"Meu tio o Iauaretê": the asymmetry of language

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1 Meu Tio o Iauaretê: nas assimetrias da linguagem Valteir Vaz 1 Tiger, tiger, burning bright In the forests of the night, What immortal hand or eye Could frame thy fearful symmetry? (W. BLAKE) 1. Introdução Em março de 1961, João Guimarães Rosa publicou na edição de número 25 da revista Senhor o conto, Meu Tio, o Iauaretê. Oito anos depois, em 1969, o conto figurou novamente na coletânea Estas estórias, desta vez com algumas modificações. Rosa faleceu em 1967, mas deixou o livro praticamente pronto para ser editado. Salvo algumas poucas anotações que ele deixou a lápis à margem do manuscrito para possíveis futuras substituições. Essas observações foram transpostas para a versão final de Estas estórias como notas de rodapé e ficaram a cargo do amigo do escritor, Paulo Rónai. A medir pelo hábito do autor, que era um trabalhador incansável de seus textos, é provável que conto sofreria maiores modificações, se acaso ele não tivesse morrido antes da publicação do livro pela então prestigiosa Livraria José Olympio. Trata-se de um conto longo por muitos aclamado como obra prima do autor, alternando essa posição, vez ou outra, com Grande sertão: veredas. Haroldo de Campos, por exemplo, no ensaio “A linguagem do Iauaretê” afirma que o conto “representa, a nosso ver, o estágio mais avançado de seu experimento com a prosa.” (CAMPOS, 1992: 48). Numa outra passagem do mesmo ensaio, na qual estabelece um possível paralelo entre Rosa e James Joyce, o crítico também escreveu: 1 Valteir Vaz é licenciado em letras (Português e Inglês) pela Fundação Santo André (2006) e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (2012), com dissertação sobre a poética de Guimarães Rosa e suas confluência com o Formalismo Russo. Atualmente realiza pesquisa de doutorado sobre os romances Mar Paraguayo e Meu tio Roseno, a cavalo, de Wilson Bueno, à luz dos conceitos de Semiosfera (Iúri Lótman) e Hibrido romanesco (Mikhail Bakhtin, Homi Bhabha, Robert C. G. Young e Nikos Papastergiadis), junto ao Programa de Literatura e Cultura Russa (USP). É professor de comunicação e expressão da Fatec São Caetano do Sul (SP).

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“Meu Tio o Iauaretê”: nas assimetrias da linguagem

Valteir Vaz1

Tiger, tiger, burning bright

In the forests of the night,

What immortal hand or eye

Could frame thy fearful symmetry?

(W. BLAKE)

1. Introdução

Em março de 1961, João Guimarães Rosa publicou na edição de número 25 da

revista Senhor o conto, “Meu Tio, o Iauaretê”. Oito anos depois, em 1969, o conto

figurou novamente na coletânea Estas estórias, desta vez com algumas modificações.

Rosa faleceu em 1967, mas deixou o livro praticamente pronto para ser editado. Salvo

algumas poucas anotações que ele deixou a lápis à margem do manuscrito para

possíveis futuras substituições. Essas observações foram transpostas para a versão final

de Estas estórias como notas de rodapé e ficaram a cargo do amigo do escritor, Paulo

Rónai. A medir pelo hábito do autor, que era um trabalhador incansável de seus textos,

é provável que conto sofreria maiores modificações, se acaso ele não tivesse morrido

antes da publicação do livro pela então prestigiosa Livraria José Olympio.

Trata-se de um conto longo por muitos aclamado como obra prima do autor,

alternando essa posição, vez ou outra, com Grande sertão: veredas. Haroldo de

Campos, por exemplo, no ensaio “A linguagem do Iauaretê” afirma que o conto

“representa, a nosso ver, o estágio mais avançado de seu experimento com a prosa.”

(CAMPOS, 1992: 48). Numa outra passagem do mesmo ensaio, na qual estabelece um

possível paralelo entre Rosa e James Joyce, o crítico também escreveu:

1 Valteir Vaz é licenciado em letras (Português e Inglês) pela Fundação Santo André (2006) e mestre em

Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (2012), com dissertação sobre a poética de Guimarães

Rosa e suas confluência com o Formalismo Russo. Atualmente realiza pesquisa de doutorado sobre os

romances Mar Paraguayo e Meu tio Roseno, a cavalo, de Wilson Bueno, à luz dos conceitos de

Semiosfera (Iúri Lótman) e Hibrido romanesco (Mikhail Bakhtin, Homi Bhabha, Robert C. G. Young e

Nikos Papastergiadis), junto ao Programa de Literatura e Cultura Russa (USP). É professor de

comunicação e expressão da Fatec São Caetano do Sul (SP).

