Entre Justiça e Ética: Direitos humanos e democracia em sociedade pluralistas (monografia)
Transcript of Entre Justiça e Ética: Direitos humanos e democracia em sociedade pluralistas (monografia)
ILMAR PEREIRA DO AMARAL JÚNIOR
ENTRE JUSTIÇA E ÉTICA: direitos humanos e
democracia nas sociedades pluralistas
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia
Fevereiro de 2013
ILMAR PEREIRA DO AMARAL JÚNIOR
ENTRE JUSTIÇA E ÉTICA: direitos humanos e
democracia nas sociedades pluralistas
Monografia apresentada sob a orientação do
Prof. Dr. Alexandre Garrido da Silva, à
Faculdade de Direito “Professor Jacy de
Assis” da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), para obtenção do título de bacharel em
Direito.
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia
Fevereiro de 2013
Dedico este trabalho aos meus pais, Ilmar e
Rosimar, e à minha irmã Ana Paula, para
quem minha graduação em Direito é a
realização de um sonho;
aos meus falecidos amigos Carlos Henrique,
Leandro Augusto e Pedro Paulo, por terem me
chamado a conhecer a vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço desmedidamente ao Prof. Dr. Alexandre Garrido da Silva, por ter conduzido, ao
meu lado, a pesquisa que culminou nesta monografia. Devo-lhe a felicidade de ter encontrado
meu caminho na vida acadêmica, devo-lhe pelos seus ensinamentos, não apenas teóricos,
como também sobre como ser um grande acadêmico e um profissional respeitável. Sem o
Prof. Garrido eu não teria desenvolvido este tema (o qual me intrigava, desde os primórdios
da graduação em Direito) a partir da perspectiva filosófica e arrojada a qual tive acesso, e que
hoje tanto me agrada e engrandece. E, sobretudo, sou grato ao Prof. Garrido por ter me
estimulado a ser “eu mesmo” e valorizar minha espontaneidade criativa.
Agradeço à Nina Benzaquen, à Isabella Benzaquen, ao Guilherme Henrique e ao Vini
Menezes, que têm sido uma espécie de segunda família para mim – e cumprido este papel
muito bem, diga-se!
Agradeço aos meus queridos colegas e amigos do curso de graduação em Direito, com quem
tive a feliz oportunidade de aprender através do diálogo livre, saudável e entusiasmado, em
grande parte me influenciando a escrever este trabalho. Especialmente sou grato à Mariana
Anselmo, ao Rafael Momenté, à Paula Fernanda, ao Diego Pimenta, ao Guilherme Bento, à
Renata Leite, ao Ademir Almeida e, sobretudo, ao Stanley Marques, uma das pessoas com
quem eu mais discuti estas imaturas – porém bem intencionadas – reflexões.
RESUMO
Este trabalho adota como tema a relação entre direitos humanos e democracia nas sociedades
pluralistas. A convivência de diversos grupos com identidades sociais e culturais específicas,
bem como titulares de interesses antagônicos entre si, em uma mesma sociedade política
regulada por uma Constituição, deve ser mediada por normas de direito. Neste nível,
pretende-se analisar crítica e normativamente a tensão entre facticidade e validade no interior
dos Estados pluralistas contemporâneos, a qual remonta ao embate entre direitos humanos
com pretensões universais, garantidos às minorias, e a soberania de um povo situado
historicamente, com pretensão à autodeterminação com base na compreensão de valores
comuns intersubjetivamente compartilhados de uma comunidade concreta. A partir daí, é
relevante demonstrar que tipos de arranjos institucionais derivam de uma compreensão
discursiva do fenômeno político do pluralismo, do direito e da democracia, ressaltando o
modelo de democracia deliberativa, o papel da Constituição do Estado pluralista e,
inevitavelmente, tecendo uma breve abordagem sobre a legitimidade e o papel da jurisdição
constitucional.
ABSTRACT
This work takes as its theme the relationship between human rights and democracy in
pluralistic societies. The coexistence of diverse groups with specific cultural and social
identities, as well as holders of antagonistic interests to each other, in the same political
society governed by a Constitution, must be mediated by rules of law. At this level, we intend
to analyze critically and normatively the tension between facticity and validity within the
contemporary pluralistic states, which dates back to the clash between human rights with
universal pretensions, guaranteed for minority, and sovereignty of a people historically
situated, with intention to self-determination based on the understanding of the common
values shared intersubjectively in a concrete community. From there, it is important to show
what kinds of institutional arrangements derive from a discursive understanding of the
phenomenon of political pluralism, law and democracy, highlighting the model of deliberative
democracy, the role of the Constitution of a pluralistic State and, inevitably, weaving a brief
approach on the legitimacy and role of constitutional jurisdiction.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 9
1. O PLURALISMO ENTRE JUSTIÇA E ÉTICA .............................................................................. 13
1. 1. Direitos humanos e autodeterminação moral: discurso de legitimação e a questão do
universalismo ........................................................................................................................ 15
1.1.1. Discursos de legitimação e de aplicação dos direitos humanos ............................. 17
1.1.2. Princípio da universalidade dos direitos humanos: normas jurídicas versus
normas morais ................................................................................................................... 21
1.1.3. Um discurso jurídico intercultural .......................................................................... 23
1. 2. Democracia e autorrealização ética: limites do constitucionalismo liberal na ordem
democrática ........................................................................................................................... 25
1.2.1. Igualdade versus diversidade: o pluralismo na esfera pública .............................. 29
1.3. Direitos humanos versus democracia: o embate entre liberalismo e comunitarismo .... 31
1.3.1. Liberalismo: teoria da justiça como equidade ........................................................ 32
1.3.2. Comunitarismo: a política de reconhecimento ....................................................... 36
1.3.3. Teoria do discurso: entre Justiça e Ética ............................................................... 39
2. UMA TEORIA DISCURSIVA PARA A COMPREENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DA
DEMOCRACIA .................................................................................................................................... 44
2.1. O giro linguístico na teoria social: pressupostos filosóficos e metodológicos da teoria
do discurso ............................................................................................................................ 45
2. 2. Direito e moral em Habermas: entre o princípio moral e o princípio da democracia ... 48
2. 3. O princípio do discurso e a (re)construção do sistema dos direitos .............................. 51
2.4. Autonomia pública versus autonomia privada? A reconciliação entre direitos humanos
e democracia no paradigma procedimental de Habermas..................................................... 54
2.5. Alexy e a teoria do discurso desenvolvida no âmbito do direito ................................... 58
3. AS QUESTÕES MULTICULTURAIS NA DEMOCRACIA DELIBERATIVA ........................... 62
3.1. Democracia deliberativa: definição, estruturas e críticas .............................................. 64
3.2. Constitucionalismo para uma democracia pluralista ..................................................... 69
3.3. O papel e a legitimidade da jurisdição constitucional nas sociedades pluralistas ......... 72
3.3.1. Legitimidade discursiva dos tribunais: deliberação e fundamentação .................. 74
3.3.2. Jurisdição constitucional: representação argumentativa versus modelo
procedimental .................................................................................................................... 76
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................ 82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................. 87
9
INTRODUÇÃO
A teoria política moderna, que remonta a Kant e Rousseau, trata os direitos
humanos e a democracia como temas concorrentes entre si, conforme se adote uma
concepção liberal ou republicana de organização do poder político. A tensão entre autonomia
privada, garantida sob a forma de direitos e liberdades subjetivas negativas do indivíduo
perante o poder político, e autonomia pública, que se exprime nas liberdades positivas de
deliberação e participação democrática empreendidas por um povo soberano, corresponde, no
presente trabalho, à difícil relação entre direitos humanos com pretensões de validade
universal e a autodeterminação das diversas identidades sociais e culturais das sociedades
pluralistas contemporâneas.
Um diagnóstico empírico das formas de convívio social contemporâneas
evidencia o “fato do pluralismo” dentro da estrutura dos Estados democráticos (para utilizar a
linguagem de Rawls), ou as sociedades pós-convencionais, onde não é mais possível justificar
decisões coletivas em cosmovisões metafísicas ou religiosas tradicionais (na linguagem de
Habermas). É possível, pois, falar em sociedades multiculturais ou mesmo em Estados pós-
nacionais. Discordâncias terminológicas por ora à parte, a convivência, dentro de uma mesma
sociedade politicamente organizada, de grupos culturais, linguísticos, étnicos e religiosos
distintos, que marca os Estados contemporâneos, sugere um desafio ao direito e às instituições
do Estado de direito. Afinal, na ausência de uma base comum de costumes amplamente aceita
para justificar as decisões e instituições jurídicas e políticas, é necessário recorrer ao medium
do direito como estrutura de integração social e resolução justa e pacífica de conflitos.
Daí a necessidade de instituir práticas oficiais e não oficiais que estejam no
interesse simétrico de todos,1 em termos de interesses generalizáveis, e não com base naquilo
que é “bom para mim ou para meu grupo”. Com efeito, o pluralismo das democracias
contemporâneas exige que a perspectiva etnocêntrica de um eu ligado à cultura de uma
tradição concreta se alargue, vez que a convivência com outras comunidades de valores é
inevitável, e se deve dar em termos de solidariedade social, não na forma de atos de violência,
opressão e subjugação.
1 “A pretensão segundo a qual uma norma é do interesse simétrico de todos tem o sentido de uma aceitabilidade
racional – todos os possíveis envolvidos poderiam poder dar a ele o seu assentimento, apoiados em boas razões”
(HABERMAS, 2003a, p.137); conferir também CORTINA, 2009, p.138: “O conteúdo do diálogo é constituído
pelos interesses que os diferentes indivíduos ou grupos consideram com direito suficiente para ser
universalmente reconhecidos, porque possuem argumentos para defendê-los que podem ser compreendidos e
‘consentidos’ pode todos”.
10
Da dialética moralidade/eticidade, 2
é possível extrair a base conceitual dos
direitos humanos. A moral refere-se a questões de justiça: aquilo que é justo, do ponto de
vista de uma ética do discurso, corresponde àquilo que puder obter o assentimento racional de
todos os destinatários livres e iguais de uma norma instituída em um discurso hipotético não
circunscrito no espaço. Em outras palavras, a justiça refere-se ao julgamento imparcial de
interesses universais, generalizáveis a todo sujeito capaz de atos de comunicação. A ética, por
outro lado, remonta a questões de valor, sobre quais bens são reconhecidos por uma
comunidade concreta que se entende a respeito de sua própria identidade, comungando de
uma tradição e história comuns. A eticidade concreta contenta-se com aquilo que é bom para
os participantes de um discurso circunscrito a uma determinada comunidade de valores. Os
direitos humanos, como princípios de caráter universal, possuem nítido conteúdo moral:
correspondem a uma exigência de igual tratamento universal, operacionalizados pela forma de
normas de validade deontológica independente de contextos culturais ou sociais particulares.
Não obstante, a moderna doutrina dos direitos humanos, orientada pelas
condições do pensamento pós-metafísco, rechaça uma fundamentação filosófica deste
instituto que não remonte à autonomia dos próprios sujeitos – autores e destinatários dos
respectivos direitos. E, inevitavelmente, há de se considerar que o sujeito que delibera sobre
normais morais está inserido em um contexto histórico, logo, numa eticidade concreta. Tal
aparente paradoxo é objeto da teoria do discurso de Jürgen Habermas: ao conceber autonomia
pública e autonomia privada como co-originárias, o filósofo pretende reconciliar direitos
humanos e democracia no contexto dos Estados de direito.
Na estrutura do princípio do discurso estão implícitos os pressupostos
comunicativos da linguagem, que regulamentam uma deliberação democrática entre parceiros
do direito dotados de iguais liberdades de fala. Os sujeitos são, concomitantemente, autores e
destinatários da regulamentação jurídica. Qualquer comunidade que queira regular sua
convivência legitimamente pelos meios do direito, deve necessariamente institucionalizar um
sistema de direitos (direitos humanos que se convertem em direitos fundamentais inscritos na
constituição histórica de um Estado em particular). Nesta perspectiva, os abstratos direitos
humanos de natureza moral se revestem de forma jurídica e do caráter obrigatório que dela
deriva, sendo reinterpretados e ressignificados em modelos concretos por uma sociedade de
parceiros do direito.
2 A moral e a ética, do ponto de vista de uma teoria do discurso, se diferenciam à medida que esta se refere ao
bem do indivíduo ou da coletividade, enquanto aquela tem a ver com justiça. Conferir HABERMAS, 2003a,
p.23.
11
Deste modo, o procedimento de formação legítima do direito agregará
moralidade e eticidade. Entre discursos de justiça e discursos éticos, o conflito entre direitos
humanos e soberania do povo (o núcleo da ideia de democracia) pode ser adequadamente
solucionado num nível teórico, e, num nível prático, ao recorrer à institucionalização dos
procedimentos discursivos.
É típica da era contemporânea a ressonância das reivindicações multiculturais,
quando os conflitos motivados por diferenças culturais, pela convivência forçada numa
comunidade de estranhos, foram se agudizando até impulsionar lutas pelo reconhecimento de
identidades sociais e culturais excluídas de um processo de integração política, exigências de
tolerância e de inclusão do “outro”; por outro lado, o desejo de manter conservados os
elementos básicos de uma democracia liberal, tais como as ideias de proteção da vida e da
dignidade humana, de segurança individual e coletiva, de liberdade e igualdade do indivíduo,
sintetiza-se na defesa do conceito geneticamente ocidental dos direitos humanos.
Diversas razões para tal ressonância podem ser destacadas:
(1) processos inversos de globalização, através dos quais as comunidades imigrantes
do mundo não ocidental se estabelecem em Estados democráticos liberais e
enfrentam suas reivindicações; (2) as configurações geopolíticas depois do fim do
comunismo em 1989 na Europa Central e do Leste, e o surgimento do nacionalismo
como uma força nos ex-países comunistas; (3) o surgimento da União Europeia e
um novo regime de direitos; (4) as consequências imprevistas das políticas
redistributivas nas democracias capitalistas e o auge das identidades de condição
protegida para grupos culturais por meio de ditas políticas; e por último, (5) os
modelos cambiantes de integração sociocultural e capitalista nas democracias
liberais ocidentais (BENHABIB, 2006, p.192-193).
Haja vista o “fato do pluralismo” é relevante articular teorias e desenhos
institucionais e sociológicos normativos que possam lidar satisfatoriamente com os conflitos
que envolvem desacordos de índole cultural, ética ou moral básicos, dentro da estrutura liberal
de um Estado de direito democrático, regido por princípios democráticos e inclusivos. Esta
proposta trata-se não de uma ruptura, antes de um aperfeiçoamento e do desenvolvimento de
princípios como da igualdade, da liberdade, da cidadania plena, da tolerância, e, em sentido
amplo, do princípio democrático. Nas condições do pensamento pós-metafísico, a
fundamentação de um regime político que promova a igualdade e a liberdade para todos, em
contextos marcados por desacordos morais e éticos fundamentais, lança um desafio à filosofia
jurídica, à filosofia política e à teoria constitucional – disciplinas em que se insere este
trabalho. Outrossim, os problemas de ordem prática dos Estados pluralistas exigem modelos
sofisticados de circulação do poder político, de práticas institucionais, de funcionamento de
12
esferas públicas autônomas e atuantes, bem como de uma sociedade civil comprometida com
questões públicas relevantes. Tais desígnios certamente pretensiosos só podem ser realizados,
de maneira até mesmo aproximativa, através de intensas reflexões, que são levadas a cabo
pelas teorias aqui apresentadas e debatidas.
Primeiramente, apresentaremos um conceito crítico e normativo de direitos
humanos e de democracia, atentos ao fato do pluralismo social e cultural das sociedades pós-
convencionais; logo após, introduziremos, sucintamente, o debate entre liberais e
comunitaristas, e a crítica de Habermas a cada uma das posições, buscando sintetizar o
essencial das respectivas teorias e construir um pensamento que priorize igualmente
autonomia pública e autonomia privada, participação política e direitos subjetivos individuais.
Em segundo lugar, estudaremos o modelo de fundamentação da teoria do
discurso de Habermas e a estratégia filosófica de que ele lança mão para dissolver a tensão
entre autonomia pública e privada.
Em terceiro lugar, é preciso problematizar como as questões multiculturais
podem ser adequadamente tratadas numa democracia deliberativa, marcada por uma esfera
pública autônoma e por instituições conformes aos pressupostos comunicativos da formação
discursiva da opinião e da vontade. Finalmente, caberá esclarecer, brevemente, qual o papel
da Constituição e qual a interpretação constitucional desejada em uma sociedade pluralista,
inevitavelmente tecendo considerações acerca da legitimidade e do papel de uma jurisdição
constitucional.
Pretende-se, pois, analisar crítica e normativamente a tensão entre facticidade e
validade no interior dos Estados pluralistas contemporâneos, a qual remonta ao embate entre
direitos humanos com pretensões universais, garantidos às minorias, e a soberania de um
povo situado historicamente, com pretensão à autodeterminação com base na compreensão de
valores comuns intersubjetivamente compartilhados de uma comunidade concreta.
13
1. O PLURALISMO ENTRE JUSTIÇA E ÉTICA
As democracias contemporâneas estão marcadas pelo fenômeno do pluralismo
social, cultural e ideológico, que pode ser analisado segundo duas diferentes óticas: ora
significa a diversidade das concepções individuais acerca da vida digna, ora assinala a
multiplicidade de identidades sociais específicas culturalmente e únicas do ponto de vista
histórico. As duas dimensões do pluralismo correspondem, respectivamente, ao significado
adotado por liberais e comunitaristas.3 Com efeito, a visão de democracia dos liberais se
aproxima mais da ideia de Justiça, conforme as raízes do pensamento kantiano, enquanto os
comunitaristas, por vezes denominados republicanos, aproximam-se de uma democracia de
matriz rousseauniana,4 em que se privilegia a ideia de Ética. Neste sentido, Justiça significaria
o julgamento imparcial de interesses de todos segundo princípios de caráter universal, ao
passo que Ética referir-se-ia à ideia de bem individual ou coletivo segundo valores
compartilhados por uma comunidade historicamente situada.
Não por outra razão, a “prioridade do justo sobre o bem”5 propugnada pelo
liberalismo exige o domínio impessoal das leis fundado na garantia de direitos humanos
conferidos a cada indivíduo, a fim de que ele possa perseguir livremente sua concepção acerca
da vida boa. Em contrapartida, a auto-organização espontânea de uma comunidade que quer
se entender sobre sua própria história, valores e aspirações conjuntas, quer dizer, sobre seu
ethos, exige a participação da vontade soberana do povo em um processo de deliberação numa
democracia – aqui, democracia liga-se à ideia radical de regime político onde o povo exerce
seu poder, isto é, ao conceito de soberania popular. A tensão entre direitos humanos e
democracia, vinculada a liberais e comunitaristas, é assim sintetizada por Habermas (2003a,
p.133):
Os direitos humanos e o princípio da soberania do povo formam as ideias em cuja
luz ainda é possível justificar o direito moderno; e isso não é mera casualidade. (...)
As tradições políticas surgidas nos Estados Unidos e caracterizadas como “liberais”
e “republicanas” [no sentido aqui dado, republicano equivale a “comunitaristas”]
interpretam os direitos humanos como expressão da autodeterminação moral e a
soberania do povo como expressão da autorrealização ética. Nesta perspectiva, os
3 No âmbito da filosofia política contemporânea, podem-se destacar como proeminentes representantes do
pensamento liberal John Rawls, Charles Larmore e Ronald Dworkin. A crítica comunitarista dirigida contra o
liberalismo é comumente associada a nomes como Michael Walzer, Charles Taylor e Bruce Ackerman. Ver, a
respeito, CITTADINO (2009). 4 Assenta HABERMAS (2003a, p.134): “De um ponto de vista geral, Kant sugeriu um modelo de ler a
autonomia política que se aproxima mais do liberal, ao passo que Rousseau se aproximou mais do republicano”. 5 Ver ARAÚJO (2010), 91-117, onde, no capítulo intitulado “A prioridade do justo sobre o bem”, o autor analisa
quem – entre Rawls e Habermas – melhor representaria o pensamento liberal na filosofia contemporânea,
sobretudo no que diz respeito à herança kantiana.
14
direitos humanos e a soberania do povo não aparecem como elementos
complementares, e sim, concorrentes.
Pois bem, se os liberais descrevem as democracias modernas como sociedades
onde coexistem distintas concepções individuais acerca do bem, enfatizando assim a
existência de direitos humanos do indivíduo com sentido deontológico que permitam a cada
um orientar o agir conforme sua própria convicção e seu projeto pessoal de vida, os
comunitaristas, por outro lado, ressaltam a multiplicidade de identidades sociais e de culturas
linguísticas, étnicas e religiosas presentes nas sociedades contemporâneas, defendendo a ativa
participação do povo soberano no processo político de afirmação dos valores coletivos, rumo
ao estabelecimento de um consenso ético. Acreditando ser possível integrar as duas
dimensões de pluralismo em um só modelo teórico, Habermas advoga por uma teoria do
discurso do sistema dos direitos que concilie autonomia pública e autonomia privada, isto é,
que evidencie a co-originariedade da soberania popular e dos direitos humanos, de forma que
ambos se pressuponham mutuamente.
Deste modo, a concepção de pluralismo influencia decisivamente o modelo
teórico a partir do qual cada corrente filosófica pretende articular o ideal de uma sociedade
democrática justa e cooperativa com instituições igualmente justas. Tanto a garantia da
autonomia privada do indivíduo quanto a exigência da autonomia pública das diversas
identidades sociais e culturais culminam em distintas teorias da justiça e distintas
compreensões acerca do papel do direito em uma sociedade plural. A despeito das
discordâncias expostas, “liberais, comunitários e crítico-deliberativos acreditam que é
possível formular e justificar um ideal de justiça – especialmente de justiça distributiva –
adequado ao pluralismo do mundo moderno” (CITTADINO, 2009, p.2).
Antes de analisarmos pormenorizadamente o debate filosófico e metodológico
entre liberais, comunitaristas e crítico-deliberativos,6 esclareceremos o conceito de direitos
humanos adotado neste trabalho, bem como a ideia de democracia proveniente da ampla
crítica ao liberalismo hegemônico e sua concepção de democracia formal, na medida em que
essas categorias estão ligadas à autodeterminação moral do indivíduo e à autorrealização
ética dos grupos sociais. Isso porque a compreensão dos direitos humanos e da democracia é
elemento central para a fixação da posição de liberais e comunitaristas no debate aqui
colocado.
6 CITTADINO (2009, p.2) opta por caracterizar o pensamento de Habermas como “crítico-deliberativo”,
designação que faz referência tanto à Teoria Crítica, da qual Habermas é um representante, quanto à ideia de
deliberação pública da qual depende a formação racional da opinião e da vontade.
15
1. 1. Direitos humanos e autodeterminação moral: discurso de legitimação e a questão
do universalismo
A cultura ocidental incluiu definitivamente em sua concepção político-
filosófica o instituto dos direitos humanos. De acordo com esta concepção, um mínimo ético
deve ser garantido nas relações verticais entre Estado e particulares, bem como nas relações
privadas entre particulares,7 sob a forma de direitos, e, por conseguinte, com todas as
implicações que dela resultam: a pretensão de efetividade apoiada no caráter coativo do
direito, a legitimidade democrática pressuposta às normas jurídicas etc. Otfried Höffe (2000,
p.165) aludiu aos direitos humanos como “a religião civil da Modernidade”. De um
sentimento moral comum à cultura moderna, os direitos humanos passaram a premissa basilar
dos Estados democráticos de direito,8 vistos atualmente como condição sine qua non para o
exercício da democracia, tanto se posto em mente um conceito democrático liberal ou
socialista.
Esses direitos conformam um instituto jurídico que estabelece os limites de
convivência entre os homens, já que os interesses intersubjetivos frequentemente se mostram
divergentes, de modo a se propiciar uma relação desigual de forças, dando origem à opressão,
à subordinação e à injustiça. Portanto, os direitos humanos tratam de definir condições de
coexistência pacífica entre todos os homens, ao mesmo tempo em que estabelecem os limites
ao pluralismo cultural e político na sociedade internacional; isto implica em que são
conferidos a toda a comunidade de seres humanos,9 daí extraído um de seus pressupostos
epistemológicos fundamentais: a universalidade. “No sentido jurídico-prático, a modernidade
desenvolvera uma nova sensibilidade jurídico-moral; segundo ela correspondem a cada
pessoa de qualquer cultura direitos irrenunciáveis” (HÖFFE, 2000, p.194). Sem prejuízo de
eminentes críticas ao caráter universal10
dos direitos humanos, tal pressuposto é antes de tudo
7 Ver ALEXY (2008), p.523-542, em que o autor analisa o efeito perante terceiros ou eficácia horizontal dos
direitos fundamentais, partindo da ideia de que os direitos fundamentais representam uma ordem objetiva de
valores que se irradia por todo o sistema jurídico. Ainda, expõe três modelos de construções do efeito perante
terceiros: o modelo de efeitos diretos, o modelo de efeitos indiretos e o modelo de efeitos mediados por direitos
em face do Estado. 8 Cf. HÖFFE, 2000, p.168: “Na medida em que se reconheçam os três grupos de direitos humanos, não só os
liberais direitos de liberdade, mas também os de participação democrática e, ademais, os direitos sociais, se pode
qualificar de Estado constitucional democrático e de direito”. 9 Conforme definição de Luigi Ferrajoli (2001, p.19), “são ‘direitos fundamentais’ todos aqueles direitos
subjetivos que correspondam universalmente a ‘todos’ os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas,
de cidadãos ou pessoas com capacidade de agir (...)”. 10 Para analisar a tensão entre as correntes universalistas e o comunitarismo, conferir TAVARES, Quintino
Lopes Castro (2005); também, SANTOS, Boaventura de Souza (2008), que preconiza a renúncia ao debate
universalismo versus relativismo em prol de uma concepção intercultural dos direitos humanos.
16
uma exigência de ordem etimológica: são direitos humanos, ora devem referir-se a todo
aquele que seja humano, não apenas ao cidadão de uma sociedade política ou de um Estado
singular. A positividade, isto é, o fato de os direitos humanos estarem incluídos no sistema
jurídico, na forma de direito constitucional ou infraconstitucional, não é conceitualmente
imanente e necessária à concepção de direitos humanos, a despeito de, como veremos a
seguir, ter grande relevo, principalmente no âmbito da aplicabilidade.
É preciso, ora, distinguir entre direitos fundamentais e direitos humanos.
Aqueles são uma resposta política dos Estados democráticos à exigência da consideração de
uma parcela mínima de direitos humanos do cidadão, na forma jurídico-positiva de direitos
fundamentais básicos. Os direitos humanos deixam de ser apenas parte da moral jurídica
universal e passam a integrar a Constituição, obrigando a atuação – positiva ou negativa – dos
poderes públicos, convertendo-se agora em elementos do direito positivo de uma comunidade
jurídica particular. Direitos humanos, pelo contrário, são direitos de origem supraestatal, não
destinados à pessoa enquanto membro de um ente público concreto, mas antes como membro
de uma comunidade mais ampla,11
ilimitada no espaço e transcendente das fronteiras políticas
e nacionais que marcam a divisão geopolítica do mundo moderno. Por esta razão, há aqueles
que afirmam direitos humanos como direitos morais:
Direitos morais podem, simultaneamente, ser direitos jurídico-positivos; sua validez,
porém, não pressupõe uma positivação. Para a validez ou existência de um direito
moral basta que a norma, que está na sua base, valha moralmente. Uma norma vale
moralmente quando ela, perante cada um que aceita uma fundamentação racional,
pode ser justificada (ALEXY, 1999, p.60).
