Maria Degolada: de mulher a santa e de santa a mulher

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Maria Degolada: de mulher a santa e de santa a mulher Carlos Alberto Steil 1 Rodrigo Toniol 2 Este artigo aborda, desde uma perspectiva antropológica, práticas devocionais católicas não inseridas no marco institucional da Igreja no Rio Grande do Sul. Embora haja uma série de eventos e rituais religiosos que remetam a devoções populares tradicionais, a presença hegemônica do catolicismo clerical e romanizado nessa região do país acabou por torná-las marginais. A manutenção de um hipotético contraste entre um Sul, colonizado por europeus, romanizado, obediente ao clero, e um Norte, caboclo, sincrético e profícuo em manifestações do catolicismo popular, foi um fator decisivo na construção desta visão do catolicismo no Sul. Na tentativa de problematizar a crença no sucesso absoluto da romanização, nos detemos aqui nas devoções e práticas religiosas associadas à Maria Degolada, em Porto Alegre 3 . Ao procurar jogar luzes em contextos que não remetem a um catolicismo clerical, submerso na sociedade que se formou no sul do país, não estamos negando o impacto diferenciado que o movimento de 1 Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Email: [email protected] 2 Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Email: [email protected] 3 A pesquisa de campo foi realizada no âmbito do projeto “Peregrinações e tur ismo religioso no Rio Grande do Sul”, coordenado por Carlos Aberto Steil e contou com a

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Maria Degolada: de mulher a santa e de santa a mulher

Carlos Alberto Steil1

Rodrigo Toniol2

Este artigo aborda, desde uma perspectiva antropológica,

práticas devocionais católicas não inseridas no marco institucional da

Igreja no Rio Grande do Sul. Embora haja uma série de eventos e rituais

religiosos que remetam a devoções populares tradicionais, a presença

hegemônica do catolicismo clerical e romanizado nessa região do país

acabou por torná-las marginais. A manutenção de um hipotético

contraste entre um Sul, colonizado por europeus, romanizado, obediente

ao clero, e um Norte, caboclo, sincrético e profícuo em manifestações

do catolicismo popular, foi um fator decisivo na construção desta visão

do catolicismo no Sul. Na tentativa de problematizar a crença no sucesso

absoluto da romanização, nos detemos aqui nas devoções e práticas

religiosas associadas à Maria Degolada, em Porto Alegre3.

Ao procurar jogar luzes em contextos que não remetem a um

catolicismo clerical, submerso na sociedade que se formou no sul do

país, não estamos negando o impacto diferenciado que o movimento de

1 Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email:

[email protected] 2 Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email:

[email protected] 3 A pesquisa de campo foi realizada no âmbito do projeto “Peregrinações e turismo

religioso no Rio Grande do Sul”, coordenado por Carlos Aberto Steil e contou com a

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romanização teve na região. Mas, trata-se de um esforço que procura

escapar de perspectivas exclusivistas que concebem o catolicismo ou a

partir da ação institucional ou a partir de práticas populares, para voltar

nossa atenção àquilo que podemos reconhecer como uma catolicidade capaz de articular catolicismo eclesiástico e popular sem, por isso, perder

de vista seus tensionamentos.

Embora tenha como referência um evento histórico, Maria

Degolada se perpetua na memória popular, na crônica social, nos livros

didáticos de história e nas artes cênicas por meio das múltiplas e

contraditórias versões que vem sendo narradas ao longo de mais de um

século. São estórias sobre Maria Degolada, mas também estórias que

diferentes atores sociais em diferentes momentos históricos contam sobre

eles mesmos e sobre a realidade em que vivem, por isso mesmo

continuamente atualizadas. As contradições e os paradoxos não são

evitados, mas ao contrário, constituem a base a partir da qual estes atores

sociais comunicam e compreendem sua experiência, ela mesma

contraditória e diferenciada. Através das estórias reinventam o seu contexto

cultural e a trama de sentidos e símbolos que configuram a sua identidade

social.

As estórias são parte da dinâmica de negociações e conflitos

vividos no contexto social, possibilitando que as mudanças (e a resistência a

elas) sejam sancionadas através da sua inserção numa continuidade histórica

4. As mudanças na sociedade e no catolicismo são, assim, elaboradas

coletivamente numa tensão permanente entre o moderno e o tradicional,

entre as convenções que resistem criativamente às inovações que põem em

risco práticas e conceitos estabelecidos. Neste sentido, podemos afirmar

que o culto a Maria Degolada tem sido um recurso social privilegiado para

participação de Carolina dos Santos Grimm como auxiliar de pesquisa no período de

2002 à 2004. 4 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeito: Paz e

Terra, 1984. P. 12.

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a incorporação de valores modernos que têm sido assimilados na medida

em que conseguem estabelecer um nexo de continuidade com a tradição.

Em suma, as estórias sobre Maria Degolada surgem com força performativa, elas mesmas fundadoras da aura sagrada de que se reveste o

evento5. Pode-se dizer que as estórias autorizam o estabelecimento do culto,

na medida em que oferecem um mapa dinâmico do espaço, transformando

o espaço em lugar e instituindo “a ordem segundo a qual se distribuem os

elementos nas relações de coexistência entre passado e presente”6. Esta

função de autorização e de fundação, no entanto, não é jurídica, isto é,

relativa a leis e juízos, no entanto, pertence à ordem da instituição,

enquanto estabelece uma base mística para o culto e um campo de

referência para as ações dos devotos.

O fato e a memória No dia 12 de novembro de 1899, em Porto Alegre, Maria

Francelina Trenes foi violentamente assassinada por seu companheiro

Bruno Soares Bicudo durante um piquenique no Morro do Hospício. O

caso, batizado pela crônica policial da cidade de Crime da Maria Degolada,

ganhou grande repercussão nos jornais da capital gaúcha. Em pouco

tempo, o local do acontecimento passou a ser chamado de Morro da

Maria Degolada, assim como a vila que ali surgiria anos mais tarde. Em

que pese as diferentes versões que circularam na cidade pela transmissão

oral, havia certo consenso de que ocorrera, no alto de um morro,

próximo ao bairro Partenon, a degola de uma mulher por um soldado

miliciano. No entanto, a circustância do acontecimento era, até meados

da década de 1990, pouco conhecida. Em parte, seu esclarecimento foi

possível apenas após a publicação, em 1994, por iniciativa do Arquivo

5 Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. 6 Idem, 1994, p. 201.

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Público do Estado, do processo alusivo ao fato, com o título Maria degolada – Mito ou Realidade?7

O referido crime não ficou restrito às memórias das páginas

policiais dos jornais da região, mas as extrapolou, tornando-se referência

para uma devoção popular que permanece viva na cidade de Porto

Alegre até os dias de hoje, ainda que tenha passado por diversas

apropriações ao longo do tempo. O local do crime se transformou em

local de devocão, fazendo com que diversos devotos se dirijam para o

alto do morro, nos limites da cidade, para depositar velas e objetos

pessoais como forma de pedidos e agradecimentos. O mal extremo,

expresso aqui pelo homicídio – da mesma forma que Tania Eliane

Freitas8 percebeu em relação aos santos populares Jararaca e Baracho, no

Rio Grande do Norte – aqui também parece torna-se sagrado, fazendo

daquele que o toca ou é por ele tocado um ser especial9. Embora, no

caso de Maria Degolada, diferentemente dos personagens analisados por

Freitas, a santidade seja atribuída à vítima e não ao assassino. Ainda que

esta seja identificada como prostituta em muitas das estórias que dão

origem e perpetuam o seu mito. O operador da passagem da identidade

de prostituta a de santa neste caso, como em outros semelhantes de

santas populares cultuadas em cemitérios, parece ser a dor e o

sofrimento.10 Poderíamos reconhecer, neste processo uma função

positiva da dor e do sofrimento, na medida em que se tornam

necessários para que se efetue a passagem e a transformação esperada.

