adoptar por diversas ocasiões premissas da
psicanálise, sendo Khari um excelente exemplo de um
“retorno do recalcado”3 que irrompe na consciência, por
mais que sublimemos essas memórias. Nesta sequência,
Tarkovsky é “obrigado” a fazer um corte, complementando-a
com uma luz azul a incidir sobre o rosto de Kelvin.
Outro exemplo, ocorre no plano-sequência 01:42:42 –
01:44:20, Khari, materializada por Solaris, pede a Kelvin
que conte as suas memórias acerca dos dois. É desta forma
que o planeta tenta comunicar com os humanos, porém, é
assim também que Khari reconstrói a sua subjectividade
perante o espectador. O espelho é um dispositivo onde o3 Ver por exemplo, “A Interpretação dos Sonhos” de Sigmund Freud
31
humano se reconhece a si mesmo como um ser de linguagem, e
este enquadramento de Khari e Kelvin, perante o espectador,
permite não só a reconstrução das memórias de Khari como
também preencher a memória do espectador com a relação
passada dos dois. Os personagens deparam-se com a
construção da sua própria narrativa, como se para trás não
houvesse nada, colocando-os numa posição similar ao
espectador. Khari é a materialização do desejo mais
profundo de Kelvin que ganha vida e subjectividade perante
um espelho e perante uma outra janela (a câmara) e o
espectador, criando um espaço de intersubjectividade entre
planos materiais e imateriais.
3.4 Som
Quer em «Stalker», quer em «Solaris», Tarkovsky recorre
amiúde a silêncios, ou relativos silêncios. Não ouvimos
diálogos, nem se recorre a voz off, mas o realizador deixa
o som natural ganhar o seu espaço na tela. Em «Stalker» os
sons da natureza, os pássaros, a água, as árvores (49:50 –
52:00) servem de banda sonora para o avanço cauteloso dos
personagens. A música não reforça mas cria desta forma um
ambiente próprio, ao mesmo tempo que subjaz a ideia de que
cada instante tem uma melodia e que essa melodia é
diferente para cada um de nós, enquanto espectadores.
Também não é menos verdade que Tarkovsky recorre
inúmeras vezes a dobragens em estúdio, isto é, o som foi
adicionado depois da captação de imagens e não admira que
32
em muitas ocasiões os personagens estejam de costas para a
câmara, já que este pormenor ajudava sobremaneira a
esconder essa técnica. Edward Munch aponta4 também o uso de
sintetizadores como forma de conferir um ambiente atípico e
sombrio ao filme, como por exemplo, na sequência em que
Stalker, Cientista e o Escritor viajam em cima do comboio
(33:40 – 36:55).
Em «Solaris» o som é forçosamente diferente. Nas
sequências “silenciosas” ouvimos não a natureza, mas ecos
reverberantes e o vazio de uma tecnologia abandonada pelos
seus tripulantes que entretanto se encontram remitidos aos
seus quartos (45:40 – 48:00). O completo vazio sonoro é de
resto um dos aspectos mais perturbantes de «Solaris».
Tarkovsky consegue incomodar o espectador com longos
silêncios, como se o convidasse a uma introspecção com os
personagens. Não obstante, faz notar o quão incómodo é esse
vácuo, no notável diálogo entre Kris Kelvin e Snaut:
(01:26:11 – 01:26:45)
Kelvin: “Aqui, a noite é o melhor período do dia. É como
se estivesse na Terra”
Snaut: “Cola estas listas de papel no ventilador”
Snaut baixa um tubo ventilador com as mãos e cola umas listas de papel no
rebordo
Snaut: “Faz lembrar o sussurro da folhagem. Foi uma
invenção de Gribaryan. Simples como tudo o que é genial.
Copiei-o imediatamente. O Sartorius gozou muito
4 Na conferência “Tarkovsky Interruptus”, 2012,http://www.youtube.com/watch?v=o4JyapuJyvY
33
connosco, mas sei que também tem isto no quarto
escondido no armário”
A diferença entre ambos os filmes é distinguir o
dispositivo que influencia a percepção do som. Se em
«Solaris» os sons de fundo são produto da tecnologia da
estação espacial, em «Stalker» são originários da natureza
circundante. O que Tarkovsky me parece querer sublinhar, já
que como sabemos «Stalker» é uma resposta a «Solaris», é
que neste último o dispositivo cinematográfico foi
interceptado pelo dispositivo tecnológico nele presente, o
que erguia uma barreira entre o espectador e o ambiente da
narrativa propriamente dita. Deste modo, o realizador optou
por resumir ao mínimo dos mínimos a presença desse
dispositivo tecnológico e, na verdade, a sua presença em
«Stalker» fica totalmente eclipsada pelo dispositivo
narrativo.
3.5 Paisagem, materialidade, terra, humidade,
rostos
A paisagem é distintiva em Tarkovsky. Recuperando filmes
como «Zerkalo» ou «Andre Rublev», a importância atribuída
às panorâmicas e aos planos de transição entre espaços (ver
exemplos em baixo) permitiam jogar com temporalidade e
espacialidade com outra dinâmica e colocando esses aspectos
em benefício da narrativa.