Sustentando opinião contrária, mesmo divergindo da natureza moral dos
direitos humanos, ao atribuir-lhes caráter especificamente jurídico, Habermas assinala que sua
validade permanece universal: “os direitos do homem têm por natureza um caráter jurídico. O
que lhes confere uma aparência de direitos morais não é o seu conteúdo, nem por razões mais
fortes, sua estrutura, mas o sentido de validade que ultrapassa a ordem jurídica dos Estados
nacionais” (HABERMAS, 2002, p.222).
Reconhecendo-se ou não sua natureza moral, os direitos humanos só se tornam
obrigatórios quando tomam parte em um ordenamento jurídico e são reinterpretados em um
processo de autodeterminação política que institucionaliza e dá forma jurídica aos direitos de
gênese moral. Conforme se verá adiante, o fato de uma norma ser puramente moral não
11
Cf. HÖFFE, 2000, p. 167-168.
17
garante a exigência da conformidade de uma conduta externa à sua prescrição, pelo que se
necessita de um sistema de direitos institucionalizado.
1.1.1. Discursos de legitimação e de aplicação dos direitos humanos
A efetivação dos direitos humanos está condicionada ao reconhecimento e à
reciprocidade. Conforme visto, normas morais não subsistem sem que sejam reconhecidas
intersubjetivamente como justas – portanto, sem que possam ser consideradas legítimas. De
outro lado, o simples reconhecimento cria virtualmente o caráter de exigência: “os direitos
humanos se legitimam a partir de uma reciprocidade; (...) a partir de um intercâmbio. E então
contrai um dever humano quem realmente aceita dos outros prestações que se produzem
unicamente sob a condição da contraprestação” (HÖFFE, 2000, p.201). Um interesse
irrenunciável só pode realizar-se por reciprocidade, ou seja, quando encontrar-se bem definido
aquele ao qual a contraprestação necessária à realização desse interesse se dirige. Às
condições de reconhecimento e reciprocidade correspondem, respectivamente, discursos de
legitimação e de aplicação.
A finalidade de toda norma jurídica é a resolução efetiva dos conflitos e o
fomento da cooperação social12
, na medida em que sua pretensão de efetividade significa que
o seu conteúdo normativo abstratamente formulado servirá de parâmetro das condutas
humanas na realidade concreta. A aplicabilidade, logo, é categoria fundamental das normas
jurídicas, e consiste na sua predisposição em realizar, no nível da realidade social, os
objetivos inscritos na regra de direito. No entanto, na visão pós-positivista do direito, a
aplicabilidade é um momento posterior ao da legitimação. Uma norma só é aplicável depois
que tenha sido objeto de um procedimento racional de legitimação, a fim de que seu conteúdo
possa ser encarado como motivação dos comportamentos humanos que se pautam na
aceitabilidade de uma assertiva normativa. O empreendimento de legitimação firma-se como
uma dimensão condicional e anterior ao empreendimento de aplicação do direito.
O propósito essencial do pós-positivismo jurídico representado por Robert
Alexy é oferecer uma justificação do direito mais aceitável que aquela oferecida pela tradição
positivista. Para tal desiderato, primeiramente é admitida a vinculação conceitual entre direito
e moral, mediante a inclusão de elementos morais no direito, tais como os direitos humanos
12
Cf. SEOANE, 2005, p. 6.
18
básicos, que funcionam, na teoria alexyana, como o “núcleo essencial da justiça e do direito”
(SEOANE, 2005, p.3). Tal reaproximação entre o direito e a justiça requer que aquele assuma
uma pretensão de correção: “a institucionalização da moral e da correção implica a
institucionalização da justiça, e esta implica a institucionalização dos direitos humanos
básicos” (SEOANE, 2005, p.8). Dizer que o direito precisa ser justificado é, em termos
técnicos, exigir que ele seja legítimo, o que põe em movimento um árduo empreendimento de
legitimação filosófica.
O discurso de legitimação almeja aduzir boas razões a favor da validade
jurídica e moral das instituições e normas positivas, bem como conferir validez à facticidade
do direito e justificar sua coercibilidade. “A reflexão filosófica sobre a legitimação dos
direitos humanos e dos direitos fundamentais tem como objetivo delimitar, em seus contornos
gerais, um conjunto de ‘princípios fundamentais garantidores de um mínimo ético a ser
respeitado pelo direito positivo’” (SILVA, 2000, p.13).
A necessidade da legitimação dos direitos humanos, como etapa prévia à sua
aplicação, é defendida por Gregorio Robles (1992, p.11-16) mediante quatro tipos de razões.
Em primeiro lugar, há a razão do tipo moral: a implementação e a defesa dos direitos
humanos devem pressupor seu reconhecimento moral, ou seja, que sua promoção tornará os
homens e as instituições políticas, jurídicas e sociais mais justos. Os direitos humanos, desta
maneira, tornam-se o principal referencial normativo de avaliação da justeza institucional. Em
segundo lugar, existe uma razão do tipo lógico: a legitimação dos direitos humanos é algo
intrínseco à sua própria delimitação concreta. Define, pois, o conteúdo de tais direitos, ao
indicar quais são eles e por que foram elevados a uma categoria lógico-superior. Em terceiro
lugar, há uma razão do tipo teórico, dirigida, precipuamente, ao filósofo do direito, que o
lembra da principal função de sua práxis: o reconhecimento político e a implementação
prática dos direitos humanos não podem ocorrer sem que antes reconheçamos sua validez com
apoio na argumentação, propriamente uma tarefa da filosofia do direito. Por último, a razão
do tipo pragmático induz a afirmar: não há sentido em lutar por algo injustificado ou que não
seja idealmente reconhecido. Toda luta ou militância social encontra-se informada pela teoria.
O empreendimento jusfilosófico de legitimação não constitui uma tarefa
eminentemente acadêmica e desconectada da prática de defesa dos direitos humanos; muito
pelo contrário, ambas – teoria e prática – se convergem no campo da complementaridade
entre legitimidade e aplicabilidade. Como bem advertiu Richard Rorty (apud SILVA, 2000,
p.35): “se o discurso de legitimação, enquanto modalidade de justificação racional dos
19
direitos humanos, não contribui empiricamente para a proteção e promoção de tais direitos,
não há motivo para tê-lo como verdadeiro”.
Não obstante, algumas teorias parecem conceber os direitos humanos somente
sob o ponto de vista teleológico de sua capacidade de eficácia social. É o caso do positivismo
jurídico de Norberto Bobbio, no qual está declarada a renúncia ao empreendimento de
legitimação:
Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e,
num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses
direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos,
absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para
impedir que, apresar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados
(BOBBIO, 1992, p.45).
Bobbio limita o âmbito da racionalidade à razão teórica, ao mesmo tempo em
que inviabiliza teoricamente a legitimação. Sua proposição é um tanto incompleta, pois, além
de dar lugar a uma lacuna metodológica, ao assumir um fundamento extremamente
problemático dos direitos humanos, confunde legitimação com fundamentação “última”.13
Segundo Bobbio (1992, p.46), “pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos
humanos teve sua solução atual na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas (...)”. Ele reconhece na Declaração um consenso
geral acerca da validade dos direitos humanos, um consenso histórico sobre um valor que é
“tanto mais fundado quanto mais é aceito” (1992, p.47). Todavia, há de se levantar uma
dúvida sobre a natureza desse consenso, que excluiu minorias relevantes do processo de
discussão sobre direitos humanos, uma vez que a Declaração fora aprovada por apenas 48
Estados; além do mais, o suposto fundamento de Bobbio pressupõe a legitimidade a partir da
positividade das normas, algo inconcebível ao tratar-se a validade dos direitos humanos a
partir de sua legitimação discursiva.
A patente confusão conceitual entre “legitimação” (ou justificação) e
“fundamentação” reside na redução da filosofia dos direitos humanos ao jusnaturalismo, que
pressupõe dados objetivos constantes, porém indemonstráveis, como a natureza humana, para
a estruturação de suas teorias naturalistas do direito. Ora, legitimação e fundamentação
pertencem a dois paradigmas teóricos distintos: enquanto a noção de legitimação contém uma
13
Cf. SILVA, Alexandre Garrido, 2002, p. 29-32.
20
forte conotação dialógica e, portanto, argumentativa, apresentando-se como resultado de um
esforço argumentativo de justificação de regras e princípios, a fundamentação apresenta-se
com pretensões fortes de objetividade e de evidência, em busca de fundamentos últimos,
absolutos, para o sistema de direitos. Os conceitos sob exame filiam-se, respectivamente, aos
paradigmas do pós-positivismo (representado por bases epistemológicas não metafísicas e
dialógicas) e do jusnaturalismo (de bases metafísicas e monológicas).
O pós-positivismo é o marco teórico da estratégia de legitimação a ser
apresentada; constitui a “sublimação” de duas grandes correntes do pensamento jurídico,
diametralmente opostas: o jusnaturalismo e o positivismo. O jusnaturalismo, fundado na
crença em princípios metafísicos de justiça universalmente válidos, passou a ser considerado
anti-científico, e, por conseguinte, teve de conflitar-se com as críticas apontadas pelo
positivismo, que buscava a objetividade científica perdida, ou negligenciada, pela filosofia
naturalista, com apoio na equiparação do direito à lei positiva. Houve, a partir de então, um
afastamento proposital entre direito e filosofia, que ocasionou a escassez dos debates sobre
legitimidade e justiça. E são justamente estes debates fundamentais que o pós-positivismo
veio resgatar, com a reaproximação entre o direito e a filosofia, construindo uma teoria dos
direitos fundamentais edificada no fundamento moral da dignidade humana. “O pós-
positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura
empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas”
(BARROSO, 2008, p.7).
A relação necessária entre direito e moral é o critério suficiente para distinguir
uma teoria positivista de uma não positivista (ou pós-positivista): “Todos os não positivistas
compartilham a opinião de que o conceito de direito deve ou deveria incluir elementos
morais” (ALEXY, 2005a, p.20). O conceito pós-positivista de direito exige, além da eficácia
social e da legalidade conforme ao ordenamento (elementos suficientes para a dogmática
positivista), a correção moral do direito, que se manifesta mediante uma pretensão de
correção: a realização de justiça de acordo com os imperativos de distribuição e compensação.
A pretensão de correção moral requer fundamentabilidade, um dever geral e básico de
fundamentação, que significa a afirmação de que a norma é materialmente correta e foi
estatuída segundo um procedimento correto, a garantia de que existem motivos razoáveis
para se cumprir a norma em questão, e a expectativa de que todos os destinatários da
pretensão a reconheçam como correta.14
A correção prática e a fundamentação das normas de
14
Cf. ALEXY, 2005a, p. 35.
21
ação são obtidas em discursos práticos, nos quais todos os potenciais destinatários de uma
norma podem reconhecer racionalmente sua validade ideal.
A teoria do discurso, desenvolvida no âmago da filosofia por Jürgen Habermas,
e especificamente na filosofia do direito por Robert Alexy, filia-se ao paradigma pós-
positivista e reconstrói os direitos humanos sob uma nova linha de legitimação, não apoiada
em categorias abstratas e essencialmente idealizadas, mas, ao invés disso, com base no agir
comunicativo e na sua corporificação concreta mediante o uso da linguagem. O direito passa a
ser compreendido como um processo de construção cultural, cuja legitimidade é apontada por
meio do assentimento racional dos seus destinatários acerca de assertivas normativas
criticáveis, construtivamente. Ao contrário do modelo de fundamentação do jusnaturalismo,
que aduz a correção através da compatibilidade entre o direito posto e imperativos morais
com conteúdo pré-concebido (direitos naturais), a teoria do discurso se contenta com um
modelo procedimental de legitimação, ancorado nas estruturas comunicativas que permitem o
alcance do consenso através do discurso. Delinear princípios com conteúdo excede a
competência de um filósofo moral “procedimentalista”; este deve tão somente estabelecer as
condições sob as quais as normas são procedimentalmente corretas, pois as normas materiais
são assunto do homem comum participante dos discursos. “O conteúdo do diálogo é
constituído pelos interesses que os diferentes indivíduos ou grupos consideram com direito
suficiente para ser universalmente reconhecidos (...)” (CORTINA, 2009, p.138). O êxito do
discurso depende precisamente do êxito da legitimação, e entende-se bem-sucedida a
legitimação baseada em argumentos que podem ser confirmados por todos e qualquer um, em
situações hipotéticas de discursos racionais.
1.1.2. Princípio da universalidade dos direitos humanos: normas jurídicas versus
normas morais
Os direitos humanos, considerando inicialmente tratar-se de normas com caráter
moral, não podem renunciar ao princípio da universalidade,15
sem prejuízo de perder seu
caráter distintivo de outras normas de ação destinadas a regular a conduta humana. Esse
15
A linguagem é apontada como um elemento que fundamenta o universalismo na teoria da competência
comunicativa de Habermas, com inspiração na gramática generativa de Noam Chomsky. “Sustentando a posição
de que esses processos de aprendizagem se desenrolam de forma semelhante em todas as culturas – na medida
em que a linguagem é o traço fundamental que nos singulariza em face dos outros símios – oferece Chomsky um
programa de pesquisa, empiricamente fundamentado, capaz de justificar um elemento universalista comum a
todos os homens” (MAIA, 2008, p.69).
22
princípio “obriga os participantes do discurso a examinar normas controversas, servindo-se de
casos previsivelmente típicos, para descobrir se elas poderiam encontrar o assentimento
refletido de todos os atingidos” (HABERMAS, 2003a, p.203). Por conta desse teste de
generalização, as regras morais devem assumir uma versão totalmente descontextualizada
(culturalmente neutra) para que possam abarcar em seu conteúdo interesses generalizáveis ou
transcendentais. Não significa, contudo, que se mantém a formulação doutrinária dos direitos
humanos tal como fora empreendida pelo jusnaturalismo moderno dos séculos XVII e XVIII,
de características atemporais (e a-históricas), absolutas e irrenunciáveis. O atual estágio da
consciência epistemológica reconhece a historicidade dos direitos humanos (portanto sua
temporalidade e relativa variação de conteúdo), refuta a fundamentação jusnaturalística a
priori dos conteúdos morais dos direitos humanos e do mesmo modo reformula seu
procedimento de legitimação com base nas categorias da intersubjetividade. O universalismo
moral – na sua modalidade kantiana de imperativo categórico que se impõe à razão prática – é
substituído pela racionalidade do agir comunicativo, que possibilita o consenso dialógico
sobre valores morais. Tais questões, no entanto, serão tratadas pormenorizadamente adiante.
Importante, no presente momento, é evidenciar quais características podem conferir a um
juízo o predicado de “moral”, em contraste com juízos de outras categorias.
A dimensão moral do homem refere-se àquela forma de julgar segundo padrões
de bom ou mau, correto ou incorreto, justo ou injusto. Portanto a moralidade está presente,
consciente ou inconscientemente, em toda ação humana como um dado constante. Certas
condições genéricas permitem classificar essa forma especial de julgar como “moral”: a) os
juízos morais são “prescrições”, pois tratam de regular a conduta humana; b) são prescrições
que se referem a atos livres, responsáveis e imputáveis; c) aparecem como instância última e
incondicionada da conduta; d) o discurso moral pressupõe razoabilidade, ou seja, que haja
razões para seus mandados. Tais características, todavia, não são exclusivas de normas
morais, estando presentes cumulativamente em normas jurídicas, sociais ou religiosas. O
conteúdo específico do discurso moral, segundo Cortina (2009, p.90-91), inclui as seguintes
notas: a) auto-obrigação: são morais as normas que o indivíduo aceita autonomamente,
independentemente de imposições por parte de uma autoridade, são cumpridas internamente,
em consciência (Kant); b) universalizabilidade dos juízos morais: os imperativos morais se
apresentam como extensivos a todo homem; c) caráter incondicional das prescrições morais:
toda justificação possível tem de estar implícita na própria prescrição.
Assim procedendo, foi possível reconhecer a estrutura peculiar dos direitos
humanos enquanto prescrições da conduta humana, imputáveis e passíveis de fundamentação
23
racional. E, em contraposição a outras normas – de natureza social, técnica, religiosa ou
jurídica – perceber seu conteúdo específico: são direitos cujo reconhecimento deve
internalizar-se na própria consciência subjetiva, servindo ao mesmo tempo de parâmetro e de
motivação da conduta externa daquele que age; são direitos conferidos a um número ilimitado
de destinatários, que criam obrigações de respeito e cumprimento universalizáveis.
1.1.3. Um discurso jurídico intercultural
Certamente, a maior dificuldade teórica e prática de implementação dos
direitos humanos tem índole intercultural. Como fundamentar os direitos humanos quando os
interesses e visões de mundo a que eles atendem são os mais divergentes e, aparentemente, se
encontram numa relação conflituosa de exclusão mútua? Qual o fundamento seguro a se
assumir levando em consideração a variedade de concepções valorativas fornecidas pelas
culturas no cenário internacional? Como os direitos humanos podem ser garantidos sem que
subjaza a este processo relações de dominação, violência e desconsideração recíproca de
identidades culturais desfavorecidas? Enfim, assentados os direitos humanos como
predestinados a valer universalmente, como fazê-lo – com coerência e eficácia – diante do
pluralismo social e cultural do mundo contemporâneo?
Diante das dificuldades suscitadas por essas questões, poder-se-ia indagar
sobre a real importância, ou mesmo a conveniência, da existência de direitos humanos
universais investidos da pretensão de regular a convivência humana para além das situações
juridicamente previstas no ordenamento internacional. Não obstante, sustenta-se aqui a tese de
que é imprescindível a existência do instituto suprajurídico dos direitos humanos,
acompanhado de discursos adequados de legitimação e de aplicação. Na atual configuração
das relações políticas e econômicas na sociedade internacional, regidas pelo fenômeno da
globalização16
e marcadas por todas as consequências que ele acarreta – principalmente o
corrente interfluxo cultural – não podemos prescindir de um instituto que regule
legitimamente o modo como essas relações se darão, posto que inevitáveis. Com efeito,
deixamos a segurança institucional da modernidade, baseada no Estado-nação17
e nas formas
16
Anthony Giddens definiu a globalização como “o adensamento, em todo o mundo, de relações que têm por
consequência efeitos recíprocos desencadeados por acontecimentos tanto locais quanto muito distantes. As
comunicações de alcance mundial seguem por meio de línguas naturais (na maioria das vezes, por meios
eletrônicos) ou códigos especiais (sobretudo o dinheiro e o direito)” (HABERMAS, 2002, p.144). 17
Apenas a partir das revoluções do final do século XVIII é que Estado e nação se fundiram para se tornar
“Estado nacional”. Todavia, segundo compreensão da teoria política moderna, Estado e Nação são conceitos
distintos que, não necessariamente, precisam estar associados. “Estado” trata-se de um conceito definido
24
de associação política bem integradas e culturalmente homogêneas do liberalismo, e
adentramos numa era marcada pelo Estado pós-nacional:18
tanto no nível das relações
públicas e privadas internacionais, quanto no nível da convivência organizada em um mesmo
Estado constitucional, o enfrentamento entre grupos portadores de visões e características
culturais diferenciadas põe em xeque a capacidade de solução de conflitos relevantes com
apoio no arcabouço conquistado pela modernidade. Segundo tese de Habermas (2002, p.129),
“podemos nos orientar nesse caminho incerto rumo às sociedades pós-nacionais justamente
segundo o modelo da forma histórica que estamos prestes a superar”. A superação do Estado
nacional, a forma histórica a que Habermas se refere, exige pois um remodelamento das
relações entre Estado e nação: novas formas de interação exigem novos modelos de
composição de interesses.
Posto o “choque de civilizações” como um fato sociológico inevitável, e o
fechamento cultural como uma prática impossível dadas as atuais circunstâncias, as relações
interculturais poderão se desenvolver sob duas formas:
A) na forma imprevisível de relações conflituosas de violência; na ausência de
uma base comumente aceita de valores e medidas para a solução de discordâncias, a relação
intercultural se degenera em constantes práticas de dominação e subjugação,19
nas quais
decide quem se encontra provido de maiores condições de impor coativamente seu ponto de
vista, sem o auxílio da racionalidade das práticas dialogantes. Em certa medida, o relativismo
cultural extremo e sua conseqüente auto-imunização para as trocas culturais pode levar a isso.
juridicamente, e constitui-se sob as formas de integração e domínio do direito positivo. A Nação, de outro lado,
“também tem o significado de uma comunidade política marcada por uma ascendência comum, ao menos por
uma língua, cultura e história em comum” (HABERMAS, 2002, p.130). É evidente que, tendo em consciência a
existência de várias e antagônicas subculturas dentro de um mesmo ordenamento jurídico soberano (em outras
palavras, Estado), o ideal de um Estado nacional é totalmente impraticável em tempos de pluralismo, em que
várias “nações” culturais habitam e coexistem num mesmo Estado democrático, com vistas a ter atendidas suas
legítimas reivindicações específicas. 18
Neste sentido, HABERMAS (2002, p.129) define o conceito de Estado pós-nacional e suas razões históricas e
geopolíticas: “A globalização do trânsito e da comunicação, da produção econômica e de seu financiamento, da
transferência de tecnologia e poderio bélico, especialmente dos riscos militares e ecológicos, tudo isso nos
coloca em face de problemas que não se podem mais resolver no âmbito dos Estados nacionais, nem pela via
habitual do acordo entre Estados soberanos. Salvo melhor juízo, tudo indica que continuará avançando o
esvaziamento da soberania de Estados nacionais, o que fará necessária uma reestruturação e ampliação das
capacidades de ação política em um plano supranacional que, conforme já vínhamos observando, ainda está em
fase incipiente”. 19
Cf. HÖFFE, 2000, p. 198-201. Höffe assenta que a força legitimante dos argumentos radica exclusivamente na
sua neutralidade. Dentre argumentos neutros, destaca o da capacidade de violência: esta pode se demonstrar
biológica e antropologicamente, pois pertence à condição humana. (Observe-se que “condição humana” não se
confunde com “natureza humana”, conceito largamente utilizado no paradigma teórico do jusnaturalismo. Esta
tem índole metafísica, enquanto aquela, antropológica). Dado que a capacidade de violência colide com
interesses irrenunciáveis do homem – tal como o princípio da ação – esta deve ser evitada mediante o
cumprimento de direitos humanos, que tratam de estabelecer as condições básicas da existência humana.
25
B) na forma racional de diálogos práticos sobre questões morais. Aqui, é
excluída toda forma de coação que não seja a do melhor argumento – aquele que possa
encontrar maior assentimento racional entre participantes de um discurso presidido por regras
da razão prática. A dominação e o imperialismo são substituídos pelo consenso racional
obtido através do princípio do discurso. Neste campo os direitos humanos têm especial
relevância: através de sua observância20
as relações humanas conterão seu potencial conflitivo
negativo e passarão a dar o conteúdo de convicções morais compartilhadas
intersubjetivamente, capazes de fornecer razões para o agir orientado pelo entendimento
mútuo.
A permanente tensão entre os direitos humanos e as exigências da
interculturalidade pode ser reduzida à tensão descrita inicialmente entre direitos humanos e
soberania do povo de um determinado Estado. A ideia de soberania popular liga-se
estritamente ao conceito de democracia, tal como o concebemos na teoria política. Isto nos
leva ao próximo tema: a compreensão da democracia no crivo das teorias do
constitucionalismo liberal e de sua crítica reformadora comunitarista.
1. 2. Democracia e autorrealização ética: limites do constitucionalismo liberal na ordem
democrática
De uma perspectiva republicana tradicional, a democracia coincide com o
dogma da soberania do povo: a formação democrática da vontade realiza-se sob a forma de
uma auto-entendimento ético-político firmado entre sujeitos privados soberanos, que buscam,
deliberativamente, renovar a pré-compreensão de modelo de comunidade culturalmente
integrada ritualizada no ato de fundação da república. Utilizando-se de um método descritivo,
Bobbio (apud HABERMAS, 2003b, p.27) considera a democracia como caracterizada
“através de uma série de regras (...) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões
envolvendo a coletividade e que tipo de procedimentos devem ser aplicados”.21
Ela abrangeria
o conteúdo normativo dos sistemas políticos existentes nas sociedades ocidentais. No entanto,
percebe-se, tendo em vista o fenômeno do pluralismo das formas de vida sociais e culturais,
20
Segundo argumento de Antonio Cavalcanti Maia, em tom conclusivo: “o maior ou menos respeito aos direitos
humanos – tanto no âmbito do estado nacional, como na arena internacional – depende, em significativa medida,
da capacidade de pressão de fiscalização exercida pela opinião pública nas diversas arenas constituidoras do
espaço público” (2008, p.209). 21
O mínimo procedimentalista é preenchido pelas democracias à medida que elas garantem: a) a participação
política das pessoas privadas; b) a regra da maioria como critério para as resoluções políticas; c) os direitos
comunicativos usuais e d) a proteção da esfera privada. Conferir HABERMAS, 2003b, p.27.
26
que o constitucionalismo liberal predominante como ideologia política norteadora das
democracias implementadas e observáveis na atualidade tem sofrido duras críticas por parte
dos movimentos políticos com potencial transformador na esfera pública. Desponta-se urgente
no mínimo uma reforma em nível principiológico da compreensão das Constituições em
contextos de pluralismo.
O constitucionalismo ocidental está ancorado nos ideais de “liberdade,
igualdade e fraternidade”, inspirado pela ideologia defendida pelas teorias liberais e
revoluções burguesas22
do século XVIII. A conhecida tríade liberal-burguesa encontrou sua
maior expressão jurídico-positiva ao ser proclamada na Declaração Universal dos Direitos do
Homem, em 1948.23
Todavia, muito antes já se afirmava o ideal democrático dos direitos
humanos, na forma de princípios morais com pretensão de validade universal.
Desta forma, o conteúdo dos direitos humanos com pretensão universal
corresponde intimamente à ideologia do liberalismo político. Tal afirmação aparentemente
dogmática, no entanto, fora posta à prova pelas críticas teóricas do socialismo, tanto aquelas
empreendidas pelas teorias do paradigma da redistribuição econômica, que postulavam uma
extensão dos direitos humanos de modo a incluir-se no seu rol direitos sociais e econômicos,
tanto as empreendidas pelas teorias pertencentes ao paradigma do reconhecimento – tais como
o comunitarismo e, posteriormente, o multiculturalismo – cujo intuito era propugnar pela
elevação dos direitos culturais à categoria de direitos humanos.
A tensão que destarte irrompe no constitucionalismo ocorre em dois níveis. Em
primeiro lugar, o postulado da universalidade de direitos do homem é questionado pelo
comunitarismo, que assenta ser inviável a generalização de preceitos morais e jurídicos
cosmopolitas, uma vez observada a relatividade de todas as culturas e a maneira peremptória
pela qual os padrões concretos de vida comunitária influem na personalidade do sujeito. Em
22
“Mais especificamente, as exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios
nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. ‘Os homens nascem e vivem
livres e iguais perante as leis’, dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções sociais,
ainda que ‘somente no terreno da utilidade comum’” (HOBSBAWM, 2009, p.91). Entretanto, o mesmo autor,
em mesma obra (p.91), adverte a respeito dos reais interesses, em certa medida anti-democráticos, da classe
burguesa que insurgiu na Revolução Francesa: “Mas, no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de
1789-1848) não era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades
civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários”. 23
Inspirado pela ideologia reinante na Revolução Francesa, o art. 1° desta Declaração afirma: “Todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Eles são dotados de razão e consciência e devem agir
com espírito de fraternidade em relação uns aos outros”. No entanto, como se verá adiante, os princípios de
liberdade e igualdade preconizados pelos documentos burgueses têm caráter estritamente formal, e objetivam
introduzir uma sociedade livre no sentido da liberdade de Mercado, de iniciativa privada e de aquisição e
manutenção da propriedade privada, bem como da liberdade contratual na realização de negócios jurídicos.