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Já Guimarães Rosa retoma de Joyce aquilo que há de mais joyciano:

sua (como disse Sartre) “contestação da linguagem comum”, sua revolução

da palavra, e consegue fazer dela um problema novo, autônomo, alimentado

em latências e possibilidades peculiares à nossa língua, das quais tira todo um

riquíssimo manancial de efeitos. Nesse sentido, ao nível da manipulação

lingüística (sic), a ficção rosiana é mais atual, menos comprometida com o

passado, com o assim dito romance burguês do século 19, que o “nouveau

roman francês”. (CAMPOS, 1992: 48)

É notável com em poucas palavras Haroldo tinge uma das questões que mais

preocupou Rosa enquanto um artista criador, qual seja, a de “resgatar a linguagem

literária da língua corrente, devolvendo-lhe o sentido de vida perdida pelo uso habitual”.

(ROSEMBAUM, 2006: 161)

Vários são os momentos em que o ficcionista explicitou essas suas

preocupações, deixando bastante claro quais eram suas convicções artísticas. Dentre

toda sua obra, ele melhor as delineou nas correspondências com os seus diversos

tradutores. Se afunilarmos um pouco mais, não incorreríamos em erro ao afirmar que é

particularmente no epistolário mantido com Harriet de Onis – a norte-americana que

verteu parte de sua obra para o inglês – que retém, em quantidade e qualidade, as

declarações mais consistentes em torno do seu processo criativo. Numa carta datada de

1967, ele expressa com veemência à sua tradutora essas suas preocupações:

Mas, o mais importante, sempre, é fugirmos das formas

estáticas, cediças, inertes, estereotipadas, lugares comuns. Meus

livros são feitos, ou querem ser pelo menos, à base de uma dinâmica

ousada, que se não for atendida, o resultado será pobre e ineficaz.

Não procuro uma linguagem transparente. Ao contrário, o leitor tem

que ser chocado, despertado de sua inércia mental, da preguiça e dos

hábitos. Tem de tomar consciência viva do escrito, a todo momento.

Tem quase de aprender novas maneiras de sentir e de pensar. Não o

disciplinado – mas a força elementar, selvagem. Não a clareza – mas

a poesia, a obscuridade do mistério, que é o mundo. E é nos detalhes,

aparentemente sem importância, que estes efeitos se obtêm. A

maneira-de-dizer tem de funcionar, a mais, por si. O ritmo, a rima, as

aliterações ou assonâncias, a música subjacente ao sentido – valem

para maior expressividade. (Carta de JGR a HO, 05/01/1965)

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Levando em conta essas declarações do escritor, esse ensaio procura estabelecer

algumas intersecções entre procedimentos linguísticos presentes em “Meu Tio o

Iauaretê” e a noção de “sujeito do inconsciente”, conforme desenvolvida pelo

psicanalista francês Jacques Lacan. Tem-se como interesse maior as manifestações

ocorridas na linguagem do conto que nos remetem à “poética” do autor, descrita

anteriormente. Em outras palavras, o foco sempre estará na orquestração do material

linguístico que constitui o conto. Em estreita sintonias com a poética rosiana, que torna

a linguagem um dos seus leitmotiv, se encontra a psicanálise, pois, ambos os saberes

(literatura e psicanálise) fazem usos, fundamentalmente, da palavra.

Para confluir tais saberes, sem que haja perdas nas especificidades de cada um,

cabe-nos, de antemão, uma ressalva: nenhum deles estará aqui subordinado ao outro. A

literatura não se prestará como uma mera ilustração de procedimentos psicanalíticos, o

que resultaria num empobrecimento do elevado teor de ambiguidade do conto em

questão. Por outro lado, se assim agíssemos, estaríamos na contramão das intenções

explicitadas pelo autor, quando ele defende, entre outras coisas, que não devemos ceder

às “formas estáticas, cediças, inertes, estereotipadas, lugares comuns.”

