A Linhagem das Sete - VISIONVOX

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A LINHAGEM DAS SETE

1ª Edição

Salvador

Yasmin Velasques

2019

Copyright© 2019 by Yasmin Velasques

Todos os direitos reservados

Esta é uma história de ficção. Os nomes, personagens, lugares e acontecimentos são produtos daimaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera

coincidência.

Para minha querida mãe, Poly, sem cuja existência eu seria menos que nada.

Sumário

PARTE 1 – AMIGOS E INIMIGOS

AuroraEricAuroraEricAuroraEricAuroraEricAuroraEricAuroraEric

PARTE 2 – A MALETA

AuroraEric

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PARTE 3 – VINGANÇA

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AuroraEricAuroraEric

Mensagem para o leitor

Timidez

Basta-me um pequeno gesto,feito de longe e de leve,para que venhas comigoe eu para sempre te leve

‒ mas só esse eu não farei

Uma palavra caída

das montanhas dos instantesdesmancha todos os mares

e une as terras mais distantes

‒ palavra que não direi

Para que tu me adivinhes,entre os ventos taciturnos,apago meus pensamentosponho vestidos noturnos

‒ que amargamente inventei

E enquanto não me descobres

os mundos vão navegandonos ares certos do tempo

até não se quando...

e um dia eu me acabarei

Cecília Meirelles

PARTE 1 – AMIGOS E INIMIGOS

Aurora

"Ninguém aqui precisa saber que eu sou uma assassina."

Acordo abruptamente do pesadelo com gosto de sangue na

boca, surda pela voz do meu pai que ainda berra por misericórdia e cegapelo suor abundante misturado as lágrimas. Em volta do meu pescoço,garras de aço frio parecem pressionar minha traqueia sem o mínimo depiedade, impedindo a passagem de ar para os meus pulmões.

Ah, meu Deus!Ah, meu Deus!Ah, meu Deus!Foi só um sonho. Só um sonho. Apenas mais um sonho.Repito o mantra em pensamento e as lembranças se desvanecem junto

com o som lamuriante. Por fim, com muito esforço, consigo me sentar,recostando-me na cabeceira acolchoada, e levo um susto ao me verrefletida na porta de vidro espelhado do closet do outro lado do quarto.

Estou assustadoramente pálida!Céus!Puxo e solto o ar ‒ como faço quase todos os dias ao acordar de um

pesadelo ‒, em seguida me arrasto para fora da cama king size. Em pé,rumo até às cortinas que escondem a ampla janela de vidro, que vai dochão ao teto e permite acesso à varanda. Ao afastá-las, a vista mais incrívelque já tive a oportunidade de ver me faz suspirar.

O céu é uma mistura de faixas de luz rosa, vermelha e um leve laranja,transbordando meu peito de calma e esperança bem-vindas. Para minhasurpresa, estou otimista, e não porque preciso estar, mas porque meu

coração me diz que tudo vai certo.Estou em paz... apesar de tudo. NÃO SEI POR QUANTO tempo admiro o sol romper as nuvens, mas quando

o relógio no criado-mudo apita marcando 6h:00, eu me afasto da paredede vidro. Troco a camisola por roupas de ginástica e vou à academia noandar de cima. Encaixando meu Beats rosa e lilás ao redor dos ouvidos,subo na esteira.

Em poucos minutos, estou suada novamente, e Lana Del Rey cantasobre seguir em frente nos meus ouvidos. Não me distrai o bastante dospensamentos indesejados e da lembrança inquietante de escutar minhamãe batendo na porta.

Tudo parece distante agora, como se estivesse acontecido há um milhãode anos.

Mas não. Só faz algumas semanas que nos separamos. Ela tirou férias dotrabalho ‒ e de mim ‒ e foi fazer Mestrado em Gastronomia na Itália.

Mamãe é cerimonialista de casamentos e dona de um Buffet na capitaldo Rio de Janeiro. Ela leva muito a sério o seu trabalho. É forte,perfeccionista como uma boa virginiana, dedicada e romântica até a raizdos cabelos.

É minha única amiga.Sinto falta dela. Sinto muita falta dela...Afundo os dentes no lábio, lutando contra as lágrimas, e corro mais

rápido.Então por que está aqui?, você me pergunta.Não é da sua conta, eu respondo.Brincadeira!Acontece que há muitos motivos para eu estar onde estou e nenhum

que chegue perto da verdade. E não devo me preocupar, disse minha mãe,não com isso.

Meu irmão, Henry, também está de acordo. Ele é dono de uma redefamosa de joalheria e tem ajudado a alimentar a história de que estou nacidade apenas para concluir o Ensino Médio depois de uma fase...complicada.

Sério?

Um sorriso de escárnio rasga meu rosto suado.Ah, se as pessoas soubessem...Mas, bem, isso não é lá um assunto aberto à discussão, e ninguém aqui

para precisar saber que eu sou uma assassina. QUARENTA E CINCO MINUTOS depois, adentro de volta no quarto,

chutando os tênis e as meias para fora dos pés, deixo os fones de ouvidosobre a mesa perto da cama e rumo ao banheiro escandalosamenteluxuoso. As luzes se acendem quando entro, tiro a roupa pegajosa, recusoa fantástica banheira oval e me dirijo à ducha.

A água quente lava o suor em minha pele e me deixa pensativa. Éinevitável, às vezes. Eu sempre penso demais, reflito demais durante obanho. Talvez uma musiquinha de Taylor Swift ‒ embora eu não seja fãde Taylor Swift ‒ me ajudasse a distrair.

Mas, mesmo assim, consigo sem isso. Minha mente é um espaço queaprendi a esvaziar quando me convém.

Poucos minutos depois, saio do boxe envolta num robe branco dealgodão e me encaminho ao closet onde Cecília, a governanta da casa,disse que deixaria o uniforme do colégio ‒ uma peça ligeiramenteexagerada, devo destacar.

Saia-short plissada azul-marinho, camisa branca franzida nos cotovelose, para coroar, uma gravatinha bizarra de laço combinando com a fita roxana barra das mangas da camisa.

Bem coisa dos anos 70 ou 80, mas com menos... tecido. Sim. A saia ébem mais curta do que naquela época. Mas eu gostei. Há um segundouniforme inteiramente azul-marinho e um terceiro inteiramente branco.

Sério. Parece até brincadeira.Sentada em frente ao espelho da minha penteadeira branca e dourada

de estilo rococó, aplico os retoques finais: faço uma trança duplaunicórnio, que aprendi recentemente no Youtube, deixando o restante docabelo caindo espontaneamente nas costas, e calço botas pretas de canocurto.

Então estou pronta.Dando as costas ao espelho, fico em pé e, mais por costume do que por

qualquer outra coisa, arrumo minha cama. Então apanho a mochila e o

fichário na poltrona suspensa de teto e desço para tomar café da manhãcom Henry.

‒ Bom dia! ‒ cantarolo ao entrar na cozinha ultramoderna e encontromeu irmão vestido com um terno cinza e gravata da mesma cor servindocafé na xícara atrás da bancada de mármore preto que divide o espaço.

Henry é alto, magro, mas musculoso ‒ também adepto a prática deesportes e exercícios físicos ‒, tem a pele mulata, cabelo liso cor de cobree olhos castanho-claros como os de nossa mãe, Laura. Não parece umempresário bem-sucedido de 27 anos, seu rosto é jovem e infantil.

E eu o amo imensamente. Mais do que a mim mesma.‒ Uau! ‒ assovia ele e espalma a mão para que eu possa cumprimentá-lo

com uma batida. ‒ Eu tinha certeza que você ia dar um jeito de ficar maisexuberante do que já é ‒ afirma, piscando de um olho.

‒ Sim, sim. É quase um milagre ‒ retruco, o sarcasmo levando a melhor,e toco sua mão.

Ele faz uma careta, franzindo o cenho, e senta-se à bancada. Eu ocupo oassento à sua frente.

Safira, a outra empregada, se aproxima sorrindo, o belo cabelo ruivopreso em um coque delicado.

Ela não parece ser muito mais velha do que eu.‒ Bom dia, Srta. Aurora. O que deseja para o café da manhã?Pelo amor de Deus!‒ Desejo que pare de me chamar de senhorita ‒ respondo gentilmente.

Ela enrubesce, sorrindo. ‒ E sobre o que comer: surpreenda-me!‒ Claro. Com licença. ‒ Ela se afasta para os fundos da cozinha.Viro o corpo na direção do meu irmão, que me observa com um sorriso

misterioso. O que é agora? Ergo as sobrancelhas em indagação.‒ Animada para voltar a estudar? ‒ pergunta ele.Depois de tanto tempo sem interagir com pessoas da minha idade?‒ Muito ‒ atenuo a ironia, abrindo um sorriso empolgado.Isso não o convence e nem era minha intenção. Henry me conhece

melhor do que qualquer pessoa.‒ Vai gostar do colégio ‒ diz ele rapidamente, como se fosse realmente

necessário dizer isso ou como se algo no meu rosto pedisse por palavrastranquilizadoras. ‒ Eu tenho certeza. Você vai se adaptar bem.

Claro. Claro. Otimismo sempre. Não me esqueci.Mas decido implicar.‒ Não se preocupe, Henry. Mesmo. ‒ Abro um sorriso. ‒ Eu só tenho

que ‒ faço uma pausa, escolhendo as palavras certas ‒ tenho que parecerextraordinariamente comum. Normal. Inofensiva. ‒ Pisco os cílios,encenando um ar doce e inocente.

Ele me dirige um olhar severo.‒ Estou brincando ‒ falo com uma voz cantada.E seus traços faciais, no mesmo instante, suavizam-se de alívio.Tento não rir.Safira ressurge com meu café da manhã: uma taça de salada de frutas. A

aparência é deliciosa. Antes que eu termine de comer, Henry se levanta dacadeira e checa o relógio de pulso, arregalando os olhos.

‒ Atrasado?‒ Nós dois estamos. ‒ Ele vem em minha direção. ‒ Quer que eu a

deixe no colégio?‒ Não seja bobo. Tenho um carro lindo. Quero dirigi-lo.‒ Mesmo? ‒ surpreende-se.Fecho a cara. Ele ri.‒ Boa sorte no seu primeiro dia de aula e ‒ seu rosto fica severo de

brincadeira ‒ comporte-se, ok?‒ Pode deixar ‒ falo, mas dou um sorriso de quem pretende exatamente

o contrário.Ele aperta meu nariz do modo como nosso falecido pai fazia comigo e

desaparece da cozinha.Conforme termino de comer, Safira reaparece e me faz companhia ao

passo que limpa a bancada e conversa banalidades sobre o que quero parao almoço. Sua distração é agradável e suspeito que talvez esse seja seuverdadeiro trabalho aqui na casa.

‒ A senhorita deseja que eu prepare alguma coisa para levar? ‒ perguntaela, extremamente atenciosa, quando me afasto da bancada.

Já vi que vai ser um desafio fazê-la parar de se dirigir a mim dessamaneira.

‒ Não. Obrigada. ‒ Sorrio, pondo a mochila nas costas. ‒ O café damanhã estava uma delícia.

‒ Que bom que gostou. Tenha um bom dia, Srta. Aurora.Agradeço outra vez e saio de casa. O VILLA ARCO-ÍRIS é um complexo luxuoso de mansões privativas,

localizado na zona nobre da cidade. Quando cheguei do Rio de Janeiro,onde morava com minha mãe, Henry me disse que apenas três das seisresidências estão ocupadas, ou seja, quase não temos vizinhos. Masgarantiu que é cem por cento seguro.

Não que eu tivesse me preocupado, é claro.O lugar é maravilhoso. As estradas de acesso são margeadas por belas

árvores de flores branca, rosa e lilás; com uma vegetação exuberante apoucos metros de distância.

Um conjunto de casas gigantes dentro de um bosque.Não dá para reclamar de viver num lugar desses, dá?Na ampla garagem subterrânea da mansão de Henry, meu exagerado

presente de boas-vindas, encontra-se não menos majestoso, estacionadoentre um Audi e uma Mercedes. Meu Jaguar F-Type. 380cv. Vermelho.Suas curvas me admiram muito mais do que me assustam. Sãoexuberantes. Como um carro de corrida...

Perigoso.Um medo antigo e exacerbado trava meus pensamentos, minhas pernas,

minha mão a caminho de abrir a porta. Estou arrepiada e minha mente,cheia de memórias que há muito tempo quero esquecer, e estou quasedesistindo de entrar no carro.

Mas é uma atitude ridícula a se tomar.Por isso, afasto a angústia e, por fim, abro a porta do motorista.

Sentada ao volante, coloco a mochila e o fichário no assento de couro aolado, passo o cinto de segurança e ligo o carro.

O barulho do motor é lindo, rugindo para o céu.Dou uns tapinhas no painel que recentemente aprendi a mexer, e

Cássia Eller começa a cantar "Malandragem" conforme dirijo para o ladode fora deixando todos meus temores para trás.

Eric

"Ela não devia estar viva."

Em pé na varanda do meu ateliê, assisto à alvorada subir em direção

ao céu da Ilha de Íris, mais conhecida como a cidade das flores, nummagnífico dia de verão. Eu poderia registrar esse momento natural eexuberante no papel, contudo estou distraído demais observando-oacontecer.

Pouco a pouco. Segundo a segundo. Minuto a minuto.As gaivotas voam acima da vasta extensão de floresta preservada

enquanto a imensidão do céu muda de cor, filetes e mais filetes de luzamarela iluminando cada canto, cada colina e o oceano a sua volta,brilhando nas águas dançantes.

Incrível.Fantástico.E do mesmo jeito que da última vez em que pisei meus pés aqui. Nada

mudou. Nem o ar puro e tranquilo, nem os casarões de tetos triangularescom seus jardins coloridos em frente; as ruas de paralelepípedosmargeadas por canteiros ou árvores floridas.

Flores. Há muitas delas por aqui. Para onde quer que se olhe, assimcomo há muitas lembranças também, as piores possíveis. Para mim. Masnão posso negar que é uma bela cidade, de clima agitado e vibrantedemais para uma ilha isolada do litoral norte do estado de São Paulo.Repleta de histórias, lendas e segredos sombrios que a maioria mais velhaquase nunca fala e poucos dos novos têm conhecimento.

Mas, bem, isso não importa tanto. Grande parte dos habitantes é felizem sua ignorância. Só não vive mais protegida. Ninguém vive, aliás.Embora também não façam a mínima ideia disso. Não sabem que sua

armadura secreta caiu. Quebrou-se. Não sabem que o perigo pode estarandando entre eles agora mesmo... quero dizer....

Ele está.Eu.Eu estou aqui. Louco. Confuso. E com raiva de mim mesmo. Sou um

idiota. Imprudente. Não devia ter voltado. Foi uma péssima ideia.Terrível.

Não é seguro.Meus instintos dizem isso, mas estão confusos. E isso não é um

comportamento normal.Você não é normal, Eric.Não. Não sou.Mas sou absoluto e cumpro promessas. E jurei para mim mesmo

quando fui embora! Jurei, por meus motivos, jamais voltar a pisar os pésnesta cidade. No entanto, depois de quase sete anos... estou aqui. Nolugar que só me trouxe e causou desgraças quase na mesma medida emque as cometi. Repetidas vezes.

Por quê?, a pergunta é um rosnado em minha cabeça.Por que diabo estou aqui?, eu me questiono pela milésima vez essa

semana, apesar de saber exatamente a resposta.Algo me trouxe de volta. Algo sempre me traz de volta, não interessa o

quanto eu resista. Uma... força incômoda e semelhante a nostalgia.Sempre que estou longe, viajando sozinho pelo mundo, e por ummomento ‒ só por um curto momento ‒ posso senti-la germinando dentro demim, crescendo e se tornando, às vezes, insuportável, ao me lembrar decada coisa que deixei para trás.

É impossível resistir e ao mesmo tempo é arriscado deixá-la me guiar. Oresultado nunca foi bom. Da última vez que aconteceu, eu quase nãoconsegui dar o fora da ilha. Mas tive que ir. Não era seguro ficar. Paraninguém.

No entanto...As coisas parecem melhores agora, segundo o que me contaram. De

alguma forma, um território seguro. Não que isso me deixecompletamente à vontade, tentado a arriscar e permanecer por um longoperíodo. Qualquer que seja a paz, ilusória ou temporária, ela não merece

ser perturbada. Não por mim.Embora..."A Ilha de Íris está finalmente livre de seus demônios.", disse Ayla.Mas não sei se ela está certa. Afinal de contas, eu voltei, não? ‒ OBRIGADO ‒ RESMUNGO À ATENDENTE da cafeteria, que me entrega um

café espresso roçando os dedos nos meus.Tire suas mãos de mim, querida. Você não me conhece.‒ Volte sempre ‒ diz ela, e está flertando com o sorriso.Reviro os olhos por trás das lentes escuras dos óculos e me afasto do

balcão, bebericando o café. Do lado de fora do estabelecimento, umaturminha de garotos eufóricos se concentra ao redor do meu BMW I8,falando alto e tirando fotos. É engraçado, porque esse tipo de coisaacontece desde que cheguei.

Com um sorriso reprimido, escorrego a mão direita no bolso da calçado uniforme do colégio e pressiono o botão da chave para destravar asportas. Os faróis piscam e fazem barulho, e os garotos se dispersamrápido. Me veem parado ali perto. O sorriso que me dão...

Faço um cumprimento de cabeça para eles conforme caminho à portado motorista e entro no carro negro. Ponho o copo de café no suporteentre os assentos e arranco o I8 da vaga sob os olhares impressionados dascrianças. Ao ouvirem o som grave do motor à combustão, elas assoviam, eeu buzino em agradecimento.

Exibido, é o que Sam diria se estivesse aqui, revirando os olhoscinzentos.

Sam é o meu irmão mais novo. Meu único irmãozinho.Não devíamos estar passando mais tempo juntos, considerando o

quanto estivemos distantes nos últimos anos, mas desde que cheguei daInglaterra, na maior parte dos dias, tenho sentido uma incrível vontade deficar sozinho; não sou capaz de tolerar a presença de ninguém.

Nem mesmo a do meu irmão.Frequentar um colégio é apenas uma maldita exigência de um acordo

com Ayla ‒ a mulher que todos conhecem como minha mãe adotiva, masque não passa de alguém que carrega meu sobrenome como se fosse donadele.

Ela tem medo que eu enlouqueça, que eu surte com as recordações quepossuo da vida cruel e desgraçada que levei na Ilha de Íris e que issodestrua sua reputação de vez. Ela quer me manter ocupado, em rédeacurta e quer manter as aparências.

Então, por isso, firmamos um acordo.Eu garanti que estou inteiramente sob controle e que irei me comportar

enquanto estiver na ilha. Em troca, tenho liberdade e definitivamente nãoserei forçado a participar do mundo de fama e negócios que nos últimosanos têm sido a sua vida.

Nada de cafés da manhã, almoço e jantares em grupo. Nada de festas oueventos insuportáveis. Nada de socializar com amigos e imprensa.

Nada disso.Ponto.Fim de papo. O CAMINHO DA CAFETERIA até o Centro de Ensino Educacional Campbell

é curto. Ao entrar no vasto estacionamento cercado por altas grades demetal, logo vejo todos os olhares se voltarem para o I8.

Ignoro-os.Ponho o carro na vaga mais próxima que encontro, apanho minha

mochila a tiracolo no assento ao lado e o copo de café que esvaziei nopercurso e abro a porta.

Saio do carro.Estão olhando para mim. Agora estão todos olhando para mim.

Impressionados. Curiosos. Intimidados. Posso ouvi-los suspirando,murmurando, indagando. Querem saber de onde vim, querem saber quemeu sou.

Que péssima ideia.Sorrio por dentro, empurrando os óculos de aros redondos que

escorregaram para a ponta do meu nariz, e saio em direção às escadarias.Atrás do enorme edifício de vidro e mármore que é a instituição, há umpequeno arvoredo em destaque.

Noto os olhares dos alunos que me acompanham do carro à lixeira ‒onde deixo o copo de café ‒ e dali até o momento em que entro noprédio, que um dia foi algo completamente diferente de uma casa de

ensino.Paro no meio do saguão e não o reconheço.Caramba!O lugar foi reformado e ficou magnífico por dentro. Gigante. Cheio de

portas, escadas, corredores e elevadores. O teto alto agora é um vitralimpressionante em tons de vermelho, amarelo e laranja.

O piso de mármore decorado reflete as cores que vêm de cima. Em umadas paredes, há outro vitral, retratando uma das primeiras famílias adescobrir a ilha.

A família Campbell. A família sagrada.Foram eles que começaram tudo.Foram eles que estragaram tudo.Desvio os olhos para encarar qualquer outra coisa e estagno em um

ponto a mais de seis metros de distância de onde me encontro paralisado.Mas não necessariamente é mais agradável do que o anterior.

Tiro os óculos escuros.Pasmo.Não. Não. Não. Não.Não é ela.Não pode ser ela.Não tem como ser ela.Fecho e abro os olhos na direção da figura que caminha com o olhar

distraído na beleza dos vitrais, seus detalhes demasiadamente perfeitos meatingindo com o ímpeto e a violência de um míssil. Meu corpo inteiroesquenta, gela e se arrepia. Minha cabeça parece que vai se estilhaçar. Meucoração esmurra meu peito.

Estou estarrecido. Estou apavorado. Estou em queda livre.Porque ela não devia estar aqui.Ela não devia estar viva.Porque eu mesmo arranquei seu coração a muito, muito tempo atrás.

Aurora

"Deja vu."

Agarro o corrimão da escadaria de emergência, enxergando

pouco, e tento a custo me sentar sem cair. Que diabo é isso? Minhas pernasestão tremendo para caramba e uma sensação esquisita continuaatravessando minha espinha como se fosse uma adaga afiada.

É agoniante.Respiro fundo, buscando me livrar da aflição. Imagens embaçadas

pairam em meu cérebro como uma neblina, às vezes densa às vezes tênue,desaparecendo e voltando.

Sem parar.Acho que estou vendo estrelas... luas. Meus ouvidos estão cheios de

sons de asas batendo e pingos de chuva. Mas tudo acontece rápido demaise não posso ter certeza.

Estou confusa. Assustada.Porque cruzei com ele ‒ o garoto alto de olhos impressionantes e

familiares, que por meio minuto estava lá fuzilando meu rosto e no outro‒ poof! ‒ tinha desaparecido.

Estranho. Muito estranho. Estou arrepiada até agora...O modo como me olhou...Não consigo remover da memória. Ele viu algo. Algo que o apavorou.

Faz muito tempo que uma pessoa não reage desse jeito ao fitar meu rosto.Encolho-me com o pensamento desconfortável. Eu devia ter prestado

atenção no caminho à minha frente, mas estava distraída demais com osrequintes de beleza dos vitrais.

Acho que ele também não me viu, porque acabamos nos esbarrando, eeu quase caí pelo impacto que me lançou para trás. Foi quando senti seu

braço comprido envolver minha cintura, puxar-me para frente e me soltar,tão rápido, que por um momento pensei ter imaginado a sensação.

Porém, sua figura alta permaneceu a poucos centímetros de mim,provando-me o contrário.

Droga!Corei, levantando as vistas para encará-lo com um tímido pedido de

desculpas, que se dissolveu no instante em que seu belo rosto entrou nomeu campo de visão.

Cacete, pensei, impressionada.Olhos profundamente verdes e cristalinos prenderam os meus sem

nenhuma promessa de que os soltariam algum dia. Eram tão puros, tãoclaros, que nem pareciam reais. E estavam olhando direto para mim,como se procurasse algo... algo que não queria encontrar.

E isso me deixou ainda mais desconfortável.‒ Sinto muito, eu... ‒ gaguejei, cambaleando para trás, e uma dor aguda

estourou no centro do meu cérebro. ‒ Ai! ‒ gritei, levando a mão livre àtêmpora esquerda.

E tudo ficou ainda mais esquisito.Da mesma maneira que a dor veio ‒ forte e súbita ‒, um arrepio sinistro

percorreu minha coluna e me fez estremecer dentro do meu própriocorpo. Tudo ficou fora de lugar, como se o saguão estivesse girando ou decabeça para baixo.

E então eu estava sozinha. O garoto, não sei em que momento ‒ talvezquando fechei os olhos ao sentir a dor ‒, tinha se afastado e desaparecido.Evaporado.

Grudada ao lugar, tentei colocar minhas emoções em ordem ao mesmotempo em que o procurava entre fluxo de alunos que começou a chegar,mas nada encontrei.

Então vim parar aqui. Não intencionalmente, claro. Eu só comecei aandar e quando me dei conta estava tentando não rolar nos degraus.

Chega a ser cômico... um pouco. De um jeito sombrio, talvez. Mas senão estivesse acostumada com coisas estranhas com certeza teria umataque de pânico. Só que eu me conheço muito bem para surtar com ummau pressentimento...

Quero dizer...

Foi isso, não foi? Apenas um mau pressentimento? E quem era aquelegaroto? Por que ele fugiu?

Por que meu corpo reagiu tão mal à sua presença? AURORA GRACE HARVELLE, EU disse nas três primeiras aulas do dia,

quando era a hora dos alunos se apresentarem à turma e ao professor, eacompanhei um rosário de sentimentos cruzar as expressões dos meuscolegas de classe.

Surpresa. Admiração. Inveja, talvez.É claro que eu teria evitado essa situação terrivelmente constrangedora

se fosse possível, mas Henry, como um dos principais beneméritos dainstituição, é uma tremenda celebridade, e a leve semelhança entre nóstambém não passou despercebida.

O que significa que por onde quer que eu passei, fui seguida porolhares e comentários sussurrados, embora ninguém tenha seaproximado... Bem, exceto duas pessoas.

Luccas e Evelyn.Eles são legais e me convidaram a encontrá-los na hora do intervalo

para um lanche. Embora pertençam a uma turma diferente da minha, nãotive como recusar sem parecer esnobe, uma vez que nos encontraríamosnovamente em mais aulas conjuntas.

Há três classes do primeiro ano aqui e todas elas interagemestrategicamente em duplas, exceto em aulas de Educação Física. Segundoa professora Biologia, essa união estimula uma troca maior deconhecimento entre os estudantes e abre um espaço de tempo valioso paraparticipação em outras atividades como natação, dança, basquete e outrosesportes.

Gostei dessa parte.Há uma lista mega interessante pregada no mural de avisos, e enquanto

caminho pelo pátio fico pensando em quais opções irei ingressar. Tenhocerteza de que mamãe ficaria feliz por isso.

‒ E aí, o que está achando do colégio? ‒ pergunta Evelyn, o sotaqueengraçado interrompendo meus pensamentos.

Com o cabelo cor de chocolate na altura dos ombros, ela é várioscentímetros mais baixa que eu. Tem olhos castanho-escuros e a pele clara

de quem não toma muito sol.‒ Bem, é... grande ‒ respondo distraidamente, reparando em seu olhar

me esquadrinhando dos pés à cabeça.Nas mãos pálidas, ela carrega um grande copo de suco verde "para

manter a boa forma". Não que ela precise, mas... vai entender.‒ Grande? ‒ Luccas, o garoto tímido, entra na conversa.Ele é bem mais alto do que eu e a garota fitness ao lado e, diferente dela,

não consegue manter contato visual comigo por mais de alguns poucossegundos.

‒ É. ‒ Viro o rosto para encará-lo de propósito. Ele pisca, cora e entãodesvia os olhos. ‒ É diferente também.

Tímido. Ele não me olha fixamente porque é tímido.Tem que ser.Mudo minha atenção para o espaço ao redor. Cercado por altas grades

de metal, o lugar tem mais um aspecto de praça do que de um pátioescolar.

É lindo, obviamente, como tudo por aqui sempre foi.Árvores baixas e frondosas fazem sombras próximas as mesas e bancos

de madeira branca espalhados pelo amplo espaço; roseiras e trilhas depedras coloridas formam caminhos sinuosos que se você olhar direitoparecem ter a forma de alguma coisa. No ar, o cheiro fantástico de comidavem dos food trucks instalados aqui e acolá.

Do outro lado, seguindo em direção ao estacionamento, é possívelavistar vitrines e mais vitrines de lindas casas de chá e café com tendas emformatos de guarda-chuva; lojas coloridas de doces; perfumarias efloriculturas.

Essa é a Ilha de Íris.E estou aqui novamente.Mal posso acreditar.‒ Você não fala muito, não é? ‒ comenta Evelyn, obrigando-me a olhar

para ela mais uma vez.‒ Não tenho muito o que falar... Cuidado! ‒ grito, mas o alerta soa

tarde demais, e ela esbarra acidentalmente em uma menina pálida decabelo loiro platinado que vinha passando, também distraída.

Ah, merda!

Luccas pragueja baixinho, observando o líquido verde do suco deEvelyn se espalhar por toda a camisa branca da garota.

‒ Ah, meu Deus! ‒ grita a loira, escandalosamente, olhando para ouniforme manchado como se não pudesse acreditar.

‒ D-desculpe, eu não...‒ Olha só o que você fez, sua estúpida!Ela bate o pé no chão e empurra Evelyn, o gesto bruto e inesperado

destinado a machucar. Luccas me puxa para o lado, protetoramente, comose eu estivesse sendo atacada e não a sua colega de classe.

Hã?Olho para ele com uma pergunta nos olhos, mas sou ignorada. Então

mudo minha atenção para Evelyn e a loira de expressão sanguinária, quenão param de se encarar.

‒ Sinto muito, eu...‒ Sente muito?! Sente muito?! ‒ os gritos da platinada atraem os

estudantes, que formam a típica roda de briga. ‒ Você é cega ousimplesmente idiota?

Evelyn engole em seco, as bochechas ficando rosadas de vergonha.‒ Que tal se eu fizer você limpar toda essa sujeita com a sua língua,

hein? ‒ pergunta a loira aos berros de raiva e avança na direção dela, maisuma vez fazendo movimentos para agredir a colega.

‒ Ei, calminha aí, Ronda Rousey. Ela já pediu desculpas. ‒ Resolvointerceder, mas cometo o maldito erro de encostar na garota.

Na verdade, minha reação impensada a faz tombar para trás e minhasmãos rechaçam as dela de maneira nada educada.

‒ Aurora, não... ‒ ouço Evelyn sussurrar às minhas costas.Toda a roda parece prender a respiração e um silêncio mortal se espalha

ao redor do pátio. Ciente da plateia estoica, sei que minha tentativa denão chamar atenção está indo direto para o inferno. A platinada estreitaos olhos para mim, e por um mísero segundo tenho a impressão de queme reconhece.

‒ Não se intrometa nisso se sabe o que é bom para você ‒ avisa ela,dizendo as palavras de forma lenta e intimidadora, e faz questão detombar o ombro no meu.

Fala sério!

Ignoro minha razão suplicando para que eu me afaste e, sem me conter,fecho a mão ao redor do braço magro da garota ao impedir que ela cheguemais perto de Evelyn.

‒ Você não vai encostar nela ‒ eu digo com toda educação que acircunstância precisa.

A loira suspende o rosto para me encarar, avaliando-me dos pés àcabeça, e por um tempo equivalente a um piscar de olhos, suas íris pretasficam de outra cor que não consigo identificar, despertando-me umsinistro calafrio na coluna.

Só não a afasto por puro orgulho.‒ Não vou dizer uma terceira vez ‒ alerta. ‒ Fique fora disso. ‒ Ela tenta

se livrar, mas eu não permito, e seu olhar gélido me avalia de novo.‒ Ou o quê? ‒ pergunto, uma pontada de irritação involuntária

surgindo.No outro segundo, vejo seu mão ganhar impulso em direção ao meu

rosto. Quê? Sem hesitar, desvio do golpe covarde, girando o corpo,e atravesso meu braço ao redor do seu pescoço comprido.

Uma intensa fúria assassina que me faz querer estrangulá-la até ficarroxa aflora em meu corpo momentaneamente.

Oh, não!Quero soltá-la de mim, mas não... consigo. Parece que há amarras de aço

em meus pulsos. Meu corpo não me obedece.Estou surtando. Não pode ser. Isso devia ter parado!A loira tenta se soltar, mas meu aperto é firme, e ela fracassa. Quando

as vaias e assovios preenchem o pátio, as amarras somem. E eu a liberto.Droga!Fui longe demais. Fui longe demais. Preciso parar. Preciso me afastar.

Mas quero quebrar o queixo dela, e não sei por que ainda quero quebraro queixo dela, mas sinto que isso me daria muito, muito gosto.

‒ Vai se arrepender, caloura ‒ diz ela, massageando o pescoço, edesaparece, rompendo a roda que se formou.

Ah, meu Deus!Arfo, girando o corpo para sair do lugar, e dou o fora do pátio o mais

rápido possível. Murmúrios e olhares tortos de surpresa e medo meseguem até o momento em que estou fora de alcance.

Meu corpo inteiro treme de raiva, não, de fúria; gélida fúria; e sei quepreciso me acalmar. Não posso perder a cabeça. Não aqui. Não desse jeito.E, definitivamente, não na frente de todo mundo.

Pelo amor de Deus. O que eu fui fazer?Forço-me a pensar no meu pai e em tudo que ele passou anos me

ensinando, na sua voz melódica e serena que dizia: “Respire, Aurora” e“Não sinta” e “Ache o seu ponto de equilíbrio”.

Meu ponto de equilíbrio... Não tenho um ponto de equilíbrio. Nãotenho nada em que posso me agarrar. Nunca tive. Por que seria diferenteagora?

Porque você precisa.Porque não pode permitir que esse tipo de coisa continue acontecer.Porque você prometeu.Sim. Sim. Sim. Eu prometi.Prometi a Henry e a mamãe. E se qualquer um dos dois ficar sabendo

do que aconteceu no pátio, terei de ir embora. De novo. E não quero.Não posso ou...O som agudo da sirene anunciando o fim do intervalo soa à distância e

me arranca do estado de torpor. De olhos abertos, me dou conta de queestou encolhida na mesma escada onde me refugiei mais cedo.

Sério?Acho que é o meu local favorito a partir de agora.Passo as duas mãos no rosto, suspirando, e fico em pé.Ainda tenho dois horário de Educação Física para enfrentar. Não posso

ficar aqui escondida. Não posso faltar aula. Não quero dar motivos paraas pessoas fuxicarem ainda mais sobre mim...

Se bem que o ocorrido pode mantê-las à distância, pode evitar asperguntas que não quero ter de responder. Sim. Vai ser bem melhor. Voufingir que nada aconteceu e vai ficar tudo bem.

PARA ACHAR O VESTIÁRIO do primeiro ano, eu sigo as placas de indicação

nas paredes. Os corredores já estão vazios e, aflita, aperto o passo para nãochegar atrasada. Ao entrar no vestiário feminino e vê-lo desocupado, soltoo ar que estava aprisionando.

Há armários por todos os lados e uma entrada para diversos

compartimentos de chuveiro. Procuro o número do meu armário eencontro-o facilmente. Ali dentro, encontro três sacos plásticos comuniformes diferentes e dois pares de tênis. Apanho a embalagem que estápor cima e corro para o banheiro.

Dez minutos depois, estou vestida com uma camisa de manga curta eum short de algodão azul-marinho. A peça de baixo desenha minha bundamuito mais do que eu gostaria.

Saindo do vestiário, ajeito as meias brancas três quartos nos joelhos,desfaço o penteado e prendo todo o cabelo num coque imperfeito.Seguindo o barulho de vozes, chego à quadra esportiva. É gigantesca.

‒ Aurora! Aqui!Evelyn e Luccas acenam da arquibancada e, por educação, vou me

juntar a eles. Não tenho certeza, mas acho que os alunos olham para mimquando passo. Todas as três turmas do primeiro ano estão aqui.

‒ Você está bem? ‒ Evelyn me olha com traços de preocupação, assimcomo Luccas, quando paro aos pés da arquibancada.

Não quero falar a respeito.‒ Claro. ‒ Quero ficar sozinha. Mas não tenho coragem de pedir isso a

eles.‒ Obrigada por ter me protegido ‒ diz ela, sem graça, torcendo as

pontas do cabelo solto. ‒ Foi arriscado, mas obrigada. Você é muitocorajosa.

Não sou, queria dizer. Mas fui distraída por outra coisa.‒ Arriscado? ‒ O que diabo isso significa?‒ Bem, todo mundo sabe que Selena é uma encrequenqueira, Aurora ‒

responde Luccas, baixinho. ‒ Você teve sorte por ela não estáacompanhada do seu séquito do mal.

Um estremecimento cruza meu corpo, e me pergunto se estou commedo dessa tal Selena.

‒ Eu não quero assustá-la, mas... ‒ Luccas não continua.‒ Mas...? ‒ instigo-o.‒ O que aconteceu hoje... Ela não vai deixar para lá ‒ diz ele, com o

olhar pedindo sinceras desculpas.Merda! Era só o que faltava.Viro-me, suspirando alto, e o vejo. Simplesmente o vejo. Só a ele. Como

se sua voz fosse um som familiar e tivesse chamado meu nome antes queeu decidisse olhar para trás ou como se a quadra não estivesse cheia e elefosse a única pessoa por ali. Não consigo parar de encará-lo, emboradevesse de verdade, ou no mínimo que o fizesse com um pouco mais dediscrição.

Mas é inevitável.Aquele garoto não é o tipo de pessoa que consegue passar despercebida.

Mesmo estando acompanhado de um jovem e uma jovem de cabelosloiros, todos os olhares estão em cima dele. Prestando mais atenção, notoque quase todos os alunos interromperam o que estavam fazendo apenaspara vê-lo entrar na quadra ‒ o andar cadenciado de um felino ‒ e sepostar à maior distância de todos.

Distinto.O uniforme inteiramente azul-marinho combinando com a áurea

sombria que o envolve dos pés à cabeça.Meu coração se agita no peito, e eu só consigo pensar em como não

reparei nisso antes; ou no quanto ele é deliciosamente musculoso; ou noscabelos fartos e desalinhados; ou até mesmo nas tatuagens por todo o seubraço direito.

E eu sei por quê. Foram os olhos. Seus fantásticos olhos verdes. Fiqueipresa à perturbadora familiaridade que eles contêm e deixei todo o maispassar despercebido. Não compreendo a sensação de conhecê-lo, de já tercruzado com seu olhar antes...

Será? Talvez eu tenha.Agora era uma ótima chance. Eu ia aproveitar a pretensa distância entre

nós para observá-lo minunciosamente e tirar minha dúvida, porém, para aminha infelicidade, o professor surge na quadra pedindo atenção daturma, e os alunos se movimentam para formar uma roda.

Eu me coloco entre Luccas e Evelyn, controlando meu olhar ansioso.Enquanto o professor se apresenta devidamente, noto que Olhos

Verdes me encara sem disfarçar. Tão sério. Impassível. Braços cruzados nopeito que a camisa do uniforme mal consegue conter.

Estou nervosa e não entendo por que estou nervosa. Talvez porque elecontinua a me parecer absurdamente familiar; ou talvez porque, desta vez,não está fugindo e nem me olhando com... medo. Não.

Pelo contrário, seu semblante está inalterável. Limpo. Calmo.Desvio o rosto inúmeras vezes, mas sempre que volto, olha elas lá!, suas

incríveis esmeraldas grudadas em mim e as intenções escondidas por umamáscara indistinta.

Sinceramente, sinceramente mesmo, está começando a me deixar semgraça e, num ímpeto de coragem, resolvo encará-lo séria e indagativa.

Qual é o problema desse cara?Ergo as sobrancelhas pela força do pensamento e logo me arrependo.

Ele aperta os lábios esculpidos e vira o rosto, afastando os cabeloscastanho-dourados da testa. Redirecionando minha atenção, percebo quealgo gerou um burburinho entre os alunos.

‒ O que foi? ‒ sussurro para Evelyn.‒ A escola permitiu a introdução de Defesa Pessoal no cronograma das

aulas de Educação Física ‒ responde ela à meia voz.Ah, como esse dia só melhora. Preciso ficar longe disso. Vejo alguns

olhares se dirigirem a mim, inclusive o de Olhos Verdes.Resolvo encará-lo mais uma vez, mas sou capturada pelo olhar da loira

caramelo ao seu lado. Seus olhos são frios e têm o tom mais escuro deazul. Ameaçadores. Ela arqueia a sobrancelha perfeita com desdém.

Qual é o problema das garotas deste colégio?Somos forçadas a romper contato quando a turma é guiada até uma sala

adjacente, que mais parece uma academia de luta, com vários tatames,sacos de boxe pendurados nas laterais e pilhas de luvas numa cesta. Osalunos, cheios de expectativa com a novidade, se reúnem para observar ademonstração do professor.

Eu nem tanto.Defesa pessoal foi apenas uma das diversas atividades que meu pai se

encarregou de me ensinar quando eu ainda era apenas uma criança. Elefoi um ótimo professor. O melhor. Minha memória está fresca, obrigada.

Distancio-me discretamente da turma eufórica e caminho em direção aum dos sacos de boxes, tentando manter a mente vazia. Há uma avalanchede recordações pronta para me soterrar a qualquer segundo de fraqueza daminha mente. Se não tivesse sido treinada para...

‒ Nos encontramos de novo. ‒ Uma voz suave me puxa para fora daminha cabeça.

Viro de lado na direção dela e encontro Olhos Verdes, parado com asmãos enfiadas nos bolsos da calça de algodão. Sua seriedade é enervante.

Ele continua olhando diretamente para o meu rosto. Arrisco pensar quetalvez esteja procurando algo, mas suas feições nada deixam transparecer.

‒ Você está... me seguindo ou quê? ‒ pergunto e minha voz éincomumente tímida.

Ele é ainda mais alto de perto! Mais belo. Mais... perfeito. É possível?Isso com certeza deve significar alguma coisa. Estou extremamente curiosapelo garoto à minha frente. Não é natural.

‒ Acho que eu poderia lhe fazer a mesma pergunta, senhorita ‒ diz ele,educado, sério, suave.

Fico sem graça com o pronome de tratamento.‒ Não vai participar? ‒ Olhos Verdes indica a roda de alunos com o

ombro.Definitivamente não.‒ Eu fico melhor de longe. ‒ Ponho uma mecha do meu cabelo atrás da

orelha.‒ Onde as pessoas não podem observá-la? ‒ Sua pergunta me pega de

surpresa.Uma sensação inédita e esquisita me invade bruscamente ‒ uma

sensação de que ele está vendo por trás do meu comportamento, como seestivesse me observado a manhã inteira para somente agora concluir algoque já havia pensado com base no que acabei de dizer. A paranoia está medominando.

Balanço a cabeça para espantar os pensamentos alucinantes.‒ Gosta de artes marciais? ‒ pergunta ele com uma leve pontada de

curiosidade, que me faz unir as sobrancelhas.Ele viu o que aconteceu no intervalo!‒ Sim... eu... eu gosto. Pratiquei durante um tempo.‒ Que tipo?‒ Boxe, Krav Maga e Muay Thai.Seus olhos adquirem um fugaz lampejo intuitivo e surpreso.‒ Qual é o problema? ‒ Abro um sorrisinho incontrolável. ‒ Afinal de

contas, uma garota não deve aprender a se defender, senhor...?‒ Harley. Eric Harley ‒ ele se apresenta, curvando a cabeça

minimamente. ‒ E jamais diria isso, senhorita...?‒ Aurora... Harvelle. Prazer.Ele não reage à menção de meu sobrenome como as outras pessoas. Só

continua me encarando. É desconcertante porque não faço a mínimaideia do que está pensando.

‒ Tatuagem maneira ‒ comento, desviando os olhos para o antebraçodele, onde um amontoado de formas foram desenhadas com tinta preta,cinza e prateada: árvores, pássaros, estrelas e luas em diversas formas, umrelógio de bolso aberto, bem como símbolos que não consigo reconhecer,mas que me fazem lembrar muito de...

‒ É uma coisa antiga ‒ responde ele num tom evasivo.‒ Antiga? ‒ Volto os olhos para o seu rosto com um sorrisinho. ‒

Quantos anos tinha quando fez? Nove?Ele não sorri de volta, fazendo com que eu me sinta um pouco idiota, e

indaga:‒ A senhorita possui alguma? ‒ Os olhos percorrem meu corpo de cima

a baixo.‒ Não. Não à vista, pelo menos ‒ respondo, sendo intencionalmente

maliciosa apenas pelo prazer de vê-lo desconfortável.Ele me encara, a sobrancelha esquerda sofrendo um leve arqueio.‒ Está flertando comigo, Srta. Aurora?Merda! É essa a impressão que estou dando?Mas que droga!‒ Parece surpreso. Devo presumir que isso não acontece com muita

frequência, hein ‒ implico propositadamente, surpresa comigo mesma porainda estar alimentando essa conversa.

‒ Não. Nenhuma foi tão ousada ou convencida a esse ponto.Oh! Sou convencida?‒ Bem, isso me faz imaginar o tipo de mulher com quem o senhor se

envolve.‒ Posso lhe dizer, amor, já que está tão interessada.O foi que ele disse?‒ Não se preocupe. Vou poupá-lo da vergonha de seja lá o que fosse

contar ‒ disparo.Os olhos dele iluminam-se de um fulgor malicioso, fazendo-me piscar

algumas vezes e prender a respiração. Deus! Ele é absurdamente lindo. Estousurpresa e intrigada com o quanto isso está me afetando e estou perdidaentre a seriedade do seu semblante e a indecência nos seus olhos.

Que injusto.Um homem não devia ser tão atraente assim e muito menos tão...

estranho. Posso dizer isso mesmo sem conhecê-lo. É impossível conciliar ogaroto de agora com o garoto que me esbarrei no saguão. O que houverealmente naquele momento?

Não sei se quero saber.Talvez... talvez não seja uma boa ideia.Preciso me afastar dele.Caminho para frente a fim de passar por Eric em direção aos outros

alunos, mas ele me intercepta, entrando na minha frente, e segura meubraço, pondo-se bem perto de mim. Eu paro com um tranco, sementender sua atitude. Acima de tudo, sem entender a familiaridade queseu toque possui em minha pele.

‒ Espere... ‒ sussurra ele tão baixo que quase não o ouço. ‒ Você é...você me lembra...

Meu coração de repente parece estar pulsando contra a minha garganta.Um inesperado e delicioso arrepio desliza preguiçosamente por minhaespinha, estralando cada osso do meu esqueleto humano como se fosse deplástico.

Antes que eu possa entender o que está acontecendo, sinto os meusjoelhos dobrando-se sem o meu comando e logo em seguida braços fortesestão a minha volta, firmando-me contra um enorme corpo rijo. A dor nocentro do meu cérebro é absurda e enche meus olhos de lágrimas.

‒ Srta. Aurora? Srta. Aurora?! ‒ Eric está dizendo perto do meu rosto,seu hálito frio e doce causando cócegas em minha pele.

Abro os olhos, confusa com as emoções conflitantes que me assaltam,e dou de cara com a boca dele bem próxima da minha ‒ lábios cheios eentreabertos e estupidamente convidativos.

Ah, merda, merda, merda.O que está acontecendo comigo?!Fico encarando aqueles lábios de Adônis, pensando em como seria tocá-

los com os meus dedos e com minha própria boca, pensando que gosto

eles devem ter, e só isso é suficiente para que minha pele arda como oinferno.

Quero ficar e ao mesmo tempo quero sair correndo desta sala, queparece pequena demais para nós dois. Separo os lábiosinconscientemente. Calor, calor intenso me deixando desconcertada.Confusa. Excitada. E nunca me senti assim.

Nunca.Nunca...Não. Não. Não. Não.Cambaleio para trás, ansiosa para me livrar daqueles braços, e saio em

direção à saída da sala, sem me incomodar com despedidas. Porém, naporta, não resisto e olho por cima do ombro... só para me arrepender.

Paralisado feito uma enorme estátua de cera, os olhos verde-clarosanormalmente arregalados, Eric Harley me encara com uma pálidafisionomia talhada em nojo, fúria e recusa.

É muito... assustador.Meu Deus!De imediato, entro numa espécie de deja vu.Foi a mesma coisa quando nos esbarramos no saguão: a paralisia

repentina, o olhar de quem viu um fantasma ou algo pior!Não. Não pode ser.Viro-me para ir embora de uma vez e saio correndo, desenfreada

pela dor aguda e sombria no centro da cabeça que voltou à me castigar.

Eric

"Ela é meu próprio inferno."

Permaneço em pé sob o jato de água quente do chuveiro, esfregando-

me com rígida determinação, em mais uma tentativa de expurgar o aromapungente de flores impregnado na minha pele. Porém ‒ percebo,trincando os dentes ‒, não está funcionando. Simplesmente não estáfuncionando!

Que inferno!Nada que eu faça é capaz de remover a fragrância doce, quente e

perturbadora do perfume daquela maldita mulher.Que diabo ela fez com você, Eric?Meu alter ego está de pelos eriçados.Cerro as mãos ao lado do corpo, desistindo, e prendo a respiração

conforme o vapor de água quente embaça os vidros do boxe, que tentonão quebrar com um soco.

Mas a fúria... a fúria ainda causa espasmos nos músculos do meu corpoe está me queimando dos pés à cabeça.

Não saber lidar com essa sensação é muito... desconcertante.Inspiro a fim de acalmar minha pulsação desgovernada, mas é inútil.

Inútil porque aquela maldita imagem continua sem querer sair da minhamente, apesar de todos os meus esforços.

Como é possível?, eu me pergunto ao mesmo tempo em que procuro umaresposta.

Ela é surpreendentemente parecida com aquela garota.Ela tem a mesma marca no pescoço.Ponho o rosto na direção do jato de água a fim de bloquear as

lembranças tortuosas antes que elas me consumam e me levem ao estadode loucura, mas não adianta muita coisa.

Controle-se, Eric.Sim. Preciso me controlar.Talvez não tenha sido nada daquilo.Talvez minha mente esteja me pregando peças.Ela não está. Você sabe que não.Desligo o chuveiro com a mão trêmula e enrolo uma toalha branca na

cintura, em seguida puxo outra para enxugar meu cabelo.O cheiro não desapareceu.Saio do banheiro e entro na minha academia, tropeçando.Ele ainda está aqui, como se ela também estivesse.Tiro a toalha da frente do rosto.Não pira, Eric.Avisto Ayla sentada no sofá. Ela está impecável em uma saia-lápis justa e

blusa de seda branca, o que significa que acabou de chegar da floriculturaou da joalheria e veio direto me ver. E a julgar por seus olhos azuis tensose preocupados, deve ter encontrado meu irmão ‒ a quem eu não atendoas ligações desde que saí do colégio.

Maldição.Ela está aqui para me interrogar.‒ Privacidade ‒ lembro-a, monotonamente, à guisa de dispensa.‒ Você está bem? ‒ Seu olhar tenta prender o meu.Não vai funcionar, mamãe.‒ Estou ótimo, obrigado. ‒ Desvio o rosto ao responder e, passando por

ela, saio da minha academia e entro no quarto.Lá fora, já é fim de tarde. A luz bela e alaranjada do pôr-do-sol atravessa

as portas envidraçadas de correr e ilumina meu aposento sem a ajuda dasluminárias. Sigo, tenso, para o closet, ciente da presença na minha cola.

Por favor, vá embora.‒ Eric? ‒ Ouço Ayla bem atrás de mim.‒ Sim.‒ O que aconteceu?Reprimo um suspiro, vacilando em ser sincero, e visto uma camiseta

cinza.

Não sei se consigo contar tudo a ela. Não se devo. Talvez ela ache queestou delirando ou que perdi a droga do juízo, como eu mesmo já penseidiversas vezes hoje, mas...

Você não está louco, Eric.Fecho as mãos em punhos.Não estou louco.‒ Filho? ‒ Ela toca meu braço. Eu me viro.‒ O que você sabe sobre Aurora Harvelle? ‒ As palavras saem da minha

boca com uma facilidade inesperada, mas soam mecânicas, como seestivessem sendo ditas por um robô.

A surpresa de Ayla é nítida. Não é o que ela esperava.‒ Aurora é irmã de Henry ‒ responde num tom que sugere que eu devia

saber.‒ Henry?! Seu amigo, Henry? O dono da Brilliant para quem eu

desenhei aquelas joias? ‒ exclamo.‒ É. Mas por que a pergunta? Você a conheceu hoje?Rio alto ‒ não há nenhum humor nesse som ‒, e passo as mãos no meu

cabelo úmido.Ela nem imagina.‒ Ah, sim. Definitivamente. ‒ Minha resposta soa amarga e sarcástica.‒ Eric...‒ O que mais você sabe sobre essa garota? ‒ indago, ríspido e tenso. ‒

Digo... O que você sabe de verdade?Minha veemência a assusta.‒ Não muito, eu... ‒ responde Ayla, olhando para mim com temor. ‒

Bem, Aurora esteve longe da ilha por muitos anos. Eu nunca a encontreide fato... digo, pessoalmente, mas sei que passou por uma fase complicadade luto. Até onde eu sei, ela só está na cidade para concluir o EnsinoMédio...

Que piada.‒ Por que aqui? ‒ interpelo, furioso. ‒ Por que ela foi embora? Quando

isso tudo aconteceu?‒ O quê?! Eric, que perguntas são essas?‒ Essa garota não devia estar viva! ‒ explodo, meu peito subindo e

descendo ao passo que tento domar minha frustração.

‒ O quê?!Ela não entende o que eu disse. É claro que não entende. Preciso

explicar melhor. Preciso mostrar a ela.Caminho para fora do closet na velocidade de um rojão e já dentro do

quarto sigo até a cama para buscar o desenho que fiz à tarde. Passei horase horas com essa maldita imagem na minha cabeça e só conseguidescansar depois que rabisquei repetidamente.

‒ Reconhece este símbolo, certo? ‒ Enfio o papel nas mãos de Ayla, quepara às minhas costas, confusa e espantada. ‒ Nós procuramos em todosos lugares e bibliografias possíveis, mas não encontramos nada. Vocêlembra o que me levou a querer estudá-lo, não lembra?

Ela hesita, o olhar atônito indo e vindo de mim para o desenho de umaestrela de sete pontas dentro de um círculo com sete símbolosdesconhecidos, cada um deles ocupado um espaço em formato v.

‒ Lembra ou não lembra?!‒ Sim, sim, sim. Eu lembro, Eric. Mas o que isso tem a ver com Aurora?Tudo!‒ Eu sei que vai parecer loucura ‒ murmuro, meu tom de voz já

defensivo ‒, mas ela tem esse... essa marca na parte de trás do pescoço,exatamente... ‒ engulo em seco ‒, exatamente como aquela garota.

Ayla reage, erguendo os olhos.‒ O que você disse?‒ E tem mais, elas... elas são parecidas... eu juro por Deus... elas são

impossivelmente parecidas em tantos detalhes, mas eu... eu não...O choque está espalhado por todo o rosto de Ayla.‒ Mas você... você disse que matou a garota...‒ Eu matei! ‒ sibilo, a raiva e o horror me deixando agitado. ‒ Por que

acha que estou desse jeito? Por que... ‒ Dou uma pausa curta para poderrespirar. ‒ Quando eu a vi pela primeira vez... achei que estivesse ficandolouco, mas depois... ‒ sinto a lembrança comprimir meu peito. ‒ Nãohouve dúvidas. Não h á dúvidas. Elas não podem ser a mesma pessoa,mas... mas mesmo que, por algum motivo louco, elas sejam... há uma...uma ligação entre as duas e... esse símbolo... ‒ aponto para o papel ‒ podeser a resposta. Precisamos voltar a procurá-lo, precisamos...

‒ Eric, por favor, por favor, devagar, devagar ‒ ela me corta, levantando

as mãos, e não posso compreender sua expressão despreocupada. ‒Acredite em mim. Sei que tudo isso pode parecer estranho, anormalaté, mas não acha que talvez esteja confundindo um pouco as coisas?

‒ Como é que é?‒ Não há o que achar sobre isto. ‒ Ela balança a folha de papel. ‒ E é

bem provável que não tenha um significado próprio. Nós procuramos e...‒ Não seja estúpida! É óbvio que tem! ‒ rosno, inconformado com o

que estou escutando. ‒ Eu o vi uma vez... vi de novo agora. Então nãofaça isso comigo, não ouse me dizer que não significa nada. ‒ Aponto odedo indicador para ela.

Vincos de tensão surgem e desaparecem no espaço entre suassobrancelhas, substituídos por uma calma que apenas Sam conseguereproduzir com perfeição.

‒ Por favor, seja sensato ‒ diz ela, quase em súplica, aproximando-se demim. ‒ Você está assemelhando uma garota viva a uma outra que não estámais entre nós, como... como se elas pudessem ser a mesma pessoa, e tudocom base em uma marca que não encontramos nenhuma referência... Semcontar que... ‒ ela não prossegue.

‒ Sem contar que o quê? ‒ desafio, bruscamente.Ela suspira alto, relutando em dizer. Mas acaba dizendo:‒ Você não estava em sã consciência naquela época. Não pode ter

certeza do que aconteceu e do que não acont...‒ Sei exatamente o que vi, está bem?! ‒ digo, alfinetado pela acusação. ‒

Aurora, aquela garota, a marca no pescoço... É tudo uma coisa só. E vouprovar para você.

Nem que seja a última coisa que eu faça.‒ Você está tratando o assunto de uma maneira completamente

irracional.‒ Porque é irracional! ‒ explodo. ‒ Porque tudo isso agora e tudo que

aconteceu há anos e anos é irracional!Tomo distância de Ayla. Não suporto mais seu olhar questionando

minha sanidade, não suporto sua calma e nem sua paciência gritando naminha cara que sou incapaz de me controlar.

Porque não sou mesmo.Há muito tempo não sou.

Por causa daquela garota.Corro as duas mãos pelos cabelos em uma vontade insuportável de

arrancar cada fio.Ayla tenta contemporizar.‒ Eu conheço a história da família Harvelle muito antes de formar uma

parceria com Henry. Não há... nunca houve nenhuma ligaçãosobrenatural. Eu saberia...

‒ Acha que só você é capaz de esconder um segredo? ‒ Meu tom éinsensível conforme dou meia-volta no lugar.

‒ Você está nervoso, e eu já disse que posso entendê-lo, mas...‒ Não, não pode ‒ contesto, friamente, levantando o dedo para ela mais

uma vez. ‒ Você jamais irá entender qualquer coisa sobre mim.‒ E a culpa é minha, não é?Ignoro a tristeza ressoando em sua voz, ignoro o abismo de indiferença

que sinto em relação a ela. Não há nada dentro de mim, nenhumremorso. Ayla parece profundamente decepcionada por eu não meimportar.

Às vezes acho que ela se esquece de que não sou o meu irmão ‒ o filhoperfeito, amoroso e devotado.

Coloco-me de costas, resistindo ao impulso de mandá-la sair da minhafrente. É a casa dela, afinal de contas. Eu que não devia estar aqui. Foiuma péssima ideia ter voltado, no fim das contas.

Fito a beleza montanhosa do horizonte através das janelas escancaradase espero ansiosamente que desfaça os nós em meu estômago. O sol já seescondeu atrás do mar. O céu está todo escuro agora, as primeiras estrelassurgindo na imensidão.

‒ Eric? ‒ Ayla aparece na minha frente.Dou um passo para trás, esfregando as mãos no rosto.‒ Preciso que me deixe sozinho ‒ falo sem nenhuma emoção.‒ Mas Sam...‒ Falarei com meu irmão amanhã ‒ sepulto a conversa.E, graças a Deus, ela recua, dá meia-volta e sai do quarto, me deixando

a sós com uma montanha de dúvidas e a sombra da mulher quesupostamente voltou do inferno para me atormentar.

MAIS TARDE, OUÇO BATIDAS na porta do quarto. Provavelmente Samquerendo que eu diga o que está acontecendo. Mas não posso lidar comessa merda agora. Não de novo. Rejeito a culpa por deixá-lo no escuro edeito na cama, me sentindo cansado... mentalmente cansado.

Em um determinado instante, flagro a mim mesmo prendendo arespiração só para não sentir o cheiro adocicado das malditas flores.

Ele está na minha cabeça e não na minha pele ‒ é o que tento meconvencer.

Mas o aroma é tão forte... tão real. Porque encostei nela. Toquei seucorpo. Fiz isso por tempo demais e gostei. Eu gostei da sensação de suapele na minha. Mas agora estou sujo. Os banhos não adiantaram porcarianenhuma. O aroma continua se rastejando em meu corpo.

Lentamente.Como posso me livrar?, pergunto-me, mas não encontro resposta.Então, olho pela janela em busca de um outro foco.De onde estou é possível ver o céu azul-escuro salpicado de estrelas

pequenas e brilhantes. É uma bela visão, e me distraio ao admirá-las,esperando o sono que não chega.

Em vez disso, as malditas palavras de Ayla me vêm à cabeça, dolorosas eimpertinentes. E me flagro considerando-as com uma esperança profundae secreta de que seja possível... que eu talvez esteja enganado, que talvez aSrta. Aurora Harvelle não seja uma espécie de monstro.

NA MANHÃ SEGUINTE, SAIO de casa antes do horário costume e dou uma

passada na cafeteria só para matar o tempo. A atendente continuaflertando comigo durante e depois do pedido, roçando os dedos nos meuse sorrindo demais. Quando chego ao lado de fora e vejo a mesma turmade garotos ao redor do meu carro, sinto que estou entrando em umamerda de rotina que preciso desfazer o quanto antes.

Mas não deixo de buzinar para eles ao arrancar o I8.No estacionamento do colégio, os olhares escandalizados me seguem até

o momento em que encaixo o carro na vaga. Ouvindo os acordes doviolino de Lindsey Stirling, eu permaneço no banco e fecho os olhos.

Estou exausto.Mesmo depois de um circuito intenso na academia e longos minutos

embaixo do chuveiro, eu continuo sentindo esta fraqueza absurda e umador de cabeça que parece estar rachando meu cérebro em mil pedaços.

Tudo porque não preguei os olhos nem um minuto sequer durante anoite...

Porque não parei de pensar nela.Levanto as pálpebras, desejando me desviar do rumo que meus

pensamentos estão tomando, mas é inevitável. As mesmas questões queme assolaram ontem de madrugada, retornam agora com força total.

Será que a Srta. Aurora é realmente quem estou pensando? Quase todosos sinais apontam que sim. Mas como? Como ela pode ser aquelagarota? Como pode ser e não se lembrar de mim ou do que eu fiz?

Recordo-me de quando nos encontramos pela primeira vez no saguão;de como não vi nenhum sinal, nenhum brilho em seus olhos douradosque indicasse que ela tivesse me reconhecido. Só houve... choque... poradmiração. Houve uma pitada de fascínio.

Mas, talvez, em meu imenso espanto, eu tenha deixado algo passar. Vê-la em pé na minha frente arrancou-me dos eixos por alguns segundos.Fiquei fora de mim. Fora daquele espaço.

Em uma outra época.Fecho os olhos pela segunda vez, como se o gesto fosse impedir a

enxurrada de comparações e lembranças.Você está ficando louco, Eric, diz meu lado racional, e sou obrigado a

concordar com ele.Sim. Estou ficando louco. Porque não há outra razão que explique o

diabólico fenômeno que me toma os sentidos agora, enchendo minhasnarinas com o cheiro impiedoso dela.

Argh!Deslizo a mão nos cabelos que precisam de um corte e saio do carro

para enfrentar mais um dia absurdo de aula. O ano letivo mal começou ejá estou amaldiçoando o... Congelo em pé ao lado porta, a caminho deapanhar a mochila no banco do carona.

O quê?!Não!Sam e Aurora estão juntos nas escadarias!Que porra!!O que diabo ele pensa que está fazendo ali com ela? Será que...

Ah, não.Não. Não. Não. Não pode ser.Essa daí, não.Com um sorriso fácil e galante destinado apenas a um fim, meu irmão

inclina o rosto para tocar a mão de Aurora com os lábios, sem emnenhum instante perder contato com os olhos dela... ou seria a boca?

Mas que droga!Eu já vi isso antes.Ele está interessado. Cortejando-a.E não sei por que isso parece estar rasgando o que restou de minha

alma podre.Maldição!Fico tentando achar um jeito de destravar meu maxilar tenso e

enquanto isso, Aurora fornece um sorriso bobo de puro deleite para Sam,praticamente se derretendo por ele, os olhos sorrindo junto com os lábiosde um jeito que a deixa...

Chega, Eric.Saio do transe hipnótico que aquela garota me gera e viro o rosto.Sim. Sim. Chega. Não posso ficar aqui testemunhando esse flerte

ridículo.Fecho a porta do carro com uma força exagerada depois de apanhar a

mochila e sigo na direção contrária à qual meu irmão e o novo alvo delese encontram.

Estou tonto, mãos fechadas em punhos e nem sei quando flexionei osdedos. O Sam gentil e conquistador nunca me irritou antes.

E essa raiva... essa raiva pura e cega havia se afastado, quase sumiu, masagora está aqui, me transformando em alguém que não quero ser.

E é tudo por causa dela.Aurora.Só pode ser.‒ Respire, lindo. Você parece prestes a ter um ataque do coração ‒ a voz

de Elizabeth soa bem perto de repente antes de a própria surgir ao meulado, o longo cabelo loiro caramelo reluzindo ao sol.

Ah, que ótimo. Era só o que faltava ‒ a paixão platônica do meu irmão.Sua existência asquerosa é outra lembrança de minha desgraça. Não a

quero perto de mim. Mas sei que não tenho escolha. Pelo menos não aqui,onde temos de fingir ser uma família.

‒ Não é nada educado escutar a conversa dos outros, sabia?‒ Vá se foder. ‒ Não estava ouvindo nada.‒ Humm ‒ ela faz um som de apreciação indecente ‒, eu estava com

saudade dessa deliciosa boca suja.Faço questão de ignorar o comentário atrevido. Sam não iria gostar de

ouvi-la falando assim. Ou talvez gostasse, agora que...‒ Ei, me deixe ficar com você. ‒ Elizabeth segura meu braço, colocando

o corpo inteiro no meu caminho.Ela está perto demais.‒ Você enlouqueceu?! Afaste-se! ‒ trovejo, espiando para ver se há

plateia ao nosso redor, mas só encontro umas quatro pessoas saindo doestacionamento.

A sirene deve estar prestes a soar.‒ Tudo bem, zangadinho. Sem toques ‒ diz ela, sorrindo, e dá um passo

para trás, levantando as mãos. ‒ Mas e aí... Quer dar o fora desta escola?Conheço um lugar legal para a gente ficar.

‒ Não, obrigado.‒ Qual é! Não faz assim. Essa raiva deve estar matando você! ‒ exclama

ela, apertando o próprio pescoço num gesto teatral. ‒ Eu posso ser útil.‒ Isso é novidade.Ela não recua, e os olhos azuis me examinam com malícia.‒ Conheço você, Eric. Sei quando está estressado. Mas nada que umas

boas horas de sexo puro e selvagem não acabem com isso. ‒ Ela passa alíngua nos lábios. ‒ Eu até deixo você me machucar... se quiser.

Puta que pariu.‒ Você é doente.‒ Como você.‒ Fique longe de mim, Elizabeth.‒ Não consigo, zangadinho. ‒ Ela pisca de um olho. ‒ Minha natureza o

atrai, esqueceu?Fala sério!‒ E a minha pede para arrancar seu coração sem nem piscar ‒ digo,

raivoso.

Ela morde o lábio inferior.‒ Vamos mudar isso. Ficar um momento a sós. Arrancar a roupa. É bem

mais interessante.Termine essa conversa, Eric. Agora.Elizabeth nunca desiste de me levar para cama.‒ Me deixe em paz se gosta do seu pescoço no lugar. ‒ Saio andando,

rezando para que ela não venha atrás de mim.‒ Estou feliz que tenha voltado, zangadinho ‒ grita ela, à distância.Bem, penso, e eu mal posso esperar para ir embora. HOJE DECIDIDAMENTE NÃO É a porra do meu dia de sorte.Na minha primeira aula, tenho um segundo encontro com a Srta.

Aurora Harvelle. Ela não me vê, de novo, pois está ocupada demaisconversando com um outro garoto que é todo sorrisos para ela e acontempla, embasbacado, quando ela não está prestando atenção.

Ele gosta dela. Ele realmente gosta dela.Mais um.Aurora é só cabelos, olhos e pernas... longas pernas. Perfeitamente

evidenciadas pelas meias sete oitavos escuras. Seu cabelo extremamentepreto e luminoso está dividido em dois coques e parcialmente caído nascostas até abaixo da linha da cintura.

Ela parece uma garotinha inocente. Mas não me convence.Travo uma luta comigo mesmo para não fitá-la por tempo demais e ser

flagrado fazendo isso. Depois da nossa interação na aula de EducaçãoFísica, tenho recebido mais olhares do que ontem, mas não me importo.

Não me importo com o que as pessoas dizem, se é que elas dizemalguma coisa. Eu não sei. Porque não me dou ao trabalho. Não conversocom elas. Desde que cheguei na ilha, Aurora é a única pessoa com quemme permiti trocar mais do que algumas palavras.

Sorrisos.Toques.E foi um erro.Minha reação de ontem foi um deslize que eu não devia ter cometido,

mas estava extremamente curioso por sua aparência, seu comportamento,sua discrição. Por isso fui conversar com ela: para confirmar a existência

da marca; para provar a mim mesmo que estava enganado; que ela não eraquem eu imaginava, por mais que se parecesse com aquela garota.

Que péssima ideia.Aliás, não teria feito a menor diferença. Henry é o melhor amigo de

Ayla. Independente da minha vontade, eu a conheceria.A Srta. Aurora não voltou do inferno para mexer com as minhas

emoções. Ela é meu próprio inferno, e eu queria ‒ mais do que você podeimaginar ‒, para me ver livre de sua influência, eu queria muito riscá-la domapa de uma vez por todas.

Aurora

"Como se pode confiar em alguém quando não se sabe quem é a pessoa deverdade?"

Estou a caminho de encontrar Samuel Harley em uma das lanchonetes

do pátio do colégio e não consigo parar de pensar que essa ideia é, hum,péssima. Mas o que posso fazer? Ele me convidou e não quis ser rude aorecusar, não quando foi tão educadamente insistente e não quando quaseesmaguei a frente do seu carro no estacionamento mais cedo ao manobrarpara entrar na vaga.

Imagino o que ele terá a me dizer ou... perguntar.Imagino se, em algum momento, terei de mentir.Espero que não.Mas não seria a primeira vez.Paro perto das roseiras vermelhas a fim de olhar ao redor do pátio

apinhado de estudantes aproveitando o intervalo e num minutoreconheço Samuel Harley por seu despenteado cabeloloiro, sentado em uma das mesas do food truck de sanduíches naturais.

Assim que me vê, ele abre um largo sorriso reluzente, exibindo osdentes brancos alinhados. Sorrindo de volta, eu sigo para encontrá-lo.

É só um lanche, digo a mim mesma em pensamento. Não há nada demaisem um lanche, não é?

‒ Desculpe o atraso. Espero que não esteja esperando há muito tempo ‒murmuro quando estou perto mesa.

Ele se levanta para me receber e volta a sentar depois que estouacomodada à sua frente.

Uau!

‒ Não se preocupe. Só faz um minuto que cheguei.‒ Ótimo.‒ Está com fome? O que gostaria de comer? ‒ pergunta ele, indicando o

cardápio entre nós.Eu apanho a folha plastificada sobre a mesa e coloco na frente do rosto

para evitar seus olhos cinzentos.Ele é muito educado... e doce.Diferente do irmão.Que surpresa foi descobrir que são parentes. É claro que o sobrenome

foi o primeiro indicativo, mas olhando de perto a semelhança é nítida eirrefutável. Assim como Eric, Sam é estupidamente bonito e sedutor.

Que feições.Que corpo.Que genética.‒ Bem, eu... hum... é... ‒ balbucio, encarando as opções sem realmente

lê-las. ‒ Talvez...‒ O sanduíche de frango e maionese é uma delícia ‒ interfere Sam, e

percebo que está achando graça do meu embaraço.‒ Sanduíche de frango e maionese, então. ‒ Eu devolvo o cardápio à

mesa, sorrindo timidamente.Ele dá uma piscadela marota e acena para a atendente, que já nos

observava com o corpo debruçado sobre o balcão do food truck. Ao ver oolhar de Sam, a garota enrubesce e sacode a cabeça como se tivesseescutado o pedido.

‒ Obrigado novamente por ter aceito meu convite ‒ diz ele, voltando osolhos para o meu rosto. ‒ Confesso que não esperava por isso.

Não?!‒ Você não parece muito interessada em fazer amigos.É tão óbvio assim?‒ Não sou boa nesse tipo de coisa ‒ admito sem pensar.Ele franze a testa momentaneamente.‒ No que você é boa? ‒ questiona, pegando-me de surpresa. E por um

instante não sei o que responder. Ele faz outra pergunta: ‒ Seu irmão mecontou que você adora videogames. É verdade?

Agora é a minha vez de franzir o cenho.

‒ Bem, é. Mas por que Henry diria isso para você?Ele arqueia a sobrancelha, confuso.‒ Você não sabe? Nós somos amigos. Minha mãe trabalha como

designer na joalheria do seu irmão. Eles são sócios.‒ Sócios?!‒ Sim. E beneméritos da escola. E diretores na campanha de

reflorestamento da cidade. É tanta coisa... ‒ Sam dá risada.‒ Uau. Que incrível e... não, eu não sabia, caso você não...‒ Eu percebi. ‒ Outro sorriso largo. ‒ Mas tenho certeza de que em

algum momento ele mencionaria isso.‒ Ou não ‒ retruco em tom de brincadeira. ‒ Talvez um dia eu

simplesmente acordasse e... lá estaria você... circulando pelos corredoresda minha casa.

‒ Vestido. Para sua sorte.‒ Claro. Porque você deve ficar terrível sem roupa. Uma visão do

inferno.Sam dá uma gargalhada, jogando a cabeça para trás, e os cabelos loiro-

dourados caem na testa.‒ Uma visão do inferno. Essa é boa ‒ diz ele, entre os risos, e me flagro

dando risada também.Então a garçonete surge com nossos sanduíches em pratos decorados de

porcelana e uma jarra de suco de laranja com dois copos de vidro ao lado.‒ A bebida é por conta da casa ‒ esclarece ela, mais para Sam do que

para mim, mas eu não me importo.‒ Obrigado. Isso é muito gentil ‒ fala ele, lançando um de seus sorrisos

sedutores para a garota. ‒ Não é mesmo, Aurora?‒ Verdade. Muito gentil ‒ comento, ironicamente, depois que ela é

forçada a se virar para mim com um sorrisinho falso nos cantos da boca. ‒Obrigada.

‒ Não há de quê. Tenham um bom apetite ‒ murmura, devolvendo aatenção para Sam, em seguida se afasta.

Espero que ela suma de vista para dizer:‒ Você se dá muito bem com as garotas. ‒ Minha voz está carregada de

malícia.Sam ri, servindo nossos copos com suco.

‒ É uma benção e uma maldição às vezes ‒ murmura ele e, levantando orosto, fixa o olhar em algum ponto acima do meu ombro esquerdo.

Eu acompanho a direção dos seus olhos e avisto a Loira Caramelobatendo um maior papo com um rapaz da minha turma, que nãoconsegue desgrudar os olhos dos dela... ou seria do decote? Poderia dizerque ele parece até hipnotizado.

Olho de volta para Sam e percebo que sua expressão é ligeiramentegélida... quase sombria. Hum. Meu sexto sentido dispara e não consigodeixar de perguntar:

‒ Ela é a sua namorada?‒ Hã... Quê? Não! ‒ exclama ele com um sorriso amarelo. ‒ Elizabeth é

minha prima ‒ conta, baixando a voz como se não quisesse que alguémalém de mim ouvisse. Não que fosse possível. ‒ Os pais dela morreramquando ela ainda era criança e... bem, está conosco desde então. É isso.

‒ Ah ‒ sussurro por falta do que dizer, então acrescento: ‒ Conheci seuirmão ontem na aula de Educação Física. Eric não é?

Ele faz que sim com a cabeça e fala:‒ Parece que você causou uma forte impressão nele.‒ O que quer dizer? ‒ O que ele lhe disse?!‒ Tenho razões para acreditar que seu rosto o lembra alguém. ‒ Sam me

observa com um penetrante olhar minucioso.Meu coração bate mais forte.O quê?!‒ Acho que... acho que você pode ter razão ‒ murmuro quase

sussurrando. ‒ Enquanto conversávamos, ele não... ele não parava de meolhar como se... como se tentasse me reconhecer, sabe? ‒ Exatamente comovocê está fazendo agora.

‒ É curioso ‒ comenta Sam e quero saber por que é curioso, mas nãotenho coragem de perguntar, como também não tenho coragem de dizerque por um momento também pensei que conhecia seu irmão.

Então falo:‒ Você acha?Ele dá de ombros e muda de assunto.‒ Me conte sobre os videogames.E então, por minutos, enquanto comemos, não falamos mais sobre

outra coisa a não ser minha inacreditável preferência por jogoseletrônicos. De acordo com ele, garotas não curtem muito essas coisas,mas de acordo comigo garotas curtem o que elas quiserem curtir eninguém tem nada a ver com isso.

Papai me ensinou.‒ Ei, qual é, não me leve a mal. Não sou um cara machista ‒ defende-se

ele com as mãos levantadas, depois que exponho minha opinião sobre aliberdade feminina. ‒ Mas é que... bem, não posso dizer que conheçotantas mulheres que jogam Halo, Tomb Rider... Life is Strange... Sério?

‒ Qual é o problema?!‒ Nenhum! É só... ‒ ele procura uma palavra adequada ‒

surpreendente.‒ Vou aceitar isso como um elogio.‒ Porque é. ‒ Ele acha graça. ‒ Supostamente você pode ser melhor do

que eu segurando um controle.‒ Supostamente? ‒ Não sei se gosto dessa palavra.‒ É. Porque, tipo, eu sou muito bom em jogos eletrônicos, sabe? Muito

bom mesmo, tipo medalha de ouro. ‒ Ele se gaba.‒ Convencido.‒ Quer pagar para ver? ‒ pergunta ele bem quando a sirene anuncia o

fim do intervalo e todos começam a seguir para as saídas do pátio.Eu me levanto num salto.‒ Preciso ir ou chego atrasada.‒ Ah, sim. ‒ Ele fica em pé.‒ Obrigada pelo lanche. Foi muito legal conversar com você, Samuel.‒ Por favor. Sempre Sam, nunca Sammy, esqueceu?‒ Ah, sim. Desculpe. Sam.Ele pega minha mão ao lado do corpo e a leva aos lábios como fez mais

cedo ao se apresentar. O beijo é tão delicado quanto o toque de umabrisa, que fico na dúvida se minha pele tocou seus lábios.

‒ A gente se vê depois, Aurora.‒ Claro. ‒ Balanço a cabeça afirmativamente. ‒ A gente se vê.E vou embora.

DURANTE TODO O CAMINHO para a quadra de natação fico repassandominha conversa com Sam e admito que não esperava que fosse gostartanto da nossa interação. É claro que isso não significa que de agora emdiante vamos andar juntos pelos corredores do colégio, mas saber quetemos algo em comum me fez sentir como se, afinal de contas, eu nãofosse tão diferente do resto do mundo.

No vestiário, enquanto troco o uniforme pelo macacão azul-marinho,não consigo evitar de compará-lo a Eric e a forma diferente com que osdois me afetaram à primeira vista.

Talvez se eu pudesse entender as reações do garoto de olhos verdes e asminhas própria, eu não ficasse tão confusa e assustada. Talvez se eupudesse entender o que aconteceu ontem... comigo e com ele..., eu nãoteria medo de encontrá-lo outra vez.

Admitir isso não me faz estúpida, eu espero.Prendo o cabelo num coque apertado e deixo o vestiário. Ao virar no

corredor para seguir à piscina, colido com alguma coisa alta e dura.Tombando para trás, duas mãos se fecham nos meus braços e sei que setrata de uma pessoa.

Levanto o rosto.Merda!Eric Harley está me encarando.‒ Desculpe. Eu só...‒ Adora se esbarrar em mim ‒ termina ele, soltando-me sem delicadeza.

‒ Já percebi. ‒ E vai embora.Quê?!Eu me viro para lhe dizer umas verdades, mas ele já desapareceu,

exatamente como um fantasma, deixando-me sozinha no corredor.‒ Filho da...‒ Aurora! ‒ alguém chama meu nome atrás de mim.Olho por cima do ombro e vejo Luccas caminhando na minha direção

já usando o uniforme masculino de natação. Está muito bonito, mas paravariar me olha de cara feia.

‒ Oi. Qual é o problema? ‒ pergunto, indo encontrá-lo no meio docaminho

‒ O que Samuel Harley queria com você? ‒ indaga ele sem preâmbulos.

‒ Hã?‒ Precisa ficar longe daquele cara, Aurora.‒ Por que você está falando isso? ‒ questiono, incapaz de

controlar meu tom de voz alto.Ele parece perceber a indignação implícita nas minhas palavras, ficando

claramente desconfortável, mas a voz ainda é séria e decidida quando diz:‒ Ele não é uma pessoa exatamente saudável.‒ Saudável? ‒ Dou risada. ‒ O que diabo isso quer dizer?‒ Aquele cara dá em cima de todas as garotas do colégio ‒ rosna ele, a

voz diminuindo de volume no final frase quando uma turma de meninaspassa por nós.

‒ Ah, sim. É claro. ‒ Sorrio. ‒ Olhe, Luccas, eu agradeço o aviso,agradeço mesmo, mas... não se preocupe. Eu posso lidar com esse tipo decoisa sozinha ‒ digo e tão logo me arrependo da reprimenda.

Ele se esquiva para ir embora, a expressão evidentemente magoada.‒ Certo. Entendi. Tudo bem, então ‒ balbucia ele, parecendo perdido.‒ Ei. ‒ Seguro sua mão quando ele passa por mim feito uma flecha. ‒

Obrigada mesmo ‒ sussurro querendo pedir desculpa.Ele acaricia meus dedos sem tirar os olhos do meu rosto e realiza um

mínimo aceno positivo, então se afasta.Enquanto ele some no corredor, uma sensação desconfortável de culpa

me alfineta por dentro, me chamando de idiota.‒ O nome daquilo é ciúme, sabia? ‒ uma voz debochada soa perto do

meu ouvido.‒ Mas que... ‒ Viro-me rápido no susto e dou de cara com um

Sam semivestido com o uniforme de natação. ‒ Pelo amor de Deus! Qualé o problema de vocês hoje?! ‒ reclamo em voz alta.

Ele me olha como se não tivesse entendido.‒ Do que você está falando?Argh!‒ Não é nada. Deixa para lá. O que está fazendo aqui, além de

bisbilhotar minhas conversas? ‒ Faço cara feia.‒ Não estava exatamente bisbilhotando, sabia? Este é o único caminho

para a quadra de natação.‒ Mentiroso.

Ele ri, sabendo que foi pego. Então fala:‒ Queria perguntar uma coisa, mas depois do que ouvi quero saber o

quanto foi influenciada pelo seu pretendente.Quê?!‒ Primeiro ‒ levanto o indicador, aborrecida ‒, Luccas não é meu

pretendente coisíssima nenhuma. E segundo, eu jamais me deixo serinfluenciada por nada nem ninguém. Logo, se não se importa, pode irdesembuchando.

Sam abre um sorriso descarado.‒ Está bem ‒ diz. ‒ O que acha de irmos para a minha casa depois da

aula? ‒ pergunta ele, indo direto ao ponto.Eu engulo em seco.Caramba. O que eu digo?‒ Há uma grande área em "irmos para a minha casa", sabia? ‒ comento

cautelosamente. ‒ Pode esclarecer o que vamos fazer lá? ‒ Minha perguntaé perigosa, mas não vejo outro modo de fazê-la.

‒ Bem ‒ começa ele, subindo o zíper frontal do macacão ‒, podemosconversar mais, eu cozinho para gente e você me mostra quão boa éjogando Halo. Que tal?

Ele está esperançoso! Posso sentir isso. Posso ver nos seus olhos. Mas seeu aceitar... se eu disser sim agora, não haverá mais nada que eu o impeçade me convidar novamente... e novamente. E Deus sabe onde isso podeparar.

Não.Não posso arriscar... Não dá.Foi um ter aceitado aquele convite. Eu devia ter imaginado.Alguém como eu não pode se dar a esse luxo.‒ Sam... ‒ começo, me sentindo honestamente péssima. ‒ Obrigada

pelo convite. A... ideia é incrível, mas... ‒ Ele revira os olhos, como se jásoubesse o que vem a seguir. ‒ Meu irmão e eu combinamos de passar atarde juntos hoje ‒ falo, e não é exatamente uma mentira. ‒ Será que nãopodemos deixar para outro dia?

Ele finge parar para pensar, coçando o queixo.‒ Outro dia, então ‒ diz por fim, resignado, e por pouco eu não respiro

fundo de alívio. ‒ Mas não pense que vou esquecer ‒ acrescenta, como se

tivesse notado algo.Que droga. Tão logo terei que pensar em outra desculpa, pelo visto.‒ Claro que não.‒ Tudo bem! Agora vamos para aula antes que seu namorado volte aqui

para buscá-la ‒ implica ele e sai andando rápido enquanto rosno às suascostas:

‒ Ele não é meu namorado! ACORDO MUITO CEDO NA quarta-feira e saio para uma corrida na estrada.

Depois de passar quase a noite inteira em claro porque pensei ter vistouma sombra sinistra cruzar a varanda do meu quarto enquanto estavatendo uma conversa profunda e desconfortável com minha mãe sobre avida, amizades e garotos, achei que uma volta ao ar livre iria me fazeralgum bem. Quem sabe, tirar a nuvem sombria de paranoia de cima daminha cabeça.

Então, vesti roupas e calçados adequados, pus meus Beats e saí de casaquando o sol ainda nem tinha nascido. Corri até o final de uma dasestradas, onde há uma super mansão com um super jardim colorido alémdos portões de madeira, dei meia-volta e agora estou aqui, depois dequarenta minutos, correndo para casa sob o céu amanhecendogradativamente, ouvindo o meu álbum favorito de Lana Del Rey eevitando considerar as benditas ideias que foram inseridas de maneiraestratégica e cautelosa na minha cabeça.

É sempre assim quando converso com minha querida mãe, que estánovamente tentando me transformar em uma garota mais... adolescente.

Normal.Talvez eu deva me esforçar um pouco desta vez para seguir seus

conselhos. Talvez ela sinta mais orgulho de mim se eu começar a agircomo uma menina da minha idade.

E de acordo com o que disse, experimentar certas coisas que sãoessenciais e imprescindíveis na vida de qualquer mulher. Coisas como...amor. Paixão. Amizade. Garotos.

Sexo.Sério. Ela disse: sexo. S.E.X.O.Minha mãe me incentivou a transar. Nada de arranjar emprego, fazer

intercâmbio ou viajar pelo mundo, mas a... bem, você já sabe. E isso não élá muito original, é?

Não sei.Mas traduzindo tudo em palavras simples: contato humano. Tal coisa

eu venho evitando desde a infância.Afinal, eu nunca soube muito bem como fazer isso, como me aproximar

de outra pessoa sem acabar estragando tudo no final. Eu jamais tive umnamorado e além da minha mãe e do meu irmão e do meu pai, ninguémnunca conseguiu ser meu amigo.

