BETO E BARRIGUDO artigo

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“BETO É BARRIGUDO”: OS USOS DA FOTOGRAFIA COMO PROTOCOLO DE LEITURA SANITARISTA NA CARTILHA DE ALFABETIZAÇÃO DO MOVIMENTO BRASILEIRO DE ALFABETIZAÇÃO (1970 - 1985) José Maxsuel Lourenço Alves * Orientador: Iranilson Buriti de Oliveira Tóquio, 25 de julho de 1972. Iniciava-se a Terceira Conferência Internacional sobre a Educação de adultos - CONFITEA; nela, o então Ministro da Educação brasileiro, Jarbas Passarinho, falava aos representantes de mais de 80 países do “mais novo” e maior projeto de alfabetização de adultos desenvolvido no Brasil: o Movimento Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL. Do evento a delegação brasileira saiu com duas conquistas: um retorno ao Brasil, onde se poderia propagandear a sua atuação junto a um evento ligado a UNESCO e a promessa de uma investigação, in loco, de um grupo de especialistas no tema, para avaliar a atuação da Fundação (DI RICCO, 1979: 109). Neste evento o MOBRAL dava um salto, passou a ser conhecido oficialmente pela comunidade internacional e garantiu contatos que lhe possibilitariam ganhar prestigio e posição como o maior movimento de alfabetização de jovens e adultos que o Brasil teve até então; por conseguinte, o * Pesquisador bolsista do CNPQ, vinculado ao Programa de pós graduação em historia na Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. Membro do Grupo de Pesquisas História das Práticas e Discursos Médicos, e-mail: [email protected]. Professor Adjunto IV da Unidade Acadêmica de História e Geografia da UFCG. Pesquisador e bolsista do CNPq. Coordenador do Grupo de Pesquisas História das Práticas e Discursos Médicos.

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“BETO É BARRIGUDO”: OS USOS DA FOTOGRAFIA COMO PROTOCOLO DELEITURA SANITARISTA NA CARTILHA DE ALFABETIZAÇÃO DO MOVIMENTO

BRASILEIRO DE ALFABETIZAÇÃO (1970 - 1985)

José Maxsuel Lourenço

Alves*

Orientador: Iranilson Buriti de Oliveira†

Tóquio, 25 de julho de 1972. Iniciava-se a Terceira

Conferência Internacional sobre a Educação de adultos -

CONFITEA; nela, o então Ministro da Educação brasileiro,

Jarbas Passarinho, falava aos representantes de mais de 80

países do “mais novo” e maior projeto de alfabetização de

adultos desenvolvido no Brasil: o Movimento Brasileiro de

Alfabetização - MOBRAL. Do evento a delegação brasileira saiu

com duas conquistas: um retorno ao Brasil, onde se poderia

propagandear a sua atuação junto a um evento ligado a UNESCO e

a promessa de uma investigação, in loco, de um grupo de

especialistas no tema, para avaliar a atuação da Fundação (DI

RICCO, 1979: 109).

Neste evento o MOBRAL dava um salto, passou a ser

conhecido oficialmente pela comunidade internacional e

garantiu contatos que lhe possibilitariam ganhar prestigio e

posição como o maior movimento de alfabetização de jovens e

adultos que o Brasil teve até então; por conseguinte, o

* Pesquisador bolsista do CNPQ, vinculado ao Programa de pós graduação emhistoria na Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. Membro do Grupode Pesquisas História das Práticas e Discursos Médicos, e-mail:[email protected].† Professor Adjunto IV da Unidade Acadêmica de História e Geografia da UFCG.Pesquisador e bolsista do CNPq. Coordenador do Grupo de Pesquisas Históriadas Práticas e Discursos Médicos.

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governo Médici, que em certa medida possuía rachaduras em sua

imagem, por conta das denúncias de torturas e exílio de

estudantes, artistas, intelectuais, ativistas políticos

conseguia dar um primeiro passo na “limpeza” da reputação do

Brasil. Ora, com o MOBRAL ele apresentava-se, frente as mais

poderosas nações do Mundo, como preocupado com os mais pobres,

os brasileiros mais necessitados, como um governo que estaria

“cuidando” dos analfabetos do país.

Mas como a tecnoburocracia militar teria desenvolvido um

material didático tão eficiente? Como teriam largado as

granadas, canhões e flexões para combater com cartilhas,

lápis, borracha e papel? Para entendermos isso é necessário

conhecermos um fenômeno da primeira metade do século XX, o que

Nagle chamou de “entusiasmo pela educação”.

