A biblioteca de Paris - Google Groups

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Para os meus pais

CAPÍTULO 1

Odile

PARIS, FEVEREIRO DE 1939

Os números flutuavam à volta da minha cabeça como estrelas.823. Os números eram a chave para uma nova vida. 822.Constelações de esperança. 841. No meu quarto, pela noite dentro,de manhã quando saio para comprar croissants, séries atrás deséries — 810, 840, 890 — formavam-se diante dos meus olhos.Representavam liberdade, o futuro. E, além dos números, tinhaestudado a história das bibliotecas desde o século xvi. EmInglaterra, enquanto Henrique VIII andava ocupado a decepar ascabeças das suas mulheres, o nosso rei François modernizava asua biblioteca, cujas portas abriu aos eruditos. Esta colecção real foio início da Bibliothèque Nationale. Agora, sentada à secretária domeu quarto, eu preparava-me para uma entrevista de emprego naBiblioteca Americana, revendo pela última vez os meusapontamentos: fundada em 1920; a primeira em Paris a abrir assuas estantes ao público; leitores de mais de trinta países, umquarto deles franceses. Agarrava-me com força a estes factos e

números, esperando que me fizessem parecer qualificada aos olhosda directora.

Saí do apartamento da minha família, na fuliginosa rue de Rome,junto à estação de comboios de Saint-Lazare, onde as locomotivasexpeliam fumo para o céu. O vento despenteou-me o cabelo, eprendi umas madeixas debaixo da boina. Ao longe, via-se a cúpulacor de ébano da Igreja de Saint-Augustin. Religião, 200. AntigoTestamento, 221. E o Novo Testamento? Esperei, mas o númeronão vinha. Sentia-me tão nervosa que esquecera factos simples.Retirei o meu bloco da mala. Ah, sim, 225. Eu sabia.

A minha parte preferida do curso de Bibliotecas foi o SistemaDecimal de Dewey. Concebido em 1873 pelo bibliotecário americanoMelvil Dewey, usava dez classes para organizar os livros daBiblioteca em estantes, de acordo com o assunto. Havia um númeropara tudo, permitindo que qualquer leitor encontrasse qualquer livroem qualquer biblioteca. Por exemplo, a minha maman orgulhava-sedos seus exemplares 648 (serviços domésticos). O meu papa não oadmitiria, mas gostava bastante de 785 (música de câmara). O meuirmão gémeo era pessoa de 636.8, enquanto eu preferia 636.7.(Gatos e cães, respectivamente.)

Cheguei ao grand boulevard, onde, no espaço de um quarteirão, acidade se libertava do seu manto de classe operária e passava aenvergar um casaco de arminho. O áspero cheiro a carvãodissipava-se, substituído pelo doce jasmim do Joy, usado pormulheres que se deliciavam perante a montra dos vestidos de NinaRicci e as luvas de pele verde da Kislav. Mais à frente, tive de medesviar dos músicos que saíam da loja que vendia partituras

enrugadas, passei o edifício barroco da porta azul e virei a esquinapara uma estreita rua lateral. Sabia o caminho de cor.

Eu adorava Paris, cidade de segredos. Tal como as capas doslivros, umas de pele, outras de tecido, cada porta parisienseconduzia a um mundo insuspeito. Um pátio podia albergar umaglomerado de bicicletas ou uma roliça concierge armada devassoura. No caso da Biblioteca, a vasta porta de madeira abria-separa um jardim secreto. Emoldurado por petúnias num dos lados,relvado no outro, um caminho de seixos brancos conduzia à mansãode tijolo e pedra. Franqueei o umbral da porta, passando por baixodas bandeiras francesa e americana a ondular lado a lado, ependurei o casaco no bengaleiro desconjuntado. Ao inspirar omelhor cheiro do mundo — um misto do odor musgoso de tomosbafientos e frescas páginas de jornais — senti-me em casa.

Tendo chegado uns minutos antes da hora da entrevista, passeipelo balcão de atendimento, onde a sempre afável bibliotecáriaatendia os leitores («Onde é que um tipo consegue encontrar umbom bife?», perguntava um recém-chegado com botas de cowboy.«Mas tenho de pagar multa porquê, se nem sequer acabei o livro?»,protestava a intratável Madame Simon), e entrei no silêncio daacolhedora sala de leitura.

Numa mesa ao lado das portas envidraçadas que davam para ojardim, a professora Cohen, com uma garrida pena de pavão presano carrapito, lia o jornal; Mr. Pryce-Jones percorria a Time enquantofumava cachimbo. Noutro dia qualquer, teria ido cumprimentá-los,mas sentia-me nervosa com a entrevista e procurei refúgio na minhasecção preferida das estantes. Adorava estar rodeada de histórias,

algumas tão antigas como o tempo, outras publicadas apenas nomês anterior.

Lembrei-me de procurar um romance para o meu irmão.Ultimamente, cada vez mais, a todas as horas da noite, acordavacom o som do Rémy a escrever à máquina os seus tratados. Se nãoestava a compor artigos sobre o dever da França de ajudar osrefugiados forçados pela guerra civil a sair de Espanha, estava ainsistir na ideia de que Hitler iria tomar a Europa da mesma maneiraque tinha ocupado um pedaço da Checoslováquia. A única coisaque fazia o Rémy esquecer as suas preocupações — ou, melhordizendo, as preocupações de outros — era um bom livro.

Passei os dedos ao longo das lombadas. Escolhi um volume eabri numa passagem ao acaso. Nunca julgava um livro pelo seuinício. O início de um livro fazia-me apenas lembrar o primeiro eúltimo encontro que tive, em que os dois sorríamos demasiado. Não,abria uma página a meio, quando o autor já não estava a tentarimpressionar-me. «Há escuridões na vida, e há luzes», li, «e asenhora é uma dessas luzes.»[1]

Oui. Merci, senhor Stoker. Era isto que eu diria ao Rémy sepudesse.

Já estava atrasada. Precipitei-me para o balcão de atendimento,onde assinei o cartão e enfiei o Drácula na mala. A directora já láestava. Como sempre, tinha o cabelo castanho apanhado ao alto,uma caneta prateada na mão.

Toda a gente ouvira falar de Miss Reeder. Escrevia artigos para osjornais e brilhava na rádio, onde convidava toda a gente a ir àBiblioteca — estudantes, professores, soldados, estrangeiros e

franceses. Declarava categoricamente que havia ali lugar para todaa gente.

Olhei-lhe o rosto rapidamente, temendo encontrar sinais deimpaciência, mas apenas vi os seus serenos olhos cor de avelã.

— Sou a Odile Souchet. Peço desculpa pelo meu atraso. Chegueicedo, abri um livro…

— Ler é perigoso — disse Miss Reeder com um sorriso deentendida. — Podemos ir para o meu gabinete.

Segui-a ao longo da sala de leitura, onde sócios em fatoselegantes baixavam os jornais para melhor observarem a famosadirectora; subimos a escadaria em espiral, percorremos um corredorda sagrada ala «Reservada aos Funcionários» e chegámos aogabinete, que cheirava a café. Na parede estava pendurada umagrande vista aérea de uma cidade com quarteirões como umtabuleiro de xadrez, tão distante das ruas sinuosas de Paris.

Notando o meu interesse, ela explicou:— É a cidade de Washington. Trabalhei para a Biblioteca do

Congresso. — Fez sinal para que me sentasse e instalei-me nafrente da sua secretária, que estava coberta de papéis, alguns atentar escapar-se do tabuleiro ao canto, outros detidos pelo peso deum furador. Ao canto havia um polido telefone preto. Ao lado deMiss Reeder estava uma cadeira com uma pilha de livros em cima.Vi romances de Isak Dinesen e Edith Wharton. Um marcador —uma fita garrida, na verdade — acenava de cada um deles,convidando a directora a regressar.

Que espécie de leitora era Miss Reeder? Ao contrário de mim,nunca devia deixar livros abertos com a face para baixo por falta deum marque-page. Nunca os deixaria empilhados debaixo da cama.

Devia ter sempre quatro ou cinco em mãos ao mesmo tempo. Umguardado na mala para as viagens de autocarro pela cidade. Um arespeito do qual um querido amigo lhe pedira a opinião. Outro deque nunca ninguém saberia, um prazer secreto para uma chuvosatarde de domingo…

— Quem é o seu autor preferido? — perguntou Miss Reeder.Quem é o meu autor preferido? Uma pergunta impossível. Como

podia alguém escolher apenas um? Por isso mesmo, eu e a minhatia Caro tínhamos criado categorias — autores mortos, autoresvivos, estrangeiros, franceses, etc. —, para não termos de decidir.Pensei nos livros que tinha tocado na sala de leitura momentosantes, livros que me tinham tocado a mim. Admirava a maneira depensar de Ralph Waldo Emerson: Não sou solitário enquanto leio eescrevo, embora ninguém esteja comigo. Também admirava a deJane Austen. Embora a autora tivesse escrito no século xix, asituação para muitas mulheres continuava a ser a mesma: um futurodeterminado pela pessoa com quem se casavam. Três meses antes,quando informara os meus pais de que não precisava de um marido,o papa soltara um ronco de troça e começara a trazer um novosubordinado do trabalho a cada almoço de domingo. Tal como operu que a maman atava e guarnecia com salsa, o papa iaapresentando cada homem numa bandeja: «O Marc nunca faltouum dia ao emprego, nem sequer quando teve gripe!»

— A menina lê, certo?O meu papa queixava-se com frequência de que a minha boca

funcionava mais depressa do que a minha mente. Num acesso defrustração, respondi à primeira pergunta de Miss Reeder.

— O meu autor morto preferido é Dostoievski, porque gosto da

personagem Raskolnikov. Ele não é o único que tem vontade debater na cabeça de alguém.

Silêncio.Porque é que não dei uma resposta normal — por exemplo, que

Zora Neale Hurston era a minha autora viva preferida?— Foi uma honra conhecê-la. — Dirigi-me para a porta, sabendo

que a entrevista tinha terminado.Quando os meus dedos chegaram à maçaneta de porcelana, ouvi

Miss Reeder dizer:— Abandone-se, sem raciocinar, à corrente da vida, afaste de si

as inquietações, que ela o levará a alguma parte. Aonde? Não seinquiete com isso, sempre irá ter a um porto qualquer.[2]

A minha frase preferida de Crime e Castigo. 891.73. Dei meia-volta.

— A maior parte dos candidatos diz que o seu preferido éShakespeare — disse ela.

— O único autor com o seu próprio número no Sistema de Dewey.— Alguns mencionam Jane Eyre.Essa também teria sido uma resposta normal. Porque não teria eu

dito Charlotte Brontë, ou qualquer uma das Brontë, já agora?— Eu também adoro a Jane. As irmãs Brontë partilham o mesmo

número: 823.8.— Mas gostei da sua resposta.— Gostou?— Disse o que sentia, não o que julgou que eu queria ouvir.Era verdade.— Não tenha medo de ser diferente. — Miss Reeder debruçou-se

para a frente. O seu olhar inteligente, firme, encontrou o meu. —Porque é que quer trabalhar aqui?

Não lhe podia dizer a verdadeira razão. Soaria horrivelmente.— Decorei o Sistema Decimal de Dewey e tive a nota máxima no

curso de Bibliotecas.Ela olhou de relance a minha candidatura.— Tem um registo académico impressionante. Mas não

respondeu à minha pergunta.— Sou sócia da Biblioteca. Adoro literatura ingl…

— Estou a ver — cortou ela, com uma ponta de desilusão na voz.— Obrigada por ter vindo. Será informada do resultado, seja elequal for, dentro de algumas semanas. Eu acompanho-a à porta.

De volta ao átrio, suspirei de frustração. Talvez devesse teradmitido porque queria o emprego.

— O que se passa, Odile? — perguntou a professora Cohen. Euadorava as suas séries de conferências sobre «Literatura Inglesa naBiblioteca Americana». Com o xaile púrpura que era a sua imagemde marca, ela tornava acessíveis livros tão intimidantes como oBeowulf, e as suas palestras eram animadas, com um toque dehumor subtil. Nuvens de um passado escandaloso erguiam-se à suapassagem como as notas lilás do seu parfum. Dizia-se que Madamele professeur viera de Milão. Uma prima ballerina, abdicara doestatuto de estrela (e do entediante marido) para seguir um amanteaté Brazzaville. Quando regressou a Paris — sozinha —, estudou naSorbonne, onde, como Simone de Beauvoir, passou l’agrégation, oquase impossível exame oficial, para poder ensinar ao mais altonível.

— Odile?— Fiz figura de parva na entrevista de emprego.— Uma rapariga esperta como a Odile? Disse à Miss Reeder que

não perdia uma única das minhas conferências? Quem me dera queos meus alunos fossem tão fiéis!

— Não me lembrei de mencionar isso.— Inclua tudo o que lhe quer dizer num bilhete de agradecimento.— Ela não me vai escolher.— A vida é uma batalha. Tem de lutar por aquilo que quer.— Não sei muito bem…— Mas sei eu — disse a professora Cohen. — Pensa que aqueles

velhos antiquados da Sorbonne me contrataram sem mais nemmenos? Trabalhei como o raio para os convencer de que umamulher podia dar aulas na universidade.

Ergui o olhar. Antes, apenas tinha reparado no xaile de corpúrpura da professora. Agora via os seus olhos de aço.

— Ser persistente não é uma coisa má — continuou ela —,embora o meu pai se queixasse de que eu tinha de ter sempre aúltima palavra.

— O meu também. Chama-me «a inexorável».— Então use essa qualidade.Ela tinha razão. Nos meus livros preferidos, as heroínas nunca

desistiam. A ideia da professora Cohen era boa, eu podia expor osmeus pensamentos numa carta. Escrever era mais fácil do que falarfrente a frente. Podia riscar coisas e recomeçar cem vezes, seprecisasse.

— Tem razão… — disse-lhe.— Claro que tenho razão! Vou informar a directora de que a

menina sempre foi a pessoa que me fez as melhores perguntas nasminhas conferências, e espero bem que faça a sua parte. — Comum ondular do seu xaile, marchou para dentro da Biblioteca.

Por mais em baixo que me sentisse, havia sempre alguém naBAP que conseguia amparar-me e voltar a pôr-me de pé. ABiblioteca era mais do que apenas tijolo e livros; a sua argamasseera constituída por pessoas que cuidavam umas das outras. Já tinhapassado tempo noutras bibliotecas, com as suas cadeiras demadeira e os seus educados «Bonjour, mademoiselle. Au revoir,mademoiselle». Não havia nada de mal nessas bibliothèques,faltava-lhes apenas a camaradagem de uma verdadeiracomunidade. Estar nesta Biblioteca era como estar em casa.

— Odile! Espere! — Era Mr. Pryce-Jones, um diplomata inglêsreformado, de laço às cornucópias, seguido pela catalogadora Mrs.Turnbull, com a sua franja cinzento-azulada toda torta. A professoraCohen devia ter-lhes dito que eu me estava a sentir desencorajada.

— Nunca nada está perdido — Ele deu-me uma tímidapalmadinha nas costas. — Vai conquistar a directora. Escreva umalista dos seus argumentos, como uma boa diplomata.

— Pare de apaparicar a rapariga! — repreendeu-o Mrs. Turnbull.Depois virou-se para mim. — Em Winnipeg, a minha terra, estamoshabituados às adversidades. São elas que nos fortalecem. Invernoscom temperaturas de quarenta graus negativos, e não nos ouvemsoltar uma queixa, ao contrário desses americanos…

Lembrando-se da razão por que saíra para o exterior — umaoportunidade para dar ordens a alguém — espetou-me um dedoossudo na frente da cara.

— Cabeça para cima, não aceite que lhe digam não!

Com um sorriso, pensei que uma casa significava um lugar ondenão havia segredos. Mas estava a sorrir. Já era alguma coisa.

De volta ao meu quarto, esquecido o nervosismo, escrevi:

Cara Miss Reeder,Obrigada por me ter recebido. Fiquei muito entusiasmada por ser entrevistada. Esta

Biblioteca tem mais importância para mim do que qualquer outro lugar de Paris.Quando era pequena, a minha tia Caroline levava-me à Hora do Conto. Foi por causadela que estudei Inglês e me apaixonei pela BAP. Embora a minha tia já não estejacomigo, continuo a procurá-la na BAP. Abro livros e procuro pelo seu nome noscartões de leitores. Ler os mesmos romances que ela faz-me sentir que continuamospróximas uma da outra.

A Biblioteca é o meu porto de abrigo. Consigo sempre encontrar entre as estantesum canto a que chamar meu, um espaço para ler e sonhar. Quero garantir que toda agente tem essa oportunidade, em especial as pessoas que se sentem diferentes eprecisam de um lugar que considerem a sua casa.

Depois assinei, terminando a entrevista.

CAPÍTULO 2

Lily

FROID, MONTANA, 1983

O nome dela era Gustafson e era a minha vizinha do lado. Nassuas costas, chamavam-lhe a Noiva de Guerra, mas não me parecianada uma noiva. Em primeiro lugar, nunca se vestia de branco. Eera velha. Bem mais velha do que os meus pais. Toda a gente sabeque uma noiva precisa de ter um noivo, mas o marido dela já tinhamorrido há muito tempo. Embora falasse fluentemente duas línguas,na maior parte do tempo não falava com ninguém. Vivia ali desde1945, mas seria sempre considerada a mulher que viera de outrosítio qualquer.

Era a única noiva de guerra em Froid, tal como o Dr. Stanchfieldera o único médico. De vez em quando, eu espreitava para a suasala, onde até as mesas e cadeiras eram estrangeiras — delicadascomo mobília de uma casa de bonecas, com pernas de nogueiraesculpida. Bisbilhotava a sua caixa de correio, onde cartaschegadas de tão longe quanto Chicago vinham dirigidas à MadameOdile Gustafson. Em comparação com os nomes que eu conhecia,como Tricia e Tiffany, «Odile» parecia algo exótico. Dizia-se quevinha de França. Querendo saber mais a seu respeito, estudei asentradas da enciclopédia sobre Paris. Descobri as gárgulas

cinzentas de Notre-Dame e o Arco do Triunfo de Napoleão. E, noentanto, nada que eu lesse conseguia responder à minha pergunta— o que tornava Mrs. Gustafson tão diferente?

Ela não era nada como as outras senhoras de Froid. Carnudascomo galinhas, com as suas camisolas grumosas e sapatosenfadonhos, andavam sempre todas em tons de cinzento pastoso.As outras senhoras iam de rolos no cabelo à mercearia, mas Mrs.Gustafson envergava as suas melhores roupas domingueiras —uma saia de pregas e saltos altos — só para ir despejar o lixo. Umcinto vermelho salientava-lhe a cintura. Sempre. Usava batomgarrido, até na igreja. «Aquela deve ter-se em muito grande conta,de certeza», diziam as outras senhoras enquanto a viamencaminhar-se para o seu banco perto da frente, os olhos ocultospelo chapéu. Mais ninguém usava chapéu. E a maior parte dosparoquianos sentava-se atrás, não querendo chamar a atenção deDeus. Nem a do padre.

Naquela manhã, o Maloney Colarinho-de-Ferro pediu-nos queorássemos pelos 269 passageiros de um Boeing 747 que tinha sidoabatido por mísseis soviéticos K-8. Na televisão, o presidenteReagan falara-nos do ataque ao avião, que voava de Anchoragepara Seul. E, enquanto o sino da igreja tocava, as suas palavrasvibraram nos meus ouvidos: «Dor, choque, fúria… a União Soviéticaviolou todos os conceitos de direitos humanos… não devíamos ficarsurpreendidos com tão desumana brutalidade…» Os russos eramcapazes de assassinar quem quer que fosse, parecia ele dizer,incluindo crianças.

Mesmo no Montana, a Guerra Fria fazia-nos tremer. O tio Walt,que trabalhava na base da Força Aérea de Malmstrom, dizia que mil

mísseis Minuteman tinham sido plantados como batatas pelasnossas planícies. Por baixo de redondas criptas de cimento, asogivas nucleares aguardavam pacientemente. Ele gabava-se de queos Minutemen eram mais poderosos do que as bombas que tinhamdestruído Hiroxima. Dizia que os mísseis procuravam mísseis, porisso as armas soviéticas sobrevoavam Washington e apontavampara nós. Em resposta, os nossos Minutemen iriam disparar,atingindo Moscovo em menos tempo do que eu demorava a vestir-me para ir para a escola.

Depois da missa, a congregação atravessou a rua e entrou nosalão para uma sessão de café, donuts e troca de mexericos. Eu e aminha mãe fomos para a fila dos bolos; junto ao púlpito da cafeteira,o meu pai e os outros homens reuniram-se em torno de Mr. Ivers, opresidente do banco. O meu pai trabalhava seis dias por semana naesperança de se tornar vice-presidente.

— Os soviéticos não vão deixar ninguém procurar os corpos.Sacanas ímpios. .

— Quando o Kennedy era presidente, o orçamento da Defesa erasetenta por cento superior ao que é agora..

— Somos alvos fáceis.Eu ouvia sem ouvir — na infindável desconfiança da Guerra Fria,

estas graves conversações eram a banda sonora dos nossosdomingos. Ocupada a empilhar donuts no meu prato, levei umminuto a perceber que a minha mãe estava com pieira. Normal-mente, quando sofria uma crise, ela tinha alguma razão: «Osagricultores andam nas colheitas, e o pó do ar provoca-me asma»,ou «O padre Maloney anda a acenar com aquele incenso como seestivesse a tentar fumigar a igreja». Mas, desta vez, ela agarrou-me

o braço e não ofereceu qualquer razão. Conduzi-a para a mesamais próxima, onde estava sentada Mrs. Gustafson. A minha mãeafundou-se na cadeira de metal e puxou-me para o seu lado.

Tentei captar a atenção do meu pai.— Eu estou bem. Não faças estardalhaço — disse a minha mãe,

num tom que não admitia contestação.— Uma tragédia, o que aconteceu àquelas pessoas no avião —

comentou Mrs. Ivers, do outro lado da mesa.— É por isso que me deixo ficar aqui sossegada — replicou Mrs.

Murdoch. — Andar na boa vida só traz problemas.— Morreram montes de pessoas inocentes — opinei. — O

presidente Reagan disse que morreu um congressista.— É menos um chupista. — Mrs. Murdoch enfiou o último donut

entre os dentes castanhos.— Que coisa horrível de se dizer. As pessoas têm o direito de

apanhar um avião sem serem assassinadas — protestei.Os olhos de Mrs. Gustafson encontraram os meus. Ela anuiu,

como se o que eu pensava fosse importante. Embora observá-la setivesse tornado o meu passatempo, esta era a primeira vez que elareparava em mim.

— É corajoso da tua parte assumires uma posição — disse ela.Encolhi os ombros.— As pessoas não deviam ser maldosas.— Não podia estar mais de acordo.Antes que eu pudesse responder, Mr. Ivers berrou:— A Guerra Fria já dura há quase quarenta anos. Nunca vamos

ganhar.Cabeças acenaram em concordância.

— São uns assassinos a sangue frio — continuava ele.— Alguma vez conheceu um russo? — perguntou-lhe Mrs.

Gustafson. — Já trabalhou com um russo? É que eu já, e possodizer-lhe que não são muito diferentes de nenhum de nós.

O salão inteiro ficou em silêncio. Onde teria ela conhecido oinimigo, e como teria «trabalhado» com ele?

Em Froid, sabíamos tudo sobre toda a gente. Sabíamos quembebia demais e porquê, sabíamos quem enganava o Estado com osimpostos e quem enganava as esposas, sabíamos quem vivia empecado com um homem qualquer em Minot. O único enigma eraMrs. Gustafson. Ninguém sabia o seu apelido de solteira nem qualera a profissão do pai. Ninguém sabia como tinha conhecido BuckGustafson durante a guerra nem como o convencera a dar com ospés à namorada de liceu e casar antes com ela. Os boatos giravamà sua volta, mas sem nunca a agarrarem. Havia dor nos seus olhos,mas seria perda ou arrependimento? E, depois de ter vivido emParis, como se podia ter contentado em ficar naquele entedianteponto no meio de uma planície?

Eu era uma aluna do tipo «fila da frente, mão no ar». Sentadaatrás de mim, a Mary Louise rabiscava a secretária. Nesse dia, nafrente do quadro, a professora Hanson esforçava-se ao máximopara interessar a turma do sétimo ano no Ivanhoe; a Mary Louisebalbuciou: «Ivan-não». Na fila do lado, os dedos bronzeados doRobby curvavam-se à volta de um lápis. O cabelo — castanho comoo meu — estava escadeado à moda da altura. Já conduzia, uma vezque tinha de ajudar os pais a transportar os cereais. Levou o lápis à

boca, e a borracha cor-de-rosa roçou no seu lábio inferior. Eu eracapaz de ficar a olhar para sempre para o canto da sua boca.

Linguado. Rabanadas. Batatas fritas.3 Todas as coisas boas eramfrancesas. Para mim, o feijão verde francês sabia melhor do que oamericano. As canções francesas tinham de ser melhores do quemúsica country, aquela que tocava na única estação de rádio davila. «A minha vida despedaçou-se quando aquela vaca ruminanteme trocou por um touro mais novo.» Os franceses, provavelmente,também sabiam mais sobre o amor.

Eu queria navegar pela pista de um aeroporto e pela passarela deum desfile de moda. Queria actuar na Broadway, espreitar para ooutro lado da Cortina de Ferro. Queria provar o sabor de palavrasfrancesas na minha boca. E só conhecia uma pessoa que tinhaexperimentado o mundo para além de Froid — Mrs. Gustafson.

Embora fôssemos vizinhas, era como se ela vivesse a anos-luz.Todos os anos, no Halloween, a minha mãe avisava: «A Noiva deGuerra tem a luz do alpendre desligada. Isso significa que não quermiúdos à porta.» Quando a Mary Louise e eu andávamos a venderbolachas das Escoteiras, a mãe dela dizia: «A velhota tem poucodinheiro. Não vão lá bater.»

O meu encontro com Mrs. Gustafson tornou-me mais ousada. Sóprecisava do trabalho de casa certo para a ir entrevistar.

Conforme esperado, a professora H. mandou-nos fazer umtrabalho sobre o Ivanhoe. Depois da aula, aproximei-me da suasecretária e perguntei se podia escrever antes sobre um país.

— Só desta vez — disse ela. — Fico então à espera de ler o teu

trabalho sobre França.Estava tão distraída com o meu plano que, quando fui à casa de

banho, esqueci-me de verificar debaixo das portas e trancar a portaprincipal. Claro, quando terminei, a Tiffany Ivers e o seu rebanhoestavam aglomeradas junto aos lavatórios, onde ela penteava ocabelo trigo-dourado em frente ao espelho.

— O autoclismo não funciona — disse ela. — Aí vem umcagalhão.

Não propriamente muito sofisticado, mas, quando estudei o meureflexo ao espelho, a única coisa que vi foi o meu cabelo castanho-cocó. Deixei-me ficar junto aos cubículos, sabendo que, se lavasseas mãos, a Tiffany me ia enfiar debaixo da torneira e eu ia ficarencharcada. Se não as lavasse, elas contavam à escola inteira.Tinham feito isso à Maisie — e ninguém se sentou ao lado da«Mãos de Mijo» durante um mês. De braços cruzados, o quarteto dacasa de banho aguardava.

As dobradiças da porta guincharam e a professora H. espreitoupara o interior.

— Já aqui estás outra vez, Tiffany? Deves andar com algumproblema na bexiga.

As raparigas saíram, os olhos fixos nos meus como quem diz istoainda não acabou. Como se eu não soubesse.

A minha mãe, a optimista militante, dir-me-ia para ver o ladopositivo. Pelo menos o velho Ivers só tinha aquela prole. E pelomenos era sexta-feira.

Normalmente, às sextas-feiras, os meus pais recebiam amigospara jantar (a minha mãe assava entrecosto, Kay trazia uma saladae Sue Bob fazia um bolo de ananás invertido), por isso eu passava a

noite na casa da Mary Louise. Mas, nessa noite, fiquei no quarto apreparar perguntas para Mrs. Gustafson. Enquanto os adultoscomiam, os risos transbordavam da sala. Quando se fez silêncio,soube que, tal como os cavalheiros e as damas de Inglaterra, asmulheres se tinham retirado para que os homens se pudesseminstalar nas suas cadeiras e dizer as coisas que não podiam dizercom as esposas presentes.

Enquanto as mulheres lavavam a loiça, eu ouvia a outra voz daminha mãe, a que ela usava com as amigas. Com elas parecia maisfeliz. Era engraçado como a mesma pessoa podia ser pessoasdiferentes. Isto fez-me pensar que havia algumas coisas a respeitoda minha mãe que eu não sabia, mesmo que não fosse misteriosacomo Mrs. Gustafson.

Na minha secretária, ia anotando as perguntas à medida quesurgiam — Quando foi a última vez que a guilhotina cortou a cabeçade alguém? A França também tem Testemunhas de Jeová? Porqueé que dizem que roubou o seu marido? Agora que ele morreu,porque é que ficou aqui? —, e estava tão concentrada que sópercebi que a minha mãe se encontrava atrás de mim quando sentia sua mão morna no meu ombro.

— Não quiseste dormir na casa da Mary Louise?— Estou a fazer os trabalhos de casa.— Numa sexta — disse ela, céptica. — Dia difícil na escola?A maior parte dos dias eram difíceis. Mas não me apetecia falar

da Tiffany Ivers. A minha mãe retirou um presente do tamanho deuma caixa de sapatos de detrás das costas.

— Fiz-te uma coisa.— Obrigada! — Rasguei o papel de embrulho e descobri um

colete de croché.Enfiei-o por cima da T-shirt e a mãe ajustou-mo à cintura, contente

com o tamanho.— Estás linda. O verde destaca as pintinhas dos teus olhos.Um olhar de relance ao espelho confirmou que eu parecia uma

totó. Se levasse o colete para a escola, a Tiffany Ivers ia comer-meviva.

— É… bonito — disse à minha mãe, demasiado tarde.Ela sorriu para esconder a dor.— Então, em que é que estás a trabalhar?Expliquei-lhe que tinha de fazer um trabalho sobre França e que

precisava de entrevistar Mrs. Gustafson.— Oh, querida, não sei se a devíamos incomodar.— Só tenho algumas perguntas. Podemos convidá-la para vir cá a

casa?— Suponho que sim. O que lhe queres perguntar?Apontei para o meu papel.A minha mãe olhou de relance a lista e soprou audivelmente.— Sabes, pode haver uma razão para ela nunca ter regressado.

No sábado à tarde, passei rapidamente pelo velho Chevy de Mrs.Gustafson, subi os raquíticos degraus do alpendre e toquei àcampainha. Ding-dang-dong. Não houve resposta. Toquei de novo.Ninguém atendeu, por isso tentei a porta da frente. Não estavatrancada.

— Olá — fiz-me anunciar, e entrei.Silêncio.

— Alguém em casa? — perguntei.Na sala silenciosa, livros cobriam as paredes. Fetos alinhavam-se

numa prateleira debaixo da grande janela. A aparelhagem, dotamanho de uma arca congeladora, podia abrigar um cadáver.Percorri a colecção de discos: Tchaikovsky, Bach, mais Tchaikovsky.

Mrs. Gustafson aproximou-se pelo corredor, a arrastar-se como setivesse acabado de acordar de uma sesta. Mesmo sozinha em casa,usava um vestido com o seu cinto vermelho. Apenas de meiascalçadas, parecia vulnerável. Ocorreu-me que nunca tinha visto ocarro de uma amiga na frente da casa dela, nunca ouvira falar deum familiar de visita. Ela era a própria definição de solidão.

Parando a poucos metros de mim, olhou-me como se fosse umladrão que lhe ia roubar O Lago dos Cisnes.

— O que queres?A senhora sabe coisas, e também as quero saber.Ela cruzou os braços.— Então?— Estou a fazer um trabalho sobre si. Quero dizer, sobre o seu

país. Não quer vir lá a casa, para eu a entrevistar?Os cantos da boca dela reviraram-se para baixo. Não respondeu.O silêncio deixou-me nervosa.— Isto parece uma biblioteca. — Acenei para as suas prateleiras,

que estavam cheias de mulheres que eu não conhecia: Madame deStaël, Madame Bovary, Simone de Beauvoir.

Talvez aquilo não fosse uma boa ideia. Virei-me para sair.— Quando? — perguntou ela.Olhei para trás.— Que tal agora?

— Estava no meio de uma coisa. — Falou num tom ríspido, comose fosse presidente e precisasse de voltar rapidamente paragovernar o território do seu quarto.

— Estou a fazer um trabalho — lembrei-a, uma vez que a escolavinha antes de Deus, país e futebol.

Mrs. Gustafson enfiou os sapatos de saltos altos e pegou naschaves. Segui-a para o alpendre, onde ela trancou a porta. Era aúnica pessoa em Froid que fazia isto .

— Costumas entrar dessa maneira pela casa das pessoas? —perguntou-me, enquanto atravessávamos o relvado.

Encolhi os ombros.— Normalmente, as pessoas vão à porta quando toco.Na nossa sala, ela uniu as duas mãos com força, e depois deixou-

as cair, inertes. Os olhos dardejaram pela carpete, o banco junto àjanela, as fotografias de família na parede. A sua boca moveu-separa dizer alguma coisa, possivelmente «Muito agradável», comodiriam as outras senhoras, depois cerrou os maxilares com firmeza.

— Bem-vinda — disse a minha mãe enquanto pousava umatravessa de bolachas de pepitas de chocolate sobre a mesa.

Fiz sinal à nossa vizinha para se sentar. A minha mãe colocoucanecas na frente do seu pratinho e do meu; no lugar de Mrs.Gustafson, colocou uma chávena. Eu sabia de cor a história destachávena. Há muitos anos, quando Mrs. Ivers foi fazer uma «rota doscastelos» em Inglaterra, o meu pai deu-lhe dinheiro para elacomprar um conjunto de chá chique para a minha mãe. Mas aporcelana é cara, e Mrs. Ivers regressou apenas com uma chávenae um pires. Com terror de que se partisse, manteve-os no colodurante todo o voo transatlântico. Na minha cabeça, a fina chávena

coberta de delicadas flores azuis vinha de um sítio melhor. Mais fino.Como Mrs. Gustafson.

A mãe serviu o chá; quebrei o silêncio.— Qual é a melhor coisa de Paris? É verdade que é a cidade

mais bonita do mundo? Como foi crescer ali?Mrs. Gustafson não respondeu de imediato.— Espero que não a estejamos a incomodar — interveio a minha

mãe.— A última vez que fui entrevistada desta maneira foi para um

emprego, em França.— Estava nervosa? — perguntei.— Sim, mas tinha decorado livros inteiros para me preparar.— E ajudou?Ela sorriu, pesarosa.— Há sempre perguntas para as quais não se está preparado.— A Lily não lhe vai fazer esse tipo de perguntas. — A minha mãe

dirigia-se a Mrs. Gustafson, mas o aviso era para mim.— A melhor coisa em Paris? É uma cidade de leitores — disse a

nossa vizinha.Depois contou que, nas casas dos seus amigos, os livros eram

tão importantes como a mobília. Ela passava os verões a ler nosvicejantes parques da cidade, e depois, como as palmeirasenvasadas do Jardim das Tulherias, enviadas para a estufa aosprimeiros sinais de geada, passava os invernos na biblioteca,enroscada junto à janela com um livro no colo.

— Gosta de ler? — Para mim, os clássicos que tínhamos de lerpara a disciplina de Inglês eram uma seca.

— Vivo para ler — replicou. — Principalmente livros sobre história

e eventos da actualidade.Aquilo soava tão divertido como observar a neve a derreter.— E quando tinha a minha idade?— Adorava romances como O Jardim Secreto. O meu irmão

gémeo é que se interessava pelas notícias.Um irmão gémeo. Queria perguntar como se chamava, mas ela

avançou. Os parisienses apreciam comida quase tanto comoapreciam literatura, disse. Já tinham passado mais de quarentaanos, mas ela ainda se lembrava do bolo que o pai lhe levara depoisdo seu primeiro dia de trabalho, um bolo chamado financier.Fechando os olhos, disse que o amanteigado da farinha deamêndoa lhe trazia o paraíso à boca. A mãe dela adorava asopéras, tiras de rico chocolate negro envoltas em camadas de boloensopado em café. Fii-nân-ci-ê. Ô-pê-rá. Saboreei as palavras eadorei a sua sensação na minha língua.

— Paris é um lugar que fala connosco — continuou ela. — Umacidade que está sempre a cantar em surdina a sua própria canção.De Verão, os parisienses têm sempre as janelas abertas, e ouve-seo dedilhar do piano de um vizinho, o sussurro de cartas a serembaralhadas, a estática de alguém a girar o botão de um aparelho derádio. Há sempre uma criança a rir, alguém a discutir, um clarinetistaa tocar na praça.

— Parece maravilhoso — disse a minha mãe, sonhadora.Normalmente, aos domingos depois da igreja, os ombros de Mrs.

Gustafson pareciam descaídos, e os seus olhos eram como oletreiro de néon do bar Oasis às segundas-feiras — desligados. Masagora tinha os olhos luminosos. Ao falar de Paris, as linhas

angulosas do seu rosto suavizavam-se, bem como a sua voz.Perguntei-me porque teria de lá saído.

A minha mãe surpreendeu-me ao fazer-lhe uma pergunta.— Como era a vida durante a guerra?— Dura. — Os dedos de Mrs. Gustafson apertaram-se em torno

da chávena. Quando tocavam as sirenes de aviso de ataque aéreo,a sua família escondia-se na cave. Com o racionamento de comida,cada cidadão recebia um ovo por mês. As pessoas iam ficando maismagras até simplesmente desaparecerem. Nas ruas, os naziscontrolavam os passos dos parisienses. Como lobos, andavam emmatilhas. As pessoas eram presas sem qualquer razão. Oupequenas razões, como andarem fora de casa depois do recolherobrigatório.

Franzi o sobrolho. O recolher obrigatório não era uma coisa paraos adolescentes? A irmã da Mary Louise, Angel, tinha hora derecolher obrigatório.

— Qual é a coisa de Paris de que mais sente falta? — perguntei.— Da família e dos amigos. — disse Mrs. Gustafson, e os seus

olhos castanhos ficaram mais melancólicos. — Pessoas que mecompreendem. Tenho saudades de falar francês. De sentir queestou em casa.

Fiquei sem saber o que dizer. O silêncio estendeu-se pela sala.Eu e a minha mãe ficámos inquietas, mas a nossa convidada nãoparecia incomodada, a beber o que restava do seu chá.

Reparando na chávena vazia de Mrs. Gustafson, a minha mãelevantou-se de um pulo.

— Vou pôr a chaleira ao lume.A meio caminho da cozinha, parou de repente. Vacilou, e uma

mão disparou para se agarrar ao armário. Antes sequer de eu tertempo para me mover, Mrs. Gustafson ergueu-se de um pulo epassou-lhe um braço em volta da cintura para a conduzir de novopara a cadeira. Agachei-me ao lado da minha mãe. Tinha as facesafogueadas e respirava de uma forma lenta e superficial, como se oar não quisesse entrar nos seus pulmões.

— Está tudo bem — disse. — Levantei-me demasiado depressa.Já devia ter aprendido.

— Isto já tinha acontecido antes? — perguntou Mrs. Gustafson.A mãe olhou para mim, por isso voltei para a minha cadeira e fingi

sacudir umas migalhas.— Algumas vezes — admitiu.Mrs. Gustafson chamou o Dr. Stanchfield. Em Froid, todos os

adultos dizem o mesmo: «Na cidade, chamas um médico e ele nãovem, por mais doente que estejas. Aqui, a secretária atende aosegundo toque e o Stanch está na tua casa em dez minutos.» Elefazia partos em três condados — a primeira pessoa a segurarmuitos de nós nas suas mãos mornas e sardentas.

O médico bateu à porta e entrou com a sua grande mala de pelepreta.

— Não precisava de ter vindo — disse a minha mãe, ruborizada.Ela levava-me ao consultório se eu soltasse um espirro, mas nuncatinha marcado uma consulta por causa da sua asma.

— Deixe-me ser eu a decidir isso. — Desviou-lhe suavemente ocabelo para o lado e levou o estetoscópio às suas costas. —Respire fundo.

Ela inspirou.— Se isso é respirar fundo… — Enquanto lhe media a tensão,

Stanch franziu o sobrolho. Disse que os valores eram elevados eprescreveu uns comprimidos.

Talvez a minha mãe se tivesse enganado quando dizia que eraasma.

Depois do jantar, a Mary Louise e eu estávamos deitadas no meutapete a fazer os trabalhos de casa.

— O que disse Mrs. Gustafson? — quis ela saber.— Que a guerra era perigosa.— Perigosa? Como?— O inimigo em toda a parte. — Imaginei Mrs. Gustafson a

caminho do trabalho, com as ruas cheias de lobos sarnentos.Alguns a rosnar, outros a tentar mordiscar-lhe os saltos altos. E elacontinuava a andar. Talvez nunca tomasse o mesmo caminho duasvezes.

— E ela tinha de fugir?— Acho que sim.— Não era fixe se ela fosse uma agente secreta?— Mesmo. — Imaginei-a a entregar mensagens em livros

bafientos.— Por falar em segredos… — Ela pousou o lápis. — Fumei um

dos cigarros da Angel.— Fumaste sozinha? Não fumaste nada.Ela não disse nada.— Não fumaste nada — repeti.— Com a Tiffany.As suas palavras atingiram-me com força.

— Se fumares, nunca mais falo contigo — disse-lhe. E contive arespiração.

Tínhamos ambas 12 anos, mas a Mary Louise sabia tudoprimeiro. Por causa da Angel, a sua irmã, a Mary Louise sabia depreservativos e barris de cerveja. Os meus pais não me deixavamusar maquilhagem, por isso a Mary Louise emprestava-me a dela. Aminha amiga era mais forte e mais rápida do que eu, e sentia-a aescapar-se na minha frente.

— Também não gostei assim tanto — respondeu.

Nas semanas seguintes, a minha mãe perdeu o apetite e asroupas começaram a ficar a nadar sobre o seu corpo. A medicaçãonão estava a funcionar. O meu pai levou-a a um especialista, quedisse que era apenas stress. Estava demasiado cansada paracozinhar, por isso o meu pai fazia sanduíches. No Dia de Acção deGraças, eu e ele comemos o nosso queijo grelhado no balcão dacozinha. Íamos lançando olhares de relance para a porta, esperandoque a mãe se sentisse com forças suficientes para se juntar a nós.

Ele pigarreou.— Como estão as coisas na escola?Eu tinha 5 a tudo, não tinha namorado e a Tiffany Ivers andava a

tentar roubar-me a Mary Louise.— Bem.— Bem?— As outras raparigas todas podem maquilhar-se. Porque é que

eu não posso?Não assimilei a maior parte do que o meu pai disse. Não ouvi a

sua preocupação, não o ouvi dizer que era bonita. A única coisa queouvi foi o inequívoco não.

— Mas, pai…— Espero que não chateies a tua mãe com isso.Pela milésima vez, olhámos para a porta do quarto.

De mochilas aos ombros, a Mary Louise e eu regressávamos a péda escola. Parámos na First Street para fazer festas ao Smokey, opastor alemão, depois passámos pela casa dos Flesches, quetinham quarenta e sete gnomos de cerâmica espalhados pelojardim, um por cada ano de casamento. Na casa da esquina, a velhaMrs. Murdoch abriu de rompante as cortinas de renda. Secortássemos pelo seu relvado em vez de seguir pelo passeio, elaligava aos nossos pais.

Em Froid, todos fazíamos compras na mesma mercearia,bebíamos todos do mesmo poço. Partilhávamos o mesmo passado,repetíamos as mesmas histórias. Mrs. Murdoch não era tão máantes de o marido cair para o lado enquanto removia a neve da suaporta. Buck Gustafson nunca mais tinha sido o mesmo depois daguerra. Líamos o mesmo jornal, dependíamos do mesmo médico. Acaminho daqui ou dali, conduzíamos por estradas de terra, víamosceifeiras debulhadoras a percorrerem os campos, a cortarem o trigo.O ar cheirava a limpo. A honesto. As nossas bocas e narinasenchiam-se com o tenro perfume a feno, e o pó das colheitas erabombeado pela nossa corrente sanguínea.

— Vamos mudar-nos para uma cidade grande. — A Mary Louise

olhava carrancuda para Mrs. Murdoch. — Onde ninguém saiba nadada nossa vida.

— Onde podemos fazer o que quisermos — acrescentei. — Comogritar na igreja.

— Ou nem sequer ir à igreja.Depois disto fizemos uma pausa; era uma ideia de tal enormidade

que levou tempo a ser assimilada, e percorremos o último quarteirãoaté à minha casa em silêncio. Da rua, vi a mãe pela janela. O reflexono vidro fazia-a parecer pálida como um fantasma.

A Mary Louise dirigiu-se para casa; eu continuei até à caixa docorreio e encostei-me ao poste envelhecido, ainda não preparadapara entrar. A minha mãe costumava fazer bolachas e tagarelar comas amigas ao balcão da cozinha. Por vezes, ia buscar-me à escola elevava-me a Medicine Lake Refuge, o seu local favorito deobservação de aves. Na carrinha, eu e a mãe virávamo-nos namesma direcção; a estrada estendia-se na nossa frente, cheia depossibilidades. Era fácil fazer-lhe confidências sobre um problemacom a Tiffany Ivers ou uma má nota num teste. Podia falar-lhetambém de coisas boas, como quando, na aula de Educação Física,o Robby foi capitão de equipa e me escolheu em primeiro lugar,antes até de qualquer um dos rapazes. Sempre que eu cometiaalgum erro, os outros queixavam-se amargamente, mas ele ficousempre do meu lado e dizia-me: «Da próxima vez consegues.»

A mãe sabia tudo a meu respeito.Em Medicine Lake, havia duzentas e setenta espécies de aves.

Avançávamos por entre a erva que nos dava pelos joelhos. A minhamãe andava com uns binóculos pendurados ao pescoço.

— Talvez o falcão seja mais majestoso — dizia — e a batuíra-

melodiosa tenha o nome melhor. Mesmo assim, o tordo-americano éo meu preferido.

Eu arreliava-a por fazer uma viagem daquelas para observarpássaros que conseguíamos ver do nosso jardim.

— O tordo é elegante — dizia-me —, um bom presságio, lembra-nos as coisas especiais que temos mesmo na nossa frente. —Abraçava-me com força.

Mas, agora, ela ficava sozinha em casa e raramente tinha energiapara falar, nem sequer comigo.

Nesse momento, Mrs. Gustafson saiu para ir buscar o seu correio,e atravessei a faixa castanha de erva que nos separava. Elasegurava uma carta contra o peito.

— De quem é?— Da minha amiga Lucienne, que está em Chicago.

Correspondemo-nos há décadas. Chegámos juntas no mesmobarco… três semanas inesquecíveis, desde a Normandia até NovaIorque. — Olhou para mim. — Está tudo bem?

— Está. — Toda a gente sabia as regras: Não atraias atenções,ninguém gosta de uma exibicionista. Não te vires para trás na igreja,nem que uma bomba expluda atrás de ti. Quando alguém tepergunta como estás, respondes que está «tudo bem», mesmo queestejas triste e assustada.

— Queres entrar? — perguntou ela.Deixei cair a minha mochila na frente das estantes. Havia livros de

alto a baixo, mas apenas três fotografias, pequenas comopolaróides. Na minha casa, tínhamos mais fotografias do que livros(a Bíblia, o manual de aves da mãe e uma enciclopédia quetínhamos encontrado numa venda de garagem).

A primeira fotografia era de um jovem Marine. Tinha os olhos deMrs. Gustafson.

