Las prosificaciones castellanas de las Cantigas de Santa Maria. Texto e imagen
Maria Degolada: de mulher a santa e de santa a mulher
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Maria Degolada: de mulher a santa e de santa a mulher
Carlos Alberto Steil1
Rodrigo Toniol2
Este artigo aborda, desde uma perspectiva antropológica,
práticas devocionais católicas não inseridas no marco institucional da
Igreja no Rio Grande do Sul. Embora haja uma série de eventos e rituais
religiosos que remetam a devoções populares tradicionais, a presença
hegemônica do catolicismo clerical e romanizado nessa região do país
acabou por torná-las marginais. A manutenção de um hipotético
contraste entre um Sul, colonizado por europeus, romanizado, obediente
ao clero, e um Norte, caboclo, sincrético e profícuo em manifestações
do catolicismo popular, foi um fator decisivo na construção desta visão
do catolicismo no Sul. Na tentativa de problematizar a crença no sucesso
absoluto da romanização, nos detemos aqui nas devoções e práticas
religiosas associadas à Maria Degolada, em Porto Alegre3.
Ao procurar jogar luzes em contextos que não remetem a um
catolicismo clerical, submerso na sociedade que se formou no sul do
país, não estamos negando o impacto diferenciado que o movimento de
1 Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email:
[email protected] 2 Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email:
[email protected] 3 A pesquisa de campo foi realizada no âmbito do projeto “Peregrinações e turismo
religioso no Rio Grande do Sul”, coordenado por Carlos Aberto Steil e contou com a
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romanização teve na região. Mas, trata-se de um esforço que procura
escapar de perspectivas exclusivistas que concebem o catolicismo ou a
partir da ação institucional ou a partir de práticas populares, para voltar
nossa atenção àquilo que podemos reconhecer como uma catolicidade capaz de articular catolicismo eclesiástico e popular sem, por isso, perder
de vista seus tensionamentos.
Embora tenha como referência um evento histórico, Maria
Degolada se perpetua na memória popular, na crônica social, nos livros
didáticos de história e nas artes cênicas por meio das múltiplas e
contraditórias versões que vem sendo narradas ao longo de mais de um
século. São estórias sobre Maria Degolada, mas também estórias que
diferentes atores sociais em diferentes momentos históricos contam sobre
eles mesmos e sobre a realidade em que vivem, por isso mesmo
continuamente atualizadas. As contradições e os paradoxos não são
evitados, mas ao contrário, constituem a base a partir da qual estes atores
sociais comunicam e compreendem sua experiência, ela mesma
contraditória e diferenciada. Através das estórias reinventam o seu contexto
cultural e a trama de sentidos e símbolos que configuram a sua identidade
social.
As estórias são parte da dinâmica de negociações e conflitos
vividos no contexto social, possibilitando que as mudanças (e a resistência a
elas) sejam sancionadas através da sua inserção numa continuidade histórica
4. As mudanças na sociedade e no catolicismo são, assim, elaboradas
coletivamente numa tensão permanente entre o moderno e o tradicional,
entre as convenções que resistem criativamente às inovações que põem em
risco práticas e conceitos estabelecidos. Neste sentido, podemos afirmar
que o culto a Maria Degolada tem sido um recurso social privilegiado para
participação de Carolina dos Santos Grimm como auxiliar de pesquisa no período de
2002 à 2004. 4 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeito: Paz e
Terra, 1984. P. 12.
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a incorporação de valores modernos que têm sido assimilados na medida
em que conseguem estabelecer um nexo de continuidade com a tradição.
Em suma, as estórias sobre Maria Degolada surgem com força performativa, elas mesmas fundadoras da aura sagrada de que se reveste o
evento5. Pode-se dizer que as estórias autorizam o estabelecimento do culto,
na medida em que oferecem um mapa dinâmico do espaço, transformando
o espaço em lugar e instituindo “a ordem segundo a qual se distribuem os
elementos nas relações de coexistência entre passado e presente”6. Esta
função de autorização e de fundação, no entanto, não é jurídica, isto é,
relativa a leis e juízos, no entanto, pertence à ordem da instituição,
enquanto estabelece uma base mística para o culto e um campo de
referência para as ações dos devotos.
O fato e a memória No dia 12 de novembro de 1899, em Porto Alegre, Maria
Francelina Trenes foi violentamente assassinada por seu companheiro
Bruno Soares Bicudo durante um piquenique no Morro do Hospício. O
caso, batizado pela crônica policial da cidade de Crime da Maria Degolada,
ganhou grande repercussão nos jornais da capital gaúcha. Em pouco
tempo, o local do acontecimento passou a ser chamado de Morro da
Maria Degolada, assim como a vila que ali surgiria anos mais tarde. Em
que pese as diferentes versões que circularam na cidade pela transmissão
oral, havia certo consenso de que ocorrera, no alto de um morro,
próximo ao bairro Partenon, a degola de uma mulher por um soldado
miliciano. No entanto, a circustância do acontecimento era, até meados
da década de 1990, pouco conhecida. Em parte, seu esclarecimento foi
possível apenas após a publicação, em 1994, por iniciativa do Arquivo
5 Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. 6 Idem, 1994, p. 201.
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Público do Estado, do processo alusivo ao fato, com o título Maria degolada – Mito ou Realidade?7
O referido crime não ficou restrito às memórias das páginas
policiais dos jornais da região, mas as extrapolou, tornando-se referência
para uma devoção popular que permanece viva na cidade de Porto
Alegre até os dias de hoje, ainda que tenha passado por diversas
apropriações ao longo do tempo. O local do crime se transformou em
local de devocão, fazendo com que diversos devotos se dirijam para o
alto do morro, nos limites da cidade, para depositar velas e objetos
pessoais como forma de pedidos e agradecimentos. O mal extremo,
expresso aqui pelo homicídio – da mesma forma que Tania Eliane
Freitas8 percebeu em relação aos santos populares Jararaca e Baracho, no
Rio Grande do Norte – aqui também parece torna-se sagrado, fazendo
daquele que o toca ou é por ele tocado um ser especial9. Embora, no
caso de Maria Degolada, diferentemente dos personagens analisados por
Freitas, a santidade seja atribuída à vítima e não ao assassino. Ainda que
esta seja identificada como prostituta em muitas das estórias que dão
origem e perpetuam o seu mito. O operador da passagem da identidade
de prostituta a de santa neste caso, como em outros semelhantes de
santas populares cultuadas em cemitérios, parece ser a dor e o
sofrimento.10 Poderíamos reconhecer, neste processo uma função
positiva da dor e do sofrimento, na medida em que se tornam
necessários para que se efetue a passagem e a transformação esperada.
7 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. 1994. Maria Degolada – Mito ou Realidade?, Porto Alegre, Edições Est. 8 Freitas, Eliane Tânia Martins. Violência e Sagrado? O que no criminoso anuncia o
santo? In: Revista Ciências Sociais e Religião, ano2, nº2, setembro de 2000, pp.191-203. 9 Caillois, Roger. O Homem e o Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 48. 10 Observa-se uma recorrência no catolicismo popular de outos personagens que, assim
como Maria Degolada, são cultuados como santos. No livro Maria Bueno: Santa de Casa,
as autoras apresentam uma lista extensa destes santos popularmente canonizados (Stoll,
Sandra; Santos, Conceição; Braga, Geslline; Durando, Vanessa. Maria Bueno: Santa de Casa. Curitiba: Edição do autor, 2011).
