A mulher solta no espaço - VISIONVOX

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A mulher solta no espaço

Walter de Sousa

Se fala em ditadura militar...Nós não vimos nada disso, pois estávamos no circo!

Pitangueira, ator circense O espetáculo se desenvolve num palco circular,numa mandala, numa representação do mundo, do universo.

(...) Você sai do nada e volta para o nada.

Palhaço Piripipi a Alejandro Jodorowski Percebi que esta pequena arena éo lugar mais perigoso do mundo.

Mas também é o lugar onde tudo é possível. Onde os olhos se abrem.

Vittorio, em 36 Vous du Pic Saint-Loup,

de Jacques Rivette

1.

Calor da brucuta!" A frase ressoou como uma trovoada na minúsculaantessala do estúdio de rádio. Alheios ao arroubo do locutor entediado, duasfiguras se postavam imóveis, paralisadas, diante uma da outra. O crucifixo deferro batido permanecia imóvel à altura da testa da moça da recepção, emborao homem o portasse no peito: ambos estavam em pé. Opaco, pesado,descansava sobre a gravata de listras transversais que ocultava a linha debotões da camisa amarelecida. O objeto assustava a recepcionista não porpender do pescoço de homem tão corpulento e maciço, mas por atrair suaconcentração. Entendia nele não o martírio do Salvador, ou a prova de umacrença, nem o magnetismo de um amuleto. Seria o olho secular de umcharlatão versado em hipnose, prestes a roubar-lhe a alma. Sabia quem eleera. Ouvira a cidade toda comentar os seus feitos na noite anterior. E issobastava para desatar arrepios no seu mirrado corpo, mesmo que ele estivesseconfinado na bolha de calor que era a antessala naquele horário adiantado damanhã. Em termos de ar respirável, aquele cubículo ainda saia em vantagemem relação ao próprio estúdio. Com as paredes forradas com caixas de ovosem papelão rosado, a câmara mortuária de uma pirâmide não seria tãosufocante. Isso interferia na respiração dos que se postavam diante domicrofone para depor sobre os mais distintos assuntos, todos desinteressantespara os ouvintes da emissora, atentos apenas aos resfôlegos das sanfonas e aotilintar metálico dos triângulos.

O homem do crucifixo era largo, não gordo. A moça, olhando de soslaio,percebia que não havia sinais de calor naquela muralha. Mesmo metido numterno também amarelecido, de um linho ordinário, talhado na mesa de algumalfaiate também ordinário, não demonstrava manchas úmidas no colarinhoapertado pela gravata. Notou que ele tinha ainda o capricho de ocultar acorrente do crucifixo sob a gola sem sinal de goma.

Seu olhar era focado, dificilmente desviava para algum ruído ou movimentodo ambiente. Os bigodes aparados se emparelhavam com as lentesesverdeadas circundadas por armação pesada.

– Entre, seu Fuseli. O seu Armando tá esperando. O programa já vai começar.

O apresentador da faixa das onze horas, a mais ouvida da Rádio Difusora doSertão, que intercalava pouca falação e todos os baiões de Luiz Gonzaga,estava sentado com as pernas apoiadas no descanso da cadeira, as calçaslevantadas até os joelhos, e a camisa aberta em três botões, o que revelava ospelos grisalhos espalhados pelas mamas salientes de gordura. Demonstravairritabilidade com o suor na testa, já revelada na frase com que recepcionarainadvertidamente o visitante. Não se conheciam. Mas a fama de AroldoFuseli, o mágico, se alastrou rapidamente por Santana dos Garrotes. Estavahá pouco mais de dois dias no local, mas podia ser reconhecido à distância, oque não é muito difícil num lugarejo com menos de mil habitantes. “Magodas Índias” e “Rei dos Ladrões”, títulos que já estamparam os panos deentrada dos circos em que atuou, não eram conhecidos por ninguém nacidade. Aliás, o povo de Santana dos Garrotes estava acostumado àsconstantes visitas dos cirquinhos de lona esburacada, sempre com seuspalhaços falastrões. Por isso estranhou o cartaz que anunciava, com desenhovivo, a moça deitada com os cabelos caídos em direção ao chão, enquanto opróprio Fuseli abria os dedos das duas mãos sobre o seu corpo, que pareciadesgrudar da mesa. O mágico manietava o corpo rijo da moça, como se elafosse um títere. Na noite anterior, da estreia, o furor e o pânico se instalaramnos olhos incrédulos daqueles que viram o número “A mulher solta noespaço”, como aparecia em letras desenhadas como labaredas crepitantes nomesmo cartaz.

Havia, sim, um palhaço no Circo Fuseli. Mas este economizava nos palavrõese nas piadas apimentadas, fazendo graça com as antigas cenas de palhaços. Aamazona, por sua vez, exuberante, montava o lustroso pangaré, preparando

lento e ensaiado levante, com um dos pés no estribo e a mão direita erguidaem direção à lona. Não havia animal desdentado, como as onças cansadas deoutras tendas. Mas tudo era passatempo para preparar a entrada de Fuseli comsua capa estrelada, o crucifixo imóvel no peito, como se ali se inserisse umeixo invisível apto a abduzir quem se atrevesse a fixar o olhar naquele ponto.

– Nete! Traga um copo d´água pro seu doutor aqui!

– Fuseli. – socorreu o visitante, enquanto se ajeitava na banqueta que lhe foioferecida, próxima ao único microfone suspenso.

– E isso aqui? - perguntou o locutor, que se apresentava no programa comoArmando e atendia à moça da recepção quando ela o chamava de Sézo.

As batidas contínuas davam o ritmo do baião que oscilava no movimentoirregular do toca-discos. Tinha a mão direita espalmada sobre algumas folhasde almaço recheadas de garatujas. Fuseli não conhecia nenhuma dasassinaturas, ou tentativas de, que preenchiam o papel, mas sabia que tinhamsido rabiscadas por incautos que estiveram na noite de estreia e tinham seassombrado com a levitação. Não estava interessado em auditar asassinaturas, mas sabia que se olhasse mais atentamente reconheceria acaligrafia da esposa, dona Juanita, que certamente auxiliara os nãoalfabetizados.

– Guarde. Durante a conversa vamos falar disso - respondeu, afastando ocopo pousado na mesa do estúdio.

– Mas isso não é obra da sua mulher?

– Sim, dela mesma.

Sézo lançou os olhos sobre a faixa do LP e verificou que faltava menos dametade para que a música acabasse. Controlado, ou acostumado à rotina daúnica rádio da cidade, não estranhava o tipo que tinha à sua frente. “Gente decirco. É tudo estranho mesmo”.

– Quero ver o espetáculo. Levarei minha mulher e meus dois filhos...

Antes que concluísse a frase, Fuseli tirou do bolso externo do paletóamarrotado os bilhetes coloridos e os estendeu ao locutor. Este sesurpreendeu com a rápida resposta. O dono do circo também estavaacostumado às suas rotinas profissionais.

– Seu secretário já esteve aqui ontem...

– Fique com mais estas. Faço questão.

Do outro lado do pequeno quadrado envidraçado da porta aparecia Nete que,como Sézo, deveria ter outro nome, talvez Arlete ou Suzete. Ela saltitavarepetidamente para alcançar a altura que a permitisse assuntar o visitante.Não fora à estreia, mas os comentários que ouvira na cidade haviam lhetirado o juízo. Um pai que rouba a consciência da filha na frente de todomundo, comanda seu corpo e pede ajuda de todos para trazê-la de volta só

podia ser coisa do chifrudo! “Crendospai! A menina acordava e nãoconseguia se mexer... Meu Deus! Só voltava ao normal depois do pai pedir atodos para rezarem o Pai Nosso... Não, não vou ver isso! Nem por cem!” Osacordes do baião iam se alinhando e mesmo Gonzaga parecia cansadonaquele final. Logo Armando, não mais Sézo, entraria para anunciar quenaquele dia tinha visita e com ela iria conversar. Antes que a audiência sedesanimasse com o lero-lero prometido, o nome Fuseli deve ter distraído omais concentrado barbeiro. Em Santana dos Garrotes só havia um, era SeuMingo.

– Caro ouvinte, estamos recebendo hoje aqui nos nossos estúdios o mágicoAroldo Fuseli, proprietário do Circo Fuseli, que muita surpresa causou ontemcom seu espetáculo de estreia aqui na cidade. Isso por causa do número quefaz com sua filha. O senhor pode contar pra nós como é esse número?

– Boa tarde a todos. Esse é um número de magia e de hipnose. Eu consigodeixar a minha filha num estado de dormência, com o corpo leve, e depoisconsigo fazer com que o seu corpo fique solto no ar.

– Isso só com magia?

– Sim. Conto também com a ajuda do público, pois sem um ambientetranquilo eu não consigo fazer com que minha filha retome a consciência.

– Agora me diga, senhor Fuseli. Ontem, depois desse número, sua esposa,dona...

– Juanita.

– Sim, dona Juanita, antes mesmo do número começar, na frente de todos,pediu para o senhor não fazer a apresentação, pois queria evitar que a filhapassasse por essa magia mais uma vez. O senhor ignorou os pedidos, ela foiretirada do picadeiro e o número foi feito. Ao final, sua senhora retornou parapassar um abaixo-assinado entre o público presente pedindo para que osenhor não fizesse mais o número. O que o povo de Santana dos Garrotesquer saber é... o senhor repetirá a magia hoje à noite?

– Olha, Armando, faço esse número há algum tempo e ele requer muito dasminhas capacidades de magia e hipnose, artes que aprendi com váriosmestres de diversas religiões. Estive por três anos no Oriente, recebitreinamento de faquires e de monges versados nas artes marciais. Mesmocom todo esse treinamento e de meus anos de experiência confesso que essenúmero é de difícil execução, por isso só faço com minha filha, pois elerequer um alto grau de confiança. Como já disse, com o público ao meu ladoconsigo fazer uma corrente de energia que traz de volta a minha filha àconsciência. Como confio no povo de Santana dos Garrotes pelo quedemonstrou ontem, vou deixar de lado o pedido de minha própria esposa – emãe da menina que criamos com tanto carinho – e vou repetir o número.

– Pois bem, caros ouvintes, teremos então hoje no Circo Fuseli a grandeatração “A mulher solta no espaço”, além de outros números circenses.

– Sim, temos também números de acrobacias no cavalo, o palhaço Baquinha,com uma formidável comedinha e uma trupe de saltadores. Espero vocês hojeàs oito da noite. Amanhã, domingo, teremos também a matinê às dez damanhã, e novo espetáculo à noite.

– Não percam, portanto, o grande Circo Fuseli! Famoso em todo o Nordeste!

Enquanto concluía, o locutor Armando acionava com o indicador o toca-discos para nova faixa de Gonzaga. Cuidava para que o Rei do Baião sótocasse naquele horário. Olhou para a porta e viu a testa saltitante de Nete.Fuseli se levantou num ímpeto. Ao estender a mão direita para o dono darádio fez o crucifixo mover com elegância, o que fascinou o locutor. Tirououtras duas entradas e depositou na mesa, apontando para a esbaforida Arlete– ou Suzete? –, que continuava seu balé de saltitos do lado de fora do estúdio.Armando, sem responder, acedeu com um movimento de cabeça. O mágicovirou as costas, sempre com o olhar direcionado para a frente, girou amaçaneta, passou pela assustada atendente e desapareceu na claridade do solque explodia no meio dia de Santana dos Garrotes.

2.

Ignorando a claridade equatorial da vila, o mágico Fuseli se afastou algunsmetros do estúdio improvisado da rádio Difusora e topou com o secretárioAdeodato agachado ao meio-fio apertando a ponta do cigarro de palha. Aover o patrão, o homem atirou a guimba na grama queimada do jardim. Fuseliatravessou a praça em passos rápidos, tendo o secretário a seu lado, doispassos atrás, tentando alcançá-lo, uma tarefa ingrata, uma vez que a diferençade estatura ampliava a vantagem da passada do mágico.

– Qual o nome do padre?

– Riba.

– Riba?

– Rivadavia. Mas o povo o chama de Riba.

Ao cruzar a bodega onde Adeodato havia passado os minutos em que opatrão dava a entrevista, ouviu ainda o baião que se iniciou na sua saída doestúdio.

– Ouvi a entrevista. O povo prestou atenção.

Fuseli dispensou o comentário e seguiu adiante.

– Enquanto falo com o padre leve as entradas à Câmara dos Vereadores.

O secretário estacou, livrando-se da tarefa de alcançar Fuseli e mudou derumo, indo pela rua que margeava a praça pela esquerda, pois o prédio daCâmara, um casarão antigo caiado com pigmento ocre, se escondia naretaguarda da igreja de uma torre só.

Fuseli mal colocou o pé direito no primeiro degrau da pequena escada quelevava à porta de entrada e dela escapuliu uma adolescente que, ao vê-lo,disparou na direção contrária. Notou a manobra e avançou na folha aberta daporta – a outra se encontrava travada, ou pelo tempo ou pela cautelaeclesiástica. Passou pela pia batismal em mármore, grande para o tamanho dorecinto, e observou a extensão da nave, diminuta, como esperava. As imagensdos santos estavam todas cobertas, algo comum na Quaresma. Padre Ribaestava sentado numa cadeira de madeira, com a bata cotidiana, escura,quando viu o homem de terno quase branco adentrar a igreja, o crucifixonegro ressaltado no peito.

– Bom dia, Padre Riba.

– Costuma usar sempre isso? Ou colocou somente para a ocasião?

– Não vim questionar minha fé, padre.

– Pois diga qual a honra da visita.

– Deve saber quem eu sou.

– Sim. Aliás, meus fiéis têm recorrido a Deus para afastar o estado de espantoem que foram colocados depois que visitaram a sua casa.

– É um circo. Uma casa de espetáculos.

– Que está usando o nome de Deus em vão – asseverou em tom duro.

Ante a tensão que assaltou o colóquio, Fuseli percebeu que demoraria maisdo que o previsto naquele encontro. Antes de aguardar que o padre oconvidasse a sentar – se é que o convidaria – e sem tomar atitude desafiadora,antecipou-se:

– Vim me confessar, padre.

– Pois bem! Prefere o confessionário ou podemos falar aqui mesmo?

– Como o senhor preferir.

O padre parecia cansado a despeito do horário do dia. Por isso estendeu a

mão direita apontando o banco da primeira fila, onde o mágico se acomodou.

– Conte então que pecados o trazem para cá.

– Sou mágico de profissão, padre. E isso me faz, como o senhor, lidar com asinstâncias do espírito.

– Está se comparando a um sacerdote, senhor?

– Fuseli, padre. Aroldo Fuseli. De forma alguma. Mas vivo do espetáculoque, na maior parte das vezes é pagão. Por isso tento colocar Deus em tudo oque faço.

– Inclusive pedir ao público que reze o Padre Nosso e a Ave Maria parajustificar um dos seus truques...

– Tento fazer com que, a partir de um pequeno truque, as pessoas percebam aimportância de Deus nas suas vidas.

– Você faz o truque portando esse crucifixo?

– Evidente que não, padre. Mas Deus permanece em mim.

O velho Rivadavia, vindo do Sul do país e que já se acostumara à vida quentee mole das cidades do alto sertão, estava começando a achar aquela conversainteressante. Levantou-se da cadeira para desentrevar as pernas, como sedizia na linguagem do povo, caminhou lentamente na direção do confidentemantendo o olhar no crucifixo pendente do seu pescoço.

– É de ferro?

– Sim.

– Prefiro os de madeira, como o lenho em que padeceu o Senhor.

Parou diante do homem de terno amarrotado e atenuou o tom da voz:

– Me diga qual é o truque.

– Temo que não deva fazê-lo, padre.

Sem mudar de tom, retorquiu: “Por quê?”

– É um segredo de profissão.

– Que não revelará nem em nome de Deus?

– Deus já o conhece. E sabe da sua precariedade.

– Atenderia ao menos o meu pedido?

– Padre, respeito a Deus sobre todas as coisas, mas jamais pediria ao senhorque me revelasse um segredo de confissão.

O sacerdote acusou rapidamente o argumento, afastando-se do visitante eretornando à sua cadeira.

– O que tem então para me confessar?

– Temo por minha filha, padre.

– Por que, então, a submete a esse truque?

– Nesse sentido não se trata de um truque.

– Não entendo.

– Sua natureza não é a mesma da maioria das mulheres. Ela hesita em tocar ochão em que pisam os homens. Tem 25 anos e parece alheia à sua missão. Aconvidei para participar do número de magia para tentar atraí-la à realidade.

Acho que até melhorou, mas receio que isso seja algum desvio do espírito...

– Confessa essa sua aflição em toda paróquia em que se apresenta?

– Sim, pois busco alento para essa criatura. Mas aqui em Santana dosGarrotes procurei saber sobre sua obra e muitos o recomendaram.

Uma ligeira sombra perpassou a tez do padre, efeito notado por Fuseli. Nãoprecisou olhar para trás para perceber que era Adeodato que chegara de suamissão. O padre desviou o olhar do confidente e percebeu o rapaz de baixaestatura em posição de reverência, fazendo um rápido sinal da cruz.

– É meu secretário, padre. Podemos continuar.

– Bom, mantenha sua fé e peça para a moça vir até aqui conversar comigo.

– Obrigado, padre.

Fuseli se levantou, reverenciou a cruz de madeira amarrada no teto da igreja,estendeu a mão para o padre, cumprimentou-o e virou as costas. Na porta,Adeodato já o esperava em pé. Ao passar por ele, Fuseli murmurou:

– Não vamos ter problemas com o padre.

3.

Não foi difícil para Sofia alcançar o gabinete do prefeito. Bastou dizer àsecretária que era a amazona do circo e a porta se abriu prontamente. Ohomem acenou da mesa, cumprimentando-a e, assim que a moça seaproximou, pediu em voz baixa e acautelada que fizesse a gentileza deencostar a mesma porta. Sofia não era exatamente de uma beleza exuberante.A baixa estatura também não comprometia sua vistosidade: bastava chegarnum ambiente desconhecido e parte dos homens lançava olharesintencionados para o seu lado. Não se maquiava em demasia e mantinha aclasse que seu número sobre o cavalo exigia: gestos contidos, pálpebrassemicerradas, coluna esguia. O prefeito demonstrou um súbito ânimo ao vê-la. Não esperava a visita, apesar de, ao cumprimentar os artistas na coxia doCirco Fuseli, ter deixado escorregar sobre a perna cruzada da moça, que sesentava numa caixa de viagem, um cartão de visitas diminuto, em que cabiasomente seu nome e cargo. Ali, na sala do prefeito e diante dele, ela percebeuque o homem trazia entre os dedos outro cartão, o do secretário Adeodato,que deve tê-lo visitado há pelo menos uma semana para pedir autorizaçãopara usar o terreno onde o circo estava montado desde a quinta-feira. Aliás,esse cartão já fora objeto de piada em toda a companhia. Sob o seu nomeaparecia: “Datilógrafo e secretário”, nessa ordem, pois para ele dominar atécnica das teclas mecânicas deveria ser algo superior a empregar táticas deconvencimento para tirar o compromisso das autoridades em colaborar com atrupe circense. Aliás, quando nada mais funcionava, Adeodato sacava umanel maçom, que herdara do avô, que nem era de circo, pois sabia que oartefato abria as portas mais emperradas. Colocava-o no dedo mindinho epassava a segurar com certa exuberância o cigarro de palha que sempre trazianos lábios. O prefeito tinha também um anel maçom. Nele brilhavam oesquadro e o compasso no fundo em ônix.

– Como vai o senhor?

– Melhor agora, claro! Sente-se!

Estendeu a mão com o anel. Sofia sabia que a ordem era reservada aosespíritos masculinos. Mas já tivera um anel daqueles nos dedos, pelo menospor alguns instantes, quando brincava entre os lençóis de algum outroprefeito, de alguma outra Santana de alguma coisa.

– Gostou do espetáculo?

– Sensacional! Aquele número da mulher é assustador. Mais assustador aindaé como o senhor Fuseli consegue colocar toda a plateia ao seu comando. Amulher é filha dele mesmo?

– A que flutua? Claro. Não viu o desespero da mãe?

– E você? Está há muito tempo no circo?

– Desde menina.

– Então não faz muito tempo...

Sempre as mesmas frases feitas, sempre os mesmos bordões. “Só falta meperguntar se tenho um homem em cada cidade em que o circo é montado. Umnão, querido, vários...” Ouvir galanteios era o preâmbulo repetitivo em seuprocesso de conquista. Como num número circense. A apoteose ficavasempre para depois. Na maior parte das vezes nem acontecia, mas aexpectativa garantia o espetáculo. Uma construção com o objetivo único degarantir a féria do dia. O imperativo de todo artista circense: trabalhar paraum novo espetáculo amanhã: sempre.

Fuseli entendia como ninguém essa premissa e talvez por isso fazia vistagrossa a Sofia, como, aliás, todos os outros faziam. Em certo sentido achavautilidade na sua constante busca por proximidade com o poder local, algosempre providencial a um circo. Se Fuseli queria passar aos seusinterlocutores uma impressão de que resolvia tudo com a alma do mágico,dividindo compassivamente seu dom com a plateia, uma certa mediunidade –termo que execrava, pois não queria, de forma alguma, ser confundido comum pai de santo –, Sofia se propunha a lidar com outros poderes, menos sutis,mais carnais e delituosos. Gostava de desafiar a seriedade dos homens queviviam de suas aparências políticas, a despeito de acreditar ser a expressãouma sonora redundância. Logo estaria nalgum canto obscuro sob o peso dosenhor prefeito, e dele tiraria um mimo qualquer, um presente para suacoleção, e a breve saciedade de seus desejos intermitentes. Quando seudevaneio já descia à carnalidade efetiva, interrompeu-o um súbito clique daporta do gabinete. Imaginava que veria o prefeito se recompor com rapidez edesacerto, mas o que viu foi um franco sorriso se abrindo:

– Entre filho. Quero te apresentar a Sofia.

A amazona volteou o pescoço e se admirou da imagem que invadiu seusinstintos. O moço tinha os olhos vivos, tez amorenada, braços de quemtrabalha no campo e, o melhor, um ar de quem entendia a meia palavra, umaexperiência precoce advinda de seus anos na faculdade cursada na capital.

– ...no Rio de Janeiro. – ouviu a voz firme completar a informação do pai deque acabara de retornar do curso de Medicina.

Sentiu a aceleração dos batimentos, o frio no estômago e a reação fisiológicase tornar excitação imediata. Logo era o rapaz o objeto de seus novosdevaneios, não um ou outro detalhe do aspecto físico, que já confirmara noprimeiro olhar, mas a intenção que exalava de sua presença, possibilidadesque aguardavam somente a oportunidade para se materializarem numprocesso alquímico que ocultava a obra do desejo e sua saciedade. Algo,enfim, que poderia tirá-la do chão, como ocorria com sua amiga de infância, aatração do circo, esta envolta em infantilidades e dúvidas, enquanto ela, aamazona, sabia deter o conhecimento iniciático, o saber dos que já estiveramdo outro lado e guardam dentro de si a revelação. Ao tocar a mão do rapaz jásabia que poderia tê-lo antes mesmo do próximo espetáculo, que subiria aodorso do cavalo ainda sentindo a anatomia do desconhecido, que receberiaaplausos por algo oculto aos olhos do público, a sua animalidade domada,pelo menos por hora.

– Não tive tempo de ver o circo ainda. Quero ver antes que vá embora.

– Por que não hoje? – antecipou-se Sofia.

– Temo que hoje não haja tempo – atalhou o pai –, mas terei a honra de revê-la sobre o cavalo – acorreu.

Sofia percebeu ali que semeara inadvertidamente a competição. E isso adeliciava ainda mais. Ter pai e filho a disputando e saber que seria, a seutempo, de ambos. Era melhor do que ter o anel maçom de ônixmomentaneamente no dedo. Era, esse sim, o grande prazer da vida de circo:

ser a novidade onde o tédio imperava.

4.

Sem ânimo para percorrer a cidade, Baquinha notou quando Fuselli voltouda entrevista na emissora de rádio. Preferiu manter o corpo estendido na rede,à sombra. Entrelaçava silêncio e moleza, sem, para isso, fazer o mínimoesforço. Não pretendia dormir, tampouco pensar no que ainda teria que fazeraté a hora do espetáculo, que ainda estava longe. Por isso chegou a pularquando o pequeno quadrado de papel bateu em sua barriga, jogado porFuselli.

– O que é isso?

– Telegrama.

Baquinha sabia do que se tratava. Fazia já algumas semanas que não recebianotícias. Estava estranhando, embora em certa ocasião tivessem guardadosilêncio por dois meses. Apanhou o envelope, puxou a aba e rompeu opedaço diminuto preso pelo grampo. Era uma convocação. Iriam se reunir emSantana de Mangueira, ali próximo. O grupo seria grande, diferente dasoutras vezes, quando se reuniam entre oito e dez contando com ele. Completoo grupo jamais havia se reunido. Aliás, ninguém sabia quem era o grupocompleto. Havia o mestre, que assumiu a missão de uma vida inteira, demanter os encontros e as comunicações. Reuniam-se conforme as notíciasque, de boca em boca, percorriam o sertão e as distâncias, dando conta deonde estava cada companhia, e quem estava ou não estava mais atuando nela.A primeira vez que soube da Ordem Excêntrica, a OEx, foi pelo falecido pai.Ele, o primeiro Baquinha. Palhaço dos bons, das antigas, com um repertório

que “matava a pau”, como diziam seus pares, derrubava qualquer plateia.Dizia que a Ordem foi fundada no século 19 por um palhaço anão.

– Não tem nada que ver com Maçonaria! – avisou.

– Notícias da mamãe? – interrompeu o secretário Adeodato, tirando-o daletargia.

– Qual o seu interesse?

– Calma, só estou puxando assunto...

– Notícias do Lôxa. Não, do Xunda!

O pai sempre respeitou a OEx, por mais incrível e inverossímil que pudesseparecer um grupo cujo nome já era um contrassenso: uma “ordem” quecongregava pessoas fora do eixo, ou seja, caóticas. Ele era um excêntrico.Com sua pintura simplificada, mas com os lábios realçados e as sobrancelhasvermelhas. O nariz vermelho já abrigara uma pequena lâmpada na época dopai, abandonada com o enguiço do mecanismo elétrico. Diferentemente dosbrancos, os cloms, também acolhidos pela Ordem, que vestiam roupasluxuosas, os excêntricos dominavam os grandes colarinhos e os sapatosgigantescos.

Havia pelo menos duas décadas a Ordem era comandada por um excêntrico:Picolino, palhaço de quase dois metros de altura, olhos arregalados e

paciência para desfiar histórias por horas a fio. Já havia atuado nos circosmais famosos, nos grandes e nos pequenos. Naqueles tempos de excursõespelo interior, quando as companhias concorriam com a televisão e os jovensestavam mais interessados em organizar grupos anônimos para conspirar,mesmo que surdamente, contra o governo, Picolino vivia não se sabe como.Sem circo, dedicava-se em tempo integral a vagar com a OEx pelos confinsdo sertão. E conseguia reunir à sua volta um grande círculo de palhaços,incluindo seus antigos concorrentes. A despeito da falta de emprego, eraconhecido por oferecer ajuda financeira aos irmãos da OEx. Quando o apertoparecia prenunciar o abismo, lá chegava o telegrama, indicando quantia elocal para o recebimento, na maior parte das vezes uma ordem nominal depagamento. Mas não adiantava procurá-lo e pedir ajuda. Primeiro que nuncase sabia o paradeiro do velho palhaço. Segundo que reunião da OEx não erapara pedir dinheiro. Terceiro que ele não dava mesmo. Os poucos queconseguiram romper a névoa que envolvia suas aparições para pedirdiretamente ao palhaço foram solenemente ignorados. Por mais argumentosque gastassem para justificar o pedido.

A questão é que aqueles tempos exigiam cautela redobrada. O clima deperseguição e a desconfiança das reuniões fechadas haviam levado a um jogode delações descompromissadas que tornava inviável até festa de aniversário-surpresa. Mesmo assim, a OEx resistia. Ela tinha lá seus subterfúgios paradespistar falsas suspeitas e plantar justificativas mais falsas ainda. Por isso,atender a uma convocação da OEx era aceitar participar de uma aventuramaior do que substituir o trapezista na matinê, quando o sol quase a pinoesquentava a lona e tornava o espaço das acrobacias aéreas um bolsão decalor no qual se tinha a sensação de que o corpo ficaria suspenso no vaziopara sempre. Claro que essa sensação, se levada ao extremo, redundaria naestrepitosa queda do mais experiente palhaço.

Imerso nas suas divagações, o silêncio de Baquinha fez Adeodato desistir deentabular algum diálogo. Logo voltaria a chamá-lo para o ensaio. Arriscariamapresentar João, o Corta-mar. Baquinha sabia de cor o papel de Bernardo,mas ensaiaria. Adeodato era o ponto, naquela altura sem muita função a não

ser para argumentar com o elenco alguma cisma dramática. Cisma. Só nãointerrompia Sofia, eterna musa que o esnobava por mero divertimento. “Osecretário?! Não se enxerga, mas vale instigá-lo para que perceba que não soumulher pra ele.” Na verdade gostava de manter certa tensão com ohomenzinho, afinal, lidava com o mesmo universo que ele, o poder local.Jamais o permitiu que a tocasse, mesmo nos períodos de maior solidão, queeram mesmos raros. E Adeodato sempre manteve acesa a esperança de quefosse o escolhido não por um dia, mas para o resto da vida. Montada ouvestindo o manto de Madalena n’O mártir do Calvário, Sofia jamaisimaginara tamanha resignação do ponto, para ela um mero ponto, pois sabiatambém de cor suas falas nas peças do repertório do circo. Mas poderiaimprovisar à deriva, e a reação do tonto, aliás, do ponto, seria somente a deconferir a frase no texto surrado que deixava sobre um dos bancosdesmontáveis de madeira. De tanto pontear, como é que não sabia de cor otexto? Talvez a preocupação com a correção era tanta que as frases passavamincólumes, como fitas perfuradas de telex, correndo sem nada fixar.

Sofia por vezes abusava. Desviava o olhar para o ponto quando tinha à suadisposição alguma declaração rasgada de amor, provocando errinhosimperceptíveis para ver se Adeodato teria coragem de corrigi-la, rindo pordentro ao perceber que ele notara mas deixara barato. Outras vezes, o atorcom quem contracenava percebia o erro e tentava corrigir, ao que eraatalhado pelo ponto, que mandava seguir.

Fuseli não nutria simpatia pelas peças. Assim que começava a segunda parte,tratava de se recolher. No passado era o seu número que encerrava a parte devariedades e não era difícil que, ao final da levitação, boa parte dasarquibancadas se esvaziasse. Não por impaciência do público para ver aencenação do drama, mas pelo baque que o número de magia provocava.Ficavam, na maior parte, os homens, que queriam derramar lágrimas durantea apoteose e sair de volta para casa com a cara amarrada. Nos últimos anosdecidiu deixar seu número sempre para o final, mesmo que depois da peça.Por mais emoção que a plateia deixasse aflorar ante as situações encenadas,tudo passou a ser mera preparação para a comoção final com a magia. Fuseli

repetia o número há anos, com a completa anuência da filha, que cedeu aosseus apelos para que se integrasse ao espetáculo da companhia. Sem discutir,aceitou e, a partir daí, seu único papel foi vestir o camisolão branco e agircomo eterna vítima de hipnose, um personagem sonâmbulo de filmeexpressionista. Havia crescido fazendo as encenações, inclusive a jovemJoana d´Arc das peças sacras. Foi Verônica, na Paixão. A ingênua dosmelodramas. Abandonou as peças, pois não era prudente ser reconhecida pelaplateia. Era a moça do número principal e, ao aceitar a decisão do pai,confinou-se nele.