Ela aproximou-se.— O meu filho, Marc. Morreu no Vietname.Um dia, quando estava a distribuir boletins na igreja, um bando de

senhoras atracou perto da pia da água benta. Assim que Mrs.Gustafson entrou, Mrs. Ivers sussurrou:

— Amanhã faz anos que o Marc morreu.A abanar a cabeça, a velha Mrs. Murdoch replicou:— Perder um filho, não há nada pior. Devíamos enviar flores, ou…— Deviam era parar de fofocar — sentenciou Mrs. Gustafson. —

Pelo menos na missa.As senhoras mergulharam os dedos a tremer na água benta,

benzeram-se rapidamente e afundaram-se nos seus lugares.Passei a mão pela moldura.— Lamento muito.— Eu também.A dor na sua voz deixou-me desconfortável. Nunca ninguém a ia

visitar. Nem cunhados, nem a sua família francesa. E se toda agente que ela amara tivesse morrido? Provavelmente ela não mequeria ali, a fazê-la reviver as pessoas que tinha perdido. Fiz umgesto para pegar na minha mochila.

— Queres uma bolacha? — perguntou-me.Na cozinha, agarrei nas duas maiores que estavam na travessa e

devorei-as antes de ela ter tempo de tocar na sua. Finas eestaladiças, as bolachas de açúcar estavam enroladas na forma deum binóculo em miniatura.

Mrs. Gustafson tinha acabado a primeira fornada, por isso, ao

longo da hora seguinte, ajudei-a a enrolar o resto. Gostei do facto deela não dizer nada sobre a minha mãe. Nem: «Sentimos a falta datua mãe na Associação de Pais, diz-lhe que toda a gente tem decolaborar.» Nem: «Isso não é nada que um bom porco assado nãoresolva.» O silêncio nunca me soube tão bem.

— Como se chamam estas bolachas? — perguntei, enquantopegava noutra.

— Cigarettes russes. Cigarros russos.Bolachas comunistas? Devolvi-a à travessa.— Quem a ensinou a fazê-las?— Quem me deu a receita foi uma amiga, que as servia quando

eu lhe entregava livros.— Porque é que ela não ia buscar os seus próprios livros?— Porque não podia entrar em bibliotecas durante a guerra.Antes que lhe pudesse perguntar a razão, ouvimos bater à porta.— Mrs. Gustafson?Era o meu pai, o que significava que eram seis horas — hora do

jantar, e eu estava em sarilhos. Limpando as migalhas da boca,preparei a minha defesa. Distraíra-me com as horas, tinha de ficarpara acabar de…

Mrs. Gustafson abriu a porta e esperei que o furacão-pai caísseem cima de mim.

Vi-o com os olhos muito abertos, a gravata toda torta.— Vou levar a Brenda ao hospital — disse à Mrs. Gustafson. —

Podia olhar pela Lily?Eu queria pedir-lhe desculpa, mas ele foi-se embora sem esperar

por uma resposta.

CAPÍTULO 3

Odile

PARIS, FEVEREIRO DE 1939

A sombra da Igreja de Saint-Augustin agigantava-se sobre amaman, o Rémy e eu, quando saímos de mais uma entediantemissa de domingo. Livre das opressivas garras do incenso, inspireigélidas baforadas de ar, aliviada por me ver a salvo do padre e doseu lúgubre sermão. A maman ia-nos apressando pelo caminho, aopassarmos pela segunda livraria preferida do meu irmão, pelaboulangerie com o padeiro de coração partido que deixava queimaro pão, pela ombreira suja da porta do nosso prédio.

— Qual será hoje, o Pierre ou o Paul? — perguntou-se ela. —Quem quer que seja, deve estar a chegar a qualquer instante. Odile,não te atrevas a franzir a cara. Claro que o papa quer que conheçasestes homens… Nem todos trabalham na mesma esquadra. E umdeles pode vir a ser um pretendente perfeito para ti.

Mais um almoço com outro polícia apanhado desprevenido. Eradesconfortável quando um homem mostrava interesse por mim, emortificante quando não mostrava interesse algum.

— E vai vestir a blusa! Não posso acreditar que tenhas levado

esse vestido todo deslavado para a igreja. O que é que as pessoasvão pensar? — censurou ela, antes de correr para a cozinha paraverificar o seu assado.

No átrio de entrada, frente ao espelho de moldura dourada, refiz aminha trança de cabelo castanho-avermelhado; o Rémy passou umpouco de pomada para o cabelo nos seus caracóis rebeldes. Nasfamílias francesas, o almoço de domingo era um ritual tão sagradocomo a missa, e a maman insistia sempre para que estivéssemosno nosso melhor.

— Como classificaria o Dewey este almoço? — perguntou oRémy.

— Essa é fácil. 841. Uma Temporada no Inferno.Ele riu-se.— Quantos subalternos já terá convidado o papa até agora?— Catorze — disse ele. — Aposto que têm medo de recusar.— Porque é que tu não tens de passar por esta tortura?— Porque sou homem, e ninguém quer saber quando me caso. —

Com um sorriso malicioso, ele puxou-me o cachecol e prendeu a lãáspera à volta da cabeça, atando-a debaixo do queixo como anossa mãe fazia. — Ma fille, as mulheres têm uma curta vida deprateleira.

Ri-me. Ele sabia sempre como me animar.— Por esse andar — continuou, à maneira estridente da maman

— vais ficar na prateleira para sempre!— Uma prateleira de biblioteca, se conseguir o emprego.— Quando conseguires o emprego.— Não tenho a certeza…Rémy retirou o lenço.

— És formada em Bibliotecas, falas inglês fluentemente e tivesteboas notas no estágio. Tenho fé em ti; e tu também precisas de ter.

Ouvimos bater à porta. Abrimos e deparámos com um polícialouro de sobretudo. Preparei-me para o pior — o protegido dasemana anterior cumprimentara-me esfregando as bochechasgordurosas na minha face.

— Sou o Paul — disse este. Mal tocou com a face na minha.— Muito gosto em conhecer-vos — disse ele, enquanto apertava

a mão ao Rémy. — Tenho ouvido falar muito bem dos dois.Parecia sincero, mas tive dificuldade em acreditar que o papa

tivesse dito alguma coisa de remotamente positiva sobre qualquerum de nós. Apenas lhe ouvíamos queixumes sobre as fracas notasdo Rémy (embora ele fosse o melhor nos debates da sua turma deDireito!) e os meus pobres dotes como dona de casa («Como é queconsegues dormir numa cama com tantos livros em cima!»).

— Passei a semana inteira a ansiar por este dia! — disse oprotegido à maman.

— Uma refeição caseira vai fazer-lhe bem — respondeu ela. —Temos todo o gosto em recebê-lo.

O papa instalou o convidado na poltrona junto à lareira e depoisserviu o aperitivo (vermute para os homens, xerez para asmulheres). Enquanto a maman esvoaçava entre a cadeira ao ladodos seus amados fetos e a cozinha, para verificar se a criadacumpria as instruções, o papa presidia da cadeira Louis XV, com obigode em forma de vassoura a varrer asserções da sua boca.

— Quem é que precisa desses chômeurs intellectuels? Para mim,o «intelectual desempregado» devia era ir compor a sua prosaenquanto trabalhava nas minas. Que outro país distingue entre

preguiçosos espertos e preguiçosos burros? Com o dinheiro dosmeus impostos! — Cada domingo, mudava o pretendente; o longosermão do papa era sempre o mesmo.

Mais uma vez, expliquei:— Ninguém o obriga a sustentar artistas e escritores. Pode

escolher entre selos postais normais e aqueles com uma pequenasobretaxa.

Ao meu lado no divã, o Rémy cruzou os braços. Conseguia ler-lhea mente: Porque é que te dás ao trabalho?

— Nunca ouvi falar desse programa — disse o protegido do papa.— Quando escrever para casa, vou pedir esses selos.

Talvez este não fosse tão mau como os outros.— Os nossos colegas estão a ter uma carga de trabalhos com os

campos de detenção perto da fronteira. Todos aqueles refugiados aentrar pelo país adentro… daqui a pouco há mais espanhóis emFrança do que na Espanha.

— Há uma guerra civil — frisou o Rémy. — Eles precisam deajuda.

— E têm de a vir pedir ao nosso país!— O que hão-de fazer os civis inocentes? — perguntou o Paul ao

papa. — Ficar em casa à espera de serem massacrados?Para variar, o meu pai não teve resposta. Observei o nosso

convidado. Não o cabelo curto um pouco espetado, nem os olhosazuis que combinavam com a sua farda, mas a força de carácter e aserena coragem na defesa das suas crenças.

— Com toda esta agitação política — continuou o Rémy —, umacoisa é certa. A guerra vem aí.

— Disparate! — disse o papa. — Investimos milhões em

segurança. Com a Linha Maginot, a França está totalmente segura.Eu imaginava a linha como uma imensa vala nas fronteiras de

França com a Itália, a Suíça e a Alemanha, onde os exércitos quenos tentassem atacar seriam engolidos por inteiro.

— Temos mesmo de falar sobre guerra? — perguntou a maman.— Que conversa tão triste num domingo! Rémy, porque não nosfalas das tuas aulas?

— O meu filho quer desistir da Faculdade de Direito — disse opapa ao Paul. — Sei de fonte segura que falta às aulas.

Revirei a cabeça em busca de outro assunto que pudesseintroduzir. Mas antes de o conseguir, o Paul olhou para o Rémy.

— O que preferia fazer? — perguntou.Era a pergunta que eu desejava que o meu pai lhe pusesse.— Gostava de me candidatar — respondeu o Rémy. — Tentar

mudar as coisas.O papa revirou os olhos.— Ou então tornar-me guarda-florestal e fugir deste mundo

corrupto — continuou o Rémy.— Eu e você mantemos as pessoas e as empresas em segurança

— disse o papa ao nosso convidado. — Este quer protegerpinheiros e dejectos de ursos.

— As nossas florestas são tão importantes como o Louvre —respondeu o Paul.

Outra resposta que não suscitou qualquer réplica do papa. Olheipara o Rémy, para ver o que ele pensava de Paul, mas o meu irmãovirara-se para a janela e transportara-se para um sítio muitodistante, como costumávamos fazer durante os intermináveis

almoços de domingo. Quanto a mim, desta vez, decidi ficar. Queriaouvir o que o Paul tinha para dizer.

— O almoço cheira lindamente! — exclamei, esperando desviardo Rémy a atenção do papa.

— Sim — acrescentou o Paul, entrando no espírito. — Não comouma refeição caseira há meses.

— Como é que vais ajudar os teus refugiados se desistes deDireito? — continuava o papa. — Precisas de levar alguma coisa atéao fim.

— A sopa deve estar pronta… — A maman arrancavanervosamente as frondes secas dos seus fetos.

Sem uma palavra, o Rémy passou por ela e entrou na sala dejantar.

— Trabalhar não queres — vociferou o papa —, mas és sempre oprimeiro na fila para comer!

Ele não conseguia conter-se, nem sequer na frente de umconvidado. Como de costume, comemos sopa de batata e alho-francês.

Paul elogiou a maman pela sopa cremosa, e ela murmurouqualquer coisa sobre ser uma boa receita. O raspar da colher dopapa na porcelana assinalou o fim do primeiro prato. A boca damaman abriu-se ligeiramente, como se ela lhe quisesse pedir parase acalmar. Mas nunca repreenderia o papa.

A criada trouxe o puré de batata com alecrim e a carne de porcoassada. Olhei para o relógio sobre a lareira. O almoço costumavaarrastar-se, mas fiquei surpreendida ao ver que já eram duas datarde.

— Também é estudante? — perguntou-me o Paul.

— Não, já terminei. Acabei de me candidatar a um emprego naBiblioteca Americana.

Um sorriso tocou-lhe os lábios.— Não me importava de trabalhar num sítio tão bonito e pacífico

como aquele.Os olhos pretos do papa cintilaram de interesse.— Paul, se não está satisfeito no 8.º distrito, porque não pede

transferência para a minha esquadra? Há uma vaga de sargento àespera do homem certo.

— Obrigado, senhor, mas sinto-me feliz onde estou. — O olhar doPaul nunca abandonou o meu rosto. — Extremamente feliz.

De súbito, era como se estivéssemos apenas os dois. Agora,enquanto ele se recostava na sua cadeira, e fixava por seu turno osseus olhos profundamente nos dela, talvez fosse surpreender nelaum momento de hesitação, altura em que se sentiria impelido a cairsobre o seu peito, confessando-lhe as confidências reprimidas doseu coração.[4]

— Raparigas a trabalhar — fez o papa num tom de desdém. — Enão podias, ao menos, ter-te candidatado a uma bibliotecafrancesa?

Lamentavelmente, fui arrancada ao cenário terno com Paul e comDickens.

— Papa, os americanos não se limitam a alfabetizar, eles usamnúmeros, o chamado Sistema Decimal de Dewey…

— Números para classificar letras? Bem podes apostar que foialgum capitalista que inventou essa ideia… Eles preocupam-se maiscom números do que com letras! Que mal é que tem a maneiracomo fazemos as coisas?

— A Miss Reeder diz que não faz mal sermos diferentes.— Estrangeiros! Só Deus sabe o tipo de pessoas com que vais ter

de lidar!

— Dê uma oportunidade às pessoas, pode ser que fiquesurpreendido…

— Tu é que vais ter uma surpresa. — Apontou-me o garfo. —Trabalhar com o público é muito difícil. Olha, ainda ontem, fuichamado porque um senador tinha sido preso por arrombamento eintrusão. Uma senhora idosa encontrou-o caído no chão da casadela, desmaiado. Um degenerado que, quando veio a si, não paravade gritar obscenidades, até começar a vomitar. Tivemos de lhe daruma boa mangueirada para o fazer despejar a história. Pensava queestava no prédio da amante e que a chave não funcionava, por issosubiu a treliça e entrou pela janela. Acredita em mim, tu não querester de estar com pessoas, e nem vou falar da escória que tem vindoa levar este país ao descalabro.

E lá se lançou de novo numa diatribe contra os estrangeiros, ospolíticos e as mulheres ariscas. Soltei um gemido, e o Rémyencostou o pé ao meu. Reconfortada por aquele pequeno toque,senti a tensão nos meus ombros diminuir. Tínhamos inventadoaquela secreta mostra de apoio quando éramos pequenos. Perantea fúria do nosso pai — «Já é a segunda vez esta semana que tepõem as orelhas de burro na escola, Rémy! Eu devia era agrafar-teaquela porcaria à cabeça.» —, eu sabia que era melhor nãoconsolar o meu irmão com uma palavra bondosa. Na última vez queo fizera, o papa disse:

— Vais pôr-te do lado dele? Devia era dar uma tareia aos dois.

— Mas eles não te vão contratar, vão contratar uma americana —concluiu o papa.

Desejei poder provar que o omnisciente Commissaire estavaenganado. Desejei que ele respeitasse as minhas escolhas, em vezde me dizer o que eu devia querer.

— Um quarto dos sócios da Biblioteca são parisienses —contrariei. — Eles precisam de pessoal que fale francês.

— O que é que as pessoas vão pensar? — preocupou-se amaman. — Vão dizer que o papa não te consegue sustentar.

— Muitas raparigas têm emprego, hoje em dia — disse o Rémy.— A Odile não precisa de trabalhar — disse o papa.— Mas quer — respondi baixinho.— Não vamos discutir. — A maman serviu a mousse au chocolat

em pequenas taças de cristal. A sobremesa, rica e cremosa, exigiaa nossa atenção e permitiu-nos concordar numa coisa: a mamanfazia a melhor mousse.

Às três da tarde, o Paul levantou-se.— Muito obrigado pelo almoço. Infelizmente, tenho de ir, o meu

turno começa daqui a pouco.Acompanhámo-lo à porta. O papa apertou-lhe a mão:— Pense na minha oferta — disse.Queria agradecer ao Paul por ter defendido o Rémy, por me ter

apoiado, mas, com o papa ali ao lado, fiquei em silêncio. Paulaproximou-se até ficar mesmo na minha frente. Contive arespiração.

— Espero que consiga o emprego! — murmurou.Quando me beijou, os seus lábios eram suaves sobre a minha

face, deixando-me com curiosidade de saber qual seria a sensação

de ter a sua boca na minha. Ao imaginar o nosso beijo, o meucoração bateu mais depressa, como batera na primeira vez que liUm Quarto com Vista. Devorava as cenas, à espera de que Georgee Lucy — completamente feitos um para o outro — confessassem oseu amor desenfreado e se beijassem numa piazza deserta. Desejeipoder passar as páginas da minha vida mais depressa, para saberse voltaria a ver o Paul.

Dirigi-me para a janela e vi-o descer rapidamente a rua.Atrás de mim, ouvi o glu-glu-glug do papa a servir um digestivo. O

almoço de domingo era a única vez da semana em que ele e amaman se entregavam às negras recordações da Grande Guerra.Após alguns goles, ela recitava reverentemente nomes de vizinhosque tinham sido mortos, como se cada um fosse uma conta no seurosário. Para o papa, as batalhas que o seu regimento vencerapareciam derrotas, porque muitos dos seus companheiros tinhammorrido.

Rémy juntou-se a mim à janela, onde começou a brincar com umfeto da maman.

— Já afugentámos mais um — disse-me o Rémy.— O papa afugentou-o, queres tu dizer.— Ele dá comigo em louco. É tão tacanho. Não faz a mais

pequena ideia do que se está a passar.Eu estava sempre do lado do Rémy, mas desta vez esperava que

o papa tivesse razão.— Estavas a falar a sério… a respeito da guerra?— Infelizmente, sim — respondeu. — Avizinham-se tempos

difíceis.Tempos Difíceis. 823. Literatura Inglesa.

— Há civis a morrer em Espanha. Os judeus estão a serperseguidos na Alemanha — continuou ele, a franzir o sobrolho paraa fronde que segurava entre os dedos — e eu encalhado nas aulas.

— Estás a publicar artigos que chamam a atenção para a situaçãodos refugiados. Organizaste uma recolha de roupas para eles eenvolveste a família inteira. Estou orgulhosa de ti.

— Não é suficiente.— Neste momento, tens de te concentrar nos teus estudos. Eras

dos melhores da tua turma; agora vais ter sorte se conseguiresformar-te.

— Estou farto de estudar casos de tribunal teóricos. As pessoasprecisam de ajuda já. Os políticos não estão a agir. Não consigoficar aqui parado em casa. Alguém tem de fazer alguma coisa.

— Tu precisas de te formar.— Um diploma não vai fazer diferença.— O papa não está inteiramente errado — observei suavemente.

— Devias terminar o que começaste.— Estou a tentar dizer-te…— Por favor, diz-me que não fizeste nada precipitado. — Ele

doara as suas poupanças a um fundo legal a favor dos refugiados.Sem dizer nada à maman, dera toda a comida na nossa despensaaos pobres, até ao último grama de farinha. Eu e ela tivemos decorrer até ao mercado para pormos o jantar na mesa antes que opapa chegasse, não querendo que ele descobrisse e ralhasse como Rémy.

— Dantes, percebias. — Ele foi para o seu quarto e fechou aporta com estrondo.

Estremeci perante esta acusação. Queria gritar-lhe que dantes ele

não era tão impetuoso, mas sabia que discutir não ia levar a ladonenhum. Quando ele se acalmasse, tentaria de novo. Por agora,queria esquecer o papa, e o Paul, e até o Rémy. Tempos Difíceis.Retirei o livro da estante.

CAPÍTULO 4

Lily

FROID, MONTANA, JANEIRO DE 1984

Eu e o meu pai estávamos ao lado da cama de hospital da minhamãe. Ela tentava sorrir, mas a sua boca apenas estremecia. Osseus lábios tinham perdido a cor, e ela pestanejava em câmaralenta. À sua volta, havia máquinas a fazer bip. Porque não foradirectamente da escola para casa? Se tivesse ido, talvez a mãe nãoestivesse aqui agora.

Fechei os olhos, arranquei-a à tigela de gelatina verde meiocomida, ao fedor estéril do hospital, e levei-a para o lago. Inspirandoo odor pantanoso, eu e a minha mãe andámos a deambular, e orosto dela ficou afogueado do calor do sol. Depois ela reparou emalguma coisa na erva. Aproximámo-nos e encontrámos um montede latas de Coors. Ela retirou um saco de plástico do bolso do corta-vento e apanhou-as. Querendo apreciar o momento, protestei:«Anda lá, mãe. Esquece o lixo», mas a minha mãe ignorou-me. Eraimportante para ela deixar um local melhor do que o havíamosencontrado.

O Dr. Stanchfield trouxe-me de volta. Viera traduzir o diagnóstico

do especialista: o ECG mostrava que a mãe tinha sofrido váriosataques cardíacos silenciosos, que tinham causado danosconsideráveis. Eu não sabia como tínhamos passado do ponto emque a mãe insistia em que só sentia dificuldade em recuperar ofôlego para os ataques cardíacos. Parecia uma longa estrada semquaisquer sinais de aviso, nem «Queda de Pedras», nem «VentosPerigosos». Como tínhamos chegado àquele ponto? E quantotempo teria a mãe de ali ficar?

Para o jantar, o meu pai aqueceu refeições congeladas «SalisburySteak» e preparou tabuleiros para comermos diante da televisão.Disse que era para podermos ver o noticiário, mas eu sabia que erapara que Graham Brewster, o avuncular pivô, fizesse a conversa pornós. Nessa noite, ele entrevistava um membro da União deCientistas Preocupados sobre o que aconteceria na eventualidadede uma guerra nuclear.

— A mãe está a melhorar? — perguntei ao meu pai.— Não sei. Parece menos cansada.Mais de 225 toneladas de fumo seriam despejadas para a

atmosfera, disse o físico do MIT.— Quando é que ela volta para casa?— Quem me dera saber, querida, mas o Stanch não disse. Muito

em breve, espero.O fumo taparia o sol, desencadeando uma idade do gelo.— Tenho medo.— Come qualquer coisa — disse o pai.Por muito más que as coisas estivessem agora, concluíam os

cientistas, elas podiam sempre piorar.Fui empurrando a carne de um lado para o outro com o garfo.

Sentia a barriga dura como uma pedra e a palpitar, longa elentamente, como um coração confuso.

Depois do jantar, o meu pai desapareceu no escritório. Enrolei ocordão do telefone em volta do dedo e liguei à Mary Louise. Ouvi osinal de ocupado. Quando a irmã dela, a Angel, não saía comninguém, estava sempre ao telefone.

Olhei em volta para verificar se o meu pai não estava por pertoantes de ligar 5896. Por favor, que o Robby esteja em casa.

— Estou — atendeu ele. — Estou? Está aí alguém? — Desejeiconseguir falar com ele, mas não sabia como. Baixei o auscultadorpara o aparelho, mas não o soltei de imediato. A sua voz, profundae aveludada, fazia-me sentir menos sozinha.

À janela do meu quarto, fiquei a olhar para a lua cheia, quetambém parecia olhar para mim. O vento lá fora agitava os ramosquebradiços. Quando eu era pequena e me assustava com umatempestade, a minha mãe fingia que a minha cama era um barco eque as rajadas de vento eram ondas, e que o mar agitado do nossorelvado nos levava para uma terra distante. Sem ela, o vento eraapenas vento, a uivar na sua passagem para um sítio melhor.

Dez dias depois, quando a mãe voltou para casa, afundou-se nacama. O meu pai preparou uma chávena de chá de camomila.Deitei-me ao lado dela debaixo da manta amarelo-limão. Elacheirava a sabonete Ivory. Pingentes de gelo pendiam do telhado. A

neve contraía os cabos telefónicos. O enorme céu estava azul, onosso mundo, branco.

— Temos sorte, hoje. — Indicou a janela com um gesto. —Montes de falcões.

Por vezes voavam ao alto sobre a pastagem do outro lado da rua.Por vezes voavam baixinho, em busca de ratos. A minha mãe diziaque a observação de aves era melhor do que ver televisão.

— Quando eu estava grávida, o teu pai e eu enroscávamo-nos nobanco da janela e ficávamos a ver os tordos-americanos. Euadorava os seus peitos de cores vivas, um sinal de que a Primaveraestava a chegar, mas ele não gostava da maneira como elessugavam as minhocas. «Pensa que é esparguete», dizia-lhe eu.

— Iac!— Quase te chamaste Robin[5]. Depois de tu nasceres, eu disse

à enfermeira que era assim que te chamavas, embora soubesse queo teu pai preferia Lily, porque os lírios do vale estavam adesabrochar quando comprámos a casa. Depois vi-te com ele, osdedinhos fechados em volta do seu mindinho. Lembravam-me floresminúsculas. Ele debruçou-se e beijou-te a barriguinha. E a maneiracomo olhou para ti… com tanto amor… fez-me mudar de ideias. —Ela contava a história muitas vezes, mas neste dia, por algumarazão, acrescentou: — Quando o pai trabalha, não é por ele. Elequer que nos sintamos seguras. Era pobre, em criança. No fundo,tem medo de perder tudo. Compreendes?

— Mais ou menos.— As pessoas são estranhas, nem sempre sabem o que fazer ou

dizer. Tenta não levar a mal. Nunca se sabe o que têm no coração.As pessoas são estranhas. Não leves a mal. Nunca se sabe o que

têm no coração. O que queria ela dizer? Alguma coisa sobre siprópria? Ou o pai? Já tinha ouvido a mãe da Mary Louise dizer queo meu pai se julgava um corretor de Wall Street e que gostava maisde dinheiro do que de pessoas.

— O pai nunca está cá — disse eu.— Oh, querida, que pena que os bebés não tenham memórias de

como foram acarinhados. O teu pai ficava contigo ao colo a noitetoda.

Ele era uma águia, continuou ela, calmo e corajoso. Eu tinhaaprendido tudo sobre as águias — tanto os machos como as fêmeasrevezavam-se a chocar os ovos.

— Os humanos têm famílias — continuou ela —, e os gansos,têm o quê?

Encolhi os ombros.— Diz-se um grupo de gansos.[6]— E os pardais?— Uma hoste de pardais.— Falcões?— Um elenco.Como uma série de televisão para pássaros. Ri-me.— Sabes como se chama um conjunto de corvos? Uma

indelicadeza de corvos.Soava demasiado disparatado para ser verdade. Mirei-lhe o rosto

em busca da verdade, mas ela parecia-me séria.— E os corvos-americanos?— Um homicídio de corvos.— Um homicídio de corvos — repeti.Parecíamos estar de volta aos bons velhos tempos, os tempos em

que tudo parecia bem. Abracei-a com força, tanta força, desejandoque pudesse ser assim para sempre. Nós juntas na grande cama deferro, quentes lá dentro.

Na manhã seguinte, eu e o pai demorámo-nos ao balcão dacozinha com a mãe. Ele disse que não me faria mal faltar um dia àescola.

— Não preciso de amas-secas! — disse a mãe.— O Stanch disse que ainda devias estar no hospital — replicou o

pai.Comemos os ovos com bacon em silêncio. Assim que

terminámos, ela empurrou-nos pela porta fora. Na escola, sóconseguia pensar nela — no hospital, pelo menos, não estavasozinha. A meio da aula de Matemática, a Tiffany Ivers deu-me umpontapé na cadeira.

— Ó retardada. — disse. — O professor Goodan fez-te umapergunta. — Levantei a cabeça, mas ele já tinha passado a outro.Quando ouvi o último toque, corri para casa. Vi, ainda da rua, osmeus pais no banco da janela. Dei a volta para a porta das traseirase entrei silenciosamente pela cozinha.

— O Stanch sugeriu termos ajuda de uma enfermeira — ouvi-odizer.

— Pelo amor de Deus! Eu estou bem.— Fazia algum mal termos uma pessoa a ajudar aqui em casa?

Acho que a Lily ia respirar melhor.Ele tinha razão, ia mesmo.— E pedias a quem? — perguntou a mãe.

— À Sue Bob?As minhas orelhas espevitaram-se ainda mais quando ouvi o

nome da mãe da Mary Louise.— Não quero que as minhas amigas me vejam assim — disse a

mãe.— Era só uma ideia — recuou o pai.Talvez Mrs. Gustafson pudesse ajudar. Fui bater à sua porta.

Desta vez esperei que viesse abrir.— A minha mãe continua doente — disse-lhe.— Lamento muito.— E precisamos de ajuda em casa, para ela não se cansar muito.

Podia…— Lil? — ouvi o meu pai dizer atrás de mim. — O que estás a

fazer? Devíamos voltar para junto da mãe.— Talvez eu possa dar uma ajuda — disse Mrs. Gustafson.— Não é necessário — respondeu o pai. — Nós arranjamo-nos.Ela olhou para ele e depois para mim.— Pelo menos, deixe-me fazer o jantar. Vou só buscar uns

ingredientes. — Voltou a entrar e regressou com uma braçada delegumes e um pacote de natas.

Ao balcão da nossa cozinha, descascou batatas tão finamenteque as cascas ficavam transparentes.

— O que está a fazer?— Sopa de batata e alho-francês.— O que é alho-francês?— No leste do Montana, um legume muito negligenciado.Ela deitou fora as raízes antes de cortar o fino corpo branco.

Cheirava a uma cebola mais fraca. Ela cortou o alho-francês em

rodelas e raspou-as para dentro da panela, onde refogaram emmanteiga a borbulhar enquanto as batatas coziam. Depois desfezem puré a batata e o alho-francês antes de adicionar uma colher denatas e servir a sopa branca em tigelas.

— O jantar está pronto — chamei.O pai entrou ao lado da mãe, com as mãos a pairar junto à sua

cintura como um auxiliar de hospital. Antes, eu costumava revirar osolhos quando os meus pais se beijavam, mas agora só desejavaque voltassem aos seus modos íntimos de sempre.

Depois da prece de agradecimentos, debrucei-me sobre a minhatigela e enfiei uma colher na boca. A sopa era sedosa e boa. Queriacomer rapidamente, mas estava muito quente.

— A sopa ensina-nos paciência — disse Mrs. Gustafson. Tinha ascostas direitas quando levou a colher à boca. Eu endireitei a coluna.

— Deliciosa — disse a minha mãe.— Era a preferida do meu filho. — A luz nos olhos de Mrs.

Gustafson embaciou-se por uns momentos. — Bastam apenas unspoucos ingredientes para se fazer uma refeição saudável, mas asempresas de comida industrial têm convencido os americanos deque não há tempo para cozinhar. Come-se uma sopa sem saborsaída de uma lata, embora alho-francês alourado em manteiga sejao paraíso.

» A escassez fez-me dar-lhe mais valor. Durante a guerra, aminha mãe sentia principalmente falta do açúcar, mas eu sentia faltada manteiga.

— Então era difícil arranjar comida? — perguntou o meu pai.— Era difícil arranjar boa comida. Nem lhe sei dizer qual era o pior

«acepipe de guerra». Se as baguetes feitas com serradura porque

havia falta de farinha, ou uma sopa sem sabor feita apenas de águae rutabagas. Havia filas intermináveis para a carne, os lacticínios, afruta e a maior parte dos legumes, mas os vendedores não seconseguiam livrar das rutabagas. E, quando cheguei ao Montana,sabem o que a minha cunhada punha em todos os guisados?Rutabagas!

Rimo-nos. Ela fazia-nos rir enquanto ia falando disto e daquilo,proporcionando-nos uma pausa do silêncio invulgar que descerasobre a nossa família. Quando se levantou para sair, a minha mãedisse:

— Obrigada, Odile.A nossa vizinha pareceu surpreendida. Perguntei-me se seria

porque não estava habituada a ouvir o seu nome próprio. Por fim,respondeu:

— Foi um prazer.

Quando a Mary Louise e eu regressámos da escola, ouvimosrisos a sair do quarto dos meus pais. Odile descalçara os sapatosde salto alto e empurrara a cadeira de balouço para mais junto dacama. O cabelo da minha mãe estava lavado e encaracolado, e elausava o mesmo batom vermelho-tijolo que Odile. Estava linda.

— Qual é a graça? — perguntou a Mary Louise à minha mãe.— A Odile estava a dizer-me que os cunhados tinham muita

dificuldade em pronunciar o nome dela.— Chamavam-me Ordeal[7!]— Casamento: para o melhor e para o pior e por mais lunáticos

que sejam os familiares do outro — disse a minha mãe, e ambas seriram.

Enquanto eu ia para o meu quarto com a Mary Louise, ouvimos aminha mãe perguntar:

— Se não é indiscrição, onde conheceu o seu marido?— Num hospital em Paris. Naquele tempo, um homem alistado

tinha de pedir autorização ao seu superior para casar. Quando o doBuck recusou, ele desafiou o major para uma partida de cribbage.Se ganhasse, podia casar, se perdesse, tinha de limpar penicosdurante um mês.

— Estava mesmo decidido!As palavras tornaram-se sussurros, por isso a Mary Louise e eu

aproximámo-nos mais da porta.— Ele não me tinha dito — continuava Odile — e quando cheguei

houve um escândalo. Quis regressar a França, mas não tinhadinheiro para o bilhete de regresso. Pensei que as pessoasacabariam por perdoar… Não que eu precisasse do perdão delas!

— Que escândalo? — sussurrou a Mary Louise. — Seria umadaquelas dançarinas de cancã? Será por isso que as pessoas nãofalam com ela?

— Ela é que não lhes fala — bufei.

A minha mãe passou o Inverno a hibernar. Depois da escola,deitava-me ao seu lado e contava-lhe como tinha corrido o meu dia.Ela anuía, mas não abria os olhos. O meu pai mantinha-se porperto, a postos com o chá de camomila na sua chávena de

porcelana favorita. O Dr. Stanchfield prescreveu mais comprimidos,mas a minha mãe não se sentia melhor.

— Porque é que ela não se consegue levantar? — perguntou-lheo pai. Estávamos os três à porta. — O mais pequeno esforço deixa-a cansada.

— O coração sofreu muitos danos — disse Stanch. — Já não lheresta muito tempo de vida.

— Meses? — perguntou o meu pai.— Semanas — replicou Stanch.O meu pai envolveu-me com os braços quando a verdade se

fechou à nossa volta.

Os meus pais insistiam que a escola era demasiado importantepara eu faltar, mas o pai pediu licença no trabalho e ficou a olharpela minha mãe, nunca saindo do seu lado.

— Estás a sufocar-me! — ouvia-a dizer-lhe. Antes, nuncadiscutiam, mas agora parecia que ele nunca fazia nada certo.Quando se zangava, a minha mãe tinha dificuldade em recuperar ofôlego. Com medo de piorar as coisas, ele regressou ao trabalho,saindo ao nascer do sol e regressando depois de anoitecer. Não aquerendo incomodar, dormia no sofá. À noite, quando a casa estavaem silêncio, eu ouvia a minha mãe gemer. Cada respiração áspera,cada tosse, cada suspiro me assustava. Escondida na cama, tinhamedo de ir ver se ela estava bem.

Depois de falar a Odile sobre a respiração difícil da minha mãe,senti-me melhor. Odile sabia o que fazer. Até levou um divã para o

lado da sua cama para poder passar ali a noite. Quando elaprotestou, Odile assegurou-lhe que não dava trabalho nenhum.

— Dormi com dezenas de soldados.— Odile! — exclamou a minha mãe, o seu olhar a dardejar na

minha direcção.— Ao lado deles, na enfermaria do hospital, durante a guerra.Às nove da noite, a porta das traseiras rangeu. O meu pai tinha

chegado. Odile foi à cozinha. Segui-a em bicos de pés, encostadaao painel de madeira do corredor.

— A sua mulher precisa de si; e a sua filha também — disseOdile.

— A Brenda diz que ver-me tão infeliz a faz sentir que já estámorta.

— É por isso que ela não quer que as amigas a visitem?— Diz que não suporta as lágrimas, mesmo que sejam por ela.

Não quer piedade. Eu queria estar ao lado dela, mas agora perceboque é melhor dar-lhe a distância que ela deseja.

— Não deve querer arrepender-se mais tarde. — O tom de Mrs.Gustafson passara de ríspido a terno. Como o de uma mãe.

— Se dependesse de mim…Ao fundo do corredor, a minha mãe tossiu. Estaria acordada?

Precisaria de mim? Corri para o seu quarto. Subitamente assustada,parei aos pés da cama. Atrás de mim, o meu pai disse:

— Brenda, querida?Odile fez pressão nas minhas costas para me aproximar da minha

mãe, mas as minhas espáduas resistiram. A minha mãe estendeuas mãos. Eu tinha medo de lhes pegar, e tinha medo de não lhespegar. Ela abraçou-me, mas fiquei rígida nos seus braços.

— Temos tão pouco tempo — disse ela, e as suas palavras eramum murmúrio —, muito pouco tempo. Tem coragem…

Tentei dizer que ia ter, mas o medo roubou-me a voz. Após umlongo momento, ela afastou-me do seu corpo e olhou para mim.Presa no olhar triste da minha mãe, lembrei-me de coisas que elame dizia. Os bebés dormem envolvidos pelo amor. Um grupo degansos, um homicídio de corvos. As pessoas são estranhas, nãosabem o que fazer ou dizer. Não leves a mal, nunca sabemos o quetêm no coração. Queria que te chamasses Robin, mas chamas-teLily. Oh, Lily.

CAPÍTULO 5

Odile

PARIS, MARÇO DE 1939

-Ligou a Mademoiselle Reeder — disse-me a maman assim queeu e o Rémy entrámos pela porta. — Quer falar contigo. Virando-mepara o Rémy, vi o meu turbilhão de esperança e alívio reflectido nosolhos dele.

— Tens a certeza de que é boa ideia arranjares um emprego? —perguntou-me a maman.

— Absoluta. — Abracei-a.Rémy deu-me a sua sacola verde.— Para dar sorte. E para os livros que vais trazer para casa.Correndo para a Biblioteca antes que Miss Reeder mudasse de

ideias, apressei-me a atravessar o pátio e a subir as escadas emespiral e depois estaquei à entrada do seu gabinete, onde elaestava sentada a rever documentos, de caneta de prata na mão.Com os olhos cansados, o batom há muito esvanecido, pareciaesgotada. Passava das sete da tarde. Fez sinal para que mesentasse.

— Estou a terminar o orçamento. — E explicou-me que, como

instituição privada, a Biblioteca não recebia apoios do Estado,dependia de fundações e donativos para tudo, desde a compra delivros até à conta do aquecimento.

— Mas não vai precisar de se preocupar com isso. — Fechou apasta. — A professora Cohen fala muito bem de si, e estouimpressionada consigo. Vamos conversar sobre o emprego. O factoé que já contratámos candidatos que não têm podido continuar poruma razão ou por outra, por isso estamos a pedir aos funcionáriosque assinem um contrato de dois anos.

— Porque é que não ficaram?— Alguns eram estrangeiros, a França fica, simplesmente, muito

longe de casa. Outros têm dificuldade em lidar com o público. Comoescreveu na sua carta, a Biblioteca é um porto de abrigo; o pessoalque aqui trabalha tem de garantir que assim continua.

— Eu acredito que vou conseguir lidar com o público.— O salário é modesto. Isso é um problema?— De todo.— Uma última coisa. O pessoal tem de se revezar para trabalhar

aos fins-de-semana.Acabava-se a missa e os pretendentes?— Eu quero trabalhar aos domingos!— O lugar é seu — declarou ela solenemente.Levantei-me de um pulo.— A sério?— A sério.— Obrigada, não a vou deixar ficar mal.Ela piscou-me o olho, com uma expressão maliciosa.— Nada de bater na cabeça dos sócios!

Ri-me.— Não quero fazer promessas que não possa cumprir.— Começa amanhã — disse ela, e regressou ao orçamento.Saí rapidamente, com esperança de apanhar o Rémy antes que

ele saísse para o seu comício político, mas choquei com ele nopasseio.

— Vieste!— Qual é o veredicto? — perguntou. — Estiveste séculos lá

dentro.— Vinte minutos.— Grande diferença — resmungou.— Consegui o emprego!— Eu bem te disse!— Pensei que estavas no teu comício — comentei.— Há coisas mais importantes.— És o presidente. Eles precisam de ti.Ele encostou o pé ao meu.— E eu preciso de ti. Sem toi, não há moi.

Em casa, entrei na sala de estar, onde a maman estava a tricotarum cachecol para mim.

— Então? — Pousou as agulhas.— Sou bibliotecária! — Fi-la levantar e dançar uma valsa comigo

pela sala.UM-dois-três.LIVROS-independência-felicidade.— Parabéns, ma fille — disse ela. — Vou dar a volta ao pai,

prometo-te.Tencionando preparar-me para o trabalho, fui para o meu quarto

rever os apontamentos sobre o Sistema Decimal de Dewey. Navéspera, nos Jardins do Luxemburgo, tinha visto vários 598(pássaros). Um dia, vou aprender 469 (Português)… Haveria umnúmero para o amor? Se tivesse o meu próprio número, qual seria?

Pensei na tia Caro — tinha sido ela a apresentar-me o SistemaDecimal de Dewey. Como eu adorava sentar-me ao seu colodurante a Hora do Conto, quando era pequena. Anos mais tarde,quando tinha 9 anos, ela mostrara-me o catálogo, uma invulgar peçade mobiliário feita de gavetas minúsculas, cada uma com uma letra.

— Aqui dentro, vais encontrar os segredos do universo. — A tiaCaro abriu a gaveta do N para revelar dezenas e dezenas decartões. — Cada gaveta tem informação que vai abrir mundosinteiros. Não queres espreitar? Aposto que vais encontrar algumacoisa boa.

Espreitei lá para dentro. Percorrendo os cartões, encontrei umdoce.

— Nogado!Ela ensinou-me como encontrar a pista seguinte, um número que

nos levaria à secção, à prateleira, ao livro exacto. Uma caça aotesouro!

A tia Caro tinha uma cintura minúscula e um cérebro enorme.Como a maman, os seus olhos eram azul-violeta, mas, enquanto osda minha mãe se tinham esbatido como as camisas azuis do papa,os da tia Caro reluziam de vida. Como leitora, era omnívora,devorando ciência, matemática, história, teatro e poesia. As suasprateleiras de livros transbordavam, por isso o seu toucador era uma

mistura de pó-de-arroz cor-de-rosa e Dorothy Parker, rímel eMontaigne. O roupeiro dela abrigava Horácio e saltos altos, meias eSteinbeck. O seu amor pelos livros e o seu amor por mim imbuíramo meu ser tal como o aroma ambarino do Shalimar que ela aplicavaatrás das nossas orelhas.

As memórias da tia Caro recordavam-me a razão por queprecisava daquele emprego.

No primeiro dia, senti-me mais nervosa do que me sentira naentrevista. E se desiludisse Miss Reeder? E se alguém me fizesseuma pergunta a que eu não soubesse responder? Se ao menos a tiaCaro ainda estivesse connosco. Eu ter-lhe-ia pedido para não ir láno meu primeiro dia, mas ela iria na mesma. Carregada com Shelleye Blake, ter-me-ia piscado o olho, e o meu nervosismodesapareceria quando recordasse as suas palavras: as respostasestavam ali, bastava procurar.

— Apresentações — disse a directora brevemente, e apresentouBoris Netchaeff, o refinado bibliotecário chefe franco-russo,impecável como sempre, com o seu fato azul e gravata. No balcãode atendimento, os leitores faziam fila na sua frente como se setratasse do padre de uma paróquia — para a comunhão, para umapalavra em privado. O brilho nos seus olhos verdes nuncaesmorecia, nem sequer quando escutava as morosas histórias dosleitores. Sabia onde encontrar as melhores roupas («O meu homemno Bazar de l’Hôtel de Ville nunca engana.») e também o que sedevia procurar quando se comprava um cavalo. A severa Mrs.Turnbull dizia que ele era aristocrata e que fora dono de um

estábulo de puros-sangues. Mr. Pryce-Jones dizia que o Borisestivera no exército russo. Havia tantos boatos quanto livros, naBiblioteca.

Boris era famoso pela sua biblioterapia. Sabia quais os livros quepodiam curar um coração partido, o que ler num dia de Verão e queromance escolher para uma viagem de aventuras. Na primeira vezem que regressei à Biblioteca sem a tia Caro, dez anos antes, asaltas prateleiras pareciam fechar-se sobre mim. Os títulos gravadosnas lombadas de histórias não falavam comigo como anteriormente.Dei por mim de lágrimas nos olhos, diante de um borrão de livros.

Parecendo preocupado, o Boris aproximou-se.— A sua tia não a trouxe? — disse. — Já não a vemos há algum

tempo.— Ela não vai voltar.Ele seleccionou um livro da estante.— É sobre família, e perda. E como podemos ter momentos

felizes mesmo quando estamos em baixo.Não tenho medo de tempestades, porque estou a aprender a

navegar o meu navio.[8]Mulherzinhas continuava a ser um dos meus preferidos.— O Boris começou a trabalhar aqui como aprendiz… e sabe

absolutamente tudo sobre a BAP — disse Miss Reeder.Ele apertou-me a mão.— É sócia, não é?Anuí, satisfeita por ser reconhecida. Antes que pudesse

responder, ela levou-me para a sala de leitura, onde abordou umamulher que estava a escrever perto da janela. Cabelo grisalhoemoldurava-lhe o rosto, e uns óculos pretos equilibravam-se na

ponta do seu nariz. Na sua frente, livros sobre a Inglaterra isabelinacobriam-lhe a mesa. Miss Reeder apresentou a administradora, acondessa Clara de Chambrun. Eu conhecia-a de nome. Terminararecentemente a leitura de Playing with Souls, um dos seusromances. Uma condessa e escritora!

— Está a fazer pesquisa para outro livro sobre o bardo? —perguntou a directora. — Porque não usa o meu gabinete?

— Não preciso de tratamento especial! Sou uma sócia como osoutros.

O sotaque da condessa não era, definitivamente, francês, etambém não era britânico. Haveria condessas na América? Omistério teria de ser resolvido noutro dia. A directora conduziu-mepara a sala dos periódicos, que seria o meu posto. Pelo caminho,apresentou-me à sua secretária, a Mademoiselle Frikart (franco-suíça), à guarda-livros Miss Wedd (britânica) e ao assistente quearrumava os livros nas estantes, Peter Oustinoff (americano).

Olhei para as longas prateleiras que abrigavam quinze jornaisdiários e trezentos periódicos vindos da América, Inglaterra, França,Alemanha e de países tão longínquos como o Japão. Quando MissReeder me disse que eu seria também responsável pelo quadro deinformações, o boletim e a coluna da BAP no Herald, entrei empânico, pensando que nunca conseguiria tratar de tudo aquilo.

— Também comecei nesta secção, sabia? — disse ela. — E vejaonde estou agora.

Gozámos um momento de cumplicidade enquanto observávamosos sócios que liam, de cabeça baixa, livros que seguravamreverentemente entre as mãos.

Mr. Pryce-Jones aproximou-se. Lembrava-me um esguio

guindaste com um laço de cornucópias ao pescoço. Com ele vinhaum leitor que parecia um leão-marinho de bigodes brancos.

— Olá, cavalheiros, por favor, dêem as boas-vindas ao novomembro da nossa equipa — disse Miss Reeder antes de regressarao seu gabinete.

— Obrigada pelo seu conselho sobre expor os meus argumentos— disse eu a Mr. Pryce-Jones.

— Fico contente por ter conseguido o emprego — disse ele, olaço ao pescoço a ondular. Acenando para o amigo, acrescentou: —Aqui este repórter intriguista é Geoffrey de Nerciat. Acha que oexemplar do Herald da Biblioteca lhe pertence.

— Outra vez a espalhar mentiras, meu velho? — perguntouMonsieur de Nerciat. — É só para isso que vocês, diplomatas,servem.

— Odile Souchet, bibliotecária e árbitro — apresentei-me, nabrincadeira.

— Onde está o seu apito? — perguntou Mr. Pryce-Jones. —Connosco, vai precisar.

— Os nossos concursos de gritos são lendários — gabou-seMonsieur de Nerciat.

— A única pessoa que consegue berrar mais alto do que nós é acondessa.

— Coisa que ficámos a saber quando ela conseguiu meter-seentre os dois e insistiu que levássemos as nossas diferenças lá parafora. — O francês olhou para Clara de Chambrun.

— Olhe que me assustou! Pensei que ela me ia levar para a ruapela orelha.

Monsieur de Nerciat sorriu.