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Há, no entanto, um elemento diacrítico que reveste de grande
intensidade o sentido e a memória da morte de Maria Francelina Trenes:
a forma pela qual ela é executada. E, foi justamente a forma de sua
execução que lhe outorgou o nome pelo qual ela se tornaria conhecida
depois de morta: Maria Degolada. A degola de Maria Francelina Trenes
apresenta-se, portanto, no contexto do final do século XIX, como um
ritual de expiação pelo grande número de degolas que foram impetradas
aos soldados da revolução federalista no Rio Grande do Sul, poucos
anos antes deste evento particular. Tomando como referência o conceito
de paradigma de raiz, proposto por Victor e Edith Turner11, poderíamos
interpretar a morte de Maria Francelina Trenes, no alto do morro do
Hospício, como uma reiteração e atualização do mito cristão do Gólgota,
onde Jesus é transpassado pela lança do soldado, no ritual exemplar que
converte o ladrão em mártir e a pecadora em santa.
Acreditamos que seja este paradigma de raiz, que se encontra no
centro da devoção, que mobiliza os diversos agentes que vamos
identificar nesta arena de disputas pelos significados e signos que Maria
Degolada aciona na imaginação social em Porto Alegre. Neste sentido,
vamos destacar primeiramente as disputas entre os devotos populares e
os agentes da modernização do catolicismo, tanto na sua vertende
conservadora quanto da teologia da libertação. Num momento seguinte,
vamos chamar a atenção para a tentativa, no final do século passado, de
alguns órgãos governamentais e ONGs de inscrever o evento da morte
de Maria Francelina Trenes na narrativa dos movimentos de defesa dos
Direitos Humanos e apresentá-la como um símbolo da luta contra
violência contra as mulheres.
Nosso objetivo, neste texto não é, e nem poderia ser, encerrar o
caso, selando a verdadeira história, mas trata-se de um esforço por traçar
a trajetória que conduziu o assassinato de Maria Francelina Trenes à
11 TURNER, Victor; EDITH Turner. Image and pilgrimage in Christian Culture: Nwe York: Columbia University Press, 1978. P. 48.
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devoção a Maria Degolada, de Maria Degolada à Nossa Senhora da
Conceição, retonando a uma tentativa de reapropriação de Maria
Francelina Trenes como ícone do movimento de defesa dos direitos
humanos. Para tanto, dividiremos o texto que segue em cinco partes que,
assim como atos de uma encenação, tanto podem ser tomadas como
autônomas quanto podem ser dispostas numa unidade narrativa que as
articulam como um evento de longa duração. O evento do assassinato de
Maria Degolada torna-se, assim, um locus privilegiado para se perceber de
que modo opera a dialética entre evento e estrutura, na medida em que
se apresenta como um fenômeno que se inscreve num tempo de longa duração, no sentido proposto por Marshall Sahlins, segundo o qual,
quanto mais uma coisa permanece, mais ela se modifica12.
Primeiro Ato: O Processo Aos dois dias do mês de dezembro de mil oitocentos e noventa
e nove, na cidade de Porto Alegre, na sala das audiências, onde se achava
o juiz distrital do crime, Doutor Aurelio de Bittencourt Junior, o escrivão
Francisco Paula Guedes e o promotor público doutor James Darcy,
compareceram o réu preso Bruno Soares Bicudo e as testemunhas
Felisbino Antero de Medina, Egidio Correia da Silva, Franciso Alves
Nunes e Manoel Antonio de Vargas13.
Na ocasião o juiz interrogou o réu:
P. Qual seu nome, idade, estado civil e
naturalidade?
12 SAHLINS, Marshal. Ilhas de História. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990. p. 7-8. 13 Como um recurso narrativo optamos por escrever essa seção do texto simulando um
processo judicial. As informações aqui apresentadas foram retiradas do próprio processo
a partir da publicação Maria Degolada. Mito ou realidade? do arquivo público do Estado do
Rio Grande do Sul. O conteúdo dos depoimentos apresentados nessa sessão também
foram retirados do referido processo, contudo, adaptamos alguns dos termos do
protuguês do século XIX para uma linguagem contemporânea.
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R. Bruno Soares Bicudo, vinte e nove anos,
solteiro, brasileiro
P. Tem fatos a alegar que promovem ou
justifiquem sua inocência?
R. Tem e em tempo oportuno os apresentarei.
E nada mais disse nem lhe foi perguntado. Em
seguida o juiz inquiriu a primeira testemunha.
Felisbino Antero de Medina, vinte um anos, solteiro, praça do
primeiro regimento da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul.
Disse que no referido dia pelas três horas da tarde encontrava-se junto
com o acusado, a vítima e mais pessoas, homens e mulheres, nas
proximidades ao Hospício São Pedro, quando o acusado discutiu com a
vítima, sua amasia, a ponto dela tentar acertá-lo com um pedaço de
madeira. O acusado, entretanto, conseguiu desarmá-la nessa e numa
outra ocasião, logo em seguida, quando ela tentou agredi-lo novamente
com um cano de ferro. Tanto o depoente quanto as demais pessoas
presentes deixaram de intervir na briga quando perceberam que as brigas
entre o casal eram frequentes. Aconteceu, porém, para a surpresa de
todos, que a vítima e o acusado iniciaram uma nova discussão em um
lugar um pouco mais afastado do grupo. O acusado, então, sacou uma
faca que trazia consigo e degolou sua amasia. O depoente e as demais
pessoas presentes, com medo do acusado, que ainda estava munido com
a faca, foram comunicar o fato ao cabo Egidio Correa da Silva que, em
seguida, foi até o local e deu voz de prisão ao acusado.
Após o depoimento da primeira testemuna, seguido do
depoimento da segunda testemunha, o juiz inquiriu a terceira.
Francisco Alves Nunes, vinte e seis anos, solteiro, soldado da
Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Disse que no dia e hora referidos
na denúncia encontrava-se com a vitima e outros camaradas no Arraial
do Partenon, próximo à chácara das bananeiras, para a realização de um
piquenique. Em meio a festa, a vítima zombou do acusado, que era seu
amásio, dizendo que tinha outro homem. Seguiu-se uma discussão
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calorosa entre eles, a qual os outros presentes interviram. Durante a
confusão, a vítima chegou a tentar acertar o acusado com um porrete e
um pedaço de ferro. Julgando que a briga já havia terminado, os
presentes foram tomar um café, enquanto a vítima e o acusado ficaram
um pouco retirados. Quando o café ficou pronto e um dos presentes foi
chamar o denunciado para tomá-lo, notou que ele havia assassinado a
vítima com uma faca ainda em punho. Então, os companheiros deram
voz de prisão ao acusado. Disse ainda que o acusado sempre teve bom
comportamento na milícia a que pertencia. Após o depoimento da última
testemunha, a sessão foi encerrada.