Em se tratando de um estudo de confluências entre procedimentos literários e

conceituação psicanalítica, melhor seria, conforme salienta Cleusa Passos, perceber que

“o auxílio da psicanálise torna-se necessário como instrumento de busca de uma das

possibilidades do discurso literário”. (PASSOS, 1986: 1) Não raro, o modelo operatório

ora selecionado ressoa a Roland Barthes, particularmente ao seu ensaio Aula, lido na

aula inaugural no Collège de France, em 1977. Nele, o autor de S/Z enfatizava a já

bastante conhecida natureza polissêmica do texto literário: “a literatura assume muitos

saberes (...) a literatura faz girar os saberes, não fetichiza nenhum deles: ela lhes dá um

lugar indireto, e esse indireto é precioso” (2007: 17,18). Que fique claro então que essa

nossa proposta figura-se tão-somente como uma possibilidade de abordagem do

fenômeno literário, ou seja, falamos deste lugar indireto, do lugar do saber psicanalítico.

Dito isso, consideramos desejável situar, da forma mais explicita possível, os

aspectos psicanalíticos que pretendemos evidenciar no conto.

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2. “Sujeito do inconsciente”, segundo Jacques Lacan

Jacques Lacan, a partir da integração de alguns saberes, sobretudo aqueles

advindos das ciências humanas e exatas, e daquilo que ele mesmo denominou de seu

“retorno a Freud”, erguerá, segundo Terry Eagleton, “uma das teorias mais ousadamente

originais do século passado” (2006: 275), com repercussões que vão muito além do

âmbito da clínica. No processo de construção de uma teoria de tal amplitude, o

psicanalista acabou sendo acusado, tantas vezes, de fazer uso incerto de certos

conhecimentos, o que para muitos não invalida de forma alguma sua obra. Lacan nos

oferece instrumentos que têm se mostrado bastante expressivos no que tange à

abordagem de criação artística. Desse ponto de vista, a literatura, que também esteve na

base do edifício teórico desenvolvido por Sigmund Freud, encontrar-se-á com a

psicanálise numa instância primordial: ambas têm, como dito anteriormente, tem como

matéria constituinte os usos da palavra. A esse propósito dirá Cleusa Rios Passos, em

seu As armadilhas do saber:

Sem dúvida, as propriedades elencadas apontam semelhanças que

sustentam aproximações entre a crítica literária e psicanálise;

contudo, há diferenças a serem consideradas: a literatura é arte e sua

crítica deve preservar tal característica, enquanto a psicanálise se

delineia como teoria(s) ligada(s) à cultura (...).” (PASSOS, 2009: 22)

Referindo-se às implicações interdisciplinares da teoria psicanalítica lacaniana,

Vladimir Safatle faz a seguinte consideração:

(...) Lacan se transformou, juntamente com Freud, em um clínico cuja

influência e cujas questões tiveram a força de ultrapassar o campo

técnico a práxis analítica e contribuir, de maneira decisiva, para a

maneira como compreendemos o presente e seus desafios. Pois da

mesma forma que é simplesmente impossível entender o século 20

com suas promessas utópicas sem apreender o impacto social do

pensamento freudiano, talvez seja impossível entender o início do

século 21 sem passar por Lacan. (SAFATLE, 2010: 38,39)

A conceito de sujeito do inconsciente percorre toda a obra de Lacan e uma boa

maneira de tentarmos compreendê-lo é começar falando daquilo que ele,

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essencialmente, ele não é. Essa proposta é enfatizada por Bruce Fink em O sujeito

lacaniano da seguinte forma:

O sujeito lacaniano não é o indivíduo nem o que poderíamos chamar

de sujeito consciente (ou sujeito pensante consciente), em outras

palavras, o sujeito a que se refere a maioria da filosofia analítica. O

sujeito pensante consciente é, de modo geral, indistinguível do eu

como entende a escola de psicologia do ego, que é dominante nos

países nos quais a filosofia analítica predomina (...). (FINK, 1998: 56)

Expressões como “sujeito dividido”, “sujeito barrado”, “sujeito fendido” são

comumente empregadas por Lacan para descrever sua concepção de sujeito, todas elas

representadas pelas pelo signo $.