A ingenuidade, entretanto, não era a marca de sua personalidade, mas sim oalheamento. “Tola”, definia Sofia. “Apática”, entendia Adeodato. “Umenigma”, pensava Baquinha. Todos sabiam que a menina Vicenza havia seapaixonado uma única vez e que a história acabara mal. Não por interferênciaalheia, mas por algum motivo secreto que já havia rendido inúmerasinterpretações maldosas. “Medo de sexo”, conforme Sofia. “Frigidez”, naopinião de Adeodato. “Bobice”, no entendimento de Baquinha. Para os pais,ela se revestia de uma certa santidade que inibia qualquer aventureiro,opinião que atendia ao excesso de cuidado que o casal mantinha em relação àfilha única. Argumento fácil, amparado no papel que ela desempenhava nonúmero final.

Passava a maior parte do tempo fechada no trailer. Cruzava, silenciosa, ascoxias; passeava por entre as arquibancadas após o final da função. Talcomportamento corroborava a alegada preocupação do pai na confissão feitaao padre Riba, embora tivesse a confidência uma clara intenção de ganhar aconfiança do clérigo. Certa vez Vicenza encontrou, num desvão do circo,uma carta endereçada a ela. Era de um pastor, que dizia ter o poder deexorcizá-la do mal que a acometia diariamente, impingida pelo pai com suamagia diabólica. Chegou a comentar o ocorrido com Antenor, o atirador defacas. Era ele a contraparte dos comentários maldosos. A vítima dodesinteresse feminino de Vicenza. Ele riu e calou, como de costume.

Ambos pareciam conversar com silêncios. Mas não por olhares.Permaneciam lado a lado, ela cabisbaixa e ele mirando adiante como seestivesse concentrado num constante jogo de atirar facas. Ela, por sua vez,jamais se dispôs diante de suas facas. Sequer cogitou. E, ao que parece – e aoque comentam – ele também jamais havia pedido tamanha prova deconfiança. Antenor ficou em São Paulo, pouco mais de um ano antes, quandorompeu com Vicenza. Acompanhava a lona de Fuseli havia três anos.Demorou a se enamorar da filha do mágico. Apesar dos murmúriosconstantes e dos olhos atentos de toda a companhia, ninguém soube antes docaso se tornar evidente. Enfim, foi como se tivessem decididosilenciosamente andar juntos e trocar poucos abraços para que os vigilantesfossem informados. Na ocasião, Sofia se sentiu tentada a seduzir o rapaz paraconfirmar o julgamento que fazia de Vicenza. Mas estava evidente que elenão cederia um só milímetro de sua fidelidade, pois como atirador de facas,sabia que bem menos que isso poderia ser fatal. Aliás, Sofia, sim, participouinúmeras vezes como partner de Antenor. Nunca temeu nem duvidou de suahabilidade. Com as costas coladas à tábua maleável, fechava os olhos eaguardava o baque. Um, dois, três, seis. Três de cada lado. Só levantava aspálpebras quando ouvia os aplausos, que agradecia, mesmo sabendo que nãoeram para ela.

– Baca! Baca!

O palhaço deu um pulo da rede. Adeodato voltava, todo esbaforido.

– A menina sumiu de novo. Tão procurando ela pelas redondezas.

– Ela volta.

– Eu sei, mas seu Fuseli mandou te chamar.

Surgindo do nada, como se tivesse sido evocado pelo nome, o mágico sepostou diante de Baquinha.

– Só fique atento. Ela deve aparecer às seis para se aprontar. Vamos fazersem o teatro hoje. Deixa para terça, se ainda estivermos aqui. - disse,dirigindo-se ao final a Adeodato.

Baquinha conhecia o recurso. O patrão costumava surgir do nada só paraimpor sua presença. Apesar de mágico, suas aparições eram previsíveis.Assim como os desaparecimentos da filha, que não eram obra de magia, masde maluquice mesmo. Ao contrário de Sofia, a menina não saia para cuidardo próprio negócio, mas para ter o prazer da solidão. Em geral caminhava acampo aberto, distante de todos. Depois voltava, recobria o corpo com ocamisolão branco, soltava os cabelos, aplicava o pó claro no rosto e semantinha em silêncio num canto da coxia, alheia ao movimento de corre-corre dos casacas-de-ferro que levavam e traziam os equipamentos dosnúmeros de saltos e de acrobacia, apresentados pela trupe dos IrmãosSantana. Sem demonstrar tédio, se levantava lentamente quando percebia queo pai se encaminhava para a cortina, prestes a dar início ao momento maisesperado da noite. Do lado de fora, o ruído de impaciência da plateia, oranger das cadeiras, alguns receosos murmúrios. Quando a luz se apagava eFuseli entrava como um vulto, o ruído era atenuado, embora ainda persistisseaté a entrada de Vicenza. A partir daí o silêncio invadia o picadeiro e aarquibancada, a cena e o coração de quem iria, dali a instantes, se aterrorizarcom “A mulher solta no espaço”.

5.

O silêncio me atravessa, corre como um vento rasteiro por entre os ossos domeu corpo, varando os poros, percorrendo os fios longos dos cabelos queescorrem em direção à serragem do picadeiro. Nada ouço. Nem as palavrassussurradas por meu pai, nem o zumbido mínimo da plataforma emmovimento. Sei que toda noite ele conclama a plateia a rezar por mim, apedir a Deus para que minha alma retorne. E talvez seja isso o que de fato aacorrente aos ossos vazios de carne, embrulhados no linho branco docamisolão e nos pesadelos que antecedem meu sono na hora noturna. Osossos parecem soltos, amarrados por uma aura invisível que os impedem dese espalhar pelo chão, que os encaixotam num halo de leveza para que onúmero alcance com sucesso a sua conclusão. Não sei se é um artifício damagia ou se os pesadelos que me levam usam desse truque para que eu nãodesperte. Sei que sou obrigada a me calar para não revelar tal truque quedesconheço. Como nos tempos de menina, quando as crianças dos bairrosme perguntavam dos truques e eu era obrigada a me calar para nãocomprometer o ofício do meu pai. Talvez por manter o pacto dos mágicostenha me tornado refém dessa magia de circo, deitada na plataforma,inebriada pela crença de ser o próprio truque. Dividida entre ser o quesempre quis ser e o papel a que sou obrigada a desempenhar, cingida pelavagueza da meia-luz, me entrego ao truque, me faço a caixa de ossos envoltapelo vazio do silêncio. Torno-me pasmada. Da mesma forma que ficavaquando encenava o melodrama da mãe que põe fogo às vestes da filha.Embora soubesse que um truque evitaria que as chamas inflamassem aminha pele, meu pai se postava na coxia com um balde d´água, pronto aarrebatar-me do risco. Saía então dessa dupla encenação pasmada. Vazia demim. Nem personagem de melodrama, nem artista de circo, apenas um corpomolhado. Isso quando ainda sentia ter esse corpo. Agora, esvaziada dele epreenchida em minha compleição pelo vazio do silêncio, a leveza parece terse apossado de mim, de modo que deixo de ser adjetiva para me tornarsubstantiva. Só não me desprendo de vez dessa estrutura mínima, capaz desobrevoar o picadeiro, balançar os trapézios e atravessar a lona, porque há

sempre o guardião que, alerta, se posta em meu peito, entrelaçando aslongas unhas de seus pés em minhas costelas para salvaguardar minhapresença em cena e, por fim, conduzir-me de volta á frieza da plataforma.Como um elemento imperativo ele se consubstancia, amalgama as partescindidas mesmo que temporariamente para cumprir seu propósito de trazer-me de volta. Dirige-se a mim sempre com suas sobrancelhas esfuziantes – emesmo que me prive de olhá-las, sei que estão lá desde sempre – seuarquejar evidente. Junta as rótulas e recosta os calcanhares em suasnádegas concentrando seu peso de anão em meu plexo. Recordo que assoviaalgo, silva, cicia, mas não faço mais questão de querer entender se há algumsentido, se há construção verbal para sintetizar algo que está claro em suaprópria presença. Quando enfim se certifica de que minha estrutura retornouao estado inicial, principia a se dissipar como se nunca tivesse ganhadomassa, a mesma massa incorpórea dos espíritos esfomeados prontos aprestarem seus serviços a quem lhes oferecer uma sombra que seja decompaixão. Dissipa-se como se acorresse atrás de promessas maiscompensatórias, e abandona a obra mal acabada como se não a tivessecomeçado. O vazio então se embrutece entre os ossos, ganha pulsação e ovento rasteiro adquire direção e função, preenchendo brônquios e alvéolos.Como se os ossos adquirissem cordas estiradas e o vento passasse a dissonarsua substância fluida. Ouço então um novo murmúrio, uma linguagem queainda não é verbal, que ganha consistência métrica a medida que meu pesocorpóreo vai se revelando de volta. As sílabas passam a fazer sentido quandoenfim a curta cantilena se aproxima do seu arremate: “...agora e na hora danossa morte...” A razão que se impõe subitamente me tira da letargia e sintoque o vazio que me separa do chão e do teto de lona foi preenchidobrutalmente pela massa de vozes que me comprime e me devolve os sentidosmais uma vez. Abrir os olhos e articular palavras é a consequência dessacompressão. Embora ainda pasmada, tenho o corpo molhado, salvo daslabaredas, e o olhar complacente de meu pai é o primeiro valhacouto queencontro. Abrigada, ouço o soluço contido que encerra o número, o susto, acomoção, o temor. Meu pai enlaça meus ombros, fazendo de mim a extensãode sua capa estrelada. Há ainda alguns segundos antes das palmasirromperem. E nesse ínterim recobro o vórtice que me cabe no mundo.

6.

Formidável! Formidável!" Abrindo a boca e expondo suas coroas de ouro, oprefeito parecia afoito ao lado da mulher e do filho ao balançar com exageroo aperto de mãos e aspergir perdigotos em todos os que se aproximavam dafamília primeira de Santana de Garrotes. Era a segunda vez que via o número,agora acompanhado da família, incluindo o filho – o que contrariava ainformação dada durante a tarde à Sofia –, e a primeira que cumprimentava odono do circo após ao espetáculo. Com seu habitual olhar morno, Fuseli nãose abalava com os destemperos do alcaide. Foram tantos já na sua vida decirco que a simples presença o nivelava às outras tantas famíliascumprimentadas.

– Você está bem, querida? - perguntou com voz frágil a gorda mulher doprefeito ao se aproximar de Vicenza, que, esforçando-se num meio sorrisobalançou a cabeça afirmativamente. No mesmo instante dirigiu o olhar para omágico, ainda com o figurino de ilusionista, e notou o crucifixo saliente sobrea roupa. Tivesse testemunhado a conversa entre ele e o padre – o que eraimpossível, pois ela se deu sob confissão – saberia que mentira ao afirmarque não o usava durante a magia. Manteve ali os olhos por um segundo elogo os devolveu à menina.

– Se cuide, querida, se alimente bem, não se esforce demais...

Dona Juanita se aproximou e fez questão de aparentar simpatia, pois sabiaque seu ataque desesperado no primeiro dia do espetáculo havia suscitado amá impressão geral da plateia. Depois, a ida de Fuseli à rádio paradesconsiderar o abaixo-assinado encabeçado pela rubrica da esposa deixara

clara sua desimportância no processo de decisão dentro do circo. Seu papelera exclusivamente aquele, de pedir pela filha no primeiro dia. Depois,desaparecia. Havia sido uma aplaudida funâmbula, deslizando pela cordacom graciosidade e delicadeza. A idade, o ganho de peso e especialmente osciúmes do marido a afastaram do número, e passou a atuar nos bastidores,acatando a decisão de Fuseli de encenar sempre que preciso o “número” doabaixo-assinado e nada mais.

– Pode deixar! Cuidamos bem dela!

A gorda mulher do prefeito levantou o cenho como num breve susto, pois nãohavia percebido a aproximação da senhora nem imaginava que se tratava damãe da moça que flutuava no ar. Acenou rapidamente com o pequeno lençorendado que trazia na mão direita e desviou o olhar ao perceber o brilho domaiô de Sofia, a amazona.

– Linda! Muito linda! Domina os animais como poucos!

Sofia respondeu com um sorriso aberto, olhando-a frontalmente, os faróis deseus olhos atingindo-a diretamente. Já o prefeito encolhia-se em seus gestosafoitos, balançando a cabeça para a frente com o braço direito sobre a barrigasaliente, exibindo os minguados fios do topo da cabeça empapados pelasgotas de suor que escorriam livremente até a testa.

– Voltem nos outros dias. Vocês têm permanente no Circo Fuseli! Não seacanhem! Se precisarem de mais ingressos para os familiares, falem comAdeodato!

Mantendo sempre a sobriedade ante o alcaide espalhafatoso, o mágico fingiunão perceber que o verdadeiro motivo dos movimentos exagerados era apresença de Sofia. Apesar de conhecer bem os “negócios” da amazona, semantinha à distância para não ser envolvido em qualquer pisada em falso damoça. Aliás, conhecia bem sua destreza e por anos havia passado ao largo deseus envolvimentos. Jamais tocou no assunto com ela nem se atreveu saberquanto o recurso lhe rendia a mais de seus ganhos com o número sobre ocavalo. Como requeria a um mágico, a discrição era seu cartão de visitas.Nem mesmo Juanita conseguia perfurar tal parede invisível, emboraconhecesse grande parte dos seus truques.

– Vicenza agradece a visita de vocês! Agora ela precisa descansar, pois,como vocês viram, o número...

– Claro! Claro!

– Só uma curiosidade... – Interrompeu a mulher do prefeito. Querida, vocêtem se confessado? Procure o padre Riba, aqui da paróquia! Confesso comele há nãos, desde que chegou na cidade! Ele vai poder te aconselhar e lhe dara penitência necessária para o seu caso!

Não conhecesse tanto as manobras do marido, Juanita não seria a única aperceber a piscadela inadvertida dada em seu esforço em manter asobriedade. O comentário da mulher gorda o havia incomodado, certamente.Aliás, quando os negócios do circo envolviam a Igreja, esse era um assuntopor demais delicado para ele. Não que não fosse crente em Deus. O crucifixode ferro batido não era apenas um adereço de mágico. Ele o carregava comfé. Mas o seu Deus não era o mesmo do padre Riba. Seu Deus nem nometinha. Embora tivesse construído o universo com esmero e precisão.

Temia algo comum às paróquias do interior: o fuxico. Essa força caótica queafrontava seu principal atributo, a discrição. Padres não eram discretos. Nemmesmo com relação aos seus mais insondáveis segredos. Tanto que semprehavia o boato. Essa instituição dos lugarejos, sempre a pairar entre ojulgamento e a sentença, alimentando a indecisão, adiando a opinião.

Vicenza aceitou com placidez o conselho, como se fosse dado pela mãe. Nãohavia percebido o incômodo expressado secretamente pelo pai. Caso notasse,sua reação seria imediata à intromissão da convidada. Recusaria, se afastariainclusive fisicamente da mulher que tinha a poucos centímetros de distância.Logo Vicenza se retirou para o camarim. Nesse instante, Baquinha irrompeupela coxia, atirando impropérios aos visitantes.

– Como escolheu homem tão feio para se casar, minha senhora? E esse filho,é do vice-prefeito?

– Não, é meu! – atirou de volta a senhora.

– Disso eu sei... – respondeu malicioso.

Nesse instante o prefeito percebeu a distração da mulher e dirigiu o olhar aSofia, desferindo uma piscadela não menos breve que a de Fuseli. Não o faziapor incômodo, todavia, mas por malícia comparável à de Baquinha. Juanitanão percebeu, pois só tratava daquilo que é seu, ou seja, Fuseli. Este entendeuprontamente o flerte proibido. O prefeito não desconfiou que alguém notara,muito menos o discreto mágico. Baquinha, por sua vez, continuavacumprindo sua missão de excêntrico, fazendo clara hora-extra para dispersaro grupo.

– Prefeito, o povo dessa cidade precisa mais de água do que de uísque! Tá nahora de mudar o comprador da Prefeitura!

O casal sorriu gentilmente e se afastou. Baquinha murmurou ao patrão:

– Não muda, todos iguais, todos safados!...

Sofia permaneceu imóvel, em pose de bailarina, como se ondeasse o corpo nodorso do cavalo, mantendo o equilíbrio dentro da situação. Na mão direitatinha o prefeito; na esquerda seu belo filho, que se mantivera sabiamentecalado durante o encontro. Ele, aliás, havia sido presenteado com umaterceira piscadela. Esta não notada por nenhum dos presentes.

7.

Sem ouvir aplausos, Sofia mantinha os olhos fechados, dona de suahabilidade. Ao seu lado, o corpo suarento do prefeito, inerte. Percebeu umrumor contínuo, um gemido reprimido de agonia. O ar sendo engolfadodesesperadamente, como se, num lapso, a pobre alma sufocasse eabandonasse o volumoso monte de carne e banha. Sofia pensava no filho dohomem. Aliás, se despira como se fosse para ele. Antes, se arrumara como sefosse para ele. Apegava-se aos seus olhos ávidos, desinteressados, queocultavam uma malícia que afloraria somente nas condições que seencontrava ali, com seu pai. Sequer teve tempo de notar a falta de prática, odesajeito do prefeito na sua afoiteza em se satisfazer. Enquanto o velho semovia, ela pensava nos traços do rapaz, no fogo que ocultaria e que eladespertaria. Não imaginava tê-lo ali, encontrava somente um subterfúgio parase abster daquele homem abjeto, do qual lhe interessava somente o dinheiro...além do filho!

O contraste entre suas próprias formas femininas esguias, os músculos deamazona, a cintura afilada, e a massa flácida do prefeito, moldada noconsumo de gordura animal, dava a Sofia a certeza de que sua conformaçãoera para aquele outro, a quem dedicaria a atenção que rejeitava ao pai. Aorapaz ofereceria curvas, dobras e orifícios que ocultara daquele que acabarade se satisfazer com tão pouco.

– Você monta bem mesmo... – balbuciou.

Sofia não ouviu. Conhecia os comentários, quase os mesmos, de umacriatividade ímpar, de homens sempre insatisfeitos em seus casamentos de

fachada, suas conveniências sociais. O prefeito mantinha os mesmos traçosde outros prefeitos: a voz infantil, o tom de desproteção, a respiração deenfartado e o comentário final buscando uma nódoa de safadeza. Depois depagar usaria de algum ato de grosseria, como se lidasse com uma licitaçãopública. Mas, por enquanto, ainda transpirava a inversão que acabara depromover: havia cavalgado a amazona imponente, assumindo seu papel deanimal naquele instante de sexo. Jamais ousara algo similar em sua vidaconjugal. Tivera unicamente o filho, há vinte e seis anos, e depois disso viusua vida íntima mirrar até se ocultar num quarto sombrio cindido por camasgêmeas de solteiro, uma a cada canto, guardadas diuturnamente por um parde criados-mudos impecáveis em brilho e arrumação. Embora a mulherexibisse ciúmes públicos, era essa a sua realidade marital.

Sofia não imaginava os detalhes da vida íntima do prefeito com a mulher, esequer lhe passava pela cabeça colecionar bizarrices do tipo em sua vida derelacionamentos negociados. Não havia perdido um só momento ocupandoseus devaneios com o gordo homem que começava a se remexer no lado dacama. Desde o instante que esbarrara no filho quando de sua visita aogabinete, só a ele dedicava a imaginação. Ali, naquela cabana empoeirada,cuja janela deixava a luminosidade entrecortada banhar seu corpo demúsculos, sonhava com a exaustão que a acometeria dias depois, tendo orapaz ainda ofegante e rijo roçando-lhe as costas.

– Está quieta... – murmurou o empapado prefeito.

A moça se manteve mouca. As pernas esticadas, a protuberância públicadelineando o relevo corporal e nenhuma gota de suor vazando por poroalgum. Respirava lentamente, imóvel.

– Oi?!

A amazona abriu os olhos vivamente e a resposta veio automática:

– Você é muito bom! Percebi isso desde aquele dia no gabinete.

Sabia que ante essa provocação ele emendaria uma fala infinita, somenteinterrompida pelo seu olhar desprotegido sinalizando que queria ir embora.Aí ele levantaria, caminharia em direção às calças atiradas no pé da cama,reviraria os bolsos, abriria a carteira e estenderia os dedos com as notasdobradas displicentemente. Ela encenaria rubor e, com os olhos baixos,aceitaria o agrado. Mas o prefeito não estava disposto a acelerar o ritmo doroteiro imaginado por Sofia. Levantou, sim, mas cambaleante, como setivesse retornando de uma mijada noturna no terreiro da casa. Seguiu, sim,em direção às calças abandonadas e que formavam um bastidor de panoembolado. Enfiou, sim, as mãos nos bolsos, mas vasculhando os forros emmovimentos circulares e repetitivos, até resgatar um maço amarrotado decigarros sem filtro. Arrancou um deles, colou nos lábios secos e passou achacoalhar as calças até ouvir o ruído quase musical da caixa de fósforos.Apanhou-a, riscou o palito e alumiou o quarto, um arremedo de luminosidadeque rivalizava com o brilho dourado sobre o corpo da moça. Nesse instante,já baforando, olhou-a. Aproximou-se e, estendendo a palma direita, arrancouum estalo da sua anca esquerda.

– Faz sempre isso?

– O que?

– Dar para as autoridades locais.

Sofia sentiu seu corpo aviltado e, incontinenti, recolheu-se, contraindo aspernas em direção ao abdômen, escondendo os seios com as mãos.

– Entendo que seu talento é montar animais.

Ela se levantou rapidamente resgatando do chão as peças de roupas queforam atiradas licenciosamente durante a etapa inicial de sedução, quandoainda imaginava se despir ao filho e não ao seboso pai. Resgatada a roupa,avançou em direção a um canto do quarto para acelerar a operação derecobrir-se.

– Ei, não fique assim. Entendo os seus motivos. Conheci também muitascomo você. - provocou, continuando sentado, nu, o órgão flácido, mascandoa fumaça do cigarro.

Embora não fosse de se enojar com pouca coisa, Sofia começou a notar umengulho se formando na base do estômago. A saliva salgada avisava que elepoderia ganhar sua boca ainda ali dentro do quarto. Por isso tentou seapressar. Vestiu a blusa e ajeitou a saia na cintura. Caminhou para o lado dacama em que estava deitada e buscou os sapatos, calçando-os com destreza.Avançou para a ponta da cama e dirigiu o olhar para o prefeito, que disfarçoue levantou o cigarro, queimado pela metade, na altura dos olhos. Fixou oolhar na brasa.

– Olha, menina, se não quer conversar então não converse. Não vim aqui pranamorar. Você também não. Sei que vida de circo deve ser uma merda. Seuganho como artista também deve ser uma merda. Tem suas razões, assimcomo tenho as minhas. Estou acostumado a negociar. Venha cá!

Receosa, Sofia avançou em passos curtos até se postar de pé ao lado dohomem nu. Assim que se aproximou ele estalou novo tapa nas suas nádegas,soltando uma curta risada. Imóvel, aguardava o desfecho daquela aventura.Olhava para o nicho velado que ficava ao lado da cabeceira da cama,tentando imaginar que santo se ocultava ali e que fora privado de testemunharo pecado do prefeito. Sentiu uma aragem fina vindo do vão debaixo da portaatingindo seus calcanhares. Chegou a arriscar uma olhadela para o teto detelha vã e atentou para o canto de algum passarinho que ciscava no terreiro.Os minutos pareciam se prolongar demasiadamente, até o tempo se esgarçar esua espera se tornar cada vez mais aflitiva. Seu estado foi rompido pelo leveesbarrão dado pelo corpo suarento, que se levantou rapidamente e voltou coma ansiada recompensa. Apanhou-a e, enrolando as notas, ajustou-as emalguma dobra da cintura.

– O senhor é muito simpático! - soltou com escárnio - Não é à toa que setornou prefeito! Prefeito de Santana... - interrompeu, traída pela memória...

Repetindo a curta risada, mas sem tocá-la novamente, o prefeito atalhou:

– Não se preocupe com isso. Aguarde no terreiro. Vou me aprumar e já televo de volta.

Ao abrir a porta e sentir a explosão de luz que vinha do lado de fora docasebre, chegou a perder a noção do tempo, pois as quatro horas da tardehaviam açoitado sua vista com o ímpeto de luminosidade do meio-dia. Doispassos e estava fora. Esperou alguns segundos as pupilas se ajustarem e entãoconfirmou que o sol era mesmo das quatro horas. Sentia seu corpo esguioperder o tônus. Como sentira poucas vezes na vida, ela, naquele instante, erao animal. Sobre seu dorso sentia os pés em ponta de sua alma buscandoleveza e graciosidade para conquistar as palmas do público.

8.

Mal focou o olhar e Sofia detectou um sujeito abrutalhado, com traçoscinzelados, em largos passos em direção à palhoça. Deixara o cavalo rente àporteira e parecia conhecer bem a propriedade. A amazona pensou, por uminstante, quem teria dado a nota de que o prefeito seria encontrado lá.Preferiu não encarar o sujeito que, se tivesse uma cicatriz, pequena que fosse,no queixo, mesmo que ganha num acidente na infância, seria o perfeitocapanga de coronel. Deu alguns passos em direção ao flanco da casa, ondeficava a mesma janela que, há poucos minutos, fora varada pela luz douradaque havia lambido seus seios, barriga, púbis e coxas. Sabia estar nos fundosdo terreno a Willys que a levaria de volta até as proximidades do circo. Antesque conseguisse sair da linha de passos do sujeito forte e rude, ouviu aindagação:

– Cadê o prefeito?

Respondeu com a cabeça, indicando a porta de entrada. Recolhendo o olhar,o visitante deu duas pancadas na madeira e foi envergando a maçaneta. Deolhos fechados, tentando escapar à situação, embora percebesse quedemoraria um pouco mais a se retirar dali, ouviu a voz do prefeito:

– Coronel? O que houve?

Apoiando-se na quina da casa, manteve os olhos cerrados como se quisesseapurar os ouvidos.

– Temos que conversar.

– Como me achou aqui?

– Seu filho avisou.

Um frêmito percorreu as dobras dos joelhos de Sofia. “Ele sabia, então.” Otal engulho que se formara em seu estômago dentro da casa se mimetizaranum fogo crescente que fazia arder suas paredes internas. Ao contrário doengulho, não ameaçava sair pela boca, mas crescer até romper os tecidos dassuas entranhas.

– O caso é simples, prefeito. Temos que acabar com o cabra. Não dá mais praadiar. Quero só que fale com o delegado. O resto faço eu.

O ruído da porta da frente se abrindo em fresta e rapidamente se fechandoconfirmou a Sofia que a intenção do prefeito era conferir se ela se encontravapróxima da casa. Como não vira sua silhueta passando pela janela nem adivisara na entrada, concluiu rapidamente que estava numa distância que aimpedia ouvir a conversa. Mesmo assim moderou a voz.

– Coronel, acho que agora vai ser complicado.

– Homi!

– Há movimento demais na cidade. O circo...

– E lá tenho medo de fantasma?

Sofia deixou escapar um sopro de riso pelos lábios fechados ao compreenderque o fantasma ao que o tal Coronel se referia era a moça que flutuava.

– Não brinque com isso, Coronel. Vamos fazer do nosso jeito, só é preciso tercautela.

– Então bote essa gente pra correr.

– Não posso.

O coronel, depois de ouvir a negação e fazer algumas conexões mentais, deveter entendido o porquê de tanta cautela do prefeito. Não que reconhecesse namulher da soleira a amazona da trupe circense. Aliás, nem deve ter ido aoespetáculo que estreara no final de semana. Mas, apesar de matuto, devia terdeduzido a referência.

– Vamos fazer o seguinte. Pegamos o cabra e levamos pra longe. Sumimoscom ele. O delegado, sabendo do causo, vai segurar.

O mais da conversa Sofia não ouviu. Retirou-se de perto da casa e seguiu em

direção ao cavalo do Coronel. Atravessou a passos pesados, em ritmo seguro,o canteiro que distanciava a modesta cabana da porteira. O calor do chão jáarrefecia. Escutou um zumbido se distanciando, entendendo que os doishomens continuavam conversando. Queria a todo custo evitar o nome dodesgraçado que teve seu destino selado no quarto poeirento onde o prefeitohavia acabado de se saciar com uma artista mambembe. Procurou direcionarseus pensamentos para o filho, que dera a direção para que o pai fosseencontrado. Sim, ele sabia que ela havia atendido primeiro ao prefeito. Talveztivesse se desinteressado dela. Com isso todos os seus devaneios e desejosestavam praticamente mortos. Como o infeliz que não alcançaria o finaldaquele dia. Talvez ele tombasse no exato instante em que estaria cavalgandono picadeiro. Quando, num volteio lépido, jogaria as pernas para o lado elevantaria as ancas para apoiar os pés na sela. O estampido – se fosse arma defogo – estalaria no mesmo instante que as palmas. E Sofia sorriria confiante.

Próxima ao cavalo do Coronel observou a tez brilhosa do animal e o fiobranco que rompia de um ponto equidistante entre as orelhas e escorria até ofocinho. Parecia cindido. Em seu negrume completo, a alma do animal talvezquisesse escapar pelo risco branco da fronte. Apesar de cansado, era um belomacho, guardada as circunstâncias em que havia sido criado. Ao estender obraço e tentar tocar a falha de pigmentação do pelo do animal, ouviu a vozrepentina:

– Cuidado, moça. Esse não é cavalo manso como aqueles do circo!

Sofia retraiu o antebraço. Assustou-se com a presença do homem abrutalhadoque atravessara o terreiro sem fazer ruído, até materializar-se às suas costas.O homem saltou com um pé no estribo por sobre a sela, fez meia volta eavançou com o cavalo em trote. Naquele instante, entre o prefeito que deviaestar enfiando os sapatos e o Coronel que seguia para cumprir o decidido noencontro, uma alma adormecida ignorava seu destino próximo.

9.

Fuseli parecia cansado. Em mangas de camisa, o que não era costumeiromesmo quando acompanhava os ensaios de acrobacia no picadeiro, apoiou opeso do corpo nos calcanhares e os cotovelos nos joelhos. A lona estavapelando e o ar amortecia os movimentos. Mas não dos Irmãos Santana, quesaltavam na cama elástica impulsionando seus corpos para equilíbrios e girosensaiados, entrecruzando-se, volteando o corpo e preparando quedascalculadas que pediam novos movimentos. Os quatro rapazes passaram a seracompanhados pela pequena Paloma, de onze anos, corpo delgado e preciso,evidenciando uma habilidade precoce comum aos artistas circenses.Compenetrada, acompanhava calada a movimentação dos irmãos Charles,Denis, Lucas e Lauris, nomes plurais, com idade intercalada a cada dois anos:22, 20, 18 e 16. Ela era a única singular, embora Lauris, para provocá-la,gostasse de chamá-la Palomas.

Fuseli olhava para os ginastas com certo enfado. Mas sabia confirmar se ogrupo estava afinado. Temia pela menina Paloma, mas já atestara suahabilidade uma centena de vezes antes de convencer-se de que ela deveriaentrar no número. Em sua vida de circo havia presenciado algumas dúzias detombos, alguns bem sérios, outros que inviabilizaram a continuidade dediversas carreiras. Mas a menina era talentosa. Sabia a hora de impulsionar ede cair. Era ágil ao retomar posição para novo salto. Não desviava o olhar domovimento – o que não quer dizer olhar os irmãos, mas suas pernas. Nãodispersava a atenção um só segundo até a sequência de saltos ser completada.

Sem que percebesse, do outro extremo de seu raio de visão, cujo focoestacionava na cama elástica, surgiu Vicenza, a costumeiros passos lentos,presença silenciosa, sentando-se na primeira fila de cadeiras. Ao contrário do

pai, acompanhava com o movimento da cabeça o sobe e desce da trupe.Mantinha-se descalça, o que era seu hábito quando circulava pelasarquibancadas. Os cabelos estavam amarrados, o que também era comum namaior parte do dia. Em geral o elástico só abandonava sua nuca quando elaentrava em cena. Mantinha um interesse absorto, parecendo querer apenasmovimentar o pescoço, não acompanhar a evolução do número. Isso atéperceber a presença de Paloma. Como se tivesse despertado de um transe,passou a observar a expressão concentrada da menina em seu sobe e desce,na sua rotina de pirueta e paradas. Notou que ela mantinha as sobrancelhasjuntas, quase unidas, enquanto trabalhava. Num instante, ela concluiu umasequência de saltos, agarrou a borda da cama elástica, girou o corpo e caiu depé no chão, correndo até Vicenza.