27
segundo lugar, o multiculturalismo reformula o conteúdo da concepção de direitos humanos,
que passa a ser integrada por elementos interculturais ou transculturais, numa ruptura com a
tradição liberal eurocêntrica, acompanhada da proposição de modelos dialógicos de direitos
humanos, construídos mediante diálogos interculturais entre as partes interessadas. Também é
proposto o abandono do individualismo estrito, de modo a reconhecer direitos dos grupos
sociais e culturais, e não apenas direitos subjetivos fundamentais, posto que o conceito de
pessoa comporta duas dimensões: a dimensão do indivíduo e a dimensão do cidadão
integrante de uma comunidade política.
O pano de fundo multicultural é o marco histórico da legitimação e da
aplicação dos direitos humanos nas condições do atual pluralismo social, cultural e
ideológico, no qual os conflitos protagonizados pelos grupos culturais – étnicos, linguísticos,
religiosos – evidenciam os limites do arcabouço teórico da modernidade, tanto do liberalismo
político e econômico quanto do socialismo marxista. A luta das minorias excluídas pelo
reconhecimento de suas identidades na esfera pública se põe como um desafio do
constitucionalismo, o qual, imediatamente, deve abandonar a ideia de um Estado-nação
culturalmente homogêneo e socialmente bem integrado, em prol da concepção pluralista da
convivência – e não meramente coexistência – entre grupos que compartilham cosmovisões
distintas e aparentemente irreconciliáveis entre si.
O problema das minorias “inatas”, conforme tratado por Habermas, tem lugar
quando “uma cultura majoritária, no exercício do poder político, impinge às minorias a sua
forma de vida, negando assim aos cidadãos de origem cultural diversa uma efetiva igualdade
de direitos” (2002, p.170). Dentro de uma comunidade democrática que garanta a igualdade
formal de direitos para todos, pode eclodir um conflito cultural conduzido por minorias
desprezadas contra a cultura da maioria. Por esse motivo, Habermas advoga pela inclusão das
minorias em uma cultura política comum, apontando diversos caminhos para se chegar a uma
inclusão24
com “sensibilidade para as diferenças”. E essa inclusão repercute inevitavelmente
na dimensão constitucional dos Estados pluralistas.
O direito constitucional, que cria e organiza a democracia pluralista, recebe o
encargo da interação e da inclusão social, e da solução justa de conflitos travados dentro de
uma estrutura democrática mais ampla.
24
Dentre os caminhos para chegar-se à “inclusão do outro”, Habermas (2002, p.172) aponta: “a divisão
federativa dos poderes, uma delegação ou descentralização funcional e específica das competências do Estado,
mas acima de tudo, a concessão de autonomia cultural, os direitos grupais específicos, as políticas de
equiparação e outros arranjos que levam a uma efetiva proteção das minorias. Através disso, dentro de
determinados territórios e em determinados campos políticos, mudam as totalidades fundamentais dos cidadãos
que participam do processo democrático, sem tocar nos seus princípios”.
28
As dificuldades de formação do consenso social se multiplicam quando em uma
sociedade em processo de diferenciação multicultural se enfrentam formas de vida
religiosa ou étnico-cultural incompatíveis sem que haja sido encontrada ainda a base
jurídica comum capaz de suportar tal pressão (DENNINGER, 2005, p.37).
Para que cumpra seu desígnio de composição justa e correta dos conflitos de
origem multicultural, o direito precisa assumir nas suas premissas de fundamentação
pressupostos de desenvolvimento atentos à diversidade e à heterogeneidade moral, política e
axiológica. O liberalismo se mostrou insatisfatório na tarefa de orientar as práticas jurídicas
nos Estados constitucionais pluralistas. Por isso mesmo o jurista alemão Erhard Denninger
apresentou um novo paradigma constitucional contemporâneo, composto pela tríade
“segurança, diversidade e solidariedade”, que vem para substituir a antiga tríade elaborada na
Revolução Francesa.
Os dois modelos principiológicos em comparação possuem pressupostos
teóricos distintos, que levam necessariamente a diferentes compreensões do papel de uma
Constituição em face da realidade social.
A epistemologia do liberalismo pode ser bem compreendida a partir da matriz
filosófica kantiana, na tradição dos co-fundadores das modernas teorias contratualistas. O
formalismo de Kant se justifica na medida da necessidade de se encontrar o imperativo moral
universal, transcendente a propósitos empíricos, “porque nenhuma lei universal pode ser
derivada de tais representações empíricas” (DENNINGER, 2003, p.25). Podem ser
reconhecidos três pressupostos comuns das teorias contratualistas que fundamentam o
constitucionalismo liberal:
a) a autonomia do sujeito individual como centro da vontade e da ação, para quem
direitos e deveres podem ser atribuídos; b) a universalização da razão, incluindo a
razão prática, na base da qual as categorias de “direito universal” no que respeita à
geração de normas, seus destinatários e o objeto das normas, bem como o conceito
de bem comum, são tornadas conceitualmente possíveis em primeiro lugar; e c) a
equalização de “sujeitos” (Unterhanen) (Kant, Hobbes) e citoyens (Rousseau)
(DENNINGER, 2003, p.23).
O comunitarismo não se contenta com essa visão moral e política.
Primeiramente, acrescenta a autonomia coletiva ao cenário de criação do direito, porque os
sujeitos decidem não apenas o que é melhor para si, mas também em virtude do que é melhor
para seu grupo social. A universalização das normas é rejeitada quando assume tão somente o
fundamento da racionalidade comum, porque não faz sentido, de uma perspectiva
comunitária, a abstração do sujeito e a consequente desconsideração de seu marco histórico-
cultural. Do mesmo modo, o sujeito concreto, na globalidade de suas relações sociais, não
29
pode ser tido com igual de uma ótica puramente formal, e o reconhecimento de sua identidade
efetiva-se exatamente pelo princípio da diferença.
De plano, não se rechaça absolutamente a possibilidade conceitual do “bem
comum” social; pelo contrário, acredita-se no consenso sobre questões éticas, morais e
pragmáticas controvertidas, mas desde que se preencham condições suficientes de dialogação
concreta entre todos os participantes da sociedade afetados pelas respectivas decisões. O que
ocorre é a descrença das minorias de que seus interesses possam ser defendidos de maneira
adequada com a observância da regra da maioria como tradução fidedigna da vontade geral no
espaço democrático.
A ideia por detrás dessa visão é que um conceito consistente de bem comum é
gerado, em certa medida, e automaticamente, tanto quanto permaneça possível que
todos os “poderes sociais relevantes” tenham uma oportunidade de expressar suas
perspectivas e preferências no processo de discussão. [...] A síntese de cada uma
dessas perspectivas produz necessariamente uma concepção completa e apurada do
bem comum (DENNINGER, 2003, p.31-32).
Portanto, ideais políticos como o bem comum e a própria democracia, no
sentido da tomada de decisões políticas fundamentais revestidas do aspecto de normas
jurídicas, não são possíveis sem um processo institucional (e mesmo informal) aberto, que
garanta a participação de todos os pontos de vista da sociedade pluralista, em especial das
minorias estruturais. Nesse processo, os atores sociais cumprem um duplo papel: de autores e
destinatários das normas do direito.
1.2.1. Igualdade versus diversidade: o pluralismo na esfera pública
O constitucionalismo tem caminhado no compasso de uma transformação da
concepção tradicional de igualdade: da igualdade formal para a igualdade material,25
a saber,
uma compreensão da igualdade como diferença. A Constituição, a partir de então, cumpre o
papel de dirimir reais situações de desvantagem e discriminação; mais do que nunca, pede-se
que o tema da inclusão daqueles grupos de pessoas geralmente excluídas dos processos
políticos seja elevado a uma categoria constitucional-positiva. Denninger assevera:
25
Cf. ROSENFELD, Michel, 2003, p. 58-70, observações sobre os estágios históricos da igualdade: igualdade
do estágio 3, na definição da “igualdade como diferença”. Segundo Rosenfeld, citando Habermas, a tríade de
Denninger não funciona exatamente como alternativa à tríade liberal, mas apenas evidencia o que está implícito
nesta em contextos atuais.
30
(...) a ideia de que todos podem ser igualmente afetados pelo direito provou ser uma
ficção. Os homens são afetados, pela mesma lei, diferentemente das mulheres; os
cidadãos diferentemente dos estrangeiros; os idosos e deficientes diferentemente dos
jovens e não-deficientes (DENNINGER, 2003, p. 27).
Indubitavelmente, esse contexto normativo recebe relevantes contribuições das
políticas e teorias multiculturalistas, dos movimentos sociais e de outras modalidades de
reivindicação pelo direito de ser igual, ou, em alguns casos, pelo direito a manter e ter
reconhecida sua própria diferença. Trata-se de uma questão de justiça, uma vez que a
igualdade enunciada pela tríade liberal-burguesa pode (e provavelmente o fará) provocar
irreparáveis situações de injustiça, ao desconsiderar as necessidades especiais de
determinados grupos humanos, sem as quais seus membros não terão condições mínimas de
lograr êxito na convivência em sociedade.
Há pelo menos duas formas de realizar justiça da perspectiva igualitária. A
primeira consiste em pôr termo à desigualdade para remover a injustiça discriminadora; o
paradigma clássico são as lutas das classes sociais subalternas por melhores condições de
vida, buscando uma verdadeira equalização fática das condições sociais, realizada pelas
políticas de redistribuição. Entretanto, há outras diferenças que, de modo algum, precisam ser
superadas: a justiça realizar-se-á mediante o reconhecimento mesmo dessa diferença. É o caso
das minorias étnicas, raciais e linguísticas, dos homossexuais e das mulheres, cujos interesses
pressupõem que suas necessidades especiais e identidades diferenciadoras sejam de fato
mantidas e consideradas, a fim de que possam fazer parte de uma comunidade política
integrada e, assim, exercer as prerrogativas da cidadania. Neste caso, são convenientes as
políticas de reconhecimento.
Com efeito, os conflitos sociais que têm em sua base lutas por redistribuição e
reparação de bens materiais podem ser resolvidos por decisões das maiorias das instâncias
políticas; a situação, no entanto, torna-se mais gravosa quando se trata de conflitos de
identidade, quando a existência da consciência de identidade de uma minoria aparece ligada a
determinadas posições religiosas, ideológicas ou morais, não conduzindo a uma solução clara
e permanente dos conflitos. A superação e a reforma das estruturas políticas e jurídicas da
sociedade parecem ser a via mais segura, e inevitável, de dar conta da inclusão dos projetos de
vida ideal das minorias na agenda política do Estado.
O panorama em que esta “nova” tríade se demonstra apta a desenvolver-se é a
esfera pública, âmbito que se situa entre o Estado e o Mercado, entrelaçamento de múltiplas
formas de associação e organização, onde são criticamente tomadas as deliberações sobre
questões gerais: atividades práticas da solidariedade e uma promoção efetiva da diversidade
31
não são concebíveis em um espaço no qual não haja recorrentes momentos de deliberação,
onde não se mantenha um processo político institucional aberto, cujos temas centrais sejam as
questões públicas que interessam a todos os envolvidos na controvérsia.
Para a promoção da diversidade, e para o deslinde eficaz das políticas de
reconhecimento, tem de haver um nexo conceitual entre pluralismo e democracia deliberativa
– modelo democrático presidido pela ética do discurso, conexão ideal entre política e
fundamentação ética do exercício do poder. O modelo de democracia representativa, tão caro
ao liberalismo, não é capaz de fomentar a prática argumentativa necessária para a integração
social mediante o direito.
A aparente tensão entre direitos humanos e democracia desagua no debate
filosófico entre duas posições bastante definidas no cenário norte-americano: o liberalismo e o
comunitarismo. Vejamos os principais pressupostos e implicações dessa discussão.
1.3. Direitos humanos versus democracia: o embate entre liberalismo e comunitarismo
O fenômeno do pluralismo é um pressuposto de toda a análise sobre a justiça, a
democracia e o direito empreendida por liberais e comunitaristas. Tanto o liberalismo,
representado neste trabalho pela teoria de justiça como equidade de John Rawls, quando sua
tentativa de superação teorético-discursiva formulada por Jürgen Habermas, compartilham
enquanto atitude metodológica e como fator constitutivo do processo político a exigência de
imparcialidade nas questões práticas. As pessoas morais da teoria da justiça de Rawls devem
ser ao mesmo tempo racionais e imparciais. E não é outro o escopo de Habermas senão
instituir um procedimento para orientar a resolução imparcial de questões práticas em
sociedades plurais. Lançando mão de uma metodologia construtivista,26
tanto a posição
original de Rawls quanto o procedimento discursivo de Habermas traduzem-se como
metodologias segundo as quais normas morais abstratas e universais podem ser concretizadas
em um contexto histórico, através de uma deliberação prática.
Precisamente contra a possibilidade de solução imparcial dos conflitos é que se
volta o comunitarismo, principalmente a partir das reflexões de Michael Walzer e de Charles
Taylor, uma vez que suas metodologias ressaltam que o particularismo das identidades sociais
e culturais e o pluralismo dos valores autênticos e incompatíveis entre si sugerem somente
26
“A ideia central do construtivismo é que os juízos morais se justificam sobre a base de pressupostos
procedimentais desta prática social em cujo contexto se formulam” (NINO, Carlos apud CITTADINO, 2009,
p.97).
32
desacordos irredutíveis a qualquer ponto de vista moral, ainda que mínimo. A correção de
uma norma não deriva da imparcialidade de sua formulação, antes pelo exclusivo critério da
sua efetiva aceitação pela comunidade histórica na qual produz efeitos. Essa divergência,
além de resultar em relevantes consequências práticas com relação à compreensão do
pluralismo nas democracias contemporâneas, subjaz à construção de diferentes edifícios
teóricos:
a inexistência deste ponto de vista moral mínimo afasta Walzer tanto de Rawls
quanto de Habermas. De outra parte, ainda que Walzer e Habermas -–ao contrário de
Rawls – concordem quanto à impossibilidade de definir princípios substantivos de
justiça – incompatível com a concepção de democracia deliberativa por ambos
adotada –, são distintos, nestes autores, os contornos deste processo de deliberação
democrática. Enquanto Walzer ancora a deliberação pública sobre um ethos
comunitariamente compartilhado, Habermas configura a democracia deliberativa
como a institucionalização de procedimentos necessários a um debate público que
não encontra restrições. Se, mais uma vez, incluirmos Rawls neste debate, veremos
que a sua concepção sobre o debate público o circunscreve ao espaço das questões
constitucionais e de justiça fundamental. Temos, com efeito, três concepções
distintas acerca do processo de deliberação pública: a proposta rawlsoniana de um
“uso público da razão” limitado ao âmbito dos valores políticos; uma deliberação
democrática limitada a um mundo específico de significações sociais, tal como
formulada por Walzer; e, finalmente, a proposta de Habermas acerca de uma ética
democrática cujo uso público da razão não encontra limites de qualquer espécie. Por
trás destas divergências, o que está em jogo é não apenas a autonomia daqueles que
participam destes processos deliberativos, mas também a complexa relação entre
liberdade e igualdade (CITTADINO, 2009, p.128-129).
Vejamos, a seguir, uma exposição sucinta e não exaustiva dos principais
fundamentos filosóficos e metodológicos que informam a teoria liberal de Rawls, a teoria
comunitarista de Walzer, a teoria do reconhecimento de Taylor e a proposta de superação de
dicotomias na filosofia política de Habermas.
1.3.1. Liberalismo: teoria da justiça como equidade
O fato do pluralismo refere-se à existência, em qualquer democracia, de uma
diversidade de interesses pessoais e de perspectivas pelas quais as pessoas moldam sua
compreensão sobre o mundo. A concepção liberal de pluralismo,27
em linhas gerais, está
vinculada à figura do indivíduo como pessoal moral, capaz de orientar seu agir segundo sua
27
Segundo leciona Rawls, “o liberalismo enquanto doutrina política pressupõe que existem múltiplas
concepções do bem, conflitantes e incomensuráveis entre si, cada uma sendo compatível, até onde possamos
julgar, com a pela racionalidade dos seres humanos. (...) O liberalismo, tal como foi formulado no século XIX
por Benjamin Constant, Tocqueville e Stuart Mill, aceita a pluralidade de concepções do bem incomensuráveis
entre si como um fato da cultura moderna, com a condição, é claro, de que essas concepções respeitem os limites
indicados pelos princípios de justiça” (2000, p.237-8).
33
própria concepção acerca da vida digna, a qual pode ser válida ou não, na medida em que
corresponda aos valores políticos constantes de um consenso sobreposto em uma sociedade
bem ordenada. Nesta sociedade, convivem várias doutrinas compreensivas razoáveis28
(compreensive doctrines), de modo que a) todos os seus membros aceitam os mesmos
princípios de justiça; b) suas instituições políticas e sociais realizam esses princípios e c) seus
membros respeitam as regras de suas instituições básicas por compartilharem princípios de
justiça comuns, de modo que “a unidade da sociedade poderia ser ao mesmo tempo possível e
estável” (RAWLS, 2000, p.241). A ideia de sociedade bem ordenada pressupõe uma
concepção política de justiça que a regula. Esta deve ser independente das diversas doutrinas
compreensivas religiosas, filosóficas e morais professadas pelos indivíduos da sociedade
pluralista e sujeitas à controvérsia, daí se dizer que a concepção política de justiça é neutra em
face das diversas visões individuais de bem.
Por contraposição ao liberalismo enquanto doutrina moral abrangente, a teoria da
justiça como equidade tenta apresentar uma concepção da justiça política que esteja
enraizada nas ideias intuitivas básicas da cultura política de uma democracia.
Suponhamos que essas ideias têm possibilidades de ser sustentadas por todas as
doutrinas morais que se contrapõem e são influentes numa sociedade democrática
relativamente justa. Assim, a teoria da justiça como equidade busca precisar o
núcleo central de um consenso por justaposição, isto é, de ideias intuitivas comuns
que, coordenadas numa concepção política da justiça, se revelarão suficientes para
garantir um regime constitucional justo (RAWLS, 2000, p.235).
Uma concepção política de justiça, que fundamenta a teoria da justiça como
equidade, é uma concepção moral aplicável à estrutura básica de uma democracia
constitucional moderna, isto é, aplicável a um certo tipo de instituições econômicas, sociais e
políticas, sem a pretensão de reivindicar validade em termos de verdade num nível metafísico.
A estrutura básica é constituída pelas principais instituições políticas e pela maneira como
elas se articulam em um sistema unificado de cooperação social. Uma concepção política de
justiça provém de certa tradição política, qual seja, das ideias intuitivas que estão na base das
instituições políticas de um regime democrático constitucional. Se, conforme os pressupostos
do liberalismo enquanto doutrina, nenhuma concepção moral pode reivindicar um fundamento
reconhecido para uma concepção de justiça no âmbito do Estado democrático moderno, é
preciso uma neutralidade (imparcialidade) desta concepção publicamente aceita com relação
à ampla variedade de doutrinas abrangentes filosóficas, morais e religiosas. “De fato, esta [a
28
Rawls atribui três características às doutrinas compreensivas razoáveis: a) abarcam os mais importantes
aspectos filosóficos, religiosos e morais da vida humana de maneira mais ou menos consistente e coerente; b)
atribuem a certos valores uma primazia em particular; e c) permanecem estáveis ao longo do tempo, ainda que
evoluam lentamente se há razões para tanto. Cf. CITTADINO, 2009, p.80.
34
concepção política de justiça] deve ter em conta uma diversidade de doutrinas e a pluralidade
das concepções do bem que se defrontam e que são efetivamente incomensuráveis entre si,
sustentadas pelos membros das sociedades democráticas” (RAWLS, 2000, p.204).
A concepção política de justiça está alinhada a uma concepção política de
pessoa (pessoa como cidadão), segundo a qual os cidadãos consideram-se a si mesmos como
livres e iguais em uma sociedade cooperativa. Eles são livres em três sentidos: a) são
moralmente capazes de ter uma concepção do bem, e de revê-la e modificá-la em função de
motivos pessoais e razoáveis; b) consideram-se a si mesmos como condição de fontes
originárias de reivindicações legítimas, isto é, seus deveres e obrigações são originários do
ponto de vista político desde que suas concepções de bem e doutrinas morais sejam
compatíveis coma concepção pública de justiça; e c) são capazes de assumir a
responsabilidade dos seus fins, capazes de ajustar objetivos e aspirações em função daquilo
que podem razoavelmente obter, além de limitar suas reivindicações àquilo que os princípios
de justiça permitem.29
Espera-se que a concepção política de justiça encontre ao menos um consenso
sobreposto, ou seja, um consenso que inclua todas as doutrinas contrapostas. A justificação
pública da concepção política de justiça ocorre quando “os cidadãos razoáveis endossam e
publicamente justificam a concepção política de justiça, associando-a às suas diversas visões
razoáveis acerca da vida digna” (CITTADINO, 2009, p.102-3), mas, como condição prévia à
justificação pública – dialógica e intersubjetiva – Rawls prevê um processo monológico no
primeiro nível de justificação da concepção política, em que se invocam razões não públicas.
Trata-se de uma concepção contrafática, o procedimento da “posição original”, no qual os
parceiros estão simetricamente situados e, sem conhecer sua posição social, por trás de um
véu da ignorância, devem chegar a um acordo sobre as condições equitativas de convivência
segundo princípios de justiça:
Enquanto recurso de representação, a posição original celebra um acordo hipotético
e a-histórico, no qual representantes de cidadãos livres e iguais definem os termos da
cooperação social e estabelecem princípios de justiça apropriados para garantir a
liberdade e a igualdade. Ressalte-se, entretanto, que enquanto recurso de
representação a posição original é apenas um meio de reflexão. Rawls, como vimos,
parte do pressuposto de que há uma ideia intuitiva implícita na cultura democrática
que descreve a sociedade como um sistema equitativo de cooperação social entre
pessoas livres e iguais que, por sua vez, são racionais – têm a capacidade de ter uma
concepção de bem – e razoáveis – têm a capacidade de ter um senso de justiça. Esses
cidadãos livres e iguais possuem plena autonomia política. No entanto, as partes, na
posição original, enquanto pessoas artificiais, não possuem esta autonomia política
29
Cf. RAWLS (2000, p. 225-232).
35
plena, mas apenas uma autonomia que Rawls designa como racional, e que, como as
partes, também é apenas um artifício da razão (CITTADINO, 2009, p.99).
Na condição de figura artificial, a autonomia racional permite que os cidadãos
sejam imparciais com relação às doutrinas compreensivas razoáveis com que estão
envolvidos. Para tanto, é necessário aquilo que Rawls designou por véu da ignorância,30
que
separa as partes acordantes da posição original de suas próprias personalidades concretas, das
contingências históricas e, consequentemente, de suas concepções acerca da vida digna, de
modo que cada parte originária, ao desconhecer sua posição concreta na sociedade, seu status
social específico, deliberará sobre os princípios de justiça em condições de imparcialidade. O
objetivo do véu da ignorância é neutralizar o fato do pluralismo, a fim de definir os dois
princípios de justiça enquanto equidade:
(1) Cada pessoa tem direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades e
de direitos básicos iguais para todos, compatíveis com um mesmo sistema para
todos. (2) As desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas condições:
em primeiro lugar, devem estar ligadas a funções e a posições abertas a todos em
condições de justa (fair) igualdade de oportunidades; e, em segundo lugar, devem
proporcionar a maior vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade
(RAWLS, 2000, p.207-8).
Tomados em conjunto, os dois princípios regem as instituições básicas que
efetivam esses valores, o primeiro tendo prioridade sobre o segundo. Quando os cidadãos
reconhecem e afirmam a mesma concepção de justiça, obtém-se um amplo e geral equilíbrio
reflexivo, de natureza intersubjetiva, isto é, cada cidadão leva em consideração o raciocínio e
os argumentos de todos os outros, pois todos têm o dever cívico de atuar segundo princípios
aceitos por cidadãos razoáveis.
Entretanto, o procedimento da posição original é criticável devido ao seu
caráter estritamente monológico, que cerceia os diálogos públicos através da utilização de
razões não públicas. Os cidadãos, no exercício de seu poder político soberano, estão
impedidos de decidir sobre temas constitucionais essenciais e de justiça fundamental com
base em suas próprias convicções acerca do bem. Neste sentido coloca-se a crítica tanto do
30
“Devemos encontrar um ponto de vista – distanciado e não deformado pelos traços e pelos contextos
particulares do quadro global – a partir do qual se possa atingir um acordo equitativo entre pessoas livres e
iguais. É esse ponto de vista, com a característica particular que chamei de véu de ignorância, que constitui a
posição original. E a razão pela qual a posição original não deve ter em conta as contingências do mundo social
nem ser afetada por elas é que as condições de um acordo equitativo sobre princípios da justiça política entre
pessoas livres e iguais devem eliminar as desigualdades na distribuição dos trunfos na negociação, os quais não
deixarão de suscitar, nas instituições de qualquer sociedade, as tendências acumuladas naturais, sociais e
históricas. Essas vantagens contingentes e essas influências acidentais vindas do passado não devem influenciar
um acordo sobre os princípios que devem reger as instituições da própria estrutura básica desde o momento
presente até o futuro” (RAWLS, 2000, p.219).
36
comunitarismo quanto do procedimentalismo discursivo de Habermas,31
pois a construção de
um ponto de vista imparcial não pode restringir o debate no âmbito das doutrinas
compreensivas acerca do bem situadas no espaço privado, a partir do qual aconteceria uma
deliberação pública confrontando valores éticos fundamentais e culminando na formação
democrática da opinião e da vontade. Se a neutralidade significasse a exclusão das questões
éticas do discurso político, este perderia sua função de transformação racional de enfoques
pré-políticos, da interpretação de necessidades e de orientações valorativas, já que um acordo
firmado discursivamente deve ser estabelecido tendo em vista as diferenças de opinião postas
em discussão.
1.3.2. Comunitarismo: a política de reconhecimento
O comunitarismo de Walzer critica o universalismo liberal e assume
compromisso com o particularismo histórico e social, a partir de sua utilização do termo
pluralismo no sentido das múltiplas identidades sociais – em oposição às concepções
individuais de bem –, da descrição da diversidade de identidades sociais e de culturas étnicas
e religiosas que estão presentes em qualquer sociedade moderna e complexa. A fragmentação
é a marca da sociedade liberal moderna. Disso decorre a prioridade conferida à comunidade
em relação ao indivíduo, na medida em que este é essencialmente um ser produzido
culturalmente. No espaço público, a compatibilização entre uma sociedade política
democrática e o pluralismo cultural, étnico e religioso, que exprime uma variedade de valores
incomensuráveis e incompatíveis entre si, defendidos por comunidade e grupos distintos, só é
possível recorrendo-se à dimensão ético-política da democracia orientada à obtenção de um
consenso axiológico.32
A existência de múltiplas identidades sociais e culturais por vezes em relação
de antagonismo entre si conduz, numa sociedade multicultural, ao medo da perda de valores,
tradições e crenças cultivados por cada subcultura do espaço democrático pluralista. Por essa
conta se faz necessário o imperativo da tolerância: a tolerância é a única maneira através da
31
Para ter acesso às principais críticas de Habermas, em debate com Rawls, bem como à contenda pela herança
contemporânea do legado racionalista kantiano, ver a parte II de “A Inclusão do Outro”, “Liberalismo político –
uma discussão com John Rawls” em HABERMAS (2002, p.64-124). “Em face disso, sugiro que a filosofia se
restrinja ao esclarecimento do processo democrático e do ponto de vista moral, à análise das condições para
discursos e negociações racionais. Com esse papel, a filosofia não procede de maneira construtora, mas sim
reconstrutiva. Respostas substanciais que é preciso encontrar aqui e agora, elas as deixará por conta do
engajamento menos ou mais esclarecido dos envolvidos, o que não exclui, porém, que também os filósofos – no
papel de intelectuais, não de especialistas – participem da controvérsia pública” (p.91-2). 32
Cf. CITTADINO, 2009, p.85-87.