— Aquela boa senhora pode levar-me aonde quiser.— Duvido que o marido dela concordasse com isso.— E um general, ainda por cima! É melhor ter cuidado.O duo continuou a conversar; eu dispus os jornais diários e

familiarizei-me com as revistas. Em breve estava perdida nosíndices, com a mente cheia de história, moda e actualidades.

— Mademoiselle? Odile?Perdida no nevoeiro do trabalho, mal ouvi.— Perdão. Mademoiselle!Senti uma mão no braço. Erguendo o olhar, vi o Paul.Estava espantoso, com a farda de les hirondelles, as andorinhas,

os polícias que patrulhavam de bicicleta. A capa azul-marinhoenfatizava-lhe o peito largo. Devia ter vindo directamente dotrabalho.

Certa vez, quando estava a ler num dia ventoso no parque, umarajada tomou conta das páginas e perdi o sítio onde estava. Paul fezo meu coração esvoaçar como aquelas páginas desordenadas.

Depois ocorreu-me um pensamento horrível: e se tivesse sidoenviado pelo papa?

— O que está aqui a fazer? — perguntei.— Não estou cá por sua causa.— Não pensei que estivesse — menti.— Há muitos turistas que pedem orientações à polícia. Eu

precisava de um livro para melhorar o meu inglês.— O meu pai contou-lhe que consegui o emprego?— Ouvi-o a resmungar qualquer coisa sobre mulheres ariscas.— Então está a seguir uma pista — repliquei causticamente. —

Não vai demorar muito para ele o promover a detective. Tal como osenhor queria.

— Não faz ideia do que eu quero. — Ele retirou um ramalhete dosaco que trazia ao ombro. — São para lhe desejar um bom primeirodia.

Devia ter-lhe agradecido com um beijo em cada face, mas fiqueienvergonhada e enterrei o nariz nos botões. As minhas florespreferidas, os narcisos continham a promessa da Primavera.

— Quer que o ajude a encontrar alguns livros?— Será um bom treino encontrá-los sozinho. — Mostrou-me um

cartão de leitor. — Tenciono passar aqui algum tempo.Paul dirigiu-se para a sala de referência, deixando-me

desorientada. O cartão dele era novo. Talvez tivesse mesmo vindopor minha causa.

Ao longo da manhã, a maior parte dos leitores esperavapacientemente enquanto eu os ajudava a encontrar periódicos;apenas um se queixou.

— Porque é que ninguém aqui sabe onde está o Herald? —resmungou. Mais tarde, encontrei o jornal amarrotado debaixo dapasta de Monsieur de Nerciat.

Um tumulto fez-me sair da sala dos periódicos para o balcão deatendimento, onde uma mulher de cara toda vermelha acenava comum livro na cara do Boris e gritava que a Biblioteca devia deixar deemprestar romances «imorais». Quando ele se recusou a censurar acolecção, ela saiu intempestivamente.

— Não fique tão chocada — disse-me o Boris. — Acontece pelomenos uma vez por semana. Há sempre alguém que pensa que onosso trabalho é proteger os costumes.

— Só por curiosidade, de que livro estava ela a falar?— Studs Lonigan.— Vou tomar nota para o ler.Ele riu-se e, ao observá-lo, não consegui deixar de pensar como

era estranho — e maravilhoso — sermos agora colegas.— Tenho uma coisa para si — disse-me.— Sim? — Tinha esperança de que ele tivesse escolhido um

romance para mim. Em vez disso, estendeu-me uma lista de setentalivros para eu reunir e embrulhar, para enviar a sócios de fora dacidade. Consultei o relógio. Já eram duas da tarde. Estivera tãoocupada que me esquecera de almoçar. Agora era demasiado tarde.Desde Verão, 813, a Alcools, 841, a caça ao tesouro levou-me portrês andares de estantes. Pelas seis da tarde, doíam-me os pés e acabeça. Nunca sentira uma fadiga como aquela, nem sequerdurante a semana de exames. Conhecera vinte pessoas e nãoconseguia lembrar-me de um único nome. Falara inglês todo o dia,respondendo a dezenas de perguntas: É verdade que os francesescomem pernas de rã, e se sim, o que fazem ao resto da rã? Possoaceder aos arquivos? Onde é a casa de banho? Como, menina?Fale mais alto! Quando cheguei ao fim do turno, a língua desertara.Era como abrir um romance e encontrar apenas páginas em branco.

Pegando nos meus narcisos moles, saí para o frio ar nocturno. Ogelo cobria os seixos do caminho e tornava-os escorregadios. Asbolhas nos meus pés latejavam. Pensei que a caminhada para casalevaria quinze anos, em vez de quinze minutos. A coxear, repareique, do outro lado da estrada, sob a fraca luz do lampadaire, umcarro preto aguardava em ponto morto. O meu pai saiu e abriu aporta do passageiro.

— Oh, papa, merci. — Aliviada por poder voltar ao francês,instalei-me no lugar do passageiro, sentando-me pela primeira vezdesde o pequeno-almoço.

— Tens fome? — Presenteou-me com uma caixa de bolos daHonoré. Abrindo-a, saboreei o aroma amanteigado do financierantes de dar uma dentada. O bolo desfez-se na minha boca; fecheios olhos e mastiguei lentamente.

— Ça va? — perguntou. — É o primeiro dia e estás exausta. Nãoestás com uma dessas tuas dores de cabeça, não?

— Estou bem, papa.— Com a tua idade — disse ele, num tom terno —, eu e a maman

tínhamos acabado de sobreviver a uma guerra e estávamos de lutopela morte de amigos e família. Só tens 20 anos… Queremos queaproveites a juventude, arranjes um noivo, vás a bailes, não quefiques a trabalhar como uma escrava numa fábrica de livrosqualquer.

— Papa, por favor, hoje não… — Durante toda a minha vida, aconversa dos meus pais sobre a guerra fizera ricochete à minhavolta: tanques e trincheiras, gás mostarda e soldados mutilados.

— Está bem, falamos doutra coisa qualquer. Bom, já sei quetrabalhas aos domingos, por isso convidei um rapaz para jantar naquarta. Este diz que lê!

CAPÍTULO 6

Odile

Todas as manhãs, antes da abertura da Biblioteca, eu visitava umdepartamento diferente. Na segunda-feira, estive na contabilidade,onde Miss Wedd, a guarda-livros, era conhecida pela sua mentearguta e os seus scones deliciosos. Quando se debruçou sobre olivro-razão, vi três lápis enfiados no seu carrapito castanho. Depoisde me explicar as rubricas de despesas — tudo desde carvão elenha a livros e cola para as encadernações, perguntei-lhe se apodia entrevistar. Tinha uma ideia para o boletim mensal, do qualMiss Reeder me encarregara. Além das habituais críticas literárias eda lista de livros que mais tinham saído, queria incluir algo maispessoal acerca dos leitores e dos funcionários.

— Que tipo de leitora é? — perguntei, de bloco na mão.— Eu gostava de Matemática, na escola. Para mim, os números

sempre fizeram mais sentido do que as pessoas. É por isso que osmeus livros preferidos são os da Antiga Grécia: Pitágoras eHeraclito. Ainda usamos o seu trabalho, as suas ideias.

» Não sou como o Boris e a Miss Reeder. Não sou boa com opúblico. — Miss Wedd introduziu um quarto lápis no cabelo. — Masespero que, de uma pequena forma, a minha contribuição aqui seja

importante. Já passei mais de uma década a preencher livrosinteiros com histórias de doadores generosos e pessoal competenteque trabalha muitas horas, só que eu escrevo colunas verticais, aoinvés de linhas horizontais.

Entrevistá-la foi como observar uma rosa a desabrochar: elaabriu-se, e as pétalas das suas faces enrubesceram de paixão.

— Obrigada — disse, contente por tê-la escolhido. — Os leitoresvão adorar as suas respostas, e estou ansiosa por descobrirHeraclito.

Também estava a gostar de conhecer melhor os meus colegas.Na terça, passei algum tempo com Peter-o-arrumador-de-livros, oúnico suficientemente alto para chegar às prateleiras mais elevadas.Como organizava logo os livros no carrinho pelas suas cotas,arrumava dez livros no tempo que eu demorava a arrumar dois.Tinha o físico de um boxeur, mas quando a voz de sirene denevoeiro da corpulenta Madame Frot ecoava por entre as estantes,«Peter, querido, oh, Peter», enfiava-se no vestiário para evitar aleitora enamorada.

Na quarta, fui à sala infantil, onde as paredes estavam forradas deestantes baixas e as minúsculas mesas e cadeiras se agrupavam nafrente da lareira a crepitar. Embora nunca tivesse conhecido abibliotecária infantil, Muriel Joubert, sentia que a conhecia, porque abonita letra da sua assinatura aparecia em cada um dos cartões doslivros em que eu pegava. Só na última semana, tinha-meultrapassado no Minha Ántonia, no Belinda e no The InterestingNarrative of the Life of Olaudah Equiano. A julgar por tudo o que elatinha lido, imaginava-a como uma senhora de cabelos brancos. Emvez disso, descobri uma rapariga da minha idade a observar-me

com honestos olhos violeta. Mesmo com a trança preta que lhecoroava a cabeça, não devia medir mais de um metro e meio.

— Mademoiselle Joubert? — perguntei.Ela pediu-me para a tratar por Bitsi, dizendo que era assim que

toda a gente lhe chamava desde que um leitor do Texas olhara paraela e a proclamara como uma coisinha minúscula[9]. Disse-me queme queria conhecer desde que reparara no meu nome escrito noscartões dos seus romances preferidos.

— Somos leitoras-gémeas — disse, no tom decidido com quealguém declararia que «o céu é azul» ou que «Paris é a melhorcidade do mundo». Eu era céptica em relação às almas gémeas,mas em leitores-gémeos conseguia acreditar, dois seres unidos pelapaixão pela leitura.

Ela adorava Os Irmãos Karamazov.— Chorei quando cheguei ao fim. — A sua voz transbordava de

emoção. — Primeiro, porque estava feliz por tê-lo lido. Depois,porque a história era tão comovente. Terceiro, porque nunca maisvou experienciar a sua descoberta.

— Dostoievski é o meu autor morto preferido — afirmei.— O meu também. Quem é o teu vivo preferido?— Zora Neale Hurston. Na primeira vez que peguei no De Olhos

Pousados em Deus, sugava os capítulos, devorava as palavras.Precisava de descobrir o que ia acontecer a seguir… será que aJanie ia casar com o homem errado? Iria Tea Cake estar à alturadas minhas esperanças para a Janie? Depois, quando me faltavameia dúzia de páginas, comecei a lamentar o facto de este mundoque eu adorava estar a acabar. Não estava preparada para dizeradeus. Li muito devagar, só a saborear as cenas.

Ela anuiu.— Eu fiz o mesmo, queria que cada página durasse o máximo

possível.— Eu li o romance em quatro dias, mas fiquei com ele o resto das

duas semanas. Na data de entrega, pousei-o no balcão doatendimento, mas a minha mão ficou em cima da capa. Não queriaseparar-me dele. O Boris encontrou-me outros três livros de ZoraNeale Hurston.

» Também os devorei, como bolo de chocolate, como o amor.Gostava tanto das personagens, que se tornaram reais. Sentia queconhecia a Janie, que um dia ela podia entrar na Biblioteca econvidar-me para beber um café.

— Também sinto o mesmo pelas minhas personagens preferidas— disse a Bitsi.

Aproximou-se uma mãe.— O meu filho escolheu estes — ergueu dois livros de histórias

—, mas parecem-me estar muito… usados.— Muito amados — replicou a Bitsi. — Se preferir, temos livros

novos em folha na nossa prateleira das «últimas aquisições».Quando a Bitsi me disse em surdina «Tenho de ir» e conduziu a

leitora ao mostruário, espreitei para a sala de referência, comesperança de ver o Paul, mas ele não estava lá.

Desapontada, continuei para a minha secretária, onde uma leitorabatia com o pé de impaciência, querendo a sua Harper’s Bazaar.

— Onde é que andava metida? — repreendeu Madame Simon.Quando lhe passei o último número, ainda embrulhado em papel

pardo, a mulher acalmou, e confidenciou-me que em casa era aúltima da fila. Com a dentadura a agitar-se enquanto falava,

explicou-me que tudo o que possuía — o arminho manchado deuma tia falecida, os dentes falsos que herdara da sogra — tinhapertencido a outra pessoa qualquer. Mas ali era a primeira adesfrutar da moda, mesmo não tendo dinheiro para comprar nada.«E também não há nada que me sirva», lamentava-se, com a mãocarnuda a percorrer a silhueta corpulenta. Instalou-se ao lado daprofessora Cohen.

Olhando para o Boris, continuou:— Dizem que a fortuna da família dele se perdeu na Revolução

Russa. Teve de recomeçar aqui em França. Sem um tostão.— Seja qual for a sua situação, aquele homem é um príncipe —

disse a professora.— E a mulher uma princesa, ou era. Agora é caixeira. Como têm

caído os poderosos!— Dito por alguém que nunca teve de ganhar a vida.Clara de Chambrun passou por elas, carregada de papéis.— E por falar em nobreza — troçou a madame —, aí vem a

condessa do Ohio.— Hoje está impossível. A Clara é uma excelente administradora,

sabe angariar fundos. Não estaríamos hoje aqui sentadas se nãofosse ela. Já que é tão apaixonada por moda, vou dizer-lhe umacoisa: a maledicência não fica bem a ninguém.

CAPÍTULO 7

Margaret

PARIS, MARÇO DE 1939

A brincar nervosamente com as suas pérolas, a Margaret hesitouà entrada da Biblioteca Americana. Parecia silenciosa como umacatedral, e não tinha a certeza se deveria entrar. A Margaret não eraamericana nem estava interessada em livros. Mas, ao fim de quatromeses em Paris, estava desesperada por ouvir inglês, em qualquerforma. A língua francesa era um nasalado lodaçal por onde tinha dese arrastar nas lojas, no cabeleireiro e na padaria. Em nenhumdesses locais se falava inglês. Reduzida à linguagem gestual,apontava e erguia um dedo para indicar que queria um croissant.Anuía para mostrar que percebia; encolhia os ombros para mostrarque não percebia.

Em casa, o marido, Lawrence, fazia a conversa por ela. A amacuidava de Christina e Jameson geria o apartamento com a mesmaeficiência com que o fazia em Londres. Ninguém precisava dela. AMargaret mal falava sequer.

Assumira que ia adorar Paris. A haute couture, a lingerie, operfume. Mas fazer compras sozinha não era divertido. Quando

experimentava vestidos, não tinha nenhuma amiga para admirar asua elegância. Mais do que tudo, a Margaret queria a opinião da suamãe — aquele vestido tinha a cor certa, devia ter uma conversaaberta com Lawrence ou deixá-lo em paz? O que mais asurpreendera em Paris não eram os fabulosos vestidos de JeanneLanvin, nem os chapéus sofisticados que as mulheres usavam, masas saudades que tinha da sua mãe.

A Margaret não percebia a moeda estranha. E as lojistasenganavam-na! Quando comprou meias, disseram-lhe, na sualíngua complicada, que 75 francos era o preço de cada uma, não opar. No entanto, quando uma parisiense atrás dela na fila comprouas mesmas meias, pagou metade. A Margaret não conseguiaprotestar, não conseguia insistir. Podia apenas bater com o pé, oque fazia as lojistas ocultarem os risinhos. As piadas às suas custaseram muito dispendiosas.

Deixou de sair; deixou de tentar. Andava de um lado para o outrono apartamento, ou enroscava-se numa bola e chorava debaixo dosseus vestidos de noite no le dressing, embora fosse perfeitamenteridículo estar infeliz na cidade mais fabulosa do mundo. Como segabara às suas amigas! Vou para a capital do romance! Oh là là! Osfranceses vão namoriscar comigo! Oh là là! Champanhe! Chocolate!Têm de me vir visitar! Como se envergonhava agora da verdade.Não que elas lhe ligassem ou escrevessem. Quando a Margaretpartira de Londres, fora como se tivesse caído da face da Terra.

Naquela manhã, a esposa do cônsul, uma mulher amável, aindaque um pouco desengraçada, apareceu para uma visita. QuandoJameson anunciou a sua chegada, a Margaret precipitou-se para oespelho. Não se lembrava da última vez que lavara o cabelo. Tinha

os olhos raiados de sangue. Envergonhava-se do seu estadopatético, e teria mandado o mordomo recusar a entrada de Mrs.Davies, mas estava desesperada por amigos, e aquela era a suaprimeira visita. Trocou a camisa de dormir suja por um elegantevestido cor de marfim. A mulher do cônsul lançou um olhar aMargaret e insistiu para que ela visitasse a Biblioteca de Parisnaquela mesma tarde. E, agora, chegara.

Havia ali uma camaradagem fácil que nunca tinha visto antes. Asmulheres não perguntavam: «O que faz o seu marido?» Em vezdisso, queriam saber: «O que está a ler?» A Margaret suspirou.Mais conversas que não a incluíam.

— Bem-vinda à Biblioteca.O vestido da bibliotecária era vulgar, mas ela era bonita, com o

cabelo apanhado com um laço preto. Os seus olhos cintilavam comoas pedras que o segundo marido de Marjorie Simpson lhe tinhadado pelo terceiro aniversário de casamento. Lawrence já nãooferecia a Margaret joalharia daquela.

— Posso ajudá-la a encontrar alguma coisa?A Margaret mordeu o rígido lábio superior, desejando por uma vez

conseguir dizer o que queria. Em vez disso, perguntou:— Tem livros para a minha filha? Ela tem 4 anos.A bibliotecária inclinou a cabeça.— Que tal Bella the Goat?— Não pode imaginar o meu alívio por estar num sítio onde se

fala inglês. Paris é tão estrangeira. — A Margaret fez uma pausa.Aquilo saíra tudo mal. Tudo o que dizia saía mal. — Claro, eupercebo que em França sou eu a estrangeira.

— Vai sentir-se bem aqui — tranquilizou-a a bibliotecária. —

Temos muitos sócios de Inglaterra e do Canadá.— Óptimo. Teria também alguma coisa para mim?— Que tal um romance de Dorothy Whipple? The Priory é um dos

meus preferidos.Na verdade, a Margaret referia-se a revistas. Não abria um livro

desde a sombria George Eliot na escola de aperfeiçoamento.— Ou então Miss Pettigrew Lives for a Day, uma história da

Cinderela para adultos.A Margaret conseguia suportar um conto de fadas.— Se está a ter dificuldades em entender o francês, temos alguns

livros de gramática maravilhosos. Vejamos…A Margaret sentiu-se tocada por esta atenção. Nos eventos

diplomáticos, quando as pessoas conversavam com a Margaret,mantinham um olho nela, o outro pela sala. Assim que viam alguémmais importante, interrompiam a conversa a meio.

— Se preferir — acrescentou a bibliotecária —, temos a Vogue.Parecia desapontada, por isso a Margaret disse:— Levo os livros.A bibliotecária reluziu de entusiasmo.— Vamos buscá-los. O meu nome é Odile, já agora.— Eu chamo-me Margaret.Mas, em vez de se dirigir para as estantes, Odile subiu as

escadas. Margaret seguiu-a e, quando franquearam a porta«Reservada aos Funcionários», perguntou:

— Aonde vamos?— Já vai ver.Na minúscula sala de convívio, Odile pôs a mesa com duas

chávenas desirmanadas e um prato de scones simples. Quando a

bibliotecária se virou para levar a chaleira ao fogão, a Margaretpassou os dedos sobre a superfície áspera de um scone, igual aosque a sua mãe fazia. Sim, Paris estava cheia de maravilhasculinárias, e a Margaret banqueteara-se com bolos magníficos. Masansiava por algo familiar.

Odile sentou-se e indicou o assento ao seu lado.— Raconte. Significa «conte-me».Pela primeira vez desde que chegara a Paris, a Margaret sentiu-

se feliz, sentiu-se em casa.

CAPÍTULO 8

Odile

L’heure bleue, aquela hora mágica entre o dia e a noite, caíra.Enquanto os leitores devolviam livros e partiam, o silêncio tecia asua teia sobre as mesas e as cadeiras. Eu adorava a Bibliotecaassim, quando tudo era tranquilo e parecia meu.

No grosso volume de pele, ajudei o Boris a calcular quantosleitores tinham ali estado nesse dia (duzentos e oitenta e sete),quantos livros tinham sido requisitados (novecentos e trinta e seis),e outros pormenores da vida da Biblioteca (Houve outra grávida quedesmaiou; leu a página quarenta e três de Prospective Mother).

— Já é tarde — disse ele. — Não precisa de ficar.— Eu quero.Boris fez um gesto que abarcava a sala de leitura vazia, com a

sua mão elegante salpicada de cortes do papel.— É o paraíso, não é? — E então iniciava-se o nosso ballet

nocturno, uma coreografia aperfeiçoada ao longo do último mês. Eleverificava se as janelas estavam trancadas e as cortinas corridas; eudiminuía as luzes para avisar os inabaláveis investigadores na salade referência de que a Biblioteca estava quase a fechar. Nenhum denós dizia nada enquanto realinhávamos as cadeiras. Havia

problemas a discutir, tarefas a atribuir, mas tudo isso podia esperarpelo dia seguinte. Após um dia inteiro a responder a perguntas,aquele silêncio era a nossa recompensa. Perguntei-me se MadameSimon tinha razão quando dizia que o Boris era da aristocracia.Perguntei-me se ele alguma vez confiaria em mim o suficiente parame contar alguma coisa sobre a sua vida.

Era a minha vez de enxotar sócios para a rua, por isso fui fazer asrondas. Vagueando por entre as fileiras de não-ficção, vi títulos emque nunca reparava durante o dia. (Nessa noite, descobri ComoFerver Água num Saco de Papel.) Na sala de referência, espreiteientre as estantes e fiz a melhor descoberta — Paul. Estava aestudar um livro de gramática inglesa.

Quando me beijou em cada face, tentei inspirar o seu odor. A suapele cheirava a tabaco, um aroma fumado como lapsang souchong,o meu chá preferido. Pensei que devia recuar, mas os livros erampaus-de-cabeleira benevolentes.

— Está na hora de fechar? — perguntou ele. — Peço desculpapor estar a atrasá-la.

— Não tem importância. — Atrase-me. Atrase-me o tempo quequiser.

— Tenho vindo aqui várias vezes.— Sim?— Mas via-a ocupada com outros leitores.Estávamos afastados uns meros centímetros, mas parecia-me

demasiado. Quando me aproximei, os seus lábios roçaram os meus.Acariciei-lhe suavemente o rosto. Se alguém me tivesse dito, no diaanterior, que nos estaríamos a beijar entre as estantes, teria

acusado a pessoa de inalar cola Gaylo. E, no entanto, aquela ternaunião parecia perfeita, e correcta, até.

Tinha lido a respeito da paixão — Anna e Vronsky, Jane e Mr.Rochester — e experimentara as sensações arrepiantes. Ou pelomenos assim o julgara. Não havia passagem em livro nenhum queconseguisse transmitir o prazer daquele beijo.

Ao ouvir o clique de uns saltos altos pelo soalho de madeira, oPaul e eu demos um rápido passo atrás. Embora mal nostivéssemos tocado, cada parte de mim — a minha pele, o meusangue, os meus ossos — continuava a senti-lo.

— Aqui está a menina. — Miss Reeder olhou rapidamente de mimpara o Paul.

— Obrigado, hum, Mademoiselle Souchet — disse ele. — Agorajá sei onde encontrar informação sobre, hum, o particípio passado.— Mostrou o livro de gramática e apressou-se a sair da sala.

A boca da directora curvou-se, divertida.— Miss Wedd está à sua espera.— Miss Wedd?— É dia de pagamento.Claro! Dia de pagamento. Como podia ter-me esquecido?— O que vai fazer com o seu primeiro salário?— Fazer? — A minha mente estava em branco.— Claro, vai querer poupar a maior parte… ter um pé-de-meia é

importante, mas é igualmente importante marcar a ocasião, talvezoferecer um presente àqueles que a encorajaram ao longo dopercurso.

— Isso é muito atencioso. — Desejei ter tido a ideia. — A quem éque agradeceu?

— À minha mãe e à minha melhor amiga… ofereci-lhes romances— respondeu. — Agora, por favor, não deixe Miss Wedd à suaespera.

Juntei-me à alegre guarda-livros. Apenas dois lápis no seucarrapito, nesse dia.

— Tinha razão a respeito daquele filósofo grego, Heraclito. Adoreio que ele disse sobre nunca nenhum homem pisar o mesmo rioduas vezes.

— A única coisa com que podemos contar é a mudança —concordou ela.

Entregou-me o meu salário. Cada franco representava as vitóriasde quando respondia a uma pergunta, os embaraços de quandotinha dificuldade em responder, os dias inteiros a falar uma línguaestrangeira, noites passadas a ler para poder oferecerrecomendações de livros. Sabia que ia adorar o meu trabalho, masestava surpreendida pela forma como podia ser desafiante.

Enfiei as notas no bolso. Era esta a verdadeira razão por quequisera o emprego: dinheiro significava estabilidade. Recusava-mea acabar desprovida e sozinha como a tia Caroline.

Na tarde seguinte, fui ao banco depositar o ordenado, guardandouns francos para despesas correntes. A seguir, fui à estação ecomprei dois bilhetes para Fontainebleau, destinados a agradecerao Rémy o seu apoio constante. Mais do que música e livros, eleadorava andar pela floresta. Pensei dar-lhe o presente ao jantar,mas ele provou apenas umas poucas garfadas antes dedesaparecer.

— O Rémy já não come nada — resmungou a maman. — Nãogostará da minha comida?

O papa agarrou-lhe a mão roliça.— A comida estava óptima.— Ultimamente, também preferes jantar fora — disse ela com

severidade.— Então, Hortense — tentou ele abrandá-la.— Porque não vais ver o Rémy? — sugeriu-me a maman.Encontrei-o à secretária, com papéis espalhados na sua frente.

Dei-lhe os bilhetes, e pensei que ele insistiria em que fôssemos deimediato. Mas o meu irmão limitou-se a dar-me um beijo distraído naface. Ele estava cada vez mais… ausente. Mesmo quando estavaconnosco. Sentia saudades dele. Rémy não disse nada, emboranão retomasse a escrita do seu prospecto.

— Foste às aulas, hoje?— De que serve estudar as leis quando ninguém as respeita? A

Alemanha a ocupar a Áustria… Soldados japoneses a saquear aChina… O mundo enlouqueceu e ninguém se está a ralar.

De certa forma, ele tinha razão. As quezílias entre leitorespareciam-me mais reais do que conflitos distantes. Recordando aúltima discussão, apertei uma folha de papel ao meio e coloquei-aao pescoço.

— Olha Mr. Pryce-Jones, com o seu laço de cornucópias. — Leveio papel acima da boca. — E este é Monsieur de Nerciat, com o seufarfalhudo bigode de leão-marinho.

Laço: — O rearmamento é a única coisa a fazer! Precisamos denos preparar para a guerra.

Bigode: — Precisamos de paz, não de mais armas.

Laço: — Sua avestruz! Pare de enterrar a cabeça na areia.Bigode: — Prefiro ser avestruz do que idiota. Na Grande Guerra…Laço: — Mas porque é que não se cala com a guerra! A única

coisa que está igual desde a guerra é esse seu corte de cabelohorrível.

Rémy riu-se.— Se achas graça a isto, devias assistir a um espectáculo ao vivo

na Biblioteca.— Tenho prazo de entrega para este artigo.— Anda lá — disse-lhe brandamente. — Vais ver que as pessoas

se ralam, sim.

Na quinta-feira havia Hora do Conto, a minha actividade semanalpreferida. Adorava ver os pequeninos mergulhados nas histórias, talcomo eu ficava com a tia Caro. A caminho do evento, espreitei paraa sala da referência, na esperança de ver o Paul. Ele não estava.Morte do Coração, 823. Disse a mim mesma que ele não podia ir àBiblioteca todos os dias. Ao recordar o nosso beijo, levei os dedosaos lábios. Talvez um dia, em breve?

Na sala infantil, dirigi-me para a lareira, onde algumas mães setinham reunido. A maior parte conversava, mas uma mantinha-se àparte.

— Olá — cumprimentou-me, a brincar com o colar de pérolas. —Prazer em vê-la novamente.

Era a inglesa solitária. Margot? Não, Margaret.— The Priory era maravilhoso — continuou. — Gostei tanto que

fui procurar outros três livros de Dorothy Whipple. Nunca fui grande

leitora, mas agora decidi que eu e a minha filha vamos ler juntastodos os dias.

— Qual delas é a sua filha? — perguntei.A Margaret apontou para a loura sentada ao lado da filhinha do

Boris, Hélène. As raparigas falavam animadamente, enquantoesperavam que a Bitsi começasse a qualquer momento. Virei oolhar para o relógio por cima da porta, e fiquei surpreendida por vero Rémy entrar. Ele contornou as crianças para se aproximar de mim.

— Fico contente por teres vindo — disse-lhe.— Como podia resistir, depois da tua peça a solo? Quis passar

algum tempo contigo no teu lugar preferido. Temos estado os doistão ocupados…

— Mas agora estás aqui, isso é que interessa.Empoleirada num banco, a Bitsi folheava um livro. Pigarreou e a

sala ficou em silêncio. Vinte pequeninos aproximaram-se um poucomais. Enquanto lia Miss Maisy, o tom da Bitsi aprofundou-se, e oseu olhar hipnotizava o público. Enfeitiçado, um menino tocou-lhe asaia ampla, que ondulava acima das suas sabrinas.

Ao olhar de relance para o Rémy, vi que a Bitsi tinha outro fã —os olhos do meu irmão nunca se desviavam do seu rosto. Quandoela terminou, ele aplaudiu, e outros seguiram-no.

— Então aquela é que é a tua «leitora-gémea» — comentou. —Lê mesmo tanto como tu?

— Provavelmente ainda mais.— Tem muito talento — observou ele.— Ela dá vida às personagens.— Não, ela é as personagens. — Aproximou-se da Bitsi.Eu segui-o.

— Vous êtes magnifique — disse ele.— Merci — sussurrou ela, o olhar agora colado ao chão.Querendo apresentá-lo a Mr. Pryce-Jones e a Monsieur de

Nerciat, puxei-lhe a manga. Rémy não reparou.— Deve estar com sede — continuou ele. — Quer vir beber um

citron pressé?Era a primeira vez que o via interessado numa mulher. Pelo

menos seis colegas de escola tinham-se tornado minhas amigas sópara o conhecerem. Sempre que o apresentava a alguma rapariga,ele era educado, escutava, mas nunca iniciava uma conversa.

Tive esperança de que a Bitsi aceitasse o convite. Não faria malnenhum se ela saísse do trabalho mais cedo, só por uma vez.

Bitsi enfiou-lhe a mão no braço. Ele fechou os olhos por umafracção mais longa do que um pestanejar, um silencioso Merci,antes de a escoltar para a saída. Senti-me esquecida, e tentei dizera mim mesma que era natural que o Rémy ficasse apanhado porela. Isso não significava ser deixada de lado.

Boris tocou-me nas costas.— A boa notícia — disse — é que vamos doar livros.— E qual é a má?— Estão ali trezentos, e o teu trabalho é separá-los.Passou-me uma lista e, enquanto lia os títulos, regressei da terra

da autocomiseração. A visita do Rémy não acabara como euesperara, e então? Haveria outras oportunidades.

— Quando soube que a Biblioteca distribuía milhares de livros auniversidades, achei que era admirável. Claro, isto antes de ser eu aempacotá-los! — gracejei.

Boris riu-se.

— Melhor que sejas tu do que eu.A sala das traseiras estava a transbordar de caixotes vazios e

pilhas de livros.— Boa viagem — disse para um volume que coloquei no caixote

para a Universidade Americana de Teerão, Pérsia; outro foi para oInstituto Seaman, em Itália; um terceiro, quarto e quinto viajariamjuntos para a Turquia. Continuei nisto durante o que me pareceramhoras, mas quando consultei o relógio apenas dez minutos tinhampassado. Ia ser uma tarde interminável e solitária.

Ouvi bater à porta.— Perguntei ao homem no balcão de atendimento onde se tinha

enfiado, e ele mandou-me para aqui — disse a Margaret.— Obrigada pela companhia. Importava-se de me dar uma ajuda?

— perguntei, mas depois reparei no seu vestido de seda cor-de-rosa. Se ela ficasse ali, acabaria coberto de pó, e, de qualquerforma, mulheres vestidas de couture não trabalhavam.

— Porque não? Não tenho nada melhor para fazer.Ofereci-me para ir buscar a sua filha, mas ela disse que Christina

parecera feliz por estar a fazer amizade com Hélène e o pai. Mostreia Margaret como encontrar o destino de cada volume. Ela foiandando graciosamente entre os caixotes, empacotando os livroscom cuidado. Bon voyage, sussurrava a cada um.

Olhei para ela.— Deve pensar que sou louca por conversar com os livros —

disse-me.— De todo.— Bon voyage é a única coisa de que me recordo do francês que

aprendi na escola. A minha mãe tinha razão; devia ter-me esforçadomais.

— Não é demasiado tarde! Eu ensino-lhe algumas frases. Bonvent significa «vento favorável». Dizemos isso para desejar aalguém boa sorte. Dizemos bon courage para dar coragem aalguém.

— Bon courage! — disse ela a um manual de Química.— Bon vent! — desejei a uma cartilha de Matemática.Rimo-nos enquanto continuávamos a despedir-nos dos livros.— O que a trouxe para Paris?— O meu marido é adido na embaixada britânica.— É um bom círculo.— Diga antes que é um círculo vicioso. — Ela fez uma careta. —

Oh, por favor, não diga a ninguém que eu disse isto. Está a verporque é que não sou eu a diplomata.

Subitamente tímida, a Margaret voltou a separar os livros.— Deve frequentar eventos muito elegantes — continuei, com

esperança de que me falasse das festas.— Ontem houve um chá na residência do embaixador holandês,

mas estou a divertir-me mais agora.— Como é que isso é possível? Deve encontrar-se com pessoas

do mundo inteiro.— Estão interessadas no meu marido, não em mim. — Lágrimas

correram-lhe pelas faces maquilhadas com rouge. — Tenhosaudades da minha mãe, tenho saudades de me encontrar com asminhas amigas.

Eu não sabia o que responder. Miss Reeder dizia que muitasvezes os estrangeiros em Paris sentiam saudades da sua terra e

que a equipa da Biblioteca podia ajudar a aliviar a sensação desolidão.

— Não queria que isto acontecesse. — A Margaret limpou aslágrimas. — A minha mãe chama-me «bule de chá rachado».

— Dentro de pouco tempo, vai chamar-lhe la Parisienne. — Pus atampa na última caixa. — Deu-me uma grande ajuda.

— A sério?— Devia ser voluntária aqui.— Não tenho formação. E se cometer algum erro?— É uma biblioteca, não uma sala de cirurgia! Ninguém vai morrer

se puser um livro no sítio errado.— Não sei muito bem se…— Vai fazer novos amigos, e eu posso ensinar-lhe francês.Acompanhei a Margaret até ao pátio, onde a filha dela estava a

brincar com Hélène. O crepúsculo descia sobre a cidade etranspunha o muro para invadir o relvado e aproximar-se daBiblioteca. A escuridão nunca chegava totalmente — os candeeirosda sala de leitura brilhavam alegremente. Pela janela, a Margaret eeu vimos Madame Simon a olhar de um lado para o outrofurtivamente antes de retirar um caniche da mala. Colocando-o nocolo, a professora Cohen e ela fizeram-lhe festas na barriga.Absorvidas na sua própria felicidade, não repararam no Boris e naesposa, Anna, ao canto, com as cabeças inclinadas uma para aoutra. Os dois nunca se tocavam, mas um terno amor irradiava dassuas pessoas. Com o dedo ossudo na boca, a severa Mrs. Turnbullfazia calar alguns estudantes. O pobre Peter-o-arrumador-de-livrosenfiou-se entre as estantes para evitar a matrona que o seguia

como um predador. Observando-o, a nossa guarda-livros cobriu aboca para ocultar o riso.

A Margaret tinha uma espécie de anseio no olhar, enquantoobservava as cenas que se desenrolavam na nossa frente. Algumacoisa me dizia que ela precisava da Biblioteca. Alguma coisa medizia que a Biblioteca precisava dela. Entre os livros poeirentos, anossa conversa fluíra como o Sena. Esperava, mais do que tudo,que a Margaret se juntasse ao nosso grupo.

CAPÍTULO 9

Odile

PARIS, JUNHO-JULHO DE 1939

Era semana de exames, e as mesas estavam cheias, com todosos lugares ocupados excepto um. Monsieur Grosjean, com os seusabafadores cor de tangerina nas orelhas, plantou-se no meio da salade leitura. Observando-o, o Boris e eu preparámo-nos.

— O que é que o nosso mais irregular cliente regular vai fazeragora? — perguntou-me.

— «Tratem-me por Ismael. Há alguns anos, não interessaquantos, achando-me com pouco ou nenhum dinheiro na carteira, esem qualquer interesse particular que me prendesse à terra firme,apeteceu-me voltar a navegar e tornar a ver o mundo daságuas…»[10] — Quando o Boris apontou para a cadeira vazia e oconvidou a ler para si mesmo, Monsieur replicou: — Diabos melevem se me vou sentar ao lado daquelas judias perfumadas.

Miss Reeder aproximou-se, os lábios franzidos numa careta. Eraa primeira vez que a via zangada. Monsieur deu um passo atrás.

— Já vou ter consigo dentro de um minuto — disse, tensa. Adirectora aproximou-se das jovens mulheres, estudantes da

Sorbonne, e pediu desculpa, prometendo-lhes que iam poderestudar em paz. Depois admoestou Monsieur Grosjean, dizendo-lhe:— Não há lugar nesta Biblioteca para esse tipo de conversa.

— Eu só digo o que os outros estão a pensar — balbuciou ele.— Então pense melhor — replicou ela.— A senhora não me dê ordens! — Grosjean gesticulou com uma

mão, quase atingindo Miss Reeder.Boris agarrou-o pelo braço e escoltou-o até à porta. Com o seu

colete de malha e gravata, Boris era surpreendentemente eficienteno papel de porteiro.

— Eu queria ler aquela passagem sobre a minha alma atransformar-se «num Novembro brumoso e húmido»!

— Qual alma? — respondeu o Boris.— Solte-me…— O senhor não é uma vítima — disse o Boris, enquanto obrigava

Grosjean a sair. — É um homem desagradável que ofendeu muitaspessoas. Diga mais uma sílaba e eu arranjo maneira de nunca maiso deixar voltar a entrar.

Miss Reeder tranquilizou os leitores inquietos com a discussão;decidi ir ver como estava o Boris. Encontrei-o na outra ponta dopátio, perto das rosas carmim com que o jardineiro costumava falarcomo se fossem suas filhas. Boris estava encostado ao muro, comum Gitane preso entre os dedos.

— Ça va?Ele não respondeu; encostei-me também à parede e ficámos a

observar o fumo que subia no ar.— Depois da Revolução, fui obrigado a dizer adeus ao meu país

— disse ele. — Foi doloroso partir, mas eu e o meu irmão

acreditávamos que, ao vir para aqui, estaríamos num lugar melhor,mais inteligente. Não é a França o país do Iluminismo? Na Rússia,muitas pessoas foram mortas em pogroms. O nosso vizinho foiassassinado só por ser judeu. Por isso, agora, quando ouço alguémfalar assim…

— Lamento.— Suponho que o ódio exista em todo o lado. — Fumou o seu

cigarro; quando soprou o fumo, soou como um suspiro. — Até nanossa Biblioteca.

O papa tinha razão — trabalhar com o público podia serdesmoralizante. Na viagem de autocarro para casa, mergulhei naspáginas do meu fiel amigo, 813, De Olhos Pousados em Deus,virando-o para a janela para captar a pouca luz. Ela sabia coisasque nunca ninguém lhe tinha dito. Por exemplo, as palavras dasárvores e do vento. Muitas vezes falava com sementes que caíam edizia: «Ah, espero que caiam em solo macio», porque ouvirasementes dizerem isso umas às outras ao passar. Sabia que omundo era um cavalo a vogar no pasto azul do éter. Sabia que Deusrasgava o velho mundo todas as noites e construía um mundo novopelo nascer do sol. Era maravilhoso vê-lo ganhar forma com o sol eemergir do pó cinzento. As coisas e pessoas que conhecia tinham-na desiludido, por isso ela olhava do portão para a estrada quelevava à liberdade. Quando o autocarro parou com um guincho depneus num sinal vermelho, caí de dentro do meu livro.

Onde estávamos? Procurei um ponto de referência e vi ocommissariat do meu pai, um edifício imenso e soturno. Ainda

estava longe de casa, mas talvez conseguisse boleia do papa, seele ainda ali estivesse. Observei a rua em busca do seu carro; emvez disso, vi-o a ele, de chapéu enterrado na cabeça, com o braçoem volta de uma mulher. Devia estar a consolar a vítima de umcrime, uma lojista que tivesse sido assaltada. Reparei no nome doedifício atrás deles, Hotel Normandy. Não, era uma recepcionista, ouuma criada. O papa sorriu com qualquer coisa que ela lhe disse, edepois beijou-a, não em cada face, mas em cheio na boca.

Como podia ele fazer aquilo à maman? A vadia nem sequer erabonita, com aquele cabelo escasso e as bochechas salientes.Felizmente, o sinal ficou verde e o autocarro avançou sobre aestrada empedrada, levando-me para longe.

Sentindo-me nauseada, saí na paragem seguinte. Na caminhadaaté casa, tentei perceber o que tinha visto. Há quanto tempo durariaaquilo? O que fizera a maman para o merecer? O que não fizera?Folheei as páginas da minha memória. Uma noite, ao jantar, amaman dissera que o papa preferia «jantar fora». Estaria a referir-sea um caso?

À entrada, atirei com o meu saco de livros para o chão e berrei onome do Rémy. Encontrei-o a ler Ratos e Homens.

— O Steinbeck pode esperar — disse-lhe. Fomos para o nossolugar secreto, longe dos nossos pais, longe do mundo, debaixo daminha cama, onde a luz não chegava. Rémy, depois eu, deslizámospelo soalho. Sabia bem voltar à infância, ao último lugar ondealguém nos procuraria.

Tendo dificuldade em recuperar o fôlego, explodi:— O papa. Com uma mulher. Não a maman.— Porque é que estás espantada?

A sua despreocupação doeu-me tanto como ter visto o papa coma vadia.

— Tu já sabias? Porque é que não me disseste nada?— Não temos de dizer tudo um ao outro.Desde quando?— Os homens importantes têm amantes — continuou ele. — É

um símbolo de estatuto, como um relógio de ouro.Acreditaria mesmo nisso, o meu irmão? E o Paul? O caso do

papa parecia-me uma traição, não apenas para com a maman, maspara com a nossa família. Como podia o Rémy não ver isso? Olheipara ele, mas não consegui decifrar a sua expressão. Não sabia oque ele estava a pensar. Não sabia o que pensar. Os meus dedosprenderam-se às molas do colchão.

— A Bitsi diz que crescer é também perceber que os pais têm assuas próprias vidas, os seus próprios desejos — concluiu o meuirmão.

A Bitsi diz.Lembrei-me da outra ocasião em que o Rémy e eu não tínhamos

estado de acordo. No Verão em que fizemos nove anos, por causade um problema nos pulmões, o meu irmão ficou de cama e amaman untava-lhe o peito magro com emplastros de mostarda paraaliviar a congestão. Eu ficava ao seu lado todos os dias — a ler-lheem voz alta ou a vê-lo dormitar —, excepto aos domingos, quandoeu e a maman íamos à missa com o tio Lionel e a tia Caro. Gostavado tio Lionel, que dizia sempre que desejava ter uma filha como eu.Isso deixava a tia Caro lacrimosa, e a maman insistia que nãohaveria de demorar até serem abençoados com uma criança. Mas a

maman — que dizia que tinha sempre razão — viria a descobrir quedesta vez só tinha razão em parte.

Quando o tio deixou de ir à missa, a tia Caro dava explicações tãodespreocupadas — ele estava com gripe, ou precisara de levarclientes a Calais — que ninguém percebeu que havia alguma coisaerrada. Naquela última vez, quando saímos da igreja, a maman atécomentou:

— Tão bom, sermos só nós, as raparigas.Eu ia andando na frente, a sonhar com a sobremesa.— Ainda bem que dizes isso — começou a tia Caro. — Tenho

novidades.Foi o ferrão no seu tom de voz que me fez parar. Não olhei para

trás. Não queria que a maman me acusasse de estar a bisbilhotar.— O Lionel tem andado distante — continuou a tia Caro.— Distante?— Tive o pressentimento de que havia outra coisa. Quando lhe

perguntei, ele admitiu que tinha uma amante.— O mundo é assim — disse a maman. — Estou espantada por

te ter dito a verdade.Soava tão amarga que me virei. Ninguém reparou em mim.— Foi obrigado a isso. — Os olhos da tia Caro encheram-se de

lágrimas. — Ele engravidou-a. Pedi o divórcio.— Divórcio. — A maman empalideceu. — O que é que as

pessoas vão dizer?A mente da minha mãe ia sempre directamente para o que é que

as pessoas vão pensar? Vi-a olhar com nervosismo para MonsignorClement, nos degraus da igreja.

— É a única coisa que tens para dizer? — perguntou a tia Caro.

— Não vais poder vir à missa.— É uma pena, mas posso ler as Escrituras sozinha. Vamos.A maman não se moveu.— Precisas de ir para tua casa e resolver as coisas.— Tinha esperança de poder ficar contigo.— Precisas de voltar para o teu apartamento.— Não posso. O Lionel vai levá-la para a nossa casa.— Isso não é da minha conta.Como foi chocante ver a maman, que odiava confrontos, a discutir

na frente da igreja, perante Deus e toda a gente. Como podia sertão cruel com a sua própria irmã?

O olhar da maman deslizou para o meu. Esperava que elaabraçasse a irmã, como me abraçava quando eu caía e esfolava ojoelho, mas a maman disse apenas:

— Não quero que as crianças sejam influenciadas.Uma divorciada era pior do que uma mulher desgraçada. A minha

mãe acreditava naquilo em que a igreja lhe dissera para acreditar,mas seguramente devia abrir uma excepção para a sua própriairmã.

— Não tenho para onde ir — disse a tia Caro. — Não tenhodinheiro nenhum.

— Por favor, maman — pedi. Mas a expressão dela apenasendureceu.

— O divórcio é um pecado.— Podemos pedir perdão pelo pecado na confissão — repliquei.Quando a maman não conseguia vencer pela lógica, usava a

força. Agarrou-me pelo braço e arrastou-me ao longo da rua para

casa. Olhei para trás e vi a tia Caroline a observar-nos, com umamão trémula sobre o peito.

Quando chegámos a casa, fui directamente para o quarto doRémy, mas, quando girei a maçaneta, a maman encostou-se àporta:

— Não vais incomodar o teu irmão.Alguns dias depois, perguntei pela tia Caro, certa de que a

maman acabaria por ceder. Ela disse:— Se voltas a mencionar o nome dela, mando-te embora. —

Acreditei.Durante duas semanas, mantive o silêncio, ou foi o silêncio que

me manteve. Incapaz de esconder um segredo do Rémy durantemais tempo, sentei-me ao lado dele na cama. O seu semblanteestava cinzento, e eu sabia que ele estava exausto da tosseincessante que lhe abalava o corpo.

— Esse emplastro de mostarda faz-te cheirar a carne assada —provoquei-o.

— Engraçadinha.— Desculpa. — Ergui a mão para lhe despentear o cabelo. Se ele

me deixasse, perdoara-me a piada. Se não deixasse, continuavazangado.

Ele deixou.— Sentes-te melhor?— Nem por isso.— Oh. — Não me atrevi a contar. A maman proibira-me de o

incomodar. Os meus pais e eu vivíamos no temor de uma recaída.Falávamos em surdina quando pensávamos que o Rémy estaria adormir, e passávamos pelo seu quarto em bicos de pés.