– Oi Vic!

– Oi Paloma. Tá tudo indo bem com os saltos?

– Hoje consegui fazer dois mortais seguidos.

– Como assim?

– Daqui a pouco vou fazer de novo e você vai ver. Eu pulo, caio, tomoimpulso e volto pro lugar do primeiro salto.

– E você treinou muito pra conseguir isso?

– Não, só um pouco. É que as coisas acontecem naturalmente. Vou fazendo eaí... acontece!

Fuseli percebeu a presença da filha quando viu a menina correndo para ela.Estaria cômodo naquela posição, sentado nos calcanhares, até pelo menosquando começassem a formigar. Havia sido ciclista na juventude, tinhatornozelos fortes. Depois, com a idade e com as novas funções no circo, foideixando as atividades físicas para trás. Logo Adeodato se aproximou, comode costume um tanto esbaforido. Trazia um lenço na testa e os olhosapertados com a salinidade do suor.

– Pronto, chefe, acho que vamos fechar a primeira semana com todas asautoridades assistindo às sessões.

– Ouvi falar de um Coronel. Ainda não veio aqui.

– Coronel? Sei. Já me falaram dele. Parece que não é muito de se divertir.

– Não existe quem não se divirta. Só muda o tipo de divertimento.

– Então, acho que circo não é o dele.

– O delegado veio ontem.

Vicenza se animou com a vivacidade de Paloma e resolveu provocá-la.

– O que você sente quando está lá em cima?

– Em cima?

– É.

– É que é tão rápido... Logo estou embaixo!

– Se sente leve?

– Sempre, tanto em cima como embaixo. Acho que embaixo é mais. É que eutenho que dar um impulso com os pés, pois não tenho tanto peso pra alcançaros meus irmãos.

– Sente que está voando?

– Não consigo voar como você.

– Pára. Você conhece como se faz o truque.

A menina riu, como se dissimulasse um grande segredo.

– Veio da cidade? – perguntou Fuseli

– Sim.

– Alguma novidade?

– Parece que houve um crime aqui perto. Falavam em gente do Exército poraqui.

– Exército? Então é sério.

– Ninguém sabe falar direito. Alguém passou a cavalo e viu. Saiu correndo.Contou pra alguém. Aí a notícia correu mais rápido que peão assustado.

Vicenza olhou para a tez de Paloma, passando os dedos nas suassobrancelhas.

– Elas ficam juntinhas quando você está pulando.

– Sério?

– É verdade.

– Gosto do seu cabelo quando você flutua. Ele fica pendurado, é bonito,porque ele é grandão. Você sente ele balançando?

– Não. Não sinto nada quando estou fazendo o número.

– Não sente que está voando?

– Não. Não fico ali. Perco os sentidos.

– Você dorme?

– Mais ou menos.

– Você sonha?

– Sim. Muito.

– Eu também. Quando estou pulando. Sonho o tempo todo.

A menina terminou e correu para a cama elástica. Juntou as sobrancelhas,retesou o corpo, levantou a perna direita e deu o impulso. Seu irmão Denisvoou sobre suas costas, e enquanto descia foi Lucas quem a sobrevoou.Paloma não demorou para emendar os dois mortais prometidos sem

desconcentrar. Vicenza olhava-a, encantada.

– Isso foi longe daqui?

– Parece que foi num lugarejo vizinho. Não foi aqui.

– Bom. Sabe que sempre vêm atrás de nós quando acontece algo do tipo.

– Se sei. Mais fácil culpar quem é de fora.

– Fique atento. Qualquer coisa me avise.

– Tá bom.

Adeodato contornou o picadeiro pelo lado de fora, mantendo a tradição denão atravessá-lo quando havia artistas atuando. Seguiu cegamente, poisolhava para o pequeno monte de papel que tinha nas mãos, como se oorganizasse. Caminhou até Vicenza que, distraída, nem notou suaaproximação. Ele estacou a seu lado e esticou o braço.

– Correio!

Sem desviar o olhar de Paloma, ela apanhou as duas correspondências em seu

nome. Não se deu conta do quanto aquilo era raro nem deixou que uma súbitacuriosidade tirasse sua concentração das sobrancelhas contínuas da meninaque saltava.

10.

Santana da Ponte Pensa, 15 de março de 1975

Cara Vicenza, sim, eu sei que não deveria mais escrever a você e quepossivelmente você nem chegue até o final dessa carta. Confesso que essemeu abuso foi motivado pela certeza de que esta a encontrará com ótimasaúde junto aos seus. Mesmo que as distâncias do tempo e do espaçoaumentem, pois sei que o circo segue em direção ao Norte, continuo ouvindonoite adentro, em minhas horas de insônia, ressoando, aquilo que me disse naúltima vez que nos vimos: “Suas palavras me cortam”. Aos poucos a frase foienfraquecendo meus pulsos, até que um dia me dei conta de que minhaspalavras eram na verdade as facas que eu atirava contra a madeira macia. Porcausa dessa fraqueza fui ficando por aqui, desisti de seguir viagem, arrumeiemprego na roça e hoje ajudo a levar boiada. Sou um peão da fazenda do seuKaran. Sei que peão também tem que ter pulsos fortes pra domar animalbrabo, assim como sei que não vou conseguir fazer isso. Estou cansado. Nãosei bem do que nem o quanto. Só sinto meus olhos queimando, meus ombrospesados, os músculos das pernas esticando uma dor fina. Não queria ter temachucado com minhas palavras. Já pensei que você é que sempre foisensível demais e qualquer coisa que eu dissesse iria mesmo te machucar.Depois percebi que era muito fácil pensar assim, transferindo a você aresponsabilidade por suas próprias feridas. Pensei o quanto podia ter evitadotudo. Mas não consigo saber em que momento exato cortei tua carne comminhas palavras. Talvez isso aconteça não de uma só vez, mas a pele se abracom o resvalar constante da lâmina, num vaivém intenso até sangrar. Perdoe-me. Apesar da habilidade com as facas jamais havia machucado alguém.Acabei por ferir a você, a pessoa a que me afeiçoei mais do que às outras queconheci na vida. Espero que tenha conseguido conquistar a leveza quesempre procurou. E que se sinta leve, solta no espaço.

Com o coração apertado,

Antenor P.

Telegrama

3 de abril de 1975

DEPARTAMENTO DOS CORREIOS E TELÉGRAFOS

AVISO MORTE ANTENOR PT QUEDA FATAL CAVALO PT

JOAO KARAN VG SANTANA PONTE PENSA

11.

Hoje o fogo me ampara. Sobe em colunas desregradas que ramificam aslabaredas sob minhas costas, vergastando o tecido de minha pele. O calorme acolhe e me eleva na sua solidez fluida, quando desejo ser consumida atéque minhas cinzas sejam levadas pela aragem rasteira. Pois que somente acasca do que sou parece estar depositada esta noite na plataforma, e nemoração me fará adquirir massa antes que o fogo me consuma. Vazia, sinto opassado de minhas relações fugirem desse manequim surrado. Por isso meentrego ao fogo, como alguma santa o fez um dia, embora não tenha do meulado vozes ou ruídos que me deem alguma certeza de nada. Quero que o fogose alimente dessa casca e que o mínimo que possa ter de alma se evada demim como uma fumaça negra e concentrada a espargir no ar. Se nada sou,mereço estar sem consistência, sem forma, sem estrutura. Mas o fogo semantém tátil, como uma muralha amparando o que nego ser, me elevando àsalturas num movimento lento e aflitivo. Procuro o ser ardiloso que sempreme espera com seus olhos luzidios, seu sorriso sardônico, as orelhas atentasao mínimo lamento que posso deixar escapar de meus pulmões. Maspermaneço calada. Jamais emito som. O tecido carmim do qual são feitas ascortinas que me ladeiam parece novo. Se volto a olhar, são igualmentelabaredas. Mas retomam a aparência aveludada. Sempre tive aflição àsuperfície do veludo, suas curtas cerdas agrupadas, o deslizar rançoso entreos dedos, a reação imediata de apertar os punhos em sinal de repulsa. E oarrepio que sobe pela espinha, rodeia a nuca e desce novamente, mesmo emmeio ao calor. Maldição de fogo que arde e não queima, que ameaça e nãoconsome! Sem o alento da ameaça do ser ignóbil que sempre me rondou,foco o olhar nas cortinas, ora fogo ora veludo. Dela emerge, então, um vultosombrio, silencioso e absorto, insensível ao calor e à minha aflição. Aliás,nem me percebe enquanto o percebo. Os traços de seu rosto estão difusos.Traz certa familiaridade ao mesmo tempo em que se dissimula. Revelaquietude, nem tristeza nem sofrimento. Penso emprestar ao vulto o rosto deAntenor, morto por seu cavalo. A ideia de cavalo o materializa junto aosmeus pés. Os olhos saltados, as órbitas baças tal e qual o pelo esmaecido.

Mas não há falta de vivacidade em sua figura: resfolega, procura algumtravo que incomoda a língua na boca, balança a cabeça para espantar alguminseto. Só sua cabeça emerge da cortina carmim. O vulto não o olha.Procura algo que não deve saber o que. Movimenta o pescoço, vira de umlado ao outro: não é Antenor. Não há a agudeza das adagas nem o corteafiado lhe emprestando o ser. Sua mudez o exime das palavras que cortavamsuas relações em vida. Ele jaz quase imaterializado. Sua impaciênciatransborda a constatação de sua inexistência. Não montará mais, nãoescreverá, não se concentrará para não ferir. Tem ainda o alento de que suaforma está prestes a se diluir no vazio. Nesse sentido encontrou a porta paraisso. Ao passo que permaneço a meio caminho, por vezes amparada pelovento ou pela parede de fogo, vigiada pelo nibelungo ou pelo animal.Invejando o vulto sem reconhecê-lo, tento reconstituir Antenor com minhasreminiscências. Os momentos truncados de intimidade e o sentimento deapreensão por estar em seus braços, os diálogos repletos de subterfúgios eescapes, a tentativa de compreender o que nem eu consigo entender. Tentoreconstituir sua essência, não o seu físico, que não mais existe. Tento trazê-lopara perto do vulto, como se este fosse uma espécie de guardião, decicerone, de guardador. O que não faz sentido, pois este, ao contrário domeu esforço, sabe que sua essência está prestes a se dissipar. Talvez esseprocesso que conduzo seja uma forma de encontrar alguma redenção – fujoda ideia de expiação – pela ausência que impus e pela ausência que se fazdefinitiva. Por mais que me esforce não brota da textura magenta sequer umpálio luminescente que me cubra e me abrace. As paredes de fogo param devibrar e a cor dilui em vazio novamente. Certamente é hora de voltar. Ocavalo se dissipa e o vulto alcança seu ponto de diluição: retorna àsubstância primordial sem soltar derradeiro lamento. Entrega-se, ao passoque algo ordena que eu levante minhas pálpebras. Sem alternativa, obedeçouma vez mais.

12.

Sofia mantinha seus sentidos adormecidos – guardados – ao mesmo tempoem que continha os gestos ao manipular os talheres. O local era simples, osolhares discretos, embora as línguas das mulheres que serviam e mesmocozinhavam, estivessem inquietas em espalhar a novidade. O filho do prefeitoe a moça do circo. Sentados frente a frente na mesa de tampo gasto demadeira, ele fumava silencioso enquanto ela dava sua primeira garfada naiguaria.

– Conhece?

– Não. Parece boa...

– Parece uma papa. – ele atalhou.

– Como chama?

– Arroz de leite. É feito com arroz vermelho.

Levando o garfo à boca, deixou a papa escorrer e aquecer seu céu da boca.Fez trejeitos de quem degustava, mas sua ansiedade havia adiado até o

paladar. Ante o olhar atento do rapaz, movimentou os lábios e se viu naobrigação de dar um parecer.

– Uma delícia!

O filho do prefeito sorriu parcimoniosamente. Aliás, era contido em tudo. Nofalar, no sorrir, no seduzir. Havia encontrado com a amazona nasproximidades da prefeitura. Convidou-a para almoçar na pensão quecostumava frequentar nos dias em que ficava na cidade à disposição do pai.Aguardava a montagem do consultório. O pai encomendara na capital osequipamentos, que já haviam chegado e aguardavam a instalação. O curso deMedicina tornou seu temperamento mais frio do que já era na adolescência.Sabia do esforço do pai, produtor rural emergente – plantava o tal arrozvermelho –, em financiar o curso e sua estada no Rio de Janeiro. Lá, haviapassado ao largo dos burburinhos ideológicos sussurrados entre bancos esalas de aula justo num período em que a repressão política se intensificava.A própria direção da universidade havia se precavido contra a eclosão degrupos de esquerda mantendo alunos infiltrados para monitorar a atividadepolítica de seu corpo discente. Mas o rapaz, apesar de ser filho de prefeito,não estava interessado na vida política. Muito menos da política de esquerda.Via seu pai como um prestador de contas junto à vida pública, e atribuia a siuma função distinta e também pouco romantizada: a de cuidar da saúdealheia. Sua frieza contrastava com a indolência que o colocava à parte dequalquer situação. Naquele momento, por exemplo, enquanto as mulheres dapensão fabulavam histórias repletas de erotismo em relação àquele encontroinusitado, ele simplesmente olhava absorto para a tez perplexa da artista decirco enquanto ela provava uma especialidade que podia encontrar emqualquer pensãozinha de Santana dos Garrotes.

Conhecera mulheres de todos os naipes no Rio de Janeiro. Vida de estudanteinclui frequentar lugares suspeitos – não tanto quanto os bregas do sertão –,caminhar pela praia como quem nada quer e atrair olhares de jovens de classe

média, participar de festinhas em repúblicas que acabam em orgias, consolarsenhoras casadas que, maduras, buscam um sopro de prazer em rapazesdispostos a qualquer meia hora de transa. Esse era o vocábulo mágico do Rio:transar. A senha para percorrer os labirintos daquela Babilônia ensolarada,cujo entardecer prenunciava a ardência noturna do corpo entre novas festas eencontros, num círculo contínuo de prazeres.

Aprendeu não só a reconhecer as reentrâncias físicas das mulheres como a leros movimentos do corpo e a entender seus sintomas. Muitas vezes sabia queum arquear dorsal podia dizer muito mais do que uma febre. Não precisouobservar por mais de alguns segundos os movimentos contidos de Sofia paraentender sua pronta disposição em acompanhá-lo até a cama mais próxima.Certo, o fato de ser artista de circo já empresta sinais suficientes para tecerfantasias em sedas e rendas artesanais. Partilhar a refeição com umaamazona, então, pensar em sua destreza equestre, sua habilidade em domar osimpulsos animais só para colher a sonoridade do reconhecimento público daspalmas era também parte da construção de uma fantasia pouco usual no altosertão ou mesmo do Rio de Janeiro. Por isso entendia as motivações do paiquando a levou para conhecer as brenhas de sua propriedade e a palhoçasituada no extremo sudoeste da quinta.

– Que especialidade escolheu?

– Aqui não adianta ser médico só disso ou daquilo. Sou clínico geral. Precisoatender todos senão morro de fome com o diploma na parede. E você? Porque escolheu a cavalaria?

A pergunta assaltou a apreensão de Sofia. Poucas pessoas haviam lheperguntado sobre isso. Ora por que... Porque desde menina tinha jeito para amontaria... Mas preferiu uma resposta mais bem colocada:

– Meu pai era cavaleiro.

O rapaz pouco atinou. Não fazia questão de confrontar as respostas da moçanem suscitar novos questionamentos para forjar alguma contradição.Aceitava simplesmente. Mesmo que ela pouco tivesse conhecido o pai, sendocriada pelo tio materno, músico, que a levou para debaixo da lona circense. Amãe prometeu tirá-la dali logo que conseguisse emprego melhor. Cresceusendo treinada para amazona pelo picador Pirilampo, patrão do tio, que a elase afeiçoou e lhe garantiu número no circo quando completou os dez anos deidade. A mãe não voltou mais para buscá-la. Hora ou outra enviava cartas deSantana do Araçuaí, em Minas, onde morava com um ex-amante.

O filho do prefeito apagou o cigarro, deu duas ou três garfadas no arrozvermelho, bicou a água do copo e desistiu do almoço. Mais alguns minutos eacendeu novo cigarro. Sofia começou a se impacientar. Estava aguardando ainvestida, a que cederia sem qualquer restrição e com a maior presteza.Queria sair dali correndo no carro do rapaz, mesmo que fosse para se enfiarde novo na palhoça da tarde anterior. Certamente não conseguiria esperar achegada e o surpreenderia enquanto dirigia. Do carro desceriam ofegantes,céleres, até se atirarem na cama. Sofia não conseguia conter a respiração.Tinha a sensação de que estava transpirando suas fantasias e que o doutorestaria lendo em seu corpo o desejo guardado desde o primeiro instante emque o viu no gabinete da Prefeitura. Olhava para a circunvolução da fumaçado seu cigarro desenhando o vazio do teto da pensão e a ansiedade pareciarevolutear na mesma fluidez. Até que não se conteve.

– Para onde vai me levar daqui?

A pergunta trouxe lembranças recentes de jovens meninas de biquíniassediando os estudantes de Medicina em busca de um confortável futuro –mesmo que fosse no sertão da Paraíba – em pleno calçadão da praia, o grupo

se ocupando em preencher o final de semana com aventuras ensolaradas,sempre concluídas num quarto de hotel. O rapaz olhou a moça que fingiasaciedade com a comida mas se revelava famélica por sexo, soprou a fumaçaem direção à mesa, dissipando-a, e procurou ser claro no enunciado quepreparava.

– A congestão pode matar. Então, vamos ter calma...

Em vez de obstruir o fluxo de seu desejo, a afirmativa do filho do prefeito ainstigou ainda mais. O adiamento intencional de algo que poderia acontecerdali a alguns minutos parecia um prolongamento preparado, como umasurpresa entre casais, uma lua de mel, um fim de semana planejado. Sofiasentia a pulsação percorrendo lábios, peito, abdômen, coxas, lábios. Pensouem pedir um doce, um refresco, algo que dissuadisse um pouco a suaansiedade. Chegou a esboçar verbalmente um início de expressão, que foiabandonada quando o rapaz deu um súbito salto da cadeira e se encaminhou àdona da pensão com a mão no bolso traseiro, de onde tirou o dinheiro.Acertadas as contas, se virou na direção de Sofia e desistiu de se sentarnovamente. Sem reduzir o passo, olhou para a amazona e sussurrou:“Vamos!”. Surpresa, Sofia, que tinha o guardanapo a meio caminho da boca,retrocedeu o gesto e jogou-o ao lado do prato. Quando conseguiu sedesvencilhar da cadeira em que se sentava, percebeu o rapaz atravessando apraça em direção ao hotelzinho que ficava no lado contrário da igreja, o quefoi uma segunda surpresa. Acelerando os passos, quando chegou na porta dahospedaria, o rapaz já subira a escada em direção ao quarto, as botas fazendoo soalho ranger. Sem olhar para o atendente, seguiu o rapaz que a esperavaencostado na parede interna do quarto, ao lado da porta, como um matadoraguardando a sua vítima.

13.

Ele não morreu, Baquinha. Ele está vivo.

Contendo alguma expressão de pena, Baquinha olhou para o rosto pálido damenina e fixou os olhos, que evitavam cruzar com os seus. Rechaçar a perdaé, de fato, uma reação normal para quem sofre a perda. Com Vicenza nãoseria diferente. Ainda mais em relação àquele com que tivera algo próximode um relacionamento amoroso. “Amoroso”, repetiu mentalmente o palhaço.Não havia traço algum de que a aproximação entre o atirador de facas e amenina justificasse tal adjetivo. Diziam-se enamorados, mas sem as tolicescomuns que costumam maquiar a realidade daqueles envolvidos porsentimentos amorosos. Quanto ao contato físico, o inocente caminhar demãos dadas nas tardes em que a dupla sumia do circo, retornando para oespetáculo do início da noite, era o único sinal de que mantinham um vínculocarnal. Assim como Vicenza, Antenor absorveu sua sobriedade, seu mutismo.Fez disso um elemento de aprimoramento da habilidade de atirar facas.Quanto mais quieto, mais parecia adquirir uma concentração voluntária paraevitar o trágico que rondava a expectativa da assistência.

– Mas há um morto. Bem aqui. – disse a menina, em tom entre a afirmação ea pergunta.

Baquinha sentiu um sobressalto. Não gostava de maus agouros. Não deixavaa varrição juntada num canto da parede. Não tolerava quando uma bruxa,com suas asas negras, rompia pela porta da frente da casa, espargindo pósobre a cabeça dos incautos viventes, futuras vítimas do destino. Eramcrenças supersticiosas que venciam facilmente a sua serenidade cômica.

Aliás, um palhaço aprende a equilibrar dentro de si um filtro que ampara aserragem da realidade para, em contato com a fluidez da comicidade, revelara sua potencialidade artística. Ao refletir sobre isso não conteve o braço,levando a caneca de lata aos lábios e sorvendo o gole de café maisreconfortante daquela conversa.

– Outro morto? Do que fala?

– Houve uma morte aqui, não houve? – desafiou.

Não entendia porque Vicenza perguntava aquilo justamente a ele. Sentia umarrepio querendo romper a extremidade inferior da espinha, mas continha-o.Muitos diziam que a menina era vidente ou sensitiva. Besteira que brotava dapersonagem que encarnava durante o número criado pelo pai. A fé do povoacabava forjando uma série de refluxos sobre uma possível santidade damenina que flutuava. Ainda mais no meio do sertão, nas extensões áridas queque costumavam emanar certas entidades bruxuleantes. Não, a menina nãoera santa. Não curava. Não previa o futuro. Mas estava relendo o passadorecente.

– Responde, Baquinha.

– Ouvi algo na cidade. Mataram um lavrador.

Vicenza arregalou os olhos. Era a confirmação. Baquinha engoliu as palavras.As palavras cortantes. Não cortavam a menina, mas abriam fissuras em seupeito. Ao mesmo tempo se calou e mergulhou num silêncio só seu, numa

espiral que o levaria a uma súbita melancolia, prestes a desatar um segredotão bem guardado que mesmo a ele próprio permaneceu em estado de latênciaoculta. O processo, concluído precocemente ante a proximidade de umaluvião de sentimentos, foi aguçado pela incomum amolação de Vicenza.Não conseguia mais conter o jorro de pensamentos.

Sim, ele sabia quem poderia ter sido, pensara ouvir passos, ruídos, o golpe, aqueda, a agonia, o galope. Tudo por um fadário maldito qualquer, ali próximoao circo. Sacudido por lembranças que podiam ou não ser daquele morto,viu-se aproximando a face da boca do defunto para confirmar que não maisrespirava. Saltou e correu, correu, correu, não de medo do corpo caído porterra, mas de cumprir a mesma sina de empapar o pó do chão com o seusangue. Ouvia ruídos que não existiam, via olhares no breu, o cheiro depólvora não lhe saía das narinas, a suor deixava de escorrer de sua testa,coagulado pela poeira vermelha. Afastou-se, abestalhado, sem que Vicenzaentendesse patavina. Saiu apressado e buscou o camarim, onde se atirou noprimeiro vão. Ergueu a cabeça e deu com o próprio rosto assustado espelhadona tampa da caixa de pinturas: a expressão embasbacada, a testa vermelha.Dormiu enrodilhado num canto, e prometeu a si mesmo espanar de sualembrança tal encadeamento de sentimentos inadequados a um excêntrico.Acordou algumas horas depois, inchado, sentindo um bolo preso ao ventre.Havia engolido a experiência e, como uma jiboia, queria aguardar a lentadigestão. Olhou para o lado e lá encontrou o que mais temia: um corpoestirado, junto ao seu.

14.

Os lábios subiram pelas espáduas, encontrando o caminho da coluna, que foilentamente percorrida até que alcançasse a base do pescoço. Lá, elesadormeceram por alguns minutos, preparando o bote, os dentes sendolevemente expostos sem que a presa percebesse. Num movimento rápido, oleve mordisco. Sofia deu um pequeno pulo jogando o corpo para trás,enquanto recolhia o queixo em direção ao peito, instintivamente. Sentia ocorpo do filho do prefeito colado às suas costas, o que foi o suficiente paraque a pele arrepiasse e, em incontáveis pequenas protuberâncias, os porosimplorassem mais do que já haviam se deleitado naquele quarto vulgar dehotel. Respirou, numa profundidade infindável, enchendo os pulmões semjamais alcançar o limite, como se tivesse alcançado um contínuo comumsomente aos instrumentistas de sopro, ao impingir notas cíclicas. O rapazsentiu o andante sendo executado e, antes que se tornasse andante con moto,tratou de assumir o comando dos desejos aflorados. Sussurrou algoincompreensível que percutiu novamente na pele da nuca, a frase sufocadapelas volumosas madeixas. Sofia conteve o movimento, ato contínuo dequem incompreende alguma frase solta. Aguardou por segundos na esperançade que a fala refluísse e, sem resposta, soltou um murmúrio indeciso entre adúvida e a provocação.

– Hum?

O caçador já a esperava.

– Vou te dar tudo o que quiser hoje...

– Hum...

– Mas pedirei uma única coisa.

Não fosse a curiosidade feminina tão aguda a ponto de descoser o prazermesmo quando este não estivesse dando o mínimo sinal de desgaste, e todasas fantasias de Sofia aconteceriam ali, naquele mesmo instante, sobre o lençolpuído, encadeados numa ordem vertiginosa. Saciaria anseios e frustrações,entregue ao seu predador, despreocupada com rastros e sinais que deixassemevidente o ritual de sacrifício a que se entregara. Mas o rapaz, conhecedor dastécnicas tauromáquicas, estocara sua nuca.

– Diga o que é.

Evidente que a execução não se desfere na primeira arrancada.

– Depois.

– Por quê? Diga logo.

– Não, vamos continuar...

O filho do prefeito queria continuar a lide antes da pega. Sabia que umanimal lidado tinha sua fúria ampliada. E se ela despertasse antes da hora,

deveria trocar sua habilidade pela bravura.

Sofia deu um salto e sentou. A firmeza de suas palavras denunciava queestava sangrando. Deu nova arrancada.

– O que vai me pedir?

Já sabia que não eram pedidos de alcova, sacanagens que se insinuam, não severbalizam, se desenham lentamente até que os corpos compreendam asmalícias, acedam aos fluídos. O que ele queria estava fora daquela cama.Talvez tivesse ligação com a companhia. Por isso insistiu, deslizando para aarmadilha que acabaria na execução.

– Quero que me traga a outra moça.

– Outra moça? – indagou, seguindo para a última estocada.

– Sim. A que flutua.

Despida, sem cavalo, sangrada, Sofia tombou no colchão, a espada de seuexecutor pendente, seus sonhos dissipados, sua boca emudecida.

15.

As mãos enrugadas não haviam perdido a precisão: amparando a imensaalça da pesada caneca de alumínio, Juanita sabia dosar os movimentos demodo a deixar escorrer pelo bico abaulado a quantidade certa de caramelopara cada canudo de papel manteiga. Com a outra mão, espetava na sequênciaos palitos que serviriam de cabo – cabos de guarda-chuva – os pequenosregalos que vendia na entrada das sessões.

Era a única habilidade que não perdera com os anos de casada. Nos temposde funambulismo, quando deslizava as sapatilhas sobre a corda bamba, oolhar concentrado oculto pelas pontas espetadas do fru-fru, não conseguiaevitar despertar paixões anônimas. O único que fez questão de impor suafirma, seu nome, foi Fuseli que, casado, ainda tolerou por alguns anos querepetisse sua performance. Assim que ele conseguiu reunir dinheirosuficiente para adquirir seu próprio circo, tratou de tirá-la de cima da corda eenfiá-la nas coxias. Então passou a cuidar da bilheteria e da cozinha,incluindo a produção dos doces, que rendia um pequeno ganho extra que nãopodia ser dispensado.

Sua mãe tinha sido doceira. Não imaginava que um dia abandonaria acozinha para fugir com o moço do circo. Nem que teria seus sete filhos sob alona, entre eles Juanita, a quarta da trupe, corpo esguio, coluna reta,sobrancelhas lineares. Logo que completou os 15 anos foi prometida a umprimo de segundo grau, pretendente também a palhaço. Bateu pé e nãohonrou a promessa do pai, pois já havia conhecido Fuseli. Ele, bisneto deitalianos, o que jamais lhe ensejou forjar o sotaque como fazia seu pai e boaparte dos circenses. Bonito, esguio, versado em magia, sempre honrou osobrenome calabrês, o mesmo que, sob a distração do escrivão, acabou

perdendo um “l” já na segunda geração. Assim que adquiriu o seu própriocirco, já casado com Juanita, mandou fazer um letreiro com uma grafia queabusava das curvas, em que o “F” se enlaçava o “l”. O nome de Juanita vinhatambém de bisavó italiana – Gianne – sobrenome Minelli. Mas a mãe queriaalgo mais “artístico”, o que a fez recair no espanhol. Registrou-a assim, nodiminutivo. Por isso escolhera um nome forte para a filha: Vicenza, queimpediu a todo custo fosse chamada por algum apelido que reduzisse as trêssílabas originais. Adulta, nem ela nem a mãe conseguiram impedir que novosconhecidos a chamassem por Vic.

Já um irmão seu foi batizado com nome russo, Ivan, que artisticamente foiburilado para Tovarish Ivanovich, domador de leões. Deixou a espessa barbacrescer até à altura do peito, alongou os bigodes e, em certa altura da idade,passou ainda a retocar os cabelos das têmporas. O codinome russoemprestava, junto com a pelagem, a bravura que seu um metro e sessenta dealtura negava. Aliás, há tempos não o via. Desde que brigou com a mulher,há uns oito anos, abandonou o circo do cunhado e seguiu com outracompanhia, sabe-se lá para onde. Jamais tivera notícias. A mulher, por suavez, amasiou-se com um sapateiro em Santana da Boa Vista, no Rio Grandedo Sul.

Os anos vividos entre trocos e panelas tinham tirado de Juanita a suahabilidade no arame. Perdera o equilíbrio, o eixo, seus pés talvez tivessem sealargado em demasia, de modo que não conseguia mais acolher o fio delgadosob os calcanhares. Tentou ensinar o funambulismo à filha, havia guardadocom esmero circense a sombrinha vermelha para compor a dança da bailarinaenvolta pela leveza que o número emprestava. Perda de tempo. Foi arrastadapelo número que o marido aprendera de um velho mágico mexicano, bêbado,solto nas valas, sem futuro e pronto a vender seus truques em troca decomida. Foi o que aconteceu. Fuseli, então, decidiu que Vicenza fariasomente aquele número. Apesar de ter bisavós e tetravós nascidos sob a lona,aos seus dedicava controle, e conseguiu encontrar uma forma de tirar mulhere filha do assédio do público: exilando uma na bilheteria e na cozinha; eatribuindo à outra uma aura de santidade que casava perfeitamente com a

personalidade absorta revelada desde a pré-adolescência. Quando a filha seengraçou com o atirador de facas, o pai não perdeu tempo e deu um jeito dese livrar dele. Não da forma mais evidente, mas usando de truques. Intrigas.Até que a aproximação se desfizesse, fato que comemorou silenciosamente,não dispensando sorriso nem mesmo à esposa. Aliás, sabe-se lá do quealimentava seus anseios, se é que existiam. Ocultando-se atrás do crucifixo,herdado de um tio carola e transformado na sua grande marca, não tornavaevidente sua fé nem disfarçava o ceticismo. Era como se tivesse decidido quecorte de cabelo usaria pelo resto da vida, que nome daria ao circo de suapropriedade. A cruz em ferro batido era o próprio Fuseli. Sem contexto oumetáfora. Somente isso.