7 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. 1994. Maria Degolada – Mito ou Realidade?, Porto Alegre, Edições Est. 8 Freitas, Eliane Tânia Martins. Violência e Sagrado? O que no criminoso anuncia o

santo? In: Revista Ciências Sociais e Religião, ano2, nº2, setembro de 2000, pp.191-203. 9 Caillois, Roger. O Homem e o Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 48. 10 Observa-se uma recorrência no catolicismo popular de outos personagens que, assim

como Maria Degolada, são cultuados como santos. No livro Maria Bueno: Santa de Casa,

as autoras apresentam uma lista extensa destes santos popularmente canonizados (Stoll,

Sandra; Santos, Conceição; Braga, Geslline; Durando, Vanessa. Maria Bueno: Santa de Casa. Curitiba: Edição do autor, 2011).

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Há, no entanto, um elemento diacrítico que reveste de grande

intensidade o sentido e a memória da morte de Maria Francelina Trenes:

a forma pela qual ela é executada. E, foi justamente a forma de sua

execução que lhe outorgou o nome pelo qual ela se tornaria conhecida

depois de morta: Maria Degolada. A degola de Maria Francelina Trenes

apresenta-se, portanto, no contexto do final do século XIX, como um

ritual de expiação pelo grande número de degolas que foram impetradas

aos soldados da revolução federalista no Rio Grande do Sul, poucos

anos antes deste evento particular. Tomando como referência o conceito

de paradigma de raiz, proposto por Victor e Edith Turner11, poderíamos

interpretar a morte de Maria Francelina Trenes, no alto do morro do

Hospício, como uma reiteração e atualização do mito cristão do Gólgota,

onde Jesus é transpassado pela lança do soldado, no ritual exemplar que

converte o ladrão em mártir e a pecadora em santa.

Acreditamos que seja este paradigma de raiz, que se encontra no

centro da devoção, que mobiliza os diversos agentes que vamos

identificar nesta arena de disputas pelos significados e signos que Maria

Degolada aciona na imaginação social em Porto Alegre. Neste sentido,

vamos destacar primeiramente as disputas entre os devotos populares e

os agentes da modernização do catolicismo, tanto na sua vertende

conservadora quanto da teologia da libertação. Num momento seguinte,

vamos chamar a atenção para a tentativa, no final do século passado, de

alguns órgãos governamentais e ONGs de inscrever o evento da morte

de Maria Francelina Trenes na narrativa dos movimentos de defesa dos

Direitos Humanos e apresentá-la como um símbolo da luta contra

violência contra as mulheres.

Nosso objetivo, neste texto não é, e nem poderia ser, encerrar o

caso, selando a verdadeira história, mas trata-se de um esforço por traçar

a trajetória que conduziu o assassinato de Maria Francelina Trenes à

11 TURNER, Victor; EDITH Turner. Image and pilgrimage in Christian Culture: Nwe York: Columbia University Press, 1978. P. 48.

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devoção a Maria Degolada, de Maria Degolada à Nossa Senhora da

Conceição, retonando a uma tentativa de reapropriação de Maria

Francelina Trenes como ícone do movimento de defesa dos direitos

humanos. Para tanto, dividiremos o texto que segue em cinco partes que,

assim como atos de uma encenação, tanto podem ser tomadas como

autônomas quanto podem ser dispostas numa unidade narrativa que as

articulam como um evento de longa duração. O evento do assassinato de

Maria Degolada torna-se, assim, um locus privilegiado para se perceber de

que modo opera a dialética entre evento e estrutura, na medida em que

se apresenta como um fenômeno que se inscreve num tempo de longa duração, no sentido proposto por Marshall Sahlins, segundo o qual,

quanto mais uma coisa permanece, mais ela se modifica12.

Primeiro Ato: O Processo Aos dois dias do mês de dezembro de mil oitocentos e noventa

e nove, na cidade de Porto Alegre, na sala das audiências, onde se achava

o juiz distrital do crime, Doutor Aurelio de Bittencourt Junior, o escrivão

Francisco Paula Guedes e o promotor público doutor James Darcy,

compareceram o réu preso Bruno Soares Bicudo e as testemunhas

Felisbino Antero de Medina, Egidio Correia da Silva, Franciso Alves

Nunes e Manoel Antonio de Vargas13.

Na ocasião o juiz interrogou o réu:

P. Qual seu nome, idade, estado civil e

naturalidade?

12 SAHLINS, Marshal. Ilhas de História. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990. p. 7-8. 13 Como um recurso narrativo optamos por escrever essa seção do texto simulando um

processo judicial. As informações aqui apresentadas foram retiradas do próprio processo

a partir da publicação Maria Degolada. Mito ou realidade? do arquivo público do Estado do

Rio Grande do Sul. O conteúdo dos depoimentos apresentados nessa sessão também

foram retirados do referido processo, contudo, adaptamos alguns dos termos do

protuguês do século XIX para uma linguagem contemporânea.

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R. Bruno Soares Bicudo, vinte e nove anos,

solteiro, brasileiro

P. Tem fatos a alegar que promovem ou

justifiquem sua inocência?

R. Tem e em tempo oportuno os apresentarei.

E nada mais disse nem lhe foi perguntado. Em

seguida o juiz inquiriu a primeira testemunha.

Felisbino Antero de Medina, vinte um anos, solteiro, praça do

primeiro regimento da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul.

Disse que no referido dia pelas três horas da tarde encontrava-se junto

com o acusado, a vítima e mais pessoas, homens e mulheres, nas

proximidades ao Hospício São Pedro, quando o acusado discutiu com a

vítima, sua amasia, a ponto dela tentar acertá-lo com um pedaço de

madeira. O acusado, entretanto, conseguiu desarmá-la nessa e numa

outra ocasião, logo em seguida, quando ela tentou agredi-lo novamente

com um cano de ferro. Tanto o depoente quanto as demais pessoas

presentes deixaram de intervir na briga quando perceberam que as brigas

entre o casal eram frequentes. Aconteceu, porém, para a surpresa de

todos, que a vítima e o acusado iniciaram uma nova discussão em um

lugar um pouco mais afastado do grupo. O acusado, então, sacou uma

faca que trazia consigo e degolou sua amasia. O depoente e as demais

pessoas presentes, com medo do acusado, que ainda estava munido com

a faca, foram comunicar o fato ao cabo Egidio Correa da Silva que, em

seguida, foi até o local e deu voz de prisão ao acusado.

Após o depoimento da primeira testemuna, seguido do

depoimento da segunda testemunha, o juiz inquiriu a terceira.