Nunca.Tudo porque jamais deixei brechas por onde as pessoas pudessem

entrar, criar raízes e me ver. Sempre tive medo de que se fizessem isso,descobririam que há algo de muito, muito errado comigo. E talvez... talvezelas não dessem conta de lidar com minha escuridão.

Porque ela existe. Faz parte de mim... de quem eu sou.E então eu me fechava, eu me escondia. E então eu não queria ser

injusta, não queria fingir, porque...Como se pode confiar em alguém quando não se sabe quem é a pessoa

de verdade?Como alguém podia confiar em mim?Eu me perguntei isso por um bom tempo.E então, zero amigos para mim. Zero confidências, zero noites de

garotas, zero ombros para chorar. Zero.Honestamente, depois de uns anos, deixou de doer. Não ter amigos

deixou de ser uma grande coisa. Ser razão de minha própria felicidade mefez descobrir que eu podia sobreviver sem a presença de outros, que eu eramelhor sozinha, que eu podia ser feliz e me divertir do mesmo jeito.

Pergunto-me se era isso mesmo ou se, depois de um certo tempo, euapenas me acostumei a viver na minha própria companhia.

Bem, parece óbvio agora.Por isso, digo a mim mesma que darei uma chance, que tentarei a

experiência de contato humano que minha mãe tanto sugeriu, que fareiisso por mim. Mas no fundo, não ouso ter grandes expectativas. Eu sóespero não... decepcionar ninguém, porque na minha experiência, tudosempre tende a dar errado.

E as coisas podem ficar feias.

Podem ficar bem feias.

Eric

"Ela é mesmo uma assombração. E desperta o que há de pior em mim."

Sam irrompe na minha academia sem bater na porta, apesar de saber

que eu odeio com todas as forças que faça isso.Mas é sempre assim... ele não aprende.Murmurando a palavra privacidade, interrompo uma sequência de

socos no saco de boxe e rumo à barra fixa.Quarta-feira trouxe uma manhã fresca e ensolarada, com direito a arco-

íris cruzando o céu do Monte Castelo ao mar, como se fosse uma ponta decores.

Eu devia estar me arrumando para ir ao colégio, mas em vez disso, estoutentando dissipar minha energia escura e negativa num treino pesado demalhação.

É o meu ritual de todos os dias. Mas hoje é diferente. Há umamotivação a mais. Eu quero esquecer. Eu quero sentir... Ou melhor, euquero sentir algo diferente do que estou sentindo. Algo plausível. Maisforte.

Então estou apelando para a dor física.Meus músculos estão queimando tanto, ardendo tanto, ao serem

levados além do limite de exaustão.É bem eficaz.Controlo o fôlego. Absorvo toda a dor. Distraio-me da lembrança

humilhante e arrasadora do meu pesadelo na noite passada. Descarto-apara as profundezas do meu subconsciente.

Foi ridículo.‒ Que bicho mordeu você? ‒ a voz do meu irmão atravessa os fones e a

música de Maroon 5 em meus ouvidos, seus claros olhos cinzentosrepletos de especulações me fitando.

Sam. Ele ainda está aqui. Está fazendo a maldita pergunta e, por umsegundo, me arrependo de não ter ido dormir no meu chalé.

‒ Eric?Eu devia mesmo ter ido dormir no chalé.‒ Sim, irmão ‒ murmuro sem olhar para ele, solto a barra fixa e caio em

pé.Vejo minha pele corada através do espelho do outro lado da ampla sala

branca. Sinto os espasmos nos músculos exaustos e doloridos do meutronco. Ignoro as tatuagens escuras. Concentro-me na dor.

A dor... a dor é uma velha amiga.‒ Você vai mesmo continuar fingindo que eu não estou aqui? ‒

pergunta Sam, chateado, exigindo minha atenção.Meu Deus. Puxo as hastes dos fones de ouvido para atrás da cabeça e ela

caem ao redor do meu pescoço.‒ Desculpe ‒ olho enfim para o seu rosto contrariado ‒, só estou um

pouco distraído.‒ Distraído?! Você não dá uma palavra desde ontem!Reprimo o aborrecimento que começa a surgir. Sam não tem culpa. Sam

não tem culpa. Repito o mantra em pensamento até que me acalmo.‒ Não sou um cara muito falante, Sam, você sabe disso ‒ respondo por

fim, armando uma expressão convincente. ‒ Está tudo bem.‒ Não, não está, droga! E você precisa parar de dizer isso.Ah, por favor!‒ O que você quer que eu fale, então?‒ Para início de conversa?! O que está acontecendo.‒ Nada está acontecendo, irmão!Ele me encara, os olhos estreitando-se, ao perceber minha postura

mudar, meu tom de voz se tornar arrogante. Não estou no clima parapapo.

Será que ele ainda não percebeu?‒ O que houve entre você e Aurora? ‒ dispara ele. ‒ É por causa dela

que você está desse jeito?‒ Desse jeito... ‒ Rio, sarcástico, coçando a ponta do nariz.

O que foi que Ayla lhe disse?‒ É! Desse jeito! ‒ Ele se irrita. ‒ Acha que eu não percebo a cara que

você faz?‒ Que cara? ‒ Meu rosto desvia-se do olhar dele por vontade própria. ‒

Não tem cara nenhuma, é a minha cara.‒ Você fica pálido só em ouvir o nome dela! E quando a encontra

parece que viu um fantasma. Eu não sou imbecil, droga!‒ Isso é discutível, Sammy ‒ brinco numa tentativa de mudar a

abordagem dessa conversa infeliz.Afinal, o que posso dizer?Ela é mesmo uma assombração. E desperta o que há de pior em mim.‒ Não tenta mudar de assunto e, porra, não me chama de Sammy ‒

avisa ele, de cara amarrada pelo apelido infantil.Mas incapaz de admitir qualquer coisa que seja sobre a maldita

conversa, sigo pelo caminho do humor mais uma vez.‒ Ela é feia, cara. Você sabe que eu não suporto mulher feia, não sabe?Dou de ombros, mas minha mentira é um fracasso total. Sam me encara

meio confuso e preocupado.‒ Cara ‒ diz. ‒ A coisa é mais séria do que eu imaginava. Você deu para

ser engraçado agora.‒ Eu sou engraçado, irmão.Ele libera uma gargalhada.‒ E cego. Porque Aurora é estupidamente gostosa ‒ diz com fervor, o

mau humor já esquecido.É só começar a falar de mulheres que ele se distrai.‒ Se você acha. ‒ Minha displicência é tão ruim quanto a minha

mentira.‒ Tenho certeza, na verdade. ‒ Sam sorri com malícia. ‒ Ela é

inteligente, meiga, engraçada, cheirosa... Puta merda, como aquela garotaé cheirosa...

Porra.Minhas mãos estão em punhos. Meu queixo, tenso. E dispensando essas

reações inexplicáveis, forço alguma indiferença a sair da minha boca.‒ Seu interesse por colegiais é ridículo.Ele solta outra risada alta.

‒ Eric, eu tenho interesse por mulheres e não há nada de errado nisso ‒provoca, se divertindo às minhas custas.

E não posso mais prolongar essa conversa idiota.‒ Parabéns, Sam. Você provou o seu ponto. Era só isso que queria? ‒

Afasto-me dele, sentindo minha cabeça começar a doer de uma maneirapéssima e esquisita.

Fecho e abro os olhos algumas vezes, meu braço direito endurecendo.Tento ignorar isso também.‒ Na verdade, não. ‒ Ele me segue. ‒ Sabe de uma coisa? É

reconfortante perceber que meu irmão depois de tantos anos sabe-se láonde e com Deus sabe quem deseja passar um tempo comigo.

Paro no meio do passo, sentindo a indireta ‒ a ironia ‒ me transpassar.Afiada e dolorida. Eu tinha esquecido dessa mania dele de utilizar ohumor para expor suas queixas. Certamente minha indiferença o estavacorroendo desde que cheguei à ilha. Uma parte de mim se contorce emculpa.

‒ Faz um mês, Eric ‒ ele me lembra. ‒ Um mês que você está aqui e malolha no meu rosto, mal fala comigo. E não nos vemos há quase três anose... Não entendo. Por que voltou?

Seu desapontamento escorre de cada frase dita e interrompida.‒ Desculpe ‒ murmuro. Olho para ele por cima do ombro, para o seu

semblante rígido de mágoa. ‒ Senti sua falta, Sammy. Senti de verdade.Foi difícil ficar longe. E eu prometo compensar toda a minha ausência,mas agora não é um bom momento...

‒ Por que não? O que está acontecendo com você? Diz para mim ‒implora ele, obstinado, cruzando os braços no peito.

‒ Nada está acontecendo ‒ falo de novo em tom cansado, e esperosinceramente que essa seja a última vez que tais palavras saem da minhaboca.

Minha dor de cabeça está cada vez mais forte, meu braço quase imóvel...‒ Então por que a mamãe está preocupada? ‒ replica Sam.‒ Eu não sei.‒ Não mente para mim, droga! ‒ reclama ele, irritado. ‒ Nem tenta

fazer isso. Eu conheço você melhor do que qualquer pessoa. Sei quandohá algo de errado. Para de... ‒ Ele estreita o espaço entre nós e agarra meu

rosto com as duas mãos, forçando-me a encarar seus olhos. ‒ Não é justo.Eu sou o seu irmão. Não fecha a porta na minha cara. Não faz isso.

‒ Sam... ‒ Tento me soltar.‒ Não! Nós somos uma família. Conversa comigo. Diz que diabo está

acontecendo. Posso ajudar você.E eu tento, tento de verdade formar uma explicação que justifique o

meu comportamento, que justifique o modo como me sinto em relação àmaldita garota, mas as palavras se perdem dentro de mim, e no momentoeu sou um tornado de emoções e sensações contraditórias que seenfrentam dentro do meu corpo.

Não consigo pensar direito.‒ Preciso que me deixe sozinho ‒ murmuro, olhando em seus olhos

cinzentos.Ele não gosta de ouvir isso e ele não entende que não quero magoá-lo,

que só necessito de espaço para esclarecer e organizar tudo que estousentindo. Que é como funciono. Mas ele não entende.

Sei disso porque está saindo do meu alcance agora, está soltando o meurosto das suas mãos, o olhar transbordando de mágoa, e está dizendo:

‒ Eu desisto. ‒ Acho que é mais para si mesmo do que para mim. ‒Você é um idiota, Eric ‒ ele cospe com dureza e me deixa sozinho.

Exatamente como eu queria.Segundos depois, ouço a porta do meu quarto ser batida com força.Maldição!Cerro as mãos em punhos. Quero socar alguma coisa ‒ quero ferir ‒,

mas opto por me conter com toda energia que resta do meu autocontrole.No fim das contas não vai adiantar merda nenhuma. Preciso meconcentrar.

Preciso de um plano... um foco.Com esse pensamento, encho os meus pulmões de ar e me dirijo ao

banheiro absurdamente grande, avaliando as possibilidades para o dia dehoje. Em frente ao espelho, paro apenas para fuzilar meu reflexodeplorável.

Estou destruído. Faz muito tempo que não me sinto assim.Fico de costas para o espelho e parto para o banho. Ao terminar, enrolo

uma toalha na cintura e retorno ao quarto. Preciso arranjar uma nova

maneira de descontar minha raiva ou no mínimo descarregar essafrustração que tem nome, rosto e cheiro alucinante. Por fim, sei o quedevo fazer para arrancar a Srta. Aurora Harvelle da minha maldita cabeça.

QUINZE CHAMADAS NÃO ATENDIDAS e cinco mensagens de texto

explicitamente ameaçadoras ‒ todas de Ayla. Ela com certeza deve estararrancando os cabelos a essa hora, certamente a procura de qualquer sinalde desgraça em volta da cidade. Passei o dia inteiro fora de casa e longe docelular. Sei a impressão que isso passa e sei que tão logo irei enfrentar suaira, desgosto ou seja lá o que estiver sentindo por minha negligente faltade notícia.

Para a minha sorte, estou de bom humor, e a expectativa de encontrá-lacom os nervos à flor da pele ‒ o que, pensando bem, quase não acontece ‒põe um sorriso em meu rosto.

Não seja um babaca, Eric.Está bem. Está bem.Saio da margem do bosque que cerca o complexo privativo e avisto a

mansão de Ayla no fim da estrada: um retângulo perfeito de dois andarescom uma fachada de vidro impressionante.

Um primor.Ela adora esta casa... e o jardim em frente: os canteiros altos de flores

que formam caminhos, como um labirinto, e desembocam em frente a umimenso chafariz, agora fantasticamente iluminado.

Tudo isso, para quem vê de fora, parece a morada de uma pessoanormal, de uma família de verdade.

Mas não é.Porque não somos uma família.Estamos apenas ligados por uma montanha de dívidas e um sentimento

de gratidão.Só isso. Nada mais.Entro em casa sem fazer barulho e me surpreendo por não encontrar

Ayla à minha espera logo na sala de estar. Verificando meu relógio depulso, vejo que já passa das sete da noite. Talvez ela ainda esteja najoalheria ou na floricultura ‒ até onde eu sei, seus principais negócios nailha.

Subo as escadas em caracol de aço e vidro e pego o acesso para o quartoque estou ocupando no momento. Ao abrir a porta, a primeira coisa queenxergo é a silhueta pequena de Ayla perto dos janelões. Ela está decostas, braços cruzados no peito e o olhar fixo em algum ponto dohorizonte.

Reviro os olhos para o alto e, de propósito, fecho a porta fazendobarulho, mas ela não se assusta e nenhum músculo do seu corpo semovimenta. Deixando minha mochila em cima da cadeira, sigo sorrindopara a cama e me jogo ali com as mãos atrás da cabeça.

Ayla ainda não disse uma palavra, por isso resolvo lançar uma gracinha:‒ Sua noção de privacidade é uma péssima influência para o meu irmão,

sabia?E então, ela finalmente gira o corpo para mim, talvez por identificar a

diversão na minha voz. Vendo seu semblante, questiono-me por que meparece tão apavorada e quase que em uma expectativa dolorosa...

Logo, adivinho.Oh, não.Fala sério.Lenta e deliberadamente, repuxo os lábios num sorriso de diversão. Ela

retribui com um olhar horrorizado.‒ O que você fez? ‒ Sua voz não passa de um sussurro perplexo e

consternado.‒ Do que você está falando?‒ Você sabe muito bem do que eu estou falando.Rá. Sim!‒ Desculpe, não sei.Ayla respira fundo, controlando-se. Está mesmo furiosa. Isso é tão

incomum, tão... divertido de assistir.‒ Eric ‒ sussurra ela, e isso me diz o quanto sua preciosa paciência está

por um fio ‒, onde esteve o dia inteiro? E não minta para mim ou serápior para você.

‒ Vai me colocar de castigo atrás da porta? ‒ Que engraçado.‒ Não brinque comigo, rapaz.‒ Pois não tente me pôr uma coleira. Nós fizemos um acordo, ou será

que você já esqueceu?

‒ Você está instável.‒ Eu estou ótimo, obrigado.‒ Então por que ouvir isso me preocupa?Rio, ficando sentado na cama, e me recosto na cabeceira.‒ Talvez eu não seja o único paranoico desta casa.Ela não acha nada engraçado.‒ Diga onde esteve. Agora.Mulher insistente!‒ Eu fui dar um passeio, Ayla, só isso ‒ murmuro, vagueando nas

lembranças da minha tarde memorável.‒ Quero saber exatamente onde esteve ‒ enfatiza ela, sibilando.Ah, meu Deus. Acabe logo com o sofrimento dela, Eric.‒ Não acha que se eu tivesse feito alguma coisa, você já não teria

recebido a notícia? ‒ murmuro, de cara séria, entediado.Um chama de alívio ilumina seus traços.‒ Então...‒ Não se preocupe, não encostei um dedo na garota. ‒ Ainda. ‒ Mas

quero garantias sinceras de que vai me ajudar a recomeçar as buscas poraquele símbolo.

Não pretendo esquecer o assunto como fiz da última vez, emborarealmente devesse fazer isso. Não pretendo partir, por mais que cada partedo meu corpo implore que eu faça as malas e dê o fora. Não pretendoignorar o quanto tudo que aconteceu é absurdo e assustador.

Preciso ficar.Preciso saber.Ou jamais terei paz.‒ Tem a minha palavra ‒ diz Ayla, solene e satisfeita. E cada nervo do

meu corpo estremece de expectativa... ou será medo? ‒ Mas por enquanto,você vai me prometer ficar longe de Aurora ‒ acrescenta ela, com um olharincisivo.

Seria ótimo, mamãe.‒ Bem, graças a Deus ou ao Diabo, nós estudamos juntos, então....‒ Não foi isso que eu quis dizer.Hã?Ah, sim. Contenho a risada quando me dou conta, mas ela percebe.

‒ Controle-se, Eric ‒ avisa duramente. ‒ Se fizer besteira outra vez,vamos morrer. Vamos todos morrer. Não vai ter perdão para nenhum denós, ouviu?

Suas palavras apagam meu sorriso interno. Mas que droga!Ela não devia ter dito isso.‒ Eles não existem... não mais ‒ lembro-lhe de suas próprias palavras,

rosnando para seu semblante repreensor.‒ Achei que não acreditasse nisso.‒ Não acredito. Mas você parece acreditar no contrário ‒ retruco ‒, e

sinceramente parece acreditar que qualquer espécie de punição pode meimpedir de fazer o que tenho vontade. ‒ Um sorriso surge em meusl áb io s . ‒ Mas deixe-me lhe dizer uma coisa, m a m ã e : você estáredondamente enganada.

Ela recua devido à minha frieza, parecendo magoada e boquiaberta, masnão tenho certeza.

‒ Não se cansa de ser um assassino, não é? ‒ Sua voz é uma expressãodo quanto lamenta por mim.

Mas é tarde demais.‒ Fui criado para isso ‒ falo para ela, desviando os olhos à parede. ‒

Boa noite, Ayla ‒ murmuro.E ela vai embora.

Aurora

"Sentiu saudades?"

O estacionamento do colégio está relativamente vazio quando saio do

carro na quinta-feira e encontro com Evelyn e Luccas nas escadarias ‒ osdois entretidos no plano de ir a uma festa ou sei lá o quê daqui a duassemanas, eu acho. Eles me convidam e, ignorando meu ceticismo quantoà coincidência, eu educadamente aceito.

Há muito tempo não sei o que é sair à noite.Luccas e eu nos despedimos de Evelyn na biblioteca da Ala Leste com a

promessa de nos encontrarmos no intervalo. Ele insiste em meacompanhar até a porta da sala da minha primeira aula, e apesar deconsiderar uma atitude com um toque sutil de paquera, disfarçada decavalheirismo, eu permito.

Espero que minhas anuências ocasionais não dê certas esperanças a ele.Odiaria perder sua companhia por questões de interesse nãocorrespondido.

‒ Até mais, Aurora ‒ diz Luccas, meio envergonhado, e volta por ondeviemos.

Entro na sala de aula e marcho até a mesa perto da janela onde épossível observar o bosque. Algumas garotas sorriem para mim quandopasso e, mais por educação do que por outra coisa, sorrio de volta paraelas, mas é um sorriso sincero. Tímido. Ainda é o máximo que consigofazer.

Após dez minutos, a professora de Literatura aparece na salacantarolando uma saudação, e escreve seu nome na lousa devidro: Ellen. Mesmo sendo seu primeiro contato com a turma, ela

dispensa as apresentações e tão logo dá início as atividades. Hojetrabalharemos com a análise de um poema de Cecília Meireles chamadoRetrato.

‒ Página 12, por favor, turma ‒ diz ela, ainda cantarolando.E depois que todos os livros estão abertos, a leitura começa.Em uma certa altura da aula, muitos nem estão mais prestando atenção.

Alguns alunos bocejam indisfarçadamente, outros conversam e a quatromesas de distância, uma das garotas que sorriram para mim está com arevista da Vogue aberta sobre o livro.

Rio comigo mesma e logo volto a me situar na análise quando aprofessora para de falar monotonamente. Todos levantam a cabeça parasaber o motivo da pausa, até mesmo os que não estavam prestandoatenção.

Engulo em seco.Eric Harley hesita no umbral da porta.Parece ter acabado de sair de uma sessão de fotos para alguma revista

americana famosa. Está impecável. Devastadoramente perfeito nouniforme escolar escuro, como nenhum outro garoto.

Seu cabelo cheio e brilhoso está habilmente penteado para trás,deixando à mostra o desenho de duas linhas horizontais curtas na lateralda cabeça levemente raspada. A fisionomia séria ‒ tão quanto no dia emque eu o conheci ‒ definitivamente lhe é uma característica marcante...

Tão marcante como a linha de sua mandíbula.Filho da mãe!Por que tão bonito?A professora mal consegue piscar ao encarar Eric, que apesar do

semblante austero sustenta um olhar carregado de intenções secretas. Elalogo suspira, visivelmente afetada.

Reviro os olhos pela proeza.‒ Atrasado de novo, Eric ‒ diz e, só para ficar super claro, não é uma

repreensão.‒ Sinto muito, Srta. Ellen ‒ responde ele, feito um inocente, a feição

ressentida ‒, não vai acontecer outra vez.Sorrindo, ela faz um gesto de liberação com os ombros.Rápido demais e com uma elegância diabólica, ele entra na sala, passa

pelos alunos de cabeça erguida, e se senta na carteira à minha frente,bloqueando minha visão do quadro.

Encarando seus ombros largos e desenhados pela camisa, fico com asensação de que ele não me viu e ao mesmo tempo com a suspeita de queestá me ignorando.

Meus lábios se apertam involuntariamente.Eu queria muito, mas ainda não esqueci sua reação esquisita a sei lá o

quê no primeiro dia de aula, o comportamento frio e irônico no diaseguinte, seu sumiço ontem. Ou ele é fodido da cabeça ou... não sei. Nãotenho outra alternativa.

E isso está me tirando o sono e o sossego, mas não pretendo deixar ‒nem em mil anos ‒ que ele perceba.

Por isso, tomo a saiba decisão de ignorá-lo.Quando a aula finalmente termina, espero que Eric vá embora da sala

primeiro, e entrementes, de cabeça baixa, finjo checar meu quadro dehorário.

Sei que tenho o segundo período livre hoje. Só ainda não pensei emcomo matar esse tempo. Ficar no pátio não é uma opção ‒ não com todomundo ainda me comendo com os olhos.

Talvez a biblioteca... Este horário deve estar vazia. Posso me sentar àmesa mais distante de todas e terminar de ler a bibliografia da aula deamanhã, produzir um resumo.

Sim. É uma boa ideia.Levanto o olhar minimamente e percebo que, enfim, estou sozinha na

sala. Graças a Deus! Ficando em pé, jogo a mochila nas costas, abraço ofichário e saio depressa dali. Andando pelo corredor, noto a portavermelha da saída de emergência e repenso minha decisão. Ali comcerteza não vai ter ninguém para ficar me olhando.

Dezessete segundos é o tempo que levo para me decidir e abrir a portadepois de verificar se alguém me viu entrar. Porém, eu nem preciso irmuito longe para me arrepender de não ter ido à biblioteca.

Logo que ultrapasso o primeiro lance de escada, identifico Eric Harleypor seu uniforme escuro, sentado em um dos degraus, as longas pernasflexionadas e os pés apoiados no corrimão. Ele está totalmente imerso emum livro titulado “Os Miseráveis”.

Mas que merda!Será que dá tempo de eu virar as costas e cair fora sem que ele perceba?‒ Oi para você também ‒ diz ele, sem tirar os olhos do livro.É, acho que não.Por meio segundo, só por meio segundo, penso que deveria ir embora.

Que deveria mesmo ir embora, sem lhe oferecer qualquer resposta. Masmeus pés me levam para a frente, descendo dois degraus, e minha voz é dedeboche quando digo:

‒ Ora, ora, ora. Quem é vivo sempre aparece, hein?Não sei por que falo isso, mas Eric ainda não olha para mim.‒ Sentiu saudades?Pelo amor de Deus!‒ Por que continua me seguindo?Não é possível, é? Esse garoto não devia saber que eu viria para cá.‒ Não se responde uma pergunta com outra pergunta ‒ diz ele. ‒ A

senhorita usa os olhos, não usa? Eu estou lendo. ‒ Sua mão balança olivro.

Respiro fundo.Canalha arrogante.E ainda está me chamando de senhorita!‒ Seus modos são admiráveis, Sr. Eric. Mas quer saber? Eu me recuso a

ser infectada por eles. Adeus.‒ Ei ‒ chama ele quando já estou saindo.Não vire, não vire, não vire, não vire.Eu me viro. Eric está me fitando agora, o livro deixado sobre um degrau

acima do qual está sentado.‒ Sinto muito ‒ diz, mas está sério demais para me fazer acreditar que o

pedido é sincero. ‒ Eu estou de mau humor. Mas não vá. Fique.Entretenha-me ‒ pede, suavemente divertido, mas não sorri.

Eu sou alguma espécie de comédia? é o que eu devia ter resmungado, mas oque sai da minha boca é:

‒ O que houve?E estou me sentando!Estou me sentando a quatro degraus de distância dele!Seu olhar discreto e impenetrável acompanha o movimento das minhas

pernas. Por sorte, estou usando minhas botas pretas favoritas, que vão atéo meio das coxas. Coloco a mochila e o fichário no colo.

‒ Brigou com a namorada? ‒ pergunto, não sei por que diabo.O que está havendo comigo?Eric franze a testa.‒ Não. Não briguei com a namorada ‒ responde, a voz estável, lindos

olhos verdes insondáveis contra a pele bronzeada.Aguardo com a expressão mais apática que consigo. Ele tem namorada!

Não sei por que isso me surpreende tanto. Ele é bem-apessoado. Atraente.E, por todas as estrelas do céu, muito misterioso.

Alguém que qualquer uma desejaria conhecer profundamente.Eu gostaria.‒ Estou num dilema ‒ responde ele enfim, e há uma mudança quase

indistinguível no seu rosto. Como ele consegue fazer isso? ‒ Preciso tomaruma decisão importante.

Ahh. O que ele diz faz e não faz sentido.‒ Se o senhor for um pouco mais específico, quem sabe eu não possa

ajudar ‒ murmuro, mais uma vez sem entender a razão de eu estardizendo essas coisas.

Com certeza não é por causa das palavras “contato humano” estarempiscando na minha mente feito uma placa de néon.

‒ A senhorita é uma garota curiosa ‒ diz Eric, e suas palavras medeixam ligeiramente sem graça; não quis ser enxerida. Ele continua: ‒ Masnão respondeu minha pergunta.

Que pergunta?‒ Mas você não... Ah!‒ Sentiu saudades?Faço um revirar de olhos bem exagerado.‒ Sim, sim, Sr. Eric ‒ respondo com extrema delicadeza. ‒ Quase morri.

Por favor, não suma de novo, ok?Minha falsa declaração o faz rir. Rir de verdade. De um jeito que exibe

seus dentes brancos perfeitos e suas covinhas.É a primeira vez que o vejo fazer isso.Lindo. Ele é lindo.‒ Doce ironia ‒ Eric pronuncia as palavras de um jeito vagaroso. ‒ A

senhorita sabe que se esforça demais para mostrar que não gosta de mim,não sabe? ‒ Ele balança o dedo. ‒ É quase de propósito. Devo presumirque, no fundo, a mais concreta verdade é que me adora?

O quê?!‒ Só se o senhor for retardado.‒ Hum. Quanta paixão. ‒ Ele suspira. ‒ Mais uma vez, me prova um

ponto. Eu a deixo nervosa.Sim. O senhor me deixa tão nervosa que tenho vontade de esmurrá-lo.Acho que não quero mais conhecê-lo.‒ Seu ego demasiadamente grande me irrita, Sr. Eric.‒ Não há nada de errado com o meu ego, Srta. Aurora ‒ diz ele,

abrindo um sorriso bem-humorado, balança a cabeça ‒, e sim com suapéssima habilidade em disfarçar suas emoções. Se eu não adorasse isso,diria que é lamentável uma garota ser tão transparente. ‒ Ele me fuzila,uma intensidade perturbadora emanando de seus olhos. ‒ A senhoritaestá praticamente nua para mim, sabia?

Recuo, ultrajada. Não há malícia nenhuma na sua voz, mas o modocomo ele expôs as palavras soou como algo bastante indecente.

‒ Por Deus, amor! Metaforicamente falando, é claro. Não fiquechocada. ‒ Ele ri de leve. ‒ Eu só consigo perceber seu olhar curioso meperscrutando, seu cérebro fazendo hora extra para entender minhaspalavras, atitudes e reações. Sinto sua frustração ao se dar conta de quenão estou tão exposto como a senhorita, sinto sua curiosidade por mimaumentando...

‒ E o senhor me acusa de esforços para compreendê-lo. ‒ Dou umarisada fria. ‒ Quanto tempo levou para observar tudo isso e chegar a talconclusão? Uma noite inteira? Ah, meu Deus! ‒ Faço-me de chocada,colocando a mão na frente da boca. ‒ O senhor pensa em mim antes dedormir?!

‒ Acho que a senhorita deseja que sim.‒ Acho que senhor espera que eu deseje que sim ‒ disparo e me

pergunto se ele entendeu minha sentença.Eric passa a admirar os próprios joelhos.‒ Isso só prova que não me conhece... Não que eu a culpe, é claro.

Ainda não tivemos tempo para... trocar histórias. ‒ Sua cabeça pende para

o lado. ‒ Mas deixe-me lhe dizer uma pequena coisa, boneca: eu não sou omeu irmão.

Franzo os lábios. O que ele quer dizer com isso?‒ Seu irmão. ‒ Meu tom é deliberadamente malicioso quando me

lembro do conquistador de cabelos loiros e olhos cinzentos. ‒ Sam é umperfeito cavalheiro, claro. Tanto que me custa acreditar que tenha laçosanguíneo com um homem feito senhor. Sem ofensa ‒ acrescento, irônica,como que para me desculpar.

Eric baixa os olhos para o livro e tamborila os dedos da mão tatuadapor cima da capa dura. Reparo no desenho de um de pássaro em plenovoo, lua crescente e folhas ao vento. Tudo entre linhas largas e cursivas.

Negras.‒ Meu irmão é um homem melhor do que eu em muitos aspectos,

verdade seja dita ‒ reflete ele, revelando um sorriso franco, distraindo-mede suas tatuagens. ‒ Mas se encanta com todo belo par de pernas que vê.Fica praticamente cego, coitado.

‒ Imagino se isso inclui o meu par de pernas. ‒ Arqueio a sobrancelha.‒ Pode apostar que sim ‒ murmura ele. ‒ Meu irmão está perdido,

focado no seu rostinho bonito e se esquece de que há mais, muito maisdo que isso na senhorita.

Suas pedras preciosas estão direcionadas para mim mais uma vez. Ficoquerendo saber aonde ele quer chegar.

‒ Vou encarar como um elogio, obrigada.‒ Não há de quê. ‒ Ele me analisa. Quero que pare com isso. ‒ Sabe de

uma coisa? ‒ pergunta. ‒ A senhorita não é nem de longe a garotinhafrágil e inocente que quer que os outros pensem que é...

‒ Como se...‒ Por trás desse uniforme, que por sinal lhe cai muito bem ‒ seus olhos

cobiçam meu corpo descaradamente ‒, esses penteados de criancinha... Éuma garota tentadoramente interessante, Srta. Aurora. Incomum.Misteriosa. Alguém que tem muito a revelar, como... ‒ ele sorri, pensativo‒ como um baú de várias camadas ‒ diz por fim.

E não consigo ter outra reação a não ser rir. Gargalhar de nervoso.Porque ele está tão terrivelmente convencido. Tão terrivelmente certo.

Mas não pode saber disso de jeito nenhum.

‒ Está obcecado por mim, Sr. Eric ‒ digo, esperando que minha vozapenas revele minha doce diversão. ‒ Deus! Está vendo até o que nãoexiste. ‒ Sacudo a cabeça. ‒ Eu fico, uau, lisonjeada, mas... Cuidado comessas expectativas tão altas. Posso decepcioná-lo e só poderá culpar a simesmo.

Sustento o sorriso com facilidade e, por um momento fugaz, vejo-ovacilar, seus olhos verdes piscarem e estudar-me.

‒ Talvez ‒ diz ele, então, tão baixo que parece estar se dirigindo a simesmo. ‒ Talvez a senhorita não passe de uma garotinha rica, idiota emimada. Talvez seja igual as outras que infestam os corredores destecolégio. ‒ Dá de ombros. ‒ Fúteis. Vazias. Estúpidas ‒ diz, cada palavrauma pausa.

Meu queixo treme de indignação, e tenho de me esforçar para manter acompostura ao captar a intenção dele. Trinco os dentes.

Claro.Ele quer me atingir, quer me forçar a dizer o que espera, o que acredita

ser verdade. Só que por mais curiosa que eu esteja para saber o que elepensa a meu respeito, não vou lhe dar o prazer de ser eu a confirmar suasespeculações.

Não vou fazer isso.‒ Talvez ‒ falo, pondo um sorriso em meus lábios, o mais verdadeiro

possível. Encaro Eric Harley. ‒ Talvez suas conjecturas estejam corretas.Talvez não estejam. ‒ Minha voz é suave, educada. ‒ Na verdade, eu nãome importo com o que pensa de mim. Minha vida não é uma exibição.Quer me conhecer melhor? ‒ Estou séria agora. ‒ Por favor, não mejulgue. Não se dê o direito de fazer suposições. Porque seja lá que o pense,seja lá o que qualquer um pense, garanto que existe 95 por cento dechance de estar errado.

E é isso.Fico calada à medida que ele me contempla, a fisionomia carregada de

algum sentimento que nem me dou ao trabalho de desvendar.Não estou mais interessada.Ele acha que consegue ver através de mim. Ele supõe que sabe quem eu

sou. Ele é pretensioso. Maldição, ele é pretensioso do fio de cabelo até aunha do pé. Fica me olhando dessa maneira intensa e insuportável... Para

quê? Apenas para criar pressupostos a meu respeito?Isso não é justo. Não é.E eu o detesto por ousar fazer isso.A sirene toca e me salva de ter que continuar ali por mais tempo,

testemunhando o olhar dele me devorar. Ergo o corpo para ficar em pé ecoloco a alça da mochila no ombro.

‒ Preciso ir para aula ‒ anuncio como forma de despedida e, semesperar por resposta, subo os degraus, cada vez mais rápido, ao passo quevou me distanciando, fugindo dele.

Que droga. Parece que estamos sempre fazendo isso. O INTERVALO ESTÁ QUASE no fim quando Evelyn e Luccas aparecem

saltitantes e se largam nas cadeiras ao meu lado, ambos com sorrisosenormes.

‒ Conseguimos! ‒ exclama ela, eufórica por algum motivo quedesconheço.

‒ Conseguiram o quê? ‒ Continuo escrevendo a resposta da décimaquestão de um questionário de Física sobre as Leis de Newton.

Apesar de a data de entrega ser na semana vem, precisei de umadistração e precisei o quanto antes.

‒ Os ingressos da festa. Acabamos de comprar de um amigo porum preço bem bacana. Você vai, não é? ‒ pergunta Luccas e há notas deesperança dançando na sua voz.

Paro de escrever no meio da frase e olho para a expressão contente erecuada dele. Sei do que está falando. Eu havia prometido no início damanhã, mesmo sem saber o que exatamente vai acontecer no tal lugar queeu também não sei onde.

‒ Claro. Eu disse que ia ‒ lembro a ele. ‒ A música é boa, não é?‒ O espaço é novo, então fizemos questão de olhar o repertório que os

donos disponibilizaram no site. ‒ Evelyn me passa o ingresso, animada. ‒Pode crer. Vai ser muito, muito legal. Eu mal posso esperar, e casa deshow promete um DJ famoso... Ai, meu Deus...!

E ela entra em um papo com Luccas sobre como música eletrônica é omáximo.

Volto a atenção para o questionário e, antes de finalizar o

intervalo, rumo à aula dupla com o pessoal do primeiro ano B. Assimcomo Evelyn e Luccas, Sam Harley também faz parte dessa turma. Eleacena para mim com alegria, sentado ao lado da Loira Caramelo.

Ela não gosta de mim. Está estampado na sua cara e no modo como mefita. Agora mesmo, me fuzila com ódio. Sam dá uma cotovelada no braçodela ‒ uma repreensão, eu acho.

Depois de retribuir ao aceno dele, eu me sento à mesa entre Evelyn eLuccas, e flagro Selena do outro lado da sala com uma expressão quaseigual à de Elizabeth.

Ela também me odeia.Bem, pelo menos eu sei por quê. ‒ FOI IMPRESSÃO MINHA OU Elizabeth Harley não parava de encarar você

na aula de Biologia? ‒ pergunta Evelyn enquanto saímos do vestiário e nosarrastamos na direção da quadra esportiva.

Preciso dar um jeito de me livrar desta aula de Defesa Pessoal o quantoantes. Apesar do que Henry acha, não é seguro. Não é nem um poucoseguro. Depois do episódio com Selena, tenho me questionado bastante...

Não quero voltar aos terríveis velhos tempos. Só de pensar neles tenhovontade de me trancar num buraco e nunca mais sair.

‒ Acho que não foi impressão sua ‒ murmuro, evitando meupensamento, e prendo o elástico na ponta da trança lateral que fiz nocabelo. ‒ O que você sabe sobre essa garota? ‒ emendo porque Evelynparece saber um pouco sobre todo mundo daqui.

Todo mundo menos Eric.‒ Bem, ela é bonita, descolada, rica ‒ responde Evelyn e solta um

suspiro resignado. ‒ Todos os garotos querem o número do celular dela.Ela é boa em basicamente tudo. Eles todos são. Os Harley, quero dizer.

Hummm.‒ Luccas não parece simpatizar-se muito com eles ‒ comento,

lembrando da frieza em seu rosto quando me avisou da popularidade deSam com as mulheres na terça-feira.

‒ Claro que não. ‒ Ela me espia pelo canto do olho, maliciosa. ‒ Masnão esquenta. Já, já essa dor de cotovelo dele passa.

‒ O que você quer dizer?

‒ Eu quero dizer... O que é que é isso?!Nós duas estagnamos bruscamente ao entrar na quadra esportiva. No

centro do campo de futebol, vários tapetes de EVA foram armados paraparecer um tatame. Ao redor deles e um de frente para o outro, todos osalunos se encontram eufóricos e perfilados como se...

Não!Não, não, não, não.A compreensão me atinge como um tapa na cara.Ah, por favor!‒ Acho que...‒ Ele vai nos colocar para competir! ‒ Evelyn engasga de choque.Oh, não mesmo!Lamento profundamente ao perceber que ela está certa. Segundo o

professor, vamos praticar o que aprendemos na aula passada. E eu nem seique diabo aprendemos na aula passada! Como eu vou...

Não!Tenho que me afastar daqui, penso desesperada, só para no segundo

seguinte me dar conta de que se eu der um passo sequer para fora destamaldita quadra, com certeza as pessoas vão murmurar. E me importo comisso, e não devia. Não devia mesmo.

Não é assim que as coisas têm que ser.Tento pensar no que meu pai diria se estivesse aqui. Provavelmente algo

como “Você pode fazer isso, Aurora”. Porque ele confiava muito em mim.Confiava que eu poderia me controlar. Confiava que eu poderia ser umaboa garota.

Foi para isso que ele me ensinou.Mas eu falhei tantas e tantas vezes, e ele...‒ Aurora, vamos! ‒ Evelyn está sussurrando veemente.Desgrudo os pés do chão e saio do lugar para entrar na fila enquanto o

professor escolhe a dupla adequada para cada um. Ao mesmo tempo, elealerta aos alunos que se trata apenas de defesa, portanto nada demachucar o parceiro. Pelo canto do olho, vejo Elizabeth e Selena rindodisfarçadamente, as duas me encarando com gêmeas expressões.

Isto não vai ser legal.Isto não vai ser nada legal.

Inspiro profundamente, já me preparando, e as ignoro.Ao meu lado, Evelyn agarra meu pulso em uma exigência muda de ser

minha parceira, mas quando o professor chega até nós, ele a realoca àoutra garota por questões de peso corporal. Ela fecha a cara.

Pressentindo minha ideal parceira, nem me surpreendo ao professorindicar Elizabeth. Ela abre um sorriso maldoso na minha direção, quefaço questão de não retribuir, e apenas a encaro com um semblanteimpassível.

No final da fila, Eric e Sam Harley é a última dupla a ser formada e tãologo a escolhida para começar.

Eu mal reparei nos dois ali. Eles se movem para o centro da roda comodois leões da montanha, e as garotas se unem para cochichar, dandorisadinhas bobas.

Fala sério!‒ Prometo pegar leve com você ‒ provoca Eric, piscando para o irmão

que está de cara fechada.Sam revira os olhos e se posiciona.A demonstração deles é limpa, e tenho de admitir: os dois são muito

bons. Desconfio que já tenham experiência no assunto. O professor osinterrompem poucas vezes, apenas para tecer comentários. A turma osobservam, uns com admiração, outros com inveja; as garotas, suspirando.

Que ridículo!Com o final da prática de Sam e Eric, o professor escolhe a próxima

dupla, e demoro a entender que se trata de mim e Elizabeth. Saio do meulugar na fila e me guio até o centro da roda, sendo seguida a cada passopelos olhos dos alunos, com Elizabeth atrás de mim.

Eu e ela nos posicionamos, uma de frente para outra, olhos azuis fixosnos olhos dourados. Um estremecimento de irritação percorre meu corpoe me força a respirar fundo para contê-lo.

Posiciono-me na defensiva.Elizabeth parte para o ataque: precisa, ágil e rápida; e me aplica uma

chave de braço em menos de um minuto, a dobra do seu cotovelopressionando meu pescoço com uma força maior do que a necessária.

Filha da...Flexionando os joelhos, agarro o antebraço dela com as duas mãos e

jogo seu corpo para o lado, levando-a ao chão. Sem pestanejar, envolvo eaprisiono seu antebraço e puxo para trás. Ela está completamenteimobilizada.

Não consigo evitar o sorriso que me divide o rosto. De algum lugar, oprofessor ordena que eu a solte, então recuo.

Ela fica em pé ‒ olhos faiscando de frustração, queixo rígido ‒, e seposiciona outra vez.

Nós recomeçamos.Mais uma vez e, com um pouco mais de determinação e força, ela

avança para ofensiva com socos e chutes. Sabe bem o que faz, é habilidosae certeira. Mas eu possuo reflexos mais ligeiros e antecipo seusmovimentos antes que ela os realize.

Ainda não consigo deixar de sorrir. Supostamente isso a está deixandofora de si e ao mesmo tempo vulnerável.

Em um desses momentos de deslize, atravesso meu braço ao redor doseu pescoço e, antes que ela possa usar minha técnica, eu lanço meujoelho na sua coluna, e ela cai ajoelhada.

Não há muito mais o que fazer.Liberto-a sem esperar por ordens. Ela fica em pé e me encara como se

pudesse me assassinar e jogar meu corpo no oceano Atlântico.Sorrio com os olhos.‒ Chega, meninas. Vocês foram ótimas ‒ parabeniza o professor, dando

a prática por encerrada.Apenas viro de costas e saio andando.‒ Ainda não ‒ grita Elizabeth, repentinamente atrás de mim, e me puxa

pelo braço esquerdo.O quê?Ela me gira. Acho que está tremendo.‒ Solte-me ‒ ordeno. Ela não me obedece.‒ Eu disse: ainda não ‒ rosna ela, apertando meu pulso com força.Ah, qual é!Faço menção de agarrar sua mão me machucando, mas ela me

intercepta no meio do movimento, fechando os dedos ao redor dos meus,e pressiona.

Depois...

Há o estralo. Há dor. Dor aguda. Há meu corpo inteiro sendoacometido pela sensação de estar sendo engolido por labaredas de fogo.Há raiva, medo, poder. Há algo se desligando dentro do meu cérebro, daminha mente, eu não sei. E não consigo mais ter ideia do que estoufazendo.

Só vejo a mim mesma ‒ como se estivesse fora do meu corpo ‒ livrando-me das mãos de Elizabeth, batendo minha cabeça na dela e empurrandoseu peito com o pé.

No mesmo instante, ela é projetada a mais de cinco metros de distânciade mim, seu corpo rolando no chão inúmeras vezes. Alguém do meio daroda de alunos pragueja alto e há outras exclamações, ordens, gritos.

Tudo isso eu ignoro.E ofegando enlouquecidamente, sinto o controle se esvair de cada

músculo do meu corpo. Logo depois, minhas pernas estão me levandopara onde Elizabeth está caída, um instinto forte e absoluto me dizendoque preciso finalizar.

Agora.Faltando um metro de distância entre mim e a Loira Caramelo ainda

tentando se pôr de quatro, sinto alguém me agarrar pela cintura e mearrastar sem o menor esforço. Meu corpo luta para se libertar dos braçosque o envolve, mas estes permanecem firmes e fortes ao meu redor.

Dor, ódio e medo duelam incansavelmente dentro de mim, cadaemoção buscando subjugar a outra. Não me sinto em próprio corpo. Écomo se uma outra força que não a minha estivesse me dominando.

Não. Não. Isso não devia estar acontecendo. Não.Uma dor aguda e flamejante irradia dos meus dedos para o antebraço,

lágrimas rolando pelas minhas bochechas, meu coração esmurrando meupeito.

É demais para mim.Então, paro de lutar, alguma parcela de controle entrando em ação, e

me deixo ser levada. Tento abrir os olhos, mas minhas pálpebras parecempesadas demais, anestesiadas. Em um movimento lento de cabeça, minhabochecha roça numa pele macia e perfumada. Um aroma envolvente demadeira penetra em meu nariz e me desperta e me acalma.

Estou segura.

E tudo fica escuro.

Eric "Não sei se consigo lidar com uma possível verdade saindo direto da boca dela."

‒ Ela fez o quê?! ‒ Ayla grita de choque e raiva, saltando da poltrona.

Sam acabou de contar sobre o incidente na aula de Educação Física,apesar de ‒ “para o bem da harmonia da casa” ‒ ter inicialmente decididoencobrir a história. Mas meu irmão não tem um pingo de habilidade emesconder nada. Ayla conseguiu ver que havia algo errado só em olhar paraele.

‒ Mamãe...‒ O que essa garota estava tentando provar? ‒ explode ela, andando de

um lado para outro da sala. ‒ Podia ter nos exposto! Podia ter matadoAurora!

E então, gira nos calcanhares, as ondas do cabelo loiro escurobalançando no meio do movimento.

Sentado no sofá ao lado do meu irmão, fico com vontade de rir, masreprimo.

‒ Acham que alguém percebeu algo de estranho nela? ‒ pergunta,alarmada com possibilidade.

Sam se apressa em anunciar a única boa notícia.‒ Não. Ninguém notou nada. Foi tudo tão rápido e...‒ E as pessoas ficaram mais impressionadas com o que Aurora fez

‒ interrompo-o, indo direto ao que realmente interessa para mim.O rosto branco de Ayla adquire ligeiramente um tom pálido e volta ao

normal.‒ Não comece, Eric.‒ Há algo muito errado nessa garota. ‒ Analiso a fisionomia dela

enquanto falo. ‒ E você sabe disso... mas continua a fingir que não.Dou uma pausa.‒ Por quê? ‒ Estou desconfiado. Talvez ela saiba mais do que me disse.

Talvez esteja mentindo para mim. Talvez eu esteja confiando na pessoaerrada.

‒ Do que vocês estão falando? ‒ intromete-se Sam, quebrando o gelo.‒ Não vamos ter essa conversa de novo ‒ declara Ayla em tom

definitivo.‒ Onde ela está? ‒ pergunta de súbito.‒ Quem?‒ Elizabeth. Onde ela está?!‒ No quarto ‒ respondo com prazer, e Ayla desaparece

intempestivamente pela escada.Meu sorriso voraz não demora a vir à tona, escancarando meus lábios.

Não sei por que toda essa situação me diverte tanto. Talvez porque euesteja prevendo o desfecho que espero, após presenciar o que aconteceuhoje.

Sim.Eu não sou louco, e a Srta. Aurora Harvelle está bem longe de ser uma

garota ordinária como tanto se esforça para ser. Mal posso esperar a horade recomeçar as pesquisas sobre a marca que ela carrega no pescoço.

Estou com muita vontade de provar à Ayla que tenho razão, assimcomo...

Sam se levanta do sofá repentinamente e me arranca dos meuspensamentos. Sem dirigir o mínimo dos olhares na minha direção, elesegue para a cozinha em silêncio, batendo os pés no chão. Está desse jeitodesde o café da manhã.

Eu provavelmente devia ir atrás dele e me desculpar por ontem demanhã e por todos os anos que passei longe. Contar sobre Aurora e tudomais.

É o certo, na verdade, e é o que Sam espera que eu faça, mesmo játendo me perdoado.

Conheço suas manias. Seu coração de criança incapaz de guardarsentimentos ruins por muito tempo. Meu irmão é um homem mil vezesmelhor do que eu. Só não o invejo porque aprendi a aceitar meus

demônios.Conviver com eles.Controlá-los.Respiro fundo em reação ao pensamento.Peça desculpa logo e acabe com isso, Eric.Ergo o corpo do sofá e vou atrás de Sam.Ele está fuçando a geladeira quando entro na cozinha e me debruço do

outro lado da bancada de café da manhã. Encarando suas costas, esperopacientemente que ele se vire e me note ali. Depois de um minuto emeio, sua cabeça se movimenta apenas três centímetros à direita.

Aguardo até que ele pergunta, sarcástico e azedo:‒ Você pretende dizer alguma coisa ou só vai ficar aí me olhando com

essa cara de cuzão que você tem?E não consigo impedir a risada que sai da minha boca.‒ Cuzão?Sam fecha a porta da geladeira com uma batida e se vira para mim, a

fisionomia de poucos amigos.‒ Não foi uma piada ‒ diz ele, a voz grave, arrogante.‒ Tem certeza? Porque é só o que você sabe fazer, irmão.Continuo sorrindo. Ele solta um suspiro chateado, esfregando os olhos

com as pontas dos dedos, e fala:‒ O que diabo você quer, Eric? De verdade. Porque eu não estou

conseguindo mais entender. Ontem mesmo...‒ Sinto muito por ontem, Sammy ‒ eu digo, sendo inteiramente

sincero, e paro de rir. ‒ Lamento por ter agido como um... egoísta idiota.E lamento também por todos os anos que passei longe de você, pela faltade notícia. Sou um péssimo irmão. Sempre fui. Mas quero mudar.

Ele não esconde a surpresa, o alívio em ouvir minhas palavras.Ah, irmão.‒ E como você pretende fazer isso? ‒ pergunta ele, sério, mas a voz está

mais suave, mais esperançosa.Puxo do bolso da calça uma folha de papel dobrada.‒ Bem, para começar: Você estava certo. Estava certo sobre muita coisa.‒ Como assim?‒ Tenho um problema com Aurora. E aqui está.

Estendo a folha que ele pega, desdobra e observa. Não precisa de muitotempo para reconhecer.

‒ Espera aí. Isto é...‒ Sim, é ‒ confirmo. ‒ Há... há um tempo você me viu desenhar esse

símbolo em todos os lugares. Depois eu e Ayla o procuramos, mas nãoencontramos nada a respeito. ‒ Anos e anos de pesquisa em vários lugaresdo mundo. Uma total perda de tempo.

‒ Aquela garota o tinha no pescoço ‒ lembra-me Sam, como se eutivesse esquecido. ‒ Não era?

‒ Sim ‒ sussurro. ‒ Ela tinha.‒ Você ficou obcecado em saber o que significava. ‒ Ele olha para

minha mão direita, onde as marcas do meu pecado começam.Quase sempre tento esquecer que elas estão ali.‒ Vai me contar por que fez o que fez com...Não.‒ Talvez um dia ‒ murmuro, evasivo, e logo em seguida mudo de

assunto. ‒ Eu não sei se Ayla contou para você, mas... Aurora tem essamarca no mesmo lugar que aquela garota.

‒ Como é?!‒ Você não reparou ‒ suponho.Ele me lança um olhar idiota e divertido.‒ Bem, não. Pescoço não é exatamente a minha parte favorita do corpo

de uma mulher. É a sua?Deus! Eu não devia ter perguntado.‒ Vou entender como um não ‒ resmungo, ignorando a idiotice dele, e

continuo: ‒ A questão é que... bem, elas... elas são... ‒ gaguejo ‒ sãocuriosamente parecidas, sabe? A cor dos olhos. Os cabelos compridos. Oformato do rosto... ‒ a beleza inquestionavelmente sobrenatural. ‒ E isso estáme enlouquecendo mais do que qualquer coisa porque... Aquela garotanão parecia normal, Sam... e talvez eu... eu não...

Tento falar e raciocinar ao mesmo tempo. Explicar como essa pequenadúvida tem me atormentado durante todos esses anos. A culpa que sintoem meu peito... nunca soube se ela precisa ser tão grande assim ou se nemdevia existir e me castigar desse jeito.

Mas de qualquer forma, está aqui, sempre aqui, me amarrando a ela, me

fazendo senti-la todos os dias da minha vida.‒ Qual é a sua teoria?‒ O quê?‒ Qual é a sua teoria? ‒ Sam repete a pergunta que fez. ‒ Por qual

motivo você acha que elas se parecem tanto? Já pensou em perguntar aAurora sobre isto? ‒ Ele balança a folha de papel.

‒ Não!‒ Por que não?‒ Porque não é tão simples, droga.‒ Discordo, irmão. Acho que é muito simples e acho que você deve ir

vê-la ‒ sugere ele.‒ Como é que é?‒ Vá falar com Aurora ‒ diz, entusiasmado. ‒ Procure saber como ela

está, mas seja discreto... e peça desculpas pelo que Elizabeth fez... Sim!Peça desculpas, seja gentil e ela vai contar tudo o que você quiser saber.

Ele sorri para mim como se fosse a melhor ideia do mundo.‒ Você enlouqueceu?!Não acredito no que está propondo. Será que teve alguma impressão

correta sobre essa garota?Porque eu, com certeza, tive quando conversamos hoje.‒ Escute ‒ diz Sam, vindo para perto de mim, e apoia a mão no meu

ombro esquerdo ‒, sei que Aurora pode não parecer a pessoa mais abertado planeta...

‒ E ela não é.‒ Mas tudo depende do modo como você a conduz.Dou uma risada rouca.‒ Ah, é? E como é que você acha que eu devo conduzi-la? ‒ pergunto,

cheio de sarcasmo.Ele não pode estar falando sério.‒ Seja legal ‒ responde, simplesmente. ‒ E use seu charme, claro...

quero dizer... Você ainda tem charme, certo? ‒ pergunta com um toque deprovocação, que eu opto por ignorar.

‒ Não vai funcionar, irmão ‒ eu falo.Ela não gosta de mim, não falo.‒ Confie em mim, ok? ‒ Ele coloca a outra mão no meu ombro

direito. ‒ Ser educado não é uma tarefa tão difícil assim. Então... quandoo sol se pôr, você vai... digamos que tentar melhorar essa sua aparência,vai vestir uma roupa bonita e deixar o Eric Mau em casa. ‒ Ele alisaminha camisa, piscando o olho. ‒ Cara, ela vai contar até os sonhos delapara você ‒ garante, maliciosamente.

Reviro os olhos, aborrecido.‒ Não misture as coisas, Sam. Eu não tenho nenhuma espécie de

interesse físico nessa garota e além do mais...‒ Não estou falando para você transar com ela. ‒ Ele ri. ‒ Na verdade,

isso é um favor que você faz a uma fila de homens.‒ E você é primeiro da linha, não é?Ele estreita os olhos para alguma evidência no meu semblante, e logo

me arrependo do que falei.Sam amplia o sorriso e dá um passo em minha direção.‒ Qual é o problema? Pensei que tivesse dito que não está interessado.‒ E não estou, seu idiota ‒ reafirmo. ‒ Ela não faz meu tipo.‒ Mulher?‒ Não. ‒ Viro o rosto. ‒ Humana.‒ Até que se prove o contrário, não é? ‒ implica ele, fazendo-me revirar

os olhos. ‒ Mas longe de mim fazer você mudar de ideia ‒ continua comum sorriso estúpido. ‒ Quero ter a chance de vender meu peixe, se não seimporta.

Ótimo!Não sei por que ouvir isso me irrita profundamente, mas tenho vontade

de lhe dizer para ficar o mais longe possível de Aurora. A única coisa queme impede de fazer isso, é a certeza de que serei mal interpretado.Odiaria se meu irmão ficasse achando que sinto alguma coisa por essagarota como metade dos homens das turmas do primeiro ano.

Ele não me deixaria em paz.‒ Boa sorte, Sammy ‒ falo como se estivesse incentivando-o.‒ Não preciso. Mas então, você vai falar com Aurora? ‒ ele ainda quer

saber.Não respondo a pergunta. Não sei se posso fazer o que ele está

sugerindo. Não sei se vai funcionar. Não sei se consigo lidar com umapossível verdade saindo direto da boca dela.

E se eu desejar fazer com Aurora a mesma coisa que fiz com aquelagarota?

‒ Quer saber? Não pense demais ‒ diz Sam, quebrando a minha linhade pensamento, o tom de voz incomumente sensato. ‒ Nós doissabemos que Aurora é o caminho mais fácil, se não o único, a julgar portodo o tempo que você dedicou a procurar esse tal símbolo e nunca oencontrou. E a verdade ‒ acrescenta ‒, bem, é a verdade, não é, nãoimporta como ela venha? Pode descobri-la hoje ou levar mais tempo portentar de outro modo, mas não vai ser diferente.

Fico em silêncio, refletindo suas palavras, e chego a conclusão de queele não está errado... pelo menos não por completo. Talvez Aurora sejamesmo o único caminho, mas não é o mais fácil de jeito nenhum.

Ela é inteligente, muito inteligente e excepcionalmente sensitiva, evirou o jogo durante a nossa conversa pela manhã.

Sim.Tenho certeza de que previu exatamente em que ponto eu queria chegar

e foi cautelosa nas próprias palavras, sem em nenhum instante confirmarou não ao que eu disse. O que a torna uma boa mentirosa. Tão boa aponto de conseguir implantar dúvidas em minhas dúvidas equestionamentos.

Mas admito que foi um papo divertido, o que tivemos. Ela fez o que eupedi. Entreteve-me. É raro uma garota me divertir como ela fez. Será queconsigo uma segunda vez? Será que consigo unir o útil ao agradável?

Hoje.Só há um jeito de ter certeza.‒ Está bem ‒ falo para Sam. ‒ Onde fica a casa dos Harvelle?Ele sorri de empolgação.

Aurora

"Não pode deixar que os outros quebrem sua armadura."

Minha visão entra e sai de foco.

Meu corpo está confortável, em movimento. Meu coração, calmo eestável. A dor sumiu. Há apenas uma lembrança turva que não devia estarali, de uma situação que não devia ter acontecido.

Não consigo lembrar exatamente tudo o que houve. Mas não meesforço. Tudo está bem assim. Tranquilo. Quero voltar a dormir, porém acada segundo que passa me sinto mais desperta, perceptiva.

Estou sentada no banco de um carro. Meu carro. Olho para o lado.Luccas está aqui... Espera. Pisco ligeiramente para ter certeza. Ele estámesmo aqui. Nota que estou de olhos abertos.

‒ Ei, Bela Adormecida ‒ diz, e me dirige um esquivo sorriso amigável.‒ Luccas, o que está fazendo? ‒ pergunto, minha voz soando fatigada.Meu coração sai do ritmo.‒ Tomei a liberdade de levá-la para casa ‒ ele está dizendo. ‒ Não tive

outra opção. Espero que não se importe.Olho para mim mesma em busca de mais respostas. Minha mão direita

está parcialmente enfaixada por uma tala preta que se estende até o pulso,e ainda estou usando o uniforme branco de Educação Física...

Ah!Subitamente as memórias flutuam em minha mente: o rosto

amedrontado de Elizabeth antes de eu arremessá-la a distância... meudesejo incontrolável de machucá-la.

Ah, meu Deus!‒ O que houve?! ‒ pergunto, sentindo o pânico desesperar meu coração.

‒ Aurora, está tudo bem. Você está bem. Não foi nada sério.‒ Mas o que houve?! ‒ Elizabeth? Como está Elizabeth?‒ Você machucou a mão... ou a garota Harley machucou sua mão. Eu

não sei. ‒ Ele me olha de esguelha. ‒ Ela está bem... eu acho.Graças a Deus! Graças a Deus!‒ Foi você quem me tirou da quadra? ‒ Mais lembranças estão surgindo.

‒ Foi você quem me impediu de...Luccas fica visivelmente rígido no banco e dispara os olhos para o

tráfego.‒ Não. Não foi eu ‒ diz baixinho. ‒ Eric Harley fez isso. Ele a levou à

enfermaria. Sua mão estava inchando, precisava de cuidados.Eric?! Minha mão... A dor... Não está mais ali.‒ O que aconteceu depois que eu... depois que eu fui levada? ‒

pergunto, temerosa, imaginando um milhão de coisas ruins.‒ A coordenação chegou detonando com a aula. Defesa Pessoal está

temporariamente fora da ementa de Educação Física ‒ conta ele. Mas nãoé exatamente o que eu quero saber. ‒ Não se preocupe, ninguém estáfalando mal de você e certamente nem será advertida ‒ acrescenta, meespiando. ‒ Elizabeth foi uma covarde. Todo mundo viu. Você só sedefendeu, e muito bem por sinal.

Ele sorri. Não sei se está sendo sincero ou se apenas quer metranquilizar.

‒ Obrigada ‒ murmuro mesmo assim, grata por ele se preocuparcomigo. ‒ Para aonde está me levando? ‒ Olho pela janela.

‒ Para casa, é obvio. ‒ Ele sorri outra vez. ‒ Achei melhor não ligar paraHenry...

‒ Você são amigos?! ‒ indago, reparando na leveza como disse o nomedo meu irmão.

Eu devia ter imaginado. Ele está me levando para casa. Não faria isso senão soubesse onde e como chegar lá. Luccas fica desconcertado.

‒ Mais ou menos ‒ responde meio hesitante. ‒ Eu precisava de umemprego para continuar pagando a escola e seu irmão, como beneméritodo Centro, generosamente me ofereceu um e uma bolsa integral também‒ conta, as bochechas coradas. ‒ Ele é uma ótima pessoa. Vocês são muitoparecidos nisso, Aurora.

Pela primeira vez, Luccas olha fixamente para mim, aproveitando que osemáforo está vermelho, o que me dá a oportunidade de analisar umpouco do seu rosto: a linha forte da mandíbula, o nariz anguloso e reto, asmaças definidas e o pouco de verde nos seus olhos castanhos.

Atraente. Ele até que é bem atraente.Como não percebi isso antes?‒ Você tem irmão? ‒ pergunto, uma curiosidade boba de alguém que

quase nunca teve uma conversa do tipo.Luccas desvia o olhar e arranca o carro quando o sinal fica verde.‒ Não. Mas queria ter. Infelizmente somos só minha mãe e eu ‒ diz ele,

dando um suspiro que me soa chateado, e por isso decido não perguntarmais nada. ‒ Meu pai é separado da minha mãe, sabe? Não o vejo há umano. Acho que se casou de novo e mudou de cidade ‒ revela ele.

‒ Sem falar com você? ‒ Não consigo conter a acusação.Luccas encolhe os ombros e ri ‒ um riso amarelo e amargo ‒, e aperta as

mãos no volante de modo que os músculos do seu antebraço ficam emdestaque sob a camisa branca social do uniforme.

‒ Não temos uma relação muito boa. ‒ Ele suspira de novo, e acho queé a hora de parar com o interrogatório. Fico calada. É quando elepergunta: ‒ Quantos anos você tem?

‒ Dezenove.‒ Caraca! ‒ Luccas assovia, impressionado.‒ O que foi? Muito velha para você? ‒ brinco, bem-humorada.‒ Nem um pouco ‒ responde ele, sem hesitar. ‒ Não me importo tanto

assim com números, na verdade. Mas se caso eu me importasse, suadelicadeza compensaria tudo.

‒ Minha delicadeza? ‒ Acho que nunca dei um sorriso tão grande navida.

‒ Você sabe que é adorável, não sabe? E linda ‒ diz ele, casualmente. ‒Quero dizer... Como poderia não saber? Você se olha no espelho, certo?

Uma risada alta sai de minha boca. Acho que nunca ri assim também.‒ Você sabe. Eu sei que você sabe ‒ diz ele, balançando a cabeça. ‒ Eu

tenho dezessete, a propósito.‒ Não parece ter dezessete.‒ O que foi? Muito novo para você? ‒ dispara ele, os cantos da boca

tremendo, e afasta os cabelos castanho-avermelhados caídos na testa e nasorelhas.

‒ Não me importo com números ‒ respondo, divertindo-me. ‒ Mas secaso eu me importasse, seu carisma inquestionável compensaria tudo.

‒ Sério?‒ Muito sério.‒ Uau. Acho que você acabou de deixar meu dia muito melhor ‒ diz

ele, e estou dando boas risadas de novo.‒ Não há de quê.Olho para o lado e encontro seu rosto calmo e alegre concentrado no

trânsito. Nenhum de nós dois diz mais nada, e o silêncio é atéconfortável. Num dado momento, me flagro novamente analisando ogaroto ao meu lado. Como se fosse a primeira vez, mas ainda assim comum olhar diferente do qual o nosso verdadeiro primeiro encontro.

Um olhar mais atento. Mais interessado.E nesse meio tempo, por toda a conversa que tivemos, admito para mim

mesma que estou gostando desse tal "contato humano", que sou melhornisso do que eu esperava e que gosto ainda mais de Luccas; que estouencantada por sua despretensiosa gentileza, sua tendência a me fazer rir,sua... beleza discreta e genuína espalhada em cada centímetro do seucorpo alto e definido.

Sim. As aulas de natação provam isso perfeitamente bem.Viro o rosto, mordendo o lábio.No que estou pensando?Afundo o corpo no banco de couro do carro e durante todo o caminho

para casa, não paro de lutar contra palpitações nervosas e sorrisos bobos. ‒ GOSTARIA DE ENTRAR? ‒ PERGUNTO, saindo do automóvel.Luccas acabou de estacionar na entrada de carros da mansão de Henry.

É como pensei: ele sabe onde moro. Já deve ter vindo aqui, mas nãopenso em perguntar para confirmar, uma vez que isso não tem muitaimportância.

Ele contorna o carro, mexendo no celular, e vem se postar na minhafrente, sorrindo. Ele está sempre sorrindo, até mesmo quando estáenvergonhado.

‒ Chamei um táxi a caminho daqui. Já deve estar chegando, masobrigado pelo convite ‒ diz ele e me devolve a chave.

‒ Obrigada por ter me trazido em casa. Não queria ter dado trabalho.‒ Sem problemas. ‒ Luccas sorri, pondo as mãos nos bolsos da calça. ‒

Você não estava em condições de dirigir, e foi um prazer ser seu personalchofer e dar uma volta nessa belezinha. ‒ Ele aponta para o F-type.

‒ Ahh ‒ implico, séria ‒, então foi por causa do carro?‒ Não! Qual é! Você me ouviu? Eu disse que foi um prazer ser...‒ Eu sei, eu sei. Estou brincando com você.‒ Engraçadinha.‒ Ei, tem certeza de que não quer entrar? ‒ pergunto de novo, e dois

segundos depois ouço um som de buzina.Fico surpresa comigo mesma por ficar chateada.‒ O táxi ‒ diz ele, e posso notar que também está descontente. Um

veículo surge além dos portões. ‒ Vejo você amanhã?‒ Claro, mas... ‒ hesito, mordiscando o lábio. ‒ Eu devia pagar por sua

viagem para casa. Por favor, me deixe fazer isso.Ele está balançando a cabeça antes que eu termine a frase.‒ Nem sonhando, madame. Posso bancar minha viagem para casa,

obrigado.‒ Sei que pode, mas...‒ Não. Não. De jeito nenhum. ‒ Sua recusa é irredutível. Não

conseguirei demovê-la. ‒ Mas se quiser mesmo me recompensar, vocêpode... humm, eu não sei... me convidar para um churrasco aqui na suamansão, talvez?

‒ Ah, meu Deus. Quanta criatividade, Luccas ‒ digo ironicamente.O táxi buzina outra vez com mais urgência. Ele começa a andar de

costas.‒ Ok, esquece o churrasco. Foi idiotice. Um cinema, talvez? ‒ sugere,

esperançoso.Sorrio. Ele fica em êxtase.‒ Posso cobrar?‒ Com certeza. ‒ Aceno em despedida.

À TARDE AS HORAS se recusaram terminantemente a passar rápido,obrigando-me a permanecer o tempo todo em movimento numa lutacontra o tédio.

Não funcionou muito bem.Recostada a cabeceira da cama, depois de nada conseguir me entreter

por mais de dez minutos, admiro a decoração sutil e harmoniosa doquarto e tento não pensar na razão de minha impaciência...

Sim, eu sei o que está me deixando impaciente, mas não devo pensar nisso.E continuo focada nos detalhes do cômodo.Todo o aposento é uma mistura calculada de três cores. Os móveis são

todos brancos com detalhes em dourado ‒ estantes, prateleiras, criado-mudo, sofás, poltrona ‒, e as paredes, forradas por um painel cor-de-rosaestampado com desenhos de bailarinas, sinos e estrelas bordados em ouro.Esses mesmos desenhos foram desenhados no gesso do teto.

É mesmo muito bonito.Já é hora do crepúsculo quando, entediada, ligo a tevê novamente e

zanzo pelas centenas de canais à procura de algo que possa me entreter.Por fim, estaciono em um filme musical que aparenta ser bem animado.Estou balançando o pé no ritmo da canção que está tocando quando ouçoa porta do meu quarto sendo aberta.

Henry!Escorrego a mão direita para debaixo da coberta e mantenho-a ali

conforme ele cruza o quarto carregando uma sacolinha, senta-se à beiradada minha cama e abre um sorriso compassivo que me faz sentir uma idiotaderrotada.

Ele já sabe. Droga!‒ Você andou brigando? ‒ pergunta, muito calmamente.‒ Quem disse isso?!‒ A tala envolta da mão que você está escondendo. ‒ Ele puxa o lençol.

‒ Eu não sou cego, Aurora.Merda!Evito olhá-lo nos olhos como se fosse, de alguma forma, culpada, mas

ele suspende meu rosto com a ponta do dedo, fazendo-me encontrar suafeição preocupada.

‒ O que aconteceu? Quem foi a vítima? ‒ pergunta, um toque de

diversão insuficiente para mascarar sua aflição.‒ Eu. E você disse que não era cego. ‒ Levanto a mão enfaixada,

evitando fazer beicinho como uma criança de cinco anos.Ele segura minha mão, sendo cuidadoso, e passa os dedos sobre a tala

com um ar de quem está imerso em pensamentos.‒ Achei que você estava sob controle ‒ diz enfim, suave, preocupado. ‒

Achei que... esse tipo de coisa tinha parado de acontecer. O que houve,afinal de contas?

Boa pergunta.‒ Eu... eu não sei. Perdi a cabeça. Sinto muito. Sinto muito mesmo ‒

sussurro debilmente, mexendo na ponta da almofada cor-de-rosa edourado.

‒ Com quem você estava praticando?Oh, não!‒ Isso interessa?‒ Maninha...Alguém escolhe esse momento para bater na porta, e eu afundo na

cama, aliviada pela interrupção. Henry olha por cima do ombro.‒ Entre.Cecília coloca a cabeça e parte do corpo para dentro do quarto, vestida

com um uniforme escuro composto por calça e camisa social. Seus cabelossão curtos e castanhos, presos num rabo de cavalo alto.

‒ O senhor tem visita ‒ informa ela em sua postura séria habitual.‒ Descerei num minuto.‒ Sim, senhor. ‒ Ela sai após fazer um gesto meio reverente.Eu reviro os olhos.‒ Você com certeza não exige essa formalidade toda, exige? ‒ pergunto

apontando para a porta fechada.‒ Não. Não exijo ‒ murmura ele. ‒ Mas nada de mudar de assunto,

mocinha. Com quem você estava praticando?Eu suspiro sabendo que não tenho outra alternativa e coloco para fora:‒ O nome Elizabeth Harley diz alguma coisa para você?Ele arqueja alto, rindo, mas há medo e receio escurecendo seus olhos.

Sabe o que poderia ter acontecido. Sabe do que sou capaz. Eu quase meexpus ‒ de novo ‒ e duvido que desta vez tivesse a sorte de ser

inexplicavelmente acobertada.‒ Aurora ‒ diz ele, e não há nenhuma censura na voz ‒, você deve saber

que os Harley...‒ Eu já sei ‒ sussurro, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da

orelha. ‒ Conheci os filhos da sua amiga Ayla. E a sobrinha dela também.‒ Faço uma careta. ‒ Você não imagina como Elizabeth me adora ‒ironizo.

‒ Ela está bem, não está?Faço que sim com a cabeça. Fito minhas mãos. Odeio o que elas podem

fazer. Odeio a mim mesma. Minha estranha natureza que me tornaincontrolável e perigosa. Uma ameaça.

Desde de sempre.‒ Você não pode continuar fazendo isso ‒ Henry me diz. Pega meu

rosto entre suas mãos. ‒ Não pode deixar que os outros quebrem suaarmadura. Não pode permitir que eles testem seu autocontrole. Sua estadaaqui depende disso. E um gesto em falso... ‒ ele engole em seco. ‒ Aurora,um gesto em falso e todos saberão. Você não quer isso, quer?

Suspiro outra vez. Henry está certo.‒ Prometo que vou tomar cuidado ‒ sussurro em súplica. ‒ Prometo

que vou me controlar ainda mais. Mas, por favor, não conte a mamãe... oque houve.

Ele abre um sorriso complacente e sei que posso contar com seusilêncio.

‒ Não direi uma só palavra ‒ promete. ‒ Mas lembre-se do que papailhe ensinou ‒ diz ele. ‒ Ache seu...

‒ Ponto de equilíbrio ‒ completo.‒ Isso aí. ‒ Henry beija minha testa com ternura. Recua para se

levantar. ‒ Preciso ver quem está lá embaixo. Tome. Algo para alegrar suanoite. ‒ Ele estende a sacolinha de presente.

‒ É muita gentileza sua. ‒ Apanho o pacote e o abro.Quase dou um grito, mas me contenho.É um DVD. Nada mais nada menos do que o DVD da minha versão

favorita do meu videogame favorito.Tomb Rider.Ahhhhhhhhh!!!

Estou comemorando e agradecendo ao mesmo tempo igual a umacriança no dia de Natal. Henry implica comigo, assistindo à minhaeuforia.

‒ Acho que lhe sobraram três dedos para controlar o joystick, não?‒ Tão malvado... ‒ Dou um sorriso amarelo de pura brincadeira. ‒

Onde eu encontro um Xbox por aqui?‒ Na sala de jogos, é óbvio.‒ Você tem uma sala de jogos?!‒ Sim. Ao lado da biblioteca.‒ Por que não me disse antes?!‒ Não me lembro de você ter me perguntado.Paro a discussão boba e saio da cama sem nem me importar com o que

estou vestindo.‒ Nos vemos amanhã ‒ falo a Henry.‒ Ei, mocinha, nada de ficar acordada até tarde ‒ diz ele, tão paternal,

que acho super engraçado.‒ Combinado. ‒ Volto para deixar um beijo em sua bochecha e saio do

quarto saltitando.Sem conseguir conter meu entusiasmo, disparo às pressas à porta ao

lado da biblioteca, no terceiro andar. Chegando lá, eu giro a maçaneta eentro no cômodo que está escuro. Minha mão boa tateia a parede atéencontrar o interruptor e acender as luzes...

Uau!A sala é bem espaçosa, quase do tamanho do meu quarto.Há uma mesinha de sinuca no canto leste, um sofá comprido e baixo

em frente à tevê gigante; poltronas em formato de L próprias para jogarvideogame e outra mesa redonda no canto oeste, rodeada de cadeiras deestofado escuro.

Eufórica, corro para ligar a televisão e o Xbox, em seguida insiro oDVD. Escolho a dificuldade de combate e aguardo o início da história.

No momento em que a voz de Lara Croft, a protagonista super sexy eesperta, sai das caixas de som, eu me sinto de volta ao meu antigo quartono Rio de Janeiro e sei que em poucos minutos estarei perdida no seuuniverso de aventura e sobrevivência.

Apesar de já ter jogado várias e várias vezes, não consigo deixar de

apreciá-lo como a primeira vez. É viciante.Me aprumo no sofá, sorrindo.A luz da televisão se apaga momentaneamente quando Lara cai no

oceano, após o navio em que ela estava, começar a pegar fogo e naufragar.É só alguns segundos. O suficiente para que eu registre através da telauma figura humana.

Meu coração para de bater, volta e dispara.Fico de pé num pulo e rodopio nos calcanhares.Eric Harley está parado ao lado da porta feito uma assombração.

Eric

"Pode ser que isso me destrua."

À medida que caminho para o carro, visto a jaqueta de couro por cima

do suéter de gola v e, sem razão aparente, corro os dedos nos cabelos. Aideia de que eu possa estar nervoso perpassa minha mente, mas eu aignoro. Sam está acenando para mim da varanda com um sorriso imbecil.Ergo o dedo do meio para ele e entro no I8.

Não acredito que estou mesmo fazendo isso.Respiro fundo, e antes que eu desista desta furada, começo a dirigir.No trajeto para a mansão de Henry, inevitavelmente, repenso minha

decisão, meus motivos, minhas influências. Dar ouvidos a Sam ‒ onde euestou com a porra da cabeça?

Aurora pode simplesmente não me revelar nada e tudo terá sido umagrande perda de tempo... Quero dizer... Não. Não será. Farei com que, dealgum jeito, meu esforço valha a pena. Sem contar que finalmente ireiconhecer Henry, o milionário filantropo da Ilha de Íris. Melhor amigo deAyla. Irmão de uma garota suspeita e desequilibrada e que possivelmentevoltou dos mortos.

Com certeza alguém que preciso ter um encontro cara a cara.Reduzo a velocidade ao me aproximar dos gigantes portões de prata

ornamentados e paro junto a um suporte fixo de metal. Sem sair do I8,pressiono o botão do interfone pela janela aberta e, em menos de trintasegundos, recebo uma resposta.

‒ Residência dos Harvelle. ‒ Não é a voz de Aurora.‒ Aqui é Eric Harley. Eu gostaria de falar com... com Henry.‒ Só um momento, Sr. Eric.

Quase que imediatamente os portões se escancaram para mim com umbarulho suave. Conduzo o automóvel pela imensa entrada para carros,seguindo o largo caminho de arenito branco. Muros de quase três metrosde altura ladeiam a propriedade e estão enfeitados por uma cortina deflores rosas e brancas.

Por entre palmeiras imperiais, delimitando o pequeno jardim e umafonte com chafarizes, avisto as colunas da majestosa mansão de trêsandares. Do lado esquerdo, além do imenso gramado verde e bem-cuidado, a iluminação da área de recreação reflete no muro. Depois devirar nessa direção, estaciono próximo a um impressionante Jaguarvermelho.

É o carro dela.Minha pulsação dispara, mas finjo não perceber. Abro a porta e saio do

I8, ajeitando o cabelo e jaqueta preta. Não sei por que faço isso.Conforme caminho às escadas que atendem a varanda, recomeço a pensarse esta visita é uma boa ideia, e na altura em que alcanço a soleira, já mearrependi de ter vindo.

Mas é tarde demais.Uma jovem muito bonita de cabelos ruivos e olhos azul-céu está

abrindo a porta para mim, e me convida a entrar com um sorriso.Não seja idiota, Eric, repreendo-me.‒ Boa noite, Sr. Eric. Aceita alguma coisa para beber? ‒ pergunta ela,

extremamente atenciosa, guiando-me a uma luxuosa sala de estar com pédireito duplo, mezanino e cortinas d'água.

Em meio aos móveis branco e bege, identifico um lindo piano de caudapreto encaixado no canto e me pergunto se Aurora toca, mas depois deum minuto, penso que, na verdade, não me interessa.

Viro para a garota ruiva que está esperando uma resposta e, treinandomeu charme, repuxo os lábios num sorriso sedutor, respondendonegativamente a sua pergunta com uma voz suave.

Ela pisca os olhos azuis arregalados e arqueia a sobrancelha.Tudo bem, acho que fui longe demais.‒ Obrigado ‒ acrescento, encurtando o sorriso.‒ Não há de quê, Sr. Eric. Com licença. ‒ Ela faz um aceno mínimo e

foge da sala de estar, deixando um cheiro de avelã doce para trás.

Bagunço os cabelos ao deslizar a mão por eles e me xingo empensamento. Sabia que não devia ter vindo aqui, que não devia ter dadoouvidos a Sam.

Não sei agir como ele, droga.‒ Eric?! ‒ uma voz masculina troveja na sala de estar, animada e

surpresa. ‒ Que prazer conhecê-lo, meu jovem. Como vai? ‒ Henry estádescendo a monumental escada em meia lua, e quando para na minhafrente, estende o braço.

‒ Ótimo. ‒ Nosso aperto de mão é firme. Meus olhos avaliam seustraços humanos com discrição. ‒ Espero não estar atrapalhando algumacoisa. É um prazer conhecê-lo também.

‒ Não se preocupe ‒ diz ele, à vontade, acomodando-se no sofá, e indicaa poltrona que ocupo logo em seguida. ‒ Você é sempre bem-vindo, rapaz.O que está achando da cidade das flores?

Contenho o desejo de falar a verdade ao pé da letra.‒ Surpreendente. Muito surpreendente. ‒ Sim, sim. Sua irmã voltou do

além. Não esperava por essa. A propósito... ‒ Onde está Aurora? ‒ pergunto,sem mais preâmbulos, e uma surpresa incontida se insinua no rosto deHenry.

‒ Está aqui por causa dela?Não... Sim...Por que ele parece tão impressionado?‒ Aurora sofreu um pequeno acidente na aula de Defesa Pessoal..., e,

bem, eu gostaria de saber como ela está passando. ‒ Meu tom de voz éconvincente, eu acho.

Henry sorri abertamente para mim, sua surpresa sendo apagada portraços sutis de malícia e outra emoção que não está muito visível.

Tento permanecer inalterável.‒ Fico feliz que tenha conhecido minha irmãzinha ‒ diz ele, mas agora

está impassível, de modo que não posso ter certeza se está sendo honesto.‒ Ela é... uma mulher muito encantadora ‒ balbucio por falta do que

falar.‒ É o que todos dizem.Ele continua a sorrir misteriosamente, em seguida agradece pela coleção

de joias que desenhei há alguns meses quando ainda estava na Inglaterra,

estudando Arquitetura.O trabalho é em nome de uma boa causa ‒ ainda que eu não me

importe tanto com esse tipo de coisa. Mas o dinheiro das vendas serádoado ao hospital de câncer da cidade, e tenho de admitir que há umalívio em meu âmago de não ser responsável por mais mortes, se possoevitar.

‒ Obrigado por ter me escolhido ‒ murmuro apenas.‒ Você é um jovem muito talentoso, Eric ‒ comenta ele, o olhar

inescrutável de novo, me encarando.Qual é a desse cara?Agradeço outra vez, encarando-o também, até que ele se desencosta do

sofá, deslizando as mãos na calça, e diz:‒ Bem, não irei mais tomar seu tempo. Vamos lá encontrar Aurora. Ela

está na sala de jogos.Henry fica de pé e me guia até o andar superior pelas escadas. Meu

coração estúpido volta a acelerar. Escorrego a mão nos cabelos umaterceira vez nesta noite.

Pare com isso, Eric.‒ Bela casa ‒ comento apenas para ignorar a aceleração no meu peito.Ele agradece e tagarela sobre Ayla ter comentado sobre a ausência de

um jardim maior e outras coisas que não consigo prestar atenção nem sequisesse.

Suspiro internamente para desfazer os nós que o nervosismo estácriando no meu estômago. Isso não combina comigo.

Quando alcançamos o terceiro andar, ele aponta para a porta no finaldo corredor.

‒ É aquela ali. Acho que está aberta. Vou deixá-los à vontade. Gostariade algo para comer e beber?

‒ Não, obrigado. Prometo não demorar.‒ Sem pressa, meu rapaz. ‒ Ele aperta meu ombro, dá uma piscadinha e

volta pelo caminho que viemos.Percorro o corredor iluminado na direção em que Henry apontou,

meus passos vagarosos e hesitantes. Ao alcançar a entrada do quarto, notoque a porta está realmente aberta.

Aurora encontra-se sentada no sofá, concentrada em algo na tevê.

Distraída.Permito-me uns segundos em que apenas admiro a silhueta de suas

costas. Mas antes que eu possa prever e me preparar, ela está de pé, meencarando com olhos arregalados.

‒ Você!Sim, eu.Será que ela estava esperando outra pessoa?Meu irmão, talvez.‒ Oi, amor.Espero as lembranças de uma noite antiga surgirem na minha mente e

me roubarem o controle, mas minha cabeça permanece limpa e quieta.Por quê?Os olhos de Aurora examinam meu corpo dos pés à cabeça, sua

expressão inicial de choque logo sendo substituída por uma de admiração.Meu ego gosta disso. Meu corpo gosta do seu olhar arregalado, a boca

levemente entreaberta...Puta merda!‒ Assustei a senhorita? ‒ pergunto no tom mais doce que consigo e

aproveito para interromper meus pensamentos indecentes.Mas ela está vestindo um camisão de linho pequeno demais para o

corpo. A peça é folgada e deixa suas longas pernas torneadas de fora,impedindo muito facilmente que eu contenha minha imaginaçãodesvairada ou a direção dos meus olhos.

Quantos anos você tem, afinal, Eric? Quinze?‒ Como entrou aqui? ‒ questiona ela, absolutamente séria, fria,

externando um descontentamento em me vê que não é tão sincero.Não resisto à sorrir, irônico, divertindo-me com sua tentativa de

disfarçar.‒ Pela porta ‒ gracejo.‒ Quem deixou o senhor subir?‒ Seu irmão. Posso entrar? ‒ Adianto-me já que não me convidou.‒ Já está dentro ‒ responde, ainda sem baixar a guarda.Pode ser que não me queira mesmo aqui, mas não posso ir embora.

Não ainda. Não sem tentar amansar essa linda fera.Sim, apesar de tudo, ela é linda. Ainda mais linda do que a garota do

meu passado. Não posso negar. Ela tem os olhos dourados mais claros eredondos e luminosos que já vi; e os cabelos mais longos e pretosquanto a noite mais escura; sua pele cor de canela é imaculada, atraenteao toque e...

E eu não devia estar pensando em nada disso.Contenha-se, Eric, pelo amor de Deus.De volta ao sofá, Aurora rapidamente se acomoda sobre as pernas e

puxa uma almofada para o colo. Reprimo o riso, apertando os lábios, e medetenho atrás do móvel, aguardando que ela esconda suas coxas.