No dia trinta e um de março de mil e novecentos, após a
votação unânime, o juri popular decidiu pela condenação do réu. O juiz,
por sua vez, setenciou a prisão de Bruno Soares Bicudo por trinta anos.
No dia dezesseis de setembro de mil novecentos e seis o sentenciado
faleceu na Casa de Correção por conta de uma nefrite intestinal.
Ainda que nos introduza no contexto da escrita, o processo que
descrevemos aqui nos remete a um ambiente dialógico, onde as múltiplas
versões dos depoimentos orais aparecem com as suas contradições e mal
entendidos. Mesmo porque, o objetivo do processo é mais constatar a
verossilhança das versões que transitam sobre o crime do que a verdade
do fato. Ainda que, como observa Ítalo Calvino, a adequação do não-
escrito ao escrito é sempre problemática, porque “ao se dar conta da
densidade e da continuidade do mundo que nos rodeia, a linguagem escrita
se revela lacunosa, fragmentária e diz sempre menos com respeito à
totalidade do que foi experimentado”14, os processos jurídicos se situam
numa fronteira liminar entre estes dois regimes da palavra: a escrita e a
oralidade.
A observação de Calvino se revela bastante familiar tanto para
aqueles que se deparam com a experiência de campo, marcada por uma
14 CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.p. 88.
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relação essencialmente dialógica e partilhada com os interlocutores da
pesquisa, quanto para aqueles que se debruçam sobre os processos
jurídicos, que procuram reconstituir o ambiente do crime ou delito a partir
das versões daqueles que as viveram e interpretaram. Ainda que nos
distancie do contexto da observação direta, as versões transcritas nos
processos se aproximam muito dos dados sistematizados nos diários de
campo que se apresentam ao cientista social e ao historiador como
documentos escritos que podem ser manusados na materialidade dos
registros e transcrições que estão ao nosso alcance. Em ambas situações, os
múltiplos sentidos flutuantes que se apresentam no contexto oral e nos
processos jurídicos, acabam sendo fixados nas páginas de um caderno de
campo e no texto processual, antes de ganhar a forma etnográfica ou
histórica no ensaio acadêmico.
Segundo ato: os jornais Qundo o crime ocorreu, a cidade de Porto Alegre tinha pouco
mais de 70.000 habitantes. Sua repercursão foi ampla, não somente por
conta de sua brutalidade, mas também por outros dois motivos que
retomaremos noutro momento: o fato de ter sido uma degola e de
ocorrer nos últimos anos da passagem do século. O estado do Rio
Grande do Sul havia passado, naquela mesma década, pela Revolução
Federalista, resultado da tentativa de dar ao estado maior autonomia
política no início da república. Como nos referimos anteriormente, os
conflitos armados, ocorridos durante essa revolta, estiveram marcados
pela prática da degola dos prisioneiros de guerra por ambos os lados da
disputa. Encerrado em 1895, o conflito chegou a ser chamado de
Revolução das Degolas. Assim, o modo como Maria Francelina Trenes
foi assassinada é um aspecto fundamental para compreender tanto sua
repercursão imediata como também a consagração da vítima como santa
popular.
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Outro aspecto importante que contribui para a densidade e
abrangência do crime, diz respeito ao fato de ter ocorrido nos últimos
anos de um século. As crônicas jornalísticas da época relatam uma
apreensão geral com a data, noticiando, inclusive, alguns suicídios de
pessoas com medo de um possível fim do mundo. A degola de Maria
Francelina Trenes vinha, assim, confirmar a crença e a imagem cristã do
destino escatológico da humanidade, numa verão catastrófica e destruição e
restauração de um novo tempo. No início de cada novo século ou milênio,
a iminência do Juízo Final se torna mais aguda e agonística.15
A crônica social dos jornais da época trazem abundantes notícias
sobre o clima de apreensão e expectativa por acontecimentos que
pudessem confirmar a crença num apocalipse que poderia emergir na
passagem do século. O crime da degola, relatado como um ritual
expiatória, se apresentava aos jornalista como um recurso potente para
produzir, expressar e reforçar a crença no final dos tempos que estava
subjacente na sociedade portalegrense. Assim, na tentativa de introduzir
o leitor neste clima da época e, deste modo, poder avaliar o contexto de
recepção do assassinato de Maria Degolada na cidade, reprozimos abaixo
alguns trechos de jornais que o noticiaram16.
*** Maria Francelina Trenes, solteira 21 anos de idade,
foi ontem, às 3 horas da tarde, barbaramente
15 Jean Delumeau, em seu livro A história do medo no Ocidente, mostra que os textos
bíblicos alimentaram a crença no Juízo Final (1989: 213). Para o autor isto refletia as
confusões existentes no espírito daqueles que nos primeiros tempos do cristianismo eram
tomados pela espera escatológica. Como vimos acima, podemos tomar o evento de Maria
Degolada como sugere Victor e Edith Turner, como um paradigma de raiz que reitera o mito
bíblico da morte de Jesus no Gólgota. Delumeau, Jean. A história do medo no Ocidente –
1300 – 1800. São Paulo: Companhua das Letras, 1989. 16 Preservamos o conteúdo das notícias, mas contemporaneizamos a grafia das palavras.
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assassinada por seu amante Brum Soares17,
soldado do 1o Regimento da Brigada Militar, e
empregado nas plantações da chácara do governo
do estado, denominada Recreio Agrônomo. O fato
delictuoso deu-se nos fundos da chacara do Sr.
João de Oliveira Vianna, em frente ao hospício
São Pedro, onde existe uma grande pedreira. Pelo
depoimento de algumas testemunhas interrogadas
pelo sr. major Andrade, que ali compareceu, vê-se
que o autor do crime e sua amasia achavam-se
naquele lugar a hora referida, em conversação com
mais pessoas, quando depois de uma pequena
troca de palavras, Brum lançou mão de uma faca e,
agarrando Maria Francelina pelos cabelos, deu-lhe
um profundíssimo golpe no pescoço,
impiedosamente. [...]. A infeliz vitima achava-se
atirada sobre o capim, debaixo de uma grande
árvore, usava vestido e casaco azul, tendo os
cabelos todos soltos. [...] O citado ferimento que
recebera Maria Francelina atingira-lhe o lado
direiro, na região lateral do pescoço, mostrando
um enormíssimo e profundo golpe. Era lastimável
e contristador o estado da vítima. O assassino
Brum apresenta também um talho no pescoço, que
segundo dizem as testemunhas, tentou degolar-se
após a perpretação do crime. Ele tem 40 anos mais
ou menos, é solteiro, indiático e mal encarado.18
*** Uma cena verdadeiramente bárbara teve
anteontem por teatro o arraial do Veiga, na estrada
do Mato Grosso. Praças da brigada militar do
Estado faziam um piquenique naquele local com
mulheres de vida fácil. A reunião começou pela
17 Conforme pudemos constatar em nossas pesquisas o nome de Bruno Soares, assim
como o de Maria Francelina Trenes, teve algumas variações nas notícias e mesmo no
processo relativo ao crime. 18 Gazetinha, Porto Alegre, 13 novembro, 1899, p.1, c618.