A filha puxara a ele. “Os silêncios de ambos eram idênticos”, alinhavaJuanita. Como se espera de um maçom, o que de fato era, embora poucodemonstrasse da sua dedicação às obrigações ocultas. Enfim, seguia regraspessoais sem dar satisfação a ninguém, arrastando a mulher e a filha entreseus afazeres.

Juanita parou, depositou o grande caneco ao lado da bacia cheia de louça sujacom água pela metade e passou a vistoriar cada um dos guarda-chuvas. Nãoque fosse fazer alguma modificação radical caso descobrisse um ou outrofora do padrão da média, mas para confirmar a firmeza de sua mão noresultado final da sua tarefa. “Mas por onde anda Ivan?”, deixou escaparmovida pelo pensamento absorto. A frase foi motivada pela lembrançaimediata de que o irmão era quem primeiro experimentava o doce, antes queos canudos fossem encaixados na tábua perfurada e que algum garoto odependurasse no pescoço para vender nos instantes que antecediam oespetáculo. “Passado, passado. Como o passado se gruda aos canudos damemória...”, devaneou. O recolhimento da mulher foi desfeito com apresença sempre esbaforida de Adeodato.

– Senhora, tem uma pessoa aí fora querendo falar contigo.

– Comigo?

Quem naquele fim de mundo se ocuparia da velha Juanita? Não precisou dedois minutos para divisar um rapaz de cabelos aparados rentes ao courocabeludo, a tez queimada, os lábios endurecidos e o olhar assustado de umcoroinha. Era o que era.

– Senhora, boa tarde. Vim a mando do Padre Riba.

– Padre?

– Sim, lá da igreja da cidade.

A complementação desnecessária revelava que o garoto não era só assustado,mas pouco articulado. Parecia querer cuspir algo que lhe tivessem colocado àforça na boa.

– O que quer um padre comigo? Não há muito o que fazer na Quaresma?Diga logo, rapaz!

– Não é com a senhora. O padre quer que a moça que voa vá conversar comele.

– A moça que voa?

– Sua filha! – completou Adeodato, contribuindo com mais uma frasedesnecessária para aquela conversa de loucos.

– E o que ele quer com ela?

– Não sei não senhora.

Nesse instante, chegou Fuseli, pronto a atalhar o rumo da conversa, que haviaouvido quase toda enquanto caminhava até à cozinha após notar a presençado estranho.

– Prometi que a levaria à igreja no dia seguinte à estreia. Acho que é hora deatender ao seu pedido. Diga que ela irá procurá-lo assim que puder.

Perplexo, o rapaz, medroso com as interrupções e intervenções inesperadasno recado simples que se dispôs a dar à mãe da moça, não escondeu alívioquando Fuseli o dispensou do encontro. Antes que sumisse na estrada,Adeodato o chamou. O menino se virou, revelando o rosto aterrorizado.

– Já viu o espetáculo, garoto? Quer uma entrada? – gritou já enfiando a mãodireita no bolso da camisa para apanhar a filipeta colorida.

– Não. Obrigado, senhor.

E saiu correndo como se tivesse visto a sombra do capeta.

16.

Com tom de voz e ar severos, o Coronel adentrou a coxia do circocaminhando em direção a Fuseli. Nunca o tinha visto na vida, mas seguiufacilmente as pistas dadas pelo prefeito: era o homem do crucifixo. O mágico,usando a sua experiência, notou a gravidade da visita ao perceber que setratava de alguém que gozava de respeito na cidade. Havia enfrentadodezenas de colóquios similares nas tantas vilas que visitou na vida, com ocirco ou sem ele. Viu de matador a cangaceiro temporão, de salteador alanceiro, de rufião a pistoleiro, de meganha a pai-de-santo. Em todas asocasiões usou somente da conversa para se desembaraçar. Não tivesse essahabilidade nem dono de circo seria. Nem ao crucifixo recorrera em algumadas vezes. Confiava na sua lábia. Não seria diferente com o determinadoCoronel. Este notara movimento próximo e foi logo disparando:

– Quero dar duas palavrinhas com o senhor.

Fuseli assentiu com a cabeça e caminhou num ritmo um pouco menosapressado até alcançar a beira da capoeira onde havia montado o circo. Ovisitante avançou mais uns três ou quatro passos para prevenir que algumgaiato ouvisse a conversa.

– A que devo a honra?

– Coronel. Pode me chamar de Coronel. É como me chamam por aqui.

– Pois não, Coronel.

– É sobre a moça que trabalha aqui. Parece que faz umas piruetas em cima deum cavalo.

– Sim.

– Ela parece que andou de rabicho com o prefeito.

– Não me envolvo nas relações dos meus funcionários, Coronel. Não sei lhedizer nada a respeito.

A tez queimada do homem se enrugou com o último comentário de Fuseli,talvez por estar desacostumado a argumentos que desviassem o rumo dassuas palavras. Ponderou o fato de estarem acabando de se conhecer e logoencetou:

– O prefeito é meu amigo e sei o quanto mulher gosta de dar com a línguanos dentes. Não quero ela falando coisas aí pela cidade.

– Coronel, não é esse o jeito dessa mulher.

A frase curta e com efeito de novo contraditório foi suficiente para o Coroneltransformar uma súbita desconfiança em meio sorriso no canto direito dos

lábios. Fuseli percebeu e balançou discretamente a cabeça em discordância.

– O que a moça falaria a ponto de incomodá-lo?

O homem foi rápido na resposta para dissuadir qualquer insinuação. Mas foideixando alguns rastros.

– A coisa por aqui não anda muito boa. Há pessoas estranhas na regiãoameaçando os donos de terra, e alguns posseiros querendo falar grosso. Porisso, fique atento!

O dono do circo não esmoreceu o olhar. Era sua especialidade: manter a faceintacta ante a mais escandalosa provocação. Felizmente ninguém seaproximou daquele inesperado encontro, e muitos nem souberam que oCoronel passou próximo à lona do circo. O sol ardia como de costume, e orumo da conversa a precipitou a um final embaraçoso. Para o Coronel.

– Somos de paz. Estamos aqui para divertir a cidade. O senhor ainda não veiover o nosso espetáculo! Traga a sua senhora!

Avançou os dois ou três passos que os distanciavam da entrada lateral nopano de roda e gritou pelo secretário. Este não respondeu. Fuseli olhou para oCoronel como a dar-lhe garantias de que não havia ninguém por perto atéaquele momento. Gritou novamente por Adeodato que veio correndo ao seuencontro, sem perceber que recebia visitas. Ao sair do rasgo vertical da lona,não escondeu surpresa ao ver o Coronel parado ao lado do circo. Fuseliapenas enfiou os dedos da mão direita no bolso da camisa do secretário de lá

destacando as papeletas coloridas das entradas. Contou três, passando-as paraa mão esquerda, estendendo-as ao Coronel.

– Venha! Vai gostar!

O velho de modos de jagunço apanhou os convites e despediu-se com ummovimento de cabeça, partindo no mesmo passo com que adentrara à coxiaprocurando por Fuseli. No desconcerto da cena, em vez de tomar o rumo daentrada do circo, que dava para a estrada, seguiu, rodeando a lona, pelosfundos, procurando com a vista embaçada pelo suor o cavalo que deixara acerta distância, como era seu costume. Chegou a divisar o cavalo da moçaequilibrista, aquela do prefeito, e sentiu seu cheiro, mais maleável, menosacre. “Cavalo de mulher dama”, pensou. E seguiu adiante, confiante de quenão havia boatos a flutuar pelos vazios da companhia, pois se houvesse, todosestariam agora de sobreaviso com sua visita inesperada.

17.

Dividindo a estreita cama do quarto, Sofia e Vicenza partilhavam de umaincomum intimidade, não por parte da amazona, mas da filha de Fuseli, quepouco falava de si a qualquer pessoa ou familiar, embora não nutrisseantipatia por ninguém. Conhecia Sofia desde que era adolescente e sempreouviu a boataria que esquadrinhava sua vida sexual, de cidade em cidade,conquista em conquista. Nem por isso a julgara por qualquer escolha, emborapouquíssimos segredos tivessem trocado sobre qualquer experiênciafeminina. Sofia sabia de suas relações com o atirador de faca, da mesmaforma que a maioria dos que dividiram aqueles tempos de estranheza: a partirdo disque-disque e do silêncio de ambos, especialmente dela, Vicenza, querompia seu absenteísmo, mantido com tanta obstinação desde a adolescência.Enquanto a amazona fumava, achegou-se ao diminuto catre de campanha,trazendo no rosto o sorriso maroto que antecedia alguma provocação. Semque Vicenza esperasse, estendeu o cigarro a ela, aguardando uma reaçãoadversa. Sem titubear, ela apanhou o cilindro fumegante e colocou-orapidamente entre os lábios. Sugou com força, fazendo incandescer a pontapor longos segundos. Em seguida, ergueu o queixo e fez a coluna de fumaçarevolutear pelo ar, movimentos lentos, sensuais, até se esvanecerem. Sofia,surpresa, não conteve a maldade:

– Nossa, anda fazendo isso escondida?

– Por que escondida?

– Você morre de medo dos seus pais...

– Medo não. É respeito.

Sofia continuou mal-intencionada. Queria deixar isso transparecer para queVicenza entendesse que de intenção se faz a ação. Ou melhor: de intenção sefaz a diversão. Por isso ria para si mesma, sabendo que ali, diante da “santaque flutua” não conseguiria tornar a intenção do filho do prefeito em ação,como ele a incumbira de viabilizar. Estimava que ele queria o impossível.Mas aceitou ser a agente de negociação em troca da proximidade quemanteria e que trazia embutida a possibilidade de novo encontro. O rapazparecia obcecado pela ideia de dividir o quarto barato de hotel com amocinha assustada vestida de branco. Sofia tinha motivos para exercitartriplamente o seu sarcasmo: pelo fetiche do rapaz, pela frigidez da filha deFuseli, que inviabilizaria a consumação do desejo do mesmo e o fato de serela, justamente ela, a agente que poderia tornar viável tudo aquilo. Mas quetriângulo interessante! O médico, a santa e a amazona!

O filho do prefeito havia oferecido dinheiro para que Sofia conseguisseconvencer Vicenza a ir ao seu consultório. Uma vez lá, levaria a cabo asedução que planejava para a moça. O aspecto indefeso, virginal, suacondescendência ante o domínio do mágico, eram aspectos que induziam afantasias as mais sórdidas. Mas Sofia nem se deixou levar pela oferta. Sabiaser praticamente inconsumável a proposta. Mas trocou, rapidamente, asensação de traição que acometeu seu desejo quando o rapaz fez a proposta,pela vontade de rir da situação, de confirmar o desdém e o nojo da moça antequalquer insinuação.

– Não cansa de ser sozinha?

– Como assim?

– Vai passar o resto da sua vida esperando o atirador de facas?

– Antenor?

– Era esse o nome dele? Não me lembrava.

– Ele não vive mais. Recebi um telegrama falando de sua morte numafazenda. - respondeu, devolvendo o cigarro.

Surpresa pela segunda vez desde que o estendera a Vicenza, Sofia rejeitou-o,jogando-o pela janela do trailer.

– Desculpe, não sabia.

– Tudo bem.

A amazona manteve dois minutos de silêncio antes de reiniciar.

– Tem uma pessoa que quer te ver.

– Pessoa? Quem?

– Um moço aqui da cidade.

– Sofia, não. Não me interessa.

– Calma. Não é nada disso que está pensando. Ele é médico. Te viu nasemana passada, no número, e pediu que te convidasse para uma consulta.Ele é filho do prefeito da cidade.

Visivelmente desconfiada, Vicenza pouco demonstrou interesse ao conviteum tanto estranho. Sequer perguntou mais sobre a história mal-ajambrada queSofia escolhera a esmo para testar sua incredulidade ante o papel deagenciadora que desempenhava.

– Eu vou. - desferiu a filha de Fuseli.

Sofia não conseguiu disfarçar o impacto da terceira surpresa em pouco maisde dez minutos de conversa. Arregalou os olhos e acabou deixando o arescapar pelos lábios apertados, não contendo um leve assovio.

18.

O doutor está dizendo que ele morreu?

– Ele abusou muito do álcool!

– Ai, ai, ai, coitado do meu marido...

– Não chore mais, não adianta. Chamaram-me muito tarde.

Mal o doutor virou as costas e o casal não se conteve, mesmo diante dodefunto.

– Graças a Deus! Agora casaremos e vamos viver felizes.

A mulher era Sofia, enquanto o marido salafrário era vivido por umexagerado Adeodato. Baquinha se fingia de morto, despertando a cadainstante o riso rasgado do público, pois reagia com caretas a todo o diálogodos dois embusteiros. Entrou então um dos Irmãos Santana, Lauris, que desdea última temporada tinha aceitado servir de escada nas entradas de Baquinha.Assumiu o apelido de Pirulito, dado pelo parceiro, e ali desempenhava umcriado atrapalhado e medroso. Sua visível inexperiência revelava o grandeesforço que fazia para atender às sutilezas do personagem.

– Agora você fica aqui com o defunto que vou sair.

– Isso não, patroa! Eu ficar sozinho com esse defunto?

– Mas eu tenho medo de ficar aqui com ele, Pirulito...

– A senhora tem medo agora que ele está morto! Quando estava vivo, asenhora não queria que eu viesse aqui! E eu tinha que ficar olhando noburaco da fechadura!

Baquinha chega a levantar o tronco para comentar com a fisionomia asrevelações que acaba de ouvir. A boca exageradamente escancarada, realçadapela pintura que reforça a curva labial, faz o público vir abaixo. Mal a patroase afastou, ele apanha a bengala solta ao lado da cama de campanha e leva-aaté o traseiro do rapaz.

– Olha a mandioca!

O desespero do criado é duplicado: por causa do bordão, que já é esperadopelo público que o conhece das entradas cômicas, e por vir justamente de ummorto! Pirulito levanta os dois pés do chão e joga os braços para o alto. Porsua vez, Baquinha fecha os olhos e se apruma na posição de morto. Poucossegundos é o que Pirulito precisa para deixar o tédio vencer o medo. Elerecosta na cadeira e começa a cochilar. Baquinha percebe e se senta na cama.

– Nossa, morrer dá sede!

Apanha o copo d´água que está sobre uma mesinha redonda, começa a bebermas percebe que Pirulito desperta com o movimento. Isso o faz deitarnovamente, cruzando os dedos sobre o ventre. O criado se aproxima e cutucao morto, esperando reação. Nesse momento a água esguicha como a umchafariz da boca do palhaço, atingindo o rosto de Pirulito.

– O que ouve? - indaga Sofia, que retorna à cena.

– O morto cuspiu em mim, patroa! Bem na hora que a senhora estavachegando!

A amazona tenta ser convincente no papel. Faz sempre a ingênua, masnaquela comédia devia ser a adúltera. Exagera nos gestos desatados, comorequer a uma atriz de comédias. Logo entra Adeodato, todo almofadinha,com cara de canastrão, querendo demonstrar vileza e escárnio. Dialoga emmeio sussurro, tentando dar à voz o tom amalandrado que foge ao seu caráter.Assim que chega bota Pirulito para correr.

– Amanhã, depois do enterro, vamos para o Rio de Janeiro.

– E depois para a Europa...

Baquinha pega a bengala e a levanta na direção de Adeodato. O público seprepara para deixar soltar o riso no momento certo. Uma criança sempreacaba antecipando a suspensão que antecede o instante da gargalhada.Quando a bengala parece já resvalar os fundilhos do trapaceiro, Baquinharecua. Decide adiar o bordão “olha a mandioca!”, ampliando a expectativa da

plateia.

– Vamos pegar a herança do morto e gastar em viagens e passeios...

– Quando acabar voltamos para esta casa e começamos a nossa vida...

Baquinha solta:

– Podem ir que quando voltarem vão me achar aqui...

– Que foi querido?

– Eu não disse nada!

Pronto, é a deixa para o grupo de crianças da primeira fila esticar osindicadores e apontarem para o morto que não morreu.

– Ali! Ali! Ali! Ali!

Baquinha volta a deitar. E, deitado, é uma pândega! Apaga quando um dostrambiqueiros se volta para ele. Subitamente ergue o tronco em caretas eameaças mal o casal lhe vira as costas. Assim alterna, de modo que o diálogosem importância entre os golpistas some sob as gargalhadas. Pirulito vai

entrando e não entende a cena, com uma bandeja servida com duas xícaras decafé. Mantém a fisionomia fixa, como a de um mordomo, encenação que nãolhe exige muito mas que desempenha com zelo. Ao ver o morto fazendocaretas ameaça gritar, mas a bengala assume outra forma, menos fálica e maisameaçadora: Baquinha a brande na sua direção e Pirulito mantém suspensoum grito mudo, engasgado, ao passo que o rapaz balança nervosamente acabeça para cima e para baixo. Antes que Pirulito resolva gritar de verdade,Baquinha rapidamente empunha a bengala na forma tradicional e aplica obordão no trapaceiro Adeodato, que dá um espetacular salto do chão. O circovem abaixo!

– Então são amantes, seus picaretas!

– Amantes? Mas isso é uma calúnia!

– Eu vi tudo daquela cama!

– Mas você não estava morto?

– Eu estou!

Nesse instante a garganta de Pirulito destrava e o grito agudo corta a cena. Abandeja voa pelos ares e as xícaras dançam no vazio. Baquinha corre até acama e tira um revólver debaixo do travesseiro.

– Vocês vão se ver comigo!

Começa a correria. Giram os quatro pela extensão do picadeiro, enquanto asespoletas que estalam produzem uma fina fumaça e espalham o cheiro depólvora queimada. É o clássico desfecho das comedinhas de picadeiro.Desfeita a cena, Baquinha ainda volta para apanhar a bengala caída ao chão.Ao sair, se depara com Pirulito abaixado, procurando a bandeja. O público jásabe o que vai acontecer. Vai ganhar nova repetição do bordão. E se preparapara rir novamente. E como dentro do picadeiro não há a alternativa deretroceder naquilo que o público quer, a cena se repete.

19.

Amanhã que prometia fastio e modorra rompeu sonora. Fuseli, que acordacedo, antes mesmo de Juanita e da filha, sendo precedido somente peloinsone Adeodato, mal desceu do trailer e ouviu os acordes vindos dos fundosdo circo. Rejeitou de cara a hipótese de rádio, pois o som era límpido e altodemais para sair de uma caixinha de sonoridade metálica. Notou os acordesdesencontrados, buscando alinharem-se em harmonia. Alguns dedilhadosdepois romperam as vozes, com uma potência súbita que despertou todo ogrupo que ainda resistia na cama mesmo com a temperatura já alta naqueleinício de manhã. Foram se aproximando, um a um, para recepcionarem adupla um tanto inusitada. Os irmãos anões cantavam empunhando violasnormais, o que era curioso, pois ambos sumiam atrás dos instrumentos,enquanto os dedos gordos e diminutos corriam de um lado a outro sobre ascordas. Haviam circulado por anos no Circo Rialto, depois cumpriram curtatemporada no Grande Circo Europeu. Há uns sete anos decidiram ir com ocirco que lhes pagasse a temporada, sem se fixar em companhia nenhuma.Cantavam bem, vozes brilhantes e bem ajustadas, afinal eram irmãoslegítimos, não gêmeos de idade, mas de timbre.

Uma família de anões. A mãe era a única com estatura mediana. Casara-secom o antológico Pimpolim, palhaço anão que sempre irrompia no picadeirosaindo de algum objeto: mala, criado-mudo, tamborete. E justo no momentocrucial da cena, quando a mocinha iria beijar o galã, quando o cínico haviaencurralado o herói, quando o velho ia surpreender a filha com o enteado.Juntos tiveram três filhos anões. Todos homens. Toda vez que estava parindoum filho, a mãe perguntava à parteira:

– É anão? Diga que é! Diga que é!

O mais novo, revoltado com a convenção de que todo anão deveria trabalharem circo, decidiu sair pelo mundo procurando profissão menos inconstante.Foi sapateiro, entregador de jornal, hippie fazedor de pulseiras de miçangas,até chegou a esmolar por uns meses, morando nas praças e comendo nosfundos de um restaurante popular. Por fim seguiu com uma trupe de ciganose atravessou o país a bordo de uma velha Kombi barulhenta, vivendo debarganhas e pequenos golpes. Sempre mantendo a rejeição ao picadeiro. Sónão conseguiu fugir à vida itinerante. Já o mais velho e o do meio seinteressaram por música desde o início. E por imposição do pai, o talPimpolim, que nem tocar instrumento tocava, mas conhecia quem ensinasse.Mal entraram na adolescência e formaram a dupla Pitico e Pitoco, nomeinspirado dado por um velho palhaço. Por terem voz e afinação, chegaram atéa cantar em diversas emissoras de rádio da capital. Mas a vida de circo oslevou para outras paragens, tão distantes que a solução foi cantar naspequenas emissoras locais. Tinham ido, aliás, no dia anterior, na rádioDifusora de Santana de Garrotes, onde cozinharam no estúdio do locutorArmando Sézo.

Eram conhecidos por todos os que formavam a trupe atual da companhia deFuseli. Uns de nome, outros de vê-los atuando. Fuseli já havia trabalhadocom a dupla. Só não entendia o que faziam no alto sertão, longe das cidades esem circo. Baquinha, que havia acordado com ânimo abalado, logo seentusiasmou ao ouvir os versos da triste moda entoada pela dupla. Sentou-sepróximo e acompanhou, silencioso. Já os Irmãos Santana não paravam defalar, comentando, debatendo, uns em sussurro, outros em voz alterada. Nãose interessavam em acompanhar a história cantada pela moda de viola, porisso se postavam à distância.

– “Para o bom artista o circo é seu mundo/De cada segundo tem novaemoção/Só aquele recanto coberto de pano/Sabe o desengano do meucoração/Todas as vezes que eu entro para o picadeiro/Vejo o circo inteiro meadmirá/Porém ao contrário, a realidade/Muitas vezes sorrindo quando naverdade/Sinto no meu peito o coração chorá.”

Juanita, que havia sumido para a cozinha, voltava com o café passado,servido nas canequinhas de lata, resvalando nos artistas da trupe, masdesviando das mãos afoitas que se estendiam em direção à bandeja. Primeiroas visitas. No arremate da moda, a plateia explodiu em aplauso. Pitico ePitoco inclinaram o pescoço para agradecer, sorriram, e avançaram no café.

– É de Tonico e Tinoco. Eles gravaram um disco só com música sobre ocirco. Uma beleza! - rompeu a catarse o mais velho dos irmãos, Pitoco,primeira voz da dupla.

– Que surpresa receber vocês aqui! – saudou Fuseli.

– Chegamo ontem na cidade. Tamo vindo de São Paulo há um mêis. Foi ohome da rádio que disse que cês tavam aqui. A gente vinha ver o espetáculoonte, mas acabamos indo pruma festa na casa do prefeito... – respondeu oanão.

Pitico se viu na obrigação de complementar a história respondendo sobre oporquê de estarem lá, sem circo.

– A gente tava no circo do Chico Fumaça, mas se desentendemo e partimopra capitar.

– Pois é, cheguemo aqui e vimo que o clima num tava muito bão pelo sertão.Aí paremo pra tentá argum dinhêro.

Fuseli não escondeu a surpresa.

– O clima não está bom?

– Acho que é geral, viu. Lá em São Paulo também tá ruim demais...

Pitico era o metido a dar a notícia na frente de Pitoco, atropelando-o.

– O que tá acontecendo? - insistiu Fuseli.

– Os terrorista. Se fala muito disso lá. Arguns circo já tiveram problema comisso...

– Conta direito, Pitico! É que os meganha tão atrás de gente metida compolítica. Sabe né? - e colocou a palma da mão no canto da boca, sussurrando -Comunista...

– Quando não tem com quem se meter, vão bater lá no Café dos Artista, noLargo do Paissandu, atrás da gente. Eles pergunta, quer saber de uns, vãodando geral... É só encostá um camburão que o pessoar do circo já começa adispersá...

Fuseli achava aquilo muito estranho. Mal ouvia notícias do Sul, pois poucoencontrava com os artistas que estiveram há pouco por lá, como era o caso

dos anões. De mais a mais, a vida no circo continuava sendo a mesma.Lembrou do crime que corria à boca pequena na cidade e pensou se tinhaalguma ligação com a polícia procurando terrorista.

– E como está o movimento dos circos no Paissandu?

– Uma beleza, seu Fuseli! Aquilo continua sendo a nossa casa!

Ao ouvir o termo Paissandu, várias pessoas da trupe se aproximaram, jáempunhando suas canecas de lata. Cada qual tinha engatilhado o nome dealguém para tentar saber notícias. Muitos estavam longe do Sul há mais deano e qualquer meia notícia satisfazia a curiosidade e amainava a saudade.Logo o grupo ocultou a dupla, enfeixando-a numa roda de perguntas.Vicenza, que acompanhou o final da moda e o diálogo entabulado pelo paicom os visitantes, sussurrou no ouvido de Baquinha que logo levantou a vozpara pedir:

– Pitico! Pitoco! Risca aí pra gente ouvir uma do Tião Carreiro!

Ao soar da voz do palhaço, a roda se abriu e os anões reapareceram um tantoatarantados. Pitoco agarrou logo a viola e com os dedos sobre as dez cordas,os acordes já definidos na intenção, foi logo respondendo com os versos:

– “Já fui paiaço numa grande companhia/quando outra oferecia pra mim bomordenado/o meu patrão num deixava eu saí/no outro dia sem pedi, meusalário era aumentado...”

Baquinha assentiu, como se já soubesse o que tocariam, ainda mais a pedidode um palhaço. Ao final, novo regozijo da trupe. Pelo resto da manhã, até àhora do almoço, a dupla de anões foi disputada e ouvida em narrativas deaventuras, notícias esparsas de familiares circenses e mais algumas modasdedilhadas com naturalidade e interpretação cada vez mais rebuscada.Contaram das desventuras de casais que se separaram durante a temporada,de provocações feitas em pleno picadeiro, na frente do público, e as melhoreshistórias, que ficaram para a hora do almoço, quando todos já estavam namesa: as troças feitas durante as encenações da peça A paixão de Cristo queos mais velhos conheciam como O mártir do Calvário. Quantos Jesusperdendo a pose em plena cruz e apóstolos embriagados sacaneando oscolegas em cena!

– O cara lá na cruiz e chega aquela hora que dão vinagre pra ele bebê... Elespegaram aquela esponja e puseram um queijo estragado ali no meio eenfiaram na cara do coitado, amarrado lá na cruz... Ele ficava resmungando...Vou pegá voceis! Vou matá!

O grupo explodia em risadas.

– Verdade... Não é Pitico?

Numa dessas histórias, Pitico, que sempre deixava as indiscrições escaparem,enquanto Pitoco se atinha às narrativas, ouviu-se uma história de assédioocorrido no pano de cena na hora em que entravam para o picadeiro. Ahistória poderia ser usual não fosse o assediador um efeminado malabarista.

– Ele lá, com o monociclo e um maiozinho de lantejoula... Era uma bichinhaconhecida até... Ivan! Ele se chamava Ivan...

– Teve um paiaço que me disse que ele já tinha sido até domador...

– Bichinha daquele jeito?

– Todo reboleando e foi logo pro lado do Pitico...

– Meu não! Ele gostô mesmo foi do Pitoco...

– Ivan... como é que chamavam ele lá? Um ôtro nome...

– Era um tar de Tovaríchi...

A trupe entrecortou o diálogo com novas gargalhadas. Fuseli, distante e jáfazendo os cálculos para incluir a dupla na temporada, não chegou a ouvir ahistória. Mas Juanita ouviu. E foi a única que não achou graça.

20.

No meio da tarde, já contratados e satisfeitos com a proposta de Fuseli,Pitico e Pitoco se incorporavam à vida modorrenta do circo. Iriam estrearnaquela noite e tocariam o repertório costumeiro, Tonico e Tinoco, TiãoCarreiro e Pardinho, e, por necessidade, Luiz Gonzaga, que é quem reinavaali pelo sertão. Baquinha, perambulando pelas arquibancadas, viu Pitocojunto ao pano de roda, olhando para o céu sempre sem nuvens de Santana dosGarrotes. Esperava encontrá-lo só em algum momento, não esperava quefosse tão cedo. Pitoco viu-o e, como era de seu feitio, pôs-se à disposição.

– Lá no Café você ouviu alguma notícia de um certo atirador de facas?

O anão crispou as faces e fechou o cenho.

– Antenor é o nome dele.

– Eu sei... - disse, olhando para os lados, um prelúdio da necessidade dediscrição para

falar do artista perguntado.

– É seu aparentado?

– Não, trabalhou aqui com a gente.

– Os home tá atrais dele. Os meganha.

– Ele não tá morto?

– Morto? Só se foi de um mêis pra cá. Eu mesmo vi ele no Café, mas saiu defininho. Parece que tá envorvido com os terrorista... Tava sem trabaio, foiprocurá o que fazê. Tinha saído de uma fazenda no interior...

– Estranho. Recebemos um telegrama avisando que morreu ao cair do cavalo.

– No circo?

– Na fazenda.

– Não, na fazenda não foi. Ou pegaro ele ou tá por aí.

Baquinha foi quem crispou as faces dessa vez. Mais um morto a assombrarsua vida. Agora era um par de defuntos. O outro, que atormentava seussonhos há pouco mais de uma semana, que o arrastava a pesadelos lúcidos, seamarrara ao seu dia a dia de tal forma que parecia não haver lugar ondeescapar daquele encosto. O palhaço chegava a sentir uma estranha friagem àssuas costas, como se tivesse nelas grudado o defunto do tal Ferreirinha,

aquele da moda de viola, o parceiro morto carregado pelo peão sobre ocavalo. Somente quando entrava no picadeiro, parecia livre do peso.

O corpo, enfim, era pior do que qualquer ectoplasma. Assombrava não porseu aspecto feérico, mas pela solidez mórbida com que se arrastava atado aopalhaço. Aliás, Baquinha tinha a sensação de que todos podiam vê-loagarrado aos seus calcanhares. Na noite anterior, ao falar com Fuseli, sentiuum ar de cumplicidade do patrão, como se ele tivesse de posse do fato, prontoa atirar-lhe no rosto. Embora não fosse disso, o mágico sempre mantinha umar de mistério: cacoete de ilusionista. Vicenza dera sinais concretos de quesabia. Sabia, aliás, da verdade de todos os mistérios. Por exemplo, que oatirador de facas estava vivo, como acabara de confirma o cantor anão. Sabiaque alguém tinha sido morto na região. Só não conhecia os detalhes. Quemera o matador, o mandante, o motivo. Baquinha ouviu dizer na cidade que setratava de um homem metido com terroristas. Comunistas mesmo. Faziaparte de um movimento de camponeses. Achava engraçado o termocamponês. Assim que ouvia imaginava gravuras bucólicas, em tons deamarelo, feno, capim, palha seca, a família trabalhando numa roça próspera,farta, rostos corados. E não os empoeirados e cadavéricos esfomeados de péno chão, as paisagens terrosas entremeadas por galhadas em forma deesqueleto, os mandacarus sinistros onde a fé abandonou famílias e cacimbas.Nessas condições, atirar num cabra marcado é laçar rês abalada. Entre o sustoe a morte, restava somente a reação instintiva. Falavam também do Coronel.Quase que por olhares, com meias palavras. Menos que meias. Baquinhatinha visto o Coronel rondando o circo, falando com Fuseli. Sabia que ondehavia poder certamente havia histórias mal contadas. Com começo e fim, massem o meio.