Vai ser melhor para nós dois, querida.‒ Sente-se, Eric, pelo amor de Deus. Odeio que as pessoas fiquem de pé

atrás de mim quando estou fazendo algo.‒ Já que pede com tanta delicadeza, Vossa Graça. ‒ Não consigo evitar o

sarcasmo com ela.Isso a irrita e irritada ela fica ainda mais bela.Contorno o sofá e sento o mais distante que o espaço permite. Pela

primeira vez desde que entrei no quarto, reparo na tala em sua mãodireita e no que a estava entretendo antes de eu aparecer: Tomb Rider.

‒ Sammy adora esse jogo ‒ me ouço dizer, lembrando que por causadele estou aqui e o que vim fazer.

‒ Seu irmão não gosta de ser chamado assim ‒ comenta ela, distraída,os olhos grudados na tevê.

‒ Como a senhorita sabe? ‒ pergunto sem olhá-la, analisando seuspassos no jogo. ‒ A passagem não é por aí ‒ corrijo no automático. ‒ Dê avolta e siga pela outra entrada ‒ oriento.

‒ Ele me contou e não queira ensinar o padre a rezar a missa, está bem?!Conheço esse jogo de trás para a frente.

‒ Se soubesse não estaria indo pelo lugar errado ‒ rebato e, apesar deser um péssimo jogador, pesco o controle tendo o cuidado de não tocarem sua pele.

‒ Mal educado ‒ murmura ela, e quero dizer que está sendo injustacomigo.

Pelo canto do olho, vejo-a cruzar os braços no peito e me estudar comextrema atenção.

Tudo bem, não foi uma boa ideia.

Tire os olhos de mim, amor. Apesar do que lhe disse pela manhã, tenho ainexplicável e terrível sensação de que pode me ver pelo que realmente sou.

E isso está decididamente fora de questão.Estou quase devolvendo o joystick quando Aurora pergunta,

desdenhosa e como quem não quer nada, mais uma vez tentando encobriros sentimentos.

‒ Então ‒ seus dedos sadios tamborilam na almofada ‒, a que devo odesprazer de sua visita?

Cara.‒ E eu que sou o mal educado ‒ digo baixinho.Ela ri... e, caramba, ela ri como uma criança de quatro anos. Sua risada

me gera vontade de rir. É impossível segurar.‒ A senhorita devia rir com mais frequência ‒ as palavras escapolem da

minha boca com mais naturalidade do que eu empregaria se estivessepensando direito.

Mas não estou.‒ O que quer dizer?‒ Que devia rir mais vezes ‒ saio pela tangente, desviando os olhos.Ela se remexe no sofá, e simultaneamente sinto a atmosfera mudar ao

nosso redor. Sentimentos de confusão e desconfiança disputando espaçocom o ar meio descontraído que nos envolvia.

Merda!‒ O que está fazendo aqui, Sr. Eric? ‒ pergunta ela quase soletrando as

palavras.Ah, meu nome em sua boca. É diferente de todo modo que já escutei.

Tem sotaque. Aposto cem paus que ela já morou fora do Brasil.Aurora está me admirando, está aguardando uma resposta.‒ Eu vim aqui para vê-la ‒ digo, debilmente, esperando que minhas

palavras soem sinceras aos seus ouvidos.Ela ri, não como se estivesse duvidando, eu acho.Está delicadamente surpresa.Pauso o jogo, interrompendo os lamentos de Lara Croft, e movo o

corpo na direção de Aurora. Preciso ver seu rosto, seus traços faciaisque entregam seus pensamentos e suas emoções para mim. Mas, pelaprimeira vez, nada consigo enxergar no semblante que ela carrega.

‒ O senhor veio... me vê? ‒ indaga ela.Faço que sim com a cabeça. Ela ri. De novo. Quatro anos de idade

nesse som cômico. Fico me sentindo um idiota. Ela não acredita mim. Éclaro que não. Preciso cair fora dessa parada estúpida, antes que asituação se torne ainda mais humilhante. Mas não consigo me levantar,porque no fundo, bem lá no fundo, por um motivo errado, não quero irembora.

E não compreendo.‒ Estou aqui ‒ murmura Aurora.‒ Como?‒ O senhor queria me ver. Eu estou aqui. E agora?E agora?‒ Desculpe ‒ sigo o conselho de Sam. ‒ Desculpe pelo que Elizabeth lhe

fez e também ‒ acrescento, inspirado ‒ desculpe por todas as coisas quelhe disse mais cedo. Eu não devia... não devia ter sido daquele jeito. Foitotalmente inapropriado. ‒ Boa, Eric! ‒ E foi mesquinho. Não quis julgá-la. Não foi minha intenção. A senhorita apenas se parece muito comalguém que... ‒ m a t e i ‒ conheci... há algum tempo... E seuolhar me encara como se me conhecesse ou como se quisesse medescobrir. E eu só... só não entendo e não consigo parar de encará-latambém.

O ar se transformou de novo enquanto eu estava falando. Ficou e aindaestá carregado de uma emoção intensa e penetrante. Pulsando.

Viva.Estou mais perto de Aurora e nem percebi que me mexi. Ela está com

os lábios carnudos apartados, mais uma vez atraindo os meus olhos, e ficoimpressionado com o desejo que me arrepia a pele.

Eu deveria me afastar, mas na verdade, não quero.‒ Uau! ‒ diz ela, num suspiro. Pisca. Pisca outra vez. ‒ Uau. Ei, hum,

acho que... Estou confusa. ‒ Ela põe as mãos nas laterais do rosto. ‒ Oque o senhor disse? ‒ pergunta, o cenho franzido.

Ela quer que eu repita tudo aquilo?Não sei se consigo lembrar das palavras que saíram da minha boca,

especialmente agora que estou cem por cento centrado na sua presençatão próxima e ansiando descobrir se seu sabor é tão delicioso quanto o

seu cheiro.Só um pouco...Ela abaixa a cabeça, sacudindo-a, e enfia os dedos nos cabelos. Então eu

vejo ‒ indistintamente ‒ a marca em sua nuca; a única imperfeição no seucorpo perfeito; a que me deixa arrepiado e fora de controle.

Foi para isso que veio aqui, Eric.Porra.Ela está me distraindo!‒ O que é isso no seu pescoço?Aurora levanta o rosto muito rápido, após absorver minha pergunta

direta e ligeira.É agora ou nunca. Tudo ou nada.‒ O que disse?Quero e não quero retirar o que falei. Quero e não quero ouvir sua

resposta. Pode ser que isso acabe mal. Pode ser que isso me destrua. Podeser que isso destrua a nós dois.

Mas eu preciso saber.‒ Eric...‒ Reparei... ‒ murmuro, inexpressivo. ‒ Reparei que a senhorita tem...

algo na parte de trás do pescoço. ‒ Analiso sua reação a cada palavra quesai de minha boca. ‒ Não precisa responder se não quiser.

Mas se não falar, ficarei ainda mais curioso.‒ Ahh ‒ ela ri, e eu não esperava. ‒ Tudo bem. Não é nada demais.

‒ Não? Não?! ‒ É só uma... estranha marca de nascença ‒ conta, fazendoum gesto banal com a mão enfaixada.

E eu entro em conflito.Porque quero acreditar. Quero crer que essa porcaria não passa de uma

coincidência sinistra. Mas passei a conhecer demais sobre este mundo e vique nada é o que parece. Ela pode estar mentindo para mim. Ela podeestar representando um papel, como eu preciso representar todos os dias.

‒ Por que “estranha”? ‒ pergunto. Não posso perder o foco agora.‒ Porque... ‒ ela ecoa a palavra, sem saber como explicar, presumo. E

meu coração trepida de ansiedade.Eu sabia!Nesse momento, Aurora solta um suspiro de rendição e diz:

‒ Ok. Lá vai. ‒ E começa a desabotoar a roupa.Minha respiração fica entalada na garganta durante todo o momento

em que ela desliza os dedos nas lapelas da camisa e abre os três primeirosbotões.

Que inferno!Quando ela sobe o olhar, mal consigo segurar a malícia e a sinceridade.‒ Por favor, não pare por minha causa, amor.Em resposta, ela abre um sorriso diabolicamente descarado.‒ Calma, garoto. Não vou ficar nua para você.E tenho de confessar, suas palavras mexem comigo de uma forma

violenta, bem lá dentro. Estou saindo dos trilhos novamente.Mas é ela quem me põe de volta, no instante em que gira o corpo para

se posicionar de costas, remove algumas mechas que escaparam do cabelopreto trançado e desliza um pouco das mangas do camisão para que eupossa observar claramente a estrela na base do seu pescoço e uma palavratatuada em letra cursiva na linha do ombro esquerdo.

Equilíbrio.‒ Foi ficando mais nítida com o passar dos anos ‒ diz Aurora, roçando

os dedos na marca escura e circular na nuca. ‒ Os símbolos... não sãonada que eu já tenha visto antes. Minha avó, a mãe da minha mãe, contoupara ela que marcas assim, às vezes, são heranças de vidas passadas...

Paro.Paro de ouvir.Paro de respirar.Uma corrente elétrica percorre minha coluna vertebral e não

desaparece. Fica latejando contra os meus ossos, meu sangue e minhapele. Cerro os olhos, mas continuo vendo a mesma maldita imagem...

Em um cenário diferente.Acho que há sangue quente na minha boca. Muito sangue. Sinto os

familiares espasmos nos dedos e meus músculos se alongam por vontadeprópria...

Não! Tenho que sair daqui.‒ Eric?Uma voz macia acaricia os meus ouvidos repentinamente... um toque

na minha pele. Estou de cabeça baixa, encarando os joelhos em uma

tentativa vã de recusar meus instintos, negar suas vontades.Tenho mesmo que sair daqui. Agora.Rezando para que minhas feições estejam normais, eu subo o olhar e

miro o rosto pequeno, perfeito e preocupado de Aurora Harvelle. Afastominha mão da sua com cautela.

‒ Você está pálido! ‒ comenta ela, estudando-me.‒ Estou bem. ‒ Preciso ir embora. ‒ É uma marca e tanto ‒ balbucio, já

saindo do sofá, testo a estabilidade de minhas pernas.Ela me acompanha, recompondo-se, deixa a almofada para trás, fica de

pé.‒ Não, não é ‒ ela me contesta em voz alta. ‒ É feia e sinistra. Eu não

gosto, e ninguém que já a viu achou que é uma marca e tanto. Você nãoprecisa falar isso, porque não é verdade. Vai dizer que não me acha umaanomalia por nascer com um troço desse no pescoço?

Ela está brava. Mãos na cintura. Pode estar batendo o pé.‒ É isso que as pessoas falam para você?‒ Como?!‒ Você é mesmo um pouco estranha.Você é a reencarnação daquela garota. Você é, você é, e não sei por que não

pensei nisso antes, não sei por que não imaginei, desconfiei...Ela pisca, chocada. Brava. Revirando os brilhantes olhos dourados.

Bagunçada dos pés à cabeça. E mais linda do que nunca.Ela é um perigo.‒ Me deixe sozinha, por favor ‒ murmura, implorando docemente.É a forma mais educada de ser colocado para fora. Eu esperava coisa

pior.‒ Está bem. ‒ Saio marchando em direção à porta.‒ E se contar isso a qualquer um, eu corto sua língua ‒ diz em alto e

bom som.Paro na soleira sorrindo de modo sombrio.Ela acabou de me ameaçar. Que hilário.‒ Estarei esperando, amor ‒ digo e vou embora de uma vez. FUJO PARA O MEU quarto às pressas no momento em que piso os pés na

mansão. Preciso urgentemente de um banho. Preciso arrancar a presença

dela de dentro de mim. Preciso remover o cheiro de flores da minha pele.Agora.Arranco a jaqueta e o suéter, mas paro abruptamente no meio do passo

a destino do banheiro.Elizabeth está estirada na minha cama!Olho de novo.Elizabeth está estirada na minha cama!Que palhaçada é essa?!Sua música favorita de Zayn está tocando no sistema de som do quarto.“Pillowtalk”.‒ Que diabo você pen...Ela se ajoelha no colchão de modo que posso enxergá-la com mais

clareza.Maldição!Ela está vestindo apenas uma camisola vermelha, longa e transparente...

sem nada por baixo!Impossível não perceber.Cacete!Eu nunca a vi dessa forma e recebo uma descarga imprevisível de

surpresa por realmente gostar do que meus olhos veem.O que está acontecendo comigo?!‒ Você perdeu a porra do juízo? Saia do meu quarto agora ‒ digo

atropeladamente, indo até a cama para arrancá-la dali.Mas ela já se levantou, está lendo algo no meu rosto que parece lhe

fornecer algum estímulo e, ao mesmo tempo, sua expressão é umaincógnita para mim.

Essa não é a Elizabeth que eu conheço.Ela simplesmente se aproxima, sem falar uma única palavra e estende a

mão para acariciar meu rosto com a maior suavidade do mundo.‒ Elizabeth...‒ Eu quero que saiba... ‒ diz ela enfim, o tom de voz franco, suave e

sensual, de um jeito que nunca a vi falar. E aproxima os lábios do meuouvido. ‒ Eu amo você ‒ sussurra ‒ loucamente.

Eu estremeço. Todo o meu eu. E não deveria.‒ Você...

De repente, lentamente, ela me guia até a cama, monta sobre mim eescorrega as mãos por meu pescoço, ombros e braços nus. Não sei o quepretender fazer a seguir, mas tenho de impedi-la, e só fico pensando quetenho de impedi-la, mas também estou acompanhando seus gestos comum sentimento entre espanto e admiração e uma maldita sensação quenão devia existir.

Algo está errado. Porra. Algo está muito errado.Ela continua dizendo que me ama e só pode estar tão demente quanto

eu. Não é assim que as coisas são entre nós dois.Por que ela está fazendo isso?‒ Você não pode... não pode... ‒ rosno, buscando forças para deter seus

planos.Mas meu corpo... meu corpo está trêmulo, arrepiado, esperando pela

minha entrega, meu sim. Nada disso faz sentido. Este desejo... este desejoincoercível e contínuo está me fazendo esquecer. Elizabeth não jogalimpo, eleva o rosto na mesma direção do meu, prendendo meu olhar ecalando-me a boca, como se tivesse total domínio da minha mente.

Ela diz meu nome, sussurra...Então...Eu perco a cabeça. Eu perco completamente a cabeça e não penso duas

vezes antes de retribuir seu beijo intensamente. Minhas mãos sobem noseu corpo macio, forte e diferente sob a camisola. Ela fecha as pernas aoredor da minha cintura. Aprisionando-me. Quero lhe dizer que não vou alugar nenhum. Que vou ficar aqui.

Bem aqui.Mas meus lábios saem da sua boca atrevida, deslizando para o seu

pescoço, e ali, meus dentes afiados arranham sua carne. Ela responde comum gemido alto de prazer à medida que seu sangue molha minha boca.

Caralho!Há um frenesi inegável entre nós. Suas mãos experientes passeiam,

suaves e apressadas, pelo meu abdome até o botão da minha calça jeans; ecom habilidade ela o abre, desce o zíper.

Minha boca não a abandona em nenhum momento.Desfruto dos seus arquejos de tesão, da sua pele quente se esfregando

na minha, incentivando nossa loucura. Então do nada, não há mais calça

jeans, altura em que sua camisola já se foi há muito tempo.Minha mente irracional é completamente preenchida por uma pequena

coisa; e eu não consigo pensar em nada, em mais nada, à medida quetrago Elizabeth para debaixo do meu corpo, tremendo, querendo mais emuito satisfeito por ela está disposta a me dá tão prontamente; a menterepleta de imagens.

Imagens de uma única garota.E ela não tem cabelos loiros.

Aurora

"Talvez eu seja louca."

Meu grito ecoa pelo quarto e me arranca abruptamente de mais um

sonho ruim. Fico sentada em um movimento estabanado, sem ar e umaagonia insuportável a oprimir meu peito. Meus pulmões.

Não consigo respirar!Não... consigo...Ah, Senh...Saio com dificuldade da cama, sentindo uma agitação repentina e

desconfortável no estômago, e cambaleio até o banheiro, sem enxergar umpalmo do caminho à minha frente.

Entretanto, de alguma forma, consigo alcançar a pia, e ali vomito opouco que comi no jantar, até não restar nada no estômago. É horrível. Émil vezes horrível. Uma umidade gélida e grudenta está escorrendo porminha face em meio às lágrimas.

Lágrimas.Empurro as lembranças para um canto escuro da minha mente e fecho

a porta. Tranco-a. Jogo a chave fora. De nada vale continuar pensandonelas agora. Revivê-las mais uma vez. Acordada.

E tenho preocupações mais urgentes.Estou tonta. Há um gosto amargo na minha língua e uma fraqueza

absurda que parece brotar de dentro dos meus ossos.Mal consigo permanecer de pé.Estou cansada disso.Arfando, giro a torneira com a mão boa e jogo um pouco de água fria

no rosto para aplacar a tontura que anuvia minha mente. Em seguida,ponho a mão em concha embaixo da corrente de água e levo à bocaconforme meu estômago continua embrulhando sem mais nada a sercolocado fora.

Droga, droga, droga.É uma ânsia terrível e, misturada as outras sensações, não me sinto

nada bem.O que eu não daria por uma noite de paz.Desligo a torneira e espalmo as mãos na pia em busca de apoio, fazendo

força para ficar ereta. Meu corpo parece surpreendentemente pesado etenho de respirar profundamente por uns segundos para evitar a vertigemque o movimento me causa; e fingindo não enxergar minha imagempálida no espelho, meus olhos arregalados, eu fico de costas, o quadrilescorado na bancada.

Senhor!Se eu der um passo, posso cair. E se eu cair, não sei se conseguirei

levantar.Ainda agindo metódica e cautelosamente, forço-me a sair do lugar e

ajoelho-me perto da banheira. Preciso tomar um banho. Preciso que meucoração volte ao ritmo normal. Preciso que a marca no meu pescoço parede comichar tanto.

Está me deixando assustada.Faz muito tempo desde a última vez.Detenho as memórias vívidas que forçam a porta de acesso à minha

mente e giro a torneira ao limite. Enquanto a banheira enche depressa,engatinho até o armário da pia, onde uma variedade de óleos aromáticosestá disposta na primeira prateleira.

Escolho o meu preferido de amêndoas doces e retorno à banheira paradespejar algumas gotas na água quente e convidativa. O cheiro agradávelajuda a me distrair das perturbadoras lembranças. Em seguida, tiro acamisola e a calcinha, e entro na banheira.

No momento em que meu corpo trêmulo afunda na água perfumada,sei que tomei uma boa decisão. Não demora muito tempo para que eusinta meus músculos tensos relaxando e a tremedeira agoniantedesaparecendo junto com a ardência sinistra.

De olhos fechados, faço curtas respirações para me livrar da lembrança

do pesadelo. Vívida e sombria, a desgraçada se mantém à espreita,esperando ‒ como uma águia aguarda sua presa ‒ por um momento defalha, a fim de invadir as barreiras que criei e se rebelar contra a minhamente debilitada.

É sempre desse jeito ‒ minha resistência mental sendo posta a teste.Mas não nego que há algo curioso nos meus sonhos. Em alguns.Eles são iguais.Eles são exatamente iguais há muito, muito tempo, desde que me

lembro de tê-los atrapalhando minhas noites, forçando-me a vigília, meacordando aos gritos e...

Ah, meu Deus! Você viu?Eu disse... curioso. Mas isso é... estranho! Isso é...Sim. Estranho é mais ou menos o meu nome do meio. E coisas do tipo

acontecem comigo de vez em quando.Parecem fazer parte de quem eu sou.E eu sou estranha.Admitir isso não me faz louca, eu presumo.Ou talvez...Talvez eu seja louca.

Eric

“Vá para o inferno.”

Desperto bem antes de o sol nascer, e cada centímetro do corpo

curvilíneo de Elizabeth está encostado sobre o meu. Quente. Nu. Macio.Seu rosto relaxado pelo sono está enterrado na curva do meu ombro. Suarespiração lenta e ritmada, na pele do meu pescoço. Seu cheiro, por todoo quarto.

Notas aveludadas de pêssego... doce.Como o seu sabor.Aperto os olhos, virando o rosto, e absorvo a culpa penetrante que me

atinge, cruel e merecida. Estou mal... não. Estou péssimo. Estou louco.Sim. Estou louco. Completamente fora do juízo perfeito. Porque não háoutra alternativa que justifique o modo como transei com essa mulherontem.

Pior.Fiz isso pensando em Aurora. Fiz isso como se... como se eu a desejasse

profunda e incondicionalmente ali no lugar de Elizabeth... embaixo demim. Linda. Nua. Ofegante. Sussurrando o meu nome. Eu me enterrandonela. Suave. Com força. Gemendo. Excitado. Uma de minhas mãospasseando livremente pela lateral do seu corpo perfeito, suas pernas... suabunda...

Suas mãos apertando minhas costas, as unhas arranhando minhapele. Seus olhos redondos cheios de tesão fixos nos meus, a bocaaberta num grito de puro prazer, que eu calaria com um beijo molhado eintenso e ávido... E pensando e pensando e pensando meu Deus, você émuito gostosa e eu quero muito...

Sou arrancado do meu devaneio erótico e inapropriado quandoElizabeth começa a se movimentar em cima do meu corpo rígido e quentepela minha imaginação fértil.

Rindo baixinho contra a minha pele, ela interpreta essa reação absurdade um jeito equivocado e desliza a boca por meu abdome, cada vez maispara baixo...

Porra!!Antes que chegue ao seu destino, puxo-a de volta para cima e para

debaixo do meu corpo, prendendo suas mãos acima da cabeça; minhaspernas entre as suas pernas. É uma posição, porra, muito excitante.

Elizabeth abre um sorriso largo, os olhos azuis brilhantes e travessosencontrando os meus.

Por um momento, acho que vai enxergar a culpa no meu semblante,mas para minha surpresa, ela diminui o pouco espaço entre nós para mebeijar.

Inferno!Impeço-a, soltando uma de suas mãos e ponho dois dedos em seus

lábios.‒ Bom dia ‒ sussurra ela, doce e sonolenta, e dá um selinho nas pontas

dos meus dedos.Não reajo.‒ O que houve? ‒ pergunta, piscando os olhos, confusa com a

indiferença nas minhas feições.Não sei o que responder. Ela está muito diferente, eu me sinto

diferente e não consigo evitar o pensamento de ter... Não! Não! Umasuspeita maldita risca minha mente e, afogando-me em uma raivaparalisante, demoro a encontrar os movimentos do corpo.

Não. Não. Não. Ela não... Não pode ser...‒ O que você fez comigo? ‒ sussurro, fuzilando seus olhos azuis.Elizabeth franze a testa e, depois de curto momento, abre um sorriso de

maliciosa compreensão.Filha da puta!!‒ O que você...Ela inverte nossa posição com um gesto ágil e num segundo está de

volta sobre mim, sustentando meu olhar raivoso com um ar sapeca.

‒ Nada, meu amor ‒ diz, divertida e afetuosa. ‒ Eu não fiz nada. Vocêsabe que os meus poderes não funcionam em você.

Não, na verdade, não sei.‒ Somos praticamente iguais, lembra? ‒ Ela sorri e passa os dedos pelo

meu abdome. ‒ O mesmo DNA que corre nas minhas veias, corre nesseseu corpo delicioso. ‒ Ela me beija no peito.

E é o que me faz sentir sujo.‒ Eu devia matar você ‒ falo para ela, tranquilamente. ‒ Foi para isso

que a Trindade me criou. Para matar seres como você.‒ A Trindade não existe mais, zangadinho. ‒ Ela esconde o rosto no

meu peito. ‒ Você está oficialmente desempregado. ‒ Aspira.Eu estremeço sem querer.‒ Ainda assim... Eu devia matá-la.Preciso tirá-la de cima de mim!‒ Você me matou ‒ diz ela, subindo o rosto, e abre um sorriso de

mal íc ia . ‒ Noite passada. Você me matou de prazer ‒ sussurraem tom de confidência e suspira. ‒ Diz para mim. Qual é o seu segredo,hein? Um homem não pode ser tão bom assim sem...

‒ Elizabeth, o que nós fizemos foi muito errado ‒ digo serenamente,para que leve a sério o meu arrependimento.

Ela se afasta devagarzinho. E prestando mais atenção, posso enxergartraços de confusão no seu rosto, mas então o lençol desliza, expondo seucorpo nu, e eu esqueço o que estava prestes a dizer, fazer ou a merda quefosse.

Porra!Acho que consigo corrigir minha estupidez a tempo, pois Elizabeth

ainda está me fitando sem entender minha reação fria.Se ela soubesse o quanto estou incendiando por dentro.‒ Não sei se eu usaria essa palavra para descrever a noite de ontem ‒

diz, ainda suave, e preciso que volte, agora mesmo, a ser a mulherinsuportável que conheço. Mas ela continua com um sorriso bobo: ‒Talvez... êxtase arrebatadora chegue perto, e...

‒ Sam gosta de você ‒ as palavras resvalam da minha boca sem que eume dê conta.

Puta merda!!

Como pude me esquecer de Sam? Como pude me esquecer que, apesarde sua promiscuidade, ele sempre teve uma adoração imensa porElizabeth, que vive há muito tempo lutando pela atenção dela, dizendoque a ama?

A culpa me dá outro golpe sem um pingo de misericórdia ‒ mais umapara acrescentar as outras.

Será que elas nunca vão acabar?‒ Eu não gosto dele ‒ diz Elizabeth, rapidamente. ‒ Não do mesmo jeito

que ele gosta de mim. Sam sabe disso.Quero que ela pare de falar e, como se tivesse lido meu pensamento, ela

se cala. Fecho os olhos como se fosse adiantar alguma coisa, como se fossediminuir a repulsa que sinto de mim mesmo.

‒ Eric ‒ pergunta Elizabeth, mas não parece ter dúvidas de minharesposta ‒, você não gostou da noite passada?

Sim ‒ meu pensamento é hostil ‒, eu gostei. Esse é problema.‒ Não importa. ‒ O que há de errado comigo?Eu a odeio. Sempre odiei, desde o primeiro instante em que ouvi falar

dela. E pior, somos inimigos... somos inimigos por natureza... e aliadospor nada mais nada menos do que conveniência. Ainda assim, jamais a vicom outros olhos...

Nunca.O que há de errado comigo?‒ Sam é o meu irmão ‒ declaro, enojado de uma forma que nunca

fiquei comigo mesmo ‒, e por saber que ele gosta de você, nós não... eunão devia ter feito o que fiz... Por favor, Elizabeth, vista-se e vá embora ‒peço, o mais educado possível, mas não é suficiente.

Ela fecha a cara para mim.‒ Então é isso. Você transa comigo e agora me manda embora?! ‒

pergunta, soando ofendida.Reviro os olhos, respirando fundo, e a distancio do meu corpo.‒ Não seja melodramática. Estou poupando nós dois de uma desgraça

e...‒ É aquela caloura, não é? ‒ explode ela, mas tem o bom senso de

moderar o tom de voz. ‒ Ela virou sua cabeça!‒ Pelo amor de Deus, Aurora não tem nada a ver com isso! ‒ exclamo, a

exasperação redobrada. ‒ E eu agradeceria imensamente se você aesquecesse.

‒ Essa garota é assunto meu.‒ É o que veremos ‒ diz Elizabeth, um brilho de ameaça anoitecendo

seus olhos.Ok, já chega!Arranco o lençol que nos envolve e puxo-a para fora da cama com uma

delicadeza que eu nem sabia que possuía. Com a outra mão, apanho sualingerie vermelha jogada ao tapete e mostro a ela.

‒ Você escolhe: ou se veste aqui dentro ou vai andar pelada até o seuquarto.

‒ Não se atreveria.‒ Experimente.Ela semicerra os olhos, avaliando a ameaça em minhas palavras e, por

fim, arrebata a camisola da minha mão e a veste no corpo com um floreioirritado.

Balanço a cabeça em aprovação a sua obediência, mas ela se senteprovocada e marcha em direção à saída, batendo os pés no chão. Naporta, vira o olhar raivoso e magoado novamente para mim e fita meucorpo nu com uma fisionomia melancólica.

Em seguida, desaparece.Ah, cara.Desabo na cama de braços abertos e encaro o teto branco em busca de o

mínimo de alívio por sua ausência, mas é em vão.Eu não mereço isso... Ou será que mereço?Puxo o ar pelo nariz, e o cheiro de Elizabeth impregnado nos lençóis

me atinge em cheio, despertando lembranças da noite passada, aqueledesejo...

Você está fodido, Eric.Sim. Estou fodido.Balanço a cabeça a fim de afastar os pensamentos indesejados e me

arrasto para o banheiro, carregando a expectativa de que essa históriasuma das entranhas da minha memória antes do fim do dia.

SÃO CINCO E QUARENTA e cinco quando saio do chuveiro e entro de volta

no quarto. O céu está mais claro, o sol em outra posição. Enquanto mevisto para uma corrida ao ar livre, digo para mim mesmo que só estoufazendo isso porque preciso urgentemente sair desta casa... deste quarto.Preciso respirar um ar diferente. Mas é pura mentira. Um subterfúgio.

A verdade é bem mais crua e simples e até ridícula: não quero encontrarmeu irmão, não quero... não vou conseguir encará-lo sem me trair.

Mas, e se ele já souber? E se pela madrugada ele veio me encontrar parasaber de minha conversa com Aurora e deu de cara com Elizabethagarrada ao meu corpo feito uma trepadeira? Afinal de contas eu sempredeixo a porta destrancada. E se ele estiver esperando que eu abra o jogocomo qualquer irmão decente faria?

Jesus!Estou alucinado.É a culpa. Ela está detonando a merda da minha cabeça.Sou um idiota. Um covarde da pior espécie. Não posso culpar

Elizabeth, não posso culpar ninguém além de mim mesmo. Nem Aurora...Aurora...A ideia de que ela seja a reencarnação daquela garota, devo admitir, é

francamente reconfortante. Um lenitivo para as minhas desconfiançasdolorosas ‒ ainda que eu não saiba absolutamente nada do assunto, aindaque eu não entenda no que a condição implica...

Suspendo o corpo depois de amarrar os tênis e saio do closet, saio doquarto, caminho pelo corredor, desço a escada e cruzo a sala de estar emdireção à saída da mansão. Do lado de fora, respiro oxigênio e solto gáscarbônico. Meus pulmões contraindo-se e dilatando-se com o movimentode inspirar e expirar.

Começo a correr. Passo pelo jardim bem-cuidado de Ayla, abro osportões de madeira e atravesso a pista asfaltada. Entro no bosque. Sigo emrumo a lugar nenhum. Não sei aonde quero ir. Somente ignoro a trilhaestreita que leva ao riacho e percorro um caminho que nunca usei antes.

Tento isolar a enxurrada de pensamentos me concentrando apenas nossons da minha respiração, dos meus pés batendo contra o chão de terramolhada e partindo os gravetos e folhas que caíram das árvores.

Sigo em frente. Mais rápido. Cada vez mais rápido.Não pense nela, Eric.

Sim. Não devo pensar nela.Mas...Minha mente é inconveniente e involuntária, às vezes, e está repleta da

sombra incessante de Aurora Harvelle. Sua existência sinistra, suaspalavras, sua voz, seu cheiro... seu corpo.

Fecho os olhos.Lembro-me de como ela estava deslumbrante ontem à noite e não

parava de olhar para mim. O modo como me senti em relação à suapresença... o modo como ela fez eu me sentir...

Essa mulher... essa mulher mexe comigo, numa parte profunda edesconhecida do meu ser. Ela desperta sensações que jamaisexperimentei...

Únicas. Inesperadas. Enlouquecedoras.Não posso permitir que isso continue a acontecer.Não posso permitir que ela viva em mim.Mais do que já vive...As tatuagens... as marcas no meu braço. Os sonhos. As memórias.

Velhas memórias. Nada disso foi embora. Nada sumiu com o tempo.E agora, ela está aqui. Reencarnada. Uma lembrança viva e palpável de

um dos momentos mais sombrios da minha existência. Como posso lidarcom isso? Como posso tolerá-la? Como posso conviver com ela sem... semmachucá-la?

Meu coração estremece de agonia, obrigando-me a trocar a corrida poruma caminhada. Estou ofegando dolorosamente, o peito e a cabeçalatejando ao mesmo tempo. Essa angústia... intensa e quase física...

Mal posso evitar que meu corpo trema.Que patético, Eric.Sim.Fecho a mão direita no tecido da camisa, desejando ardentemente

alcançar e apertar... esmagar meu coração, obrigá-lo a parar de reagir dessamaneira... por causa dela.

É tudo por causa dela.Não tinha percebido... nesses dias... não tinha percebido contra o que

exatamente tenho lutado. Não tinha percebido o que os sinais queremdizer. Mas agora tudo está bem mais do que claro.

Eu estou fugindo. Há uma parte do meu ser ‒ uma parte que não seiquando começou a existir ‒ lutando contra a vontade visceral de destruirAurora. É a mesma parte que tem transformado meus sonhos e pesadelos.

Meu julgamento.Meus desejos...Tudo isso porque... porque eu estou...Estou...Passos!O som contínuo de passos ritmados, vindos da mesma direção em que

me encontro, alcança minha audição humana aguçada e quebra a linhados meus pensamentos. Volto a correr, recuando para atrás de um grossotronco de árvore e aguardo com a pulsação disparada.

Droga!Eu tinha esquecido de que, apesar de privada, a propriedade é aberta ao

povo da cidade para passeios e exercícios físicos no bosque.Péssima notícia, a propósito, uma vez que eu prefiro a priv...Uma garota toda de preto passa correndo em linha reta, o rosto oculto

pelo capuz da camisa regata que está vestindo. Há algo na forma do seucorpo, no modo como se movimenta, que me deixa curioso e distraído.Quase desconfiado.

E quando me dou conta, já estou atrás dela, mas à distância, mantendo-me à sombra das árvores, praticamente em silêncio.

Observo-a se desviar da trilha que seguia e virar à esquerda, em direçãoà parte mais densa do bosque. Quando penso que vai emparelhar com osgrandes troncos de árvores partidos ao meio, ela os salta com habilidade esegue em sua corrida.

Minha curiosidade aumenta.Então, duas coisas que parecem acontecer simultaneamente, me forçam

a parar de chofre no lugar; congelar no meio do passo; músculos do corpoenrijecerem por um momento tão fugaz, por uma visão indistinta de umcorpo cruzando o bosque e uma simples brisa que escolheu o momentocerto para soprar, trazendo um cheiro que reconheço e odeio.

Depois... ela!Ela que também parou de correr subitamente e, com isso, seu capuz

escorregou para trás da cabeça e expôs seu rosto perfeito para mim.

Maldição!Ela está aqui, ofegante, os olhos arregalados disparando para todos os

cantos do bosque, o cabelo escuro preso em um rabo de cavalo alto e aexpressão levemente intrigada.

Aurora.Mesmo com a iminência de um enorme perigo, meus olhos não

conseguem deixar de percorrerem a perfeição do seu corpo vestido comuma roupa tão justa, sua bunda grande e empinada, a cintura fina...

Ah, merda.Foco, Eric. Ela não devia estar aqui. Não agora.Sim. Não devia. Eu jamais me enganaria com aquele fedor irritante. Sei

exatamente o que está me seguindo ou ‒ estremeço só de pensar ‒ o queestá seguindo Aurora.

Não faz sentido.Sacudo a cabeça a fim de organizar as ideias e planejar uma maneira de

tirá-la daqui. Aurora ainda está no mesmo lugar, procurando a origem doque viu ou escutou, e estou aborrecido porque não deu o fora.

Felizmente, não demora muito: ela cobre o rosto com o capuz eprossegue correndo.

Volte para casa, amor!Algo novamente me chama atenção, reverbera em minha pele.

Arrepiando-a. É o vulto. Correndo. E... Droga!É realmente o que eu pensei.Está indo atrás de Aurora!Ajo por puro instinto, primitivo e sobrenatural, saindo em disparada na

direção do meu alvo, no momento exato para colidir com ele; umadecisão tomada num átimo, como se eu pretendesse fazer isso desde ocomeço. E funciona.

Meu corpo se choca com força contra o do monstro e, antes que elecause qualquer ruído capaz de guiar Aurora até ali, eu disparo já noimpulso da corrida e dentro de segundos estou imobilizando seus braçosatrás das costas e empurrando seu corpo em direção ao tronco da árvoremais próxima.

‒ Indo a algum lugar? ‒ pergunto com insincera gentileza.A harpia estremece perceptivelmente entre respirações arrastadas.

‒ Esse cheiro ‒ sibila ela, e me sinto muito contente ao identificar umtraço de terror nessas duas simples palavras.

Sim! Justo o efeito que causo.É tão comum que dispensa a reação de surpresa.Meu corpo inteiro está vibrando ao se semitransformar no monstro de

sangue frio, olhos vermelhos e dentes afiados. Minha outra identidade.Meu alter ego.‒ Sabe ‒ falo junto à orelha esquerda dela ‒, posso arrancar seu coração

em dois segundos... se eu quiser. Mas tudo depende de você e do que sairdessa sua boca asquerosa.

Ela ri, sacudindo a cabeça, mas seu corpo inteiro enrijece com aameaça.

‒ Sempre tão dramático, Eric.O quê?!‒ Você me conhece ‒ constato.‒ Toda minha raça o conhece ‒ retruca ela. ‒ Você é famoso,

Estripador. Matou muitos dos meus.‒ Ossos do ofício. Quer que eu peça desculpas? ‒ pergunto, debochado.‒ Só se você quiser, e, se realmente sentir muito pelo que fez. Mas não

acho que seja o caso.‒ Não é mesmo. ‒ Suspiro sarcasticamente. ‒ Então... É por isso que

estava atrás de mim? ‒ pergunto, acobertando minha expectativa comdesdém. ‒ Deseja vingança?

‒ Não, hoje não ‒ diz ela com um ar contente e som de riso na voz.‒ O que você quer aqui?‒ Não se preocupe, querido. Não é nada pessoal ‒ garante ela. ‒ Só

estou obedientemente cumprindo ordens. E por falar nisso...Tudo acontece muito rápido.Com uma destreza leve e sutil, a harpia liberta os pulsos das minhas

mãos e, girando num piscar de olhos, suas unhas rasgam meu abdomesuperficialmente.

Droga!O veneno queima e arde em minha pele feito ácido sulfúrico, entrando

na minha corrente sanguínea. Por reflexo, eu levo as mãos para onde elame atingiu, minha capacidade regenerativa já curando o corte. É uma

reação rápida que me permite não sofrer os impactos da ferida por muitotempo.

Erguendo as vistas para a mulher que me encara do outro lado dacampina com uma emoção de triunfo no rosto perfeito e sobrenatural, eume coloco em posição de ataque. Seus olhos vermelhos e frios estão fixosem mim numa promessa de morte, o cabelo castanho-escuro escondidodentro de uma capa preta jogada por cima de um vestido azulado cheiopedras e rendas.

Elas gostam de moda, as harpias. De música e bebida e joias. Masprincipalmente de hipnotizar os homens com seus poderes psíquicos, aponto de deixá-los de joelhos, clamando por uma noite em sua cama,loucos para realizar tudo lhes pedirem.

Homens ‒ esse é o alvo dessas criaturas de origem misteriosa.Não garotas. Nunca. Jamais. No entanto...Por que estava perseguindo Aurora?Não tenho tempo suficiente para pensar a respeito. A harpia avança

para cima de mim, determinada a me acertar com suas garras; a me matar.Isso me anima, um convite para briga.

Faz muito tempo que não luto de verdade com alguém.Meu primeiro golpe arremessa seu corpo a metros de distância, fazendo-

o rolar no chão até parar, e não dou chance para que se levante; ela aindaestá tentando se colocar de joelhos quando um chute baixo lhe atinge opeito, depois o rosto, várias e várias vezes.

No chão, apanho um grosso galho de árvore com pontas afiadas, emseguida, arrasto a monstruosidade em forma de mulher pelos cabelos. Elatenta me acertar com uma joelhada, mas eu desvio facilmente e soco seudiafragma. Duas vezes. Bato com sua cabeça no meu joelho, e logo depois,escorrego minha mão para a sua nuca, cerrando meus dedos no seupescoço comprido.

‒ O que quer aqui? ‒ pergunto mais uma vez, rosnando.‒ Vá para o inferno. ‒ Ela cospe no meu rosto.Sorrio, lambendo o sangue em meus lábios.‒ Não, amor. Você vai. Se não me disser por que está num território

que não lhe pertence mais.‒ Ah, sim, pertence. Nós vencemos a guerra. Destruímos vocês.

Graças a nós, seu povo hoje é minoria. A ilha é nossa de novo!‒ Não se depender de mim.‒ Tão leal... Argh!Ela engasga quando faço o galho penetrar sua barriga, rasgar a carne

vorazmente. Retiro-o só para enfiar uma segunda vez e uma terceira eouvi-la se contorcer de dor. O prazer que isso me dá...

Como eu odeio essas feras... mais do que odeio a mim mesmo.‒ Vamos lá ‒ ordeno. ‒ Diga alguma coisa ou isso pode ficar bem pior.‒ Eu já disse ‒ fala ela, entre os dentes trincados. ‒ Vá para o inferno.Contraio-me por dentro de irritação.Quero respostas e quero para ontem. Mas parece que não vai ser tão

fácil assim. Harpias podem ser bem resistentes, muito mais do queaparentam. Esta é suspeita demais para o próprio bem: diz estarcumprindo ordens.

Preciso saber de quem.Seu sorriso de satisfação ao perceber meu descontentamento me irrita.

Arranco o galho sem avisar. Ela geme e começa a rir, rir alto, e emitemurmúrios de dor à medida que se diverte com algo.

Desgraçada!Ela está protelando. Já podia ter tentado me derrubar com uma de suas

poderosas melodias, mas ainda não fez nada.Que diabo está acontecendo aqui?‒ Diga o qu... ‒ começo.Ela me silencia acertando minhas bolas com uma joelhada rápida e

certeira e furta o galho da minha mão. Filha da...! Curvo o corpo,sentindo o ar me faltar, quando um golpe inesperado atinge meu esterno.Minhas mãos soltam o pescoço dela para me livrar do objeto entranhadoem minha pele.

Maldição!Ergo o tronco para acabar com isso de uma vez por todas e viro nos

calcanhares. A harpia já está de costas e, por um segundo, penso que vaiescapar como a covarde que é. Enquanto me desloco a fim de seguir adesgraçada, ela se joga em direção à uma abertura...

Droga! Percebo seus planos. Porém, é tarde demais para revertê-los.Ela toma impulso em uma rocha e seus pés atingem meu peito,

lançando-me para trás em seguida. Meu corpo se choca contra um troncode árvore e, antes que eu escorregue para o chão, sem ar, a harpia já estána minha frente, inserindo o galho no meu abdome, o rosto muitopróximo do meu e a mão em volta do meu pescoço.

Inferno!Com a boca encostada no meu ouvido, ela me repreende por ser um

garoto mau, por não saber tratar uma dama e move o pedaço de madeiracravado em meu estômago. Um jato de sangue voa da minha boca e abafameu grito.

Tudo é dor.Tudo embaça.E depois...Tudo escurece.

PARTE 2 – A MALETA

Aurora

"Que diabo de lugar é este?"

O tempo amanhece diferente hoje. Nublado. Não vejo o sol em

nenhum canto do céu quando escorrego da cama e sigo até os janelõesentreabertos do meu quarto. O vento está acelerado e frio, sacudindo osgalhos das árvores e derrubando flores brancas, rosas e lilás na estrada.Parece outono. As nuvens, ontem branquinhas e espalhadas, estão sereunindo agora, cinzas e carregadas sob o azul do céu que quase não épossível avistar.

Vai chover em breve... talvez em alguns minutos.Pergunto-me se é tempo suficiente para uma caminhada ao ar livre sem

que eu corra o risco de me molhar no percurso ou se devo esquecer essaideia e seguir para a academia no andar de cima.

Depois de meio minuto, desisto das duas opções e vou tomar umaducha. Quando saio do banheiro, reparo que minha cama estáperfeitamente arrumada, assim como a mesinha de estudo que usei ontemà noite para produzir um trabalho da escola.

Safira.Suspiro comigo mesma.Às vezes eu acho que ela carrega uma espécie de babá eletrônica no

bolso de seu uniforme, pois sempre sabe o momento exato para aparecersem que eu esteja presente para impedir sua mania de me tratar comouma princesinha.

Afinal de contas, já lhe disse um milhão de vezes que eu mesmaposso arrumar minha cama. Mas ela teima em assumir a responsabilidadede cuidar de tudo que diz respeito a mim nesta casa. É o meu trabalho, ela

me lembra um milhão de vezes também. Eu resmungo com um beicinhoque lhe arranca risadas e permito de má vontade que realize sua função.

A caminho do closet, avisto um envelope bege sobre o assento dapoltrona suspensa, então paro, arqueando a sobrancelha esquerda, emudo minha rota. Chegando lá e, ao apanhar o retângulo de papel grosso,concluo que se trata de um envelope de carta, mas não há nenhum nomeou endereço do remetente.

Estranho. Como isso veio parar aqui?‒ Safira? ‒ chamo, saindo em direção à entrada do closet, mas não

recebo nenhuma resposta.Ali dentro, encontro o cômodo vazio. Minha desconfiança e

curiosidade aumentam. Estou arrepiada e não sei o motivo exato. Cogitoligar para Safira e perguntar se ela deixou o envelope ali, mas após umapausa de pensamento, mudo de ideia e me sento ao sofá sem encosto nomeio do closet, puxo a aba do envelope e despejo no colo.

Uau!Assusto-me mais ainda ao me deparar com um conteúdo

consideravelmente suspeito: três folhas de tamanhos e texturas variados. Aque está por cima é um velho pedaço de jornal a ponto de se esfacelar emminhas mãos, como se tivesse sido amassado e desamassado várias vezes.

Desdobro-o cuidadosamente.Em letras maiúsculas, a manchete de uma notícia atiça ainda mais a

minha curiosidade e dobra minha confusão.O que é isso? MORTE DE SARAH HARLEY DEIXA O EX-MARIDO E OS DOIS FILHOS ABALADOS

Hã?!Leio de novo para ter certeza.Tudo bem, tudo bem, Harley é um sobrenome familiar, mas... ainda

assim...Ignoro o rosário de questionamento que começa a surgir

atropeladamente e corro os olhos pela notícia... Deus! Levo a mão livre à

boca. Aqui diz que a tal Sarah Harley foi encontrada morta no quarto daprópria casa, sem nenhuma evidência do que a levou a óbito...

‒ “O corpo dela estava ileso.” ‒ leio em voz alta. ‒ "A perícia nãoencontrou nenhum vestígio de que a vítima tenha sofridoenvenenamento, tortura ou asfixia."

É possível?Continuo lendo aleatoriamente.Sarah era mãe de dois garotos e ex-mulher de um famoso cientista

chamado Richard Harley. Ele garantiu aos investigadores que não tiveranenhum contato com a ex-mulher, desde que ela entregara os meninospara passarem as férias da escola. A história foi confirmada pelaempregada de Sarah e eliminou Richard da lista de suspeito.

Fim.Com uma sensação para lá de esquisita, eu largo o velho pedaço de

jornal ao lado e me atenho ao restante do conteúdo do envelope,procurando algo, qualquer coisa, que explique melhor o que acabei de ler.

Por que alguém me enviaria isso?A outra folha é uma foto em preto e branco de um casal com duas

crianças. O homem é alto e forte, vestido impecavelmente com um ternoretrô. Sua barba é bem desenhada, os cabelos cheios e escuros. Ele tem obraço direito em volta da cintura de uma mulher jovem e bonita de longoscabelos loiros, que exibe um largo sorriso. Seu vestido também parece serbem antigo.

Será que...?Minha atenção é desviada pelas crianças: dois garotos e são cópias dos ‒

assim suponho ‒ pais. O que aparenta ter menos idade é incrivelmentesemelhante a mãe, desde os cabelos ao rosto em formato de coração. Ooutro e mais velho tem a fisionomia mais inclinada à do pai, o mesmorosto retangular, os cabelos fartos e desgrenhados...

‒ Uau! ‒ Chego a fotografia para mais perto do rosto, identificando umpouco mais do que a semelhança.

As crianças... acho... acho que as conheço, mas... é impossível! Viro afoto e encontro uma pequena mensagem, as palavras quase apagadas,escritas na horizontal:

Minha querida esposa Sarah e meus filhos Samuel e Eric

O quê?!‒ Oh, não, não, não ‒ murmuro, balançando a cabeça veemente.É uma coincidência. É apenas uma mera coincidência. Claro! Não pode

ser... real. Não tem a mínima chance. Essa é a Sarah que morreu de formainexplicável? Ex-esposa de Richard Harley e mãe dos garotos...?

Não... não pode ter qualquer relação com as duas pessoas que euconheço... Uma dúvida aguda e profunda me pega desprevenida,questionando-me.

Você não os conhece, Aurora.É verdade. Não os conheço, não sei muita coisa sobre eles, mesmo já

tendo conversado algumas vezes com Sam. Embora nunca falamos defamília. Nunca fiz nenhuma pergunta porque não me acho no direito desaber sobre os outros o que não quero que saibam sobre mim.

Tem lógica, certo?Mas Henry deve estar a par de alguma coisa. Ele pode confirmar ou

negar toda a história.Leio a mensagem novamente, esperando enxergar algo além das

palavras, e sou atraída pela data da foto...Janeiro de 1903.Salto do sofá num pulo e quase caio, mas consigo me equilibrar nas

estantes do closet e depois continuar recuando, até ficar encurralada elonge, longe de uma loucura que ameaça me deixar tão insana quanto ela.

Não é possível... quero dizer... como poderia ser possível?É muito, muito antigo.Mais uma vez me pergunto a razão de me enviarem isso, mas não chego

a nenhuma resposta crível.E não haveria, não é? Porque nada disso é passível de crer.Pelo menos uma coisa acabou ficando evidente.Não se trata mais da família de Sam.Porém, essa certeza ainda não me acalma. Estou aterrorizada e, de

repente, contar a Henry não é mais uma ideia que considero. Como vousoltar essa bomba em cima dele?

Talvez seja mais indicado que eu descubra primeiro o remetente desse

espirituoso pacote. Mas como? Meus olhos recaem no cartão branco. Sim.O último conteúdo do envelope que ainda não olhei. Ali provavelmenteconta que tudo isso é uma pegadinha.

Aproximo-me do sofá a passos vacilantes, apanho o cartão e...Ok. Não é uma pegadinha.É um endereço, na verdade, escrito em uma letra clara e caprichada.

Viro o cartão. Há mais uma coisa. Uma mensagem... não... uma únicapalavra: Divirta-se.

Ah, meu Deus!É um convite, não é?Tudo bem.Sem saber exatamente o porquê estou fazendo isso, saio do closet e vou

até a mesinha onde está meu Macbook. Abro a página do Google, perpassoos dedos no teclado e, sem hesitar, digito o endereço escrito no cartão.

Bem, o lugar pelo menos existe.É uma rua de armazéns, com um prédio sem identificação no fim da

estrada. Estranho e suspeito. O que tem lá? Preciso saber.O quê?! Você enlouqueceu?!, minha razão grita comigo, lutando contra a

insanidade ou o que quer que me atraia ao lugar misterioso.Ignorando-a, volto ao closet para me vestir. Escolho uma calça jeans

justa, botas pretas que vão até acima do joelho, uma blusa cinza dealcinhas e uma jaqueta de couro. Em seguida, enfio toda minhacorrespondência do mal dentro do envelope, ponho na bolsa, pego achave do F-type e saio do quarto.

É loucura e estupidez, eu sei, mas não consigo acreditar em acasos, nãoconsigo acreditar que eles aconteçam sem uma razão.

Desemboco na sala de estar e, antes que eu alcance a porta, a voz domeu irmão atravessa os meus ouvidos.

‒ Aonde vai com tanta pressa sem tomar café da manhã?Viro-me. Ele ri, parado perto da cortina d´água, filmando-me dos pés à

cabeça.‒ E linda desse jeito.Penso rápido numa desculpa.‒ Vou dar uma volta no shopping. Não se preocupe, comerei alguma

coisa por lá ‒ prometo.

Henry continua sorrindo.‒ Shopping ‒ diz, genuinamente surpreso. Sabe que nunca demonstrei

interesse por frequentar tal lugar.‒ Evelyn quer comprar um vestido para festa de semana que vem e

pediu minha ajuda. Então vou dar umas dicas, e em troca ela vai memostrar alguns pontos legais da ilha. ‒ Desenvolvo a mentira com maisnaturalidade. ‒ Evelyn é uma amiga da escola ‒ acrescento, fornecendomais detalhes.

‒ Entendi ‒ ele aquiesce. ‒ Shopping, vestido, dicas. Isso é ótimo.Divirta-se.

O cartão branco pesa no envelope em minha bolsa. Droga! Tentomanter o rosto neutro e arrisco um sorriso alegre.

‒ Obrigada. Vejo você mais tarde?‒ Claro. Vou dar uma passada na casa de Ayla para ver se consigo falar

com Eric, mas não demoro. ‒ Henry examina meu rosto, esperando, comcerteza, que eu manifeste alguma reação.

Ah, sim.Eric Harley está doente e já faz uma semana que não dá as caras no

colégio. Eu devia ir vê-lo, em retribuição à visita que ele me fez, mas nãovou. Ainda não sei se ele apareceu naquele dia por causa da minha mãodetonada ou para questionar a anomalia no meu pescoço.

“Você é mesmo um pouco estranha”.Deus.Aquele homem consegue ver através de mim. E de acordo com o que

disse, pareço com alguém que ele conheceu.Será alguma ex-namorada?Fiquei tentada a perguntar a Sam em uma de nossas conversas casuais,

mas me faltou coragem.‒ Tudo bem ‒ respondo simplesmente.‒ Quer que eu entregue algum recado? ‒ O esboço de um sorriso

maroto é presente nos lábios do meu irmão.‒ Diga que desejo melhoras ‒ solto a frase clichê, caprichando no

sorriso doce e na expressão carinhosa.É o máximo que minha retribuição pode chegar.‒ Direi. ‒ Henry sorri com astúcia. ‒ Até mais tarde.

‒ Até mais tarde. ‒ Sopro um beijo e saio pela porta.Lá fora, o dia permanece exatamente como quando eu o observava do

meu quarto: o mesmo céu encoberto, as mesmas nuvens cinzas e pesadasprometendo chuva... mas, no entanto, diferente.

Tirando o carro da vaga na garagem, meus pensamentos maquinalmentese dividem entre Eric Harley e o envelope. Apesar de que os dois podemser uma coisa só... quero dizer, na verdade, não confio que seja possível.

Não seria... normal.Parte de mim está se corroendo para descobrir algo, investigar, e isso

também é muito esquisito. Minha razão tenta me dissuadir.Você está ficando louca, Aurora. Está indo atrás de algo que não existe mais.Não importa.E se for uma armadilha?Uma armadilha... Estremeço com essa possibilidade, mas cinco

segundos depois penso no meu pai, que me ensinou a não entrar de caraem terreno desconhecido. Eu nunca entendi por que ele dizia certas coisasquando íamos apenas treinar artes marciais na floresta...

Foram bons tempos.Apressadamente, ligo o sistema de som do carro para dissipar a

nostalgia, e todas as repreensões na minha cabeça são abafadas. NO CAMINHO, TENTO NÃO deixar que a ansiedade e a desconfiança abalem

meu foco. Passada meia hora, espio o GPS e sei que estou perto.Exatamente como registrei no mapa pelo computador, a rua é deserta,rodeada por armazéns de péssima estrutura e prédios que ameaçamdesabar a qualquer instante.

Alguns comércios estão abertos, e isso me deixa aliviada; ver pessoascirculando nas redondezas, mesmo que poucas, proporcionam um armenos fantasmagórico ao lugar.

É claro que uma pessoa normal teria fechado os vidros e fugido dali omais rápido possível. Mas não eu. A única coisa que consigo pensar agoraé no que vou encontrar um pouco mais à frente.

Entrando na avenida em que o prédio está situado, diminuo avelocidade do carro e avisto alguns homens descarregando uma carreta demateriais de construção. Eles assoviam, certamente por causa do F-type; o

que me leva instantaneamente a pensar que talvez devesse ter pedido umtáxi.

Tarde demais.Viro à direita em uma encruzilhada ao notar que estou me

aproximando do fim da linha e estaciono perto de uma barraca de frutas.Estudo os arredores com uma olhada breve, e tendo uma ideia, solto oscabelos, ajeitando-os em volta dos ombros.

Saio do carro.Um homem de estatura mediana, vestindo calça e camisa folgada,

assovia para mim, seu olhar passeando por meu corpo descaradamente.Abrindo um sorriso sutil, vou até ele.

‒ Tá perdida, moça? ‒ pergunta.É do tipo disposto a ajudar. Gosto disso.‒ Mais ou menos ‒ confesso. ‒ Sabe o prédio no fim da estrada?‒ Sei, sim, senhora.‒ O que tem lá? ‒ pergunto, sem rodeios.O homem dá uma erguida de sobrancelhas e ri.‒ Um laboratório museu ‒ responde. Acho que está tentando fazer uma

piada ou me assustar.Mordo o lábio, rindo também, e ele espia minha boca, mas logo desvia.‒ Isso é alguma espécie de código? ‒ pergunto, humorada.Ele ri outra vez, apanha uma de suas próprias frutas ‒ uma maça ‒ e dá

uma dentada.‒ Não. O prédio é antigo. Muito antigo ‒ diz, arregalando os olhos.Antigo, hein?‒ Quem é o dono? ‒ Ou dona?‒ Um cara famoso que já morreu. Foi antes do seu tempo... acho que

até antes do meu. Mas as pessoas daqui costumavam comentar sobre ele...eu esqueci o nome, mas era alguém bem importante. Quer? ‒ Ele jogauma maça bem vermelha para mim, e eu a recebo com firmeza.

‒ Obrigada.Penso na minha próxima pergunta.‒ Então, muita gente vem aqui? ‒ lanço, girando a maça nas mãos.Os olhos dele sobem e descem pelo meu corpo mais uma vez e

finalmente param no meu rosto. Imagino o quão suspeita eu devo estar

parecendo.‒ De uns tempos para cá, tem havido uma certa movimentação, sim. E

hoje, uma van de um colégio do centro deixou uns alunos lá. ‒ Elesemicerra os olhos para mim. ‒ Se me permite... O que uma moça como asenhorita está fazendo num lugar como este?

Uma moça como eu... É engraçado.‒ Como é seu nome?‒ Felipe.‒ Bem, Felipe ‒ falo ‒, eu vim encontrar uma pessoa.É, talvez eu encontre alguém lá.‒ É um lugar estranho para marcar um encontro. ‒ Ele encolhe os

ombros, se desculpando pela honestidade, eu acho.‒ Verdade ‒ concordo com um sorriso, olhando ao redor. ‒ Onde essa

rua vai dar? ‒ pergunto, apontando à minha direita.‒ Atrás dos armazéns e do laboratório, se a senhorita dobrar à esquerda

lá no final ‒ responde Felipe, visivelmente desconfiado.É melhor encerrarmos por aqui.‒ Obrigada pelas informações. ‒ Faço um aceno de cabeça. ‒ Você pode

embrulhar uns morangos para viagem? ‒ pergunto apenas para agradar.‒ Claro! ‒ Ele se levanta de imediato, e suspeito que essa seja sua

primeira venda do dia. ‒ A moça tem cara de que gosta de morangos, eeles são doces ‒ acrescenta, fazendo-me rir.

Será que ele está querendo dizer que eu sou doce?Não. Ele está falando dos morangos, Aurora., alfineta minha razão.Agradeço mais uma vez e retorno para o carro, tentando decidir qual

será o meu próximo passo. A única coisa que descobri até agora é queRichard Harley é o tal cara famoso e dono do laboratório, embora Felipenão tenha citado o nome do sujeito. E isso não é suficiente.

Minha razão implora para que eu dê meia-volta e vá para casa. Mas nãoposso. Ainda faltam peças nesse quebra-cabeça e preciso descobrir por queme mandaram o envelope. Não pode ter sido à toa. Talvez a pessoa queme enviou esteja por perto.

Decidida, ligo o carro e dirijo até o final da estrada onde está o prédio.Ao entrar num velho estacionamento cercado por alambradosenferrujados, ponho o Jaguar ao lado de uma van prateada.

Respirando fundo, abro a porta.Uau!Indiscutivelmente suspeito é o meu primeiro pensamento ao examinar

o ambiente do lado de fora. Não há nenhuma sombra de câmera ousegurança. O prédio parece que pode desabar a qualquer momento, hájanelas quebradas e a pintura está descascando em vários andares.

A parte racional do meu cérebro não gosta de ver isso, e à medida queme desloco à entrada do edifício, os saltos grossos bota fazendo umbarulho irritante no chão de brita, a outra parte se pergunta se o prédio étão antigo quanto o proprietário dele.

Lá dentro, encontro uma pequena recepção de paredes brancas, velhaspoltronas espalhadas pelo espaço e na parede norte há um enorme retratoem preto e branco de Richard Harley. Embaixo da foto, a seguinte frase:EM MEMÓRIA DO MESTRE.

Posso estar ficando louca, mais do que já sou, mas há muito dessehomem em Eric... ou muito de Eric nesse homem... ou talvez, talvez nãoseja nada disso. Primeiras impressões costumam fincar-se em nós commuita facilidade e quase sempre não são confiáveis.

Alguém pigarreia, e só então noto a existência de um garoto atrás deum velho balcão. Ele deve estar me observando desde que entrei.

Será que encontrarei respostas com ele?Conforme eu me aproximo, faço de conta que não reparo nos seus

olhos grandes e estranhos percorrendo minhas pernas desenhadas pelacalça jeans e pelas botas.

‒ Olá ‒ cumprimento, talvez um tanto meiga demais, e espio seu crachá.John.Sua voz é esganiçada, enjoada e irritante quando pergunta:‒ A senhorita veio por causa da palestra?Como?Não tenho a mínima noção do que ele está falando, mas preciso de uma

desculpa para circular neste lugar. Sinto que esse garoto não vai me dar oque eu quero tão facilmente.

‒ Sim. A palestra ‒ falo, antes que ele perceba que eu sou uma fraude.‒ Está atrasada.‒ Trânsito.

Ele revira os olhos, desdenhando da minha falsa justificativa.‒ Assine o seu nome aqui. ‒ Me oferece uma prancheta com uma lista

de presença enquanto procura algo embaixo do balcão.Encaro o papel, vacilando em escrever meu nome verdadeiro.‒ Está com dificuldade para assinar seu próprio nome? ‒ pergunta John,

debochando de mim.‒ Não ‒ respondo um tanto irritada e pego a caneta.Escrevo um nome falso e devolvo a prancheta a ele, orando para que

nenhuma identificação seja necessária, mas em vez disso recebo apenasum monte de papéis que nem faço questão de olhar.

Estou dentro!‒ Primeiro andar.‒ O quê?John me lança um olhar gelado de repreensão.‒ A palestra. Primeiro andar. Sala 4 ‒ repete a contragosto.‒ Obrigada ‒ digo no mesmo tom e me afasto.Sinto o olhar fulminante dele me seguir até o momento em que fujo do

seu campo de visão. É quando alcanço uma outra área onde há maisvelhas poltronas em frente a dois elevadores. O troço é tão velho, quedemora uma eternidade para descer e abrir as portas.

Ao entrar, tampo o nariz e a boca com a mão. Credo. O fedor éinsuportável, quase como se algo morto estivesse escondido dentro dasparedes. As portas se fecham com um rangido estridente.

Colado com fita adesiva colorida, a lista de identificação dos andares éum enfeite ao cubículo esquisito e fedorento. Pressiono o número quatrono painel defeituoso ‒ é lá onde fica a sala de arquivos, onde esperoencontrar as informações que tanto desejo.

Estou ansiosa... e com um pouco de medo, confesso.As portas se abrem, súbitas e com um barulho alto. Sem nenhuma placa

de orientação, tento a sorte indo à direita. Mesmo com o corredor vazio esilencioso, não deixo de olhar por cima do ombro. Assim que ultrapassouma velha máquina de café e um conjunto de cadeiras, ouço o murmúriode vozes vindo de algum lugar à frente.

Mais alguns passos e vejo que se trata de uma recepção quase igual àque encontrei quando entrei no prédio. Uma mulher de jaleco branco

conversa com um garoto loiro, que se encontra atrás de um balcão branco;ela está parada à beira de uma porta e mantém a mão na maçaneta comose estivesse acabado de sair de lá.

‒ Preciso que tome conta da sala, Hector. ‒ Ela se afasta unscentímetros, permitindo que eu veja a placa “sala de arquivos” pregada notopo da porta. ‒ Estão me chamando no consultório, mas não demoro.

‒ Sim, Dra. Lílian ‒ responde o garoto com um movimento de cabeça.A mulher fica de costas para deslizar um cartão magnético no painel

eletrônico ao lado da maçaneta e digita uma senha ‒ não consigovisualizar os números que ela aperta, mas seus dedos fazem o desenho deuma ampulheta.

De baixo para cima.Fico surpresa comigo mesma por memorizar tal detalhe tão

automaticamente.Eu nunca fiz esse tipo de coisa.‒ A chave de acesso ‒ a voz da mulher me arranca das distrações.Vejo-a entregar o cartão ao garoto que, por sua vez, deposita ao lado do

teclado do computador.Sabendo que disponho apenas de segundos para não ser pega, eu me

afasto ligeiramente, pisando leve, tentando não causar barulho no chão decerâmica.

Então, avisto uma maçaneta, e não penso duas vezes: giro-a e entro nasala, fechando-a em seguida.

Meu coração parece asas de um passarinho prestes a alçar voo. Deus!Um barulho às minhas costas me leva a girar nos calcanhares.‒ Ahhh ‒ suspiro, aliviada por estar sozinha.A sala é pequena e apertada devido a uma variedade de materiais

desorganizadamente espalhados. A placa pregada na porta me diz queestou no almoxarifado. Mas não posso continuar aqui. A tal Dra. Líliandisse que não vai demorar, e eu preciso entrar naquela sala, mas acima detudo...

Preciso também de um disfarce.Vasculho o lugar à procura de algo específico e... ali está! Um jaleco

branco idêntico ao que a doutora está usando. Um pouco poeirento,admito, mas vai ter que servir. Nesse meio tempo, desenvolvo um plano

para furtar aquele cartão. Sem ele, o jaleco não servirá de nada.Puxo o ar pelo nariz e solto pela boca e, dizendo a mim mesma que

posso fazer isso, saio da sala. Meus batimentos estão francamente audíveis.Frases e mais frases substituem umas às outras dentro da minha cabeça.Acho que minhas pernas são feitas de chumbo. Acho que não vouconseguir ir adiante, mas quando me dou conta, já estou me aproximandodo balcão.

O garoto chamado Hector ergue os olhos azuis do computador para omeu rosto. Congela. Pisca. Pisca outra vez. E eu automaticamente repuxoos lábios num sorriso, esperando que seja estonteante.

Ele sorri de volta depois de piscar um pouco mais, conspicuamentedesnorteado. Não ouso me sentir triunfante.

‒ Oi. A Dra. Lílian está chamando você no consultório. ‒ Minha voz émeiga e firme e meus olhos estabelecem um contato direto com os dele.

Ele parece bobo e em transe.‒ Quem é você? ‒ pergunta, depois de um minuto.‒ Estagiária nova ‒ respondo, me debruçando no balcão, tentando

parecer à vontade.‒ Não sabia que estavam contratando. ‒ Ele franze o cenho, atônito,

mas não parece duvidar de mim.Respondo apenas com um balançar de cabeça, mantendo o sorriso

carismático, e tamborilo os dedos. Hector ainda fita meu rosto comadmiração; eu resisto à revirar os olhos.

Se manda logo, cara.‒ A Dra. Lílian ‒ lembro-o.‒ Ah, sim, claro. ‒ Ele se levanta aos tropeços. ‒ Pode ficar no meu

lugar?Com prazer.‒ Claro. ‒ Abro um sorriso.Ele agradece com uma piscadela marota, um flerte que eu não contava,

e se afasta. Estou suspirando de alívio. Porém, não perco tempo. Assimque ele desaparece das minhas vistas, apanho o cartão ao lado do tecladodo computador e rumo à porta. Deslizo-o no painel ao lado da maçaneta edigito o que espero ser a senha correta.

Depois do clique, sei que a porta está destrancada e, sem pestanejar,

entro na sala.O recinto é quase do mesmo tamanho que a sala do almoxarifado, está

repleto de caixas espalhadas, estantes altas e armários largos, cada um comquatro gavetas sem puxadores. Uma mesa baixa e simples com notebook eimpressora foi espremida no canto.

Como o tempo é curto, disparo pela sala, abrindo cada gaveta, cadacompartimento, procurando qualquer sinal do nome “Richard Harley”.Há tanto para verificar que, por uns minutos, fico perdida: livros, tabelasperiódicas, frascos, maletas, pastas... e um grande nada sobre o dono destenojento e maldito prédio.

Não. Não pode ser.Ele é o dono deste lugar. Tem que haver alguma coisa. Qualquer coisa

sobre esse homem.Mas não há, e tenho vontade de soltar os nomes dos piores palavrões

que conheço após reconhecer que perdi meu valioso tempo ao vim nestefim de mundo.

Sentindo-me derrotada e sem um pingo de vontade de ser pega, saio dasala e tranco-a antes que o conquistador da recepção ao lado volte e meencontre ali. Assim que devolvo o cartão ao lugar em que eleestava, escuto algo.

Paro no lugar.O que é isso? Passos?Sem querer me certificar, começo a andar rápido numa direção

qualquer. Enfio as mãos nos bolsos do jaleco e fecho-as em punhos. Seráque havia alguma câmera na sala? Oh, não. Por favor, não. Dou passadasmais largas, ágeis, mas não como se estivesse correndo, fugindo. Nãoarrisco olhar sobre o ombro.

Isso, Aurora, olhe para a frente.‒ Ei, você?! ‒ Duas vozes gritam atrás de mim ao mesmo tempo.Meu coração é o primeiro a reagir, acelerando.Estão falando comigo, estão falando comigo.Não olhe. Não olhe.Não resisto: olho. Há dois homens altos e intimidantes na minha cola.Ah, merda!Viro à direita e um outro longo corredor surge à minha frente, bem

como uma porta vermelha de emergência. Irônico, mas apropriado. É umaemergência.

Fujo por ali...Uau!A descida é longa. Cair e quebrar o pescoço não é uma boa ideia no

momento, por isso sou cautelosa, mantenho os olhos à frente e nos meuspés.

Começo a descer.Do nada, o som de um tropel de passos me alcança e faz meu couro

cabeludo pinicar. Todos os pelos do meu corpo se eriçam. Ah, caramba,ainda estão atrás de mim. O que eu vou fazer?

Corra, droga. Mais rápido!Minha razão está gritando.Obedeço-a. Limpo o suor da testa. Adrenalina flui em minhas veias e só

espero que ela não transforme minhas pernas em gelatina. Por quantotempo mais terei que fugir? E se me pegarem, o que vão fazer comigo?

Não quero ter que machucar ninguém.Paro de pensar. Só está me deixando mais nervosa. Foco, foco, foco.

Desço mais um lance de escada e avisto um possível milagre: outra porta.‒ Acesso restrito ‒ leio a plaquinha pregada. Forço a maçaneta e

empurro. ‒ Então não devia estar aberta ‒ murmuro e entro.Olhar ao redor é a primeira coisa que faço quando piso os pés do lado

de dentro. Não quero ser surpreendida por mais nada. Minhas mãos estãona fechadura, segurando-a com tanta força, até ter plena certeza de quemeus seguidores não vão forçá-la e entrar aqui.

A sala em que entrei é enorme, fria e com fraca iluminação. Há cortinasde plásticos dos dois lados, que provavelmente servem como divisão deleito. À minha direita, uma mesa comprida de aço está abarrotada debandejas de frascos, agulhas e seringas.

Ah, meu Deus, que diabo de lugar é este?Arquejando, solto a fechadura vagarosamente e vou me distanciando da

porta. Minhas mãos marcadas expressam o esforço que eu estava fazendo.Inalo ar necessário para estabilizar minha pulsação, mas nem para isso eutenho tempo. Em algum lugar da sala, uma porta se abre.

Oh, não!

Rapidamente me esgueiro para detrás do cortinado de plástico, masquase volto para fora. De pavor! Meu grito fica preso na garganta, emesmo assim, cubro a boca com as duas mãos. Lágrimas escorrem porminhas bochechas quando meus olhos arregalados veem o que seencontra ali.

Um garoto inconsciente ‒ ou morto ‒ descansa sobre uma maca. Eleestá vestindo apenas uma calça jeans rasgada, as veias do seu corpo inteiroassustadoramente proeminentes e com um brilho violeta que parece semovimentar sob a pele, circulando por todo seu corpo.

Em um jorro de horror, eu o reconheço.É o garoto da recepção. Hector! Por que ele está assim?Dou as costas à cena macabra, ainda com as mãos cobrindo a boca, e

vejo pelas frestas da cortina, uma mulher apanhar uma bandeja deseringas na mesa comprida.

Ah, meu Deus!Minhas pernas tremem, e tenho de usar toda a força que ainda não foi

sugada do meu corpo por essa aventura para conseguir me manter de pé.Sem avisos, a mulher some do meu campo de visão, e instantes depois,

ouço o barulho da porta sendo aberta e fechada; trancada, talvez, emboraespero que não, pois preciso dar o fora daqui agora mesmo.

Mas ainda sem abandonar a cautela, aguardo a barra ficar limpaesperando apenas mais um minuto. Em seguida, saio do leito, tento nãoolhar para o garoto às minhas costas. Eu deveria ajudá-lo, meu Deus, eudeveria ajudá-lo. Mas não sei o fazer. Não sei que lugar é esse.

Tento não pensar se atrás dos outros cortinados há mais alguém comoHector e começo a andar, mas não chego nem a metade do caminhoquando um barulho de chaves atravessa os meus ouvidos. Tiro as mãos daboca e corro para a única saída: uma porta a três metros e meio dedistância de mim.

Abro-a e entro, escorregando imediatamente para o chão. Fico sentada,abraçando as pernas, e ponho o rosto entre os joelhos. Imagino que estouem qualquer outro lugar, fazendo qualquer outra coisa, mas isso só fazcom que a raiva de mim mesma aumente. Ergo o rosto uns poucoscentímetros e espio pelas persianas abertas da janela de vidro.

Um homem de jaleco branco entra em vários cortinados, fica um tempo

lá dentro e depois sai. Entrementes, eu oro para que ele não decida vir atéonde me encontro.

Por favor, não venha.Olho meu relógio de pulso e acompanho os dez minutos mais longos de

toda minha vida passarem. Cada segundo uma demasiada vagareza, ummais doloroso e maldito que o outro.

Por fim, o homem vai embora, e optando por não esperar nem mais umsegundo, levanto o corpo. Testo a firmeza de minhas pernas, sei que possoandar, então giro a fechadura, mas sou parada por uma maleta... naverdade, não a maleta, mas sim duas letrinhas: RH.

Não penso: puxo-a pela alça e saio da sala. Fora dali, vejo três portasdisponíveis para minha fuga. Escolho a mais próxima de mim edesemboco no corredor do térreo, o que oferece acesso à recepção dogaroto John. Uma turma de adolescente está saindo dos elevadores, e memisturo a ela.

Não sei como fingir estar numa boa, porém não olho para ninguém enão sei se percebem meu péssimo estado. Não me sinto aliviada ao entrarno meu carro, jogar a maleta no banco do carona e dar a partida. Não mesinto nem um pouco bem para dirigir, mas não posso ficar ali. Então eufujo, mais uma vez, do que era para ter sido uma diversão, mas não foi...

Ah, mas não foi, mesmo. A CAMINHO DE CASA, livro-me do jaleco branco, jogando-o em uma lata

de lixo, no momento em que me dou conta de que ainda estou com eleno corpo. Gostaria também que minhas memórias desaparecessem,pegassem um voo e partissem para bem longe de mim, sem nenhumapromessa de retorno; elas não são nada sadias para minha cabeça... e nãosão normais.

É hipocrisia? Egoísmo?Eu pensei que fosse uma exceção à regra. Pensei que minha vida, meu

corpo e minha força fossem uma exceção à regra; um desequilíbrio dahumanidade. Um presente de mau gosto de um destino traiçoeiro.

Mordo o lábio. Lágrimas silenciosas escorrem por meu rosto mais umavez, e não me preocupo em enxugá-las.

A maleta preta ao meu lado parece exigir minha atenção, cobrando seu

preço por estar ali tão perto de mim. Um arrepio percorre meu corpo,assim como uma emoção ruim. É apenas inevitável, e não me surpreendenem um pouco.

Vindo daquele lugar, nada de bom pode conter ali dentro.

Eric

"A quem você serve?"

Desperto com um sobressalto e, entorpecido de uma forma que nunca

me senti antes, tenho dificuldade em abrir os olhos. Minhas pálpebrasestão pesando uma tonelada. Há um barulho agourento de sinos ecoandodentro da minha cabeça. Não consigo me concentrar. Algo não está certo.Algo aconteceu comigo. Mas o quê? Forço-me a lembrar de qualquer coisaque seja, mas minha mente é um grande espelho embaçado...

Não consigo estender a mão e limpar sua superfície vítrea...Estou preso, eu noto. Braços acima da cabeça. Pulsos pressionados. Pés

fora do chão...Estou suspenso. Machucado.Meus batimentos cardíacos saem do ritmo conforme o estupor absoluto

vai cedendo e outras percepções começam a surgir em minha pele fria epegajosa. Dor, principalmente.

E está por todo lado e ao mesmo tempo concentrada num único ponto.Aguda. Intensa. Sufocante. Apertando minha garganta...

Desato a tossir, e meu peito lateja com o esforço, sangue encharcandomeus lábios. Sinto o gosto. Sinto o cheiro. Está por todo canto também eem mim. Em minhas roupas. Escorrendo sem parar. Pingando epingando. Como uma torneira semiaberta.

Que droga é essa?‒ Finalmente! ‒ exclama uma voz animada perto do meu corpo, e o

barulho de sinos é abafado pelas lembranças que estouram na minhamente.

Aurora. A harpia. A luta.

Maldição!Tento abrir os olhos de novo, e desta vez minhas pálpebras se erguem

vagarosamente. Tudo ao alcance das minhas vistas está fora de lugar ‒ asparedes, o chão ‒, como se estivesse rodopiando. Não sei onde estou.Há uma silhueta escura diante de mim... ou duas... Três.

Não.Estou vendo coisas. Coisas que não existem. Suspendo o rosto só um

pouco depois que a tosse passa e busco encontrar um jeito de retomar alucidez, mas... essa... fraqueza...

Não é normal.‒ O que você fez comigo? ‒ pronuncio a pergunta, e minha voz soa

terrivelmente fraca.A harpia ri e se aproxima, cada passo que ela dá ecoando neste estranho

espaço, que ainda não consigo reconhecer. Mas agora, não interessatanto. Estar preso e zonzo de dor é o que realmente não me agrada nemum pouco. Escondo isso ‒ a aflição de estar vulnerável ‒ e sorvo o ar naesperança de que ajude a relaxar meus batimentos cardíacos. Funciona.

‒ Você é tão fraco ‒ diz a harpia, seu hálito no meu rosto agora. ‒Porque é metade humano. Porque apesar do que a Trindade fez comtanto capricho... transformando um bando de homens e mulheres emcriaturas como nós... ‒ Ela ri. ‒ Não foi suficiente... Sua raça extintanunca será igual ou párea à minha.

‒ Mesmo? ‒ Rio a grande custo, sabor de sangue em minha boca. ‒Então por que você não me solta e diz isso de novo? ‒ indago, sendocorajoso ou muito idiota.

Estou fraco e negar isso é estupidamente ridículo. A harpia me fita comum brilho perverso e sedento nos olhos. E quero esmagar seu sorriso.

‒ Eric, querido ‒ desdenha ela, passando a mão nos meus cabelosembaraçados ‒, você não está em condições de me enfrentar. ‒ Ri derepente, de novo. ‒ Sério. Dê uma olhada em si mesmo... ‒ Suasunhas deslizam para o meu peito, rasgando minha camisa, minha pele,durante o percurso.

Trinco os dentes. Tento não lhe dar o prazer de assistir à minha dor.‒ O que. Você fez. Comigo? ‒ pergunto pausadamente, rosnando.Um minuto de silêncio. Então, ela diz:

‒ Isto.A dor explode dentro de mim quando um objeto pontiagudo penetra

ainda mais fundo em meu abdome, e não consigo não berrar. Em umincontrolável segundo de desesperança, puxo as amarras que me mantêmpreso, mas elas não cedem. Puxo outra vez e outra vez e outra vez.

É inútil.‒ Você é muito patético ‒ sibila a harpia, pressionando meu rosto com

as garras brutais. ‒ Sua força, seu corpo, sua natureza. Patéticos!Ela cospe em mim. Meu sangue esquenta.‒ Olha só quem fala ‒ consigo sussurrar em meio a dor de suas unhas

ferindo minha pele, em meio a falta de fôlego. ‒ Diga. Há quanto tempoestou aqui, hein? Há quanto tempo estou aqui sangrando? Enfraquecendopouco a pouco a fim de facilitar as coisas para você... Porque nãoconsegue me enfrentar se não for desse jeito, não é? Porque é covardedemais para lutar comigo quan...

Um tapa forte me atinge e rasga a pele do meu rosto. O sangueescorre. Vejo estrelas, ouço sinos ecoando novamente, mas desta vez nosmeus ouvidos.

‒ Seu... seu... ‒ ela fica repetindo, gaguejando e espumando de ódio.Minha vontade é de sorrir, mas não tenho forças nem para esticar os

lábios.‒ Me mate ‒ eu exijo a ela, balbuciando. ‒ Me mate agora mesmo ou

então me solte para que eu possa rasgar sua garganta, sua vadia imunda.‒ Argh!Sou agarrado pelos cabelos, minha cabeça sendo erguida com selvageria

e encarado nos olhos que pouco enxergam. Estou aturdido e quase cegode dor. Não sei se suporto uma luta neste momento, mas não posso deixarde esperar que livre das amarras de aço minhas chances sejam melhores.

‒ Terá a luta que tanto deseja, garoto ‒ diz a harpia entre os dentes, eum segundo depois estou desabando de quatro no chão com as mãosainda acorrentadas.

O impacto súbito da queda me rouba o ar por alguns segundos,chocalhando todos os meus ossos debaixo da pele. Meu peito doloridoestremece junto com meu crânio e não termina. Nunca termina. Umaagonia sem fim sequestra e devolve meus sentidos repetidamente.

Como conseguirei...Inesperadamente, vomito um jato de sangue no piso de madeira e, com

as mãos espalmadas, tento não cair em cima da poça que está seformando. A dor no meu abdome, o modo como ela se alastra... sequerme permite pensar ou me mover. Mas com um esforço hercúleo, consigome pôr sentado sobre os calcanhares.

Logo depois, baixo os olhos para minha barriga onde uma faca de caçaestá inteiramente enterrada. O sangue não para de jorrar. Preciso removê-la. Preciso mesmo removê-la. Minhas mãos algemadas estão tremendotanto. Ergo-as mesmo assim, os dedos espasmando, envolvo o punho dafaca...

Hesito.Respiro fundo.E puxo, gritando. Xingando.A harpia ri, de pé a alguns passos de distância de mim, observando-me

com uma alegria estampada no rosto... planejando um jeito de me matarsem pressa, talvez.

Preciso me levantar. Agora. Defender-me.As correntes das algemas são largas. Posso lutar. Nem fodendo eu

morrerei de joelhos, mas... Deus!Como eu gostaria que meu corpo parasse de parecer que vai se

desintegrar.Tenho quase certeza de que estou por um fio de explodir em milhares

de pedacinhos.‒ Sabe, Eric ‒ diz a harpia, caminhando repentinamente para onde

estou agachado ‒, não era para ter sido você. Não hoje.‒ Então...‒ Mas aí ‒ continua ela ‒, você fez questão de cruzar meu caminho lá na

floresta ‒ seu tom de voz é áspero ‒ e me deixou com ódio.Uma joelhada me acerta o rosto e me lança para trás, para o chão. Caio

de costas, gemendo. Fecho os olhos com a dor. Não tenho forças nempara me mexer. A harpia pisa no meu pescoço com a bota.

‒ Muito ‒ ela enfatiza com um rosnar ‒ Ódio. ‒ Suspira. ‒ Agora euvou ter mais trabalho para chegar àquela garota.

Aurora!

‒ E quando eu a encontrar... Ah, querido. Ela vai sofrer muito mais doque você, eu posso garantir.

‒ O que você quer com ela? ‒ indago, a voz estrangulada, engasgando.Mau pressentimento esfria minha pele. Não recebo respostas.‒ Eu perguntei ‒ sibilo, impaciente ‒ o que quer com...Recebo um chute no rosto e o golpe entorta o meu nariz, parte meus

lábios...‒ O que querem todos eles?! ‒ rosna ela. ‒ Essa é pergunta correta, seu

imbecil. Essa é a questão!Meu tom embargado de choque é incontrolável.‒ Todos?! ‒ Abro os olhos.A harpia franze a testa para mim estirado no chão.‒ Você não sabe ‒ constata ela com um enorme sorriso agora. ‒ Pelos

Deuses!‒ De que diabos está falando?! ‒ Quem mais está atrás de Aurora?!Ela ri satisfeita e tão... distraída. É um alívio apesar da dor excruciante

que estou sentindo. Minha capacidade regenerativa não é capaz de curarum ferimento tão profundo nas condições desprezíveis em que meencontro. Mesmo que eu consiga me livrar dessa harpia nojenta, não seicomo chegarei em casa.

De qualquer forma, não posso pensar nisso. Não agora.‒ A quem você serve? ‒ disparo a pergunta. ‒ O que querem com a

garota? Ela não tem nada a ver com vocês! ‒ grito.‒ Não ‒ responde ela, risonha, machucando meu pescoço com a bota

outra vez. ‒ Ela tem a ver com vocês.O quê?!Minha cabeça se balança automaticamente em negação. A harpia ergue

os lábios, abre um sorriso maléfico.‒ Sim. E morrerá por isso. Assim como você. Está pronto?‒ Espere... ‒ sussurro, fazendo força para erguer o braço, e fecho meus

dedos fracos ao redor do seu tornozelo. ‒ Espere...Ela debocha sem me deixar prosseguir:‒ É inacreditável! Olha só para você. ‒ Gargalha. ‒ Vai implorar? ‒

pergunta. ‒ Por misericórdia? Pela vida da garota?‒ Não... ‒ Eu só... eu só preciso saber. ‒ Quem a enviou? ‒ pergunto.

Ela solta um risinho, revirando os olhos.Vamos, sua maldita. Fale. Quem? Quem?‒ Eu queria poder contar, Eric. Queria mesmo. Mas... ordens são

ordens. E além do mais, ela não ficaria nada feliz comigo.Hã? Minha concentração desce pelo ralo.‒ Ela? Quem é ela? ‒ pergunto. Espero.‒ A mulher que odeia você, Eric, e odeia aquela garota também.O quê?!Não... não.Paro de respirar à medida que essas onze palavras cruzam e se infiltram

em meu cérebro, desencavando memórias ‒ suspeitas irrefutáveis ‒ deuma conversa que pode ter acontecido a pouco ou muito tempo atrás.