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manhã, em um pequeno capão ali existente. Cada
um dos presentes procurou se aproximar de uma
das mulheres. O soldado do 1o regimento de
cavalaria, por nome Bueno Soares, se interessou
por Maria Francelina Treves, de 21 anos, de
nacionalidade alemã. Ela, porém, não simpatizou
com ele e, ouvindo suas declarações amorosas,
respondeu-lhe com o mais soberano despreso.
Exarcebado, Bueno, com um ímpeto de cólera,
atirou-se sobre Maria Francelina e, como ela não
quis seus beijos, ele não quis que os outros
presentes gozassem dele. Uma nuvem de sangue
passou-lhe pela vista e muito antes que os seus
companheiros pudessem impedir a prática do
crime, ele já o havia cometido de uma forma
horrorosa. Maria Francisca foi atirada por terra,
comprimida pelo joelho do possante soldado e
uma faca afiada atravessou-lhe a gargante. A pobre
mulher fora degolada!19.
*** A horrivel cena de sangue que vamos referir
ocorreu anteontem à tarde na Estrada do Mato
Grosso, próximo ao local conhecido como
Chácara das Bananeiras. Eram 4 horas da tarde
mais ou menos e no local indicado estavam
reunidos na mais alegre camaradagem vários
soldados pertencentes ao 1o Regimento de
Cavalaria da Brigada Militar e algumas mulheres de
vida fácil. Todos riam à vontade [...] num
piquenique modesto, onde não figuravam iguarias
caras, mas onde abundava o churrasco regado a
paraty e cerveja de marca barbante. Entre as
pessoas estavam Bruno Soares Bicudo e a rapariga
Maria Francelina Trenes, que uns diziam ser
amasia dele. Em meio a geral alegria, Bruno e
19 Correio do Povo, Porto Alegre, 14 novembro, 1899. Fonte: Museu de comunicação
social Hypólito da Costa.
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Maria travavam animado diálogo. Subitamente
começaram os dois a trocar injúrias. Bruno,
incendiado de raiva, avança então para a rapariga e,
segurando-a fortemente pelos cabelos, derruba-a e,
puchando uma faca que trazia na cintura, fere-a
profundamente no pescoço degolando-a. O
criminoso agiu com tamanha destreza, o seu ato
foi tão brusco e violento que ninguém, por mais
ligeiro que fosse, poderia evitá-lo. A desgraçada
vitima do ardor sanguinário do soldado homicida
sucumbiu ali mesmo. Contava com apenas 21 anos
de idade e era de origem alemã.20
Nossa hipótese de trabalho sobre as crônicas jornalíticas nas
sociedades urbanas, nas quais a escrita tem um papel central na difusão da
informação e formação da opinião, é que elas desempenham um papel
semelhante ao das estórias nas sociedades orais e aos depoimentos das
testemunhas nos processos jurídicos. Assim, nos três contextos estamos
trabalhando com fragmentos de conversações abertas, nas quais os sentidos
se estabelecem provisoriamente nas diversas versões que vão sendo
produzidas nas estórias, nos processos jurídicos e nas crônicas dos jornais.
Ao cientista social e ao historiador, nestes contextos dialógicos, cabe dar
outra configuração ao evento por meio do texto acadêmico.21 Este, no
entanto, pretende transpor o evento para outro contexto discursivo, dos
seus pares, por meio de um exercício de interpretação hermenêutica que
busca transcender arena das disputas nativas sobre os sentidos indexados
aos eventos. A escrita acadêmica, como afirma Goody, “estabelece uma
relação diferente entre a palavra e o seu referente, uma relação mais abstrata
e menos conectada com as singularidades do lugar e do tempo, que é
20 Jornal do Comércio, Porto Alegre, 14 novembro, 1899, p.2, c.420 21 Isto não significa que a versão acadêmica esteja fora do campo social de produção de
significados, nem que o texto científico não possa vir a ser utilizado pelos “nativos” como um argumento na disputa pelos sentidos e na produção da verossimilhança no processo.
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própria da comunicação oral” 22. Deste modo, ela retira o cientista social e
o historiador da cadeia de interlocutores dentro da qual as versões dos
eventos são produzidas numa relação simétrica, entre iguais. Enfim, o
evento, ao ser apropriado pela escrita acadêmica, passa necessariamente
pela assimilação do desconhecido no conhecido ou do não-familiar no
familiar a partir das formas de comunicação do nosso próprio mundo,
referido fundamentalmente à escrita 23.
Terceiro ato: a devoção popular A devoção à Maria Degolada ocorre, pelo menos, desde a
década de 1930 em Porto Alegre, quando se torna possível registrar as
primeiras romarias que se dirigem ao alto do morro onde a Maria
Francelina Trenes fora assassinada. As versões neste período sobre quem
teria sido esta mulher e mesmo como ela teria morrido são diversas. O
historiador Helio Mariante, a partir de relatos orais que recolheu em
documentos da época, mostra que no início da devoção, ao lado da
versão que se afirmou como consensual nos anos de 1990, com a
publicação do processo jurídico, circulavam entre os primeiros romeiros
e a população em geral, versões muito contraditórias do evento. Havia,
assim, tanto aqueles “que afirmavam de pés juntos que a vítima,
vivamente apaixonada por um soldado da Brigada Militar, não tendo
sido correspondida, enforcou-se em um galho de árvore, quanto aqueles
que diziam tratar-se de uma virgem e, para outros, de uma anã”.24
22 GOODY, jacky; WATT, ian. The consequences of literacy. In: Goody, Jack (org.).
Literacy in traditional societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1968. P. 44. 23 Assumimos aqui, a perspectiva de autores como GOODY, jacky; WATT, ian. The
consequences of literacy. In: GOODY, Jack (org.). Literacy in traditional societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1968; Ong, Walter. The presence of the word.
Some prolegomena for cultural and religious history. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1986.; KELBER, Werner. The oral and the written gospel. Philadelphia:
Fortess Press, 1983 para os quais a consciência humana é estruturada no pensamento pelas
formas de comunicação. 24 Retirado de Maria degolada – Mito ou Realidade?(1994).
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As narrativas sobre a santa não se limitam a retratá-la como uma
personagem histórica ou mesmo como uma santa que por seu sofrimento
e sua morte trágica se transforma em intercessora dos vivos, distante
deste mundo. Ao contrário, trata-se de alguém que transita por estes dois
mundos, dos vivos e dos mortos, e pode aparecer em momentos
específicos em que ela se presentifica no mundo terreno. Algumas dessas
histórias afirmam que, durante a noite, Maria Degolada costuma passear
pela vila, toda vestidade branco, com o peito ensanguentado. Outra
versão, narra que ela aparece sentada numa pedra junto à figueira onde
morreu e que, quando chove, a pedra fica manchada com sangue25.
As estórias das aparições de Maria Degolada, no entanto,
atravessam o século XX e transcendem o contexto oral das conversações
entre romeiros ou moradores da vila que se formou no morro do
Hospício, e são reproduzidas na crônica social dos jornais da cidade.