Nas décadas de 20 e 30 e mesmo antes, passaram a

circular algumas ideias, entre intelectuais e políticos, que

apresentavam a educação como o “bisturi” que arrancaria do

Brasil o “cancro” que era seu atraso. Para eles havia uma

contradição enorme: como um país tão grande e de natureza tão

rica poderia não ser desenvolvido? A quem atribuir a culpa por

este “defeito” nacional? Para responder a esta questão, eles

retomaram um debate dos intelectuais do fim do século XIX

colocando no brasileiro a culpa por tal mal, lendo-o como um

degenerado, um doente ( SCHWARCZ, 1993: 36 ), um

“microencefalo” para usarmos o vocabulário da época; enquanto

traziam para este problema uma nova solução: a educação.

Entre esses sujeitos, os médicos, ocupavam lugar

especial. Seus saberes os possibilitavam usar a doença como a

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metáfora do que pensavam sobre o Brasil e, portanto, permitiam

que diagnosticassem um Brasil doente e lhe receitasse como

remédios a educação sanitária (ROCHA, 1995). A esta caberia

tanto a realização de uma mudança nos hábitos dos brasileiros

( nas maneiras como limpavam seus corpos e alimentos, bem como

no que comiam e como o faziam, além das formas como pensavam a

vida, as doenças, os divertimentos, o trabalho), quanto na

maneira como gestavam seus corpos.

Nesse sentido a operação tinha duas linhas de atuação: 1°

Proposta defendida nas ultimas décadas do século XIX, apoiando

a introdução destes novos costumes de maneira mecânica, se

necessário forçada, através de intervenções que em sua maioria

ocorriam através dos mecanismos do Estado (MOTA, 2003). 2° Na

década de 20 em diante, A produção de saberes e discursos que

fizessem circular estas ideias de maneira “orgânica”, que

convencessem as pessoas a optarem por este novo ethos; e para

fazê-lo valiam-se dos jornais, revistas, posição política, do

Estado, etc. É neste segundo grupo que a educação está

colocada (BURITI, 2010; DÁVILA, 2007).

Deste modo, cabe-nos esclarecer a questão do entusiasmo.

O que estes intelectuais apresentavam era uma proposta onde a

educação seria a única saída para o desenvolvimento do país;

além disso, os seus discursos colocavam que ela e só ela,

sozinha, conseguiria realizar a grande façanha de tornar o

brasileiro um sujeito moderno e o Brasil um país desenvolvido.

Os discursos destes intelectuais apresentavam a criança como

principal objeto destas ações, era como se não houvesse tempo

para “curar” os adultos e, portanto, era necessário gestar e

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gerar o futuro do país. Apenas nos anos 30 em diante é que

surgiram campanhas onde a alfabetização dos adultos passou a

ser defendida por intelectuais como Paschoal Leme (PAIVA,

1973).

Passaram-se os anos e na década 60 o Brasil vivia uma

efervescência política em torno de mudanças sociais. Seja via

desenvolvimentismo, na linha do completo mergulho do Brasil no

mundo capitalista e suas fábricas, seja em movimentações

sociais, que reivindicavam ferramentas sociais que

possibilitassem maior equidade social; como é o caso das Ligas

Camponesas em busca da Reforma Agrária, e do Movimento de

Educação de Base desejando realizar a alfabetização dos

adultos brasileiros (BENEVIDES, 1985). Neste segundo caso,

emergia junto a ele um t(r)emor para as elites políticas e

econômicas do país, especialmente após a revolução Cubana em

1958: o risco do Brasil tornar-se um país

comunista(SKIDMORE,1988:22).

Mais uma vez poderíamos dizer que o Brasil estava

“doente” na perspectiva do Estado e das oligarquias econômicas

e políticas que ordenavam o poder no País, porém agora eram os

“remédios” que lhes escapavam das mãos. Entre outras coisas,

esta foi uma das razões que levaram os militares a golpear a

democracia brasileira e instaurar seus atos institucionais.

Mas faltava uma medida, algo que funcionasse como resposta

destes governos às reivindicações dos movimentos sociais

anteriormente citados.

Era preciso, neste sentido, criar uma instituição que

apresentasse um “remédio” a estes males; porém mexer com a

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estrutura agrária no Brasil é afrontar as bases do poder

político e econômico, coisa que não fazia sentido aos

militares. Por isso, tornou-se necessário chamar a atenção

para a alfabetização de adultos, apresentá-la como este grande

remédio, que assim como nos anos 20 iria transformar os

brasileiros.