É claro.Meu sangue esquenta outra vez com a informação que, de nenhuma

forma, eu esperava. Chega a ferver. Meu corpo se autotransforma.Eu sussurro a ordem:‒ Diga o nome dela.‒ O que você...A harpia tenta escapar quando meus dedos comprimem seu calcanhar

com uma força inesperada, que está se espalhando gradativamente dentromeu ser.

‒ Diga. O nome. Dela ‒ exijo.‒ Seu cretino bastardo...Ela me suspende pelo pescoço enquanto pragueja, mas antes que

termine a frase, vejo a mim mesmo cerrando a mão em punho edesferindo um soco que a arremessa para trás como uma asquerosaboneca de pano e parte a corrente das algemas. O corpo da harpia atinge aparede norte e, para o meu prazer, fica pendurado ali por uma barra deferro, que acaba cruzando seu pulmão direito.

Começo a andar. Meu ossos ainda vibram e estremecem pelo impactodo golpe e de tudo a que fui submetido, e estou esperando que a dorme faça cair de joelhos, me incapacite mais uma vez.

Porém, permaneço de pé, acelerado, sangue quente pulsando nas veias.O olhar focado. Meu instinto assume o controle, movido por umcaleidoscópio de sentimentos que mal consigo distinguir.

Mas não interessa. Não agora.Não quando estou, finalmente, prestes a terminar o que comecei.‒ Suas últimas palavras? ‒ pergunto a harpia quando chego perto dela,

minha voz tão fria quanto gelo.Ela olha no fundo dos meus olhos.‒ Seu fim está mais próximo do que imagina ‒ diz-me.Meus lábios se esticam no sorriso mais sombrio que já dei.‒ Talvez. ‒ Encolho os ombros. ‒ Mas o seu já está aqui ‒ murmuro e,

colocando as duas mãos em volta do rosto dela, faço um movimento ágilde giro. ‒ Vadia ‒ rosno, arrancando a cabeça do pescoço torcido comouma rolha de champanhe.

Então, a vitória.Doce e dolorosa... Mas, definitivamente, não completa.Sim. Ainda falta uma coisa. Ainda falta alguém. Ela. A maldita que

tramou tudo isso, que odeia Aurora e me odeia. É tão nítido. Eu sóconsigo pensar em uma pessoa.

Infeliz. Você é a próxima.Meus dedos ensopados de sangue escorregam e se agarram aos cabelos

castanhos da harpia enquanto um sentimento ruim e incomensurávelreacende o fervor em meu sangue e me oferece forças para continuar depé e andar na direção do meu novo alvo.

Trinco os dentes, resistindo bravamente a dor reverberante e a tonturaque a ferida no abdome me causam. Tropeçando para fora do casebre,estou firme em meu objetivo. Em meu destino.

Seja lá onde eu esteja, seja lá a distância entre mim e ela... Eu chegarei.Não importa que meu corpo inteiro trema como se estivesse sendo

eletrocutado e oscile de modo que a todo momento, durante o caminhoque mal consigo enxergar, eu precise me sustentar em troncos de árvores erespirar fundo e estancar o fluxo de sangue que está saindo do ferimento.

Não importa que ‒ ainda que eu seja uma aberração ‒ a poucahumanidade que exista em mim seja uma fraqueza. Não importa que euesteja fora de forma, que meu corpo necessite de algo que venhorecusando há bastante tempo. Porque não é seguro. Simplesmente não éseguro.

Não importa.

Permaneço firme. Guiado.Frases de minha conversa com a harpia estão sendo sussurradas no meu

ouvido, como um lembrete de que ainda tenho uma tarefa a cumprir, ecomeço a suplicar ao meu corpo que aguente mais um pouco.

“Ela não ficaria nada feliz comigo...A mulher que odeia você, Eric, e odeia aquela garota também...”Essa última frase prossegue ecoando na minha cabeça por não sei

quanto tempo. Um rosto surge na minha mente. Quanto tempo elademoraria para saber que não tinha dado certo? Eu sobrevivi e Aurora...

A não ser... a não ser que existissem mais delas à espreita naquelamanhã... Maldição! O que pode ter acontecido? Há quanto tempo estoulonge? Quão longe? O que...

‒ Olhe ele ali ‒ alguém diz, subitamente, a uma distância curta de mim.Ah, essa voz...Essa voz tem o poder de ferir, é aguçada como uma faca, penetrando

com vagareza em meus ouvidos, e o consolo presente nelas parecedeslocado, considerando tudo que passei nas últimas horas... ou dias.

Acho que é isto ‒ a amargura da revolta e indignação ‒ que clareia meusolhos como uma lâmpada fluorescente, porque do nada eu posso enxergarperfeitamente bem. Posso ver a área de entrada e saída do bosque e pelasfrestas das árvores, os contornos de uma cachoeira.

Sam e Elizabeth estão lado a lado. Ambos me contemplam muitosmetros à frente deles, uma mistura de conforto e espanto em suas feições.Já é quase noite. O crepúsculo anuncia o fim do dia... e da vida dealguém.

‒ Que droga, Eric! Onde você esteve? Ficamos... ‒ a voz de Sam vaidiminuindo ao passo que ele caminha rápido na minha direção ‒preocupados.

Seus olhos cinzentos perpassam meu rosto e meu corpo e se detêm noque carrego entre os dedos da mão.

‒ Que merda é essa que ele está segurando? ‒ sussurra, espantado.‒ É uma cabeça ‒ responde Elizabeth no mesmo tom.Encaro-a com raiva, e movido por uma força que não a minha,

recomeço a andar. É o monstro, assumindo o controle. Deixo que a friezame preencha.

Hora do show, Eric.‒ Reconhece a sua amiguinha? ‒ pergunto, resvalando hostilidade, e

levanto a cabeça da harpia que ainda pinga sangue.‒ O quê?!‒ NÃO MINTA PARA MIM!‒ Você está louco. ‒ Elizabeth balança a cabeça, desnorteada.‒ Ei, cara, o que aconteceu?Sam intercede com uma voz pacífica e faz menção de se aproximar, mas

é empacado pelo movimento brusco que faço ao jogar a cabeça da harpiapara Elizabeth. Ela ampara com nojo.

‒ Não se importem ‒ digo, calma e friamente, sendo pego de surpresapela repulsa que sinto da mulher à minha frente. ‒ Maldita, pode começara rezar. É o seu funeral.

Ela me vê avançar, por mais que eu tentasse ser imprevisível e, para seproteger do meu ataque, levanta a cabeça da harpia na altura dos olhos,impedindo que meu primeiro golpe dilacere seu rosto.

A cabeça voa longe.Elizabeth pula para trás em total espanto. Por vezes, parece que vai falar

alguma coisa, mas se interrompe quando percebe que meu golpe podeatingi-la se ela se desconcentrar nem que seja por alguns segundos. Isso ébom, pois não vou suportar ouvir sua voz, nem suas mentiras.

De uma forma descuidada, meu percurso é interceptado por Sam, e porpouco eu não o atingir mortalmente. Ele segura meus pulsos com firmeza,de modo que minhas garras fiquem voltadas para baixo, e seus olhosamedrontados encontram os meus.

Os traços do meu rosto estão contraído de raiva; o ódio intensogerando uma vibração tão forte em meu corpo. É avassalador. Sam precisame soltar.

Não quero machucá-lo!‒ Irmão, o que você está fazendo? ‒ pergunta ele, a voz entrecortada por

causa dos meus esforços de tirá-lo do caminho. ‒ Pare! Vamos conversar.Por que está atacando Elizabeth? O que foi que ela...

‒ Fique fora disso. ‒ Empurro-o para o lado. Ele cai de cara na terra,distante o suficiente de mim.

Procuro Elizabeth girando a cabeça e a encontro paralisada, seus olhos

muito azuis, arregalados, vindo de Sam caído no chão para mim.Avanço para ela outra vez.Ela é tão boa. Tão odiosamente boa. Preparada. Bloqueia todos meus

ataques como se fosse a coisa mais fácil e prática do mundo. Salta, gira,esquiva. E estou com raiva. Estou com ódio. Quero vê-la gritar de dor.Quero arrancar seu coração do peito. E não vou descansar até conseguir.

Não posso descansar.Minha natureza é incapaz de descansar.‒ Eric, pare! ‒ grita Sam quando finalmente consigo ferir Elizabeth, e o

sangue nojento dela começa a aflorar nas vestes.Uma de minhas mãos está fechada no seu pescoço e a outra penetra seu

peito.‒ Você... você não quer... fazer isso ‒ diz ela, as palavras saindo

interrompidas.‒ Está enganada. Quero fazer pior.‒ Argh!Ela agarra meu pulso quando impulsiono a mão para dentro do seu

corpo. Seus olhos azul-escuros encontram os meus, e ela pareceridiculamente espantada e até decepcionada. É a forma mais baixa decontra-ataque.

‒ Seja lá qual for a razão de estar fazendo isso ‒ diz ela, aborrecida,puxa meu punho para fora do seu estômago ‒, saiba que eu não fiz nada.

‒ MENTIROSA! ‒ berro e atinjo seu peito com o pé.A expressão mortificada de Elizabeth é a última coisa que vejo. O

barulho do seu corpo se chocando nas árvores retumba para dentro dobosque, depois desaparece.

Minha semi transformação é desfeita. Meus joelhos trêmulos cedempelo peso do meu corpo assim que os braços de Elizabeth não são mais oque me sustentam. Caio de joelhos com os punhos enfiados na terra,arfando ruidosamente.

Estou coberto de sangue ‒ meu sangue.Tudo começa a ficar escuro, não mais embaçado, mas como se alguém

tivesse colocado um pano preto nos meus olhos. Sinto a presença de Samao meu lado, sua mão no meu ombro, sua voz me dizendo coisas que nãoconsigo entender... ela parece muito longe.

A dor aguda na barriga e as pontadas ininterruptas por todo o meucorpo me deixam atordoado. Antes de desmaiar e a escuridão me encobrirtotalmente, sinto que despenquei sobre uma poça de sangue.

Aurora

"Ele?!"

Meus pesadelos mudaram drasticamente.

De novo.Eu pensei que poderia expurgar a experiência horrível no laboratório de

Richard Harley apenas sendo paciente, dando tempo ao tempo. Masentão, eu comecei a sonhar todas as noites com aquele lugar... e comHector.

No sonho, ele me persegue numa floresta negra e ao mesmo tempofamiliar, culpando-me aos berros por tê-lo enviado a doutora Lílian edepois por tê-lo abandonado naquela sala fria e escura.

Eu apenas corro, a toda velocidade que consigo, implorando a ele queme perdoe, digo que não sabia o que fazer, que não queria que aquilotivesse acontecido.

Então acordo, completamente molhada de suor, e só consigo voltar adormir depois de horas. Às vezes, nem consigo. E acordada, busco medistrair da maleta que escondi no fundo da gaveta de minha penteadeira.Fiz isso no momento em que pisei os pés na mansão naquele dia.

Para ser honesta, não tenho a mínima vontade de abri-la. Disse a mimmesma que só a trouxe porque precisava que minha ida àquele fim demundo tivesse, de algum jeito, valido a pena.

Não questionei nada a Henry sobre a família Harley que nósconhecemos. Ele tem estado tão ocupado com um evento misterioso najoalheria, que mal tem tido tempo para conversarmos com calma.

Parte de mim se sente aliviada em segredo.Não sei o que dizer a ele. Não sei como contar sobre o envelope que

recebi e que ainda permanece uma incógnita. Não sei... não quero ter quepensar nisso, na verdade. Não quero imaginar no que tudo aquilosignifica, se for real.

Acho que posso definitivamente enlouquecer.‒ Você não está com uma cara boa ‒ murmura Luccas, pondo uma

mecha do meu cabelo atrás da orelha.Ele deve estar há minutos tentando atrair minha atenção, contudo

estou distraída demais. Tem sido assim durante a semana toda. Nãoconsigo me concentrar em nada, e embora meu olhar pareça focado,minha mente está sempre longe do lugar que meu corpo realmente seencontra.

‒ Não dormi bem ‒ murmuro a desculpa de sempre.É sexta-feira e a perspectiva do fim de semana não é fascinante o

bastante para me fazer ansiar por ele, mudar meu humor e acalmar meuespírito perturbado. Terei que dar um jeito de não ficar em casa.

‒ Espero que isso não atrapalhe nossa saída hoje à noite ‒ diz ele, umtraço de expectativa nítido na sua voz. ‒ Não será a mesma coisa sem...

‒ Vamos sair? ‒ pergunto, surpresa.‒ A festa, lembra? ‒ Evelyn entra na conversa, sentada ao lado de

Luccas. ‒ Você ainda está com seu ingresso, não está?Recordo do bilhete, até então esquecido, deixado em cima da mesinha

em meu quarto. É tudo que eu precisava para não ter que ficar em casahoje à noite. Talvez eu fique bêbada, penso. A ideia me deixa animada. Fazmuito tempo que não fico bêbada.

‒ Aurora? ‒ Alguém estala os dedos na frente do meu rosto.‒ O que foi?‒ Você está bem? Está com uma cara estranha ‒ diz Evelyn, me olhando

de lado, meio preocupada.‒ Não é nada ‒ respondo, balançando a cabeça, e sorrio.Mas ela não acredita e continua me observando de soslaio até a sirene

tocar, encerrando o intervalo. Todo mundo no pátio começa a se mexer.‒ Passo na sua casa as 20h, ok? ‒ diz Luccas para mim e me aplica um

beijo rápido na bochecha, mas sai antes que eu possa responder.Evelyn ainda está arrumando seus pertences na mochila e sorri de um

jeito muito descarado na minha direção.

‒ Pare com isso ‒ digo a ela, que libera uma risadinha. ‒ Nos vemos ànoite ‒ falo e sigo à aula de Sociologia.

Assim que estou fora de suas vistas, me flagro tocando o lugar em queos lábios de Luccas encostaram.

AO CHEGAR EM CASA da escola, tomo um banho de banheira bem

demorado, visto uma roupa leve e em seguida corro à cozinha.Estou morrendo de fome.Safira fica feliz com o retorno de meu apetite e capricha na refeição:

lasanha. Minha comida favorita. Henry não vem almoçar em casa, comotem feito nos últimos dias, contudo Safira me faz companhia.

‒ A senhorita está feliz hoje ‒ comenta ela, indo pegar a sobremesa nageladeira.

‒ É sexta-feira e... Ah, meu Deus! Isso é crème brûlée?!‒ Sim!‒ Ahhhhh!! ‒ Bato palmas feito uma criança.‒ Fiquei sabendo que é a sua sobremesa predileta. ‒ Ela deposita a

bandeja com vários potinhos brancos diante de mim.‒ Você ‒ aponto para ela ‒ é a melhor. Venha. Sente. Coma comigo. ‒

Puxo-a pelo braço.‒ Srta. Aurora ‒ Safira balança a cabeça, incerta ‒, não é apropriado.Fecho a cara de brincadeira.‒ Por favor ‒ suplico, unindo as mãos. ‒ Eu já disse. Essa formalidade

entre nós não é nem um pouco necessária. Somos amigas, não somos?‒ Claro que sim, mas...‒ Sem “mas”. Sente-se. ‒ Aponto para a banqueta. ‒ É uma ordem, se

isso a faz se sentir melhor. ‒ Faço uma expressão de mandona.Ela ri e, por fim, senta-se ao meu lado. Empurro a colher e o potinho de

crème brûlée em sua direção e, ao mesmo tempo, quebramos a cama deaçúcar da sobremesa.

‒ A senh... você ‒ corrige-se ligeiramente sob meu olhar de aviso. ‒Você é impossível, sabia?

‒ Sim. Minha mãe me diz isso o tempo inteiro ‒ respondo e provo dodoce...

Ah, Deus, está muito bom!A conversa com Safira é leve. Como eu, ela não revela muito. E eu

adoro o fato de termos algo em comum, de olhar para o seu rosto e sentirque, de alguma maneira indistinguível, somos iguais.

Há algo em Safira... algo estranho, mas bom e que nos conecta.Eu nunca senti isso com nenhuma outra garota. Nem mesmo com

Evelyn, de quem eu gosto muito.Por isso, fico satisfeita com o pouco que ela compartilha comigo e

surpresa por ser uma garota de apenas vinte e cinco anos tão linda einteligente. Ela me conta que cursou Gastronomia na Itália e fala quatrolínguas. Quando, inevitavelmente curiosa, lhe pergunto o que estáfazendo na Ilha de Íris, ela vacila, depois diz que sua mãe adotiva precisadela.

Não pergunto o que houve com seus pais biológicos. É pessoal demais.E ela não parece querer contar, por isso mudo de assunto. Falo sobre afesta que vou hoje à noite. Pergunto se ela gostaria de me ajudar aarrumar o cabelo e fazer a maquiagem.

Ela diz:‒ É para isso que servem as amigas, não é?Eu faço que sim e sorrio. À TARDE O TEMPO voa, e posso sentir meu ânimo retornando, meu

espírito mais forte e em paz. A perspectiva de uma noite de festa e aconversa com Safira me fizeram muito bem, no fim das contas.

Enquanto ela exerce seus afazeres na cozinha, eu cumpro com minhasatividades escolares no quarto; um pouco mais tarde, ligo para minhamãe, para Henry e faço um circuito de exercícios na academia. Todanegatividade é expulsa do meu corpo pelo suor, e no fim, ele está maisleve.

Assim que Safira está livre de suas obrigações, ela vem me encontrar nocloset. Não está mais usando o uniforme escuro que esconde seu corpoescultural, os cabelos ruivos estão presos num rabo de cavalo, e ela pareceansiosa em me ajudar. Está falando sobre uma dupla trança com duplocoque que vai ficar linda em meu cabelo.

Ela também gosta de fazer tranças!

Acho que já amo essa garota. Minha mãe me ensinou a gostar de fazerpenteados, especialmente tranças. Ela costumava ser minha parceira nesseramo. Acho que acabei de ganhar uma nova.

Eu e Safira começamos por uma maquiagem super básica, uma vez quedetesto rebocar minha cara com pós e bases e corretivos e toda bagagemque as outras garotas gostam de usar por aí.

Depois, passamos para o cabelo. Ela assume essa parte e, enquanto suasmãos dividem os fios, ela explica o passo a passo para que eu possaaprender e fazer quando quiser.

Não é aparentemente difícil, mas não sei se consigo fazer com que fiquecomo o dela. Embora eu ainda não tenha me olhado no espelho, sei queestá perfeito porque ela não para de fitar meu rosto com um ar orgulhoso.

Tenho vontade de rir.Por fim, vamos à caça da roupa. É um jogo rápido. Não tenho lá muita

disposição para ficar trocando de vestidos para saias e de saias para jeans,para depois voltar a primeira escolha.

‒ Você é tão prática ‒ comenta Safira quando tão logo puxo das ararasum vestido preto maravilhoso de alcinhas cruzadas nas costas. A peça éaberta até a linha da cintura e possui um forro de tule brilhante comlantejoulas miúdas incrustadas e um decote perfeito em v na parte dosseios.

‒ Na verdade, sou muito impaciente ‒ digo a ela, dando risada. ‒ O queacha? ‒ Suspendo o cabide do vestido que escolhi. ‒ Com meia-calça.Preta. Não fica exagerado, fica?

‒ Se exagerado é sexy, então sim. ‒ Ela pisca de um olho. ‒ Vá emfrente. Use. É lindo.

‒ Está bem.Em quinze minutos, consigo me vestir, escolher uma sandália de salto

agulha, uma bolsa que combine e acessórios básicos. Então, estou pronta.Em vez de me olhar no espelho, volto ao quarto onde Safira me espera.Sua boca fica aberta em um o quando me vê.

‒ Como estou?‒ Linda... de arrasar quarteirão ‒ elogia ela com um enorme sorriso, me

arrancando uma gargalhada.Nesse mesmo momento, ouvimos o barulho da buzina.

‒ Meus amigos chegaram!Apanho meu trench coat em cima da cama e o Iphone para enviar um

lembrete à Henry sobre a festa.‒ Arrase esta noite, certo? ‒ diz Safira à medida que saímos do meu

quarto.‒ Obrigada pela ajuda que me deu.‒ Não foi nada demais.Ela me dá um abraço rápido em forma de despedida ao chegarmos nas

escadas e sai em direção à suas acomodações no terceiro andar.Quando chego lá fora, vejo Evelyn acenando feito uma louca para mim,

de pé ao lado do táxi. Ela está usando saia e blusa justas, com uma jaquetalonga por cima e saltos altos. Antes de estar perto o suficiente para elogiá-la, ela exclama se mexendo toda:

‒ Isso não é justo! Você está... parecendo a Kylie Jenner! ‒ Seus olhoscastanho-escuros me filmam dos pés à cabeça, admirados.

‒ E eu acho que você precisa urgentemente de um par de óculos.Ninguém consegue se parecer com aquela mulher ‒ digo animada, e nósentramos no táxi. ‒ Oi, Luccas. ‒ Aceno para o garoto sentado no bancoda frente.

‒ Oi, Aurora... Uau! Você está... de tirar o fôlego ‒ diz ele e, comosempre, mal consegue me olhar nos olhos. Está vestindo calça e camisajeans azul-marinho arregaçada até os cotovelos.

‒ Obrigada pelo elogio racional. Você também está incrivelmentebonito ‒ devolvo. Isso o deixa mais tímido ainda.

Rumo à boate, Evelyn não para de falar nem por um minuto. Eu eLuccas apenas a ouvimos e gargalhamos de suas palhaçadas. Até o taxistaestá tentando segurar o riso. Ao chegarmos no lugar, ela pula para fora dotáxi, toda afobada e sai à frente, liderando-nos.

A boate é incrível e bem espaçosa. O palco montado está vazio, mas amúsica rola a solta, agitando a galera. O globo de luz girando no teto faz apedraria e o tule do meu vestido brilharem intensamente, atraindoatenção de quem passa.

Contudo, ignoro os olhares que me desconcertam um pouco e foco naideia de diversão que mereço e preciso.

‒ Vamos dançar! ‒ Evelyn me arrasta junto com ela para a pista.

‒ Não podemos beber algo antes? ‒ grito por causa da música alta.‒ Olhe. ‒ Ela aponta para o bar. ‒ Está lotado. Vamos dar uma volta na

pista primeiro. Aquecer o corpo. Você dança, certo?‒ Claro!Ela se anima com minha resposta enfática e continua me puxando à

pista de dança, abrindo espaço entre o pessoal. Luccas nos segue meiodeslocado. Jennifer Lopez canta com sensualidade, fazendo todo mundose mexer. Evelyn começa a rebolar ao som de “Booty”, e eu a acompanhosem receio, mexendo a bunda. Isso atrai uma turminha de garotos paraperto de nós, mas eu me esquivo.

Esbarro em Luccas atrás mim.Ele me gira, as mãos na minha cintura, marcando território.‒ Eu protejo você, ok? ‒ Ele pede permissão, como um cavalheiro.Eu sorrio.‒ Parece perfeito e...Meu olhar se desvia do seu rosto só por um segundo durante resposta e

congela num ponto acima da linha do seu ombro.Alguém me observa do bar...Não!Ele?!

Eric

"Ela está tentando me matar."

Estou curado.

Depois de sete dias ‒ sete malditos dias de tortura! ‒ e o mesmo tempode recuperação, que pareceu durar uma droga de eternidade, eu meencontro completamente curado. O buraco no meu abdome já não existemais e as sinceras desculpas que fui forçado a pedir a Elizabeth são apenasuma lembrança distante. Agora posso me concentrar inteiramente naminha vingança.

Mas não nesta noite, de acordo com o meu irmão.‒ Para aonde estamos indo? ‒ pergunto, sentado no banco do carona do

seu conversível.Ele está agindo misteriosamente desde que saímos de casa, e isso já está

começando a me dá nos nervos.‒ Blues Club ‒ diz Sam com uma cautela que não é do seu feitio e volta

a cantarolar o refrão de “Hall of Fame” de The Script.Deixo passar em minha irritação.‒ Que merda vem a ser isso, posso saber?‒ Uma boate, Eric. ‒ Ele revira os olhos.‒ Ótimo. ‒ Eu devia ter imaginado. ‒ Não é bem a ideia de diversão

que você me prometeu, sabe disso, não é?Espero uma resposta verbal de sua parte; uma provocação idiota,

talvez; mas ele apenas encolhe os ombros, sem olhar para mim. E então, jánão posso mais ignorar.

‒ O que está aprontando, Sam? Desembucha.

Ele continua evitando meus olhos e foca no trânsito à frente.‒ Sam!‒ Tente não arrancar minha cabeça, ok? ‒ murmura ele, tamborilando

os dedos no volante. ‒ Não estamos indo para lá à toa. Aurora vai estar naboate com Evelyn e Luccas ‒ Quê?! ‒ e... bem, mamãe pediu que eu ficassede olho nela...

Ele faz uma pausa e suspira, tenso pela reação já aparente em meurosto.

‒ Depois do que aconteceu naquela sexta-feira, ela acha que o atacantepode voltar e... você sabe. Espero que não se importe...

Tarde demais.‒ Espera aí! Você está de babá e me trouxe para ser... o quê? Seu

ajudante? A porra da sua... distração?Mas que inferno!Ele ainda não está olhando para mim.‒ Sei que tem andado preocupado com Aurora...Faço menção de retrucar, mas ele me corta.‒ Eu ouvi, Eric, eu ouvi você dizendo o nome dela enquanto dormia.

Não adianta negar.Trinco os dentes com um estalo audível.Ele não está errado. E odeio tanto isso que poderia saltar pela janela

deste carro. Jamais me preocupei com uma mulher ‒ ainda mais uma quecostumo sentir constantes assaltos de desejos de assassiná-la.

Como pode?‒ Não há nada de errado, sabe? ‒ diz Sam, baixinho, como se tivesse

lido meu pensamento. ‒ Você se importa. Não é tão terrível assim.Não respondo.Essa é uma merda louca e estranha demais. Inaceitável.Tenho sonhado com Aurora.Tenho desejado essa mulher.E isso está fodendo a merda da minha cabeça.‒ Tanto faz, cara. ‒ Ele suspira de novo. ‒ Pensei que quisesse achar o

responsável...‒ Eu vou ‒ cuspo através dos dentes cerrados.Ayla apenas conseguiu me convencer de que Elizabeth não teve nada a

ver com o que aconteceu, mas ainda assim existe um culpado, e eu malposso esperar para estar frente a frente com ele.

Meu corpo treme só de imaginar.‒ Você não precisa falar com Aurora, se não quiser, sabe ‒ diz Sam,

encolhendo os ombros, sua voz adquirindo um tom de alívio, como sefinalmente sentisse que o pior já passou.

‒ Aleluia! ‒ Sou hostil e sarcástico ao mesmo tempo, mas meu coraçãose acelera com uma expectativa ridícula.

Que droga! NA ALTURA EM QUE chegamos à boate, meu mau humor já é coisa do

passado e uma ansiedade atípica e enraizada começa a crescer dentro demim. Recuso-a imediatamente. É infantil e ridículo.

Sam estaciona o Z4 à medida que eu olho pela janela,incontrolavelmente procurando-a na imensa fila para ter acesso aointerior da boate. Não há ninguém com belas pernas torneadas e cabeloslongos e escuros como a noite.

‒ Ela já deve estar lá dentro ‒ diz Sam, carregando um sorriso idiota, aopasso que se livra do cinto de segurança.

Me precavendo da vontade de lhe oferecer um soco no queixo, saio doconversível. Em segundos, ele está ao meu lado, as mãos dentro dos bolsosda calça jeans.

‒ Então...‒ Precisamos de ingressos ‒ diz ele, casualmente.‒ Como assim?! Mas você não...‒ Foi uma decisão de última hora ‒ defende-se.‒ Ah, que maravilha! Como vamos entrar?‒ Bem, isso é óbvio, não é? ‒ Ele encolhe os ombros. ‒ Podemos... pegar

emprestado de alguém.Solto uma gargalhada ao entender exatamente o que ele quer dizer e me

posiciono de lado para encará-lo. Ele faz o mesmo.‒ Você não teria coragem.‒ Tem razão ‒ admite, rindo. ‒ Mas você teria.‒ Ah, que ótimo! ‒ resmungo, mais uma vez sacando a intenção por trás

das palavras, e saio de perto dele.

‒ Eric? ‒ Olho para trás.‒ Mulher não, ok?Reviro os olhos e continuo andando à procura de algum otário com

ingressos dando sopa por ali. Não preciso ir muito longe. Ainda dentrodo espaço de estacionamento, um imbecil de cabelos extremamentearrumados não imagina que seus bilhetes estão quase saltando do bolso dacalça jeans.

Só preciso dar alguns passos e... tenho um encontrão com ele, fazendo-osaltar meio metro para trás e esbarrar em algumas pessoas. Ops! Ele meolha com nítido desprezo conforme eu espero, ansiosamente, um soco quenão vem. Não que arrumar confusão seja uma boa ideia agora, mas...

Repuxo os lábios num ar insolente que deixa o babaca na minha frenteainda mais furioso.

‒ Olha por onde anda, cara ‒ diz ele, tombando o ombro no meu comuma força reles.

Idiota.Meu sorriso arrogante ainda está presente quando agacho perto de onde

os três ingressos caíram e os apanho. Que sorte a minha! Enfio-os no fundodo bolso da jaqueta preta de couro que estou usando e volto para ondeSam me aguarda. Pela sua expressão, sei que está impaciente.

‒ Você conseguiu? ‒ pergunta, ansioso, assim que estou perto.‒ O que você acha? ‒ Mostro os bilhetes com um sorriso vitorioso. ‒

Embora eu esteja me sentindo usado, acabei de ter absoluta certeza de quevocê é completo inútil sem mim, irmão.

‒ Convencido. Vamos lá ‒ resmunga ele, saindo à frente. A BOATE ESTÁ LOTADA. É difícil dizer onde as pessoas mais se

concentram, se é na pista de dança ou no bar. Para alegria do meu irmão,está lotado de mulheres querendo uma companhia ou apenas se divertir.Ele me dá uma cotovelada no peito só para mostrar o rebolado de umamenina.

Ah, meu Deus, cara, cresça.Continuo andando. Uma garota de olhos pretos, usando um vestido

excessivamente justo, se esfrega em mim ao passar ao meu lado e abre umsorriso provocante e convidativo. Dispensando-a educadamente,

desprendo seus dedos amassando minha camisa cara.Não quero nada com você, baby.Olho por cima do ombro à procura de Sam e aponto para uma parte

mais vazia da boate. Ele me segue, se remexendo feito uma lagartixa aosom de “Counting Stars” de One Republic enquanto tenta olhar paratodas as garotas ao mesmo tempo.

Imbecil.Por fim, alcançamos o bar, e tão logo uma garçonete morena de olhos

esverdeados aparece para nos atender com uma amabilidade exagerada.Sam faz o pedido das bebidas sem ao menos perguntar o que eu quero,roçando os lábios no ouvido da mulher no que ele considera um atosedutor.

Fala sério!A garçonete é rápida. Em menos de um minuto reaparece com duas

garrafas de Budweiser ‒ a cerveja preferida de Sam ‒ e um sorriso atrevidode brinde.

‒ Um dia desses você ainda vai ser acusado de assédio sexual ‒murmuro depois que a garota se afasta para atender outros clientes.

‒ Sem essa, irmão. Você viu a cara dela?‒ Coitada. Não sabe com quem está lidando ‒ implico de propósito.‒ Qual é! Eu sou um bom partido.‒ E um mulherengo da pior espécie também.Ele não se importa, nem nega e sorri enquanto usa a borda do balcão

para destampar a garrafa.‒ Cara, eu só estou me divertindo e você deveria fazer o mesmo, sabe?

Não acredito que deixou aquela gata passar. ‒ Sam vira metade da cervejagelada na boca. ‒ Às vezes, eu tenho dúvidas se você gosta mesmo demulher. Não que eu tenha algo contra, é claro. Não sou um carahomofóbico.

Ele dá ombros, e não consigo deixar de responder à essa estupidez.‒ Você não é mais homem do que eu só porque não consegue manter

seu pau dentro das calças, sabia? ‒ disparo com irritação, e ele se acaba derir.

‒ Toquei na ferida, hein?Reviro os olhos e volto a ignorar suas gozações.

‒ Qual é! Aqui entre nós ‒ insiste ele, mudando o tom de voz para umsussurro ‒, quando foi a última vez que você... ficou com alguém, humanaou não?

Quê?!Devagar, cara, devagar.Tudo gela dentro do meu corpo quando uma maldita recordação de

Elizabeth quicando para cima e para baixo em cima de mim me vem àcabeça.

Mas que inferno!Hora de mudar o rumo dessa conversa.‒ Sam, presta atenção. Lembre-se por que está aqui. Eu não vou fazer a

merda do seu trabalho, ouviu?‒ Não precisa, mano ‒ retruca ele, dando uma piscadinha, e põe a

garrafa de cerveja na minha frente. ‒ Agora, relaxa um pouco e bebe istoaqui. Eu vou dar uma volta. ‒ Depois some no meio das pessoas.

Droga!Enterro o rosto nas mãos e me sento no banco alto do bar. Culpa, raiva

e tensão se embaralham dentro do meu corpo, obrigando-me a respirarfundo na tentativa de dissipá-las.

Droga. Droga. Droga.Eu queria muito que fosse diferente, mas meu envolvimento

inapropriado com Elizabeth sempre será um fantasma a assombrar minharelação com Sam. Há uma semana inteira tenho pisado em ovos napresença dele.

Apesar de termos falado sobre o meu encontro com a harpia, ele nãofez nenhuma pergunta a respeito da minha conversa com Aurora e nemme acusou de transar com a mulher que ama.

Isso me deixa aliviado, em parte, mas não ameniza a culpa que sinto mealfinetar vez ou outra.

E não sei por quanto tempo mais poderei guardar esse segredo.Levanto a cabeça ao pressentir a presença de alguém se aproximando e

dou de cara com o sorriso atrevido da garçonete que trouxe as cervejas.Sua expressão de interesse é tão óbvia.

Desculpe, querida, você não serve para mim.‒ Não vai beber? ‒ pergunta ela e se debruça no balcão para mostrar o

decote.Não recuo ao responder com frieza:‒ Não. Pode levar. ‒ E ela sai nitidamente aborrecida.Não me importo.Giro o corpo no banco para olhar ao redor. A música mudou: “Naughty

Girl” de Beyoncé está tocando agora, conduzindo metade dos jovens àpista de dança. Atento a qualquer sinal suspeito, meu olhar não conseguedeixar de procurá-la no meio da multidão.

Aurora.Estou honestamente temendo o nosso encontro, e isso não é um

comportamento com o qual eu esteja familiarizado. Esse receio de nãosaber como irei reagir quando vê-la... me deixa tenso. Com os nervos àflor da pele. E odeio isso. Odeio não ser eu mesmo com ela.

Odeio que seja capaz de mexer com minhas emoções.Meu corpo.Mas sei que Sam não fará o que Ayla pediu. Ele se distrai muito fácil.Questiono-me se Aurora precisa mesmo ser vigiada. O que uma harpia

iria querer com ela? O que aquela harpia estava realmente fazendo atrásdela? O que todos querem? E quem são eles?

São perguntas que não saem da minha cabeça.Elizabeth era a suspeita mais qualificada a mandante do ataque, mas

Ayla está certa, por mais que eu deteste admitir.Não tenho provas de que foi Elizabeth.Ainda sinto o gosto amargo do arrependimento por não ter feito aquela

harpia nojenta falar mais, e em vez de só a cabeça, ter levado o corpointeiro.

Vivo.‒ Ei ‒ uma voz suave se dirige a mim.Viro meu corpo nessa direção.Com um decote menos evidente do que o da anterior, uma nova

garçonete se debruça na bancada, observando-me através dos olhoscastanho-claros... levemente semelhantes aos de uma certa dama queconheço.

Rio por dentro.Não posso acreditar.

Estou vendo Aurora até em outras mulheres.‒ Não vai beber? ‒ pergunta a garçonete, arrancando-me de meu delírio.‒ Sim. Uísque. ‒ O mais forte que tiver, amor.‒ Com gelo?‒ Puro.‒ Não demoro. ‒ Ela sai, após deslizar a mão sobre a minha.Balanço a cabeça com um sorriso. Sam adoraria esse tipo de atenção.A propósito...Olho por cima do ombro, procurando por ele, mas não o acho.

Certamente deve estar galinhando pela boate como costuma fazer. Luccas‒ o pseudoamigo de Aurora ‒ é quem entra no meu campo de visão. Aome vê, ele congela, irritação despontando em sua cara de bom moço.Retribuo o olhar até que ele desvia e some no meio de todo o pessoal.

Aurora deve estar por perto.Será que ela tem noção dos sentimentos desse garoto?Sinto um toque leve na minha mão e me viro.É a garçonete, entregando-me o copo de uísque envolto num

guardanapo... onde eu aposto estar escrito o número do seu celular. Elacurva os lábios em um sorriso meigo e seus olhos sorriem junto.

Exatamente como Aurora.Sussurro um agradecimento e puxo minha mão da sua com delicadeza.

Ela recua com um sorriso menos ampliado, mas ainda presente.Depois que desaparece eu me viro, pensando em procurar por meu

bendito irmão, e tomo um gole de uísque, escorregando o guardanapocom o número da garçonete para o bolso da minha calça jeans.

Quem sabe eu não abra uma exceção para ela mais...Um cheiro forte, nojento e familiar penetra em minhas narinas no

momento exato em que fico de pé e me deixa tonto. Meu coração dispara.Não! Aqui não.Olho para os lados, procurando de onde vem o cheiro... de quem vem o

cheiro, mas nada encontro. E repentinamente, muito repentinamente, elesome. Não há cheiro nenhum... Está se afastando.

Aurora!Caminho depressa entre a aglomeração de pessoas, meu olhar

irrequieto disparando para todas as direções. Não é possível que tenham

decidido atacar aqui. Em público! Farejando o ar em busca do odorpodre, apenas sinto cheiro de álcool e uma mistura de perfumesdiferentes.

É claro!Aqui é lugar perfeito.Avisto meu irmão rindo à toa com uma garota de cabelos pretos. Por

um curto momento de pânico e alívio, penso que se trata de Aurora, masao chegar mais perto, vejo que não. Meu corpo inteiro se inflama e relaxacom essa constatação, a dualidade me arrepiando.

Céus!Tomo mais um gole de uísque, sentindo a boca seca, e bato no ombro

de Sam; ele se vira, espantado. Ao me vê, seu descontentamento ébastante evidente, e me deixa ligeiramente ofendido.

‒ Preciso falar com você ‒ digo no ouvido dele, o tom de voz urgente.‒ Agora?‒ Não. Amanhã ‒ respondo ironicamente. ‒ Vem logo, droga. ‒ Puxo

seu braço.‒ Só um instante ‒ diz ele a garota. ‒ O que você quer, Eric? Está me

atrapalhando! ‒ reclama comigo.Olho ao redor para checar se estamos sendo observados, mas as pessoas

se encontram ocupadas com seus próprios assuntos.‒ Há uma delas aqui ‒ sussurro, sem preâmbulos; e apesar da música

alta, sei que ele consegue me escutar... ‒ Senti o cheiro podre...‒ Mas...‒ Escute ‒ falo antes dele. ‒ Se quer realmente proteger Aurora, precisa

levá-la para longe deste lugar agora mesmo...‒ Eric! ‒ Suas mãos me agarram pelos ombros. ‒ Do que você está

falando? Eu não senti nada...‒ Fico admirado, Sam ‒ ironizo, começando a me irritar. ‒ Sua

concentração estava em outro cheiro. Belo protetor você é.‒ Para com isso, tá legal? ‒ Ele se irrita. ‒ Eu estou fazendo o meu

trabalho. Aurora está segura, e se olhar à sua esquerda vai ver isso.Involuntariamente, sigo sua orientação incisiva e a encontro sentada à

uma mesa redonda com Luccas, gargalhando de alguma coisa que ele estádizendo. Sua mão se mantém apoiada sobre o antebraço dele, os dedos

brincando com uma pulseira de couro ‒ um gesto simples, mas bemíntimo.

Não consigo deixar de me perguntar se eles estão juntos e o simplespensamento desencadeia uma emoção forte e desconhecida que arranhaminha pele, causa dor, causa raiva. Acho que estou zonzo.

Afasto o olhar da mesa, de Aurora e foco no meu irmão.‒ Eric, você está bem? ‒ Ele me analisa, atento e assombrado.O que está havendo comigo?Não posso acreditar que simplesmente imaginei aquele cheiro.‒ Sim, eu... pode voltar ao que estava fazendo ‒ rosno, virando o rosto,

e saio caminhando sem rumo.Acho que Sam está me chamando ao longe, mas não dá para ter certeza

com a sensação de ter levado um soco no diafragma me deixandoatordoado e enfurecido. Não entendo minha reação. Não entendo essa...mistura de sentimentos incompreensíveis transformando minhasemoções, e muito menos o gosto azedo em minha língua que me deixa emnáuseas.

Porra!Bebo um outro gole de uísque, mas não adianta muita coisa. O gosto

amargo persiste, talvez mais forte do que antes, intensificando o enjoo.Corro a mão pelos cabelos, bagunçando-os ainda mais. Minha vontade é ade ir embora, mas algo, que não sei o quê, me impede de fazer isso.

Não seja idiota, Eric.Ok, ok. Não confio em deixar Aurora com Sam e isso é estupidamente

ridículo.Sim, é.Encosto de volta no balcão e viro o restante do uísque na boca. O

líquido desce queimando minha garganta, e espero que ele transforme emcinzas a ansiedade que torna a se expandir dentro de mim.

É apenas uma garota, Eric.Meu alter ego desdenha de mim, mas até ele está assustado com a

maneira que Aurora mexe comigo... conosco.Está sendo impossível definir o que de fato sentimos por ela.O ódio é real. A atração física e sexual é inegável e dominadora. E

agora... isto. Este sentimento que não consigo identificar.

Anormal... Como eu... Como ela, talvez.Se bem que desejo estar errado. Quero que ela seja igual as outras

garotas humanas que ignoro facilmente. Quero não precisar matá-la parame livrar de sua influência. Quero não ser um monstro... com ela.

Isso é tão novo quanto estranho para mim.‒ Um centavo pelos seus pensamentos ‒ ouço ao meu lado e, no mesmo

segundo, levanto a cabeça.Porra!Aurora está encostada casualmente no balcão do bar, fuzilando-me com

um sorriso belo e largo de dentes brancos, os olhos dourados reluzindo detravessura e algo mais. Algo sombrio.

Voraz.Engulo em seco.Notas adocicadas de flores brancas e nuances de baunilha imperam e

preenchem o ar a minha volta. Sonhos instigantes e inoportunos flutuamcomo uma nuvem em minha mente.

Eu não havia reparado quando a vi sentada com Luccas, mas ela estádeslumbrante.

Sensual.O verdadeiro significado de inferno e paraíso na Terra.Controle-se, Eric. Você está babando.‒ Posso? ‒ Aurora aponta para o uísque sobre o balcão.Antes que eu pense melhor no pedido, estou fazendo o copo deslizar na

superfície de madeira em direção à sua mão. Ela o leva à boca, sorrindo, etoma um gole, deixando uma leve marca de batom na borda.

Engulo em seco, de novo.Tento me lembrar de como se respira. Mas Aurora encurta ainda mais a

distância entre nós, um passo depois do outro, lento e calculado. Com aproximidade, quase posso sentir o cheiro tentador do seu perfume porbaixo do cheiro de... álcool.

Hã? Sério?‒ O senhor está me seguindo? ‒ As palavras saem enroladas de sua boca.‒ Como? ‒ Tento parecer insultado.‒ Pensei que estivesse doente demais para sair de casa ‒ acusa ela e,

girando o copo na mão, assiste ao balanço do líquido.

‒ Aurora, você está bêbada?! ‒ pergunto, incrédulo, ao reconhecer ossinais.

‒ Por que você sempre evita responder diretamente?!Eu evito?‒ Ok, Vossa Graça. Estou seguindo você, afinal o que eu teria de

melhor para fazer além disso ‒ respondo então, com toda ironia quepossuo.

Ela torna a me fitar com seus olhos arregalados e exibe um sorrisolindo... e bêbado. É inacreditável! Como aquele idiota do Luccas pôdedeixar que ela bebesse para chegar a esse ponto? E por que ela está dessejeito? Será que tem sempre esse comportamento?

Me dou conta de que não sei muita coisa sobre ela. Não sei nada, naverdade.

‒ Onde está sua namorada?‒ O quê?!‒ Sua namorada. Onde...‒ Eu não tenho namorada, Aurora. ‒ Por que você está perguntando isso?

De onde tirou essa história?Ela fica nitidamente confusa, depois surpresa.‒ Por quê? ‒ indaga.‒ Por que o quê? ‒ retruco.‒ Por que você não tem namorada?Acho graça de sua pergunta.‒ O que uma...‒ Você tem um rosto atraente, sabia? ‒ Seus olhos dourados me

estudam minunciosamente. ‒ E está deixando a barba crescer...Ela deixa a frase solta no ar de repente, os cílios piscando muito rápido.

Franzo o cenho, sem saber se acho graça ou se me preocupo. Cara, ela estámuito bêbada. Mas é bem verdade que as circunstâncias me impediram decuidar da aparência, ainda que...

‒ Eu gostei ‒ confessa ela e morde o lábio, desviando meu pensamento.‒ Você gostou...?‒ Da barba. É sexy, sabe?Porra!Percebo meu ego inflando. Percebo o quanto ele gosta dessa versão de

Aurora. Percebo o quanto eu também gosto. É simplesmente inevitável.Ela está muito charmosa e... engraçada. E bem mais honesta.

Estou pensando que poderia me aproveitar disso para descobrir algumacoisa quando ela afasta os cabelos para longe dos ombros num gestocasual, e com isso deixa à vista o decote fundo nos seios e... uma pequenatatuagem que prende meu olhar.

Não consigo tirar os olhos dali... do desenho pequeno, mas curioso.‒ Por que você tem uma adaga tatuada entre os seios? ‒ pergunto sem

disfarçar meu choque.Ela olha para baixo, para o decote, depois para mim.‒ Qual é o problema? ‒ pergunta, expondo um sorriso leve. ‒ Devia ter

um motivo?Sim.‒ Talvez... ou você simplesmente acordou um dia e decidiu tatuar um

objeto cortante na pele? ‒ pergunto, minha voz endurecendo um pouco.Ela me observa com curiosidade, humor e surpresa. Talvez ache minha

pergunta engraçada. Talvez não seja nada demais. Talvez eu estejanovamente vendo coisas que não existem.

Mas então seu semblante se altera.‒ Ok, você me pegou ‒ diz ela, como se estivesse se entregando. ‒ Eu

sou uma assassina, Eric.Dou um passo para trás, quase tropeçando em meus pés, e consigo

disfarçar meu medo e choque. O que é essa mínima e estranha sinceridade nassuas palavras? Não posso estar sendo tão paranoico assim, posso? Meucoração atinge um nível de aceleração altíssimo.

Aurora está sorrindo agora.‒ Você acreditou ‒ afirma ela, impressionada, os olhos dourados

reluzindo. ‒ Uau! Quero dizer... Seu julgamento ao meu respeito continuaexagerado, mas francamente excitante, devo admitir.

O quê?!Ah, cara. Ela está me confundindo outra vez. Que inferno. Não posso

deixar que faça isso. Não posso permitir que brinque dessa maneira.É perigoso demais, e ela nem tem ideia.‒ Quem é você? ‒ Por favor, diga para mim.Aurora abaixa a cabeça levemente, mas posso enxergar seu sorriso

displicente.‒ Por que tão curioso a meu respeito, Eric?‒ Porque você é um enigma.‒ Posso dizer o mesmo de você ‒ rebate ela, delicada. ‒ Mas aonde isso

nos leva exatamente?‒ A verdade, é claro.‒ E está preparado para isso? Para a minha verdade?Porra!‒ Você está preparada para a minha?Ela dá para trás, literalmente, virando o corpo, direcionando os olhos

para um ponto qualquer, depois de um minuto retornando-os para o meurosto.

‒ Eu não sei. Talvez a verdade seja demais para nós dois...‒ Eu a desafio ‒ retruco, um fervor incontido surgindo na minha voz. ‒

Conte-me uma coisa sobre você e eu contarei algo sobre mim. Semmentiras.

De que diabo você está falando, Eric?Pare com isso.Aurora me observa com interesse e receio nos olhos enquanto eu espero

com uma ansiedade infernal que ela ceda ao meu acordo.‒ Eu não sei como contar ‒ diz por fim, e seu olhar se transforma em

insondável. ‒ E aposto que você também não sabe como falar sobre simesmo para mim. Ou sobre sua estranha família, por exemplo.

Minha estranha família?Que merda é essa?Sou alfinetado duramente por uma desconfiança de que ela sabe... ela

sabe de alguma coisa sobre mim. Não devia ser possível, é claro. Mas por queoutro motivo ela diria isso, nessas palavras?

‒ O que quer dizer?‒ Nada. ‒ Ela esconde o rosto outra vez, olhando para o outro lado da

boate.‒ Ei...‒ Minhas tatuagens vêm de uma fase rebelde ‒ conta Aurora e, voltando

a olhar para mim, ela fica trocando o copo de uísque de uma mão paraoutra.

Está me enrolando?‒ Tatuagens? ‒ Deixo-me levar.‒ Sim. Tem mais de uma. ‒ Ela ri. ‒ Como eu disse: fase rebelde. Meu

pai morreu quando eu tinha 12 anos, minha mãe se preocupava demaiscomigo e me sufocava, quis provar para ela que estava tudo bem; quisprovocá-la algumas vezes. Funcionou. Ela ficou possessa.

‒ Sinto muito.‒ Ah, eu também. Naquele dia eu levei minha primeira surra. ‒ Ela ri

do que diz.‒ Não é isso. ‒ Rio também. ‒ Eu estava me referindo ao seu pai.Vejo uma tristeza fugaz perpassar sua face, e fico surpreso com o desejo

que surge de consolá-la.‒ Como aconteceu? ‒ pergunto e tão cedo me arrependo.Aurora enrijece visivelmente, mas seus olhos não transparecem nada.‒ Acidente de carro ‒ sussurra ela.Faz o movimento de virar o copo de uma vez, mas eu a impeço antes

que a borda chegue a sua boca. É uma cena engraçada, mas não sorrio. Elasim, porque está bêbada e emotiva.

‒ Ei! ‒ reclama.‒ Acho que já chega de álcool por hoje. ‒ Minha voz soa repreensiva. ‒

Vou levá-la para casa. ‒ Puxo a carteira do bolso e tiro uma nota dedinheiro.

‒ Eu vim com os meus amigos ‒ Aurora está dizendo enquanto esvazioo copo e deixo o dinheiro sob ele no balcão ‒, vou voltar com os meusamigos.

‒ É o que veremos.Agarro sua mão e entrelaço meus dedos nos seus. É a primeira vez que

faço isso e, droga, estou gostando da sensação de nossas peles unidas.‒ Onde está sua bolsa ou casaco ou seja lá o que tenha trazido? ‒

pergunto, puxando-a a uma direção qualquer.Ela barra meu caminho, colocando-se na minha frente, e sua

proximidade afeta meu corpo com um arrepio excitante para caralho.‒ Por favor, por favor, será que não podemos ficar mais um pouco? ‒

pergunta ela, o rosto talhado em uma súplica adorável, o olhar fixo nomeu.

Garota.‒ Nós nem dançamos. Por favor. Dance comigo ‒ pede, falando

devagar e de um jeito irresistível.Ela é mesmo charmosa. Mas não está pensando direito, e, pensando

bem, não vou de jeito nenhum me aproveitar disso.Hum... que decente, Eric.‒ Pare de me seduzir, amor. Não vou mudar ideia.Aquela risada de criança soa de sua boca e paira entre nós. Golpe baixo.

Esforço-me para não rir de volta.‒ O quê?‒ Ainda continuo querendo levá-la para casa... para a sua casa ‒

esclareço.‒ Não... quer dizer... Eu estou seduzindo você?‒ Ah, sim. Mais óbvia, impossível.‒ Ah, meu Deus, me desculpe ‒ diz ela, mas não parece arrependida.‒ Pois é. É uma coisa muito feia de se fazer. ‒ Agora eu estou rindo.Ela morde o lábio, uma expressão de garota travessa surgindo em seus

traços faciais perfeitos.‒ Mas, humm, não funcionou mesmo? ‒ indaga, trocando o peso do

corpo de um pé para o outro, dançando. ‒ A... sedução...Balanço a cabeça negativamente.‒ Nem um pouquinho? ‒ Ela une o indicador com o polegar, fazendo o

gesto de algo pequeno.‒ Talvez um pouquinho.Ela ri com a mão na boca desta vez. E eu mal posso acreditar que

estamos no meio da boate trocando piadas. Não foi desse jeito queimaginei minha noite.

‒ Você está engraçado hoje ‒ observa ela, um prazer evidente na voz.‒ E você está bêbada, o que me lembra ‒ volto a segurar sua mão ‒, que

devo levá-la para casa.Mas Aurora não está mais prestando atenção em mim, está olhando por

cima do ombro, para onde algumas pessoas estão se dirigindo. A batidairreverente de Calvin Harris agita a pista de dança com “How Deep isYour Love”.

‒ Ei, essa música é o máximo! Vamos dançar.

Ela me puxa pela mão, abrindo espaço entre a multidão, e eu me deixoser levado, dizendo a mim mesmo que só estou fazendo isso porque elaestá insistindo. Quando chegamos lá, seu corpo encosta no meu, fazendocom que minha pele responda com um arrepio alucinante e preguiçoso.

Uau!Estremeço, grito por dentro com esse contato.É tão intenso quanto nos sonhos. Seu calor é capaz de produzir as

sensações mais promíscuas na minha pele, uma corrente deliciosaescorregando por meus ossos. Estou extasiado.

Aurora lança os braços ao redor do meu pescoço à medida que toco suacintura com uma de minhas mãos e ponho a outra na suas costas nua. Suapele perfumada é macia e suave, gerando cócegas nos meus dedos.

E me flagro imaginando se seu corpo inteiro é assim.Ela amplia o sorriso e começa a se movimentar, a seguir as batidas da

música, mexer o quadril avantajado lenta e calculadamente. Cara, ela sabefazer isso. Dando um rodopio no lugar, ela pressiona as costas no meupeito e continua rebolando como uma deusa, puxando meus braços paraabraçá-la por trás.

Acompanho seus movimentos.É uma surpresa vê-la tão desinibida.Será que ela é sempre assim?A pista de dança começa a encher, nos forçando a ficar mais próximos.

Desço as mãos para a sua cintura e a faço ficar novamente de frente paramim. Quero ver seu semblante. Ela ri alto, surpresa. Seu cabeloperfumado e seu rosto roçam no meu, deixando-me momentaneamentetonto.

Eu poderia engarrafar seu cheiro. É o aroma mais formidável domundo.

Estou inteiramente concentrado nisso, na sua sedutora fragrância floral,quando ela crava os dentes na porra do lábio inferior. Eu pisco os olhosao me sentir, repentinamente, atraído por sua boca. Nossos rostos estãotão próximos, meu nariz quase toca o seu.

Acho que ela está me dizendo alguma coisa, mas não presto atenção,não consigo parar de olhar para a sua boca.

E não faço ideia de como acontece, mas ela me beija ou eu a beijo, nãosei. Talvez tenha acontecido simultaneamente, contudo não consigo

pensar nisso agora, porque de repente não tenho controle das minhasvontades e nem do meu corpo, e sendo escravo dele, minha mão sobeautomaticamente para a nuca de Aurora e meus dedos se entrelaçam nosseus cabelos sedosos.

Estou ávido por ela, como nunca estive por nenhuma outra mulher.Sedento. Desesperado. É uma fome enfim saciada. Meus sonhos nãofazem jus a isso, a essa sensação que me atinge tão penetrante.

Intensifico nosso beijo, e sua língua toca a minha da maneira maisgloriosa possível, explorando minha boca em uma dança sensual paracaralho. Ela roça as pontas dos dedos na minha barba, por meu queixo,meu pescoço. Insere-os na abertura da minha camisa de linho.

Aurora...Ela está tentando me matar.Após um momento, nós dois recuamos para recuperar o fôlego; minha

testa gruda na dela, e não consigo dominar a euforia que se manifesta emum enorme sorriso. Ela também não, e isso me anima.

Ela gostou!‒ Você beija muito bem ‒ confessa Aurora e morde o lábio de novo,

atraindo-me mais uma vez.‒ Você também. ‒ Minha voz sai ofegante, rouca.Seu sorriso aumenta.‒ Quero mais ‒ sussurra ela e se inclina, exigindo minha boca.Eu também, penso irrefletidamente, e então sinto meu corpo travar por

conta própria, retesando meus músculos, impedindo-me de cair nas garrasdo desejo pulsante. Uma dor aguda corta meu cérebro, um arrepiofamiliar na espinha e dezenas de imagens que não cansam de surgirinvadem minha cabeça. Sou catapultado para uma noite antiga que metira o sono e a paz.

Não. Agora não.Levanto as pálpebras e encontro o rosto de Aurora. Ela está me

encarando com olhos redondos e vivos, porém, seu semblante não é maisanimado e sexy. Ela está confusa, decifrando as emoções que despontamno meu rosto e que mal consigo esconder.

Respiro fundo para retomar o controle, mas isso também fica evidentepara ela, e um v se forma entre suas sobrancelhas.

‒ Você está bem? ‒ pergunto, ignorando a voz dentro da minha cabeçaque ordena que eu seja indiferente e a afaste agora mesmo.

‒ Não... eu... ‒ Ela aperta os olhos como se sentisse dor.‒ Venha. Vou levá-la para casa.É mais seguro. Para nós dois.‒ Preciso falar com Evelyn e... e pegar minhas coisas. Você me espera? ‒

Ela está me tocando. Permito. Não nego que gosto disso.‒ Tudo bem. Estarei logo ali.Ela se afasta de mim, massageando as têmporas enquanto tropeça, e

estou pensando em segui-la quando avisto meu irmão do outro lado daboate, me observando com um sorriso de malícia e uma cara de quem malpode esperar para saber das novidades.

Oh, Jesus Cristo.Ele viu o beijo que eu dei em Aurora... ou ela deu em mim. Não sei ao

certo. Mas foi bom. Inesperado. Mas diabolicamente bom.Mudo de ideia. Vou para o bar. O gosto dela ainda está na minha boca,

e por mais que eu queira deixá-lo ali por mais um tempinho, preciso deuma bebida para suportar o interrogatório que está por vir. Por isso, peçouma dose dupla de uísque ao barman assim que alcanço o balcão.

‒ Ela não faz seu tipo, hein? ‒ é a primeira coisa que Sam me dizquando surge ao meu lado.

‒ Não comece.‒ Você é um pilantra, Eric. ‒ Ele está rindo. ‒ Todo aquele papinho

sobre não está interessado, quando na verdade desejava a garota muitomais do que todos os caras do colégio juntos.

Ignoro-o por um momento só para dar um trago na bebida que obarman deixou diante de mim.

Meu irmão continua falando.‒ Diz aí. Você batizou a bebida dela ou o quê?Inclino a cabeça para olhá-lo, achando graça de sua pergunta.‒ Não fiz nada disso, Sam ‒ garanto, uma espécie de orgulho implícito

na minha voz. ‒ Você já parou para pensar que talvez eu seja o tipo deAurora?

Ele bufa, revirando os olhos.‒ Será que essa é a hora em que eu falo que ela não sabe com quem está

se metendo?‒ Foi só um beijo, irmão. Não sei por que você está fazendo esse

alvoroço.‒ Só um beijo? Vocês quase arrancaram a roupa na pista de...O cheiro podre de harpias está espalhado no ar de novo, surgindo do

nada, mais forte do que antes e misturado a um outro odor que nãoconsigo identificar.

‒ Só pode ser brincadeira!Sam enrijece ao meu lado, seu semblante refletindo o meu. Ele olha

para os lados à procura da origem do cheiro.‒ Que diabo querem aqui?‒ Preciso achar Aurora ‒ sussurro, tomado por um súbito e inesperado

desespero.Então, acontece uma explosão.Meu corpo é lançado impetuosamente para o lado, atropelando gente,

mesas e cadeiras, e suspeito que acontece o mesmo com Sam. Há sanguena minha cabeça. Sinto-o quente e pegajoso, escorrendo na minha testa.Imagino que o ferimento já tenha se curado.

Não me importa.Fico de pé, removendo os pedaços de mesa quebrada de cima do meu

corpo.O caos está instalado na boate.Desesperadas, as pessoas gritam, choram e empurram umas às outras na

esperança de salvarem a si mesmas e alcançarem a saída. Meus olhosesquadrinham o espaço em todas as direções possíveis, em busca de umaúnica garota, mas não a encontram.

Praguejo alto, tento me aproximar da área onde Aurora estava sentadacom Luccas, mas essa parte já está tomada pelo fogo que vem da cozinhada boate, destruindo tudo.

O cheiro dela se perdeu no meio de outros mais fortes. Minha aflição seagiganta ainda mais e toma conta do meu corpo, minha mente sóconsegue pensar nela e em onde ela está e com quem e se está bem.

Com o coração disparado, sou forçado a admitir que Aurora não seencontra mais ali dentro e, assim, me deixo ser levado pela multidão depessoas que ainda tenta sair da boate em chamas.

No ar livre, a gritaria continua. As pessoas chamam umas pelas outras,buscando se reencontrarem; meninas machucadas estão largadas no chão,sangrando, em pânico. Sam surge ao meu lado, ele está bem, com traçosde sangue no rosto e nas roupas, mas bem.

‒ Onde ela está?Sua resposta muda é suficiente para mim.Ele não achou Aurora.‒ Eric!Evelyn para derrapando diante de mim, o rosto molhado de lágrimas e

a roupa toda amarrotada. Não sei de onde ela veio e não me interessa.‒ Onde está Aurora? ‒ pergunto imediatamente, minha voz muito

desesperada, até para mim mesmo. ‒ Ela não está com você?!‒ Ela me disse que ia ao banheiro, mas...Não espero para ouvir o restante da frase. Na verdade, não ouço mais

nada. Escravo do meu corpo mais uma vez, não consigo parar e pensar nasconsequências e nem nas razões de minha atitude.

Sem dá atenção a ninguém, retorno à boate em chamas para salvá-lacomo se minha vida dependesse exclusivamente disso.

Aurora

"Não ouço o meu coração."

Acho que estou sonhando, mas desta vez é diferente.

Sim.Tudo está perfeito demais, incrível demais, surreal demais. Desde a campina de

flores dançantes à brisa fresca e à música que vem... do céu? Eu não sei. Mas nãome parece tão importante agora.

Ele está me beijando.Em que outro universo, se não o do meu inconsciente, eu estaria apreciando

este momento, eu estaria inebriada por sua boca macia tão delicada e sôfregacontra a minha?

Pois é.Sonho.É muito cruel.Sua língua faz uma mágica poderosa dentro da minha boca, arrepiando meu

corpo deliciosamente, e não quero acordar. Não quero soltá-lo. Nunca mais.Por favor, não me deixe.Estou implorando por isso em seus lábios à medida que acaricio ternamente seu

rosto rente ao meu. Mal consigo conter o quanto eu o desejo.E não sei, não sei mesmo, há quanto tempo eu o desejo tanto assim.Meu coração está batendo tão rápido.Ofegante, ele recua primeiro, descansa a testa na minha; e ainda seduzida pelo

beijo, eu procuro por sua boca, contudo meus lábios sedentos só encontram seuqueixo ‒ a barba por fazer desencadeando arrepios eletrizantes em vários lugares.

Deus, isso foi delicioso. Isso foi muito, muito delicioso, penso e sorrio,mordiscando o lábio inferior.

‒ Seu beijo... é tão bom ‒ confesso sem pensar, arrebatada pelo prazer.Ele ri baixinho.‒ O seu também. ‒ Sua voz é grave e cheia de um forte desejo.Ah, céus!‒ Quero mais ‒ sussurro, sedenta.‒ Tem certeza? ‒ a voz dele soa como um rosnado agora.Ergo a cabeça, perplexa e, dentro de um piscar de olhos, tudo se transforma.

Estou sozinha. As belas flores que me cercavam não passam de pétalas murchas epodres caindo no chão escuro. A brisa se torna gélida e a música não é maisouvida. Em compensação, meu pulso está nas alturas. Audível a metros dedistância, provavelmente.

Giro no lugar, atônita, e como num passe de mágica, o cenário é outro. Estouparada dentro de uma caverna, a margem de um rio onde a lua reflete sua belaluz prateada. Estou ansiosa. Estou aflita. Estou esperando. Não sei o quê...ou quem. Mas, de alguma forma, confio que vai chegar logo.

Logo.Logo.Por favor.É tão importante que chegue ou...Um barulho às minhas costas me conduz a virar o corpo e, no meio do

movimento, acabo tropeçando em meus próprios pés. De frente, meu olhar se lançaem todas as direções antes de parar em um único ponto e fixar-se ali.

Nele. Parado. Silencioso. Sinistros olhos brilhando na penumbra direto paramim. Seu corpo inteiro está encoberto pelas sombras da caverna e ao mesmo temposutilmente visível pela luz da lua que vem do alto.

Sinto medo. Sinto receio. Sinto prazer.E não há explicação para nenhuma dessas sensações resvalando por minha pele.A única coisa que sei é que há algo na forma surreal e perfeita do rosto dele, na

silhueta do seu corpo, que é surpreendente para mim, curioso. Há também algohumano e familiar, como se eu já o tivesse visto antes, como se já tivéssemos nosencontrado em algum momento.

Eu suspiro e pisco, tão encantada quanto amedrontada, e o espaço ao meuredor se modifica pela terceira vez, transformando-se agora num conjuntoilimitado de árvores de aparência estranha.

Demoro a notar a impressão de que já estive ali ‒ consciente ou não ‒, uma

vez, talvez mais, apesar de não saber quando e nem por quê. Mas como sesoubesse exatamente aonde ir, eu corro a toda velocidade que minhas pernasaguentam, para longe do que faz meu coração disparar de horror.

Não pare, ordeno a mim mesma. Não diminua o passo. Não olhe para trás.Respire.

Desvio das árvores de troncos envelhecidos, salto os galhos enraizados na terra etomo cuidado com as armadilhas destinadas aos animais. Obrigo-me a prestaratenção na trilha iluminada pela lua, a ignorar o barulho sinistro de asas atrás demim.

Meu coração está inchando dentro da caixa torácica.Medo. Estou com tanto, tanto medo e não sei...‒ Ahhhh!Berro ao parar derrapando na beira de um despenhadeiro e meus braços se

agitam freneticamente em busca de recuperar o equilíbrio, meus pés ao mesmotempo cambaleando na direção oposta ao abismo. Caio no chão, salva, mas nãosinto alívio. Não sinto nenhum alívio.

Contemplo o horizonte ‒ a lua perfeita e redonda contra o fundo escuro e depontos brilhantes chamado céu ‒ e algo, uma emoção fúnebre, me diz que eu nãodevia estar aqui.

Eu não devia...Meu Deus...Eu não devia...Respiro rápido, lágrimas caindo como uma cachoeira, dor no meu peito, raiva,

medo, ódio, frustração...Sangrando... De repente...Meu peito está sangrando. Sem ar. Sem vida.Meu coração...Não ouço o meu coração...Estou morta.

Eric

"Eu sou o que me criaram para ser."

Aconteceu de novo. Outro ataque. Eu a salvei. Eu fiz isso mais uma

vez. Sem hesitar. Eu ignorei meu profundo e incomensurável desejo dematá-la; ele sequer existiu naquela hora, ele sequer pareceu que algum diahavia existido. Isso só prova claramente que há algo de errado com meucérebro. Pior. Eu me sinto horrivelmente rasgado em culpa e impotência.Eu quase cheguei tarde demais. Eu quase coloquei tudo a perder. Elaquase morreu. Não sei por que isso, por um momento, pareceu uma ideiadifícil de ser suportada. Aquela harpia loira platinada só queria medistrair. Impedir-me de chegar ao banheiro, onde Aurora estava sendotorturada...

Os gritos...Mal consigo me lembrar deles. Mas a harpia estava lá, entre a porta e o

corredor de acesso ao toalete, parada no meio das chamas como se o fogonão fosse capaz de destruir cada célula do seu corpo.

Estranho. Impossível. Porque é exatamente uma das coisas que podemmatá-las. Eu não conseguia acreditar.

E não importa.Nossa luta foi uma distração. Havia um plano maior desde o começo,

um plano que eu devia ter previsto. Aurora se tornou um alvo...Ela é um alvo, há não sei quanto tempo. As harpias a querem morta por

algum motivo, e seja lá qual for, eu vou descobrir.Custe o que custar.‒ É verdade?Ayla surge silenciosamente no quarto do hospital. Enfim veio me tirar

daqui. Já passou da hora. Pessoas como eu não precisam de tratamentomédico.

‒ Depende ‒ murmuro, encarando a luz branca no teto.Estou fazendo isso há quase trinta minutos. Meus olhos estão ardendo

para caramba.‒ É verdade que você a salvou?Fecho as mãos, num ímpeto, a lembrança me atormentando. É claro

que ela está intrigada. Depois de todas as coisas que eu disse, é totalmentenatural. Porém, não quero falar sobre isso.

Mas, para o meu desgosto...‒ Por quê, Eric? ‒ Ayla ainda quer saber. Caminha ao redor do quarto.

Para em frente ao leito onde Aurora se encontra, onde estou evitandoolhar há quase uma hora.

Ela está mal. Ela está muito mal.Múltiplas fraturas no antebraço direito. Perna esquerda quebrada.

Arranhões e marcas roxas por todo o rosto e pescoço...Sim. Muito mal.‒ Preferia que eu não tivesse feito?‒ Por Deus! É claro que não!‒ Ótimo. Assunto encerrado.Arranco a agulha do soro que a enfermeira insistente exigiu colocar em

mim e faço um movimento para ficar sentado. Ayla está olhando naminha direção agora, luxuosamente vestida em comparação a mim, queainda me encontro usando roupas chamuscadas.

Seus olhos me estudam de um jeito que não me agrada.Para dispersar esse olhar, eu pergunto:‒ Onde está o meu irmão? ‒ Não o vejo desde que saí da boate com

Aurora nos braços e nos colocaram em uma ambulância.‒ Você gosta dela ‒ afirma Ayla, fazendo-me congelar

momentaneamente.Ah, qual é!‒ Não. Eu não gosto ‒ falo num tom cortante de aviso. ‒ Onde está

Sam? ‒ pergunto novamente.‒ Você se importa ‒ prossegue ela, ignorando-me. ‒ Você se importa o

suficiente para arriscar sua vida, sua identidade... Sabe que a atitude que

tomou poderia tê-lo exposto, não sabe? Exposto a todos nós? E aindaassim...

‒ Pare com essas sandices...‒ O que o fez mudar de ideia sobre a vida dessa garota?‒ Quem disse a você que eu mudei de ideia?!Fico de pé. Cruzo a sala até onde ela está parada. Fuzilo-a com frieza.

Ela não se assusta, não se move, apenas me olha com um maldito artranquilo e pretensioso, como se soubesse de cada merda deste mundo.Mas ela está errada sobre mim... ela está... ela tem que está.

‒ Acha realmente que algo me impede de agarrá-la pelo pescoço, agoramesmo, e vê-la sufocar sob meus dedos? ‒ vomito as palavras de ódio, elasarranham minha garganta, faz com que meus lábios tremam.

Ayla não se altera. Não se surpreende.‒ Pare com esse comportamento insano de ódio e crueldade, meu filho

‒ diz ela, como se estivesse cansada. ‒ Pare de alimentar a escuridão queexiste dentro do seu coração. Pare de insistir em ser um monstro. Vocênão tem ideia de como isso me deixa...

Não quero ouvir. Não posso. Não vou suportar.‒ Perdoe-me por não atender as suas expectativas, mamãe ‒ interrompo-

a com acidez na voz, os dentes trincados. ‒ Perdoe-me por, depois de umavida de desgraças, ter desistido de tentar ser bom. E acima de tudo,perdoe-me por não ser o Sam...

‒ Não foi o que eu quis dizer.‒ E o que foi que quis dizer? ‒ pergunto, uma parte idiota, profunda e

escondida de mim querendo que ela se retrate, querendo que diga algumacoisa que amenize o efeito de suas palavras não ditas, mas tão claras.

‒ Nada disso combina com você... e não é o que você sente por essagarota... não mais... algo mudou entre vocês... talvez no momento em quea beijou...

Mas que inferno!Eu vou matar Sam.‒ Você não sabe absolutamente nada do que eu sinto ‒ rosno, minha

voz desequilibrada, trêmula. ‒ E essa garota... essa garota que você medisse que era normal, continua sendo perseguida por monstros.

‒ Do que você está falando?

‒ Um segundo ataque é do que estou falando! Sam não contou a vocêque o incêndio na boate foi obra de mais uma harpia atrás de Aurora? Porque acha que ela está machucada desse jeito?

Ayla dá um passo para trás, em choque.‒ Não faça essa cara ‒ cuspo. ‒ Não finja que tudo isso é exatamente

uma surpresa, porque não é. Não mais.Dou as costas. Perpasso as duas mãos pelo cabelo. Estou tremendo de

raiva. Raiva de Ayla. De Sam. De Aurora.De mim.Fui um tolo.Sou um tolo.‒ Aurora é uma fraude. Ela é uma ameaça. Eu sabia.Por isso as harpias a querem morta.‒ Engraçado como isso não o impediu de salvá-la, não é? ‒ diz Ayla, sem

nenhuma ironia.Viro o rosto para fitá-la com olhos frios. Suas palavras me incomodam

mais do que eu deixo transparecer.‒ Você superestima minha relação com essa garota ‒ comento, rindo

sem nenhuma gota de humor. ‒ Mas acredite em mim quando digo que osmeus dias de herói terão vida curta. Eu não lamento nem um pouco o queaconteceu. Pelo contrário, tudo isso só reforça o que eu já imaginava.Talvez eu não esteja delirando como você supunha.

Ela reage enfim, apertando os lábios em uma linha fina, os olhos azuisadquirindo uma tonalidade escura.

‒ Admita, mamãe. Os Harvelle não são quem você pensava. Não são oque dizem ser. Henry a enganou direitinho durante todos esses anos.

‒ Não é possível.‒ O que não é possível?! ‒ pergunto-lhe, impaciente. ‒ Seu melhor

amigo mentir para você sobre a irmã dele? Sobre ele? Ah, qual é...! Encareos fatos. Você é tão estúpida assim...?

‒ Já chega ‒ rosna Ayla, atravessando o espaço entre nós num átimo. ‒Já. Chega. ‒ Seus olhos brilham vermelho rente ao meu rosto, as orelhasse alongando e voltando ao normal em igual velocidade. ‒ Concordo queessa perseguição é estranha e tomaremos cuidado de agora em diante, masnão porque os Harvelle representam perigo...

‒ Como...‒ As harpias ‒ interrompe-me ela, intransigente, dando um passo à

frente ‒ ainda têm rixa com o nosso povo... com o que sobrou de nós edesde que descobriram minha influência na cidade têm tentado nos exporde diversas formas. Você não estava aqui, portanto não sabe...

‒ Está querendo dizer que a culpa desses ataques é nossa?! ‒ Fala sério!‒ Estou dizendo que é uma possibilidade.‒ Não existe essa possibilidade. Somos os únicos de nossa raça por aqui.

Você mesmo disse antes de eu voltar e agora está ignorando tudo queconversamos semana passada...

‒ Não, não estou ignorando nada. Mas me surpreende que, logo você,tenha acreditado naquela harpia tão facilmente.

Eu me reteso pelo comentário.‒ Seu julgamento está comprometido, Eric. ‒ Ayla aumenta o tom de

voz. ‒ Você está tão desesperado por provar que Aurora é um monstro, quenão está conseguindo pensar com clareza. Você está se deixando levar... ‒ela acusa ‒ está se deixando levar porque tem problemas com o seupassado, problemas que envolvem a aparência de Aurora. Mas coloqueuma coisa na sua cabeça: ela não é aquela garota.

‒ Você está errada ‒ rosno, quase perdendo as estribeiras. ‒ Ela é.Exatamente. Aquela. Garota.

Ela é a reencarnação dela!Ayla recua à súbita cólera que exalo. Posso ver o medo em seus

olhos, senti-lo na sua postura defensiva. Tento me controlar, ando de umlado para outro do quarto, agarro minha nuca com as duas mãos. Meusangue está fervendo sob a minha pele.

‒ Por quê, Eric? Por que acredita nisso com tanta força? ‒ ela está meperguntando com uma sinceridade aparentemente honesta.

Eu dou risada, interrompendo minhas voltas pelo quarto. Encaro-a. Riomais um pouco.

Estou mais do que certo de que não direi nem mais uma palavra paraela.

Por isso...‒ Por quê, Ayla? ‒ devolvo, sarcasticamente. ‒ Por que continua agindo

como se tudo isso fosse circunstâncias normais? Por que coloca a culpa em

nós? Por que insiste que os Harvelle...‒ Eu não estou...‒ Você fez a pesquisa? Sobre a marca. Você fez a pesquisa? ‒ enfrento-a.Cada linha do seu rosto cora levemente e se desvia do meu olhar por

alguns segundos. É óbvio que ela esconde algo.‒ O que não quer que eu descubra, hein? ‒ questiono, frio e calmo

agora.‒ Nada. Não seja...‒ Mentirosa.‒ Eric...‒ Saia. ‒ Aponto para a porta. ‒ Nossa conversa está encerrada. Sabia

que não devia ter confiado em você.Ela abre a boca para discutir.‒ Vá, Ayla. ‒ Não quero ouvir sua voz. ‒ Apenas dê um jeito de me tirar

deste lugar ou juro por Deus que sairei por conta própria, e que se foda oque vão pensar. Estou ótimo e tenho trabalho a fazer.

‒ Que trabalho?‒ Não é óbvio? ‒ pergunto. Volto à cama. Deito-me. Olho à luz branca

no teto. ‒ Aurora Harvelle está sendo caçada, e eu pretendo descobrir oporquê nem que seja a última coisa que eu faça na vida.

ANTES DO ENTARDECER DO dia seguinte, eu recebo alta para ir para casa

sem nenhum dano, nenhuma queimadura, nenhuma escoriação... e ummaldito título de herói que não mereço. É uma ideia errada. Eu não souum herói. Sou um vilão ‒ daqueles que até os homens maus temem equerem distância. Eu sou o que me criaram para ser.

Um monstro.Minha vida humana quase não existe na minha memória. As únicas

coisas que guardo são as lembranças dos meus pais biológicos... da minhamãe, principalmente. Eu tinha dezessete anos e Sam, dezesseis, quando elamorreu de uma doença rara e acabou nos deixando nas mãosirresponsáveis do meu pai... Meu pai. Eu quase não penso nele, quase nãosinto sua falta.

Eu quase nem lamentei sua morte naquele incêndio.Ayla, Sam e eu devíamos ter morrido também. Estávamos todos em casa

naquele dia, quando cômodo após cômodo foi tomado pelas chamas quevieram do... nada. Eu tentei proteger o meu irmão. Ele tentou meproteger. Ayla tentou proteger a todos nós, cumprindo a promessa que fezà minha falecida mãe, sua melhor amiga.

Mas não houve o que fazer. Ligamos para os bombeiros. Esperamos queviessem nos salvar. Porém...

Eles vieram primeiro.Os homens da Trindade ‒ a organização super secreta criada em 1784

por três poderosas famílias, as quais ninguém nunca soube seus malditosnomes.

E como uma só, elas eram responsáveis por proteger a Ilha de Íris e seushabitantes do mau... dos poderes das belas e sedutoras mulheresconhecidas como harpias que, por muitos anos, assombraram a cidade emsua forma natural, as mesmas que séculos depois os destruíram dentro desua própria fortaleza.

Eles nos salvaram... a mim, Sam e Ayla, especialmente. Meu pai nãoteve tanta sorte. Ele já estava morto quando os homens da Trindade oalcançaram em seu escritório.

Lamentável, eles disseram.E, talvez, quem sabe, se eu ainda fosse o mesmo garoto quando acordei

naquele laboratório iluminado... talvez eu tivesse considerado lamentávela perda do meu pai, do homem que mal ajudou minha mãe a criar a mime ao meu irmão, que a machucava, que nos machucava...

É. Não. De jeito nenhum.Mas, de qualquer forma, eu não era mais eu.Nem Sam era ele.Nem Ayla era ela mesma.Éramos todos algo novo, forte, único, imortal; os

Inomináveis, era como nos chamávamos em segredo. Seres recriadosbiologicamente por uma droga secreta e jamais mencionada, sob umpretexto baixo e moralista de uma organização que prometiafervorosamente jamais desperdiçar vidas humanas, mas com umafinalidade totalmente diferente.

Seríamos, se quiséssemos, mercenários de uma causa nobre e justa, paraum bem maior: a proteção dos habitantes da ilha sagrada, a erradicação de

um ser maligno que vive apenas com o objetivo de enfeitiçar os homenspara desfrutar de sexo, carne e sangue.

Éramos pagos, muito bem pagos, para exterminá-las. Mas primeiroéramos treinados. Treinados rigorosamente para nos controlar ‒ poder,força, emoções, sensações. Éramos treinados para sobreviver, para resistirà influência que as harpias têm sobre a mente masculina.

E a Trindade fazia tudo isso parecer certo: a criação, o sacrifício, atortura, até mesmo os dons herdados pela droga... ou pelo que quer quecontivesse no soro que nos transformava em seres similares às harpias.

Para eles, não éramos monstros matando monstros, não éramosmonstros nos alimentando de monstros em busca de mais habilidades.

Tudo era visto como algo que valia a pena.E quando me vi sem pai, sem mãe, eu precisava de um rumo, de um

recomeço. Então acreditei nisso, no valer a pena, e ainda acredito ‒ sobuma ótica diferente, é claro ‒, porque nesta vida... ou em qualquer vida,todos nós precisamos acreditar em alguma coisa, qualquer coisa.

É o único jeito de seguir em frente.Mas, ainda assim, não posso dizer que sou inteiramente grato a

Trindade por me tornar um “mercenário”, um “meio para um fim”. Poisali, afinal de contas, foi o começo de uma destruição irreversível: adestruição da minha alma.

Eu deixei de ser normal, humano... e gostei.Eu gostei do poder imenso que veio com a transformação em algo que

nem nome tinha. Eu gostei da invencibilidade, dos sentidos ampliados, daideia do imortal. De fazer parte de algo grande.

Levou muito tempo, quase uma vida, para que eu percebesse o preçocaro a ser pago por tudo isso. Quando finalmente aconteceu, eu já estavaafundado em erros e pecados que ninguém pode imaginar.

Sam conseguiu sobreviver com a alma intacta. Ele sempre foi muitobom ser... bom. Ele nunca levou jeito para qualquer coisa menos do queisso. Nem Ayla, que tentou nos tirar do ofício da Trindade e, após umcerto tempo, conseguiu.

Foi inesperado, um milagre. Até hoje não faço ideia de comoconvenceu os líderes a nos libertar.

Mas ela conseguiu, por mim, por meu irmão, que detestava a vida de

assassino. Só que ela não sabia, nem Sam... Ninguém sabia que já eratarde demais para mim.

E quando se é tarde demais, você se pergunta por que continuarvivendo, por que continuar insistindo sua presença maldita aos outros. Eentão você quer partir deste mundo, mas as pessoas que lhe amam poralgum raio de motivo não quer lhe deixar morrer.

E então você dá um jeito, você vive por elas, respira por elas.Porque não é justo desapontá-las ainda mais. ‒ ELA ESTÁ MENTINDO. ‒ LANÇO a folha de jornal para longe após ler o

depoimento de Aurora quatro dias depois do acidente na boate.Nenhuma frase do que ela disse faz o menor sentido.

Suas palavras nada são do que uma versão falsa dos fatos.‒ E quem pode culpá-la, não é? ‒ defende Sam, parado do outro lado da

mesa em que estou sentado. ‒ Ninguém acreditaria se ela dissesse que foitorturada por uma harpia. ‒ Seus olhos percorrem a montanha de livros aminha volta.

‒ Não. Ninguém ‒ murmuro, esperando que ele pare, pelo amor de Deus,de protelar e desembuche logo.

Não demora muito.‒ O que está procurando, irmão? ‒ Sua curiosidade infundada me

aborrece.‒ Não faça perguntas retóricas, Sam. Sabe que eu detesto isso ‒

resmungo, sem levantar os olhos do livro que estava lendo antes de serinterrompido.

Ele tem a decência de se desculpar. Indaga em seguida:‒ Algum progresso?‒ Não.Fecho o livro bruscamente inconformado com sua inutilidade. Quero

destruir todos os móveis desta biblioteca, arremessá-los pela janela ouincendiá-los. Mas em vez disso, esvazio meu copo de uísque em um gole.Encho-o para esvaziá-lo uma segunda vez, ou terceira, ou quarta... Já perdias contas. Os olhos do meu irmão não saem de cima de mim.

Quero que ele me deixe sozinho.‒ Eric? ‒ chama Sam, a voz insurportavelmente serena.

Lá vem.‒ Sim, irmão. ‒ Sustento seu olhar, impassível.‒ Pare ‒ diz ele, é quase uma ordem. ‒ Pare com essa obsessão doentia.

Você tem seu segredo. Todos nós temos. Deixa-a viver com o dela. Não hámal nenhum nisso.

Minha gargalhada sombria e sarcástica rasga a noite chuvosa. Tenhoque me controlar para não dar um soco em Sam.

‒ Vá embora, cara. ‒ Meu tom é de alerta. ‒ E obrigado pelo seu apoio.Não fazia ideia de que podia contar tanto...

‒ Não há o que achar ‒ ele me corta, tão irritantemente tranquiloquanto Ayla. ‒ Tudo isso aqui ‒ aponta para os livros ‒ é uma perda detempo. Esse símbolo não significa nada. É um grande nada.

‒ Nada faria isto? ‒ Arregaço a manga da minha camisa social, expondoos desenhos que seguem até o meu peito. ‒ Acha que isto não significanada? ‒ pergunto friamente. ‒ Estas marcas apareceram em todo o meubraço, dias depois de eu ter assassinado aquela garota. Elas contam,perfeitamente, a história de como fiz isso. Você acha mesmo que é umgrande nada? ‒ Minha ironia é cortante.

‒ Eu não estou falando da garota. Estou falando do símbolo e você nãosabe se foi isso que originou as marcas ‒ retruca Sam.

‒ A garota e o símbolo são a mesma coisa.‒ Tá! Mas um deles não é sobrenatural. Pense bem. Não pode ser... Não

pode ou você encontraria alguma merda nessas pesquisas doentias quetem feito. É óbvio e...

Ele para de falar quando recomeço a rir, rir de tal modo que preciso merecostar na cadeira giratória.