O axioma lacaniano: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” é aqui

de primordial importância. Essa fórmula isolada enunciada por Lacan remonta aos

ensinamentos do fundador da linguística moderna, o suíço Ferdinand de Saussure.

Vários estudiosos, dentre eles Juan-David Nasio, pontuaram certas concepções

lacanianas em sintonia com a linguística, a ciência piloto do tempo do século XX.

Como é sabido, o autor do Curso de lingüística geral concebia a linguagem como um

sistema de signos. Cada signo, segundo ele, é o resultado da união de um significante

(uma imagem acústica ou seu correspondente gráfico) e um significado (o conceito

propriamente ou significado).

Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a

substituir o conceito e a imagem acústica respectivamente por

significado e significante; estes dois termos têm a vantagem de

assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total de que

fazem parte. (SAUSSURE, 2002: 187)

Mas Lacan não adota a unidade significante/significado tal como desenvolvida

por Saussure. Ele instaura uma hierarquia entre as duas partes, priorizando, o

significante, ou seja, o eixo da expressão. Desta forma, a equação de Saussure Se/So,

sendo Se= significante e So= significado, sofrerá uma inversão na teoria lacaniana e

passará a ser representada como S/s. É Barthes novamente quem melhor esclarece: “a

barra de separação entre significante (S) e o significado (s) tem seu valor próprio (que

não tinha, evidentemente, em Saussure)”. (BARTHES, 1971: 52) Barthes está falando,

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obviamente, da dominância do significante sobre o significado na concepção lacaniana.

É a partir daí que Lacan desenvolve a sua lógica do significante para estabelecer a

conexão entre o inconsciente e a linguagem. Muito resumidamente poderíamos dizer

que as representações do inconsciente, sejam elas por meio de atos falhos, sonhos,

chistes, gaguejos, etc. são entendidas pela teoria lacaniana como significantes e

constituem raros momentos nos quais podemos entrever as marcas deste sujeito do

inconsciente. Ao estabelecer essa ligação, Lacan além de retomar “a percepção

predominante do inconsciente de que ele é o domínio das pulsões irracionais, algo

oposto ao eu consciente e racional” (FINK, 1998:26) (como em Freud) também está

admitindo uma cadeia significante, ou campo da expressão, que opera, como em

Saussure, por presenças e ausências. Orlando Pires, no seu Manual de teoria e prática

literária, resume:

As representações inconscientes são significantes, enquanto

elementos virtuais do discurso, objeto da interpretação analítica, e

constituem uma cadeia, pois é a sua articulação invisível o ponto de

apoio dos mecanismos que dão origem ao sonho, ao ato falho, ao

sintoma, seja pela metáfora (substituição do significante recalcado

por aquele que o representa) ou pela metonímia (combinação de

significantes onde o discurso manifesto, suprimindo o essencial,

compõe sua unidade tranquilizadora, posto que ilegível)” (PIRES,

1989: 121)

Ao tratar da efemeridade do sujeito inscrito no inconsciente, Fink, no livro já

mencionado, fará duas afirmações bastante esclarecedoras que vão de encontro aos

procedimentos presentes no conto rosiano. Vejamos:

O inconsciente como um desenrolar contínuo de uma cadeia

significante excluída da consciência, no qual o saber de um

determinado tipo é incorporado, possui uma natureza permanente; em

outras palavras, ele subsiste ao longo da vida de um indivíduo.

Contudo, o sujeito não é, de forma alguma, permanente ou constante.

(FINK, 1998: 46)

E continua:

O sujeito do inconsciente manifesta-se no cotidiano como uma

irrupção transitória de algo estranho e extrínseco. Em termos

temporais, o sujeito aparece apenas como uma pulsação, um

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impulso ou interrupção ocasional que imediatamente se

desvanece ou se apaga, “expressando-se”, desta maneira, por

meio do significante. (FINK, 1998:17, Grifos meus)

Isso posto, passemos à abordagem do conto de Rosa propriamente.