Enfim, era domingo. Assim que acabasse a função daquela noite colocaria opé na estrada. Iria para Santana de Mangueira, a vinte léguas dali. Arrumouum vaqueiro que o levaria ao ponto da marineti. Lá, pegaria um carro dealuguel e seguiria por uma ou duas horas até a cidade, onde localizaria logo alona armada. Para isso passaria a noite seguindo na estrada escura. De olhosabertos no escuro. Não veria nada. Não veria o corpo morto. Não perderia osono.

21.

Ondulações de calor emanam do chão calcinado. Há cinzas por todo lado euma casca negra, um betume de almas e animais, vegetação e minerais, umresíduo com gradações cinzentas, de uma paleta de cores que parte dobranco esmaecido até o negro mais profundo e deglutidor de vida. Pairo adois palmos das cinzas, como se ganhasse peso, como se meu corpo estivesseprestes a também ser consumido pelo calor emanado pelo solo, como sehouve sob a cinza uma enorme grelha prestes a me consumir. Olho para olado e vejo cadeiras de madeira sem pernas, carvões esparsos, bonés, pés desapato, pedaços de tecido, o cheiro de cera incendiada, um tecido fino, a quechamam de carne seca, vermelho, encerado para que a água da chuva nãopenetre, mas que a chama consome com lambida única e voraz. Ouço gritos,correria. O chão calcinado. A pele do circo queimada, as cordasenegrecidas. Não vejo fogo: não há mais. Somente fumaça e cinzas. E restosde correria. O pesadelo. A tragédia. O pavilhão sem listras, sem estrelas,somente o pau queimado, sobras a meio pau. Crianças, pais, avós, já não há.

Tento apanhar um punhado de cinza. O calor aumenta a medida que meusdedos se aproximam dos restos. Até que apanho um punhado e esfrego asdigitais. Um fino pó seco. Nele há dor: em cada fino grão. Busco imagens,figuras, alguém que me espreita. Nada vejo. Olho para o alto e o céu sedescortina cinzento, nuvens baixas que podiam prenunciar chuva mas nãopiscam em relâmpagos, mantêm-se imóveis em seu fumo negro, impermeável.Minha túnica alva destoa de cenário tão sombrio. Ela a mim incomoda esinto um impulso de me desnudar, buscar a pele também cinzenta ocultadapelo tecido. A imobilidade não me deixa levar a cabo tal intenção. Mas tento,de alguma forma, dissolver o pano com o calor do meu próprio corpo. Sintouma fonte aquecer meu ventre, como se fosse um ser sendo gerado, atraindopara si toda a energia guardada por minhas células, toda a correnteencadeada pelos glóbulos. Sinto, então, essa quentura escapar pelos poros.

Olho novamente para a túnica e a trama do tecido parece derreter com ocalor emanado pelo meu útero. Os fios não se grudam à minha pele, mas sedissolvem e escorrem como se fossem feitos em gelo. As gotas descem pelaplataforma e caem com estridência sobre as cinzas, abrindo pequenas coroassobre a superfície. Assim, desnudo-me abrindo coroas no chão. A aridez doentorno parece também desnudar a realidade: o vazio cinza que me envolveamplia a imagem do local onde me instalo. Além da plataforma, nada maishá, não há parede, não há paisagem, não há horizonte. Assim, nua, meencontro solta no vazio cinza, gerando coroas para o silêncio. Com medo deme perder nessa construção, desenho mentalmente em volta do meu corpoleve e nu uma circunferência, um mundo que me ampare e que me dêvínculos, que me impeça de me dissolver de vez no pó cinzento. A linhaimaginária se desenha sobre o solo, como um pequeno muro a um palmo dochão. Começa num ponto e vai riscando o nada, firmemente, com poucaespessura. Está acima do chão e abaixo de mim. Assim que o risco volta aoponto de partida, fechando o ciclo, um súbito preenchimento toma a elipse.Não há mais o nada, pois todos os sonhos que povoaram as minhasexperiências mágicas resolvem saltar do meu corpo nu para preencherem aminha volta. Monstros, animais, anões, guerreiros, bonecas, espantalhos,sentimentos, vegetais, pedras preciosas, tesouros, medos, baús encerrados,palavras mágicas, chaves sem fechaduras, cordas, correntes, armas antigas,cofres sem segredos, ferramentas, palavras cortantes, brinquedosincompletos, figurinos, livros com páginas arrancadas, flores secas, sempre-vivas, utensílios de alumínio. Meu corpo inerte é circundado por essaparafernália de objetos, palpáveis e impalpáveis, que jorram aos borbotõesde dentro de mim. Aos poucos eles se amontoam e começam a erigir montes,pilhas que me soterram lentamente. Tento ouvir um ruído, um zumbido, ummurmúrio que parece vir daquele mundo que foi forjado com essa minhacoleção de cacarecos. Tento distinguir se é voz ou barulho. Mas minhaimobilidade física é também sensorial. Apenas observo tudo o que se espalhade mim. É fala, sim, de uma voz desconhecida, mas são fonemas que vão sejuntando e construindo um sentido. Um sentido que está além da minhaconsciência, partindo de algum outro tempo ou espaço, embora estejacircunscrito ao círculo que desenhei. Uma voz de velho, de pregador, decolecionador de histórias, de um louco de Deus.

– O circo é o mundo representado porque o mundo é redondo e o circo éarredondado.

A fala desperta uma reação nos objetos, de modo que eles se desintegramrapidamente espargindo fragmentos que, como limalha sobre o magneto, seorganizam em padrões e envolvem a minha nudez. Ergo as costas daplataforma, olho para os meus membros pálidos, a altura do chão, tomo adecisão de movimentar as pernas para saltar. A limalha vai delineando umaesfera de partículas ao meu redor. Não perco tempo em acompanhar obailado do pontilhado negro, pois há uma missão mais pragmática:conseguir movimentar a metade inferior do meu corpo, ainda imóvel. Façoum esforço incomensurável, sem efeito. Quando o desespero começa a fluirem ondas do meu plexo há um súbito rompimento. Volto à posição e ouço aladainha. Retorno. Uma vez mais.

22.

O desconforto do banco traseiro da imponente Rural Willys, propiciado pelaburaqueira da estrada que ligava Itaporanga a Santana de Mangueira, deixoumoídas as costas de Baquinha. Afora isso, era o único sinal de cansaço danoite de viagem. Suprido pela expectativa da reunião, não sentia as pálpebrasraspando em grãos de areia pela noite insone. Desceu do veículo,cumprimentou o chofer, que recebera antecipadamente e seguiu emcaminhada cega, procurando sinais que o levassem à tenda de lona doPavilhão Bezerra. Havia pouco movimento naquelas primeiras horas damanhã, um cão sorrateiro cruzando o terreiro, um cavalo espantando asmoscas com o rabo, uma velha senhora tentando apertar o passo, caminhandotalvez em direção à primeira missa do dia, envolta numa mantilha rendilhada.Baquinha seguiu em ritmo constante, embora sem saber para onde. Passoupor um grupo de casinhas com fachadas estreitas, uma delas com a janelaaberta e um quitandeiro arrastando sacos de legumes pela porta diminuta. Asparedes estavam encardidas e o batente apoiado em ranhuras esfareladas pelotempo. Entretido na tarefa, o quitandeiro percebeu a presença de Baquinhamas manteve discrição. Sequer lançou o olhar na sua direção. Mesmo após sedistanciar das casinhas, Baquinha cedeu à tentação de virar o pescoço econfirmou o olhar bisbilhoteiro do homem. Nada o surpreendeu além docaminho vazio e silencioso, cortado somente por um ou outro cacarejar degalo preguiçoso. Ao cumprir a curva da estrada, divisou o núcleo central dacidade: as poucas ruas decantadas, a igreja com a porta semiaberta. Àesquerda, distante uns oitocentos metros, percebeu a lona ocre, imóvel. Aodesviar os passos e se aproximar da tenda, notou um traço de umidadedeixado pelo orvalho do amanhecer e que se evaporava rapidamente com olamber da língua engalanada do sol. Não havia movimento nas proximidadesdo pavilhão. Baquinha rodeou a tenda lentamente, esperando que aparecessealguém. O silêncio do ambiente evocava algum desencontro. Ao seaproximar da abertura do pavilhão, sentiu uma presença. Olhou ao redor, masnão divisou criatura viva. Ao retomar seu rumo, quase caiu de costas. À suafrente estava um taciturno magrelo de olhos preguiçosos. O cabelo

desalinhado e a boca cerrada deram mais dramaticidade ao susto. Baquinhanão o conhecia. Fez um breve cumprimento, mas o homem longilíneo semanteve estacado.

– Vim para a função.

– Função aqui só à noite. - entrecortou.

O palhaço esboçou impaciência. “Mas que raios de figurão impertinente!”Respirou e soltou:

– Abelha, abelhinha.

Daquela vez foi o comprido quem arqueou a coluna, empertigando-se numaimensa interrogação.

– Sabe do que estou falando... – apertou, deliciado com a situação.

– Baquinha?

A voz saiu de dentro do pano de roda. Logo surgiu um senhor com olhosespertos por detrás dos óculos com lentes esverdeadas e dentes enfileiradosnum sorriso geométrico. A pele queimada e a estatura confirmavam.

– Picoly! Há anos não o vejo!

– Sim, meu caro! Venha que há mais gente que não vê há tempos e que estálá dentro.

Olhou para o patético interrogativo, que logo aprumou a postura, tentandoemular-se em tensa exclamação. Picoly riu de seu espanto repentino.

– Obrigado, Lombriga!

Foi a senha para adentrarem ao recinto solene, onde imperava o silêncio daespera. Havia um bom grupo reunido, rostos empertigados, atentos, poucomovimento. Sentavam nas cadeiras e o picadeiro estava nu, a serragemassentada como se o espetáculo fosse irromper em música alta, risadas, gritose a voz imperiosa e protocolar do Mestre de pista. Adiante, com as mãosjuntas sobre um castão em prata de uma bengala em tom castor, o queixoalinhado com o apoio, desenhando um eixo reto cortado pelo gabarito dosombros, meio sorriso divertido e olhos semicerrados, estava um dos maisantigos mestres da arte excêntrica. Baquinha o vira poucas vezes, emborativesse ouvido seu nome ecoando nas suas próprias atuações no picadeiro,como se ele trepidasse em sua alma enquanto atuava. Sim, era ele, o grandePicolino. Personagem que parecia viver na nostalgia de gerações, que sesurpreendiam ao revê-lo no picadeiro. Como um Conde de Saint Germainque ressurge em épocas e lugares distantes no tempo e no espaço, dono de umremoto e inesgotável elixir da longa vida, revelava-se ora alquimista, oraartesão, ora músico. Ao notar o novo integrante adentrando a tenda, girou opescoço e, mantendo o sorriso, faz meia reverência, logo retomando o prumoda posição. Baquinha ouvira de seu pai sobre a entrada que ele fazia com umanão dentro de uma mala. Parece que seu avô já contava do criado quedesempenhava no combinado A casa mal-assombrada. E um bisavô repetia,saudoso, a pergunta que ele sempre fazia a um dos seus parceiros de dupla:

“Por que o cachorro entrou na igreja?” Eram todos um só Picolino. A somadessas aparições dava pouco mais de um século, embora o excêntrico tivesselá seus oitenta. Esse era o mistério.

Assim que se assentou, Baquinha notou um grande lençol branco esticado naaltura da porta de entrada e um antigo projetor de filmes com os braçoscobertos de ferrugem na distância certa de exibição.

– Haverá uma projeção?

Picoly riu.

– É o nosso salvo-conduto.

Logo o velho conhecido se afastou e foi para o outro lado do poleiro, como setivesse lugar demarcado na solenidade. O silêncio que parecia entrelaçartantos excêntricos numa trança sutil ressaltava os rostos de cada um. Muitosdeles desconhecidos por estarem desprovidos das suas característicaspinturas. Outros, mesmo que tivessem se maquiado continuariamdesconhecidos, pois seus nomes é que faziam sentido na compreensão damaioria ali reunida. A textura do chão de serragem do picadeiro seassemelhava a um jardim zen-budista, exigindo a concentração de todos.“Algo deve aparecer ali”, remoeu Baquinha, um tanto surpreso com areunião. Pensou em tentar detectar rosto por rosto, comparando com aquelesque povoavam sua memória, mas desistiu. No arco do passar de olhos acabouassentando sua atenção no picadeiro vazio, como se houvesse ali um ímã dapercepção de todos. Logo, como se uma armadilha houvesse disparado, seviu enredado, os movimentos tolhidos, o medo assaltando novamente suaalma. Deu um pequeno solavanco com a coluna, ajeitando o traseiro na tábua

da arquibancada. Sim, naquela passada de olhos havia encontradofamiliaridade num dos rostos. De onde conheceria o palhaço? De que instantede suas peregrinações? De que Santana? Ouviu a chegada de outro excêntricoda Ordem. Aliás, um gordo atarracado, cuja circunferência contrastavamagistralmente com o Lombriga que o havia interceptado na entrada. Nãohavia nele qualquer traço da aura que um palhaço exala mesmo que queiraocultá-la. “Parece mais um tenor de ópera”, divertiu-se Baquinha. Não é queele solta a voz num timbre previsível, mas numa altura inesperada,conclamando ao início da reunião! Se posta às costas de Picolino, como umbardo prestes a iniciar seu pregão. Baquinha olha, mas retorna ao lapso que olevou a reconhecer alguns dos rostos. Tenta recapitular o movimento doolhar, mas se sente atraído pelo picadeiro. Desiste. Retoma. Desistenovamente. Mistura faces, cavidades auriculares, bordas labiais,sobrancelhas, bigodes chineses, linhas expressivas, olheiras, pintas, sinais,lóbulos, cabelos, músculos, ossos, gordura. Tentava reconstituir, como numretrato falado, um rosto que correspondesse a alguma imagem depositada emsua memória, a mesma que havia dado o sinal de reconhecimento.

– Amigos, não preciso abordar profundamente a gravidade de tempos comoestes, embora seja nossa a tarefa de suavizá-los. Os excêntricos da nossaordem guardam os princípios emprestados pelas divindades do riso e dabobagem e é nosso dever....

– Xiiiii! Vai começar... - gritou alguém do alto do poleiro.

– De dívidas já estou cheio! - completou outro.

– Mas quem deve não teme. E quem não deve?

– Eu não temo!

– Mas teima!

A reação em cadeia se desenvolvia no ritmo de uma entrada de palhaços. Oque estranhava é que todos mantinham a imobilidade, sentados. Isso porquenão há excêntrico que suporte a quietude! Baquinha se dividia entre avelocidade da verbalhada despejada pelos membros da ordem e a pulga quese mantinha atrás de sua orelha.

– E eu tremo! De raiva, de frio e de pirraça!

– Nossa, quanta frescura!

– Olha que frescura não tem cura!

Parecia que o encadeamento das pequenas pilhérias não teria mais fim e seprolongaria por toda a manhã. Picolino parecia se deliciar com os disparates,sempre mantendo o eixo alinhado, como se dele dependesse a excentricidadedo grupo. Minutos depois da interrupção do discurso do gordo atarracado, ovelho palhaço levantou a mão direita do castão em prata e movimentou osdedos da mão como um bater ritmado dos cílios. Todos calaram.

– Deixa de conversa! Vocês querem me embrulhar! Que se apresentem osexcêntricos.

– Figurinha!

– Romiseta!

– Rabanete!

– Biribinha!

– Trepinha!

Todos imitavam o gesto de Picolino e bradavam seus nomes, sem seguirordem alguma, embora parecesse que tivessem ensaiado a chamada. Logo umimpulso vindo não se sabe de onde, talvez a velha bengala resvalando emseus fundilhos sob o sussurro malicioso: “Olha a mandioooooca!” EBaquinha levantou o braço, imitou o velho mestre e soltou o nome com atípica voz do seu excêntrico.

– Antenor!

Mal completou o gesto ritualizado e se deu conta do que havia acabado defazer. Olhou adiante e viu, agora com mais nitidez, do lado direito de Picoly:era ele, Antenor, o atirador de facas. Sentiu uma leve vertigem, que seagravaria quando viu o homem repetir seu gesto e gritar, sorridente:

– Baquinha!

Aquilo tinha virado uma farsa! Ora, nada mais natural num encontro deexcêntricos! Havia trocado de identidade com alguém que estava morto eenterrado! E, ao mesmo tempo, vivo e faceiro, ali no outro lado do círculo dopicadeiro.

– Chicharrón!

– Ripolim!

– Xuxu!

– Estremilique!

Os nomes continuavam saltitando e Baquinha, tolhido por uma vertigem queaos poucos era destilada em suor, pois a temperatura parecia aumentarjuntamente com seu embaraço, perdeu o rosto familiar de vista, sendoimpulsionado pela cantoria excêntrica.

– Ih, mas isso parece um bando de sapos na lagoa! – encerrou Picolino a sériede apresentações.

Depois que a figura rotunda saiu detrás do velho excêntrico, este fez uma

exagerada pausa dramática, firmou a voz para que adquirisse a solenidadenecessária e bradou, como um mestre de pista:

– Trago uma mensagem do profeta!

Todos pareceram redobrar a concentração que até ali já era grande demaispara um encontro daqueles. Todos sabiam quem era o profeta. Sabiamtambém que ele andava por aquela região naqueles dias. Por isso não pareciairreal que Picolino guardasse de fato uma mensagem dele. Mas Baquinhasabia ainda que se fosse o próprio profeta que estivesse ali, entregando deviva voz a mensagem, aquele não seria mais um encontro de excêntricos. Porisso não alimentou tanta expectativa e até esboçou um meio-sorriso quando amensagem desabou:

– Ai, que fome dos diabos!

Procurou novamente o rosto de Antenor, mas este havia desaparecido.Acharia que perdera totalmente o controle de sua falta de lógica se a presençanão tivesse sido testemunhada por todos quando o homem se apresentou comum nome que não era o seu. “O morto que não morreu.” Era a confirmaçãoda história de Pitoco. O tal estava mesmo vivo. O problemaa era queBaquinha não poderia contar a ninguém que o encontrara numa reunião daOEx, grupo que a maioria desconhecia e que poderia até virar mote de piada.Ordem dos Excêntricos? Quá, quá, quá!

Os trabalhos da ordem estavam prestes a serem retomados quando a fenda dalona se abriu e a cabeça do Lombriga rompeu o ambiente. Um menino entrounuma velocidade acelerada e constante até alcançar a gorda figura queretomou seu posto atrás de Picolino. Afoito, estendeu a palma para ocultar a

boca e colou-a à orelha do homem. Precisou de somente três segundos paravirar as costas e dar no pé, alcançando a fenda ainda aberta pelo ignóbilLombriga. O homem levantou o braço direito e fez estalar os dedos. Logo asluzes se apagaram e o ruído do cinematógrafo rodando sinalizou o queaconteceria na sequência da programação. Só não sabiam os assistentes queaquilo era algo fora do roteiro da função. Surgiram na tela as meias-luasgirando enquanto os números retrocediam. 5...4...3...2... num instante oambiente alcançou sua mais aguda penumbra, afinal, o sol estalava nasuperfície externa da lona, e os ruídos que vinham de fora se tornaram maisevidentes para a plateia de excêntricos. Antes que o primeiro letreiroirrompesse a tela e a escuridão emprestasse aos presentes a condição deforagidos e ocultos, os gritos avisaram:

– Polícia! Polícia! - repetiam sem pausa dramática.

Logo o som da tela preencheu o vazio com uma pianola ritmada, enquantodemônios mudos com chifres pontudos saltavam sobre a mesa de um quartode hóspedes. Depois chegaram os locadores e o demônio desaparecia semdeixar vestígio. Era uma fita de George Meliès, reconheceu Baquinha. Orasgo vertical se abriu e a luz esmaeceu a tela, fazendo a maioria apertar osolhos. Entraram correndo, por ambos os lados do picadeiro, cerca de seis ousete policiais civis, armas em punho. Antes que o demônio reaparecesse parainfernizar os hóspedes do hotel, o comando foi dado.

– Acendam as luzes!

Quando a ordem foi atendida, o picadeiro surgiu com a serragem pisoteada,não guardava mais a aparência de jardim japonês. Diante de Picolino, umrobusto policial de camisa azul clara e calças pretas, cinturão de munição ebigode cobrindo o lábio superior, gritou para impor autoridade no maisimprovável lugar do mundo. Teria sido seus os coturnos que desfizeram a

placidez do picadeiro?

– O que é isso aqui? Uma reunião subversiva?

Picolino, sem se mover e sem perder o brilho nos olhos, respondeu pelogrupo:

– Isso aqui é um circo. Estávamos vendo a fita.

– Mas tem subversivo aqui. Eu sei! - atalhou o brutamontes.

– Meu amigo - intercedeu Picolino, com sua voz calma - Aqui só queremosnos divertir. Quer ver o filme conosco?

– Meu senhor, circo a essa hora da manhã?

– Isso é uma matinê!

Sem perder a postura, o policial decidiu não mais responder. Enquanto acurta discussão era travada, os demais policiais andavam de um lado a outroobservando os rostos do público da matinê. Baquinha manteve a frieza, poisjá havia experimentado por demais a estranheza naquela manhã. Um dospoliciais que alcançou a coxia e revirava os aparelhos circenses, entroucorrendo, se dirigindo ao homem de bigodes no lábio. Não dava para

entender a conversa, mas logo o interlocutor de Picolino deixou escapar:

– Correu pelos fundos?

Nada mais se ouviu, pois todo o grupo desabalou para os fundos e, emseguida, estrada afora atrás de algum movimento suspeito que não fosse umsocó-boi rapinando a mata rasteira.

O grupo da ordem, pouco desatinado com a interrupção, se recompôs e acurta sessão foi abandonada. Picolino retomou a palavra.

– Alguém aí já viu uma matinê sem criança?

A plateia explode. O riso bate na superfície interna da lona e ribomba. Napressa, nenhum policial percebeu.

– Meus amigos, tenham a gentileza. Nosso encontro aqui se desfaz. Opicadeiro é a nossa casa, a lona o nosso céu. Agradecido.

Surpresos com o desfecho do encontro, a maioria dos presentes foi selevantando lentamente enquanto Picolino mantinha os olhos miúdos.Baquinha se levantou e seguiu em direção a Picoly, que mantinha o sorrisopleno, sem motivo, um sorriso interior. Ao contornar o picadeiro dandopequenos passos laterais no estribo da arquibancada, o excêntrico do CircoFuseli se viu atropelado pelos demais palhaços, que pareciam todos seguiremna sua direção. Temia não conseguir alcançar Picoly que já ameaçava

levantar o diminuto corpo, preso somente por algum comentário alheio quedesviava a sua atenção. Mas antes de alcançar seu destino, Baquinha passoupelo local onde teria visto a sombra desconcertante de Antenor. Aliás, sósoube que era ali o local ao avistar, já a menos de dois metros do local, umapequena carta depositada na tábua corrida. Ao chegar perto do envelope,conseguiu ler a inscrição, feita com zelo infantil, letras volteadas emarabescos rudimentares: “Para Vicenza Fuseli”. Sob a frase, um travessãoespiralado nas pontas guardava em seu centro uma rudimentar flor de seispétalas simétricas espetadas num círculo escurecido que lhe servia de miolo.Arqueando os joelhos, alcançou o envelope com suas mãos grandes depalhaço, que ficavam ainda maiores quando calçadas as luvas brancas.Apertando a borda com a pinça do polegar e o indicador, volteou o pulsoprocurando o remetente no verso, sem nada encontrar, a não ser a manchaenrugada da cola de farinha de trigo usada para selar a correspondência. Aideia imediata que lhe ocorrera foi a de que seria o portador de umamensagem do morto que não morreu para sua namorada, mas o desenhoinfantil confundia-lhe, desmontava a obviedade de sua dedução. Virou erevirou a carta ainda por três vezes antes de decidir atracá-la no bolso dacalça, em meio a duas caixinhas vazias de chicletes e algumas moedas detroco. Ao retomar seu avanço na arquibancada deu-se conta de que aoperação de encontrar a carta e decidir levá-la durou mais do que haviapercebido. Picoly desaparecera assim como Picolino, com bengala e tudo,enquanto alguns poucos excêntricos desciam lentamente os degraus dosassentos, conversando em baixo tom. Sem alternativa, abandonou o rumo edesceu do poleiro. Seguiu em direção à porta por onde entrou, agora sem omagrelo como guardião, e saiu sob a luz forte, pois já não era manhã, mas diaquase alto, quente como um braseiro.

Lá fora o comentário geral o espantava. Falavam da presença de um profetadurante a reunião, algo que não vira de forma alguma. Mais: comentavam suafala pública, o que não havia acontecido de fato. Ou teria?

– O mundo é o picadeiro, por isso é reconstruído a cada estreia. E a gentilezaé a força que o emoldura para o público que vem rir e chorar, que vem viver

seus sonhos. É essa a trindade: o mundo, a gentileza e o povo de Deus.

Baquinha ouvia o que seria a repetição das palavras do profeta da boca de umsenhor barbado, que certamente não era um excêntrico, mas que estava nareunião da Ordem e assumiu para si a missão de ecoar um discurso inaudito –ao menos por ele, Baquinha – para o público que saía de um encontro repletode fatos misteriosos. Havia um acordo tácito entre todos em não discordar dohomem? Ou teria havido mesmo o discurso do profeta enquanto ele, absorto ecurioso, investigava a carta destinada a Vicenza? Impossível. Não haviaprofeta algum. Nem profecia. Somente o louco a tagarelar num arremedo doque não houve. Aliás, a sensação de Baquinha era que havia mais gente forado circo do que havia antes dentro. Talvez os excêntricos houvessem sejuntado à trupe do Pavilhão Bezerra. Aquele barbudo mesmo tinha a pinta deSilvio, o cigano. Devia ser um dos atores principais da companhia. E outros,cínicos, ingênuos, galãs, velhos, criados e as belas mocinhas, caminhandoabsortas em meio ao grupo falante. Baquinha as observou, com poucaconvicção. Apesar de esbanjarem sua mocidade em movimentos elegantes,essa característica parecia uma extensão da parcimônia exibida por suaspersonagens de melodramas. Aliás, o principal traço de que ali havia atoresera a pretensiosa informalidade que pairava no ar, algo comum a quemcostumava vestir o caráter de um tipo dramático.

Caminhando sem destino entre os falantes, Baquinha tentava reunir algumânimo para procurar o caminho de volta, consumido pelas peças pregadasdurante o encontro e com a razão enevoada pela sonolência.

– Ei amigo, que satisfação em o ver!

O sorriso amável saltando da gola levantada de uma capa surrada, a despeitodo calor reinante, acrescentou outra interrogação no vazio consciente deBaquinha. Os cabelos emaranhados, brancos, a barba bem feita, a pele

morena. Ao se virar para o personagem, que menos parecia ter saído de umaapoteose de circo-teatro e mais convencia como um curioso que seaproximou do tumulto para ver do que se tratava, o palhaço percebeu areação imediata daquele que consegue fisgar o peixe. Com o braço direitodobrado sobre o plexo e a mão esquerda estendida para diante, baixou acabeça numa reverência, aliás, não uma reverência, mas um agradecimentode aplausos. Sim, era de circo. Agia como quem já havia recebido muitoaplauso na vida. Exibia uma elegância natural, os gestos medidos justificadosna intenção de agradar. A impressão que causou fez com que Baquinhapassasse a procurar em seus anos de picadeiro de onde conhecia a figura. Nãoconhecia. Estava conhecendo-a naquele instante. Tanto que apertar sua mãoacabou sendo instintivo. O movimento foi rápido, como requer o bom tom. Afigura se alinhou com Baquinha, conduzindo-o com um leve toque nocotovelo. Saíram emparelhados como antigos amigos. Abandonando a razãoque resolvera traí-lo naquela manhã, o excêntrico se deixou levar por maisum tipo da galeria que parecia colocar à prova a sua sanidade naquelacalorenta Santana de Mangueira.

– Venha, vamos conversar um pouco. - disse o homem sem perder o sorriso enum tom de voz enlevado pela intimidade imediata adquirida com os poucosgestos que os aproximaram.

– Tenho uma vontade imensa de voltar a ser Pilatos. Ele é fabuloso!Fabuloso!

– Sabe as falas?

– Todas elas. Sonho sempre. Acordo com elas na boca.

– Você estava na reunião da Ordem?

– Quem sou eu! Imagina! Só os excêntricos podem participar! Não chego atanto...

– Como soube então do encontro?

– Não... eu não soube... Na verdade nem sei! - disse divertido.

– Ué, então o que está fazendo aqui?

– Vim rever os amigos.

– Mas conte mais sobre o Pilatos. - retomou Baquinha, tentando se desfazerdos embaraços que vinham testando a sua consciência. Mas o gentil homemrevelava se esquivar de suas demandas.

– “Aí me curvei, ante a força do fatos... lavei minhas mãos como PôncioPilatos...” - cantarolou. Baquinha não conteve o estranhamento e franziu atesta. A simpática figura sorriu sem zombaria.

– O que é isso?

– Um velho sambinha. Mas o que o perturba, meu amigo?

– Eu? Nada não.

– Ôpa, acho que caiu na armadilha.

– Mais ou menos.

– O que te assusta? Algum fantasma do passado? Um esqueleto guardado noarmário?

– Pior.

Sabedor de que o encontro, fortuito e irreal ao mesmo tempo, era aoportunidade que tinha de livrar o peso das costas, não se conteve e revelou-se ao desconhecido.

– Nada de fantasma nem de esqueleto. É um defunto mesmo. Ele mepersegue. Esticado, duro, mudo, sempre à minha frente. Um corpo.

– Nada muito sério.

– Hã?

– Já tentou olhar pra ele? Reconhecê-lo? É isso o que ele quer.

Atônito, Baquinha assentou o olhar no rosto sereno do simpáticodesconhecido e, num segundo, já não mais via traço algum, pois tentavavasculhar na débil memória, viciada pelo cansaço, preguiçosa em desvendarpequenas dobras conscientes, qual era a feição do corpo que o atormentava.Foi tomado pela sensação, menos que pela memória, de quando refez o gestode aproximação do seu rosto ao do corpo deitado na relva. Foi o que detonoua perseguição que se estendia até então. Depois, sempre que divisava ocontorno da massa defunta na horizontal, fosse no chão batido, no cimento ounas tábuas da arquibancada, sua reação instintiva era evitar olhá-lo. Movidopor uma mistura de pavor e asco, afastava-se. No fundo devia saber que eraalgo projetado por suas fraquezas ocultas. Mas que medo estranho se forjavanaquela mistura de sensações atávicas, que pareciam trazer da infância aescuridão dalguma noite de vento Sul, de lona chicoteando o ar e ameaçandoseguir com um destino que não era o dele? Ou que nojo inefável percorria osalvéolos de seus pulmões e injetava o sangue hesitante em seu estômago,levantando ondulações que tendiam a desaguar em engulhos? Da mesmaforma que negara a visão com a fuga, jamais ocupara um só segundoimaginando uma forma de ocultar o corpo da vista alheia, pois sabia que eledaria um jeito de sumir para reaparecer – tinha o domínio do inesperado –novamente e novamente. Traços? Não retivera nenhum deles na rápida visãomais atenta que arriscara de início. Talvez tivesse reconhecido, mas atirou-oem algum buraco, tapado com pedregulhos, areia rala, detritos de um passadorastejante, roto de lodo, aflitivo. Poderia ter feições como as de Antenor, omorto que não morreu, ou do desconhecido tombado por motivações políticasinescrutáveis naquele tempo e lugar sombrios, repletos de perseguições eemboscadas, ou ainda de alguma das sombras que atravessaram sua janelapessoal no decorrer de uma vida de tantas migrações. Não sabia, nem jamaissaberia, ou se soubesse daria um jeito de se livrar daquilo. Parou e analisou aperfeita curva do queixo do seu interlocutor, a linha que subia e se enrolavanas maçãs do rosto num desenho que, embora atravessado por ramagensinesperadas adquiridas pela altura da idade, guardava o sorriso simétrico. Eleesperava, com paciência, uma reação.