Francisco Alves Nunes, vinte e seis anos, solteiro, soldado da

Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Disse que no dia e hora referidos

na denúncia encontrava-se com a vitima e outros camaradas no Arraial

do Partenon, próximo à chácara das bananeiras, para a realização de um

piquenique. Em meio a festa, a vítima zombou do acusado, que era seu

amásio, dizendo que tinha outro homem. Seguiu-se uma discussão

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calorosa entre eles, a qual os outros presentes interviram. Durante a

confusão, a vítima chegou a tentar acertar o acusado com um porrete e

um pedaço de ferro. Julgando que a briga já havia terminado, os

presentes foram tomar um café, enquanto a vítima e o acusado ficaram

um pouco retirados. Quando o café ficou pronto e um dos presentes foi

chamar o denunciado para tomá-lo, notou que ele havia assassinado a

vítima com uma faca ainda em punho. Então, os companheiros deram

voz de prisão ao acusado. Disse ainda que o acusado sempre teve bom

comportamento na milícia a que pertencia. Após o depoimento da última

testemunha, a sessão foi encerrada.

No dia trinta e um de março de mil e novecentos, após a

votação unânime, o juri popular decidiu pela condenação do réu. O juiz,

por sua vez, setenciou a prisão de Bruno Soares Bicudo por trinta anos.

No dia dezesseis de setembro de mil novecentos e seis o sentenciado

faleceu na Casa de Correção por conta de uma nefrite intestinal.

Ainda que nos introduza no contexto da escrita, o processo que

descrevemos aqui nos remete a um ambiente dialógico, onde as múltiplas

versões dos depoimentos orais aparecem com as suas contradições e mal

entendidos. Mesmo porque, o objetivo do processo é mais constatar a

verossilhança das versões que transitam sobre o crime do que a verdade

do fato. Ainda que, como observa Ítalo Calvino, a adequação do não-

escrito ao escrito é sempre problemática, porque “ao se dar conta da

densidade e da continuidade do mundo que nos rodeia, a linguagem escrita

se revela lacunosa, fragmentária e diz sempre menos com respeito à

totalidade do que foi experimentado”14, os processos jurídicos se situam

numa fronteira liminar entre estes dois regimes da palavra: a escrita e a

oralidade.

A observação de Calvino se revela bastante familiar tanto para

aqueles que se deparam com a experiência de campo, marcada por uma

14 CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,

1988.p. 88.

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relação essencialmente dialógica e partilhada com os interlocutores da

pesquisa, quanto para aqueles que se debruçam sobre os processos

jurídicos, que procuram reconstituir o ambiente do crime ou delito a partir

das versões daqueles que as viveram e interpretaram. Ainda que nos

distancie do contexto da observação direta, as versões transcritas nos

processos se aproximam muito dos dados sistematizados nos diários de

campo que se apresentam ao cientista social e ao historiador como

documentos escritos que podem ser manusados na materialidade dos

registros e transcrições que estão ao nosso alcance. Em ambas situações, os

múltiplos sentidos flutuantes que se apresentam no contexto oral e nos

processos jurídicos, acabam sendo fixados nas páginas de um caderno de

campo e no texto processual, antes de ganhar a forma etnográfica ou

histórica no ensaio acadêmico.

Segundo ato: os jornais Qundo o crime ocorreu, a cidade de Porto Alegre tinha pouco

mais de 70.000 habitantes. Sua repercursão foi ampla, não somente por

conta de sua brutalidade, mas também por outros dois motivos que

retomaremos noutro momento: o fato de ter sido uma degola e de

ocorrer nos últimos anos da passagem do século. O estado do Rio

Grande do Sul havia passado, naquela mesma década, pela Revolução

Federalista, resultado da tentativa de dar ao estado maior autonomia

política no início da república. Como nos referimos anteriormente, os

conflitos armados, ocorridos durante essa revolta, estiveram marcados

pela prática da degola dos prisioneiros de guerra por ambos os lados da

disputa. Encerrado em 1895, o conflito chegou a ser chamado de

Revolução das Degolas. Assim, o modo como Maria Francelina Trenes

foi assassinada é um aspecto fundamental para compreender tanto sua

repercursão imediata como também a consagração da vítima como santa

popular.

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Outro aspecto importante que contribui para a densidade e

abrangência do crime, diz respeito ao fato de ter ocorrido nos últimos

anos de um século. As crônicas jornalísticas da época relatam uma

apreensão geral com a data, noticiando, inclusive, alguns suicídios de

pessoas com medo de um possível fim do mundo. A degola de Maria

Francelina Trenes vinha, assim, confirmar a crença e a imagem cristã do

destino escatológico da humanidade, numa verão catastrófica e destruição e

restauração de um novo tempo. No início de cada novo século ou milênio,

a iminência do Juízo Final se torna mais aguda e agonística.15

A crônica social dos jornais da época trazem abundantes notícias

sobre o clima de apreensão e expectativa por acontecimentos que

pudessem confirmar a crença num apocalipse que poderia emergir na

passagem do século. O crime da degola, relatado como um ritual

expiatória, se apresentava aos jornalista como um recurso potente para

produzir, expressar e reforçar a crença no final dos tempos que estava

subjacente na sociedade portalegrense. Assim, na tentativa de introduzir

o leitor neste clima da época e, deste modo, poder avaliar o contexto de

recepção do assassinato de Maria Degolada na cidade, reprozimos abaixo

alguns trechos de jornais que o noticiaram16.

*** Maria Francelina Trenes, solteira 21 anos de idade,

foi ontem, às 3 horas da tarde, barbaramente

15 Jean Delumeau, em seu livro A história do medo no Ocidente, mostra que os textos

bíblicos alimentaram a crença no Juízo Final (1989: 213). Para o autor isto refletia as

confusões existentes no espírito daqueles que nos primeiros tempos do cristianismo eram

tomados pela espera escatológica. Como vimos acima, podemos tomar o evento de Maria

Degolada como sugere Victor e Edith Turner, como um paradigma de raiz que reitera o mito

bíblico da morte de Jesus no Gólgota. Delumeau, Jean. A história do medo no Ocidente –

1300 – 1800. São Paulo: Companhua das Letras, 1989. 16 Preservamos o conteúdo das notícias, mas contemporaneizamos a grafia das palavras.

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assassinada por seu amante Brum Soares17,

soldado do 1o Regimento da Brigada Militar, e

empregado nas plantações da chácara do governo

do estado, denominada Recreio Agrônomo. O fato

delictuoso deu-se nos fundos da chacara do Sr.