3. Das confluências

Foi na fala ininterrupta da personagem principal de “Meu tio o Iauaretê” que

notamos, em diferentes momentos e formas, marcas de desarticulação de sua linguagem

ou, mesmo uma “irrupção transitória de algo estranho e extrínseco” à sua própria

linguagem. Tudo se passa como se o onceiro não se desse conta dessas “falhas”, que, na

medida que o tempo passa, vão dominando sua fala. Tais indícios corroboram para a

identificação um sujeito que não tem domínio absoluto daquilo que passa pela sua boca,

ou melhor, de um indivíduo que, como no axioma freudiano, “não é senhor na sua

própria casa”. Nos momentos de maior desarticulação, é como se a linguagem do

Iauaretê falasse por si mesma, desprendida de qualquer controle prévio por parte do

falante. Com isso, temos não mais um sujeito que fala uma língua, mas uma língua que

fala um sujeito. Isto constatado, a noção a noção lacaniana de “sujeito do inconsciente”

se mostrou um expressivo instrumento na abordagem desta narrativa.

Comecemos por uma síntese interpretativa. “Meu tio o Iauaretê” é narrado em

primeira pessoa e trata da estória de um onceiro (Tonico, Bacuriquirepa, Macuncozo),

mestiço de pai branco com mãe índia, que fora designado pelo fazendeiro, Nhô Nhuão

Guede, para “desonçar” um dos confins dos Gerais. Lamentando a condição de isolado

ao seu interlocutor, o narrador autodiegético2 rosiano, na medida em que o tempo passa,

vai abandonando suas características humanas e se aproximando das dos animais.

Muito a propósito Walnice Nogueira Galvão, no ensaio “O impossível retorno”,

jogando com a dicotomia entre cru e cozido, conforme desenvolvida por Claude Lévi-

Strauss, comenta a inversão da seguinte forma:

2 Gerard Genette, em Discours narratif (1972) classifica o narrador em três tipos. Ele pode ser

“heterodiegético”, “homodiegético” e “autodiegético”, ou seja, aquele que não somente está dentro da

história, como é também seu personagem principal.

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Se o matador de onças com elas se identifica e se torna matador de

homens (...), a rejeição do mundo civilizado, domínio do cozido, é

acompanhada pela volta ao mundo da natureza, do domínio do cru.

(GALVÃO, 1978: 13)

A passagem dos domínios da Cultura para os da Natureza, se aceitarmos tal

distinção, será marcada no conto pela presença de uma onça, que se torna objeto de

identificação do narrador. Depois de tanto matá-las, o caçador parece ter ficado

“encantado” por uma de suas caças, e após isso, não mais as matará. Numa passagem

altamente sugestiva, o narrador nos fala da afetivamente entre o onceiro e a onça,

Maria-Maria:

Primeira que eu vi e não matei foi Maria-Maria. (...) Ela veio. Ela me

acordou, tava me cheirando. Vi aqueles olhos bonitos, ôlho amarelo,

com as pintinhas pretas bubuiando bom, adonde aquela luz... (...) Ela

chega esfregou em mim, tava me olhando. (...) Era um lugar fôfo

prazível, eu deitado no alecrinzinho. (...) Depois botou mãozinha em

riba de meu peito, com muita fineza. (...) Falei baixinho: - “Ei, Maria-

Maria... carece de caçar juízo, Maria-Maria...”(...) Maria-Maria é

bonita, mecê devia de vir! Bonita mais do que alguma mulher.

(ROSA, 1969: 137, 138)

Outro fato relevante, também apontado por Walnice, é que o onceiro nomeia

essa sua onça predileta, a que ele supostamente alimentou com a carne de seus amigos,

com um anagrama que nos lembra diretamente o nome de sua mãe: Mar’Iara Maria.

Aqui, os paralelos com a concepção freudiana de Complexo de Édipo são mais que

evidentes e contribuem para reforçar a interseção entre literatura e psicanálise que

estamos tentando delinear.

Toda a narrativa se passa numa única noite, num velho rancho consumido numa

região quase inóspita do sertão mineiro, cenário arquetípico das narrativas do autor. É

justamente nesse espaço que o onceiro oferecerá hospedagem a um visitante perdido e

muito amedrontado. Com ele, o onceiro trava um diálogo-monólogo ininterrupto que,

assim como a fala de Riobaldo de Grande sertão: veredas, dura toda a narrativa. A

expressão diálogo-monólogo se justifica pelo fato de ser somente a fala do onceiro que é

reportada no conto, as possíveis interpolações do interlocutor são depreendidas somente

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pela fala do Iauaretê. O diálogo vai se tornando tenso, destravado que está pela ingestão

contínua de cachaça por ambos.