34
Contudo, para «Solaris», Tarkovsky deparou-se com um
problema: como captar a paisagem ou o ambiente em redor dos
personagens sem com isso sacrificar a narrativa? Na
verdade, em «Esculpir o Tempo», o cineasta confessa não ter
sido capaz de manter-se fiel à sua visão, ainda assim a
paisagem onírica e surreal do planeta Solaris e mesmo que
não esteja no enquadramento, está sempre presente na mente
do espectador, marca um contraponto entre a paisagem
austera, fria e tecnológica da estação espacial. Aliás, um
único plano-sequência na estação espacial não invoca esta
sensação de desconforto, entre 01:55:25 e 02:06:40 onde
Tarkovsky remete os personagens para um ambiente mais
quente e confortável, com referências à cultura terrestre
que destaco mais à frente.
Talvez em «Solaris» haja mais imagem que movimento (o
que é antípoda ao cinema de Hollywood). Na verdade, o
intenso movimento está na interioridade típica dos
personagens de «Solaris». É através deste movimento íntimo
dos personagens que Tarkovsky nos apresenta suas
inquietações filosóficas. Por outro lado, as imagens de
«Solaris» são singelas, fluidas, de uma perenidade que
inquieta. Cenas da Natureza exuberante em contraste com a
civilização da Técnica (exemplos em baixo), mas uma Natureza
que se impõe ao homem.
35
Nas imagens de abertura do filme, Kris aparece imerso
na Natureza exuberante do bosque próximo a sua casa de
campo. São cenas fabulosas e de uma poesia intensa. Cada
imagem contém elos significativos com inquietações íntimas
do personagem central - Kris Kelvin. É em torno dele que se
desenvolve a trama de «Solaris». No filme de Tarkovsky, o
preto-e-branco e o colorido se alternam, como se
expressassem uma mescla de sentimentos e de percepções
sobre o desconhecido (a Natureza e dentro dela, nós
mesmos). Além disso, outro detalhe importante na cenografia
de «Solaris» é a presença de ícones da modernidade e do seu
imaginário científico (bustos de filósofos antigos, seja na
casa de campo de Kelvin, seja na Estação orbital); ou até
imagens de santos da Igreja ortodoxa. Enfim, estamos diante
de uma justaposição quase-kitsch de ícones do tempo passado
e do tempo presente, algo que em «Stalker» também acontece
na sequência onírica entre 01:21:00 – 01:24:10.
36
Dialogamos com o tempo futuro – «Solaris» é o tempo futuro,
de uma situação limite que atinge a civilização e seu dogma
principal: a Razão clássica tal como se constituiu desde
Sócrates (os bustos parecem ser de filósofos gregos
antigos). Ciência, Arte, Religião – existe um intenso
diálogo entre as formas supremas de virtualização do homem.
Ao centro, o homem e suas inquietações existenciais. Por
exemplo, um dos grandes temas filosóficos de «Solaris» são
suas reflexões sobre o amor, o afeto universal que une
pessoas, criador de laços societários através do tempo.
Aliás, foi o tempo ao lado de Khari - tempo passado e tempo
presente – que constituiu seus laços de afetividade com sua
visita. Snaut diz a certa altura: “Se passar muito tempo ao
teu lado, ela tornar-se-á humana”. Na verdade, em
Tarkovsky, o tempo constitui o ser humano, pois é com ele
que se sedimenta os laços de amor. Como diz Saint-Exupéry
(no conto “O Pequeno Príncipe”): “para se cativar é preciso
ter tempo”. Existe um tratado sobre o amor em «Solaris», é
Kris Kelvin que diz que “o homem ama o que pode perder”.
Em «Stalker» como diz Zizek, “a paisagem tarkovskiana
por excelência é a de um ambiente húmido, rio ou charco
junto a uma floresta, cheio de restos de artefactos
humanos. Os próprios rostos dos actores, em particular o de
Stalker, são únicos com a sua mistura de rugas vulgares,
pequenas feridas, manchas escuras ou esbranquiçadas e
outros sinais de decadência, como se tivessem sido expostos
a uma substância química ou radioactiva venenosa, ao mesmo
tempo que irradiam uma bondade e uma confiança ingénuas
37
essenciais” (47:2008). Esses “ambientes húmidos” são
captados recorrendo de diversas perspectivas. Entre
00:41:45 – 00:43:00, Tarkovsky inicia filmando a intensa
vegetação e lentamente, eleva-se dos escombros por cima da
vegetação revelando um poste de electricidade capturado
pela natureza e uma casa abandonada, onde decorrerá a
sequência já mencionada do Escritor a aproximar-se sozinho
da entrada dessa casa.