Assim, em 1986, o jornalista Augusto Schmit produziu uma reportagem
para o jornal Zero Hora, relatando que:
Nas noites de céu limpo e de lua brilhante, um
vulto de mulher, vestida de noiva, costuma passear
por entre os casebres miseráveis da Vila Maria da
Conceiçào. Ela anda com a mão direita segurando
a garganta e solta gemidos de dor. Os moradores
da vila já se acostumaram com ela. E não a
chamam de fantasma, mas de santa26.
Discernir a natureza do vulto que passeia pela vila durante as
noites apresenta-se como um procedimento fundamental para a
construção da devoção. Os fantasmas são efêmeros e estão fora da rede
de conversação entre os vivos e mortos. Não são, portanto,
interlocutores nem mediadores entre o céu e a terra na economia católica
25 Mariante, 1994:16. Retirado de Maria degolada – Mito ou Realidade?(1994). 26 Zero Hora, Porto Alegre, 31 de agosto, 1986:26.
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Coletânea GTHRR/RS
[ 226 ]
da comunhão dos santos. Suas manifestações não possuem um
propósito e estão associadas à produção do medo. Ao contrário, as
aparições dos santos, especialmente de Nossa Senhora, são recorrentes
na tradição católica e possuem um sentido positivo. Elas confirmam o
dogma católico da comunhão dos santos e mostram o quanto as
fronteiras entre vivos e mortos são porosas e permeáveis. Ao transpor
para a crônica jornalística o discernimento dos moradores da vila de que
as aparições não são de um fantasma, mas de uma santa, o articulista não
apenas reconhece a autoridade dos moradores na produção da verdade
sobre questões religiosas, mas também colabora para inscrever Maria
Degolada no sistema de crenças do um catolicismo popular tradicional.
Ao lado das estórias sobre a morte de Maria Degolada e das suas
aparições e presença entre os vivos, estão os relatos dos devotos de curas
e graças alcançadas por seu intermédio, que encontram nos ex-votos,
deixados ao pé da figueira que demarcava o lugar da sua morte, sua
comprovação material. Aos poucos, contudo, a árvore deixa de ser
apenas um ponto de referência geográfica para o culto e adquire agência
e poder de cura, tornando-se ela mesma fonte de milagre. Os devotos
com frequencia recolhem sua casca, que é usada para fazer chás e
remédios. Também a água da chuva acumulada no lugar passou a
recolhida e envasada pelos devotos e usada como sagrada (Mariante,
1994)27.
Maria Degola, no entanto, é seletiva em termos daqueles que são
passíveis de serem agraciados com seus favores e milagres. Ou seja, os
policiais estão excluídos do horizontes de sua ação intercessora. Os
moradores da vila e os devotos parecem concordar em sua grande
maioria que ela não somente se recusa a atender os pedidos dos policiais,
como é capaz de potencializar o sofrimento daqueles que a invocarem
como intercessora. Poderíamos interpretar esta discriminação tanto
como uma referência ao assassinato que deu origem ao culto quanto uma
- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -
Coletânea GTHRR/RS
[ 227 ]
elaboração coletiva da violência impetrada pelos policiais ainda hoje nas
vilas e periferias urbanas.
Hoje, não existe mais a árvore nem água no antigo local de
culto. Este foi reduzido a um pequeno muro onde ainda se pode
encontrar afixadas algumas placas de inscrição de graças alcançadas e
alguns ex-votos que datam de 1950 a 1990. O local de referência do
evento primordial do culto, que poderia ter se tornado um santuário, foi
ocupado e invisibilizado pelos barracos dos moradores transferidos para
o morro. Sem uma referência física para o culto, a memória popular e a
crônica social se tranfomaram nos principais suportes para a reprodução
e difusão do culto. O trabalho de campo realizado no início dos anos
2000, na Vila Maria Degolada, e as entrevistas que fizemos com os
moradores do entorno do antigo local de culto, mostram que permanece
viva a memória da santa, passada de geração a geração, especialmente
pelas mulheres. Como nos contava Sueli, uma senhora que morava na
imediações do local do culto:
quando eu já me conheci por gente [...] eu já ouvia
a história da Maria [...] eu tinha uns 12, 13 anos, eu
já via as pessoa vindo ao local. Traziam botas,
muletas, mãos de cera, cabeças de cera,
agradecendo as curas que foram alcançadas.
Sempre, sempre eu ouvi falar isso. E a minha mãe
também já falava que ela fazia muita cura [...] a
gente já se criou assim [...] é uma cultura que vem
há mais de cem anos.
Na contramão deste movimento de caráter popular, observa-se
já no início da formação da vila Maria Degolada a ação de alguns agentes
da Igreja Católica para transformar o culto e torná-lo minimamente
aceitável pela ortodoxia institucional, deslocando da devoção a Maria
27 Retirado de Maria degolada – Mito ou Realidade?(1994).
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Coletânea GTHRR/RS
[ 228 ]
Degolada para Nossa Senhora da Conceição. E, para isto, como em
outras devoções populares semelhantes, que foram incorporados à
ortodoxia católica, a estratégia eclesiástica tem usado a própria crença
popular em favor da transformação do culto. Ou seja, a autoridade da
santa é invocada como argumento persuasivo para legitimar o culto
substituto. Deste modo, no caso da mudança da devoção de Maria
Degolada para a devoção à Nossa Senhora da Conceição, não somente o
clero e os agentes paroquiais se posicionam a favor da mudança, mas a
santa mesma expressa o seu desejo e orienta os seus devotos, por meio
de suas aparições e manifestações sobrenaturais, para que dirijam seu
culto à Nossa Senhora da Conceição e não mais a Maria Degolada.
Há dois depoimentos que apontam para este deslocamento do
culto de Maria Degolada para Nossa Senhora da Conceição. O primeiro
foi narrado por uma moradora local e refere-se à queda da figueira,
referência fundante do culto. O segundo é retirado de uma crônica de
Ary Veiga Sanhudo, publicada em 1975. Reitera-se, assim, o argumento
que vimos seguindo de complementariedade entre a produção oral do
culto pelos devotos populares e a crônica social, publicada nos jornais da
cidade.
Como narra Dona Albina, moradora da vila e participante da
comunidade católica local,
A figueira ameaçava cair, mas desceu ali
devagarinho, sozinha, sem causar morte alguma.
Os bombeiros vieram, mas não foi preciso. A
Maria cuidou de tudo. Acho que foi a farda. Ela
não gosta de farda.
Em sua crônica, Ary Veiga Sanhudo narra que Maria Degolada
manifestou-se durante uma sessão espírita e revelou o profundo
desgosto pelo nome a ela atribuído, dizendo que, a partir de então,
deveria ser chamada de Maria da Conceição.
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[ 229 ]
numa sessão espírita, num casebre das cercanias,
uma das piedosas criaturas que costumava rezar e
ascender velas no local do crime, teria recebido
uma mensagem da falecida, dizendo que estava
muito triste porque estavam lhe chamando de
Maria degolada! No dia seguinte, a notícia circulou
temerária pelo lugar e ficou proibido
terminantemente que alguém se referisse ao morro
ou à morta, chamando-os pela malfadada
invocação de Maria Degolada. [...] O lugar passaria
a ser chamado, daí por diante, de Maria da
Conceição. O nome pegou e está aí para a
posteridade!28.