A partir de determinados indícios colhidos na fala do onceiro, constata-se que

seu hóspede está muito assustado com tudo o que se passa naquela noite.

Particularmente o amedronta as tenebrosas estórias de onças contadas rancheiro:

Mecê tem mêdo? Tem mêdo não? Mecê tem mêdo não, é mesmo,

tou vendo. Hum-hum. Eh, cê tando perto, cê sabe o que é que é medo!

Quando onça urra, homem estremece todo... Zagaieiro tem medo não, hora

nenhuma. Eh, homem zagaieiro é custoso achar, tem muitos poucos.

Zagaieiro – gente sem soluço... os outros todos têm medo. (ROSA, 1968:

151)

Porém, o visitante encontra-se armado, sacando seu revólver naqueles momentos

em que o medo o domina. Ora tentando ludibriar o visitante, ora ordenando para que

esse durma ou que ele lhe dê a mão ou o revólver, o narrador vai relatando, numa

linguagem ambígua e extremamente contingente, os mais aterrorizantes casos de

ataques das onças das mais variadas espécies. Também conta estórias de pessoas que ele

próprio supostamente tenha matado. O melhor exemplo é o caso do negro Tiodoro3, que

ele, possivelmente, tenha oferecido como prenda à sua Maria-Maria:

Ela rosnava baixinho para mim, queria vir comigo pegar o prêto Tiodoro. Aí,

me deu aquêlo frio, aquêle friiíio, a câimbra tôda... Eh, eu sou magro,

travesso em qualquer parte, o prêto erro meio gordo... Eu vim andando, mão

no chão... Prêto Tiodoro com os olhos dôidos de medo, ih, olho enorme de

ver... Ô urro!... (ROSA, 1969: 158)

O conto termina com a suposta morte do narrador pelo visitante, desenvolvida

de uma forma extremamente ambígua no último parágrafo do conto. Esse final

apoteótico, em que a inventividade linguística e a ambiguidade semântica têm

sustentado múltiplas leituras, nos remete diretamente às declarações de Rosa à sua

correspondente Harriet de Onís, citadas no início deste ensaio. Sua intenção em fazer da

linguagem literária uma máquina contestatória do lugar comum resultou aqui em

3 Tiodoro é possivelmente corruptela de Teodoro. Nele lemos, “Tio”, que ressoa o título do conto e

“odoro” que lembra odor, menção direita ao mau cheiro da personagem Tiodoro: “Café, tem não. Hum,

prêto bebia café, gostava. Não quero morar mais com prêto nenhum, nunca mais... Macacão. Prêto tem

catinga... Mas prêto dizia que eu também tenho: catinga diferente, catinga aspra.” (Rosa, 1969: 128)

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construções de alta voltagem poética. Isso levou Haroldo de Campos a afirmar que, em

“Meu tio, o Iauaretê” “(...) não é a história que cede o primeiro plano à palavra, mas a

palavra que, ao irromper em primeiro plano, configura a personagem e a ação,

desenvolvendo a história.” (CAMPOS: 1992: 59)

4. As manifestações do sujeito do inconsciente na linguagem do

Iauaretê

Tudo se passa como se a fala do mestiço estivesse sendo, gradativamente,

habitada por um outro eu que segue deixando suas marcas quase imperceptíveis: “Eh.

Nhor não, n’t, n’t...” (126); “Urrurrú-rrrurrú...” (129); “Ah, ah, ah... Ã ã-ã-ã...” (132);

“Tiss, n’t, n’t...” (134 e 135); “N’t, m’t, aah...” (136)

Na medida em que o “diálogo” se intensifica, os hiatos também vão se

evidenciando através de lampejos que, como numa dança dos sete véus, operam por

presença e ausência. No Seminário 2, Lacan faz uma brevíssima consideração acerta do

sujeito do inconsciente que nesse momento se mostra de basilar importância. Dirá ele:

“logo que o próprio sujeito chega a ser, ele o deve a um certo não-ser sobre o qual ergue

seu ser”. (LACAN, 1994: 242) Entre “interjeições e expletivos, resmungos

onomatopaicos” (CAMPOS, 1992: 60) o sujeito vai deixando entrever suas marcas na

cadeia significante, ou melhor, na fala do sertanejo.