‒ Você não acredita nisso, Sam ‒ digo entre os risos, o dedo indicadorna frente dos lábios. ‒ Você diz, mas não acredita. É da boca para fora.Exatamente como Ayla tem feito. E estou começando a achar que tambémnão posso confiar em você. ‒ Fecho a cara. ‒ O que está escondendo?

‒ Você está pirando, irmão.‒ Estou?‒ Você está pirando e não me deixa ajudar...‒ Me ajudar?! ‒ Levanto-me bruscamente da cadeira e bato com as mãos

na mesa, aproximando-me de Sam. ‒ Me ajudar... é a última coisa que você

tem feito, irmão.Ele não se abala, está calmo e sob controle ‒ anos de influência de sua

mamãezinha querida.‒ Não quero fazer parte dessa insanidade em que você se meteu ‒ diz

para mim, sacudindo a cabeça. ‒ Perdoe-me, mas não vou... não posso.Ele me dá as costas, marcha até a saída e vai embora.

Aurora

"Acabe com todos eles."

Eu contei à polícia. Não tudo. Eu não podia contar tudo. Talvez não

acreditassem em mim. Não. É claro que não acreditariam em mim. Mas eufalei sobre o homem que me arrastou até o banheiro feminino, descrevicomo ele me abordou, como sua mão pressionou minha bocabrutalmente, como ele sussurrou que eu não gritasse, como ele metrancou lá dentro. Não disse o porquê ele e seu amigo me machucaramtão cruelmente. Não disse uma única palavra do que eles falaram. Nãodisse que conheço um deles, que achei que um deles estava morto. Eu nãopodia falar.

Ninguém pode saber.Eles vieram atrás de mim. Eles vieram atrás da maleta. Parece que,

afinal de contas, há algo muito importante lá dentro. Algo que eu devosaber e que só por isso eu ficarei com ela. Eles falaram sobre o meu pai.Eles falaram sobre a minha mãe. Eles disseram que a culpa é toda minha.Eles disseram isso várias vezes enquanto me torturavam. Elesprovavelmente sabem sobre mim. Sobre o que eu fiz. E o que possofazer. Eu tentei explicar. Eu tentei lutar. Eu tentei expulsar a força naminha cabeça que dominava minha força. Doeu tanto. Parecia que meucérebro estava sendo fritado. Eles não pararam nem por um segundo. Elesdisseram que eu mereço morrer. Mas ainda não. Ainda não. Ainda não.

Eles falaram que eu preciso fazer uma coisa antes. ENCARO A MIM MESMA no espelho: pálida, olhos grandes demais para o

rosto e demente. Sim. Voltei a enxergar coisas. Coisas no espelho. Emmim. No meu reflexo, especialmente no meu rosto. É muito, muitorápido, quando acontece. Quase imperceptível. Mas não o suficiente paraque eu não seja capaz de notar, não o suficiente para não me deixar com asensação insuportável de que estou ficando ainda mais louca do que jásou.

Deus!Desvio os olhos do espelho por um segundo; do meu rosto machucado.

Apesar de Henry ter sugerido encobrir as marcas roxas com maquiagem,eu preferi mantê-las ali, em minha pele, como um lembrete de que precisofazer algo a respeito do que aconteceu. Eu só não sei o que fazer e nempor onde começar, embora...

Corro os dedos pela maleta preta de Richard Harley em meu colo.Eu tenho uma opção. Porém, nas atuais circunstâncias, não me sinto

corajosa o suficiente para enfrentar qualquer nova descoberta. Naverdade, me sinto fraca e com muita raiva. Eu jamais devia ter ido àquelemaldito laboratório. Nada disso estaria acontecendo se...

‒ Srta. Aurora? ‒ Lis aparece na porta do closet, amigável e sorridente, eme pergunto se já está na hora dos malditos remédios novamente.

Como enfermeira particular, ela é responsável por me auxiliar nastarefas do dia-a-dia ‒ banho, troca de roupa, subir e descer da cama ‒ eadministrar os medicamentos, que me deixam sempre muito raivosa ousonolenta.

Henry insistiu bastante nisso ‒ em uma profissional ‒, apesar de eu terdito que eu mesma conseguiria lidar com meus afazeres.

É óbvio que perdi na discussão.‒ Sim?Empurro a maleta para o fundo da gaveta da penteadeira e tranco-a.

Ninguém mais pode saber sobre esse troço. Ninguém.‒ Sam Harley está aqui para vê-la ‒ anuncia Lis, e não consigo evitar

que os meus olhos se arregalem vertiginosamente.Não de surpresa, não. Mas sim de medo.Pavor.Porque ele não devia estar aqui.Não depois do que me pediram para fazer.

Não depois que prometeram que estariam de olho.Céus!‒ Posso dizer que a senhorita está indisposta, se desejar ‒ sugere Lis,

observando meu rosto com uma expressão complacente.E quase tenho vontade de rir. Ela usou a mesma desculpa da última

vez em que Sam veio e os outros também vieram ‒ Luccas e Evelyn. Coma minha permissão, obviamente.

É que, em parte, eu não suportava a ideia de enfrentar todas asperguntas que certamente viriam, as quais eu teria que mentirdescaradamente.

Eu só... não suportava.Mas não sei por quanto tempo mais eu poderei continuar fazendo isso.

Evitá-los.Não é certo. Não é lógico. Não é justo.Sam, Evelyn, Luccas... Só estão preocupados.Talvez, no fim das contas, mentir possa funcionar tanto para mim

quanto para eles. Possa tranquilizá-los.E isso seria bom o suficiente.‒ Está tudo bem, Lis ‒ digo, me apoiando no braço da cadeira giratória

para ficar em pé. ‒ Estarei lá embaixo em um minuto. Por favor, avise aSam.

‒ A senhorita vai precisar de alguma ajuda para descer?‒ Não, obrigada. Eu me viro Ela sorri de um jeito que diz que já esperava por essa resposta e se retira

do closet. Enquanto isso, eu apanho a muleta encostada à penteadeira esigo mancando para substituir a roupa amassada por um longo vestido detecido leve, que foi pendurado no cabide perto da porta closet porCecília.

É um processo meio difícil com o antebraço direito enfaixado até àspontas dos dedos, mas eu consigo passá-lo pela alça do vestido e, então,recolocar a tipoia. Após decidir que meu cabelo não está parecendo umninho de galinhas, eu saio do quarto.

Quando finalmente alcanço os pés da escada, avisto o mais jovem dosHarley parado perto dos janelões de vidro transparente. A julgar pelouniforme e a mochila preta nas costas, deve ter acabado de vim do

colégio.Me pergunto como as coisas estão lá fora. O que estão dizendo agora

que meu falso depoimento está nos jornais?Me pergunto se meus torturadores estão com raiva.‒ Oi, Sam ‒ murmuro para anunciar minha presença.Ele se vira e, ao me vê caminhando na sua direção, abre um sorriso.

Mas é um sorriso totalmente diferente dos que costuma dar, daqueles quenão alcançam seus olhos cinzentos. Não há brilho, ironia ou diversão ouaté mesmo a malícia que lhe são peculiares.

‒ O que está fazendo aqui? ‒ pergunto, intrigada com o estado atípicodele e, ao mesmo tempo, convido-o a se sentar no sofá com um gesto demão.

‒ Bem, eu... ‒ Ele desvia os olhos arregalados do meu rosto enquantoanda lentamente ao meu lado. ‒ Eu vim saber como você está... se precisade ajuda ou... sei lá, companhia, talvez.

Companhia?Claro.‒ Meu irmão mandou você vim me procurar. ‒ Sei que Henry anda

preocupado comigo... com o que aconteceu comigo e com o quanto issoestá mexendo com a minha cabeça.

Ele acha que eu vou enlouquecer de novo. Ir embora, comofiz depois que o nosso pai morreu. E, diferente desta vez, nunca maisvoltar.

‒ Quê? Não! Henry não me disse nada. Eu vim por conta própria.Estava... ‒ Sam hesita com um suspiro. ‒ Estava preocupado com você.Sinto muito pelo que aconteceu. Foi... foi horrível.

Sento-me no sofá e, deixando a muleta de lado, puxo uma almofadacinza para o meu colo. Conforme ele se ajeita à minha frente, reparo nasua aparência evidentemente desconfortável e abatida.

Estranho.O que há com ele?‒ Está tudo bem, Sam. Eu estou bem. Obrigada por ter vindo. ‒ De

novo. Como eu sabia que viria, mesmo sendo uma péssima ideia.Isso não é verdade, sussurra uma voz na minha cabeça. Ele está aqui agora.

É a chance perfeita. Pergunte! Você precisa saber.

Ignoro-a.Se por um instante, se só por um instante, eu me permitir questionar

qualquer coisa que seja a Sam... o que o impedirá de começar a fazerperguntas a mim? Sobre mim? Não. Não posso. Há limites demais para oque posso dizer, assim como aposto que ele possui os limites dele.

Seria muito mais fácil se eu simplesmente perguntasse a Henry. Mascoragem é o que me falta. Coragem para fazer as perguntas certas.Coragem para abrir a temida maleta...

"Todas as respostas que procura estão lá dentro." disse Hector enquanto eulutava para respirar dentro daquele banheiro fumacento.

Todas as respostas que procuro...Deus! Isso me aterroriza.Aquela noite me aterroriza, mais por ser confusa do que por qualquer

outra coisa. A menção do nome do meu pai e da minha mãe, porexemplo. Como eles sabiam?! O que meus pais têm a ver com isso ouqualquer coisa relacionada?! Eu não faço ideia.

E não me deram chance de perguntar. Não me deram chance deperguntar nada! Eu só tive que ouvir o que eles tinham a dizer e gritei.Gritei muito, na esperança de que alguém me ouvisse. Se estou aqui agoraé porque funcionou.

Alguém me salvou. Alguém me tirou daquela boate em chamas... Ficoimaginando se Hector e seu amigo ainda estavam lá quando a ajudaapareceu; como saíram daquele inferno de fogo que eles mesmos criaram.

A quantidade de pessoas que feriram... só para chegar a mim.Ah, Deus!‒ O que posso fazer para ajudar? ‒ pergunta Sam, repentinamente, a voz

saturada de súplica, dor e.... culpa?!, me chamando atenção. ‒ Diga,Aurora, e eu farei qualquer...

‒ Ei, ei, você... você está bem? ‒ indago, começando a ficar assustada, epercebo que ele está mais do que abatido.

Está pálido! Com a aparência de quem não dorme há vários dias.Deus! O que aconteceu?!‒ Sim, sim, não se preocupe, eu estou bem... quer dizer, mais ou menos.

É... ‒ ele se embaraça nas próprias palavras, sacudindo a cabeça, e isso étão novo quanto estranho. ‒ É complicado. Muitos... problemas em casa.

‒ Ahhh! ‒ Mas você não quer falar de problemas... quer? ‒ Sam olha paramim como se já soubesse a resposta, como se soubesse que tenhosegredos, como se dissesse tudo bem, eu entendo, também tenho os meus e nãoquero falar sobre eles.

Estou louca?O barulho de porta se abrindo soa entre nós repentinamente,

assustando-nos. Alguns segundos depois, Safira aparece na sala de estartoda vestida de preto com uma mochila a tiracolo da Nike e um arcansado em volta do rosto e dos ombros.

Finalmente!‒ Oi! ‒ Um sorriso imenso e alegre se abre em meus lábios enquanto

me esforço para ficar de pé.Ela sorri de volta, cruzando o cômodo e, por fim, joga os braços à

minha volta delicadamente.‒ Oi, Aurora. ‒ Sua voz está cheia de alívio e saudade.Nós não nos vemos há pouco mais de uma semana, para ser exata desde

a noite do incêndio quando ela me ajudou a ficar exuberante para aquelamaldita festa. Se eu tivesse previsto os acontecimentos daquela noite,jamais teria saído de casa.

‒ Senti sua falta ‒ murmuro, abraçando-a com apenas um braço. ‒Onde esteve? ‒ Dois dias depois que acordei no hospital, Henry me disseque ela tinha ido resolver uns assuntos em São Paulo, mas não deudetalhes.

‒ Lidando com alguns problemas. Também senti sua falta. Como vocêestá? ‒ Safira se afasta para me olhar nos olhos, as mãos subindo para omeu rosto, e uma emoção indistinguível lampeja em sua expressão ao meobservar mais atentamente.

‒ Estou bem agora ‒ garanto para tranquilizá-la com o maior sorrisoque consigo abrir. ‒ Uma completa inútil, mas... ‒ brinco, mostrando obraço e a perna enfaixados onde aqueles idiotas pisotearam a fim de meincapacitar.

Você não vai lugar nenhum, Srta. Aurora.Fecho os olhos em minha mente.‒ Duvido disso ‒ fala Safira, ajeitando uma mecha solta do meu cabelo

atrás da orelha. ‒ Seu irmão me disse que você não para quieta.

‒ O que é que eu posso fazer? Estou entediada e.‒ Por isso eu estou aqui ‒ diz Sam, atraindo minha atenção mais uma

vez.Eu e Safira olhamos para ele, agora em pé ao meu lado, mas com os

olhos cinzentos totalmente voltados para ela. Interessados e quase quemaliciosos. Nesse momento, ele se parece mais com o garoto que conhecino segundo dia de aula.

Safira também o observa com interesse, mas é diferente do de Sam. Deum jeito que eu não consigo definir muito bem.

Os dois ficam se encarando até que decido apresentá-los.‒ Safira, este é Sam Harley. Um amigo do colégio. Sam, esta é Safira.

Ela trabalha aqui. É uma amiga ‒ acrescento com evidente prazer.Ele estende o braço à guisa de cumprimento.‒ Oi, Safira ‒ diz suavemente, tocando a mão dela e levando-a em

direção aos seus lábios, sem romper o contato visual.‒ Sr. Harley ‒ devolve ela com certa formalidade.‒ Por favor, me chame de Sam.‒ Hum, certo... Sam ‒ murmura Safira, recolhendo a mão espremida

entre os dedos longos dele, e se volta para mim, a fisionomia levementecorada.

Por que ela está desse jeito? Será por causa dele?‒ Eu vou... eu vou para a cozinha. Fazer o almoço ‒ gagueja ela,

lançando-me um olhar repreensor quando fracasso em reprimir o riso. ‒Está com fome?

‒ Agora estou ‒ respondo sorridente. Que curioso. ‒ Almoça com agente? ‒ acrescento para Sam, que abre um sorriso jovial.

Henry vai gostar de saber que parei de ignorar meus colegas.‒ Se não for incomodar, sim.‒ De jeito nenhum.‒ Ótimo, então ‒ fala ele, animado. ‒ Eu posso cozinhar... se vocês

quiserem. Modéstia à parte, sou muito bom nisso.‒ Incrível! Eu ajudo... quer dizer, nós ajudamos. ‒ Viro para Safira com

um semblante significativo.Ela me fita como se quisesse revirar os olhos‒ Ótimo ‒ repete, mas não parece tão sincera. ‒ Vamos lá. ‒ E gira nos

calcanhares na direção da cozinha.Eu e Sam seguimos atrás dela. Num dado momento, percebo a atenção

dele se voltar para a curva sinuosa do quadril de Safira e fixar-seali com um ar malicioso de apreciação. Estou prestes a lhe dar umacotovelada com o braço sadio quando ela diz, o tom de voz não tãorepreensivo:

‒ Pare de encarar minha bunda, Sr. Harley.‒ Sam ‒ corrige ele ‒, e... foi mal. Não vai se repetir. ‒ Mas continua

fitando o balançar rítmico do quadril de Safira.Eu balanço a cabeça. Homens! COZINHAR COM SAM E Safira, mesmo sem poder fazer muita coisa útil, foi

uma experiência para lá de engraçada e divertida e inspiradora, tornandoo dia um dos melhores da semana. Fazia tempo que eu não me divertiatanto. Apesar de todos os esforços, sutis ou não, de Sam, Safira não cedeuao seu charme, mas toda vez que ele se aproximava eu a via se retesar euma coloração surgir-lhe nas bochechas; ou quando ele não estavaolhando diretamente, ela o observava com uma expressão curiosa, quaseconfusa. E então sacudia a cabeça como se estivesse brava com algumacoisa.

Fiz várias confabulações na minha cabeça enquanto assistia à interaçãodos dois na hora da escolha do prato.

‒ Ele mexe com você, não é? ‒ sussurrei um momento depois, enquantoela fatiava os temperos para o molho do frango à parmegiana que Samhavia decidido que faríamos.

‒ Quê?! Não! ‒ exclamou em um sussurro, levantando os olhos para ascostas de Sam, que se encontrava na outra bancada cuidando do frango.

‒ Qual é! Está escrito na sua cara. Agora. Com todas as letras.‒ Não está, não ‒ replicou ela, as bochechas ficando quase da cor dos

cabelos. ‒ Seu amigo é terrivelmente indiscreto e isso me deixa irritada.Ele me irrita. Nada mais. ‒ Ela terminou de picar a cebola e puxou umpimentão vermelho para cima da tábua de vidro.

Eu me aproximei para falar mais baixo.‒ Não está irritada com ele. Está irritada consigo mesma. Sabe disso,

não é?

Ela descansou a faca e riu.‒ Por que eu estaria irritada comigo mesma?‒ Por estar irritada.Safira riu uma segunda vez.‒ Isso é redundante e... confuso. Não vamos mais falar à respeito.Eu dei de ombros.‒ Minha mãe costuma dizer que paixão é algo confuso e o que amor

simplifica tudo. Porque não deixa dúvidas.‒ Sua mãe, por acaso, lê muitos livros de romance?‒ É o segundo hobby favorito dela.‒ Certo. Está explicado, então. Me passa aquela travessa ‒ pediu ela,

claramente querendo mudar de assunto, e a conversa parou por aí.Quando me virei para o balcão às minhas costas, flagrei Sam nos

observando com um sorrisinho maroto de quem ouviu cada palavra doque foi dito. Quase lancei um tomate maduro nele, mas para sua sortenão havia nenhum por perto.

Então joguei um pano de prato, que ele apanhou com uma piscadela ecolocou no ombro, o que me lembrou imediatamente de uma época rara eespecial de normalidade, quando meu pai e eu fazíamos bagunça nacozinha da nossa casa em Londres ‒ a terra natal dele; onde eu nasci,cresci e estudei até os meus 11 anos de idade ‒, e mamãe sempre vinhacom um pano de prato ou dois para nos expulsar, reclamando porqueteria que arrumar tudo depois sozinha.

Eram maravilhosos momentos assim. E jamais voltarão a acontecer, pormais que eu quisesse ou fosse possível. Às vezes sinto que devia teraproveitado melhor o tempo com o meu pai, que não tivéssemos feito...certas coisas que fazíamos. Mas, ao mesmo tempo, agradeço por cadainstante feliz eternizado na minha memória. Enquanto eu viver, podereime lembrar deles.

Ainda que isso não ajude a aliviar minha consciência. DEPOIS DO ALMOÇO ‒ FRANGO à parmegiana, arroz e purê de batata ‒,

estou relutante demais em passar o restante da tarde apenas nacompanhia de meus pensamentos sombrios. Como Safira tem seusafazeres domésticos, não poderá estar comigo até terminá-los. Henry não

veio almoçar em casa e só deve aparecer tarde da noite. Lis saiu paracuidar de outro paciente e só retornará no fim do dia. Então, até quequalquer um deles apareça... eu não sei, sinto que posso enlouquecer.

Por isso, eu seduzo Sam com um convite à sala de jogos, onde passamoshoras e horas jogando Life is Strange. Na verdade, ele passa. Eu apenasobservo, em alguns momentos pensando em como eu adoraria ser aMaxine ‒ a personagem principal do jogo ‒, que consegue voltar notempo a qualquer segundo.

É. Seria incrível. Uma dádiva. Não apenas para corrigir meus erros, maspara também dizer coisas que devia ter dito.

Sim. Não. Sinto muito...Me perdoe.Balanço a cabeça para fugir desse pensamento e volto a manter a

conversação com Sam sobre minhas experiências com jogos eletrônicos.Conto a ele como meu pai foi meu maior influenciador nesse quesito,como minha mãe tentou corrigir isso com uma montanha de livrosclássicos e aulas de balé; como essa divergência não só me tornou umahabilidosa jogadora como também uma excelente dançarina e uma leitoraextremamente voraz.

‒ É bem incrível ‒ comenta Sam e, ficando subitamente sério, diz: ‒Gostaria que meu irmão fosse como você.

Eric!Dezenas de lembranças estouram na minha cabeça ao mesmo tempo:

uma pista de dança; música alta, envolvente; dois corpos pressionados poruma multidão, em movimento; corações acelerados, luzes coloridaspiscando.

Um beijo... Intenso. Molhado. Excitante.Ah!Ah!Eric!Há dias tenho evitado pensar nele, falar nele. Mas à noite, tarde da

noite, quando estou fraca e cansada demais para lutar, para resistir, eusonho com seu rosto perfeito, seus olhos raros e seu cheiro de madeira eâmbar.

Eu sonho com o nosso inesperado beijo. Que beijo. É uma

obsessão. Todas as noites antes de dormir, eu pedia aos céus que se fossesonhar, que fosse com ele.

Até os pesadelos começarem. Meus habituais pesadelos. Agoramisturados a lembranças reais.

Perturbador. Tão, tão perturbador.Nem inconsciente eu tenho paz.‒ Seu irmão... ‒ murmuro vagamente, voltando a mim. ‒ Gostaria que

ele fosse um excelente dançarino? ‒ Porque ele é.Ah se é.Rechaço o pensamento.‒ Não. Não é isso. ‒ Sam ri. ‒ Gostaria que ele gostasse de games... quer

dizer, não sei se ele não gosta, na verdade. Mas ele nunca sentou comigopara jogar.

‒ Sério?!‒ Eric é fanático por arte, livros e pinturas.‒ Uau! ‒ assovio, impressionada. ‒ Isso é bem incrível.‒ Também é o que nos torna completamente diferentes um do outro ‒

ele diz isso com um traço de amargura que é estranho para mim, aexpressão endurecida.

Quase como se estivesse magoado.Minha curiosidade é atiçada, mas consigo me controlar.‒ Nem todos os irmãos são iguais, Sam. Eu e Henry não somos. ‒ Meu

tom de voz é propositadamente apaziguador.Ele dá de ombros.‒ Não é a mesma coisa ‒ fala, os olhos concentrados na tevê. ‒ A

personalidade de Eric não nos torna apenas pessoas distintas... Ela noscoloca a um oceano de distância um do outro, e nada do que eu façaparece conseguir mudar isso. Às vezes sinto como se estivesse perdendo-oe ... ‒ Ele se cala, pausa o jogo e olha para o outro lado da sala. ‒Desculpe, Aurora, eu não devia... jogar isso em cima de você assim. Eusó...

‒ Estava engasgado ‒ completo naturalmente. ‒ Tudo bem, Sam. Nãotem problema. Provavelmente você precisava colocar isso para fora.Espero que esteja se sentindo melhor.

Ele balança a cabeça, encarando as mãos agora.

‒ Ainda não, na verdade ‒ diz e sua voz está meio embargada. ‒ Às vezessinto que poderia gritar e mesmo assim não ia ficar melhor.

‒ Você devia tentar ‒ murmuro, esticando o braço sadio para tocar amão dele. ‒ Talvez melhore. Talvez ajude.

‒ Um grito no vazio? ‒ Um riso forçado. ‒ Dificilmente, Aurora.‒ O que você quer, então? O que você precisa, Sam?Ele não diz. Então se torna óbvio para mim.‒ Olhe. ‒ Aperto sua mão. ‒ Sei que não sou a pessoa mais aberta do

planeta. Sei que isso pode parecer estranho ou... suspeito, às vezes. Masquero que saiba que estou aqui... que pode contar comigo se precisar dealguém para... ouvi-lo.

Ele volta o olhar para o meu rosto, as feições agora completamenteinsondáveis, e não faço ideia do que está pensando ou sentindo. Masmantenho a expressão neutra até que ele entrelaça os dedos nos meus eaplica um beijo delicado e inocente ao levar minha mão aos seus lábios.

‒ Você é uma boa amiga, Aurora. Vou me lembrar disso. Obrigado ‒diz Sam, sorrindo largamente.

Eu devolvo o sorriso com um pouco de ironia.‒ Eu nunca fui uma boa amiga, sabia? Eu nunca fui sequer uma amiga,

na verdade.Ele gargalha.‒ Está se saindo muito bem, pode crer.‒ Ótimo, então. Fico feliz. ‒ Gargalho junto, jogando a cabeça para trás.Quando baixo os olhos, encontro-o encarando meu pescoço, o sorriso

sumindo de seus lábios lentamente. Em um gesto involuntário, eu soltominha mão da sua e envolvo a garganta para esconder as marcas earranhões da tortura que sofri naquele banheiro de boate. A expressão deSam se altera muito rapidamente.

‒ Desculpe. Eu não devia... encarar assim. Me desculpe, Aurora ‒ dizele

‒ Tudo bem. ‒ Removo a mão do pescoço, sabendo que reagiexageradamente. ‒ Elas são chocantes mesmo. Não dá para não prestaratenção.

‒ É. ‒ Sam direciona os olhos para a tevê e retoma o jogo. ‒ Aquelanoite foi chocante ‒ diz sombriamente.

A voz de Hector preenche o interior da minha cabeça sem ser chamada,e tenho que me obrigar a pular fora desse pensamento. Meus dedos damão esquerda se fecham em punho.

‒ Sim ‒ sussurro. ‒ Chocante.Mas as palavras de ameaça continuam ecoando.Acabe com eles, Srta. Aurora. Os Harley. Acabe com todos eles. Você pode

fazer isso. Nós sabemos que você pode. E vai fazer.

Eric

"Acho que preciso da sua ajuda."

Não consigo comer. Não consigo beber. Não consigo dormir. Não

consigo fazer nada além de procurar aquele maldito símbolo. Sam estavacerto. Estou obcecado. Estou perdendo meu tempo. Durante uma semanainteira tenho procurado. Não há mesmo o que achar. Não há. Mas nãoposso admitir isso. Não ouso admitir isso para ninguém. Sou idiota,orgulhoso, covarde. Sou louco. Tenho esperanças. Profundas. Secretas.Intensas. Tenho esperanças de encontrar algo, qualquer coisa queexplique o porquê de certos acontecimentos. Isso está me consumindo.Meu passado. Meu presente. Preciso saber. Preciso entender. Será queestou fazendo algo errado? Será que não estou fazendo o suficiente? Possotentar de novo? Posso? E por quê? Por que quero tentar de novo? Por quenão deixar para lá?

Não paro de pensar nela. Esse é o porquê. Não paro de pensar no beijo.Não paro de pensar na dança. Não paro de pensar na nossa conversa. Ascoisas que ela me disse... para me confundir. Para me enganar. Parabrincar comigo. Sinto raiva disso. Sinto raiva de mim mesmo por sentirraiva. Por sentir qualquer coisa por ela. Por protegê-la...

Maldição!‒ Aí está você ‒ a voz de Sam soa subitamente no silêncio da floresta.Em reação, meus batimentos cardíacos entram em descompasso, como

se eu tivesse sido pego fazendo travessuras, e tenho de lembrar a mimmesmo que os meus pensamentos estão seguros.

‒ Não sou eu o sumido, irmão ‒ murmuro sem olhar para ele econtinuo admirando a beleza do lugar que encontrei há muitos anos.

Apesar de o chalé ter mudado estruturalmente, os arredorespermanecem os mesmos. As árvores frondosas, os arbustos de flores, apequena cachoeira de águas cristalinas, a caverna mágica e sua históriamórbida...

‒ É sempre bom saber que meu irmão mais velho sente a minha falta. ‒Sam surge ao meu lado com um trejeito de sorriso no rosto.

‒ O que veio fazer aqui? ‒ pergunto, desprovido de qualquer emoção.Estou cansado demais para aturar gracinhas.

Ele para de sorrir.‒ Ayla me disse que você encerrou as pesquisas sobre Aurora. Foi por

causa do depoime...?‒ Pensei que não estivesse interessado na minha... Como foi que você

chamou na semana passada? Obsessão?Ele se retrai com a dureza e o sarcasmo incontroláveis na minha voz.‒ Calma aí, cara...‒ Não, Sam. Faça-me o favor de continuar assim. Vai ser melhor.‒ Não pode me culpar por não entender você.‒ Me entender?E quando foi que você conseguiu fazer isso?!, quero gritar.‒ Você a odeia ‒ ele solta, com força e lentidão, enfatizando a última

palavra. ‒ Eric, você a odeia tão intensamente. Mas então, você a beija e asalva sem nem piscar. E agora, olha só, está aqui, atrás de um novo motivopara odiá-la novamente ou quem sabe até matá-la... Quer dizer... Quediabo você quer, cara? ‒ pergunta ele. ‒ O que pretende? Descobrir queafinal de contas ela é alguma... espécie de monstro só para justificar o fatovocê ter matado aquela garota no passado?

‒ O quê?!‒ É isso mesmo o que ouviu. Elas se parecem. Elas têm a mesma marca

no pescoço. É isso que quer descobrir? Se elas são a mesma pessoa?Descobrindo que Aurora é um monstro você se livra da culpa de terassassinado uma garota inocente, certo?

Suas palavras ardem em minha pele, quebram meus ossos, roubam-me oar. Não há nada mais forte do que isso. Não há nada mais destruidor doque as palavras... e a verdade.

‒ Por que assassinou aquela garota, Eric? ‒ Sam despeja mais uma

pergunta em cima de mim, olhando dentro dos meus olhos na penumbrado fim de tarde.

Desvio o rosto da sua fisionomia curiosa.‒ Não importa ‒ respondo, ligeiramente, a meia voz. ‒ Volte para casa,

irmão. ‒ Saio andando com destino ao chalé.Não quero entrar nesse assunto. Não aguento.‒ Ei, importa para mim, está bem? ‒ Ele me alcança facilmente. ‒ Nós

nunca nos alimentamos de humanos. Nem de harpias. Sempreconseguimos nos manter fortes... treinando... Não havia motivos paravocê...

‒ Eu estava com raiva ‒ rosno, à beira de perder a cabeça. ‒ Pode nãoser a justificativa mais aceitável, mas eu estava com muita raiva, Sam, evocê não vai querer saber por quê. Então vamos parar com essa conversaagora mesmo.

Continuo andando. Mantenho-me concentrado apenas em fazer minhairritação diminuir. Bloqueio as lembranças.

Não posso lidar com essa merda toda agora.‒ Eu já entendi ‒ grita Sam, ainda levando o assunto adiante,

marchando ao meu lado. ‒ Nós finalmente saímos da Trindade, íamos nosestabilizar fora do país. Foi nessa mesma época, não foi? ‒ pergunta ele. ‒Ayla queria que ficássemos com ela. Todos juntos. Você achou que elaestava tentando roubar o lugar da nossa mãe. Teve a ver com isso? ‒instiga ele, e lá no fundo tenho a sensação de que está sendo depropósito.

Ele quer me ver explodir.‒ Não, Sam. Não teve a ver com isso.‒ Então o que foi?‒ Esqueça.‒ Quer saber? Eu acho que teve sim.‒ Chega. Não comece.‒ Eu já comecei, irmão ‒ diz ele. ‒ Talvez tenha sido por minha causa,

não? Eu forcei a barra. Insisti para que aceitasse Ayla. Nós enfim teríamosuma família, o que eu queria e você não!

Seu tom acusatório me faz parar de andar subitamente, como se eutivesse me chocado em uma parede invisível. Ele contorna o meu corpo

para ficar de frente e poder olhar nos meus olhos.Estremeço de raiva.Que droga, Sam!‒ Está bem. Você quer que eu fale? ‒ sussurro, cerrando as mãos

em punhos. ‒ Eu falo. Mas primeiro: me diga ‒ ordeno. ‒ Foi por Aylaque você quis ir embora? Foi por ela que você tanto quis ter uma famílianovamente, viver uma vida normal e tudo mais?

Ele franze a testa conforme volta no tempo, à época em que Aylaconseguiu nos tirar da Trindade e quis assumir a responsabilidade sobrenós. Então engole em seco, pálido, ao certamente perceber que eu sei deum pequeno detalhe importante.

‒ Exatamente, irmão ‒ murmuro, abrindo um sorriso taciturno. ‒ Nãoteve a ver com Ayla e a solidariedade dela em nos transformar numafamília. Não teve a ver com ir ou ficar...

‒ Não faz sentido...‒ Você conheceu Elizabeth, lembra? Você se apaixonou por ela quando

o seu dever era matá-la. E o único jeito de a Trindade não descobrir o seuromance era irmos embora, mas eu disse “Não. Não por isso.”. Mas você...‒ estou rosnando agora ‒ você disse a ela que ia embora mesmo que eudecidisse ficar, que minha opinião não tinha valor para você e que eupoderia viver minha vida sozinho como eu tanto queria. Mas eu nuncaquis ficar sozinho!

‒ Isso não é verdade! ‒ retruca ele, encarando-me determinado. ‒ Nãovenha com essa agora porque não é verdade. Quantas vezes eu imploreipara ficarmos juntos? Quantos vezes você fechou a porta deste malditolugar na minha cara? Você não se importava, Eric. Você nunca seimportou com alguém além de si mesmo!

‒ Eu não me importava?! ‒ enfrento-o, caminhando para frente. ‒ Podefalar o que quiser a meu respeito, mas eu jamais lhe dei as costas. Jamais!Sempre estive aqui. Não fui eu quem quis ir embora, irmão. ‒ Balanço acabeça. ‒ Não fui quem estava disposto a abandonar. Você só a conheciahá cinco minutos. Cinco. Minutos. E a tratou como se ela fosse a porra doseu universo, como se nada mais importasse. Nem Ayla. Nem eu e nemmesmo o que fiz para tornar sua vida mais fácil dentro da Trindade...

Recuo, exaltado, interrompendo minhas próprias palavras. A mágoa

que eu mantive escondida durante todo esse tempo ameaça cruzar o limitedo controle. Sam avança para segurar meu braço.

Para trás, irmão.‒ Lamento que tenha ouvido aquilo. ‒ Seu semblante perplexo

se transforma em culpado.‒ É. Eu também ‒ falo, desdenhoso. ‒ Mas eu ouvi e, acredite em mim,

eu não queria.E não queria mesmo, porque depois daquela ridícula declaração de

amor, eu saí correndo. Não pretendia fugir nem nada. Mas precisava meacalmar. É muito fácil perder o controle quando se é um Inominávele possui duas naturezas facilmente corrompíveis por emoções extremas.

E meu sangue borbulhava dentro do meu corpo, deteriorandomeu racional.

As ideias que passavam pela minha cabeça eram horrendas, horrendasdemais, até para mim.

Sam é o meu irmão, eu repetia incansavelmente.Até que fui distraído do meu pensamento homicida por ela.Eu conto a Sam como tudo aconteceu. Como a beleza sublime dela me

parou, congelou meu sangue quente nas veias, travou meus pés no meiodos passos. Se eu não tivesse conhecido Aurora, ela teria sido a garotamais linda que já encontrara.

Foi hipnotizador.Que ironia.Sua pele de porcelana gotejava perfeição, parecia quase inumana, e os

olhos e o cabelo loiro-arruivado a imitavam com singular harmonia. Seucorpo pequeno e curvilíneo estava coberto por uma lingerie branca eparcialmente submerso no lago.

Ela encarava as estrelas.Quando me enxergou, seus olhos dourados e redondos se arregalaram

vertiginosamente, e lembro-me de ter pensado que assustada ela ficavamais linda, mais perfeita, mais sobrenatural. Lembro-me de pela primeiravez sentir meu coração bater de uma maneira diferente, minha pele ficararrepiada por uma emoção impossível de distinguir.

Eu fiquei momentaneamente perdido.Não demorou muito para a bela garota sair em disparada, deixando suas

outras roupas para trás, na beira do lago. Sua reação me alertou para aminha aparência. Eu estava transformado; ela viu o monstro.

Porém, mesmo assim, eu fui atrás dela.Queria ver seu rosto primoroso mais uma vez. Queria saber se era

humana. Queria perguntar seu nome. Queria contar minha história paraela, lhe perguntar se eu era um irmão tão tão tão horrível...

Loucura. Não parece fazer sentido. Mas...Seu cheiro agradável me atraía, tornando sua localização facilmente

identificável. Não foi difícil guiá-la a um beco sem saída sem quepercebesse. Eu conhecia a floresta como a palma da mão. Ela, nem tanto.Assim que se viu encurralada na beira de um precipício, não soube o quefazer.

E foi aí que eu apareci, esperei que notasse minha presença, e quandoela a fez, andei em sua direção. Ela gritou e disse não e por favor e não memate e misericórdia. Suplicando. Implorando.

E aquilo tudo era enormemente irritante e odioso.Eu queria que ela calasse a merda da boca, eu queria que ela ficasse

quieta para que pudéssemos conversar com calma, mas ela continuou econtinuou com aquela lamúria, lutando em meus braços, até que...

‒ Arranquei o coração dela ‒ falo para um Sam pálido ‒, eu arranquei ocoração daquela garota com as minhas garras; e quando seu corpo paroude se mexer, eu vi a marca. Quando seu sangue encharcou minhas mãos,eu senti vontade de prová-lo. E em alguns momentos, quando estou pertodemais de Aurora, eu quero muito, quero intensamente fazer o mesmo...

‒ Chega ‒ sussurra ele, toma distância de mim, cambaleando nospróprios pés. Cobre a boca com a mão. ‒ Chega ‒ diz de novo, sua vozsoando abafada.

‒ Foi você quem pediu, irmão.‒ Tudo ‒ fala ele, transtornado ‒, toda desgraça que aconteceu depois

desse dia ‒ ele engole em seco ‒ foi culpa...‒ Minha ‒ declaro, antes que ele possa dizer o contrário. ‒ Foi culpa

minha. Porque eu perco a cabeça muito fácil, porque não consigo resistir,por mais que eu tente, à ser... um monstro. Eu sou assim, Sam. Fim depapo.

‒ Não ‒ ele nega. ‒ Meu amor obsessivo por Elizabeth culminou nisso

tudo...‒ Pelo amor de Deus, você...‒ Ei, pare de dar as costas para mim!Evito que ele agarre meu braço quando me distancio e fecho a mão na

sua camisa social com ferocidade. À medida que virava o corpo de voltapara Sam, meus olhos captaram o movimento de uma silhueta sumirvelozmente para detrás de uma árvore a quinze metros de onde estamos.

Bisbilhoteira.Foco o olhar em Sam antes que ele perceba o que eu vi. Preciso

encerrar essa conversa e não há momento melhor do que agora. Já fomoslonge demais com esse assunto.

‒ Você não quer essa culpa ‒ digo-lhe, sem me preocupar em sereducado. ‒ Não quer esse peso. É demais e ele não lhe pertence. É meu,só meu ‒ lembro-lhe. ‒ Agora esqueça isso de uma vez por todas. Voltepara casa. Não temos mais nada a dizer um ao outro hoje.

Solto seu colarinho com um empurrão e deixo que meus braçoscaiam mole ao lado do corpo, dando um passo para trás. Sam me olha dequeixo trincado por um instante, em seguida desaparece sem dizer adeus.

Afasto da mente sua expressão de tortura à medida que a presença delese distancia... some, enfim, restando apenas a dela que já se encontra amuitos metros.

Disparo nessa direção a tempo de interceptá-la.É mais fácil do que pensei.Empurro-a contra o tronco da árvore mais próxima e pressiono o

antebraço no seu pescoço. Ela sorri com os olhos azul-escuros dançandode alegria e safadeza. Nós não trocamos palavras há muito tempo. Estoume perguntando por que ela está aqui e ao mesmo tempo considerandooutra coisa.

‒ É desse jeito que costuma tratar uma mulher? ‒ pergunta Elizabeth,irônica, sem me empurrar para longe.

‒ Só as que costumam ouvir minhas conversas às escondidas ‒ respondocom uma pitada de sarcasmo.

Ela não sorri, mas sua voz é manhosa.‒ Sinto muito. Vai me matar por isso?Meus lábios se envergam num sorriso mínimo.

‒ Não ‒ digo como que casualmente. ‒ Pelo menos não esta noite. ‒Inclino a cabeça.

Ela arqueia a sobrancelha bem desenhada.‒ Acho que preciso da sua ajuda ‒ murmuro cuidadosamente, só para

ver seu olhar estreitar-se.Só posso estar ficando maluco.‒ O que me diz?Elizabeth abre um sorriso de orelha a orelha.‒ Hoje é seu dia de sorte, zangadinho.

Aurora

"Não confie em nenhum deles, Aurora."

‒ Onde está Safira? ‒ É a primeira pergunta que

Sam faz quando abro a porta da mansão para ele num sábado ensolarado.Fecho a cara de brincadeira, meu olhar se estreitando.‒ Oi para você também, Harley ‒ resmungo, fazendo um gesto de

convite com os ombros.Antes de entrar, ele segura meu rosto com as duas mãos e me beija na

testa com doçura. Fico sem graça com o gesto, mas não pelo motivo quevocê está pensando. Eu apenas não estou tão acostumada a expressões decarinhos vindas de outras pessoas que não sejam minha mãe e Henry.

E com Sam, isso está o tempo todo acontecendo. Acredito que façaparte da sua personalidade: ser extremamente carinhoso, solidário ededicado. Uma máquina de afeto. O que é incrível, natural e admirável.

Ele gosta de mim. Não romanticamente falando, não desse jeito, apesardo seu lado malicioso e cafajeste. Mas ele realmente gosta de mim. Comoum amigo. Como um familiar. E por mais que eu resista, também oadoro. Seu senso de humor infantil é o que mais me distrai e diverte.

Nada do que aquele maldito envelope parece significar faz o menorsentido quando estamos juntos.

‒ E aí, Harvelle. Como você está hoje? ‒ indaga Sam, entrando namansão.

Como sempre, está bem-vestido: calça jeans justa, camisa social de linhoarregaçada até os cotovelos e óculos escuros.

‒ Bem, obrigada por perguntar. ‒ Fecho a porta.Sorrindo descaradamente para o sarcasmo no meu tom de voz, ele me

oferece o próprio braço, que tem sido uma das minhas muletas nosúltimos dias, e me ajuda a chegar ao sofá perto da poltrona.

Desde aquela tarde em que passamos horas e horas juntos na sala dejogos, ele tem vindo me visitar constantemente depois do colégio. Àsvezes Evelyn vem junto e ficamos os três estudando, para a alegria deHenry. Como não posso ir até a instituição ‒ mais por motivos desegurança do que de bem-estar ‒, eles têm me ajudado a cumprir algumastarefas escolares.

Sam é um ótimo parceiro de estudo e, com um ajudinha de Evelyn,desenvolveu resumos completos de todos os assuntos que estou estudandoatualmente; uma síntese clara e perfeita que tem facilitado muito paramim. E com as provas se aproximando, é totalmente bem-vinda. Minhavida acadêmica está salva e eu não poderia estar mais feliz e satisfeita porisso.

Gostaria que Luccas estivesse fazendo parte disso também, até mesmopara desfazer qualquer má impressão com Sam e os dois se tornaremcolegas. Mas, de acordo com Evelyn, ele não aparece no colégio há dias. Enão tem atendido minhas ligações também. Estou preocupada. O quepode ter acontecido?

‒ Então ‒ diz Sam, largando-se ao meu lado. ‒ Onde está Safira?Sentando-me perto dele, apoio a mão no braço do sofá.‒ São Paulo ‒ respondo com um suspiro.‒ De novo?‒ Ela disse que precisa terminar de resolver algumas coisas, mas não

disse o quê. Provavelmente algum drama familiar.Estou sinceramente preocupada. Safira parecia muito tensa antes de sair

daqui. Suas últimas palavras...‒ Drama familiar? Eu posso entender ‒ diz Sam, interrompendo meu

pensamento.‒ Você está bem? ‒ Olho para ele, ansiosa, e espero que a expectativa

não esteja tão óbvia no meu rosto.Desde o momento de desabafo na sala de jogos, eu tenho esperado

ansiosamente por um próximo, na esperança de descobrir mais sobre suarelação com Eric.

Mas a julgar pelo silêncio dos últimos dias, as coisas devem ter se

acalmado entre os dois. Eu devia ficar feliz por isso, mas minhacuriosidade não me permite e me sinto péssima.

Esse garoto tem sido um ótimo amigo e, ao que parece, as desavençascom o irmão o deixam ligeiramente desconfortável. Fico imaginandocomo seria ruim se eu e Henry não nos déssemos bem, embora não tenhacerteza se minha relação com meu irmão pode ser comparada a relaçãodos Harley.

Eles têm segredos demais.Como vocês, lembra a voz na minha cabeça.‒ Não se preocupe. ‒ Sam ri, abafando o som inoportuno na minha

mente. ‒ Não vou precisar de outra sessão de terapia tão cedo.Ah!‒ Porque sua terapia já é estar aqui. ‒ Ele disse isso outro dia.‒ O que é que eu posso fazer? Ajudar minha amiga inválida a estudar

me faz sentir bem comigo mesmo.Hã?!Jogo uma almofada na direção do seu rosto, mas ele se protege usando

as mãos e solta uma risada estrondosa de menino levado.‒ Você vai direto para o inferno e vai arder até virar um churrasquinho,

sabia?‒ Sinto muito. ‒ Ele abre um sorriso malicioso, lançando a almofada

para o outro sofá, e tira a mochila preta das costas.‒ Sente muito ‒ resmungo baixinho. ‒ Cínico.‒ O que foi que você disse? ‒ Sua expressão ofendida quase me faz

sorrir. Ele puxa uma caixa de trufas de dentro da mochila e coloca noespaço entre nós.

Ahhhhhh!‒ Não tão cínico ‒ murmuro com água na boca. São as minhas

favoritas: trufas de chocolate com recheio de uva e beijinho.‒ Esperta.‒ Olha só quem fala. Chantagear alguém com comida não é nem um

pouco um ato de esperteza, não é? ‒ solto, cheia de ironia, agarrando meusuborno.

‒ Vale tudo no amor e na guerra. E por falar em amor... ‒ Ele semovimenta no sofá para ficar de frente para mim. ‒ Quando vai me

ajudar com Safira?Estava demorando.Há dias ele tem me atormentado com essa conversa. Se não fosse

engraçado vê-lo se esforçar por ela, já teria me arrependido de colocá-lospara cozinhar juntos.

‒ Não sei o que você quer que eu faça ‒ comento, jogando uma trufa naboca.

Humm... Meus dentes rompem a capa de chocolate e chegam ao recheiodoce e amargo da uva e do beijinho.

‒ Que tal convencê-la a aceitar meu convite para sair?‒ Você a convidou para sair?! ‒ Finjo não saber.‒ Ela não contou?! ‒ Ele se surpreende.Faço que não com a boca cheia de chocolate.‒ Deve ter sido um péssimo convite, então ‒ balbucio depois de engolir.

‒ Porque ela me conta tudo, sabe?Sam fecha a cara.‒ Obrigado, Aurora.‒ Estou brincando. ‒ Mordo o lábio, sorrindo perversamente. ‒ Safira

comentou sobre o convite, sim.‒ E?‒ E nada. Ela está em dúvida.‒ Por quê?!‒ Precisa perguntar? ‒ Ergo as sobrancelhas com um olhar acusatório. ‒

Você é um perfeito mulherengo.‒ Ela não sabe disso.‒ Bem, talvez eu tenha contado.‒ Você me denegriu para a garota?!‒ Não exagere. Eu só contei o que ouvi falar na escola.Ele abre a boca e fecha, chocado. Abre outra vez e diz:‒ Aposto que 80% é mentira.‒ O caso com as gêmeas Bianca e Beatriz é mentira? ‒ Como outra

trufa. ‒ Ouvi dizer que você trocou o nome delas diversas vezes.‒ São gêmeas!‒ Não exatamente iguais ‒ friso. ‒ Você as confundia porque namorava

as duas ao mesmo tempo, isso sim.

Ele coça o nariz, desconfortável.‒ Qual é, Aurora. Isso foi ano passado. Eu mudei este ano ‒ apela.Eu engasgo ao dar risada, e ele reprime o sorriso cafajeste.‒ Que seja.‒ Você precisa desfazer o mal que causou ou conto para Henry que não

está mais tomando os remédios ‒ ameaça Sam em voz baixa, sabendo quemeu irmão pode estar por perto já que não foi trabalhar hoje.

Eu estreito os olhos para ele. Golpe baixo.‒ Falarei com Safira quando ela voltar ‒ murmuro com uma expressão

de "eu queria sinceramente matá-lo agora".Ele abre um sorriso de orelha a orelha.‒ Garota, eu amo você.‒ Claro que ama. ‒ Reviro os olhos. ‒ Você está parecendo um irmão

mais novo irritante, sabia?Ele me beija na bochecha, jogando-se para fora do sofá.‒ Sou só um ano mais novo do que você. Agora vamos ao trabalho ou

então...Um barulho de música alta tocando interrompe a fala de Sam. Ele enfia

a mão no bolso da calça e puxa o iPhone, pairando o dedo na tecla deignorar a ligação. Franze a testa.

‒ É minha mãe! ‒ diz, a voz um tanto surpresa, e olha para mim. ‒Desculpe, Aurora. Preciso atender. Pode ser importante.

‒ Tudo bem. Vá em frente.‒ Obrigado. ‒ Ele desliza o dedo na tela e leva o aparelho ao ouvido,

sem sair do lugar. ‒ Mãe. Oi. O que aconteceu? ... Estou bem, não sepreocupe... Sabe que não posso... Agora? Não pode ser mais tarde? ... Ok,ok, ok. Estou a caminho. Tchau. ‒ Sam desliga, arrastando a mão noscabelos loiros de um jeito exasperado.

‒ Está tudo bem? ‒ pergunto, curiosa e preocupada.‒ Minha mãe quer que eu vá encontrá-la agora ‒ responde ele, coçando

o nariz com um revirar de olhos.Minha testa se franze incontrolavelmente.‒ Tudo bem. Não tem problema. Nos vemos outro dia ‒ falo, sendo

sincera.‒ Desculpe, Aurora. É que... ‒ hesita ele, passando a mão nos cabelos

de novo. ‒ Eu... eu não estou dormindo em casa. Ela provavelmente querme convencer a voltar.

‒ Entendi ‒ minto sem querer perguntar por que ele não está passandoas noites em casa.

Mas ele conta:‒ Eu e Eric não estamos em um bom momento, sabe? ‒ Enfia as mãos

nos bolsos da calça. ‒ Achei melhor me afastar por uns dias, então... Fuipara um apartamento que minha mãe possui no centro da cidade.

‒ Claro. ‒ Sacudo a cabeça e, tendo uma ideia, acrescento: ‒ Sabe quepode ficar aqui, não sabe? Tem espaço suficiente. Henry não seimportaria. Nem eu.

Ele sorri, agradecido.‒ Pensarei a respeito ‒ promete.‒ Certo e... Leve o tempo que precisar, com a sua mãe. Você já me

ajudou bastante. Demais, até ‒ Prometo que volto assim que possível. À noite, se não tiver

problemas.‒ Claro que não. Problema nenhum.‒ Ótimo! E obrigado. ‒ Ele apanha a mochila e joga no ombro.‒ Não há de quê, Sam. ‒ Fico em pé para acompanhá-lo até a saída.Na varanda, observo-o caminhar até o seu BMW conversível com a

elegância de um modelo de passarela e, então, depois de buzinar emdespedida, sumir silenciosamente, deixando-me a sós com meuspensamentos.

Eu e Eric não estamos em um bom momento.Essas palavras ecoam na minha cabeça sem fazer nenhum sentido. O

que está havendo com esses irmãos? Achei que estava tudo certo entreeles.

Viro o corpo para entrar em casa, mas entravo no meio do movimentoao ver uma sombra cruzar as árvores do outro lado da estrada. Um arrepioeletrizante perpassa minha coluna vertebral no mesmo segundo,obrigando-me a me apoiar firmemente na muleta.

Droga! Que diabo.Saia daí, ordena a voz na minha cabeça, imperativa. E, desviando os

olhos das árvores, começo a mancar ligeiramente em direção à entrada,

medo rompendo em cada osso do meu corpo. Dentro de casa, encosto-meà porta fechada e respiro fundo a fim de acalmar meus batimentoscardíacos acelerados.

Ah, meu Deus!Estou vendo coisas de novo?‒ Aurora?! ‒ a voz do meu irmão me chama da sala de estar.‒ Oi ‒ respondo, caminhando para lá, e o encontro descendo as escadas

vestido com bermuda jeans e camisa polo preta, os cabelos levementeúmidos e bagunçados.

‒ Sam está aqui? Pensei ter ouvido a voz dele.‒ Ele estava, mas teve que ir embora. Ayla ligou ‒ explico à medida que

retorno ao sofá.‒ Hum.‒ Você sabia que ele não está dormindo em casa? ‒ questiono, tentando

soar despretensiosa e, sentada, puxo minha caixa de trufas para o colo.Henry arqueia a sobrancelha, indo para a poltrona.‒ Não, não sabia.‒ Ele disse que não está em um bom momento com o irmão ‒

continuo.‒ Não deve ser nada demais. Provavelmente algum problema com

garotas.Dou de ombros como se concordasse.Garotas? Será?Por algum motivo esquisito, a Loira Caramelo me vem à mente.Henry se senta na poltrona e me encara.‒ Só espero que essa garota não seja você, claro ‒ diz num tranquilo

demais.‒ Eu?! Por que eu?‒ Você e Sam têm passado bastante tempo juntos.‒ Ah, pelo amor de Deus. Nós somos amigos. Não invente.Henry dá risada.‒ Ok. E você e Eric? ‒ Seu olhar se torna astuto. Avaliador.Eu engasgo, pega de surpresa. Isso está começam a ficar estranho.‒ Eu e Eric...? ‒ murmuro. ‒ Eu e Eric não somos nada, Henry. Por que

a pergunta? ‒ reajo na defensiva.

‒ Talvez porque eu tenha ouvido falar de um... beijo.‒ O quê?!‒ Tem uma foto, na verdade.‒ Uma foto?! ‒ grito.Que porra é essa?‒ A casa de show estava cheia de fotógrafos ‒ conta ele ‒ por causa de

alguma celebridade local que ia se apresentar naquela noite.Ah, meu Deus!‒ E por que diabo fotografaram a mim? ‒ pergunto, indignada.‒ Você é minha irmã, Aurora. Eles souberam disso no momento em

que nos viram juntos no mês passado ‒ diz Henry, e me pergunto comoposso ter esquecido que meu irmão é um cara famoso.

‒ Droga! ‒ resmungo, comendo uma trufa.‒ Pois é. ‒ Ele ergue as sobrancelhas e estica o corpo para trás,

apoiando os antebraços nas laterais da poltrona. ‒ Então... ‒ murmura ‒,o beijo. Quer me explicar isso?

Suspiro alto como se estivesse entediada, mas, por algummotivo, minhas bochechas esquentam de vergonha. Eu e Henry somosmuito abertos a respeito dos nossos casinhos esporádicos. Não sei por queestou agindo assim.

‒ O que você quer que eu diga? ‒ Encaro minhas trufas no colo. ‒ Foisó um beijo. Não teve significado ou sequer alguma importância. Nósestávamos dançando e... aconteceu. Só isso.

‒ Uau! Não imaginava que minha irmãzinha era esse tipo de garota?‒ Que tipo de garota? ‒ Levanto os olhos, ofendida.Ele sorri maliciosamente, mas logo para. E diz:‒ Precisa tomar cuidado, Aurora.Hã?!‒ Com Eric Harley?! Por que eu tenho que tomar cuidado com Eric

Harley?‒ Não se trata... não se trata especificamente de Eric.Espero que ele prossiga, mas não acontece.‒ Do que se trata, Henry? Não estou entendendo.Ele escorrega o corpo para a beira da poltrona, agora apoiando os

antebraços nas coxas, e une as mãos.

‒ Aurora, o que aconteceu com você não foi por acaso ‒ diz, sériodemais para o meu gosto. ‒ Aqueles caras, fossem quem fossem, aqueriam. Sabiam que estaria lá. Deve se questionar se descobriram isso ouse alguém deu com a língua nos dentes.

‒ “Alguém” você quer dizer meus amigos? Qual é, Henry. A paranoicaaqui sou eu, não você. Isso é ridículo.

‒ Não é paranoia ‒ replica ele, austeramente. ‒ Você precisa ter cuidadocom quem se envolve... com quem conversa. Não se esqueça de quemrealmente é e o que fez.

Agora que lembrou... Como poderia?‒ O que aconteceu na boate não tem nada a ver com 2016 ‒ falo, sem

pensar, em um tom arrogante, conforme as lembranças daquela noiteespocam em minha cabeça.

‒ Você não sabe ‒ rebate Henry com calma. ‒ Só porque não foidescoberta não significa que não tenha sido vista. Ninguém mata cincohomens ao mesmo tempo e...

‒ Eles não eram homens. Eram monstros!‒ Eu sei disso, eu sei disso ‒ sussurra. ‒ Só estou querendo dizer que

dificilmente nossas atitudes não são testemunhadas por exatamenteninguém. Considere a possibilidade de que o que houve não ser umsegredo apenas nosso.

Ah, Deus!A voz de Hector invade minha mente, impedindo-me de refutar as

palavras de Henry."Eu sei o que você é, o que fez e o que pode fazer. Assassina.".Não!Eles sabem. Eles realmente sabem. Não entendo.‒ Tomarei cuidado de agora em diante ‒ prometo a Henry, esforçando-

me para manter a voz equilibrada, mas não tenho tanto sucesso.Meu irmão vem se ajoelhar perto de mim, me fitando com angústia e

preocupação.‒ Ei, não vou deixar que nada mais aconteça com você, Aurora ‒ fala

ele, apreendendo minha mão com a sua. ‒ Nem que eu tenha que matá-los com as minhas próprias mãos.

Balanço a cabeça compulsivamente em negativa.

‒ Por favor, não se envolva ‒ imploro e as lágrimas transbordam meusolhos. ‒ Se machucarem você... ‒ A culpa será toda minha.

‒ Está tudo bem. ‒ Ele me beija na testa, ficando em pé. ‒ Você não foia única treinada pelo papai. Aqueles idiotas estão com os dias contados.

O quê?!‒ Como assim?! ‒ Tento não parecer tão apavorada com a última

informação.‒ Meu pessoal está investigando ‒ conta Henry, circulando o centro de

vidro para voltar à poltrona. ‒ Eu sei exatamente onde encontrar HectorD'Ávila e Nicolas Monteiro.

Puta merda! Isso não é bom.‒ Como... ‒ arfo. ‒ Como conseguiu descobrir? ‒ O laboratório! Ele

achou aquele criadouro de monstros! Só pode ser.‒ É confidencial. Não posso falar nada. Não ainda.‒ Henry...‒ Não se preocupe, Aurora. ‒ Meu irmão sai do seu lugar novamente e

dessa vez senta-se ao meu lado. Aninha meu rosto em suas mãos. ‒ Estátudo sob controle. Daqui a alguns dias, você poderá retornar à escola eninguém a tocará.

‒ Mas as talas...‒ De acordo com Lis, seu processo de cura está sendo impressionante. ‒

O sorriso dele é malicioso. ‒ As sessões de terapia podem nem sernecessárias.

‒ Claro que não. ‒ Tento imitá-lo, mas meus lábios formam mais umacareta do que um sorriso.

Henry alisa minha bochecha esquerda.‒ Descanse, maninha.‒ Não estou cansada ‒ replico.‒ Sua mente. Seu espírito. Eles estão ‒ retruca ele, pacientemente. ‒ Os

sonhos que costuma ter...‒ Não tenho mais ‒ contesto, as palavras saindo rápidas e insinceras.‒ Isso não é verdade ‒ entrega ele e, suspendendo as mangas da camisa

polo, quatro enormes arranhões nas laterais dos bíceps ficam a mostra emcada braço. ‒ Noite passada, eu a ouvi gritando no quarto. Achei queestava sendo atacada, mas não. Quando tentei acordá-la você...

‒ Oh, meu Deus! ‒ Todo o ar foge do meu corpo, e é como estarnovamente naquele banheiro fumacento: sufocada.

Não acredito. Não acredito que fui capaz... Não acredito...‒ Você não se lembra ‒ constata ele. ‒ Imaginei isso. Não seria a

primeira vez.‒ Henry, eu sinto... eu sinto muito. Me perdoe. Eu não... eu não... ‒ As

lágrimas escorrem por meu rosto e trava ainda mais minha garganta.‒ Shiii... Está tudo bem. Tudo bem ‒ ele desata a me tranquilizar,

afagando minha face. ‒ Sei que não fez por mal. Você não conseguecontrolar. Não sabia o que estava fazendo.

‒ Eu nem sei por que isso acontece ‒ rosno, querendo arrancar meuscabelos, mas Henry detém minha mão no meio do caminho. ‒ Desdecriança... desde criança isso acontece e não sei por quê. Os sonhos... osmesmos sonhos. Os surtos. A raiva... ‒ Começo a perder a cabeça, lutandopara me afastar do meu irmão.

Ele me segura pelos ombros.‒ Aurora... Aurora, por favor, pare.‒ Não consigo parar! Você não entende? Eu não consigo parar! ‒

exclamo, alto. ‒ Eu não... eu sou... ‒ É frustrante, ok? ‒ diz ele, ainda buscando me deter. ‒ É frustrante e

horrível, eu posso imaginar. Mas você precisa cuidar mais de si mesma...da sua mente. Controle-a. E controle suas emoções ou será refém do seupróprio para sempre. Pode fazer isso? Pode fazer isso agora? ‒ perguntaele, enérgico.

Mas só o que consigo é parar de lutar contra as suas mãos nos meusombros, e inspirando profundamente, engulo o choro. À medida quemeus batimentos cardíacos desaceleram, retornando ao ritmo normal,sinto as sensações à flor da pele perderem intensidade.

‒ Estou tão cansada, Henry ‒ murmuro. ‒ Tão, tão cansada.‒ Eu sei, eu sei. ‒ Ele tira a caixinha de trufas do meu colo e me ajuda a

ficar em pé, envolvendo meu corpo em um abraço. ‒ Queria que não fossedesse jeito. Queria que não tivesse que carregar esse fardo.

‒ Sinto tanto por ter machucado você.‒ Não pense nisso ‒ implora ele, acariciando minhas costas. ‒ A culpa

não é sua, Aurora. Não é. ‒ Beija o topo da minha cabeça. ‒ Venha. Vou

levá-la até o seu quarto. Você passou quase a noite acordada depois dosurto. Precisa dormir um pouco...

‒ Não! ‒ replico, meu corpo enrijecendo de pavor. ‒ Não posso... não éseguro, Henry...

‒ Ei... ei... ‒ sussurra ele, como se estivesse lidando com um animalferido e acuado. ‒ Você não é uma refém. Lembra? Pode fazer isso. Estouaqui. Vou ajudá-la. Vamos.

Passando os braços em volta das minhas pernas, ele me pega facilmenteno colo e segue para as escadas a passos largos e ágeis. Eu afundo meurosto na curva do seu ombro, fechando os olhos. Estou sangrando pordentro, dilacerada.

Apesar de não gostar da ideia de entrar na inconsciência, não possodeixar de admitir que estou exausta e cada músculo do meu corpo estátenso como se eu tivesse acabado de sair de um treino pesado.

Isso é tão assustador.Passei quase a noite em claro sem nem me dar conta. Pior, machuquei

Henry. Eu o machuquei e nem lembrava disso. Faz muito tempo que umepisódio desse não acontecia. Quando era mais nova, feri meu paialgumas vezes e em muitas delas jamais me recordei no dia seguinte.

Era como se meu cérebro bloqueasse o acontecido, o que me deixouassustadíssima, já que papai ou mamãe, vez ou outra, dormiam ao meulado. Um tempo depois, descobri o porquê.

Em algumas noites, quando não estava tendo surtos por causa dosterríveis pesadelos, eu costumava passear pela casa, de olhos abertos etudo, e às vezes até destrancar a porta e sair.

Se alguém não me impedisse.É claro que eu não fazia ideia de que fazia isso. Até que acordei no

meio da floresta que cercava a mansão em que morávamos com uma facade prata entre os dedos.

Sinistro?Pois é.Se estivesse sozinha ontem, me pergunto o que mais teria feito. Aonde

teria ido.Se teria matado alguém.

A BRISA FRESCA DE outono acaricia minha pele, seu toque é leve e furtivocomo os dedos de um ladrão, afastando meu cabelo para longe do rosto.

Abro os olhos, confusa. Meu quarto está encoberto de escuridão, eHenry desapareceu. Provavelmente foi dormir no seu quarto. Então quemme tocou? Arrasto-me para ficar sentada o mais rápido que consigo e douuma olhada a minha volta, examinando cada sombra do ambiente, masestou mesmo sozinha.

Deus! Podia jurar que alguém me tocou.Balançando a cabeça de um lado para outro, jogo as pernas para fora da

cama e apanho a muleta sempre encostada no criado-mudo para ficar empé. Estou faminta. Que horas são? Checo meu relógio de pulso e vejo quejá passa das dez horas. Uau! Dormi demais. Isso explica a fome.

A ideia de descer as escadas não é atraente na minha atual condição,mas não conseguirei voltar para cama com o estômago vazio. Por isso,rechaço a preguiça e caminho até a porta do quarto, parando bruscamentea dois dedos de tocar a maçaneta com a sensação de que estou sendoseguida.

Droga!Quase tropeçando, giro nos calcanhares, pronta para usar a muleta

como arma, no entanto não consigo evitar quando um movimento maiscélere do que o meu a arrebata das minhas mãos e meempurra delicadamente contra a porta, prendendo meu braço sadio parabaixo.

Maldição!Estou prestes a gritar por Henry quando levanto as vistas para figura

alta diante de mim e vejo olhos castanho-esverdeados me encarandoassustadoramente na penumbra do quarto.

O quê?!‒ Luccas?! ‒ exclamo, baixinho, meu coração loucamente acelerado no

peito.‒ Oi, Aurora ‒ diz ele, a voz baixa e rouca.Está tão diferente! Sério, frio e abatido, a barba por fazer lhe

conferindo um ar incrivelmente mais velho. Os cabelos castanho-avermelhados estão bem maiores, bagunçados sobre a testa e as orelhas. Asensação é a de que não o vejo há anos. Se não soubesse que seria

impossível, podia jurar que ele envelheceu uns sete anos.‒ Luccas, onde esteve? Evelyn me disse que você não aparece no colégio

há dias ‒ falo ao mesmo tempo em que me pergunto como foi que eleentrou no meu quarto! ‒ O que está fazendo aqui a essa hora?

‒ Desculpe, eu... eu não queria assustá-la ‒ murmura, afastando-se umpasso, e me devolve a muleta.

Eu a pego e uso-a para me firmar melhor de pé. Mas não me movo,porque não consigo parar de observá-lo simultaneamente buscandoentender que diabo está acontecendo. O estado perturbado dele éassustador.

‒ Luccas...‒ Eu não posso demorar, mas... ‒ balbucia ele, passando a mão

esquerda nos cabelos mais longos, e suspira. ‒ Deus! Precisava tanto vervocê ‒ fala, os olhos arregalados percorrendo meu corpo inteiro.

‒ Eu liguei várias vezes. Seu celular estava fora de área. O que houve? ‒questiono novamente, assustada demais para me aproximar.

Ele ri ‒ um som frio e sem humor ‒ e caminha para longe de mim,levando as mãos à cabeça.

‒ Não me pergunte essas coisas ‒ pede, implora, andando de um ladopara outro. ‒ Não quero mentir para você. Não quero nunca mais mentirpara você.

‒ O quê?! Não estou entendendo. ‒ Ele está louco? Bebeu? ‒ Do que vocêestá falando?

‒ Me escute ‒ suplica Luccas e, num piscar de olhos, está próximo domeu corpo, segurando meu rosto em suas mãos. ‒ Só me escute. ‒ Seusolhos se derramam nos meus, tão tão tão perto, assim como sua boca.

Ele poderia me beijar. Se quisesse. E por um segundo de loucura,espero que ele faça exatamente isso. Que esmague sua boca na minha eme mostre que sabor tem os seus lábios.

‒ Aurora ‒ sussurra Luccas, e meu nome soa como uma oração secretaem sua voz rouca, arrepiando minha pele.

Não entendo. Não entendo. O que está acontecendo comigo?‒ Eu sinto tanto ‒ diz ele, perto dos meus lábios, e vejo seus olhos

brilharem com algo que se parece muito com lágrimas. ‒ Eu sinto tanto,tanto, tanto...

‒ Por favor... ‒ Não tire suas mãos de mim.‒ O que fizeram com você... ‒ Seu dedo roça minha bochecha ainda

marcada e extremamente quente sob seu toque. ‒ Eles foram tão horríveis.‒ Cerra os olhos, as feições se contorcendo de nojo e fúria. ‒ Eles...

‒ Luccas... ‒ Soltando a muleta, seguro uma de suas mãos quentes nomeu rosto. Quero afastá-lo. Não quero afastá-lo. Estou confusa com essadúvida aguda, tentando me manter de pé sobre uma perna defeituosa eoutra bamba. ‒ O que v...

Meu celular toca em cima do criado-mudo, cortando minha fala, eLuccas abre os olhos vagarosamente. Ainda sem sair do lugar, murmuro:

‒ Preciso atender. ‒ Meu coração parece prestes a saltar pela boca. ‒ Porfavor...

‒ Eu pego ‒ sussurra ele, recolhe as mãos do meu rosto e se afasta.Enquanto marcha até o criado-mudo, não consigo evitar de comê-lo

com os olhos. Dos pés à cabeça. Quando está perto dos janelões, onde aluz da noite ilumina parte do quarto, noto que está vestindo calçasrasgadas e jaqueta de couro desgastado, que emolduram os músculos doscorpo.

Céus! O que houve com esse homem? O que está havendo comigo?!Estou inquestionavelmente atraída por ele. Tremendo. Suando. E todasàquelas bobagens que minha mãe fala sobre quando estamos gostando dealguém. Mas eu não posso gostar dele não quando...

‒ Maldito!Saio do transe de meus pensamentos mirabolantes e avisto Luccas

encarando meu celular ainda tocando no criado-mudo, as mãos cerradasem punhos ao lado do corpo. Sua expressão é absurdamente fria e furiosa,e por um instante, não o reconheço.

‒ Maldito ‒ rosna outra vez, apanhando o iPhone, e encerra a ligação.O celular para de tocar. Quê?!‒ Quem era, Luccas? ‒ pergunto, chateada. ‒ Por que desligou?

Quem... ‒ E então, a julgar por seu ódio, adivinho: ‒ Sam!Ele me fuzila de um jeito inexplicavelmente magoado.‒ Você não pode confiar nos Harley! ‒ diz, os olhos castanho-

esverdeados tremeluzindo e grudados no meu rosto. ‒ Não confie emnenhum deles, Aurora

‒ Por quê?! ‒ ofego, pega de surpresa por suas palavras.‒ Não importa.‒ É claro que importa! ‒ Manco na direção dele. ‒ Quero saber o

porquê de tanto ódio. Quero saber por que você não os suporta.Essa aversão a família de Eric não é à toa, agora mais do que nunca

posso enxergar isso. Claramente. Tento não deixar que minha mentedesperte as lembranças da maleta, mas é impossível.

‒ O que... o que você sabe sobre os Harley, Luccas? ‒ gaguejo, mas soaquase como uma ordem. ‒ Por que veio até aqui? Como entrou no meuquarto?

‒ Preciso ir embora ‒ fala ele e parece estar se dirigindo mais a simesmo do que a mim.

‒ Não! ‒ Estico o braço para detê-lo, mas acabo tropeçando e por pouconão caio no chão.

Passando os braços ao meu redor, ele me segura e sustenta todo o pesodo meu corpo. Estamos tão próximos como nunca nos permitimos, eminha pele se arrepia no mesmo segundo com seu cheiro irresistível demadeira e terra molhada. Fresco. Como uma brisa de outono.

É claro!‒ Aurora... ‒ Luccas vê o entendimento iluminar meus olhos e recosta a

testa na minha. Fecha os olhos. Minhas pernas tremem de um jeito quejamais aconteceu. Meu corpo está em chamas. ‒ Você não tem ideia... nãotem a mais ínfima ideia do que eu... ‒ Ele se perde nas próprias palavras.Puxa o ar pelo nariz. ‒ É tão difícil...

‒ O que é tão difícil? ‒ sussurro. ‒ O que está tentando me diz...‒ Eu quero tanto, tanto o seu bem, eu... Quero cuidar de você... quero

protegê-la. Você confia em mim? ‒ ele me interrompe, abrindo os olhos,afasta uma mecha do meu cabelo solto para atrás da orelha. Toca a peleda minha bochecha ternamente. ‒ Você confia em mim? ‒ pergunta outravez quando não respondo.

‒ Sim ‒ eu falo, porque me dou conta de que é a verdade mais pura. ‒Sim, confio.

‒ Então me escute. ‒ Ele envolve meu rosto usando as duas mãos agora,a voz se tornando um tanto urgente. Fico imóvel, ouvindo-o. ‒ Escutebem, Aurora. Você precisa fazer o que lhe disseram para fazer.

O quê?!‒ Faça. Mate Eric Harley.‒ Como... como você sabe?! ‒ Balanço a cabeça em suas mãos, chocada.

‒ Por que está dizendo isso?‒ Porque é seu dever ‒ diz Luccas ‒ e porque ele é um monstro.

Eric

"A Linhagem das Sete."

Elizabeth me derruba mais uma vez nesta noite em nosso treino.

‒ Mas que...Trinco os dentes, inconformado. Humilhação perversa pisando em meu

ego, massacrando-o, e não ajuda em nada o sorriso venenoso que eladeliberadamente abre para mim. É um teste. Um maldito teste com ointuito de tirar proveito do meu temperamento deficiente, brincar commeu autocontrole defeituoso. O que me lembra que devo manter a menteclara e lúcida, sem a toxina do ódio para atrapalhar o combate.

Depois de uma semana de fracasso no plano de caçar uma harpia quepudesse desembuchar sobre os ataques a Aurora, reaprender a controlarminha força, meu instinto...

Meus sentimentos.É só o que me resta.Confesso que fiquei extremamente surpreso por Elizabeth ter aceito

meu pedido sem reclamar nem fazer muitas perguntas ou até mesmo pediralgo em troca. Embora eu suspeite de sua boa vontade, não me arrependoda decisão de tê-la escolhido para fazer o que fizemos.

Ela é disciplinada, é forte por natureza e tem o fato mais apurado que jávi na vida. Mas por algum raio de motivo, as harpias desapareceram domapa. Não encontramos nenhuma sinal delas nem nas montanhas,nem nas cavernas e muito menos na cidade ‒ seu território favorito decaça.

É quase como se a Trindade estivesse a ativa novamente.‒ De pé ‒ ordena Elizabeth.

Eu obedeço. Fuzilo-a com os olhos.‒ Vamos recomeçar ‒ diz ela.E com agilidade e destreza, eu invisto contra o seu corpo, mas como

sempre, ela faz um fantástico trabalho em se defender, usando apenas asmãos e os antebraços. Bloqueando, tirando-me do seu caminho.

Tento acertá-la a todo custo, mas não alcanço sucesso. A frustração éuma pedra no meu sapato e começa a me desequilibrar. Meu corpo é umamassa de músculos extraordinariamente fatigada.

As noites de insônia não têm me feito nada bem.Os sonhos não têm me feito nada bem.E não sei até quando terei de aguentar isso. Meus esforços em fugir

dessa merda não têm funcionado. Eu resolvi abandonar tudo em busca deaté mesmo um fiapo de paz, de tranquilidade, mas não foi o bastante. Euexpurguei cada pensamento da única maneira que sei fazer, porém...

Esse... vírus... não me deixa. Parece ter contaminado o meu sangue,tornando impossível a cura que venho procurado.

Onde estou errando? O que mais posso fazer?‒ Controle-se! ‒ diz Elizabeth, censurando-me entre os meus ataques.‒ Estou... tentando.‒ Não, não está ‒ rosna ela.‒ Sim, eu estou.‒ Então prove, zangadinho. Absorva essa raiva. Recupere o foco. Não é

hora para se distrair. Não se luta com a cabeça nas nuvens.Obrigo-me a seguir sua orientação, tento empurrar todos os

sentimentos para o quinto dos infernos ou ao menos transformá-los emforça, em determinação, mas meu corpo e mente exaustos estão falhando,deixando meus reflexos lentos; meus ataques, fracos. Previsíveis.

Elizabeth me acerta o rosto e o abdome repetidas vezes, brutalmente.Está cada vez mais difícil bloquear suas investidas.

‒ Revide ‒ ordena ela, transformando os olhos azuis em vermelhos.Aguarda que eu proteste. ‒ Eu disse: revide! ‒ Ela transforma as garras eas orelhas. ‒ Controle suas emoções. Lute como um homem e não comoum garotinho.

O quê?!Reajo ao desaforo estúpido e, finalmente, meu punho acerta-lhe a face,

rasgando sua bochecha num corte largo, mas superficial. Ela movimenta oqueixo com a sobrancelha arqueada à medida que o sangue escorre dapele já se unindo, curando-se sozinha.

Minha pulsação fora do ritmo normal martela em meus ouvidosconforme recolho o braço e permaneço na postura de ataque casoElizabeth tente revidar. Ela limpa o sangue do rosto, agora humano, comum sorrisinho além do irritante.

‒ É verdade o que dizem sobre o ego dos homens, não? ‒ murmura. ‒Tão frágil e patético quanto o das mulheres...

Dou-lhe as costas precipitadamente, indo em direção ao I8 parado dooutro lado da clareira. Pelas copas das árvores, a luz do alvorecer incidenas folhas orvalhadas e clareia a floresta pouco a pouco.

Estou exausto.‒ Eric...‒ Já chega por hoje Sob arquejos contínuos e pulsações aceleradas, enxugo o suor

abundante que escorre por minha testa e procuro uma garrafa de água noporta-malas do carro e, depois que a encontro, viro na boca avidamente.

‒ Qual é o seu problema desta vez? ‒ pergunta Elizabeth, parada nocentro da clareira, observando-me com atenção. ‒ Você mal consegue semanter em pé.

Ela vem para o meu lado quando não respondo e estuda-me ao passoque faço o que me disse: controlo minhas emoções. Externoimpassibilidade.

‒ Não dormi muito bem essa noite ‒ murmuro dissimuladamente, semmaiores explicações. Ela não precisa saber dos meus sonhos.

‒ Falta de companhia, por acaso? ‒ Sua cabeça se inclina à direita, umsorriso voraz acompanhando o movimento.

‒ Fala sério!‒ É sério ‒ diz ela. ‒ Se você quiser, eu posso fazer um esforço e... ser

uma boa companhia... ‒ hesita, antes de dar um passo, esquecendo-se doslimites que impus. ‒ A gente podia conversar ou... não conversar... o queé melhor...

Vejo em seus olhos a intenção de tocar meu corpo, mas não é uma boaideia.

‒ Aprecio a solidariedade, mas eu ficarei bem. ‒ A austeridade é a únicaforma de mantê-la longe.

Ela não gosta disso.‒ É ela, não é? ‒ pergunta, rosnando. ‒ Está na sua pele. Como uma

maldita infecção. ‒ Mágoa e ódio explodem seus traços faciais, e percebo-atrincar os dentes.

‒ Não faço ideia de quem está falando ‒ murmuro, completamenteimpassível, apesar da fúria corroendo meu interior.

‒ Qual é, zangadinho. É impressão minha ou seu nariz está crescendo? ‒brinca Elizabeth, voltando a expressar um sorriso, ainda que insincero.

‒ Muito engraçado. ‒ Reviro os olhos, fechando a garrafa quase vazia.Jogo-a de volta no porta-malas e desço a tampa. ‒ Até mais e... obrigadopor hoje. ‒ Contorno a traseira do I8 e rumo à porta do motorista,puxando a chave do bolso da calça de moletom.

‒ Eu sei que Aurora se parece com ela ‒ diz Elizabeth, em tom baixo, emeus pés param de andar involuntariamente. ‒ Eu sei mais do que pensa,na verdade.

‒ Não faço ideia de quem está falando ‒ repito as palavras, que soamcalmas e frias. Enfáticas.

Volto a andar e, aproximando-me da porta do carro, estendo a mãopara a maçaneta.

‒ A marca no pescoço ‒ diz ela, e meus membros congelam pelasegunda vez ‒ é mística. Uma fonte de poder. Está ligada a Linhagem dasSete.

‒ O quê?! ‒ Todo o meu corpo inexplicavelmente estremece ao somdesse nome, como se eu conhecesse seu significado e tremendamente otemesse. Impossível! ‒ Como sabe disso? Que diabo é a Linhagem dasSete? ‒ Parto para cima de Elizabeth, diminuindo o espaço entre nós numátimo.

Ele me fita com um semblante vitorioso, que opto por ignorar.‒ Dizem as más bocas que é uma história de fantasma ‒ responde ela,

num tom que sugere que não dá muito crédito a essa informação. ‒Contada por todas as culturas do mundo e sempre de um jeito diferente.

‒ Algo em comum? ‒ Sempre tem.‒ Duas coisas: a marca e todas envolvem um pacto. Sete mulheres, sete

irmãs, na maioria das lendas, que venderam suas almas à deuses oudemônios em busca de juventude eterna, beleza, vingança por homens quelhe foram infiéis...

‒ Típico.‒ Pois é ‒ concorda ela. ‒ Mas... outras culturas falam de sete famílias

interligadas ou sete líderes que entregaram a virtude de seus primogênitosem troca de poder. Poder sobrenatural. Para lutar contra quaisquerameaças de destruição vindas de seus inimigos.

‒ Isso soa muito fantasioso e medieval. ‒ E não tem nada a ver comAurora!

‒ Algumas são realmente antigas, sim, e mirabolantes. Mas essas nãoimportam. O que importa é que em 1931, o mito da Linhagem das Setechegou a Ilha de Íris... propagando medo.

‒ O quê?!Elizabeth arqueia a sobrancelha.‒ Você não se lembra? ‒ Parece honestamente surpresa. ‒ Onde estava

nessa época? ‒ pergunta e logo em seguida solta uma risada. ‒ Ah sim...enfurnado na floresta como um louco, odiando-me intensamente poratravessar o caminho do seu adorável irmão Sammy.

Contraio as mãos em punho, a lembrança dessa época conturbadaatravessando minha mente em sequências lentas. Eu não conseguiaentender quão estúpido meu irmão podia ser em se apaixonar justamentepor uma harpia. Naquele tempo, a Trindade operava severamente. Semmisericórdia.

E ver meu irmão se colocar em perigo daquela forma...‒ Você foi uma maldição em nossas vidas. ‒ Você nos separou.Ela faz bico, encenando uma fisionomia magoada.‒ Ah, qual é. Não diga isso. Se não me falha a memória tivemos alguns

momentos bem interessantes. Aquela caverna... anos e anos, só nós dois...você me implorando por um pouco de...

‒ Já chega! ‒ Aproximo-me dela subitamente e meu corpo se preparapara se auto semitransformar.

Controlo isso, junto com a fúria que percorre meus nervos feito umacorrente elétrica de alta tensão. É tão mais fácil agora. Eu tinhaesquecido de como um pouco de disciplina pode mudar o comportamento

de um homem.‒ Olhe só para você ‒ murmura Elizabeth, percorrendo os olhos frios

por meu corpo. ‒ Todo dono de si. Meu teoria está funcionando, afinalde contas. Meu sangue...

‒ Não toco no seu sangue há dias! ‒ rosno, agressivo.‒ E por causa disso não conseguiu nem a metade do desempenho que

teve no início da semana ‒ contra-ataca ela. ‒ Eu estava certa. Você precisa.‒ Eu não preciso de nada!‒ Sua natureza! Ela precisa. A Trindade a condicionou exatamente para

isso quando percebeu que com a transformação vocês herdaram, além departe da nossas características físicas, também o nosso desejo por sanguehumano. Não estou certa?

Sim. Sim. Sim.Ela está certa. Ela está certa. Ela está certa.Ser um mercenário vinha com uma bagagem imensa. Por isso, antes de

começarmos a operar na cidade, passávamos por uma sessão de testes etreinamentos rigorosos. E um deles era a mudança de hábitos alimentares,ainda que a vontade por sangue por humano fosse facilmente controlável.

Mas quando a ordem veio de cima ‒ daqueles de quem nuncavimos seus rostos e que coordenavam todo o complexo dos mercenáriosjunto com os líderes que nada mais eram que os donos do CasteloCampbell na época, onde a Trindade funcionava ‒, tivemos queaprender a condicionar nosso desejo para o sangue de harpia, que seprovou um excelente ativo no nosso corpo, aumentando nossa força emmil vezes mais.

Contendo a voracidade intrínseca à nova natureza.E então, após semanas de testes e experiências, o desejo por sangue

desapareceu para dar lugar a atração pelo que percorria as veias dasharpias.

Mas isso não significava que pudéssemos exagerar.A ingestão de sangue era rigorosamente controlada pelos líderes, que

eram os cientistas do complexo dos mercenários. Grande parte delesresponsáveis por estudar a natureza misteriosa das harpias e produzir adroga que nos transformava.

‒ Eu sou mais forte do que os meus desejos ‒ digo a Elizabeth. ‒

Mesmo após o treinamento, por anos e anos, jamais encostei em sanguede harpia.

‒ Até você encontrá-la. Certo? ‒ solta ela, como se soubesse exatamentede tudo, e minha memória evoca as piores lembranças desse ano.

‒ Pare. ‒ Não quero falar sobre isso.‒ Você era forte, Eric ‒ continua Elizabeth. ‒ Você era tão forte. O

melhor mercenário que havia na Trindade, aquele que nem precisava setransformar completamente para lutar. Você era. Até aquela garota cruzaro seu caminho. Assassiná-la o destruiu de maneiras inimagináveis, levou-oa cometer atrocidades que o assombram até hoje. Ela foi uma maldição.Eu o salvei. Lembra? Você lembra?! Que tal um pouco de gratidão?!

‒ Minha gratidão é não arrancar seu pescoço do jeito que meu sanguecanta para isso ‒ explodo, apesar de manter a voz baixa.

‒ Rá! ‒ ela gargalha. ‒ Não parecia quando me fez gritar de prazer nasua cama!

Isso é ridículo. Termine essa conversa, Eric.‒ O mito, Elizabeth! ‒ ordeno com calma e frieza misturadas. ‒ Eu

quero saber do mito. Agora.Ela recua, dando uma nova risada sarcástica e incrédula, me olhando

como se não acreditasse que estou sendo tão... canalha.‒ Você é um filho da puta! Quer saber? Foda-se. Não lhe direi nem mais

uma palavra.E saí andando para longe de mim. Droga! Sentindo-me particularmente

um completo estúpido, eu corro atrás de Elizabeth.‒ Ei, espere, espere! ‒ Seguro o braço dela, impedindo-a de deixar a

clareira, e a viro com um puxão delicado. Ela me fuzila com mágoa. ‒Desculpe, ok? Eu... bem... não devia ter... Desculpe... Eu não...Desculpe... ‒ Inferno!