Estes dois registros podem ser tomados como parte da
elaboração popular e na opinião pública das transformações que estão
ocorrendo no culto. A relação entre o sistema devocional popular e o
católico moderno, neste caso particular, como noutros que analisamos,
não se configura como um conflito aberto, que tenderia a produzir uma
oposição excludente entre os dois sistemas, mas, ao contrário, orienta-se
para a acomodação das divergências dentro de uma unidade católica.
Assim como, o próprio espiritismo, ao deixa-se penetrar pelo devocional
católico popular, sem perder seu caráter racionalista, acaba por favorecer
o processo de modernização do catolicismo.
28 SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre: Crônicas da minha cidade. Porto Alegre: Ed.
Movimento, 1975. pg.127-128.
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Quarto Ato: de Maria Degolada à Nossa Senhora da Conceição
O projeto de incorporação da devoção a Maria Degolada no
sistema católico moderno é protagonizado especialmente por Irmã Nely
Capuzzo, uma religiosa Congregação das Missionárias de Jesus
Crucificado, que morou na vila e desenvolveu, por quase cinquenta anos,
atividades pastorais e de assistência social. Foi fundadora e diretora da
Pequena Casa da Criança – uma instituição filantrópica educacional e de
assistência social. Sua história pessoal como religiosa está inteiramene
associada à origem da vila Maria Degolada. Ainda no início de suas
atividades, na década de 1960, Irmã Nely foi designada para trabalhar
como missionária junto a população da Doca das Frutas. Esse local,
situado às margens do Guaíba, concentrava os carregamentos e
descarregamentos dos barcos abastecidos com hortaliças, frutas e outras
mercadorias na cidade. O grande fluxo de trabalhadores fez com que
alguns doqueiros, como eram conhecidos os que ali permaneciam,
fixassem suas residências nas proximidades. Assim, a Doca das Frutas
tornou-se não somente local de trabalho como também de moradia. A
urbanização do perímetro central de Porto Alegre, no entando, implicou
no deslocamento daquela população para o Morro da Maria Degolada,
no bairro Partenon, ainda pouco habitado. Irmã Nely acompanhou o
deslocamento de seus paroquianos e mudou-se com eles para o morro.
Como agente da modernização católica, Irmã Nely tratou, desde sua
chegada no morro, de apagar a memória de Maria Degolada, presente na
geografia e nos signos do lugar para o qual haviam sido transferidos. Sua
estratégia de ação foi a de procurar transferir a devoção a Maria
Degolada para a imagem de Nossa Senhora da Conceição, que ela
entronizou numa gruta, na entrada da vila.29 A este procedimento de
29 Baseamo-nos no depoimento de Irmã Nely apresentado no livro Maria Degolada. Mito
ou Realdidade?
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[ 231 ]
ordem performático, somou-se a ação catequética e doutrinária,
desenvolvida pela Irmã Nely e pelos agentes religiosos que se
concentram ao seu redor, que visava esclarecer os católicos locais sobre a
necessidade de substituirem a devoção a Maria Degolada pela devoção a
Nossa Senhora da Conceição. O depoimento de Irmã Nely, que
transcrevemos em seguida, é revelador do projeto e da ação pastoral e
assistencial que ela desenvolveru na vila Maria Degolada:
havia espíritas, batuqueiros, comunistas, católicos
de nascimento, mas nenhum católico de vida
devoto de Maria Degolada. Então, depois de
algumas reuniões chegamos a uma conclusão. Seria
erguida na vila uma gruta a Nossa Senhora. A
distinção seria fácil: quem quisesse cultuar Maria
Degolada, continuaria frequentando a figueira;
quem quisesse culturar a Virgem, encontraria um
lugar apropriado à sua devoção. Tudo fora
acertado. Mas cadê o dinheiro? A mão de obra nós
garantíamos com o trabalho da população da vila.
Então, a pedido de minha mãe, eu tinha que fazer
uma viagem a São Paulo [...]. Acompanhei minha
irmã e seu noivo até Santos. Enquanto eles foram
a um restaurante eu me dirigi ao nosso pensionato.
Mal acabara de entrar e fui convidada para um
passeio na Ilha das Palmas. [...] Depois do passeio,
quando já ia tomar a lancha de volta, vejo duas
senhoras convesando perto de uma grutinha de
Nossa Senhora e ouvi esta conversa: ‘- Eu sou de
Porto Alegre Há 9 anos fiz promessa de construir
uma gruta de Nossa Senhora, mas não tenho a
quem doar [...]’. Diante do que ouvi, eu me aproximei e disse: “Eu também sou de Porto Alegre e justamente estou à procura de alguém que
queira doar uma gruta para a Vila Maria da
Conceição.
- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -
Coletânea GTHRR/RS
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A gruta foi construída, a catequese foi implantada, as obras de
assistência às crianças e aos pobres estabelecidas e uma pequena
comunidade católica instituída junto da Irmã. Mas, a maioria dos
católicos no morro permaneceu transitando entre os cultos à Maria
Degolada, a Nossa Senhora da Conceição, assim como frequentando as
religiões de matriz africana, as sessões de espiritismo e os cultos
pentecostais. Poderíamos dizer que a nova devoção, introduzida pela
Irmã não separou o “joio do trigo”, mas, ao contrário, se somou às outras devoções e práticas religiosas dos moradores. Talvez, Irmã Nely
tenha subestimado o conhecimento e a inteligência popular nos assuntos
de religião. Como nos relatava Nelci, uma moradora da vila, referindo-se
à catequese que era ensinada na Pequena Casa da Criança:
O povo da vila não é burro não, sabe muito bem
que este santuário é da Maria Degolada, e também
sabe quem é Nossa Senhora da Conceição.
Qualquer pessoa pode te contar um pouquinho da
história que ocorreu aqui, nem que seja só dizer
que uma mulher foi degolada.
Após a década de 1980, o ocorrido no local ficou quase que
retrito à memória das pessoas, ao que elas podiam contar. As romarias
deixaram de mobilizar devotos, a figueira caiu e o espaço sagrado foi
ocupado por barracos de moradores. O último vestígio do que poderia
ter sido um santuário se tranformou, no dizer dos moradores, num lugar
para se deixar imagens de santos quebradas. Como afirmou Miriam, uma
moradora dos arredores do antigo local de culto, sabe como é, quando quebra um santo as pessoas ficam com receio de jogá-lo no lixo. Aí trazem para cá. A
invisibilidade física que hoje cerca o culto a Maria Degolada, contudo,
não resultou da estratégia dos agentes católicos de substituir a devoção,
mas da dinâmica social e habitacional que produziu a periferia e os
morros como espaços urbanos para moradia dos indesejados da cidade,
vítimas da especulação imobiliária e das políticas de urbanização. A vila
- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -
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[ 233 ]
logo incorporou o estigma da violência e do perigo. Como relata Janete,
moradora local,
Antigamente o culto era mais forte, vinham
pessoas de diversos lugares. Hoje em dia, devido à
localidade do santuário – no meio de uma Vila – o
acesso ficou muito restrito. Vocês sabem, uma Vila
enfrenta vário problemas.