João de Oliveira Vianna, em frente ao hospício

São Pedro, onde existe uma grande pedreira. Pelo

depoimento de algumas testemunhas interrogadas

pelo sr. major Andrade, que ali compareceu, vê-se

que o autor do crime e sua amasia achavam-se

naquele lugar a hora referida, em conversação com

mais pessoas, quando depois de uma pequena

troca de palavras, Brum lançou mão de uma faca e,

agarrando Maria Francelina pelos cabelos, deu-lhe

um profundíssimo golpe no pescoço,

impiedosamente. [...]. A infeliz vitima achava-se

atirada sobre o capim, debaixo de uma grande

árvore, usava vestido e casaco azul, tendo os

cabelos todos soltos. [...] O citado ferimento que

recebera Maria Francelina atingira-lhe o lado

direiro, na região lateral do pescoço, mostrando

um enormíssimo e profundo golpe. Era lastimável

e contristador o estado da vítima. O assassino

Brum apresenta também um talho no pescoço, que

segundo dizem as testemunhas, tentou degolar-se

após a perpretação do crime. Ele tem 40 anos mais

ou menos, é solteiro, indiático e mal encarado.18

*** Uma cena verdadeiramente bárbara teve

anteontem por teatro o arraial do Veiga, na estrada

do Mato Grosso. Praças da brigada militar do

Estado faziam um piquenique naquele local com

mulheres de vida fácil. A reunião começou pela

17 Conforme pudemos constatar em nossas pesquisas o nome de Bruno Soares, assim

como o de Maria Francelina Trenes, teve algumas variações nas notícias e mesmo no

processo relativo ao crime. 18 Gazetinha, Porto Alegre, 13 novembro, 1899, p.1, c618.

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manhã, em um pequeno capão ali existente. Cada

um dos presentes procurou se aproximar de uma

das mulheres. O soldado do 1o regimento de

cavalaria, por nome Bueno Soares, se interessou

por Maria Francelina Treves, de 21 anos, de

nacionalidade alemã. Ela, porém, não simpatizou

com ele e, ouvindo suas declarações amorosas,

respondeu-lhe com o mais soberano despreso.

Exarcebado, Bueno, com um ímpeto de cólera,

atirou-se sobre Maria Francelina e, como ela não

quis seus beijos, ele não quis que os outros

presentes gozassem dele. Uma nuvem de sangue

passou-lhe pela vista e muito antes que os seus

companheiros pudessem impedir a prática do

crime, ele já o havia cometido de uma forma

horrorosa. Maria Francisca foi atirada por terra,

comprimida pelo joelho do possante soldado e

uma faca afiada atravessou-lhe a gargante. A pobre

mulher fora degolada!19.

*** A horrivel cena de sangue que vamos referir

ocorreu anteontem à tarde na Estrada do Mato

Grosso, próximo ao local conhecido como

Chácara das Bananeiras. Eram 4 horas da tarde

mais ou menos e no local indicado estavam

reunidos na mais alegre camaradagem vários

soldados pertencentes ao 1o Regimento de

Cavalaria da Brigada Militar e algumas mulheres de

vida fácil. Todos riam à vontade [...] num

piquenique modesto, onde não figuravam iguarias

caras, mas onde abundava o churrasco regado a

paraty e cerveja de marca barbante. Entre as

pessoas estavam Bruno Soares Bicudo e a rapariga

Maria Francelina Trenes, que uns diziam ser

amasia dele. Em meio a geral alegria, Bruno e

19 Correio do Povo, Porto Alegre, 14 novembro, 1899. Fonte: Museu de comunicação

social Hypólito da Costa.

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Maria travavam animado diálogo. Subitamente

começaram os dois a trocar injúrias. Bruno,

incendiado de raiva, avança então para a rapariga e,

segurando-a fortemente pelos cabelos, derruba-a e,

puchando uma faca que trazia na cintura, fere-a

profundamente no pescoço degolando-a. O

criminoso agiu com tamanha destreza, o seu ato

foi tão brusco e violento que ninguém, por mais

ligeiro que fosse, poderia evitá-lo. A desgraçada

vitima do ardor sanguinário do soldado homicida

sucumbiu ali mesmo. Contava com apenas 21 anos

de idade e era de origem alemã.20

Nossa hipótese de trabalho sobre as crônicas jornalíticas nas

sociedades urbanas, nas quais a escrita tem um papel central na difusão da

informação e formação da opinião, é que elas desempenham um papel

semelhante ao das estórias nas sociedades orais e aos depoimentos das

testemunhas nos processos jurídicos. Assim, nos três contextos estamos

trabalhando com fragmentos de conversações abertas, nas quais os sentidos

se estabelecem provisoriamente nas diversas versões que vão sendo

produzidas nas estórias, nos processos jurídicos e nas crônicas dos jornais.

Ao cientista social e ao historiador, nestes contextos dialógicos, cabe dar

outra configuração ao evento por meio do texto acadêmico.21 Este, no

entanto, pretende transpor o evento para outro contexto discursivo, dos

seus pares, por meio de um exercício de interpretação hermenêutica que

busca transcender arena das disputas nativas sobre os sentidos indexados

aos eventos. A escrita acadêmica, como afirma Goody, “estabelece uma

relação diferente entre a palavra e o seu referente, uma relação mais abstrata

e menos conectada com as singularidades do lugar e do tempo, que é

20 Jornal do Comércio, Porto Alegre, 14 novembro, 1899, p.2, c.420 21 Isto não significa que a versão acadêmica esteja fora do campo social de produção de

significados, nem que o texto científico não possa vir a ser utilizado pelos “nativos” como um argumento na disputa pelos sentidos e na produção da verossimilhança no processo.

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própria da comunicação oral” 22. Deste modo, ela retira o cientista social e

o historiador da cadeia de interlocutores dentro da qual as versões dos

eventos são produzidas numa relação simétrica, entre iguais. Enfim, o

evento, ao ser apropriado pela escrita acadêmica, passa necessariamente

pela assimilação do desconhecido no conhecido ou do não-familiar no

familiar a partir das formas de comunicação do nosso próprio mundo,

referido fundamentalmente à escrita 23.

Terceiro ato: a devoção popular A devoção à Maria Degolada ocorre, pelo menos, desde a

década de 1930 em Porto Alegre, quando se torna possível registrar as

primeiras romarias que se dirigem ao alto do morro onde a Maria

Francelina Trenes fora assassinada. As versões neste período sobre quem

teria sido esta mulher e mesmo como ela teria morrido são diversas. O

historiador Helio Mariante, a partir de relatos orais que recolheu em

documentos da época, mostra que no início da devoção, ao lado da

versão que se afirmou como consensual nos anos de 1990, com a

publicação do processo jurídico, circulavam entre os primeiros romeiros

e a população em geral, versões muito contraditórias do evento. Havia,

assim, tanto aqueles “que afirmavam de pés juntos que a vítima,

vivamente apaixonada por um soldado da Brigada Militar, não tendo

sido correspondida, enforcou-se em um galho de árvore, quanto aqueles

que diziam tratar-se de uma virgem e, para outros, de uma anã”.24

22 GOODY, jacky; WATT, ian. The consequences of literacy. In: Goody, Jack (org.).

Literacy in traditional societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1968. P. 44. 23 Assumimos aqui, a perspectiva de autores como GOODY, jacky; WATT, ian. The

consequences of literacy. In: GOODY, Jack (org.). Literacy in traditional societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1968; Ong, Walter. The presence of the word.

Some prolegomena for cultural and religious history. Minneapolis: University of

Minnesota Press, 1986.; KELBER, Werner. The oral and the written gospel. Philadelphia:

Fortess Press, 1983 para os quais a consciência humana é estruturada no pensamento pelas

formas de comunicação. 24 Retirado de Maria degolada – Mito ou Realidade?(1994).