Entre 00:49:42 – 00:51:50, uma pós-apocalíptica paisagem de
veículos militares abandonados é revelada por uma
panorâmica que se eleva por detrás dos personagens quando
estes iniciam a descida de um monte, como se, mais uma vez,
os estivéssemos a seguir. Ou ainda, no início da segunda
parte aos 01:02:40, quando Tarkovsky faz um travelling diria
convencional quando comparado com o utilizado no plano-
sequência no comboio, em que acompanha Stalker através de
uma paisagem obscura e pantanosa. E finalmente, no túnel
seco (alcunha que proporciona um diálogo a que se
convencionou apelidar hoje de gag relief) entre 01:07:20 -
01:09:17, em que os personagens começam a dirigir-se às
entranhas da Zona, onde o ambiente é cada vez mais austero
e repleto de perigos. Tarkovsky pretendia com estas
38
paisagens decadentes criar a atmosfera ideal para retractar
as preocupações espirituais que atravessam cada um dos
personagens. Para tal, outra paisagem é igualmente
importante: a do rosto humano. Os grandes e muito grandes
planos, surgem com frequência e nos quais sentimos quase o
odor do suor dos protagonistas, podemos traçar-lhes o mapa
das suas cicatrizes e ler as suas almas. Os actores tornam-
se opacos e transparentes para o espectador que os vê, é
entregue ao corpo uma performatividade e plasticidade que
Deleuze identifica como essencial na imagem-tempo.
39
Conclusão
Zizek diz que “Tarkovsky constituía o exemplo mais
claro daquilo a que Deleuze chamou a imagem-tempo, em lugar
da imagem-movimento. Este tempo do Real não é o tempo
simbólico do espaço diegético nem o tempo da realidade da
nossa visualização do filme, mas um domínio intermédio (…)
daquilo a que Schelling chamou Geistige Körperlichkeit, a
corporalidade espiritual.” (2008) Acrescenta que “no
universo de Tarkovsky penetramos na dimensão espiritual
através de um contacto físico directo e intenso com o peso
húmido da terra (ou da água estagnada). A experiência
espiritual suprema ocorre quando um homem está estendido na
superfície terrestre, meio submerso em água estagnada”.
(idem)
Esta ligação profunda à terra e à natureza é a
proposta de Tarkovsky para uma religação do homem com o
mundo. Pessoalmente, creio que «Stalker» é bastante mais
eficaz nesta mensagem, embora não saibamos exactamente que
planos teria o realizador para «Solaris», uma vez que o
guião original apresentava diferenças consideráveis para a
40
versão final (é o próprio Tarkovsky que o diz). O planeta
que materializa os nossos desejos parece ser um espaço
cósmico distante sem a relevância terrestre e familiar que
a Zona transmite. No entanto, como verificada Solaris faz
reencontrar no homem a capacidade de sonhar em oposição à
dimensão da ciência e da técnica que Tarkovsky achava ser
castradora da espiritualidade. Como gostava de dizer, “tem
tempo para te conheceres a ti mesmo”, frase que parece
assentar bem na filmografia de Tarkovsky. O tempo é
realista, por vezes surrealista, e o seu propósito é
precisamente que neste espaço-tempo que se abre para
espectador, este se aprenda a conhecer-se a si mesmo.
Bibliografia
DANEY, Serge (1992) O Travelling de KapoDELEUZE, Gilles (2006) A Imagem-Tempo, Cinema II, Lisboa,Assírio & AlvimDYER, Geoff (2012) Zona, Vintage, InglaterraFARAGO, France (2002) A Arte, Porto, Porto EditoraGOFFMAN, Erving, (1993) A Apresentação do Eu na Vida de Todos osDias, Lisboa : Relógio d'ÁguaTARKOVSKY, Andrei (1998) Esculpir o Tempo, 2ª edição, Brasil,Martins FontesZIZEK, Slavoj (2008) Lacrimae Rerum, Lisboa, Orfeu Negro
Outros documentos consultados online:
DE OLIVEIRA, Roberto Acioli,http://cinemaeuropeu.blogspot.pt/2009/03/zona-de-tarkovski.html
41
MASTERSON, Bryan, Cinematic Synthesis in the Poetic Work of Tarkovsky inhttp://www.academia.edu/5743146/Cinematic_synthesis_in_the_poetic_work_of_Tarkovsky
Fichas técnicas:
Solaris (1972)167 min.Realizador: Andrei TarkovskyArgumento: Stanislaw Lem (Livro), Fridrikh Gorenshteyn(adaptação)Actores: Natalya Bondarchuk, Donatas Banionis, Jüri JärvetMúsica: Eduard ArtemevCinematografia: Vadim Yusovhttp://www.imdb.com/title/tt0069293/fullcredits
Stalker (1979)163 min.Realizador: Andrei TarkovskyArgumento: Arkadiy Strugatskiy e Boris Strugatskiy (livro eadaptação)Actores: Alisa Freyndlikh, Aleksandr Kaydanovskiy, AnatoliySolonitsyn, Nikolay GrinkoMúsica: Eduard ArtemevCinematografia: Aleksandr Knyazhinskyhttp://www.imdb.com/title/tt0079944/fullcredits
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