As únicas datas do calendário litúrgico que ainda congrega
alguns poucos devotos, entre eles muitos locais, poucos de fora, são o
dia de finados, dois de novembro, e o dia doze de novembro, data do
assassinato de Maria Francelina Trenes. Nestes dias, no entanto, não há
qualquer presença da Igreja Católica, por meio de seus agentes. O culto
se restringe a atos de devoção pessoal, de visita ao antigo lugar de culto,
de manifestação piedosa de reconhecimento por alguma graça recebida
por intercessão de Maria Degolada ou pedido de algum pequeno milagre
ou cura para si ou para seus afins.
Quinto ato: nem Maria, a degolada, nem Maria, da Conceição, chegou a vez da mulher Maria Francelina Trenes
Em meados da década de 1990, a devoção à Maria Degolada
recebeu um novo impulso com a publicação do processo alusivo ao
crime, ocorrido em 1899. A divulgação do processo intitulado Maria degolada – Mito ou Realidade? pelo Arquivo Público do Estado reascendeu
o interesse da sociedade portoalegrense pela figura e pelo símbolo que
Maria Degolada representa para as sucessivas gerações que ouviram
contar, e contaram adiante, a história deste assassinato como um fato
emblemático da vida e cultura gaúcha. Mais do que à comunidade local, a
publicação do processo mobilizou a opinião pública e os órgãos
governamentais. Maria Degolada subiu ao palco, encenada na peça Maria
Degolada, de Hércules Greco e dirigida por Camilo de Lélis. Os jornais,
- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -
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[ 234 ]
como vimos acima, deram grande espaço para o debate e as
controvérsias que envolvem o mito e o evento histórico que
transformaram Maria Degolada em personagem da vida cotidiana da
cidade.
A Igreja Católica, no entanto, parece se ausentar do debate. Não
encontramos qualquer pronunciamento oficial da hierarquia sobre Maria
Degolada no período. Ao que parece, Maria Degolada, com o passar do
tempo, deixa o campo eclesial e entra no da arte, da cultura e da opinião
pública. Na época, entrevistamos Frei Susin, um frade capuchinho,
professor de teologia da PUC-RS, que atende a comunidade católica da
vila Maria Degolada. Sua avaliação dos efeitos da divulgação do processo
para a devoção é negativa e, em alguma medida, saudosista. Para ele,
[Foi] problemático termos voltado à fonte
histórica [...] agora fica um certo desencanto elas
saberem que a Maria da Conceição é de origem
alemã. Porque no imaginário, ela funcionaria bem
melhor se fosse negra [...] tanto se fala dessa Maria
Degolada como sendo a Vila [...] há um
enegrecimento natural da história [...] Então eu
não sei se isso é bom ou não, porque [...]
fragilizando o mito, se perderam aquelas
resistências e aquelas lutas que estão acopladas ao
mito. Na Pastoral Popular, a gente sempre tem
que cuidar se vale a pena a gente conscientizar
retirando o mito, porque às vezes são os mitos que
dão capacidade de luta.
O dilema vivido por Susin resulta da transformação que ocorre
na Igreja Católica com o surgimento da Teologia da Libertação, das
Comunidades Eclesiais de Base e as pastorais socias. A inserção dos
agentes destas pastorais no meio popular produziu uma certa
esquisofrenia entre o ideal iluminista de caráter humanista, herdeiro da
- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -
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[ 235 ]
educação popular e da tradição marxista, e a percepção da força que a
cultura popular, com seus seus santos, suas magias e seus mitos, é capaz
de imprimir no cotidiano dos pobres. Alinhados com os movimentos
sociais e políticos na construção da cidadania, estes agentes pastorais
compartilham dos ideais modernos de racionalização e secularização do
Estado. Contudo, vivendo o dia a dia das comunidades de base como
mediadores do sagrado são levados a uma autocrítica em relação a
distância que os separa do lugar e da mentalidade dos pobres.
A presença física e a ação pastoral destes agentes nas vilas e
periferias urbanas deram origem a uma elite local de leigos que se
engajam nos movimentos sociais, assumindo muitas vezes o papel de
intermediários entre os governos populares, que conquistam prefeituras,
estados e a própria união, e a população dessas periferias, em nome das
quais se sentem autorizados a falar nos fóruns e espaços políticos. Esta
experiência acabou produzindo uma outra modalidade de catolicismo
para o qual a salvação se expressa fundamentalmente em termos
humanista e secular. Nesta perspectiva, o domínio do social é
considerado como que dotado de princípios éticos imanentes, de modo
que a salvação cristã se identifica com a utopia social.30
Esta nova modalidade de catolicismo faz com que os agentes
pastorais se retirem das disputas pelos sentidos sagrados, que revestem a
figura de Maria Degolada, e se aliem ao Estado, na tentativa de
transformar este símbolo e ícone religioso num mediador cultural das
políticas de gênero, étnicas e sociais. Sua estratégia, entretanto, parece
seguir o caminho inverso ao daquele adotado anteriormente, no
processo de modernização. Ou seja, já não se trata de substituir Maria
Degolada por Nossa Senhora da Conceição, mas de colocar no seu lugar
30 Para uma crítica mais aprofundada da Teologia da Libertação e das conseqüências da
adoção de uma perspectiva secular pelos agentes religiosos na América Latina ver
MILBANK, John. Theology and Social Theory. Beyond secular reason. Oxford/Cambridge: Basil
Blackwell, 1990.
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[ 236 ]
a mulher Maria Francelina Trenes, símbolo da luta pelos Direitos
Humanos e contra a violência contra as mulheres. Maria Degolada torna-
se, assim, uma ponte para o Estado alcançar a população marginalizada
por meio de políticas públicas que não só visam combater a pobreza e a
descriminação social, mas também disseminar os valores universais e
modernos da cidadania, da igualdade e da liberdade, fundados sobre os
Direitos Humanos e os ideais de participação e democracia popular,
representados especialmente pelos partidos de esquerda que conquistam
a prefeitura e o governo do estado do Rio Grande do Sul neste período.
É no horizonte desta transformação, operada na sociedade
brasileira e no catolicismo, nas décadas de 1970 a 1990, que vamos
compreender a fala de Maria Luiza, uma liderança católica da
comunidade, que destaca o sentido social e político da figura de Maria
Degolada como mulher violentada e não como santa.
Ela não era uma santa, era uma mulher assim que
nem a gente [...] era atrevida [...] não levava
desaforo para casa [...] estamos resgatando a
mulher que sofreu e que foi morta, não a santa, a
santa veio depois da violência. A santa vai ser
tratada com muito carinho, mas o que tem que
ficar entre nós é a mulher que sofreu violência. Ela
representa uma luta da mulher pelos seus direitos,
pela sua liberdade. Além disso, o fato de Maria
Francelina ter sido em vida uma prostituta, faz
com que ela esteja mais próxima da realidade do
povo da vila.