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Coletânea GTHRR/RS

[ 225 ]

As narrativas sobre a santa não se limitam a retratá-la como uma

personagem histórica ou mesmo como uma santa que por seu sofrimento

e sua morte trágica se transforma em intercessora dos vivos, distante

deste mundo. Ao contrário, trata-se de alguém que transita por estes dois

mundos, dos vivos e dos mortos, e pode aparecer em momentos

específicos em que ela se presentifica no mundo terreno. Algumas dessas

histórias afirmam que, durante a noite, Maria Degolada costuma passear

pela vila, toda vestidade branco, com o peito ensanguentado. Outra

versão, narra que ela aparece sentada numa pedra junto à figueira onde

morreu e que, quando chove, a pedra fica manchada com sangue25.

As estórias das aparições de Maria Degolada, no entanto,

atravessam o século XX e transcendem o contexto oral das conversações

entre romeiros ou moradores da vila que se formou no morro do

Hospício, e são reproduzidas na crônica social dos jornais da cidade.

Assim, em 1986, o jornalista Augusto Schmit produziu uma reportagem

para o jornal Zero Hora, relatando que:

Nas noites de céu limpo e de lua brilhante, um

vulto de mulher, vestida de noiva, costuma passear

por entre os casebres miseráveis da Vila Maria da

Conceiçào. Ela anda com a mão direita segurando

a garganta e solta gemidos de dor. Os moradores

da vila já se acostumaram com ela. E não a

chamam de fantasma, mas de santa26.

Discernir a natureza do vulto que passeia pela vila durante as

noites apresenta-se como um procedimento fundamental para a

construção da devoção. Os fantasmas são efêmeros e estão fora da rede

de conversação entre os vivos e mortos. Não são, portanto,

interlocutores nem mediadores entre o céu e a terra na economia católica

25 Mariante, 1994:16. Retirado de Maria degolada – Mito ou Realidade?(1994). 26 Zero Hora, Porto Alegre, 31 de agosto, 1986:26.

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[ 226 ]

da comunhão dos santos. Suas manifestações não possuem um

propósito e estão associadas à produção do medo. Ao contrário, as

aparições dos santos, especialmente de Nossa Senhora, são recorrentes

na tradição católica e possuem um sentido positivo. Elas confirmam o

dogma católico da comunhão dos santos e mostram o quanto as

fronteiras entre vivos e mortos são porosas e permeáveis. Ao transpor

para a crônica jornalística o discernimento dos moradores da vila de que

as aparições não são de um fantasma, mas de uma santa, o articulista não

apenas reconhece a autoridade dos moradores na produção da verdade

sobre questões religiosas, mas também colabora para inscrever Maria

Degolada no sistema de crenças do um catolicismo popular tradicional.

Ao lado das estórias sobre a morte de Maria Degolada e das suas

aparições e presença entre os vivos, estão os relatos dos devotos de curas

e graças alcançadas por seu intermédio, que encontram nos ex-votos,

deixados ao pé da figueira que demarcava o lugar da sua morte, sua

comprovação material. Aos poucos, contudo, a árvore deixa de ser

apenas um ponto de referência geográfica para o culto e adquire agência

e poder de cura, tornando-se ela mesma fonte de milagre. Os devotos

com frequencia recolhem sua casca, que é usada para fazer chás e

remédios. Também a água da chuva acumulada no lugar passou a

recolhida e envasada pelos devotos e usada como sagrada (Mariante,

1994)27.

Maria Degola, no entanto, é seletiva em termos daqueles que são

passíveis de serem agraciados com seus favores e milagres. Ou seja, os

policiais estão excluídos do horizontes de sua ação intercessora. Os

moradores da vila e os devotos parecem concordar em sua grande

maioria que ela não somente se recusa a atender os pedidos dos policiais,

como é capaz de potencializar o sofrimento daqueles que a invocarem

como intercessora. Poderíamos interpretar esta discriminação tanto

como uma referência ao assassinato que deu origem ao culto quanto uma

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[ 227 ]

elaboração coletiva da violência impetrada pelos policiais ainda hoje nas

vilas e periferias urbanas.

Hoje, não existe mais a árvore nem água no antigo local de

culto. Este foi reduzido a um pequeno muro onde ainda se pode

encontrar afixadas algumas placas de inscrição de graças alcançadas e

alguns ex-votos que datam de 1950 a 1990. O local de referência do

evento primordial do culto, que poderia ter se tornado um santuário, foi

ocupado e invisibilizado pelos barracos dos moradores transferidos para

o morro. Sem uma referência física para o culto, a memória popular e a

crônica social se tranfomaram nos principais suportes para a reprodução

e difusão do culto. O trabalho de campo realizado no início dos anos

2000, na Vila Maria Degolada, e as entrevistas que fizemos com os

moradores do entorno do antigo local de culto, mostram que permanece

viva a memória da santa, passada de geração a geração, especialmente

pelas mulheres. Como nos contava Sueli, uma senhora que morava na

imediações do local do culto:

quando eu já me conheci por gente [...] eu já ouvia

a história da Maria [...] eu tinha uns 12, 13 anos, eu

já via as pessoa vindo ao local. Traziam botas,

muletas, mãos de cera, cabeças de cera,

agradecendo as curas que foram alcançadas.

Sempre, sempre eu ouvi falar isso. E a minha mãe

também já falava que ela fazia muita cura [...] a

gente já se criou assim [...] é uma cultura que vem

há mais de cem anos.

Na contramão deste movimento de caráter popular, observa-se

já no início da formação da vila Maria Degolada a ação de alguns agentes

da Igreja Católica para transformar o culto e torná-lo minimamente

aceitável pela ortodoxia institucional, deslocando da devoção a Maria

27 Retirado de Maria degolada – Mito ou Realidade?(1994).

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[ 228 ]

Degolada para Nossa Senhora da Conceição. E, para isto, como em

outras devoções populares semelhantes, que foram incorporados à

ortodoxia católica, a estratégia eclesiástica tem usado a própria crença

popular em favor da transformação do culto. Ou seja, a autoridade da

santa é invocada como argumento persuasivo para legitimar o culto

substituto. Deste modo, no caso da mudança da devoção de Maria

Degolada para a devoção à Nossa Senhora da Conceição, não somente o

clero e os agentes paroquiais se posicionam a favor da mudança, mas a

santa mesma expressa o seu desejo e orienta os seus devotos, por meio

de suas aparições e manifestações sobrenaturais, para que dirijam seu

culto à Nossa Senhora da Conceição e não mais a Maria Degolada.

Há dois depoimentos que apontam para este deslocamento do

culto de Maria Degolada para Nossa Senhora da Conceição. O primeiro

foi narrado por uma moradora local e refere-se à queda da figueira,

referência fundante do culto. O segundo é retirado de uma crônica de

Ary Veiga Sanhudo, publicada em 1975. Reitera-se, assim, o argumento

que vimos seguindo de complementariedade entre a produção oral do

culto pelos devotos populares e a crônica social, publicada nos jornais da

cidade.

Como narra Dona Albina, moradora da vila e participante da

comunidade católica local,

A figueira ameaçava cair, mas desceu ali

devagarinho, sozinha, sem causar morte alguma.

Os bombeiros vieram, mas não foi preciso. A

Maria cuidou de tudo. Acho que foi a farda. Ela

não gosta de farda.

Em sua crônica, Ary Veiga Sanhudo narra que Maria Degolada

manifestou-se durante uma sessão espírita e revelou o profundo

desgosto pelo nome a ela atribuído, dizendo que, a partir de então,

deveria ser chamada de Maria da Conceição.