37
qual é possível neutralizar o medo que se encontra na raiz dos antagonismos. A intolerância é
incompatível com a justiça, pois viola a identidade cultural, pressuposto que confere
humanidade ao indivíduo. “Se o consenso definitivo é inalcançável e se estamos condenados a
viver em meio ao conflito, é a tolerância política que faz da política democrática uma
atividade permanente. É ela que obriga os indivíduos a argumentar, deliberar e assumir
responsabilidades (...)” (CITTADINO, 2009, p.88).
Da tolerância, resulta a obrigatoriedade do reconhecimento da diferença. Esse
reconhecimento é fundamentado pelo princípio da igualdade universal, na medida em que o
indivíduo enquanto ser definido culturalmente depende de suas identidades sociais, ao passo
que estas dependem de uma política ininterrupta de reconhecimento igualitário. Deste modo,
Charles Taylor (1994, p.85) estabelece a conexão entre reconhecimento e identidade:
A tese consiste no fato de a nossa identidade ser formada, em parte, pela existência
ou inexistência de reconhecimento e, muitas vezes, pelo reconhecimento incorreto
dos outros, podendo uma pessoa ou grupo de pessoas serem realmente prejudicados,
serem alvo de uma verdadeira distorção, se aqueles que os rodeiam refletirem uma
imagem limitativa, de inferioridade ou de desprezo por eles mesmos.
O reconhecimento contém um caráter fundamental dialógico, não existindo se
entendido monologicamente. Através do uso cooperativo e dialógico da linguagem (em
sentido lato, incluindo outros modos de expressão, que não palavras, através dos quais nos
definimos), as pessoas são conduzidas à sua própria autodefinição quando colocadas em
convívio com os “outros-importantes”, também responsáveis na definição de nossa
identidade. “Tornamo-nos verdadeiros agentes humanos, capazes de nos entendermos e,
assim, de definirmos as nossas identidades, quando adquirimos linguagens humanas de
expressão, ricas de significado” – sintetiza Taylor (1994, p.52). A formação e a manutenção
de nossa identidade dependem, decisivamente, de interações dialógicas com os outros, já que
identidade significa “de onde nós provimos; (...) o ambiente no qual nossos gostos, desejos,
opiniões e aspirações fazem sentido” (TAYLOR, 1994, p.54). Portanto, o reconhecimento da
identidade exige a preservação do ambiente cultural em que o indivíduo está inserido e forma
sua personalidade.
O estudo de qualquer outra cultura tradicional exige a premissa de que
devemos igual respeito a todas elas. A presunção de igual valor de todas as culturas humanas,
defendida por Taylor,33
chama atenção para o fato de que, se algumas culturas dinamizaram
33
Neste sentido conclui Taylor (1994, p.88): “Este pressuposto ajudaria a explicar por que é que as exigências
do multiculturalismo se baseiam em princípios já estabelecidos de igual respeito. Se a não formulação do
pressuposto é idêntica à negação da igualdade, e se da inexistência de reconhecimento advêm consequências
38
sociedades inteiras durante considerável espaço de tempo, devem ter algo de relevante a nos
ensinar a respeito de todos os seres humanos:
As culturas que conceberam um horizonte de significado para muitos seres
humanos, com os mais diversos caráteres e temperamentos, durante um longo
período de tempo – por outras palavras, que articularam o sentido de bem, de
sagrado, de excelente –, possuem, é quase certo, algo que merece a nossa admiração
e respeito, mesmo que possuam, simultaneamente, um lado que condenamos e
rejeitamos (TAYLOR, 1994, p.93).
Em contraposição à ideia de preservação de identidades sociais e culturais
específicas, encontra-se o liberalismo típico que se generalizou na sociedade anglo-americana,
defendido por nomes como John Rawls, Bruce Ackerman e Ronald Dworkin. Na linha da
compreensão kantiana da dignidade humana, em que esta se iguala à autonomia, isto é, à
capacidade de cada pessoa determinar para si mesma sua própria visão de uma vida boa, o
liberalismo de tipo 1 defende uma sociedade liberal como aquela que não adota nenhuma
visão substantiva em particular sobre o bem. Pelo contrário, é uma sociedade neutra com
relação a cosmovisões específicas de grupos e pessoas, regida por um Estado que assegura a
cada cidadão perseguir sua perspectiva de vida boa na base de um tratamento igualitário. Uma
sociedade que assume objetivos coletivos, consequentemente, infringe este modelo. Nesse
diapasão, Taylor sugere um liberalismo de tipo 2, uma reformulação do liberalismo
incompatível com a noção de reconhecimento de grupos e identidades coletivas:
Uma sociedade com objetivos coletivos fortes pode ser liberal, segundo esta
perspectiva, desde que seja capaz de respeitar a diversidade, em especial quando
considera aqueles que não partilham dos objetivos comuns, e desde que possa
proporcionar garantias adequadas para os direitos fundamentais. Concretizar todos
estes objetivos irá provocar, sem dúvida, tensões e dificuldades, mas não é nada de
impossível, e os problemas não são, em princípio, maiores do que aqueles que
qualquer sociedade liberal encontra quando tem de combinar, por exemplo,
liberdade com igualdade ou prosperidade com justiça (TAYLOR, 1994, p.80).
Com efeito, o liberalismo não pode reivindicar neutralidade cultural completa,
pois ele próprio consiste em um credo, isto é, ele próprio trata-se de uma doutrina
compreensiva de mundo (para utilizar a linguagem de Rawls), inclusive incompatível com
importantes para a identidade das pessoas, então pode-se dizer que existem motivos de peso para persistir na
universalização do pressuposto como uma extensão lógica da política de dignidade. Da mesma maneira que
todos devem possuir os mesmos direitos civis e de voto, independentemente da raça ou da cultura, assim devem
todos usufruir do pressuposto de que as respectivas culturas tradicionais têm valor”. Todavia, tal posição é
problemática, na medida em Taylor parece instrumentalizar as culturas: ao invés de declarar o valor “em si” de
cada cultura, o pressuposto conduz à noção de que uma cultura é valiosa desde que traga alguma contribuição
relevante para as outras culturas. Quer dizer, uma cultura tem valor na medida em que pode ser reconhecida
arbitrariamente pelo outro. Conferir, neste sentido, WOLF (1994, p.99): “A necessidade de corrigir essas
injustiças [de reconhecimento], por conseguinte, não depende da presunção de que uma determinada cultura é
distintivamente valiosa para as pessoas exteriores à cultura”.
39
alguns outros tipos de cultura. A reparação de injustiças por parte do Ocidente colonialista, e a
necessidade de reconhecimento nas sociedades multiculturais com potencial de ruptura da
integração social, exigem o declínio da postura de neutralidade em prol do reconhecimento do
igual valor das diferentes culturas e subculturas alocadas em um mesmo Estado democrático
constitucional. Na mesma esteira se posiciona Walzer, contra a pretensão questionável de
neutralidade preconizada pelas vertentes liberais do pensamento político:
Nem a concepção política de justiça nem a ética discursiva podem ser formuladas
sem que determinados valores – indivíduos livres e iguais, ampla liberdade de
pensamento e ação, prática da tolerância, garantia do respeito mútuo – estejam
assegurados. De acordo com Walzer, estas exigências já integram uma forma
específica de vida, pois os indivíduos que partilham destes valores “não saltam da
mente de filósofos (...), nem da cabeça de Zeus. São criaturas da história”
(CITTADINO, 2009, p.120).
Em contrapartida, Habermas realiza uma crítica com o intuito de denunciar a
competição entre a proteção das identidades coletivas e a garantia de direitos e liberdades
individuais subjetivos iguais, presente na política de reconhecimento de Taylor.34
Para
Habermas, o princípio dos direitos iguais tem de ser posto em prática mediante dois tipos
combinados de política: de um lado, a consideração pelas diferentes culturas e a proteção da
integridade das tradições e formas de vida que os membros de grupos discriminados podem
reconhecer, e de outro, a universalização progressiva dos direitos individuais. Isso porque o
reconhecimento público completo dos cidadãos exige respeito tanto por suas maneiras de ver
o mundo compartilhadas intersubjetivamente, quanto pelas identidades únicas de cada
indivíduo.
Compilando apontamentos dirigidos tanto à teoria da justiça como equidade
quanto à política de reconhecimento, é possível situar Habermas numa posição intermediária
no contexto do debate entre liberais e comunitaristas. A contribuição habermasiana, que
integra autonomia privada e autonomia pública, direitos humanos e soberania do povo, será
introduzida a seguir.
1.3.3. Teoria do discurso: entre Justiça e Ética
Ambas as dimensões do pluralismo – os interesses individuais heterogêneos e
as perspectivas ancoradas em valores – são incorporadas na concepção de pluralismo da teoria
do discurso, através da equipromordialidade atribuída à autonomia privada e à autonomia
34
Cf. HABERMAS (1994, p.128).
40
pública. Direitos humanos e democracia não estão em uma relação de concorrência entre si,
antes estão compatibilizados ao nível do discurso. A teoria do discurso, portanto, não apenas
resguarda o compromisso com os direitos tipicamente liberais de liberdade, inclusive com
aqueles apresentados na teoria da justiça como equidade, como também exige “uma política
do reconhecimento que proteja a integridade do indivíduo nos contextos da vida nos quais a
sua identidade se forma” (HABERMAS, 1994, p.131), segundo a orientação comunitarista.
No nível da teoria do discurso, portanto, há a compatibilização entre Justiça e Ética, conceitos
até agora tratados como antagônicos pelas vertentes liberais e comunitárias da filosofia
política.
Um sistema de direitos tal como compreendido pela teoria do discurso
incorpora não apenas direitos humanos universais na forma de direitos fundamentais, segundo
uma perspectiva de julgamento imparcial de interesses atinente à ideia de Justiça. Também
deve incorporar os objetivos coletivos que são confirmados nas lutas pelo reconhecimento.
Todo sistema legal é a expressão de uma forma concreta de vida, e não somente a reflexão da
satisfação universal de direitos básicos. Juntamente com as considerações morais sobre a
Justiça, as razões éticas também entram nas justificações das deliberações legislativas. O que
se destaca no processo de legislação democrática não é a neutralidade ética da ordem legal,
mas sim o fato de a atualização dos direitos básicos ser inevitavelmente permeada pela Ética,
dentro do horizonte de culturas, tradições, contextos de vida e experiências intersubjetivas
compartilhadas, no qual os cidadãos tentam chegar a um acordo sobre seu próprio auto
entendimento enquanto comunidade discursivamente integrada.
Pois a teoria dos direitos não proíbe de modo algum os cidadãos de um estado
democrático constitucional de confirmarem uma concepção do bem na sua ordem
legal geral, uma concepção que ou já partilha ou acabou por concordar através da
discussão pública. No entanto, proíbe-os de privilegiar uma forma de vida à custa de
outros membros da nação (HABERMAS, 1994, p.145).
A formação discursiva da opinião e da vontade, contudo, serve como meio de
autorreflexão da vida ética, pelo qual os sujeitos podem modificar tanto as convicções
normativas das suas formas de vida específicas, quanto as suas concepções individuais sobre a
vida digna, envolvidos em um processo de interação comunicativa orientado pela força do
melhor argumento.
Assim, Habermas objetiva evitar a abstração de um acordo racional tal como
aquele firmado na posição original de Rawls, contextualizando as normas morais na eticidade
concreta do mundo da vida, de modo que aquelas são interpretadas e ressignificadas à luz de
41
valores culturais específicos. Nas palavras de Gisele Cittadino (2009, p.114): “a ética
discursiva, universalista, requer uma certa correspondência com mundos culturais cujas
instituições políticas e sociais já incorporam representações pós-convencionais da
moralidade”. De tal maneira é que se estabelece uma mediação entre moralidade e eticidade,
ou seja, entre princípios de justiça de natureza universal e valores éticos contextualizados em
uma cultura concreta.
Enumeraremos quatro características fundamentais da teoria do discurso, duas
das quais podem ser atribuídas ao pensamento liberal, e duas atribuíveis a uma visão
comunitária: a) individualismo; b) neutralidade; c) deliberação pública e d) reconhecimento.
Com o auxílio da análise dessas categorias, objetiva-se evidenciar a posição intermediária que
a teoria discursiva ocupa na querela entre liberais e comunitários.
Inicialmente, Habermas (1994, p.125) afirma a Constituição do Estado de
direito como um meio pelo qual os indivíduos formam voluntariamente uma comunidade
legal de associados livres e iguais. A Constituição dispõe precisamente sobre os direitos que
esses indivíduos devem garantir uns aos outros se querem ordenar sua convivência pelos
meios do direito positivo. No fim das contas, “é uma questão de proteger estas pessoas
individuais legais, mesmo se a integridade do indivíduo – tanto na lei quanto na moralidade –
depende de as relações do reconhecimento mútuo se manterem intactas”. Logo, se deve haver
uma preservação das culturas e formas de vida tradicionais, esse imperativo deriva, antes de
tudo, da proteção dos interesses dos sujeitos conforme uma concepção do indivíduo como
centro das reivindicações. Neste sentido pode-se atribuir certo caráter individualista à teoria
do discurso.
Em segundo lugar, a teoria do discurso encara o pluralismo das democracias
contemporâneas como um elemento das sociedades pós-convencionais, nas quais tanto as
concepções individuais de bem quanto os valores, costumes e tradições devem apresentar
razões que sustentem sua validade social. Com efeito, o modelo de Estado nacional com uma
população culturalmente homogênea tem cedido cada vez mais ao crescimento de uma
multiplicidade de formas culturais de vida, grupos étnicos, confissões religiosas e diferentes
imagens do mundo. E, numa sociedade pluralista com respeito à cultura e às visões de mundo,
não é possível recorrer ao substrato aparentemente natural de um ethos homogêneo,
compartilhado por um povo integrado em um nível pré-político, mas é necessário recorrer aos
procedimentos da formação da vontade e da comunicação pública. “O plano da cultura
política partilhada precisa desacoplar-se do plano das subculturas e de suas identidades,
cunhadas de uma maneira anterior à política” (HABERMAS, 2002, p.141). Assim, a
42
integração ética de sociedades pretensamente herdeiras de uma ascendência comum e de
raízes históricas compartilhadas deve ceder a uma forma de integração política dos cidadãos
que assegura fidelidade à cultura política comum, originada da interpretação dos princípios
constitucionais a partir da experiência histórica de uma comunidade do direito. O recurso a
uma ética substantiva que exprime determinada forma de vida não pode orientar o sistema dos
direitos, que deve ser neutro no sentido da adoção de uma ou outra cosmovisão acerca do
bem. Habermas (1994, p.152) se posiciona nesta linha:
A neutralidade da lei vis-à-vis diferenciações éticas internas tem origem no fato de
que nas sociedades complexas o todo dos cidadãos não pode mais ser sustentado por
um consenso real de valores mas somente por um consenso nos procedimentos para
a elaboração legítima das leis e do legítimo exercício do poder. Os cidadãos que
estão politicamente integrados neste sentido partilham a convicção racional que a
liberdade de comunicação desenfreada na esfera públicas política, um processo
democrático para estabelecer conflitos, e o transporte constitucional de poder
político fornecem uma base para inspecionar o poder ilegítimo e assegurar que o
poder administrativo é usado no interesse igual de todos. O universalismo dos
princípios legais reflete-se num consenso processual, que deve ser encaixado no
contexto de uma cultura política historicamente específica através de um tipo de
patriotismo constitucional.
Ao passo que os princípios de individualismo e neutralidade guardam
compromisso com a visão liberal, a teoria do discurso também se apropria de elementos do
comunitarismo, tais como a defesa da deliberação pública como forma de atingimento de
consensos para a interpretação apropriada das necessidades de grupos específicos, e a
exigência de reconhecimento de culturas específicas. As autonomias pública e privada do
cidadão, portanto, são asseguradas pelo processo democrático, com intuito de possibilitar que
“os afetados afirmem e justifiquem numa discussão pública o que é relevante para o
tratamento igual ou desigual em casos típicos” (HABERMAS, 1994, p.134). A dimensão da
intersubjetividade através do entendimento mediante o uso racional da linguagem é que
confere legitimidade às decisões públicas e, inclusive, ao direito positivo. “Uma ordem legal é
legítima quando salvaguarda a autonomia de todos os cidadãos a um nível igual. Os cidadãos
são autônomos apenas se os dirigentes da lei também se puderem ver como os seus autores”
(HABERMAS, 1994, p.139).
Finalmente, Habermas concorda com a proteção de formas de vida e tradições
nas quais as identidades se formam, na medida em que servem ao reconhecimento dos seus
membros. Deste modo, o processo democrático de atualização dos direitos individuais deve se
estender à garantia de direitos de coexistência para os diferentes grupos étnicos e para suas
formas de vida culturais. Ressalva-se que o indivíduo se utiliza da deliberação como um meio
43
de autorreflexão para criticar e manter em permanente transformação suas próprias tradições,
pois a cultura está sujeita ao potencial transformativo presente nos discursos públicos tomados
por cidadãos autônomos e desejosos de estabelecer consensos na base de uma busca
cooperativa da melhor forma de entendimento possível.
Nas sociedades multiculturais a coexistência de formas de vida com direitos iguais
significa garantir a cada cidadão a oportunidade de crescer dentro do mundo de uma
herança cultural, e garantir aos seus filhos crescerem nele sem sofrerem
discriminação. Significa a oportunidade de confrontar esta e todas as outras culturas
e perpetuá-la na sua forma mais convencional ou transformá-la; tal como a
oportunidade de nos desviarmos dos seus comandos com indiferença ou romper com
isso autocriticamente e depois viver acelerado por ter feito um corte consciente com
a tradição, ou mesmo com a identidade dividida (HABERMAS, 1994, p.149).
Um amplo processo argumentativo democrático inclui, nesta medida, não
apenas as concepções individuais sobre a vida digna, como também os valores sociais que
configuram as identidades sociais. Dentro de uma sociedade pluralista, em meio à
heterogeneidade e à diferença, o enfrentamento da violência e da opressão e a consequente
resolução dos conflitos que ameaçam erodir a estrutura democrática devem-se ancorar em
uma racionalidade prática, que submete a um processo de justificação as normas e as
instituições. Considerada a teoria do discurso de Habermas como o modelo filosófico
adequado para compreender as sociedades plurais, uma vez que incorpora as duas dimensões
do pluralismo – a dimensão da proteção da autonomia privada e do exercício da autonomia
pública – procede-se, agora, a uma exposição dos seus principais fundamentos teóricos,
filosóficos, históricos e metodológicos, essenciais para a elucidação da proposta de
compreensão dos direitos humanos e da democracia aqui apresentada.
44
2. UMA TEORIA DISCURSIVA PARA A COMPREENSÃO DOS DIREITOS
HUMANOS E DA DEMOCRACIA
No domínio da ciência jurídica pós-metafísica, a legitimidade do direito resulta
de um processo de autolegislação, no qual os integrantes da comunidade jurídica podem se
entender em discursos racionais que estatuem normas. O emprego púbico da razão, portanto,
evita o problema da fundamentação metafísica, característico das teorias do direito natural,
pois justifica o sistema jurídico num processo de discussão autônoma em que os próprios
cidadãos argumentam na base de seus ideais de justiça, suas concepções éticas e seus
interesses, se afastando do paradoxo da heteronomia e vinculando indissociavelmente direito
e democracia. Ao mesmo tempo, reinsere os argumentos morais no direito, afirmando que a
legitimidade a partir da legalidade (um dogma do positivismo jurídico) só é possível quando
as instituições estão autorizadas a agir obedecendo ao poder comunicativo, isto é, à “vontade
política comum formada por intermédio de comunicação não coativa, ou seja, o poder
legitimador do direito em sentido próprio, a ‘fonte de justiça’ do direito” (FORST, 2009, p.
185), que tem seu lugar numa esfera pública autônoma em relação ao Estado.
Portanto, é possível situar a teoria do discurso no marco histórico-espacial das
sociedades pós-convencionais,35
bem como no paradigma do pós-positivismo, motivada pela
35
Chega-se ao nível pós-convencional através da apropriação de Habermas, na sua teoria da evolução social, do
modelo da psicologia genética, pelo qual ele defende uma homologia estrutural entre a ontogênese da
personalidade humana e o desenvolvimento da espécie, a partir dos estudos de psicologia cognoscitiva do
desenvolvimento moral de Kohlberg, fundamentada em Piaget. As estruturas normativas possuem uma história
interna, com base na qual os julgamentos morais são dependentes de atitudes cognitivas, sujeitos a um
“aprendizado moral” segundo uma perspectiva evolucionista em três níveis. No primeiro nível, acentuado por
uma perspectiva individualista concreta, o indivíduo encontra-se centrado em si mesmo, assumindo um ponto de
vista egocêntrico. Neste primeiro estágio, a autoridade deriva de uma pessoa concreta, que utiliza-se da punição
para obter obediência, caracterizado pela heteronomia e por uma moral instrumental individualista. No segundo
nível, os indivíduos reconhecem o sistema social, ao se encontrarem normatizados por regras emanadas do grupo
ao qual pertencem. Finalmente, no terceiro nível, a consciência moral desenvolve-se e se adequa a princípios
morais universais, pelo fato de as decisões prático-morais serem vinculadas à noção de dever e referidas a
princípios morais capazes de obter o reconhecimento de todos. No nível pós-convencional, as normas perdem
sua autoridade tradicional e requerem justificação mediante o recurso a critérios universais. O alcance social
deste nível seria uma potencialidade presente na história evolutiva do gênero humano, na lógica de uma
sequência irreversível de estágios de desenvolvimento, que se dirigem para o aumento da autonomia de
indivíduos e grupos; segundo a observação empírica, pode-se reconhecer que algumas instituições do Estado
democrático de direito incorporam os princípios universais reconhecidos no último estágio de desenvolvimento.
Neste sentido, à medida que os sujeitos morais são capazes de se distanciar criticamente em relação aos
costumes e às práticas sociais arraigadas, reconhecem princípios universais tais como os direitos humanos
(MAIA, p. 71-83).
45
descrença pós-metafísica em princípios absolutos de orientação da razão prática,36
de um
lado, e pela necessidade da reativação das discussões sobre justiça na teoria jurídica, do outro,
na tentativa de superação da dicotomia jusnaturalismo versus positivismo jurídico. A razão
monológica do Iluminismo é substituída pela dialógica, à qual corresponde um modelo
dialógico de fundamentação do direito e da moral:
A única forma de fundamentação possível em nosso atual momento – a única forma
de dar razão da existência e das pretensões de obrigatoriedade e de universalidade
dos juízos morais – consiste em mostrar as estruturas comunicativas que
possibilitam a formação do consenso (CORTINA, 2009, p. 130).
A teoria do discurso, além de possuir características universalistas,
cognitivistas e deontológicas, apresenta-se como formalista, já que designa um procedimento
através do qual um conflito de ação moralmente relevante pode ser julgado imparcialmente,
sendo que os conflitos morais serão julgados pelos próprios interessados a partir de embates
surgidos da própria vida social.37
Sua consequência necessária é a institucionalização de um
sistema de direitos a partir do exercício comunicativo concomitante da autonomia pública e da
autonomia privada dos cidadãos. Seguindo as reflexões de Jürgen Habermas e de seus
críticos, a gênese lógica do sistema dos direitos é explicada com base nos argumentos
seguintes.
2.1. O giro linguístico na teoria social: pressupostos filosóficos e metodológicos da teoria
do discurso
A teoria social crítica de Habermas é uma ciência social metodologicamente
reconstrutiva38
situada no movimento de reabilitação da filosofia prática que, a partir da
década de 1970, reassumiu o compromisso com os problemas pertencentes ao âmbito da razão
prática, a saber, da ética, da política e do direito. A reabilitação da filosofia prática,
protagonizada por Habermas ao lado de John Rawls, acarretou o chamado “retorno ao
36
Ver SILVA, Alexandre Garrido, 2000, p. 27: “A legitimação dos direitos humanos não pressupõe um ‘dado’ –
como por exemplo a ‘natureza’ do homem ou um mundo moral objetivo – mas uma perspectiva construtivista,
isto é, uma validade que é construída no discurso por meio de argumentos”. 37
Cf. MAIA, 2008, p. 58. 38
O reconstrutivismo nas ciências significa que uma teoria é rearticulada a fim de melhor atingir a meta que ela
mesma se fixou. Essas ciências afastam-se do viés tradicional, na medida em que produzem conhecimento não
necessário, mas hipotético; não apriorístico, mas empírico; não absoluto, mas falível. Um exemplo eloquente de
reconstrução sistemática no âmbito das ciências sociais é a Teoria do Agir Comunicativo. “Dialogando com os
fundadores da sociologia, Weber e Durkheim, estribado na psicologia genética de Piaget, realizando uma crítica
imanente de Adorno e Horkheimer, apropriando-se do conceito de sistema de Luhmann e utilizando-se da
perspectiva funcionalista de Parsons, Habermas constrói o seu edifício teórico” (MAIA, 2008, p.67).
46
direito”, valor de referência teórica da década de 1980. Sua indagação central consiste na
questão “como é possível aferir a legitimidade das estruturas morais, jurídicas e políticas
contemporâneas?”, para além da resposta até então hegemônica do positivismo, equiparando
legitimidade à legalidade formal. Suas investigações passaram a girar em torne de três
questões centrais: “1) o problema da fundamentação normativa da Teoria crítica da sociedade;
2) discussões concernentes à questão da legitimidade dos regimes políticos do capitalismo
avançado; 3) reflexões sobre as possibilidades de funcionamento de uma democracia radical”
(MAIA, 2008, p. 46 ).
Na sua primeira tradição, a teoria crítica da sociedade foi largamente
influenciada pelo fenômeno do desencantamento do direito por obra das ciências sociais. As
análises filosóficas sobre o direito, que alojavam o sistema jurídico na condição de
instrumento da integração social de uma sociedade bem ordenada pelo código do direito,
perderam prestígio para as análises sociológicas que se dirigiam contra o prescritivismo do
direito racional. Na tradição de Marx, “a sociedade burguesa transforma-se num sistema que
domina anonimamente, sem levar em conta as intenções dos indivíduos, (...) submetendo a
sociedade global aos imperativos econômicos” (HABERMAS, 2003a, p. 68). O modelo de
uma socialização anônima não intencional substitui o idealismo de uma sociedade
configurada segundo a vontade autônoma dos parceiros do direito.