Na perspectiva destes agentes, identificados com o catolicismo
da libertação, Maria Degolada é apresentada como uma mulher igual a
tantas outras que vivem em condição de pobreza nas vilas e periferias,
submetidas à violência e discriminação social e étnica. Em lugar da
idealização da santa intercessora, modelo moral, forjado no sofrimento
- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -
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[ 237 ]
redentor do martírio, trata-se aqui de ressaltar a sua condição humana e
terrena, de mulher violentada e assassinada, ícone de uma realidade
cotidiana que se busca transformar. A Maria Degolada das pastorais e
dos movimentos sociais emerge, então, como um símbolo que condensa
os sentidos da luta pelos Direitos Humanos das mulheres, contra a
discriminação étnica e as estruturas de dominação que reproduzem a
sociedade burguesa e capitalista. Estes sentidos associados à luta social e
à conscientização política são expressos de forma direta e clara num
outro trecho da entrevista Frei Susin que citamos acima.
Esse pessoal também está à mercê de relações
sexuais e afetivas que são arranjos [...] Então, a
Maria da Conceição participa da mesma realidade,
e dá uma dignidade para essas pessoas [...]”. Ela representa um centro religioso mítico que dá
identidade de resistência, sobretudo pro lado
feminino da Vila Maria da Conceição, vítima de
violência, vítima de desprezo, vítima de machismo
[...] e dá também uma consciência religiosa, no
sentido de que, ali, alguma coisa de transcendental,
de divino, aconteceu [...] Ela passa a ser uma santa
da Vila e é uma santa que tem gente que vai
sempre nela, faz promessa, ..., Portanto, ela tem
uma função de santidade como se teve em função
de Santo Antônio, e tantos outros santos.
Está em jogo, portanto, um outro modelo de santidade, que se
distancia daquele forjado na teologia moral da castidade e da obediência
aos dogmas e à doutrina eclesiástica. Já não se trata de entronizar nos
altares santas que morreram em defesa da castidade e se tornaram
modelos de continência e repressão sexual. Mulheres puras, geralmente
jovens, que se distanciam da vida cotidiana de violência, perigo, pecado e
degradação que constituem a condição das pessoas que vivem nas vilas e
- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -
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[ 238 ]
periferias dos centros urbanos hoje. A Maria Francelina Trenes, ao
contrário destas santas, é apresentada como uma mulher pecadora, “de vida fácil”, como afirmam algumas das testemunhas do processo acitado acima, forjada como santa pela dor e o sofrimento. Alguém que
transcende a condição humana e é elevada à santidade por meio de um
processo de identificação com as da descriminação social e da violência
estrutural da cultura machista que permeia a sociedade.
A construção desta Maria Degolada, associada ao catolicismo da
libertação e aos movimentos sociais, se dá por meio de rituais político-
religiosos que vão destacar a figura da mulher, vítima da violência. Neste
sentido, no dia doze de novembro de 1999, data comemorativa do
centenário da morte de Maria Francelina Trenes, o morro foi palco de
uma festa organizada pela Associação de Mulheres da Vila Maria da
Conceição, pelo Conselho Municipal dos Direitos da Mulher e o Fórum
Municipal da Mulher. A performance deste evento muito pouco tem em
comum com os rituais das romarias aos túmulos ou espaços sagrados de
referência dos santos populares. Sua dinâmica e encenação estão mais
próximas dos eventos cívicos e dos comícios políticos, pautados por
discursos de exaltação do povo, como agente e protagonista da vida
social. A atualização do evento da violência exemplar contra a mulher
Maria Francelina Trenes no ritual é um recurso performático que
concorre para produzir uma identificação simbólica entre ela e as
pessoas que se engajam nas lutas populares, especialmente aquelas que
se travam no campo das políticas de gênero. Ela torna-se, assim, não
mais como o mito Maria Degolada, mas como mulher violentada,
depositária das virtudes e dos sofrimentos de todas as mulheres que são
vítimas de violência. É sintomático, por sua vez, que os símbolos eleitos
para perpetuar sua memória e dar materialidade à sua presença na vila
não serão uma imagem ou um santuário, mas uma placa comemorativa e
o plantio de uma árvore. A placa traz a seguinte mensagem:
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[ 239 ]
Em memória a Maria Francelina Trenes, no
centenário de sua morte, pelas muitas Marias em
que se tornou, e em repúdio a todas as violências e
discriminações contra as mulheres. (Assinam: os
Grupo de Mulheres da Vila Maria da Conceição, a
Associação de Moradores da Vila Maria da
Conceição, a Associação Cultural de Mulheres
Negras/ACMUA, o Coletivo Feminino Plural e
Maria Mulher).
A árvore foi plantada onde antes havia a mitológica figueira, sob
a qual Maria teria sido morta. Os sentidos associados a este rito, no
entanto, não se retringiram a um referencial religioso tradicional, no qual
a árvore aparece com frequência como um símbolo dominante, mas
remetem especialmente ao campo ambiental. Plantar uma árvore num
ritual a Maria Degolada acaba indexando valores e sentimentos
ecológicos a sua figura. Poderíamos, portanto, identificar aqui um
processo que observamos noutros contextos similares de uma
ambientalização social da religião. Este processo, contudo, é
potencializado em situações como a que estamos analisando, nas quais a
religião aparece associada aos movimentos sociais.
Há, portanto, um deslocamento do culto a Maria Degolada para
a mulher Maria Francelina Trenes, eleita personagem símbolo do Dia
Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, 25 de
novembro. Ao se produzir este movimento, como afirma Venise
Meneses, funcionária do Estado, envolvida com a festividade, o evento
teria marcado um momento de
reconhecimento público de revitalização do mito e
de atualização da identidade coletiva e de gênero
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[ 240 ]
que eleva simbolicamente a figura de Maria
Francelina Trenes para a reivindicação de políticas
públicas ao combate à violência e discriminação
contra as mulheres, contribuindo também para a
preservação e permanência do espaço público
ritualístico.
Assim, as disputas entre Maria Degolada e Nossa Senhora da
Conceição, que havia marcado o período anterior, perderam sua
visibilidade. Em seu lugar, instaura-se uma nova disputa que vai se dar
entre Maria Degolada, como ícone e mito popular, e a Maria Francelina
Trenes, símbolo da luta das mulhere contra a violência. Embora partilhe
de uma ideologia secularizada, que toma como princípio a independência
e autonomia do Estado, a prática política aqui analisada mostra o quanto
o diálogo e a implementação das políticas públicas necessitam negociar
com as crenças, mitos e valores religiosos que estão no cotidiano das
comunidades e tecem a trama das redes e das relações sociais nestes
espaços. Afinal, a política não se faz no vazio de práticas e significados,
nem se impõe como uma verdade que se impõe desde fora. Ao
contrário, observamos aqui como que um processo de indigenização –
fazendo uma apropriação, ainda que aproximada, deste conceito de
Marshal Sahlins – em que as categorias modernas, do campo da política,
são apropriadas e ressignificadas dentro de uma cultura popular onde os
mitos, crenças e valores religosos mantém sua vigência como sistema de
conhecimento e interpretação do mundo.
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