– Você é o profeta de que estão falando?

O sorriso se abriu e a cabeça foi jogada levemente para trás.

– Não, não. Não tenho tanta gentileza assim, como se requer a um profeta.

– Quem é esse profeta? Aquele que gritava lá atrás?

– Não, aquele era um papagaio. Gosta de repetir o que já foi dito. E dito poroutra pessoa. O mundo está sendo invadido por papagaios assim...

Baquinha não conseguia reter coisa alguma, nem mesmo a curiosidade quebrotava a cada nova dúvida que aquela viagem a Santana de Mangueira ia lheimpondo a cada passo.

– Há os papagaios e há os tangarás. Sou dessa última casta.

O palhaço tentava rir – ou ao menos sorrir, mesmo que sem graça – mas nãodesgrudava os olhos da face lívida da companhia inesperada. Pilatos, profeta,tangará, um tipo que se metamorfoseava rapidamente sem adquirir traçoalgum, embora seu rosto fosse marcante a ponto de já encontrarfamiliaridades que o levavam para tempos juvenis, circos e companhias queconheceu enquanto adquiria algum discernimento sobre o mundo e a vida.

– Sou um tangará no galho. Mas logo salto. Vou para outro galho. Comotodos nós nessa vida. Em cada salto, o risco. Em cada risco, o sublime de seviver!

– O senhor é trapezista? – fulminou Baquinha. O velho sentiu mas nãoperdeu a elegância. Levantou os braços, sorriu, baixou a cabeça rapidamentee logo exibia de novo o sorriso. Já devia ter recebido muitos aplausos na vida.

– Preciso ir. O caminho é longo ainda.

Sem emendar mais palavra, o tangará manteve a posição, quase em catatonia,enquanto Baquinha já sentia o suor deslizar pela testa e alcançar o sulco entreas sobrancelhas, o que era caminho certo para embaçar a sua vista. Virou-se eviu a estrada poeirenta, um movimento maior que o daquele experimentadopela manhãzinha. Não voltou o olhar para trás, embora soubesse que muitosainda se dispersavam, sabe-se lá para que direções, pois somente a rua malriscada é que dava saída para outros cantos.

Tudo se parecia mais com um sonho em que os acontecimentos desconexosmontavam um mosaico fragmentado, e nem a lucidez seria capaz de forjaruma compreensão convincente. Excêntricos, Antenor, fugitivos políticos,polícia, Picolino, profeta, tangará. E uma carta endereçada a Vicenza comletras infantis. Aquela viagem poderia dizer muito mais do que já estavadizendo. Em sua eloquência, tanta informação era demais para Baquinha.“Reconhecer o corpo...” A mensagem remetia às tenebrosas visitas deparentes a necrotérios para confirmar o paradeiro de desaparecidos. Se tinhaum defunto colado à sua consciência, bastava olhar seu rosto para reconhecê-lo. “Mas que diabos...” Envolto na árdua tarefa de organizar os maistenebrosos dos pensamentos, Baquinha foi interceptado na estrada por umOpala verde riscado pelo tempo, com visíveis amassados que podiam ser osintoma de um mau motorista ou de que era o veículo certo para estradastortas e poeirentas. Aliás, mal a poeira baixou e uma buzina rouca,acompanhada de um aceno do motorista introduziu novo personagem naaventura de Santana de Mangueira. “O que será essa agora?” O motoristadecidiu aguardar pacientemente que Baquinha alcançasse o Opala com seuspassos lentos e cansados. Permaneceu imóvel, o braço peludo levantado, a

baixa estatura evidenciada desde o para-brisas traseiro. Ao ver o visitante sealinhando à porta, levou o rosto para fora e foi logo perguntando:

– Você não é do Circo Fuseli?

Baquinha apertou os olhos e tentou reconhecer o homem.

– Sou sim.

– Ele está por aqui?

– Sim, em Santana dos Garrotes.

– Mas é aqui do lado!

A voz, que saiu trovejante na primeira pergunta, foi se tornando umresmungo no decorrer do diálogo. O palhaço observou melhor o homem epercebeu logo sua meia-idade. Trazia ainda a aura do circense, algo quesempre soava um tanto alto à percepção de um outro circense. Era difícilerrar. Baquinha demorou mais o olhar e percebeu que o homem demonstravauma calva precoce que exigia altivez da sua fronte queimada. Ao mesmotempo ele parecia ocultar aparências em seu olhar que dançava entre ovolante e a janela, sem se fixar no rosto do palhaço.

– Baquinha, às suas ordens. - decidiu romper.

– Sim, claro, o palhaço do Fuseli.

Ao mesmo tempo em que se sentiu aliviado ao ser reconhecido, seincomodou com o possessivo usado pelo homem. “Do Fuseli o cacete!” Naverdade, a referência era ao Circo Fuseli e não a Aroldo Fuseli, que pareciaser bem próximo do motorista.

– Vamos para lá, te levo de carona. Tenho uma dívida com minha irmã quepreciso saldar.

Baquinha levou um susto.

– Irmã?

- Doña Juanita. - afirmou com anormal afetação.

“Tovarish Ivanovich!”, reconheceu mentalmente, procurando a forma deverbalizar sem aparentar que conhecia superficialmente a história dodomador que havia se tornado bailarino. Percebeu que o irmão da patroahavia se tornado “fresco” assim que ouviu o caso contado pela dupla de anõesno dia em que chegaram ao circo, mas manteve discrição para não desagradarJuanita.

– Você é a quem chamam de...

– Tovarish! Sabe o que é tovarish em russo? Camarada! Entra aí, rapaz! Comsorte chegamos no circo lá para o meio da tarde!

Sem demonstrar novo embaraço, Baquinha cedeu ao cansaço e rodeou o capôdianteiro do Opala, alcançou a porta do carona e pulou para dentro doveículo. Havia música no toca-fitas, que girava preguiçoso, alterandonitidamente o ritmo tocado. Alguns segundos de rotação e ela entrava noritmo original, como se o aparelho estivesse pegando no tranco. Música decorno, brega, como dizia o próprio Baquinha.

– Saudades de Juanita! Como está o velho Fuseli? Continua o casmurro desempre? E a menina? Deve estar bem crescida! Você está bem? Querdescansar um pouco? Sem problemas, vou dirigindo quieto, é costume meu.A estrada em geral vai entediando, mas consigo passar o dia dirigindo.Esqueço até de parar para comer!

O bailarino foi encadeando frases e perguntas, sem dar tempo ou demonstrarinteresse pelas respostas. Falava sem parar, enquanto Baquinha se deixavalevar pelo balanço do carro e pelo peso do cansaço. Cochilou dezenas devezes sem saber por quanto tempo, sempre acordando e ouvindo o monólogocontínuo do motorista dos braços peludos. Não percebeu qualquer tomafetado na voz, embora os movimentos ao volante revelassem um tempo maislento, mas sempre firmes. “Seria verdade mesmo a história dos anões?” Evoltava a cochilar.

– Dizem que existe uma confraria de palhaços. Fazem reuniões e tudo. Doque será que falam? Quem deve organizar isso? O Circo Bezerra está há uns

vinte dias em Santana de Mangueira. Lá não é uma boa praça. Como em todovilarejo por aqui no sertão! Você já trabalhou lá? Fiz uma temporada pequenacom eles. Seu José Bezerra é meio turrão. E muito pão duro! Paga pouco ebriga muito. Sabe que já fiz muito circo-teatro? Fui baixo cômico. Fiz muitopapel de criado. Mas sempre o segundo cômico. Trabalhei com muitopalhaço bom. Picoly, conhece?

23.

Ao divisar o letreiro gasto do Circo Fuseli, Ivan sentiu uma emoçãoinesperada, uma certa nostalgia pela irmã, com quem conviveu por anos deproximidade afetiva e física, e pela sobrinha, que vira a última vez meninotaainda, vestido florido, passeando entre os trailers do circo. Mal desceu doOpala, abandonando o sonolento Baquinha na entrada, caminhoudelicadamente, os olhos laceados, prestes a derramar a emoção de umreencontro de melodrama. A idade e os caminhos que tomou após deixar ocirco do cunhado, o haviam tornado sentimental, apegado às pessoas a quemdevotou sentimentos sem medir consequências. Colocava a irmã nesseescaninho, apesar do mínimo contato mantido nos últimos oito anos, períodoem que sequer enviou um bilhete para atestar que ainda estava vivo. Revê-laenvolvia atualizar quase uma década de experiências e mudanças, no casodele um abandono das convenções sociais em nome da liberdade pessoal,profissional e sexual. Certo que circense já tem um regime distinto decomportamento social, um certo relaxamento de costumes forjado na vidanômade e da herança do ciganismo, embora essa mesma herançaestabelecesse normas e regras também distintas. A família acima de qualquercoisa. Casamentos entre famílias circenses. Alta linhagem de artistas tambémconta na hora da escolha. Ascendência longa entre os de circo. E por aí vai.Mas as relações são menos rígidas, os registros oficiais, cartorários, bemmenos exigidos. Respeito à lona e à comunidade circense. A honra e orespeito maçons (pelo menos entre os homens). Aceitação de relações nãonecessariamente entre pessoas de sexo diferente. E era aí que tudo começavaa se agravar para Ivan. Há oito anos abandonara o circo como domador, oprotótipo da virilidade masculina. Voltava como bailarino e acrobata,habilidades predominantes do sexo feminino. Caíra no mundo justamentepara primar pela liberdade de ser quem quisesse ser. O reencontro com a irmãprescindiria de explicações ou justificativas, mesmo porque elas não existiampara Ivan. “Justificar o que sou? Alguém se preocupa com isso?” Certamenteque sim, mas não era definitivamente o seu caso.

Assim que avançou mais topou com Fuseli, carne, osso, terno ensebado ecrucifixo em pessoa. Por mais circunspecto que fosse, acabou estendendo osbraços a Ivan.

– Olá cunhado! Quantos anos! Pelo que vejo não se perdeu tanto por essemundão.

– Não, Fuseli. Fui caminhando e me achando. É um bom jeito de se viver!

– Claro! – abraçava-o como a dois amigos separados pelo tempo. Emendou,elevando a voz – Juanita! Surpresa!

Fuseli teve de repetir o chamado para que a mulher deixasse as tarefas nacozinha e corresse para o terreiro. Ao topar com o irmão, ainda peludo nosbraços mas quase careca, avançou com incontida felicidade, tropeçando noschinelos, tentando alcançá-lo.

- Ivan!

- Sim! Tovarish Ivanovich!

Logo o alvoroço atraiu o resto da trupe. Irmãos Santana, Sofia e até a duplaPitico e Pitoco que foi logo reconhecida pelo visitante.

– Meus bibelôs! – soltou, para leve constrangimento dos anões e risos doresto. Se aproximou de deduzindo ser a sobrinha que não vira crescer.

– Filha, venha aqui. Lembra-se do seu tio Ivan?

A moça acentuou o sorriso e correu abraçá-lo. Ao contrário da manhã dachegada dos anões, não houve função no reencontro, pois não havia músicanem notícias para dar do Sul. O grupo foi se dispersando e Ivan levado aotrailer pela irmã e por Vicenza. Sem demonstrar modos afetados, o tiorevelava somente os olhos molhados, um certo travo na voz, antestonitruante, agora mansa. Juanita chegou a duvidar dos boatos maldosos quehaviam soprado entre os mastros do Circo Fuseli. Enquanto isso, ele exprimiaemoção ao sorrir em retribuição aos carinhos da sobrinha e em resposta aoolhar quieto da irmã.

– Por onde andou, irmão? O que andou fazendo?

– Tanta coisa, Juanita. Um mundaréu de histórias!

– Ainda vive do circo?

– Claro, quem nasce sob a lona não descansa nunca!

– Na doma?

– Não, não. Larguei disso. Não me meto mais com animais selvagens.

– O que faz, então?

– Malabares. Bem menos arriscado! E você, sobrinha linda, o que faz nessecirco de mágico?

– Ela faz o número principal. A mulher solta no espaço.

– Levitação? O povo aqui do sertão deve achar que isso é coisa do capeta!

Juanita se benzeu rapidamente. Percebendo a superstição da irmã, resolveuprovocá-la.

– Aliás, andam falando muito lá na cidade de um tal bebê diabo que nasceu aípelo sertão. Isso virou uma febre! Cada dia chega uma história diferente nojornal, que está dando cobertura total!

– Final dos tempos! – retrucou a mulher.

– Nada! Besteira pra vender jornal!

Vicenza não saiu do lado do tio, ouvindo atenciosamente seus comentários

provocadores, suas histórias pouco críveis, seu humor constante, sempreprocurando ganchos para emendar chistes.

– Adoro os bibelôs violeiros. Uns mimos! Cantam bem e agradam bastante.Trabalhei com eles há uns dois anos.

Aos poucos Juanita ia procurando sinais que denunciassem qualquer frescurada parte do irmão. Comentários como o que acabara de fazer traziam palavrase gestos bem afetados. Mas logo eles eram abandonados, o que disseminavadúvida ainda maior. A dúvida, assim, permanecia viva.

– Bom, acho que o cunhado não vai se importar se eu passar uma temporadaaqui com vocês!

– Não. Papai vai aceitar sim. – rompeu Vicenza, revelando uma cumplicidadeprecoce inédita nos seus relacionamentos com os de fora de casa. Geralmenteela só demonstrava afeição às crianças, em especial às meninas.

Além disso, teria pensado, a temporada ia relativamente bem, com o povolotando as arquibancadas, a ponto de Fuseli já pensar em avançar as duassemanas de estadia, período limite naquele cafundó do sertão. Com ummalabarista à mão, as variedades se enriqueceriam um pouco mais, como jáhavia acontecido com a chegada da dupla caipira, que introduziu o número“A Hora do Rádio” na programação, quadro em que ela interpretava ossucessos musicais do repertório e do momento.

Logo essa proximidade revelaria uma inesperada cumplicidade, com o tio

sempre próximo de Vicenza, contando-lhe segredos cochichados, disparandorisos indiscretos, construindo bordões com sentidos ocultos trocados entreambos, construindo um conhecimento esotérico distante da apreensão dosdemais. Juanita gostou daquela cumplicidade enquanto continuou nutrindo adúvida sobre a sexualidade do irmão. Por vezes esteve prestes a arguir: “Vocêé fresco, Ivan?”, mas reteve a curiosidade para não se constranger com aresposta que poderia ouvir. Assim que o viu no picadeiro na noite seguinte,com um maiô de ginástica brilhando com lantejoulas coloridas, os gestosprecisos e delicados com as claves e as argolas, desistiu de vez de questioná-lo. Fuseli, no entanto, via com certa desconfiança a entrada do cunhado nãona trupe, mas nas relações familiares, até ali guardadas por seu olhar austeroe por suas aparições repentinas...

24.

Vicenza desvendou a identidade do remetente da carta assim que bateu osolhos na letra caprichada.

– É da Tatiana!

Não ouviu a história toda de Baquinha que, ainda cansado, não teve paciênciade lhe pedir atenção. Abriu o envelope e foi lendo as notícias da menina queconheceu em Santana de Parnaíba, em São Paulo, e que se orgulhava de tertido um elefante de estimação. Mesmo que por breve tempo. Alguns meses.O Circo Irmãos Marrocos, ao terminar a praça e sem transporte para levar oanimal de imediato, deixou-o num terreno vizinho à casa da menina, com umcuidador. Isso não a impediu de alimentá-lo diariamente e até passear em seudorso pela cidade, atraindo inicialmente a atenção e depois passando aatração fixa do lugarejo. Até que um dia o domador retornou para apanhá-lo.A menina ficou triste, mas em suas conversas com Vicenza, que conheceutempos depois, quando o Circo Fuseli passou por aquelas paragens, semprealimentou fantasias que pareciam confortá-la da ausência do animal.

Querida Vicenza,

Continuo cuidando muitíssimo bem do meu elefante (como a querida Vicenzaorientou...). Hoje mesmo passei algumas horas fazendo umas tatuagens nobichinho que irá ilustrar alguns contos. Vivendo e aprendendo: a pinturacorporal de elefantes é uma profissão na Índia. Nesse Brasil acho que sou a

única especialista na arte... Também tenho me dedicado à minha futuraprofissão: contadora de histórias. Tenho aprendido muito com a minha avóAnna, que me fala de seu país coberto de neve e de homens voadores esaltitantes. Sei que as histórias aqui desse país calorento são bem diferentes,cheias de engolidores de fogo e atiradores de facas, mas tenho testado asminhas histórias com meu elefante e ele tem apreciado muito, semprepedindo para eu incluí-lo nelas. Por isso, para agradá-lo, pinto sua pele todamanhã, mas no final do dia sobra só um borrão azulado, com serragemgrudada. Amanhã darei um belo banho nele, pois sábado é dia de passearpelo bairro montada no seu pescoço. Ele te manda um beijo de tromba. E euum beijo de verdade.

Tatiana

As cartinhas da menina eram sempre espirituosas. Vinham de quando emquando e Vicenza já organizava uma coleção delas. Sempre curtas, cheias defantasia, se compiladas dariam até um belo livro infantil. Sem demora juntoua nova correspondência às outras, que ficavam numa pequena caixa depapelão com motivos orientais. Um tesouro que não abandonaria nunca.

25.

“E

le não morreu, tio. Ele está vivo. O Baquinha contou que viu ele.”

– Onde?

– Aqui próximo. Na região. Ele não quis entrar em detalhes. Mas viu. Eusabia que ele estava vivo.

– Chegaram a conversar?

– Não. Ele sumiu antes.

– Que estranho... Ele estava bem?

– Ele disse que está com o mesmo jeito de quando trabalhou aqui com agente. Mas contou que ele tá encrencado. Tem meganha atrás dele.

– Mas o que ele fez?

– Coisa de política, terrorismo. Baquinha sabe mais. Disse até que os doisanões já tinham falado nisso. Ouviram no Café dos Artistas.

– Ele é de política?

– Não, tio. Nem era de família de circo. Era atirador de facas por curiosidade.Na carta que me mandou disse que trabalhava numa fazenda. O Baquinhafalou que no lugar viu Antenor teve uma confusão de polícia e que deviamestar atrás dele.

– E porque essa história de que ele havia morrido?

– Eu recebi um telegrama avisando.

– Será que foi ele mesmo quem mandou para disfarçar? Se for, então ele táencrencado mesmo! Pode ser também para proteger você da polícia. Se osmeganhas descobrem que vocês namoraram, podem vir aqui atrás de você...Deve ser por isso que inventou essa história de fazenda, cavalo, morte.

– Tá tudo muito confuso isso.

–Onde é que ele estava?

– Em Santana de Mangueira. É aqui do lado.

– Foi onde encontrei Baquinha. Se eu conhecesse esse atirador de facas podiacontar algo pra te deixar menos aflita. Pelo que vejo você ainda gosta dele...

– Isso é complicado de falar, tio.

– Complicado? Por quê? As pessoas se conhecem, se gostam, se envolvem.Ainda bem que a vida nos dá esse presente! Vocês não conviviam bem?

– Ele conseguiu entender um pouco de mim, apesar de não conversarmosmuito. O silêncio dele me compreendia.

– Teve alguma interferência de fora? Tinha alguma outra pessoa que poderiagostar dele também? E o seu pai, tinha ciúmes?

– Acho que sim. Sou a filha única, né?

– E isso interferiu? Era só ter paciência, pois o velho Fuseli iria perceber quenão há como lutar contra a natureza das pessoas.

– Isso é o de menos, tio. Há outras coisas menos simples do que isso.

– Simples? Se namorar é coisa simples, imagina o resto!

– Você nunca gostou de ninguém?

– Claro que já.

– Foi casado?

– Sim, deve se lembrar, embora fosse ainda menina, Mas existem relaçõesque não dependem de casamento. Nem sempre elas são compreendidas pelaspessoas de fora. Por isso acontecem mais livremente, sem precisar de papel,envolvimento da família, essas coisas.

– Você quer dizer relacionamentos passageiros, sem vínculos emocionais?

– Claro que não! É que, por não serem aceitos, esses relacionamentosacontecem sempre de forma menos “oficial”, vamos chamar assim.

– Entendo.

– Imagino que sua relação com esse Antenor devia ser um pouco assim,embora fossem um jovem casal que até poderia virar uma família. Outrasmeninas da sua idade já pensam nisso. É também uma forma de sair debaixodas asas dos pais, o que é muito pouco para o que pode ser umrelacionamento...

– Como eu te disse, há coisas mais complicadas para eu pensar.

– Como o que?

– Ah, tio, não sei se você vai entender...

– Tenta.

– Não vou conseguir.

– Então tá.

– Há coisas que não dá pra explicar... E que não é todo mundo que podeexperimentar.

– Como assim?

– Coisas que eu vejo, sinto. Mas não nessa realidade, em outra.

– Eu hein...

– Tá vendo?

– Desculpe. Vai, fala.

– É difícil. São imagens, figuras, cores, que surgem na minha mente enquantofico solta no espaço.

– Como é que é?

– Sim, acontece quando estou fazendo o número da levitação.

– Meu Deus! Minha irmã tem razão então de não querer que seu pai continuecom o número de magia! Você vê espíritos? Conversa com mortos?

– Não é isso. Não sei se são mortos. Às vezes são, noutras não. São imagens.Como num sonho. Mas na maior parte das vezes estou consciente, assimcomo estou agora.

– Você viu o atirador de facas? O Antenor?

– Não. Por isso sei que ele não morreu.

– Mais alguém sabe dessas suas visões?

– Não, só estou contando pra você.

– Nossa, que responsabilidade a minha!

– Que nada. É que confio em você. Pelo menos estou confiando agora.

– E se ele aparecer aqui? Você vai querer reatar o namoro?

– Aparecer? Não sei. Não pensei nisso. Gosto dele. Ele me entendia. Mashouve um ruído, palavras que me machucaram. Prefiro não falar disso. Achoque ele soube entender até certo ponto. Depois, ele acabou agindo comoqualquer outro. Mas foi o primeiro homem que se aproximou de mim e soubequem eu sou.

– Quem fazia o número com ele?

– A Sofia.

– Você não tinha ciúmes dele?

– Ciúmes? Não.

– Ela não podia ter seduzido ele?

– Sim, claro que podia.

– E isso não te deixa louca da vida?

– Não. Aliás, isso não aconteceu. Você é que está imaginando agora.

– E se o Antenor tivesse ido embora por pressão do seu pai? Isso é possível,não é?

– Como?

– Nada. Melhor deixar isso quieto.

– Será que foi ele que avisou a polícia?

– Não tinha pensado nisso... Mas não é atitude dele. Tem tanto jagunço nessesertão... Mesmo assim, não é o tipo de coisa que o Fuseli faria. Conheço elehá um bom tempo.

– Credo. Se ele estiver por aqui espero que não apareça.

– Por quê?

– As coisas andam quentes por aqui. Outro dia mataram um rapaz aqui perto.O sertão tem uma lei própria e nós, de circo, temos sempre de passar longedos conflitos locais. Meu pai sempre falou isso.

– Nossa!

– Mas não espalha. Tem um coronel rondando o circo. Se ele ouve essahistória...

Vicenza se calou. Manteve-se silenciosa ao lado de Ivan para não perder acumplicidade que acabara de permitir ao revelar parte do seu segredo íntimo.Guardava uma sensação de estranheza por tocar em experiência tão profundae tão ligada à sua própria essência. Ivan acolheu tudo sem perder anaturalidade, o que de algum modo tranquilizou a menina. Achou engraçadaa possibilidade de Antenor ter se envolvido com Sofia. E isso a lembrou deque tinha um compromisso no dia seguinte. Um não, dois. Com o médico ecom o padre.

26.

Deitado, a coluna acomodada no fino colchão, Baquinha conseguia alinharum pouco de conforto em meio à torrente de experiências que havia vividonas últimas horas. Não imaginava que o encontro da OEx seria tãosignificativo. Aliás, tinha a sensação de que havia sido organizado para quesaísse da rotina circense e entrasse naquele turbilhão de imagens epersonagens. Por um momento a figura do Linguiça passou por sua mente,sendo substituída em seguida pelos dentes do tangará. Olhar nos olhos domorto. Subitamente, lembrou do dia em que seu pai morrera, após oespetáculo. Estavam os dois no picadeiro, o pai de excêntrico e ele de “clom”,o palhaço de rosto enfarinhado, como vinham fazendo há alguns anos. Nofinal da cena cômica, o pai entrava na coxia e Baquinha permanecia, parvo,objeto das gargalhadas do público, que se deliciava com a esperteza dopalhaço atrapalhado mas que se dava bem ao final em cima do palhaço quetentava impor uma certa ordem na cena. Era essa a relação entre um e outro,como havia ensinado o pai e outros tantos palhaços que conhecera nodecorrer de sua vida circense. O combinado era que o pai retornasse aopicadeiro para uma firula final, para deleite do público. Mas ele demorava avoltar. Baquinha estranhou, pois a encenação dos palhaços era quase semprematemática: o tempo, a fala e os gestos eram repetidos com obstinação quasesupersticiosa. Não fosse daquele jeito não daria certo. Era como se essecompromisso fosse essencial para que acontecesse o riso do público. Omomento certo de fazer a graça e o segundo certo de ouvir a explosão dapiada. Por isso não entendia porque o pai não retornava. Como de um palhaçose espera tanto a repetição sistemática de uma entrada como a improvisaçãoem momento de necessidade para manter o ritmo da cena, não foi difícil paraBaquinha, embora ainda principiante ante a experiência do pai, encerrar aentrada mesmo sem a presença prevista inicialmente. Mas assim que cruzouas cortinas viu o velho palhaço no chão, sem sentidos e movimentos,tombado como um soldado, inerte sobre a serralha. Não havia ninguém, nemos ginastas que deveriam entrar na sequência, nem os casacas-de-ferrodedicados a montarem os equipamentos. Baquinha logo perdeu o sentido do

espetáculo. Mudo, não chamou por socorro, não exprimiu desespero. Apenasconfirmou o que já sabia desde que viu o corpo: o pai havia ido. Aproximou-se do rosto para confirmar a respiração, aquele gesto intermitente na sua atualrotina, fechou os olhos e correu em disparada para os fundos do terreno,abandonando o morto. Ele era seu pai, o excêntrico, a atração principal docirco. Isso uma época em que as pessoas iam ao circo em busca do riso. Umcirco sem palhaço era a ruína de toda a trupe. Depois viria outra época emque as variedades, os animais, a magia, os dramas podiam ser motivos maisefetivos para que o público ficasse até o final. Mas até ali, o velho Baquinha,o primeiro, era o grande regalo da plateia. Nos finais de temporada,costumava encenar a comedinha O casamento do Baquinha. No final dahistória, quando um desinteressado rapaz acaba aceitando a noiva por acharque o tio prometia, na verdade – com aqueles diálogos repletos de malícia eos erros precipitando o final da farsa – havia a cena final em que os noivostinham de abrir os presentes. Isso tudo era preparado com semanas deantecedência. Avisava-se que a temporada terminaria com a comédia docasamento e os moradores da cidade, que já conheciam o palhaço ou deoutras temporadas ou do convívio que ele mantinha participando de festas ede partidas de futebol, iam preparando surpresas para serem abertas após apeça. Por isso o final da temporada era sempre uma apoteose cômica. Opúblico ia chegando e colocando os presentes no fundo do picadeiro. Ao abrircada uma das caixinhas preparadas e cuidadosamente decoradas, Baquinharetirava o presente, mostrava à plateia e fazia um comentário espirituoso,levando a arquibancada abaixo de tanto rir. Era uma infinidade de penicos,chupetas, velhos sutiãs e calçolas, objetos suspeitos e que faziam referência aoutras entradas cômicas apresentadas durante a temporada e que iampreenchendo a mala de viagem dos noivos.

Silenciado o palhaço, quem ocuparia sua ausência? Baquinha fugiu daresponsabilidade imediata de ser o substituto natural. Ao correr para osfundos do terreno, abandonou não só o corpo caído na coxia como o legadode qualquer palhaço: o de ter de improvisar quando a circunstância é maiorque o combinado. Assim, não ficou nem para o enterro do pai. Apanhou atralha e sumiu. Como se a entrada sem término tivesse ficado em aberto parasempre. Ali, deitado e ciente das dores do cansaço tomando cada músculo do

seu corpo, tentou se projetar para aquele final de soirée e, em vez de corrercomo criança assustada, de olhos fechados querendo afastar a realidade quese impõe, se esforçou para abri-los firmemente, aproximar mais uma vez orosto do corpo caído e constatar que o pai estava de fato morto. E agarrado aele.

Certa feita, mexendo nalguns impressos da tralha da companhia, encontrouum antigo folheto oriental, budista talvez, daqueles magos que Fuseli diziasem esmorecer terem sido seus mestres de magia. Viu, então, uma imagemintrigante. Era um disco imenso, cheio de seções ilustradas, segurada por umaespécie de monstro gigante, com presas salientes. Havia uma inscriçãoembaixo: A roda da vida. Não espantava tanto as feições do monstro, mas avariedade de imagens que se espalhavam pelo interior do disco. Se houvesseuma ordem de leitura, poderia até representar uma história, como nosquadrinhos. Mas eram figuras autônomas. No centro, um javali mordendo orabo de uma cobra e as penugens de um grande pássaro branco. Animaispasseando placidamente, guerreiros em batalha, seres famélicos, horríveis,pedindo ajuda. Mas uma pequena imagem em especial tocou mais de pertoBaquinha. O de um jovem caminhando por planícies verdes carregando àscostas um defunto envolto num lençol. Esse morto não estava rígido, masmantinha uma posição de pernas retraídas, quase fetal. Estava amarrado comuma corda para que não caísse na estrada. Era um desenho simples dentro daroda da vida. A morte na roda da vida. Era impossível entender todo aqueledisco, mas aquela imagem dizia muito ao palhaço. Por identificação, sabiaque o morto que carregava se assemelhava àquele da imagem. Com a figurareconstituída na consciência, Baquinha abriu subitamente os olhos enquantodecantava seu corpo sobre o catre do trailer. Virou lentamente o rosto econfirmou: ele estava lá, do lado, no chão. Sentia uma fisgada que partia daaltura dos rins e seguia em direção à bacia, enquanto os ombros ardiam. Ocusto da viagem. O resultado de carregar por anos o morto nas costas. Comesforço, jogou as pernas para o lado, sentindo os nervos repuxando osjoelhos, as juntas, as panturrilhas, os tornozelos. Como um andarilho cansadoe farto de carregar seu fardo, Baquinha se arrastou até o objeto do seusofrimento. Olhou o corpo sobre o piso estreito do trailer, havia um fino eamarrotado lençol cobrindo-o. Aproximou as mãos, agarrou a ponta do tecido

com os dedos e, sem esforço ou dificuldade, levantou-o lentamente. Percebeuo cetim colorido, as tiras de voal, os botões exagerados. Ainda havia pinturaem seu rosto. O azul contornando as sobrancelhas, a bocarra vermelha, obranco da base nas bochechas. O rosto do velho pai morto subitamente nofinal de uma entrada. Lá estava, aguardando o reconhecimento do filho.Perseguindo-o mais do que um fantasma. O corpo. Baquinha juntou-o aopróprio peito. Estava disposto a passar horas até que o absorvesse.Absorvesse a sua herança, os seus trejeitos, o seu jogo físico, o seu espírito decorpo.

27.

Adeodato estava animado com a temporada em Santana dos Garrotes. Apraça era boa, embora à primeira vista parecesse como todas as outras dosertão: quente na temperatura e morna no público. Alguma coisa ali haviaatraído mais gente do que de costume. Certamente seria o número de Fuseli.Nem mesmo o crime ocorrido nas redondezas havia afastado os moradoreslocais dos espetáculos. Baquinha também fazia sua parte, com suas entradasinusitadas e as comedinhas, apimentadas a partir de um processo de lentasexperimentações diárias, notando até quando essas malícias eram oudeixavam de ser engraçadas.