Numa sociedade domesticada pelos imperativos sistêmicos, a razão humana
passa a ter caráter instrumental tecnocrático dirigido à autopreservação, definida por
Horkheimer, Adorno e Marcuse como “a capacidade intelectual para a análise instrumental de
objetos naturais” (FRANKENBERG, 2009, p.3). Este reducionismo funcional, no entanto,
exclui a dimensão normativa da ação, em que as convicções morais e as orientações
normativas são independentes da razão orientada a fins. A integração social não é gerada
exclusivamente pela submissão a imperativos funcionais do capitalismo, não se podendo
desprezar a comunicação política entre sujeitos e grupos sociais. Daí Habermas conduzir a
teoria crítica para uma filosofia da linguagem, colocando a par do sistema o que chamou de
mundo da vida, âmbito social onde se operam as comunicações levadas ao entendimento
mútuo de sujeitos autônomos portadores de razão comunicativa, e não submetidos cegamente
à dominação anônima da razão instrumental.
A construção teórica de Habermas implica no conceito de dois níveis da sociedade:
o ‘mundo da vida’, constituído por processos de compreensão de alcance
comunicativo, e o ‘sistema’, como esferas de ação generalizadas, tais como o
mercado e a burocracia estatal, funcionando segundo a lógica funcional da
racionalidade objetiva (FRANKENBERG, 2009, p. 6).
47
Quando a política tem de ser amplamente buscada de acordo com a razão
instrumental, os projetos e interações humanas tornam-se estratégicos, e a ação coordena-se
de modo egocêntrico exclusivamente para a consecução de fins individuais. Habermas propôs
uma nova compreensão sobre o fenômeno da ação, sugerindo a ação comunicativa como
domínio do mundo da vida que possibilita a busca de acordos sobre normas de interação
social, a fim de alcançar um entendimento mútuo sobre fins e valores sociais. Para tanto,
utilizou-se de um argumento transcendental-pragmático para mostrar que os princípios mais
importantes da ação comunicativa estão pressupostos na comunicação linguística.
A ideia central de Habermas no tocante à sua teoria da argumentação consiste na
noção de “sistema de pretensões de validade”. Como ele afirma, “argumentos são
meios através dos quais o reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade
hipoteticamente erguidos por algum proponente pode ser alcançado (brought about)
e assim opiniões são transformadas em conhecimento (MAIA, 2008, p. 93).
Na linguagem, em que as ideias estão incorporadas, é possível identificar a
tensão entre facticidade e validade: a afirmação factual de signos e expressões linguísticas
liga-se internamente com a pretensão de validade em termos de verdade destes. Todo aquele
que leva a sério uma fala, enuncia assertivas com a pretensão de que elas sejam avaliadas em
termos de “sim” ou “não” pelos seus destinatários, pois o que é válido precisar resistir às
objeções factualmente levantadas pelos argumentos. “O conceito da validade ideal deve ser
entendido como afirmabilidade racional sob condições ideais, portanto somente através da
referência ao resgate discursivo de pretensões de validade” (HABERMAS, 2003a, p. 56).
Essa tensão emigra para o mundo dos fatos sociais através do uso da linguagem orientada pelo
entendimento, com que os atores coordenam suas ações (agir comunicativo) e estabelecem
interações entre si, no que resulta um processo de entendimento em que as convicções
compartilhadas intersubjetivamente formam o medium da integração social.
O direito, que recebe o encargo da integração social mediante a função de
estabilização de expectativas de comportamento coordenadas comunicativamente, reflete a
tensão entre facticidade (dimensão descritiva da coerção imposta por sanções externas) e
validade (dimensão normativa da força vinculante das condições racionais de
fundamentação), inerente à linguagem, na tensão entre a positividade e a pretensão à
aceitabilidade racional. Em outras palavras: ao mesmo tempo em que o direito se afirma
faticamente e pretende validade social mediante coação, também reivindica a validade ideal
das normas em termos de aceitabilidade racional dos sujeitos do direito, isto é, a capacidade
de o direito ser justificado racionalmente em discursos práticos, mediante argumentos.
48
Assim, o direito é uma espécie de meio geral que abrange todas as bases do sistema
e da sociedade, transformando a comunicação do mundo da vida e formação de
vontade social em uma linguagem capaz de ser compreendida em sistemas
diferenciados (FORST, 2009, p. 181).
Em um mesmo modelo teórico, passa-se a compreender a normatividade
expressa na dimensão da validade e a positividade expressa no campo da efetividade do
direito.
O consenso coloca-se então como fundamento das normas numa sociedade
ordenada segundo o agir comunicativo. Mas não se trata simplesmente de um consenso fático,
que leva em consideração apenas o interesse de seus participantes e exclui os possíveis
interessados das decisões tomadas, sem nenhum compromisso com a sua racionalidade, e sim
de um consenso ideal resultante de um procedimento que crie condições para a participação
simétrica de todos os interessados. “O que legitima uma norma não seria a vontade dos
sujeitos individuais, mas o reconhecimento intersubjetivo de sua validade, obtido por meio do
único meio racional possível: o discurso” (CORTINA, 2009, p. 132). E esse reconhecimento
só é possível na medida da observância do princípio do discurso: são válidas somente as
normas de ação que possam ser aceitas por todos os possíveis implicados como participantes
de discursos racionais, em uma situação ideal de fala.39
Para melhor compreensão do princípio do discurso, antes de tudo é preciso
aclarar a relação entre direito e moral na teoria discursiva de Habermas, e de demonstrar
como esse princípio pretende eliminar a oposição clássica entre autonomia pública e privada
no nível da teoria jurídico-política.
2. 2. Direito e moral em Habermas: entre o princípio moral e o princípio da democracia
Diferentemente de Alexy, que vê na moral o substrato que fornece a pretensão
de correção para o direito, e no direito a ordem reguladora de condutas com cuja
decidibilidade e segurança a justiça moral é capaz de institucionalizar-se, Habermas enxerga
moral racional e direito positivo numa relação de complementaridade. A tese de Alexy de que
39
A situação ideal de fala está contida na dimensão normativa, contrafática, do discurso. Impõe três exigências
fundamentais: a não limitação à participação, a não violência, enquanto inexistência de coações e pressões
externas, e a seriedade na busca cooperativa da verdade. Ela possui uma função regulativa, pois permite
comparar os argumentos empíricos obtidos no discurso com as condições ideias da comunicação racional.
Portanto, a situação ideal de fala não constitui um ideal de comunicação, mas simplesmente descreve as
condições de legitimidade que os sujeitos capazes de linguagem e ação devem preencher nos discursos práticos
racionais. Conferir a esse respeito (CITTADINO, 2009, p. 111).
49
o discurso jurídico é um caso especial do discurso moral sugere uma falsa subordinação40
do
direito à moral, como se aquele devesse unicamente positivar normas morais. Segundo
Habermas (2003a, p.149-150), a moral tem relação apenas virtual com a ação, e sua
atualização depende da disposição do ator para agir moralmente; a moral da razão exige
apenas que ele forme seu próprio juízo, mas sem o vincular diretamente à ação. Para
compensar as fraquezas de uma moral limitada em sua eficácia, a institucionalização de um
sistema jurídico mostra-se um caminho que complementa a moral racional, já que proposições
jurídicas contêm comandos imediatos para a ação. O sistema de direitos alivia a sobrecarga
moral dos sujeitos, pois a normatividade do direito dispensa uma capacidade analítica que está
além do indivíduo, qual seja, a de decidir por si só segundo um código binário de justo e
injusto.
Portanto, diferentemente de Kant, que propõe a visão de que o direito se
fundamentaria na moral, Habermas toma uma postura de neutralidade do princípio do
discurso, e, portanto, confere ao direito e à moral caráter de autonomia recíproca e co-
originariedade, um não servindo de fundamento ao outro, evitando, assim, problemas em que
Kant incorreu na sua prodigiosa tentativa de fundamentar o direito diretamente no princípio
moral do imperativo categórico.41
Embora Habermas se filie à tradição ética kantiana,
afastando-se de uma concepção moral utilitarista, segundo a qual a moral busca o bem e o
maior nível de felicidade possível, para derivar a moral da razão e vinculá-la com a ideia de
justiça universal, seu método é diferenciado. Habermas procede à substituição da razão
prática por uma razão comunicativa. Consequentemente, a relação entre direito e moral ganha
novo status.
O imperativo categórico é o princípio fundamental da ética de Kant,
significando um teste de máximas: quando uma máxima, que é o princípio subjetivo da ação,
puder ser universalizada, de modo que todos possam agir de acordo com ela, teremos uma lei
moral que passou pelo teste do imperativo categórico. No entanto, a moral não admite coação
para a prática de determinada conduta justa, o direito então servindo como sistema de ação
que obriga determinada relação externa e prática de uma pessoa para com outra, na medida
que suas ações influenciem umas às outras. O princípio do direito é transcrito no seguinte
molde: “qualquer ação é justa se puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma
lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a
liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (GOMES, 2009, p. 203). O direito,
40
Cf. HABERMAS (2003, p. 291). 41
Cf. GOMES, Alexandre Travessoni, 2009, p. 218, e, no que se segue, GOMES, 2009, p. 195-218.
50
assim, se fundamenta na moral na medida em que deve passar pelo “teste do imperativo
categórico”, e sua função principal seja a conformação formal e coativa de determinada
conduta ao conteúdo de um imperativo moral que permita a coexistência de liberdades
subjetivas.
Uma ação em conformidade com o dever, mas não motivada pelo próprio dever
(isto é, uma ação meramente legal), tem que ser provada moralmente digna em
algum sentido, ou então o direito não pode ser justificado na teoria moral de Kant.
(...) A validade do princípio do direito depende pois da validade do imperativo
categórico: se o último não fosse válido, então a coerção, e consequentemente o
direito, não seriam necessários” (GOMES, 2009, p. 203, p. 205).
No pensamento de Habermas, que assume as características de uma moral pós-
convencional e pós-metafísica, o direito racional passa a ser regulado conforme uma
racionalidade procedimental. O discurso passa a ser neutro, e, a depender do seu nível de
referência, poderá originar normas jurídicas ou normas morais. A moral não pode mais ser o
fundamento do direito, que passa a se fundar no discurso e, portanto, tem fonte de legitimação
autônoma. O próprio Habermas (2003a, p. 142) assume que o princípio do discurso encerra
um conteúdo normativo, uma vez que explicita o sentido da imparcialidade dos juízos
práticos. Todavia, as ideias de imparcialidade e ausência de coação nos discursos são
estruturas pressupostas ao próprio uso comunicativo da linguagem, não sendo possível
chegar-se a uma norma de ação válida para todos os partícipes do discurso sem a observância
dessas condições ideais.
Assim como Kant, Habermas entende que a moral não pode cumprir o papel de
integração social, e que é necessário que o direito, além de ser um conjunto de
normas institucionalizadas, dotadas de maior racionalidade comunicativa, seja
dotado de coerção, para que possa minimizar a possibilidade de dissenso. O
princípio da democracia determina pois o processo de institucionalização
normativa, em que há a participação de todos com iguais direitos na formação da
opinião e da vontade: só podem ser considerados legitimamente válidas as leis
jurídicas que possam encontrar o assentimento de todos os membros de direito num
processo discursivo de instauração do direito (GOMES, p. 210).
Os discursos práticos sobre normas de ação ensejam pelo menos três questões
de distintas naturezas: questões pragmáticas, questões ético-políticas e questão morais, cada
uma das quais ensejando uma configuração específica de discurso, tendo em vista suas regras
procedimentais, sua matéria e seu alcance.
Questões ético-políticas são debatidas à luz da identidade comum
compartilhada intersubjetivamente por uma comunidade; plantam discursos nos quais
51
membros “procuram obter clareza sobre a forma de vida que estão compartilhando e sobre os
ideais que orientam seus projetos comuns de vida” (HABERMAS, 2003a, p.201). As
deliberações obtidas nestes discursos têm alcance circunscrito à comunidade de valores na
qual eles foram empenhados, se referem às convicções coletivas dos grupos através de uma
hermenêutica que se apropria criticamente das próprias tradições, com vista à escolha
adequada de meios para atingir fins coletivos relevantes, com apoio nos valores e tradições
consagrados.
Questões morais, por outro lado, rechaçam o agir pragmático do ator motivado
por preferências pessoais, ou por convicções internalizadas em grupos axiológicos
específicos; têm a ver com justiça. Para estatuir uma prática justa, é necessário o “ponto de
vista normativo, sob o qual nós examinamos a possibilidade de regular nossa convivência no
interesse simétrico de todos” (HABERMAS, 2003a, p.203); o juízo moral repercute em e para
todo homem, pois é de sua nota essencial referir-se à regulação da convivência de todos os
homens na base de interesses generalizáveis, através de normas que podem ser exigidas a
qualquer um em situações semelhantes, destinadas a garantir interesses com os quais qualquer
um assentiria. Mandamentos morais são imperativos categóricos ou incondicionais, que
podem transcender as barreiras culturais e geográficas das comunidades existentes: “em
discursos morais, a perspectiva etnocentrista de uma determinada comunidade se alarga,
assumindo a perspectiva abrangente de uma comunidade comunicativa não-circunscrita”
(HABERMASa,2003, p.203).
2. 3. O princípio do discurso e a (re)construção do sistema dos direitos
O modo de articulação entre autonomia pública e privada conduz a um
princípio do discurso. Enquanto, em um processo de autodeterminação racional, os sujeitos
produzem o direito legítimo sendo-lhes garantidas liberdades subjetivas de ação (autonomia
pública), conferem forma jurídica à autonomia privada, sem a qual estariam impossibilitados
de exercer sua própria autonomia normativa. Normas de ação gerais se ramificam em normas
morais e normas jurídicas. Tanto moral autônoma quanto direito positivo precisam ser objeto
de fundamentação, a qual, num modelo baseado no discurso, é adquirida mediante a
aceitabilidade racional de assertivas com pretensão de validade por partícipes de discursos,
motivados pelas estruturas que tornam possível o uso da linguagem através do agir
comunicativo. Em um nível de abstração – por ser, de início, indiferente à moral ou ao direito,
52
encontra-se o princípio do discurso, que se refere a normas de ação em geral: “D: São válidas
normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na
qualidade de participantes de discursos racionais” (HABERMAS, 2003a, p. 142). O princípio
do discurso explica apenas como questões práticas podem ser julgadas imparcialmente e
decididas racionalmente, observando um procedimento fundado na igualdade de competência
comunicativa e na razoabilidade dos argumentos.
O princípio do discurso pode converter-se em princípio moral ou em princípio
da democracia, a depender do seu nível de referência: a questões morais ou a questões ético-
políticas. O princípio moral funciona como regra de argumentação para a decisão de questões
morais, que extrapolam os limites históricos casuais, diferenciados socialmente, e ampliam os
destinatários de suas prescrições num sentido universalista que requer a assunção ideal de
papeis no interesse simétrico de todos; nesta perspectiva, há a regulação de uma comunidade
concreta de sujeitos. Por sua vez, o princípio da democracia afirma as possibilidades de
institucionalização do direito legítimo, num processo racional de formação política da opinião
e da vontade, segundo o qual são legítimas as leis jurídicas capazes de encontrar o
assentimento de todos os parceiros do direito num processo de normatização discursiva; nesta
perspectiva, há a regulação de uma comunidade abstrata, criada fictamente por virtude de
estatutos jurídicos.
O modo como autonomia privada e pública se entrelaçam na formação
discursiva da opinião e da vontade acarreta um sistema jurídico estruturado
comunicativamente, no qual o princípio da democracia toma a feição da interligação entre
princípio do discurso e forma jurídica. Tal é, para Habermas (2003a, p.158 e ss.), a gênese
lógica de direitos: começa com a aplicação do princípio do discurso, segundo liberdades
subjetivas iguais de ação, termina com a institucionalização jurídica de condições para o
exercício da autonomia política. Deste modo, retrospectivamente, num processo circular que
se retroalimenta, as liberdades subjetivas de ação produzem o direito legítimo e este define a
forma jurídica da autonomia privada. As condições procedimentais de institucionalização do
direito legítimo culminam em um sistema de direitos que “deve conter precisamente os
direitos que os cidadãos são obrigados a atribuir-se reciprocamente, caso queiram regular
legitimamente a sua convivência com os meios do direito positivo” (HABERMAS, 2003a,
p.158).
São categorias de direitos intrínsecas a um sistema de direitos estruturado
comunicativamente (HABERMAS, 2003a, p.159-164):
53
(a) Direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. São legítimas
somente as regulamentações que conciliam a liberdade de ação de cada um com a dos
demais, na forma de direitos fundamentais que protegem a autonomia privada dos
sujeitos de direito.
(b) Direitos fundamentais que resultam da configuração política do status de membro
numa associação voluntária do direito. São direitos de participação política ampla e
irrestrita no processo democrático de normatização discursiva, que garantem o
exercício da autonomia pública dos parceiros do direito.
(c) Direitos fundamentais decorrentes da possibilidade de postulação judicial e proteção
jurídica individual. Têm caráter de garantia juridicamente organizada, com vista à
proteção dos direitos subjetivos através da atuação de tribunais independentes e
imparciais e do amplo acesso à jurisdição.
(d) Direito à participação, em igualdade de oportunidades, dos processos de formação da
opinião e da vontade. O sistema de direitos só faz sentido na medida em que os
sujeitos destinatários de seus mandamentos possam se reconhecer como autores deles
próprios, segundo o princípio da autolegislação. São os próprios civis que decidem
como deve ser o direito juridicamente firmado pelo princípio do discurso, bem como
sobre sua legitimidade e correção.
(e) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente.
Os pares do direito, enquanto sujeitos politicamente autônomos detentores do poder
comunicativo, devem estar apetrechados dos meios materiais, culturais e econômicos
que lhes garantam o exercício da competência comunicativa em situação de igualdade
moral e política.
O uso público das formas de comunicação asseguradas juridicamente faz supor
que os resultados obtidos em deliberações submetidas à forma e ao procedimento correto são
legítimos. Os direitos acima elencados servem como parâmetro norteador e limitador do
legislador político soberano, o qual só pode legislar na medida em que garanta os elementos
imanentes e necessários ao procedimento de criação do direito legítimo.
O processo de legislação constitui, logo, o lugar próprio da integração social,
com a condição de que possam participar dele cidadãos tidos como sujeitos de direito,
portadores de amplas oportunidades de comunicação e participação política, cuja ação, antes
de ser orientada pelo sucesso, deve orientar-se para o entendimento mútuo. O direito, desta
forma, induz à “expectativa de que o processo democrático da legislação fundamente a
suposição da aceitabilidade racional das normas estatuídas” (HABERMAS, 2003a, p.54), na
54
medida em que os destinatários de suas normas consigam identificar-se num duplo papel de
destinatários e seus autores racionais. Embora legitimidade e legalidade guardem entre si
íntima conexão, Habermas (2003a, p.168) alerta contra interpretações equivocadas que
possam entender a teoria do discurso como modalidade ética de um juspositivismo: “o
surgimento da legitimidade a partir da legalidade não é paradoxal, a não ser para os que
partem da premissa de que o sistema do direito tem que ser representado como um processo
circular que se fecha recursivamente, legitimando-se a si mesmo”.
2.4. Autonomia pública versus autonomia privada? A reconciliação entre direitos
humanos e democracia no paradigma procedimental de Habermas
A adoção de um paradigma procedimental42
de legitimação do direito foi
essencial para desmistificar a pretensa oposição entre autonomia pública e autonomia privada
no bojo da teoria política tradicional, que remonta a Kant e Rousseau. Concebido um
paradigma jurídico como um “feixe de suposições elementares sobre o caráter, os princípios
fundamentais, os objetivos e as possibilidades do direito” (ALEXY, 2009, p. 128), nota-se
que o paradigma procedimental habermasiano,43
ao contrário dos paradigmas liberal e social,
evita o comprometimento com quaisquer princípios substantivos que possam impedir a priori
o exercício da autonomia política, bem como que os direitos fundamentais sejam dissolvidos
pela tirania de um legislador soberano ilimitado. O procedimento legitimatório restringe-se a
estatuir as regras que possibilitam a imparcialidade e a racionalidade do direito, na medida em
que este possa ser aceito pelos cidadãos que cumprem o duplo papel de autores e
destinatários, observada a estrutura básica da argumentação. Contudo,
o paradigma procedimental não exonera os pensamentos fundamentais do paradigma
liberal e do Estado social. Ele os coloca, antes, dentro de um novo contexto: o do
procedimento democrático interpretado pela teoria do discurso. Isto se vê claramente
no sistema dos direitos de Habermas (...) (ALEXY, 2009, p. 129).
Tanto o paradigma liberal quanto o do Estado social padeceriam do mesmo
erro: uma concentração excessiva sobre a autonomia privada; o primeiro, através do princípio
42
“Este projeto ético não objetiva oferecer critérios conteudísticos objetivos, e, sim, procedimentos para a
resolução de conflitos morais, na busca de soluções imparciais – núcleo da razão prática moderna. Todavia,
pode, de fato, estabelecer critérios que permitam uma ‘(...) diferenciação entre interesses particulares e interesses
universalizáveis’” (MAIA, 2008, p.63). 43
Na própria definição de Habermas (2003b, p.181), “paradigmas abrem perspectivas de interpretação nas quais
é possível referir os princípios do Estado de direito ao contexto da sociedade como um todo”.
55
da liberdade jurídica negativa que, além de não garantir a mesma proporção de autonomia
prometida a todos, devido à condução à desigualdade fática, constitui uma limitação
substancial à própria soberania de uma comunidade política que se autodetermina
autonomamente; o segundo, através do princípio da justiça distributiva que, apesar de
intencionalmente minimizar desigualdades fáticas produzidas pela liberdade econômica,
culmina num paternalismo que prejudica a própria autonomia com suas intervenções
antecipadas e impositivas. Em ambos os casos, a ideia da autoconstituição de uma
comunidade política de parceiros do direito livres e iguais resta prejudicada. Percebe-se que a
tensão entre facticidade e validade internalizada no direito migra para a realidade política na
forma da tensão entre autonomia privada e autonomia política.
Esta concorrência se baseia numa incompreensão da origem comum de
autonomia pública e privada. Os direitos que protegem a liberdade subjetiva de ação dos
indivíduos e os direitos à participação política, em igualdade de direitos, no processo e
formação democrática da opinião e da vontade, devem ser explicados a partir de uma raiz
comum, culminando numa relação de interdependência. A fundamentação de direitos
humanos que limitam a soberania em um outro nível acima do processo político é
antidemocrática e pressupõe que restrições com conteúdo moral serão impostas
paternalisticamente ao legislador soberano. O projeto de conciliação da teoria do discurso,
portanto, tem o intuito de evitar uma derivação do direito e da democracia diretamente de
princípios morais pré-políticos. A autodeterminação política só será conquistada em um
modelo em que os cidadãos cumpram um duplo papel de autores e destinatários do direito, no
mais profundo sentido da autonomia pública.
Esclarecer como o povo soberano pode deliberar sem, ao mesmo tempo,
vilipendiar direitos humanos básicos é o grande avanço na teoria democrática pretendido por
Habermas, a partir da configuração do princípio do discurso. De um lado, os direitos humanos
funcionam como proteção do indivíduo perante um poder político potencialmente tirânico,
pois quando existem, em uma comunidade jurídica, por motivos econômicos ou culturais,
maiorias e minorias estruturais, toda decisão majoritária tomada em fóruns políticos
aprofundaria essa separação. Daí ser necessário um conjunto de direitos humanos individuais
dessas minorias estabelecidos antes e por fora do processo democrático.
O poder absoluto do legislador soberano deve ser vinculado a uma permissão dos
direitos humanos que devem proteger primariamente o indivíduo contra o poder
político. Mas se, inversamente, isto significar que os direitos humanos gozam de
primazia normativa perante o processo legislativo político, este não mais seria
soberano (GÜNTHER, 2009, p. 220)
56
Nem Kant nem Rousseau conseguiram explicar satisfatoriamente a tensão
existente entre direitos humanos subjetivos do indivíduo e o princípio da soberania do povo,
do legislador político soberano – princípios em cuja luz ainda é possível justificar o direito
moderno. Dependendo da primazia que se dá a um ou outro princípio na configuração de uma
sociedade de direito, estaremos diante de uma aproximação com o liberalismo ou com o
republicanismo.
Kant sugere um modelo de ler a autonomia política mais próximo do
liberalismo. O princípio do direito é uma lei geral de liberdade que se legitima numa etapa
anterior ao próprio estabelecimento do contrato social e, portanto, da autonomia política: os
“direitos naturais” que precedem a vontade do legislador soberano são fundamentados
moralmente. Ele partiu da ideia de que ninguém, no exercício de sua autonomia política,
poderia aderir a leis que ao mesmo tempo privam seus direitos naturais que protegem a
autonomia privada. O argumento liberalista mostra-se problemático no seguinte aspecto: os
direitos humanos são, em sua origem, estritamente horizontais, portanto só podem ser
atribuídos e concedidos mutuamente por todos os homens, cabendo aos próprios titulares dos
direitos decidir sobre seu conteúdo. “É no sentido dos direitos humanos que também reside a
auto-habilitação dos homens à sua autodeterminação, ou seja, sobretudo à interpretação e ao
esgotamento dos direitos humanos” (GÜNTHER, 2009, p. 224).
Rousseau, por seu turno, aproximou-se de uma posição republicana e
interpretou a ideia da autolegislação numa linha mais ética do que moral, compreendendo a
autonomia como a realização consciente da forma de vida de um povo concreto, dissolvendo
o conteúdo normativo dos direitos humanos no modo de realização da soberania popular. E
essa visão pressupõe necessariamente um “ethos homogêneo de uma comunidade particular
que, com suas decisões majoritárias, discrimina ou exclui minorias” (GÜNTHER, 2009, p.
225), não alcançando o telos da democracia. O conteúdo normativo dos direitos humanos não
pode surgir, como pensa Rousseau, na forma de leis gerais e abstratas, que permitem
simplesmente regulamentações que garantem a todos as mesmas liberdades subjetivas. “O
visado nexo interno entre soberania do povo e direitos humanos reside no conteúdo normativo
de um modo de exercício da autonomia política, que é assegurado através da formação
discursiva da opinião e da vontade” (HABERMAS, 2003a, p. 137). É através da vinculação
aos direitos humanos que se possibilita a institucionalização jurídica da democracia, com
inclusividade e abertura do processo democrático. Nesta linha, Wellmer (apud GÜNTHER,
2009, p. 226) assim definiu a relação dos direitos humanos com a democracia:
57
Enquanto, por um lado, vinculam o discurso democrático, eles, por outro, têm
sempre que ser produzidos primeiramente nele, ou seja, têm que ser reinterpretados
e reimplementados; não pode haver nenhuma instância acima ou fora deste discurso
que poderia decidir, ao fim, qual seria a interpretação e concretização corretas
destes direitos fundamentais.
A co-originariedade entre autonomia privada e pública existe no nível da teoria
do discurso, na medida em que os sujeitos do direito compreendem-se como autores e
destinatários de um modelo de autolegislação, que pressupõe os direitos humanos como
condições formais da institucionalização jurídica da vontade política discursivamente
formada, na qual soberania do povo se converte em direito legítimo.