Para os brasileiros foi criado um doutor, o Mobral. Seu

diagnóstico: o maior mal do Brasil é o analfabetismo. O

Remédio: a mobilização popular em torno do tema via

propaganda, para convencer os analfabetos a ingressarem nos

seus programas e também, os alfabetizados a contribuírem como

puderem nesta empreitada. A propaganda com lampiões é

exemplar neste sentido:

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Figura 1: propaganda lançada pelo MOBRAL em 1974. Retirado de :

http://www.bravus.net/publicidade-ancestral-de-um-lampiao-ao-MOBRAL/

22 de agosto de 2012.

Acreditamos, portanto, que o MOBRAL realiza uma

apropriação, no sentido proposto por Chartier de uma leitura

criativa do material que recebemos, de uma caça furtiva onde

levamos conosco apenas o que desejamos (CHARTIER,1989:22) do

entusiasmo pela educação e da educação Sanitarista. No caso do

entusiasmo, anunciando que a alfabetização dos adultos

brasileiros, realizada pelo MOBRAL, nos tornaria um “país que

vai pra frente”, como nos dizia com uma lição da sua cartilha,

vejamos:

Figura 43: Lição Cachaça. 6° palavra geradora na cartilha Abril Op.

Cit. p.20 e 21.

A cachaça que na imagem, é um habito entre os

frequentadores do boteco, torna-se questão de saúde pública

quando vista em associação à frase exemplo posta. O MOBRAL

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lança a questão e conduz a leitura, os alunos pegos pela

pergunta, dificlmente poderão ler a cachaça separada do tema

saúde. Caso semelhante acontece com a palavra geradora

limpeza:

Figura 44: Lição Limpeza. 16° palavra geradora na Cartilha abril.

Op. Cit. p. 42 e 43.

Lançando questões como esta o MOBRAL vai conduzindo a

maneira como os alunos leriam as cartilhas, valendo-se da

sugestão em forma de pergunta ele trabalha com a sua principal

estratégia junto a seus alunos: fazer das cartilhas manuais de

comportamento. Nesta óptica, problematizamos como as

cartilhas do MOBRAL eram um tipo especial de textos que tinham

um caráter prescritivo, que se acionava através dos protocolos

de leitura criados por seus produtores. Este tipo de

publicação segundo Chartier:

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tem por objectivo anular-se enquanto discurso. e

produzir na prática, comportamentos ou condutas tidos

por legítimos e úteis. As artes de bem morrer, os.

Tratados de civilidade, os livros de praticas. são

exemplos, entre outros, desses gêneros que pretendem

incorporar nos indivíduos, os gestos necessários ou

convenientes. (IBDEM,P 135)

Reforçando alguns comportamentos em dentrimmento de

outros, o MOBRAL operava estabelencendo a educação sanitária

como parte de um mesmo remédio, que ajudaria os adultos

analfabetos a serem mais do que eram. A saúde tornou-se um

tema muito fluente e caro no século XX entre as representações

sociais sobre o que seria uma sociedade avançada. Assim

promover e principalmente propagandear a promoção da educação

sanitaria, era uma forma de apresentar-se como um governo

competente, consciente e preocupado com a população.

Por outro lado, as capanhas sanitaristas que

desenvolveram-se desde o seculo XIX até a primeira metade do

seculo XX (STEPAN,2005:165-178), não atingiram todo o pais.

Falando de maneira generalizante, apenas as grandes cidades

conseguiram desenvolver politicas sanitaristas e mesmo assim

não conseguiram fazê-lo em sua totalidade. Na maioria dos

casos, a cidade crescia bem mais que a capacidade dos poderes

públicos de criar uma infra-estrutura sanitarizada. Bem como,

o fato de que entre os discursos e propagandas dos diversos

niveis de poder estatal e a sua prática haviam muitos buracos

a tapar.

Além disso, a historiografia que estuda a resistência,

especialmente em sua vertente certeauriana, vem nos mostrando

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que a história se produz entre o desejo e estratégias daqueles

que ocupam os espaços “de poder”, e as astúcias daqueles que

“invísiveis” na multidão não submetem-se de todo a suas forças

(CERTEAU,1994). Deste modo, o projeto higienista, que circulou

no Brasil na primeira metade do seculo XX, não entrou em todas

as casas, nem criou tantos adeptos quanto pretendia. Com isso,

nos anos 70, a sanitarização do brasileiro, especialmente o

pobre, das periferias e cidades do interior; continuava a ser

uma preocupação nos discuros de intelecutais, educadores e do

Estado.