Nessa linguagem assimétrica e conturbada, há presença de muitas parapraxias,

representadas na tessitura textual por meio de lapsos linguísticos: “Eu – tôda parte”.

(126); “Cavalo correndo, popóre...” (127); “Eu – longe”. (129); “Eu nhum – sozinho...”

(133); “Eu – onça” (144); “Onça é onça – feito cobra.” (147); “Eu panema não, eu –

marupiara” (153).

Parafraseando Gilles Deleuze, no seu ensaio “Porcelana e vulcão”, é como se

uma “fissura silenciosa (...) encarnasse na profundidade da linguagem” cavando

“fendas” na superfície da fala do onceiro por onde emerge “a supremacia do significante

no sujeito”. (CAMPOS, 2012: 27) Vejamos:

“Hum? Ehéh...”, “Ã-hã...”, “n’t, n’t”, “hum, hum...”, “Hum-hum...”,

“Tiss, n’t, n’t...”, “ixe!...” “axi...” “Hã-hã...”, “...Teité...”

“Rêiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh...

êeêê... êê... ê... ê...”. (ROSA, 1969, 147, 159)

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Todos esses silêncios sabiamente distribuídos no conto encontram um

correspondente na expressão de Lacan quando diz que “para que uma coisa exista, é

preciso que haja um furo em algum lugar” (LACAN, 2008, P. 259), ou seja, só podemos

entrever as marcas do inconsciente por meio de algum acidente que o revele, no caso

um lapso linguístico.

O viés psicanalítico ainda pode nos auxiliar na leitura de mais uma

particularidade do conto. Trata-se dos nomes que o narrador recebeu durante sua vida.

Do pai, que era branco ele recebeu o nome de Tonico; da mãe, que era bugra, o de

Bacuriquirepa. Também, dada sua bravura como caçador, recebeu as alcunhas de Tião

Tigreiro e, posteriormente, Macuncozo. Sua ascendência mestiça também pode ser lida

na chave do sujeito divido lacaniano, pois há um paralelo entre ela e sua linguagem

fractada. Por outro lado, na medida em que o onceiro se distancia do mundo civilizado e

ruma em direção ao da natureza, ter um nome é algo que quase não importa. Dirá o

próprio sertanejo:

Ah! Eu tenho todo nome. Nome meu minha mãe pôs: Bacuriquirepa.

Breó, Beró também. Pai meu me levou pra o missionário. Batizou,

batizou. Nome de Tonico; bonito, será? Antonho de Eiesús... Depois

me chamavam de Macuncôzo, nome era de um sítio que era de outro

dono, é – um sítio que chamava Macuncôzo... Agora, tenho nome

nenhum não, não careço. (...) Agora tenho nome mais não... (ROSA,

1969: 144)

Em outras palavras: “nesse trançado, a primeira resultante é a perda da

identidade. Não sabe mais o que é, não sabe quem é, não sabe mais seu nome.”

(GALVÃO, 1978: 24)

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5. Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix 13ª ed, 2007.

___________. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1971.

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e Outras Metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes,

6ed., 2006.

FINK, Bruce. O sujeito lacaniano. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Mitológica rosiana. São Paulo: Ática, 1978.

GENETTE, Gerard. Narrative Discourse. Cornel: Cornel University Press. 1983

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

LACAN, Jacques. Seminário II. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

LACAN, Jacques. Seminário XVI. Rio de janeiro: Jorge Zahar. 2008.

PASSOS, Cleusa Rios P. As armadilhas do saber. São Paulo: Edusp. 1ed, 2009.

PASSOS, Cleusa Rios P. O outro modo de mirar. São Paulo: Martins fontes, 1986.

PIRES, Orlando. Manual de teoria e técnica literária. Rio de Janeiro: Presença. 3ed.

1989.

ROSA, João Guimarães. Carta de João Guimarães Rosa a Harriet de Onis (05/01/1965).

Material pertencente ao arquivo do autor, depositado junto ao IEB-USP. Essa

correspondência embora extremamente permanece inédito.

ROSA, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,

1969.

ROSENBAUM, Judith. Guimarães Rosa e Freud: o chiste e o desejo. Revista brasileira

de psicanálise, v. 40 nº1. São Paulo.

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SAFATLE, Vladimir. Revista Cult. Ano 11 nº 125. São Paulo: Bregantini, 2010.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 5ed., 2002.