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[ 229 ]

numa sessão espírita, num casebre das cercanias,

uma das piedosas criaturas que costumava rezar e

ascender velas no local do crime, teria recebido

uma mensagem da falecida, dizendo que estava

muito triste porque estavam lhe chamando de

Maria degolada! No dia seguinte, a notícia circulou

temerária pelo lugar e ficou proibido

terminantemente que alguém se referisse ao morro

ou à morta, chamando-os pela malfadada

invocação de Maria Degolada. [...] O lugar passaria

a ser chamado, daí por diante, de Maria da

Conceição. O nome pegou e está aí para a

posteridade!28.

Estes dois registros podem ser tomados como parte da

elaboração popular e na opinião pública das transformações que estão

ocorrendo no culto. A relação entre o sistema devocional popular e o

católico moderno, neste caso particular, como noutros que analisamos,

não se configura como um conflito aberto, que tenderia a produzir uma

oposição excludente entre os dois sistemas, mas, ao contrário, orienta-se

para a acomodação das divergências dentro de uma unidade católica.

Assim como, o próprio espiritismo, ao deixa-se penetrar pelo devocional

católico popular, sem perder seu caráter racionalista, acaba por favorecer

o processo de modernização do catolicismo.

28 SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre: Crônicas da minha cidade. Porto Alegre: Ed.

Movimento, 1975. pg.127-128.

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Quarto Ato: de Maria Degolada à Nossa Senhora da Conceição

O projeto de incorporação da devoção a Maria Degolada no

sistema católico moderno é protagonizado especialmente por Irmã Nely

Capuzzo, uma religiosa Congregação das Missionárias de Jesus

Crucificado, que morou na vila e desenvolveu, por quase cinquenta anos,

atividades pastorais e de assistência social. Foi fundadora e diretora da

Pequena Casa da Criança – uma instituição filantrópica educacional e de

assistência social. Sua história pessoal como religiosa está inteiramene

associada à origem da vila Maria Degolada. Ainda no início de suas

atividades, na década de 1960, Irmã Nely foi designada para trabalhar

como missionária junto a população da Doca das Frutas. Esse local,

situado às margens do Guaíba, concentrava os carregamentos e

descarregamentos dos barcos abastecidos com hortaliças, frutas e outras

mercadorias na cidade. O grande fluxo de trabalhadores fez com que

alguns doqueiros, como eram conhecidos os que ali permaneciam,

fixassem suas residências nas proximidades. Assim, a Doca das Frutas

tornou-se não somente local de trabalho como também de moradia. A

urbanização do perímetro central de Porto Alegre, no entando, implicou

no deslocamento daquela população para o Morro da Maria Degolada,

no bairro Partenon, ainda pouco habitado. Irmã Nely acompanhou o

deslocamento de seus paroquianos e mudou-se com eles para o morro.

Como agente da modernização católica, Irmã Nely tratou, desde sua

chegada no morro, de apagar a memória de Maria Degolada, presente na

geografia e nos signos do lugar para o qual haviam sido transferidos. Sua

estratégia de ação foi a de procurar transferir a devoção a Maria

Degolada para a imagem de Nossa Senhora da Conceição, que ela

entronizou numa gruta, na entrada da vila.29 A este procedimento de

29 Baseamo-nos no depoimento de Irmã Nely apresentado no livro Maria Degolada. Mito

ou Realdidade?

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[ 231 ]

ordem performático, somou-se a ação catequética e doutrinária,

desenvolvida pela Irmã Nely e pelos agentes religiosos que se

concentram ao seu redor, que visava esclarecer os católicos locais sobre a

necessidade de substituirem a devoção a Maria Degolada pela devoção a

Nossa Senhora da Conceição. O depoimento de Irmã Nely, que

transcrevemos em seguida, é revelador do projeto e da ação pastoral e

assistencial que ela desenvolveru na vila Maria Degolada:

havia espíritas, batuqueiros, comunistas, católicos

de nascimento, mas nenhum católico de vida

devoto de Maria Degolada. Então, depois de

algumas reuniões chegamos a uma conclusão. Seria

erguida na vila uma gruta a Nossa Senhora. A

distinção seria fácil: quem quisesse cultuar Maria

Degolada, continuaria frequentando a figueira;

quem quisesse culturar a Virgem, encontraria um

lugar apropriado à sua devoção. Tudo fora

acertado. Mas cadê o dinheiro? A mão de obra nós

garantíamos com o trabalho da população da vila.

Então, a pedido de minha mãe, eu tinha que fazer

uma viagem a São Paulo [...]. Acompanhei minha

irmã e seu noivo até Santos. Enquanto eles foram

a um restaurante eu me dirigi ao nosso pensionato.

Mal acabara de entrar e fui convidada para um

passeio na Ilha das Palmas. [...] Depois do passeio,

quando já ia tomar a lancha de volta, vejo duas

senhoras convesando perto de uma grutinha de

Nossa Senhora e ouvi esta conversa: ‘- Eu sou de

Porto Alegre Há 9 anos fiz promessa de construir

uma gruta de Nossa Senhora, mas não tenho a

quem doar [...]’. Diante do que ouvi, eu me aproximei e disse: “Eu também sou de Porto Alegre e justamente estou à procura de alguém que

queira doar uma gruta para a Vila Maria da

Conceição.

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[ 232 ]

A gruta foi construída, a catequese foi implantada, as obras de

assistência às crianças e aos pobres estabelecidas e uma pequena

comunidade católica instituída junto da Irmã. Mas, a maioria dos

católicos no morro permaneceu transitando entre os cultos à Maria

Degolada, a Nossa Senhora da Conceição, assim como frequentando as

religiões de matriz africana, as sessões de espiritismo e os cultos

pentecostais. Poderíamos dizer que a nova devoção, introduzida pela

Irmã não separou o “joio do trigo”, mas, ao contrário, se somou às outras devoções e práticas religiosas dos moradores. Talvez, Irmã Nely

tenha subestimado o conhecimento e a inteligência popular nos assuntos

de religião. Como nos relatava Nelci, uma moradora da vila, referindo-se

à catequese que era ensinada na Pequena Casa da Criança:

O povo da vila não é burro não, sabe muito bem

que este santuário é da Maria Degolada, e também

sabe quem é Nossa Senhora da Conceição.

Qualquer pessoa pode te contar um pouquinho da

história que ocorreu aqui, nem que seja só dizer

que uma mulher foi degolada.

Após a década de 1980, o ocorrido no local ficou quase que

retrito à memória das pessoas, ao que elas podiam contar. As romarias

deixaram de mobilizar devotos, a figueira caiu e o espaço sagrado foi

ocupado por barracos de moradores. O último vestígio do que poderia

ter sido um santuário se tranformou, no dizer dos moradores, num lugar

para se deixar imagens de santos quebradas. Como afirmou Miriam, uma

moradora dos arredores do antigo local de culto, sabe como é, quando quebra um santo as pessoas ficam com receio de jogá-lo no lixo. Aí trazem para cá. A

invisibilidade física que hoje cerca o culto a Maria Degolada, contudo,

não resultou da estratégia dos agentes católicos de substituir a devoção,

mas da dinâmica social e habitacional que produziu a periferia e os

morros como espaços urbanos para moradia dos indesejados da cidade,

vítimas da especulação imobiliária e das políticas de urbanização. A vila

- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -

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[ 233 ]

logo incorporou o estigma da violência e do perigo. Como relata Janete,

moradora local,

Antigamente o culto era mais forte, vinham

pessoas de diversos lugares. Hoje em dia, devido à

localidade do santuário – no meio de uma Vila – o

acesso ficou muito restrito. Vocês sabem, uma Vila

enfrenta vário problemas.