Havia motivo de sobra para ficar na cidade ao menos por mais uma semana.Mas algum ruído parecia contrariar Fuseli. Não sabia se era o rápidocrescimento da trupe – em uma semana chegaram os anões e o cunhado – ouse o velho faro do mágico havia acendido algum alarme. Recostado nacadeira de madeira, mantinha o olhar parado.

– Algum temor?

– Não, apenas me incomodou a presença desse coronel aqui.

– Acha que ele tem alguma relação com essa morte da semana passada?

– A experiência me ajuda a juntar pontas e a fazer suposições, mas também

me avisa que é prudente ficar calado. O que me estranha é que a polícia nemveio aqui procurar pelo culpado.

– O que já te fez interromper uma temporada, sem mais nem menos?

– Um marido traído, um padre ranheta, uma cafetina furiosa com aconcorrência.

Rapidamente Adeodato rifou todas as possibilidades. Era misterioso o patrão.Não por ser o mágico apenas, mas por medir as palavras, esconder ossentimentos. Jamais o vira perder a linha ou ameaçar alguém diretamente.Como um cacique político, sabia articular os movimentos até derrubar oadversário sem ao menos tocá-lo. Certa vez, empertigado com um trapezista,inoculou em sua mente uma semente maligna ao apontar: “Quando estiver láem cima, não vá se esquecer o que anda fazendo aqui embaixo. Lá o revés éum só”. O infeliz não subiu mais a corda. Era essa a sua forma de agir. Sabiarefrear os sentimentos e por isso conseguia riscar as paredes certas dolabirinto para alcançar a saída. Jamais esboçava autoritarismo, o que sempreacabava derivando numa relação camarada com o mais turrão dos artistas datrupe. Por isso mesmo sabia sempre onde apertar. Dono de circo,desenvolveu o famigerado “faro”, a hora certa de baixar lona e seguir estrada.Podia a temporada estar concorrida, como aquela em Santana dos Garrotes,ou capengando, como a de Santana de Mundaú, em Alagoas, quando insistiuno final de semana mesmo sem uma única mosca pousando na arquibancada.Batata! Terminada a novena no sábado, o circo estava abarrotado nodomingo! O compromisso primeiro era com a santa! Saindo dali iriamcertamente para Santana de Mangueira, pois o Pavilhão Bezerra acabara dearriar. Não seria problema, cortariam a peça, pois o pavilhão levava sempreos dramalhões mais chorosos, e reforçariam a música e a magia. Mas porquesair assim?, indagava Adeodato aos seus botões.

– Quer mudar alguma coisa no repertório das peças? Só levamos algumascomedinhas e pouco drama.

– Conhece seu patrão não é de hoje nem de anteontem. Sabe que não meinteresso muito por isso. Mas vamos fazer uma coisa. Pega a trupe toda.Vamos fazer a Paixão no domingo de Páscoa. Vamos dar de presente aSantana dos Garrotes!

Uma alegria súbita subiu pela espinha do secretário impingindo-lhe umaexcitação inesperada. A Paixão! Era demais! Baquinha no papel de Cristo,como de costume. Mas quem no papel de Caifás? Era um dos que mais falatinha na peça! Ele não se arriscaria a tanto, embora soubesse cada estrofe –pois a Paixão era toda em versos rimados – e não conseguiria manter o tomsolene exigido pelo papel.

– Tem certeza, patrão?

– Qual a sua dúvida?

– Caifás. Quem fará o Caifás?

– Ora, Ivan!

– O baitola?

Fuseli respondeu com a voz em tom mais baixo, o que era claramente um atode censura.

– Ele fez no passado. E era ótimo!

– Passado? Então quando ele ainda não era...

Um pigarro interrompeu a insistência de Adeodato. O patrão queria manter atodo o custo a discrição. Não porque tivesse algo contra artistashomossexuais, trabalhara a vida toda com vários deles, a maioria talentososno picadeiro e espirituosos na convivência. Mas por se tratar do irmão daesposa. Afirmou que faria o convite pessoalmente, pois devia a ele um votode confiança naquela altura das circunstâncias, pois o passado guardavarusgas tenebrosas que mereciam ser enterradas no chão esturricado do sertão.

A partir dali Adeodato passou a pensar exclusivamente na montagem. Tinhatrês ou quatro dias para ensaiar, preparar o figurino, que estava dentro de umvelho baú, túnicas e sandálias de romanos, barbas postiças do Cristo e umvelho cálice de ferro batido, entregue por um velho cristão matuto, queimaginava que o objeto teria maior emprego na fé do que guardado junto comas cabaças no seu cansado rancho de pau-a-pique.

– Secretário? Inclua Vicenza também na encenação.

– A menina?

– Sim. Ela vai gostar.

As tratativas foram interrompidas pela harmonia vocal de Pitico e Pitoco.Sem corda dedilhada previamente para denunciar sua presença, a dupla soltouum verso completo, que acabou desviando a atenção do patrão e dosecretário. Uma boa moda das antigas.

O nosso mundo é o espelho

que reflete sempre a realidade:

Quem forma vinha colhe uva

E quem planta chuva colhe tempestade.

No tempo em que Jesus vivia,

Ele disse um dia e não foi a esmo:

que neste mundo em que a maldade infesta,

tudo que não presta morre por si mesmo!

28.

Havia um nítido traço felino de perversidade no olhar de Sofia. Umasatisfação disfarçada em armadilha: bastava a caça pisar em falso e zás! Masa caça estava cheia de si. Ela se garantia naquele pedaço tão íntimo de suaselva particular.

– Ela está aí fora.

O filho do prefeito se ajeitou lentamente na cadeira do consultório, umacadeira de doutor, como fez questão de encomendar o pai quando enviou alista de móveis à capital. Com um largo espaldar, cobertura de couro preto,braços elegantes. Diante dela, a mesa com tampo de mármore. Parecia maismesa de doutor advogado, do que de doutor médico. Talvez seria a única emSantana dos Garrotes. O rapaz, admirado com a audácia de Sofia, se sentiu naobrigação de acenar imediatamente com uma compensação.

– Sairá daqui tão feliz quanto ela.

Embora tudo indicasse que estava sendo cumprido o roteiro traçado pelomédico no dia em que fizera o desafio à amazona, não imaginava que algunspercalços atravessariam seu mapa de intenções. Para todo caso aquilo seriauma consulta de rotina. Bastaria sinalizar a Sofia para que cedesse suacadeira de paciente à moça e sumisse pela hora seguinte. Logo pediria queVicenza se despisse, a deitaria na maca de consulta e iniciaria uma minuciosaanálise médica. Como o consultório ainda não funcionava plenamente –

atendia somente os casos de conveniência, ou seja, aqueles encaminhadospelo pai, o que envolvia aliados políticos, fazendeiros apoiadores e familiares– somente ele e a paciente estariam no consultório, a portas fechadas. Semagradecer a promessa imediata do filho do prefeito, Sofia fixou o olhar numaestatueta pousada no tampo de mármore da mesa. Tratava-se de um médicovestido zelosamente enquanto abraçava a cintura de uma moça nua. Estademonstrava desamparo, pois ajoelhado entre os dois, tentando se agarrar àspernas da moça, estava um insidioso esqueleto. A mãe direita do médicoespalmava o crânio daquela representação da morte, tentando afastá-la. Aatitude de proteção – com um braço à cintura e outro contendo o mal –denotava a resistência da ciência médica à impetuosidade da doença, ou seja,o domínio do conhecimento sobre a irracionalidade da natureza. Naquelemomento, para Sofia o sentido parecia inverso. O doutor cedia ao chamadonatural usando a atitude racional. Bastava entender onde o esqueleto seesconderia naquele consultório iluminado pelas largas janelas envidraçadasprotegidas por finas venezianas.

– Só tive um inesperado.

O médico levantou a sobrancelha.

– Veio uma terceira pessoa que não estava nos meus planos. A convite dela.Um tio recém-chegado ao circo.

– Tio? - perguntou desconfiado, como se revelasse espanto ante o fato de quepessoas do circo também tivessem familiares que chegavam sem aviso.

– Cuido dele. Damos uma volta na cidade enquanto faz sua consulta.

Ao concluir a frase, um fogo súbito incendiou as faces de Sofia. Se haviaconseguido até ali mantê-lo quieto nalgum espaço vazio entre médico evisitante, ele acabara de se materializar e desatar os nervos de Sofia. Estavaentregando um animal na porta do abatedouro. Embora pudesse ser umaconclusão pouco lógica, a moça gostaria ardentemente que a vítima do abatefosse ela própria. Aliás, sabia que de vítima não tinha nada. Aprendera amanipular o mais impulsivo dos abatedores, domar sua fúria com poucascarícias, domar o mais ameaçador porrete. Saía sempre viva e disposta paranovo confronto. Certamente isso não aconteceria com Vicenza. Mas essa nãoera a sua preocupação. Vicenza sempre fora de uma inesperada desenvoltura.Seu silêncio apenas escondia a maneira com que sorvia a vida. Talvezninguém tivesse ainda percebido isso na companhia. O que queimava Sofiaera o ciúme. Num átimo, o que era perversidade dirigida ao filho do prefeitose tornou uma sombra a mastigar suas entranhas. Sem se dar conta, a fera seimpôs ao chicote. Seria o esqueleto rondando a situação? Havia espaço parasomente três personagens ali. Assim, o esqueleto seria ela, Sofia. Ou omédico usava a razão para afastá-la para proteger a paciente, ou ele sedeixava levar pelas paixões, abrindo a guarda ao esqueleto. Por isso deviabrandir ainda mais alto o chicote para impor seu domínio.

– Farei tudo isso que pede, mas deverá pagar não somente o que prometeu.

– Interessante proposta.

– O que te trago é a satisfação de uma curiosidade. Não me interessa o quantoirá satisfazer a sua expectativa. Tenho também a minha expectativa. E é a elaque deverá corresponder.

Sem se mover, o médico esboçou sorriso de negociante.

– Vamos até a salinha. Eles estão lá.

Sem demora o médico saltou da cadeira de doutor, tomando o cuidado deabotoar duas casas inferiores do jaleco para se alinhar. Sofia se ergueu eaguardou que o homem passasse por ela para seguir atrás dele. Assim que seaproximaram da porta, o filho do prefeito volteou o dorso, agarrou suacintura – como o médico da estatueta com a mulher nua – e colou sua boca àdela, num beijo assustado que se demorou por poucos segundos. Estavaselando a negociação. Sem reação para corresponder, Sofia se deixou levar eabandonar em seguida, como peça de xadrez. Para sua surpresa, ele a passouà frente da porta, de modo que saísse primeiro e contatasse Vicenza,anunciando a consulta. Demorou-se o tempo suficiente para que visse Sofiaprocurando-o às costas, um pouco desconcertada.

– Vic, venha!

Interrompendo algum comentário absorto, Vicenza e Ivan se levantaram deforma ensaiada, de modo que, assim que começaram a andar, surgiu o rostodo médico na porta. Sofia se preparara para estudar a reação do homem, masse surpreendeu com a face crispada, quase de terror daquele que há poucossegundos guardava um ar de ansiedade em examinar a principal atração doCirco Fuseli. Seu olhar não se dirigia a ela, mas ao homem que tinha ido semavisar. Logo desviou o olhar para que não denunciasse aquilo que já haviasido percebido por Sofia. Cumprimentou friamente os dois e logo conseguiuencadear alguma frase com sentido.

– Tem certeza de que não se sente bem? - dirigiu a Vicenza.

Sem entender a pergunta, encadeou:

– Mas foi o senhor que me chamou.

Sem abstrair de onde veio e para onde iria aquela conversa, Sofia olhavaconfusa.

– Sente alguma coisa? Dor, tontura, coceira...

– Pensei que me examinaria no consultório...

Estacado na porta impedindo a entrada da moça, o doutor atarantado parecianão conseguir controlar o desconforto que tomara seus ânimos desde oinstante em que postou a cara para fora da sala de atendimento. Um fio desuor que jamais escapara de algum poro de sua tez desde que se apresentou àSofia escorria sorrateiro denunciando muito mais do que a moça gostaria decaptar. Foi então que o rapaz decidiu encerrar a cena.

– Então está tudo certo. Obrigado pela visita!

E fechou a porta, abandonando os três na antessala.

Tanto Sofia quanto Vicenza não esconderam desconforto com a cena. Aprimeira por ter sido a responsável pelo encontro e testemunha da súbitamudança de ânimos do médico. E a segunda por ter aceito o convite de Sofia,acreditando que passaria por uma consulta médica e acabar sendo despachadadaquela forma. Somente Ivan permanecia impassível. Dando conta disso,Sofia perguntou:

– Por acaso o senhor já conhecia ele?

– Sim. Biblicamente.

29.

O segundo compromisso de Vicenza naquela manhã, que poderia ser aindamais estranho do que o primeiro, teve início com a recepção solitária da moçapelo padre Riba. Ivan preferiu permanecer à porta do templo, pois não eramuito afeito a ambientes católicos, embora professasse uma sólida fé naVirgem Maria, o que não incluía altares e dogmas. Preferia também se manterdistante, sem ouvir a conversar entre o tal padre e a sobrinha, pois certamentenão iria se conter em dar algumas opiniões sem ser solicitado. Já Sofiapreferiu ficar na antessala do consultório após o encontro malogrado. Acenouque não iria e se manteve em silêncio, a face vazia como poucas vezesdeixara transparecer. Não esboçava espanto nem confusão, mas um vácuoque absorvia todas as suas emoções. Vicenza, que a conhecia há bastantetempo, não soube interpretar; muito menos o recém-chegado Ivan. Não haviatambém na sua atitude a intenção de retornar ao consultório e tirar satisfaçõesdo doutorzinho. Poderia passar bons minutos sentada na salinha com adecoração incompleta, cadeiras com assento de palhinha trançada, o piso friopedindo varrição, um inútil guarda-chuva preto largado num canto.

O padre, ao ver a moça de cabelos longos atados às costas adentrar o corredorcentral da pequena nave da igreja de Santana dos Garrotes, mostrou uma faceiluminada, como se aguardasse mais uma das noivas da cidade – já acolheramais de duas centenas em sua missão – entendendo se tratar da moça donúmero de magia. Acompanhou sua lenta caminhada e a recebeu com asmãos estendidas, como um noivo.

– Obrigado por atender ao meu chamado.

Vicenza retribuiu com um sorriso contido. O padre a encaminhou ao primeirobanco da fila, sempre ocupado nas missas pelas velhas carolas, em suamaioria viúvas dedicadas à Igreja, e sentaram-se perfilados.

– Veio só?

– Dois amigos estão na cidade e me aguardam.

O padre demonstrava um ânimo bem distinto daquele visto por Fuseli em suavisita de cortesia. Trazia certa excitação nos olhos, as maçãs do rosto vivasapesar da pele enrugada, uma inquietude nos lábios mesmo sem proferirtantas palavras. Observava nervosamente os traços de Vicenza, seu ardesapegado, seu olhar contemplativo.

– Como anda sua vida espiritual, filha?

– Vivo mais tempo nela do que na minha vida terrena.

A resposta foi direta, surpreendendo o padre que, até ali, achava estar nocontrole da situação: ele como aconselhador e ela como pecadora em buscade penitência.

– Como dedica tanto de sua vida sem frequentar a igreja?

– O espírito envolve instâncias do mundo sagrado e nem sempre areligiosidade.

– Mas viver no espírito é sagrado. A religião se ocupa de tornar essa vivênciaalgo voltado a Deus.

– Deus está em toda parte e é ele quem me dá condições de mergulhar naexperiência do espírito.

Padre Riba jamais ouvira confissão – estava entendendo aquilo tudo comouma confissão – tão reflexiva como aquela. Somente no seminário ocuparasua mente com questões tão complexas como a que havia sido desatada emquatro ou cinco frases por aquela mulher. Isso o desafiou e o colocou emalerta, pois certamente seria a mais refinada artimanha do demônio colocá-loem reflexão teológica depois de tantos anos de vida eclesiástica.

– Isso acontece quando está sob o domínio do seu pai, no número delevitação?

– Na maior parte das vezes sim.

Era a deixa. Estaria ali a brecha para acusar o demônio de agir. Não estivessena casa de Deus, o padre talvez não se sentisse preparado para enfrentar asituação. Sem retesar um único músculo do rosto, manteve a mesmaexpressão e o mesmo tom de voz, o que revelava um extremo autocontrole,troféu concedido pela experiência.

– São muitas as armadilhas que nos afastam da verdade, filha. Esse truque demagia pode ser uma delas. Não que houvesse intenção de seu pai, mas eletambém pode ser o instrumento de uma força maligna.

– Não, padre, não é nada maligno. Sou somente eu tentando entender o meupróprio caminho.

– E isso não é confuso demais? As ações divinas são claras e reveladoras.

– Não creio que o mundo esteja tomado pelo mal.

– Os tempos são difíceis, filha. Há notícias as mais assustadoras. Falam deum bebê diabo, nascido com rabo e pelos, discursando desde o berço,amaldiçoando e causando pânico. Pessoas de bem são mortas por forças quedominam cidades inteiras. Padres desaparecem ou morrem sob a tortura doremorso.

– Tudo é obra do próprio ser humano, não de forças malignas.

– Está querendo me dizer que não existe o diabo, o demônio, aquilo que écontra o Cristo?

– Olha, padre, acredito em Deus mas não acredito no diabo. O único agentedo mal que posso reconhecer e até ser vítima, é do próprio ser humano. Seique dirá que Deus o criou à sua imagem, mas ele deu a todos nós apossibilidade de buscarmos entender qual o nosso papel nesse mundo.

– Você se refere ao livre arbítrio?

– Não sei o nome, mas sei o que é. E isso pode me levar a uma vida maisinteira, mais completa. Não estou possuída, padre. Nem meu pai faz rituais demagia. Tudo isso é circo. Como na vida... Inventamos os nossos truques.Acreditamos neles. Fazemos os outros acreditarem neles. Mas isso não éenganar. É tornar a vida um número. Um pacto entre estar aqui e não estaraqui.

– Estar aqui e estar em Deus.

Vicenza não concordou nem discordou da conclusão do padre, pois nãoentendia que todo aquele questionamento fosse solúvel a partir de umaconversa de igreja. Claro que não via como confissão. Mas talvez tivessechegado a uma curva da discussão que propunha algo novo para a suacompreensão. Estar sem estar.

– Não se preocupe com o circo, padre. Estamos no mundo desde que omundo é mundo. Nunca mudamos nada. Só fazemos rir e chorar. Isso nãoenvolve religião ou moral. A propósito, o senhor poderia ir nesse final desemana assistir à Paixão de Cristo!

– Paixão de Cristo? Você quer dizer que vão encenar O mártir do Calvário?

– Isso.

– No original, em versos?

– Parece que o senhor já conhece!

– Claro que conheço! Vi encenado em várias paróquias! Vocês levam essapeça? É maravilhosa! Sei até uns trechos de cor! “Irmãos queridos!/que dofilho de Maria/hoje a triste profecia/presteis atentos ouvidos!/Durante aminha paixão/terei-vos de abandonar-me./Ides sozinhos deixar-me!/Bem sócom a minha aflição!”

Há anos não via a encenação, pois por aquele canto do sertão não passaracirco ou trupe mambembe que apresentasse um bom texto rimado. Aproximidade da Páscoa emprestava ao padre a condescendência necessáriapara fazê-lo sair detrás das paredes da igreja e ir ter com o pessoal do circo.Não para censurar, mas para reencontrar os versos que ouvira três ou quatrovezes na vida. Sabia terem sido escrito por cristão português e não por laicoautor melodramático. Soubesse Fuseli dessa fixação pelo texto e tudo seriamais simples desde o início!

Padre Riba não ocultou a emoção ao se despedir de Vicenza. Acompanhou-ajunto dela pelo corredor da entrada e ao alcançar a porta se preocupou:

– E seus amigos?

– Os encontro por aí. Espero o senhor no sábado!

E desceu a pequena escada sem olhar para trás, enquanto o clérigo pareciacontinuar rememorando trechos das falas de Jesus na peça que estava prestesa rever.

30.

Oprato esfriava diante de Sofia enquanto ela mapeava a inquietude do filhodo prefeito. Os gestos incontidos, as constantes piscadelas, os cotovelos sealternando sobre o tampo da mesa do restaurante. Diferentemente da primeiravez que saíram dali para aplacarem o desejo num quarto barato de pensão,não havia sobre a mesa um tabuleiro cujos movimentos das peças conduziamunicamente à consumação da sedução. Ao contrário, nada daquela vez faziacom que imaginasse uma nova imersão nos lençóis. Até o prato queescolhera, não o arroz de leite da vez anterior, mas algo similar, chamado derubacão, mistura de arroz vermelho com feijão de corda, repousava na mesacomo um adereço sem função. Ambos não trocavam palavra desde oreencontro após a consulta malograda. Sofia também não tivera tempo deanalisar no que tudo aquilo havia virado. Achou que tinha domínio sobre asituação. Correspondeu ao pedido do rapaz sem crer que conseguiria levar-lhe o troféu desejado. No entanto, em poucos segundos tudo se esvanecera: odesejo pela moça etérea evaporou, e uma verdade sombria recobriu seusânimos. O boi fora abatido sem dó. Jazia sobre a ramagem do gramado, osangue se esvaindo, o par de chifres inútil. Sentia os ossos se amontoaremdesconjuntados sob o couro esgarçado. Não sentia vergonha ou raiva dorápido processo de revelação. Jamais imaginaria que as assombraçõesvagavam por todos os fundões e que se levantavam do chão em plena luz dodia para aplicar a súbita estocada. Que importância teria naquela altura aamazona do circo? E a moça assustada sob as longas madeixas nas quaisimaginara se emaranhar? O homem de meia idade que deixara escapar pelainsuspeitada fresta do tempo um instante que deveria estar oculto nas dobrasde um passado distante?

Sem baixar os olhos ao prato Sofia parecia recolher num balaio parte dessasreflexões invisíveis, tentando dar uma integridade qualquer ao momento.Justo ela, feita de fragmentos sediciosos, esparsos e funcionais em sua vida

de aspirações ainda distantes de serem conquistadas... Por que se dedicava aorapaz? Por que perdia tempo com os embaraços que o tiraram do chão,transformando-o no boi sacrificado, com a carcaça à mercê das moscas?Compaixão? Certamente que não. Não era dada a comiserações desmedidas.Sempre mantivera um distanciamento forçado para que levasse a cabo suasnem sempre animadoras conquistas. E um certo travo no estômago parasuportar as mais asquerosas delas. Ao recortar um sem-fim de expressõesinquietas e tentar colá-las a partir da perspectiva do momento, Sofia foimontando uma espécie de retrato falado – ou retrato colado – de modo aredesenhar a fisionomia da entidade que, detrás dos traços físicos do rapaz,desatava os fios do seu embaraço íntimo. A medida que o processo iaavançando, ia se revelando um esboço familiar. Ao olhá-lo com atenção,descobriu nos contornos caóticos da colagem a sua própria tez enrijecida. Aface desfeita do rapaz, ao ser consubstanciada, revelava os seus própriostraços. Haviam sido cavados em matéria siamesa.

A constatação não demorou a se tornar revelação. Sofia, entretanto, semtempo para se regozijar com o fato, tinha diante de si a árdua tarefa delevantar o boi morto, insuflar-lhe vida nova. Embora o silêncio guardassetodo um universo de sombra e luz, espirais de indecisão prolongavam o vaziodiante da mesa do restaurante. Frio, o rubacão permaneceu intocado. Até queum ruído contínuo de coro percutido e de cordas arranhadas fez estremecer acalma do ambiente. A maior parte dos que se sentavam às mesas se afastou eacorreu à porta para ver o que se aproximava. Num rápido instante Sofiafugiu do foco das suas divagações e correu os olhos por sobre as cabeças doscuriosos para ver se conseguia divisar algo que revelasse a origem dabatucada. Desistiu ao perceber a muralha humana que havia vedado a porta.Um som rouco, profundo, emergiu da massa sonora percussiva. Era o mugidode um boi. Ambos despertaram do diálogo silencioso que entabulavam e seentreolharam. Decidiram, em movimentos casados, sair para ver o queacontecia. O filho do prefeito puxava Sofia pelo braço, como a um casal queatravessa uma corredeira, a força com que se prendem materializando oreceio de perderem um ao outro. Com esse ímpeto alcançaram a rua. Láestava o grupo: cerca de quinze ou vinte brincantes sob um mar de fitascoloridas, chapéus de aba espraiada, caboclos cobertos de penas e, no centro,

avançando e recuando de um lado a outro, um boi preto, aliás, com o couropreto mas repleto de decalques bordados em vidrilhos e lantejoulas coloridas,estrelas, flores abertas, pombas do Espírito Santo, uma fogueira estilizada deSão João, espirais rococó, sianinhas. Dos chifres pendiam também fitascoloridas, em cores e tamanhos variados. Era dançado por duas pernasvisíveis que denunciavam o brincante oculto que dispunha somente de doisburacos ínfimos para ver onde pisava. O giro no próprio eixo fazia com queas fitas desenhassem no ar uma garatuja oscilante.

O ritmo fazia com que o povo fosse aderindo à dança do boi, ora à mercê desuas chifradas, ora provocando-o. Os grandes pandeiros levantados eespancados davam o ritmo. A mão de um dos brincantes enfiada na parteinterna de pequeno tambor denunciava a origem do mugido inusitado. Era ofim da quaresma, sábado de Aleluia, dia de dançar o boi.

– É o Boi-de-Reis! – gritavam os passantes.

Havia um auto para cantar o nascimento, a vida, a morte e a ressurreição doboi. Naquela altura entoavam a cena da paulada que Birico, dos personagensprincipais da saga, dava entre os chifres do animal, que investia contra ele. Oboi desmonta.

– “Lá morreu meu boi!

O que será de mim?

No sertão não tem, ô maninha,

outro boi assim!”

Todos choram lamentosamente a triste sina do animal. Mas eis que requerema presença de um doutor. Correm os brincantes atrás do médico. E outrostantos se preparam para partir o boi em pedaços. Antes que os dois fatos seconsumem, a chegada do doutor e a partilha do boi, alguém entoa duasquadras mágicas que farão o animal ressuscitar.

– “Se levanta boi,

desse frio chão.

Que a viagem é longa, meu boi,

para o teu sertão.

Se levanta boi,

do meu desengano,

dá adeus ao povo, meu boi,

e até para o ano.”

E sai o boi novamente dançando e chifrando, balançando de um lado a outro,fazendo a alegria geral, enquanto o mugido volta a percutir do instrumentopeculiar. Todos voltam a dançar com o fim do entrecho do auto. Asdespedidas terão início. O povo cantava as toadas com refrãos simples,aprendidos prontamente por Sofia, que se mantém atada à mão direita domédico. “Se levantar do desengano!”, repetiu em pensamento. O ritmo dospandeirões insuflou ânimo no rapaz, que desembestou a correr atrás dofolguedo, sempre arrastando a amazona. Sob o sol quente, corriam e suavamcom uma verve adolescente que abandonava todos os jogos de adultos a quetinham se submetido no curto espaço de tempo em que conviveram nas duasúltimas semanas. Assim, seguiram até a exaustão, quando brincante algumainda dançava, o povo se recolhendo e o silêncio retornando à praça.Sentaram-se ao meio-fio, ofegantes, a roupa colada ao corpo. Um ou outro

cidadão passava pelo casal e estendia o braço para o alto, para umcumprimento não correspondido. Todos sabiam do doutor novo na cidade.Todos o viram crescer e deixar o pai para estudar fora. Todos sabiam seunome e sobrenome. Doutorzinho.

Ainda com os dedos da mão direita presos, Sofia estranhava tamanhaexpressão pública de apego. O rapaz jogou o pescoço para trás para afastar afranja molhada e poder abrir os olhos empapados. Tinha o rosto lívido,transfigurado. Queria balançar os chifres com as fitas coloridas.

– O que tem pra fazer naquele circo?

– Como assim?

– Trabalho.

– Trabalho de circo? Não estudou pra ser doutor?

– Quero ir com você.

– Comigo? E a filha de Fuseli? E o malabarista?

– Estou fugindo dos meus compromissos.

– E seu pai?

– Estou falando em fugir.

Capítulo de romance, história de antepassados, alegoria de folguedo, fugircom o circo era caso gasto pelo tempo mas que despertava atrevimentos. Orapaz conquistador no circo? Seria compromisso ou encrenca? Sofia selembrou da colagem mental e a escavação siamesa. Eram da mesma matéria.Por isso ambos mereciam se levantar dos seus desenganos.

31.

Opoleiro estava lotado. Aliás, não havia mais lugar vago em todo o circo. Amassa do falatório iria durar ainda mais dez minutos, pois Baquinha já sepreparava para puxar o cortejo inicial do espetáculo. Para o público era otempo para os cumprimentos, abraços, apertos de mão, para se surpreendercom o tamanho dos filhos alheios, de comentar a roupa das mulheres e assilhuetas dos homens. Para o circo era o tempo para vender os cartuchos depipoca e de paçoca, os guarda-chuvas de caramelo e de balas de coco. Alémde toda a trupe do Circo Fuseli, a montagem daquele dia recorreu a trêsincautos moradores que faziam hora na praça central ao lado da bodega,arregimentados por Adeodato. Um moleque queimado do sol, atarracado emetido a valente; um pescador de açude sonolento com cara de soldadoromano e um cabra metido a galanteador que aceitou fazer a peça por acharque as moças da cidade correriam atrás dele após a encenação. Era acomparsaria.

Logo o sinal foi dado e o burburinho emudeceu. Alguns segundos e a bandasoltou o dobrado de abertura, com seu tom imponente, militar. A casa cheiaveio abaixo com o início do desfile de toda a trupe perfilada, sendo rompida aordem somente quando Sofia adentrou o picadeiro sobre o cavalo. Fez umvolteio, agradeceu e logo se retirou. Entrou em seguida Fuseli com sua capaestrelada, substituindo o tradicional Mestre de Pista. Assim que a partemusical foi concluída e os artistas se retiraram, deixando-o só no centro docírculo, pegou do microfone para avisar:

– Respeitável público! Hoje preparamos um espetáculo especial para osmoradores de Santana dos Garrotes! Teremos a encenação da peça A Paixãode Cristo, drama sacro de Antonio Garrido! Participação de todo o elenco do

Circo Fuseli! Sejam bem-vindos! Tenham um ótimo espetáculo!

O primeiro número foi o dos Irmãos Santana, seguido por duas entradascômicas de Baquinha acompanhado por Pirulito e por um dos anões da duplacaipira. Esta emendou a “Hora do Rádio”, interpretando não sói o repertóriocaipira de costume como alguns baiões e valsas. O público não escondia aansiedade pela encenação, embora não economizasse aplausos a todos osnúmeros de variedades, a maioria deles de habilidades circenses. Surpresocom as acrobacias equestres de Sofia, aplaudiu efusivamente, como sepedisse o retorno da amazona à cena, expectativa frustrada, mas logocompensada por um número de malabares inventado por Ivan, esfuziante emseu maiô colorido, sempre interceptado pelo atrapalhado palhaço. Por fim, ostruques de magia, que naquela noite não incluía o número que consagrouFuseli e seu circo. Um breve intervalo de dez minutos para nova entrada dosvendedores de guloseimas e o circo foi envolvido pelo breu que prenunciavao canto inicial, em coro, do drama da noite.

– Nos céus não arde

já fulvo o sol

eis o da tarde

lindo arrebol!

No lar a ceia

esperando está

a nossa aldeia

correr e já!

Surgem, então, Jesus e a Virgem Maria, abraçados. Baquinha com barbaspostiças e postura solene, um jogo de corpo que em nada lembra ao dopalhaço; Vicenza concentrada no papel, prestes a soltar a voz pouco ouvidano número de levitação. Assim que a reconheceu, a plateia soltou um brevemurmúrio para logo silenciar e ouvir o diálogo entre mãe e filho.