Algumas objeções44
são levantadas no sentido de denunciar uma possível
instrumentalização dos direitos subjetivos à liberdade para servirem unicamente como
condição de um processo político legiferante, relativizado perante o direito democrático de
participação e aos deveres comunicativos (ilocucionários) a ele vinculados. Klaus Günther
(2009, p. 231 e ss.) responde à questão do risco de a liberdade comunicativa erodir as
liberdades negativas num sistema estruturado pela teoria do discurso, utilizando-se de três
argumentos: a) a liberdade negativa só é possível como o direito igual de cada indivíduo, não
sendo imaginado como direito singular nem ilimitado de cada um. O caráter igualitário-
distributivo do direito à maior medida possível de iguais liberdades de ação subjetivas tem de
resultar da autonomia política dos próprios atingidos, sendo concedido a todo indivíduo o
direito de participar discursivamente dessa distribuição dos direitos; b) a liberdade negativa é
uma condição indispensável para que a democracia opere deliberadamente e cumpra as
exigências da criação de discursos racionais. A liberdade de informação, de vontade e de
opinião autônoma é um pressuposto da racionalidade e, portanto, da prática de decisão
racional; e c) os direitos de liberdade negativos não estão ameaçados por obrigações
ilocucionárias de participação discursiva, pois incluem até mesmo o direito de se retirar ou
não se envolver em discursos. O direito à desistência das obrigações da racionalidade
comunicativa também é uma condição constitutiva destas obrigações, em atenção ao princípio
da não coerção física. Entretanto, a recusa de alguém à participação democrática na legislação
acarreta àquele o ônus de ser juridicamente obrigado a não violar o igual direito de liberdade
de todos os outros, pois se ele não participa como sujeito ativo na construção do direito
legítimo, este se apresente a ele unicamente na condição de ordenamento coercitivo.
44
Esta objeção é levantada, entre outros, por John RAWLS (apud GÜNTHER, 2009, p. 231).
58
Ademais, Rainer Forst (2009) indica uma solução para as controvérsias
dirigidas ao fato de que Habermas, do ponto de vista liberal, não teria conferido uma
fundamentação autônoma dos direitos humanos, colocando-os sempre à disposição do
exercício do poder, apesar de não duvidar de sua natureza moral. A evitação desse problema
está, segundo Forst, implícita na própria ideia de autolegislação no nível das normas morais,
pois devido aos discursos morais evita-se a imposição paternalística de direitos humanos,
demonstrando que eles próprios são originados num discurso em que os homens exercem sua
autonomia política.
Com base em um princípio da justificação, de fundamentação teórico-discursiva e
de autoentendimento normativo, segundo o qual normas reivindicadoras de
validade universal e recíproca têm que ser justificadas de modo discursivamente
universal e recíproco, resulta a possibilidade de uma construção moral “autônoma”
de direitos humanos (como pretensões mutuamente não rejeitáveis); estes
constituem o conteúdo central de uma construção, construção esta de característica
discursiva, política e a ser institucionalizada juridicamente, de direitos
fundamentais e respectivas normas de uma estrutura política básica. Estes direitos
fundamentais são, assim, implicações necessárias de uma soberania política
exercida legitimamente e nos moldes do Estado de direito, o que Habermas
salienta, da mesma forma que são, conforme sua essência e seu próprio vigor,
direitos morais que são configurados dentro de instituições políticas pelos próprios
interessados, conferindo-lhes aí validade. A realidade jurídico-política não se
defronta com normas morais “externas”, e sim tão somente com aquelas que uma
estrutura política básica teria que poder apresentar ela mesma a fim de reivindicar
legitimidade (FORST, 2009, p. 190).
2.5. Alexy e a teoria do discurso desenvolvida no âmbito do direito
Conforme já exposto acima, a teoria da justiça de Robert Alexy admite que o
direito, enquanto forma de institucionalização da justiça, deve assumir uma pretensão de
correção. O discurso apresenta-se como a via procedimental para a correção das regras e dos
princípios do direito, e exige, para a sua concreção, os valores liberais da autonomia e da
igualdade dos partícipes.
As questões de correção e de justiça têm de ser racionalmente fundamentadas, e dita
fundamentação tem seu lugar mediante o discurso. São traços essenciais de uma
teoria discursiva da justiça a liberdade e a igualdade das pessoas, e a neutralidade e a
objetividade dos argumentos. Isso conduz a dois graus: o caráter procedimental e o
caráter ideal, que no caso da teoria jurídica da justiça são complementados e
compensados com o caráter institucional e o caráter material (SEOANE, 2005, p.9).
A teoria do discurso viabiliza uma teoria procedimental da correção prática,
que postula que a correção e, portanto, a validade de uma norma, é alcançada quando esta for
59
resultado de um discurso prático racional presidido por regras da razão prática. Dentre essas
regras, há aquelas integradas com um forte caráter dialógico ou discursivo, que garantem a
liberdade e a igualdade necessárias ao discurso:
(1) todos podem tomar parte no discurso; (2.a) todos podem questionar qualquer
afirmação; (2.b) todos podem introduzir qualquer asserção no discurso; (2.c) todos
podem exteriorizar seus critérios, desejos e necessidades; e (3) nenhum falante pode
ser impedido de exercer a salvaguarda de seus direitos fixados em (1) e (2), quando
dentro ou fora do discurso predomina a força (ALEXY, 2005a, p.61).
Podem ser enumerados três princípios fundamentais para a legitimação do
direito (e, por conseguinte, dos direitos humanos) sobre a base do discurso; são eles os
princípios liberais a) da autonomia, b) do consenso e c) da democracia. Do ponto de vista de
sua fundamentação, o princípio da autonomia insere-se no pensamento moral kantiano, e
pressupõe a capacidade do sujeito em ser o centro das auto-reivindicações de validade, e, do
ponto de vista prático, requer que o direito de liberdade seja integralmente conferido aos
participantes do discurso, de modo que eles possam expor suas razões, interesses e motivos,
sob a forma de argumentos autênticos, em um momento discursivo que exclui definitivamente
o uso da violência ou de qualquer meio de coação. Cada um tem o direito de julgar livremente
o que é bom para si ou para seu grupo, e atuar neste sentido. O princípio do consenso “afirma
que a igualdade e a universalidade dos direitos humanos constituem um resultado necessário
do discurso, isto é, todos têm direito ao mesmo sistema básico de direitos humanos e
fundamentais” (SILVA, 2000, p.47). Na tradição do pensamento habermasiano, Alexy
reafirma a necessidade de que a validação de uma assertiva normativa seja reconhecida “por
um auditório universal e infinito de sujeitos”, através de argumentos que se reputem válidos
universalmente, isto é, que possam convencer racionalmente a todos e ensejar um consenso
universal sobre um determinado enunciado. O excessivo rigor deste princípio pode minar ou
prejudicar a facticidade dos discursos; no entanto, a universalidade de um sistema mínimo de
princípios jurídicos fundamentais é justamente o resultado esperado de uma teoria
procedimental de legitimação dos direitos humanos:45
a universalidade é conseqüência
necessária, e não contingente ou ocasional, do procedimento discursivo, tanto no nível dos
argumentos quanto no nível das normas obtidas da composição de razões aduzidas. Pelo
princípio da democracia, infere-se que a realização dos ideais normativos inscritos na teoria
do discurso somente se dará, de maneira aproximada, em um espaço democrático onde
45
Cf. HÖFFE, 2000, p. 179-180: “confunde-se universalidade com uniformidade, ou melhor: se equiparam
princípios jurídicos universais com o nivelamento das diferenças sociais e culturais”.
60
estejam garantidos os pressupostos liberais de salvaguarda da autonomia comunicativa e as
regras da razão prática suficientes para a operacionalização do discurso.
Alexy distingue entre duas classes de legitimação teorético-discursiva: a direta
e a indireta. A primeira classe é requisito para que a própria legitimação na base do discurso
seja possível, consiste em direitos constitutivos da infra-estrutura jurídica dos discursos
práticos, cuja não observância seria discursivamente impossível. São os pressupostos que
garantem a neutralidade do procedimento discursivo: a liberdade, a igualdade, a recusa à
violência, a participação democrática. Por outro lado, os direitos indiretamente legitimados
pela teoria do discurso são aqueles obtidos pelo processo político que preenche as condições
exigidas para o discurso, de forma que podem ser subsumíveis aos princípios da legitimação
direta. Evidentemente, esses direitos são politicamente contingentes e dependentes da
realidade histórica compartilhada por uma determinada comunidade jurídica, pois surgem
como resultado de uma deliberação histórica, atrelada a momentos dados e precisos. Ao
mesmo tempo em que um conjunto de princípios jurídicos universais constituem o núcleo de
direitos humanos universais, uma grande margem é deixada para que as sociedade políticas
em particular, ancoradas por esses princípios, deliberem sobre o conteúdo de direitos
humanos que melhor lhes aprouver tendo em vista sua tradição, seus costumes e seus padrões
éticos preponderantes.
Aqui está uma grande vantagem promovida pela teoria do discurso: ela
identifica-se como uma estratégia minimalista de legitimação dos direitos humanos, ou seja,
ela não fornece um conceito demasiadamente inflacionado de direitos humanos, reportando a
esta categoria “apenas aqueles que protegem interesses ou carências fundamentais, cuja
violação ou não satisfação implica a morte, o sofrimento grave ou atinge o núcleo essencial da
autonomia de seu titular” (SILVA, 2000, p.49). Por ser minimalista, tal conceito é mais
resistente às objeções particularistas apresentadas pelas diferentes culturas, tradições e
regimes políticos existentes na sociedade internacional, e reservam um maior âmbito de
legitimação aos grupos sociais, às comunidades culturais que propugnam pelo
reconhecimento da diversidade e ao Estado. Isso porque “o incontornável (e positivo)
pluralismo de valores das sociedades contemporâneas representa um óbice a qualquer esforço
de definição de critérios racionalmente fundados, capazes de guiar as escolhas que concernem
ao domínio do bem” (MAIA, 2008, p.60).
O cumprimento das regras do discurso apresenta-se como vantajoso, pois dá
lugar a uma estabilização do direito maior e menos custosa que aquela que seria obtida pelo
exercício constante e excessivo da força. Relembrando a lição de Habermas: os sujeitos
61
privados obedecem às normas não porque elas obrigam coativamente, mas motivados pela sua
confiança na legitimidade discursiva que nelas encerra. No entanto, embora não
necessariamente, os direitos humanos se beneficiam de sua conversão à forma jurídica, para
que exerçam e desenvolvam todo o seu potencial normativo. A teoria do discurso não oferece
um procedimento infalível, que aponte um único caminho dentre uma variedade de opções
normativas; daí a importância da decidibilidade que define o direito diante da necessidade de
pôr termo aos conflitos. “As exigências morais da teoria do discurso, bem como outros
valiosos fins éticos, somente podem ser concretizados em sociedades complexas e pluralistas
por intermédio da organização e coordenação do direito” (SILVA, 2000, p.45). Pelo menos se
reconhece que, se um direito está incluído no ordenamento jurídico, não restam dúvidas
quanto à sua aplicabilidade, à sua disposição imediata em ser garantido nas relações sociais
concretas, principalmente porque a positividade garante a reciprocidade. Deste modo, a
positividade,46
embora não incida diretamente sobre a legitimidade dos direitos humanos,
confere-lhes facticidade, na medida em que o direito positivo dispõe dos meios necessários
para a aplicação da regra de direito; pode ser compreendida, portanto, como condição geral de
aplicabilidade.
46
Cf. HÖFFE, 2000, p. 167-168, a importante distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais: “Ali
onde os direitos humanos passam a fazer parte da constituição, desde o qual obrigam então aos poderes públicos,
estes, que antes eram apenas parte integrante da moral jurídica universalista, se convertem agora em elementos
do direito positivo, em direitos fundamentais de uma comunidade jurídica particular”.
62
3. AS QUESTÕES MULTICULTURAIS NA DEMOCRACIA DELIBERATIVA
A necessidade de criar modelos normativos advém da crença de que se pode
transcender a realidade, de que os modelos institucionais postos já não comportam todas as
soluções para os problemas enfrentados pelo homem. A democracia deliberativa é um
modelo normativo de política democrática nascida da crítica consciente dos limites dos
modelos republicano e liberal, os quais de certa forma têm sido objeto de divergência na teoria
política quanto à sua qualidade de “modelo democrático adequado”.
A teoria jurídica de Habermas mostra como os conteúdos ideais do princípio do
discurso podem ser institucionalizados através de um sistema jurídico num contexto político.
Ao mesmo passo em que a teoria do discurso exige a institucionalização de um sistema de
direitos, o direito positivo permanece dependente dela como sua fonte de legitimidade: o
direito e a política não podem ser entendidos como sistemas autopoieticamente fechados,47
mas precisam abastecer-se do poder comunicativo do público de cidadãos gerado nos
contextos comunicacionais informais da esfera pública, nas associações e na esfera privada.
A democracia deliberativa é o arranjo institucional formulado sob a base da
ideia de discurso: o procedimento discursivo almeja determinar o conteúdo de um direito
fundamental não exaurido na Constituição, a fim de possibilitar a coexistência pacífica dos
titulares do direito em situações de conflito. Esta interpretação pode ocorrer no patamar de
discursos nos contextos da esfera pública informal,48
ou no patamar das instituições
democráticas oficiais. A interpretação dos direitos pelos tribunais constitucionais é condizente
com este princípio, na medida em que deve “garantir ou, pelo menos, poder prometer justiça
na fundamentação valorativa e verdade no reconhecimento” (DENNINGER, 2009, p. 44) ao
decidir sobre o conteúdo de um direito fundamental.
A noção de política deliberativa se funda na teoria do agir comunicativo, aqui
já exposta sucintamente: a comunicação é voltada à intercompreensão; os discursos de
entendimento mútuo, nos quais os integrantes de determinada comunidade política tentam
obter clareza sobre o tipo de sociedade em que querem viver, são elementos constitutivos do
47
Para um detalhamento da crítica de Habermas ao positivismo sociológico de Niklas Luhamann e sua
compreensão dos sistemas autopoiéticos, ver HABERMAS (2003b, p.57-91). 48
Segundo Habermas, os componentes informais da esfera púbica geral são formados a partir do fluxo
comunicacional que se movimenta nas várias esferas públicas que se organizam no interior de associações. Essa
esfera pública informal tem a vantagem de ser um meio de comunicação isento de limitações, de modo que pode
articular, de modo mais livre, os discursos de auto entendimento sobre interpretação de identidades coletivas. “A
formação democrática da opinião e da vontade depende de opiniões públicas informais que idealmente se
formam em estruturas de uma esfera pública política não desvirtuada pelo poder” (HABERMAS, 2003b, p.33).
63
processo político em geral. O consenso racional apresenta-se como o viés compensatório para
os conflitos que ocorrem no interior de uma mesma comunidade; para a harmonização dos
conflitos não bastam os discursos éticos49
(como propõe o republicanismo) ou meras
negociações ou acordos entre partidos (como no liberalismo), tão sensíveis à genealogia dos
conflitos que repousam sua motivação em discordâncias fundamentais sobre princípios
morais, religiosos e ideológicos, cuja não exigência de racionalidade no intercâmbio social é
incapaz de estabelecer um vínculo de solidariedade estável. “O direito firmado politicamente,
caso se pretenda legítimo, precisa ao menos estar em consonância com princípios morais que
reivindiquem validação geral, para além de uma comunidade jurídica concreta”
(HABERMAS, 2003a, p. 227).
Por este motivo, Habermas sugere uma teoria legitimatória procedimental,
que se restringe a regras discursivas e formas argumentativas que se orientam ao
estabelecimento de um acordo mútuo, fundada no caráter formal da razão comunicativa, que
possibilita um modelo de democracia com base “nas condições de comunicação sob as quais o
processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se,
em todo seu alcance, de modo deliberativo” (HABERMAS, 2002, p. 277).
O direito se legitima a partir de princípios e mediante procedimentos. A
legitimação do procedimento jurídico exige o reconhecimento de todos os membros da
sociedade como moral e politicamente livres e iguais, porque, se assim for, podem se
reconhecer como sujeitos autônomos que sejam, ao mesmo tempo, destinatários das normas
de direito e sujeitos ativos de sua produção. Quando se defrontam, no Estado democrático,
concepções religiosas, morais e cosmovisões diferentes, carecemos da homogeneidade dos
costumes e, portanto, de um fator extrajurídico de integração. É necessário o apelo ao direito
como medium da regulação social: “o recurso a um procedimento institucionalmente
assegurado de criação do Direito se converte no caminho razoável e ‘correto’ para que ao
menos resulte possível alcançar um equilíbrio satisfatório” (DENNINGER, 2005, p. 42). A
legitimidade deste procedimento repousa na medida em que é garantida a racionalidade,
expressa na máxima aceitação dos argumentos por parte de todos os participantes do discurso,
e a justiça, no sentido do equilíbrio razoável de interesses.
Somente quando os conflitos resultam juridicamente delimitados por um
procedimento é que podem assumir seu papel positivo de integração social, conduzindo a uma
49
Para Habermas, os discursos éticos se referem ao bem do indivíduo ou da comunidade, enquanto que os
discursos morais se referem a questões de justiça mais amplas: “Diversamente do que se dá com questões éticas,
as questões de justiça não estão relacionadas desde a origem com uma coletividade em particular”. HABERMAS
(2002, p. 277).
64
concepção pluralista da Constituição, frequentemente atualizada e renovada por novos
consensos gerais. Em espaços marcados por conflitos morais acentuados, segundo Denninger,
a integração social só pode ser obtida mediante normas de direito positivo, pois nos
desacordos morais não há uma base comumente aceita e reconhecida de costumes suficiente
para fomentar a convivência democrática. Neste sentido, as regras do procedimento jurídico
devem ser objeto de um consenso democrático fundamental, acordadas, obedecidas e
legitimadas por todos, reconhecidos estes como membros livres e iguais na formação do
direito. Com efeito, a influência gerada nos fluxos comunicacionais da esfera pública política
só pode se infiltrar no Estado de direito através dos mecanismos do processo democrático e do
sistema político em geral, e o direito positivo contribui, naturalmente, para a redução da
complexidade social: “o modo discursivo de socialização tem que ser implantado através do
medium do direito. E os momentos que não são levados em conta pelo modelo de socialização
‘pura’ já estão incorporados, enquanto tais, no direito” (HABERMAS, 2003b, p.55).
A seguir, serão mais bem investigadas as estruturas informais da democracia
deliberativa, quais sejam: a esfera pública e a sociedade civil. Adiante-se que o espaço
público trata-se de uma arena de interação discursiva, na qual os cidadãos deliberam acerca de
seus assuntos comuns, consistindo em um lugar para a produção e circulação de discursos que
podem, até mesmo, ser críticos com relação ao Estado. Esse conceito de espaço público
permite melhor ter em vista as distinções entre aparato estatal, mercado econômico e
associações democráticas.
3.1. Democracia deliberativa: definição, estruturas e críticas
Em busca de uma definição da democracia deliberativa, Seyla Benhabib (2006,
p.179) assevera:
[...] a melhor forma de entender a democracia é como um modelo para organizar o
exercício público e coletivo do poder nas instituições mais importantes da
sociedade, baseando-se nos princípios de que as decisões que afetam o bem-estar de
uma coletividade podem ver-se como o resultado de um procedimento de
deliberação livre e razoável entre pessoas consideradas moral e politicamente iguais.
A premissa básica da ética do discurso, chamada de metanorma por Benhabib,
remonta à epistemologia habermasiana da teoria do discurso: são válidos apenas normas e
arranjos institucionais que possam ser reconhecidos e confirmados por todos os interessados,
65
em situações de argumentação específicas, que atendam a determinadas regras formais
(situação ideal de fala), chamadas “discursos”. Da metanorma, são deduzidos dois princípios:
o princípio do respeito universal e o princípio da reciprocidade igualitária. Por respeito
universal, entende-se que o direito de participar dos discursos estende-se universalmente a
todos os seres capazes de fala e ação, como também lhe são conferidos os direitos e deveres
resultantes das normas legitimadas discursivamente; a reciprocidade igualitária reafirma a
igualdade e a autonomia daqueles que possuem competência comunicativa e lhes confere o
“mesmo direito” a iniciar atos de fala e prosseguir argumentando nos discursos públicos
(BENHABIB, 2006, p. 180-4). Entretanto, tais princípios admitem diversas reconstruções
normativas, e se contextualizam na medida em que são concretamente praticados em
contextos jurídicos, culturais e sociológicos distintos.
O aspecto “deliberativo” de determinado sistema democrático influencia
simultaneamente duas instâncias da vida pública:50
tanto as instituições estabelecidas, como
os órgãos executivo, legislativo51
e judiciário, quanto as atividades não oficiais das
associações e movimentos sociais da sociedade civil. Ou seja, ao mesmo tempo em que a
política deliberativa pode52
(e não necessariamente deve) servir de programa de ação para as
instituições democráticas, pode também presidir a prática de debate na esfera pública, onde
ocorrem as lutas multiculturais dos grupos que pretendem ter reconhecida sua identidade e
resguardado seu valor nas condições da vida social. Estas lutas ampliam o significado dos
direitos de igualdade, e postulam uma mudança que pode conduzir a algum tipo de ação
coletiva, inclusive institucionalizada. À medida que o mundo da vida racionalizada favorece a
manutenção de uma esfera pública autônoma, com forte apoio numa sociedade civil, a
autoridade do povo se fortalece na medida em que este toma decisões nas controvérsias
públicas, pois nas esferas públicas políticas “as relações de força modificam-se tão logo a
percepção de problemas sociais relevantes suscita uma consciência de crise na periferia”
(HABERMAS, 2003b, p.116). Neste momento, é preciso esclarecer os conceitos elementares
para a compreensão das estruturas informais da democracia deliberativa, quais sejam, o
50
Isto permite que Benhabib defina a democracia deliberativa como um modelo de “dupla via”. 51
“Os pressupostos comunicacionais que permitem regular deliberativamente as contendas estão
institucionalizados eficazmente em corporações parlamentares, permitindo que o processo democrático filtre
argumentos e deixe vir à tona os que são capazes de produzir legitimidade” (HABERMAS, 2003b, p.71). 52
Para Benhabib, a ética do discurso deve ser compreendida não como um programa para orientar as práticas
institucionais, mas antes como um modelo ideal de avaliação da legitimidade e da justiça das práticas –
institucionais e não institucionais – já existentes. É claro que a ética do discurso pode vir a orientar a formação
da vontade política institucionalizada do Estado, “sim e quando existir a vontade democrática dos participantes
para faze-lo” (BENHABIB, 2006, p.194-195).
66
conceito de esfera pública e de sociedade civil, a fim de elucidar o procedimento de
elaboração de problemas no espaço público.
O espaço público da teoria habermasiana é descrito como uma caixa de
ressonância onde encontram eco os problemas a serem elaborados pelo sistema político. Nesta
medida, a esfera pública é uma espécie de sistema de alarmes sensíveis no âmbito de toda a
sociedade, o qual, além de perceber e identificar os problemas, deve problematizá-los e
tematizá-los de modo eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo complexo
parlamentar.
A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de
conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são
filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas
em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a
esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o
domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade
geral da prática comunicativa cotidiana. (...) A esfera pública constitui
principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a
qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as
funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana (HABERMAS, 2003b,
p.92).
De outra parte, a sociedade civil é composta por movimentos, organizações e
associações que captam os ecos dos problemas sociais ressonantes na esfera privada e os
transmitem para a esfera pública política. Através da atividade dos partidos políticos e da
atividade eleitoral dos cidadãos, o sistema político se conecta com a esfera pública e com a
sociedade civil, com a ressalva de que as instituições devem permanecer permanentemente
sensíveis à opinião pública.53
E o modo pelo qual as associações conservam sua autonomia e
espontaneidade é através do apoio num pluralismo de formas de vida, credos religiosos e
subculturas. Assim conceitua Habermas (2003b, p.99), a respeito da sociedade civil: “o seu
núcleo institucional é formado por associações e organizações livres, não estatais e não
econômicas, as quais ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos
componentes sociais do mundo da vida”.
A sociedade civil pode ter opiniões públicas próprias capazes de influenciar a
administração, os tribunais e o complexo parlamentar, obrigando o sistema político a
modificar o rumo do poder oficial, funcionando a esfera pública como uma estrutura
intermediária entre o sistema político e os setores provados do mundo da vida.
53
As opiniões enfeixadas no espaço público tornam-se opinião pública quando gozam de um amplo
assentimento, resultante de uma controvérsia na qual propostas, informações e argumentos podem ser elaborados
de modo mais ou menos racional. Ver HABERMAS, 2003b, p.94.
67
A noção de uma associação democrática na qual a justificação dos termos e das
condições de associação procede por meio de argumentos e raciocínio público entre os
cidadãos suscita algumas questão no que concerne à sua viabilidade como modelo político-
institucional concreto, ou até mesmo como teoria capaz de aliviar tensões amplamente
debatidas na doutrina democrática. Algumas dessas questões são o risco de “tirania da
maioria” e a irracionalidade, aqui brevemente abordadas.
Um dos motivos da teoria da democracia deliberativa é designar um standard
democrático que justifique valores e políticas anti-opressivos. Os processos democráticos são
legítimos na medida em que encorajam a deliberação sobre questões específicas em fóruns
adequados, no interesse simétrico de todos os interessados. “Os direitos da minoria são, neste
sentido, defendidos internamente à democracia deliberativa como uma de suas precondições”
(CUNNINGHAM, 2009, p. 211). A democracia deliberativa é disposta a gerar direitos
liberais, que protegem a autonomia privada do indivíduo de ingerências do poder político, e
pressupõe que os participantes da deliberação compartilhem atitudes de “respeito universal” e
“igualdade recíproca”, pois enquanto esses princípios são observados o medo da tirania da
maioria será infundado.
No que respeita à racionalidade das decisões, ceticamente se pergunta se
discursos públicos são suficientes para alterar preferências fixas egoísticas e irracionais de
agentes que não se dispõem à prática de entendimento mútuo, bem como se decisões
discutidas segundo as estruturas do discurso ideal são racionais no sentido de as mais justas e
condizentes com o bem comum. A posição liberal insiste54
que as pessoas entram em
deliberações, conclamadas quando há desentendimentos sobre o que devem ser as políticas
públicas e como chegar a elas por meio de leis, sem qualquer expectativa de que suas
preferências irão mudar nesse processo. Em contrapartida, aqueles engajados em práticas
deliberativas devem estar preparados para alterar suas preferências numa atitude de autocrítica
quanto a seus respectivos valores e preferências. O oferecimento mútuo de razões tem o afã
de persuadir participantes de um discurso a adotar outros pontos de vista, uma vez que “um
sistema democrático em bom funcionamento se fundamenta não em preferências, mas em
razões” (SUNSTEIN apud CUNNINGHAM, 2009, p. 195). A democracia deve ser mais que
um modo institucional de agregação de preferências fixas, para tornar-se um âmbito de prática
da racionalidade argumentativa, no qual os debates públicos tenham influência sobre a
opinião e a vontade de atores dispostos à mudança de perspectiva. Caso uma decisão não
54
Cf. CUNNINGHAM (2009, p. 195).
68
possa ser tomada segundo os exigentes critérios de deliberação de justificação potencial a
todo e qualquer interessado, uma votação poderá ser necessária. No entanto, tudo indica que
essa votação será mais que a agregação de preferências fixas formuladas anteriormente à
deliberação, pois nesta as razões reciprocamente fornecidas tornaram-se transparentes,
informadas e aptas ao convencimento. Nas palavras de Habermas (2003b, p.72):
As condições para uma formação política racional da vontade não devem ser
procuradas apenas no nível individual das motivações e decisões de atores isolados,
mas também no nível social dos processos institucionalizados de formação de
opinião e de deliberação. Estes podem ser considerados como arranjos que
influenciam as preferências dos participantes, pois eles selecionam os temas, as
contribuições, as informações e os argumentos, de tal modo que somente os que são
“válidos” conseguem atravessar, em caso ideal, o filtro das negociações equitativas e
dos discursos racionais, assumindo importância para as tomadas de resolução. Isso
implica uma mudança de perspectivas: passa-se da teoria da escolha racional para a
da teoria do discurso.