As únicas datas do calendário litúrgico que ainda congrega

alguns poucos devotos, entre eles muitos locais, poucos de fora, são o

dia de finados, dois de novembro, e o dia doze de novembro, data do

assassinato de Maria Francelina Trenes. Nestes dias, no entanto, não há

qualquer presença da Igreja Católica, por meio de seus agentes. O culto

se restringe a atos de devoção pessoal, de visita ao antigo lugar de culto,

de manifestação piedosa de reconhecimento por alguma graça recebida

por intercessão de Maria Degolada ou pedido de algum pequeno milagre

ou cura para si ou para seus afins.

Quinto ato: nem Maria, a degolada, nem Maria, da Conceição, chegou a vez da mulher Maria Francelina Trenes

Em meados da década de 1990, a devoção à Maria Degolada

recebeu um novo impulso com a publicação do processo alusivo ao

crime, ocorrido em 1899. A divulgação do processo intitulado Maria degolada – Mito ou Realidade? pelo Arquivo Público do Estado reascendeu

o interesse da sociedade portoalegrense pela figura e pelo símbolo que

Maria Degolada representa para as sucessivas gerações que ouviram

contar, e contaram adiante, a história deste assassinato como um fato

emblemático da vida e cultura gaúcha. Mais do que à comunidade local, a

publicação do processo mobilizou a opinião pública e os órgãos

governamentais. Maria Degolada subiu ao palco, encenada na peça Maria

Degolada, de Hércules Greco e dirigida por Camilo de Lélis. Os jornais,

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[ 234 ]

como vimos acima, deram grande espaço para o debate e as

controvérsias que envolvem o mito e o evento histórico que

transformaram Maria Degolada em personagem da vida cotidiana da

cidade.

A Igreja Católica, no entanto, parece se ausentar do debate. Não

encontramos qualquer pronunciamento oficial da hierarquia sobre Maria

Degolada no período. Ao que parece, Maria Degolada, com o passar do

tempo, deixa o campo eclesial e entra no da arte, da cultura e da opinião

pública. Na época, entrevistamos Frei Susin, um frade capuchinho,

professor de teologia da PUC-RS, que atende a comunidade católica da

vila Maria Degolada. Sua avaliação dos efeitos da divulgação do processo

para a devoção é negativa e, em alguma medida, saudosista. Para ele,

[Foi] problemático termos voltado à fonte

histórica [...] agora fica um certo desencanto elas

saberem que a Maria da Conceição é de origem

alemã. Porque no imaginário, ela funcionaria bem

melhor se fosse negra [...] tanto se fala dessa Maria

Degolada como sendo a Vila [...] há um

enegrecimento natural da história [...] Então eu

não sei se isso é bom ou não, porque [...]

fragilizando o mito, se perderam aquelas

resistências e aquelas lutas que estão acopladas ao

mito. Na Pastoral Popular, a gente sempre tem

que cuidar se vale a pena a gente conscientizar

retirando o mito, porque às vezes são os mitos que

dão capacidade de luta.

O dilema vivido por Susin resulta da transformação que ocorre

na Igreja Católica com o surgimento da Teologia da Libertação, das

Comunidades Eclesiais de Base e as pastorais socias. A inserção dos

agentes destas pastorais no meio popular produziu uma certa

esquisofrenia entre o ideal iluminista de caráter humanista, herdeiro da

- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -

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[ 235 ]

educação popular e da tradição marxista, e a percepção da força que a

cultura popular, com seus seus santos, suas magias e seus mitos, é capaz

de imprimir no cotidiano dos pobres. Alinhados com os movimentos

sociais e políticos na construção da cidadania, estes agentes pastorais

compartilham dos ideais modernos de racionalização e secularização do

Estado. Contudo, vivendo o dia a dia das comunidades de base como

mediadores do sagrado são levados a uma autocrítica em relação a

distância que os separa do lugar e da mentalidade dos pobres.

A presença física e a ação pastoral destes agentes nas vilas e

periferias urbanas deram origem a uma elite local de leigos que se

engajam nos movimentos sociais, assumindo muitas vezes o papel de

intermediários entre os governos populares, que conquistam prefeituras,

estados e a própria união, e a população dessas periferias, em nome das

quais se sentem autorizados a falar nos fóruns e espaços políticos. Esta

experiência acabou produzindo uma outra modalidade de catolicismo

para o qual a salvação se expressa fundamentalmente em termos

humanista e secular. Nesta perspectiva, o domínio do social é

considerado como que dotado de princípios éticos imanentes, de modo

que a salvação cristã se identifica com a utopia social.30

Esta nova modalidade de catolicismo faz com que os agentes

pastorais se retirem das disputas pelos sentidos sagrados, que revestem a

figura de Maria Degolada, e se aliem ao Estado, na tentativa de

transformar este símbolo e ícone religioso num mediador cultural das

políticas de gênero, étnicas e sociais. Sua estratégia, entretanto, parece

seguir o caminho inverso ao daquele adotado anteriormente, no

processo de modernização. Ou seja, já não se trata de substituir Maria

Degolada por Nossa Senhora da Conceição, mas de colocar no seu lugar

30 Para uma crítica mais aprofundada da Teologia da Libertação e das conseqüências da

adoção de uma perspectiva secular pelos agentes religiosos na América Latina ver

MILBANK, John. Theology and Social Theory. Beyond secular reason. Oxford/Cambridge: Basil

Blackwell, 1990.

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[ 236 ]

a mulher Maria Francelina Trenes, símbolo da luta pelos Direitos

Humanos e contra a violência contra as mulheres. Maria Degolada torna-

se, assim, uma ponte para o Estado alcançar a população marginalizada

por meio de políticas públicas que não só visam combater a pobreza e a

descriminação social, mas também disseminar os valores universais e

modernos da cidadania, da igualdade e da liberdade, fundados sobre os

Direitos Humanos e os ideais de participação e democracia popular,

representados especialmente pelos partidos de esquerda que conquistam

a prefeitura e o governo do estado do Rio Grande do Sul neste período.

É no horizonte desta transformação, operada na sociedade

brasileira e no catolicismo, nas décadas de 1970 a 1990, que vamos

compreender a fala de Maria Luiza, uma liderança católica da

comunidade, que destaca o sentido social e político da figura de Maria

Degolada como mulher violentada e não como santa.

Ela não era uma santa, era uma mulher assim que

nem a gente [...] era atrevida [...] não levava

desaforo para casa [...] estamos resgatando a

mulher que sofreu e que foi morta, não a santa, a

santa veio depois da violência. A santa vai ser

tratada com muito carinho, mas o que tem que

ficar entre nós é a mulher que sofreu violência. Ela

representa uma luta da mulher pelos seus direitos,

pela sua liberdade. Além disso, o fato de Maria

Francelina ter sido em vida uma prostituta, faz

com que ela esteja mais próxima da realidade do

povo da vila.