JESUS

Some-se o sol nas montanhas...

Não tarda a noite chegar;

Tarde à casa irás parar,

Se mais longe me acompanhas!

VIRGEM

Vou-me!

JESUS

Vai!

VIRGEM

Longe de ti!...

Chorem meus olhos!...

JESUS

E os meus!

Estava dado o tom de comoção. Desde aquele início a respiração sesuspenderia no espaço fechado do circo. Muitos, incontidos, já derramavamlágrimas, pois, sabedores do fluxo narrativo que culminaria com acrucificação, não conseguiam conter a compunção ante aquela precocedespedida. A moça que flutua surge, assim, agarrada ao chão, presa à dor daseparação do filho, que logo seguirá com seus discípulos. Aos poucos novospersonagens ocupam o picadeiro. Judas, encarnado por um dos irmãosSantana, Denis, que fazia o papel pela primeira vez, substituindo o maisvelho, Charles, que preferiu um desafio maior, o de dar vida a Pôncio Pilatos.E Maria Madalena, papel desde sempre de Sofia:

MARIA MADALENA

Senhor... Senhor... Sei quem és!

E pela fé convertida,

Pecadora arrependida,

venho lançar-me a teus pés!

Pérolas que em fios me enfeiam,

joias que tanto me adornam,

se belo com o corpo me tornam

muito minh’alma desfeiam!

O vil pecado mas deu,

confesso com mágoa intensa!

São a triste recompensa

de quem seu corpo vendeu!

Sofia derrama emoção na encenação, carrega a voz com breves embargos;depois solta as palavras como se as regurgitasse. Adeodato admirou-se comtamanho empenho dramático, pois conhecia em detalhes a sua entonação esua ação cênica. Aliás, ele surgiria logo em cena, ar de histrião tentandomanter uma seriedade farsesca, como Pedro, em falas telegráficas. Nãotardaria, no entanto, a romper a voz de trovão de Caifás. Voz de domador,voz que Ivan abandonara há anos e que retomara para lapidar seupersonagem. Em colóquio, o sumo sacerdote fala ao centurião, esteinterpretado por um acanhado rapaz vertendo o saiote romano – o filho doprefeito, em sua estreia no palco.

CAIFÁS

Agradeço e principio,

de Jesus falar-vos quero,

esse atrevido profeta

que é filho de um carpinteiro.

Falsa e nociva doutrina

pregando está na Judéia!

Disto em vista, é dever nosso,

salvando a divina herança,

tomar medidas enérgicas;

e sem delongas, que pode ver-nos

deveras funestas!

A reunião dos discípulos para a Santa Ceia abriga toda a comparsaria, osmoradores da cidade, sendo reconhecidos por vizinhos e parentes, fazem posee repetem em coro as falas reservadas a todos em conjunto.

TODOS

Vós na cruz?

JESUS

Ordena-o Deus! Mas antes de vos deixar

quero discípulos queridos,

convosco aqui reunidos

hoje a Páscoa celebrar.

Ao ver terminar a vida

o que a morte não receia

seu desejo é que esta ceia

nos sirva de despedida.

Sem perder a fleuma, Baquinha revive a passagem em que, certa vez, notérmino da cena da ceia, os casacas-de-ferro levaram o tampo da mesa eesqueceram os dois cavaletes que o amparavam. À entrada de Caifás, seguidopelos romanos e pelo centurião, os objetos causaram grande estranheza aosatores. A assistência nem se deu conta, primeiro por ser bem reduzida emrelação a que lotava os poleiros naquele dia, e por estar compenetrada natrama. Assim, Caifás, interpretado na ocasião por Júlio Jr., um empedernidoparadista de mão, murmurou para seu séquito: “Jesus fará corrida deobstáculos hoje?”. Imediatamente todos disfarçaram para não revelar o riso

contido ao público. Era batata! Bastava estrear a Paixão de Cristo e os atoresjá começavam a aprontar das suas, testando a capacidade dos colegas demanter a seriedade exigida pela peça dramática mesmo sob a mais afiadaprovocação. Mas o Caifás de Ivan era incapaz de tal destempero. Eleexplodiria sua ira mais adiante, quando decide entregar Jesus a Pilatos paraque o julgue. Ivan não esmorece no papel que desempenha com resignação,um sentimento que guia a atuação de todo o grupo naquele dia. NemBaquinha arriscou aprontar alguma armadilha naquela muito séria encenação.

CAIFÁS

Fervendo tenho os sentidos

de raiva a tanta insolência

e na efervescência,

rasgo os meus próprios vestidos.

Que morra, pois, tão ousado e arrogante,

anelando está o instante do seu cruente martírio!

Mas é mister que o pretor sancione a nossa sentença!

Que a Pilatos, sem detença,

seja levado o impostor!

E se Pilatos recursar condená-lo,

seja a Herodes sem demora levado. Ide!

Avança o terceiro ato e Pilatos acabara de por ao julgamento do povo quemdeveria ser libertado, se Barrabás ou Jesus, recaindo a escolha da plebe pelo

líder primeiro. Assim, o juiz romano atribui a condenação de Jesus ao povoda Judeia. A cena se aproxima do fim, com a emblemática lavagem das mãos,mas é interrompida pela entrada de uma solene Verônica. Por menos crívelque pudesse ser, é Juanita quem rompe a cena.

VERÔNICA

Verdugos! Deixai que eu passe!

De vergonha e dor morreria se do infeliz

a agnora adoçar não procurasse.

Senhor! Não sei se és culpado,

sei só neste momento

que o vosso horrível sofrimento

me tortura o coração.

Creio na inocência, admiro a doutrina,

a compaixão me domina

e peno com o vosso penar.

Se aliviar-te não posso da cruz

a que está vergado,

que ao menos me seja dado

o teu belo rosto enxugar.

Aproxima-se o desfecho da longa encenação com a chegada da cruz ao

Calvário. A Virgem se desespera e o momento é de pouca contenção. Muitosvertem lágrimas enquanto os personagens vão costurando seus diálogos emtorno da morte do Cristo. A última cena será a da ressureição, anunciada porum anjo – novamente Ivan, com a voz mansa, como um padre em homilia –para a Virgem, Maria Madalena e Verônica. Antes, porém se dá o lamentoderradeiro de mãe e filho.

VIRGEM

Filho, meu filho que amei tanto!

Com quem morrer só desejo

Com os olhos d’alma te vejo,

que os do rosto cega o pronto!

E cega eu fico, Jesus,

da vida no mar de escolhos,

falta da luz dos teus olhos

que é dos meus olhos a luz.

JESUS

Mãe! Calma a tua dor!

Eu nasci predestinado

para salvar do pecado os homens

com a minha morte.

Tem pois coragem,

sê forte hoje,

que o dia é chegado!

A luz do final da tarde amorna a lona do Circo Fuseli, tomada por um públicoentregue ao destino de lamentar a imolação do cordeiro de Deus. Padre Riba,que por diversas vezes recitou trechos inteiros como se dublasse os diversosatores, fosse nas falas de Jesus, Maria Madalena, Judas ou Caifás, agarravaum lenço amarrotado com a mão direita e o terço com a esquerda. O prefeitose emocionava com o sofrimento da sua Maria Madalena, enquanto suaesposa chorava com emoção exacerbada por ver o filho atuando. Ao fundo,sob os degraus da arquibancada, um carrancudo coronel observava, semesboçar emoção, rosto por rosto da multidão. Já o povo de Santana dosGarrotes transbordava suas mágoas no drama religioso, enquanto os do circo,no caminho inverso, espelhavam na Paixão de Cristo os seus dilemaspessoais.

32.

Uma sombra delgada escapa de um dos trailers enfileirados nos fundos doterreno gentilmente cedido pelo prefeito e, sem precisar acelerar os passos, semistura ao pano de roda do circo. Houve bebida e abraços animados após oespetáculo. Todos estavam muito empolgados com a bilheteria inesperada eFuseli fez questão de transformar a ocasião em comemoração pascal.Somente quem viu a silhueta cortando a meia-luz foi o desconfiadoBaquinha. Ainda andava intrigado com a visão que tivera em Santana deMangueira. Imaginava que sem demora Antenor rondaria o Circo Fuseli atrásda menina Vicenza. Mesmo sob o efeito do álcool, manteve o rádio de pilhabaixinho, colado ao ouvido, enquanto espreitava os movimentos noturnos aoredor da sua insônia.

Cáspita! Aquilo era bicho ou era gente? Foi tão rápido que deve ter sidobicho. Um jegue? No meio desse sertão deve ter jegue... E se for gente? E sefor o talzinho do fantasma que namorou Vicenza? Será? E isso é hora deaparecer por aqui? “Ouçam agora, com Os Filhos de Goiás, Tchau MariaHelena!” “Tchau Maria, Maria Helena... Tchau Maria, Maria Helena... Teamar eu não posso, te deixar eu tenho pena... Me perdoe Maria Helena, se euestou te magoando... Eu estou sendo sincero e não estou te enganando...”Não vou atrás disso não. E se ele tiver saído do trailer da menina? Ora,quem sou eu para bancar a sentinela do circo? Muito menos o bedel da filhado patrão! Deus que me perdoe se for mesmo o tal atirador de facas. Já deipor encerrada essa brincadeira de esconde. Agora é com os dois! “Queroque você compreenda minha linda mariposa... Que eu adoro a minha filha equero bem a minha esposa...”

Recostada na cama, Vicenza viu o vulto passando pela janela do trailer. Sabia

que não era nenhum da trupe. O estado de sonolência, as emoções aindainstigando uma meia vigília, poderiam colocá-la em completo estado dedúvida não tivesse percebido a projeção não com os olhos abertos, mas comos sentidos envolvidos pela mesma miração experimentada na última vez quefez o número com o pai. Antes, quando isso acontecia fora do picadeirocostumava rezar ligeiramente o Pai Nosso, atropelando o fim de cada frasepara que alcançasse sem demora o amém que a libertaria do medo. Naquelemomento, o que mais buscava era concluir o que ficara suspenso. Suspensono ar.

Preciso tocar o chão. Sentir a serragem em meus pés. Preciso caminhar emcírculos. Entender o mundo. Encontrar a mim mesma no espaço que me foireservado para que eu trilhe o caminho enquanto o abro com meus passos.Olho para mim e quedo-me novamente seminua. Os seios soltos, os cabeloslivres, a cintura se precipitando numa delicada curva. Restou-me umapequena túnica presa aos ossos do quadril, parte da indumentária daVirgem, completada com um longo vestido que cobria entre ombros ecanelas. Percebo que a presença etérea foi o sinal para que eu a seguisse.Não conseguia identificar a presença. Impossível não pensar em Antenor.Mas não é a identidade que me atrai e sim um sentido de urgência e deentrega, ao qual não me absterei. Rogo somente que forças outras não meprendam, não me imobilizem.

Dando falta do homem que tinha a seu lado na cama, Sofia jogou o lençolpara o lado e saltou. Ouviu um ruído no lado de fora e ao abrir a portareconheceu o jorro caindo no pó com estardalhaço. O filho do prefeito haviase levantado e estava dando uma sonolenta mijada ali a alguns metros. Olhoupara o céu e percebeu a fonte da luminosidade que a permitia distinguir todasas estruturas montadas no fundo do circo: tendas, trailers e barracas,circundados por tamboretes, latas transformadas em bancos. Mais à esquerdareconheceu a silhueta do cavalo, imóvel. Como um sonâmbulo, o rapazretornou na direção da pequena escada e subiu guiado por sabe lá que sensode direção, pois era a primeira noite que dividia a cama com Sofia. Olhousubitamente para o pano de roda e viu, sem ter muita certeza, um corpo se

projetando para dentro do circo. Quem seria àquela hora? Avançou algunspassos no sentido contrário, tentando alcançar com a vista o trailer de Fuseli.Nessa operação, deu de cara com outro contorno, corpulento, a passosrápidos, vindo em sua direção. Era o mágico. Engoliu o aperto que envolviasua garganta, fruto do susto logo desfeito, e antes que contasse, Fuseliperguntou se havia visto alguém andando pelo acampamento. Confirmoucom a cabeça e apontou para o local.

Noite de sustos! Em toda a minha vida jamais tinham entrado no circo. Teveuma vez, eu ainda tinha uns doze, treze anos, e um bêbado resolveu mexercom o cavalo durante uma madrugada. Fuseli saltou com a arma em punho,gritando para que o homem se afastasse, enquanto este tentava enfileirarpalavras desesperadas para evitar o balaço que romperia seu peito tirando-lhe a vida. No mesmo instante gritei. De dentro do trailer. Vicenza dormia aomeu lado e acordou assustada, sem conseguir reagir. Uma jovial Juanitaapareceu na porta, os olhos vivos, os lábios acesos, atirando-se sobre asduas meninas e abrigando-as sob os dois braços. Antes que Fuseliconseguisse avançar sobre o invasor, este desabou no chão, murmurandopalavras sem nexo, derrubado pela cachaça consumida durante toda a noite.Voltava do bar em direção à casa e sabe-se lá o porquê, foi mexer com ocavalo do circo, um índio malhado, que morreria muitos anos depois picadopor uma cobra quando o circo ia por Santana do Araguaia.

Acordando sem motivo aparente no meio da noite, Ivan foi logo assombradopela ideia intermitente de que deveria buscar no velho Opala verde acorrentinha de ouro dada pela mãe ainda na adolescência. Com o crucifixoliso, sem detalhes, a corrente fina, era uma espécie de conforto familiardurante o longo período em que passou distante dos parentes. Desde quechegara não se dera conta de que a havia tirado para um banho de açude,tendo-a deixado no console do veículo. Como se um alarme do inconscientetivesse soado no meio da noite, se convenceu de que não deveria adiar abusca para a manhã seguinte. Decidido, procurou um velho relógio de bolsoque estava dependurado num gancho ao lado da rede onde dormia e conferiuo horário sem muita convicção. Julgou não estar devidamente vestido para a

caminhada, mesmo naquela altura da madrugada, quando todos estariamdormindo. Mesmo assim, encontrou somente a túnica clara do anjo da últimacena. Meteu-se nela com um só movimento de corpo. Apesar da interrupçãodo sono agia com esperteza, o que era comum na sua rotina. A disposiçãosurgia desde o momento em que abria os olhos. O que não prenunciava longadificuldade em retomar o sono. Certamente ele viria assim que se recolhessee cerrasse as pálpebras.

Há luz à minha volta. Há luz na volta do picadeiro. Estou nela, mas ainda naplataforma, onde consigo manter-me sentada, as penas soltas, o torso nuaprumado, os seios alinhados apontando para o vazio. Há uma presençacomigo. Não me assusta. Um hálito masculino se aproxima pelas minhascostas. Uma fonte morna irradia confiança e é atraída para a minha pele.Cola-se às minhas espáduas. Desenha movimentos lentos pelos meus ombros,pelo meu pescoço. Roça suavemente o prolongamento entre ombros ecotovelos, desenhando círculos na volta, quando espalma o úmero. Estouentregue à presença. Meus poros absorvem os movimentos desenhados, osdiminutos pelos se emaranham para conferir novas texturas que os libertame desfazem uma couraça invisível. Não há nome, mas o que paira sobre odesejo que emana de meu centro é a energia de um varão. Ela passa aafoguear os meus mamilos, a deslizar no meu ventre. O mundo desperta eposso dançar, iniciar meneios com os ombros, a cintura, o quadril, levantaras panturrilhas, descolar movimentos cifrados de uma dança sagrada em quetodo o regozijo é do meu próprio corpo. É nele que o varão adentra earranca o segredo mais profundo de mim mesma: “eu sou aquilo que sou”,sussurro a princípio, para repetir, em seguida, com plena firmeza de voz:“eu sou aquilo que sou”. A dança prossegue, estranha, mas em harmoniacom todos os meus centros de energia. Um balé que diz a mim e a maisninguém. Mas quatro figuras se aproximam.

A luz acesa do picadeiro teve efeito similar ao de uma lamparina que atraimariposas. As quatro figuras que vagavam por meros desatinos casuaisacabaram atraídas pela luminosidade incomum. Seguiram caminhos distintos,cada qual, sem se aproximarem em conjunto. Como se houvessem

motivações distintas para cada qual, seguiram até alcançarem alguma frestasob as arquibancadas. Todos divisaram a imagem incomum de Vicenzadançando ao centro do picadeiro. Não havia música qualquer, somente osilêncio dos ensaios surdos daqueles preocupados em encontrar o limite desua plasticidade física. A moça desenhava semicírculos com as pernas,rodopiava em saltos improváveis e tocava a ponta de uma fina grinalda queenvolvia seu tronco, ocultando os seios e o sexo, embora a moça nãoguardasse recato algum. Também não ocultava os centros de prazer pormoralismo, de receio de que alguém a observasse em sua dança interior.Estava completamente concentrada em manter o equilíbrio, pois deledependia seus avanços e recuos coreográficos. Eles replicavam a contração ea dilatação de sua pélvis, do seu útero, dos seus sentidos e sentimentos. Asquatro figuras cercaram a notívaga dançarina, uma em cada linhaperpendicular, pontuando toda a volta do picadeiro-mundo. “O circo é omundo representado porque o mundo é redondo e o circo é arredondado.”

Acercam-se de minha dança quatro padrinhos, quatro profetas, quatroguardiões. À minha esquerda surge tio Ivan, vestido de anjo, asas guardadas,um ar de mensageiro que anuncia sem precisar recorrer ao verbo, queadiciona sem nada subtrair em troca. Do lado oposto, como uma águia comasas expostas, abre-se Baquinha, guardião da morte e do renascimento, dossegredos dos iniciados, dos que se dedicam a transmutar aquilo que parecefixo. Diviso então outras duas figuras, essas terrenas em contraposição àsduas mencionadas, aladas. Também na direita está Sofia, o boi primordial,sacrificial, prestes a ser imolado e remediado pela verdade abissal. Enfim,no lado esquerdo, o leão guardião, a força que conduz adiante, meu pai.Danço a eles e só a eles. Não são plateia nem público pagante, masconduzem os centros essenciais para que eu consiga encadear passos emovimentos de braços, saltos e giros, fluxos e deslocamentos. Dão suaanuência à minha completude, pois conseguem dar quadratura ao círculodeste mundo que sou eu.

Como que hipnotizados pelo instante, as quatro figuras revestem suasconsciências com o vinho inebriante de um sonambulismo providencial.

Certamente guardarão o momento numa instância inconsciente que seráatribuída às artimanhas do estado onírico. Responsabilizarão a sonho pelosmovimentos que ali absorveram e legitimaram; não trocarão confidênciasentre si ao ponto de descobrirem ter compartilhado um sonho coletivo.Retornarão, ao final da coreografia, cada qual ao seu leito.

Um zunido de deslizamento de corda encerra minha dança. Paro para olharpara cima. Vejo então o rapaz, o varão que mediu minhas instânciastopográficas, que despertou meus instintos de mulher. Vestindo a malha dosacrobatas, sobe com o pé apoiado numa volta do cordame. Seus músculos seafastam do chão enquanto faz galanteios para o público em agradecimentoaos aplausos inaudíveis. É Antenor? É algum outro? É o varão. Ele sedesprende do chão em direção às estrelas da lona. Não acena para mim, nãome olha. O que sou, então, nesse rompante final? Subitamente olho para osmeus pés. E eles estão no chão. Descalços, secos, sentindo nas suas plantas aserragem essencial do picadeiro.

33.

ÓGrande Arquiteto do Universo, ó supremo construtor! É incrível comocada lugarejo desse sertão ou de qualquer outro canto, guarda um cosmosinteiro de histórias e intrigas. Mas se não são elas, como cumprirei minhasina de andar de Santana em Santana até os confins onde não haverá maisestrada, nem ferrovia, nem rio a atravessar? O comboio Fuseli, que jácruzou Rubicões, subiu todos os Gólgotas do mundo, rodeou as planíciesbabilônicas, contornou as colunas do templo, irá estacar e dar por encerradaa sua jornada. Prefeito, secretário, primeira-dama, amantes, coronéis,inimigos políticos e o pessoal do circo, ah, sempre de passagem para ver oque não deveria ser visto, ouvir histórias proibidas e soterradas poravalanches ancestrais, desatar tramas encerradas em nós empoeirados,esquecidos pelo tempo. E meu crucifixo pende sobre tudo isso, como se o seupeso absorvesse toda a miséria humana e me fizesse arquear o pescoço maisuma vez sinalizando que é hora de deitar lona e ir embora. É essa a minhacruz. Jesus tinha sua cruz, mas não precisava desmontá-la e montá-la a cadapasso. Hum! Olha eu aqui, Arquiteto, blasfemando contra aquele que morreupara nos amparar. O circo pode ser a minha cruz, e a carrego com gosto háanos e anos como um peregrino que perdeu o rumo da promessa e do santo.Mas não abandonarei a romaria. Arrasto comigo uma trupe de infelizes, masfaço dessa caminhada o sentido da vida, aquela que entra pelas veias eacorrenta a todos nós, ciganos, ao pó da estrada. Desarmar e armar.Arrancar estacas e marretar estacas. Enrolar fios, arames, cordas, desfazernós, desmontar arquibancadas, fechar cadeiras. E refazer tudo ao contráriona próxima praça. E virão outro prefeito, outra primeira-dama, outrocoronel, outro crime, outro espetáculo sob a luz cegante do sertão. Falammuito que vivemos numa época em que a política, os militares, a linha duratornou tudo mais difícil, mais vigiado, todos desconfiam de todos. Mas paranós, do circo, a desconfiança sempre fez parte da rotina. Qualquer incidenteque aconteça, as desconfianças virão sempre ao nosso encalço, seja em

época de ditadura ou qualquer outra. Antes dos militares assumirem ogoverno não era diferente. Havia sim políticos que gostavam de circo e noshonravam com sua visita, o que não acontece mais, a não ser os prefeitosque visito para atraí-los ao circo e dar à cidade seu aval ao nossoespetáculo. Mas antes eram governadores, senadores, deputados.Presidentes e imperadores. Circo era lugar de fazer campanha eleitoral,política, sem falar daqueles que queriam agradar mesmo à classe circense.Estou aqui a falar com meu crucifixo, como um velho que sou, lamentando dealgo que, se não houvesse, eu também não existiria. Tento juntar o pouco quereuni nesses anos para alcançar o fim da linha carregando pouca tralha,embora valiosa. Penso em minha filha Vicenza. Sangue do meu sangue. Aherdeira dos Fuseli, embora tome a vida de circo apenas como um mantopara cobrir o próprio rosto. Nunca consegui transferir a ela o garbo de ternascido sob o céu estrelado da lona do circo. Embora tivesse crescido nascoxias, entrando e saindo das peças de circo-teatro, brincando com asespadas com que eu atravessava uma partner qualquer nos números demagia, seguiu fechada em seus devaneios, vendo o circo como uma casa, nãocomo o mundo. Quando ontem se aproximou de mim e me dirigiu palavrasfirmes, sem fraqueza ou indecisão, foi como se me cortasse a garganta comas facas daquele com quem se metera no passado. Pediu, aliás, comunicou,que não seguiria mais fazendo o número de levitação. Certamente pretendeseguir com algum outro que, mais cedo ou mais tarde chegaria mesmo pararoubar a mim o meu maior tesouro. Ilusão das ilusões que não encantapúblico algum e que nenhum mágico é capaz de dominar os truques. Odestino de todos os filhos. A minha Vicenza não será mais minha. Seguirásua vida, ouvirá a mesma despedida dos próprios filhos e a dor dasseparações também inundará seu coração. Tranquei-me no camarim semceder nem mesmo aos gritos de Juanita, que a abraçava enquanto eu viravaas costas e recolhia meus brios de pai estraçalhados no chão. E malditaslágrimas desceram, o que me motivou a virar a tranca do camarim. Epersistiram por horas noite adentro, a madrugada silenciosa e os soluçosmiseráveis rompendo o sossego das cigarras do sertão. Sem queremcumpliciar meu suplício, até os míseros insetos se calaram, enquanto fuiempurrado a um abismo de lembranças. Santana dos Garrotes. Que nomepara ficar agarrado em minha memória como o lugar onde a natureza levouembora a minha menina. Somos, definitivamente, os garrotes a rodearSantana, a rainha-mãe coroada com sua filha ao colo. Vicenza foi a menina

que retornou, que voltou à minha casa, embora jamais tivesse partido. Atéontem. A imaturidade faz a desgraça dos que creem que a vida é somenteuma sucessão de incidentes para saltar e deixar para trás. Fui assim antes deconhecer Juanita. Mesmo sob a austeridade do meu pai, bebia a vida como auma cerveja que, se quente, bastasse pedir outra mais gelada. Meu paisempre lembrava a frase primeira dita quando me ofereceu a primeiracerveja: homem que é homem sabe a hora certa de parar de beber. Sequisesse fugir da profundidade da frase bastava entender que não era paraembriagar-me. Mas nela havia um sentido oculto, um conhecimentoguardado aos iniciados. E a iniciação, sabemos todos os maçons, advém ouda prática ou do erro. No meu caso, por mais que isso doa como um jorro deescuridão que brota do abismo de lembranças, foi pelo erro. A vida na épocaem que os circos não precisavam ser montados tão distantes das cidades eraum convite diário à festa. Havia legiões, enxurradas, como se dizia à época,atrás dos galãs dos dramas. Rapaz, eu era o galã dos melodramas de amorimpossível, das separações dolorosas, dos desafios invencíveis dos cínicospoderosos, personagens de capa que submetiam ingênuos a delicadasmaldades que iam destroçando-os internamente. Certo que a redenção finalsalvaria galã e ingênua, a verdade viria à tona e todos terminariamtriunfantes. Mas o tempo da maldade era bem maior que o da redenção final,a apoteose, que não podia ser nem muito curta para dar tempo à plateia paraexpulsar em lágrimas toda a sua pungência, nem muito longa para nãogastar todo o sentimento aflorado. A medida certa da apoteose comportavaainda o tempo do aplauso e da catarse, como diziam os gregos. Depois,podiam ir embora calados. Aos galãs havia ainda o dia seguinte. As moçasque se aproximavam, que rompiam a timidez para perguntar sobre a vida decirco, sem mais tardar se enamoravam e se envolviam com os artistas.Muitas vezes chamavam pelo nome do personagem quando se entregavamaos delírios carnais. Pois certa feita, de passagem pelo Café dos Artistas, noPaissandu, em São Paulo, um polido rapaz de recados, incumbido deencaminhar os artistas aos secretários dos circos para que pudessemnegociar contratos de temporada, me chamou de lado e foi dandodiretamente a informação. Certa moça, prima distante, que vivia no bairrode Santana, por onde o circo da minha família havia andado em temporadapor alguns meses, alegava estar esperando um filho meu. Foi numa época emque meus números de magia começavam a fazer sucesso, que os circoscomeçavam a me procurar em vez de eu rondar os escritórios do Paissandu.

Tudo indicava que eu começaria a ganhar dinheiro com os truques queaprendi aqui e ali. Nessa lógica não havia espaço para uma família ou umfilho. Filha, dizia o rapaz de recados. A moça tem certeza que é uma menina.Sonhou com a santa dizendo que era. Loucura, tudo loucura. Nem sou eu paide filha nenhuma nem conheci prima nenhuma. Sigo meu rumo e diga a essamoça que aplique golpe em outro. E assim despachei o rapaz. Desferindo aempáfia que havia ganhado com os primeiros aplausos, afastei a notícia deminha memória por algumas semanas. Queria continuar sendo o galã dosdramas, mas estava sendo reconhecido como o mágico dos truquesaprendidos no Oriente. Ouvia histórias de faquires e monges e meapropriava delas para contar aos espectadores e às fãs que encontravamnovo apelo para se aproximarem de mim. Até que meu pai mandou mechamar e, encantado com o sucesso momentâneo, atendi crendo que iria mefelicitar pela habilidade da magia. Não. Atendeu-me com um estrondoso tapana bochecha direita. Sem entender, demorei a relacionar a reação à históriacontada pelo rapaz de recados. Mas também não era a história. A moça deSantana havia sido encontrada morta. Desgostosa com minha reação, deucabo à vida, levando com ela o feto da filha que seria minha. Matar alguémtalvez não traga o desgosto que a confirmação daquele fato me trouxe.Matar, na maior parte das vezes, é ato que guarda uma história entremeadapor motivos e culpas, vinganças e reações. Negligenciar e causar a morte –duas mortes – é algo de uma monstruosidade sem par. Por anos amarguei apena de ter matado com minha empáfia. Abandonei durante esse período osmeus truques e os diálogos carregados de emoção dos dramas. Foi quandomeu pai me levou para a Maçonaria, onde encontrei uma nova família.Recuperei a vontade de trabalhar no circo e de ouvir novos aplausos. A vidabem que poderia ser como um combinado de palhaços. Apresenta-se oproblema, tenta-se achar uma solução, a coisa se complica ainda mais e, derepente, tudo se resolve com um corre-corre que encerra a encenação. Avida de circo é meio assim. Quando se começa a se envolver com a vida dedeterminada praça, é hora de desmontar e fugir. Às vezes funciona. Noutrasnão. Comigo não funcionou. Passaram-se alguns anos e o tempo refletiu a simesmo, como nos labirintos espelhados. Uma súbita paixão pela funâmbulalevou a uma gravidez indesejada e, ainda mortificado pela história passada,não tive dúvidas em assumir o filho – a filha não anunciada – e casar comJuanita. A chegada de Vicenza, então, foi o retorno da filha que havia sidolevada pela mãe suicida. E Juanita havia me dado esse presente. Por isso

passei parte da minha vida poupando-a. Torná-la a principal atração docirco foi um modo de poupá-la. Inventei a encenação, transformei a magiada levitação em misticismo e envolvi o público no número: perfeito. Orecurso do abaixo-assinado foi introduzido depois para tirar partido dasrádios do interior e divulgar o espetáculo. Colocá-la no alto foi uma formade aproximá-la do céu estrelado da lona. Agora, após ouvir sua decisão,todo o truque se desfez. Não há nada pior para um mágico, para o Rei dosLadrões, do que ter seu truque revelado, sua arte desmascarada. A partidade Vicenza é a revelação do segredo dos mágicos, do pacto que faz com quepúblicos de várias gerações possam sonhar com a magia da mulher solta noespaço. Acabou. Fui revelado. O que resta a um velho circense? Dar doistiros de festim para o alto, sair correndo em disparada pelo picadeiro e darpor encerrado o combinado. Ou melhor, a temporada. Seguir adiante,mesmo sem Vicenza. Temos uma trupe e todos precisam comer. É hora dedesmontar a cruz. Hora de partir. Amanhã vamos buscar nova praça!

Créditos finais

O universo circense me deu duas pesquisas acadêmicas. Aconvivência com os circenses me deu este livro.

A atração da levitação e o artifício do abaixo-assinado me foram reveladospor Edy Star, o cantor, que atuou no Circo Fekete, em temporada no interiorda Bahia nos anos 1960.

O espírito do circo me foi dado por Alejandro Jodorowski a partir da leiturade sua autobiografia A dança da realidade (Devir, 2009). Há trechos literaisde textos dramáticos de circo-teatro, especialmente os das peças O morto quenão morreu e o clássico O mártir do Calvário, de Eduardo Garrido, ambospresentes no acervo do Arquivo Miroel Silveira, da ECA/USP.

As modas cantadas pela dupla de anões são de Tonico e Tinoco (Artista decirco, de 1966), Tião Carreiro e Pardinho (Verdadeiro palhaço, de1963), ePalmeira e Biá (Disco voador, de 1953). No final, Baquinha ouve no rádioTchau, Maria Helena (1975), com Os Filhos de Goiás, que eu ouvia nainfância pelo rádio de pilha sintonizado às 6h da manhã no Programa do ZéBéttio.

A grande maioria dos personagens foi prismada de pessoas queconheci e convivi por temporalidades distintas. A todas elas a minha gratidãoe o meu tributo ficcional e mítico.