‒ Pelos Deuses! Pare, pare, pare. Você é péssimo nisso e se disserdesculpe mais uma vez, eu juro que vou bater com sua cabeça numaárvore dessas.

Acho graça sem querer e um sorriso também se insinua nos seus lábios.‒ Você não faria isso.‒ Não? ‒ desdenha ela.‒ Não. Pelo menos não se quisesse permanecer com as mãos presas ao

pulso.‒ Seu bruto. ‒ Revira os olhos.‒ Vamos direto ao que interessa, Elizabeth. Ok? ‒ proponho.Ela puxa o braço da minha mão feito uma adolescente rebelde. Mas

começa falar:‒ Em 1931, alguém em número sete estava cometendo inúmeros

assassinatos pela cidade. Corpos mutilados eram largados nas ruas epraças sem nenhum tipo de cuidado. Os habitantes entraram em pânico ea Trindade, após confirmar que as harpias não tinham nada a ver com oacontecido, começaram a temer uma nova ameaça sobrenatural.

Sobrenatural?‒ Por quê?‒ Por que os Inomináveis e as harpias eram alguns dos mortos ‒ conta

e l a ‒, além de ladrões, estupradores, humanos de má índole em suamaioria, que perturbavam a paz dos habitantes. O assassino... os assassinos‒ Elizabeth sorri sombriamente ‒ pareciam assumir um papel dejusticeiro, punindo essas pessoas.

Dou risada.‒ Um justiceiro? ‒ Que ironia. ‒ Fala sério. Isso soa mais como

uma coisa da Trindade do que de um grupo de... Aliás, quem eram essaspessoas?

‒ Ninguém jamais descobriu. Ninguém jamais as viu. Suas ações eramtão invisíveis quanto as dos Inomináveis.

‒ Então como pode dizer que eles eram sete?‒ Eu não estou dizendo nada, tá legal. O mito é que diz ‒ defende-se ela

com um olhar feio.‒ Ok. Desculpe. ‒ Passo as mãos nos cabelos, sentindo a cabeça doer. É

muita loucura para uma manhã.E eu tinha prometido que ficaria longe dessa merda. Por que nunca

consigo?‒ Não acredita em mim, não é? ‒ indaga Elizabeth, estudando minha

expressão. ‒ Não acredita ‒ conclui, chateada, interpretando meu silênciocomo um sim.

Dou uma resposta evasiva.‒ Só acho que há furos demais nessa história. Muitas perguntas. Poucas

respostas. Quase nenhuma relação com Aurora ou a família dela.‒ A marca não é suficiente?‒ Você não sabe se a marca é a mesm... ‒ Paro de falar, me dando conta

de um detalhe que não havia percebido. Merda! ‒ Você sabe ‒ sussurro. ‒Como?

‒ Reconheci o símbolo quando encontrei seu desenho na mansão outrodia ‒ responde ela, cautelosa demais para o seu feitio.

‒ Reconheceu de onde? ‒ Dou um passo à frente.‒ De uma capa de livro da biblioteca de Ayla. Foi lá que fiquei sabendo

das outras versões da lenda.O quê?!‒ Quero ver este livro. Agora. ‒ NÃO ESTÁ AQUI! ‒ ELIZABETH bate com a mão no espaço vazio onde o

livro A Linhagem das Sete deveria estar. ‒ Não... eu não acredito. Nãoestá aqui! ‒ fala de novo, percorrendo os olhos por toda a fileira enquantocaminha em frente a estante.

‒ Quando foi a última vez que o viu? ‒ pergunto, calmo até demais parao meu gosto, encarando o buraco que tal livro preenchia.

É muita falta de sorte.‒ Ontem! Ainda ontem estava aqui. Eu vi! ‒ exclama ela, saindo do

alcance de minhas vistas para explorar as outras estantes.‒ Acha que Ayla sabia da existência desse livro? ‒ Não consigo parar de

pensar nisso. Ela conhecia o suficiente do símbolo para reconhecê-lo se ovisse em qualquer lugar. E se fez a pesquisa como me prometeu quefaria...

‒ Talvez sim. Talvez não. ‒ Elizabeth volta de mãos vazias e uma carafeia. ‒ Há livros demais neste lugar.

‒ Acha que ela conhecia o mito da Linhagem das Sete? ‒ pergunto,imerso nas minhas desconfianças.

‒ Provavelmente sim. Todos que viviam na cidade ou perto delanaquela época sabiam do terror que todos aqueles assassinatos geraram. ‒Ela para na minha frente, examinando meu semblante reflexivo. ‒ No queestá pensando?

‒ A última coisa que queria pensar, mas que de certo modo não me

surpreende ‒ murmuro, desencostando-me da estante. ‒ De qualquermaneira, não foi uma perda total de tempo vim aqui.

‒ Ah, não?‒ Vamos procurar Ayla. Quero perguntar se ela andou fazendo uma

visitinha a biblioteca recentemente. ‒ Movo-me para a saída do aposento.Elizabeth vem atrás de mim.‒ Ayla não está casa, ok? Hoje à noite é inauguração da nova joalheria

de Henry. Ela foi mais cedo para a floricultura acertar os últimos detalhesda decoração.

‒ Droga! ‒ Eu tinha esquecido dessa maldita festa.‒ Temos que estar lá. Você, principalmente. Como designer da nova

coleção de joias.‒ Não estou no clima isso.‒ Não está no clima para a celebração ou não está no clima para

encontrar Aurora Harvelle?Os dois!‒ Não se preocupe. ‒ Ela ri com desdém do meu silêncio, altura em que

entramos no corredor dos quartos. ‒ Fiquei sabendo que abonequinha de luxo volta hoje para escola. Será que ela já sabe que vocêsalvou a vida dela?

‒ Eu não me importo ‒ digo o que devia ser verdade, mas que, poralgum raio de motivo, não é. ‒ Vá para o colégio. Passarei na floriculturapara ter uma palavrinha com Ayla.

‒ E o seu irmão? ‒ pergunta ela, o tom de voz se tornando cauteloso.Sam. Há dias que não o vejo direito. Desde a nossa discussão no chalé,

ele decidiu que longe de mim é exatamente onde tem que ficar e semudou para o apartamento de Ayla no centro da cidade.

Apesar de toda a vontade ir atrás dele e fazer as pazes, achei que comminhas recentes atividades seria melhor mesmo que ficássemos distanteum do outro.

Mas admito que estou impressionado por ele está conseguindo manteressa distância. Não é comum.

‒ Sam não está falando comigo, Elizabeth. ‒ Paro na porta do meuquarto.

‒ Talvez seja uma boa hora para consertar isso.

‒ Com aquela história? ‒ Acho graça. ‒ Ele não vai acreditar. E tudobem, porque nem eu tenho certeza se acredito.

Ela olha para mim como se quisesse revirar os olhos ou me dar umsoco.

‒ Tanto faz, Eric. Converse com Ayla. Pergunte sobre o livro. Pergunteaté sobre A Linhagem das Sete, se você quiser. Eu não estou mentindo...

‒ Elizabeth...‒ Nós vemos depois. ‒ Ela me dá as costas e desaparece no corredor.

Aurora

"Não vivo no mundo real."

Pelo que eu sei, há mais de uma maneira de se interpretar uma frase;

há vários sentidos em diversas palavras, que tudo depende do contexto emque elas são postas. Quando Luccas disse e apenas disse ‒ sem nenhumaexplicação de como sabia ‒ que Eric Harley é um monstro a quem eudeveria matar, inúmeras definições cruzaram minha cabeça.

Eu pensei que ele podia ser um serial killer, um pedófilo, um assaltantede velhinhos, talvez. Eu pensei em todas as formas em que uma pessoapodia agir como um monstro. Nada fez sentido.

E apesar de eu ter remoído e remoído o assunto dentro da minhamente mais vezes do que posso contar, uma parte dela não acreditava queEric seria o tipo de ser humano que causa mal aos outros, que o queLuccas disse naquela noite em meu quarto, antes de desaparecercompletamente sem deixar nenhuma pista do seu paradeiro, e a maletaachada de Richard Harley não tinham relação nenhuma.

Nenhuma.Mas sabe quando você espera ansiosamente, com todas forças que

possui, que as coisas não fiquem mais estranhas, que elas não piorem, maso mundo ou a vida ou o destino estão determinados a massacrar suasexpectativas, reduzindo-as a quase nada, que você se pergunta por que foique ousou ter esperanças?

Pois é.Isso é uma droga.E aconteceu.Porque eu abri a maleta.

Depois de tudo que Luccas disse e Henry disse quando, por fim, tomeicoragem para lhe perguntar sobre a família de Eric, me fizeram perceber,só por um lapso, que toda a história só podia se tratar de algo que estavaalém da compreensão comum, algo não natural.

E além de mim, do que posso fazer, o nome Harley é o mais perto donão-natural que já vi.

Mas não mais.Não vivo no mundo real. Minhas crenças foram ridicularizadas e da

pior forma possível. “Tudo que nasce, morre.”, foi o que meus pais meensinaram. Mas algo aconteceu. A vida se tornou uma mentira e a mortetambém. Jamais imaginei que existissem métodos para sabotar esseprocesso.

Contudo, as coisas que Richard Harley escreveu demasiadamente emseu diário, todas as pesquisas profundas e meticulosas que fez, levam a umponto inacreditável, mas muito específico.

Mais do que isso. Os registros de sua família são as provasincontestáveis que eu precisava para pôr um fim no enigma que ‒ não poracaso ‒, chegou às minhas mãos. Fotos, muitas fotos dos filhos, dainfância a adolescência; primeiro dia de aula na escola, Natal, Ano Novo;fotos da família reunida em eventos; e dela, a melhor amiga de Sarah.

Não pode existir outra explicação.Como posso negar tudo que está diante dos meus olhos?Eu não sou uma pessoa cética, não sou, mas ainda quero estar nadando

em equívocos ou sendo vítima de alguma brincadeira de mau gosto.Porque isto: aceitar a imortalidade como realidade de alguns, pior, dealguém próximo a mim, é... o cúmulo do absurdo.

E não quero ser absurda.Não quero crer que meu melhor amigo e o garoto que tem estado

onipresente em meus sonhos são alguma espécie de monstro sobrenaturaldo qual o mundo nunca ouviu falar. Como me desligar de um? Comoparar de pensar no outro? Como me convencer de que está tudo bemquando uma parte de mim me alerta que estou em perigo?

Eric

"É uma benção ou uma maldição."

Não encontro Ayla em lugar nenhum: nem na floricultura, nem na

joalheria e muito menos no salão de festa onde acontecerá a inauguraçãoda loja de Henry. Os funcionários não fazem a mínima ideia de ondeencontrá-la, apesar de todo o charme que usei para fazê-losdescobrir. Mas Ayla não está atendendo o celular. O que, novamente, éuma baita falta de sorte. Ou talvez o destino esteja tirando onda com aminha cara.

Não sei. Estou tentando não me importar muito com isso e estouconseguindo.

Na escola, aproveito o terceiro horário livre e o tempo de intervalo paraconcluir dois trabalhos de matérias diferentes que preciso entregar até ofinal da manhã. E à medida que caminho para a biblioteca, penso oquanto esta farsa é exaustiva.

Eu já sou formado no Ensino Médio. Quatro vezes, a propósito. Depoisque deixei de ser um instrumento da Trindade, eu me entreguei ainúmeras tarefas educativas. Fiz curso de Belas Artes em Paris, tenteiPsicologia em Harvard e aprendi a falar, fluentemente, seis línguas. Euleio de tudo, sobre tudo. Pinto, desenho; toco piano, às vezes. Tenhoadoração por carros, arquitetura, natureza...

Estar no colegial é, francamente, extenuante, mas Ayla insiste que parapermanecermos na ilha, ainda que por poucos anos, temos de nosmisturar, o que não me agrada.

Para falar a verdade, não sei se represento um bom papel. Disfarçar nãoé muito o meu forte, mas não pude recusar o pedido dela, não depois de

tudo que fez por mim e por Sam.Principalmente por mim.E é por isso que eu odeio ficar em dívida com as pessoas.Entro na biblioteca vazia e me dirijo à uma das várias mesas espalhadas

ao redor do grande espaço. Sento-me na mais distante de todas. Abro amochila, retiro meus livros e cadernos e começo a escrever em tópicos osassuntos que vou abordar nos trabalhos. Estou concentrado e de cabeçabaixa quando ouço a cadeira à minha frente se mexer.

Levanto as vistas.Maldição!Aurora está sentada com um sorriso hesitante direcionado para mim.‒ Oi.Alívio. Acho que é alívio que preenche cada canto do meu corpo agora

que posso ver com os meus próprios olhos que ela está bem, mesmo comos machucados no rosto e no pescoço ainda levemente perceptíveis.

‒ Oi. ‒ Forço essa pequena palavra a sair da minha boca.Estou aflito. Tremendamente. Meu coração bate tão forte e alto que

posso jurar que ela consegue ouvir.‒ Espero não estar atrapalhando. ‒ Seus olhos espiam os livros

espalhados sobre a mesa. ‒ Mas é que eu realmente precisava falar comvocê.

Precisava?!‒ Sou todo ouvidos, Srta. Aurora.Ela pisca erraticamente, afasta o cabelo preso em um rabo de cavalo

para longe do ombro direito. Olha para baixo, depois para mim e abre umsorriso.

‒ Acabo de descobrir que você salvou minha vida ‒ diz suavemente,docemente. ‒ Lá boate... Foi você quem voltou para me tirar do banheiroem chamas e... ‒ Ri de novo. ‒ É engraçado para não dizer estranho.Porque nem meu irmão e nem o seu acharam que era importante mecontar isso, mas... ‒ Ela empurra uma recorte de jornal na minha direção.‒ Acabei de passar pelo mural da Ala Leste e...

Droga! A reportagem que conta meu "ato heroico" daquela noite!‒ Não tenho nada a ver com isso... ‒ murmuro, sério. ‒ Digo, não

coloquei lá ‒ esclareço.

‒ Acho que foram suas admiradoras.‒ Ridículo.‒ Não. Você merece a homenagem. Realmente foi incrível o que fez.

Um ato de herói...‒ Está brincando comigo? ‒ Minha voz é pura e incontrolável frieza.Aurora para de sorrir.‒ Ei, é claro que não ‒ diz, tocando minha mão com a sua, e a

sensação de sua pele na minha é intensa de tal modo que preciso reprimira vontade arrasadora de entrelaçar meus dedos nos seus. ‒ Você podia termorrido... tentando me salvar. Sou muito grata por isso, Eric. De verdade.Eu... ‒ Seus olhos se tornam brilhantes pelas lágrimas não derramadas.

‒ Aurora... ‒ Afaste-se. Pelo amor de Deus.‒ Obrigada ‒ sussurra ela e, como se tivesse lido meu pensamento,

recolhe a mão da minha. ‒ Era só o que eu queria dizer. Obrigada.‒ Não há de quê. ‒ Falho em tentar ser rude e minha voz soa

horrivelmente trêmula.Quero que ela desapareça.Quero que pare de fazer o que quer que esteja fazendo.Me deixa louco.É uma benção ou maldição?Baixo os olhos para a mesa só para não ter que continuar em contato

com seu rosto e os fixo ali, reparando num caderno vermelho na outramão de Aurora. Por alguma razão inexplicável, sinto que já o vi antes, masnão sei quando e nem onde.

Estranho.Continuo olhando atentamente para o objeto, espantado com o quanto

aquela capa vermelha de veludo me parece familiar e puxo da memórialugares onde eu possa ter visto algo assim.

‒ É só um diário ‒ fala Aurora, puxando meu olhar de volta para o seurosto. ‒ É um livro em forma de diário, na verdade.

‒ Onde você o arranjou?Ela encolhe os ombros.‒ Veio parar nas minhas mãos, por acaso ‒ responde. ‒ É bem

sombrio, sabe? Mas interessante e um pouco romântico também.Foi escrito por um cientista lunático que passou metade da vida

pesquisando sobre regeneração espontânea acelerada e imortalidade.O quê?!Ela dá risada, fitando minha face em choque.‒ Loucura, não é?Não sei como responder, e Aurora prossegue:‒ A amada esposa dele, desse cientista, estava morrendo de uma grave

doença crônica ‒ conta ela, apoiando o livro na mesa, e consigo ver osímbolo da capa: um triângulo com um olho dentro de um círculoperfeito. ‒ Os médicos já tinham desistido de salvá-la. Não havia muitomais que pudesse ser feito. No entanto, ele foi atrás de uma soluçãodiferente. Tinha ouvido falar de uma organização secreta que faziamodificações genéticas no corpo humano usando um... material especial.

Levanto-me da mesa tão bruscamente, que derrubo a cadeira atrás demim.

O quê?! Não. Não é possível.Aurora arregala os olhos em reação ao meu gesto exaltado e tropeça ao

se afastar depressa. A bibliotecária faz “Shiii” de algum canto do espaço.Eu mal consigo respirar normalmente.

‒ Como é?!‒ Eric...‒ Que conversa é essa? ‒ Minha voz está irregular por causa do choque e

do medo, meu cérebro disparando possíveis respostas.‒ É só ficção ‒ diz a garota à minha frente, depois de hesitar.E não acredito nela. Não posso acreditar nela. Não devo acreditar nela.

É familiar demais. A desconfiança me alfineta repetidas vezes, uma agulhaafiada e dolorosa penetrando em meu cérebro.

‒ Por que está agindo assim? Você, por acaso, conhece essa história?A pergunta de Aurora tem um tom estranho, incisivo, como se ela já

soubesse a resposta, como se me desafiasse a não mentir. Encaro-a, surpreso por enxergar afronta no seu olhar.Que porra é essa?‒ Não entendo aonde quer chegar ‒ falo, inesperadamente gélido. Uma

descarga intensa de adrenalina reverbera em meu corpo inteiro.‒ Só perguntei se a história lhe é familiar...‒ É claro que não. Por que acha isso?

‒ Quem disse que eu acho alguma coisa?‒ Deixe-me ver esse diário. ‒ Estendo a mão. Preciso checar uma coisa.

Agora!Ela dá outro passo para trás, esconde o livro nas costas.Sério?Avanço para frente...‒ Opa, opa, opa. O que está acontecendo? ‒ Sam surge entre mim e

Aurora repentinamente, e me encara com um olhar desagradável dealerta. ‒ O que você pensa que está fazendo? ‒ pergunta só para eu ouvir.

‒ Escute, precisamos conversar ‒ falo, discreto.‒ Nem mais uma droga de passo ‒ avisa ele quando faço um movimento

de me aproximar. ‒ E não, Eric, nós não precisamos conversar sobre nada.‒ Espere...‒ Fique longe dela ‒ diz ele em tom baixo, mas ameaçador, e passa o

braço em volta da cintura de Aurora. ‒ Vamos embora ‒ diz, arrastando-aconsigo a passos ligeiros.

Ela olha uma última vez para mim, por cima do ombro e, a não ser queeu me engane, está escondendo um sorriso.

Ah!Maldita!Uma força estranha me empurra para baixo, obrigando-me a

apoiar as mãos na superfície lisa da mesa para não desabar. Estoudesorientado, enxergando vermelho e preto alternadamente.

Os músculos do meu braço tatuado enrijecem dolorosamente ao mesmotempo em que picadas de agonia atingem o ápice em algum outro lugar domeu corpo. Minha cabeça racha em dor aguda que veio de não sei quediabo. Meu cérebro agitado se esforça para compreender o que acabou deocorrer.

Não acredito. Não posso acreditar nem por um segundo. Estou sendofeito de idiota. Essa garota... essa garota está óbvia e descaradamentebrincando comigo, com algo que é bem maior e mais perigoso do que simesma, do que sequer imagina.

Fique longe dela.Sam. Ele mal quis me ouvir. Ele...Saia daí, Eric. Agora.

Começo a reunir meu material dentro da mochila e logo tropeço parafora da biblioteca. Pelo fluxo de alunos indo para as salas de aula,imagino que o intervalo tenha chegado ao fim. Contudo, sigo em direçãoao saguão.

Tenho que sair deste lugar. Tenho que sair agora.Antes que eu faça uma besteira.No estacionamento, meu I8 é destaque absoluto em meio aos outros

carros. E ali dentro, puxo meu iPhone do bolso da calça e disco o númerode Elizabeth, porém cai direto na caixa de mensagem.

Droga!Fecho os olhos, rechaçando a todo custo a fúria que brota em meu

sangue, mas a emoção é forte de tal modo que mal consigo me concentrarem respirar direito. Mal consigo pensar em outra coisa senão na cabeça deAurora Harvelle sangrando numa bandeja.

Aurora

"Nós duas vamos dar um passeio."

Encaro o estranho reflexo congelado no espelho e me pergunto se

estou definitivamente maluca. Então pisco, uma, duas, três vezes, mas aimagem fria de um rosto que se parece com o meu ‒ mas não é ‒,permanece imóvel, mesmo quando movo a cabeça para a esquerda e paraa direita. Até que lábios se retorcem num sorriso que não estou dando.

Santo Deus!Fecho os olhos com força e abro-os após um instante demorado. Nada

mudou. O semblante continua ali com traços de uma emoção que arrepiae não é de um jeito bom. Meu coração para, e então acelera quando omeu estranho eu do espelho começa a articular palavras com a boca sememitir som nenhum.

Ele diz:Vingue-me.Faça.Mate-o.E um rosto conhecido flutua na minha mente.O quê?Espalmo as mãos na bancada da penteadeira, tonta com a dor intensa

que aparece repentinamente e vai embora na mesma velocidade, juntocom a raiva. Meu Deus. Aperto os olhos novamente até a tonturadesaparecer.

Isso é tão estranho.Esses flashes... esse... instinto violento... estão cada vez mais nítidos e

frequentes desde que abri a maleta, e agora há um rosto.

O rosto dele. Por quê?Eu não faço ideia, apenas suspeito que seja em decorrência das recentes

descobertas...E que descobertas.É o seu dever...Luccas. Não consigo parar de pensar na última vez em que nos falamos.

A atração inegável pulsando entre nós. O desespero confuso dele. Ascoisas que afirmou sem nenhuma explicação de como era possível saber...

Céus!Quem diria que até ele teria os seus segredos? Agora, quais segredos?Quais são os seus segredos, Luccas?Faço um esforço enorme para não continuar pensando nisso e

corajosamente torno a abrir os olhos para o espelho.Graças a Deus!É com alívio que encontro a fisionomia vagamente determinada de um

rosto que tenho cem por cento de certeza ser o meu. E me sentindomelhor, termino de fazer minha maquiagem.

Hoje à noite é a festa de inauguração de mais uma filial da empresa deHenry. Ele está super orgulhoso de si mesmo, e eu também estouorgulhosa por seu trabalho bem feito, sua dedicação. Estou lisonjeada pelaocasião também comemorar minha chegada à ilha.

É um bem-vinda atrasado, disse Henry ontem à noite, depois de megarantir que convencera nossa mãe a me deixar continuar os estudos aqui.Mesmo na Itália, ela conseguiu descobrir o incidente na boate e piroucom o fato de que “alguém, por algum motivo” ter me machucado.

E sou capaz de entender sua preocupação, completamente.Não sei dizer o quanto me sinto mal por estar mentindo para ela, para

Henry. Ele parece seguro de que suas investigações vão levá-lo diretamenteao encontro do culpado. Mas não quero ver isso acontecer. Não queroHector perto do meu irmão. Sei o que ele é... o que se tornou, sabe-se láde que jeito...

E como um fantasma, a lembrança do laboratório de Richard Harleysurge para me atormentar, e mais uma vez sou obrigada a me desviar darota que minha mente está tomando.

Apanho o controle remoto dentro do bolso do robe e aumento ovolume da música. A voz de P!nk me alcança no closet, cantando “Just

Give Me a Reason”, uma das canções favoritas da minha mãe.Cantarolando baixinho, eu sigo para me trocar. ME VER NO ESPELHO é quase um novo choque. Mas desta vez estou

encantada, porque nunca me senti tão bela, tão incrível e tão... sensual.Meu vestido longo de ombro a ombro, com uma fenda de arrasar no altodo coxa, é a peça mais exuberante que eu já usei na vida. Minha pernadireita está toda exposta. O tecido azul-bebê é grosso e rígido, mas leve,com um relevo em renda bordada e inúmeras pérolas brilhantes pregadaspor toda a saia. O corpete também bordado se ajusta perfeitamente,acentuando ainda mais a curva da minha cintura.

Meu cabelo está volumoso e cuidadosamente cacheado, caindo ao redordos meus ombros. Como de costume, optei por uma maquiagem básica,um visual mais natural, e acessórios discretos como anéis de falange e umcolar duplo que Henry me deu de presente logo quando cheguei à ilha.Acho que o pingente em forma de coração é de diamante, mas deixopassar.

Hoje é uma noite especial.Estou sorrindo feito boba à medida que calço meus sapatos Christian

Louboutins dourados e apanho uma carteira da mesma cor e saio paraprocurar Henry.

Ele está esperando por mim na sala, lindo em um smoking preto egravata-borboleta vermelha. Seu olhar admirado quando me avista me fazsorrir timidamente.

‒ Uau!‒ Pare, por favor.‒ Não posso. Você está estonteante, minha irmã ‒ diz ele, vindo segurar

minha mão. ‒ Todos só terão olhos para você.‒ Ah, meu Deus. Eu espero que não ‒ falo, dando risada. ‒ Você sabe

que eu detesto ser o centro das atenções... E afinal de contas, hoje é o seud i a ‒ lembro-lhe, fornecendo um sorriso carinhoso. ‒ Saiba que estoumuito orgulhosa de você.

‒ Obrigado, maninha. ‒ Ele beija minha bochecha. ‒ Podemos ir?‒ Sim! ‒ respondo efusivamente, e seguimos de mãos dadas para o lado

de fora.

Além dos imensos portões, uma enorme limusine preta está à nossaespera. Assovio quando ele abre a porta e me ajuda a entrar, segurando abarra do meu vestido para não amassar. Num minuto está ao meu lado, eo automóvel chique entra em movimento.

Durante o caminho, Henry compartilha comigo todos os detalhes doarranjo da festa, da criação filantrópica de mais uma linha de joias e apossibilidade que deu origem a abertura de mais uma filial na ilha.Reparo que ele se derrete inteiramente ao falar da ajuda inestimável damãe de Sam e me pergunto se os dois têm algo além da relação denegócios, se ele conhece a verdade sobre ela.

E mesmo sabendo que são amigos há alguns anos, não posso deixar deme preocupar com a segurança do meu irmão.

Preocupe-se com você. Não é ele quem está com um alvo nas costas, diz umavoz na minha cabeça sombriamente.

Rechaço-a bem no momento em que a limusine estaciona. Henry sorripara o meu semblante de nervosismo. De dentro do carro, posso ver osflashes das máquinas fotográficas e isso me desconcerta. Não estouacostumada a... fama? Não a minha, claro. Meu irmão é a celebridadeaqui. É a primeira vez que estou oficialmente no seu mundo.

‒ Pronta? ‒ pergunta Henry.O manobrista abre a porta da limusine para mim e o motorista corre

para abrir a dele.‒ Ah, sim. Claro ‒ respondo e me surpreendo com minha firmeza.‒ Você é incrível, Aurora. ‒ Ele acaricia minha bochecha e sai da

limusine.Respiro fundo e coloco a perna para fora. Um tapete vermelho atravessa

a entrada glamorosa do local, conduzindo-nos para o interior do salão. Aomeu lado, Henry passa o braço em volta do meu, e nos posicionamos paraencarar os fotógrafos que nos aguardam com ansiedade. Sorrio para eles,tão à vontade, como se fizesse algo do tipo todo dia.

Depois disso, seguimos o tapete vermelho junto aos novos convidadosque chegam de carro ou limusine, parando quase de minuto a minutopara uma nova foto ou cumprimentar amigos de Henry. Logo na entradasou apresentada a tantas pessoas que é impossível decorar os nomes; todosmuito simpáticos e ansiosos para me conhecer finalmente.

Não fazia ideia de que meu nome era tão comentado.Ao adentrarmos no sofisticado salão da festa, mais pessoa vêm nos

cumprimentar com euforia. Sou beijada nas bochechas tantas vezes e maisnomes que não serei capaz de lembrar são ditos.

Recebo muitos elogios, uns mais sinceros do que outros, mas sousimpática e aceito todos de bom grado. Henry não para de sorrir, talvezachando graça da minha diplomacia.

Por fim, tenho um momento para apreciar a decoração do espaço quefoi muito bem organizado. Ao longo do corredor espaçoso, vitrines devidro transparente expõem as mais belas joias que terão suas vendasdoadas ao hospital do câncer da ilha.

Uma escada de vidro enorme e impressionante no centro do salãoatende ao andar superior, os corrimões enfeitados por flores rosas ebrancas. Lustres de cristal pendem do teto e das paredes, emitindo umafantástica luz alaranjada que se assemelha ao pôr-do-sol.

A imensa mesa do bufê é farta e convidativa. Garçons em ternosbrancos transitam entre os convidados, carregando bandejas com taçastransbordantes de champanhe. Henry apanha uma para mim e outra paraele.

‒ À você ‒ eu digo, levantando a taça.‒ À nós ‒ retruca ele.E brindamos. O champanhe gelado é uma delícia.‒ Sr. Henry?Uma mulher alta e morena vestida de vermelho-sangue surge entre nós

e sussurra algo no ouvido do meu irmão. Como que para oferecerprivacidade a eles, eu olho ao redor do salão, procurando por Sam. Eleme garantiu pela manhã que viria. E, apesar de tudo, confesso que gosteide saber disso. Com certeza essa festa será bem mais divertida com umrosto familiar ao meu lado.

A voz de Sia cantando "Cheap Thrills" anima a pista de dança montadaem frente ao bar, na parte leste do salão, e minha pele no mesmo segundoé eletrificada por uma lembrança que atravessa minha mente sem pedirlicença.

Minha pulsação acelera.Eu queria poder explicar aquele dia... aquele beijo, dizer que foi uma

consequência de eu ter me excedido na bebida. Mas não. Não foi. Porqueeu estava tão sóbria, tão ciente do meu próprio desejo, e eu quis, eu quisde todo o meu coração que Eric me beijasse, e quando ele fez ou eu fiz,quem sabe, foi...

Deus!Jamais me senti daquele jeito, como se cada terminação nervosa do meu

corpo precisasse absolutamente dele, de algo que só ele podia me dar.E essa foi uma sensação para lá de inesperada, incompreensível.

Não entendo o que está acontecendo comigo, com meu coração, com meucorpo. Só o que sei é que não importa o momento, não importa o que eufaça...

Não consigo arrancá-la da minha pele.E não é só isso. Há algo mais. Algo que reconheço muito bem, mas não

é relacionável. Raiva. Pura raiva. Uma emoção intensa e sinistra que temmorado dentro de mim durante anos, estragando-me, mas agora... estousendo inteiramente consumida por ela...

‒ Aurora? ‒ As mãos de Henry tocam meus braços, e eu retorno aopresente momento.

‒ Oi. ‒ Pisco diversas vezes para o seu rosto em alerta. ‒ Sinto muito.‒ Você está bem? ‒ indaga ele em tom baixo.‒ Sim... Estou bem. Eu só me distraí um pouco. Não foi nada ‒

asseguro, sorrindo.Não sei se ele acredita.‒ Preciso dar uma entrevista agora. Vai ficar bem sem mim?‒ Sim... É claro que sim. Não se preocupe. ‒ Dou um sorriso

tranquilizador. ‒ Acho que vou passear um pouco. Este lugar parece omáximo.

‒ É, é sim. A vista lá de cima é incrível. Você precisa dar uma olhada.‒ Maravilha.‒ Nos vemos logo, ok?Ele beija minha bochecha e se afasta com a mulher de vermelho que

veio chamá-lo. Sem pensar muito bem no que estou fazendo, eu medireciono à uma outra direção ‒ a direção das escadas ‒, e inspeciono oespaço novamente dessa vez procurando alguma ameaça iminente.

Pare com isso, Aurora., repreendo a mim mesma em pensamento,

esvaziando a taça de champanhe.Mudo de rota.Entrementes, reparo que os convidados não param de olhar para mim;

alguns até sorriem. Eu retribuo com naturalidade conforme ando emdireção ao corredor que leva ao banheiro feminino. Meu coração seaperta, reagindo à fobia gerada por uma péssima e recente experiência.

A sensação de medo é tão familiar.Deixo minha taça vazia na bandeja de um garçom que passa ao meu

lado, evidentemente, me encarando sem piscar. Há uma fraca semelhançaem seu rosto que me desconcerta, mas continuo andando e não olho paratrás, apesar de sentir que meus passos estão sendo acompanhados àdistância.

Relaxa, garota.Entro no banheiro, e para o meu absoluto desgosto, encontro Elizabeth

ali sozinha, retocando o batom vermelho. Ela está exuberante num vestidoazul-marinho justíssimo que destaca suas curvas, o cabelo loiro caramelocaindo em ondas pelas costas. Uma beleza espetacular emana dela.

‒ Oi, Aurora ‒ diz ela, simpática demais para o meu gosto.Seus frios olhos azuis me fuzilam pelo espelho, os lábios se retorcendo

em um sorriso falso que faço questão de não retribuir.‒ Belo vestido.‒ Obrigada ‒ murmuro. ‒ O seu também.Ela limpa os cantos da boca, desnecessariamente, com as pontas dos

dedos, e pisca para mim. A perfeita idiota.Fala sério.Algo nela me causa fortes náuseas ‒ talvez a falsidade indisfarçável ‒, e

quase reviro os olhos, mas opto por fingir que ela não está presente.Aproximo-me do espelho.

De imediato, fico paralisada de choque.Meu reflexo está diferente outra vez. Não é engano nenhum. Posso

perceber a mudança com mais facilidade agora. Posso notar os traçosfaciais, o tom de pele, os cabelos e também... Não está mais lá. Não estámais lá!

Pisco depressa e a garota do espelho repete o movimento.Ah, meu Deus. Estou mesmo ficando louca.

Pelo canto do olho, reparo em Elizabeth me observando com as mãosna cintura, seu corpo escultural totalmente voltado para mim. Ah, não.Mil vezes não. Não posso aturar essa garota, ainda mais quando estamossozinhas.

Preciso sair daqui.Sem demora, apanho minha carteira dourada no balcão da pia e giro

nos calcanhares para sair do banheiro... Congelo.Elizabeth está parada bem em frente à porta. Olho para trás,

embasbacada, onde ela estava há dois segundos.‒ Como você...‒ Ah, não importa ‒ ela me interrompe, entediada, e anda um passo.Oh, oh. Isso não é nada bom.‒ Saia da minha frente ‒ ordeno, frieza e ameaça em cada sílaba que sai

da minha boca.Lembro a mim mesma de ficar calma, de não ceder à mais uma provável

provocação dessa garota, porém, apesar de meus esforços, meu sangueesquenta.

‒ Não ouviu o que eu falei? ‒ pergunto, sibilando.‒ Sim, eu ouvi, queridinha. Mas não vai ser possível ‒ diz Elizabeth, a

voz ficando aguda e ameaçadora como a minha.‒ Que diabo você quer? Eu não tenho tempo a perder com...‒ Nós duas vamos dar um passeio ‒ ela me interrompe, antes de bater

com minha cabeça na parede.

Eric

"Como diabo isso pode estar acontecendo?"

O manobrista abre a porta do I8 para mim e me lança um olhar de

franca inveja quando lhe entrego a chave. Por sua vez, ele me passa umcartão, que enfio no bolso da calça social preta. Os fotógrafos estão apostos na entrada do salão e vários deles me convidam para uma foto,gritando meu nome para que eu pose para as câmeras. Tenho de aceitaresse momento em nome da minha mãe postiça e, sem sorrir, aguardo queeles façam seu trabalho.

Estou aqui. Estou na festa de inauguração da nova joalheria de HenryHarvelle. Exatamente como Ayla queria, e uma pequena parte de mimtambém. Mas não pretendo demorar. Só tenho que congratulá-lo, sorrirou não sorrir para as câmeras e fingir que celebro a chegada de sua irmã àilha.

Eu posso fazer isso. Eu consigo. Passei o restante do dia de hojerejeitando a ira que se acumulava dentro do meu peito e agora estou mesentindo melhor. Mais dono de mim. Estou sob controle.

Não vou permitir de jeito nenhum que Aurora me quebre. Não vou lhedar a satisfação de saber que seus esquemas ridículos me afetam. Seja láqual for sua intenção, vou menosprezá-la até que tenha coragem suficientede me enfrentar, sem joguinhos ou enigmas. E quando isso acontecer,saberei de verdade quem ela é e o que pretende.

Os fotógrafos agradecem pela minha atenção, e eu entro no espaço dafesta. A coleção de joias que desenhei a convite de Henry antes dechegar à ilha está exposta em vitrines de vidro transparente, onde aspessoas competem espaço para dar uma olhada.

Ayla comentou comigo sobre o resultado estrondoso que as peças estãofazendo, mesmo sem ainda estarem à venda.

Ela está orgulhosa, mas não sei se do sucesso ou... de mim.Pare com isso, Eric.Sim. É ridículo. Continuo andando rumo às escadarias.Preciso colocar uma distância entre mim e este salão o mais rápido

possível.Ao entrar no segundo andar, um garçom se aproxima de mim,

oferecendo champanhe com um penetrante olhar malicioso.Fala sério. Você não é minha praia, amigo.Apanho uma taça e me afasto.Ali em cima está do jeito que eu aprecio: quieto, vazio e com um

cenário de tirar o fôlego, que me dou ao luxo de admirar por algunsminutos. As diversas portas francesas, divididas por pilares redondos,estão abertas e descortinadas, permitindo acesso livre à uma majestosavaranda de vidro e à uma visão magnífica da Ilha de Íris iluminada emtoda sua glória.

Lápis e papel me fazem falta para registrar a beleza dessemomento, antes que ele desapareça com o nascer do sol. Não é todo diaque as luzes estão tão cintilantes, piscando lindamente, e o céu azul-escuroestá repleto de estrelas e com uma lua tão esplendorosa. Sorrio para ohorizonte, erguendo minha taça num brinde à perfeição da Mãe Natureza,em seguida bebo um gole do champanhe gelado.

‒ Olá, Eric ‒ diz uma voz musical atrás de mim.Porra!Assusto-me.Não estava nem um pingo preparado para ouvi-la, não agora. Não tão

cedo. Meus pés giram nos calcanhares mecanicamente, sem esperar pormeu comando... Minha boca fica seca. E embora eu me esforcebravamente, não consigo olhar para outro canto, se não para ela.

Para a sua forma perfeita, delicada e intensa feito o diabo.Essa garota não é mesmo normal, mas isso não torna o meu

fracasso menos miserável e humilhante.Como pode?Estou desarmado e babando feito um verdadeiro idiota. Às vezes, tenho

vontade de eu mesmo me dá um tapa na cara.Controle-se, Eric. Aja naturalmente.Sim. As aparências, eu penso, e usando todo o meu autocontrole e o

fiapo de dignidade que me resta, visto a máscara. Abro um sorriso namedida certa.

‒ Aurora ‒ falo como forma de cumprimento ‒, a senhorita estáencantadora.

E está mesmo. O azul-claro do vestido justo fica adequadíssimo em suapele mulata, também contrastando com os cabelos negros cacheados. Afenda no alto da coxa...

Deslumbrante. Simplesmente deslumbrante.‒ Obrigada. ‒ Ela faz uma reverência, dobrando os joelhos, e curva a

cabeça, como uma dama. ‒ O senhor também não está nada mau ‒ diz,um sorriso de diversão brincando nos lábios.

Desvio o olhar de sua boca carnuda, falo para mim mesmo não ser umidiota, lembro-me de que suas intenções não são das melhores.

‒ Está uma bela noite, não é? ‒ pergunto como desculpa para ficar decostas e redirecionar minha atenção.

Bom trabalho, garoto.‒ Sim. Está uma noite incrível ‒ diz ela, suspirando, e surge ao meu

lado. ‒ Eu gosto desse momento, sabe? De como é quieto, misterioso eprotetor. ‒ Ela faz uma pausa. ‒ Às vezes, parece que guarda os nossossegredos... Por um tempo, é claro, tipo, até o nascer do sol.

Ela libera uma risadinha. Não digo nada. E, então, ficamos em umsilêncio apenas de nossas vozes, com o assovio baixo do vento a balançarnossos cabelos.

Estou orando para que ela vá embora, que me deixe sozinho, edescobrindo ao mesmo tempo um desejo de que ela fique e me façacompanhia, que continue falando.

E ela continua.‒ Eu gosto das estrelas também. Como astros luminosos que são,

ninguém pode dizer que não há luz nas sombras. ‒ Seus olhos miram ohorizonte como eu estou fazendo.

‒ Isso é muito profundo.Bebo mais um gole de champanhe e me pergunto se devo ou não devo

desenvolver o assunto, penso se ela está dizendo isso por algum motivoespecífico.

Mas aí ela indaga:‒ Onde está sua família?‒ À caminho, eu presumo.‒ Ah, sim. Eu sempre me esqueço de que também não está mais

vivendo com Ayla ‒ diz ela, um som de riso na voz.Vejo a mim mesmo girando o corpo para fitá-la, uma sensação sombria

arrepiando-me dos pés à cabeça.‒ Quem lhe disse isso? ‒ pergunto e ao mesmo tempo sei a resposta.‒ Sam ‒ fala Aurora, virando-se também. ‒ Ele me contou que vocês

dois não estão... digamos que passando por um bom momento. Mas ajulgar pelo que aconteceu hoje pela manhã, eu diria que a situação é bemmais séria do que parece.

Não gosto do olhar que ela está me dirigindo. Não sei com exatidão oque há nele, mas não gosto.

‒ Sinto muito por ter me exaltado ‒ ouço a mim mesmo dizendo. ‒ Eunão devia tê-la pressionado daquele jeito por causa do caderno. Eu nemsei por que achei que já o tinha visto antes...

Paro de falar quando Aurora começa a rir, rir de verdade. Mas não éaquele riso de criança que ela costuma dá, o riso que eu gosto de ouvir. Édiferente, como todo o restante nela no momento.

Nunca a vi dessa forma, nunca, a não ser...‒ Desculpe... ‒ Ela pressiona a unha longa e pontiaguda nos lábios

franzidos, como se repreendesse a si própria por estar rindo. ‒ Desculpemesmo. É que... Tenta dizer isso de novo porque não soou muito sincero,sabe?

Porra!Minha mão direita aperta a taça e a outra se fecha em punho na lateral

do corpo. Um sinal de alerta reverbera em minha cabeça.‒ Acredite no que quiser ‒ disparo, mascarando meu constrangimento.‒ Por favor ‒ Aurora une as mãos atrás de si ‒, vamos pular a parte em

que o senhor finge que não sabe que eu sei de tudo sobre sua família...sua verdadeira família, é claro ‒ ela se corrige dando um tapinha na testae afasta uma mecha cacheada do cabelo com um floreio casual, em seguida

devolve a mão às costas.Paro de respirar, por um instante, com a sensação de que há um punho

alojado em minha garganta, e estou tentando engoli-lo, mas é inútil. Meucorpo está rígido de surpresa misturada a choque. Procuro palavras emmeu cérebro para formular uma resposta adequada, mas só consigo pensarque não, não é possível e não, ela não pode saber, ela não tem comosaber.

E de repente não sei o que falar.‒ Seu silêncio é tão eloquente, Sr. Eric. ‒ Ela ri de mim, encarando-me

sem piscar.‒ Do que a senhorita está falando?‒ Ora, não seja tão estúpido quanto parece ‒ ela me repreende,

divertindo-se. ‒ A história que eu contei hoje... O senhor não percebeuque eu estava falando do seu pai? Da obsessão louca dele em achar umacura para esposa doente? Sua mãe. Sarah.

Arfo, por dentro, desmoronando.Aurora sorri, contorna o meu corpo paralisado, simultaneamente

escorregando uma das mãos por minhas costas.‒ Pois é ‒ diz, animada. ‒ Era só um pequeno teste. Não tinha certeza se

ia funcionar de verdade. O senhor é tão reservado. Mas eu precisava quereconhecesse o diário ou a história e aí... ‒ Ela apoia o queixo no meuombro esquerdo, alta o suficiente para isso, dando uma risadinha. ‒Bingo! Sua reação foi muito, muito esclarecedora, obrigada. No entanto ‒continua, lentamente, voltando a andar ‒, o que ainda me deixa umpouco intrigada é que algumas informações simplesmente não seencaixam, e eu me pergunto e me pergunto e me pergunto... ‒ Ela para naminha frente, bem perto. ‒ Quem é o mentiroso?

Consigo controlar o tremor dos músculos do meu corpo, consigo nãodesabar no chão. Ainda sou dono de mim, senhor das minhas emoções,mas estou à beira, por um triz de abandonar a cautela.

É inacreditável.‒ Aonde a senhorita quer chegar com isso? ‒ pergunto secamente,

sustentando o olhar de Aurora.Ela não pode estar falando sério.‒ Acho que o senhor sabe ‒ diz num tom tranquilo e frio, não mais

divertida. ‒ Oh, eu fiz o meu dever de casa, Eric. E se pensa que estoublefando, sugiro que reconsidere. Sei a verdade sobre o senhor e sobreSam e Ayla também. Sei há quanto tempo vocês existem, embora eu nãoentenda inteiramente como e que tipo de... aberração da natureza é esta.

A varanda rodopia a minha volta, o chão parece ser feito de areiamovediça e está me sugando para baixo, e repentinamente estou soterradoe não consigo respirar direito e meu coração está louco dentro do meupeito.

Meu Deus, estou sonhando?‒ Richard Harley foi bem cuidadoso com as próprias palavras ‒

continua Aurora, e ouvir o nome do meu pai é como receber um soco. ‒Ah, seus malditos códigos. E confesso que também tenho dúvidas sobreElizabeth; ela não está em nenhum dos registros dele. Então. Gostaria defazer as honras? ‒ pergunta para mim, a diversão voltando à sua voz. ‒Gostaria de preencher as lacunas dessa fascinante história? Qual é amacumba responsável por esse rostinho de bebê? ‒ Ela faz o movimentode tocar minha face, mas não encosta de fato. ‒ E que organização secretaé essa que transforma humanos em monstros?

‒ Eu não sei do que a senhorita está falando. ‒ Minha firmeza se foi.‒ Ora, meu bem. ‒ Aurora solta um sorriso estranho e torto. ‒ Mentir é

feio. Mamãe deve ter ensinado isso a você antes de a doença travar alíngua dela...

Perco as estribeiras, apertando a taça com força demais, e ela seestilhaça na minha mão trêmula. Um segundo depois, meus dedos estãofechados em volta do pescoço de Aurora, empurrando-a furiosamentecontra o corrimão de vidro da varanda. Estou arquejando de revolta,desligado do meu racional.

O olhar perverso que ela me dá...‒ Não ouse... ‒ sibilo friamente com o coração partido, dolorido ‒ não

ouse falar assim da minha mãe. Nunca mais.Trinco os dentes, meus olhos ardendo para caramba.‒ Progresso ‒ comemora ela, rindo. ‒ Agora vamos, solte meu pescoço,

querido, ou serei obrigada a estragar esse smoking caro... bem aqui. ‒ Suamão pousa em meu peito.

Uma ameaça... Ela está me ameaçando! De verdade. Como diabo isso

pode estar acontecendo? Como ela pode estar sendo tão fria e cruel?Não a reconheço.‒ Quem é você? ‒ Como sabe disso tudo?‒ Eu sou Aurora. A garota dos seus sonhos. ‒ Ela inclina a cabeça só

um centímetro. ‒ Literalmente ‒ diz.‒ Não.‒ Sim ‒ retruca ela, sacudindo a cabeça afirmativamente. ‒ Eu sei que

você pensa em mim todas as noites, Eric. Que me imagina nua em seusbraços... na sua cama ‒ sussurra sedutoramente.

Odeio a mim mesmo por estremecer. Sinto as palavras de Auroraenviando ondas quentes de um prazer indesejado para todo o meu corpo.

‒ Está tudo bem, baby. Eu permito. Você também não sai da minhacabeça ‒ confidencia ela.

E, impressionantemente, minha raiva é abrandada há um ponto em quequase some, meus dedos afrouxam o aperto no pescoço de Aurora. Minharespiração se torna irregular; meu cérebro, disperso. E não consigo mesoltar dos seus olhos devastadoramente dourados. Puxo uma respiraçãoprofunda.

‒ O que você...Aurora dá uma risada malvada que esfria meu sangue na mesma hora.Maldição!‒ Ah. Minha. Nossa. Essa foi fácil, hein?Empurro seu corpo para longe do meu sem uma grama de delicadeza.

Estou com raiva novamente ‒ mais de mim do que dela.Idiota! Idiota! Idiota!‒ Relaxe, Eric ‒ diz Aurora, animadíssima, lançando os cabelos

cacheados dos ombros para as costas. ‒ Se serve de consolo, o senhor é,droga, um pedaço de mau caminho.

‒ Ah, é? ‒ falo, debochado. ‒ E você é louca.‒ Só um pouco. ‒ Ela encolhe os ombros, alegremente.‒ Se sabe mesmo o que sou, não devia brincar comigo dessa maneira.

Não tem medo de acordar sem a língua.Ela reage ficando muito séria.‒ Oh, não. Não faça isso, Eric. Não me ameace ‒ avisa com dureza,

estreitando os olhos. ‒ Não é inteligente, sabe? E seu irmão jamais o

perdoará se fizer qualquer coisa comigo. Ele me adora.Sam. Ela está usando-o. Notar isso me deixa com mais raiva.‒ Ele pode me odiar se quiser ‒ cuspo a verdade. ‒ Eu não me importo.

Você não me conhece, não sabe do que eu sou capaz. Eu...Sem perceber exatamente como acontece, a mão de Aurora está

pressionando minha garganta, fazendo-me sufocar sob os seus dedos, meuspés a muitos centímetros do chão.

Por reflexo, minha mão voa automaticamente para o seu antebraço, masela me intercepta no meio do movimento, fechando os dedos no meupulso, e força meu braço para baixo como se fosse a coisa mais fácil domundo.

O quê?!Estou insanamente assustado com sua força incrível porque não consigo

me livrar dela, embora esteja tentando com toda energia que possuo.Como? Como isso é possível?‒ Não, meu querido ‒ retruca ela, aos rosnados. Brava. O olhar

sombrio. ‒ Você não me conhece e não faz a mínima ideia do que eu soucapaz. Pergunte a sua falsa prima Elizabeth o que acontece quando tentamme intimidar ‒ acrescenta com um sorriso de escárnio. ‒ Aquela loiraestúpida... da próxima vez que ela ousar se meter no meu caminho, euquebrarei cada osso do seu corpo tão lentamente que ela irá implorar pelamorte, entendeu?

Aurora larga meu pescoço com brutalidade, e, em seguida desaparece, abarra do vestido varrendo o chão. Eu caio de joelhos na cerâmica dura,inalando com imensa dificuldade e tossindo.

Ela me jogou como um pedaço de pano.Meu peito dói conforme trago o precioso ar.Ela me carregou como se eu fosse um boneco.Meu corpo inteiro está arrepiado, os músculos enrijecidos e tensos pelo

ataque imprevisto. Minha cabeça lateja de dor ao tentar processar o queacabou de acontecer, relacionando com a história que Elizabeth mecontara pela manhã. Mas...

Tudo ainda é tão questionável; o comportamento de Aurora, suasurpreendente e inegável força sobrenatural, as coisas que ela sabe sobremim e a minha família...

As revelações sobre o meu pai.Não consigo acreditar que ele possuía conhecimentos sobre a Trindade,

que chegou a procurar sua existência obsessivamente, segundo Aurora, emrazão da doença de sua amada esposa, minha mãe.

Rio sombriamente, ficando em pé. Passo a mão pelo cabelo. Não. Negocom a cabeça. É claro que não. Nada disso faz sentido. Ele não seimportava com ela, droga, ele não se importava nem um pouco.

Era um homem de coração frio.Seu único compromisso era com o maldito trabalho. Isso vinha em

primeiro lugar. Sempre. Sua negligência conosco é o motivo de eu tê-loodiado tanto.

Se ele fez alguma coisa não foi pela minha mãe, ele não desejava salvá-la.

Ainda assim...Por quê, então? Por que o interesse em um criadouro de monstros? E

como ele descobriu sobre a organização?Compreendo que são respostas que jamais terei. Meu pai está morto.

Tudo que possuo são as alegações de uma garota suspeita e desiquilibrada,que está fazendo ameaças e usando meu irmão mais novo. Ela é louca, epreciso alertá-lo sobre isso, preciso avisar a Ayla de tudo que Aurora sabe.

Preciso fazer isso agora antes que o pior aconteça.

PARTE 3 – VINGANÇA

Eric

“Elizabeth.”

Saio da varanda a passos rápidos e decididos, entrando no espaço

vazio do segundo andar, e me detenho por um instante no mezanino paraespiar lá embaixo. A festa está a todo vapor. Música alta, gente bebendo etrocando elogios sobre roupas, negócios bem-sucedidos e fazendo planospara sociedades futuras.

Minha cabeça está zumbindo com o murmúrio de tantas conversas.Meus olhos fazem uma varredura minuciosa em cada canto do salão

antes de avistarem Ayla posando para três fotógrafos, cheia de sorrisos.Ela veste um elegante vestido prateado de cauda longa, os cabelos presosnum coque alto que a deixa mais jovem do que aparenta ser.

Logo em seguida, Sam se junta a ela para mais uma rodada de fotos,vestindo um smoking preto bem cortado e gravata-borboleta cinza. Umaconferida rápida me diz que nem Henry e nem Aurora estão por perto.

Ótimo.Atravesso a escada ligeiramente, me esquivo dos convidados e em um

minuto estou diante do meu irmão e da minha mãe postiça. Os dois sesurpreendem com minha aparição repentina; minha expressão, talvez.

‒ Ayla, precisamos conversar ‒ falo, aflição estampada no meu tom devoz elevado.

Ela fecha a cara momentaneamente.‒ Não me chame assim! ‒ repreende-me entre os dentes, mas está

sorrindo, os olhos disparando para as pessoas ao nosso redor, em seguida,os volta para mim. ‒ Seja lá o que tiver a dizer, agora não é o momentomais apropriado, Eric.

‒ Mas...Ela se desvencilha de mim para cumprimentar alguém às minhas costas.

Ignora-me. Fico imóvel no lugar sentindo as fortes rajadas de frustração edesespero destruírem minha noção de tempo e espaço.

Ela nem parou para escutar. Ela sequer me deixou falar.Solto o ar que estava prendendo sem me dar conta, e meus olhos

ganham foco. Sam me fita com um olhar incompreensível.‒ Irmão ‒ apelo para ele, suplicando.‒ Você ouviu a nossa mãe. ‒ Sua voz é muito séria e muito fria ao se

dirigir a mim, assim como sua postura. ‒ Depois, Eric.Eu ofego, pego de surpresa mais uma vez. Então faço que sim com a

cabeça, confuso e impressionado com a minha própria calma e com odesejo subjugado de explodir, bater, quebrar alguma coisa. É como se eude repente não soubesse como me enfurecer, e isso é incomum.

Uma suspeita risca minha mente.‒ Onde está Elizabeth? ‒ pergunto a Sam, que ainda está parado a

alguma distância de mim, observando-me com vagueza.Um semblante amargo surge e desaparece do rosto dele na velocidade

de um piscar de olhos, e é substituído por um ar sarcástico.‒ Eu não faço ideia do paradeiro de sua acompanhante, meu irmão ‒

fala ele com uma cortesia gélida e formal, como se estivesse mealfinetando; então sorri, radiante, para um ponto acima do meu ombro. ‒Mas acabo de ver a minha. Então... com licença.

Ele dá cinco passos decididos para se afastar de mim, e não posso deixá-lo ir sem um alerta. Ponho minha mão direita no seu ombro para detê-lo, e seus olhos cinzentos me fuzilam com um fulgor frio, uma ordemsilenciosa para que eu o solte.

‒ Preste atenção, Sam ‒ imploro aos sussurros ‒, você precisa ficarlonge de Aurora.

Ele ri, um som baixo e incrédulo, revira os olhos, arranca minha mãodo seu braço com um tapa. Não é uma reação legal. Algo está não certo, eme deixa preocupado.

‒ Por quê? ‒ pergunta ele, intransigente. ‒ Qual a loucura desta vez? Jánão basta... ‒ Sam morde o lábio, obrigando a si mesmo a calar a boca.

Eu estranho.

‒ Do que você está falando?‒ Do que você está falando? Por que eu tenho que ficar longe de Aurora?‒ Porque ela não é quem você pensa, droga ‒ rosno, minha fúria

domada.Sam fica mais frio, irritado e impõe uma distância entre nós, sem

remover os olhos do meu rosto. Sinto sua acusação me trespassar feitolâmina afiada.

‒ Não, Eric ‒ diz ele, uma revolta silenciosa em suas palavras. ‒ Ela nãoé quem você pensa ‒ fala e vai embora.

Libero um suspiro profundo e derrotado ao passo que Sam está sedeslocando para encontrar Aurora, deixando-me plantado no meio dosalão. Cerro os dedos nas laterais do corpo tentando me conformar,tentando engolir o nó de frustração na garganta, mas nada acontece comodesejo.

E assim, busco me convencer de que não é uma boa ideia ir atrás deleagora e obrigá-lo a me ouvir, como é a minha vontade.

Não vai funcionar. Ele não está a fim, não quer e não sei o porquê, nãosei o que está havendo entre a gente. Não compreendo por queultimamente temos estado tão distantes, tão frios e indiferentes, comopessoas estranhas ou como se estivéssemos magoados um com outro.

E não tenho me preocupado como um bom irmão deveria.Nesse momento, em uma tentativa desesperada, eu penso em

Aurora, penso em Elizabeth, penso em um milhão de razões quejustifiquem esse novo e incomum clima entre nós, mas não consigodefinir qual é o real problema. A única coisa da qual eu suspeito é que aculpa seja minha, pois a culpa sempre é minha, eu estou o tempo inteirofazendo besteiras, necessitando de perdão.

Mais do que qualquer um.Rejeito meu último pensamento e volto ao sacrifício da festa. Ainda

tenho uma tarefa a fazer, um desejo a cumprir ‒ de uma pessoa a quem eunão devo recusar nada. Porém, estar o tempo inteiro acompanhando Aylanesta celebração consome cada grama de paciência que não tenho.

Contudo, de alguma forma, consigo sorrir e socializar com todos semque ninguém note o meu contragosto.

Nas entrevistas, uso meu charme para os repórteres e faço com que as

perguntas não durem mais do que necessário. E mesmo quandoperguntam sobre minha relação com Aurora ‒ o que me dá vontade derasgar a garganta de alguém ‒ respondo com o máximo de naturalidadeque somos apenas amigos e redireciono o assunto para a coleção de joiasque desenhei.

Em um dado momento, estou livre das garras dos repórteres e anseiopor uma oportunidade de ir embora sem que ninguém perceba. Não estouconseguindo mais suportar a interação de Ayla e Aurora, e a adoraçãoclara e aberta do meu irmão por essa garota.

Os dois não se desgrudam nem por um minuto; há semanas os dois nãose desgrudam. Cheguei a pensar que talvez ele estivesse tentandodescobrir algo sobre ela ou sobre o motivo de estar sendo perseguida pormonstros, mas não.

Aurora é muito solitária. Sam só está fazendo companhia, disse Ayla certamanhã quando ele não apareceu para o café.

Lembro que murmurei uma banalidade e saí da mesa sem terminar decomer, dizendo a mim mesmo que tudo bem se estivesse rolando algomais entre eles, que não era novidade nenhuma ela ter cedido aosencantos dele, a sua pureza.

Mas não está tudo bem agora, não com Aurora se revelando uma garotanem um pouco inocente.

Minha cabeça está recheada de perguntas.Há quanto tempo ela sabe sobre a minha família verdadeira? Dias?

Meses? Antes ou depois de ter chegado à Ilha de Íris? Como pôde ser tãodissimulada?

‒ Eric? ‒ Ayla assoma ao meu lado de súbito, envolvendo o braço nomeu, e me puxa para caminhar.

‒ O que é? ‒ pergunto com azedume; não é pessoal, não inteiramente,pelo menos.

Contorno o olhar e encontro o semblante contido dela.‒ O que houve? ‒ indago, certo de que há algo fora do normal.‒ Onde está Elizabeth? ‒ Seu tom de voz é acusatório e não gosto dele.‒ Eu não sei. Estou tentando falar com ela desde cedo e não consigo.

Por quê?Ayla interrompe nossa caminhada e finge ajeitar meu colarinho aberto e

sem gravata.‒ Encontre-a ‒ diz, imperativa ‒ e a contenha.‒ Quê?‒ Acharam sangue e um espelho quebrado no banheiro feminino.Puta merda!‒ Era dela? ‒ pergunto imitando a voz baixa de Ayla.Ela responde que sim apenas com os olhos, e inclina-se para me beijar

na bochecha.‒ Henry encerrará a festa em quarenta e cinco minutos. Dê um jeito de

encontrá-la ‒ diz superficialmente natural, recuando.‒ Verei o que posso fazer ‒ falo, e logo depois ela se afasta.Puxo meu iPhone de dentro do bolso da calça e saio em direção

contrária à de Ayla. Eu devia ter estranhado a ausência de Elizabeth. Elajamais perderia esses eventos, não quando adora uma oportunidade de seexibir para as câmeras e vez ou outra encontrar um pobre infeliz para darpropósito a sua natureza abominável de harpia.

Ayla costuma não aprovar esse tipo de comportamento, mas nãodiscute.

Subo para o segundo andar onde é mais silencioso e ligo para o númerodo celular de Elizabeth, creio que pela vigésima vez hoje. Estouverdadeiramente preocupado. Algo deve ter acontecido. Ela não sumiriadessa maneira, sem avisar a ninguém.

É o tipo de coisa que eu faço, não ela.E esperançoso, aguardo que ela vá atender, mas depois de uns segundos

a ligação vai parar na caixa postal.Droga, garota!Deixo uma mensagem curta utilizando um tom urgente como tenho

feito durante todo o dia e retorno para o salão da festa. Ayla e Henry jáestão se despedindo de algumas pessoas. Sem querer preocupá-la agoracom uma resposta negativa, eu sigo ao bar em frente à pista de dança paraesperar a ligação de Elizabeth. Está mais vazio no momento, os doisespaços.

"SexyBack" de Justin Timberlake está tocando para dois casais debêbados, que dançam exageradamente. Eu reviro os olhos para a cenaestúpida conforme puxo o banco alto a fim de me acomodar e peço um

gim-tônica ao barman.Ele atende o meu pedido com eficiência, deixando o copo e uma porção

de castanhas e azeitonas no balcão de mármore branco. E posteriormentese retira para me deixar sozinho...

Bem, não exatamente sozinho.Aurora surge a um banco de distância de mim e também é recepcionada

calorosamente num piscar de olhos. Sua voz é macia e delicada aosolicitar uma bebida igual a minha, e percebo o barman, que retornou, setornar ainda mais atencioso. Ela podia ser menor de idade e ele aindaassim a serviria.

Tento ignorá-los. Deposito meu iPhone em cima do balcão e ficoolhando para ele vez ou outra, à espera da ligação de Elizabeth. Não sei oque farei se ela não me retornar ainda hoje. Não tenho ideia de ondeprocurá-la. Provavelmente eu e Ayla fomos as últimas pessoas que a...

Não.Ergo a cabeça, o olhar, sentindo a ficha cair, aos poucos uma certeza se

formando. Não fomos os últimos a ver Elizabeth. É claro que não. Olhopara o lado ‒ para Aurora ‒ e flagro sua atenção em mim. Então melembro do que ela disse no final de nossa conversa na varanda.

O aviso!Desgraçada.‒ Não consegue ficar longe, não é? ‒ implico propositadamente para

iniciar uma conversa.‒ O que é que eu posso dizer? ‒ Ela sorri. ‒ Fiquei com sede. ‒ Balança

o drinque.Mentirosa.‒ Você não parece bem ‒ prossegue ela, apontando para mim com o

copo. ‒ Qual é o problema?Você.‒ Uma garota está me fazendo perder a cabeça ‒ respondo.‒ Humm ‒ murmura ela, rindo. Sabe a quem me refiro. ‒ Bonita, eu

imagino.‒ Sobrenaturalmente bonita ‒ corrijo. ‒ De tirar o fôlego, sabe? Parar o

trânsito. Roubar a cena.‒ Uau. Ela parece incrível.

‒ Sim, sim. É uma vadia também ‒ falo, e o sorriso dela fraquejainstantaneamente. ‒ Falsa. ‒ Rio por dentro. ‒ Cínica. ‒ Inclino o rosto. ‒Desiquilibrada e... ‒ Faço uma pausa. ‒ E etecetera, e etecetera, eetecetera...

‒ Eric...‒ Não, espera aí. ‒ Suspendo a mão para silenciá-la. ‒ E sabe o que

mais? Ela realmente pensa que sabe muita coisa sobre mim, que pode mecontrolar com algumas ameaças. Coitada. ‒ Suspiro. ‒ Então o que vocêacha? ‒ pergunto de um jeito curioso e acalorado. ‒ Devo arranjar umjeito de fazê-la engolir as próprias palavras?

‒ O que eu acho ‒ diz Aurora, sorridente ‒, é que você tem um jeitomuito estranho de dizer que está perdidamente atraído por ela.

Eu rio baixinho, sarcástico. Cerro e descerro os dedos. Rio de novo.Apanho o copo no balcão e viro o líquido inteiro na boca. Encaro Aurorae sua petulância. Não vou mais prolongar essa conversa.

‒ O que você fez com Elizabeth?Estou muito tranquilo, muito gélido, muito contido. O ódio procura

uma brecha no meu corpo para se revelar e, como não encontra, começa apulsar quente sob minha pele. Como um coração batendo. Cheio de vida.Não consigo explodir. É o sangue de harpia agindo pela primeira vezcomo devia, reprimindo a violência do meu instinto.

‒ O que você fez com Elizabeth? ‒ pergunto, de novo, porque Auroraestá rindo e ainda não me respondeu.

Minhas mãos estão frias como um bloco de gelo, fechadas em punhos.‒ Você se preocupa mesmo com ela, hein? ‒ diz Aurora com malícia,

bebe um gole do gim. ‒ É curioso. O que há entre...‒ Responda a minha pergunta ou juro por Deus que...‒ O quê? ‒ rosna ela, saindo do lugar. Perde a paciência enfim. ‒ O que

você vai fazer, Eric? ‒ pergunta. Dá risada. Risada fria, cínica. ‒ Ah, não.Espera aí. Você vai me matar ‒ adivinha ela e parece se divertir com isso.‒ Você nunca aprende, não é? É impressionante. O mesmo caminho daminha morte será o seu. Não pode me matar, sua aberração.

‒ O que. Você. Fez?Estou fora do banco, tremendo dos pés à cabeça, por um fio de fazer

uma grande besteira. Intencionalmente. E não me importa quem esteja

olhando. Os cílios de Aurora se agitam com minha aproximação súbita;traços de medo e desafio misturam-se no seu rosto que se ergue.

‒ Ensinei-lhe a não mexer com quem está quieto ‒ responde ela, hostil‒, e principalmente com quem não conhece.

‒ Onde ela está?!‒ Engasgada com a própria língua. Talvez‒ Sua...Agarro o braço dela sem pensar e quase no mesmo instante alguém

pressiona o meu. É Sam, uma sombra nada amigável no rosto e um olharque me deixa profundamente ofendido. Só não lhe dou um soco na carapor pura consideração. Ficamos nos encarando até que ele rosna:

‒ Quantas vezes preciso lhe dizer para ficar longe?Um arrepio me percorre, enervante, agudo. Detesto a entonação dele.‒ Tire suas mãos de mim, Sammy. ‒ É um aviso.‒ Então solte o braço dela ‒ ordena ele, aborrecido e áspero. ‒ Agora,

Eric. Vamos.Eu obedeço mesmo sem vontade. Afrouxo os dedos, recolho o braço

estendido. Aurora cai para trás no banco, a mão cobrindo a marca quemeu aperto causou. Seu rosto está pálido agora, estampando susto,confusão; e os olhos estão cheios de lágrimas, desnorteados.

É muito cinismo para uma pessoa só.‒ Sam? ‒ ela o chama, a voz embargada pelo choro e parece mal

suportar continuar em pé.Meu irmão gira nos calcanhares, ágil, suas mãos voando para o rosto

dela, afastando os cachos do cabelo, checando cada centímetro de sua peleexposta.

‒ Você está bem?‒ Eu... eu não sei. Por favor... Eu não sei o que está acontecendo

comigo ‒ balbucia ela, ofegante, o olhar agitado disparando para todos oscantos.

Fala sério!‒ Eu s e i o que está acontecendo com você ‒ falo sarcasticamente,

intrometendo-me. ‒ Você é maluca, cínica e psicopata. Não tem um pingode...

‒ Pare!

Sam me empurra com ferocidade quando grossas lágrimas começam aescorrer pelas bochechas pálidas de Aurora, e vira-se novamente parasegurar o rosto dela entre as mãos.

Fico dividido entre vomitar e me atirar pela varanda lá de cima.‒ Ei, olha para mim. Está tudo bem. Tudo bem ‒ assegura ele em voz

branda, fazendo-a ficar de pé. ‒ Não fique com medo. Você está bem. Estámuito bem. ‒ Limpa suas lágrimas. ‒ Vá. Espere por mim no salão. Estareilogo atrás de você. Vá.

Um afetuoso beijo de despedida na testa, e Aurora se afastacambaleando. Meus dentes trincam por vontade própria, minhamandíbula, enrijecendo. Desprezo essa reação incongruente.

Sam se volta para mim, todo sob controle. Não o reconheço, apesardisso. O garoto que está diante de mim não é o meu irmão mais novo.Esse semblante ‒ mortalmente sombrio, mortalmente calmo ‒ não lhepertence.

‒ Agora somos só eu e você ‒ diz ele.E não é uma boa ideia ‒ não com os nossos ânimos tão exaltados ‒, mas

a curiosidade vence a prudência. Não posso mais esperar para saber o queestá errado entre nós, e ele precisa conhecer a verdade sobre Aurora.

‒ Vamos conversar ‒ murmuro, determinado.Ele sai marchando para além do espaço da pista de dança, vira em um

corredor à direita e abre a primeira porta que encontra, forçando amaçaneta para checar se está destrancada. Um clique e a porta é aberta.Nós adentramos num quarto sem janelas e cheio de caixas de papelãoempilhadas do piso ao teto.

Sam acende as luzes, esmurrando os interruptores, e segue para o meiodo quadrado, de costas para mim, enfiando uma das mãos no bolso dacalça e a outra massageando o pescoço. Reconheço a tensão que ele estásentindo; é a mesma que atinge meu corpo agora.

Fecho a porta em silêncio e espero que ele se vire. Contudo, minhapaciência se esgota antes do primeiro sessenta segundos, e eu grito seunome duas vezes, peço que olhe para mim.

Ele o faz.‒ Preste muita atenção, Eric. Porque se você levantar um dedo contra

Aurora de novo... se você ousar machucá-la... acredite em mim, irá se

arrepender.Suas palavras duras e agressivas são como uma sucessão de socos no

meu estômago. Demoro a me recuperar do nocaute.‒ O quê?! ‒ exclamo, abatido e perplexo, sem estar gritando como eu

gostaria. ‒ Não, não, não. Espera aí. Você sequer ouviu o que disse?‒ Você ouviu?Outro soco.‒ É inacreditável.‒ Fique longe dela, Eric. Não vou dizer outra vez.‒ Espera aí. Qual é o seu problema, afinal de contas?‒ Qual é o meu problema? Qual é o s e u problema?! ‒ dispara ele,

apontando na minha direção. ‒ Elizabeth some por algumas horas e vocêvolta a agir como um delinquente...

‒ Pare! Por que você está falando de Elizabeth agora?!‒ Por que eu não falaria dela?O olhar de Sam assume uma obscuridade de recriminações, frustração

exalando de seus poros. Uma paralisia se espalha por meus membros,prendendo-me ao chão, culpa e mais culpa se arrastando em minhadireção, mil delitos vindo à tona. Oh, não.

‒ Acha que eu não sei o que vocês andam fazendo? ‒ pergunta ele,acrescentando um toque de sátira a voz. ‒ Acha que eu não sei o motivoda sua... calmaria zen budista de ultimamente?

Um nó se forma na minha garganta, apertando minhas cordas vocais.Engulo em seco.‒ Não sei do que está falando ‒ repito quase as mesmas palavras que

disse a Aurora.Ele ri baixinho e descrente. Pressiona o punho contra a boca. Com

raiva. Respira com força. Afasta a mão para apontar o dedo indicadorpara mim.

‒ Você deve achar que eu sou idiota, não é?‒ Sammy, é claro que não...‒ Conte sobre os dias na clareira ‒ exige ele, enganosamente sereno. ‒

Conte sobre as armações e sujeiras que faz no escuro com Elizabeth.Ah, merda, merda, merda...‒ Não é nada disso que você está pensan...

‒ Não? ‒ ele me corta, quase grita. ‒ Porque eu vi, Eric. Eu vi com osmeus próprios olhos Elizabeth dar o sangue dela para você ‒ diz ele, emeu queixo tomba de susto. ‒ Uau, quer dizer... foi muito solidário daparte dela ‒ ele elogia, irônico. ‒ Mas como você pôde? Depois de tudoque acont... Eu não entendo. O fundo do poço foi pouco para você? ‒ eleme pergunta, mal consegue conter sua frustração. ‒ Já não acha quechegou longe demais? Que passou o suficiente do normal?

Desvio o rosto para um ponto qualquer, incapaz de suportar a decepçãono semblante de Sam. Ele espera que eu diga alguma coisa, mas estou meperguntando, dentro da minha cabeça ferrada, onde está minha voz, e, aomesmo tempo percebo que, na realidade, não sei o que dizer, não seicomo me defender. Porque não há defesa para o que eu fiz, pelo menosnão uma que meu irmão vá querer ouvir e entender.

Assim, respiro fundo.‒ Não estou fazendo mais ‒ consigo falar, murmurando. ‒ Eu juro... Foi

apenas uma vez... um teste... Elizabeth quis...‒ Não me interessa, cara ‒ diz ele, como se estivesse exausto. ‒ Não me

interessa ‒ diz, de novo. ‒ Se você quiser continuar nessa estradamiserável, vai em frente. Mas quando as coisas saírem do controle, porquenós dois bem sabemos como isso termina, não ouse encostar um dedo emAurora. Deixe-a em paz, Eric. Ela não...

‒ Ela não o quê?! Pare de protegê-la, maldição. Essa garota não é aprincesa de contos de fadas que você pensa ‒ digo, raiva retornandoà minha voz. ‒ Você está errado sobre ela.

‒ Você está! ‒ grita ele, apontando um dedo acusador para mim. ‒ Vocênão a conhece. Você jamais se permitiu conhecê-la. Nem por segundo.

‒ Dá um tempo!‒ Não sabe o quão doce, meiga e gentil ela é.‒ Sei que você é um completo imbecil! Apaixonou-se por ela!Para aumento da minha irritação, ele ri, morde o lábio e fita o teto.

Olha de volta para mim como se eu fosse um retardado e merecesse umsoco no queixo.

‒ Sua mente é tão podre ‒ diz ele, com nojo. ‒ Tão, tão podre. Epequena. Eu não estou apaixonado por Aurora! ‒ grita. ‒ Nunca estive.Eu amo estar com ela e durante todo esse tempo, me senti culpado por

não tê-la protegido na boate como deveria, fiquei com medo de que você eElizabeth estivessem tramando alguma armadilha. Tive que me colocar porperto para protegê-la. ‒ Seu olhar fica mais intenso e alarmante. ‒ Nãovou permitir que encostem um dedo nela, não vou permitir que ninguéma machuque. Nem mesmo você. Então... ‒ ele se esforça para falar, massuas palavras são categóricas. ‒ Sai fora do caminho dela, irmão, ou... ouvai ter que brigar comigo.

Uma risada sinistra e incrédula escapole de minha boca. Eu esfrego osolhos com as pontas dos dedos, corro as mãos nos cabelos e agarro minhanuca.

Cara.‒ Você está fazendo de novo ‒ sussurro e não consigo não soar

magoado; triste, até. ‒ Por que estou tão surpreso? ‒ indago só para mim.‒ Surpreso com o quê?‒ Com você! Você que está escolhendo alguém em vez do seu irmão!‒ Ela é como uma irmã para mim! Ela me escuta e me entende de um

jeito que você nunca se deu ao trabalho!E aí está: mais uma vez ele me chamando atenção para minha

ineficiência como um parente. E não posso dizer que está errado. Nãoposso negar minha ausência em sua vida, mesmo que ele não entenda oque se passa dentro de mim, as coisas com que tenho de lidar.

‒ Sinto muito, ok? ‒ Abro os braços, assumindo. ‒ Sou um péssimoirmão, o pior do planeta. Eu admito. Mas isso não exclui o fato de queessa garota é exatamente o oposto do que você diz, e está sendo idiota poracreditar na inocência de alguém que está mentindo na sua cara.

‒ Não venha me falar de quem está mentindo para quem!‒ Ela sabe sobre nós , Sam! ‒ conto enfim, antes que o assusto seja

redirecionado mais uma vez. ‒ Ela sabe sobre a nossa verdadeira família!Ela sabe sobre tudo!

Ele se desequilibra para trás quando termino de falar, pestanejandocom a boca entreaberta. Está claro como se recusa terminantemente aacreditar.

‒ Você está mentindo ‒ diz ele, sem dúvida, a voz soando abafada.‒ Eu juro pela memória de nossa mãe que estou falando a verdade. ‒

Imploro com o olhar para que ele acredite em mim, em vez de me sentir

ofendido com a desconfiança.Sua feição se altera após isso ‒ minha jura em nome da pessoa mais

sagrada da nossa vida ‒, e me sinto parcialmente aliviado. Talvez ele medê um voto de confiança agora.

‒ Não é possível. ‒ Sam nega com um gesto de mãos. ‒ Ela jamaispoderia saber de algo assim. Ayla destruiu todos os registros da nossafamília quando assumiu o sobrenome Harley. Não há mais nada que nosligue...

‒ Isso não é verdade ‒ replico, e aproveito para revelar os detalhes daminha conversa com Aurora.

Durante toda a narrativa, Sam não para de balançar a cabeçanegativamente, andando de uma ponta a outra do quarto em umnervosismo absoluto e preocupante. É difícil dizer se ele está acreditandoem mim ou não, e isso me deixa um pouco apreensivo, para não dizerapavorado. Quando termino de contar tudo, aguardo para ver se elepretende recomeçar com as acusações ou se vai me ajudar a dar uma liçãoem Aurora.

A espera é uma agonia.‒ Isso é impossível ‒ diz ele para mim ou para si mesmo ‒ eu não sei ‒

ainda em movimento pelo quarto.Faço-o parar de andar pousando as mãos nos seus ombros, e o viro de

modo a poder encarar seus olhos vidrados. Ele não me empurra paralonge, e a minha confiança se expande.

‒ Ei, eu entendo. Nada disso faz sentido. Nosso pai envol...‒ Aurora jamais agiria desse jeito ‒ sussurra ele, e ainda não sei se está

se dirigindo a mim, e de repente não importa porque ele está falando algoque eu não esperava.

‒ O quê?!‒ Essa garota que você descreveu... não é ela ‒ continua ele, focando em

mim.‒ Ah, qual é, Sam!Saio de perto dele num ímpeto, dando um soco no ar. Estou pasmo e

furioso; o ódio ainda preso dentro das paredes do meu corpo, medeixando agitado, saturado. A ponto ‒ mas nunca o suficiente ‒ deexplodir.

‒ Não acredito que você vai continuar defendendo essa garota fria ecalculista ‒ falo aos berros.

‒ Ela não é assim!‒ Você não sabe quem ela é ‒ continuo gritando. ‒ Você achava que

sabia, mas se enganou! Aceite isso.Ele me olha de cara feia, irredutível.‒ Por que eu deveria acreditar em você?‒ Porque eu jamais inventaria algo assim ‒ respondo rispidamente. ‒

Ela é perigosa, cara. Ela é forte. Sobrenaturalmente forte ‒ enfatizo. ‒ Elaconseguiu me incapacitar pelo pescoço. Ela falou em quebrar todos osossos do corpo de Elizabeth. Do que mais você precisa para...

Um barulho altíssimo atravessa as paredes do quarto, interrompeminha sentença e roubando o ar dos meus pulmões. Sam olha para mimcom um terror estampado nos traços faciais e precipita-se à saída.

Eu sigo atrás.Nós cruzamos o corredor, o bar e a pista de dança como um jato,

seguindo o próximo grito ‒ o grito dela. E quando desembocamos no salãode festa vazio, congelamos.

No topo da escada, Aurora está de joelhos diante de Elizabeth, as mãosna cabeça e um semblante de demasiada dor.

E nesse momento, odeio me sentir como se estivesse desmoronando,odeio o que acontece com meu coração, odeio sentir o medo que mecompele a sair impetuosamente mesmo sabendo que é tarde demais.

Elizabeth já empurrou Aurora com as mãos e desapareceu à medida queo corpo da garota está se chocando em cada degrau, até parar aos pés daescada e aos meus pés.

Morto.

Aurora

"Ahhhhh!!!"

Tum-tum! Tum-tum! Tum-tum! Tum-tum! Tum-tum! Tum-tum! Tum-

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Ahhhhh!!!

Eric

"Quão doente da cabeça você está?"

Ela não está morta.

As palavras indesejadas assomam na minha mente de súbito conformeacelero o I8 e costuro os carros pela avenida Meyers, a caminho deencontrar Elizabeth.

A música alta é uma tentativa de reprimir os pensamentos zumbindo erodopiando na minha cabeça; e redirecionar meu foco para o queinteressa, mas está sendo impossível. Aperto o volante, desistindo, e amesma frase se repete em meu cérebro como um disco arranhado.

Ela não está morta.Ela não está morta.Não mais.Se é que em algum momento esteve; muito embora, posso jurar que

escutei o silêncio fúnebre de seu pulso, a ausência quase palpável de suarespiração. Posso jurar que não existia vida nenhuma no seu corpoimóvel. Entretanto ‒ por sorte ou algum milagre divino ‒, seu coraçãovoltou a bater dentro do peito, de um segundo para o outro, bombeandosangue.

E meu corpo ‒ totalmente contra a minha vontade ‒ afundou num marde alívio e esperança, e trinta segundos depois subiu à superfície paraboiar em um conforto irreprimível pela promessa não dita de que elaficaria bem, afinal de contas.

E u odiei isso ‒ essa reação enervante e errônea. Confusa. Intensa.Profunda. Cada dia que passa tenho certeza de estar sofrendo algumdistúrbio mental. Pois apesar de tudo ‒ dos remotos e recentes

inexplicáveis acontecimentos ‒, eu continuo impossivelmente... conectadoa Aurora. Indiretamente protegendo-a, mesmo quando desejo sua morte.

E não sei como agir de outra forma, não sei como me sentir diferente.Não sei como não me importar. E por mais que eu me esforce, no últimoinstante... sempre sou vencido por um sentimento que nem tenhocoragem de nomear. É tão incontrolável e... genuíno. Não fazia ideia deque era capaz de experimentar algo assim.

Puro.Altero a rota dos meus pensamentos reflexivos ao me lembrar de meu

irmão... de sua raiva. Ele ficou tão abalado quanto eu ao ver Aurora quasemorta e possesso porque tem absoluta certeza de que faço parte do planodiabólico de Elizabeth para assassinar sua melhor amiga.

Você só queria me distrair, rosnou ele, com o dedo apontado para mim,logo após Aurora ter sido colocada na ambulância com uma fantásticahistorinha justificando sua queda na escada.

Eu não tive como me defender da acusação de Sam. No estado em queele estava, as chances de que acreditasse em qualquer coisa que saísse daminha boca eram mínimas. E no fundo sei que não posso culpá-lo porisso.

Então deixei que seguisse o carro da ambulância junto com Henry eAyla, e em seguida entrei no I8.

Imerso em meus pensamentos, eu não fazia ideia de para onde estavadirigindo até dez minutos atrás, quando recebi uma ligação um tanto quedesesperada de Elizabeth.

Admito que tive de ignorar por um minuto a vontade infantil de deixara chamada ir parar na caixa postal, mas no final acabei atendendo ‒ maispor curiosidade de entender seu sumiço e a cena escandalosa com Auroranas escadas do que por meu desejo incompreensível de xingá-la poraprontar aquilo.

Contudo, não tive oportunidade de fazer nenhuma dessas coisas. Elaparecia estar no volante e falava depressa, pedindo aos rosnados para eu irencontrá-la imediatamente; e então, do nada, um barulho alto abafou suafala e a linha ficou muda. Minhas tentativas seguintes de retornar aligação foram infrutíferas.

Algo sério aconteceu ‒ foi meu primeiro pensamento, seguido de um

pressentimento que me fez instintivamente pisar o pé no acelerador.Agora, estou adentrando no complexo privativo, o I8 disparando feito umjato pela estrada repleta de flores que caíram das árvores.

Na metade do caminho, sou forçado a diminuir a velocidade ao avistaruma árvore caída bloqueando a passagem, arbustos bagunçados namargem da pista e o carro de Elizabeth parado em uma posição estranhacom a porta do motorista semiaberta.

‒ Ah, droga.Paro o I8, abro a porta e saio correndo em direção ao veículo de

Elizabeth, meus olhos e ouvidos atentos a qualquer aproximaçãosorrateira.

Porém.Paro subitamente com um novo agouro a subir e descer em minha

espinha.Estou sendo observado!Sim. Estou sendo observado. Posso sentir a pressão de um olhar atento

marcando meus passos a distância, posso ouvir a respiração e osbatimentos cardíacos e ritmados da pessoa... ou coisa?

Não.Este cheiro... avelã. Doce. Suave. Sei que já o senti certa vez.É humano!Giro no lugar a fim de posicionar-me na direção que meu olfato

aguçado me levou, mas minha atenção é desviada e capturada pelasimagens de Elizabeth caída nos bancos e o para-brisa do carrocompletamente destruído.

Que merda aconteceu aqui?Ainda vigiando minha retaguarda, rumo para socorrê-la, saltando o

tronco de árvore que nos separa.‒ Elizabeth... ‒ Puxo-a pelo braço, fazendo-a se sentar e virar para mim.Levo um susto. Ela está tão pálida!Isso não devia acontecer com uma harpia.‒ Elizabeth, acorde. Ei, vamos, acorde.Aplico tapas em seu rosto para ajudá-la a despertar ao mesmo tempo em

que checo o restante de seu estado físico: há manchas vermelhas por todoo abdome e um fluxo de sangue profuso ensopa o vestido azul-marinho.