Na perspectiva destes agentes, identificados com o catolicismo

da libertação, Maria Degolada é apresentada como uma mulher igual a

tantas outras que vivem em condição de pobreza nas vilas e periferias,

submetidas à violência e discriminação social e étnica. Em lugar da

idealização da santa intercessora, modelo moral, forjado no sofrimento

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[ 237 ]

redentor do martírio, trata-se aqui de ressaltar a sua condição humana e

terrena, de mulher violentada e assassinada, ícone de uma realidade

cotidiana que se busca transformar. A Maria Degolada das pastorais e

dos movimentos sociais emerge, então, como um símbolo que condensa

os sentidos da luta pelos Direitos Humanos das mulheres, contra a

discriminação étnica e as estruturas de dominação que reproduzem a

sociedade burguesa e capitalista. Estes sentidos associados à luta social e

à conscientização política são expressos de forma direta e clara num

outro trecho da entrevista Frei Susin que citamos acima.

Esse pessoal também está à mercê de relações

sexuais e afetivas que são arranjos [...] Então, a

Maria da Conceição participa da mesma realidade,

e dá uma dignidade para essas pessoas [...]”. Ela representa um centro religioso mítico que dá

identidade de resistência, sobretudo pro lado

feminino da Vila Maria da Conceição, vítima de

violência, vítima de desprezo, vítima de machismo

[...] e dá também uma consciência religiosa, no

sentido de que, ali, alguma coisa de transcendental,

de divino, aconteceu [...] Ela passa a ser uma santa

da Vila e é uma santa que tem gente que vai

sempre nela, faz promessa, ..., Portanto, ela tem

uma função de santidade como se teve em função

de Santo Antônio, e tantos outros santos.

Está em jogo, portanto, um outro modelo de santidade, que se

distancia daquele forjado na teologia moral da castidade e da obediência

aos dogmas e à doutrina eclesiástica. Já não se trata de entronizar nos

altares santas que morreram em defesa da castidade e se tornaram

modelos de continência e repressão sexual. Mulheres puras, geralmente

jovens, que se distanciam da vida cotidiana de violência, perigo, pecado e

degradação que constituem a condição das pessoas que vivem nas vilas e

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[ 238 ]

periferias dos centros urbanos hoje. A Maria Francelina Trenes, ao

contrário destas santas, é apresentada como uma mulher pecadora, “de vida fácil”, como afirmam algumas das testemunhas do processo acitado acima, forjada como santa pela dor e o sofrimento. Alguém que

transcende a condição humana e é elevada à santidade por meio de um

processo de identificação com as da descriminação social e da violência

estrutural da cultura machista que permeia a sociedade.

A construção desta Maria Degolada, associada ao catolicismo da

libertação e aos movimentos sociais, se dá por meio de rituais político-

religiosos que vão destacar a figura da mulher, vítima da violência. Neste

sentido, no dia doze de novembro de 1999, data comemorativa do

centenário da morte de Maria Francelina Trenes, o morro foi palco de

uma festa organizada pela Associação de Mulheres da Vila Maria da

Conceição, pelo Conselho Municipal dos Direitos da Mulher e o Fórum

Municipal da Mulher. A performance deste evento muito pouco tem em

comum com os rituais das romarias aos túmulos ou espaços sagrados de

referência dos santos populares. Sua dinâmica e encenação estão mais

próximas dos eventos cívicos e dos comícios políticos, pautados por

discursos de exaltação do povo, como agente e protagonista da vida

social. A atualização do evento da violência exemplar contra a mulher

Maria Francelina Trenes no ritual é um recurso performático que

concorre para produzir uma identificação simbólica entre ela e as

pessoas que se engajam nas lutas populares, especialmente aquelas que

se travam no campo das políticas de gênero. Ela torna-se, assim, não

mais como o mito Maria Degolada, mas como mulher violentada,

depositária das virtudes e dos sofrimentos de todas as mulheres que são

vítimas de violência. É sintomático, por sua vez, que os símbolos eleitos

para perpetuar sua memória e dar materialidade à sua presença na vila

não serão uma imagem ou um santuário, mas uma placa comemorativa e

o plantio de uma árvore. A placa traz a seguinte mensagem:

- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -

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[ 239 ]

Em memória a Maria Francelina Trenes, no

centenário de sua morte, pelas muitas Marias em

que se tornou, e em repúdio a todas as violências e

discriminações contra as mulheres. (Assinam: os

Grupo de Mulheres da Vila Maria da Conceição, a

Associação de Moradores da Vila Maria da

Conceição, a Associação Cultural de Mulheres

Negras/ACMUA, o Coletivo Feminino Plural e

Maria Mulher).

A árvore foi plantada onde antes havia a mitológica figueira, sob

a qual Maria teria sido morta. Os sentidos associados a este rito, no

entanto, não se retringiram a um referencial religioso tradicional, no qual

a árvore aparece com frequência como um símbolo dominante, mas

remetem especialmente ao campo ambiental. Plantar uma árvore num

ritual a Maria Degolada acaba indexando valores e sentimentos

ecológicos a sua figura. Poderíamos, portanto, identificar aqui um

processo que observamos noutros contextos similares de uma

ambientalização social da religião. Este processo, contudo, é

potencializado em situações como a que estamos analisando, nas quais a

religião aparece associada aos movimentos sociais.

Há, portanto, um deslocamento do culto a Maria Degolada para

a mulher Maria Francelina Trenes, eleita personagem símbolo do Dia

Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, 25 de

novembro. Ao se produzir este movimento, como afirma Venise

Meneses, funcionária do Estado, envolvida com a festividade, o evento

teria marcado um momento de

reconhecimento público de revitalização do mito e

de atualização da identidade coletiva e de gênero

- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -

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[ 240 ]

que eleva simbolicamente a figura de Maria

Francelina Trenes para a reivindicação de políticas

públicas ao combate à violência e discriminação

contra as mulheres, contribuindo também para a

preservação e permanência do espaço público

ritualístico.

Assim, as disputas entre Maria Degolada e Nossa Senhora da

Conceição, que havia marcado o período anterior, perderam sua

visibilidade. Em seu lugar, instaura-se uma nova disputa que vai se dar

entre Maria Degolada, como ícone e mito popular, e a Maria Francelina

Trenes, símbolo da luta das mulhere contra a violência. Embora partilhe

de uma ideologia secularizada, que toma como princípio a independência

e autonomia do Estado, a prática política aqui analisada mostra o quanto

o diálogo e a implementação das políticas públicas necessitam negociar

com as crenças, mitos e valores religiosos que estão no cotidiano das

comunidades e tecem a trama das redes e das relações sociais nestes

espaços. Afinal, a política não se faz no vazio de práticas e significados,

nem se impõe como uma verdade que se impõe desde fora. Ao

contrário, observamos aqui como que um processo de indigenização –

fazendo uma apropriação, ainda que aproximada, deste conceito de

Marshal Sahlins – em que as categorias modernas, do campo da política,

são apropriadas e ressignificadas dentro de uma cultura popular onde os

mitos, crenças e valores religosos mantém sua vigência como sistema de

conhecimento e interpretação do mundo.

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- Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul - Volume 1 -

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