O que se passa? Senti-o perguntar.Nada, repliquei.Conta, insistiu ele.Por vezes comunicávamos assim.Rémy escutou-me quando deixei sair a minha dor: eu julgara que

o amor da nossa mãe fluía incondicionalmente, mas ela desligara-ocomo uma torneira. E o que seria da nossa tia?

— A maman contou-me que a tia Caro quis voltar para Mâcon —disse ele lentamente.

Virei a cabeça. Quis?— Então porque é que não se despediu? — argumentei. —

Porque não escreveu?Pela primeira vez, o tagarela do meu irmão não teve resposta.— Preferes acreditar no que é conveniente, não no que é verdade

— acusei.— Deves ter interpretado mal. A maman nunca seria tão cruel.A sua recusa em acreditar em mim era tão devastadora como a

nossa mãe a esquecer a própria irmã.— Tu não estavas lá — protestei. — A fazer-te de doente, como

de costume.O rosto do Rémy afogueou-se. Ele sentou-se na cama e abriu a

boca. Preparei-me, esperando que me dissesse das boas. Em vezdisso, ele tossiu, e tossiu, uma tosse profunda que fez surgir sangueescuro. Impotente, estendi-lhe o meu lenço e esfreguei-lhe ascostas, desaparecidas que estavam todas as ideias de vencer adiscussão.

Dois meses mais tarde, o Rémy voltara a ir à missa. Tal como amaman, ajoelhou-se piedosamente na frente do crucifixo,

convencido de que a sua fé o fizera vencer a doença. Deixei-oacreditar no que precisava. Eu tinha aprendido que o amor não erapaciente, o amor não era bondoso. O amor era condicional. Aspessoas que nos eram mais próximas podiam virar-nos as costas,dizer adeus por uma coisa que parecia insignificante. Só podíamosdepender de nós próprios.

A minha paixão pela leitura cresceu — os livros não traíam.Enquanto o Rémy gastava a sua mesada em doces, eu poupava aminha. Ele era o palhaço da turma, eu era a melhor. Quando osamigos dele me convidavam para sair, eu recusava. O amor estavafora de questão. Aprenderia um ofício, arranjaria um emprego epouparia dinheiro, para que, quando o inevitável acontecesse, eume pudesse salvar.

*

De olhos inchados após uma noite inquieta, tentei ajudar leitores omelhor que conseguia. Era difícil parar de pensar. O papa tinha umaamante, o Rémy passava cada segundo com a Bitsy e o Paul nãoregressara para me ver. Parei no balcão de atendimento, naesperança de que o Boris tivesse algum livro para mim.

— Tens estado cinzenta, hoje. — Passou-me 891.73. — Vai parao Além. Ali ninguém te vai incomodar.

Comprimindo Tchékhov contra o peito, subi as escadas, passeipelos investigadores no segundo andar, que não tinham reparadoque era Primavera, e cheguei ao sereno terceiro andar, ondeguardávamos os livros que raramente eram requisitados, o Além.

Enquanto flutuava por entre as estantes, o silêncio encheu-me de

paz. Escondida entre os livros, li: Ele teve duas vidas: uma, aberta,vista e conhecida de todos os que se interessavam… e outra vidaque seguia o seu curso em segredo. Nunca podíamos conhecer osnossos entes queridos, e eles nunca nos conheceriam. Eradevastador, e era verdade. E, no entanto, havia um consolo: ao leras histórias de outras pessoas, sabia que não estava sozinha.

— Aí estás tu! — disse a Margaret. O seu rosto, de um modogeral perfeitamente maquilhado, brilhava com o esforço de carregarpesados volumes, e também de contentamento. A mulher hesitantee frágil que eu conhecera fora substituída por uma outra, confiante ecapaz.

— Qual foi a tarefa de hoje?— Realojar os conjuntos de enciclopédias. — Esfregando a parte

superior dos braços, exclamou: — É preciso ser-se forte, para setrabalhar aqui.

— És muito generosa por dares tanto do teu tempo.— É fácil quando se acredita, e eu acredito na Biblioteca.Interroguei-me se deveria dar o meu coração a Paul.— E se não recebemos nada em troca?— Não devemos esperar nada em troca, quando damos. — Ela

observou-me com atenção. — O que estás a fazer aqui em cimasozinha?

— Inventário.— Pareces muito pensativa.— Está tudo bem.— Sim, estou a ver — replicou num tom ligeiro. — Está muito

abafado, aqui. Precisas de ar fresco.Uma vez lá fora, com A Senhora do Cãozinho e Outras Histórias

enfiado debaixo do braço, conduzi a Margaret por umas ruaslaterais.

— Aonde vamos? — perguntou ela.Franzi o sobrolho. Seria na rua Washington, a esquadra de Paul?Já tinha visto o amor correr tão mal. Agora queria vê-lo correr

bem. Precisava de saber se ele sentia o mesmo que eu: esperançae cautela. Tinha um emprego, estava a tornar-me maisindependente. Talvez pudesse correr o risco.

— Está tudo bem?— Eu… — Não sabia como dizer tudo o que estava a sentir, e

fosse como fosse ela era tão cosmopolita que os meus problemasnão lhe deviam interessar.

— Gostavas de vir à festa da embaixada no Dia da Bastilha?Virei-me para ela.— A sério?— Claro! Quero animar-te. Vem ao meu apartamento, podemos

preparar-nos juntas. Posso emprestar-te um dos meus vestidos.Hum, não quero dizer que não tenhas vestidos.

Mal a ouvia. Ali estava a esquadra. Hurra! Estaquei. Margaretolhou as barras nas janelas, desconfiada. Quando viu sair meiadúzia de atraentes polícias, uma expressão de compreensãocruzou-lhe o rosto.

— Estarás, por acaso, com esperança de encontrar um certoleitor? Espero que seja um polícia, não um ladrão!

— É, sim.— Vai lá cumprimentá-lo.— O papa não permitiria. Diz que as esquadras estão cheias de

criminosos.

— O teu pai está ali?— Não.— Então não vejo porque não hás-de entrar! — Abriu a porta de

madeira e empurrou-me para dentro. A luz fraca mal cortava onevoeiro de fumo de cigarro. No banco ao meu lado, um homem decamisola interior toda suja ficou a olhar para mim. Apertei A Senhoracontra o peito. Ele aproximou-se mais; afastei-me. Talvez o Paultivesse aceitado a posição que o papa ofereceu e já não trabalhasseaqui. Talvez nunca tivesse trabalhado aqui. Eu era uma idiota. Nãodevia ter vindo. Quando ia a sair, senti uma mão no cotovelo.Esquivei-me, pronta para atingir o vagabundo com Tchékhov; emvez disso, vi uns preocupados olhos azuis.

— Quando sonhei voltar a vê-la, não era aqui que acontecia —disse o Paul.

Baixei o livro.— Queria voltar a ver-me?— Claro. Mas depois de a ter envergonhado na frente da sua

chefe…— Não envergonhou. De qualquer maneira, sentimos a sua

falta… na Biblioteca.— Eu também tive saudades… da Biblioteca — disse ele.Esperei que dissesse mais alguma coisa, mas, quando não o fez,

disse:— Tenho de ir. Tenho uma amiga lá fora…— O meu turno acabou agora mesmo, posso convidar-vos às

duas para jantar?No bistrot, o empregado, muito elegante com o seu blazer preto e

laço, conduziu-nos a uma mesa sossegada ao fundo, longe dos

polícias que nos olhavam sobre os seus copos de cerveja. Emboranenhum deles me parecesse familiar, perguntei-me se já algum teriaestado nos nossos almoços de domingo.

Um delicioso aroma a maçãs caramelizadas emanava da cozinha.— Que cheiro maravilhoso é este? — perguntou a Margaret.— Tarte tatin — respondi. — A minha terceira sobremesa

preferida, depois de profiteroles e a mousse de chocolate damaman.

— A minha quarta preferida — disse o Paul.— Ainda não provei — disse a Margaret —, mas estou

convencida de que é a minha nova preferida.Subitamente tímida, varri as migalhas de pão sobre a toalha de

xadrez. A Margaret indicava-me discretamente «Fala com ele». Osilêncio tornou-se mais audível quando tentei pensar em algo paradizer. Talvez pudesse perguntar-lhe pelo trabalho. Pensei no papa,que chegava sempre a casa de péssimo humor, a queixar-se dospatifes com quem tinha de lidar. Rémy e eu nunca sabíamos muitobem se se referia aos criminosos ou aos colegas.

— Por que diabo quis ser polícia? — deixei escapar.— Ela quer dizer que é um trabalho muito perigoso — explicou a

Margaret. — Estava ainda agora a dizer-me como admira os nossoshomens de azul.

— Foi o que sempre quis fazer — disse ele. — Ajudar as pessoas,mantê-las em segurança.

— Muito gratificante! — comentou a Margaret.— Por que diabo quis ser bibliotecária? — perguntou ele, com

uma étincelle, uma centelha no olhar.— Por vezes gosto mais de livros do que de pessoas.

— Os livros não mentem nem roubam — disse ele. — Podemosconfiar neles.

Fiquei surpreendida e encorajada por ouvir um eco dos meuspróprios sentimentos.

— Que espécie de leitor é? — quis eu saber.— Isso é para si ou para o boletim da Biblioteca?Senti o rosto enrubescer de orgulho.— Leu o meu boletim?— Adorei a resposta de Miss Wedd, e fui procurar o velho

Heraclito.— Nunca se desce o mesmo rio duas vezes — recitámos os dois

em uníssono.— Estou a perguntar por mim — disse-lhe timidamente.— Gosto, acima de tudo, de não-ficção. Em especial de

Geografia. Gostei de voltar a estudar Inglês, uma coisa com regras.Uma coisa para a qual posso apontar e dizer, sim, é mesmo assim.Suponho que seja porque preciso que as coisas sejam verdade.

Estava pronta para argumentar que os romances podiam ser maisverdadeiros do que a vida, mas ele continuou:

— Provavelmente porque passo muito tempo com criminosos queignoram as regras. Os bandidos não se importam com quemmagoam. Contam boas histórias, e queremos acreditar que tiveramuma razão para fazer o que fizeram. É difícil quando se fica a saberque uma pessoa em quem confiávamos nos mentiu na cara.

— É doloroso — concordei, pensando no papa e na sua amante.O empregado pigarreou. Tinha-me esquecido de que estávamos

num restaurante cheio de gente, de que a Margaret estava ao meu

lado. Depois de le serveur anotar o pedido, o Paul disse a Margaretem inglês:

— Não sei se conseguiria viver tão longe de casa. Admiro-a.— É muito simpático da sua parte — agradeceu ela. — Tinha

umas saudades terríveis de casa, mas depois conheci a Odile.— A Margaret tem dado uma ajuda fantástica na Biblioteca.Corada, ela disse:— Tem planos para as férias?— Costumo ajudar a minha tia na quinta, todos os verões — disse

ele.— Perto de Paris? — perguntou a Margaret.— Na Bretanha.— Vai-se embora? — perguntei, tristonha. O empregado trouxe os

nossos steak frites, mas eu já não tinha fome e apenas debiquei asbatatas.

Depois do jantar, a Margaret agradeceu ao Paul e entrou numtáxi. Sob a luz suave dos candeeiros da rua, ele acompanhou-me acasa. Eu não sabia se me devia apressar, como costumava fazer, ouacompanhar o seu passo. Não sabia se devia enfiar a mão no bolsoou deixá-la caída de lado, para que ele a pudesse agarrar, sequisesse. Enquanto subia as escadas, perguntei-me se ele seinclinaria até os seus lábios estarem nos meus, até eu poderrespirá-lo como ar. No patamar, ele não se aproximou. Escondi adesilusão baixando a cabeça para procurar a chave, perdida nofundo da minha carteira.

Enquanto tentava enfiá-la na fechadura, o Paul tocou-me o pulso.Estaquei.

— Ia convidá-la para sair — disse.

— Ia?— Depois o seu pai ofereceu-me um emprego.Baixei a chave.Paul gostava de mim por causa do papa. Que figura de parva que

eu fizera, indo procurá-lo na esquadra. Senti-me tonta. Precisava depassar para o outro lado daquela ombreira e fechar a porta entrenós. Baixando-me, os meus dedos procuraram a chave, mas o Paulfoi mais rápido, agarrando-a com uma mão e o meu cotovelo com aoutra.

— Tenho as qualificações — disse ele, endireitando-me — e,francamente, preciso do aumento para poder pagar um sítio decentepara viver.

Fixei o olhar no pequeno botão azul da sua camisa.— Parabéns. Quando começa?— Recusei.— Sim?— Não quis que pudesse duvidar dos meus sentimentos.O meu coração começou a desabrochar. Ele cobriu-me a boca

com a sua. Ao princípio, os meus lábios franziram-se como os deuma estrela nos filmes, mas depois a minha boca abriu-se, e a sualíngua acariciou a minha. Quando o Paul ergueu a cabeça, olhei-o,maravilhada, sentindo que no espaço de um langoroso beijo tinhamergulhado no Monte dos Vendavais.

No Dia da Bastilha, quando cheguei ao apartamento da Margaret,um mordomo conduziu-me à sala, onde retratos de homens snobesme olharam com um ar altivo. Intimidada, afastei-me deles para o

piano de cauda estacionado ao canto. Era tão grande como o carrodo papa. Os meus dedos nervosos tocaram algumas notas.Ninguém que eu conhecesse tinha mordomo ou piano de cauda —coisas de romances, não da vida real. À janela, via a capela decúpula dourada onde Napoleão foi enterrado. De facto, os vizinhosali eram de alto nível. Na minha casa, raramente abríamos asjanelas por causa do pó do carvão que se erguia da estação doscomboios. Os tectos baixos faziam com que o nosso sombrioapartamento parecesse acolhedor nos dias bons, claustrofóbico nosmaus. A vista do meu quarto dava para o prédio na frente do nosso— a quatro metros de distância — onde uma fileira de cintas molessecava por cima da banheira da Madame Feldman. Luz do sol evistas esplêndidas eram um luxo. Margaret não era propriamente acriança abandonada que eu imaginara.

— Esperaste muito tempo? A Christina não queria sair dabanheira — disse a Margaret, com a filha nos braços. A meninaescondeu o rosto no colarinho da blusa da Margaret, e a única coisaque eu conseguia ver era caracóis húmidos.

— Nós conhecemo-nos na Hora do Conto — lembrei a Christina.— É o meu momento preferido da semana.

Ela endireitou-se.— O meu tambémUma ama veio buscar Christina e atravessei com a Margaret o

seu quarto azul-claro, a caminho do quarto de vestir, que era dotamanho do escritório de Miss Reeder. Uma parede estava forradacom vestidos de dia, outra com vestidos de noite, todos couture,cada um valendo mais do que um ano de salário. Era difícil acreditarque uma mulher possuía tanto, e impossível não ficar de boca

aberta. As cores! Vermelho maçã-de-amor, caramelo, menta,alcaçuz! Não conseguia parar de tocar nos vestidos.

— Gostavas de experimentar um?— Se gostava!Não conseguia decidir, por isso a Margaret passou-me o vestido

preto. Segurei-o contra mim e rodopiei pelo quarto de vestir.— Vamos — incentivei-a. — De que estás à espera?Ela retirou o vestido verde do cabide e juntou-se a mim numa

dança pelo quarto. Comecei a trinar a letra de uma canção de EdithPiaff e a Margaret cantou comigo até estarmos ambas sem fôlegode dançar e cantar e rir e cairmos molemente debaixo dos vestidosde seda.

— Estou a interromper? — O homem falou em inglês com umforte sotaque francês. O fino bigode preto rivalizava com o doprovocador Salvador Dalí.

Margaret e eu levantámo-nos, e ela fez as apresentações.— Enchanté — disse-me ele.Por causa da sua chique clientela, os jornais da sociedade

chamavam a Monsieur o Heir Dresser [11]. Ele não conferenciavacom as clientes sobre o que elas queriam. Sabia simplesmente oque tinha de ser feito. Eu oferecia a Margaret dias entediantes atratar de livros; ela oferecia-me um encontro com o mais procuradocabeleireiro de Paris.

Margaret obrigou-me a experimentar o vestido preto para a criadalhe poder fazer a bainha, e depois sentou-me no seu toucador artdéco.

— O Paul é um bom rapaz — comentou ela quando Monsieur Zcomeçou a pentear-me o cabelo.

— Achas que eu e ele temos o suficiente em comum? Ele épolícia e eu sou… bem, sou eu.

— O Lawrence e os seus camaradas em Cambridge sabiamrecitar sonetos. Não significa que soubessem o que quer que fossesobre o amor. O Paul claramente gosta de ti, e isso é maisimportante do que o seu emprego ou os livros que lê.

Devia ter-lhe dito que estava agradecida pelas suas palavras deconfiança, mas Monsieur Z estava a massajar-me o couro cabeludo,e eu cedera ao prazer. Não percebera quanto me sentia ansiosa —a respeito dos meus sentimentos nascentes pelo Paul, a dolorosadistância entre mim e o Rémy, o meu pai a negligenciar-nos porcausa da amante — até a tensão se desfazer. Quando a maman mecortava o cabelo, a sua escova repuxava-me os nós. A de MonsieurZ deslizava pelas minhas madeixas como uma faca em manteiga.

Era a primeira vez que o meu cabelo era tratado por umprofissional, e eu estava fascinada pela imagem de Monsieur aenrolar madeixas em volta do ferro quente para criar um mar deondas.

Quando ele terminou com um floreado das mãos e um resolutovoilà!, a Margaret proclamou:

— Igual à Bette Davis. Darias uma fabulosa femme fatale.Enquanto Monsieur Z prendia o cabelo da Margaret num

elaborado apanhado, ela perguntou:— Achas que Miss Reeder tem namorado?— O embaixador acompanhou-a à gala da Biblioteca.— Dizem que o Bill Bullitt é um bom negociador, mas também que

é um mulherengo. Conheço um cônsul norueguês perfeito para ela.Vou aconselhá-lo a tornar-se sócio.

— Ele vai ter de ir para a fila.Quando Monsieur Z terminou de pentear o cabelo da Margaret,

ela não se olhou ao espelho; olhou para mim.— O que achas?— Maravilhosa — disse de todo o coração. — Por dentro e por

fora.Ela corou, e perguntei-me há quanto tempo não seria elogiada.— O Lawrence vai apaixonar-se por ti outra vez — disse.— Dificilmente… é muito ocupado.— Demasiado ocupado para te dizer que és linda?— Nem toda a gente me vê da mesma maneira que tu. — Ela

levantou-se sem olhar para o espelho.Envergou o vestido verde sem alças e passou-me o vestido com a

bainha feita. A seda deslizou pela minha pele de maneira muitodiferente da lã áspera que eu usava no Inverno e do rígido linho noVerão. Ela apertou-me o fecho e, por um instante, quando admirei omeu reflexo, fiquei sem respirar. Os meus vestidos caíam-me sobreo tronco como uma toalha de mesa. Este vestido funcionava,cingindo-me a cintura, erguendo um busto que eu nem sabia quepossuía. Embora me dissesse que o corpete estava apertado, eusabia que a fria sensação a comprimir-me as costelas era inveja.Margaret tinha tanto, e eu tão pouco.

— É a primeira vez que me divirto a preparar-me para uma festaem Paris — disse ela. — Espero que venhas mais vezes.

Vestidos e visitas de cabeleireiros — podia habituar-me ao luxo. Oseu convite para regressar dissolveu a espiral de inveja.

Quando flutuámos pelo corredor para nos juntarmos a Lawrencena sua saleta, a seda do meu vestido sussurrava um sensual sim,

sim, sim, enquanto me acariciava as pernas. Só queria que o Paulme pudesse ver.

Lawrence estava sentado numa poltrona, meio escondido peloHerald. Ao meu lado, a Margaret pigarreou. Ele pousou o jornal.Escuras pestanas rodeavam-lhe os olhos turquesa. Mon Dieu, erafabuloso com o seu smoking!

— Estão deslumbrantes! — Ele levantou-se e beijou-me a mão.Esperei que beijasse a Margaret, mas ele manteve-se concentradoem mim, a minha mão ainda na dele. — Se eu não fosse casado…— Agitou as sobrancelhas, e soltei um risinho, inteiramenteencantada.

— Conhece, por acaso, Mr. Pryce-Jones? — perguntei, querendomostrar que também conhecia alguém em importantes círculosdiplomáticos.

— Esse homem é uma lenda! Escreveu o protocolo das relaçõesfranco-britânicas, e não perdeu um debate desde 1926. Como oconhece?

— É um dos nossos habitués — disse a Margaretorgulhosamente.

Lawrence manteve o olhar em mim.— É muito simpático da sua parte deixá-la brincar às

bibliotecárias.Ao meu lado, a Margaret contraiu-se. Fez-me pensar numa frase

de De Olhos Pousados em Deus: Depois ela engomou e passou aferro o rosto, moldando-o naquilo que as pessoas queriam ver…

— Ela não «brinca» a nada — repliquei, arrancando a mão dadele e colocando-a à volta da cintura da mulher. — A Margaret éextremamente competente.

Havia uma energia peculiar no ar. Ele passara de encantador acondescendente; ela ficara pétrea. Lembrei-me do conselho damaman à prima Clotilde: faz com que o namoro dure o máximo detempo possível, porque quando casares tudo muda. Seria a isto quemaman se referia?

— Estás muito elegante. — Margaret disse a frase como se fossea deixa de uma estafada peça de teatro que já não desejavarepresentar.

— Tu também — disse ele distraidamente, enquanto consultava orelógio de bolso. — Vamos? O chauffeur está à espera.

Na residência do embaixador britânico, sob a brilhante luz doscandeeiros, mulheres cheias de jóias resplandeciam. Tal comoLawrence, cada cavalheiro vestia smoking preto. Era o tipo de festacom que eu sonhava. Estava a morrer por ouvir falar dos lugaresque os outros convidados tinham visto, os livros que tinham lido.

Abandonando-nos, Lawrence dirigiu-se para uma morena peituda.— Se não fosse casado e feliz, fugia consigo.— Querido, não deixe que isso o impeça! — Ela acariciou-lhe o

peito como se a Margaret não estivesse presente.É um círculo vicioso. A observação da Margaret sobre os círculos

diplomáticos fazia finalmente sentido. Olhei carrancuda paraLawrence, furiosa por vê-lo humilhar a Margaret daquela maneira,furiosa comigo por ter sido levada pela sua lisonja genérica.

— Não o deixes estragar-te a noite. — A Margaret acenou a umasólida matrona. — Ali está a mulher do cônsul. Ela encarrega-se dealmas perdidas. Mrs. Davies — chamou —, que bom vê-la.Obrigada pelo seu conselho para visitar a Biblioteca.

— Está com melhor aspecto — replicou a mulher calorosamente.

— Já conhece a minha nova e querida amiga?— Uma amiga pode fazer toda a diferença — disse Mrs. Davies.

— Sim, já nos cruzámos nas conferências da professora Cohen.Eu não sabia que Mrs. Davies era uma não-oficial mas vital

delegada do corpo diplomático, e observei-a enquanto ela recebiacada recém-chegado pessoalmente.

— Que bonita que está — disse ela a uma pálida senhora, quedesabrochou sob o elogio. — Como se está a dar por aqui? —perguntou a uma solitária italienne que olhava em voltanervosamente. — França pode ser o sonho de uma mulher, mas arealidade exige alguma habituação.

— Não podemos deixar que Hitler avance pela Europa destamaneira! — disse Mr. Pryce-Jones, e a sua opinião ecoou pelo salãode baile como ecoava pela Biblioteca quando ele discutia comMonsieur de Nerciat. — Temos de nos unir e lutar.

— Ele não percebe que é uma festa? — comentei.— Só fala de guerra, ultimamente — replicou a Margaret.— Viram o Otelo, na semana passada? — perguntou Mrs. Davies.Vários convidados falaram ao mesmo tempo, aliviados por

discutirem outra coisa que não a guerra.— É tão estranho ver Shakespeare em francês!— Très bizarre!— Pobre Desdémona.— O exército francês está mais forte do que nunca, é o que diz o

général Weygand.— O général Weiss diz que a Força Aérea francesa é a melhor da

Europa. Não temos nada com que nos preocupar!— Precisamos de formar alianças — insistiu Lawrence. — A Itália

já foi nossa aliada, mas Mussolini assinou um tratado com Hitler.— Alguém sabe o nome de uma modista bem conceituada?— Tem de ir a Chez Genevieve. A Emma Jane Kirby foi; o vestido

dela é sumptuoso!— Aquela Emma, nem dá para acreditar, a namoriscar com um

homem com o triplo da sua idade — sussurrou a Margaret, a olhar abeldade loura. — Deve ser terrivelmente rico.

— O velho bode está a esfregar as mãos de contente — repliquei.— O jovem Lawrence tem razão! — exclamava Mr. Pryce-Jones.

— Precisamos de observar o que se está a passar à nossa volta.— Disparate. Temos é de apaziguar Hitler — respondeu o

embaixador.— Velho tolo! — sussurrou a Margaret.— Tolo incompetente! — rosnou Lawrence.— Champanhe! — clamou a mulher do cônsul. — Mais

champanhe.Fantastique! A última vez que bebera um copo tinha sido no Ano

Novo. Rolhas a saltar — o sinal da celebração, o meu som preferidono mundo inteiro — anunciaram empregados que rodopiaram pelasala, a oferecer flutes. Tudo me era estendido numa bandeja deprata. Bolhinhas cintilavam no meu copo, regatos geladosdeslizavam pela minha garganta. Eu estava tão deslumbrada queme esqueci do comportamento grosseiro de Lawrence, esqueci asdiscussões dos diplomatas. Observei as frescas paisagens deTurner nas paredes, provei o caviar oferecido por homens de luvasbrancas. Margaret tinha tudo isto, o tempo todo; graças a ela, eutinha uma noite, e pretendia desfrutar dela. Uma salva de foguetesexplodiu no céu. Querendo ver, levei-a para fora, onde nos juntámos

a outros convivas no relvado. O cheiro a rosas rodeava-nos. Altosmuros de pedra escondiam-nos da cidade. A majestosa residência— de janelas iluminadas — cintilava. No céu, salpicos de luzexplodiam, e fui imbuída por uma nebulosa felicidade, esquecendotodas as preocupações com a guerra, o Rémy, o papa e o Paul.

CAPÍTULO 10

Odile

Paul ia à Biblioteca com tanta frequência que Miss Reedercomeçou a referir-se-lhe como «o nosso sócio mais fiel». Nas tardesem que estava de patrulha, estacionava a sua bicicleta no pátio eajudava-me com tarefas como rasgar o papel grosso que protegiarevistas como a Life e a Time durante a travessia do oceano.Infelizmente, sob a intrometida vigilância de Madame Simon, roubarum beijo era impossível.

Em casa não era melhor. Sentados a trinta e dois centímetros dedistância, o Paul e eu deixávamos o chá intocado.

— Achas que a chuva vai parar? — perguntava eu, consciente deque a maman nos ouvia à esquina da sala.

— As nuvens estão a abrir.Ele ia partir para a Bretanha no dia seguinte e, no entanto, ali

estávamos nós, a conversar sobre chuva como desconhecidosnuma paragem de autocarro.

— Vamos dar um passeio — pediu o Paul. — Quero levar-te aomeu lugar preferido em Paris.

— Não sei se ela deva ir — disse a minha mãe do corredor.— Maman, por favor. — A ansiedade tornava o meu tom

entrecortado. — Ele vai estar fora durante quase todo o mês deAgosto.

— Então é só desta vez. Mas não te demores muito.A mão dele aqueceu-me o fundo das costas quando me conduziu

ao longo da avenida, por entre a sinfonia de carros a apitar,passando por uma lojista a fumar um cigarro à porta, até chegarmosà Gare du Nord. Debaixo do seu imenso telhado de vidro,carregadores em fato-macaco azul arrastavam bagagens. Viajantesgritavam e empurravam enquanto abriam caminho para os seuscomboios.

Paul apontou para a plataforma, onde um jovem de óculos beijavauma mulher que acabara de sair de uma carruagem.

— Venho aqui para estar na presença de amor. Deves achar-melouco, a espiar as pessoas…

Abanei a cabeça. Era por isso que eu lia — para obter umvislumbre de outras vidas.

Um músico com um trompete passou rapidamente por nós. Umgrupo de escoteiros olhava fixamente para uma locomotiva. Umamãe soltou as mãos dos seus filhinhos pequenos, que correrampara um homem de gabardina. Ele pegou-lhes ao colo e fê-los girar.

— Que querido — observei.Paul estava hipnotizado com aquela imagem.— O que foi? — perguntei.— Nada.— Nada?Ele ficou a observar enquanto a família saía da estação.— Eu e os meus pais vivemos a um quarteirão daqui.— Sim?

— Até o meu pai partir… tinha eu 7 anos. A minha mãe disse-meque ele tinha ido fazer uma longa viagem de comboio. Convencidode que ele ia regressar, eu vinha para aqui. — Virou-se para mim. —Continuo a vir.

Puxei-o para mim, e ele enterrou o rosto no meu cabelo. Senti oseu coração trémulo bater contra o meu. Talvez não fosse perigosoconfiar.

— Nunca tinha dito a ninguém — confessou ele.A caminho de casa, nenhum de nós disse uma palavra. Subimos

muito devagar as escadas para o patamar.— Podes ficar para jantar? — perguntei.Ele beijou-me a têmpora, a face, os lábios.— E fingir que não estou infeliz por ter de partir amanhã? Não

consigo.Enquanto o via desaparecer pelas escadas abaixo, a porta abriu-

se atrás de mim.— Bem me parecia ter ouvido alguém — disse o Rémy. —

Estavas a falar sozinha?— Com o Paul. — Queria dizer ao Rémy que num momento me

sentia alegre e tão leve como uma libélula, enquanto noutros, comoagora, separada do Paul, me sentia horrivelmente. — Não consigoparar de pensar nele. — Tentava manter o Paul nas margens daminha mente, mas ele instalara-se a meio da página, no centro daminha história.

— Estás apaixonada — disse o Rémy. — Fico contente por ti.— Espero que estejas tão feliz como eu.— Era isso que te vinha dizer. Estou apaixonado pela Bitsi.Eram perfeitos um para o outro, e sentia-me orgulhosa por ter

desempenhado um pequeno papel na sua união.— Tentei apresentar-te Monsieur de Nerciat e Mr. Pryce-Jones,

mas talvez a Bitsi tenha sido a melhor escolha.— Talvez?— Já lhe disseste?— Queria dizer-te primeiro.Partilhávamos tanto. Ele era o primeiro leitor do meu boletim, e eu

era a única pessoa a quem ele permitia editar os seus artigos para arevista jurídica. Enquanto tomávamos chá na cozinha,conversávamos até de madrugada. Sabíamos os segredos um dooutro. Rémy era o meu refúgio.

Testei a Margaret a respeito da lição do dia passado, quandoterminámos o trabalho do dia.

— Os verbos dividem-se em três famílias. Amar, falar e comerpertencem a qual?

— Aimer, parler e manger pertencem à família -er — disse ela. —Famílias… que maneira encantadora de ver as palavras.

— Não te esqueças do francês todo quando estiveres emLondres.

— Vão ser só duas semanas.Seguimos para o pátio, onde a bicicleta do Rémy aguardava

encostada a uma parede.— Merci por teres sugerido que me oferecesse como voluntária —

disse ela. — Finalmente, sinto-me a fazer parte de alguma coisa.— Merci à toi! Sem ti, ainda estaria a encher caixotes. Ou

especada na frente da esquadra.

— Disparate! — As faces dela afoguearam-se, e pareciasatisfeita.

— Não sei o que faria sem ti. — Havia mais que lhe poderia terdito, mas, na minha família, não falávamos dos nossos sentimentos.Sem ti, nunca teria arranjado coragem para procurar o Paul.Ensinar-te recordou-me a beleza da língua francesa, uma beleza emque já nem reparava. As tarefas mais aborrecidas — enviar livros,reparar rasgões em revistas, levar jornais velhos para a sala dearquivo — passam mais depressa contigo ao meu lado.

Gostaria que, quando ela disse, «Minha querida amiga, tambémnão sei o que faria sem ti», nos tivéssemos beijado em cada face.Em vez disso, com a cabeça no jantar, instalei-me no assento dabicicleta do Rémy.

— Sabes andar de bicicleta? — perguntou ela.— Tu não sabes? — Pus o pé no pedal. — Posso ensinar-te!— Não vou ser capaz, vou cair e fazer figura de parva.— E que te interessa a ti que meia dúzia de parisienses te veja a

esfolar o joelho? Não é a melhor coisa de se estar no estrangeiro?Podes fazer o que quiseres e nunca ninguém na tua terra vai ficar asaber.

Firmei a bicicleta. Margaret passou a perna sobre a estrutura. Abicicleta oscilou quando começou a andar, e ela agarrou-se aoguiador com uma mão e ao meu braço com a outra.

— Não consigo.— Já estás a andar. Segura-te ao guiador.— Acho que isto não é uma boa ideia.— Estás a aprender francês e a viver num país estrangeiro…

andar de bicicleta não é nada comparado com isso — repliquei,dando-lhe um ligeiro impulso. — Bon vent!

Enquanto a Margaret ganhava velocidade, a sua saia esvoaçouacima dos joelhos.

— Se eu cair, levanto-me logo.— É assim mesmo!Ela pedalava lentamente.— Tenho medo.— Confia em mim! — Eu ia correndo ao seu lado. — Não deixo

que te aconteça nada.— Confio em ti — gritou ela. A excitação superava a incerteza na

sua voz.Os meus braços estavam estendidos, prontos para a agarrar se

ela caísse.

Paris era quente e húmida em Agosto, por isso muitos leitores iamapanhar banhos de sol em Nice e Biarritz ou visitar as famílias emNova Iorque e Cincinnati. À minha secretária, Miss Reeder e eugozávamos um raro momento de calma. Ela parecia animada, como seu vestido às pintas. Tinha o cabelo apanhado e a caneta deprata na mão, pronta para compor um discurso ou escrever umagradecimento.

A maior parte das pessoas na minha vida — desde o meu pai e asminhas professoras aos funcionários e empregados de mesa —dizia «não». Gostava de ter aulas de ballet. «Não, não tens corpopara isso.» Gostava de fazer um curso de pintura. «Não, não tens aexperiência necessária.» Queria um copo de vinho tinto. «Não, o

branco combina melhor com o prato que pediste.» Miss Reeder eradiferente. Quando lhe perguntara se podia fazer umas alterações nasala dos periódicos, foi surpreendente ouvi-la dizer «Sim».

Havia tanto que eu morria por lhe perguntar. O que pensavam ospais dela da sua mudança para ali? Onde tinha arranjado coragempara se mudar para um país estrangeiro? Alguma vez serei assimtão corajosa? Embora conseguisse ouvir a voz da maman a dizerNão sejas coscuvilheira. Mete-te na tua vida!, as perguntas ficarama borbulhar dentro de mim, até uma, finalmente, transbordar parafora:

— Porque veio para França?— Por amor. — Os seus olhos cor de avelã cintilaram.Aproximei-me mais.— A sério?— Apaixonei-me por Madame de Staël.— A escritora?— No seu tempo, dizia-se que havia três grandes poderes na

Europa: a Grã-Bretanha, a Rússia e Madame de Staël. Ela insultouNapoleão quando disse que «a linguagem dele não é o discurso». Areacção de Napoleão foi banir-lhe o livro e bani-la do país.

— Ela não tinha medo de ninguém.— Acredita que eu entrei às escondidas na mansão onde ela

viveu? Só tencionava entrar no pátio, mas quando um criado medisse bonjour, como se a minha presença fosse normal, continuei esubi as escadas, passei a mão pelo corrimão, olhei as paredes ondeem tempos estavam os seus retratos de família. Isto deve pareceruma tolice.

— Parece amor. Veio mesmo por causa de uma escritora?

— Eu já estava em Espanha para organizar o espaço daBiblioteca do Congresso na Feira Ibérica. Havia uma vaga deemprego aqui, e aproveitei. E a Odile? Gostava de viajar? Semprequis ser bibliotecária?

— Sempre quis trabalhar aqui. Na minha carta, disse-lhe quequeria trabalhar na Biblioteca por causa das recordações de cá vircom a minha tia. A Miss Reeder faz-me lembrar dela, na verdade…não só por causa do seu chignon tão chique, mas pela maneiracomo ambas tratam os outros, com bondade, e a maneira comopartilha o seu amor pelos livros.

A condessa aproximou-se, com pastas debaixo dos braços. O seucabelo lembrava-me o mar num dia nublado; farrapos brancosenrolados como ondas sobre fortes correntes de cinzento. Os óculosde leitura empoleirados no nariz faziam-na parecer preparada paranos dar um sermão.

— Temos de falar — disse ela a Miss Reeder.— Podemos continuar a nossa conversa mais tarde, se quiser —

disse-me Miss Reeder antes de acompanhar a curadora ao seuescritório.

Enquanto eu endireitava os jornais, o Boris ia-me lendo o Figaro.«Monsieur Neville Chamberlain votou a favor do adiamento doParlamento de quatro de Agosto para três de Outubro, a não serque eventos extraordinários exijam a sua convocatória.»

— Eu quero ir de férias — disse, desejando poder estar com oPaul.

— Faz-te eleger para o Parlamento — gracejou o Boris.Pelo menos, desta vez, podia ansiar pelo almoço de domingo.

Rémy tinha convidado a Bitsi, o que equivalia a um anúncio denoivado. Só temia que o papa estragasse tudo, humilhando-o.

Reuni os jornais da semana e levei-os para o arquivo no andar decima. Ao passar pelo gabinete de Miss Reeder, a porta estavaentreaberta, por isso espreitei para dentro.

A expressão da directora era sombria.— Recebi uma carta da Biblioteca da universidade em

Estrasburgo. Monsieur Wickersham diz que ele e a MadameKuhlmann embalaram e evacuaram duzentas e cinquenta caixas delivros.

— A guerra está a chegar. — Havia um tom estranho na voz dacondessa.

Estrasburgo ficava perigosamente perto da Alemanha. Osbibliotecários tinham levado os livros para um lugar seguro quandoos políticos não tinham dito nada sobre evacuar pessoas?

— As caixas foram enviadas para a região de Puy-de-Dôme —continuou Miss Reeder. — Também precisamos de fazer planos.

Seria o sudoeste mais seguro do que Estrasburgo? Mais segurodo que Paris?

— Vou levar as nossas melhores coisas para a minha casa decampo. Os papéis de Seeger, as primeiras edições. Têm de ficar emsegurança.

— Vamos abastecer-nos de bens enlatados, água engarrafada ecarvão. Areia para apagar lareiras.

A condessa suspirou.— E máscaras de gás, se esta guerra for como a última. Dez

milhões de mortos e igual número de feridos e mutilados. Não possoacreditar que isto está a acontecer outra vez.

Mortos… feridos… mutilados… Eu evitava falar da guerra;mudava de assunto quando o Rémy a mencionava, fugia para a salainfantil quando Mr. Pryce-Jones bradava acerca dela. Mas agoraparecia que a colecção da Biblioteca podia estar em perigo. Nóspodíamos estar em perigo. Tinha de encarar o facto de que a guerravinha a caminho.

CAPÍTULO 11

Odile

Às 11h55 do dia do almoço de noivado — les fiançailles — doRémy e da Bitsi, eu e os meus pais estávamos sentados no divã. Euusava uma camisa de seda rosa que a Margaret me tinhaemprestado para o feliz evento. As faces da maman, maquilhadascom rouge, lembravam exuberantes plumas, e ela pusera o seualfinete de peito, que apenas usava nas ocasiões mais especiais. Opapa tinha o fato demasiado apertado, e não parava de repuxar agravata. A campainha tocou e o Rémy, vestido de blazer, apressou-se a ir abrir. Como sempre, ela trazia a trança presa numa forma decoroa, mas usava um vestido verde-lima, em vez do castanho detodos os dias. A Bitsi e o Rémy olharam um para o outro. Senti-mesem fôlego, algo semelhante a uma dor, e desejei que o Paulestivesse comigo.

Quando a Bitsi finalmente reparou em nós ali parados, não meolhou nos olhos. Seria timidez ou estaria zangada por algumarazão? Por vezes eu deixava a minha chávena de chá no lavatório,e ela já me recordara mais do que uma vez que ninguém querialavar a minha louça.

A maman fez-lhe um enorme sorriso.

— A Odile e o Rémy falam-me muito bem de si.O papa levantou-se.— Já sei que também é uma dessas raparigas que trabalham.— Eu ajudo a minha família, senhor. — A Bitsi olhou-o com

firmeza.— Muito bem — disse ele.A maman respirou fundo, trémula. Talvez o papa se comportasse

adequadamente.— Trabalha com crianças — disse ele. — Isso deve significar que

gostava de ter as suas.Bitsi corou, e o Rémy pôs o braço à sua volta num gesto protector.— Ignora o commissaire — disse.Fiz uma careta ao papa. Nunca conseguia impedir-se de dizer

tudo o que lhe passava pela cabeça.— Sabe tricotar? — perguntou a maman, afastando a conversa

para um terreno mais decente.— Depois de ler, é o meu passatempo preferido. E também gosto

de pescar.O papa fez um gesto na direcção da sala de estar, onde preparara

os decantadores para o aperitivo, mas a maman apontou para asala de jantar. Não podia impedir o papa de importunar a Bitsi comperguntas como importunaria qualquer novo recruta, mas podiatentar reduzir o interrogatório.

O papa presidiu à cabeceira da mesa. Eu estava ao lado damaman, o feliz casal na nossa frente, com a Bitsi ao lado do papa.Quando a criada trouxe a carne assada com batatas, o papa serviua Bitsi, a maman e a mim, depois o Rémy e o seu próprio prato.Enquanto comíamos, a Bitsi continuou a evitar o meu olhar. Eu já

sentia a minha mãe a revirar mentalmente a sua caixa de jóias embusca do anel de opala da avó para o Rémy oferecer à noiva.Haveria uma boda, uma lua-de-mel. Perguntei-me se os recém-casados viveriam connosco, pelo menos ao início.

Rémy olhou para a Bitsi, que lhe apertou a mão. Com ela ao seulado, o meu irmão era mais confiante.

— Tenho um anúncio para fazer — disse.E pronto. Estavam noivos. Bitsi tinha dificuldade em olhar-me nos

olhos porque estivera a guardar um segredo. Bem, não era segredo!Ergui o copo de vinho para dar os parabéns ao casal.

— Sim? — O papa sorriu a Bitsi.— Alistei-me no exército — disse o Rémy.A maman levou a mão à boca. O papa ficou de queixo caído. O

meu braço, parado no ar. O frio ar de desafio, a determinação notom do Rémy magoaram-me. Era como se ele tivesse esvaziadouma caixa de balas sobre a mesa, dentro dos nossos copos deágua, no que restava do molho. Não percebi que estava a tremeraté reparar no vinho a agitar-se no copo. Apenas a Bitsi continuavaserena. Rémy falara-lhe dos seus planos. Ela claramente aprovava.Talvez até o tivesse encorajado.

— O quê? — disse a maman. — Mas porquê?Não consigo ficar aqui parado em casa, tinha dito o Rémy.

Alguém tem de fazer alguma coisa.— Quero fazer a diferença.— Faz alguma coisa aqui. — A maman indicou o pai com um

gesto. — Vai para a polícia.Consegui ler o pensamento do Rémy: A última coisa que eu quero

é ser como ele.

O papa afastou-se da mesa. A cadeira raspou no soalho e caiu.Esperava vê-lo atacar com todo o arsenal que tinha à disposição.

Troça: Como é podes ser soldado se mal te consegues pôr direito?Desprezo: Se te recusas a ajudar-me a cortar uma árvore de Natal,duvido que consigas sentir-te um homem. Culpa: O que é que issovai fazer à tua pobre maman? Machismo: Achas que o governoaceita fracotes como tu? Só querem homens a sério como eu. Fúria:Eu sou o chefe desta família. Como te atreves a alistar-te sem meinformares?!

Sem uma palavra, saiu da sala. Um segundo depois, a porta darua bateu. Eu e a maman trocámos um olhar estupefacto. A Bitsisussurrou qualquer coisa ao Rémy. Ele olhou para mim.

Então?, ouvi-o dizer.Esperava que lhe desse a minha bênção, mas a única coisa que

consegui verbalizar foi:— Não…Havia mágoa nos seus olhos. Ele acreditara no meu apoio.Eu não queria que houvesse distância entre nós, naquele

momento.— Não sabes como vou sentir a tua falta? — disse-lhe, com

forçada vivacidade. — Vamos ter de aproveitar o máximo de tempojuntos antes de te ires embora.

— Parto dentro de três dias — disse ele.— O quê?— O papa tem contactos em todo o lado, e não quero dar-lhe

tempo para encontrar alguém que me ponha fora do exército antessequer de eu conseguir chegar à base.

A maman levantou-se e endireitou a cadeira do papa.

CAPÍTULO 12

Lily

FROID, MONTANA, MARÇO DE 1984

O funeral da minha mãe foi no primeiro dia da Primavera. Nafrente da igreja, rosas vermelhas sufocavam o seu caixão. Era difícilacreditar que a minha mãe estava ali e não em casa, sentada nobanco da janela. Eu e o meu pai estávamos encolhidos no banco dafrente, com Odile e Mary Louise ao nosso lado. O meu lábio inferiornão parava de tremer, por isso cobri a boca com a mão. Odileagarrou a outra. Eu não queria que me largasse.

O meu pai olhava para todo o lado excepto para o caixão — paraa desvanecida pintura de Jesus, para as janelas de vitrais que nãodeixavam ver o que se passava lá fora. Parecia alguém que tinhaapanhado o comboio errado e acabara num sítio completamenteinesperado. Atrás de nós, vi o Dr. Stanchfield, com a sua maleta aolado como uma esposa fiel. O Robby, entre os seus pais. O pai daMary Louise com rapé enfiado na bochecha. Sue Bob a praguejarem surdina. Até a Angel tinha vindo. Tal como todos os professoresque eu já tinha tido.

Com vozes trémulas, mulheres liam a Bíblia. Depois, uma após a

outra, as amigas da mãe falaram. Sue Bob disse que ela tinha umenorme sentido de humor. Kay disse que a mãe era o melhor ombropara se chorar. Ranho escorria-me do nariz, cuspo acumulava-se naminha boca, o sofrimento agitava-me as entranhas. Entãoengasguei-me e comecei a tossir. A Mary Louise bateu-me nascostas. Com força. A dor soube-me bem.

O órgão estridente assinalou o final do serviço; os seus gemidossombrios fizeram-nos sair. A congregação atravessou a estradapara o salão. Normalmente, os homens queixavam-se dos impostos;as senhoras queixavam-se uma das outras; e, livres dos grilhões damissa, as crianças gritavam e corriam. Desta vez, caminhámos emsilêncio. A Angel enfiou uma cassete no meu bolso. O patrão domeu pai pôs um braço em volta da esposa corpulenta, como quereceando que também ela lhe fosse levada. O Robby aproximou-se.Usava umas Wrangler pretas, em vez das calças de ganga azuis docostume. Estendeu-me um lenço. Aceitei-o. Com os punhosenfiados nos bolsos, regressou para junto dos pais, que lhe fizeramum aceno de aprovação. Supus que o estavam a ensinar a ser umhomem.

Uma mesa longa estava carregada de comida. Uma das senhorassentou-me ao lado do meu pai; outra preparou-nos os pratos. Fatiasde carne assada, puré de batata, molho. Não fora ele a organizarnada daquilo. As senhoras faziam o que era necessário, serena eeficientemente. Cozinhavam, serviam, limpavam. Atrás do bufete ouna cozinha, esforçavam-se ao máximo para que o pior dia dasnossas vidas passasse sem esforço.

À nossa volta, as pessoas conversavam, tentando comportar-secomo se a vida continuasse.