Mas que porra é essa?Sua pele não está se curando!‒ Ah, não.‒ Eric ‒ ela geme meu nome, forçando os olhos a se abrirem,

procurando meu rosto. ‒ É você? Você está aqui...‒ Sim. Eu estou aqui. Bem na hora, hein?‒ Graças aos Deuses... ‒ sussurra ela, o sorriso fraco de alívio. ‒ Graças

aos Deuses ‒ sussurra de novo, desorientada, tremendo bastante.Parece prestes a desmaiar novamente. Preciso mantê-la acordada.‒ Ei, ei, olhe para mim. ‒ Seguro seu rosto entre os meus dedos

delicadamente. ‒ O que aconteceu? Por que você está assim? Quem fezisso com você...? Elizabeth?

‒ As balas... por favor... tire as balas... ‒ ela começa a implorar à medidaque pouco a pouco perde os sentidos. ‒ Você precisa... precisa tirar asbalas... Eric, por favor ‒ ela não para de dizer isso até que desfalece emmeus braços.

‒ Droga!Por sorte, consigo ampará-la a tempo quando desmaia e recosto seu

corpo inerte ao banco do carro para poder despir meu casaco e lançar aoredor de seus ombros. Sua pele está incomumente fria, úmida. Épreocupante.

Não sei o que está de fato acontecendo. Há algo nessas tais balas ‒ algovenenoso, talvez letal.

O quanto antes eu tirar isso de dentro dela será melhor.Apressadamente ‒ e antes de carregá-la ao banco do carona do meu

carro ‒, eu retiro a árvore para desimpedir a rua, fecho a porta doautomóvel de Elizabeth e o empurro para margem da estrada. Lidarei comele em outro momento.

Com uma olhadela ao redor e uma pitada de instinto, sei que não estoumais sendo observado.

Aquele cheiro familiar...Tenho certeza de que já cruzei com ele uma vez e posso apostar meu

possante que se trata da mesma pessoa que atacou Elizabeth.Mas quem?Quem?

ELA AINDA ESTÁ INCONSCIENTE quando chegamos em casa, e levo-a às

pressas para o seu quarto. O sangue não para de escorrer dos ferimentos,mas sei o que devo fazer para consertar isso. Imagino que o processo nãoserá nem um pouco agradável, mas não posso deixá-la com esses projéteissuspeitos ‒ e aparentemente perigosos ‒ dentro do corpo. Essas balasestão impedindo que sua pele cicatrize. Só preciso retirá-las e ficará tudobem.

Eu espero.No quarto de Elizabeth, deito-a com cuidado na cama, depois me afasto

para caçar um objeto que me permita extrair os projéteis. Suspeito que elatenha alguma coisa no seu arsenal, que deve estar escondido em algumlugar por aqui, e para minha sorte ‒ ou sorte dela ‒ não demoro aencontrar o possível lugar: uma gaveta no armário do banheiro que nãoquer abrir.

Só preciso forçar um pouco e o compartimento se abre, revelando umaseleção de utensílios médicos: tesouras cirúrgicas, seringas, bisturis,agulhas, alicates, pinças... Pinças!

Parece perfeito. Apanho a que acredito servir para o tipo de trabalhoque estou prestes a realizar e retorno ao quarto, depois de incluir gazes esoro fisiológico ao meu kit de emergência amador.

Indo à cama, arrasto uma cadeira junto comigo, que uso para meacomodar, e deposito em cima do criado-mudo os objetos que peguei.Elizabeth permanece desmaiada, seus membros espasmandocontinuamente.

Vamos lá, Eric. Hora do show.Sem pudores, rasgo a parte superior do vestido de Elizabeth, deixando-a

completamente nua da cintura para cima. Por um momento mais longodo que o necessário, me flagro admirando-a por inteira ‒ seu rosto, suapele, suas curvas ‒, então me repreendo em pensamento e começo atrabalhar.

Limpo todo o rastro de sangue usando gazes e o soro fisiológico. É umaatividade suja, mas necessária, e me permite identificar os sete buracosentre a caixa torácica e o abdome. Assusto-me com a aparência da pele aoredor dos lugares onde a bala penetrou. Está espumando, derretendo,

como se algum tipo de ácido tivesse entrado em contato.Rapidamente, apanho a pinça no criado-mudo e a insiro na abertura até

sentir o corpo estranho entre as pontas. Elizabeth geme e se contorce nacama quando puxo a bala para fora cautelosamente.

A aparência transparente do projétil me intriga, contudo decido deixaras análises para depois ao reparar que a pele dela está se refazendo, apesarde continuar levemente vermelha.

Acelero a atividade, e cinco minutos depois todas as balas estão fora docorpo de Elizabeth, os espasmos cessaram e ela já aparenta uma melhoraexterna.

Está menos pálida, o que já é um bom sinal.Respiro fundo e me dirijo ao banheiro para lavar as mãos, levando

comigo uma das curiosas balas.Posso estar enganado, mas me parece um projétil comum, à exceção da

superfície transparente que mais se assemelha a um compartimento.Talvez houvesse alguma substância tóxica ali dentro, o que explica pelomenos a reação que causou no corpo de Elizabeth.

Mas que substância derrubaria uma harpia daquele jeito? Até onde aTrindade testou como arma, apenas a prata é capaz de feri-las seriamente.

Deixo a bala em cima do balcão da pia e ligo a torneira. Ponho as mãossujas embaixo da água corrente e esfrego os dedos uns nos outros paralimpar o sangue. Terminado isso, eu puxo uma toalha, seco as mãos eviro-me para sair do banheiro.

Elizabeth está parada na entrada usando apenas saltos altos e calcinhade renda.

Porra!‒ Acho que você me deve um vestido novo ‒ diz ela, perfurando-me

com o olhar de astúcia.Fico desejando e não desejando desviar os olhos de seu corpo despido.‒ Salvei sua vida. Não lhe devo nada ‒ rebato, levemente impassível, e

viro de costas como desculpa para devolver a toalha de mãos ao gancho.Repreendo a mim mesmo novamente por cobiçar Elizabeth dessa

maneira.‒ Tem razão. Você salvou minha vida. Muito obrigada, Eric ‒ agradece

ela atrás de mim, a voz mansa.

‒ Não há de quê.Fico de frente. Elizabeth está a um palmo de distância agora.Porra!‒ Você parece nervoso ‒ comenta ela, me observando, e estende o braço

para apanhar o robe pendurado às minhas costas, sem romper o nossocontato visual.

Ela se veste conforme aguarda minha resposta.Graças a Deus!‒ Foi uma noite e tanto. O que aconteceu lá na estrada? ‒ pergunto,

impondo um espaço seguro entre nós.‒ Uma garota mascarada atirou nos meus pneus ‒ conta ela, amarrando

o laço do robe. ‒ Eu perdi o controle do carro, obviamente. E depois nóslutamos e... bem, você sabe o resto. ‒ Ela olha à bala em cima do balcão.

‒ Você a conhecia?‒ Talvez sim. Talvez não. Ela estava usando capacete. Foi bem cautelosa

‒ fala Elizabeth, impressionada, como se parabenizasse a garota por suainteligência.

Não parece desapontada ou com raiva. Isso me preocupa um pouco. Elaé de armar um banho de sangue quando quer se vingar e faz tudo emsilêncio.

‒ Você quase partiu dessa para melhor, sabia? ‒ provoco a fim de incitá-la a revelar seus planos.

‒ Quase ‒ destaca ela, sorrindo. ‒ Ia sentir saudades?‒ Dificilmente.‒ Mentiroso.Ela revira os olhos. Eu sorrio.‒ A garota que lhe deu uma surra... não era uma harpia, era? ‒

pergunto, girando a bala em cima do balcão.‒ Não. Mas tampouco era humana.‒ O quê? ‒ Levanto o olhar com rapidez.Será que meu faro se enganou?‒ Nossa luta ‒ diz Elizabeth ‒ foi um combate de igual para igual. Ela

era super habilidosa, super forte. Se eu não tivesse cruzado com um tiposemelhante de força há poucas horas, teria ficado impressionada.

‒ Como assim?

‒ Aurora ‒ responde Elizabeth, prontamente. ‒ Eu a confrontei nobanheiro. Ela revidou.

‒ E?‒ Acordei do lado de fora do salão. Como fui parar lá? Não faço ideia.

Mas você estava certo esse tempo todo. A garota não é normal.Nem um pouco.‒ Foi por isso que você a lançou escada abaixo? ‒ pergunto sem

conseguir controlar meu estresse.Ela abre um sorriso maquiavélico.‒ Como está a bonequinha de luxo? Já encomendaram um caixão cor-

de-rosa para ela? ‒ pergunta sarcasticamente e me dá as costas para ligar abanheira.

‒ Você é incorrigível. ‒ Arrasto a mão nos cabelos, incomodado com amaneira inquietante que meu interior parece estar ruindo. ‒ Você émaluca, Elizabeth.

‒ Quer saber? ‒ Ela fica de frente com um giro rápido. Toda a diversãose foi. ‒ Eu lhe fiz um favor. Tenho certeza de que vai me agradecerdepois.

‒ Favor? De que diabo está falando, afinal?!‒ Aurora é um monstro, Eric! A força com a qual ela me enfrentou no

banheiro... Não é natural. Eu vi e senti o que ela pode fazer.Eu também vi, não digo à Elizabeth.‒ Talvez seja hora de considerarmos aquele mito como verdade. Acho

que explica exatamente todos os ataques que ela tem sofrido e...‒ Esquece essa droga de mito por um instante, ok? Ayla não está nada

feliz com o que aconteceu, Sam não está feliz e além do...‒ Eu não me importo. Fiz o que fiz porque Aurora Grace Harvelle é

uma vadia dissimulada...‒ E não está morta ‒ conto para que tenha noção do que está por vir.Mas Elizabeth não se surpreende.‒ Isso não me preocupa, zangadinho ‒ fala ela, ficando de costas para

fechar a torneira da banheira já cheia. ‒ Honestamente, tenho assuntosmuito mais urgentes com que lidar.

Quando se vira, eu vejo a sombra maligna de sua outra identidadecruzar-lhe o rosto, enchendo os olhos de nada mais do que escuridão. É

de arrepiar. Mas ela está se esquecendo das balas. Provavelmente existemais de onde veio aquelas.

‒ Não ouse...‒ A garota mascarada ‒ diz Elizabeth, perigosa como o inferno. ‒

Guardei o seu cheiro nojento. E acredito em mim quando digo que vouprocurá-la até debaixo do chão se for preciso, e quando eu a encontrar,farei questão de arrancar sua pele com uma faca cega, até que me digaquem é e por que me atacou.

Puta merda!Posso sentir sua frustração velada agora, vindo à tona com a promessa, a

ameaça. Penso em dissuadi-la dessa loucura de vingança, mas desisto,sabendo que não vai funcionar mesmo. Quando essa mulher põe umaideia na cabeça, não há nada no universo que a faça voltar atrás.

‒ Você devia vim comigo ‒ sugere ela, a esperança pouco escondida emseus olhos. ‒ Vamos procurar respostas juntos. Sei que as deseja tantoquanto...

‒ Nem pensar, eu... Não posso. ‒ Sam piraria. E a última coisa que querono momento é me indispor ainda mais com o meu irmão. ‒ Mas boa sorte nasua caça, Elizabeth. Espero que encontre o que procura.

‒ Ei, espera. ‒ Ela segura meu braço, impedindo-me quando tento sairdo banheiro, e afasta meus cabelos da testa. ‒ Está tudo bem com você?

Sua preocupação é sincera.‒ Não. ‒ Balanço a cabeça. ‒ Como eu já disse, foi uma noite daquelas.

Só preciso tomar um banho e...Paro de falar quando ela acena para a banheira com um semblante

descarado.Não faz isso, garota.‒ Não vou entrar aí com você, Elizabeth.‒ Por que não? ‒ Ela chega mais perto de mim, provocante, e agarra as

abas da minha camisa social. ‒ Vamos lá, é divertido. Eu nunca trouxe umcara aqui. Você seria o primeiro e... ‒ Uma de suas sobrancelhas searqueia, maliciosamente. ‒ Vocês, homens, adoram ser os primeiros, nãoestou certa?

Seguro o sorriso para não encorajá-la.‒ Sabe do que eu adoro? ‒ pergunto, apertando a ponta do seu queixo.

‒ Adoro a facilidade de resistir à sua perfeição, mesmo depois de já tercaído em suas garras, adoro ser o primeiro a consegui tal coisa. Emconsideração a Sam.

‒ Está perdendo seu tempo, meu querido. ‒ Ela revira os olhos. ‒ Seuirmão não está dando a mínima para nós dois. Não mais.

‒ Você está enganada.‒ Não esteja tão certo disso. Se bem que às vezes eu acho que você não

o conhece tão bem.‒ Sei que ele a ama e você não dá a mínima.‒ Talvez porque eu ame você!Sua veemência gigantesca me deixa desconfortável, apreensivo. Não

quero que ela comece com essa conversa novamente. No entanto...‒ Eu amo você ‒ continua ela. ‒ Sempre amei, e não sei como parar,

embora a verdade pura e cruel é que eu não quero parar. E não vou.‒ Por tudo que é mais sagrado, Elizabeth, não diga isso ‒ imploro. ‒

Você não deve me amar, e se tem uma grama de amor-próprio vai parar dealimentar esse sentimento. Eu sequer sirvo para alguém. E você tambémnão serve para mim. Sinto muito.

Desvencilho-me dela, me sentindo péssimo, e disparo para fora do seuquarto, antes que eu faça algo de que possa me arrepender depois.

DE PÉ NA VARANDA do meu quarto, observo as luzes de Íris em busca de

paz e tranquilidade para o meu espírito tumultuado. O vento agita meuscabelos, minha camisa aberta e me traz um fiapo de alívio, ao qual eu meagarro com todas as forças para não desabar.

Minha mente ainda está desvairada com os acontecimentos de hoje ànoite, e mesmo querendo esquecê-los, me sinto na obrigação de refletirsobre cada um deles, pois só assim chegarei a uma conclusão ‒ aquela quedecidirá meus próximos passos e colocará um fim nessa confusão toda.

Mas acho que não consigo fazer isso agora.Estou tenso. Inquieto. Preocupado.Sinto vontade de dormir e só acordar daqui a cem anos. Temo pela

decisão que terei de tomar, temo pelo que pode acontecer depois.Não recomece com isso, Eric.Esvaziando o copo de uísque em apenas um gole, eu volto à entrar

no quarto. Em seguida, paro, meu coração dando uma cambalhota dentrodo peito ao enxergar a figura de Sam no meio do cômodo. Ele parecefurioso, sem gravata e segura o paletó no ombro.

Isso não é bom.‒ Onde ela está? ‒ ele exige saber, me fuzilando com uma hostilidade

assombrosa.‒ No quarto ‒ respondo, sabendo muito bem de quem ele está falando.Sam ri, cético, e balança a cabeça.‒ Não. Não está, não. Mas, veja só... eu achei isto. ‒ Ele lança o paletó

com selvageria.Meu paletó!Amparo a peça de roupa sem tirar os olhos do meu irmão e imagino as

besteiras que devem estar passando pela sua cabeça.‒ Onde ela está, Eric? ‒ pergunta ele novamente, mais energético.Elizabeth!‒ Ela partiu... ‒ Sem se despedir. ‒ Ela partiu... foi atrás de uma garota

que tentou assassiná-la há duas horas com sete balas ven...Sam revira os olhos como se estivesse entediado, me levando a calar a

boca e pensar que talvez fosse melhor não ter dito nada.‒ Eu tenho que acreditar nessa baboseira? ‒ pergunta ele, meio

sarcástico, meio exasperado.‒ Só estou respondendo à sua...‒ Eu quero a verdade!‒ Essa é a verdade! ‒ grito de volta, avançando. ‒ E se acredita em mim,

droga, eu sugiro que pare com as perguntas.‒ Está bem. Eu vou parar ‒ rosna ele, pausadamente, controlando-se. ‒

Mas por favor ‒ continua ‒, quando falar com Elizabeth, diga para nuncamais voltar. Diga para desaparecer. Porque se ela cruzar as minhas vistas,eu juro por Deus que arranco aquela coisa podre que ela chama decoração e arremesso no mar.

Recuo à mágoa intratável em sua voz, nos seus olhos. É penetrantedemais e inacreditável.

‒ Você não fala sério ‒ sussurro por estar atônito.‒ Acha que não? ‒ rosna ele, amargo, arrogante.E mais uma vez eu não reconheço meu irmãozinho.

‒ O que diabo está acontecendo com você?! ‒ pergunto, frustraçãoaumentando meu tom de voz. ‒ Você não age assim, Sam. Não é dessejeito que você é. Eu pensei que você a amava, que se importasse com...

‒ Eu me importava! ‒ interrompe-me ele, gritando, o olharassustadoramente implacável. ‒ Eu me importava mais do qualquer um...Mas ela perdeu tudo... meu amor, meu carinho... quando dormiu comvocê!

‒ O quê?Choque, tontura e desespero assomam em meu corpo, as palavras de

Sam rodopiando na minha cabeça.Não. Não. Não. Isso não pode estar acontecendo.‒ Não. Tente. Negar ‒ ordena ele, vagarosamente, rosnando. ‒ Se

valoriza minha sanidade, não faça isso. ‒ Ele me olha sério. ‒ Já bastatodo o tempo que você passou mentindo na minha cara.

‒ Como... como descobriu? ‒ Quem lhe contou?‒ Eu vi... ‒ conta ele, tremendo de ódio, encarando meu rosto. ‒ Eu

vi... você deixou a porta do quarto aberta, e eu entrei... estava ansiosopara saber o que tinha descoberto sobre Aurora... mas não imaginei que...‒ ele se interrompe por não conseguir continuar, morde olábio, olha para o alto como se buscasse forças. ‒ Eu queria arrancar meusolhos com uma faca se isso me fizesse esquecer...

Droga!Meu rosto parece enrijecido feito uma rocha, uma enxurrada de

lembranças cortantes atravessando meu cérebro. Tento falar alguma coisa,mas nenhum som da minha voz se ouve.

‒ Sabe ‒ continua Sam, voltando a olhar para mim ‒, eu o encorajei avisitar Aurora naquele dia porque no fundo tinha esperança de que vocêvisse a garota incrível que ela é e esquecesse aquela história maluca desímbolo. Mas é claro que eu devia ter desconfiado que você já estavafocado demais nas suas próprias alucinações para perceber até mesmo oóbvio.

‒ Sam... ‒ consigo dizer, suplicando indisfarçadamente.‒ É tão triste ‒ diz ele. ‒ Sua paranoia... é tão triste. Eu sinto muito por

você, meu irmão. ‒ E me dá as costas.Obrigo meu corpo a se mexer quando noto que Sam está partindo.

‒ Ei, não, não, não. Espera. ‒ Corro atrás dele, desesperado, e ointercepto pelos ombros. ‒ Eu errei, eu sei que errei e isso me deixou malpara caramba. Mas eu posso explicar... Me deixa explicar ‒ imploro, eminhas palavras por si só já pedem perdão, assim como meu tom de voz.

‒ Não há nada que você possa me dizer que eu já não saiba! ‒ rosna eleao tentar não gritar, afasta-se. ‒ Há semanas venho reparando em como arelação de vocês tem mudado, em como olha para ela...

‒ Não é nada disso que você está pensando. Eu não gosto de Elizabeth,não dessa maneira.

Ele precisa acreditar em mim.‒ E como explica ela ter parado na sua cama?! ‒ grita Sam,

recriminando-me com o olhar e pressionando para que eu diga a verdade.‒ E como explica ter transado com ela?!

‒ Eu estava com Aurora na cabeça! ‒ solto, movido pelo julgamentopresente nas suas palavras, e logo em seguida desato a me justificar: ‒ Éloucura, é loucura, eu sei, acredite em mim... eu sei. Mas essa garota... essamaldita garota tem se rastejado sob a minha pele desde que nosesbarramos naquele bendito saguão... como um vírus. Um câncer. Euquero me livrar dela... Deus! Eu quero tanto me livrar dela, Sammy maseu não consigo e não sei o que está acontecendo comigo...

Ele recua, perplexo, sem saber ao certo o que falar, a boca se abrindo efechando maquinalmente.

‒ Você é louco ‒ dispara, enojado. Muito enjoado. ‒ Você... Quãodoente da cabeça você está?

Eu me encolho por dentro como se tivesse sido chicoteado e absorvo oefeito doloroso de suas palavras.

‒ Como consegue dormir à noite? ‒ recomeça ele. Parece mais do quedisposto a me ferir. ‒ Como consegue se olhar no espelho sabendo quedormiu com a garota do seu irmão e ainda por cima pensando em outra?

Ele espera por minha resposta. E eu não deveria, sei que nãodeveria, mas falo:

‒ Ela não é a sua garota.‒ Mentira!Sinto um impacto repentino me lançar para trás e para baixo. Um

soco! Um soco que me atinge em cheio no queixo. Minha boca se enche

de sangue, e tenho certeza que quebrei uns dentes.Porra!Sam recua o punho que desferiu o golpe, as linhas do rosto contorcidas

de ódio, os olhos cinzentos faiscando, conforme eu retribuo seu olharcom incredulidade.

Ele nunca me bateu antes.‒ Pervertido ‒ xinga ele, arquejando, enlouquecido pela ira. ‒ Como

pôde?‒ Pare ‒ balbucio, a boca ensanguentada.Ele está indo longe demais. A indignação me sobe à cabeça. Meu corpo

inteiro se prepara para se semitransformar no monstro com um tremorque dispara dos pés à cabeça. Tento negar ao instinto, pensando que nãoposso perder minha sanidade, não posso machucar Sam, mas meu irmãonão colabora.

‒ Sujo! Mal caráter! Doente! ‒ ele está falando, sem piedade. ‒ Eu aamava. Eu a amava e você sabia disso!

Começo a rir; primeiro baixinho, depois bem alto. E não sei o porquêestou agindo assim, mas deveria parar, entretanto a raiva que se agigantaem meu peito não me permite usar a razão.

Sam me fita como se eu tivesse ficado louco de vez.‒ Você disse que sente muito por mim ‒ falo, abrindo um sorrisinho

estúpido ‒, mas está aí... amando uma mulher que o despreza há décadas.Que constrangedor, meu irmão.

‒ Cale a boca ‒ ordena ele, sua voz perdendo o volume. ‒ Cale a bocaou juro pela minha vida que eu desfiguro essa sua cara nojenta.

Rio de sua ameaça, cuspindo o sangue que começou a escorrer para oqueixo, e limpo os lábios partidos com as costas da mão. Marcho até ele.

‒ Vá em frente ‒ murmuro, abrindo os braços. ‒ Se isso vai fazer comque se sinta melhor, manda ver, irmão. Dá o seu melhor. Só não me culpapor Elizabeth preferir a mim e não a você...

Paro de falar ao ser golpeado no queixo mais uma vez, e minha boca seenche de sangue novamente. Filho da... Tudo fica levemente embaçado aomeu redor por uns vinte segundos, o quarto girando e girando como umpião.

Argh! Esse foi mais forte que o anterior.

Recuo uns passos às cegas, aguardando que o cômodo entre em foco, etemo ser atingido novamente por Sam. Seu rosto hostil é nítido quandoentra no meu campo de visão.

‒ Uau! ‒ Massageio o queixo. ‒ Parece que você finalmente aprendeu abater direito. O que foi? Aurora andou dando umas aulinhas para voc...

Ele me agarra pela camisa com violência.‒ Não pronuncie o nome dela mais ‒ diz, sibilando entre os dentes, o

olhar superlotado de mágoas. ‒ Não pense mais nela. Não sonhe com ela.Forço meus lábios a formarem um sorriso irônico.‒ Com prazer, irmão ‒ balbucio. ‒ Mais alguma coisa?‒ Claro. ‒ Ele me solta, dando um passo para trás. Sua postura

readquire serenidade, controle e decisão de um a maneira tão rápida enatural, que fico impressionado. ‒ De hoje em diante, fique bem longe demim ‒ sussurra ele, sério e absoluto. ‒ Você e Elizabeth se merecem, e eunão vou mais atrapalhá-los.

‒ Espere...‒ Nossa conversa acabou ‒ ele me corta. ‒ E boa sorte, Eric. Porque, se

Aurora for exatamente tudo o que você diz que é, talvez sua cabeça nãocontinue por muito tempo presa ao pescoço.

Me reteso com o comentário sarcástico e aborrecido.‒ Você está marcado, i rmão ‒ avisa ele, dando-me as costas, indo

embora. ‒ Mas enquanto isso não acontece, vê se fica fora do nossocaminho ‒ acrescenta antes de desaparecer.

Aurora

"Maldição."

Você é uma garotinha especial, Aurora.

Meu pai me falava isso quase todos os dias antes de me colocar para dormir. Éclaro que “especial” era uma maneira cautelosa e bastante delicada de amenizara situação e fazer com que eu não me sentisse triste e neurótica por ser...diferente. Por fazer... coisas... que as outras crianças não podiam fazer.

Era incrível como ele sempre estava um passo à frente quando o assunto diziarespeito às minhas necessidades estranhas, os surtos de violência e tudo deextraordinário que acontecia comigo repentinamente e sem a menor razãoplausível. Uma mudança de humor e BUM!, eu me tornava uma pessoairreconhecível.

Perigosa, às vezes.Mas ele entendia minha raiva ‒ a raiva que parece fazer parte de mim como

um órgão faz parte do corpo humano.E ele me ajudou a dominá-la, a não senti-la.Meu pai me ensinou a aceitar toda a bagagem que veio com o meu "dom"; a me

reinventar sempre que fosse necessário, a recomeçar; a entender que se você temforça e desejo de fazer o bem ‒ para si mesmo e para os outros ‒ e não faz, você étão ruim quanto alguém que pratica o mal.

Meu pai era o ser humano mais incrível e gentil e forte e benevolente que eu jáconheci.

Ele era meu herói. Eu o venerava tanto, tanto. Não havia nada que nãosoubesse fazer. Ele me entendia tão bem, e me salvou ‒ diversas vezes ‒ de mimmesma.

Ele me ensinou a ter controle, a me manter sob controle, a suportar a dor e oódio, a superar a mágoa e a ingratidão, a ser uma mulher forte.

Equilibrada.Foi duro.Apesar das tentativas de minha mãe em inserir um pouco de normalidade na

minha rotina, não posso contar que tive uma infância muito comum. As coisasque meu pai fez questão que eu aprendesse não deviam fazer parte do dia a dia denenhuma das crianças que me olhavam torto e de longe na escola.

Eu passei um tempo sem aceitar porque não entendia o motivo de elas fazeremisso, porque me tratavam com tamanha cautela, mas eu imaginava que talvezhouvesse algo no meu rosto que as mantinha a distância ‒ o que me deixou semquerer encarar meu reflexo no espelho por um bom tempo.

Então, um dia, eu esmaguei os vinte sete ossos da mão de uma garota boba eestúpida que tentou me intimidar ‒ ela tinha duas vezes o meu tamanho ‒ e issome fez perceber que não tinha a ver apenas com a minha face. Eu era perigosa.Má. Elas me viam como um monstro, provavelmente.

É claro que fui expulsa do colégio, imediata e inapelavelmente. Minha primeirae única expulsão. Foi difícil não reparar o pavor e o receio no semblante dos meuspais quando a diretora lhes contou o que acontecera, quando enxergaram que nãohavia nem uma gota de remorso nos meus olhos.

Eu tinha apenas sete anos.E em vista disso, os treinamentos com o meu pai tiveram seu começo. Tudo com

o intuito de aprimorar minhas resistências física e mental, de controlar ecanalizar o que ele chamava de "dom" e eu, a partir de um certo tempo, passei adenominar de "maldição".

Ele me ensinou a ser uma boa garota mesmo com todos os meus instintosgritando e dizendo para eu ser uma garota má. Ele me ensinou a lutarbravamente pela vida quando minha vontade fosse a morte, e a enfrentar aconfusão e o medo de sentir o que eu sentia, de fazer o que eu posso fazer.

Você pode escolher quem quer ser, Aurora, ele me lembrava o tempo inteiro,fitando meus olhos iguaizinhos aos seus, e em seguida apertava meu nariz entre osdedos.

Fomos parceiros por menos anos do que eu gostaria. Depois que meu paimorreu, eu demorei um tempo que me pareceu uma eternidade para vencer oluto, principalmente porque a culpa de ele não está mais presente para melembrar sobre aceitação, bondade, recomeço e perdão... era toda minha.

Nem Henry nem minha mãe gostam que eu diga isso em voz alta, que eu sequerpense assim. Mas só porque eles não conhecem a verdade. Não sabem que eu fui aprimeira peça do maldito efeito dominó, a peça que causa a destruição de todas asoutras.

Eric

"O diário."

Olho para o relógio acredito que pela milésima vez em meia hora: são

5h22 da manhã. A culpa e o buraco de dor em meu peito não medeixaram descansar nem um minuto durante a noite. Como umapenitência. Lá fora, o nascer do sol é uma visão além do magnífico, masnão consigo apreciá-lo como merece.

Estou mal. Estou muito mal. E estou tentando digerir o fatoincontestável de que meu irmão mais novo ‒ a pessoa por quem eu decidihá muito tempo continuar respirando ‒ me odeia mais do que qualqueru m ‒ mais do que eu odeio a mim mesmo. Não tinha ideia de que talcoisa era possível.

Eu mereço isso, penso, com metade do corpo deitado na cama. Encaro oteto, meus olhos de repente ardendo. Eu feri e desapontei a única pessoaneste mundo que foi capaz de tolerar minhas merdas, que sempre estevedo meu lado, não importava o quão ruim era o que eu tivesse feito.

E agora, ele deve estar sentindo que tudo foi em vão. Cansou-se.Desistiu.

Não posso culpá-lo.Eu mereço isso, penso outra vez, uma dor profunda de garras afiadas me

dilacerando por dentro, e me pergunto desesperadamente se implorar dejoelhos por perdão vai adiantar alguma coisa ou se será muito dramático.

Fico em dúvida por um minuto, mas, por fim, concluo que talvez nãoseja. Talvez ele esteja esperando que eu faça isso.

Fique bem longe de mim.

As palavras de Sam ecoam dentro da minha cabeça, pisoteando emmeus planos, e me desanimam.

Tudo bem. Acho que o mínimo que posso fazer, depois de tudo, érespeitar seu desejo; lhe dar espaço para acalmar os ânimos. Devo mesmovoltar dormir no chalé se isso facilitar as coisas. Ficar longe.

Sim. Quanto menos Sam me vê por aqui, menos lembranças lhe trareide minha traição.

Com esse pensamento, eu me arrasto para fora da cama e cruzo oquarto até a academia. Ali, através do espelho, enxergo meu estadodeplorável: ainda estou usando as roupas de ontem, minha camisa brancaamarrotada e manchada de sangue... O sangue que ele arrancou de mimporque fui um idiota.

Tenho vontade de dar um soco no espelho, mas em vez disso, desvio osolhos, apenas me recusando a encarar minha própria imagem por maistempo, e sigo para o banheiro desabotoando a camisa e puxando-a parafora das calças.

Livre das roupas, eu entro no boxe; e sob o jato de água quente, anseioque ao lavar meu corpo, ela também faça com que eu me sinta melhor.

É em vão. Eu continuo me sentindo terrível e, minutos depois, de voltaao quarto, aceito que isso não vai passar tão cedo. A dor é recente,merecida, e me oprime sem piedade nenhuma. Eu não devia terescondido de Sam o meu envolvimento com Elizabeth ‒ a mulher que eleama... amava.

Será que agora ele a odeia também?Cansado, mas ansioso por algo que me arranque desse estado

desprezível, eu me visto para uma corrida ao ar livre. Não presto atençãoàs roupas que escolho. Mas antes de sair, checo se não estou usando meiasde cores diferentes ou camiseta ao avesso.

Tudo está certo... quero dizer... esquece.Corro as mãos pelo cabelo úmido e despenteado, suspirando, e disparo

para a saída do quarto. A casa está completamente silenciosa. No andar debaixo, pego o corredor que leva à cozinha, evitando pensar onde Sam eAyla devem estar e o que fazem.

Não me importa, digo à mim mesmo conforme apanho uma jarra de sucona geladeira e encho o copo que já estava em cima da bancada. Nesse

meio tempo, Ayla surge na entrada da cozinha usando uma jardineirajeans e camisa branca de manga curta por baixo.

Quando nossos olhos se encontram, tenho absoluta certeza de que elajá sabe de tudo, e não é nenhuma surpresa dada a mania irritante do meuirmão de contar para ela até mesmo se ultrapassei o semáforo antes dahora. Então, é óbvio que tudo que aconteceu ontem chegaria aos seusouvidos.

Embora ela seja muito boa em controlar seus sentimentos, agora possodetectar perfeitamente o sentimento de frustração estampado em cadacentímetro do seu rosto. Estou aguardando a enxurrada de recriminaçõesque não vêm e depois de um tempo acabo entediado.

‒ Vamos lá, Ayla ‒ digo por fim. ‒ Coloca para fora. Começa a gritar.Ou então para de me olhar desse jei...

Ela reage às minhas palavras instantaneamente, entrando a passos largosna cozinha, e para do outro lado da bancada.

‒ O que, em nome de Deus, você tem na sua cabeça? Dormir comElizabeth?! Você enlouqueceu?!

Fico irritado mesmo não estando no direito.‒ Foi só o que ele contou para você?! ‒ exclamo, boquiaberto. ‒ Isso é

patético! Sam é patético!‒ Não se atreva a falar assim do seu irmão! ‒ Ela bate o punho na

bancada, repreendendo-me com o olhar severo.Eu me retraio internamente, me sentindo um idiota por me importar

com seu comportamento protetor. Sam sempre foi o preferido dela. Émuito fácil entender o porquê.

‒ Você é bem rápida quando se trata de defendê-lo, não é? ‒ falo,rezando para que minha mágoa não esteja tão transparente.

‒ Ele é o mais humano de nós ‒ diz ela, o tom apaziguador, como seestivesse se justificando para mim. ‒ Sam está com raiva porque estámagoado. Você feriu os sentimentos dele. Não consegue ver?

Inferno. Como ela ousa dizer isso?‒ Eu vejo. Eu sei os meus crimes, ok? Mas sabe o que mais eu vejo? Vejo

você não dando a mínima para qualquer coisa que saia da minha boca.Então perdoe-me, Ayla, mas não vou me justificar quando já está claroque você escolheu um lado, sem se importar com o que mais pode ter

acontecido.Saio andando rápido para fora da cozinha. Ela me segue gritando:‒ Não dê as costas para mim, mocinho. A nossa conversa ainda não

acabou.‒ Converse com Sam.‒ Não seja criança, Eric.Agora eu sou a criança?!Paro de andar quando ela se intromete na minha frente, criando uma

barreira com seu corpo. Eu suspiro forçadamente, alto.‒ Saia. Pelo amor de Deus. Não quero machucá-la.Meu pedido é automaticamente ignorado.‒ Por favor, diga que você não tem nada a ver com o ataque a Aurora ‒

implora ela, sua esperança perspícua em cada palavra.É com isso que está preocupada?!‒ Eu não tenho nada a ver com o ataque a Aurora ‒ respondo em um

tom monótono, e estranhamente seus ombros relaxam. ‒ Elizabeth agiusozinha. Pelo que entendi, Aurora deu uma bela surra nela e... bem, vocêsabe que sua sobrinha detesta perder, mesmo...

‒ Isso não justifica ‒ refuta Ayla com mau humor. ‒ Elizabeth foiimprudente. Sua atitude não apenas ameaça seriamente nos expor comopode me colocar em péssima situação com Henry...

‒ Isso é ridículo! A família dele tem tanto segredos quanto nós. Vocênão precisa se preocupar.

Ela olha para mim percebendo exatamente o que quero dizer e fala:‒ Sam me contou sobre o tal diário que Aurora tem em mãos.Eu rio com amargor.‒ Pois é... ‒ Pigarreio, tenso, escolhendo como dizer. ‒ Você sabia? Meu

pai... ele...E não sei como colocar para fora.‒ Richard está morto, Eric ‒ diz ela, estendendo o braço para segurar

minha mão. ‒ Mas como e quando e por que ele fez algo... qualquercoisa... não importa mais. Não foi por Sarah. Ele...

‒ Eu sei. ‒ Balanço a cabeça num gesto mecânico. ‒ É exatamente o queeu achava, na verdade.

Pressiono a mão na boca, engolindo em seco, para abafar minha risada

sombria ao me dar conta de algo.‒ Sabe... ‒ digo a ela, escorregando a palma para a minha nuca

enrijecida ‒, confesso que, lá fundo, eu esperava o contrário. Eu esperavaque ele tivesse feito, ainda que essa coisa mórbida, por... eu não sei...redenção, talvez. ‒ Rio. ‒ Mas é claro que esse tipo de coisa não existe... ‒Ou eu mesmo já teria arranjado um modo de me redimir.

‒ Sim, existe ‒ rebate Ayla, abrindo um sorriso doce para mim. ‒ Sóque infelizmente não é uma atitude que se aplica ao seu pai. Sinto muito.

Sacudo a cabeça de novo. Aperto os olhos, implorando que parem dearder. Estou sendo idiota.

‒ O que faremos agora? ‒ pergunto, ficando de costas paraAyla, e respiro fundo.

‒ Eu não sei. Eu não sei nem por onde começar. Minha cabeça aindaestá girando desde ontem. Quem é essa garota que atacou Elizabeth?

‒ É o que ela foi descobrir. Mas com certeza uma pessoa que tem meiospara derrubar uma harpia da forma que foi não é qualquer um.

Ayla fica em silêncio. Eu me coloco de frente, após um curto momento,enfim recomposto. Sua face é, ao mesmo tempo, pensativa e preocupada.Aproveito o assunto em questão para perguntar:

‒ O que você sabe sobre A Linhagem das Sete?Ela franze o cenho, como se tivesse acabado de ser pega de surpresa.‒ O quê?! Nunca ouvi falar ‒ diz, e posso ver que está sendo sincera. ‒

Deveria?‒ Você me diz. ‒ Dou de ombros. ‒ Afinal de contas, havia um livro

na sua biblioteca com essa história, cuja capa carrega o desenho da marcade Aurora.

‒ O quê?!‒ Por favor, seja honesta. ‒ Estou implorando.‒ Eu não sabia, Eric ‒ jura ela, e seu fervor me convence.Ok. Passo para outra pergunta:‒ Você sabia que por volta de 1931 uma onda de assassinatos esteve

ligada a Linhagem das Sete?Ayla exibe uma expressão de choque.‒ Não ‒ sussurra, dando um passo para trás.‒ Elizabeth disse o contrário ‒ rebato tranquilamente.

‒ Os assassinatos ocorreram, sim, mas nunca foram relacionados a essetermo.

Droga!‒ Ela mentiu, então. ‒ Desgraçada.‒ Não estou entendendo. O que isso significa? O que A Linhagem das

Sete significa?Conto a Ayla cada palavra do que Elizabeth me disse e, ouvindo a mim

mesmo relatar a história, consigo notar quão pouco crédito eu dou a essafantasia.

‒ Uau! ‒ Suspira Ayla depois que termino. ‒ Isso é...‒ Inacreditável? Loucura?‒ É o que achou?‒ Não sei o que achei ‒ respondo. ‒ Esperava que o livro pudesse ao

menos esclarecer algumas coisas, mas o exemplar que Elizabeth viu nãoestá mais na biblioteca.

‒ Como?!‒ Desapareceu. E admito que pensei que tivesse pegado. ‒ Olho para

com um pedido discreto de desculpas.‒ Eu nem sabia que existia ‒ diz ela, meio indignada.‒ Talvez porque não existisse mesmo.Elizabeth mentiu. Mentiu sobre tudo, provavelmente para me incitar a

matar Aurora ou fazer-me confiar nela. Agora, no entanto, minha maiorvontade é esganá-la até minhas garras rasgarem sua garganta.

‒ Não faça isso. ‒ Ayla está me fitando como se tivesse visto asujeira em meu pensamento. ‒ Não vale a pena.

‒ Vale para mim. ‒ Ando em direção a porta de saída da cozinha.‒ Eu preciso de você aqui ‒ fala ela, e meus pés travam no meio do

passo. Precisa? ‒ Ontem à noite explodiram uma das joalherias em SãoPaulo.

‒ O quê?! ‒ Entro em choque, virando-me para fitá-la.‒ Eu e Henry devemos viajar o quanto antes para avaliar os danos e... ‒

vejo seus olhos ficarem marejados ‒ e oferecer apoio às famílias de algunsfuncionários que estavam... que estavam na hora em que tudo aconteceu.‒ Ela suspira, abalada. ‒ Foi um completo desastre, Eric.

Caramba!

‒ Mas Aurora ainda não acordou ‒ continua Ayla, e a menção do nomedela me incomoda ‒, Henry está relutante em partir e deixá-la... sozinha.De certa forma, desprotegida e...

‒ Faça-me o favor! ‒ exclamo, girando os olhos para o alto. ‒ Você nãoacredita nessa ladainha, acredita?

‒ Olhe. ‒ Ela segura meus ombros. ‒ Tem muita coisa acontecendoagora. Nós não sabemos mais com quem estamos lidando e, até termoscerteza, manter as aparências é o mais importante.

Não gosto disso. Nunca gostei. E além do mais...‒ Aurora sabe sobre nós ‒ sibilo entre os dentes. ‒ Droga, Ayla, ela sabe

sobre tanta coisa, e eu aposto que a essa altura, Henry também sabe.Como...

‒ Não importa ‒ diz Ayla, calma demais para o meu gosto.‒ Não importa?! ‒ rosno. ‒ Você está louca?! É claro que importa.‒ Talvez Henry não saiba ainda ‒ diz ela, um tanto convicta. ‒ Afinal...

ele pediu para você e Sam cuidarem de Aurora depois que viajarmos ...‒ O quê?! ‒ grito. ‒ Não!‒ Você não tem escolha. ‒ Ela me fuzila com lágrimas nos olhos. ‒

Sam... Sam não está na ilha. Eu acho.Como?!‒ Onde ele está? ‒ pergunto, minha voz baixa, preocupada; e por um

instante, esqueço de minha revolta.‒ Eu não sei ao certo. ‒ Ela passa as duas mãos no rosto, puxando uma

respiração forte. ‒ Ele apenas me fez prometer cuidar de Aurora e partiuainda de madrugada. Mas não sabia do incidente em São Paulo. Tenteiligar para o celular, mas está dando fora de área.

‒ Claro. ‒ As palavras dela alargam o abismo em meu peito, e eu quaseposso sentir minha pele sendo rasgada. É muito doloroso.

‒ Eric...‒ Não posso fazer o que me pede. Eu e Aurora nos odiamos. Isso não

vai acabar bem.Para mim.‒ Você precisa mudar essa situação ‒ diz ela, me encarando fixamente. ‒

Precisa conquistar a confiança dela se quiser descobrir a razão de todosesses acontecimentos. Mostre a Aurora que é um amigo e não uma

ameaça, traga-a para o nosso lado...Gargalho sombriamente da ingenuidade de Ayla. Ela revira os olhos,

chateada.‒ Ou pelo menos finja, está bem?‒ Aurora não é retardada. Ela vai sacar em dois tempos que eu...‒ Não se você deixar de lado a porcaria do seu orgulho e controlar seu

temperamento ‒ diz ela, mordaz, e eu fecho a cara.Tento não considerar a ideia absurda, porém o sentimento

impertinente de curiosidade surge para dizimar meus esforços. Há tantasperguntas sem respostas. Há tantas respostas que precisam seresclarecidas: meu pai e seu conhecimento da Trindade; a força incógnitaque Aurora carrega, as informações que ela tem sobre a minha família...

Se eu me aproximar dela ‒ ainda que não façamos as pazes ‒, se euconseguir consertar as coisas entre nós...

A garota odeia você, Eric, meu alter ego implica.Eu rio por dentro, concordando; porém, disposto a arriscar. Não será

fácil e muito menos agradável. Posso até me ver rebaixando-me para ela esua insolência maldita, e isso é como uma faca rasgando minha garganta.Terei de dar um jeito de me divertir no processo ou conseguir algo, aindaque tudo dê errado no final.

‒ Está bem ‒ falo a Ayla, escondendo minha expectativa com um ar dedesinteresse.

Ela responde com surpresa.‒ Isso quer dizer que...‒ É, é. Caso Sam não apareça até você e Henry viajarem ‒ o que eu espero

que não ‒, eu serei babá da garota. ‒ Vai ser mais fácil sem ele por perto. ‒Mas um gesto suspeito da parte dela, apenas um, e eu corto fora aquelalíngua afiada ‒ falo.

E nem sei se estou blefando. TRÊS DIAS.Três dias e nenhum sinal de Sam. Nenhuma carta. Nenhum SMS.

Nenhuma ligação. O cara sabe mesmo como desaparecer. Ayla finge nãoestar preocupada, mas eu a vejo deixando mensagens, uma atrás da outra,implorando que ele volte para casa. Eu a vejo fitando a entrada da mansão

por horas, certamente esperando-o atravessar o gramado e... eu não sei...lhe dar um abraço, talvez.

É inquietante.Não tenho coragem de encará-la nesses momentos, não

consigo demonstrar os mesmos sentimentos ‒ não de forma plena ehonesta ‒, pois mesmo que uma parte de mim queira que Sam retornepara acertamos nossas contas, a outra parte sabe que somente sem apresença dele aqui, eu conseguirei colocar meus planos em prática.

É egoísta. É egoísta para caralho. Mas quer saber?Eu não me importo. Estou muito perto da verdade. Inteira verdade.

Não posso e não vou me desviar do meu objetivo.O diário. Eu quero aquele diário.Tomando um gole de café preto, saio do quarto de Sam e desço as

escadas até a sala de estar. Ayla está ali, olhando pela janela. Como eudisse.

Penso em dar meia volta e seguir para o meu quarto, mas ela se viraantes que eu dê um passo e me flagra observando-a.

Seus lábios se repuxam em um sorriso fraco.‒ Ei ‒ diz ela, a voz cansada de quem não dormiu bem.‒ Ei ‒ falo de volta.‒ Podemos conversar?‒ Claro. ‒ Ando até a poltrona mais próxima e me sento.Ela vem para o sofá à minha frente e se recosta depois de sentar,

cruzando as pernas, o rosto focado em mim.‒ Eu e Henry vamos viajar hoje, antes do meio-dia ‒ anuncia, cautelosa.Minha respiração fica presa por alguns segundos quando imagino o que

isso significa.‒ Então Aurora...‒ Não. Ela não acordou ‒ diz Ayla, jogando uma mecha do cabelo loiro

escuro para atrás da orelha. O nó na minha garganta se desfaz. ‒ Mas nãopodemos mais esperar. Henry tem andado atormentado nesses dias e...dividido. Não queria partir sem se explicar a irmã, mas também não querficar de fora das investigações e nem do velório dos funcionários...

Que tocante.‒ O que terei de fazer? ‒ É só que me interessa.

‒ É simples. Quando Aurora acordar, você vai estar autorizado a levá-ladireto à mansão. Entregue isso a ela. ‒ Ayla me passa um envelope brancosimples que tira da bolsa ao seu lado.

‒ Uma carta?‒ É de Henry.Interessante.Recebo o envelope, olhando-o com tanto desejo de poder enxergar as

palavras que estão escritas que, por um instante, fico aéreo.‒ Pode parar.‒ O quê?‒ Sei o que está pensando. Não ouse ‒ ela me repreende, intuitiva.Rio por dentro.‒ Não vou violar a carta, se é o que acha.‒ Perfeito ‒ aprova ela, séria. ‒ E lembre-se: seja legal com Aurora. Ela

não pode vê-lo como uma ameaça ou...‒ Adeus aos meus planos ‒ murmuro, monótono e debochado. ‒ Já sei.

Já sei. Vou me comportar... se ela se comportar.‒ Eric!‒ Estou brincando.Ayla suspira, balançando a cabeça, como se não soubesse como lidar

comigo. Sei que estou sendo um idiota infantil, por isso decidotranquilizá-la, desta vez falando sério.

‒ Desculpe. Vai ficar tudo bem. Vou controlar meus nervos.‒ Quero que me prometa que não machucará Aurora. ‒ Ela insiste,

ainda temerosa. ‒ Seu irmão jamais o perdoará se fizer algum mal àquelagarota. Você não quer perdê-lo de vez, quer? ‒ Ela apela deliberadamente.

‒ Não ‒ respondo, sendo sincero. ‒ Mas não sei o que posso fazer paraele me perdoar. Sam não me culpa apenas por dormir com Elizabeth,ele me culpa por ela ser apaixonada por mim. O que não é justo. Vocêsabe! Eu não posso fazer com que...

‒ Ei, ele vai perdoá-lo. ‒ Ayla inclina o corpo para colocar a mão sobrea minha. ‒ Tenha paciência. Sam tem um bom coração. Ele só precisa deum pouco de espaço.

Faço que sim repetidamente com a cabeça, rezando para que ela estejacerta. A última coisa que preciso é o ódio eterno do meu irmão. Não é

algo que minha mente vá conseguir suportar.Ayla fica em pé, rompendo meu pensamento desesperado, e apanha a

bolsa. Eu a imito, levantando-me, e sei que não a verei até que retorne.‒ Cuide-se, filho. ‒ Ela me abraça e me beija no rosto com ternura.‒ Você também. ‒ Retribuo o carinho da mesma forma, surpreendendo-

a. É a primeira vez que faço isso.Seus lábios se erguem num sorriso de orelha a orelha. Acho que nunca

a vi tão satisfeita, e essa reação me faz sentir inusitadamente bem comigomesmo.

Que estranho.‒ Ligue-me quando estiver em São Paulo ‒ falo, dando um passo para

trás.‒ Ligue-me quando estiver com Aurora ‒ ela me diz, recompondo-se do

momento de emoção. ‒ Você deve ir vê-la em algum horário ainda hoje.‒ Por quê? Ela não está dormindo?Que ridículo.‒ Eric, o incidente na joalheria já está em toda a mídia. Se as harpias

estão atrás de Aurora, como você tem tanta certeza, elas vão aproveitar aausência de Henry para atacar. Você deve ficar atento.

Bem pensado. Ainda assim...‒ Não acredito que estou me metendo nessa guerra, Ayla. Tomando

partido. E se Aurora for uma ameaça maior do que imaginamos? ‒pergunto. Hesito. ‒ E se estivermos do lado errado?

Aurora

“Não diga nada. Vai ser bem rápido.”

Corra, ordeno a mim mesma. Corra. Corra. Não pare.

Mas é difícil.Minhas pernas estão extremamente doloridas, clamando por um minuto de

descanso, meus pulmões queimam e meu coração disparado parece que vai saltarda minha boca. Engasgada com minha própria respiração, posso escutá-lolatejando dolorosamente nos meus ouvidos.

A agonia que sinto...O desespero.A tristeza.O receio.Acho que meu peito vai explodir em mil pedaços com a intensidade alarmante

desses sentimentos, porém não permito que isso me impeça de continuar emmovimento. Estou fugindo e não sei do quê. Estou com uma certeza de que nãodevia ter saído de algum lugar que também não sei qual. Mas eu precisava fazeralguma coisa que não tenho ideia... algo importante... algo que mudaria...‒ Ahhhh!Impulsiono o corpo para trás ao me deparar de chofre com um despenhadeiro

assustador e, sem conseguir me equilibrar, desabo no chão com as mãos abertaspara amortecer a queda. Olho para o céu escuro repleto de estrelas, para a luaredonda, imponente e brilhosa no horizonte, uma inexplicável nostalgia quasepungente invadindo meu coração enlouquecido.

As lembranças...Por quê? Por que isso tem que acontecer comigo? Por quê?!Um farfalhar de árvores soa às minhas costas, e me faz ficar em pé, desajeitada

e trêmula, girando nos calcanhares.Enrijeço quando estou de frente. Cada osso, cada músculo, cada tendão do meu

corpo enrijece. Esfria. Alguém está aqui! Mais depressa do que eu imaginava. Suaface perfeita encoberta pelas sombras das folhas, os sinistros olhos rubrospercorrendo meu corpo avidamente.

Seria ele o meu perseguidor? Conduzindo-me para um beco sem saída duranteesse tempo inteiro? Sinto certeza disso. Sinto-me ingênua. Sinto que deveria terprevisto isso. Imagino que meu cheiro, as batidas desenfreadas do meu coraçãocom certeza devem ter sido o guia perfeito para ele me alcançar.

Lamento a perda de tempo que foi tentar fug...De repente, estou engasgando. De repente, meus pulmões precisam de oxigênio.

De repente, sou lançada no chão. E estou rastejando. E chorando. E implorando.De repente, sou agarrada pelos cabelos. Suspendida. Encarada. De repente, tenhomeu coração cruelmente arrancado.

De repente.Não sinto nada.Mais nada.Estou morta. ACORDO COM A MÃO no peito, coberta de suor e rígida, mas ainda não

consigo abrir os olhos completamente. Talvez por causa da umidadeabundante que pesa sobre minhas pálpebras ou pela paralisia que acometegrande parte dos meus membros. Também não consigo afastar da mentealgumas imagens confusas e embaçadas do pesadelo e a presença delas mecausam uma tremenda e profunda agonia interior.

Meu Deus!Meu Deus!Meu... Deus!Sinto que estou deitada sobre uma superfície macia ‒ uma cama. E

lutando contra o estado de torpor, empurro o tronco para cima a fim deme sentar. Contudo, duas mãos grandes impedem meu movimento,empurrando-me de volta ao colchão. Forço meus olhos a se abrirem e,quando isso finalmente acontece, deparo-me com um rosto masculino quenão reconheço.

‒ Quem é...

‒ Não diga nada. Vai ser bem rápido ‒ diz o homem, um sorrisinhomaldoso em seus lábios partidos e brancos.

E repentinamente, pressiona um travesseiro contra o meu rosto parasufocar-me.

Eric

"Ela é um monstrinho."

À medida que entro na garagem subterrânea do hospital, os

sentimento de ansiedade e temor se infiltram em meu cérebro,importunando-me.

Ao lado de um Toyota prateado, estaciono meu BMW e abro a portaapós liberar uma respiração tensa.

Parece que há alguma coisa no meu estômago. Um frio. Como se euestivesse despencando num abismo de tubarões.

Queda livre.A ideia de vê-la não é agradável.É por isso que estou assim. Porque não quero vê-la.Passo o trajeto inteiro até a recepção censurando a mim mesmo por

pensar em dar meia volta e ir para casa. A garota está dormindo, Eric. Nãoseja covarde. Só vou checar se está segura e dar o fora. Dormirei noscorredores se for preciso. Ou nem dormirei. Guarda-costas não dormem.

Guarda-costas.Olha só onde eu vim parar.Aproximo-me da jovem recepcionista que me observa com um olhar

embasbacado, cílios agitados piscando sem parar, e à medida que informoo motivo da minha presença, resisto à vontade de mandá-la fechar a boca.

Pare de me olhar assim. Você não tem ideia do que existe por trás deste rosto. Apesar de não ser horário de visita, meu sobrenome abre as portas, e

sou liberado para subir ao quarto 102 no sexto andar.Agradeço à garota e sigo para chamar o elevador social. Enquanto

aperto o botão, consigo ouvir o barulho dos aparelhos em funcionamento,

o murmúrio de conversas e as respirações por trás das paredes. Umas maisfracas que outras.

Quando as portas se abrem, eu entro, em seguida pressiono o botãopara fechá-las e o número seis ‒ meu destino.

O elevador me leva para lá zunindo. O frio retorna ao meu estômago.Minhas mãos passam pelo meu cabelo, depois vão parar nos bolsos dacalça jeans.

Relaxe, Eric.O percurso ao sexto andar demora menos tempo do que eu gostaria, e

logo as portas tornam a se abrir com um apito. Saio do elevador e viro àesquerda, meus olhos disparando às plaquinhas pregadas no topo dasportas ao longo do corredor branco e silencioso.

Paro na 102, a mão na maçaneta, hesitando. Por fim, solto o ar, giro-a eempurro. Mas antes que meu corpo ultrapasse o umbral da porta, soupuxado para dentro pela camisa e imprensado na parede.

Algo pontudo e afiado está a um centímetro do meu pescoço.Aurora me fuzila com um olhar de desafio, a mão espalmada contra o

meu peito, prendendo-me com força. Mas que garota idiota! Minhas mãosestão livres. Uso-as para afastá-la de mim, girando seus braços para ascostas, e roubo a arma que ela mantinha apontada para a minha jugular.

Um bisturi!‒ Que é que é isso? Você ficou maluca?! ‒ exclamo, segurando-a com

firmeza pelos pulsos.Ainda de costas e sem dizer uma única palavra, ela lança a cabeça para

trás, atingindo meu nariz, e se liberta.Porra!Sinto o sangue quente escorrendo. Caramba. Dou três passos para o

lado, ao mesmo tempo em que Aurora toma uma distância segura, obisturi em sua posse novamente.

Deu mole, Eric.‒ Quem diabo é você? ‒ pergunta ela, a voz arrastada e ofegante.O quê?!‒ Que brincadeira é essa? ‒ pergunto, sem poupar na grosseria,

esfregando o dorso da mão no nariz.Minha visão está embaçada, mas noto quando ela revira os olhos.

‒ Eu estou com cara de quem está brincando? Diz logo quem é você ‒ordena, obrigando as palavras a saírem pelos dentes cerrados. ‒ O queestá fazendo aqui? Veio me matar também?

Como?!Então eu noto ‒ o que com certeza estava ali desde que entrei ‒ as

manchas de sangue por toda sua camisa branca e a calça azul, nas suasmãos, no rosto.

No chão!‒ Que merda aconteceu aqui?! ‒ pergunto, quase gritando.Ela se assusta, as pupilas dilatando-se, e tomba o corpo para trás, quase

caindo, mas se agarra a cabeceira do leito, sem tirar os olhos grandes eredondos de mim. Sua mão não solta o bisturi. Demoro um segundo parareconhecer o sentimento estampado em suas feições.

‒ Aurora...‒ Sinto... sinto muito ‒ diz ela, chocalhando a cabeça, negando. ‒ Eu

não tive culpa... não tive. Só estava me defendendo. Não queria quetivesse acontecido.

‒ O que não tivesse acontecido? ‒ O que você fez?!‒ Não se aproxime! ‒ avisa ela, as lágrimas escorrendo silenciosamente

por suas bochechas pálidas.‒ Não vou machucá-la.‒ Quem é você? Diga quem é você.Caramba. Ela não se lembra mesmo de mim ou é um truque?‒ Você me conhece. Meu nome é Eric Harley. Nós estudamos juntos.

Também sou um amigo do seu irmão.‒ Como... como posso saber se está dizendo a verdade?Droga. Pensa rápido, Eric. Tenho uma ideia.‒ Henry deixou uma carta para você em minhas mãos ‒ conto a ela, e

suas sobrancelhas perfeitas se unem. ‒ Está no bolso interno da minhajaqueta. Posso? ‒ pergunto.

Ela realiza um ligeiro sinal positivo, mas não baixa a guarda, e empunhao bisturi com mais firmeza. É cautelosa, e não posso dizer que está errada.Porém, concedo a mim mesmo uma grama de alívio e escorrego a mão nointerior da jaqueta. Puxo a carta.

Ainda bem que trouxe essa droga.

Estendo o envelope para Aurora. Ela o apanha com os dedos trêmulos esujos de sangue e o abre. Observo uma dezena de emoções cruzar seurosto à medida que ela lê as palavras do irmão. Como eu adoraria saber oque está escrito nesse pedaço de papel.

Lutei o dia inteiro contra a vontade de violar a maldita carta.‒ Meu irmão diz aqui que eu posso confiar em você ‒ sussurra Aurora

quando termina de ler, me avaliando com um novo olhar.Sério? Cara.‒ Está vendo? ‒ murmuro, displicente. ‒ Eu falei para você.‒ Sinto muito. Eu tinha que ter certeza. ‒ Ela se arrasta até a cama e

desmorona, enfiando o rosto nas mãos.Eu me aproximo sem me descuidar da cautela, sem saber se eu posso

confiar nela. Mas sua figura está tão vulnerável...‒ O que aconteceu antes de eu chegar? ‒ pergunto, meu olhar

identificando mais manchas vermelhas ao redor do quarto. ‒ Por que há... sangue nas suas roupas, Aurora?

Ela remove o rosto das mãos, aos poucos me permitindo enxergar asgrossas lágrimas encharcando sua face pálida de novo.

Há tanto remorso em seu olhar.‒ E-ele... ‒ gagueja, angustiada ‒ ele tentou me matar.Ele?!‒ Quem? ‒ sussurro, inclinando-me à frente. ‒ Onde está essa pessoa? O

que aconteceu?Ela vira o rosto para a entrada do banheiro do quarto, certamente

querendo indicar alguma coisa. Sem pensar duas vezes, eu corro para lá.Escancaro a porta, e o que vejo me deixa ligeiramente sem chão. Sem voz.

Surdo.Um homem musculoso está recostado a parede ao lado do vaso

sanitário, seu peito desumanamente em retalhos, a garganta... o rostoirreconhecível, repleto de hematomas arroxeados. Inchado. Uma poça desangue se acumula no piso branco de cerâmica.

‒ Ele está morto.Não ouço a respiração, não ouço nenhum batimento cardíaco. Sim.

Não há dúvidas. O homem está morto. E é humano. Não compreendo.Meus olhos buscam a responsável por essa espantosa sujeira e a

encontram de pé, paralisada, me fitando com sofrida expectativa. Não seicomo camuflar meus sentimentos que vão de choque absoluto adeslumbre. Estou com um medo sincero do que ela fez e impressionadocom o que é capaz.

Ela é um monstrinho.Ela é um verdadeiro monstrinho.Como?A culpa se acentua na fisionomia de Aurora, está mortificada, como se

tivesse lido meus pensamentos ou os adivinhado, e mais lágrimas caemdos seus olhos.

Controle-se, Eric. Tranquilize a garota.‒ Sinto muito ‒ balbucia ela, antes que eu possa me pronunciar. ‒ Eu

sinto muito... muito mesmo. Não fiz por mal. Eu não queria...‒ Está tudo bem. Eu a compreendo. ‒ Minha voz assume um tom

manso e compassivo a fim de livrá-la de uma tortura que já experimenteihá muito tempo, e me pergunto se é a primeira vez que tira a vida dealguém.

Estou curioso.Não vá perguntar a ela.‒ Você só estava se defendendo, Aurora. Não foi sua culpa. Acredito em

você ‒ murmuro e chego mais perto.Ela funga repetidas vezes, os olhos arregalados reluzindo e piscando,

cheios de surpresa e... gratidão. Sim. Sim. É claro. Era de se esperar. Sei oque ela anseia em seu âmago ‒ aquilo que todo pecador deseja.

Absolvição.Deus!Eu posso mesmo entender.‒ Agora ‒ continuo, tranquilo ‒ eu quero que você enxugue essas

lágrimas e fique calma. Não podemos perder tempo.‒ O que você...‒ Precisamos nos livrar do corpo ‒ eu explico.Seus olhos se arregalam ainda mais.‒ Desforre a cama. Abra o lençol aqui no chão ‒ instruo à medida que

as ideias surgem na minha cabeça e meus olhos investigam o quarto àprocura de inspiração.

Aurora não se mexe.‒ O que você pretende fazer? ‒ pergunta, baixinho.Sem responder a ela de início, avanço para as cortinas brancas. Afasto-

as, abro as janelas e me debruço no peitoral, olhando para baixo. Apesarda escuridão, consigo enxergar uma rua ampla e silenciosa e algo que geraa mais absurda das ideias.

É loucura, Eric.Mas não tem outro jeito.‒ É isso ‒ murmuro, recuando.‒ É isso o quê? ‒ pergunta Aurora, estagnada.‒ Vamos jogá-lo lá para baixo. Há um contêiner na direção dessa janela.

Está cheio de lixo. Os sacos vão amortecer o impacto.‒ E depois?‒ Bem, o depois é... depois. Vamos nos preocupar com ele quando

chegar a hora.Ela me olha como se eu tivesse perdido o juízo.‒ Rápido ‒ acrescento.E muda, começa a se movimentar. Puxa o lençol de cima da cama e

estende no chão, altura em que eu já estou dentro do banheiro,arrastando o sujeito para fora pelas pernas. Aurora cobre a boca com amão e, choramingando, recua para trás quando deito o cadáver sujo desangue sobre o lençol e o envolvo completamente.

Pronto. Lá vamos nós.Com um suspiro, carrego-o no colo e me dirijo à janela, decidido. Por

sorte o espaço é grande o suficiente para ser possível passar um corpo,ainda que seja primeiro o tronco depois as pernas. Por fim, estousoltando-o dos meus braços e o corpo corta o vento para despencar nocontêiner lá embaixo. Como imaginei, os sacos de lixo abafam o barulho.

Ótimo. Primeira parte concluída.Viro-me para Aurora. Ela continua me encarando do outro lado cama

como se eu fosse um louco.Só estou limpando sua sujeira, boneca.‒ Tenho que ir lá embaixo terminar... terminar... terminar de resolver

isso ‒ falo para ela, me atrapalhando um pouco porque ainda não sei oque pretendo fazer.

Ela aquiesce, vagamente.‒ Limpe isso. Limpe tudo. Não podemos deixar nenhuma evidência do

que aconteceu aqui. ‒ Minha fala é autoritária à medida que eu atravessoo quarto em direção à porta. ‒ Ou iremos os dois direto para a delegacia.

Aurora

"Amnésia."

Eu matei uma pessoa.

Eu matei uma pessoa!De novo!E agora estou tendo de cobrir meus rastros com as mesmas mãos que

usei para estraçalhar seu peito e esmagar seu rosto com socos precisos.Sem hesitar. Sem parar.Como pude deixar isso se repetir?!Eu sou um monstro.Inquestionavelmente.Irreversivelmente. Pensei que estava livre da maldição. Pensei que

poderia ser uma pessoa melhor. Mas estava errada. Meu pai estava errado.Não sou capaz de me controlar. Não consigo achar meu ponto deequilíbrio.

Sou uma assassina implacável. Fria. Cruel. Não tenho conserto e jamaisfuncionarei do jeito certo. Não sou nada do que meu pai queria que eufosse. Falhei mais vezes do que posso contar. Sempre fora de controle. Epor mais que eu me esforce para ser... boa... Não consigo.

É a minha verdadeira natureza... não dá mais ignorá-la. Jogá-la paraescanteio. Fingir que não existe. Aquele garoto está correndo perigo aome ajudar. Se bem que já faz tanto tempo que ele saiu... Talvez tenhapercebido a furada em que se meteu. Talvez esteja com medo de que eu omachuque.

E quem sou eu para julgá-lo.Foi testemunha do que sou capaz.

Meu coração se aperta com as suposições do meu próprio consciente, eas lágrimas ardem nos cantos dos meus olhos. Trinco os dentes para queelas não caiam. Detesto estar deste jeito: sentimental.

Não vai mudar o que aconteceu.Continuo esfregando o chão com uma toalha branca de rosto que

encontrei no armário do banheiro, apagando as evidências da desgraçadescomunal que ocorreu aqui. Faço isso em cada canto até que tudo estálimpo.

Tudo.Exceto minhas mãos... minhas unhas pintadas de azul-bebê.Ah, não.Puxo a barra da camisa branca que vestiram em mim e esfrego nos

dedos, um por um. Fico apavorada. Não quer desaparecer... o sangue...não quer desaparecer! Deus! Por quê? Passo as mãos para cima e parabaixo no tecido da calça com mais força, entretanto...

O sangue em meus dedos parece se tornar mais vermelho!Imagens horrendas de mim mesma espetando e abrindo repetidamente

o peito daquele homem preenchem minha cabeça e ameaçam estourarmeu cérebro. Acho que começo a chorar de agonia, gritar de medo,limpando minhas mãos sangrentas na roupa que também está maculada,até que sou puxada para o presente.

Eric.Ele está de volta, agachado diante de mim, tentando me acalmar com

palavras que não escuto direito porque estou ocupadademais enlouquecendo com as terríveis manchas que não querem sair daminha pele de jeito nenhum.

‒ Tira isso de mim, por favor, tira isso de mim ‒ imploro, arfando deum jeito muito difícil e dolorido.

Eric agarra meus pulsos com delicadeza, os olhos verdes super clarosbuscando contato com os meus. É um alívio inesperado e indescritível vê-lo na minha frente, tão perto...

Ele não me deixou!‒ Shiii... Estão limpas... suas mãos... estão limpas. Está tudo bem ‒ diz,

a voz mágica e gentil.E meu corpo inteiro entra em repouso, todos os tendões, músculos e

terminações nervosas relaxando ao som musical e suave que sai de suaboca.

‒ Por favor...‒ Vou tirá-la daqui ‒ promete ele e me pega no colo, passando os braços

fortes por debaixo das minhas pernas.Sou erguida facilmente e, para me equilibrar, seguro firme na sua

camisa escura de linho, meu rosto afundando em seu pescoço rijo. Umafragrância gostosa, intensa e marcante invade minhas narinas e mearrepia, acalma.

Aspiro em minha sede.Eric estremece, as mãos grandes e macias me apertando com um pouco

mais de força. Uau. E por um doce, doce instante, sinto-me tão segura quedurmo.

QUANDO DESPERTO, FICO EM dúvida se estou sonhando. Há um clima

bom demais, pacífico demais, pairando sobre minha cabeça, meenvolvendo. Protegendo-me. Estou confortável e aquecida, e alguém estácantarolando baixinho uma melodia que não reconheço. É ele. É a suavoz. Aveludada e mágica. Viro o rosto na direção do som justamentequando ele desaparece.

Olhos verdes e encantadores encontram os meus nesse momento,saudando-me em silêncio. São tão claros, tão familiares, tãodesconhecidos. Dizem tudo e não dizem nada ao mesmo tempo.

‒ Oi ‒ sussurro, pois é o máximo que consigo agora.‒ Você está bem? ‒ pergunta Eric, sem deixar de me olhar.Preciso de um minuto para formular uma resposta coerente, para

encontrar meu corpo no espaço. Então me dou conta de que estousentada em um banco de automóvel, presa pelo cinto de segurança. Poucoa pouco, outras sensações se manifestam... Cansaço. Fome. Sede. Dor.Culpa.

Fecho os olhos, resistindo a tudo isso e a sequência de lembranças quevem à tona, e descanso a cabeça no encosto do assento. O clima agradávelque me protegia sumiu. Estou de volta à realidade novamente.

Triste e desesperadora realidade.Assassinada.

Eu quase fui assassinada.Meu Deus!Meu...Ouço a porta do carro sendo aberta, alguns segundos depois o mesmo

som se repete, desta vez mais próximo de mim. Ainda de olhos fechados,sinto os braços de Eric me carregarem para fora do banco. Um ar frioacaricia minha pele e diminui o mal-estar. Há um barulho de águacorrente e um cheiro fantástico de flores e terra molhada.

Movida pela curiosidade, deixo que meus olhos se abram, e o que ficavisível a eles me leva a pensar novamente se estou sonhando. É inevitável.Não sei que lugar é este, mas tenho certeza de que é o mais lindo que jávi. Algo em sua forma me faz sentir em casa, como se eu já estivesse vividoali.

Há lanternas decorativas por todo os lados, penduradas nos galhos dasárvores floridas, dentro de arbustos no chão e ao longo de um arco deflores que leva direto a um pequeno chalé.

É para lá que Eric está me levando.Estou encantada e nervosa e nostálgica e tudo de ruim que estava

sentindo antes parece ter sumido. Um sentimento indescritíveldesabrocha dentro do meu peito, enchendo-o e transbordando-o. Tenhouma vontade louca, súbita e inexplicável de chorar.

Quando nós dois alcançamos a varanda formada por quatro pilares, ‒sendo que os dois da frentes estão iluminados com cordões de lâmpadasmiudinhas ‒, Eric me põe no chão. À direta, há um sofá redondosuspenso que mais parece uma cama. Tem até almofadas. À esquerda,uma mesa redonda sem cadeiras com vaso de flores brancas em cima.

Eric não me solta e mantém o braço ao redor da minha cintura aoescancarar a ampla porta vidro. Sem dizer nada, ele me pega no colonovamente e me guia para dentro.

O primeiro cômodo é a sala de estar. Os quadros nas paredes chamamatenção logo de cara. São bem grandes e de uma beleza extraordinária. Emsua maioria, paisagens. Mas que não deixam de ser incríveis.

Sofás e poltronas em tons de branco e cinza estão agrupados eintercalados ao redor de um carpete grosso e felpudo. A iluminação ficapor conta das luminárias nas paredes e pelos cestos de vimes com velas

dentro que estão sobre a estante e o criado-mudo. É tão aconchegante eenvolvente.

E quieto.Menos o meu coração. Meu coração está louco dentro da caixa torácica,

e finjo não saber por quê.‒ Você está bem? ‒ pergunta Eric uma segunda vez, sua voz muito mais

perto.Será que ele está escutando a aceleração em meu peito?‒ Sim ‒ murmuro, acanhada, e pigarreio. ‒ Que lugar é este?‒ Uma casa. Minha casa ‒ responde ele conciso, e posso identificar a

cautela na sua voz.Engulo em seco.‒ Onde está sua família?Analiso os arredores. Há uma porta dupla com cortinas

brancas na parede esquerda e um corredor largo na mesma direção emque estamos parados.

‒ Minha família mora em outro lugar ‒ diz Eric, ainda cuidadoso. ‒Esta é a minha casa. Só minha.

Sua voz parece estável demais, como se ele estivesse se esforçando paramantê-la assim.

‒ Ficaremos aqui... ‒ hesito ‒ sozinhos?‒ É só por esta noite ‒ garante ele, depressa. ‒ Imaginei que seus

empregados ficariam assustados se a vissem desse jeito, então a trouxepara cá. Espero que não se importe.

Sim. Eu me importo.‒ Tudo bem ‒ murmuro o mais convincente que consigo. De qualquer

maneira, ele não está errado.Estou suja de sangue... sangue de outra pessoa. Não quero ter de

explicar a Safira o que aconteceu.Safira.Será que já retornou de São Paulo?É curioso que eu recorde dela, mas não lembre de tantas outras coisas,

inclusive do garoto que me tem em seus braços.‒ Não se preocupe. Não vou machucá-la.Olho para Eric em uma reação à sinceridade que suas palavras contêm.

Seu rosto é muito atraente, inescrutável, e me deixa atônita.‒ Não é isso que me preocupa ‒ falo a verdade por impulso e me

arrependo.Sua fisionomia revela uma compreensão apavorante.‒ Já entendi. ‒ Entendeu? ‒ Você está com medo de me machucar ‒

afirma ele, com convicção.Não falo nada. Não posso confirmar. Usando um tom sombrio, ele

continua.‒ Não tenho medo de você, sabe? ‒ Sua sobrancelha se curva.Pois deveria, penso, afastando-me dos olhos dele, e continuo calada.

Imitando meu silêncio, ele segue à porta do lado esquerdo, dando passoslargos. Está aberta e passamos direto. Há tanto para ver quanto na sala,que fico meio perdida.

O aposento é enorme, iluminado suave e sutilmente por lustres deparedes. Há duas outras portas e uma cama de casal gigante, amontoadade almofadas fofas. Ali, os tons brancos se repetem em alguns móveis enas paredes, mas são misturados ao verde escuro.

Acima da majestosa cabeceira estofada, há mais quadros pintados àmão. Uma das quatro paredes é totalmente de vidro, proporcionandouma porta/janela para o lado de fora.

Perto da cama, no lado direito, há uma estante de madeira branca comsistema de som, livros, CDs e uma coleção de suvenires cuidadosamenteorganizada. Do outro lado, também próximo da cama e do janelão devidro, há um reluzente piano de cauda preto.

Lembranças de uma época antiga e feliz surgem dos recantos da minhamemória, mas tão logo eu as descarto, e continuo passeando os olhos peloespaço.

Aos pés da cama, avisto um curioso baú de tecido que me chamabastante atenção. É da mesma largura da cama e alto. O que será que temdentro? Ao lado de uma das portas, há uma mesinha com cadeiragiratória.

‒ Este é o meu quarto. ‒ Eric para no meio do cômodo e me coloca nochão cuidadosamente.

Eu me apoio no seu antebraço até ter certeza de que posso ficar de pésozinha. Estou fraca porque não me alimento de verdade há... Dias?

‒ Ficará bem instalada aqui.O quê?!‒ Por que eu tenho que dormir neste quarto e não em outro? ‒ Torço

para que ele não perceba o pavor na minha voz.Não seja estúpida, Aurora, repreende minha razão. Está com medo do quê?‒ Porque não há outro, Vossa Graça ‒ suspira Eric com sarcasmo e um

revirar de olhos. ‒ Por incrível que pareça, não costumo receber visitas.Ah.‒ Onde você vai dormir então? ‒ Comigo?!Meu pensamento medroso é ridículo. De onde tirei isso?‒ Na sala ‒ diz ele simplesmente, mas na minha cabeça soa como "bem

longe de você".Se bem que é melhor assim.‒ Que gentil. ‒ Empenho-me para não parecer que estou resmungando.‒ Gentil é o meu nome do meio. ‒ Ele imita meu tom de voz, acredito

que para implicar comigo. ‒ É isso. Mais alguma pergunta?‒ Acho que não.‒ Ótimo. ‒ Ele põe as mãos nos bolsos da jaqueta. ‒ Vou deixá-la

sozinha agora. Mi casa és tu casa. Pegue o que quiser, só não bagunce, ok?Ele se encaminha a saída sem esperar por minha resposta.‒ Espere! O que eu vou vestir? ‒ a pergunta débil escapole da minha

boca.Minha razão revira os olhos.‒ Roupas ‒ diz Eric, movimentando o corpo para ficar de frente para

mim. ‒ Meu closet está cheio delas. Fique à vontade para pegar o quedesejar.

‒ Calma aí. Você quer que eu use algo seu?‒ Sim. Ou ‒ ele não segura o sorriso sacana ‒ você pode ficar nua, se

preferir. Não vou impedi-la.Fico com tanta vergonha que nem consigo encará-lo direito. Que droga.‒ Não é nem um pouco engraçado ‒ falo secamente para mostrar que

não gostei do que ouvi.‒ Perdão, Vossa Graça. ‒ Seu rosto assume um aspecto de garoto

inocente e contrito, sem vestígios de malícia. ‒ Como já disse: é só poresta noite.

É, Aurora, não seja chata.‒ Está bem ‒ murmuro.‒ Com sua licença. ‒ Ele inclina a cabeça para a frente, se despedindo, e

vai embora.Uma vez sozinha, sigo o mais rápido que minhas pernas conseguem

para a entrada que suponho ser a do toalete. Acerto em cheio. Em minhaparanoia, fecho a porta. Sei que Eric não fará nada comigo, mas foiterrivelmente indiscreto quando falou que eu poderia ficar nua se nãoquisesse suas roupas, o que teoricamente é verdade, mas mesmo assim...certas coisas não se dizem.

Talvez ele estivesse tentando ser engraçado, sussurra minha razão.Ponho-me de costas para porta, ignorando-a.Uau!A primeira coisa que noto é a parede de vidro no fundo que faz parte

do boxe e tem como vista uma fantástica cachoeira. Não dá para enxergarmuita coisa agora por causa da escuridão, mas isto aqui durante o dia deveser magnífico. Preciso me lembrar de tomar banho de novo antes de irembora amanhã.

Analisando o restante do banheiro, percebo que suas cores são asmesmas do quarto: branco e verde. O ambiente é espaçoso, organizado, epossui uma bancada larga a alguns palmos de uma banheira oval,sofisticada e imensa.

Humm.Olhando-me no espelho retangular acima da pia, minha imaginação

descontrolada faz quadros mentais absurdos de Eric ali dentro. Nabanheira, eu digo. Sem roupas. O corpo submerso na água quente, doce eperfumada...

Ah, meu Deus. Sinto um calor gostoso subir e descer por minhavértebra, disparando arrepios eletrizantes. Em que estou pensando?

Sorrindo comigo mesma, arranco a roupa suja e a jogo na lata de lixo aolado do vaso sanitário. É muito bom me livrar delas, mesmo com aperspectiva de ter que usar roupas de um homem.

De Eric.Será que as peças têm o cheiro maravilhoso dele? Pensando assim, até

que a ideia não é mais tão ruim.

Cambaleio até o boxe, afogueada pelos pensamentos inapropriadosgirando na minha cabeça, e ligo o chuveiro. Antes de entrar debaixo dacorrente de água, faço um nó no cabelo.

Está tarde e não quero molhá-lo, por mais atraente que a ideia seja.Aliás, que horas são? Que dia é hoje? Há quanto tempo estou

desacordada? Fico me questionando vagamente à medida que esfrego umgel de banho divinamente perfumado por toda a minha pele.

Henry não foi detalhista na carta. Apenas contou a necessidade de suaviagem repentina e pediu desculpas por partir sem falar cara a cara comigoe disse que Eric tomaria conta de mim, disse para eu confiar nele e nãosair sozinha.

Por que não posso sair sozinha? Henry não disse. Por que acordei numhospital? Henry não disse.

Talvez não estivesse contando com minha perda de memória recente.Espero que Eric possa esclarecer algumas de minhas dúvidas. Ele deve

saber, já que estudamos juntos e é próximo do meu irmão. Mas esperoque não queira esclarecer suas dúvidas comigo.

Sim.Posso imaginar o que deve estar se perguntando, o que é totalmente

natural, em razão de tudo que aconteceu... De tudo que viu.Mas não posso contar. Há coisas... coisas que não posso mesmo contar.

Coisas que ele acharia loucura. Que é loucura.Fecho a torneira do chuveiro e aguardo a água escorrer um pouco,

desaparecer pelo ralo. Um minuto depois, saio para procurar uma toalha.Acabo encontrando uma pilha dentro da bancada da pia. Puxo uma delase lanço ao redor do corpo. Ao passar na frente do espelho, dou umaolhada rápida em mim mesma.

Não tenho medo de você..., ele disse.Eu matei uma pessoa brutalmente, e ainda assim ele não tem medo de

mim. Será que estava dizendo a verdade?Saio do banheiro com demasiada cautela, olhando de esguelha para os

lados. Eric não está à vista, e aproveito a ausência para visitar seu próximoespaço.

O closet.Como tudo que já vi na casa, é amplo e primoroso. No fundo, a parede

é um espelho gigantesco. No centro, há dois sofás redondos sem encosto.

As laterais estão repletas de araras de camisas, jaquetas e blazers. Calçasjeans e sociais e de moletom estão organizadas separadamente em pilhas.Tênis. Sapatos. Tudo catalogado. Perfeitamente arrumado.

E ele diz que mora aqui sozinho. Como dá conta de arrumar isso tudo?Estou impressionada e curiosa.Minha barriga ronca de fome, assustando-me. Nossa. Estou faminta.

Apresso em escolher algo para vestir. Não me demoro muito e apanhouma camisa social preta de tecido confortável. Em frente ao espelho, enfioos braços nas mangas e fecho os botões. Parece adequadamente grande.

Acho que só falta uma coisa...Sentindo-me atrevida, abro uma das várias gavetas do closet e encontro

o que procurava. Cueca box! Há tantas. Sorrindo, pesco uma preta daCalvin Klein e visto-a. Graças ao meu bumbum avantajado, fica perfeita eme sinto muito melhor agora.

Faço uma coroa de trança para afastar o cabelo do rosto, em seguidasaio do closet e do quarto. Eric está entrando na sala de estar, limpandoas mãos na calça, justamente quando apareço.

Ele estagna no meio do passo ao me avistar, e finjo não perceber seusolhos explorando-me dos pés à cabeça. Controlo minhas mãos quequerem puxar a barra da camisa para baixo.

‒ Bem ‒ diz ele, malícia pura e irreprimível reluzindo seus olhoscristalinos ‒, vejo que a senhorita optou por manter o decoro.

O quê?! Será que ele realmente esperava que eu ficasse nua?Encaro-o com um olhar astuto.‒ É impressão minha ou o senhor parece desapontado?‒ Talvez, um pouco, sim ‒ admite ele na maior cara cínica. ‒ Sabe,

não é todo dia que há uma extraordinária espécime feminina circulandopelos aposentos da minha humilde residência.

Extraordinária?Ninguém nunca disse isso para mim. Disfarço o quanto aprecio o

comentário.‒ Sinto muito por estourar sua bola ‒ falo, usando um tom indiferente

e formal que não o desencoraja.‒ Sente mesmo? ‒ pergunta, os lábios se erguendo num lindo sorriso

cafajeste.

Suspiro alto, repreendendo-o. Ele levanta as mãos na defensiva.‒ Foi a senhorita quem começou ‒ diz.‒ Mas que... ‒ arfo, chocada. Mudo de ideia sobre o que ia reclamar e

digo: ‒ Quer saber? Se não se importa que eu fale... Estou com fome.Ele dá risada e recomeça a andar.‒ Só um minuto, Vossa Graça, e serei todinho seu.Como?Eric passa por mim e some pelo quarto. O que ele foi fazer? Fico

plantada no meio da sala de estar, devaneando, até que ele retorna, sem ajaqueta de couro e arrumando os cabelos castanho-dourados.

‒ Venha comigo ‒ diz ele, saindo à frente no corredor.Eu o acompanho feito um cachorrinho até a... cozinha. Paro na entrada

a fim de observar mais um novo espaço. Vidro parece ser decoraçãocrucial por aqui, e sendo assim, nem me impressiono ao encontrar metadede uma parede servindo de janela para o lado de fora.

Tudo é branco e cinza. Elegante e moderno. Exagerado para alguém quemora sozinho. A bancada dispõe de quatro lugares... e ele disse que nãorecebe visitas. Quem é esse garoto? Por que tem uma casa no meio dafloresta? Minha curiosidade por ele só aumenta, e não sei se é uma coisaboa.

Preciso segurar minha língua, mas...‒ Café, chá ou suco? ‒ pergunta Eric, arrancando-me dos devaneios.‒ Hum... café. Preto. Forte ‒ balbucio e vou me sentar à bancada. ‒ Ei,

er... hum. Não estamos no complexo privativo, estamos? ‒ perguntoincontrolavelmente.

‒ Não. ‒ Eric se vira para o balcão do armário e liga a máquina de caféali em cima. ‒ Este lugar fica dentro do Parque Nacional de Íris.

‒ O quê?! Mas isso praticamente do outro lado da cidade.‒ Você conhece.‒ Claro que conheço. Morei nessas imediações por alguns anos.Eric retorna à bancada com os pratos e uma travessa de pão de forma.

Deixa-os ali, em seguida se encaminha a geladeira.‒ Por que foi embora? ‒ pergunta ele, a voz rouca soando casual.Matei alguém.Droga.

Ele sabe mais sobre mim do que eu pensava.‒ Perdi alguém ‒ respondo, aliviada por Eric estar de costas.‒ Você se refere ao seu pai. ‒ Não é uma pergunta.‒ Como sabe que... ‒ Meu estômago despenca.‒ Você me contou.‒ Contei?!‒ Sim.‒ Uau!‒ Por que a surpresa? ‒ indaga ele, fitando-me agora.Sorrio um pouco, nervosa, mas disfarço isso. Ele caminha para perto da

bancada e põe uma vasilha de uvas verdes diante de mim.‒ Eu nunca falo do meu pai... com ninguém ‒ admito. ‒ Eu devia gostar

de você...Ele arqueia a sobrancelha.‒ Digo... eu devia confiar em você ‒ corrijo-me, morta de vergonha.O que deu na merda da minha língua?Eric ri baixinho.‒ Sim. Talvez. ‒ Me dá as costas de novo, desta vez para apanhar xícaras

e pires no armário de aço.Ficamos os dois em silêncio, e mais uma vez me pergunto por que não

consigo me lembrar de absolutamente nada sobre ele e nem sobre o queaconteceu nos dias antes de ser hospitalizada... antes de sofrer uma tentativade assassinato...