Estavamos diante de um governo militar, que na

perspectiva de Carlos Fico, valia-se de um aparelho de

propaganda bastante diferente do varguista ou do que foi

utilizado no Facismo e Nazismo. Segundo ele, era necessário

uma propaganda estatal sutil, que nas bordas e pelo contexto

apresentasse a produtividade dos governos militares(1997:18);

Assim, a educação sanitarista era uma forma de demonstrar esta

eficiencia sem o uso da propaganda com artificios diretos.

Como podemos observar no uso do personagem Sujismundo:

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Figura 2: Sujismundo – desenho criado por Ruy Perotti Barbosa,

objeto da campanha sanitarista dos governos militares nos anos 70.

Disponivel em :

http://blogs.estadao.com.br/reclames-do-estadao/tag/ditadura/.

Acesso em 15 de outubro de 2012.

Na perspectiva da propaganda, Sujismundo assim como o

analfabeto do MOBRAL, não tinha culpa de sua condição. Havia sido

mal cuidado e abandonado pelos “corruptos” governos anteriores e só

agora com o atenção dada pelos militares é que se transformaria.

Deste modo, os governos militares inventaram a “propaganda política

despolitizada”, propondo um perfil de comportamento baseado no

discurso do amor ao próximo e na incrível solidariedade e

disponibilidade para “construir junto” do brasileiro (FICO,

1997:127). Sua estratégia política valia-se de desenhos e da

sensibilização para se promover, enquanto difundia a gestão das

sensibilidades na prespectiva da sanitarização. Afinal através

destas propagandas, os brasileiros estariam recebendo o bilhete

mandado ao sujismundo e como lhes seria “natural” acabariam aderindo

a esta campanha de limpeza do país, como as pessoas desta foto:

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Figura 46: Manifestação na cidade Mineira de Cambuquira, em defesa

da sanitarização. Retirado de

http://cambuka.blogspot.com.br/2008/08/adeus-sugismundo.html acesso

em 15 de outubro de 2012.

O MOBRAL emergia dentro deste mesmo contexto. Já nos primeiros

anos a educação sanitaria foi tornando-se um tema dos mais usado nas

cartilhas de alfabetização, até que em 1976, foi lançado o Pograma

de Educação Comunitária para a Saúde, “abrangendo de início os

Estados do Piauí, Ceará, Paraíba e Alagoas”(MOBRAL, 1979; 25). De

todo modo, assim como no caso dos outros temas trabalhados pelo

MOBRAL, a Saúde era associada e disseminada juntos às variadas

tematicas e em várias abordagens, dissolvendo-se dentro de suas

estratégias pedagógicas.

Nas cartilhas de alfabetização, podemos perceber

varias destas estratégias; especialmente o uso de protocolos de

leitura, isto é:

as estratégias através das quais autores eeditores tentavam impor uma ortodoxia do texto, umaleitura forçada. Dessas estratégias, umas sãoexplicitas, recorrendo ao discurso (nos prefácios,advertências, glosas e notas), e outras implícitas,

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fazendo do texto uma maquinaria que,necessariamente, deve impor uma compreensão.(CHARTIER,1989:123)

Desta maneira, a forma do texto conduz alguns caminhos da

leitura, uma vez que “Não existe nenhum texto fora do suporte

que o da a ler”. Estes caminhos seriam de duas ordens: 1°- “as

estratégias de escrita e as intenções do autor”; 2°- “os

dispositivos que resultam da passagem [do texto] a livro ou a

impresso”, como o tamanho das letras, os negritos e

sublinhados, títulos e legendas... Decisões, que na maioria

das vezes, são produzidos pela comissão

editorial”(CHARTIER,1989:127).

As cartilhas são, em sua maioria, povoadas de imagens as

mais variadas, muitas delas fotografias, o que segundo

Chartier, também poderíamos considerar como protocolos de

leitura, pois “a imagem, no frontispício ou na página do

título, na orla do texto ou na sua última página, classifica o

texto, sugere uma leitura, constrói um

significado”(CHARTIER,1989:133).

Nas cartilhas do MOBRAL ela cumpre um papel muito mais

eficiente que outros protocolos, pois, por sua visualidade,

possui a capacidade de instigar e delimitar as

possibilidades da imaginação, criar identificações entre

elementos que não estão no texto e o sentido ao qual se anseia

associar, ou ainda reforçar ideias que já estão no texto. Cria

na leitura que se faz do escrito, algo que não havia antes,

especialmente pelas características do seu publico alvo –

pessoas que não sabem ler ou que estão aprendendo a

decodificar as palavras. Como podemos perceber na lição barriga:

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Figura 3: Lição Barriga. 4° palavra geradora na cartilha Abril.