— Uma linda cerimónia.— Tão nova…— O que vai ele fazer com a Lily?A seguir, o padre Maloney, o pai e eu seguimos o carro fúnebre

até ao cemitério. Ali, o padre rezou, e fiquei contente por eu e o meupai termos aquele momento a sós com a mãe. A alguns metros dedistância, um tordo-americano debicava a erva. Quando o paireparou, pôs uma mão no meu ombro e as minhas lágrimas caíram.

Acordámos às escuras. Era sempre a mãe que abria as cortinas,por isso eu acordava com um beijo na testa e a luz do sol a entrar.Desde o funeral, o meu pai engolia o café e eu comia os cereaisnuma névoa sombria. Não nos ocorria, simplesmente, deixar a luzentrar.

Antigamente, a nossa casa parecia cheia e ruidosa. Jantares comamigos. A minha mãe e as amigas a rirem nos sábados à tarde. Asua presença quando eu voltava da escola. Agora chegava a umacasa silenciosa. Quando ia para a cama, ninguém me dizia «Bonssonhos!». Na escola, na frente dos cacifos, os miúdos afastavam-sequando me viam, com medo de que lhes acontecesse o que meaconteceu a mim. Os professores nunca me perguntavam pelostrabalhos de casa. Ao domingo, quando eu e o meu pai nossentávamos no nosso banco da igreja, Deus não dizia uma palavra.

Todos os dias, eu chegava a casa com tanta coisa para contar àminha mãe. Sentia falta das suas perguntas sobre o meu dia, sentiaa falta dela. Passava o dedo pela borda da sua chávena, guardadano armário da cozinha. Com medo de partir a sua melhor coisa, eu

nunca a usava. Queria poder voltar àquele último momento. Queriadizer: Foste a melhor mamã do mundo. Preciso de ti. Precisamos deti. Adorava quando íamos ver tordos e ficávamos à espera doscolibris. Quem me dera ter mais uma manhã. Mais um abraço. Maisuma oportunidade de te dizer que te amo.

Passava os fins-de-semana estendida em pufes na casa da MaryLouise. Como de costume, queixávamo-nos das únicas coisas queconhecíamos, escola e família.

— O meu pai mal consegue abrir latas de sopa — dizia eu, arevirar os olhos.

— Nem vocês conseguem, parvas — disse a Angel enquantoenfiava o seu casaco de cetim.

— Se és um génio assim tão grande, porque é que vais chumbara Matemática? — perguntou a Mary Louise.

— Ao menos eu tenho vida, ao contrário de vocês as duas. — Efoi-se embora, a bater com os pés.

Eu preferia as discussões das duas ao silêncio de minha casa.Apenas a mãe da Mary Louise me tratava como sempre. Era umestranho consolo ouvir alguém dizer-me para parar de serrespondona.

Toda a comunidade se revezava para nos alimentar, a mim e aomeu pai. Ele comprou uma arca frigorífica para guardar osempadões. Ao jantar, mal falávamos — os pivôs dos noticiários, aúnica companhia constante, falavam por nós. As nossas conversaseram forçadas, e as pausas duravam tanto quanto os intervalospublicitários.

Quando a escola terminou para as férias de Verão, a Angelapresentou-nos Bo e Hope, dos Days of Our Lives. A sua história deamor de telenovela deixava-me esquecer a minha perda duranteuma hora, enquanto eu absorvia aquelas lições: amor é desejo,amor é sofrimento, amor é sexo. Imaginava-me com o Robby, osnossos corpos e almas entrelaçados.

A minha febre de telenovela durou um mês. Quando o termómetroatingiu os 38 graus, o meu pai saiu mais cedo do trabalho e foibuscar-nos à casa da Mary Louise. Olhou para a televisão, onde osamantes estavam unidos no seu beijo de língua.

As sobrancelhas do meu pai arquearam-se, depois franziram-se.— Vamos comer um gelado — disse. Tencionara levar-nos às

duas, mas agora estava zangado, culpando-a por uma escolha queeu fizera. Ela percebeu-o e ficou em casa. Eu entrei na carrinha efiquei amuada durante todo o caminho para o Tastee Freez. Obatido de morango não conseguiu arrefecer-me os ânimos.

— Porque é que não posso ver o que quero?— A tua mãe não ia gostar — respondeu ele, a melhor forma de

me silenciar.Quando chegámos a casa, o meu pai marchou para a casa de

Odile. Encostada ao carro, ouvi-o queixar-se dos perigos datelevisão e da permissividade dos pais da Mary Louise.Aproximando-se mais de Odile no alpendre, abriu a carteira eestendeu umas notas. Pensava que toda a gente estava interessadaem dinheiro como ele. Ela afastou-lhe as mãos.

— Preciso que alguém olhe por ela — disse ele, acrescentando—, sem telenovelas.

— Eu não preciso de uma ama! — gritei.

Na manhã seguinte, dei por mim onde sempre quisera estar, nacasa de Odile, mas a razão por que lá estava enchia-me deressentimento. Ela compreendeu-o e manteve-se ocupada no seujardim. Ao almoço, tentei manter-me amuada, mas as sanduíchesde queijo e fiambre que ela serviu quebraram as minhas reservas.Comemos os croque monsieurs com garfos e facas, uma vez quehavia uma camada de queijo suíço a borbulhar por cima. Tudo emOdile era elegante, até a forma como ela comia a sua sanduíche.Em Froid, destacava-se como preto no branco, mas talvez em Parisninguém reparasse nela. Eu ansiava por ver o seu mundo. Algumavez lá voltaria? Poderia levar-me consigo?

Enquanto lavava a loiça, ela pediu-me que a ensinasse a fazer aminha sobremesa preferida — bolachas de pepitas de chocolate.Surpreendentemente, não sabia coisas básicas, como o facto de terde se lamber a batedeira a seguir. É todo o objectivo de se fazerbolos.

A minha mãe deixava-me comer tantas bolachas quanto queria,mas Odile deixou-me comer duas. Quando tentei tirar mais, elareplicou:

— Duas alimentam-te o corpo, o resto é para a alma. Temos deprocurar outra forma de te curar o coração. — Passou-me um livro.— Literatura, não doces.

Gemi e enterrei-me no seu sofá de brocado. Ela sentou-se naquiloa que chamava a sua poltrona «Luís XV». As pernas de madeiraesculpida pareciam caras. Talvez ela tivesse sido rica, e sidoobrigada pela governanta, quando tinha a minha idade, a andar àsvoltas pelo castelo com a bolorenta Bíblia da família em cima dacabeça. Eu vivera ao lado de Odile a minha vida toda, mas não

sabia quase nada sobre a vida dela. Olhei para as gavetas doarmário e perguntei-me o que estaria lá dentro. Talvez pudesse daruma espreitadela…

— Lê — ordenou ela.O Principezinho começava com um rapaz que fazia uns desenhos

muito simples. Quando os mostrava aos adultos, eles nãocompreendiam. Eu sabia como ele se sentia; ninguém compreendiaas saudades que eu tinha da minha mãe. «Jesus precisa dela nocéu, querida», diziam as senhoras, como se eu não precisasse delaaqui em baixo. Continuei a ler. «É tão misterioso, o país daslágrimas.» [12] As palavras de um aviador morto confortaram-memais do que frases batidas das pessoas que eu conhecia. «Só se vêbem com o coração; o essencial é invisível para os olhos.» O livrotransportou-me para outro mundo, um lugar que me deixavaesquecer.

Odile disse que O Principezinho tinha sido escrito em francês eque eu estava a ler uma tradução. Eu queria ler o original,compreender a história que me tinha compreendido. Queria sereloquente como o Príncipe, elegante como Odile. Disse-lhe quequeria aprender francês.

— Tenho todo o gosto em ensinar-te! — disse ela. Num caderno,escreveu: le mariage, la rose, la bible, la table. Quando lhe pergunteiporque havia um «le» ou «la», ela disse que os nomes franceseseram masculinos ou femininos.

— Hum?— Deixa-me pôr as coisas de outra forma. São… rapazes ou

raparigas.— Em França, as mesas são raparigas?

Ela riu-se, um som bonito, musical.— Mais ou menos isso.La table? Imaginei mesas a usar vestidos. Uma minissaia de

ganga, ou um vestido às flores que roçava o chão. Pareceu-medisparatado, mas depois lembrei-me da minha mãe a pentear ocabelo ao toucador, com os joelhos a roçar a sua camilha de xadrez.A ideia de uma mesa ser uma mulher fazia sentido.

Tinham passado quatro meses desde a morte da minha mãe e,pela primeira vez, não me senti destroçada quando pensei nela.

Aos serões, ficava sozinha: o meu pai fechava-se no escritório. Àminha secretária, eu revia a aula de Francês de cada dia, repetindoas palavras até já não me parecerem estrangeiras. Odile deu-me umdicionário Francês-Inglês — laranja é une orange, mas limão é uncitron. Je voyage en France. Je prefere Robby. Odile est belle. Parisest magnifique. Frases básicas, prazeres simples, uma palavra decada vez, sempre frases no presente, sem tristeza do passado, sempreocupações com le futur. Eu adorava le français, uma ponte parala France, um mundo que apenas Odile e eu conhecíamos, um lugarcom sobremesas de fazer água na boca e jardins secretos, um sítioonde me podia esconder. Não conseguia controlar a dor no meucoração — demasiado densa, demasiado esmagadora —, masconseguia conjugar verbos. Eu começo — je commence; tu acabas— tu finis. Nesta língua secreta da perda, falava da minha mãe:j’aime maman.

No primeiro dia de escola, a Mary Louise e eu estávamos abocejar entre as unidades de cozinha cor de mostarda. A primeiraaula era Economia Doméstica, obrigatória no oitavo ano. Rezei paraque o Robby estivesse na nossa turma, e suspirei de alívio quandoo vi entrar.

A consultar a sua lista, a professora Adams emparelhou osalunos.

— Lily e Robby.Dei uma cotovelada a Mary Louise, sem acreditar na minha sorte.

Dirigi-me lentamente para ele, sem conseguir pensar em nada paradizer. Nem: «Como correu a colheita?» Nem sequer um «olá». Elefez-me um esboço de sorriso. Foi o suficiente.

Quando a professora Adams estendeu um cartão com umareceita, nem eu nem o Robby nos movemos para lhe pegar, por issoela pousou-o na bancada ao lado de frascos de farinha, açúcar esal. Lado a lado, lemos as instruções, e eu sentia o calor do seucorpo. Medi os ingredientes e ele mexeu-os com uma espátulagasta. Deitámos a massa nos moldes com uma colher e depois,como pais orgulhosos, espreitámos para dentro do forno para ver osqueques crescer.

Quando estavam dourados, tirámo-los do forno. Emboraestivessem quentes, o Robby deu uma dentada num. Mastigou duasvezes e disse: «Que horror!»

— Pára de gozar. — Enfiei um pedaço na boca. Sabia a umaesponja bafienta encharcada de sal. Cuspi para o lixo. — Devo tertrocado o sal e o açúcar.

— Não faz mal.— Estás a gozar? — disse eu, praticamente em lágrimas, acima

de tudo por causa do sal, mas também porque não queria quereprovássemos.

— Estás preocupada com a tua média.O Robby devorou um queque, mal mastigando antes de engolir.

Os seus olhos liquefizeram-se, mas depois pegou noutro. Eutambém enfiei um na boca, sufocando com a massa amarela.

A professora Adams elogiou a Tiffany e a Mary Louise pela suaobra-prima, e passou para nós. Pegou no nosso tabuleiro vazio.

— Como é que vos vou avaliar?De cara franzida com o sabor do sal, o Robby e eu encolhemos

os ombros.— Bem, não fiquem aí parados! — disse ela. — Comecem a

limpar.No lavatório, mergulhámos as mãos na água quente com

detergente para lavar o tabuleiro e os utensílios. Uma pequenabolha ergueu-se no ar, e ficámos a vê-la fugir para longe. Nunca metinha sentido tão feliz.

Em Estudos Sociais, a professora Davis irritava-se com o boicotesoviético aos Jogos Olímpicos de Los Angeles.

— Devem ter medo que os seus atletas desertem! Como é quepodemos ganhar a Guerra Fria se eles nem sequer competem? —Mal ouvindo o azedo solilóquio da professora, a Mary Louise e eupassávamos bilhetinhos.

«Estou esfomeada», escreveu ela. «Batatas fritas com queijo parao almoço?»

No meu cacifo, apliquei um pouco do batom da minha amigaantes de atravessarmos a estrada para o Husky House. Abri a portade vidro fumado e ali, no meio do café, estava o Robby sentado com

a Tiffany Ivers no colo, as suas botas de vaqueira turquesa abalouçar a uns centímetros do chão. Senti os olhos dilatarem-sequando estaquei.

A Mary Louise chocou contra mim.— Ei! — Depois viu o que eu tinha visto: o Robby a encolher-se; a

Tiffany Ivers com um sorrisinho triunfante.— Porquê ele? — perguntei. — Ela pode ter quem quiser.— Tu não escolhes quem amas — sentenciou a Mary Louise.— Porque é que estás sempre a defendê-la?— Porque é que a deixas afectar-te?O sal causava-me azia. Ou então era por ver a Tiffany Ivers ao

colo do Robby.— Vou para casa.— Não a deixes vencer.Corri para a casa de Odile e entrei.— Porque é que não estás na escola? — perguntou ela. —

Aconteceu alguma coisa?Eu estava toda suada.— Vi uma coisa… e fiquei doente.Enquanto ela me ia buscar um copo de água, fui folheando o seu

dicionário de Francês-Inglês. Bebi um gole, e depois perguntei:— Qual é a pior palavra francesa para descrever alguém?— Odieux, cruel. Odioso, cruel.O que eu procurava era «rameira» ou «cabra», mas calculei que

aquelas tivessem de servir.— Porque te hás-de focar no negativo, ma grande? Isto tem

alguma coisa a ver com aquele rapaz para quem ficas a olhardepois da missa?

Jesus, mas toda a congregação sabia?— Então? — insistiu ela.Quando lhe contei, ela disse:— Por vezes, não sabemos ler os sinais. Eu assumi o mesmo a

respeito do Paul, o meu primeiro… namorado, mas estavaenganada. Talvez o Robby se tenha encolhido porque ela o deixoudesconfortável.

— Não interessa. — Cruzei os braços. — Com ele, acabou-se.— Não feches o teu coração.Pensei nos entes queridos que ela tinha perdido e senti-me

estúpida por me queixar.— A Odile sobreviveu a uma guerra; eu nem sequer consigo

sobreviver à escola básica.— Temos mais em comum do que pensas. Deixa-me dizer-te

quais são as palavras que te descrevem. Belle, intelligente,pétillante.

Senti-me melhor.— O que significa a última?— Cintilante.— Acha que eu cintilo?Ela fez um sorriso malicioso.— Entraste na minha vida como a estrela da tarde.

Se o Robby queria ficar com a Tiffany, que ficasse. Na aula, olheipara a professora o tempo todo. Não ia olhar para ele. Nãoconseguia. A Mary Louise passou-me um bilhete e sussurrou: «É doRobby.» Provavelmente, um convite para o seu casamento. Atirei-o

para la poubelle. Je déteste l’amour. Je déteste Tiffany Ivers. Jedéteste toda a gente.

Receei ver o Robby e a Tiffany num encontro — ele com o braçoà sua volta num concerto do coro, ou a partilhar um donut depois damissa, mas esse dia nunca chegou. Por altura do Halloween,percebi que Odile tinha razão a respeito da leitura de sinais. Tenteicaptar a sua atenção, mas ele já não olhava para mim.

Mas havia quem tivesse encontros. As senhoras de Froidempurravam todas as mulheres solteiras para a frente do meu pai.No salão da igreja, puseram-no ao lado de uma alegre loura quecomeçara recentemente a trabalhar como caixa no banco.

— Ele está pele e osso — comentou a velha Mrs. Murdoch.— Perdeu o apetite — disse Mrs. Ivers. — Mas a conta poupança

está bem recheada.Durante o concerto de Outono da banda, sentaram-no ao lado de

uma florista de cabelo oleoso.— É um bom ganha-pão — sussurrava Mrs. Ivers durante a

Danse Macabre. Na angariação de fundos dos bombeiros,emparelharam-no com a minha professora de Inglês. O meu pai nãoparecia muito feliz ao ouvi-la tagarelar sobre Macbeth, mas tambémnão apressou o jantar. A Mary Louise e eu fomos as primeiras a sair.

— Nojento — comentei, pontapeando as folhas mortas nopasseio.

— Sim, matem-me já — concordou ela.— O teu pai tem mais encontros do que tu — disse a Tiffany Ivers

ao passar por mim.No quarto da Mary Louise, cantámos «You May Be Right» a

plenos pulmões, usando a embalagem de laca da Angel como

microfone. Havia alguma coisa no tom zangado de Billy Joel que metocava. À meia-noite, a Sue Bob bateu à porta e mandou-nos calar.

De manhã, a Mary Louise e eu corremos pela viela acima — ocaminho mais rápido para a minha casa. Quando estávamos quasea chegar, estacámos como antílopes quando vimos o meu pai naporta das traseiras com a loura do banco, que corou enquanto elelhe acariciava o braço. Ele entrelaçou os dedos nos dela.

— Que nojo! — sibilou a Mary Louise. — Estão a fazer sexo comas mãos.

— Ela passou aqui a noite.— Achas que vai casar com ela?Só tinham passado oito meses desde a morte da minha mãe.

O luto é um mar feito das próprias lágrimas. Ondas salgadascobrem os escuros abismos que precisamos de atravessar ao nossopróprio ritmo. Desenvolver energia para isso leva tempo. Havia diasem que os braços cortavam a água e eu sentia que as coisas iamficar bem, a margem não estava assim tão distante. Depois, umamemória, um momento, quase me afogavam, e eu voltava ao início,lutando para me manter acima das ondas, exausta e a afogar-me naminha própria dor.

Uma semana mais tarde, a seguir à missa, o meu pai, a MaryLouise e eu estávamos a escolher bolos no salão quando a loura seaproximou e olhou para ele com um ar de expectativa. Ele ficou aolhar para ela, depois para mim.

— Meninas — disse finalmente —, quero-vos apresentar aEleanor. Ela é… E apresento-te a Lily e a Mary Louise, a suacomparsa.

— Muito prazer. Já ouvi falar tanto de ti. — Ela guinchava comoum periquito com demência.

— Lily? — Ouvi o meu pai dizer. — Estás bem? — Abanei acabeça. Ele que seguisse em frente. Eu ficaria com a mãe. Lembrei-me da mão dela, enfarinhada, a passar-me a batedeira coberta demassa de bolachas; o seu riso quando eu enfiava a língua pelometal, a tentar extrair o máximo possível. Lembrei-me do fato depalhaço que ela me fizera para o Halloween, o seu pé no pedal damáquina de costura, a cabeça curvada de concentração. Lembrei-me de coisas de que não me poderia lembrar. A minha mãe a olharpara mim enquanto eu dormia. A minha mãe com uma expressãoterna a acariciar a barriga enorme, comigo aninhada lá dentro.Lembrei-me de que nunca tinha vestido a camisola que ela mefizera porque não era comprada numa loja, como as da Tiffany Ivers.Lembrei-me da maneira como a minha mãe sorrira para ocultar amágoa. Se a conseguisse encontrar, ia vestir aquela camisola todosos dias.

Quando fiz 14 anos, o meu pai levou-me à Jeans ‘n Things, a lojade Mrs. Taylor, que se sentava três filas à nossa frente e usava ocabelo castanho todo armado. A Angel e as amigas tinhamconcebido umas T-shirts com os seus nomes impressos nas costas,e foi o que o meu pai decidiu oferecer-me. Fiquei impressionada porele ter tido a ideia.

A T-shirt estava disponível em cinco cores; a laranja era a únicaexistente no meu número. A seguir, o decalque. Pinturas decoelhinhos, aves ou bandas de rock. Noutra altura, o meu pai teriaolhado para o relógio vinte vezes, preocupado com o tempopassado longe do trabalho, mas agora examinava cada uma delascomigo.

— A tua mãe teria escolhido a da águia — disse ele, tão baixinhoque mal o ouvi.

Foi essa que escolhi. Mrs. Taylor mostrou as letras de veludo —grandes, médias e pequenas, vermelhas, pretas e azuis. Eu e o meupai tocámos em todas.

— A tua mãe cuidava dos presentes. Eu não me apercebia detudo o que ela fazia.

— Obrigada, papá — disse eu, abraçando-o com força, tal comodesejava ter abraçado a minha mãe naquele último dia.

Voltei para casa com a T-shirt vestida.Odile levou um bolo — chocolat! — e a Mary Louise e outras

raparigas da escola viram-me soprar as velas. Ainda se via o fumono ar quando a Eleanor Carlson entrou sem bater.

Franzindo o sobrolho, a Mary Louise disse:— O que é que esta está aqui a fazer?— Que boa surpresa. — O meu pai deu-lhe um beijo em cada

face.— Parabéns! — trinou ela.— Prazer em vê-la. — Odile deu-me um toque nas costas.— Prazer — balbuciei.A Mary Louise cruzou os braços e não disse uma palavra.O meu pai e a Eleanor Carlson tinham o cuidado de não se

tocarem, o cuidado de se manterem afastados. Mas ele sorria-lhemais do que me sorria a mim, e era a minha festa. Querendo que odia acabasse, devorei o bolo e abri rapidamente os presentes.

A seguir, enquanto a Mary Louise e eu enfiávamos os pratos depapel no lixo, o meu pai foi fazer mais café. A namorada abriu oarmário certo para retirar as chávenas. Entre todas elas, escolheu apreferida da minha mãe, com as delicadas flores azuis. Claro. Omeu pai não pareceu surpreendido.

A Mary Louise reparou em tudo, e a minha dor estava escrita noseu rosto sardento. Ela sabia que eu nunca usava aquela chávena.Num tom baixo e feroz, proferiu a minha fúria, a minha dor, o meucoração.

— Aquela cabra pensa que pode entrar aqui assim e pegar emtudo o que lhe apetece?

Eleanor pousou a chávena e o pires na bancada e depois foibuscar o bule. A Mary Louise varreu a porcelana para o chão, e osom quando ela se partiu foi ao mesmo tempo triste e satisfatório.Flocos de neve branca e azul espalharam-se pelo linóleo. Ninguémse moveu. Vimos o último fragmento voar para debaixo dofrigorífico.

— Fizeste de propósito — gritou o meu pai a Mary Louise. —Porque é que fizeste uma coisa tão feia?

E continuou, e continuou, mas a minha amiga estava habituada aque gritassem com ela. De olhos semicerrados para se proteger dosperdigotos do meu pai, aguentou-o estoicamente.

A namorada do meu pai observava, talvez a perguntar-se porqueestava ele tão zangado.

— Pelo amor de Deus, é só uma chávena! — disse a Eleanor.

Tirando a vassoura e a pá de trás da porta, varreu os resquícios daminha mãe.

CAPÍTULO 13

Odile

PARIS, AGOSTO DE 1939

Rémy preparou-se para se juntar ao exército da mesma maneiraque se preparava para a escola, passando um pouco de água friana cara e enfiando uns livros dentro de uma mala. Sentei-mesombriamente na sua cama. O ressentimento pairava entre nós: eusentia que ele me estava a abandonar e a atirar-se de cabeça parao perigo; ele estava desiludido pela minha falta de entusiasmoperante o seu plano. Eu achava que ele não devia ir; ele mal podiaesperar para partir.

— Leva uma camisola — disse-lhe. — Para não te constipares.— Eles dão-me tudo o que vou precisar.Eu tinha ido previamente ao banco e levantado as minhas

sementes de segurança.— Toma. — Enfiei-lhe os francos nas mãos.— Não preciso do teu dinheiro.— Mas vais ficar com ele.— Ainda chego atrasado. — E deixou as notas em cima da cama.Segui-o até à entrada, onde os nossos pais aguardavam. A

maman, nervosa, endireitou o colarinho do Rémy e perguntou:— Tens um lenço limpo?O papa deu-lhe uma bússola de cobre.— Dos meus tempos no exército — disse, com a voz rouca.— Obrigado, papa. — Lançou a bússola no ar e apanhou-a, antes

de a enfiar no bolso. — Vou mostrar àqueles boches.— Promete-me que escreves — pedi.Ele deu-me um beijo na cara.— Prometo.De mala às costas, desceu alegremente as escadas como se

estivesse a sair de casa para ir comprar uma baguete.

Como precaução contra os ataques aéreos, a Cidade Luzmantinha-se na mais profunda escuridão à noite — sem iluminaçãonas ruas, sem reclamos de néon nos cabarés, sem candeeirosacesos na sala de leitura. Os parisienses tinham sido aconselhadosa andar com máscaras de gás. Muitas pessoas, como os meusprimos, atulharam os carros com os seus pertences e partiram. MissReeder ajudava consternados compatriotas a comprar passagensde volta para a América. Professores interrompiam as suas férias deVerão para ajudar a evacuar alunos para o campo. A calma da salainfantil era arrepiante.

A casa também estava em silêncio. Era a primeira vez que oRémy e eu estávamos separados durante mais do que quatro dias.Tal como o nascer do sol, tal como o pão sobre a nossa mesa, eleestivera sempre comigo, a sorver o seu café au lait, a gargarejardepois de escovar os dentes, a cantarolar enquanto líamos juntos.

Rémy era a banda sonora dos meus dias. Agora, a vida erasilenciosa.

Ele mostrara-se sereno na sua escolha de se alistar no exército, eisso deveria ter sido motivo de conforto. Mas, em vez disso, euprocurava consolar-me junto da maman e do papa. Antigamente, oRémy e eu estávamos de um lado, os nossos pais do outro, talcomo nos lugares à mesa do jantar. Agora, uníamo-nos napreocupação, nos nossos olhares ansiosos para a cadeira vazia.Rémy não escrevia para casa.

— Quando volta o Paul da Bretanha? — perguntou a maman, quefazia os possíveis para preencher os silêncios desconfortáveis.

Enfiei a mão no bolso e toquei na última carta dele. Escrevia-metodos os dias, dizendo como sentia a minha falta e quantos hectaresainda tinha de colher.

Suspirei.— Ainda falta muito.

No vestiário, máscaras de gás de pele castanha — com BibliotecaAmericana de Paris impresso no topo — alinhavam-se contra aparede. Quando atirei a minha para o chão, a Bitsi entrouanimadamente e trinou um amigável bonjour. Não respondi.

— O que tens lido, ultimamente? — perguntou. — Acabei agora oEmma.

— Com o Rémy fora, estou demasiado distraída para ler!— Isto não é uma competição para ver quem tem mais saudades

dele — retorquiu ela ao sair.Eu não sabia o que dizer, ou antes, tinha demasiado para dizer.

Como te atreveste a encorajar o Rémy a alistar-se? E se ele estiverem perigo?

Margaret entrou e pendurou o chapéu de palha num gancho.— Aconteceu alguma coisa de mal? — perguntou.— O mal que aconteceu foi a Bitsi.Margaret disse que ia preparar um bule de chá e que já o levava à

minha secretária.— Então, o que é que se passa? — perguntou, enquanto servia o

darjeeling.— O Rémy sempre foi frágil… era o primeiro a apanhar uma

constipação, o último a ser escolhido na aula de ginástica. Mas aBitsi encorajou-o a pôr-se em perigo. E ele nem sequer me contouque se ia alistar.

— Há alguma razão para não te ter contado?Os olhos da Margaret eram tão honestos que dei por mim a

contar-lhe uma verdade que apenas agora compreendia.— Ele tentou dizer-me. — A chávena de chá tremia na minha

mão. — Quem me dera ter ouvido. Ele esteve sempre do meu lado,mas na única vez em que precisou de mim…

— Não sejas tão dura contigo própria.— Podia tê-lo dissuadido de se alistar.— Talvez isto seja uma coisa que ele sentiu que tinha de fazer.— Talvez…Com um pequeno gesto, a Margaret chamou a minha atenção

para a cena na nossa frente. Peter-o-arrumador-de-livros estava aorientar Helen, o mais recente membro do pessoal, bibliotecária dereferência de Rhode Island com um rabo de cavalo encaracolado eolhos sonhadores. Deslizando ao longo das estantes, os dois iam

trocando recordações da Nova Inglaterra, 917.4, o sítio mais mágicodo mundo; eu já lera histórias de amor suficientes para reconhecer oinício de uma quando a via.

Boris aproximou-se, trazendo consigo um longo rolo de papel, edisse que precisávamos de cobrir as janelas para nos protegermoscontra eventuais estilhaços de vidro em caso de bombardeamento.

— Como está o teu irmão? — perguntou-me, enquanto abria orolo sobre a mesa.

Cortei um grande pedaço.— Ainda não escreveu.— Já passou quanto tempo?— Duas semanas.— Quando fui para o exército — disse o Boris, enquanto

espalhava cola no papel com um velho pincel —, nós, cadetes,treinávamos tanto que à noite caíamos no beliche mortos decansaço. Não havia tempo para correspondência. O sargento queriaque fosse mesmo assim, queria que deixássemos as nossas antigasvidas para trás.

— Deves ter razão…— Mas é difícil para quem fica à espera.Boris compreendia. Falámos pouco, mas dissemos muito,

enquanto mergulhávamos a Biblioteca na escuridão. Com tantasjanelas, levámos dois dias.

Depois, a 1 de Setembro, o exército chamou os homens entre os18 e os 35 anos. Boris, os rapazes do bairro com quem eu tinhacrescido, os pastosos estudantes de doutoramento quepraticamente viviam na sala de referência, o padeiro que queimavaas baguetes — todos mobilizados. O papa pediu para manter os

seus agentes da polícia em Paris; o Paul recebeu uma dispensapara continuar a trabalhar na quinta da sua tia — por enquanto.

Por todo o lado, eu via as provas de que a guerra estava iminente:no exército, que aumentara fileiras; no Herald, com as suasmanchetes agourentas; e no quadro de informações da Biblioteca,ao lado da lista de livros com mais saída, um papel com o selo daembaixada dos Estados Unidos declarava: «Em virtude da situaçãoprevalecente na Europa, aconselhamos os cidadãos norte-americanos a regressarem aos Estados Unidos.»

Iria Miss Reeder seguir a directiva da embaixada? E se oembaixador britânico emitisse uma declaração semelhante e euperdesse a Margaret?

Passei a correr pelo catálogo de fichas, onde a tia Caro me tinhaapresentado ao Dewey e a toda uma constelação; passei pelasestantes onde o Paul e eu nos tínhamos beijado pela primeira vez;passei pela sala das traseiras, onde eu e a Margaret nos tínhamostornado amigas; e cheguei ao gabinete de Miss Reeder.

A directora balouçava ligeiramente na sua cadeira, de caneta namão, concentrada nos documentos espalhados pela sua secretária.O aroma do café enchia o ar. Não havia caixas, nenhum sinal deque estaria a fazer as malas. Ela estava ali. Enquanto estivesse ali,tudo ia correr bem. O meu pânico retrocedeu, e respirei profunda elentamente.

— Não vai para casa? — perguntei.— Casa?— Não se vai embora?As suas sobrancelhas uniram-se, e ela olhou-me com estranheza,

como se o pensamento nunca lhe tivesse ocorrido. Depoisrespondeu:

— Eu estou em casa.

1 de Setembro de 1939

Querido Paul,Tenho tantas saudades tuas, quero sentir os teus braços na minha cintura, o teu

sussurro tranquilizador na minha têmpora. Dói-me o peito desde que o Rémy sealistou. Detesto a forma como me separei dele. Quando regressares, tudo vaimelhorar.

Como a maior parte dos homens locais foram mobilizados, de certeza que a tua tiaprecisa de ti mais do que nunca, mas eu também preciso de ti, e conto os dias até aoteu regresso.

Todo o meu amor,a tua arisca bibliotecária

Não podia fugir ao facto de que o Rémy tinha uma novaconfidente, mas podia fugir dela mantendo-me na sala dosperiódicos tanto tempo quanto possível. Nesse dia, como sempre,senti-me animada ao ver os meus habitués. Enrolada num xailepúrpura, a «professora Cohen suspirava perante uma lindapassagem de Viagem no Escuro. Ao seu lado, matraqueava adentadura de Madame Simon enquanto ela se deleitava com amoda na Harper’s Bazaar. No outro lado da sala, Monsieur deNerciat e Mr. Pryce-Jones discutiam.

— O melhor whisky é o feito na Escócia — dizia o inglês. — Eupróprio sou meio escocês.

— Sim, eu sei — murmurou o francês. — E a outra metade é

soda.— O Glendronach é o melhor!Nunca querendo admitir que a Grã-Bretanha produzia qualquer

coisa de valor, o francês argumentou:— O melhor é o George Dickel, do Tennessee.— Se querem descobrir quem tem razão, devem fazer uma prova

— sugeri.— Odile, é genial!Bitsi surgiu ao meu lado.— O meu irmão foi chamado — disse ela. — Partiu ontem.— O meu partiu há semanas — repliquei. — Mas já sabias, não

sabias?— O Rémy teria sido chamado de qualquer maneira.— E achas que isso me faz sentir melhor? — rosnei.Os leitores ficaram de boca aberta, surpreendidos.— Estamos todos preocupados — intercedeu a professora Cohen.Virando as costas a Bitsi, abri o Herald e li o editorial: «Apesar de

toda a presente ansiedade, pode nunca chegar a acontecer umagrande guerra. A verdade é que ninguém, com excepção,possivelmente, de Herr Hitler, pode dizer que ela vai acontecer.»Não tinha percebido que estava a ler em voz alta até ver MadameSimon fazer uma careta.

— Qual guerra! — riu-se. — A Europa está farta, ninguém querlutar.

— A senhora ilude-se — replicou a professora Cohen. — Ascrianças lutam por causa de brinquedos, os homens, por causa deterritório.

— Não vamos pensar nisso agora — disse Monsieur de Nerciat,

olhando para mim com preocupação. Agarrou no Herald e abriu aspáginas da sociedade, onde duas colunas anunciavam as notíciasda Colónia Americana de Paris. — «Mr. Eli Grombecker, de NovaIorque, voou para a Europa no Clipper. Mr. e Mrs. E. Bromund, deChicago, entre aqueles que visitaram Berlim recentemente, estão noLe Bristol. Mrs. Minnie K. Oppenheimer e Miss Ruth Oppenheimer,de Miami, estão no Continental.

— A guerra não vai impedir a alta sociedade de fazer compras —comentou Mr. Pryce-Jones.

— E as notícias da Colónia Britânica — continuou Monsieur deNerciat. — «O marajá de Tripura e a yuvarani de Baria estão noGeorge V. A condessa de Abindgon juntou-se ao conde no LePrince de Galles.»

Todos nos rimos. Os socialites levavam-se demasiado a sério,mas permitiam-nos esquecer brevemente a tensa situação política.

Depois do trabalho, fui para casa, com esperança de encontraruma carta do Rémy, mas a bandeja na mesa da entrada continuavavazia. Ouvi vozes na sala de estar e espreitei — Paul! Ao ver-me,levantou-se de um pulo. Consciente da presença dos meus pais,permiti que a minha mão pousasse brevemente no seu braço,quando me deu um beijo na face.

No divã, com vinte centímetros de distância entre nós, sussurrei:— Senti a tua falta.— Eu ainda mais. Tu tinhas os teus leitores por companhia. Eu,

para além da minha tia, só tinha vacas, galinhas e cabras.— Bem, posso alegar que Mr. Pryce-Jones é um velho bode

teimoso.— Sim, mas nunca te mordeu!

O meu pai olhava-nos com presunçosa benevolência.— Eu sabia que o Paul era a pessoa certa para ti.— Sim, papa, ao décimo quarto pretendente que trouxe a casa,

acertou.— Em breve, hão-de ter mais tempo para ficarem juntos —

replicou ele. — Com esta conversa da guerra, os teus colegas vãodeixar Paris e a Biblioteca vai fechar.

— Miss Reeder diz que vamos continuar abertos — respondi. —Ninguém vai a lado nenhum.

— Vais poder descansar. — Com um piscar de olho provocador,acrescentou: — Talvez até chegues a casa a horas de jantar.

Quando o papa falava do seu emprego, falava de dever. Nãoconseguia compreender que eu adorava a Biblioteca. As horas extraque eu passava com a Helen-da-referência para aprender aencontrar respostas para os leitores não constituíam uma tarefa,mas uma caça ao tesouro.

— É importante que nos lembremos de como é difícil pedir ajuda— dizia-me ela. — Nunca devemos ser impacientes; todas asperguntas têm valor.

Juntas, mergulhávamos nas bibliografias e enciclopédiasespecializadas para descobrir tudo desde a população de Cuba aovalor estimado de um vaso chinês. Cada dia trazia novas questõesque exigiam respostas. Depois de escrever dezenas de artigosacadémicos, a professora Cohen decidiu lançar-se num romance, eestava a fazer pesquisa sobre a Itália do século xvi. «O que vestiamos venezianos? O que bebiam? O que punham nos bolsos?»,perguntava.

— Tem a certeza de que eles tinham bolsos? — perguntava

Helena.— Nenhuma! — replicava a professora, e zarpávamos as três

para Veneza, navegando por entre as estantes.Eu era necessária na Biblioteca. Era feliz ali.— Não posso descansar — disse ao meu pai. — Miss Reeder diz

que os livros promovem a compreensão, que é agora maisimportante do que nunca.

Quando ele abriu a boca para discutir, a maman foi chamá-lo àsala, fechando a porta nas suas costas.

Aproximei-me mais do Paul.— Ele é impossível!— Preocupa-se contigo.— Suponho que sim…Paul beijou-me as mãos, as faces, os lábios. Eu queria mais. A

sua pele na minha, os nossos corpos entrelaçados. Beijar era oprólogo de um livro maravilhoso, um livro que eu queria ler até aofim.

A maçaneta da porta rangeu; separámo-nos de um pulo. Amaman dirigiu-se para os vasos, onde regou os seus fetos.

Quando eu era pequena, adorava ler na cama. Todas as noites,depois de a maman me mandar apagar a luz, suplicava-lhe que medeixasse terminar a leitura do capítulo, mas não servia de nada. Eraa maman, agora como nessa altura, que decidia quando estava naaltura de parar.

Enquanto arrumava as edições vespertinas dos jornais, vi MissReeder — branca como a cal — a entrar, perturbada, na sala de

leitura. Soubemos todos de imediato que havia alguma coisa errada.Mr. Pryce-Jones e Monsieur de Nerciat pararam de discutir. Aprofessora Cohen ergueu o olhar do seu livro. Parando na frente dasjanelas tapadas, a directora anunciou:

— A embaixada ligou. — A sua voz tremia. — Inglaterra e Françadeclararam guerra à Alemanha.

Quando o papa falava dos seus anos nas trincheiras, eu apenasconseguia imaginar a luta como uma fotografia desvanecida tiradaao longe. Agora, as imagens de tanques e soldados feridos eram aTechnicolor. Estaria o Rémy em combate? Estaria ferido?

— Disseram onde era o combate? — perguntou a Bitsi antes queeu tivesse tempo de o fazer.

— Quem me dera saber mais — disse Miss Reeder. — Oembaixador Bullitt vai manter-nos informados.

Depois de tranquilizar os leitores, reuniu o pessoal no seugabinete.

— Têm de partir… ou para casa, ou para o campo, onde fiquemem segurança — disse-nos, e o seu tom continha tanta autoridadeque, na minha mente, já estava a atirar o meu vestido amarelo e olenço azul para uma mala.

— E o que vai fazer? — quis saber a severa Mrs. Turnbull.— Eu fico — respondeu Miss Reeder sem hesitação.— Eu trato do balcão de atendimento — disse a Bitsi.— Eu quero ficar — disse a nossa guarda-livros, Miss Wedd.— Eu também. — Mentalmente, voltei a guardar as roupas no

armário. O meu lugar era ali. Queria fazer tudo o que pudesse paragarantir que a nossa Biblioteca continuava aberta.

— Não posso voltar a Rhode Island tão cedo — disse Helen-da-

referência.Peter-o-arrumador-de-livros olhou para ela.— Eu não quero partir.Miss Reeder olhou para nós com gratidão.— Seja como for, temos de fazer os possíveis para manter os

leitores em segurança.Peter-o-arrumador-de-livros carregou sacas de areia para o andar

superior, para o caso de ataques aéreos provocarem incêndios.Miss Wedd afixou na parede a morada do abrigo mais próximo — aestação do metro. Durante a simulação, Miss Reeder evacuou asala de leitura, pondo os braços em volta de estudantes assustados.Eu conduzi os meus habitués para fora da sala de periódicos.Arrancando o Bom-dia, Meia-noite da prateleira como se estivesse asalvar o seu melhor amigo de um edifício em chamas, a professoraCohen proclamou:

— Eu não abandono a Jean Rhys.Helen-da-referência carregou garrafas de água potável; o zelador

desligou a electricidade. À porta, a Bitsi acenou com a lanterna. Eum cortejo de atordoados amantes de livros percorreu doisquarteirões até à segurança da estação. No escuro túnel do metro,perguntámo-nos o que iria acontecer, e quando.

CAPÍTULO 14

Odile

Boris entrou na sala de leitura como se se tivesse ausentado paraum longo almoço, e não como se tivesse ficado seis dias noexército. Os leitores rodearam-no, querendo dar-lhe as boas-vindas.Monsieur de Nerciat e Mr. Pryce-Jones foram os primeiros a atacara mão do Boris com vigorosos apertos. A professora Cohen foi aseguinte.

— Estamos tão contentes por estar de volta são e salvo. A suamulher e filha devem estar aliviadas.

Tentei acercar-me, mas uma multidão de ratos de bibliotecarodeava-o. Voltei para o carrinho e peguei num livro para arrumar naprateleira. A cota na lombada era 223. Seria religião ou filosofia? Ascoisas que eu sabia perfeitamente tornavam-se difusas. Desde queo Rémy tinha partido, dava muitas vezes por mim no meio de umasala sem conseguir perceber onde era o meu lugar.

Boris encontrou-me mergulhada ao fundo do 200.— Como estás? — perguntou.— Com medo pelo Rémy.Ele enfiou o meu livro na prateleira.— Conheço a sensação. O meu irmão Oleg alistou-se na Legião

Estrangeira.— Espero que esteja bem. Pelo menos conseguiste regressar.— Graças a Miss Reeder, que escreveu para o exército. Parece

que sou indispensável.— Indispensável. Soa bem.Ela também tinha conseguido manter o zelador. Felizmente, o

papa tivera autorização para ficar com os seus agentes em Paris.Ele queria escudar os seus homens, mesmo que não conseguisseproteger o próprio filho. Eu estava doente de preocupação porRémy, mas grata, muito grata por não ter de perder o Paul.

Boris arrumou outro livro.— Eu teria feito o meu dever no exército francês. Afinal, já lutei

numa guerra.— Lutaste?— Estava na academia quando rebentou a Revolução Russa.

Alguns de nós mal tinham feito 15 anos, mas conseguimos escapare entrar no exército.

— 15 anos…Boris explicou que ele e os companheiros julgavam que

despedaçar um morango a dez passos fazia deles homens, e quequando planeara com o amigo a sua fuga, a única preocupação erasaber qual dos uniformes os tornaria mais atraentes.

— Perguntávamo-nos se devíamos fugir a pé ou ir buscar umcavalo. Partir em jejum ou tentar a despensa e arriscarmo-nos aacordar o cozinheiro maldisposto. Foi fácil alistarmo-nos — concluiu.— Tal como a maior parte das crianças, não conseguíamos visionarmais do que uma semana no futuro.

Foi assim que o Rémy saiu de casa, ávido por uma aventura,

ansioso por mostrar ao papa que era um homem.— O meu capitão não era muito mais velho do que eu. Ordenou-

nos que atirássemos a matar, mas é difícil matares os teusconterrâneos. — O Boris engoliu em seco. — É difícil matar quemquer que seja.

As estantes eram altas, sagradas como um confessionário. Eleolhou para a fila de livros alinhados como soldados.

— Do outro lado do rio, estava um batedor, um dos outros —continuou. — Um compatriota russo, o inimigo. Premi o gatilho eatingi-lhe o lóbulo da orelha.

— O lóbulo da orelha?Boris encolheu o ombro.— Eu era bom atirador. Não queria matar o tipo. Só afugentá-lo.— Fizeste a coisa certa.Ele pegou noutro livro e passou a mão sobre a capa, com uma

expressão sóbria.— Mais tarde, o meu regimento confrontou-se com o dele, e

aquele soldado matou o meu melhor amigo.— Lamento.— Eu fui atingido duas vezes. — O dedo dele seguiu uma cicatriz

na sua face. A marca era tão desmaiada que eu a julgara uma rugade sorriso. — Mas foi o tifo que quase me matou. A enfermaria erapior do que a frente. Cresci numa família turbulenta e passei daescola militar para o exército. Nunca tinha tido um segundo desolidão, nunca tinha tido de encarar os meus próprios pensamentos.Estar sozinho no hospital foi o ponto baixo da minha vida. Houveuma coisa que me fez superar: pensar nas minhas irmãs juntas.

Acenou para a sala infantil, onde a Bitsi caminhava de um lado

para o outro.— Nós não somos irmãs — disse eu.Ele olhou para mim com tanta mágoa.— Vou voltar para o balcão de atendimento — disse num tom

resignado, e deixou-me sozinha com o meu remorso eressentimento.

CAPÍTULO 15

Odile

Três dias depois de a guerra ser declarada, Miss Reeder criou oServiço dos Soldados. Querendo dar conforto às tropas francesas ebritânicas, oferecer um escape, fazê-los saber que os seus amigosna Biblioteca se preocupavam com eles, preparámos conjuntos delivros para cantinas e hospitais de campanha. Paul e eu levámos oscaixotes para La Poste. Paris estava estranhamente calma, comoum grande hotel com muito poucos hóspedes, mas a Bibliotecacontinuava cheia de leitores que assumiam que ficaríamos abertos.Continuavam a devorar os jornais em busca de notícias e a procurarlivros.

— As pessoas lêem — dizia a directora. — Com guerra ou semguerra.

Lançou um apelo por donativos, escrevendo cartas a leaispatronos, como a condessa Clara de Chambrun. Chamando-me aoseu gabinete, Miss Reeder explicou que tinha convidado jornalistaspara irem à Biblioteca e que queria que eu lhes falasse do projecto.Estavam à espera na sala de leitura.

— Eu? — hesitei. — As pessoas dos jornais são… desordeiras.— Quando fui entregar a minha primeira coluna sobre a BAP no

Herald, um jornalista tinha reparado numa gralha: relações«púbicas» em vez de relações públicas. Sempre que lá ia deixaruma coluna nova, um deles perguntava-me pelas minhas relações«especiais».

— Eles conseguem ser difíceis — admitiu Miss Reeder. — Andama percorrer a França inteira para descrever os esforços de guerra.Mas, se algum for mal-educado, dá-lhe uma pancada na cabeça.

Lembrando-me da entrevista em que eu ameaçara fazer issomesmo, senti o rosto ruborizar-se.

— Oh, não, eu…— Eu sei. Já não és assim. Cresceste e estás a fazer um trabalho

maravilhoso. Toda a gente adora a tua coluna no Herald e o teuboletim de notícias é delicioso, em especial as tuas entrevistas do«Que tipo de leitor é?». É maravilhoso ficar a conhecer as pessoaspelos livros que amam.

A caminho da sala de leitura, permiti-me desfrutar do elogio deMiss Reeder. Junto à lareira, esfreguei um pé sobre o outro,tentando ganhar coragem para falar com os jornalistas blasés degabardinas amarrotadas. Mas, antes que os pudesse abordar, elesvieram ter comigo.

— Os franceses estão assim tão interessados em livrosamericanos? — quis saber um jornalista com cabelo cinzento e ralo.O seu semblante era cansado. Não, gasto. — E os soldados têmtempo para ler?

— Um general enviou camiões para a Linha Maginot para levarmaterial de leitura — repliquei energicamente. — Os soldados têmtempo, sim, e o nosso objectivo é apoiar os que estão doentes,feridos ou sós. Temos de servir no campo do moral.