‒ Eric? ‒ eu o chamo, sem me controlar de novo.‒ Sim? ‒ murmura ele ainda de costas.‒ Como... Como eu fui parar no hospital? ‒ pergunto, ignorando meu

temor pela resposta.Eric fica de frente para mim, o rosto fantasticamente belo em uma

fisionomia impassível. Seus olhos são tão verdes...‒ Você caiu das escadas. Foi um acidente ‒ diz ele, direto e conciso.Caramba.‒ Onde? Há quanto eu dias eu estou...‒ Três dias. Estávamos na festa de inauguração da empresa de Henry...Estávamos?‒ Você pisou na barra do vestido e se desequilibrou.

Ah, não! Espero que isso não tenha sido na frente de todo mundo.Fico mortificada.‒ Do que você se lembra, Aurora? ‒ pergunta Eric.Levo um tempo para lhe dar uma resposta, evocando da minha mente

as últimas lembranças que possuo antes de acordar no hospital. Nãoconsigo me lembrar dessa festa...

‒ Eu cheguei da escola. ‒ Imagens embaçada surgem uma atrás da outra,e tento a partir disso formar uma história, mas nem sei se algumas delasreferem-se àquele dia. ‒ Eu liguei para minha mãe... para Safira e... li umlivro, eu acho...

‒ Um livro. ‒ O queixo de Eric se aperta. Ele desvia os olhos dos meus.‒ É, eu... ‒ Pressiono as pálpebras com as pontas dos dedos. ‒ Não

tenho certeza se estou lembrando do que deveria. Por quanto tempo achaque essa... amnésia vai durar?

‒ Não faço ideia. ‒ A voz de Eric está desigual.Abro os olhos e o vejo de costas, suas mãos brancas em punhos em

sobre o balcão do armário. Seu corpo parece estar tremendo!‒ Tudo bem com você? ‒ pergunto, incomodada com o calafrio que

começa a deslizar por minha coluna repentinamente. ‒ Eric...Ele se vira.‒ Sim. Tudo bem ‒ diz. Sorri. ‒ Você... você tem certeza sobre a escolha

do café? Pode prejudicar seu sono e você precisa descansar.Não, não preciso.‒ Obrigada, mas eu tenho certeza, sim.Não digo a ele que não vou dormir, que não posso, que não devo. Não

é seguro. Não digo que só Deus sabe o que me espera se eu fechar osolhos e cair na inconsciência.

Eric

"Pesadelo."

Encosto na bancada do armário, bebericando suco de laranja direto da

garrafa, e observo-a comer o sanduíche com um ar de absoluta apreciação,os olhos quase fechados enquanto saboreia. É uma iguaria que costumopreparar apenas para mim: pão de aveia e mel, patê de frango, alface eumas gotas de azeite de oliva. Modéstia à parte, é muito bom. Eu adoro.Acho que agora ela também, e de um modo bizarro me sinto satisfeito porisso.

Se alguém me dissesse que meu dia acabaria assim, eu não teria acreditado.‒ Humm... humm... isto está maravilhoso ‒ comenta Aurora, lambendo

os lábios.A visão atiça meu corpo.‒ Obrigado. ‒ Afasto o olhar de sua boca carnuda. ‒ Você quer eu

prepare outro? ‒ indago em um raríssimo momento de bondade, já mepreparando para fatiar o pão.

Ela devia aproveitar essa vibe. Mas responde:‒ Não. Estou satisfeita. Obrigada. ‒ Dá uma pausa. ‒ E você? Não vai

comer?‒ Não. Não vou. ‒ Perdi o apetite no momento em que a vi usando

minha camisa favorita.‒ Está de dieta?‒ Não faço dieta ‒ murmuro, percebendo tarde demais que ela quis

fazer uma piada.Isso é diferente.Giro cento e oitenta graus para fitá-la. Sua expressão marota está

direcionada para o sanduíche agora. Acho que está reprimindo umsorrisinho. E penso que comida e banho lhe beneficiaram, afinal. O olharassustado sumiu junto com a postura alerta, defensiva... e paranoica.

‒ Você parece bem ‒ comento inadvertidamente ‒ considerando...‒ Considerando que matei uma pessoa? ‒ ela completa a frase,

supondo, o olhar alegre se transformando em carrancudo e frio. ‒ Éisso que ia dizer?

Ela está brava? Sério? Rio com deboche.‒ Não. Na verdade, não ‒ disparo. ‒ Eu ia dizer considerando o estado

lastimável em que a encontrei no quarto de hospital e a relutância empassar a noite aqui comigo. ‒ Meu tom de voz é rude em consequência dodela.

Aurora baixa os olhos, culpada.‒ Ah. Desculpe.Pegue leve com a menina, Eric.Droga.Aperto os olhos com as pontas dos dedos para me acalmar e lembro a

mim mesmo que estou terminantemente proibido de perder a cabeça comela, de irritá-la. Há muitas questões em jogo. Preciso controlar meu gênioou tudo que estou fazendo terá sido em vão.

‒ Tudo bem, tudo bem ‒ falo, amaciando a voz, e saio do lugar. ‒Termine de comer. Eu vou...

‒ Espere. Preciso perguntar uma coisa.Ah, meu Deus. De novo?‒ O que é? ‒ Volto-me para ela.Pela sua cara, vejo que está reunindo coragem, vejo-a vacilar e

posteriormente respirar fundo. Intrigado, espero.‒ O... o que você fez... ‒ diz por fim, gaguejando e aflita, como se

tivesse medo de algo. ‒ O que você fez com... com o corpo?Ah, é isso.‒ Eu queimei ‒ respondo, direto demais.Ela empalidece, despencando da cadeira, e se apoia no balcão, a boca

aberta em choque.‒ Você... o quê?! ‒ Sua voz falha.Arqueio a sobrancelha.

‒ Não ouviu mesmo ou só está chocada? ‒ indago com o olhar estreito.E ela parece que vai vomitar a qualquer instante. Era só o que me faltava.‒ Eu não acredito no que fez. ‒ Sacode a cabeça.‒ Não acredita no que eu fiz?! ‒ rosno, rindo alto de raiva e

incredulidade. ‒ Que hipocrisia do caralho é essa? ‒ Não consigo mecontrolar. ‒ Você retalha o peito de um homem adulto com um bisturi,enche a cara dele de porrada a ponto de deixá-lo sem os dentes e nãoacredita no que eu fiz?! ‒ pergunto, inserindo um sarcasmo frio naspalavras. ‒ Você só pode estar de gozação com minha cara.

Aurora tropeça para trás, a pele cor de canela ficando ainda mais pálidae, por meio segundo, me arrependo de tudo que disse. Quero retirar,quero retirar cada merda de palavra. Mas ela se manifesta antes que eupossa:

‒ Ele tentou me matar ‒ diz, à beira das lágrimas, o tom embargado. ‒Ele tentou me sufocar sabe-se lá por quê... Eu só... só estava medefendendo. Eu só...

‒ E eu não tive opção, droga ‒ retruco, furioso com ela e comigo,principalmente comigo. Por que me importo com o que ela está sentindo?‒ Não entende que suas impressões digitais deviam estar por todo o corpodo sujeito, e as minhas também?! Era isso ou... isso. Sem meio-termo. ‒Meu tom de voz não para de aumentar. ‒ E quer saber? Você devia meagradecer. Salvei sua pele. De novo! ‒ deixo escapulir, em minhafrustração.

Ela pestaneja, desnorteada, e avança os passos que nos separam.‒ O que quer dizer?Dou meia volta, contornando a bancada para me afastar dela, para sair

da cozinha. Mas sua mão direita agarra os meus bíceps na intenção de nãopermitir que eu vá embora. Ela é mesmo forte. Não consigo me livrar.

‒ Ei, o que quer dizer? O que está escondendo?Eu aproximo dentro de um ímpeto e solto:‒ Acho que eu poderia lhe fazer a mesma pergunta. ‒ O olhar dela se

agita com temor e culpa. Agora sabe que estou desconfiado. ‒ Boa noite,Srta. Aurora ‒ digo, encerrando a conversa.

Ela me solta, e mesmo sem querer, acabo presenciando uma lágrimaescorrer de seus olhos, antes de dar o fora da cozinha.

DROGA!Espalmo as duas mãos na parede e, olhando lá para fora, me concentro

na paisagem a fim de não atravessar meu punho no vidro. A torrente deágua morna cai na minha cabeça, lava meu corpo, mas não arranca o rostomelancólico dela da minha mente, muito menos o sentimento de ter sidoresponsável por isso.

Não estou acostumado a me sentir assim... não por causa de umagarota. E Aurora... bem, é Aurora.

Mentirosa. Suspeita. Perigosa. Possivelmente uma ameaça.Afinal de contas, por que outro motivo as harpias estariam tramando

tantos ataques? Controlando humanos para fazerem o trabalho sujo?Sim.Aquele homem ‒ que nem era funcionário do hospital ‒ foi seduzido a

matá-la sem sombra de dúvidas. Pude sentir o cheiro característico deharpias nas roupas dele.

Mas o pobre infeliz se deu mal. O plano não funcionou do pior jeito.Provavelmente não contaram com a força sobrenatural de Aurora, e issomostra que não sabem tanto sobre ela. Talvez estejam dando um tiro noescuro.

E agora, eu me questiono qual será o próximo passo e em quanto tempoele virá depois de descobrirem que ela ainda está vivíssima, depois dedescobrirem minha participação; quanto tempo até eu virar um alvo porcontinuar protegendo-a publicamente.

QUANDO SAIO DO BANHEIRO, Aurora está sentada na minha cama com os

braços ao redor das pernas e o queixo apoiado nos joelhos. Não está maischorando. Ao me ver, ergue os olhos redondos e os desvia rápido numjorro de constrangimento. Será que é por que estou apenas detoalha? Caminhando para o closet, fico com a sensação de que seu olharme segue, mas não me viro para ter certeza.

Sem demora, visto uma cueca, calça de moletom e camiseta. Nada dedormir sem roupas hoje. De volta ao quarto, sigo direto à saída, sem nemuma olhadela para o lado e, ao passar pela porta, puxo os prendedores da

cortinas que caem e selam a entrada.Não sei se faço isso por ela ou por mim.Indo me acomodar no sofá, checo o relógio na parede: já passa da meia-

noite. Não tenho sono e não acho que ele vá chegar tão cedo. Mas,mesmo assim, espalho as almofadas e me deito. Encaro o teto. Em umareação inconveniente e automática, minha mente viaja para a damadescansando no aposento ao lado.

Que droga!Corrijo isso. Penso em outra coisa. Mas minha cabeça está cheia de

Aurora e não há espaço para mais nada. Foi uma péssima ideia tê-latrazido para cá. Nenhuma mulher, além de Ayla, já pisou os pésaqui, nesta casa que considero meu santuário. Um refúgio para a minhavida... tumultuada. Onde posso descansar e fingir que não sou ummonstro, ainda que por pouco tempo.

Lembro-me de quando encontrei este lugar, de como me dediquei arecriar cada centímetro dele, de como me descobri alguém além de uminstrumento da Trindade. Alguém melhor. Com talentos naturais.Alguém que eu conseguia encarar no espelho e podia me orgulhar deverdade e ser orgulho de outros.

Isso sempre teve um valor importante para mim, embora eu jamaisadmitisse em voz alta.

Não suporto implorar por... reconhecimento. Atenção. Ou qualqueroutra coisa. Eu gosto de merecer. Ser digno. Mas estou sempreaqui, em meu mundo sempre virado de cabeça para baixo, esperando ser...visto... de alguma forma. Isso é normal? Esse tipo de coisa acontece comtodo mundo? Ou estou sendo um idiota solitário e sofredor?

É. Talvez eu esteja.Que patético, Eric.Remexo-me no sofá e fecho os olhos, mas um grito arrepiante ecoa pela

sala de estar e me faz reabri-los. Todo o meu corpo esfria, arrepiando-se.É o grito dela. E se eu já não o tivesse ouvido antes, teria hesitado. Masagora, estou saltando do sofá antes que Aurora grite novamente, e corropara o quarto.

Uma vez lá dentro, encontro-a se debatendo entre lençóis e almofadas,os olhos cerrados e uma fisionomia de extrema angústia. Seus gritoscontinuam e parecem que vão arrebentar os vidros da janela.

Há uma familiaridade na situação que me apavora. E nesse meio tempode horror, sinto-me de volta à época em que era humano e lidava com ospesadelos de uma mãe muito doente.

Preciso acordá-la.Disparo para a cama.‒ Aurora! Aurora! ‒ grito, sacudindo seu corpo.Ela abre os olhos marcados pelo medo e fica sentada soluçando

ruidosamente, o rosto lavado de suor. Amparo-a pelos ombros e, quandoseu olhar encontra o meu, ela me empurra.

‒ Fique longe de mim!Uma força incrível me lança para fora da cama. Caio no chão.‒ Mas que porra!Fico de pé. Ela está quase no limite do colchão agora, os olhos cheios

de lágrimas me encarando como se eu fosse uma ameaça... um monstro.Ah, maldição!‒ Fique longe de mim ‒ ela avisa de novo, aos prantos.O que está acontecendo? Não está me reconhecendo outra vez?Talvez seja efeito do pesadelo. Meu peito se comprime.‒ Aurora. ‒ Ergo as mãos para mostrar que não vou encostar nela.‒ Não... não se aproxime...! ‒ grita ela, desvariada, escondendo o rosto

nas mãos.Eu aproveito a oportunidade para dar dois passos.‒ Olha para mim! ‒ ordeno.Ela obedece. Percebe que estou mais perto.‒ Não... não... por favor... não ‒ diz, várias e várias vezes. ‒ Não me

machuque ‒ implora.O quê?!‒ Ei, não... Não vou machucá-la ‒ prometo. ‒ Está tudo bem. Você está

segura. Eu juro. Você...Ela salta da cama e lança almofadas em mim, na direção do meu rosto.

Esquivo-me. Qual é, garota. Ela corre para a porta a passos largos e ágeis.Por sorte, consigo passar meus braços ao redor de sua cintura e puxá-lasuavemente para o meu peito. Ela começa a se balançar e gritarloucamente, e tenho de usar muita força para mantê-la presa.

‒ Você. Quer. Parar? ‒ Faço-a ficar de frente, agarrando seus pulsos,

girando-a, e fico rezando para que ela não me dê um chute no saco.Sua fisionomia estranhamente começa a oscilar entre raivosa e

desesperada, assustando-me. Traços de dor e medo se transformando empura ira.

Que porra é essa?‒ Solte-me! ‒ grita ela, sacudindo braços e pernas. ‒ Solte-me ou mato

você... mato você!‒ Mata, é? ‒ falo, empurrando-a para a cama.Não provoque, Eric.‒ Espere para ver ‒ ameaça ela, os olhos cheios de repugnância. ‒ Eu

vou rasgar seu peito e arrancar seu coração.‒ Estou morrendo de medo, amor.Ela pisca, e ambos caímos sobre o colchão. Monto sobre ela e junto suas

mãos ao lado da cabeça conforme inclino o corpo para aproximar meurosto do seu, que voltou a expressar agonia e desespero.

Isso está me enlouquecendo.Ela recomeça a chorar e implorar por misericórdia, se rebelando

embaixo de mim.‒ Vamos, Aurora ‒ sussurro, suplicando. ‒ Você não precisa ter medo.

Sou eu. Eric.‒ Não... não faça isso. Por favor, não faça isso comigo ‒ choraminga,

sem me dá ouvidos. ‒ Não me mate... por favor... não me mate.Sua dor é asfixiante. Quero arrancá-la de dentro dela, despertá-la dessa

loucura, mas não sei como.E em minha impotência, ajo sem pensar. Eu a beijo. Esmago seus lábios

com os meus. Ela enrijece de surpresa, depois relaxa, parando de lutar.Sua boca tem gosto de lágrimas, desespero e flores, e retribui meu beijo.

Porra.Fico ofegante, desejando intensificar o clima entre nós, mas me

contenho. É uma atitude muito difícil. Meu corpo se incendeia, soltafaíscas e parece prestes a explodir com a vontade reprimida.

Caramba.É uma reação inédita. Dominadora. Me faz não querer recuar. Mas sei,

no fundo eu sei, que preciso e devo fazer isso. Por ela. Por mim.Dessa maneira, afasto o rosto, descanso minha testa na dela e respiro

fundo. Nossos lábios ainda estão a centímetros um do outro. Estousurpreso com meu desejo de beijá-la de novo.

Só mais uma vez.Na verdade, acho que a única coisa que me impede é o seu olhar fixo

em mim. Ela nem pisca, o peito subindo e descendo, imitando o meu.‒ Por favor, diga que voltou para mim ‒ peço, desarmado, quase

implorando.Ela pestaneja enfim, não mais como um animal amedrontado, posso

perceber. E o pavor, antes no seu semblante, desaparece quase queinstantâneo.

‒ Eric! ‒ Aurora arfa o meu nome e desata a chorar, as lágrimas rolandoprofusamente.

Dou um suspiro profundo de alívio, solto suas mãos e saio de cima delapara me sentar na cama. Ela me acompanha, sentando também. Não tiraos olhos do meu rosto, em seguida se lança em cima de mim, os braçosenvolvendo meu pescoço e me puxando contra o seu corpo.

‒ Ah, meu Deus...! Eu sinto muito. Me perdoa. Eu sinto muito... ‒balbucia, enterrando o rosto na curva do meu ombro.

Aperto seu corpo trêmulo com carinho e acaricio suas costasvagarosamente, sentindo sua respiração pesada na minha pele.

‒ Não se desculpe. Você não precisa se desculpar.Sua irresistível fragrância floral me sufoca e atiça. E não me contenho:

beijo seu cabelo perfumado.‒ Foi só um sonho ruim, Aurora. Está tudo bem ‒ sussurro e me deleito

no contato abrasador de nossas peles. ‒ Não era real. Volte a dormir.Você...

‒ Não! ‒ ela se agita, me apertando mais forte. ‒ Não posso dormir...não posso... não quero machucar você... não quero...

‒ Ei, ei ‒ tento recuar, tirar seus braços do meu pescoço.‒ Por favor, não me deixe... Eu não sei por que isso acontece comigo,

mas não me deixe...‒ Não vou ‒ prometo para apaziguá-la. ‒ Mas você precisa dormir. ‒

Olho o relógio.Ainda são uma hora da madrugada. É muito cedo para ela se manter

acordada até o amanhecer.

‒ Não posso dormir ‒ ela continua dizendo. ‒ Se eu voltar, vou terpesadelos. Por favor, Eric, não me deixe dormir... Por favor... não medeixe...

Meu Deus! É o mesmo drama. Mais uma vez posso enxergar afamiliaridade da circunstância. Talvez eu consiga acalmá-la como faziacom minha mãe. Será que vai funcionar para Aurora também?

Só um jeito de saber.‒ Ei, olhe para mim, me escuta ‒ murmuro, colocando seu rosto em

minhas mãos. ‒ Vou tocar para você. ‒ Aliso sua bochecha, ternamente, esorrio. ‒ Está bem? Vou tocar para você e... e enquanto eu estivertocando, você vai fechar os olhos e se concentrar na música.Entendeu? Vai se concentrar na música e vai adormecer, bem devagar,sem se dar conta e vai ter lindos sonhos. ‒ Tenho total atenção dela agora.‒ Você vai sonhar com flores e arco-íris e céus estrelados e alguém quevocê ama imensamente vai estar lá com você, vai protegê-la. Confie emmim, Aurora. Você confia em mim? ‒ pergunto.

Ela faz que sim mesmo com os olhos marejados de lágrimas. Meuslábios se repuxam em um sorriso maior, sincero e aliviado.

Ela confia em mim.‒ Fique aqui ‒ falo para ela, saindo da cama. ‒ Deite-se. Estarei logo ali,

atrás do piano.Ela me obedece, me deixa ir, e se ajeita no colchão em posição fetal,

abraçando uma almofada. Eu me sento ao piano, levanto a tampa doteclado e hesito sobre o que tocar. Só dura um instante essa hesitação, eentão me lembro da tatuagem que Aurora tem acima do tornozelo. Eu a viquando a colocava no carro, depois que saímos do hospital.

Uma bailarina. Ela tem a tatuagem de uma bailarina acima docalcanhar. Pode não ter nenhum significado grandioso ou importante,mas tenho certeza de que ela conhece o balé dramático deTchaikovsky: Lago dos Cisnes. Era a peça favorita de mamãe. Aprendi atocar só para agradá-la.

Mas, neste momento, toco especialmente para Aurora.Ela está me observando da cama, olhos esbugalhados e

reluzindo; parece lindamente encantada, tanto que nem pisca, enquantoos acordes de Lago dos Cisnes soam entre nós, enchendo o quarto.

Quando os termino, toco outro vez. E outra vez. Aurora continua meadmirando, e sem emitir nenhum som articulo as palavras feche os olhos.

E suas pálpebras descansam.Não tenha medo, amor. Estou aqui. Não vou embora.Que porra você está pensando, Eric?Quando acho que Aurora está finalmente dormindo, paro de tocar,

afastando meus dedos das teclas com lentidão. Minha cabeça de repenteestá a mil por hora, processando cada acontecimento por vez, cada ação ereação, e as motivações por trás delas.

Meu alter ego está chocado e com ódio, e subjugado por uma enxurradade sentimentos mais fortes do que ele, maiores do que ele.

Isso é possível?Não acho uma resposta. Não que eu a procure. Pois agora só o que

consigo imaginar é o motivo de o meu coração está aquecido efuriosamente disparado, de o meu corpo está sendo engolido por essaavalanche extraordinária de emoções e sensações que queimam e arrepiame se envolvem.

É impossível descrever cada uma delas, e não é nada semelhante a algoque eu já tenha experimentado antes, o que as tornam magníficas e aomesmo tempo inexplicáveis. Mas são reais. Me fazem querer que duremmais um pouco, me fazem querer parar o tempo. Me fazem esquecer tudo,o que estou fazendo e o que deveria fazer; me fazem esquecer o meunome, minha identidade.

Deus.Eu poderia até morrer agora.

Aurora

"O que não estou me lembrando?"

Desperto paulatinamente de um sono pesado e profundo com a

claridade inundando o quarto e me vejo sozinha. Estou abraçada a umaalmofada verde felpuda e muitas outras delas estão espalhadas ao meuredor... e no chão. Fico muito quieta, quase sem respirar, lembrando omotivo de elas estarem ali, em seguida procuro por ele.

Ele que sabe que matei violentamente um homem adulto com socos egolpes de bisturi, que me viu tendo um ataque de pânico por causa disso emais tarde me arrancou de uma alucinação sonâmbula com um beijo.

Um beijo.Toco meus lábios com as pontas dos dedos e suspiro e suspiro e suspiro.

Meu rosto de repente quente. Minha pele de repente ardente. Meu corpode repente... pegando fogo.

Aahhh!Viro-me na cama em uma tensão sexual alarmante e inesperada e fico

sentada. Espero as labaredas, os arrepios e as contrações em meu ventrecederem. Engulo o desejo latente que se acumula em minha boca. Suplicoao meu coração que pare de palpitar tão forte.

Ah, meu Deus!Estou perdendo a cabeça. Definitivamente. Porque não sei de onde vem

tudo isso, porque não tenho nenhuma lembrança sequer disso...lembranças dele.

Estou perdendo a cabeça. Definitivamente. Porque gostei do beijo.Porque quero outro. Porque quero... mais.

Estou perdendo a cabeça. Definitivamente. Porque isso não me assusta

e deveria... deveria mesmo... mas...‒ Bom dia, Vossa Graça.Quase quebro o pescoço ao virar o rosto na direção da voz.Eric está parado na entrada do quarto, lindo de morrer, usando apenas

uma calça de moletom que deixa a mostra a linha dos seus quadris.Ele parece ter saído do banho faz pouco tempo. Seu cabelo revolto está

úmido e escuro, caindo na testa. A barba, reparo, foi aparada. Seus olhos verde-água estão ofuscantes feito oceano em dia de sol. Sua

expressão é séria, mas calma. Há uma obra de arte por todo seu braçodireito até o peito.

Absurdamente sexy. O homem é absurdamente sexy.Perfeito.Um Deus Grego.Adônis.Vê-lo dessa maneira está destruindo meu psicológico. Muito rápido.

Engulo em seco. Não consigo desviar os olhos. Não quero desviar osolhos. Mas talvez devesse dizer alguma coisa. Ele está esperando.

‒ Bom... bom dia ‒ gaguejo, saindo da cama, e percorro as mãos pelocabelo e nas roupas.

Estou toda desgrenhada e não quero que ele me veja assim. Mas éclaro que isso é uma tremenda bobagem da minha parte, a julgar portodas as outras coisas que ele já presenciou. E não foi embora, não meentregou para outra pessoa. E é tão reconfortante. E me sinto tão grata...se ele soubesse o quanto me sinto grata...

Eric enfia as mãos nos bolsos da calça e anda até o lado oposto da camaem que estou em pé, me oferecendo uma visão privilegiada do seu peitoralsarado, dos braços musculosos e das tatuagens ‒ um intrincado desenhode árvores, pássaros, flores, símbolos irreconhecíveis e... um rosto...

Pisco repetidamente para a forma sinistra no peito dele e meu sangueestá quente de uma fúria gigantesca e familiar que parece ressurgir dedentro do meu âmago. Minha cabeça inexplicavelmente está explodindoem dor, minhas pernas perdem as forças, dobrando-se sem o meucomando.

Estou caindo, enxergando tudo preto, mas não chego ao chão. Osbraços fortes de Eric estão ao meu redor antes que eu pensasse ser capaz,

segurando-me rente ao seu corpo perfumado. Pairo minhas mãos sobreeles, fincando minhas unhas na sua carne macia e firme, querendo... feri-la.

Ah, não. Agora não.‒ Aurora? ‒ Sua voz, seu hálito... bem perto. ‒ Você está bem?E tudo passa: a raiva, a dor, a sensação de fraqueza.Some. Simples assim.Abro os olhos que não sei quando os fechei e encontro a face perfeita

de Eric talhada em preocupação. Tento dizer alguma coisa que alivie essesentimento, porém eu mesma estou cheia dele.

‒ Sim... eu... ‒ balbucio em uma vontade gigantesca de chorar,diminuindo a pressão dos meus dedos na pele dele. ‒ Desculpe... medesculpe... eu sinto... ‒ Trinco os dentes, baixo os olhos, envergonhadapor meu desejo assassino. Não quero chorar. Não vou chorar.

Respiro fundo. Ele levanta meu rosto com a ponta do dedo indicador,fazendo-me encontrar as águas verdes dos seus olhos. Seu outro braço ‒ otatuado ‒ permanece ao redor da minha cintura, firmando-me.

‒ Por que está se desculpando? ‒ ele me pergunta, atencioso.‒ Você quer uma lista? ‒ Eu rio a risada de uma bêbada.‒ Você tem uma lista, Srta. Aurora?‒ Ah, sim. Pode acreditar que sim.Ele ri do sarcasmo na minha voz, revelando as covinhas, e recua uma

mecha do meu cabelo para atrás da orelha, sua mão indo parar na minhanuca, dedos entre os meus cabelos.

Estremeço.‒ Eu sou uma catástrofe, Sr. Eric ‒ aviso-lhe seriamente, honestamente,

sem me importar se estou me denunciando. ‒ Eu sou uma grandecatástrofe. Sabe que não está nem um pouco seguro ao meu lado, não é ‒é menos uma pergunta do que um fato óbvio.

‒ Sim.‒ Então porque ainda está aqui?‒ Eu gosto do perigo.‒ Você é louco.‒ É o que me dizem.Ele dá de ombros.

‒ Ainda assim. ‒ Olho-o nos olhos. ‒ Não devia ter que lidar comalguém como eu...

‒ Alguém excitantemente instável e perigosa?Ele inclina a cabeça, o olhar de pura malícia mergulhado no meu, suas

palavras enviando arrepios e alertas para todo o meu corpo, e mepergunto agora quanto tempo até ele descobrir meu terrível segredo.

‒ Como eu disse: gosto do perigo.Eric afasta a mão do meu pescoço para me apertar a ponta do queixo, e

redireciona a conversa, inserindo um espaço entre nós, soltando-me dosseus braços.

‒ Como está se sentindo agora?‒ Bem.‒ Isso é ótimo. Vou deixá-la à vontade para tomar banho e se trocar.

Estarei esperando-a para o café da manhã.‒ Ok... Certo. Obrigada.Preciso mesmo ficar um pouco sozinha. Talvez ele esteja percebendo

isso.‒ Até mais, Aurora.‒ Até.Fico observando-o sair do quarto e desaparecer do meu campo de visão.

Em seguida, rumo ao banheiro. Não me dou a chance de pensar emqualquer coisa dessa conversa ou do que senti quando vi a tatuagem nopeito de Eric.

E ao passar pela porta e fechá-la atrás das minhas costas, tenho a sortede encontrar algo com que me distrair.

Uau!!Estou boquiaberta.Encantada.Lembro-me claramente de quando coloquei os pés na Ilha de Íris pela

primeira vez a quase oito anos atrás, de como detestei o lugar logo de carae como mal podia esperar para retornar a Londres.

Mas meus pais tinham outros planos, planos diferentes dos meus. Elesresolveram firmar residência aqui, retomar um antigo negócio: ajoalheria, que hoje pertence ao meu irmão.

Eu surtei com a novidade; Henry, nem tanto. Ele pareceu gostar da ilha

e me ajudou nas adaptações, revezando-se com minha mãe para memostrar os lugares mais bonitos da cidade.

Mas nada, nada do que vi com eles se compara ao que vejo agora. E éexatamente como pensei ontem: a vista do banheiro para o lado de fora éextraordinária pela manhã.

E está um dia esplêndido hoje.O sol forte reflete sua luz nas águas que caem das cataratas de formatos

e tamanhos diferentes em direção ao imenso rio da cor dos olhos de Eric.A paisagem florestal ao redor é magnífica. Tons de verde, amarelo e

laranja mesclando-se em uma harmonia espetacular e quase mágica.Surreal.Quero conhecer esse lugar. Especialmente esse. Cada canto. Quero

nadar naquelas águas cristalinas. Quero deitar na grama e olhar para o céuazul até meus olhos se encherem de lágrimas e elas escorrerem por meurosto.

Quero fazer isso hoje.Sendo assim, é a primeira coisa que digo a Eric quando entro na

cozinha para o café da manhã. Ele está inteiramente vestido agora ‒calça e camiseta cinza ‒ e de costas para mim, enquanto expresso meudesejo de permanecer em sua casa por mais um pouco, se ele não seimporta, é claro.

Depois que termino de falar, ele se vira e diz:‒ Mi casa és tu casa.‒ Sério?! ‒ Meu sorriso é do tamanho da lua crescente.Ele entreabre os lábios como se, de repente, precisasse respirar pela

boca, e pisca. Seus olhos estão arregalados, desnorteados, fixos no meurosto.

‒ O quê? O que foi? ‒ A timidez fraqueja meu sorriso.‒ Nada. ‒ Eric sacode a cabeça. ‒ É só que... Você é adorável, Aurora.Minhas bochechas queimam, e penso se adorável é uma palavra muito

usada para descrever uma garota ou se ele só está sendo um cavalheiro.‒ Foi por isso que me beijou ontem à noite? Porque sou adorável ‒ a

pergunta me escapole, palavras ditas sem um pingo de hesitação, earrependo-me ao mesmo tempo que não.

Ele dá risada e, acomodando-se a cadeira, me convida a sentar com um

gesto de mão. A bancada tem comida para alimentar uma família de seispessoas: travessas de uvas, morangos, amoras; cestas de pães, torradas,bolachas; pratos de queijo, presunto, requeijão; jarras de suco, café, chá...

‒ Não, não foi por isso, boneca ‒ diz Eric, me passando uma taça bonitade frutas vermelhas mergulhadas em iogurte.

Então o que foi?‒ Obrigada. Parece delicioso ‒ murmuro, distraída.Sento-me no lugar em frente ao dele e, num determinado momento, me

flagro esperando uma resposta mais elaborada a minha pergunta, aindaque eu não faça ideia do porquê preciso de uma.

‒ As frutas vêm de um pomar aqui perto ‒ conta Eric, de súbito, a vozquase que despretensiosa.

Pergunto-me por que ele não quer contar a razão de ter me beijado eminha mente dá voltas.

‒ Mesmo? ‒ falo, usando um tom de surpresa para encobrir meudesapontamento quanto à sua tentativa de desviar o assunto.

‒ Mesmo. ‒ Ele sorri, misterioso. ‒ Foi uma ideia da minha mãe, opomar. Ela adora mexer com essas coisas. Posso levá-la lá, se quiser. É umlindo lugar.

‒ Eu quero.‒ Ótimo.Tento conter o nervoso. Tomo umas colheradas do iogurte. Está mesmo

uma delícia e parece ter sido adoçado com mel.‒ Você gosta de comida italiana? ‒ Eric me lança outra pergunta.Balanço a cabeça afirmativamente com a boca cheia de fruta, fazendo-o

rir enquanto come seu sanduíche. Engulo para dizer:‒ Você sabe cozinhar?‒ Ah, sim.‒ Bem?‒ Sim. Modéstia à parte, sim.‒ Onde aprendeu?‒ Praticando. ‒ Eric franze a testa. ‒ Na maior parte tempo fico

sozinho, então... ‒ Ele deixa a frase inacabada.Por um instante quero saber por que ele fica sozinho, mas aí percebo o

que está tentando fazer.

‒ Você é bom nisso, sabe? ‒ murmuro.‒ Em quê?‒ Em me distrair.Ele nega de leve com a cabeça, morde o lábio sedutor, toma um gole do

suco de cor vermelha. Olha para mim fixa e penetrante, como se pudesseenxergar todos os pecados da minha alma. Sinto-me exposta.

Nua.‒ Aurora, eu a beijei porque você parecia presa ao seu próprio

inconsciente ‒ fala Eric, e suas palavras são suaves demais, cuidadosasdemais, viajando direto ao meu coração para fazê-lo disparar. ‒ E o quequer que estivesse acontecendo lá dentro estava deixando-a tão fora de sique... ‒ Ele aspira, parecendo perturbado ‒... era impossível suportar. Nãoconsegui continuar assistindo... agi por impulso e... Você sabe. Eu sóqueria arrancá-la daquele tormento ‒ diz, olhos e palavras sinceros. ‒Desculpe se fui longe demais e você não...

Eu o quê?‒ Ei, não... por favor, não me entenda mal. Sei que agiu com a melhor

das intenções ‒ garanto a ele, balbuciando. ‒ Não estou chateada nemnada do tipo... Quero dizer... Como poderia? Seu beijo foi... foi... bom e...inocente. Nada mal para uma primeira vez ‒ acrescento debilmente, porfalta do que dizer.

‒ Primeira vez? ‒ Ele franze o cenho.‒ É. ‒ Coro. ‒ Primeira vez... primeiro beijo entre duas pessoas.Um celular começa a tocar em algum lugar próximo de nós. Eric se

levanta coçando o nariz, um sorriso contido erguendo-se nos cantos daboca.

‒ Boneca... hum... não foi o nosso primeiro beijo ‒ diz ele e sai emdireção à bancada do armário onde o aparelho está tocando.

‒ O quê?! ‒ Fico em pé, tropeço e me apoio na bancada. ‒ O que vocêdisse? ‒ pergunto para de novo ficar sem uma resposta imediata. ‒ Ei, oque você...

‒ Eric ‒ ele atende a chamada e vira-se para mim, o sorriso de diversãoainda reprimido nos lábios perfeitos. ‒ Bom dia, Henry.

Henry!‒ Claro. Sim, ela está aqui. Só um momento. ‒ Eric estende o celular na

minha direção. ‒ Fique à vontade.Depois que apanho o aparelho na sua mão, ele sai da cozinha. Giro no

lugar para ir atrás dele, então me lembro de que meu irmão está na linha.‒ Oi!‒ Ei, maninha. Como você está? MINHA CONVERSA COM HENRY é mais breve do que eu imaginei que

seria. Não conto a ele sobre a perda de memória e nem sobre o homemque assassinei no quarto do hospital, não quando ele já tem tantosproblemas e preocupações para resolver em São Paulo. Não é justo. Nãofoi para isso que vim morar aqui. Sendo assim, apenas o tranquilizo deque estou bem e que irei passar o dia com Eric.

Isso o surpreende, eu percebo, e sua surpresa me deixa ainda maisintrigada. É óbvio que existe muito mais no que diz respeito à minharelação com Eric. Nós já nos beijamos antes da noite deontem! Estou curiosa por saber como isso aconteceu. Estou curiosa pordescobrir por que me sinto como se o conhecesse há muito, muito tempo.Estou ansiosa por entender por que ele me trata como se não soubesseque matei alguém daquela maneira.

Sei que está desconfiado quanto ao que fiz... como fiz. Ontem à noite,demonstrou isso claramente quando o confrontei por ter dito que jásalvara minha vida antes.

Como?!Estou curiosa por isso também. Mas tanto aconteceu daquele momento

para cá. Parece que se passaram dias. Não sei mais como Eric se sente.Passar o dia aqui, afinal de contas, talvez me proporcione muito mais

do que dar uma olhada no lugar maravilhoso em que ele vive.O que mais aconteceu comigo?O que mais houve entre nós?O que não estou lembrando? ERIC ENTRA NA COZINHA trinta segundos depois de eu encerrar a conversa

com Henry.‒ Tudo bem? ‒ pergunta ele, perscrutando meu rosto, e ocupa seu lugar

na bancada.‒ Sim. Claro. ‒ Minha resposta é um pouco efusiva demais. ‒ Obrigada.

‒ Devolvo o iPhone a ele depois de retornar ao meu assento.‒ Não há de quê. Então, por onde você quer começar?‒ Começar?‒ O tour. ‒ Eric arqueia a sobrancelha.‒ Ah, sim. ‒ Bato na testa. ‒ Podemos começar... pelo pomar? Eu não

sei. Você é o guia. Por onde acha que devemos começar?Ele sorri, tirando os cabelos castanho-dourados da testa com um

deslizar de mão, e meus olhos acompanham o movimento do seu braçomusculoso e tatuado.

Desvio rápido.‒ Ok. O pomar é perto daqui. Vamos começar por lá ‒ decide Eric,

encarando-me.‒ Perfeito!‒ Após o café da manhã. ‒ Ele olha para minha taça de iogurte.‒ Após o café da manhã ‒ confirmo.E então voltamos a comer. MEIA HORA DEPOIS, PRENDO os cabelos em dois coques improvisados e

arregaço as mangas da camisa social azul-escuro que escolhi para o dia dehoje. Sorrio para o imenso espelho do closet, meus olhos arregalados ebrilhantes também sorridentes. Vejo euforia neles, ânsia, curiosidade,expectativa. Meu coração está cheio de algo que não sei descrever muitobem.

Eric está esperando por mim na sala de estar com as mesmas roupas queestava usando no café da manhã e está descalço. Eu também estoudescalça. Seu olhar inescrutável passeia pelo meu corpo inteiro antes defixar-se ao meu rosto, e meu estômago parece estar lotado de borboletasagitadas.

É estranho, mas bom.Que sensação é essa?‒ Vamos lá? ‒ Eric me estende a mão.Eu ando os passos que me distanciam dela e a pego.‒ Vamos lá ‒ sussurro.

O DIA COM ERIC é de longe o mais divertido e revelador que já tive em

muito tempo. Como havíamos combinado à mesa do café da manhã,nossa primeira parada foi no pomar de sua mãe. Ele me guiou durantetodo o trajeto até a área de dois quilômetro de plantação, onde colhemosuma cesta enorme de morangos, uvas, maçãs e laranjas. Subimos na árvorede jabuticaba (bem, eu subi enquanto ele ostentava lá embaixo suahabilidade de lançar a fruta para o alto e amparar com a boca). Eu tenteiimitá-lo quando voltei ao chão, mas o resultado foi desastroso. Eric sedivertiu muito com isso, o que me irritou um pouco. Só um poucomesmo, porque ele não se ofereceu para me ensinar, e eu estava superdisposta a aprender, ainda que não tivesse admitido.

É claro que, como o grande observador que é, ele percebeu.‒ Ei, Vossa Graça. ‒ Sua voz mágica e aveludada me alcançou, de

repente, enquanto eu marchava pelo caminho de volta ao chalé comminha cesta de frutas à frente do corpo.

Eu me virei relutante para atendê-lo e deduzi, através de sua fisionomiaséria, que ele devia estar se tremendo de rir por dentro.Imediatamente senti que meus lábios estavam formando um biquinho.

‒ Sim? ‒ eu disse e não quis ter soado tão magoada.‒ Por aqui. ‒ Ele apontou para uma trilha a sua esquerda. ‒ Vamos

fazer um pequeno desvio.‒ Por quê?‒ Quero lhe mostrar uma coisa.‒ Que coisa?Eu estava sendo ridícula, é claro. Eric riu, pegou minha mão de modo

que fui obrigada a mudar a cesta de frutas para o lado do corpo e meconduziu pela trilha nova. Fui em silêncio, mas meu coração estavafrenético só com a sensação dos dedos dele entrelaçados nos meus.

Ele me afetava muito fácil, eu descobri.‒ Você fica muito atraente quando está zangada ‒ disse ele após dez

minutos de caminhada.‒ Eu não estou zanga...Parei de retrucar quando chegamos ao nosso destino: um imenso

campo redondo de flores vermelhas, laranjas, rosas, brancas e lilás. O

perfume era incrível, misturado a brisa fresca que estava fazendo pelamanhã. Ficamos ali, por não sei quanto tempo, brincando de reconheceras espécies, espantando borboletas, apostando corrida entre a relva macia(eu permiti que ele me alcançasse e me agarrasse pela cintura várias vezes).

Duas crianças num jardim botânico.Depois, Eric fez uma coroa de flores coloridas para mim, como um

pedido de desculpa, eu acho, e me contou que sua mãe tem uma rede defloricultura espalhada pelo país e mantém mais de vinte campos comoaquele, também ao redor do Brasil. Eu aproveitei que estávamos falando arespeito e perguntei onde ela estava.

Ele não hesitou.‒ Viajando com seu irmão ‒ respondeu à medida que aplicava os

últimos detalhes na minha coroa. ‒ Eles são amigos e... trabalham juntosna joalheria e em outras coisas mais.

‒ Uau.‒ Pois é. Aqui. Pegue. ‒ Ele me passou a tiara pronta. ‒ Fica melhor

com o cabelo solto, eu acredito.‒ De fato. É linda. Obrigada, Eric.Ele apertou a ponta do meu queixo suavemente e disse que tínhamos

que voltar para casa. Imaginei que já seria hora do almoço, embora nãosentisse fome alguma. Mas coloquei minha coroa de flores sobre as frutasna cesta e o segui pela trilha. Foi um trajeto curto. Tão logo estávamosavistando os contornos do chalé. Lá dentro, reparei na quantidade demorangos e jabuticabas que tínhamos trazidos, e questionei a Eric o quefaríamos com tanta fruta.

‒ Vamos usar grande parte delas para fazer tinta ‒ disse ele, passandodireto pela sala de estar e a entrada da cozinha.

‒ Tintas?!‒ Para telas ‒ explicou ele. ‒ De pinturas, sabe?Corri para acompanhá-lo.‒ Espera aí. Você pinta?! ‒ exclamei, quando estávamos parados em

frente a uma porta no final do corredor.Ele a abriu, revelando uma escada.‒ É um hobby.‒ Caramba. ‒ Assoviei. ‒ Existe alguma coisa que você não seja bom?

‒ Claro que sim.‒ Pode me dizer o quê?‒ Videogames. ‒ Seu sorriso tinha uma pitada de malícia e significado.Deixei passar enquanto subíamos os degraus. Lá em cima estava tudo

escuro quando chegamos. Senti Eric desaparecer do meu ladopara abrir as diversas cortinas cor de borgonha e revelar uma incrível salade vidro quase do tamanho do chalé inteiro, cheia de telas brancas e telaspintadas; mesas de madeira lustrosa abarrotadas de tintas e pincéis epaletas; estantes; armários...

‒ Bem-vinda ao meu ateliê ‒ disse ele, parado do outro lado docômodo.

Meu queixo caiu um pouco. Eu estava num lugar pessoal, um lugar que,segundo Eric, ninguém nunca tinha pisado os pés além dele. Então por queeu estava ali? Não perguntei. Tínhamos um trabalho a fazer ‒ umaatividade para lá de suja. Mas divertida. Nossa. Muito divertida.

Éramos duas crianças novamente, fazendo tinta vermelha commorangos, tinta azul-escuro com jabuticaba. Usando corantes parapreparar diversas outras. Eric me ensinou o passo a passo e me mostroualgumas das telas que já pintara ‒ inúmeros reflexos de imagens reais einventadas, formados por linhas delicadas e cores mágicas e cintilantes.

Eu fiquei encantada. Encantada por ele ser capaz de fazer tanta coisa epor compartilhá-las comigo. Eu me senti especial de um jeito bobo.

Porque eu não sou.Não tenho motivo nenhum para ser.‒ Você é um homem muito talentoso, Eric ‒ elogiei enquanto

retratávamos juntos o horizonte montanhoso e florestal em uma de suastelas, e ele riu.

Sua mão segurava a minha, guiando o movimento do pincel o tempotodo, seu corpo inteiro atrás do meu... deliciosamente perto demais. Seuperfume era o meu perfume. Seu calor era o meu calor. Eu o sentia. Eu orespirava. Secretamente, estava adorando isso.

‒ Obrigado por amaciar meu ego ‒ disse Eric, divertido.‒ Não estou amaciando ‒ retruquei. ‒ Você é mesmo incrível e é

incrível também que possa fazer tudo que faz.‒ A prática leva à perfeição. Você também é capaz, sabia?

‒ Talvez.‒ Quais são os seus hobbies? ‒ ele quis saber.‒ Não tenho hobbies.‒ Acho improvável.‒ Ok. Não mais ‒ corrigi-me. ‒ Eu costumava fazer... coisas... com o

meu pai ‒ falei, sem entrar em muitos detalhes e rezei para que Eric nãoquisesse dar continuidade a conversa.

Meu pai é um assunto proibido.‒ Coisas ‒ disse ele num tom baixo e vago. ‒ Entendi. ‒ Afastou o

pincel da tela, em seguida sua mão largou a minha.Por um instante de pânico, imaginei que tivesse estragado tudo e meu

coração assumiu um ritmo errático. Fiquei rígida no lugar, contemplandoa pintura pela metade, um gosto amargo na boca.

‒ Vamos parar por aqui, certo? Continuaremos outro dia.‒ Outro dia? ‒ Minha voz saiu alta e com um pouco de medo porque

não entendi o que ele quis dizer exatamente.Girei para encontrar seus olhos. Eric estava sorrindo e estava sereno.‒ É uma ótima desculpa, não? ‒ disse ele.‒ Para quê?‒ Para eu tê-la aqui comigo outra vez.Não consegui disfarçar o alívio e felicidade que me invadiu e sorri.‒ Sim ‒ concordei e até balancei a cabeça. ‒ É a desculpa perfeita. À TARDE O TEMPO passou ainda mais rápido do que eu queria. Eric e eu

fizemos arroz, purê de batatas e filé mignon ao molho de vinho tinto parao almoço... Quero dizer, ele fez. Eu só ajudei. Minhas habilidadesculinárias não são lá às melhores do mundo. Acho que ele percebeu isso,mas não fez nenhum comentário ou gozação.

Muito precavido.Eu ri e suspirei por dentro enquanto o observava circular pela cozinha,

sexy e seguro, feito um chefe renomado, dando dicas e falando sobre seusêxitos e fracassos na gastronomia. Como que para compensar minhaeconomia de palavras a respeito do meu pai, contei a ele sobre minhamãe, sobre o seu trabalho e onde ela está agora. Contei um pouco sobre

nossa relação e o quanto não somos nem um pouco parecidas, mas nosdamos muito bem. Eric ouviu atentamente, riu na hora certa e não fezmuitas perguntas.

Acho que ele está começando a entender como funciono.Um pouco mais tarde, arrumamos uma mochila com sanduíches, frutas,

garrafas de água e suco, e saímos do chalé com destino à cachoeira. Euestava super empolgada, e Eric não tirava os olhosdevastadoramente verdes de mim. Sabia disso porque eu também nãotirava os olhos dele.

Nós dois havíamos trocado de roupa. Eu tinha soltado os cabelos parausar a tiara de flores e vestia uma de suas várias camisas sociais escuras, eele usava bermuda jeans e uma camisa verde-jade de botões e manga curtaque arrancou do peito no instante em que chegamos à beira do rio.

Tentei não cobiçá-lo na cara de pau, mas era uma tarefa muito árdua. Ohomem é, inquestionavelmente, um poço fundo de legítima beleza esensualidade. Por isso deixei que meus olhos admirassem aquele ummetro e oitenta de perfeição, apenas vez ou outra: sua pele bronzeada ealva, as linhas simétricas e definidas do rosto, peito e costas, os músculosem destaque. Seu rosto é lugar que eu mais gosto de observar, talvez porcausa dos olhos de cor incomum.

Muito verde.Muito claro.Eric é como algo que nunca vi na vida.‒ Em que você está pensando? ‒ perguntou ele quando viu que eu o

fitava sem disfarçar e veio se ajoelhar a sombra da árvore, onde eu estavasentada.

O sorriso que abri foi deliberadamente misterioso e provocador. Seurosto permaneceu distraído e curioso.

‒ Gostaria de poder ler seus pensamentos ‒ admitiu ele, os olhos mecausando surpresa de tão honestos.

‒ Por que diz isso?‒ Na maior parte do tempo, eu não a compreendo. ‒ Ele ficou tão

tentadoramente perto, dizendo isso um segundo após minha pergunta. ‒É enlouquecedor, sabe? Você me enlouquece sendo misteriosa e você fazisso o tempo todo. Então, estou 24 horas confabulando

desesperadamente...Caramba!‒ Eu achava que via através de você. Antes, logo quando nos

conhecemos, eu pensava muita coisa a seu respeito e tinha cem porcento de certeza que tinha razão. Conjecturava bastante. Você odiouquando fiz isso. Ficou muito brava.

Ele riu, e eu tentei fazer com que meus lábios tomassem a forma de umsorriso. Tentei retribuir à sua sinceridade de alguma maneira que nãoacabasse com ele correndo na direção oposta, mas meu vocabulárioparecia que tinha ido para o espaço e se perdido lá entre os planetas.

Não disse nada.‒ Tudo bem. ‒ Eric pareceu conformado com meu silêncio. ‒ Vamos

dar um mergulho? Há algo além da cachoeira que quero que veja.Eu fiz que sim com a cabeça, removi minha coroa de flores e fiquei de

pé com um sorriso. Ele me imitou, também se levantando, e segurouminha mão para me puxar na direção do rio.

A água estava uma delícia, temperatura perfeita. Eric mergulhouprimeiro, e eu o segui de perto, nadando até as cataratas. Ali atrás, alémda queda d'água, escalamos uma pequena rocha para ter acesso àentrada de uma gruta.

Mas não uma gruta comum.Após quinze minutos de caminhada por um túnel de paredes

escorregadias, o teto altíssimo se abriu em um buraco perfeitamenteredondo, por onde os raios solares e a luz verde da floresta transpassava aságuas de uma imensa piscina natural, pintando-as com um esplêndidotom de verde-esmeralda. As paredes ganhavam a mesma cor ao refletirema água que parecia carregar um brilho quase palpável.

Era de tirar o fôlego a atmosfera mágica que ilumina o imenso espaço.Eric voltou a segurar minha mão e me guiou até o centro do lago, onde épossível observar o céu azul por entre as copas das árvores. Novamentemeu conjunto de palavras pareceu viajar para o espaço. Não soube falarnem descrever o que estava vendo ou que estava sentindo...

A sensação de já ter estado ali antes...Eric imitou meu silêncio, e assim permanecemos, indefinidamente,

observando o sol mudar de posição no céu azul, transformando as cores

dentro da caverna.Parecia mesmo mágica.‒ Obrigada por tudo isso ‒ eu disse a ele ao voltarmos para o lado de

fora.Tínhamos acabado de comer as frutas e os sanduíches que trouxemos.

Eric estava estirado na grama, sem a camisa e assistia ao crepúsculo.‒ Foi o melhor dia que já tive em anos ‒ confidenciei.Seus olhos se desviaram do céu amarelo e laranja para o meu rosto e

mais uma vez pareciam enxergar a mim e aos meus terríveis defeitos.‒ Foi o mesmo para mim ‒ disse ele, o semblante carregado de

algo que se assemelhava a surpresa. ‒ Obrigado também, Aurora.Sorri, escorregando para deitar ao seu lado, em um deleite secreto de

garota sentimental, apaixonada. E agora, bem agora, estou aqui, recostadaao sofá suspenso da varanda dele, cutucando uma taça cheia de chocolatederretido, tentando entender como, quando e há quanto tempo eu estoudesesperadamente atraída por esse garoto que pode ou não me rejeitar porser um monstro que poderia matá-lo até mesmo dormindo.

Eric

"As caçadoras."

É quase meia-noite e Aurora dorme profundamente ao meu lado no

sofá suspenso da varanda. Ela desabou, depois de se empanturrar dechocolate e beber umas taças de vinho comigo. Não faz ideia de que hojeé meu aniversário. Não lhe contei. Ninguém se lembrou. E não importamuito. Estou hipnotizado. Meu celular está tocando há minutos e nãomovi um músculo sequer para atender. Estou atraído, distraído. Por elaperto demais de mim. Seguro sua mão, que pousa em meu peito e,hesitante, levo-a até os meus lábios. Sua pele cheira a chocolate, vinhotinto e flores do campo. Penso se seu corpo carrega a mesmafragrância. Penso se sua boca, apesar de já tê-la provado, tem o mesmogosto.

E desse modo, sofro e aprecio entre o doce e o amargo daperspectiva do amanhã sem sua companhia em minha casa.

Voltei a desejá-la. Depois de tudo ‒ do que aconteceu na festa, comSam, com Elizabeth, meu plano ‒ voltei a querê-la em uma proporção quenão é justa e não é normal. Sinto que não me importo mais com seustantos segredos, não me importo de onde vem sua força sobrenatural, nãome importo com o como ela descobriu exatamente que sou uma aberração,sobre a minha família... Não me interessa. Não é mais importante. Estouenfeitiçado? É bem provável. Ela fez alguma coisa comigo e não sei o quê enem sei quando. Não consigo pensar com clareza quando ela está porperto.

Isso sempre foi um fato.Ela bagunçou minha vida. Ela virou tudo de cabeça para baixo, no

momento em que esbarrou em mim naquele maldito saguão. Tudo o queeu tinha que fazer era me livrar de sua presença. Desde o começo. Era sóo que eu tinha que fazer. É o que ainda posso fazer agora... se eu quiser.Não é tarde demais.

Mas.Como?Como machucá-la?Como destruí-la quando eu seria capaz de dar minha própria vida por

ela?Suspiro alto, afastando a mão de Aurora, e enterro meus dedos nos

cabelos. Do que estou falando? Ela se mexe ao meu lado, mudando deposição, e desliza para perto do meu corpo, como um ímã.

Ela é a porra de um ímã.Meu pulso dispara. Minha cabeça gira. Estar tão próximo dela está

provocando coisas em mim novamente, despertando coisas...Estou lutando contra o impulso de acordá-la apenas para mostrar-lhe a

profundidade do meu desejo. Estou dizendo a mim mesmo que não, nãoposso fazer isso, não é certo, não é seguro, não vai acabar bem...

E estou escorregando para fora do sofá e cambaleando para além davaranda, atordoado com a veemência do sentimento que abala meusangue nas veias. Meu corpo está em chamas, trêmulo, arrepiado. Estourespirando o cheiro dela, impregnado do seu perfume.

Nenhum homem devia desejar uma mulher tanto assim.É desesperador.Assusta.Impressiona.É um tipo de dor bem-vinda.Uma fome de arranhar o estômago.É morrer para viver.Irracional.Meu celular toca novamente dentro do bolso da minha calça de

moletom, arrancando-me de um torpor, e me dou conta de que estouparado feito um pateta na beira do rio. Ando para trás, ligeiramentetonto. Em que estava pensando? Dar um mergulho? Me afogar? Meu juízoestá tão fodido assim? Não. Nem se funcionasse. Enfio a mão no bolso dacalça e puxo o iPhone.

A foto de Elizabeth pisca na tela.Deslizo em atender.‒ O que é? ‒ Minha voz é rouca e mal-humorada.‒ Estou ligando para você há horas. Onde estava?Tentando não entrar em combustão.‒ Ocupado.‒ Mentiroso.‒ O que você quer, Elizabeth? ‒ pergunto, reparando no seu tom alegre

demais. ‒ Não tenho tempo para conversa fiada.Deixei Aurora sozinha. E se ela tiver pesadelos?‒ É surpreendente que faça essa pergunta. Ou não se lembra de que eu

estava em uma jornada?Suas palavras me trazem a cabeça memórias de uma conversa de quatro

dias atrás. E apesar da mentira deslavada sobre a Linhagem das Sete meflagro curioso.

‒ Você conseguiu? ‒ pergunto, a voz baixa de expectativa. ‒ Você achoua garota que a atacou na estrada?

‒ Não, não achei ‒ diz Elizabeth, sem soar frustrada. Fico intrigado. ‒Mas não se preocupe. Fui recompensada com algo bem mais interessante.

‒ O quê?‒ Quero que veja por si mesmo. ‒ Escuto seus passos, uma porta sendo

aberta... ‒ Encontre-me cinco quilômetro a leste do campo das violetas,aquele antes do rio. Faça isso agora. Ok?

‒ O que você...‒ E venha rápido, Eric ‒ diz ela. ‒ É um assunto do seu interesse.Elizabeth encerra a ligação quando penso em questionar qual é o

bendito assunto e, voltando ao chalé, eu a amaldiçoo por fazer isso. Meupressentimento quanto ao que está cinco quilômetro a leste do campo dasvioletas não é bom e me aconselha a ignorar o que ela disse, ignorarminha própria curiosidade.

Aurora ainda está dormindo tranquilamente, na mesma posição em quea deixei, quando chego ao chalé. Fico ali, em pé na varanda, olhando parao seu rostinho relaxado pelo sono, tempo suficiente para tomar umadecisão.

Em seguida, pego-a no colo e a levo para o meu quarto. Ela não acorda,

nem quando a deito na cama e cubro seu corpo com o lençol, resistindo àvontade de plantar um beijo na sua testa.

Não seja piegas, Eric.Puxo o celular do bolso da calça novamente e acesso no meu aplicativo

de músicas preferido o álbum da trilha sonora de Lago dos Cisnes pelaOrquestra Sinfônica de Londres de André Previn. Ponho para tocarbaixinho e deixo o iPhone perto de Aurora, torcendo para que sejasuficiente para afastar seus pesadelos.

Depois disso, calço meus tênis e saio de casa. Corro velozmente,seguindo as coordenadas de Elizabeth. O campo de que me falou ficaalém dos limites do Parque Nacional de Íris, em uma terra de ninguém,onde as harpias costumavam levar os homens para seduzi-los. Estouimaginando imagino um milhão de motivos para ela está lá.

O vento frio sacode meus cabelos para trás, zumbe em meus ouvidosenquanto meu corpo atravessa sua forma invisível. À noite, o bosque étão silencioso que até o som de uma folha caindo dos galhos soa alto. Ficoalerta a possibilidade de estar sendo seguido ou observado, porém meussentidos aguçados não captam nenhum ruído ou cheiro suspeito.

Bom!Alcanço o campo das violetas em poucos minutos. Viro o corpo para o

Leste, correndo nessa direção agora, e meus olhos sobrenaturais seadaptam muito bem ao escuro. Não demoro a encontrar com Elizabeth.

Ela está me aguardando em frente à uma velha cabana feita de tábuas:os braços cruzados no peito e um pequeno sorriso presunçoso nasextremidades da boca.

Tento descobrir por mim mesmo o que estou fazendo nesse lugarmiserável.

‒ Você veio. ‒ Cinco passos e eu ganho um beijo estalado na bochecha,suas mãos alisando meus ombros.

‒ Sorte sua.‒ Sim, sim. Hoje é o meu dia de sorte mesmo. ‒ Ela pisca, andando

para trás. ‒ Vamos entrar?‒ O que tem aí dentro, Elizabeth? ‒ pergunto, sem me mover.Não consigo imaginar o motivo de ela estar agindo tão misteriosamente.‒ Paciência, zangadinho. Posso lhe garantir que não vai se arrepender.

‒ Ah, é? ‒ debocho.‒ Acredite em mim.‒ Para o inferno com isso! Você mentiu. Os assassinatos em 1931

nunca estiveram relacionados à Linhagem das Sete.Elizabeth solta uma gargalhada ao mesmo tempo em que revira os

olhos.‒ Ayla disse isso, não foi ‒ conjectura ela, me fitando como se visse um

otário. ‒ E você acreditou. Mas é um idiota mesmo. Será que não percebeo que estão tentando fazer? Ela e Sam.

‒ Não ouse... ‒ Levanto o dedo.‒ Eu disse a verdade, ok? ‒ grita ela. ‒ E aqui está a prova ‒ aponta para

a cabana. ‒ Pode ir embora, se quiser, ou pode vir comigo e descobrir porconta própria o que está acontecendo.

Hesito em minha tentação, uma voz me dizendo para dar as costas e irpara casa o quanto antes; e outra me instigando a seguir com Elizabeth,ver o que ela tem para me mostrar e matá-la lentamente se estiver debrincadeira.

‒ Está bem, então. ‒ Dou um passo à frente. ‒ Vamos acabar logo comisso.

Ela abre a porta.A sala em que entramos é pequena e quadrada e sem janelas. O teto

baixo ameaça desabar sobre minha cabeça. Há um sofá puído de doislugares encostado na parede norte e mosquitos voam em torno dalâmpada que pouco ilumina o ambiente decrépito.

Elizabeth estagna no meio da sala, suas mãos enfiadas nos bolsos dajaqueta que está usando.

‒ Estou esperando.Ainda sem me dizer nada, ela se movimenta para abrir uma nova porta

existente na sala, mas tudo está escuro no outro cômodo. Elizabethultrapassa o umbral e acende a luz que é um pouco mais forte que a doaposento em que estou. Ouço murmúrios e gemidos vindos lá de dentro.

Merda!Não estamos completamente sozinhos. Entro no quarto.‒ Que diabo é isso?A cena assusta até a mim.

Uma harpia está presa e amordaçada numa cadeira de metalenferrujado, seus braços unidos atrás das costas, a cabeça pendendo moleno pescoço. Por meio segundo, me ocorre a possibilidade de estar morta,mas então consigo ouvir sua ‒ fraca ‒, mas presente respiração. As roupasrasgadas em vários pontos deixam a pele danificada exposta, as veias docorpo intensamente vermelhas e salientes.

Jesus Cristo!Procuro pela provável origem dessa sujeira toda, girando no lugar e,

nesse meio tempo, avisto uma mesa de madeira encostada no canto,abarrotada de frascos, seringas, facas de prata e um amontoado de papéis.

‒ O que significa isso? ‒ pergunto terrivelmente abismado. ‒ O quevocê fez?

‒ Dei a ela um sangue especial ‒ responde Elizabeth, sem remorso. ‒Um sangue como o seu. Por contenção. Você sabe como funciona, nãosabe? ‒ Ela balança a cabeça de um lado para outro, como se estivesseentediada por ter que explicar. ‒ Só um pouco e elas estão no chão emcompleta agonia... Ei!

Puxo o braço dela com força.‒ Onde conseguiu? Onde conseguiu esse sangue?Seus dentes afundam no lábio para conter um sorriso ou uma risada,

não sei.‒ Vida pregressa, zangadinho. Às vezes você se esquece de quem eu sou

e o que posso fazer. ‒ Ela arranca seus pulsos das minhas mãos. ‒ Mas nãoperca a cabeça ainda e certamente não comigo. Afinal, eu não trouxe vocêaqui à toa e a queridinha aí não está desse jeito por nada.

‒ Explique-se! Agora. Por que está fazendo isso?Elizabeth caminha até a harpia desmaiada.‒ Qual é o problema, Eric? Seu primeiro plano não era encontrar uma

delas?‒ Para conversar! Não isso. ‒ Aponto para cadeira. ‒ As outras virão atrás

de você por vingança. Quer começar uma guerra?Ela ri de incredulidade, parando atrás da cadeira, onde o monstro está

amarrado.‒ Você é tão exagerado. E se eu disser que a encontrei, ontem à noite,

discutindo com outra harpia formas de acabar com sua preciosa Aurora?

O que acha disso?Meu coração assume uma taquicardia com essa informação.Mais um ataque!!!‒ Por sorte, eu consegui apanhar essa aí, embora a outra tenha sido

mais esperta e fugiu ao sentir minha presença. Não é necessário dizer quenão conseguiu ir muito longe, é? ‒ Ela arreganha os dentes.

‒ Você a matou.‒ E queimei. Óbvio. Não preciso de duas para fazer um trabalho tão

simples.‒ Que trabalho?‒ Respostas. Direto da fonte. Você tinha razão quando disse que

precisávamos encontrar uma harpia para descobrir o porquê estavamcaçando Aurora. ‒ Elizabeth me lança um olhar satisfeito. ‒ Então... aquiestá. Eu consegui.

Meus traços faciais enrijecem.‒ Obrigada, a propósito ‒ diz ela para o meu silêncio e sorri, espiando o

relógio de pulso. ‒ Olhe só! Ainda é seu aniversário, Eric... então...Parabéns! Eu não trouxe bolos nem velas, mas você é o felizardo... Isto é,se quiser ficar e aproveitar a festa. ‒ Ela indica a harpia com um floreio demãos. ‒ Está pronto para a verdade?

A verdade. Não sei mais se quero a verdade. No entanto, faço que simcom a cabeça, mau presságio acelerando minha pulsação.

Vamos lá, Eric.Respiro fundo para acalmar meus batimentos cardíacos. Meu alter ego

está ansioso, afinal tem estado esperando por isso desde o primeiroencontro com Aurora.

‒ Quer começar? ‒ Elizabeth reprime a risada, observando o meuconflito. Faço um segundo aceno de aquiescência, e ela se move parapostar-se de frente à garota. ‒ Acorda, queridinha! ‒ Dá dois tapas na carada harpia que desperta gradativamente e ergue a cabeça com dificuldade.

‒ Eu não sabia que você gostava de tortura.Olho mais uma vez para o arsenal na mesa.‒ Existem muitas coisas que você não sabe sobre mim, Eric ‒ diz

Elizabeth, cheia de si ‒, e eu adoraria descrevê-las agora, mas... Olhe só!Ela está acordando. Fique à vontade. É toda sua. ‒ Elizabeth dá espaço

para que eu possa me aproximar.A harpia levanta a cabeça e olha para o meu rosto, mas não sei se

consegue enxergar um palmo além do próprio nariz. Está dopada pelaforte droga que circula em suas veias.

Meu sangue.Meu sangue que é semelhante ao seu, mas com um elemento secreto

que a Trindade inseriu na droga que preparou para modificar oshumanos. Eles disseram que foi para nos proteger, para sermosinvencíveis.

Funcionou.‒ Qual é o seu nome? ‒ pergunto a harpia, depois de retirar a fita

adesiva em sua boca.Ela continua se esforçando para focar o olhar, piscando e apertando os

olhos cor de café.‒ Amanda ‒ responde, fraca e lentamente, rindo.‒ É um nome bonito para um monstro.Seu sorriso vai se expandindo devagar.‒ Digo o mesmo, Eric.‒ Você me conhece. ‒ Não é tão extraordinário.‒ Não tenha dúvidas disso ‒ diz ela, exibindo os dentes. Está pouco a

pouco recuperando a sobriedade. ‒ Você é famoso, sabia? ‒ pergunta paramim. ‒ O experimento que deu muito errado e muito certo ao mesmotempo. A menina dos olhos da Trindade. Isso faz com que se sintaespecial?

‒ Não lhe interessa.Lembranças indesejadas vêm à tona e me levam a cruzar os braços e dar

um passo para trás com o queixo rígido. Não quero que minha mente vápor este caminho escuro e tortuoso chamado passado.

‒ Não pensou que todas as atrocidades que fez ficariam em segredos,pensou?

Amanda está muito satisfeita por me irritar.Coloco a conversa de volta aos trilhos.‒ O que sabe a respeito de Aurora Harvelle? ‒ pergunto.Ela ignora.‒ É curioso ‒ murmura. ‒ Mesmo quando fez o que fez, a organização

que dizia proteger os humanos não quis se livrar de você.‒ Cale a boca...‒ O exímio e impiedoso mercenário que...Vou até a mesa em meio segundo e volto à harpia com uma faca que

cravo na sua coxa. Ela grita sem concluir a frase, aspirando rápido eruidosamente, tremendo na cadeira.

‒ Filho da...‒ Olha a língua, gracinha ‒ rosno, pressionando a lâmina mais fundo

em sua carne, e Amanda aperta os lábios com dor. ‒ A próxima podeatravessar sua garganta. Entendeu?

Retiro a faca.‒ O que sabe a respeito de Aurora Harvelle? ‒ pergunto outra vez, mais

alto.Ela ri e geme ao mesmo tempo.‒ Achei que tivesse me mandado calar a boca.‒ Responda-me! ‒ grito, apoiando-me nos braços da cadeira, meu rosto

rente ao dela.Ela fica imóvel e séria no lugar, sem piscar, fitando meu aspecto

semitransformado. Ouço seu coração acelerar-se de medo.‒ Tudo bem, tigre ‒ cede de má vontade, as palavras espremidas entre

os dentes. ‒ A garota ‒ diz ela, sardônica. ‒ Aurora, certo? Nós queremosa cabeça dela sobre uma bandeja e o resto do corpo para entregarmos aosurubus. Se sua raça nojenta não estivesse dificultando tanto o nossotrabalho, nós já teríamos conseguido. Vocês são um bando de estragaprazeres.

O quê?! Há mais Inomináveis na ilha?!Sem conseguir me conter, confusão insinua-se no meu semblante;

perguntas, muitas perguntas se formando. Recuo.‒ Desinformado, hein ‒ supõe Amanda escancarando um sorrisinho

deplorável e irritante.‒ Me atualize. Agora.Meu tom rude e brusco é o bastante para que ela comece a falar.‒ Sua raça está finalmente dividida, ou pelo menos, o pouco que restou

dela depois da guerra que derrubou a Trindade.‒ Como assim?

‒ Estão se aliando a alguns traidores da minha raça, como a escóriaatrás de você. ‒ Ela se refere a Elizabeth que sai de onde está, rosnando.

Ergo a mão para impedi-la de fazer qualquer coisa agora. Eu mal melembrava de que estava ali. Meu coração se aperta vertiginosamente. Estoupasmo. É mais complexo do que eu imaginava.

‒ Por que estão fazendo isso? Por que estão se aliando?Isso nunca aconteceu.‒ Difícil dizer ‒ responde Amanda. ‒ Segundo os rumores é para

capturarem a garota viva. Mas alguns de vocês a querem morta, assimcomo alguns da minha raça. Não sabemos de onde vem as ordens agoraque, graças a nós, a Trindade não existe mais, o que, devo dizer é...

‒ Por que tanto interesse em uma humana?Essa é a questão. É aonde quero chegar. É aonde sempre quis chegar.

Agitado, passo a mão pelo cabelo e prendo a respiração em expectativapela resposta.

‒ Ela não é humana, seu imbecil ‒ rosna a harpia.E não há chão sob meus pés, não há nenhuma superfície sólida, como

se de repente alguém tivesse puxado o tapete e embaixo dele, um buracotivesse se aberto para me sugar em direção ao seu abismo. Estou em quedalivre, refutando uma realidade aterradora.

Inferno, inferno, inferno.Isso não pode ser mesmo verdade.‒ Ah. Pelos. Deuses. ‒ Amanda pende a cabeça para o lado, contente

com meu sofrimento indisfarçável. ‒ Sério? Não. É sério mesmo? Estáandando com o demônio e não sabia?

‒ Mentira.Inesperadamente me dou conta das raízes em meu peito ‒ raízes de um

forte desejo que eu mantinha escondido, enterrado, ansiando em meusdevaneios mais secretos que meus temores não se concretizassem.

Minha carne está sendo rasgada e molhada em ácido com essarevelação.

A dor que eu sinto...‒ Não é mentira, meu bem ‒ a harpia tem prazer em me falar. ‒ Ela

apenas se parece com uma humana, mas está longe de ser uma. E se nãoacredita em mim, pergunte as outras harpias, aos outros como você. Isto é

‒ Amanda ri ‒, se você encontrá-los. Ninguém que pode evitar quer ficarpor perto. Todos sabem que ela está com raiva e está... caçando.

‒ Caçando?‒ Nós. É o que ela faz.Não.Afasto-me, cético e desesperado, largando a faca, e enterro os dedos nos

cabelos. Minhas mãos percorrem a parte de trás da minha cabeça e sefecham na minha nuca.

Não, não, não...Não pode ser possível. Isso vai contra a tudo que eu temia...Eu sou uma assassina, Eric.... está preparado para isso? Para a minha verdade?Sabe que não está nem um pouco seguro ao meu lado, não éNão devia ter que lidar com alguém como eu...Ela me avisou. Durante esse tempo todo, quase em cada encontro que

tivemos, ela me avisou. Disse praticamente quem é e mostrou o que podefazer. E eu vi. Vi e senti sua força, presenciei a escuridão por trás de seusolhos.

Como pude esquecer? Como pude esquecer de tudo isso e permitir queela entrasse da forma que entrou na minha vida, na minha cabeça...

Meu coração.Pior.Mostrei a ela... baixei a guarda e mostrei a ela o melhor de mim, coisas

q u e ‒ ainda que por um milagre ‒ a fizessem esquecer quando selembrasse do babaca que fui, que a fariam me admirar e...

Que idiota...Que idiota eu sou...‒ Há outras, não é? ‒ Elizabeth assume a conversa. ‒ Há outras

caçadoras como Aurora na Ilha de Íris...‒ É o que estão murmurando ‒ responde Amanda. ‒ Você foi um tolo

por tê-la salvado, Eric. ‒ Volta o rosto para mim. ‒ Não devia...‒ Chega.‒ Ela pode matá-lo se assim desejar! Ela pode matá-lo da pior maneira

que sabe que você teme...‒ Eu disse: chega!

Um movimento brusco de braço, e a cabeça da harpia está fora dopescoço, sangue respigando para todos os lados, escorrendo dos meusdedos. Elizabeth entra no meu campo de visão, suas mãos apoiadas nosmeus ombros como que para me intervir. Um tremor penetrante seespalha em meus membros contraídos por um sentimentodevastadoramente voraz.

Traição.‒ Ei, ei, Eric... olha para mim... Olha para mim, droga!‒ Não é verdade ‒ as palavras simplesmente saem. ‒ As coisas que ela

disse... tudo... não pode ser verdade. ‒ Ainda estou lutando contra arealidade a qual fui apresentado.

‒ É tudo verdade. Elas... as caçadoras... elas existem por causa de nós.De mim. De você. Porque nascemos na ilha. Olhe!

Elizabeth vai até a mesa e retorna com uma seleção de papéis. Folhas decor marrom, arrancadas de algum livro velho e antigo. Ela as entrega paramim, ordena que eu leia. Tento recusar, mas ela insiste. Empurra naminha mão.

E, aceitando, corro os olhos pelas páginas que descrevem diversaslendas sobre a Linhagem das Sete. Sobre mulheres... Mulheresamaldiçoadas desde crianças para matar e destruir harpias e Inomináveis.E abaixo de cada mito, uma marca idêntica à de Aurora tem o seudestaque como a origem dos poderes que elas carregam nas veias, seguidade uma legenda que para mim explica mais do que qualquer coisa.

“E através da magia desse símbolo, as caçadoras são disseminadas por gerações,

garantindo assim a sua infinita existência”. Claro que sim.‒ Famílias ‒ Elizabeth está dizendo desnecessariamente enquanto lhe

entrego as páginas. ‒ Sete famílias de caçadoras, incluindo os Harvelle.Unidas contra a Trindade. Unidas contra as harpias. Sete famílias queusaram de... mágica das mais obscuras e inescrupulosas. Pactos comDeuses... sacrifícios... Morte. Se assassinadas, elas marcam e amaldiçoamseus alvos com tatuagens... tatuagens que contam a história de suas mortes

e os condenam a tempo específico de vida... Vamos! Leia!Saio de perto dela, cambaleando. Não quero ler mais nada.

Não posso ouvir mais nada... não aguento.Meu cérebro parece que vai desintegrar em minúsculos estilhaços.

Minha cabeça começa a rachar de dentro para fora, evocandoinvoluntariamente lembranças inoportunas de um momento que semprequis apagar.

Mas que, como uma verdadeira maldição, jamais desapareceu.‒ Aurora é a reencarnação daquela garota ‒ grita Elizabeth, me fazendo

parar a caminho da porta. ‒ Por isso elas se parecem tanto. Porque são amesma pessoa. Você já parou para pensar por que ela voltou nessa vida? Epor que você é sempre arrastado de volta para cá? E sempre na mesmaépoca em que ela está aqui.

Viro-me, trêmulo e arrepiado.‒ Como você...‒ Aurora estava aqui, Eric, a quase sete anos atrás. Assim como você ‒

conta Elizabeth, e suas palavras são como uma sucessão de golpes de faca.‒ Ela voltou agora... e, ao mesmo tempo, você também voltou. Pessoasreencarnam com um propósito. De acordo com a lenda, essastatuagens em seu braço deveriam tê-lo guiado a um caminho demorte exato ao da garota que assassinou. Mas isso não aconteceu. É muitofácil entender por...

‒ Há quanto tempo sabe disso? ‒ ouço-me perguntando com a sensaçãodesconfortável de que estou fora do meu corpo e estou vendo a mimmesmo tentando não sucumbir ao relato nada surpreso de Elizabeth.

Seus olhos se desviam por alguns segundos, e antes que eu queira deverdade me refrear e raciocinar a circunstância inteira, minha mão estáfechada em torno do seu pescoço. Meu alter ego assume as rédeas do meucorpo com minha total permissão. Dessa forma, sou destituído de sentir,pensar e agir como minha parte humana hesitante.

‒ Há quanto tempo você sabe? ‒ Jogo-a contra a parede.‒ Eric... ‒ suplica Elizabeth, engasgando e sacudindo as pernas acima do

chão.‒ Por que não me contou? Por que escondeu isso de mim?‒ Não foi... não foi só e...

‒ Por quê?! ‒ Bato sua cabeça na parede.Ela grita, esmurra meu braço para que eu a liberte.‒ Qual é o objetivo disso? Qual é a sua intenção?Ela balbucia:‒ Você... você queria... a... verdade...‒ Certo ‒ rosno, trazendo seu rosto para perto do meu. ‒ E agora? O

que espera que eu faça? Que eu a agradeça?‒ Solte-me...‒ Que eu mate Aurora, talvez?‒ Que droga, solte-me! ‒ grita.‒ Ela é perigosa, certo? Ela quer me matar? É o seu destino? ‒ Meu

sarcasmo é sombrio. ‒ Está bem ‒ sibilo. ‒ Mas. Eu a matarei primeiro.Solto o pescoço de Elizabeth e ela cai de quatro aos meus pés,

desesperada por até mesmo um sopro de ar. No outro segundo, estoudisparando a toda celeridade na direção do meu novo alvo. Imaginá-laadormecida é muito prazeroso e me causa sinistros espasmos nos dedos.

Vai ser muito fácil. A doce expectativa faz com que meu coraçãocontraia e descontraia dentro do peito. Não há nuvens no céu esta noite,nem muitas estrelas. O ápice da lua é o meu único testemunha,esplendoroso e imponente em seu lugar na imensidão, iluminando ocaminho que me leva ao chalé.

A ela.Maldita!Aurora Grace Harvelle é uma farsa tão grande e suja quanto a que eu

sou. E pensar que eu tinha razão... Aquela pose de menininha frágil einocente é apenas uma máscara...

Uma máscara que vou arrancar. ESTOU PARADO NO MEIO do quarto. Meu corpo inteiro pulsa em uma

espécie de ódio tão cego e avassalador, que minha pele está formigandoininterruptamente, como se liberasse faíscas de energia elétrica. Nãoconsigo desgrudar os olhos da garota esparramada de bruços na cama. Seusono é calmo e profundo, embalado pela Orquestra Sinfônica de Londres.Sua pele cor de canela é imaculada, um belo contraste no branco doslençóis e da minha camisa social que lhe cai como um vestido curto e

folgado. Por um doce instante mórbido, imagino o sangue intensamentevermelho jorrando das aberturas que farei no seu corpo.

É uma vontade quase irresistível, acariciando meus ossos.Avanço a passos lentos até me sentar na cama e inclino-me na direção

de Aurora, toco sua bochecha macia com meu nariz. Seu cheiro é mesmobom, o melhor do mundo. Penso que o odeio. Penso no que ele fazcomigo tão facilmente e o odeio como nunca odiei nada em toda minhaexistência.

É melhor assim.A raiva, o ódio e a frustração são excelentes motivadores.Fecho os olhos e aspiro a fragrância atraente em que tenho me

sufocado. Saboreio o calor que emana da pele da garota, seu coração queainda bate e o sangue que corre em suas veias...

E estou prestes a tirar tudo isso.Com prazer.Estremeço de dentro para fora como se estivesse prestes a me desfazer

em mil fissuras. Expectativa. Ansiedade. Espasmos, calafrios e vibraçõesatingindo meu corpo em curtos intervalos de tempo. Minhas garras jáensanguentadas começam a crescer lentamente à medida que me preparopara matar a garota à minha frente... indefesa.

Vulnerável.Mas, então, bagunçando os lençóis, ela se mexe na cama, tão de

repente, que me assusta, anulando minha transformação.Volto a ser eu.Apenas eu.Sem qualquer ódio ou raiva ou sede de matança.O que está havendo comigo?Eu vim aqui para matá-la.E por que não consigo fazer isso?Um murmúrio indistinguível me distrai dos questionamentos. Aurora

mudou de posição na cama, está totalmente de lado, voltada para mim, oscabelos negros e longuíssimos destacando-se no travesseiro branco.

Ela expira com leveza pelos lábios carnudos entreabertos, seu rostoimpecável em completo relaxamento, cílios tremulando...

Sinto-me péssimo comigo mesmo, de um jeito estranho e inédito, comose estivesse cometendo um pecado, um terrível pecado. De novo. E não

poderia. Não poderia. Não.Sinto-me furioso novamente, mas desta vez todo o sentimento ruim é

direcionado para mim, pelo que estou... estava prestes a cometer.Faça!Faça agora!Ela merece isso!Ela mentiu para você!Faça!Meu alter está agitado, instigando-me a...‒ Eric... ‒ sussurra Aurora, suave e claramente. ‒ Por favor...Minha pulsação dispara, e a Terra parece ter parado de girar.Ela está sonhando comigo?!‒ Eric, fique... ‒ continua ela, e eu estou negando com a cabeça, sem

parar de me sentir surpreso e ao mesmo tempo extasiado com o que estáacontecendo.

Empenho-me para ir embora, sair daqui, mas...‒ Não me deixe ‒ sussurra Aurora, esfrega o rosto no travesseiro com

uma fisionomia triste. ‒ Não me deixe... não... Eu amo você ‒ diz ela.Mente.É mentira.Mentirosa...Sua mentirosa!!Sem pestanejar, tropeço feito um bêbado para fora cama, do quarto, da

sala; e esbarro nas paredes do corredor conforme cambaleio a cada passo.Por fim, choco-me contra a porta lá no final. Penso que devo abri-la eminha mão voa para maçaneta, girando-a. Arrasto-me nos degraus daescadas em direção ao meu santuário.

Minha torre.Minha fortaleza.Nada me atinge ali em cima. Nem o que fiz. Nem o que fui. Nem o que

sou. Nada me atinge. Nada a não ser as lembranças insuportáveis de quetrouxe ela aqui, de que pintei seu corpo nas telas que estão escondidas emuma tentativa vã de esquecê-la, de que desenhei seu rosto repetidamenteem folhas de papel em uma esperança estúpida de arrancá-la de dentro demim.

Onipresente.A fiz onipresente e foi meu maior erro.Minha desgraça.Minha perdição.Achei que podia corrigir isso. Achei que podia expurgá-la. Apagá-la.

Não funcionou. Porque no fundo, no fundo, eu não queria arrancá-la demim. Havia um prazer indescritível na dor e na raiva de estar com ela,pensar nela, sonhar com ela. Todos os dias.

Todas as noites.Mas agora é tudo diferente.Não posso continuar fazendo isso. Preciso deixar para lá. Preciso

esquecê-la. Preciso ir embora. E nunca, nunca mais voltar, por mais queminha alma implore.

Fique.Agarro minha cabeça entre as mãos. Aperto os olhos.Não me deixe.Ando em volta do ateliê.Eu amo...Não.Eu amo você.‒ Não! ‒ grito, agitando o braço, e minha mão atinge alguma coisa que

vai parar no chão.Abro os olhos e me viro.Minha pasta.Minha pasta de desenhos que encontrei mais cedo no fundo do velho

baú. Eu pretendia mostrar a Aurora em algum momento. Acho que nãofaz mais sentido agora.

Respiro fundo e me adianto para reunir as folhas espalhadas no piso.Porém, paro no meio do passo, olhando fixamente para os inúmerosdesenhos que não reconheço, mas que claramente foram feitos por mim.Desenhos íntimos de uma mulher de cabelos longos e olhos grandes eredondos.

Ela!A garota do lago.A garota que assassinei.

Aurora.Em um deles, ela está numa cama de dossel, sentada sobre os

calcanhares e nua, rodeada por lençóis amassados; metade dos seuscabelos cobrem o ombro e seio esquerdo, e chegam a tocar a curvamarcante da cintura, as pontas cacheadas.

Uma de suas mãos pequenas afasta uma mecha de cabelo do rosto e aoutra pousa entre as pernas espaçadas como que para esconder a virilha.Seu olhar é sexy e focado, como se durante todo o processo encarasse oartista.

Eu.Não. Não. Não. Não. Não.É claro que não.Não é possível. Ela não pode ter posado para mim. Isso não aconteceu.Baixo os olhos, hesitante, para a borda da folha e despenco de joelhos

pela possibilidade inacreditável de mais um pequeno detalhe.A assinatura.A assinatura que muda tudo.

E.H, julho de 1932 CONTINUA...

Mensagem para o leitor Querido leitor... Um imenso e afetuoso obrigada por ter alcançado o final deste livro. Suas

opiniões a respeito dele são de extrema importância para mim. Então, por favor,envie uma mensagem para [email protected]. Ou me procure nasredes sociais:

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Mil beijos.E até o próximo livro.