Quando inexistem as condições complexas para um discurso livre e não
coativo, a solução de conflitos políticos pode ser oferecida mediante negociações cuja
conclusão leve a um compromisso capaz de conciliar os interesses em conflitos. A diferença
entre o consenso e o compromisso, apontada por Habermas,55
consiste na possibilidade de os
participantes aceitarem um acordo por diferente razões e interesses, mas que o núcleo do
compromisso ainda assim seja mantido. Não obstante, as negociações devem se amoldar às
condições de uma configuração procedimental justa, afins com uma forma pura de discurso:
(1) os participantes em uma negociação têm que se colocar de acordo na vontade
declarada, constante e incondicional em procurar a solução do conflito pelas vias do
direito, o seja, da normatização – sob a exclusão da ameaça ou do emprego da
força. (2) Os participantes têm que se reconhecer – e, a esse respeito, não há
diferença alguma com as condições do discurso – como ‘iguais”, isto é, como
participantes com os mesmo direitos, com as mesmas chances de acesso e
comunicação também em sua essência como diferentes e estrangeiros. (3) E, por
último, algo difícil: dentro de uma comunidade política já constituída, (...) uma
negociação só pode ser conduzida respeitando-se plenamente os princípios
constitucionais fundamentais (DENNINGER, 2009, p. 58).
Para Frank Cunnigham (2009, p.198), a maior virtude da democracia
deliberativa é justamente que ao “encorajar as pessoas a procurar bens comuns, a deliberação
estimula e cria preferências que juntam as pessoas de forma cooperativa e incita a igualdade e
o respeito mútuo”, pois os cidadãos são incentivados a conviver com desacordos morais
básicos de uma maneira construtiva.
55
Cf. HABERMAS, 2003, p. 200-210.
69
E são os próprios cidadãos, num modelo procedimental, que deliberam a
respeito do que consideram ser o bem comum, encorajados pela prática argumentativa. Assim
evita-se que uma concepção determinada de bem comum, majoritária, seja imposta
paternalisticamente aos cidadãos a quem, na perspectiva da autonomia política, compete
decidir sobre o conteúdo dos direitos que querem se atribuir.
No atual marco do pluralismo social e cultural, a coexistência de uma
multiplicidade de doutrinas ideológicas, religiosas e filosóficas sob uma mesma ordem
constitucional, instaura na sociedade política conflitos que sugerem o abandono do modelo de
“Estado-nação” pelo de “Estado pós-nacional”, ou de “Estado multi-étnico”. A resolução
destes conflitos pode ocorrer pelas vias democráticas do discurso – e é aí que a democracia
deliberativa possui relevância, pelo seu projeto de fomentar um consenso normativo entre
posições políticas divergentes, mas que compartilham do mesmo interesse em obter soluções
razoáveis para os dilemas apresentados como riscos para a estabilidade social; do contrário,
tais conflitos, que outrora cumpririam um papel social positivo, podem acabar resultando em
práticas constantes de violência – física ou psíquica – ou outras formas de desenvolvimento
não democrático do potencial conflitivo.
No Estado democrático de direito, abrigado por uma sociedade pós-
convencional, a Constituição surge como um sistema de definição de procedimentos para a
solução de conflitos morais, éticos e de interesse. Tal ideia nos conduz ao próximo tema: a
função do constitucionalismo em uma sociedade pluralista.
3.2. Constitucionalismo para uma democracia pluralista
Habermas desenvolve uma proposta de patriotismo constitucional afastada
tanto do republicanismo cívico proposto por Dworkin, como do constitucionalismo patriótico
configurado por Ackerman. Contrariamente ao republicanismo cívico de Dworkin, o
patriotismo constitucional vai além de um molde de integração entre pessoas privadas dotadas
de direitos individuais e desejosas de manter seus interesses fixos frente ao aparelho estatal.
Ao contrário do patriotismo configurado por comunitaristas e republicanos, o patriotismo
constitucional não conta coma orientação da cidadania tendo em vista uma concepção
compartilhada de bem comum. Em síntese, o patriotismo constitucional evidencia tanto a
conexão interna entre autonomia pública e autonomia privada quanto a impossibilidade de
recorrer a uma visão compartilhada de bem. Tanto liberais quanto comunitários defendem a
70
existência de uma Constituição e a sistematização de direitos fundamentais constitucionais.
No entanto, cada qual assume compromisso com uma concepção de Constituição: os liberais
compreendem a Constituição como garantia, enquanto os comunitários a enxergam enquanto
projeto. Habermas, com efeito, sublima as dimensões de garantia e de projeto da Constituição
em um modelo teórico que privilegia igualmente a defesa da autonomia privada e o exercício
da autonomia pública. 56
A relação interna entre autonomia pública e autonomia privada se traduz na
conexão intrínseca entre direitos humanos e soberania popular. Ao basear a legitimidade do
direito no processo político deliberativo, Habermas revela seu compromisso com a capacidade
de autodeterminação e de autorrealização ética de cidadãos plenamente autônomos, ao passo
que, ao instituir um procedimento como condição para a legitimidade da produção de normas,
revela, de outro lado, compromisso com a inviolabilidade dos direitos e liberdades de
autodeterminação moral dos indivíduos. Neste processo de formação democrática da opinião
e da vontade, os destinatários individuais das normas jurídicas podem reconhecer a si próprios
como os autores racionais dessas normas. E, a conexão interna entre autonomia pública e
autonomia privada não pode ocorrer sem o estabelecimento de um sistema de direitos,
constituído pelos direitos que os cidadãos devem reconhecer a si mesmos caso queiram
regular legitimamente sua convivência através do direito positivo, de modo a não haver
direito legítimo sem as cinco categorias de direitos57
definidas por Habermas.
O sistema de direitos nada mais é que uma leitura contextual de princípios
universais de justiça, uma conformação concreta dos abstratos direitos humanos gerados em
discursos morais, que passam a estar inscritos nas Constituições históricas. Assim sendo, “em
mundos pós-convencionais, onde os indivíduos não integram sólidas comunidades étnicas ou
culturais, são as Constituições que, incorporando um sistema de direitos, podem conformar
uma ‘nação de cidadãos’” (CITTADINO, 2009, p.177). Precisamente a partir deste raciocínio,
Habermas formula a concepção de patriotismo constitucional58
enquanto modalidade pós-
56
Cf. CITTADINO (2009, p.181). 57
As cinco categorias de direitos que constituem necessariamente o sistema de direitos estão descritas nas
páginas 53-54, supra. 58
A respeito da utilização específica do vocábulo patriotismo, posiciona-se Antonio Cavalcanti Maia (2008,
p.180): “Essa forma específica de patriotismo – Verfassungspatriotismus – defendida por Habermas é bem
diferente de nossa ideia habitual desse conceito, chegando a ser quase contra-intuitiva. Isso ocorre porque ela
engloba um esforço de construção de uma ideia que desempenharia o papel de uma força motivadora,
funcionando como um vetor de fortalecimento da união de populações em sociedades pluralistas
contemporâneas, não respaldada em qualquer forma tradicional de apego relativo à região, à nação, ao território,
ao idioma ou à história comum. Recusa-se, assim, às construções que procuram estabelecer pertencimentos pré-
políticos como base essencial garantidora da solidariedade entre estranhos”. Diversamente do nacionalismo, o
patriotismo constitucional separa a ideia de uma nação de cidadãos da concepção pré-política de sujeitos que
71
convencional de conformação da integração social e da identidade coletiva de uma
comunidade de associados livres e iguais.
O desenvolvimento do conceito de patriotismo constitucional possibilitou um
modelo coerente de identificação política, ao mesmo tempo substituto do nacionalismo
tradicional59
baseado em um pertencimento étnico comum, e com caráter universalista,
ancorado nos princípios republicanos e nos direitos humanos. Esclarece Habermas (apud
MAIA, 2008, p.185):
Em um nível nacional, encontramos o que nos Estados Unidos é chamado de
“religião cívica” – um “patriotismo constitucional” que une todos os cidadãos
independentemente de seus antecedentes culturais ou heranças étnicas. Trata-se de
uma grandeza metajurídica, isto é, esse patriotismo é baseado na interpretação de
princípios constitucionais universais, reconhecidos dentro do contexto de uma
determinada história e tradição nacional. Tal lealdade constitucional, que não pode
ser imposta juridicamente, enraizada nas motivações e convicções dos cidadãos, só
pode ser esperada se eles entenderem o Estado Constitucional como uma realização
de sua própria história.
Nessa perspectiva, o Estado-nação é substituído por um Estado democrático de
direito que configura uma “nação de cidadãos” baseada numa cultura política comum: “(...)
não é necessário amarrar a cidadania democrática à identidade nacional de um povo; porém,
prescindindo da variedade de diferentes formas de vida culturais, ela exige a socialização de
todos os cidadãos numa cultura política comum” (HABERMAS, 2003b, p.289). Ao apontar o
patriotismo constitucional como forma de integração social geradora de solidariedade entre
estranhos, Habermas estabelece uma nova relação de tensão entre o universalismo de uma
comunidade jurídica igualitária e o particularismo de uma comunidade histórica de destino
compartilhado, e pretende identificar “nos princípios e nos sistema de direitos que integram as
Constituições democráticas uma forma solidária de integração social, capaz de assegurar o
primado do mundo da vida sobre os subsistemas mercado e poder administrativo”
(CITTADINO, 2009, p.180). Seguindo este raciocínio, conclui Habermas (2002, p.165): “essa
leitura do republicanismo, feita segundo os princípios da teoria da comunicação, é mais
compartilham da mesma linguagem e da mesma cultura. Essa forma de patriotismo reconhece igual valor a todas
as formas de vida e está comprometido com a inclusão das minorias na república. 59
A ambivalência entre universalismo e particularismo só pode se harmonizar com o ideal de um Estado
democrático enquanto a interpretação etnocêntrica de uma nação integrada e homogênea ceder em prol de um
conceito não naturalista de nação, o qual se amolda perfeitamente a uma autocompreensão universalista do
Estado democrático de direito. Em lúcida crítica à ideia tradicional de nação, adverte Habermas (2002, p. 139):
“a ideia de nação serviu muito menos para fortalecer as populações em sua lealdade ao Estado constitucional do
que para mobilizar as massas em favor de objetivos que dificilmente se podem harmonizar com princípios
republicanos”.
72
apropriada do que uma visão etnonacionalista, ou mesmo comunitarista dos conceitos de
nação, Estado de direito de democracia”.
Compreendida a concepção de Constituição como procedimento e de
patriotismo constitucional como forma de integração social e de criação de vínculos políticos
entre cidadãos integrantes de uma mesma sociedade pluralista, passe-se adiante à análise do
papel e da legitimidade da jurisdição constitucional de uma sociedade pluralista, vista sob o
viés do procedimentalismo habermasiano e da teoria da argumentação de Robert Alexy – duas
discrepantes visões sobre a aplicação da teoria do discurso a uma teoria do controle de
constitucionalidade das leis.
3.3. O papel e a legitimidade da jurisdição constitucional nas sociedades pluralistas
Na linha de uma teoria discursiva do Estado de direito democrático, o
sistema de direitos pressupõe uma organização com poder de sanção, para impor respeito às
normas jurídicas legitimamente estatuídas. A partir daí surge o Estado, como instância central
autorizada a agir em nome do todo, detentora do poder de emprego legítimo da coerção, com
o fim de garantir a identidade coletiva juridicamente organizada.
O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque
os direitos têm que ser implantados, porque a comunidade de direito necessita de
uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a
formação da vontade política cria programas que têm que ser implementados
(HABERMAS, 2003a, p.171).
Enquanto o poder político é institucionalizado mediante o código do direito,
normas secundárias de organização do Estado criam a divisão dos poderes segundo a
diferenciação das funções estatais destinadas a retroligar o exercício do poder político ao
poder comunicativo dos cidadãos. Ao passo que o legislativo fundamenta e vota programas
gerais de ação e a administração implementa leis que necessitam de execução, a jurisdição
“elabora o direito vigente sob o ponto de vista normativo da estabilização de expectativas de
comportamento” (HABERMAS, 2003a, p.232), ao decidir no caso concreto sobre a aplicação
do direito a conflitos de ação. A lógica da divisão dos poderes, logo, induz a uma cooperação
funcional voltada à institucionalização do poder político conforme a forma jurídica.
Haja vista sua peculiar posição na ordem estatal, os tribunais são revestidos
de certas características específicas. Cabe-lhes a aplicação do direito vigente (legítima e
faticamente) para a estabilização de expectativas de comportamento, e ainda a jurisdição
73
constitucional, realizada através do controle de constitucionalidade das leis e dos atos
administrativos, tanto por um órgão especial quanto difusamente pelo judiciário. O
compromisso político fundamental assumido na Constituição, onde estão consagrados os fins
coletivamente perseguidos por uma comunidade jurídica particular, é resguardado, assim,
mediante a comparação abstrata a priori entre o texto legal e o texto constitucional, técnica
esta decorrente do princípio da supremacia hierárquica da Constituição no ordenamento
jurídico.
Para o desempenho regular da função judiciária, aos tribunais é garantida a
imparcialidade e cobrada a racionalidade das decisões. À justiça independente cabe aplicar o
direito de modo a garantir simultaneamente a segurança do direito e a aceitabilidade racional
das decisões judiciais. Por conta da blindagem conferida pela exigência de imparcialidade, os
tribunais despontam de uma posição peculiar dentro da sistemática estatal, definida como
contra-majoritária.
O legislativo funciona segundo a regra da maioria; é eminentemente a
instância majoritária: preocupa-se com números, não com argumentos. Sua atuação está
envolvida pela barganha e pela disputa de posições políticas60
que representam segmentos
específicos da sociedade, em detrimento do interesse das minorias. Em contrapartida, os
tribunais são revestidos da garantia de imparcialidade, com o intuito de imunizá-los das
disputas políticas tradicionalmente reservadas às instituições majoritárias, e do encargo da
formulação de suas decisões com base em justificativas razoáveis, conferindo-lhes o caráter
da racionalidade, pelo qual os tribunais estarão orientados ao consenso argumentativo no
momento da decisão, e não às negociações61
segundo interesses capazes de se impor nos
fóruns de debate público. Tendo em vista a formação discursiva da opinião e da vontade, o
judiciário é a instância pública mais apta aos discursos orientados ao entendimento sobre
questões éticas e morais relevantes, pois preenche os requisitos essenciais da situação ideal de
discurso: racionalidade dos argumentos e liberdade e imparcialidade dos partícipes.
Por isso ressalta-se, na perspectiva de uma concepção deliberativa de
democracia, o papel fundamental dos tribunais para a garantia dos interesses das minorias, na
forma de direitos e garantias legais e constitucionais. Os tribunais recebem o encargo de
interpretar as leis e os princípios constitucionais de modo a assegurar a mais justa e razoável
60
FEREJOHN; PASQUINO (2009, p.47-49). “Os cidadãos, na maioria das democracias, esperam que os
partidos políticos deixem claro algum tipo de programa ou metas que explicariam ou justificariam o programa
político que estes buscarão implementar caso sejam eleitos”. 61
Ver a distinção entre discursos e negociações em Habermas, 2003a, p. 221-232. As questões de repercussão
pública, cujos interesses são generalizáveis, não podem ser resolvidas por negociações.
74
aplicação do direito, através de decisões devidamente motivadas que possam obter
aceitabilidade racional por parte de seus destinatários e demais envolvidos, conforme os
princípios procedimentais de legitimidade do exercício do poder na democracia deliberativa.
Entretanto, comumente se questiona a legitimidade dos juízes para
intervirem em questões políticas que tradicionalmente competem aos órgãos eleitos: a
administração e o legislativo. Os tribunais, não obstante, são frequentemente apontados como
portadores de uma legitimidade sui generis para atuar como representantes da sociedade,
inclusive das minorias étnicas, culturais, religiosas, e das classes marginalizadas das
instituições majoritárias.
3.3.1. Legitimidade discursiva dos tribunais: deliberação e fundamentação
A deliberação e a fundamentação racional são fontes indiretas de legitimidade
democrática. Diferentemente do que acontece com os poderes democraticamente eleitos, os
tribunais não são compostos por representantes escolhidos diretamente pelos cidadãos no
processo democrático. A legitimidade de sua atuação remonta à prática de argumentação nos
fóruns públicos, pelas quais os juízes lançam mão de argumentos constitucionais, legais e
morais, mantendo a coerência do sistema jurídico, em busca do convencimento segundo a
resgatabilidade racional dos motivos expostos, substituindo, deste modo, o voto eletivo por
argumentos que podem ser compreendidos e acolhidos como as nossas próprias razões para
agir. Uma decisão judicial é legítima na medida em que puder ser objeto de assentimento
racional por parte de seus destinatários, que devem aceitá-la em um sentido normativo como
seus próprios motivos. “A deliberação e a fundamentação racional são, assim, modos pelos
quais as instituições não democráticas podem proceder para convencer o povo a apoiarem
suas decisões” (FEREJOHN; PASQUINO, 2009, p. 49).
As cortes, portanto, vão além de simplesmente tornar públicas suas decisões,
justificando-as com base em argumentos que possam ser acolhidos pelos sujeitos de direito,
aduzindo boas razões para a obediência de seus mandamentos, preenchendo a expectativa de
que o agir público foi conduzido segundo critérios de deliberação pública racional. O agir
público dos tribunais cria, portanto, a expectativa de fundamentação decorrente do aspecto
democrático,
pois os juízes (a maior parte deles) não foram eleitos e os argumentos sustentados
em suas decisões – especialmente quando se trata de argumentos que se
fundamentam em atos concretos de instituições que tenham sido eleitas – podem
75
prover uma justificativa indiretamente democrática para os atos públicos. E mesmo
quando não se consegue traçar o vínculo entre as deliberações jurídicas e os atos
legislativos, se estas estão enraizadas em princípios morais e constitucionais que
fundamentam o regime democrático ou que são pressupostos democraticamente pela
população, a argumentação jurídica pode ser compreendida como democrática, de
modo indireto ou transitivo (FEREJOHN; PASQUINO, 2009. p. 45).
A decisão judicial, neste caso, funciona como desdobramento do princípio
democrático da soberania popular, na medida em que se pressupõe a concordância dos
cidadãos integrantes da comunidade jurídica com relação às razões expostas nos discursos
institucionalizados, ou, em outras palavras, a compatibilidade entre a motivação para o agir
das instituições e a expectativa normativa dos sujeitos participantes de discursos formadores
da opinião e da vontade na esfera pública informal. “Na linha da teoria do discurso, o
princípio da soberania do povo significa que todo o poder político é deduzido do poder
comunicativo dos cidadãos” (HABERMAS, 2003a, p. 213), num processo democrático
destinado a garantir um tratamento racional de questões políticas. Trata-se de um
fortalecimento das ramificações democráticas do Estado, uma vez que juízes com
competência deliberativa aumentam a autoridade do povo, ao representá-los
argumentativamente.62
A coerência do sistema jurídico é garantida por meio da argumentação
sistemática sobre princípios. O discurso jurídico define a relação entre segurança jurídica e
correção (relação transmutada da facticidade e validade para a hermenêutica jurídica),
desenvolve o potencial de racionalidade a nível institucional e insere o procedimento
argumentativo em uma teoria do Estado constitucional democrático, com a ressalva apontada
por Habermas (2003a, p. 220) de que os discursos jurídicos referem-se naturalmente ao direito
gerado legitimamente, e não apenas às normas jurídicas, pois inclui também argumentação
moral e pragmática.
A solução da tensão entre facticidade e validade que reaparece no nível do
Estado de direito na forma da tensão entre direitos fundamentais e democracia consiste em
uma práxis que una discursos institucionalizados e não institucionalizados:
Em um Estado constitucional democrático, no qual vige o preceito “todo poder
emana do povo”, a solução apenas pode consistir em que os argumentos do tribunal
constitucional e os discursos dos cidadãos também sejam associados factualmente;
só que esta associação também deve ser estendida a discursos institucionalizados,
nos quais se manifesta a vontade dos cidadãos formada democraticamente. Por fim,
trata-se da inserção da argumentação do tribunal constitucional no caminho total da
62 Cf. FEREJOHN; PASQUINO, 2009, p. 43-50.
76
“formação da opinião e da vontade: o informal e o institucionalizado” (ALEXY,
2009, p. 135).
O que se reivindica, portanto, é que os argumentos do Tribunal Constitucional
estejam de acordo com as razões dos cidadãos caso eles se engajassem em um discurso
jurídico-fundamental racional. Quando o processo de reflexão entre esfera pública,
legislador e Tribunal Constitucional se harmoniza, há uma institucionalização bem
sucedida de direitos humanos em um contexto democrático.
3.3.2. Jurisdição constitucional: representação argumentativa versus modelo
procedimental
A questão central aqui posta é saber se as Cortes Constitucionais podem ser
compreendidas como espaços de deliberação pública, abertos à participação dos
interessados em prol de uma práxis argumentativa racional e democrática.
Segundo Alexy (2005b, p.98), “o controle de constitucionalidade é a expressão
da superioridade ou prioridade dos direitos fundamentais frente à legislação parlamentar”,
sendo que a declaração de inconstitucionalidade implica que haja uma contradição entre uma
lei e uma norma constitucional. A atividade do tribunal tem um caráter argumentativo ou
discursivo, pois a exigência de fundamentação das decisões conduz a uma expectativa de
correção dos juízos normativos, como também um caráter institucional ou de autoridade, pois
o Tribunal não se limita a declarar algo, mas tem o poder de invalidar atos institucionais
legislativos. Porém, para estabelecer uma relação entre controle de constitucionalidade e
democracia, é necessário responder à pergunta “como se justifica o poder jurídico de um
tribunal constitucional para invalidar atos do parlamento” (ALEXY, 2005b, p.98), a qual
consiste na questão da legitimidade democrática do Tribunal Constitucional.
No cerne do debate sobre jurisdição constitucional, situa-se o problema do
equilíbrio entre a competência do tribunal e a do legislador. A propósito da tensão entre
jurisdição constitucional e legislação, aduz Alexy (2008, p.546):
Se a Constituição confere ao indivíduo direitos contra o legislador e prevê um
tribunal constitucional (também) para garantir esses direitos, então, a atividade do
tribunal constitucional no âmbito da legislação que seja necessária à garantia desses
direitos não é uma usurpação inconstitucional de competências legislativas, mas
algo que não apenas é permitido, mas também exigido pela Constituição.
77
A reserva do controle de constitucionalidade dos atos legislativos a uma corte
especializada cria o ônus da necessidade de legitimação dos atos das Cortes Constitucionais,
as quais são responsáveis, em certa medida, pela atividade legislativa. Para tanto, os tribunais,
que lidam com expectativas deliberativas, devem formular suas decisões com base em
justificativas razoáveis. Na linguagem de Rawls (2000), as Cortes possuem caráter
deliberativo exemplar, isto é, espera-se que elas forneçam razões e justificativas para suas
decisões coercitivas: “o papel do tribunal não é meramente defensivo, mas também o de dar
existência apropriada e contínua à razão pública, ao servir de exemplo institucional”
(RAWLS, 2000a, p.286). Deste modo, o binômio deliberação/fundamentação constitui um
aspecto essencial da jurisdição constitucional.
Na teoria de Alexy, há espaço para a reconciliação entre controle de
constitucionalidade e democracia: mesmo que aquele não conte com uma legitimação
democrática direta, pode ser considerado como uma forma de representação do povo. A
representação do povo no Tribunal é puramente argumentativa. Para Alexy, um modelo
democrático adequado de representação deve necessariamente incluir a argumentação, o que
significa que a democracia se torna deliberativa.63
O conceito de representação argumentativa contém uma dimensão ideal,
vinculada às regras do discurso prático racional,64
pelo que “a representação expressa
necessariamente uma pretensão de correção65
” (ALEXY, 2005b, p.101). A pretensão de que
as decisões dos tribunais são corretas induz à expectativa de que um número suficiente de
pessoas aceitarão, em longo prazo, os argumentos esposados. Há, portanto, duas condições
63
“A democracia deliberativa é um esforço para institucionalizar o discurso como meio para a tomada pública de
decisões, tanto quanto seja possível” (ALEXY, 2005b, p. 100). 64
Sobre as regras gerais do discurso prático e as regras específicas do discurso, ver ALEXY, 2005b, p.61: “Um
discurso prático é racional na medida em que se cumpram as condições da argumentação prática racional. Estas
condições podem se dividir em dois grupos. As condições do primeiro grupo formulam regras que também são
válidas para qualquer argumentação prática racional, independentemente da teoria do discurso. Entre elas
figuram a não contradição, a universalizabilidade, no sentido do uso coerente dos argumentos empregados, a
clareza linguístico-conceitual, a verdade empírica, a consideração das consequências e a ponderação. Essas
regras valem também para monólogos. Para a teoria do discurso como teoria da justiça têm importância crucial
as regras específicas do discurso. Estas tem um caráter não monológico. As mais importantes dispõem: 1. Quem
pode falar pode tomar parte no discurso. 2.(a) Qualquer um pode questionar qualquer afirmação; (b) qualquer um
pode introduzir qualquer afirmação no discurso; (c) qualquer um pode expressar suas opiniões, desejos e
necessidades. 3. Não se pode impedir nenhum falante, mediante coação interna ou externa ao discurso, de
exercer seus direitos estabelecidos em (1) e (2)”. 65
O conceito de pretensão de correção é crucial para o empreendimento jusfilosófico de Alexy. De acordo com a
ideia de correção, o direito formula necessariamente uma pretensão de fundamentabilidade, que redunda em um
dever geral e básico de fundamentação. A pretensão de fundamentabilidade, por sua vez, gera a expectativa de
que todos os destinatários da pretensão reconheçam a norma jurídica como correta. Conferir ALEXY, 2005a,
p.35.
78
fundamentais para a existência de uma verdadeira representação argumentativa: a) a
existência de argumentos corretos ou razoáveis e b) a existência de pessoas racionais
dispostas a aceitar tais argumentos. E nesse sentido, conclui Alexy (2005b, p.102):
O constitucionalismo discursivo, como um todo, é um empreendimento para
institucionalizar a razão e a correção. Se existem argumentos corretos e razoáveis,
assim como, também, pessoas racionais, a razão e a correção estarão mais bem
institucionalizadas mediante o controle de constitucionalidade do que sem dito
controle.
O Tribunal Constitucional, se e quando realiza uma correta representação
argumentativa, pode ser visto como instância de reflexão do processo político, de forma que o
vínculo entre os representados e representantes institucionaliza os direitos fundamentais no
Estado Constitucional Democrático. No pensamento de Alexy, é a categoria da representação
argumentativa que confere a legitimidade do Tribunal Constitucional para decidir acerca de
questões jurídicas dotadas de alto teor político.
Algumas críticas podem ser aduzidas ao modelo de representação
argumentativa e seu suposto potencial legitimatório. Dentre as mais significativas, destacam-
se as objeções de Jürgen Habermas quanto a um modelo substancial de jurisdição
constitucional, ao qual ele contrapõe um modelo puramente procedimental,66
cujo papel
consiste basicamente em proteger os procedimentos democráticos necessários à livre
formação da opinião e da vontade políticas na esfera pública. Isso significa que, para
Habermas, o papel do Tribunal Constitucional é “tutelar o procedimento democrático e a
forma deliberativa da formação política da opinião e da vontade” (BOTELHO, 2010, p.210),
pois, se assim não for, o tribunal corre o risco de assumir o papel paternalista de regente da
sociedade, tomando decisões que originariamente devem ser tomadas pelos cidadãos comuns,
no âmbito do processo político democrático em uma esfera pública inclusiva e autônoma.