— Moral? Então porquê livros? Porque não vinho? — gracejou umruivo. — Eu preferiria.

— Quem diz que tem de ser uma coisa ou outra? — perguntei.Eles riram-se.— Mas, a sério, porquê livros? Porque nenhuma outra coisa

possui aquela mística capacidade de nos fazer ver com os olhos deoutras pessoas. A Biblioteca é uma ponte de livros entre culturas.

Um por um, foram despindo os casacos e instalando-se emcadeiras enquanto eu explicava como as pessoas nos podiam fazerchegar donativos. Alguns jornalistas anotavam a informação, outrospareciam estar a recordar livros que tinham lido. O jornalistacansado contemplava as estantes, talvez a lembrar um romanceque lhe oferecera consolo após um dia difícil.

— Todos temos um livro que nos mudou para sempre — observei.— Um que nos disse que não estamos sozinhos. Qual é o seu?

— A Oeste Nada de Novo — respondeu.833.— Ajudem a divulgar. Ajudem a levar os livros que vocês

adoraram aos nossos soldados.

À medida que a notícia se espalhava, os donativos começaram achover. A equipa reuniu bibliotecas de cinquenta revistas e cemlivros para cada regimento. Às nove da noite, a Margaret, MissReeder e eu estávamos a terminar o dia de trabalho. A directoraescrevia as etiquetas com as moradas, a Margaret escrevia àmáquina os catálogos de cada colecção e eu colocava os livros nascaixas.

A Bitsi irrompeu pela sala, a acenar uma carta.— Quando cheguei a casa, tinha lá isto.O Rémy escreveu-lhe primeiro?— Oh, tão bom ter notícias dele — disse a Margaret.— E não foi simpático por parte da Bitsi ter vindo partilhar a

notícia? — Miss Reeder fez-me um olhar vincado.Ela tinha razão. Não era uma competição para ver quem recebia

uma carta primeiro. E, no entanto…— Ele está estacionado perto de Lille — disse a Bitsi. — Está

longe do perigo.— Por agora — repliquei asperamente.— Ele queria alistar-se.— E tu encorajaste-o.— A seguir as suas convicções.— E se o matarem? — Atirei o pesado Victor Hugo completo para

um caixote, onde o volume aterrou com um indignado baque.— Por favor. — As mãos de alabastro dela, tão delicadas,

agarraram as minhas, manchadas de tinta azul. — Preciso de estarcom outra pessoa que o ama.

— É melhor ir dizer aos meus pais. — Soltei os dedos dos dela.— Vão ficar aliviados.

— Odile, querida… — A cabeça de Miss Reeder inclinou-se decompaixão.

A bondade só me faria chorar, por isso soltei um rápido «Atéamanhã» e corri pelas escadas abaixo. Quando contei aos meuspais a respeito da carta, devia existir um tom amargo no meu tom devoz, porque a maman disse que a Bitsi não tinha culpa de o Rémyse ter alistado. Com todos os tratados políticos que ele andava a

escrever, a sua opção não devia ter sido uma surpresa para mim. Opapa disse que eu devia ser mais simpática para com a Bitsi, peloRémy.

Dois dias depois, chegou uma carta. O meu regimento estáestacionado numa quinta. Um gato de celeiro cola-se a nós comoum cão, até durante os exercícios. Nunca estivemos em qualquerbatalha, a não ser para ver qual de nós vai lavar a louça.

Já era mais fácil respirar.

Chegavam pedidos de toda a França, e também da Argélia, daSíria e de quartéis-generais britânicos em Londres. Pessoal daBiblioteca e voluntários da Cruz Vermelha, da YMCA e quacresacotovelavam-se na nossa sala das traseiras para ajudar a levarlivros aos soldados. Anotando cuidadosamente preferências delivros (não-ficção ou ficção, policiais ou autobiografias) e de línguas(inglês, francês ou ambas), garantíamos que cada homem que odesejasse recebia uma remessa duas vezes por mês.

Miss Reeder tirava fotos aos voluntários a embalar livros, a Bitsiescrevia bilhetes de encorajamento aos soldados e a Margaret e euabríamos pedidos. Li o de um professor de Inglês, agora cabo doexército francês, que queria manuais para ensinar o seu regimento.

— O que lhe vamos mandar? — perguntou-me a Bitsi.Fingi não ouvir.Olhando nervosamente para a Bitsi e para mim, a Margaret leu

em voz alta:— «Estou no leste de França e alguns de nós lemos inglês,

podemos ter alguns livros e revistas, e também algumas raparigas(não muito velhas) que gostassem de se corresponder connosco?»

Completamente conquistada pelos pedidos que recebíamos, li umoutro.

— Somos eu e uns camaradas, estamos no campo, entre Saar eMoselle. E, como podem imaginar, os nossos prazeres sãolimitados. Se possível, enviavam-nos alguns velhos números daNational Geographic? Esta revista vai dar-nos prazer, porquegostamos desta bonita publicação.»

— Deve ser difícil para os soldados estarem tão longe de casa —disse a Margaret. — Que alívio poder fazer alguma coisa por eles.

— Obrigada pela sua dedicação — disse Miss Reeder, a voz tãoreconfortante como uma chávena de cacau. — Temos muita sortepor tê-la aqui.

— O que faria eu sem vocês? — lacrimejou a Margaret. — Oh,céus, o bule rachado voltou.

— Temos estado todas muito sensíveis, ultimamente —respondeu Miss Reeder, a olhar para mim.

Poucos tiros tinham sido disparados em França, embora asituação continuasse tensa ao longo da Linha Maginot, onde osgenerais tinham a certeza de que o inimigo ia atacar. Tínhamosdespachado centenas de livros para os soldados ali. Algunsescreviam-nos, enviando simpáticos presentes de agradecimento:uma aguarela de uma cozinha na frente, esboços de um aviãoinimigo que tinham abatido, um maço de cigarros. A Margaret e eulemos uma carta de um capitão britânico.

Foi tão generoso da vossa parte terem-me enviado aquelemaravilhoso pacote de livros. Agradeço muito o que estão a fazerpor nós e considero-o da maior importância para dar aos homenstodo o entretenimento possível.

Quero expressar a todos a nossa gratidão pelo belo trabalho queestão a fazer pelos soldados. Por tudo o que fizeram na últimaguerra e pelo que estão a fazer agora, muito obrigado.

A nossa operação no Serviço aos Soldados tinha crescido tanto— milhares de livros doados, dezenas de voluntários — que osempresários do edifício vizinho nos emprestaram um piso inteiro.Pilhas de romances e revistas chegavam até ao tecto, uma Torre dePisa literária. Miss Wedd fazia scones para nos levar e registavaestatísticas sobre os livros que enviávamos. Naquele Outono,expedimos vinte mil livros para tropas francesas, britânicas echecoslovacas, bem como para a Legião Estrangeira. Tal como MissReeder, sentia-me especialmente orgulhosa do nosso serviço aossoldados individuais. Sentia-me menos orgulhosa pelo facto de malfalar com a Bitsi.

A maman resmungava que eu agora nunca estava em casa, e oPaul gracejava que tinha de se oferecer como voluntário paraconseguir passar tempo comigo, mas eu tinha descoberto que, talcomo o Rémy, «precisava de fazer alguma coisa». Por mais que mesentisse vazia sem ele, sabia que era muito pior para os soldadosque estavam longe de casa. Enfiava cartões de encorajamentodentro dos livros.

Sentindo-me insegura a respeito do futuro, ia muitas vezes

verificar a última página de um romance, esperando que tivesse umfinal feliz. Em Villette, 823. Aqui uma pausa: uma pausa imediata. Jáse disse o suficiente. Que não se perturbe o coração tranquilo ebondoso; que a soalheira imaginação possa sonhar. Que seja ela aconceber a alegria que renasce depois do grande terror, oarrebatamento da salvação do perigo, a maravilhosa libertação domedo, a fruição do regresso. Desejei poder avançar na história daminha própria vida para me tranquilizar. A guerra haveria determinar. O Rémy voltaria para casa. O Paul e eu iríamos casar.

Novamente exausta, caí, à noite, na cama com um livro.

«Atravessou a sala, puxou-me um braço e agarrou-me pelacintura. Parecia devorar-me com o olhar inflamado…

— Nunca — disse ele, rangendo os dentes —, nunca coisaalguma foi ao mesmo tempo tão frágil e tão indomável. Não passade um junco nas minhas mãos! — E abanou-me com toda a força.— Podia vergá-la com um dedo… a bela e indómita criatura!

» Se quisesse, poderia vir, de moto próprio, aninhar-sesuavemente contra o meu coração: agarrada contra vontade,eludiria o amplexo como uma essência; evaporar-se-ia antes de eulhe poder aspirar o perfume. Oh, venha, Odile, venha!»[13]

— Odile! — A maman batia à porta com força. — Já passa dameia-noite.

Pegando numa caneta e em papel, escrevi:

Querido Rémy,Podia ler a noite toda, mas a mãe não vai parar de me aborrecer enquanto não

apagar a luz. Hoje foi outro dia caótico. A Biblioteca está tão cheia como sempre; ossócios que partiram no final de Agosto estão de volta, e nós fazemos os possíveis paraarranjar livros para todos vós. O Paul leva os caixotes para a estação. A Margaret dizque ele lá vai por minha causa, mas não tenho a certeza disso. Não sei o que elesente. Nunca dissemos «Amo-te». Nunca estamos sozinhos. Talvez eu o mantenha àdistância. Ter esperança dói. Receio que os seus sentimentos por mim desapareçam.

Lembrei-me de como tanto o papa como o tio Lionel tinhamencontrado outras pessoas. Quero dizer, a chama não morre?

— A luz, Odile!

1 de Dezembro de 1939

Querida OdileObrigado pelo livro! A Jane Eyre é tão lutadora como tu. Que inteligente da tua parte

escreveres as tuas impressões nas margens! Quando viro cada página é como seestivéssemos a ler o romance juntos. Por que raio simpatizas com Mr. Rochester? Éum estúpido! Começo a duvidar do teu gosto em homens.

A Margaret tem razão — o Paul oferece-se como voluntário para estar perto de ti.Não devia doer ter esperança. Devia entusiasmar-te, como uma travessa de estrelasna tua frente, a cintilar de possibilidades.

Não pedi licença para o Natal. Muitos soldados no meu esquadrão têm filhos, equero que eles possam passar a época com a família. Vou tentar regressar a Paris naPrimavera.

Não falaste na Bitsi. Há qualquer coisa sombria nas cartas dela. Fico com aimpressão de que ela não passa muito tempo com amigos, nunca se ri. Vai para otrabalho e volta para casa. Com o irmão mobilizado, está duplamente triste. Mata-mepensar na sua infelicidade. Não quero que esteja sozinha. Por favor, cuida dela pormim.

Beijos,Rémy

CAPÍTULO 16

Odile

Pela primeira vez, a minha família recebeu o Ano Novo sem o meugémeo. Comemos o confit de pato em silêncio. Ultimamente, o meumetrónomo interno parecia oscilar de um lado para o outro — estavaem lágrimas, estava serena, estava confusa, estava bem. NaBiblioteca, continuávamos a enviar pacotes para os nossossoldados. Manter-me ocupada — a embrulhar livros, a ajudarleitores — controlava os meus medos.

O Paul ajudava a carregar caixotes para a estação, onde seriamexpedidos pelo comboio. Nesse dia, quando me viu, todo o seurosto se iluminou. Fiquei sem fôlego. Consciente de que acoscuvilheira Madame Simon estava à espreita (ela estava sempreà espreita), o Paul e eu cumprimentámo-nos como no dia em quenos conhecemos, com dois rápidos beijos na face.

Da ombreira da sala infantil, a Bitsi observou-nos a empurrar umcarrinho para a porta. Fingi não a ver. Tinha recebido a última cartado Rémy há duas semanas, e ainda não tinha feito o que ele mepedira.

À entrada da Biblioteca, Miss Reeder reparou na cena.— Não cumprimentaste a Bitsi — disse.

— Disse-lhe olá esta manhã.— Vocês eram amigas.— O comboio deve estar a partir — intercedeu o Paul. — É

melhor levarmos os livros para a estação.— Falamos quando voltares — disse-me Miss Reeder

vincadamente.Eu não estava preocupada. Assim que entrasse no seu gabinete,

ela seria sugada para um turbilhão de pedidos de leitores edoadores, e esquecer-se-ia de mim.

O Paul empurrou o carrinho ao longo do passeio.— Reparaste que o Boris usa a máscara de gás como lancheira?

Talvez seja um sinal de que, apesar da guerra, a vida voltou aonormal.

— O verdadeiro sinal disso é que ele voltou a escrever «A Paixãode Boris».

— O que é isso?— A história da Biblioteca. Casos engraçados e estatísticas. Ele

podia dedicar todo um capítulo às várias maneiras como as pessoaspedem As Vinhas da Ira: «As Uvas da Raiva» de Steinbaum, «AsLinhas da Gira», «Asinhas da Ira», já para não mencionar «OsVinhos do Vira».

O Paul riu-se.— Não sei como ele não se descompõe.Na frente da estação, tropecei no passeio. O Paul agarrou-me

pelas ancas, e eu esqueci os livros. Só o via a ele. A única coisaque queria era ele. Ansiava por dizer Amo-te, mas tinha medo.Medo de que ele não sentisse o mesmo.

O Paul acariciou-me as costas.

— Ça va?— Oui.— Je t’aime — sussurrou ele.— Eu também te amo.Eu esperava um trovão, um eclipse solar, alguma magia que

marcasse o momento. Em vez disso, um velhote chocou connosco egritou:

— Vejam lá por onde andam!O Paul e eu rimo-nos — o absurdo da situação, o alívio de

finalmente dizermos o que sentíamos.— Bem — disse eu.— Bem — disse ele.Continuámos para a estação.Depois de deixarmos os livros, voltámos devagar para a

Biblioteca. Como o odor de pão a cozer, o amor estava no ar.Reparei nos desenhos de corações nos parapeitos de ferro dasvarandas. Uma balada a tocar num rádio distante. Cafés com mesaspara dois. O Paul — o meu amor — beijou-me à entrada do pátio.Sonhadora, subi o caminho de seixos.

No balcão de atendimento, Miss Reeder estava sozinha. A suaboca tinha um desenho triste.

— Está tudo bem? — perguntei. — O Boris?— Disse-lhe que precisava de falar contigo.— Comigo?— As quezílias são más para o moral da equipa, e os sócios

merecem melhor do que isso.Eu estava em sarilhos por causa da Bitsi?— Foi ela que começou!

— O Hospital Americano precisa de voluntários — disse ela. —Quero que vás para lá.

Quero que vás.— Mas temos tanto trabalho aqui — aleguei.— É verdade.— Eu não disse uma palavra à Bitsi!— É esse o problema. Não lhe disseste uma palavra. — Os seus

olhos não se desviaram dos meus, à procura de uma sabedoria queainda não existia. — Precisas de crescer. Uma semana de trabalhono hospital vai ajudar-te a relativizar as coisas.

— Quando quer que eu vá?— Agora, por favor. Vais receber o teu ordenado como de

costume. No hospital, procura a enfermeira Letson. Está à tuaespera.

Senti-me muito pequena, um grão de pó que Miss Reederacabara de limpar de uma prateleira. Demasiado estupefacta parafalar, fiz um aceno com a cabeça e passei por baixo das bandeirasfrancesa e americana para sair para o pátio, passei o canteiro deamores-perfeitos murchos e saí para a rua. No metro de Monceau,desci as escadas, onde me cruzei com a Margaret. Quando lhedisse que tinha sido mandada embora, a sua cabeça inclinou-se depena.

— Tu tens muito respeito pela Miss Reeder — disse ela. — Não épossível que ela tenha alguma razão?

— Porque é que toda a gente pensa que ela sabe tudo?— Se pudesses falar com a Bitsi — continuou a Margaret. — Não

é o que o Rémy deve querer?E aquilo que eu queria? Como é que Miss Reeder não percebia

que estava a ser injusta? Não merecia ser expulsa como JeanMoreau, que se tinha assoado a livros que reprovava. Eu não tinhafeito nada de mal.

— Tenho de ir.No chique subúrbio de Neuilly, sob os despidos castanheiros no

Boulevard Victor Hugo, abri as portas de ferro do hospital e subirapidamente o caminho de acesso. Uma enfermeira de touca eavental brancos deu uma lição de primeiros socorros às voluntárias,antes de nos acompanhar numa visita guiada.

— Se fôssemos como os franceses — disse —, teríamos placaspor todo o lado. «Josephine Baker cantou precisamente neste sítio.»«Foi aqui que Hemingway começou a escrever o Fiesta depois deremover o apêndice»

Depois apresentou-nos o Dr. Jackson, que explicou:— As coisas estão calmas na zona de combate, mas precisamos

de estar a postos.Havia papel colado nas janelas, mas ele decidiu que não era

suficiente para ocultar a luz. Encarregada do quarto andar, pintei osvidros com tinta azul, conseguindo deixar mais no meu vestido doque nas janelas. Embora tivesse saudades dos meus habitués e deestar rodeada de livros, dediquei-me à tarefa, tentando esquecer ovazio no meu coração, um vazio que eu própria tinha criado.

A enfermaria, composta por 150 camas, abrigava uma dúzia desoldados feridos por estilhaços ao longo da Linha Maginot. Estavamem sofrimento. Não tinham privacidade. Nem família nem amigos ospodiam visitar. O seu ânimo escasseava. Fiz questão de que ossoldados tivessem livros e revistas nas mesas-de-cabeceira. A

leitura oferecia um escape, outra coisa em que pensar, privacidadena mente.

Um bretão de cabelos encaracolados tornou-se rapidamente omeu favorito, porque era descarado como o Rémy. Quando euestava a recolher as bandejas do almoço, perguntou-me:

— Lê para mim, mademoiselle?— Tem algum autor preferido?— Zane Grey. Gosto de histórias de cowboys.Fui buscar o exemplar muito gasto de Névada à biblioteca ao

canto, sentei-me ao seu lado e comecei a ler. Ao terminar o primeirocapítulo, perguntei:

— O que acha?Ele sorriu.— Acho que o podia ter lido sozinho… Tenho a perna lixada, não

o cérebro. Mas tem uma voz tão bonita, é tão bonita…— Patife! — Estendi uma mão para lhe despentear o cabelo,

como faria ao meu irmão. A meio do gesto, interrompi-me. E seacontecesse alguma coisa ao Rémy e ele acabasse num hospital,ferido ou pior? Ele tinha-me pedido uma única coisa. Eu precisavade fazer as pazes com a Bitsi.

Quem me dera poder culpar a guerra pela minha indelicadezapara com ela, mas a verdade é que eu era imatura. Se quisesse terum melhor relacionamento com o meu irmão e a Bitsi, precisava demudar. Eu queria mudar. Mas seria capaz?

— Sente-se bem, mademoiselle?— Melhor do que tu — brinquei. — A minha perna está inteira.Depois do turno, corri para a Biblioteca, onde inspirei fundo ao

sentir o celestial cheiro dos livros. Encontrei a Bitsi a arrumar livrospara crianças nas prateleiras.

— Vamos beber um chá.Os seus olhos violeta cintilaram de esperança.— E o trabalho?— A Miss Reeder não se vai importar.— Tenho saudades dele — sussurrou a Bitsi.Encostei o pé ao dela, como teria feito com o Rémy.

CAPÍTULO 17

Odile

PARIS, MAIO DE 1940

No pátio, as rosas desabrochavam e o seu doce perfume subia atéà Biblioteca. Apesar dos dias amenos, toda a gente estava sensível— preocupada com entes queridos longe de casa, com oscomunicados de guerra que reportavam batalhas mortíferas naFinlândia, com a probabilidade de a França poder seguir-se. Mr.Pryce-Jones mandou Monsieur de Nerciat «ir-se lixar». Boris elogioua nova pasta da professora Cohen, mas Madame Simon balbuciou:

— Quando vejo o que vocês têm, enquanto bons franceses comoo meu filho trabalham por tuta e meia…

Pelo menos, a Bitsi e eu tínhamos feito as pazes.Perdida em pensamentos, não ouvi o sussurro das suas sabrinas

senão quando ela chegou junto de mim.— Miss Reeder quer falar connosco. Reunião de pessoal.A Bitsi e o zelador foram os últimos a chegar; ela ficou ao meu

lado.À sua secretária, Miss Reeder pigarreou.— Tenho notícias. As tropas alemãs penetraram na Bélgica, no

Luxemburgo e na Holanda. Bombardearam o Norte e o Leste deFrança.

O Norte. Rémy estava no Norte. Por favor, que ele esteja bem.Procurei a mão da Bitsi e prendi-a na minha.

Miss Reeder disse que tínhamos de estar preparados parabombardeamentos e até batalhas. Não havia, simplesmente,maneira de saber. O pessoal parisiense devia sair da cidade; opessoal estrangeiro devia sair do país.

— Voltar para casa? — perguntou Helen-da-referência.— Infelizmente, sim — disse Miss Reeder.— Também vai? — perguntou o Boris.— Por favor, não vá — balbuciou a Bitsi para si mesma.— Não — disse a directora. — A Biblioteca vai continuar aberta.Graças aos céus. A Bitsi apertou-me a mão. Estávamos

assustadas, mas ao menos tínhamos a Biblioteca.— É tudo. — Esta frase, usada para indicar o término das

reuniões, dispersou-nos como bolas de bilhar: para partilharmos anotícia, para chorarmos um pouco no vestiário. Atordoada, voltei acambalear para a sala dos periódicos, onde o Paul andava de umlado para o outro junto da estante das revistas.

— Acabei de saber — disse. — Deves estar morta depreocupação com o Rémy.

Abriu os braços, e entreguei-me ao seu conforto.

Uma semana mais tarde, Miss Reeder veio ter comigo, com atesta franzida de preocupação.

— O Hospital Americano está assoberbado — disse-me. —

Porque não dás lá uma ajuda durante uns dias? Pode ser difícil,mas talvez encontres alguém que conheça o teu irmão ou o seuregimento.

— E a Biblioteca?— Os livros hão-de sobreviver-nos a todos. Vai descobrir o que

conseguires.Enfermeiras com as toucas engomadas descaídas, os aventais

encharcados de sangue, a correr de um teatro de operações paraoutro. Soldados com ligaduras sujas afundados em cadeiras peloscorredores. Voluntários a lavar rostos e pés dos homens. Enchi umabacia com água morna e ajoelhei-me na frente de um soldado, eoutro, e depois outro. Sempre que limpava o sangue do rosto de umsoldado de cabelos escuros, esperava ver revelados os olhosinteligentes do Rémy. Incontáveis rostos mais tarde, levantei-mepara me esticar um pouco e fui ver se podia ajudar na enfermaria,onde os feridos jaziam em camas estreitas. Não sabia se devia estaraliviada por Rémy não estar ali entre os feridos ou assustada com aideia de que continuava lá fora a combater.

De madrugada, caí num catre na sala do pessoal, apenas paraacordar duas horas mais tarde para servir pequenos-almoços. Depijama, soldados franceses e ingleses eram destituídos de uniforme,patente e nacionalidade. A ordem social baseava-se na severidadedos ferimentos. Era assim que eu avaliava os danos: se um homemnamoriscava, estava a sentir-se melhor; se ficasse em silêncio,sofria.

Numa maca, acabado de sair da cirurgia, um homem gemia. Fuiter com ele e passei o meu lenço pela sua testa enrugada, um lençoque a maman mergulhara em água de lavanda.

— Tu — disse ele.— Eu — repliquei.— Lavaste-me a cara. Tens uma mão suave… — Adormeceu,

depois acordou sobressaltado. — Amo-te.— Com tudo o que te deram para as dores — respondi —, até

amavas uma cabra.Na enfermaria, na noite seguinte, ajudei-o a escrever uma carta

para casa, na América. Ele atravessara a fronteira para o Canadá ealistara-se na Royal Air Force.

— Nunca fui pessoa para ficar no banco — disse-me. Depoisapontou para as minhas mãos, todas vermelhas de lavar os feridos.— Tu também não.

— Estou habituada a coser livros, não pessoas.— Livros?— Sou bibliotecária.— Mandas as pessoas calar?Dei-lhe uma palmadinha no braço, na brincadeira.— Só soldados impertinentes.— Quem me dera estar numa biblioteca, agora.— Que tipo de leitor és? — Era a primeira vez em semanas que

fazia essa pergunta.— A Bíblia. No sítio de onde venho, são grandes fãs da Bíblia.— Queres que te traga uma?— Céus, não! Quero dizer, não, obrigado, já li.— E se te trouxer alguma coisa para leres amanhã?— Eu gostava.Bocejou e, um instante a seguir, adormeceu. Eram quase nove da

noite, e eu precisava de voltar para casa antes que a maman

arrancasse todos os fetos com a preocupação. Quando me dirigiapara a porta, um soldado chamado Thomas estendeu a mão, e osseus dedos roçaram o meu vestido ensanguentado. Tinha 19 anos.Foi barbeiro, antes. Na véspera, quando lhe levei um exemplar daLife com a Lana Turner na capa, recusou-se a abrir a revista.

«Não preciso de ver mais», insistiu.— Não se vá embora, Mademoiselle Rato de Biblioteca. —

Agarrou-me a bainha da saia.Desviei-lhe da testa o cabelo — castanho como o do Rémy.— Não vá — sussurrou de novo.A maman teria de esperar. Puxei-lhe o cobertor para debaixo do

queixo.— Fale comigo — pediu.— De quê?— Qualquer coisa.— Quem me dera que pudesses conhecer os meus habitués na

Biblioteca. Há um inglês… imagina um guindaste com um laço decornucópias. E tem um amigo francês… um leão-marinho combigodes farfalhudos. Todos os dias, acendem um charuto fedorentoe debatem. O tópico de hoje era: a madalena de Proust devia tersido antes um croissant? O de ontem: qual é o maior atleta com umJ no nome? Johnny Weissmuller ou Jesse Owens.

Fui recompensada com um pequeno sorriso.— Estão os dois enganados. É o remador Jack Beresford. Quero

ouvir mais.— Há a Madame Simon, com uma dentadura herdada que não se

ajusta à sua boca grande. Oh là là, e como adora dar à língua.— Tal como as mulheres da minha igreja. Mais.

— O último mexerico era sobre a minha leitora preferida, umaprofessora com um passado misterioso. «A professora casou comum homem que tinha metade da idade dela», começou a dizer aMadame Simon, mas a nossa catalogadora, a severa Mrs. Turnbull,com a sua franja cinzento-azulada toda torta, interrompeu: «Não,tinha o dobro da idade dela.» Bom, tinham as duas razão. Oprimeiro marido da professora tinha o dobro da sua idade, e osegundo tinha metade. Depois ficaram a especular sobre o terceiro.

— O terceiro? — disse ele. — Que vida.Olhei de relance para o relógio. Quase onze.— Não vá — pediu ele.A voz tornara-se rouca, por isso levantei-lhe a cabeça e dei-lhe

um pouco de água.— Nunca vais ficar sozinho — prometi. — Queres que te conte

mais coisas? A professora reconhece-se ao longe, porque andasempre vestida de púrpura. Fala de livros como se fossem os seusmelhores amigos.

— Quero conhecê-la.Fiquei toda a noite a contar histórias, a acalmar-lhe os sonhos

febris, a dar-lhe a mão até ele morrer.

CAPÍTULO 18

Odile

PARIS, 3 DE JUNHO DE 1940

Estava a uns quarteirões da Biblioteca, aonde ia buscar livros paraos meus soldados no hospital, quando a cidade se imobilizou. Semo arrulhar dos pombos, sem parisienses a conversar. Apenas umzumbido alto. Ergui o olhar e vi aviões, dezenas e dezenas deaviões. O meu coração ribombava nas costelas. Ao longe, ouvi oestrondo de vidro a partir à medida que as bombas explodiam. Umalarme gritou pelas ruas. As pessoas corriam à minha volta, corriamcontra mim. Senti o gosto do fumo e soube que devia correr para meabrigar. Imóvel no passeio, senti-me dormente enquanto olhava paraos aviões no límpido céu azul. A única coisa em que conseguiapensar era no Rémy. Onde estaria? Seriam estes os cheiros e ossons que enfrentava?

Quando o bombardeamento cessou — Ao fim de uma hora? Ouduas? Ou teriam sido apenas vinte minutos? —, colei-me àsparedes dos edifícios durante todo o caminho até à Biblioteca. Nobalcão de atendimento, o pessoal reuniu-se à minha volta. Olheipara a Bitsi, que exclamou «Oh, meu Deus!»; para a directora, que

tinha agora uma ruga delicada entre as sobrancelhas; para aMargaret, que agarrou as pérolas; e para o Boris, que disse: «Elavai desmaiar!»

Miss Reeder fez-me sentar. O Boris serviu-me uma chávena comwhisky, para me acalmar os nervos.

— Estás em segurança, por agora — disse ele.— As tropas alemãs nunca hão-de conseguir ultrapassar a Linha

Maginot — declarou a Margaret.— Já tivemos a nossa dose de optimismo — disse Miss Reeder.

— Agora precisamos de fazer planos.— Está a dizer que devíamos ir embora? — disse a Bitsi. — Não

sei para onde poderia ir com a minha mãe.A sirene continuava a guinchar nos meus ouvidos, e não

conseguia perceber o que estavam a dizer. Só sabia que tinha deregressar ao hospital: os meus soldados precisavam de mim.Levantei-me da cadeira.

— É melhor sentares-te — disse a Bitsi.Não. Eu precisava de voltar para os feridos.O hospital não tinha sofrido qualquer dano, mas lá dentro toda a

gente estava abalada. Com o material de leitura nas mãos a tremer,avancei pela enfermaria e fui circulando entre as camas, entre osrostos preocupados. À hora do jantar, ninguém tinha grande apetite.As enfermeiras e eu oferecemos tigelas de sopa e persuadimos ossoldados a comerem.

Em casa, a minha mãe fez uma fita.— Chegas cada vez mais tarde a casa. O Paul está aqui, e a

carne assada está pronta há uma hora.— O Rémy escreveu?

— Ainda não — disse o papa.— Que inferno de dia — disse o Paul, enquanto íamos debicando

dos nossos pratos. Necessitando do consolo do seu toque, movi aperna para a instalar entre as dele.

— Boas notícias de Dunquerque. «Uma obstinada batalhacontinua…» — leu o papa do comunicado de guerra. — «Umamagnífica resistência das tropas aliadas.»

— Só rezo para que a guerra acabe e ele volte para casa embreve — disse a maman, com uma mão na têmpora dorida, a outranas costas da cadeira do Rémy.

*

Quando cheguei à Biblioteca na manhã seguinte, Miss Reederestava sozinha na mesa da sala de leitura, debruçada sobre ojornal. Impecável como sempre, com o seu vestido de malha azul,rímel nas pestanas, batom perfeito, não deixava que os seus receiosa impedissem de ir trabalhar.

Talvez sentindo o meu olhar, ergueu a cabeça. Na sua expressão,vi tanta coisa — preocupação, curiosidade, coragem, afeição.

— Alguém da sua família ficou ferido durante o bombardeamento?— perguntou.

— Não.— Óptimo. — Empunhou uns telegramas. — Infelizmente, a

minha está a suplicar-me que volte para casa.Não os censurava. Por vezes, até eu queria ir embora dali.— Como pode ficar?Ela envolveu-me suavemente o rosto com as mãos.

— Porque eu acredito no poder dos livros. Fazemos um trabalhoimportante, garantindo que o conhecimento continua disponível ecriando um sentido de comunidade. E porque tenho fé.

— Em Deus?— Em jovens mulheres como tu e a Bitsi e a Margaret. Sei que

vão endireitar o mundo.Os leitores do costume reuniam-se em círculos para ler as

notícias. O Figaro congratulava os parisienses pelo seu sangfroid.Declarava que tinham sido lançadas mil e oitenta e quatro bombas,matando quarenta e cinco civis e ferindo cento e cinquenta e cinco.Uma fotografia mostrava um edifício bombardeado, com os quartosabertos ao mundo como uma casa de bonecas.

— Todas as batalhas são «uma magnífica luta» ou uma «valorosaluta» — observou Monsieur de Nerciat.

— A cada dia que passa, há mais artigos censurados — disse aprofessora Cohen. — O que estarão os censores a esconder?

Mr. Pryce-Jones quis falar comigo em particular. Os seus leitososolhos azuis estavam ensombrados de preocupação.

— Se eu tivesse um irmão, ia querer saber.No vestiário, entre guarda-chuvas partidos e cadeiras instáveis, o

diplomata reformado confiou-me que os comunicados não estavama revelar a verdadeira história.

— Mas… os jornais dizem que estamos a vencer.Não, disse ele. De acordo com a sua fonte na embaixada,

dezenas de milhares de soldados franceses e ingleses tinham sidocapturados. Em Dunquerque, os alemães tinham cercado as tropasaliadas, que estavam encurraladas pelo Canal. Enfrentando ataquesdo inimigo, navios ingleses tinham saído para ir recolher os seus

soldados. Em breve quase não restaria qualquer presença militarbritânica no continente.

Afundei-me numa cadeira, incapaz de conciliar o abismo entre oque tínhamos lido e o que ele me estava a contar. Os inglesesestavam a retirar poucas semanas depois de o verdadeiro combatecomeçar. O que aconteceria às tropas francesas? O que aconteceriaao Rémy?

— Lamento, ma grande.— Fez bem em dizer-me. Porque não podem eles salvar os

nossos soldados?— De acordo com as minhas fontes, ajudaram todos os que

conseguiram. Não se esqueça, estamos a falar de barcos de pescae botes juntamente com os navios da marinha a tentar evacuartrezentos mil homens.

A Linha Maginot ia manter-nos a salvo, França tinha o melhorexército — não passavam de mentiras. Oh, Rémy, onde estás?Tinha assumido que, se alguma coisa lhe acontecesse, eu saberia,mas não sentia nada.

Dias mais tarde, a caminho de casa, virei para o frondosoboulevard, esperando ter de contornar mademoiselles a deliciar-seperante as montras de luvas Kislav (seda ou algodão, pele ourenda) e conjuntos Nina Ricci (debruados com pele de esquilo, biensûr). Em vez disso, os passeios e a estrada estavam apinhados commilhares de pessoas, tantas que não conseguia ver o outro lado.Todas mostravam expressões atordoadas, esgotadas. Não

conseguia imaginar o que estas pessoas tinham passado, oshorrores de que tinham fugido.

Algumas famílias vinham em carroças puxadas por bois, comcolchões empilhados atrás. Outras vinham a pé, carregando trouxasou empurrando carrinhos de bebé cheios de pratos. Havia pessoasdo campo, com botas de trabalho, citadinos de sapatos brogue ousaltos altos. Uma avozinha com um vestido manchado de suor euma panela de ferro forjado ao peito, o marido a carregar uma sacade serapilheira. Até as crianças transportavam alguma coisa — umaBíblia, um saco com roupa a transbordar, a gaiola de um pássaro.Muitos caminhavam em pequenos grupos, mas outros estavamsozinhos. Um soldado com uma ligadura suja em volta do braçoquase chocou comigo. Uma rapariga da minha idade transportavaum bebé um pouco afastado na frente do seu corpo, como se nãosoubesse muito bem como o segurar. Talvez o marido tivesse sidoalistado e ela tivesse ficado sozinha com o bebé. Abanava-osuavemente, como se quisesse acordá-lo. As faces dele eram deum verde doentio, os membros parados no tempo. Incapaz deencarar a verdade, virei a cara.

Ao meu lado, um camponês incitava o boi a mover-se. Uma mãemurmurava qualquer coisa para um pequenino. Mas a maior partedas pessoas estavam em silêncio, como se não tivessem palavraspara o que tinham visto. Nos seus rostos assombrados, lia-se que avida nunca mais podia ser a mesma. Parei na rua, mantendo-mecom eles por respeito, como num cortejo fúnebre, antes de voltar acambalear para casa.

Ao jantar, o papa disse que ele e o seu pessoal tinham levado

bandejas de café aos refugiados. Vinham quase todos do nordestede França. Muitos nunca tinham saído das suas aldeias.

— Tiveram de fugir dos soldados alemães. Os homens com quemfalei… simples lavradores, comerciantes, não receberam qualquerajuda nem instrução. O seu presidente da Câmara foi o primeiro afugir.

— Para onde vai este mundo? — disse a maman. — Coitadas daspessoas. Para onde hão-de ir?

Agarrando-lhe a mão, ele respondeu:— Para o Sul, que é para onde tu e a Odile também vão. Eu tenho

de fazer o meu dever aqui, mas quero que vocês estejam em lugarseguro.

O que ele dizia fazia sentido. Esperei que a mãe aquiescesse,mas vi-a recuar como se ele a tivesse esbofeteado com um pedidode divórcio.

— Non!— Então, Hortense…Ela arrancou a mão da dele.— O Rémy há-de voltar para aqui. Eu não me vou embora.Point final.

Nós, parisienses, somos de uma estirpe blasé. Caminhávamoscom rapidez, mas nunca nos precipitávamos. Não pestanejávamosao ver amantes no parque. Éramos elegantes mesmo quando íamosdespejar o lixo, eloquentes mesmo ao insultar alguém. Mas, noinício de Junho, com a notícia de que os tanques alemães seencontravam a poucos dias da cidade, nós, parisienses,

esquecemo-nos de tudo. Havia tanto para dizer — termina as malas,tranca a porta, despacha-te — que gaguejávamos. Alguns correrampara a estação para garantir que os seus entes queridos erampostos em comboios para lugar seguro. Outros juntaram-se àdesolada procissão de vagões e carroças, carros e bicicletas,enquanto sapateiros, talhantes e fabricantes de luvas entaipavam assuas montras e partiam. Cada apartamento cerrado, cada portafechada era a prova de que alguma coisa terrível ia acontecer.

A embaixada britânica aconselhou o seu pessoal a sair de Paris,por isso o Lawrence e a Margaret planearam fazer com a filha aviagem de carro até à Bretanha.

— Até as coisas acalmarem — dizia a Margaret, insistindo que sóestariam fora algumas semanas. Ao pensar nos rostos assustadosdos franceses que, de um momento para o outro, se tinham tornadorefugiados no seu próprio país, eu não tinha tanta certeza disso.

Embora vivesse agora no que parecia ser uma cidade fantasma,os meus habitués continuavam a frequentar a secção dosperiódicos. Seria Paris novamente bombardeada? Conseguiriam osalemães chegar tão longe? Nem os generais sabiam. Talvez fosseisso o mais assustador — não sabíamos o que ia acontecer.

— Vai voltar para Inglaterra? — perguntou a professora Cohen aMr. Pryce-Jones.

A cabeça dele recuou.— Claro que não! Sem Paris, não sei onde estaria.Monsieur de Nerciat perguntou por Rémy, mas limitei-me a abanar

a cabeça, com medo de desatar a chorar se abrisse a boca.— Os políticos fugiram. — Mr. Pryce-Jones mudou

generosamente de assunto.

— E os diplomatas também.O inglês bufou, e o outro acrescentou:— Excluindo os presentes.— Paris sem políticos é como um bordel sem filles de joie — disse

Mr. Pryce-Jones.— Está a comparar Paris com uma casa de má reputação? —

perguntei.— Pior! — rectificou Monsieur. — Está a comparar os políticos a

prostitutas.— Se a carapuça serve — retorqui, e os homens riram-se.— Bill Bullitt ainda cá está — observou Mr. Pryce-Jones,

apontando a foto no Figaro. — Disse que nunca um embaixadoramericano fugiu, nem durante a Revolução Francesa, nem quandoos boches vieram em 1914… e que diabos o levassem se ele ia sero primeiro.

— Um cartaz dizia que Paris ia ser uma cidade aberta —comentei. — O que é que isso significa?

— Paris não se vai defender e o inimigo não vai atacar. É umaforma de assegurar a segurança dos habitantes.

— Então isso significa que não vai haver mais bombas? —perguntei cautelosamente. Não se podia acreditar completamentenos comunicados de guerra, mas eu tinha total confiança em Mr.Pryce-Jones.

— Bombas, não — replicou ele. — Alemães, sim.Margaret entrou a correr na Biblioteca. Pálida como as suas

pérolas, olhou em volta da sala e correu para mim.— Tinha de perguntar uma última vez — disse. — Tens a certeza

de que não queres vir?

— Se o Rémy regressar…— Compreendo. — Apertou-me a mão. — E se nunca mais nos

voltarmos a ver?Era uma pergunta sem resposta. Só lhe podia dizer:— És a minha amiga mais querida.— Não sei o que vou fazer sem ti. Adoro a Biblioteca, mas adoro-

te ainda mais a ti.Uma buzina apitou lá fora.— É o Lawrence. A Christina deve estar agitada — disse ela,

trémula. — É melhor ir. Bon courage.Adoro a Biblioteca, mas adoro-te mais a ti. Era exactamente como

me sentia. Éramos como Janie e Pheoby no meu livro preferido.Podíamos dizer tudo uma à outra.

Ver a minha melhor amiga partir transformou-me num bulerachado. Não querendo que os meus habitués me vissem perder ocontrolo, pestanejei rapidamente enquanto me precipitava para ocatálogo. A folhear os cartões, deixei que as lágrimas caíssem sobreo papel, e escondi toda a minha angústia na gaveta do O.

— A Margaret está a tomar a atitude inteligente. — A professoraCohen envolveu-me os ombros com o seu xaile.

— Também se vai embora?Ela fez um sorriso malicioso.— Ma grande, nunca ninguém me acusou de tomar a atitude

inteligente.

Uma biblioteca é um santuário de factos, mas agora os boatos

abriam caminho até à sala dos periódicos, onde a professora Cohene Mme. Simon tagarelavam à mesa.

— Ouvi dizer que, a partir de agora, nas escolas, só vão ensinaralemão — disse-me a Madame enquanto eu arrumava uma pilha derevistas. — Não vamos poder andar nos passeios, só os alemães.Está a ouvir-me, menina? — Enfiou o dedo indicador no meu peito.— Vão violar tudo o que tenha pernas. Especialmente as bonitascomo a menina. — O medo agitou-me o estômago, embora eutentasse ignorá-la. — Cubra-se de mostarda, para eles nãoquererem nada consigo.

— Basta! — disse a professora Cohen.

A directora tinha arranjado veículos para levar colegas paraAngoulême, onde iriam auxiliar o pessoal na clínica americana. Euqueria ir despedir-me deles, mas o papa ordenou-me que ficasseem casa.

— Preciso de me despedir!— Não.— Se eu não for, Miss Reeder vai estar sozinha. — Lembrei-me

de como uma chorosa sócia se desfizera em lágrimas nos braçosdela. A directora ia ficar, e nem sequer era o seu país.

— Não estou preocupado com ela. Estou preocupado contigo.— Miss Reeder diz…— Miss Reeder diz! Então e aquilo que eu digo?— Então e a Biblioteca? — perguntei.— Então e a Biblioteca o quê? — disse ele, exasperado. — Não

compreendes o perigo?

Na manhã seguinte, acordámos com os gritos nos altifalantes.— Protestos e actos hostis contra as tropas alemãs serão punidos

com a morte!

CAPÍTULO 19

Miss Reeder

PARIS, 16 DE JUNHO DE 1940

Seria mesmo Paris, aquilo? Miss Reeder não podia acreditar. Asavenidas estavam desertas, as bancas dos mercados, vazias. Atéos pardais tinham fugido. Dirigiu-se a passo rápido para a paragemdo autocarro, passando pela florista, onde viu aracnídeas carcaçasde hortenses, e depois por uma padaria entaipada. Tinha saudadesdo habitual e mágico cheiro a croissants. Normalmente, apanhava o28 para a Biblioteca, mas os transportes públicos estavamsuspensos. Continuando a pé, de pasta e máscara de gás na mão,estremeceu ao ver um trio de soldados alemães de patrulha.Preocupada com a possibilidade de encontrar mais noutro sítio,Miss Reeder estugou o passo, com uma coisa em mente: aBiblioteca.

Atravessou o Sena. Não havia uma alma à vista na imensa PraçaConcorde, nem um único carro a descer os Campos Elísios, a maisconcorrida das artérias francesas. Na mais animada cidade domundo, seria possível ouvir um gancho de cabelo cair ao chão. Osilêncio era estranho. Nunca se sentira tão sozinha. No entanto, ver

a embaixada fortaleceu-a, e sentiu-se tentada a informar oembaixador Bullitt de que a Biblioteca continuaria aberta — afinal decontas, ele era o presidente honorário. Mas sabia que antes de ogoverno francês se fazer à estrada, o primeiro-ministro tinha pedidoao embaixador americano para lidar com os generais alemães dechegada e manter a ordem. A suástica a ondular sobre o opulentoHotel Crillon, mesmo em frente da embaixada, indicava que odiplomata tinha trabalho a fazer.

A directora entrou no átrio da Biblioteca enquanto o zelador abriaas portadas. Chegava mesmo a tempo de ver os olhos ensonadosdo seu mundo a acordar.

— Vou para o meu gabinete. Nada de visitantes antes das nove,por favor — disse, como de costume, ao zelador, antes de prepararo café. À sua secretária, releu os telegramas, esperando quetivessem mudado durante a noite, como tudo o mais. «Solicitaçãode fundos foi suspensa», escrevera o terceiro vice-presidente dadirecção em Nova Iorque. «Poderá existir nas mentes dos nossosamigos alguma dúvida a respeito da continuidade da Biblioteca.»Outro escrevera: «Assumimos que a Biblioteca tenha fechado.Duvido de que possa ter qualquer existência no futuro próximo.»

«Eu não saí do meu posto!», queria gritar. «Estamos aqui.»Precisava de os convencer de que a BAP devia continuar aberta.«As bibliotecas são pulmões», escreveu, a caneta mal conseguindoacompanhar o ritmo das suas ideias. «Os livros são o ar frescoinspirado para manter o coração a bater, para manter o cérebro aimaginar, para manter a esperança viva. Os sócios dependem denós para terem notícias, para terem um sentido de comunidade. Ossoldados precisam de livros, precisam de saber que os seus amigos

da Biblioteca se preocupam com eles. O nosso trabalho édemasiado importante para pararmos agora.» Releu as frases:demasiado verdadeiras, demasiado sentimentais. Recompôs-se,compôs mais cartas, esta para Mr. Milam, da Associação Americanade Bibliotecas, a outra para a direcção em Nova Iorque: «Estamos adar aos estudantes o que eles necessitam, ao público os livros quequerem, e aos soldados o que podemos. É, afinal de contas, algo aque nos agarrarmos, esperando uma mais vasta contribuição para ahumanidade.»

Serviu-se de café.— Ainda tem mais? — perguntou Bill Bullitt, enfiando a cabeça

calva na abertura da porta.— Embaixador.— Directora — disse. — Sabe porque aqui estou.— Para me aconselhar a regressar aos Estados Unidos — disse

ela com a voz inexpressiva.— O presidente Roosevelt ordenou-me que saísse de Paris e

ainda aqui estou. Não a vou aconselhar a fazer uma coisa que eupróprio me recusei a fazer.

— Onde andará o nosso bom senso? — disse ela com umpequeno sorriso.

— Devemos tê-lo deixado nos Estados Unidos.O embaixador serviu-se de uma chávena de café e sentou-se.— Refugie-se no Le Bristol, onde estão instalados os outros

americanos.— Não tenho dinheiro para isso.Ele bebeu um gole.— Eu trato disso.

— Fico bem em casa.— O seu prédio tem algum abrigo na cave para a proteger contra

gás venenoso?Ela apontou a máscara de gás caída na frente da estante.— Os transportes vão estar suspensos durante algum tempo —

disse ele. — O Le Bristol fica só a quatro quarteirões daqui.Seria conveniente ficar mais perto.O impasse trouxe um silêncio.— Pode dizer-me alguma coisa? — disse ela por fim.O anterior tom confiante do embaixador desvaneceu-se.— Tivemos muita dificuldade a lidar com os alemães. Prometa-me

que vai ter cuidado. E que se vai mudar para o hotel.— Vou esta noite. — Ela passou-lhe a correspondência para ser

enviada por mala diplomática.— Não lhe quero ocupar mais tempo. — Ele saiu.Uma pequena parte de Miss Reeder desejava ter dado ouvidos

aos pais quando lhe tinham suplicado que tomasse um navio. Traziauma fotografia deles na carteira. Sempre que comprava umabaguete ou procurava o seu lenço, os olhos da mãe e do paisuplicavam-lhe que voltasse para casa. Gostava de os fazercompreender que Paris era a sua casa. Tinha ali o seu trabalho, asua vida.