Retirada de: COUTINHO, Joaquim. Alfabetização: livro de leitura.

São Paulo. Ed. Abril, 19°. S/N. p. 14 e 15.

A barriga passa de parte do corpo à problema de saúde

pública. Percebamos como a fotografia foi recortada de modo a

provocar a comoção, ou até mesmo a catarse, não enquanto

memória, mas enquanto identificação com o drama da personagem,

neste caso o menino. Uma criança sozinha, negra, nua e

chorando; um cenário de abandono em meio a grama e lixo; ao

fundo há uma vala por onde provalmente um esgoto a céu aberto

passa. Tudo leva a pensar que o menino é um “lombriguento”. As

mãosinhas sobre a barriga, podem ser lidas já como signo de

uma dor de barriga, possivel razão do choro. O curioso é que a

frase exemplo, não diz que ele tem verminoses, diz apenas que

é barrigudo; a imagem provoca e é o leitor que faz a leitura

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de que Beto precisa de assistencia médica, ou ao menos de

cuidado.

Será que Beto é um caso isolado? Será que os filhos dos

alunos do MOBRAL, também tem esta exuberante barriga? E se

sim, o que fazer? o MOBRAL já cuidou de tudo, exitem dois

lugares onde ele pode ser levado: para os casos mais simples

serve a lição Posto de Médico; para os casos mais complexos na

cartilha Abril há a lição hospital. Além de medicar-se, as

lições do MOBRAL gestam os modos de ver, de ler como

indispensável a limpeza, ensina outras maneiras de cuidar da

saúde; desde cuidar bem dos alimentos como nas lições da

cartilha Primor orta e açougue, até uma boa relação familiar

na lição família, passando pela lição Vacina e pela Lição

banho, como podemos ver nas indicações do manual do

alfabetizador Primor:

DiscussãoApresente o cartaz e discuta:- importancia do banho para a higiene do corpo;- o uso do sabão ou sabonete. Como fazer sabão emcasa;- como fazer um chuveiro de lata;- perigo do banho em rios e lagoas (doenças,acidentes);- o banho do bebê (água fervida, temperaturaadequada, não molhar o umbigo antes de cair, lavarprimeiro o rosto,etc.

Diante de tantas prescrições, um simples banho nas

palavras do MOBRAL tornava-se uma estratégia de salvamento

diante do poderio da sujeira. Não havia desculpas, a falta de

dinheiro não é problema pois pode-se improvisar um chuveiro

com uma lata; e não é de qualquer tipo de banho que estamos

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tratando, o banho correto pressupõe o uso do chuveiro. Deste

modo, prescrever banhos era uma maneira de narrar um brasil

limpo, governar os hábitos no sentido de provocar a circulação

deste tipo de prática higienica.

Assim o Mobral desejava, através das cartilhas, adentrar

nos lares e limpar as famílias, cuidar de seus hábitos mais

cotidianos, mostrando-lhes as maneiras corretas de proceder

diante dos costumes mais elementares, como a costrução das

casas e a maneira como lidar com as fezes, como podemos

perceber na lição abaixo:

Figura 4: lição Fossa. 8° lição da cartilha Roteiro de linguagem

Bloch. Op. Cit: 20

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Em lições como esta, o banheiro e a propria fossa séptica

tornaram-se instrumentos para a orientação do brasileiros

sobre a educação sanitária, afinal, como nos indica o manual

do alfabetizador sobre esta lição é importante “discutir a

possibilidade de contaminação das pessoas e dos alimentos

pelas fezes deixadas ao ar livre” ( p. 12) bem como atentar

para as maneiras corretas de instalar as fossas.

Desse modo, valendo-se de muito mais imagens e

prescrições que as apresentadas aqui, o MOBRAL apropriou-se

dos princípios sanitaristas para produzir a propaganda dos

governos militares. Com as cartilhas ao mesmo tempo que

prescreviam aos alunos do MOBRAL maneiras modernas de

comportamento e cuidado de si, apresentavam ao mundo e aos

próprios brasileiros que o Brasil era um lugar onde tudo

estava correndo muito bem, e que nos casos ainda problematicos

como o analfabetismo ou a “sujeira” do seu povo, em pouco

tempo tudo seria sanado a partir de suas palavras que cuidavam

dos brasileiros e de suas imagens que os limpavam; ferramentas

que juntas preparavam um só tratamento: A educação do adulto

brasileiro.

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