Nesse diapasão, que se contrapõe à noção alexyana de representação argumentativa, à Corte é
vedado “criar” o direito, cabendo-lhe apenas aplicá-lo, razão pela qual a fundamentação
66
“O tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública
dos cidadãos. O esquema clássico da separação e da interdependência entre os poderes do Estado não
corresponde mais a essa intenção, uma vez que a função dos direitos fundamentais não pode mais apoiar-se em
concepções sociais embutidas no paradigma do direito liberal, portanto não pode limitar-se a proteger os
cidadãos naturalmente autônomos contra os excessos do aparelho estatal. (...) Por isso, o tribunal constitucional
precisa examinar os conteúdos de normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos
comunicativos e condições procedimentais do processo de legislação democrático. Tal compreensão
procedimentalista da constituição imprime uma virada teórico-democrática ao problema da legitimidade do
controle jurisdicional da constituição” (HABERMAS, 2003a, p.326).
79
normativa deve ser deixada para o âmbito do processo legislativo.67
Habermas (2003a, p.306)
alerta sobre o risco de intervenções em competências legislativas para as quais a jurisdição
não possui legitimação democrática: “no interior do sistema de direito, ela [intervenção]
significa um crescimento de poder para a justiça e uma ampliação do espaço de decisão
judicial, que ameaça desequilibrar a estrutura de normas do Estado clássico de direito”.
Tais objeções teóricas chamam a atenção para um aprimoramento da noção de
representação argumentativa. Segundo Habermas, deve haver cautela por parte do Tribunal
Constitucional ao intervir nas resoluções legislativas, principalmente quando o controle da
racionalidade não se referir aos procedimentos de fundamentação, mas aos argumentos
substanciais. “Perante o legislador político, o tribunal não pode arrogar-se o papel de crítico
da ideologia; ele está exposto à mesma suspeita de ideologia e não pode pretender nenhum
lugar neutro fora do processo político” (HABERMAS, 2003a, p. 343). A suspeita de
neutralidade do juiz poderia ser respondida ressaltando o caráter contramajoritário da
jurisdição constitucional. Numa democracia, onde vigora a regra da maioria, sempre há o
risco de o Legislativo, representando as maiorias, erodir direitos fundamentais ou desrespeitar
os pressupostos procedimentais de deliberação democrática. O remédio da jurisdição
constitucional sugere que ela “está claramente mais próxima de ideais discursivos que o
processo político” (ALEXY, 2007, p.36).
No entanto, tendo em vista as críticas formuladas por Habermas, percebe-se
que a representação argumentativa, por si só, é insuficiente para conferir a legitimação
democrática pretendida para os tribunais constitucionais. A exigência de fundamentação das
decisões judiciais não torna a Corte mais democrática, se não houver abertura à sociedade de
intérpretes. Enquanto os legisladores submetem-se ao controle da coletividade através do
processo eleitoral, somente a abertura da Corte à práxis argumentativa (através da
possibilidade de participação dos interessados no processo de construção da interpretação
constitucional) pode tornar a exposição pública de razões um objeto do controle da
coletividade. Deriva, pois, da noção habermasiana de jurisdição constitucional uma
necessidade da:
abertura da Corte Constitucional à participação dos interessados, com a fomentação
de uma ampla circulação de informações e argumentos, atuando o Tribunal como
garantidor do desenvolvimento harmônico dessa rede de liberdade comunicativas
capaz de levar a construção de uma decisão fundamentada unicamente na força do
melhor argumento (BOTELHO, 2010, p.212).
67
Cf. BOTELHO, 2010, p. 208.
80
Por via da abertura à participação popular, um canal direto de comunicação
entre tribunal e sociedade civil poderá ser estabelecido, de modo que uma genuína
representação popular argumentativa venha a ser possível. A hipótese defendida neste estudo
é de que a representação argumentativa pressupõe a abertura à participação popular no
controle de constitucionalidade. Assim, vale a fórmula (ainda hipotética) segundo a qual a
legitimação da jurisdição constitucional pode ser obtida mediante a combinação de
representação argumentativa e abertura à participação.
Ambas as condições devem ser preenchidas para fins de legitimação da
autoridade da tomada de decisões políticas pelos Tribunais Constitucionais. Isso conduz, no
nível teórico, a uma integração entre os conceitos de representação argumentativa de Robert
Alexy e de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição de Peter Häberle.
Häberle (1997, p.13) define a sociedade aberta de intérpretes a partir da
seguinte tese:
no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos
os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não
sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de
intérpretes da Constituição.
Segundo essa noção hermenêutica inclusiva, todo aquele68
que vive no
contexto regulado por uma norma é, indireta ou diretamente, intérprete desta; em uma
sociedade pluralista, habitada por diversos grupos de interesses e identidades culturais
específicas, tanto mais abertos devem ser os critérios de interpretação quanto mais
diversificada ela for. A concepção de sociedade aberta traz importantes consequências para a
hermenêutica constitucional, sobretudo a integração da realidade ao processo constitucional.
O juiz não interpretará isoladamente, antes apoiado por colaboradores retirados dentre todas
as forças públicas da esfera pública pluralista, que passa a ter força normatizadora. Ditas
consequências revelam uma radical influência da teoria democrática na hermenêutica
constitucional, através da qual pode ser obtida a legitimidade democrática de uma jurisdição
que exerce representação argumentativa: “uma ótima conformação legislativa e o refinamento
interpretativo do direito constitucional processual constituem as condições básicas para
68
Dentre os potenciais participantes da interpretação, Häberle inclui sistematicamente, no capítulo II: 1) as
funções estatais; 2) participantes dos processos de decisão que não são órgãos do Estado (exemplos: autor e réu,
terceiros interventores, peritos, pareceristas); 3) a opinião pública democrática e pluralista e 4) doutrina
constitucional. Ver HÄBERLE, 1997, p. 20-23.
81
assegurar a legitimação da jurisdição constitucional no contexto de uma teoria de democracia”
(HÄBERLE, 1997, p.49). Para tanto, exige-se o aperfeiçoamento de mecanismos e
procedimentos de inclusão dos interessados no processo constitucional, mediante
instrumentos de informação dos juízes, tais como audiências públicas, amicus curiae e
intervenções.
Em síntese: somente mediante um processo institucionalizado de reflexão
estabelecido entre sociedade civil e Tribunal Constitucional ocorrerá uma representação
argumentativa com vistas a legitimar a atuação da jurisdição constitucional num nível
político. Sabendo-se que as democracias atuais, da modernidade tardia, tratam-se de
sociedade pluralistas, onde coexistem diversos grupos com identidades sociais e culturais
conflitantes, bem como indivíduos com as mais diversas visões acerca da vida digna e de
como orientar seus planos segundo suas concepções pessoais, é necessária a inclusão desses
mais variados pontos de vista nos processos constitucionais. Somente assim será
incrementada a racionalidade nas deliberações do Tribunal e a representação da sociedade
civil pluralista por parte do Tribunal Constitucional, o que consiste num modo de fortalecer o
princípio da soberania do povo e ao mesmo tempo de salvaguardar os direitos humanos, na
medida em que se oriente o processo de decisão pública segundo uma teoria do discurso.
82
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos diante do fenômeno do pluralismo social, cultural e ideológico, que
marca a sociedade democrática em que vivemos. Toda discussão acerca da justiça, do direito
e das instituições político que regem uma democracia devem ser empreendidas levando-se em
conta o fato do pluralismo. Não é de outro modo a controvérsia que se dá entre liberais e
comunitaristas na filosofia política. A concepção de pluralismo influencia decisivamente o
modelo teórico a partir do qual cada corrente filosófica pretende articular o ideal de uma
sociedade democrática justa e cooperativa com instituições igualmente justas. Tanto a
garantia da autonomia privada do indivíduo quanto a exigência da autonomia pública das
diversas identidades sociais e culturais culminam em distintas teorias da justiça e distintas
compreensões acerca do papel do direito em uma sociedade plural.
Enquanto os liberais descrevem as democracias modernas como espaços onde
coexistem distintas concepções individuais acerca do bem, enfatizando assim a existência de
direitos humanos do indivíduo com sentido deontológico que permitam a cada um orientar o
agir conforme sua própria convicção e seu projeto pessoal de vida, os comunitaristas, por
outro lado, ressaltam a multiplicidade de identidades sociais e de culturas linguísticas, étnicas
e religiosas presentes nas sociedades contemporâneas, defendendo a ativa participação do
povo soberano no processo político de afirmação dos valores coletivos, rumo ao
estabelecimento de um consenso ético. Acreditando ser possível integrar as duas dimensões
de pluralismo em um só modelo teórico, Habermas advoga por uma teoria do discurso do
sistema dos direitos que concilie autonomia pública e autonomia privada, isto é, que evidencie
a co-originariedade da soberania popular e dos direitos humanos, de forma que ambos se
pressuponham mutuamente.
Os direitos humanos e a democracia (entendida sob a ótica do princípio da
soberania popular) são conceitos centrais para o debate ora exposto. Neste trabalho, assume-
se a posição – sujeita a controvérsias – de que direitos humanos são direitos com conteúdo e
natureza moral, de origem supraestatal, não destinados à pessoa enquanto membro de um ente
público concreto, mas antes como membro de uma comunidade mais ampla, ilimitada no
espaço e transcendente das fronteiras políticas e nacionais que marcam a divisão geopolítica
do mundo moderno. Tal posição que compreende os direitos humanos como direitos morais
nos aproxima, neste aspecto, mais à teoria discursiva de Robert Alexy do que a de Jürgen
83
Habermas, pois este filósofo assinala que os direitos humanos têm um caráter especificamente
jurídico, embora mantenham o sentido da validade universal. Os direitos fundamentais, por
sua vez, constituem uma concretização dos princípios universais de direitos humanos,
abstratos e ainda não imersos em um mundo da vida cultural. Os direitos humanos deixam de
ser apenas parte da moral jurídica universal e passam a integrar a Constituição, obrigando a
atuação – positiva ou negativa – dos poderes públicos, convertendo-se agora em elementos do
direito positivo de uma comunidade jurídica particular.
A teoria do discurso, desenvolvida no âmago da filosofia por Jürgen Habermas,
e especificamente na filosofia do direito por Robert Alexy, filia-se ao paradigma pós-
positivista e reconstrói os direitos humanos sob uma nova linha de legitimação, não apoiada
em categorias abstratas e essencialmente idealizadas, mas, ao invés disso, com base no agir
comunicativo e na sua corporificação concreta mediante o uso da linguagem. O direito passa a
ser compreendido como um processo de construção cultural, cuja legitimidade é apontada por
meio do assentimento racional dos seus destinatários acerca de assertivas normativas
criticáveis, construtivamente. A teoria do discurso se contenta com um modelo procedimental
de legitimação, ancorado nas estruturas comunicativas que permitem o alcance do consenso
através do discurso, pois delinear princípios com conteúdo excede a competência de um
filósofo moral “procedimentalista”; este deve tão somente estabelecer as condições sob as
quais as normas são procedimentalmente corretas, pois as normas materiais são assunto do
homem comum participante dos discursos. O êxito do discurso depende precisamente do êxito
da legitimação, e entende-se bem-sucedida a legitimação baseada em argumentos que podem
ser confirmados por todos e qualquer um, em situações hipotéticas de discursos racionais.
Adota-se, de outro lado, um conceito deliberativo de democracia. Tanto o
liberalismo quanto o comunitarismo sugerem modelos imperfeitos de democracia: um prioriza
excessivamente a dimensão da proteção da autonomia privada através de liberdades pré-
políticas, enquanto o outro privilegia desmesuradamente a autonomia pública ancorada em
um ethos homogêneo de uma comunidade pretensamente bem integrada e pronta para
alcançar um consenso ético. Ao contrário, buscando sintetizar ambas as posições como
equiprimordias, Habermas desenvolve seu modelo de democracia deliberativa, no intuito de
associar autonomia pública e autonomia privada dentro de um sistema democrático coerente.
Ideais políticos como o bem comum e a própria democracia, no sentido da tomada de decisões
políticas fundamentais revestidas do aspecto de normas jurídicas, não são possíveis sem um
processo institucional (e mesmo informal) aberto, que garanta a participação de todos os
pontos de vista da sociedade pluralista, em especial das minorias estruturais. Nesse processo,
84
os atores sociais cumprem um duplo papel: de autores e destinatários das normas do direito.
Para a promoção da diversidade, e para o deslinde eficaz das políticas de reconhecimento, tem
de haver um nexo conceitual entre pluralismo e democracia deliberativa – modelo
democrático presidido pela ética do discurso, conexão ideal entre política e fundamentação
ética do exercício do poder.
A teoria do discurso, além de possuir características universalistas,
cognitivistas e deontológicas, apresenta-se como formalista, já que designa um procedimento
através do qual um conflito de ação moralmente relevante pode ser julgado imparcialmente,
sendo que os conflitos morais serão julgados pelos próprios interessados a partir de embates
surgidos da própria vida social. Sua consequência necessária é a institucionalização de um
sistema de direitos a partir do exercício comunicativo concomitante da autonomia pública e da
autonomia privada dos cidadãos. O modo como autonomia privada e pública se entrelaçam na
formação discursiva da opinião e da vontade acarreta um sistema jurídico estruturado
comunicativamente, no qual o princípio da democracia toma a feição da interligação entre
princípio do discurso e forma jurídica. Tal é, para Habermas, a gênese lógica de direitos:
começa com a aplicação do princípio do discurso, segundo liberdades subjetivas iguais de
ação, termina com a institucionalização jurídica de condições para o exercício da autonomia
política. Deste modo, retrospectivamente, num processo circular que se retroalimenta, as
liberdades subjetivas de ação produzem o direito legítimo e este define a forma jurídica da
autonomia privada. As condições procedimentais de institucionalização do direito legítimo
culminam em um sistema de direitos que deve conter precisamente os direitos que os cidadãos
são obrigados a atribuir-se reciprocamente, caso queiram regular legitimamente a sua
convivência com os meios do direito positivo.
A co-originariedade entre autonomia privada e pública existe no nível da teoria
do discurso, na medida em que os sujeitos do direito compreendem-se como autores e
destinatários de um modelo de autolegislação que pressupõe os direitos humanos como
condições formais da institucionalização jurídica da vontade política discursivamente
formada, na qual soberania do povo se converte em direito legítimo.
Somente quando os conflitos resultam juridicamente delimitados por um
procedimento é que podem assumir seu papel positivo de integração social, conduzindo a uma
concepção pluralista da Constituição, frequentemente atualizada e renovada por novos
consensos gerais. Em espaços marcados por conflitos morais acentuados, a integração social
só pode ser obtida mediante normas de direito positivo, pois nos desacordos morais não há
uma base comumente aceita e reconhecida de costumes suficiente para fomentar a
85
convivência democrática. Neste sentido, as regras do procedimento jurídico devem ser objeto
de um consenso democrático fundamental, acordadas, obedecidas e legitimadas por todos,
reconhecidos estes como membros livres e iguais na formação do direito. No atual marco do
pluralismo social e cultural, a coexistência de uma multiplicidade de doutrinas ideológicas,
religiosas e filosóficas sob uma mesma ordem constitucional, instaura na sociedade política
conflitos que sugerem o abandono do modelo de “Estado-nação” pelo de “Estado pós-
nacional”. A resolução destes conflitos pode ocorrer pelas vias democráticas do discurso – e é
aí que a democracia deliberativa possui relevância, pelo seu projeto de fomentar um consenso
normativo entre posições políticas divergentes, mas que compartilham do mesmo interesse em
obter soluções razoáveis para os dilemas apresentados como riscos para a estabilidade social;
do contrário, tais conflitos, que outrora cumpririam um papel social positivo, podem acabar
resultando em práticas constantes de violência – física ou psíquica – ou outras formas de
desenvolvimento não democrático do potencial conflitivo.
No Estado democrático de direito, abrigado por uma sociedade pós-
convencional, a Constituição surge como um sistema de definição de procedimentos para a
solução de conflitos morais, éticos e de interesse. Nessa perspectiva, o Estado-nação é
substituído por um Estado democrático de direito que configura uma “nação de cidadãos”
baseada numa cultura política comum. Ao apontar o patriotismo constitucional como forma
de integração social geradora de solidariedade entre estranhos, Habermas estabelece uma
nova relação de tensão entre o universalismo de uma comunidade jurídica igualitária e o
particularismo de uma comunidade histórica de destino compartilhado, e pretende identificar
nos princípios e nos sistemas de direitos que integram as Constituições democráticas uma
forma solidária de integração social. Compreendida a Constituição como procedimento e o
patriotismo constitucional como forma de integração social e de criação de vínculos políticos
entre cidadãos integrantes de uma mesma sociedade pluralista, é preciso analisar a
interpretação constitucional, através da legitimidade da atuação dos tribunais constitucionais e
do papel da jurisdição constitucional numa sociedade pluralista, que tende a judicializar seus
conflitos básicos.
Para estabelecer uma conexão intrínseca entre jurisdição constitucional e
democracia, se reivindica que os argumentos do Tribunal Constitucional estejam de acordo
com as razões dos cidadãos caso eles se engajassem em um discurso jurídico-fundamental
racional. Quando o processo de reflexão entre esfera pública, legislador e Tribunal
Constitucional se harmoniza, há uma institucionalização bem sucedida de direitos humanos
em um contexto democrático. A hipótese defendida neste estudo é de que a representação
86
argumentativa pressupõe a abertura à participação popular no controle de constitucionalidade.
Assim, vale a fórmula (ainda hipotética) segundo a qual a legitimação da jurisdição
constitucional pode ser obtida mediante a combinação de representação argumentativa e
abertura à participação. Ambas as condições devem ser preenchidas para fins de legitimação
da autoridade da tomada de decisões políticas pelos Tribunais Constitucionais. Isso conduz,
no nível teórico, a uma integração entre os conceitos de representação argumentativa de
Robert Alexy e de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição de Peter Häberle.
(Também neste aspecto, nos aproximamos mais da teoria discursiva de Alexy do que da visão
procedimentalista de Habermas).
Em síntese: somente mediante um processo institucionalizado de reflexão
estabelecido entre sociedade civil e Tribunal Constitucional ocorrerá uma representação
argumentativa com vistas a legitimar a atuação da jurisdição constitucional num nível
político. Sabendo-se que as democracias atuais, da modernidade tardia, tratam-se de
sociedade pluralistas, onde coexistem diversos grupos com identidades sociais e culturais
conflitantes, bem como indivíduos com as mais diversas visões acerca da vida digna e de
como orientar seus planos segundo suas concepções pessoais, é necessária a inclusão desses
mais variados pontos de vista nos debates democráticos do espaço público, e inclusive nos
processos constitucionais institucionalizados. Somente assim será incrementada a
racionalidade nas deliberações do Tribunal e a representação da sociedade civil pluralista por
parte do Tribunal Constitucional, o que consiste num modo de fortalecer o princípio da
soberania do povo e ao mesmo tempo de salvaguardar os direitos humanos, na medida em que
se oriente o processo de decisão pública segundo uma teoria do discurso.
87
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. “Direitos fundamentais no Estado Constitucional Democrático: para a
relação entre direitos do homem, direitos fundamentais e jurisdição constitucional”. Revista
de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 217: 55-66, jul./set. 1999.
______________. La institucionalización de la justicia. Traducción de José A. Seonne,
Eduardo R. Sodero y Pablo Rodríguez. Granada: Editorial Comares, 2005a. (Tradução nossa).
______________. “Ponderación, control de constitucionalidad y representación”. In: Teoría
del discurso y derechos constitucionales. México: Distribuciones Fontamara, 2005b. p.89-
103. (Tradução nossa).
______________. Constitucionalismo discursivo. Trad.: Luís Afonso Heck. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2007.
______________. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad.: Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros Editores, 2008.
_____________. “Os direitos fundamentais e a democracia no paradigma procedimental do
direito de Juergen Habermas”. In: FRANKENBERG, Günther; MOREIRA, Luiz (org.).
Jürgen Habermas, 80 anos – Direito e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris,
2009. p. 119-139.
ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite. Pluralismo e Justiça: estudos sobre Habermas. São Paulo:
Edições Loyola, 2010.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. 2008.
Disponível em: www.georgemlima.xpg.com.br/barroso.pdf. Acesso em 03/11/2012.
BENHABIB, Seyla. “La democracia deliberativa y los dilemas multiculturales”. In:
BENHABIB, Seyla. Las reivindicaciones de la cultura: igualdad y diversidad en la era
global. 1ª ed. Buenos Aires: Editora Katz, 2006. p. 179-237. (Tradução nossa).
BOBBIO, Norberto. “Presente e futuro dos direitos do homem”. In: A Era dos Direitos, 4 º
Reimpressão. Trad.: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus,1992. p. 45-65.
BOTELHO, Marcos César. A legitimidade da jurisdição constitucional no pensamento de
Jürgen Habermas. São Paulo: Saraiva, 2010.
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia
constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
CORTINA, Adela. Ética mínima: introdução à filosofia prática. Trad.: Marcos Marcionilo.
São Paulo: Martins Fontes: 2009.
88
CUNNINGHAM, Frank. “Democracia deliberativa”. In: CUNNINGHAM, Frank. Teorias da
democracia: uma introdução crítica. Trad.: Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre:
Artmed: 2009.
DENNINGER, Erhard. “‘Segurança, diversidade e solidariedade’ ao invés de ‘liberdade,
igualdade e fraternidade’”. In: Revista brasileira de estudos políticos, nº 88. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2003.
___________________. “Derecho y procedimiento jurídico como engrenaje en una sociedad
multicultural”. In: GUTIÉRREZ, Ignacio Gutiérrez. Derecho constitucional para la
sociedad multicultural. Trad.: Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid, Editorial Trotta, 2005. p.
27-50.
___________________. “Chances de uma resolução pacífica de conflitos entre pessoas livres
e iguais: sobre a “utilidade” da teoria do discurso no direito interno e internacional”. In:
FRANKENBERG, Günther; MOREIRA, Luiz (org.). Jürgen Habermas, 80 anos – Direito e
Democracia. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2009. p. 43-57.
FEREJOHN, John; PASQUINO, Pasquale. “Tribunais constitucionais como instituições
deliberativas”. In: BIGONHA, Antonio Carlos Alpino; MOREIRA, Luiz (org.). Limites do
controle de constitucionalidade. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009. p. 41-63.
FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Edición de Antonio
de Cabo y Gerardo Pisarello. Madrid: Editorial Trotta, 2001. (Tradução nossa).
FORST, Rainer. “Jürgen Habermas: facticidade e validade”. In: FRANKENBERG, Günther;
MOREIRA, Luiz (org.). Jürgen Habermas, 80 anos – Direito e Democracia. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Júris, 2009. p. 179-193.
FRANKENBERG, Günther. “Teoria Crítica”. In: FRANKENBERG, Günther; MOREIRA,
Luiz (org.). Jürgen Habermas, 80 anos – Direito e Democracia. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Júris, 2009. p.1-17.
FRASER, Nancy. “Redistribuição, reconhecimento e participação: por uma concepção
integrada de justiça”. In: Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008. p. 167-189.
GOMES, Alexandre Travessoni. “A relação entre direito e moral: Kant e Habermas”. In:
FRANKENBERG, Günther; MOREIRA, Luiz (org.). Jürgen Habermas, 80 anos – Direito e
Democracia. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2009. p. 195-218.
GÜNTHER, Klaus. “Interpretações liberais e teórico-discursivas dos direitos humanos”.
In: FRANKENBERG, Günther; MOREIRA, Luiz (org.). Jürgen Habermas, 80 anos –
Direito e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2009. p. 219-237.
GUTIÉRREZ, Ignacio Gutiérrez. “Introducción: Derecho constitucional para la sociedad
multicultural”. In: GUTIÉRREZ, Ignacio Gutiérrez. Derecho constitucional para la
89
sociedad multicultural. Trad.: Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid, Editorial Trotta, 2007. p.
9-25. (Tradução nossa).
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos intérpretes da
Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da
Constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1997.
HABERMAS, Jürgen. “Lutas pelo reconhecimento no Estado democrático constitucional”.
In: TAYLOR, Charles. Multiculturalismo – examinando a política de reconhecimento.
Trad.: Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. p.125-164.
_________________. A constelação pós-nacional – ensaios políticos. Trad.: Márcio
Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.
_________________. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad.: George
Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2002.
__________________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I.
Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro: 2003a.
__________________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. 2.
Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b.
HOBSBAWM, Eric J.. A Era das Revoluções. 24 ed. Trad.: Maria Tereza Lopes Teixeira e
Marcos Penchel. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2009.
HÖFFE, Otfried. “Derechos humanos”. In: Derecho intercultural. Trad.: Rafael Sevilla.
Editora Gedisa: Barcelona, 2000. p. 163-213. (Tradução nossa).
KYMLICKA, Will. “Multiculturalismo liberal e direitos humanos”. In: In: Igualdade,
diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 217-243.
MAIA, Antonio Cavalcanti. Jürgen Habermas: filósofo do direito. Rio de Janeiro: Renovar,
2008.
MIRANDA NETTO, Fernando Gama de; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe.
“Representação argumentativa: fator retórico ou mecanismo de legitimação da atuação do
Supremo Tribunal Federal?”. In: Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI,
Fortaleza, jul. 2008, p.1345-1354.
RAWLS, John. “A ideia de razão pública”. In: RAWLS, John. O liberalismo político. Tr:
Dinah de Abreu Azevedo. Editora Ática: São Paulo, 2000a. p. 261-306.
90
____________. “A teoria da justiça como equidade: uma teoria política, e não metafísica”. In:
RAWLS, John. Justiça e Democracia. Org.: Catherine Audard. Trad.: Irene A. Paternot. São
Paulo: Martins Fontes, 200b. p.199-241.
ROBLES, Gregorio. Los derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid:
Editorial Civitas, 1992.
ROCKEFELLER, Steven C.. “Comentário”. In: TAYLOR, Charles. Multiculturalismo –
examinando a política de reconhecimento. Trad.: Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget,
1994. p.105-115.
ROSENFELD, Michel. “O constitucionalismo americano confronta o novo paradigma
constitucional de Denninger”. In: Revista brasileira de estudos políticos, nº 88. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003.
SANTOS, Boaventura de Souza. “Para uma concepção intercultural dos direitos humanos”.
In: Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 3-45.
SEOANE, José Antonio. “Presentación”. In: ALEXY, Robert. La institucionalizacción de la
justicia. Trad.: José A. Seoane et al. Granada: Editorial Comares, 2005. p. 01-15. (Tradução
nossa).
SILVA, Alexandre Garrido da. “Direitos humanos, Constituição e discurso de legitimação:
possibilidades e limites da teoria do discurso”. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.).
Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.
TAVARES, Quintino Lopes Castro. “Multiculturalismo”. In: Justiça e democracia: entre o
universalimo e o comunitarismo. São Paulo: Landy Editora, 2005. p. 89-124.
TAYLOR, Charles. “A política de reconhecimento”. In: TAYLOR, Charles.
Multiculturalismo – examinando a política de reconhecimento. Trad.: Marta Machado.
Lisboa: Instituto Piaget, 1994. p.45-94.
WOLF, Susan. “Comentário”. In: TAYLOR, Charles. Multiculturalismo – examinando a
política de reconhecimento. Trad.: Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. p.95-104.