Ficar fora a escolha certa. Se alguma coisa os pais lhe tinhamensinado fora a manter-se firme, quer ao lidar com uma colegamaliciosa quer com o autoritário catalogador da Biblioteca doCongresso. Não és nada se não tiveres princípios. Não estás emlugar nenhum se não tiveres ideais. Não és ninguém sem coragem.Ao mesmo tempo que lhe pediam para voltar para casa,

orgulhavam-se por ela ficar. Querida mãe e querido pai, escreveu,Há muitas coisas que gostaria de vos dizer, muitos pensamentosque gostaria de enviar, mas, infelizmente, terei de depender dovosso coração e entendimento para saberem tudo o que tenho pordentro…

Le Bristol. Os pais ficariam mais tranquilos por ela estar alojadacom compatriotas. O hotel tinha uma longa lista de hóspedesdistintos: estrelas de cinema, herdeiras, lordes, damas, e agora umabibliotecária. Depois do trabalho, voltou a pé para casa, na rue de laChaise número 1, para ir buscar as suas coisas. Quando estava adestrancar a porta, Mme. Palewski precipitou-se para ela. A pelemorena da porteira estava da cor da cal.

— O que se passou? — perguntou Miss Reeder.— O meu marido estava na Biblioteca Polaca. Eles foram lá. — A

Madame começou a chorar. — Entraram à força. Exigiram aschaves. Andaram pelo edifício todo. Os arquivos, os manuscritosraros. O director tentou impedi-los. Os soldados ameaçaram levá-lo.

— O seu marido está bem?— Sim. Mas eles roubaram tudo…Os nazis estavam em Paris há três dias, e já começava. Miss

Reeder tivera a esperança de que igrejas e bibliotecas — tranquiloslugares de devoção — não fossem incomodados.

Percebeu que em breve teria de enfrentar o inimigo.

CAPÍTULO 20

Odile

2 de Julho de 1940

Querido Rémy,Onde estás? Queremos tanto ver-te, ter notícias tuas. Está tudo bem connosco.

Depois de me manter em casa durante dez longos dias, o papa autorizou-mefinalmente a regressar ao trabalho. Estava morta de preocupação com a directora,sozinha na Biblioteca, mas ela insiste que «está a adorar» ser a única guardiã. Foiterrivelmente solitário estar sem os outros, que apenas agora regressaram. Quandopus os olhos na Bitsi, gritei de alegria; Monsieur de Nerciat teve o enorme prazer defazer chiu a uma bibliotecária. Mas a boa notícia foi seguida por uma má — o Borisexplicou que os nazis também tinham chegado a Angoulême. A severa Mrs. Turnbullvai viajar dali directamente para Winnipeg. Por ser canadiana, logo, súbdita britânica, éconsiderada uma estrangeira inimiga.

Aqui, os nazis estão a comprar tudo, desde sabão a agulhas de costura.Chamamos-lhe «turistas», porque tiram fotos dos monumentos como se estivessem deférias. Quando nos pedem indicações — Onde é o Arco do Triunfo? Onde é o MoulinRouge? —, dizemos-lhes que não sabemos. Com recolher obrigatório às nove danoite, a cidade fica em silêncio. Fomos obrigados a adiantar os relógios uma hora,para ficar no seu fuso horário. Sempre que olho para o relógio lembro-me de quevivemos no tempo deles, nas condições deles.

Ninguém acredita que a França perdeu, e tão depressa. No púlpito, o padregesticulou com a Bíblia na mão na nossa direcção, e berrou que a derrota é o castigode Deus pela nossa falta de valores morais.

O papa disse que algumas pessoas foram presas por escreverem nas paredes ouatirarem pedras aos soldados alemães, mas que, tirando isso, a situação está calma.O Paul parece suficientemente zangado para matar alguém. Diz que o seu trabalho

agora consiste em orientar o trânsito para os nazis. Mandaram-no usar luvas brancas,o que o faz sentir «o raio de um mordomo». Daqui a pouco tempo vai ajudar a tia naquinta. A mudança vai fazer-lhe bem.

Deve ser um inferno para ti não poderes ter a Bitsi nos braços. Ela tem umasterríveis saudades tuas. Juro que, enquanto estiveres fora, vou cuidar dela com todasas minhas forças e ternura.

Não temos tido notícias da Margaret, e espero que esteja bem. Os poucos sóciosque ficaram levam mais romances do que nunca, talvez para tentarem escapar a estainquietante metamorfose — o Boris chama-lhe a «França de Kafka».

Beijos,Odile

«Frota Britânica afunda dois couraçados franceses — Mais de1000 Marinheiros Franceses Mortos», dizia a manchete. De acordocom o Herald, do outro lado do Mediterrâneo, em Orão, os inglesestemiam que a marinha francesa permitisse que os nazisconfiscassem os seus navios. O almirante inglês fez um ultimato aosfranceses — rendam-se com os vossos navios ou afundamo-los —e deu-lhes seis horas para entregarem os navios. Quando l’admiralrecusou, os ingleses atacaram. Li o artigo duas vezes, mascontinuava sem compreender. Aliados a lutar uns contra os outros?

— Traidor! — gritou Monsieur de Nerciat a Mr. Pryce-Jones. Nãoprecisei de ler o jornal para saber que a França tinha cortadorelações diplomáticas com a Inglaterra. Durante dias, vi Monsieurmarchar pela Biblioteca, a balbuciar qualquer coisa sobre ter deprocurar uma cadeira que não tivesse sido conspurcada pelatraição.

Senti o Boris ao meu lado.— Telefonema — disse, com os olhos verdes soturnos. — É o teu

pai.Corri para o balcão de atendimento e peguei no auscultador.

— Papa? É o Rémy?— Vem para casa, minha querida — disse ele.Fui buscar a Bitsi, que estava a ler para meia dúzia de crianças.

Quando me viu, deixou cair o livro. Saímos precipitadamente daBiblioteca, agarrei-lhe na mão e puxei-a. Corremos pela rua abaixo,corremos na direcção de… estaquei.

— O que foi? — perguntou ela. Abanei a cabeça. De repente,queria demorar o máximo possível, com medo de que o Rémyestivesse… não o conseguia dizer, nem pensar. Naquele momento,ele estava vivo. Talvez, quando chegássemos a casa, já nãoestivesse.

A nossa vida juntos passou-me diante dos olhos. O nosso quintoaniversário, quando a maman fez o bolo de chocolate com asbordas queimadas. O dia em que o papa nos levou a andar de póneino Bois. O dia em que enchemos a tigela de açúcar com sal, o quefez com que a maman e as amigas se engasgassem com o chá.Quando ela se queixou ao papa, esperando que ralhasse connosco,ele dobrou-se a rir com uma gargalhada como eu nunca tinhaouvido. A maman, que não era tola, passou a usar apenas cubos deaçúcar, depois disso. Os intermináveis almoços de domingo ondeum piscar de olho do Rémy era a única coisa que me mantinha sã.A mais importante refeição da minha vida, quando conheci o Paul.Cada recordação incluía o Rémy.

Até ele se alistar no exército, sempre fora a primeira pessoa comquem eu falava de manhã, a última à noite. O meu melhor amigo, aminha alma gémea. Não que alguma vez lho tivesse dito. E setivéssemos já dito as nossas últimas palavras um ao outro?Lembrei-me do dia em que ele partiu. O que lhe tinha dito eu? Leva

uma camisola, para não te constipares? Despacha-te, ainda perdeso comboio?

— Pára — disse a Bitsi.— O quê?— O que quer que estejas a fazer.Em casa, o papa sentou-nos ao lado da maman, que estava

pálida como uma aspirina. Depois encostou-se à lareira.— Recebemos notícias do Rémy.

CAPÍTULO 21

Lily

FROID, MONTANA, ABRIL DE 1985

Eu e o meu pai chegámos à igreja às três e meia. Mergulhando osdedos na rançosa água benta, reparei no maciço de rosas cor-de-rosa que adornavam os bancos. Havia quase tantas flores para ocasamento como houvera no funeral da mamã, há pouco mais deum ano. Doía-me a cabeça. Queria meter-me na cama e cobrir-mecom memórias da minha mãe, como uma manta.

A mãe da Eleanor veio ter connosco.— Pronto para o grande dia? — perguntou ao meu pai. Depois

abraçou-me. O meu nariz aterrou no seu corpete cor de cravo, eespirrei. — Chama-me avó Pearl — disse-me, e depois conduziu-mepara a sacristia, onde me apresentou as três damas de honor aosrisinhos, que, como a «avó Pearl», tinham vindo de Lewistown. Omeu vestido era do mesmo rosa Pepto-Bismol do delas. A Eleanormirava-se ao espelho de corpo inteiro, com um véu de renda acobrir-lhe o rosto e o cabelo apanhado.

— Está tão bonita como a Lady Di — disse-lhe. Era a verdade-verdadeira. Ambas tinham aqueles olhos de corça.

Queria gostar dela. Queria que ela gostasse de mim. Mas quandome puxou contra o seu peito coberto de cetim e me apertou comforça, os meus braços ficaram caídos, ainda não preparados para aabraçar.

— Fofa — disse. — Prometo cuidar de ti como se fosses minha.Era simpático, dentro do género das promessas, e eu sabia como

responder. Depois da minha lição sobre les adjetifs, Odile tinha dito:Vou ensinar-te palavras em inglês. Palavras que deves dizer.

— Espero que você e o papá sejam felizes — disse eu a Eleanor.Embora tivesse praticado, a frase soou forçada.

Em francês, há duas formas de tratamento, a informal e a formal.Tu para amigos e entes queridos, vous para conhecidos e pessoasque queremos manter à distância. Eu usaria tu com o meu pai, masvous com a Eleanor.

O órgão atacou Pachelbel e apressámo-nos a ir para o fundo daigreja. Mrs. Olson — a única organista da cidade — não esperavapor noiva nenhuma; os casamentos seguiam o seu rígido horário.Ao deslizar ao longo da igreja, vi o Robby na quarta fila a contar dofim. Olhava para mim. Só para mim. Limpei as mãos suadas aovestido e sentei-me entre Odile e Mary Louise na primeira fila. Empares organizados, seguiram-se as damas de honor e os padrinhos.As prepotentes notas de «Here Comes the Bride» encheram aigreja. O meu pai aguardava no preciso local onde estivera o caixãoda minha mãe. O caixão de marfim que fora carregado ao longo damesma nave que a Eleanor e o seu pai percorriam agora.

— Amados irmãos — começou Maloney Colarinho-de-Ferro, e aslágrimas encheram-me os olhos. Com medo de preocupar o meu paise ele me visse, baixei a cabeça e fixei os olhos no genuflexório.

Odile pousou um pé sobre o meu. A pressão deu-me algo em queme concentrar.

— Casado, e a Brenda ainda agora morreu — disse Sue Bob.— E o James, que arranjou uma pessoa tão nova — disse Mrs.

Ivers, embora tivesse sido ela a juntá-los.— Ele está a fazer isto pela Lily — disse a velha Mrs. Murdoch. —

Aquela rapariga precisa de uma mãe.Sussurro, sussurro, sussurro. Eu tentava não ouvir.«Pode beijar a noiva» costumava ser a melhor parte, porque é

romântico e perto do fim, mas ver o meu pai beijar outra mulher foiesquisito. A Mary Louise deu-me uma cotovelada, como se tambémela não conseguisse acreditar.

No salão, fitinhas pastel flutuavam entre as luzes fluorescentes.— Este cor-de-rosa todo dá-me vontade de vomitar — comentou

a Mary Louise. Sentadas todas tortas nas cadeiras de metal, vimosos noivos desfilarem pela sala, cumprimentando os convidados. Eraapenas uma questão de tempo até terem um filho, para mesubstituírem como tinham substituído a minha mãe.

O bolo, quase da altura da Eleanor, rimava com a formaespumosa do seu vestido Cool Whip. Ela e o pai cortaram o bolo,com as mãos unidas na faca de prata. Limparam migalhas da bocaum do outro. Houve disparos de máquinas fotográficas. O meu paifez-me um gesto para ir buscar uma fatia. Claro, a Tiffany Iverschegou lá primeiro.

— Pelo menos, o bolo é bom — comentou ela.— Cala-te. — Peguei em dois pratos, um para a Mary Louise e o

outro para mim.— Só estava a tentar ser simpática. — Virou-se para o meu pai.

— Parabéns, senhor e senhora Jacobsen.Ele tinha visto a conversa, e provavelmente perguntava-se porque

não podia a sua filha ser tão querida como a Tiffany Ivers. Os pratosnas minhas mãos tremeram. Antes que o meu pai me ralhasse, fui-me embora, contornando convidados.

O Robby apareceu na minha frente.— É lixado, não?Ouvia tanto aquelas palavras. Lamento pela morte da tua mãe.

Hoje deve ser difícil para ti.— Sim.Ele levou os meus pratos para junto da Mary Louise, deixando-se

ficar à nossa mesa por um minuto antes de voltar para junto dospais dele. A minha amiga comeu o seu bolo e o meu. Quando o DJpôs um slow a tocar, fixei o sinal luminoso da saída por cima daporta, não querendo ver o senhor e a senhora Jacobsen colados umao outro. O meu pai deu-me um toque no braço.

— Dança de pai e filha, Lil. — Conduziu-me para a zona de baile,onde Mr. Carlson fazia Eleanor girar ligeiramente. Devíamos dançar,mas ficámos ali parados.

— Na igreja — disse o meu pai — vi-te de cabeça baixa.Contraí-me.— Também estou um pouco triste — admitiu ele.Segurou-me a mão. Ondulámos lentamente, juntos, e, durante o

resto da recepção, aquela confissão permaneceu nos meus ouvidos.O meu pai e a Eleanor partiram na nossa carrinha, decorada com

um letreiro a dizer «Casados de Fresco». Aliviada com o final dosuplício, voltei para casa com a Mary Louise. No meu quarto, vesti a

minha T-shirt da águia. Ela pontapeou o vestido cor-de-rosa paradebaixo da cama.

Chez Odile, acordei com o aroma amanteigado dos croissants.Sentindo-me abatida, não comi muito. Não podia deixar de meperguntar como seria a vida quando o meu pai e a Eleanorregressassem da sua lune de miel. As coisas iriam mudar, e eutemia que não houvesse espaço para mim.

— Pareces-me pensativa. — Odile passou-me Os Marginais. — Ésobre família, aquela com quem nasces e aquela que crias comalmas irmãs. É sobre a maneira como arranjamos um lugar para nósneste mundo.

— Os seus livros têm sorte — comentei. — Têm um sítio exactoonde devem estar. Sabem quem têm ao seu lado. Quem me dera terum número decimal de Dewey.

— Eu costumava perguntar-me qual seria o meu número, se otivesse. Podemos criar o nosso próprio número.

Isto gerou uma conversa. Devíamos estar em literatura ou emnão-ficção? Deveria o número de Odile ser francês ou americano, ehaveria algum número franco-americano? Poderíamos partilhar omesmo número para ficarmos sempre juntas? Somámos 813(americano), 840 (francês) e 302.34 (amizade), e criámos a nossaprateleira de livros dignos do 1955.34. Alguns dos preferidos eram OPrincipezinho, Mulherzinhas, O Jardim Secreto, Cândido, O LongoInverno, A Tree Grows in Brooklyn, De Olhos Pousados em Deus.Quando terminámos, senti que, independentemente do queacontecesse, teria sempre um lugar junto de Odile.

Na manhã seguinte, a Mary Louise e eu ficámos estendidas nosofá de Odile e bebemos café au lait, que era maioritariamente lait,enquanto ela sachava o seu jardim. Quando terminámos, espreiteias gavetas do seu aparador.

— Ainda achas que ela era uma espiã? — perguntou a MaryLouise.

Encolhi os ombros. Pelas facturas, fiquei a saber que as suasroupas vinham de uma boutique em Chicago. Não propriamenteuma grande descoberta — eu sabia que não vinham da Jeans’nThings. Num desmaiado cartão de Natal, alguém chamado Lucienneinstava Odile a contactar os seus pais antes que fosse «tardedemais».

— Ela está mesmo aqui fora — sibilou a Mary Louise. — Vais serapanhada.

— Alguma coisa aconteceu em Paris. Há uma razão para ela tercá ficado.

Quando a porta se abriu, fechei a gaveta com força.

Quando a lua-de-mel terminou, o meu pai foi buscar-me à casa deOdile, onde estávamos a terminar o meu teste sobre les verbes. Elaconvidou-o para entrar, mas ele declinou. Ficámos no alpendre, como sol da Primavera a aquecer-nos. Eu temia o que ele ia dizer. Osnúmeros saíam facilmente ao meu pai. Eram sempre a somar. Aspalavras eram mais difíceis. Ele nunca compreendia o seu peso.

— Obrigado por cuidar da Lily — disse ele.— Foi um prazer. — Odile fez-me um enorme sorriso.— Agora que a Ellie está aqui, pode descansar — continuou.

— Descansar? — repetiu ela.— A Lily devia passar mais tempo em casa.Ele que nem pensasse que eu ia desistir da Odile. Ela estava do

meu lado, não importava o que acontecesse. Podia contar-lhe tudo.O meu pai estava sempre a dar-me ordens, mas Odile nunca ofazia. Confiava em mim, confiava que eu tomaria as decisões certas.

Eu podia lavar-lhe o carro, cortar-lhe a relva, regar-lhe os fetos —fazia qualquer coisa para continuar as suas lições. Antes que eupudesse dizer-lhe isto mesmo, ela disse em francês:

— Amanhã à mesma hora.— Oui, merci. — As minhas palavras transbordavam de gratidão.

Eleanor despediu-se do seu emprego e a vida do meu pai voltouao normal. Ao fim de um longo dia no banco, regressava para casaao encontro de uma mulher, uma filha e um jantar quente. Aossábados de manhã, a Eleanor mandava-me aspirar e passar umtrapo com Pledge de limão sobre cada superfície.

— Uma jovem precisa de aprender estas coisas. Mais tarde, vais-me agradecer.

Quando me queixava, o meu pai dizia que eu precisava de«ouvir» a Eleanor. Com isto, queria dizer «obedecer».

Mesmo quando a escola terminou para as férias de Verão, elalevantava-se cedo e esculpia os seus caracóis com mousse. Antesde o pai sair para o trabalho, endireitava-lhe a gravata dez vezes. Aminha mãe nunca passara a ferro as minhas camisas, mas aEleanor fazia-o.

— Nunca ninguém vai poder dizer que não cuidei de ti.

Ao jantar, se entornasse creme de milho na toalha de mesa, elacorria para o lavatório e regressava com um pano para limpar anódoa.

Eu queria umas férias dela, e mal podia esperar para começar aescola secundária. Esperava que o Robby se apaixonassefinalmente por mim, que a Tiffany se fosse embora (ou, melhorainda, sofresse um acesso de choléra). À noite, no meu quarto,revia a leçon de francês, depois dizia o que era demasiado timidepara dizer em inglês: je t’aime, Robby, je t’adore.

No primeiro dia de aulas, enfiei a T-shirt da águia. Emboraestivesse dois tamanhos abaixo do meu e o decalque quase tivessedesaparecido, usá-la fazia-me pensar na minha mãe.

Na cozinha, o meu pai agitou as chaves do carro.— Pronta para ir?— Comprámos-te roupa nova — bufou a Eleanor. — Queres ir

vesti-la, por favor?Cruzei os braços.— Não.Olhámos para o meu pai, o árbitro relutante.— Já as estou a ouvir! «E aquela pobre Lily» — imitou a Eleanor

—, «com as calças pelas canelas e T-shirt toda rota. O que é que amãe dela haveria de dizer?»

— As pessoas falam, não significa que tenhamos de lhes prestaratenção. — O meu pai apontou para o relógio. — Se não sairmos já,vamos chegar atrasados.

— Pronto — disse ela.Não era uma verdadeira vitória.No auditório, sentei-me na primeira fila, e a Mary Louise ficou

atrás de mim. O Robby instalou-se no assento do outro lado docorredor. Quando eu disse Bonjour, ele olhou em volta, como sepensasse que eu estava a falar com outra pessoa qualquer, e nãocom ele

— Talvez seja melhor ficares pelo inglês — aconselhou-me aMary Louise.

— Pouco barulho — bradou a professora Boyd —, senão mandotrabalhos de casa extra para toda a gente!

Bref, le lycée revelava-se a mesma desilusão, apenas comprofessores diferentes e um edifício maior; em casa, a Eleanorrecebeu-me com uma nova lista de tarefas.

— Não fui eu que prometi amar, fazer as vontades e obedecer —balbuciei, enquanto passava superficialmente a esfregona sobre olinóleo.

Por vezes sonhava com a minha mãe. Com as nossas saídaspara observar o voo dos gansos. Com as alturas em quecantávamos Jingle Bells a plenos pulmões. Com os momentos emque fazíamos bolos. Quando o despertador tocava, a mãedesaparecia. A dor era tão forte que me enroscava numa bola.

— Levanta-te, preguiçosa! — A Eleanor martelava-me a porta. —Vais chegar atrasada à escola.

— Não me sinto bem — gemia.— Pareces-me óptima.Ainda assim, a Eleanor lembrou-se de incluir Odile no jantar de

Acção de Graças, o que tornou o peru seco mais fácil de engolir.Quando Odile confidenciou que passava todas as festividadessozinha desde a morte do marido, o meu pai deu um toque na mãoda Eleanor, e vimos que ele estava orgulhoso. Enquanto eu brincava

com os pedaços de abóbora áspera pelo meu prato, a Eleanor pediua Odile para nos tirar uma fotografia para o cartão de Natal. O meugarfo imobilizou-se. O meu pai e a Eleanor levantaram-se, prontospara ser fotografados, mas o meu coração doía com a ideia de aminha mãe ser riscada do mapa da família.

Férias de Natal. Trabalhos de casa feitos. A Tiffany Ivers a visitara família no Leste do país. Nem uma única nuvem no meuhorizonte. A Mary Louise e eu esculpimos uma boneca de neve(com berlindes a fazer de olhos, boca e brincos) para fazermos umasurpresa à avó Pearl. Sempre que ela ligava a Eleanor, pediatambém para falar comigo. E, todos os meses desde o casamento,enviava-me alguma coisa — um cartão engraçado, uma assinaturada Seventeen, botas de neve cor de malva. Eu tinha algumasdúvidas a respeito da Eleanor, mas gostava da avó Pearl.

— O que acha? — perguntei a Odile, que saíra para ir buscar ocorreio.

— Acho que precisa de um pouco de cor.A Mary Louise desatou o cachecol fúcsia que «levara

emprestado» da irmã e enrolou-o à volta do pescoço gelado daboneca de neve. Infelizmente, a Angel passou por ali de carro e viuque tínhamos usado uma peça sua. Pegou numa pá e bateu nanossa criação até a transformar numa montanha disforme de flocosde neve. Depois de terminar, nem sequer conseguimos encontrar osberlindes.

Quando os pais da Eleanor chegaram, abracei a avó Pearl antesmesmo de ela conseguir sair do carro. Pegando na bagagem, o meu

pai e Mr. Carlson evaporaram-se na sala, enquanto as mulheres sededicaram aos biscoitos de gengibre. Ao balcão da cozinha, Odilecantarolava «Silent Night» em surdina enquanto estendia a massacom o rolo; eu enterrava os moldes de Pai Natal na massapegajosa. A avó Pearl mexia a sidra quente. A Eleanor saltitava pelacozinha como se precisasse de fazer chichi.

— Rapariga, o que é que se passa contigo? — perguntou-lhe amãe.

— Não aguento mais! — guinchou a Eleanor. — Estou deesperanças!

— A minha bebé vai ter um bebé! — exclamou a avó Pearl.Como?— Para quando está previsto? — quis saber a avó Pearl.— Vinte e oito de Abril.O pai já sabia? Porque é que não me tinha dito?— Um bebé! — Odile uniu as mãos. — Que maravilha!— Tenho o teu vestido de baptizado na minha arca de enxoval —

disse a avó Pearl. — Vou mandar-to.— Eu tenho alguma lã que vai ser perfeita para uma mantinha

para o bebé — acrescentou Odile.Não tínhamos mais nenhum quarto. Onde é que o iam pôr? As

andorinhas roubam ninhos das andorinhas-azuis, expulsando-lhesas crias. O estorninho rouba os pardais. É mau, mas a minha mãedizia que a Natureza era assim.

Lá saíram a secretária de metal e o armário de arquivo todoamolgado. Lá saíram os extractos bancários e as contas telefónicas.

Lá se foram os programas de concertos e fotografias de aves —todas as recordações da vida com a minha mãe. Talvez para aEleanor parecessem papéis velhos, mas para mim eram memórias.Por sorte, vi-os no lixo e escondi-os no meu quarto.

O escritório do pai era agora um quarto de bebé. A Eleanor erguiaamostras de tinta pastel que faziam lembrar os ovos de Páscoa quetínhamos pintado. No fim, pintámos o quarto de um amarelosoalheiro. A minha mãe teria dito que o berço de madeira lembravaum ninho, mas eu não o disse a Eleanor. Já nunca lhe falava daminha mãe, porque, quando o fazia, o seu nariz enrugava-se comose as minhas palavras fedessem.

No Dia do Trabalhador, a Eleanor — tão enorme — ficou a ver-mesair para a escola, de mão sobre a grande barriga. Naquela mesmanoite, vi-a na cama do hospital, parecendo cansada mas feliz, comose tivesse participado numa grande corrida e vencido. Homensofereciam charutos ao meu pai e davam-lhe palmadinhas nascostas. Ele sorria como o anão Tímido da Branca de Neve. Mrs.Ivers deu ao bebé um título de poupanças. A rabugenta Mrs.Murdoch fizera umas botinhas em croché. Toda a vila compareceunas escassas horas de visitas. Quando a Mary Louise chegou,revirávamos os olhos e imitávamos o que ouvíamos.

— Um rapaz! Graças ao Senhor!— O nome vai ter continuação!Mais tarde, quando peguei no bebé ao colo, pensei na minha mãe

e fui inundada de melancolia. Depois o Joe aninhou-se na dobra do

meu cotovelo e debrucei-me para o cheirar. Cheirava a bolachas deaçúcar. Talvez corresse tudo bem.

De volta a casa, a Eleanor mal dormiu. Se pudesse ficar acordadatoda a noite para olhar por Joe, tê-lo-ia feito. A minha mãe tinharazão. Os bebés não sabiam a sorte que tinham — dormiamrodeados de amor. Ao fim de três meses sem descanso, a Eleanorbocejava constantemente, e deixara de ser um periquito espevitadopara se tornar um pombo roliço que se arrastava entre o berço e acadeira de baloiço. A sua pele ficou manchada, o cabeloemaranhado.

— A Eleanor é mãe, mas também é uma mulher — disse-lheOdile. — Cuide de si. Precisa de descanso e exercício. — Eu e elarevezámo-nos a pegar em Joe ao colo para a Eleanor poder dançarao som da sua cassete de aeróbica da Jane Fonda. Espreitávamospara a sala e víamo-la com o seu fato de licra cor-de-rosa, aspernas a subir tão alto quanto conseguiam. Odile sussurrou:

— Como o cancan em Paris.

Enquanto a Eleanor e eu esperávamos que o meu pairegressasse do trabalho, ela perguntou:

— Quanto pesava a tua mãe?— Não faço ideia.No dia seguinte, ela encurralou-me na bancada da cozinha.— Que tipo de fraldas é que ela usava? Ela amamentou?A seguir viria perguntar-me a que sabia o leite. Não tínhamos

balança até a Eleanor chegar. Ela costumava pesar-se uma vez por

semana. Agora, inchada e a tentar «perder o peso do bebé», subiapara a balança dez vezes por dia.

— Ela amamentava? — perguntou a Eleanor outra vez. — Usavafraldas de pano?

— Sim, de seda. E, sim, amamentava-me cinco vezes por noite. Aavó Jo veio para cá, mas a minha mãe não aceitava ajuda. Diziaque não precisava.

Esperava que fosse o fim da conversa, mas a Eleanor recomeçou.— Quanto é que ela pesava?— Pergunta ao meu pai.— Quanto?Aquelas perguntas estúpidas davam comigo em louca. Levei

algum tempo a perceber porque se estava a comparar com a minhamãe. Bem, a Eleanor podia cozinhar nas panelas da minha mãe,comer dos seus pratos. Podia viver na sua casa, podia dar-meordens tanto quanto quisesse. Mas nunca seria a minha mãe. Dei-lhe uma resposta impossível:

— Cinquenta quilos.— Cinquenta quilos? — A boca da Eleanor tremeu.

Depois da escola, gostava de voltar para casa e encontrarEleanor e Odile a tomar chá à mesa, porque a Eleanor nunca mechateava quando tínhamos companhia. Nesse dia, com Joe ababar-se na alcofa ao lado delas, conversavam sobre coisasdistantes: um dia a Eleanor voltaria à faculdade, um dia Odile iriavisitar Lucienne, a sua amiga noiva de guerra em Chicago. Quando

Odile estendeu um prato de uvas, a Eleanor deu uma palmadinhana barriga e disse:

— Estou a tentar emagrecer.Fiz um sorriso trocista. Como se uma uva a fizesse engordar.— Não vai perder peso nos próximos meses — disse Odile.A Eleanor franziu o sobrolho.— Porque é que diz isso?— Está grávida.Outro bebé? Parei de sorrir.— Mas tive o Joe há cinco meses — protestou a Eleanor.— Já vi mulheres suficientes para conhecer os sintomas.— O James disse que era seguro.— Que idade tem? Ainda acredita no que um homem lhe diz?A Eleanor riu-se, mais ou menos. Uma piada? E havia… qualquer

coisa na voz de Odile. Uma coisa ácida. Alguma coisa que me fezpensar no que lhe teria dito algum homem.

Eleanor ficou grande como um château, com uma barriga tãogigante que a fazia parecer pequena. As suas roupas de gravidezcaíam-lhe de forma estranha; o peito e o rabo rebelavam-se contra oalgodão apertado. Ela deixou de pintar o cabelo, e as raízes escurasconquistaram terreno. Só mulheres rascas deixavam que issoacontecesse.

— Com o Joe não foi assim. — Ela soava atordoada.Pastosa e inchada, como se todo o seu corpo estivesse grávido,

não apenas a barriga, sentia tonturas assim que se levantava.Quando ficou de cama todo o dia, como a minha mãe, mantive-me

ao seu lado. Lembrei-me de uma frase de Ponte para Terabítia: «Asua vida era tão delicada como uma flor. Uma brisa ligeiramentemais forte e iria pelos ares.»[14] Quando eu era pequena, pensavaque só as pessoas velhas morriam. Agora sabia que não era assim.Porque não tinha sido mais simpática para a Eleanor? Sentia-mehorrivelmente pela minha satisfação doentia ao magoá-la. Ela nãoera assim tão má. Até convencera o meu pai a dar-me uma mesada,dizendo-lhe: «A filha de um bancário devia aprender a gerir o seudinheiro.» Por favor, não morras, rezava.

Odile veio. Eu gostava que ela não batesse à porta, limitando-se aentrar, como família.

— Está tão linda como a Madonna — disse ela a Eleanor.— A sério?Honestamente? Mais como Jabba the Hutt. Eu sabia que a

verdade não ia ajudar, por isso fiz um aceno afirmativo.— Mas vamos ligar ao Dr. Stanchfield, só para jogar pelo seguro

— disse Odile.Ele mediu a tensão da Eleanor duas vezes e disse que ela tinha

de ir ao hospital fazer uns exames, o mesmo que tinha dito daminha mãe.

— Ela vai ficar bem? — perguntei.— A tua madrasta está com a tensão alta, o que não é bom para

ela nem para o bebé.Enquanto o Joe e a Eleanor dormitavam, Odile tentou distrair-me

das minhas preocupações ensinando-me vocabulário de bébé —berço, couffin; fraldas, couches — mas, com a Eleanor presa nacama, eu estava-me a borrifar para isso tudo.

— Como se diz «tensão alta»? — perguntei.

— La tension.Tensão. A palavra dizia tudo.— Vamos dar um passeio? — disse Odile.Ela era uma grande crente no ar fresco. O cruel vento norte

chicoteou-nos enquanto descemos a Main Street, passámos aigreja, passámos as coníferas, chegámos ao cemitério. Como asoutras senhoras, Odile era pessoa de cemitérios. Eu não. Ver aspalavras Brenda Jacobsen, Amada Esposa e Mãe gravadas nogranito fazia-me sofrer. A mãe tinha morrido há mais de dois anos.Havia crisântemos junto à lápide, iguais aos das campas do filho edo marido de Odile. Eu sabia que devia baixar a cabeça e rezar,mas fiquei a olhar para Odile. De cabeça baixa, a sua expressão erasombria. Ocorreu-me que ela sentia falta da família, Buck e Marc,mas também dos pais e do irmão gémeo. Eu ansiava por saber oque lhes teria acontecido.

CAPÍTULO 22

Odile

PARIS, AGOSTO DE 1940

-Sei que talvez não devesse ter-te chamado — começou o papa—, mas assumi que ias querer saber o mais depressa possível…

— Monsieur? — insistiu a Bitsi.— O Rémy está vivo — disse o papa.O ar soltou-se bruscamente dos meus pulmões.— Onde é que ele está? — perguntou a Bitsi. — Está a vir para

casa?— Foi feito prisioneiro — replicou o papa.— Prisioneiro? — repetiu a Bitsi.— Está naquilo a que chamam um Stalag — explicou o papa —,

um campo de prisioneiros de guerra.A maman chorava, e pus o braço à sua volta.— Ele está vivo — disse-lhe.— Sabemos onde está — disse o papa. — Vamos deixar que isso

nos console.Ele tinha razão. A pobre Bitsi não recebia uma carta do irmão há

meses.

— Quem me dera que tivéssemos notícias do Julien — disse-lheo papa, com voz meiga.

Ela mordeu o lábio, e percebi que se estava a esforçar para nãoromper em lágrimas.

O papa tirou um cartão do bolso. Retirei-lhe o papel da mão e li asletras desmaiadas, Je suis prisonnier. Sou prisioneiro. Em baixo,havia duas linhas:

1. Estou de perfeita saúde.2. Estou ferido.

A segunda estava rodeada por um círculo. O Rémy estavasozinho e a sofrer.

Empalidecendo ao ler o cartão, a Bitsi disse que tinha de ir dizer àmãe. Eu e o papa acompanhámo-la à porta. Ela deu-lhe um beijo naface, o que lhe provocou a sombra de um sorriso no rosto.

Voltámos para junto da maman. O papa ajoelhou-se ao seu lado elimpou-lhe gentilmente as lágrimas. Abraçámo-la pela cintura eajudámo-la a ir para a cama. No quarto de ambos, o papa pôs-se aandar de um lado para o outro e a maman continuou a chorar.

— É melhor chamar o Dr. Thomas? — perguntei.— Não há remédios no mundo que a possam ajudar — disse o

papa. — Eu fico com ela. Devias descansar.Para variar, não discuti. Sentia-me culpada por deixar a maman

com a sua dor, mas aliviada por poder debruçar-me sobre a minha.Stalag. Uma nova palavra no vocabulário da perda. Até àquelemomento, pudemos dizer a nós próprios que o Rémy estava a tentarvoltar para casa. O que diríamos agora?

À secretária, com a caneta de tinta permanente do meu irmão,escrevi:

Querido Rémy,Odiamos que estejas preso, odiamos que estejas ferido e longe de casa. Estamos

tão preocupados.

Verter os meus sentimentos aliviou-me, mas a carta nãoofereceria qualquer consolo ao Rémy. Abri a caneta e deixei a tintagotejar sobre a página. Recomecei.

Querido Rémy,

Querido Rémy foi tudo o que escrevi.De manhã, vesti-me e fui ao quarto dos meus pais. A maman

estava encolhida debaixo da manta. De olhos fechados, gemiacomo se fosse incapaz de acordar de um pesadelo. Na frente doarmário, o papa abotoava a camisa.

— Eu fico com ela — disse.— A maman não ia gostar de te ver assim. — Ele levou-me até à

porta de casa. — Conheço uma pessoa que pode olhar por ela.Lá fora, havia poucas pessoas no passeio, nenhum carro na

estrada empedrada. A Biblioteca também estava estranhamentecalma. Sentia a falta da Margaret. Sentia a falta do Paul. Até sentiaa falta da severa Mrs. Turnbull a mandar calar os estudantes.

— Já soube do Rémy. Lamento muito. — A professora Cohenestendeu-me um romance de Laura Ingalls Wilder intitulado OLongo Inverno. — Marquei uma passagem particularmentememorável. Durante uma tempestade de neve, uma família de

colonos, todos enroscados uns nos outros na sua cabana, sem seconseguirem aquecer. O pai começa a tocar a rabeca e diz às trêsfilhas para dançarem. Elas riem-se, e dançam, e isto impede quemorram congeladas. Mais tarde, o pai tem de ir tratar do gado,senão os animais morrem. Quando sai, não vê seis centímetros nasua frente. Avança agarrado à corda de estender roupa para chegarao celeiro. Dentro de casa, a mãe sustém a respiração, à espera. —Quando peguei no romance, a professora Cohen cobriu-me as mãoscom as suas. — Não sabemos o que temos pela frente. A únicacoisa que podemos fazer é agarrarmo-nos à corda.

*

Antes do jantar, espreitei para o quarto dos meus pais, onde amaman estava a dormir. Havia uma enfermeira sentada ao lado dacama. O cabelo castanho escasso emoldurava um rosto rosado.Parecia-me familiar. Uma sócia da Biblioteca? Voluntária nohospital?

— Sou a Odile.— Eugénie — respondeu.— Como está ela?— A sua mãe não se moveu. Receio que esteja em choque.Os dias passaram. Depois do trabalho, a Bitsi e eu vagueávamos

pelas Tulherias.— Como está a tua mãe? — perguntou-me.— Fica à porta à espera, como se o meu irmão fosse chegar a

qualquer minuto.

Os parisienses habituaram-se à Ocupação. Alguns faziamnegócios com os nazis, vendendo-lhes material para as suasmáquinas fotográficas ou cerveja para lhes aliviar a sede. Outrosrecusavam-se a reconhecer a sua presença, fingindo que eles nãoestavam ali. Algumas mulheres aceitavam elogios e convites parajantar. Outras franziam os lábios de aversão. No metro, franzi osobrolho a um soldado alemão magricela até ele baixar o olhar.

Era tranquilizador saber que Eugénie estava em casa, com umolho na maman, o outro no seu tricô. Ainda assim, perguntava-mede onde a conhecia. Seria alguém que tinha ajudado no Serviço aosSoldados? A mãe de alguma colega de escola?

Depois, uma noite, quando eu e o papa a acompanhámos à porta,ele ajudou-a a vestir o casaco e propôs acompanhá-la até casa,uma oferta que nunca tinha feito à nossa criada. Eugénie soltou umuf empertigado e desceu rapidamente as escadas. De súbito,percebi — aquela «enfermeira» era a vadia que eu tinha visto comele no hotel.

— Como pôde trazê-la para aqui? — sibilei.Por um segundo, ele pareceu apanhado de surpresa. Depois, com

um brilho calculista no olhar, tentou somar aquilo que eu poderiasaber, subtrair a sua própria culpa, e formulou a hipótese de poderdividir a atenção entre a amante e a minha mãe. Após considerartodos os elementos desta caótica equação, escolheu tão bem o seuargumento como o Rémy tinha feito num dos seus debates nafaculdade de Direito.

— Que opção é que havia? Pedir à tua tia Janine para vir da Zona

Livre? Trazer uma desconhecida?— Talvez pudéssemos tentar encontrar a tia Caro. Ela queria

saber. Queria ajudar.— A tua mãe tinha um ataque se falássemos com a Caroline nas

suas costas.— Mas, papa…— Talvez queiras tu cuidar da maman…Eu tinha medo de me afogar no poço sem fundo da sua tristeza.— Não podemos contratar uma enfermeira?— As que não tiveram o bom senso de fugir estão a revezar-se

em turnos de dez horas nos hospitais. A Eugénie está a fazer umbom trabalho.

Soltei um ronco de desdém.— Sim, sei como gosta das suas maneiras à cabeceira da cama.— Não fales de assuntos dos quais nada sabes! Além disso, a

Eugénie é praticamente enfermeira.— Trabalhar numa Biblioteca não faz de mim praticamente um

livro. A maman precisa de uma enfermeira a sério.Fui para o meu quarto a bater os pés. Trazer a amante para casa.

Se ao menos o Paul estivesse aqui, podia trazer o papa à razão.Fechei os braços em volta das costelas, desejando que o Paul meabraçasse. Quando o meu pai me desiludia, quando sentia tanto afalta do Rémy, quando tinha algum momento difícil com um leitormaldisposto, era Paul o bálsamo que me aliviava a alma magoada.

Às oito da noite, o meu pai bateu-me à porta.— Jantar.— Perdi o apetite!Passei a noite acordada a imaginar-me a encurralar a vadia. De

rosto vermelho de vergonha, ela pediria desculpa por ousar respiraro mesmo ar que a minha mãe. Prometeria nunca mais ensombrar anossa porta. Nunca mais falar com o papa.

Antes de sair para trabalho, fui ver a maman. Terna como umaamante, Eugénie fazia-lhe festas no cabelo; terna como uma mãe,limpou-lhe o nariz. Eu nunca tinha mudado a camisa de dormir damaman, nunca lhe esvaziara um penico. Esta desconhecida tinhadado um passo em frente e feito tudo o que eu não conseguia fazer.Lentamente, a minha indignação dissipou-se.

Beijei a face da maman. Ela não se moveu.— Não houve melhoras? — Ainda tinha dificuldade em olhar

Eugénie nos olhos.— Oito lenços, ontem. Melhor do que no dia anterior, quando ela

usou uma dúzia.— Oh, maman…— Eu sei como ela se sente.— O seu filho, também?— Na Grande Guerra. Era pequenino quando bombardearam a

nossa aldeia. Espero que a sua mãe nunca saiba como me senti. —Eugénie acariciou o braço da maman. — É difícil, tão difícil estavida, Hortense. Mas os seus filhos precisam de si. Podíamosescrever ao seu filho. A sua filha está aqui, não gostava de a ver?

A maman ergueu a cabeça e olhou-me com olhos impotentes.

25 de Agosto de 1940

Querido Rémy,Sentimos a tua falta e esperamos que possas voltar para casa. Se escreveste, as

cartas ainda não chegaram. A maman e o papa estão bem. O Paul está fora, a ajudar

nas colheitas. Tenho saudades dele, e nem consigo imaginar como deves sentirsaudades da Bitsi.

Há cada vez mais pessoas a vir à Biblioteca, em busca de companhia, em busca deuma trégua. Embora muitos sócios tenham fugido (com os nossos livros!), temosestado cheios. Miss Reeder recusa-se a negar a entrada seja a quem for.

Não tenho sabido da Margaret, mas a Bitsi recebeu finalmente um cartão do irmão,o que foi tranquilizador. Ela está bem, embora sinta a tua falta.

Será que esta carta te vai encontrar? Há tanto que te quero dizer.Beijos,

Odile

25 de Agosto de 1940

Querido Paul,Por favor, agradece à tua tia o seu simpático convite. Eu adorava conhecê-la e

quero muito ver-te, mas preciso de ficar em Paris para o caso de termos notícias doRémy.

Ontem, a Bitsi recebeu um cartão do irmão. Também ele é prisioneiro de guerra.Fiquei com vontade de chorar quando soube. Por muito que adore a Biblioteca, porvezes o trabalho é insuportável.

Encarar a Bitsi é como olhar-me ao espelho — vejo a minha própria preocupação nasua testa franzida, a minha infelicidade no seu semblante de cera. Para ela é duasvezes mais duro, já que tanto o namorado como o irmão foram aprisionados. Pus-lheum copo cheio de flores na secretária. Quem me dera poder fazer mais. Quem medera ter melhores notícias, menos pensamentos piegas. Quando voltas?

Todo o meu amor,A tua espinhosa bibliotecária

25 de Agosto de 1940

Querida Margaret,Escrevo-te muitas vezes, mas ainda não recebi nenhuma carta tua. Espero que

estejas bem. Tem sido difícil aqui. O Rémy está num Stalag. A maman teve um

esgotamento e o papa trouxe a amante para cuidar dela. Aposto que Eugénie nãosabia que esvaziar penicos seria o tipo de favores que estava a assegurar! Enfim,todas as funções têm os seus pontos baixos. A maman já recuperou um pouco, masnão totalmente. Gosta de ser servida. Ou então sabe quem é a «enfermeira» e querfazê-la sofrer. Conhecendo a maman como conheço, é um pouco de ambas as coisas.

Os nazis estão por Paris inteira, e até na Biblioteca Nacional. Na BAP, recebemospedidos de prisioneiros de guerra, mas as autoridades nazis não nos deixam enviarlivros aos soldados aliados aprisionados na Alemanha. É devastador.

Olha só para mim, tão amarga como a Madame Simon. Vou incluir uma notíciaagradável. Peter-o-arrumador-de-livros e Helen-da-referência têm passado tantotempo juntos — fazem piqueniques no pátio à hora do almoço, dão as mãos quandopensam que ninguém está a ver — que se tornaram a-Helen-e-o-Peter. Estãoapaixonados, e é encantador de ver.

Volta para casa! A Biblioteca não é a mesma coisa sem ti.Beijos,

Odile

Quando Setembro chegou, Miss Reeder rasgou o papel castanhoque cobria as janelas. Quando eu olhava para fora, já não via ocaminho empedrado nem a urna cheia de hera. A única coisa quevia era cartas perdidas e amigos distantes. E vi a Margaret, a subir ocaminho!

— Rémy? — Foi a primeira palavra que lhe saiu da boca, o queme fez adorá-la ainda mais. — Tiveste mais notícias dele?

— Desde aquele cartão, nada.— Querida amiga. — Abraçou-me. — Estava preocupada contigo

e com o Rémy, com a Biblioteca…— Raconte! — dissemos ambas ao mesmo tempo. Conta! Quero

saber tudo.Ela falou-me da fuga de Paris.— As estradas estavam apinhadas de carros. Os pilotos alemães

disparavam sobre os civis, por isso, sempre que um avião passava

por cima de nós, os carros estacavam de repente e as pessoasatiravam-se para a valeta. Ficámos sem gasolina e tivemos de fazera pé os últimos quinze quilómetros até Quimper. A Christina berrouo tempo todo. Como explicar a guerra a uma criança?

Lawrence quisera mandá-las de volta para Londres, mas Margaretrecusara.

— Pela primeira vez, sinto-me importante, como se o meutrabalho, bem, o meu trabalho voluntário, tivesse significado.

— Tu és importante — insisti. — Precisamos de ti aqui.— Sincérement, estou excitada por voltar para reparar livros!— O Lawrence está feliz por terem regressado?Margaret começou a mexer nas pérolas.— Ele está na Zona Livre.França tinha sido cortada em duas, com o Norte sob controlo

alemão e o Sul governado pelo herói da Grande Guerra, o marechalPhilippe Pétain.

— Uma pena que o Lawrence esteja tão longe — comentei. — Vaificar a trabalhar por lá?

— Ele está com… uma pessoa amiga.— Quanto tempo vai ficar fora?Margaret procurou as palavras, como eu tinha de fazer após um

longo dia passado a oscilar entre o francês e o inglês.— Oh, o que é que interessa o Lawrence! — disse por fim. —

Deixa-me contar a viagem de volta. Para garantir que tínhamoscombustível suficiente, enchi uns bules velhos.

— Não rachados, espero!

Uma semana mais tarde, quando o Paul chegou à minha porta —o cabelo aclarado pelo sol, as faces rosadas, fiquei simplesmente aolhar para ele. Tinha imaginado tantas vezes o nosso reencontro, ànoite na cama. Lançava-me ao seu peito, cobrindo-o de beijos. Asmãos dele no meu traseiro, fazendo o meu corpo vibrar. Mas,quando me tomou nos braços, fiquei hirta. Tensa durante tantosmeses, não conseguia descontrair.

— Je t’aime — disse ele. Ao sentir os seus lábios na minhatêmpora, o meu corpo amoleceu, e chorei. Embalando-me, levou-mepara o patamar, sabendo que eu não queria preocupar os meuspais. Eu fazia-me de forte na frente deles, da Bitsi, dos leitores, mascom o Paul não precisava de fingir.

— Vamos ultrapassar isto juntos — prometeu.Os meus soluços diminuíram e encostei-me mais a ele. Podia

ficar nos braços do Paul para sempre. Bem, até a maman se juntara nós. Notando os cestos de batatas, manteiga e presunto fumadoque ele tinha trazido, ela comentou:

— Vai conquistar o coração da Odile através do estômago.— Um bom ganha-pão — elogiou o meu pai.À mesa, na sala, os meus pais não nos largaram. Algumas das

rugas de preocupação da maman dissiparam-se, e o papa riu-sepela primeira vez num mês.

— Tive saudades tuas — sussurrou-me o Paul. — Quem me deratermos cinco minutos sozinhos.

— Vamos encontrar-nos amanhã na tua casa.— Há quatro colegas com quartos no meu piso. Se te vissem,

ficavas com a reputação destruída.

KRIEGSGEFANGENENPOST

15 de Agosto de 1940

Querida maman e querido papa,Está tudo bem. A minha saúde melhorou. Na caserna, um médico de Bordéus tem

um beliche perto do meu. Ele ressona, mas a sua presença tranquiliza-me. Obrigadopelos vossos cartões. Podiam enviar-me algumas coisas? Uma camisa quente, roupainterior, lenços e uma toalha. Fio. Sabão de barbear e lâmina. Se não der demasiadotrabalho, comida que dure, talvez paté.

Por favor, não se preocupem. Somos tratados razoavelmente e não tenho queixas,tendo em conta as circunstâncias.

O vosso filho extremoso,Rémy

KRIEGSGEFANGENENPOST

15 de Agosto de 1940

Querida Odile,Como estás? Como está a Bitsi, e a maman, e o papa, e o Paul?O meu ombro está a sarar. Perto de Dunquerque, fui atingido por fogo inimigo. Doeu

como o raio! Claro, quando me davas pontapés debaixo da mesa, também mequeixava que doía como o raio. Vários homens da minha unidade foram capturados.Ficámos zangados com a nossa sorte até sabermos que tantos tinham sido mortos.

Nós — soldados franceses e também alguns britânicos — tivemos de marchar peloque nos pareceu a Alemanha inteira com pouca comida ou descanso. Tu conheces-me, sabes que nunca fui atlético. Depois de passarmos semanas a caminhar, ficámosaliviados quando chegámos e dormimos numa cama — mesmo que sejam apenasumas pranchas de madeira — em vez de dormirmos no chão frio e molhado.

Obrigado pelas tuas cartas. Desculpa não ter podido escrever antes.Beijos,Rémy

30 de Setembro de 1940

Querido Rémy,Graças a Deus que nos disseste o que precisavas — a maman queria enviar-te

rosários, para tu e os outros poderem «rezar como deve ser». Hoje, pela primeira vezem séculos, ela foi à missa. Não tem estado bem, por isso o papa arranjou-lhe umaenfermeira.

Ao princípio, não estava a gostar muito de ter uma estranha a cuidar da maman,mas depois vi como se dão bem. A Eugénie usa um casaco de lã com camisa branca,uma mulher vulgar com ombros arredondados e olhos melancólicos. De vez emquando, um sorriso saudoso toca-lhe os lábios. Como acontece com a maman. Ao fimda tarde, antes de o papa chegar, bebemos chá juntas, as três.

Ele chega cada vez mais tarde. O carro foi requisitado, por isso tem de andar deautocarro. Infelizmente, há poucos a circular, porque quase não há combustível.

Contigo fora, o papa implica comigo a dobrar. E tornou-se superprotector. Não gostaque eu saia, nem sequer para ir a uma matiné. Os nazis têm os seus próprios cinemase bordéis, por isso de certeza que eu, a Bitsi e a Margaret estamos a salvo. Quando asluzes se apagam, expressamos os nossos verdadeiros sentimentos — os noticiáriosmostram Hitler e toda a gente assobia.

Com os Soldaten a dizer-nos o que é verboten, o alemão infiltra-se nos nossoscrânios. E os seus soldados estão a aprender francês. Um Kommandant de olhostortos tentou conversar com a nossa guarda-livros — lembras-te dela, a intrépidafazedora de scones que ama matemáticos gregos mortos? Bonjour, mademoiselle.Vous êtes belle, disse o militar. Miss Wedd respondeu: Pisga-te! Quando ele nãopercebeu, ela acrescentou: Auf Wiedersehen!

Beijos,Odile

Não era fácil manter as cartas num tom ligeiro, em especialquando os nazis estavam por Paris inteira. Numa reunião de equipa,o Boris informou-nos de que tinham confiscado mais de cem millivros da Biblioteca Russa perto de Notre-Dame.

— Mais de cem mil livros — repetiu a Margaret, sem forças.Uma vez, quando era pequena, a tia Caro tinha-me levado ali.

Depois da missa na catedral do Quasimodo na ilha no Sena,

atravessámos para a margem esquerda e vagueámos pela rue de laBûcherie até chegarmos a um hôtel particulier. As portas da mansãoestavam abertas, por isso espreitámos para dentro.

— Bem-vindas, bem-vindas — disseram-nos. A bibliotecária, queusava óculos de leitura pendurados a uma corrente prateada aopescoço, passou-me um livro de figuras. A tia Caro e eumaravilhámo-nos com as palavras, não só de uma línguaestrangeira mas num alfabeto diferente.

As paredes estavam cobertas de estantes do chão ao tecto — tãoaltas que era preciso um escadote para chegar às prateleiras decima. A tia Caro ajudou-me a subir até ao topo. Aquele dia, comoqualquer dia com a minha tia, foi o paraíso.

Agora, imaginava aquelas estantes vazias. Imaginava abibliotecária de lágrimas nos olhos. Imaginava um sócio a ir devolverum livro e a ficar a saber que já não restava mais nenhum.

— Porque estão a pilhar as bibliotecas? — perguntou a Bitsi.O Boris explicou que os nazis queriam erradicar as culturas de

certos países, apreendendo metodicamente as suas obrascientíficas, literárias e filosóficas. Acrescentou que eles tambémtinham pilhado colecções pessoais de proeminentes famíliasjudaicas.

— De sócios judeus — disse eu —, incluindo a professora Cohen.Na véspera, na sala de leitura, numa mesa ao canto, eu tinha

visto pilhas de livros. Atrás deles, espreitava o cabelo branco e umapena de pavão. Era quase como se a professora tivesse criado umabarricada de livros da Biblioteca — obras de Chaucer, Milton eAusten, para nomear só alguns.

Ela não pareceu reparar quando me aproximei.

— A revisitar os clássicos? — perguntei.— Os nazis confiscaram-me os livros. Entraram pela minha casa

adentro e enfiaram a minha colecção inteira em caixotes… asminhas primeiras edições, até o meu artigo sobre o Beowulf, cujaúltima página ainda estava na máquina de escrever.

— Oh, não… — Passei o braço sobre o ombro dela. — Tenhomuita pena…

— Eu também. — Acenou, impotente, para as pilhas. — Queriavoltar a sentar-me com os meus preferidos.

Na reunião de pessoal, a Margaret disse:— Quarenta anos de investigação perdidos.— Nós sabemos quais são os seus preferidos — disse a Bitsi. —

Podemos sondar vendedores de livros para substituir alguns.— E que tal outros leitores? — perguntou Miss Reeder.— E a Biblioteca Russa? — acrescentou o Boris.— E a nossa Biblioteca? — lembrei eu.— Ela tem razão — disse Miss Reeder. — Os nazis não vão

demorar a chegar aqui.

Em Outubro, a escola começou, uma prova de que a vidacontinuava, independentemente do resto. Mães engomavamcamisas e verificavam se os filhos tinham cadernos e lápis. Algunsalimentos começavam a escassear, e donas de casa esperavam emlongas filas na frente dos talhos. As revistas de moda publicavamdicas sobre como as mulheres deviam usar o chapéu (inclinado paratrás). A Margaret e eu enviávamos livros para campos deinternamento na França rural, onde comunistas, ciganos e inimigos

estrangeiros — civis cujo país estava, por acaso, em guerra com aAlemanha — eram aprisionados.

A Propagandastaffel trabalhava de sol a sol para tentar suscitarressentimento. Cartazes espalhados pelos edifícios, estações demetro e átrios de teatros mostravam um marinheiro francês adebater-se num mar vermelho de sangue. Agarrado à tricoloresfarrapada, implorava: «Não se esqueçam de Orão!», onde amarinha britânica tinha afundado os nossos navios. Como podíamosesquecer? Tinham matado mais de mil marinheiros franceses.Monsieur de Nerciat ainda não falava com Mr. Pryce-Jones.

Recusando-se a ser levados pela propaganda nazi, os parisiensesalteraram os pósteres, riscando «Orão» e escrevendo outraspalavras, de forma a ficar: «Não se esqueçam do fato de banho.»

Ao almoço, o Paul e eu fomos ao Parc Monceau. Rígido de fúria,ele marchava pelo trilho de terra batida, e eu tinha dificuldade emacompanhá-lo.

— Mandaram-me reparar os cartazes — disse-me. — É pior doque ir para o trânsito, com aquelas malditas luvas brancas. Quandoas pessoas me vêem limpar graffiti, riem-se.

— Isso não é verdade. — Enlacei o braço no dele, mas o seusemblante não melhorou.

— É humilhante. Antes, os polícias usavam armas. Agora temosesponjas. Eu mantinha as pessoas em segurança. Agora apagocoisas escritas.

— Pelo menos, estás aqui.— Preferia estar com o Rémy.— Não digas isso — repreendi.— Pelo menos, ele lutou. Pelo menos, continua a ser um homem.

— Estás a fazer a tua parte.— A limpar a propaganda deles? — Deu um pontapé num ramo

no nosso caminho. — É humilhante.

KRIEGSGEFANGENENPOST

20 de Outubro de 1940

Querida Odile,Obrigado pelo pâté. Toda a gente adorou. Embora a maior parte dos que recebem

comida de casa partilhem com os outros, há alguns que a escondem. É triste ver quenem em condições como estas nos conseguimos unir.

O Paul enviou-me recortes de jornais e um desenho que ele fez na Hora do Conto. ABitsi com um livro aberto por cima da cabeça, como se fosse um telhado. Consigopraticamente ouvi-la dizer às crianças que os livros são um santuário. Fiquei contentepor ter notícias de Paris. Não tenhas medo de me dizer o que se está a passar. Querosaber tudo. Distrai-me do que está a acontecer aqui. Vamos todos dar em loucos, apensar quanto tempo ficaremos aqui presos. Um dos camaradas ensinou-me a jogarbridge. Parece-me que a única coisa que temos aqui é tempo.

Beijos,Rémy

12 de Novembro de 1940

Querido Rémy,Ainda bem que gostaste do desenho. O Paul tem talento, não tem?A maman convida-o muitas vezes para vir cá, e à Bitsi também. Na semana

passada, num jantar, o papa mostrou-lhe as tuas fotos de bebé. Ele nunca é rabugentocom a Bitsi. Gostava que visses como ela o conquistou. Gostava que viesses paracasa, ponto final. Ontem, quase dois mil estudantes do lycée e da universidadeprotestaram contra a Ocupação. Os velhos como o marechal Pétain podem governar opaís, mas são os jovens que mostram o caminho.

Beijos,Odile

Não contei ao Rémy que o pâté que lhe tínhamos enviado era aração de carne da família para uma semana. Não lhe disse que amanifestação não durou muito porque as autoridades ainterromperam. Não lhe disse que os nazis tinham confiscado aBiblioteca Checoslovaca. Não lhe disse que o Kommandantur tinhaescrito a informar-nos que, dentro de uma semana, oBibliotheksschutz iria «inspeccionar» a nossa Biblioteca.

Miss Reeder, o Boris, a Bitsi e eu ficámos a olhar para o diktat deboca aberta.

— O que é um Bibliotheksschutz? — perguntou a Bitsi.— Em tradução literal, significa «Protector das Bibliotecas» —

disse a directora.— Isso é bom, não é? — perguntei.Miss Reeder abanou a cabeça tristemente.— É um termo bastante irónico. Imagino que venham levar a

nossa colecção.— É a Gestapo-dos-Livros — explicou o Boris.

No dia da «inspecção», o Boris fumou um maço de Gitanes antesdo meio-dia. Miss Reeder atirou-se à papelada, querendo ter acerteza de que não poderia haver qualquer razão técnica paraencerrar a Biblioteca. Juntei uns livros para arrumar. O GrandeGatsby, Greenbanks, De Olhos Pousados em Deus, estes romanceseram amigos queridos. Olhando de relance para a Margaret, percebique estávamos a pensar o mesmo: Como conseguiremos viver sema Biblioteca?

— Vamos levar um chá a Miss Reeder — sugeriu ela. — Temos

de fazer alguma coisa, ou damos em loucas!Sentia-me a tremer, por isso foi a Margaret quem levou a bandeja.

Enquanto a pousava em cima da mesa perto de Miss Reeder,perguntei:

— Como está?— Agoniada, destroçada — respondeu a directora. — À espera de

sua majestade, o Bibliotheksschutz. A rezar para ficarmos abertos,de alguma maneira.

A Margaret serviu o chá de camomila. A porcelana quenteaqueceu-me as mãos pegajosas. Ia beber um gole quando ouvipassos pesados no soalho e a ecoarem pelas estantes.

Na sua cadeira, a directora endireitou os ombros. Três homens defardas nazis entraram. Ninguém disse nada. Nem olá, nem bonjour,nem guten Tag, nem está presa, nem Heil Hitler. Dois deles —nenhum mais velho do que eu — eram soldados musculados. Oterceiro era um oficial magro com óculos de armação dourada.Trazia uma pasta de pele.

O trio observou o escritório: os papéis sobre a secretária, asprateleiras vazias, onde manuscritos raros e primeiras ediçõestinham ficado guardados até serem enviados para o exílio,antecipando aquele momento; a directora, a sua pele de alabastro, ocoque lustroso, os lábios franzidos.

Se Miss Reeder estava assustada, ninguém na sala o saberia. Eununca a tinha visto sentada com uma postura tão erecta, nunca virao seu rosto tão destituído de calor. Ela levantava-se sempre parareceber visitantes, ignorando o protocolo de género, que lhe permitiaficar sentada e meramente estender a mão. Mas estes visitantesnão convidados não lhe mereciam as atenções habituais.

O «Protector das Bibliotecas» talvez esperasse um director, nãouma directora. Ao olhar para ela, disse qualquer coisa em alemão,num tom sombrio, as ordens breves. Os homens mais novossaíram, fechando a porta atrás deles como criadas de quarto.Quando a directora continuou taciturna, ele disse num francêsimpecável:

— Que bela biblioteca. Estou muito impressionado, MademoiselleReeder. Nada na Europa se compara com isto!

Ao ouvir o seu nome, ela concentrou o olhar no rosto do homem.— Dr. Fuchs? Aqui em Paris? Não fazia ideia. — Ela uniu as

mãos, como que feliz por ver um velho amigo. — Confesso quereparei na farda, não no homem.

— Foi-me dado este posto na semana passada, e agora estouencarregado da actividade intelectual na Holanda, Bélgica eterritório francês ocupado — gabou-se, quase como um rapaz àespera de um elogio. As faces brilhantes e o fino cabelo cor de areiadavam-lhe a aparência de um professor de catequese.

— Deve ter saudades da sua biblioteca. — A cabeça delainclinou-se em compreensão.

— De facto. A Staatsbibliothek pode, sem dúvida, passar semmim. Mas se eu posso passar sem ela já é uma outra questão.

Eu tinha assumido que os nazis seriam uns brutos iletrados. Emvez disso, ele trabalhava na mais prestigiada biblioteca de Berlim. AMargaret e eu esperámos por uma ordem da directora, mas ela e oBibliotheksschutz estavam completamente absorvidos um no outro.

— É a directora, agora? — continuou ele. — As minhas calorosasfelicitações.

— Temos a sorte de poder contar com uma equipa dedicada e

voluntários. — Ela franziu o sobrolho. — Bem, tínhamos… As coisasmudaram. Alguns colegas tiveram de partir.

— Deve ser difícil estar sozinha. — Ele anotou o seu número detelefone num papel e colocou-o sobre a secretária. — Para o casode precisar de me contactar.

— Já fazia tanto tempo — tergiversou ela.— Desde o Colóquio Internacional do Instituto de Cooperação

Intelectual — murmurou ele. — Tempos mais simples.— Se me tivessem dito o nome do Bibliotheksschutz, ter-me-ia

poupado uma semana de preocupação. Tenho estado a aperfeiçoara minha deixa desde que soubemos da «inspecção».

— O que ia dizer? — perguntou ele, ainda em sentido.— Beba um chá. — Ela indicou uma cadeira.A Margaret foi buscar outra chávena. Eu sabia que devia ter

saído, mas estava demasiado fascinada com esta reviravolta.— Ia dizer ao Bibliotheksschutz que uma biblioteca sem membros

é um cemitério de livros — disse Miss Reeder. — Os livros sãocomo pessoas; sem contacto, deixam de existir.

— Muito bonito — replicou ele.— Estava pronta para implorar humildemente que mantivessem a

Biblioteca aberta. Como podia adivinhar quem teria pela frente?— Deve saber que eu nunca permitiria que a Biblioteca fosse

encerrada. Contudo…— Sim?— Terá de seguir as regras impostas à Biblioteca Nacional. Há

livros que já não poderão circular. — Ele retirou uma lista da pasta.— Estão a pedir-nos que os destruamos? — perguntou Miss

Reeder.

Ele olhou para ela, consternado.— Minha querida senhora, eu disse que não podem circular. Que

pergunta entre bibliotecários profissionais! Pessoas como nós nãodestroem livros.

A Margaret regressou com uma chávena de earl grey. O aromacítrico da bergamota infundiu a sala de esperança. Pessoas comonós. Um companheiro bibliotecário, uma alma gémea. Sim, estaguerra tinha-nos dividido, mas o amor pela literatura voltaria areunir-nos. Podíamos tomar chá e conversar como pessoascivilizadas. Miss Reeder soltou um suspiro trémulo, talvez sentindoque o pior tinha passado. Ela e o Bibliotheksschutz recordaramconferências a que tinham assistido e pessoas que tinhamconhecido — oh, céus, o evento da ALA em Chicago foi tãointeressante; ah, sim, ela já se reformou; ele foi transferido paraoutro departamento e já não é a mesma coisa.

Sobressaltando-se, o Dr. Fuchs consultou o relógio e disse queestava atrasado para a reunião seguinte.

— Foi um prazer vê-la — disse à directora ao levantar-se. À porta,sorridente depois de uma reunião que correra bem, virou-se paranós. Eu esperava um comentário sobre a colecção, ou umadespedida agradável. — Claro que — disse ele — certas pessoasvão deixar de poder entrar.

CAPÍTULO 23

Odile

Enterrando os dedos na têmpora, Miss Reeder murmurou:— Tenho de pensar. Tem de haver uma maneira… Talvez

possamos entregar livros de alguma forma.O pessoal foi entrando, um por um. A Bitsi mordia o lábio. O Boris

franzia o sobrolho. Miss Wedd tinha doze lápis no seu carrapito. Euretirei Dreamers da prateleira de Miss Reeder. Precisava de algumacoisa a que me agarrar. Não precisava de virar as páginas parasaber o que estava escrito: Este livro é um mapa, cada capítulo umaviagem. Por vezes o caminho é escuro, por vezes conduz-nos à luz.Assusta-me o lugar para onde vamos.

— Então? — disse a Bitsi. — O que foi que o «Protector dasBibliotecas» disse?

— Temos de tirar quarenta obras das nossas prateleiras —respondeu a Margaret.

Na lista: Ernest Hemingway, que escrevera para o nosso boletiminformativo, e William Shirer, que fizera pesquisas para artigos nanossa sala de leitura.

— Quando se considera que a lista de livros proibidos pelos nazis

inclui centenas de obras — disse o Boris —, é um pequeno preço apagar.

Eu não tinha tanta certeza disso. Sem estes livros, Paris ia perderuma parte da sua alma.

— Podemos deixar que sejam requisitados por leitores queconhecemos bem — disse Peter-o-arrumador-de-livros.

Leitores que conhecemos bem… pensei na professora Cohen,nos estudantes da Sorbonne, nas crianças que vinham à Hora doConto. Segurando o livro contra o peito, perguntei-me como iríamosdizer à professora que já não podia entrar. Perguntei-me comoencararíamos os nossos outros sócios judeus. Perguntei-me comonegaríamos livros às crianças. Claro, o diktat ia mais longe do queapenas os livros. O Bibliotheksschutz exigia que cortássemosleitores do tecido da nossa comunidade.

A condessa Clara de Chambrun chegou e instalou-se na cadeiraque o Dr. Fuchs tinha usado. Era a única administradora daBiblioteca que ainda se encontrava em França — os outros tinhamregressado para a segurança dos Estados Unidos. Ela tinha vividona América, em África e na Europa. Especialista em Shakespeare,fizera um doutoramento na Sorbonne. Eu via uma larga experiêncianos seus olhos sagazes, e esperava que, com a sua ajuda,encontrássemos uma saída.

— Então, o que precisavam de me dizer? — perguntou, com osóculos de leitura empoleirados na ponta do nariz.

Virámo-nos para a directora. Normalmente, ela falava depressa,

consciente de que o tempo gasto em reuniões era tempo perdidopara as tarefas.

— Eu… Quero dizer…— Continue — incentivou-a a condessa.— Os regulamentos da polícia nazi dizem que os judeus não

podem entrar na Biblioteca. — A voz de Miss Reeder era suave. Elaabanou a cabeça, como se não conseguisse acreditar que aquelaspalavras lhe tinham saído da boca.

— Não pode estar a falar a sério! — exclamou a Bitsi. De queixoespetado para a frente, parecia o Rémy, a preparar-se para lutarpelos necessitados.

— Os livros da Alliance israélite universelle foram confiscados —disse o Boris — numa completa e total amputação. Os nazis não sóconfiscaram a colecção da Biblioteca Ucraniana como prenderam obibliotecário. Só Deus sabe onde ele está. Se não seguirmos assuas ordens, vão fechar a Biblioteca e prender-nos. Na melhor dashipóteses.

Olhámos para Miss Reeder.— «Certas pessoas vão deixar de poder entrar» — repetiu ela. —

Várias delas são os nossos sócios mais fiéis. Tem de haver umamaneira de podermos manter o contacto com elas.

— Pense na história de Maomé e a montanha! — replicou acondessa. — Eu tenho um par de pés, tal como o Boris, o Peter, aOdile. Estou mais do que pronta para levar livros aos leitores, e decerteza que todos os membros do pessoal ficarão felizes de fazer omesmo.

— Vamos garantir que todos os leitores tenham livros — disse aMargaret.

— É perigoso — disse Miss Reeder. Olhou cada um de nós paragarantir que compreendíamos. — Todas as regras com quevivíamos foram alteradas. Entregar livros pode ser considerado umdesafio às autoridades, e podemos ser presos.

— Cheguei a Paris antes de a guerra começar para pôr livros nasmãos de leitores — disse a Helen — e não vou parar agora.

— Eu levo todo o conteúdo da Biblioteca aos leitores — disse oPeter.

— Não vamos deixar os leitores ficarem isolados — insistiu MissWedd. — Eu levo-lhes livros. E scones também, se arranjar farinhasuficiente.

— Entregar livros vai ser a nossa maneira de resistir — disse aBitsi.

— Precisamos de fazer isto — disse eu.— É a atitude certa — disse o Boris.— Então, vamos ao trabalho — concluiu Miss Reeder.Ela e a condessa escreveram aos sócios judeus. A Bitsi ligou aos

que tinham telefone. Sentada à secretária de Miss Reeder, com oauscultador quase tão grande como a sua cabeça, eu ouvia-a dizer:«Até as coisas voltarem ao normal… Lamento… Que livros lhepoderemos levar?»

O Boris preparava pedidos, atando os livros com fio. Entregou-meum pacote para a professora Cohen e saí para um mundo muitodiferente.

Tentei evitar os postos de controlo nazis, mas tinha surgido umnovo a dois quarteirões de distância. Numa rua estreita, Soldaten —sempre armados, sempre em bandos de cinco — faziam osparisienses passar por barricadas de metal para verificarem os

nossos documentos e revistarem os nossos pertences. Enquantoaguardava na fila, percebi que tinha rabiscado a morada daprofessora num pedaço de papel e o enfiara na minha sacola.Porque não me limitara a memorizar onde ela vivia? E seconduzisse os nazis ao seu apartamento?

Um soldado exigiu que abrisse a sacola. Fiquei ali especada. Aminha respiração tornou-se tão superficial que pensei que iadesmaiar. Ele agarrou na mala e remexeu nos livros e papéis ládentro.

— Nada de interessante — declarou o soldado em alemão —, sóum lenço, as chaves de casa e alguns livros.

Pelo menos, foi o que pensei que tinha dito. As únicas palavrasque compreendi foram nichts, interessant e Buch. Ele olhou para osmeus documentos, fixando a fotografia na carte d’identité, antes deme enfiar os documentos contra o peito e rosnar: «Avance!»

Quando dobrei a esquina, revirei a sacola em busca do papel coma morada. Jurando ter mais cuidado, rasguei-o. Não queria pôrleitores em perigo. Depois de a minha respiração voltar ao normal,recomecei a andar.

Sempre me tinha perguntado onde vivia a professora, eimaginava-a num estúdio arejado com vista para um jardim derosas. Não que ela me fosse convidar a entrar. Não se tratava deuma visita social e, dadas as circunstâncias, não fazia ideia do quedevia dizer. Não está certo? A Biblioteca lamenta muito? Isto é umacircunstância estranha?

Nada?Foi uma caminhada de vinte minutos até à casa da professora

Cohen. Dentro do edifício haussmanniano, a escadaria curvava

como uma casca de caracol. Cheguei ao segundo andar, onde ouvio rat-a-tap-tap da máquina de escrever. Com medo de a incomodar,considerei deixar o pacote à porta, mas sabia que o Boris não iagostar de saber que os livros tinham sido abandonados. Por fim,bati. A professora fez-me entrar com um agitar do seu xaile.Seguindo-a para a sala de estar, o meu olhar desviou-se da pena depavão no seu cabelo para o esqueleto de uma parede de estantesque em tempos tinham guardado milhares de volumes. Os nazisenterraram uma baioneta no corpo da investigação da professora.

— Até me roubaram os meus diários… os meus tempos felizescom entes queridos, os meus momentos de desespero.

Tinham-lhe confiscado os pensamentos privados. Furacões,551.552; livros censurados, 363.31; animais perigosos, 591.65.

Ela apontou para uma pilha de livros sobre a cadeira.— Os amigos têm passado por cá. Eles conhecem os meus

gostos e, pouco a pouco, vou reconstruir a minha colecção, talvezaté com um romance escrito por mim. Falei com um editor sobre oque tenho feito e ele parece muito interessado.

Esperança, 152.4. Olhei de relance para a máquina de escrever.— Sobre o que é o seu livro?— É sobre nós. Bem, sobre nós, parisienses. Tal como a maioria,

adoro observar pessoas, mas por vezes acho que estamosdemasiado conscientes de cada um. Isso cria uma inveja corrosiva.

Antes que eu pudesse responder, ela saiu da sala e regressoucom uma bandeja com chá e biscoitos. Olhei para o relógio —quatro da tarde. Havia outros leitores à espera de entregas, e eunão queria que o Boris ficasse zangado. Mesmo assim, não podiadeixá-la assim, depois de ela se ter dado àquele trabalho.

Enquanto o orange pekoe infundia, fui mordiscando um cigaretterusse. A minha língua pareceu dilatar-se quando saboreei umasubstância rara — manteiga. Onde raio a teria ela encontrado?

— O melhor amigo do meu sobrinho tem uma leitaria — disse ela.Fiz uma careta.— Quem diria que nos sentiríamos obrigados a justificar o facto

de termos certos alimentos?— E vai piorar.Eu tinha dificuldade em imaginar como seria possível as coisas

piorarem.— Miss Reeder prometeu passar por cá amanhã — disse-lhe,

esperando que a notícia de uma visita a animasse.— Como estão as coisas na Biblioteca?Ouvi as perguntas que ela não fez. Os meus amigos vão reparar

que não estou? Vão sentir a minha falta?A expressão da professora, desarmada, estava cheia de uma

imensa mágoa. Como era estranho ver esta paisagem interna — ointerior de um apartamento, o interior de uma vida. Entrar na casade uma sócia e ver coisas que deviam ser privadas. Eu não sabia oque dizer. Nem ela. Acabou por ser a autora a encontrar aspalavras.

— Obrigada por me trazer os livros. Tenho de voltar para o meuromance.

As notícias do mundo lá fora raramente chegavam à ZonaOcupada. Embora a mãe de Miss Reeder lhe escrevesse todas assemanas desde 1929, a directora não recebia cartas há seis meses.

Não entravam livros nem periódicos estrangeiros; eu imaginava-osempilhados num armazém em Nova Iorque.

Mesmo com as rações, a comida tornava-se difícil de encontrar.No mercado, a maman ficava em filas durante uma hora paracomprar três débeis alhos-franceses. O vestido às bolinhas de MissReeder, que antes se ajustava ao seu corpo, agora nadava sobre asua estrutura magra. Helen-da-referência ainda tinha o cabeloencaracolado e os olhos sonhadores, mas perdera seis quilos.Como eles, também eu estava demasiado magra. Disse ao Dr.Thomas que não tinha o período há meses; ele replicou que não eraa única.

Esfomeada, movia-me a metade da velocidade normal, aoentregar material de leitura por Paris inteira, de apartamentoschiques junto a Parc Monceau a modestos quartos em Montmartre.Um dia, no posto de controlo, um dos soldados — o oficialresponsável — prestou mais atenção ao conteúdo da minha sacola.

— Call of the Wild? The Last of the Mohicans? O que é que umarapariga francesa anda a fazer com romances em inglês? Mostre-me os seus documentos!

O Kapitän passou o dedo sobre a fotografia da minha carted’identité, talvez convencido de que se tratava de uma falsificação.Fez uma pergunta em alemão a outros soldados. Eles aproximaram-se, até eu ficar rodeada. Nunca me tinha sentido tão pequena.Examinando os livros, os Soldaten falavam rapidamente; sóconsegui perceber algumas palavras: Gross. Roman. Gut. O queestariam a dizer? Julgariam que eu estava a transportarmensagens? Iriam prender-me? Que desculpas poderia dar? Que

era bibliotecária na BAP? Não, eles podiam lá ir. Que tinha umaamiga inglesa? Não, podiam prender a Margaret.

— Uma «rapariga francesa» pode interessar-se por outrasculturas, sabem — disse-lhes. — Eu e o meu irmão apreciamosGoethe.

O Kapitän anuiu com um ar aprovador.— Nós, alemães, temos bons escritores.Devolveu-me os meus pertences; apressei-me a ir embora antes

que mudassem de ideias.Era difícil evitar estes postos de controlo porque os nazis erguiam

barricadas em ruas aleatórias. Quando terminei as entregas,regressei à Biblioteca e avisei a Margaret do perigo de ser presacomo aliado inimigo.

— Eu sei. Quando estava a voltar para casa, ontem, vi um postode controlo e enfiei-me numa modista. Três horas e quatro chapéusmais tarde, os nazis foram-se embora. — Enrolou as pérolas emvolta do dedo. — Sinto-me como se tivesse uma corda ao pescoço.

Quando a nossa guarda-livros faltou ao trabalho, tememos o pior.Procurámos no apartamento de Miss Wedd, nos hospitais e nasesquadras de polícia, antes de o Boris descobrir o que tinhaacontecido — os nazis tinham-na detido e enviado para um campode internamento no Leste de França. Aprisionada porque erainglesa.

Miss Reeder decidiu que os membros estrangeiros do pessoaldeviam sair de França.

— Uma das coisas mais difíceis que tive de fazer foi pedir aHelen-e-Peter que se fossem embora — disse aos sócios e pessoalna festa de despedida. — Sei que é a decisão certa. A minha

cabeça… e o meu coração vão funcionar muito melhor quando eusouber que estão a salvo.

O semblante da Helen era pálido, mas havia luz nos seus olhos.O Peter pedira-a em casamento. Saber que a sua história de amorna Biblioteca iria perdurar fez-nos sentir menos tristes quandoerguemos os copos para lhes dizer adieu.

— Felizmente Miss Reeder fica cá — comentei para a Bitsi.— Por agora — replicou ela.

Fevereiro, Março, Abril. O Inverno não cedia. Nuvens cinzentascobriam o céu, uma chuva mortiça caía noite e dia. Durante a suaronda, o Paul levou-me um raminho de lilás.

— Tens estado tão triste — disse ele. — Soubeste alguma coisado Rémy, recentemente?

Retirei um envelope do bolso e desdobrei a sua última carta comose fosse um tecido inestimável.

Querida Odile,Boa Páscoa! Estou a pensar em ti. Obrigado pelo Villette. Estou a começar a pensar

nas Brontës como queridas amigas.Temos sido obrigados a trabalhar em quintas. Os homens deles estão a lutar na

Frente Leste, por isso quase só há aqui mulheres e velhos. Somos levados para acidade, onde os proprietários de terras andam a farejar à nossa volta, à procura de umtrabalhador musculado.

Os companheiros sabotam o que é possível — os agricultores são o inimigo, afinal.Quem me dera que pudesses conhecer o Marcel. Quando uma velha frau o levou parao seu celeiro e lhe enfiou um balde no peito, esperando que ele mugisse a vaca, oMarcel puxou-lhe a cauda com tanta força como se estivesse a bombear água de umpoço. A vaca, assustada, deu-lhe um coice. Agora está imobilizado comigo na

caserna. Ele insiste que pelo olhar de aversão na cara da frau valeu a pena um par decostelas partidas.

Beijos,Rémy

Ele fazia-se de forte por mim, como eu me fazia por ele.— O que se passa? — perguntou o Paul.— Por onde hei-de começar? Está um soldado alemão

acantonado no apartamento da Bitsi. A dormir no quarto do irmão.Não sei como ela aguenta. Ontem, depois do trabalho, chorou nasala infantil, e eu não sabia se havia de a consolar ou fingir que nãovia. Ela tem o seu orgulho, afinal de contas. Monsieur de Nerciat eMr. Pryce-Jones ainda não se falam. Detesto que a guerra tenhaestragado a sua amizade. Estamos preocupados com Miss Reeder,que está mais magra a cada dia que passa…

— Pelo menos tens uma chefe que admiras.Ele parecia perturbado. Apetecia-me abraçá-lo, apetecia-me

esquecer a guerra durante cinco minutos, mas o olhar persistente deMadame Simon enervou-me. Nunca estaríamos sozinhos, o Paul eeu?

*

Das escadas em caracol, ouvia já as marteladas nas teclas daprofessora Cohen. Desta vez, como sempre, o seu patamar estavaimbuído do odor a tinta da fita da máquina de escrever. Apesar deme sentir melancólica, sorri quando ela foi abrir — com um casacode smoking.

— O que se passa? — perguntei.— Estou a tentar entrar na mente da minha personagem, por isso

vesti o smoking do meu marido.— Está a funcionar?— Não tenho a certeza, mas é divertido.Atrás dela, as estantes estavam quase meio preenchidas. Bitsi,

Margaret, Miss Reeder, Boris e eu trazíamos livros das nossaspróprias colecções, tal como os amigos da professora. A pilha depapel ao lado da máquina de escrever também tinha crescido.

— Novidades? — perguntou.Suspirei.— Fui promovida a bibliotecária da referência.— Isso não é bom?— A minha antecessora voltou aos Estados Unidos. Não era

assim que queria que a minha carreira progredisse. Preferia ficar nasala dos periódicos para sempre e manter os meus colegas.

— As pessoas fazem planos e Deus ri-se — comentou ela. —Uma chávena de chá? E uma roupa mais adequada?

Conversámos no divã, com chávenas de chá equilibradas nosjoelhos, ela com o seu smoking, eu com um laço ao pescoço. Toqueina seda. Fez-me sentir melhor.

Visitar a professora Cohen a cada semana tornara-se uma dasgrandes alegrias do meu trabalho, da minha vida. Ela até medeixava ler o seu trabalho, parte do qual tinha a Biblioteca comocenário. Os capítulos eram tão espirituosos, tão perspicazes, tãoela. A professora tornara-se a minha escritora preferida, em todasas categorias combinadas.

Paris

12 de Maio de 1941

Monsieur l’Inspecteur:Porque não anda à procura de judeus não declarados na clandestinidade? Aqui tem

a morada da professora Cohen, rue Blanche, 35. Era professora de uma dita Literaturana Sorbonne. Agora convida alunos a ir à casa dela ouvir as conferências só parapoder continuar na folia com colegas e estudantes, quase todos homens — comaquela idade!

Quando sai à rua, vê-se a um quilómetro de distância, com aquela capa púrpura,uma pena de pavão torta no cabelo. Peça à judia a certidão de baptismo e opassaporte, vá lá ver a sua religião. Enquanto bons homens e mulheres francesesandam a trabalhar, a Senhora Professora fica sentada a ler livros.

As minhas indicações são certas, agora é consigo.Assinado,

Alguém que sabe

CAPÍTULO 24

Odile

No estéril pátio do nosso prédio, a maman estremeceu enquantoarrancava os amados fetos dos vasos. Ao seu lado, Eugénie e eusemeávamos sementes de cenoura na terra. Ajudar a maman fazia-me sentir útil, e a luz do sol sabia-me maravilhosamente.

— Podíamos ter plantado legumes no ano passado. — Elapassou os dedos sobre os fetos desamparados caídos no chão. —Mas eu gostava de ter alguma coisa bonita.

— Quem havia de saber que a Ocupação ia continuar? —perguntou Eugénie.

— E se nunca acabar?— Dissemos isso da Grande Guerra. Todas as coisas boas

acabam, e as más também.A maman leu-nos uma carta de uns primos que viviam na

província e prometiam enviar provisões. Quando terminou, disse:— Passei toda a vida envergonhada das minhas raízes rurais.

Quando os chefes do papa e as mulheres vinham cá jantar, sentia-me sempre… não tão boa como as senhoras parisienses. Borregogorduroso ao lado de salmão fumado.

— Oh, Hortense. — Eugénie pegou na mão coberta de terra da

maman.— Mas agora as minhas raízes podem salvar-nos.— Na forma de cenouras — gracejei.— Porque é que tinha de falar de borrego? — lamentou Eugénie.

— Agora estou esfomeada.A rir, eu e ela transportámos os vasos pelas escadas acima e

pousámo-los nos parapeitos das janelas. A maman seguiu-nos, como punho cheio de rebentos que se enrolavam como pontos deinterrogação.

— Acho que devíamos ir tratar do jantar — lembrou Eugénie. —Porque não convida o Paul?

— Ele terá de vir pela companhia, não pela refeição — avisou amaman, enquanto pousava os seus fetos num copo com um poucode água. — Vai ser rutabagas, de novo.

— Mas assadas, desta vez — disse Eugénie aprumadamente.Depois de comermos, a maman fingiu arrumar a secretária e o

Paul e eu sentámo-nos no divã. Como não podíamos conversar àvontade, mostrei-lhe uma página de A Idade da Inocência, osnossos corpos quase a tocar-se enquanto líamos. Enquantoestamos separados e eu quero vê-la, todos os pensamentos ardemnuma grande chama. Mas depois você chega e é tanto mais do queme lembro, e o que quero de si é tanto mais do que uma hora ouduas de vez em quando, com imensas horas de sede pelo meio.[15]

Eugénie entrou na sala e agarrou na mão da maman.— Oh, deixe-os divertirem-se um pouco.— Quando se casarem, podem «divertir-se» tanto quanto

quiserem — replicou ela.— Onde está o teu pai? — perguntou o Paul, trazendo a nossa

comunicação de volta para o domínio público.— Ainda a trabalhar. Chega a casa à noite carregado com pastas,

mas não nos diz uma palavra. Quando vejo as olheiras com que eleanda…

— Preocupas-te com toda a gente, mas eu preocupo-me contigo— disse o Paul. Explicou que tinha poupado um ano inteiro parauma surpresa especial.

— O que é?— Amanhã, vamos a um cabaré.— Um cabaré! — arfou a maman.— Eles vão estar rodeados por dezenas de pessoas —

tranquilizou-a Eugénie.Lancei os braços à volta do pescoço do Paul. Música!

Champanhe! Sem acompanhante! Íamos dançar toda a noite, umavez que quem saía para se divertir esquivava-se ao recolherobrigatório, ficando no cabaré a noite inteira e saindo apenas aonascer do sol.

— Não vai resolver as nossas preocupações — disse ele —, maspodemos passar umas horas sem pensar em nada.

Na noite seguinte, a maman prendeu-me uma flor no cabeloenquanto o Paul aguardava, pouco à vontade com o seu fato debombazina. No cabaré, bebemos espumante enquanto voluptuosasdanseuses de sutiã e culotes se abanavam no palco, oferecendo umocasional vislumbre de seios. Eu estava mais interessada no peitode galinha no meu prato. A faca e o garfo tremiam-me nas mãos. Hátanto tempo que não comia qualquer tipo de carne. Levando-a àboca, mordi aquela suculência e deslizei a língua ao longo do osso.

Não desejando desperdiçar uma gota de molho no guardanapo,lambi os dedos. Depois do jantar, rodeados por casais na pista dedança, o Paul e eu colámo-nos um ao outro.

Ao nascer do sol, foliões — saciados e ensonados — saíram docabaré. Nós vagueámos pelas ruas vazias e passámos pela mairie,onde eram afixados os banhos. Mademoiselle Anne Jouslin de Parisvai casar com Monsieur Vincent de Saint-Ferjeux de Chollet.

— É estranho ver pessoas a casar — comentei, a pensar noRémy, tão distante, e na Bitsi, que passava os serões sozinha.

— A vida continua. — O Paul olhava para mim.Suspeitei que, se dependesse dele, já estaríamos casados.

Passeámos agarrados um ao outro pelas ruas sinuosas deMontmartre. Enquanto o sol se erguia, instalámo-nos nos degrausda Igreja do Sacré-Coeur. Aninhada nos seus braços, vi as nuvenslaranja e rosa desabrocharem como flores.

— Percebi desde o princípio que eras diferente dos outros —observei, contente.

— Como?— Defendeste o Rémy, e defendeste-me a mim, quando eu queria

trabalhar.Ele puxou-me mais contra si.— Fico contente por seres independente. É um alívio.— Um alívio?— Tenho cuidado da minha mãe desde que o meu pai se foi

embora.— Mas eras tão novo!— Quando era miúdo, nunca sabia em que estado a ia encontrar

quando chegasse a casa… bêbada, a chorar, seminua com um

homem qualquer. Mais tarde, tive de desistir da escola para arranjarum emprego. A maior parte do que ganho é para lhe enviar.Honestamente, percebo porque o meu pai se foi embora.

— Oh, Paul.Ele afastou-se.— É melhor irmos.— Vamos conversar.— Não quero que os teus pais fiquem preocupados.Ele permaneceu ausente durante todo o caminho para casa. Eu

queria eliminar a distância que crescera entre nós. No patamar àsescuras, abracei-o. Sentia o seu coração a bater, e gozei asensação dos seus lábios nos meus, o sabor do seu champanhe naminha boca. As minhas mãos perderam-se pelo seu corpo enquantoele me beijava a face, o pescoço, o décolletage. Prisioneira daquelaterna e selvagem magia que fazíamos juntos, eu queria tê-lo àminha volta, tê-lo dentro de mim. Estava na altura de escrever umnovo capítulo no nosso relacionamento.

Soltei-lhe a gravata.— Vamos.— Tens a certeza? — perguntou ele, mas o seu cinto já estava

desapertado.Adorei senti-lo agitar-se entre os meus dedos, adorei ouvir o seu

gemido baixo, sabendo que tinha nele o mesmo efeito que ele tinhasobre mim. Deixei que o meu pé desenhasse um rasto pelo seugémeo, pelo seu joelho. Paul segurou-me a coxa e puxou o meucorpo contra o seu. A minha língua encontrou a dele, movimento amovimento. Ele enrolou-me as pernas em volta da sua cintura. Osangue martelava nas minhas veias.

— Odile, és tu? — A voz da maman soou abafada por trás daporta.

Lentamente, o Paul pousou-me no chão. A palpitar de desejo,vacilei sobre os saltos altos. Ele ajudou-me a equilibrar com umamão e puxou a bainha do meu vestido para baixo com a outra. Omeu corpo ardia. Não queria parar. A paixão tornara-me imprudente,e eu gostara.

A porta da frente abriu-se de rompante.— Esqueceste-te da chave? — perguntou a maman.— Arranja maneira de ficarmos sozinhos — sussurrei ao Paul.

Esfreguei os lábios inchados. O risco que tínhamos corrido…

Na Biblioteca, pendurei o casaco, a cantarolar ebriamente umabalada que a banda tinha tocado. Tinha a barriga cheia, o meucorpo ainda a vibrar. Quando a Bitsi — coberta pelo seu manto demelancolia — entrou, fiquei imediatamente sóbria.

A Bitsi viu a minha perturbação.— O que se passa?— Nada. — Não conseguia olhá-la nos olhos.— Passa-se alguma coisa.— Com o Rémy longe, não é justo que eu continue com a minha

vida.— Quem disse que a vida era justa? — disse ela suavemente.— Como posso permitir-me estar feliz quando ele está infeliz,

quando tu estás infeliz?— Espero que tu e o Paul não estejam a impedir-se de casar.Olhei para ela.

— Ele aludiu ao tema…— A tua felicidade não depende do Rémy. Tu e o Paul são feitos

um para o outro.— Achas mesmo?— Acho.Quando a Bitsi se virou para ir para a sala infantil, pareceu-me

que a sua trança em forma de coroa se tornara um halo.Antes que pudesse ir atrás dela, o Boris passou-me um pacote de

livros para eu ir entregar. A caminho da casa da professora Cohen,passei por uma rapariga a vender flores a uma esquina. Lembrei-mede que, quando eu e a professora conversávamos, por vezes elalançava um olhar melancólico à sua jarra de cristal vazia. Esperandoanimá-la, comprei um ramo.

Quando lhe ofereci os gladíolos de cor púrpura, a professoraexultou. Retirou uma jarra de dentro do armário e arranjou as flores.

Apontei para a de cristal.— Porque não usou aquela?— Nunca ponho nada nela.— Porquê?— Na primeira vez que o meu terceiro marido me convidou para ir

à casa dos pais dele, foi para um almoço de domingo interminável.Eu precisava de uma pausa e saí da sala.

— Percebo.— Quando voltei, a mãe dele estava a criticar-me: «Ela é fria.

Demasiado intelectual. Muito velha, de certeza que é estéril.» Antesque ele respondesse, eu disse-lhes que me ia embora. No diaseguinte, ele apareceu no meu gabinete com aquela jarra. Quando

me disse que a peça o fizera lembrar-se de mim, repliquei: «Fria,dura e vazia?»

— E o que é que ele respondeu?— Que era uma obra de beleza. Cheia de vida, mas capaz de

conter tanto. Perfeita em si.Percebi porque tinha casado com ele… Como estão as coisas na

Biblioteca? — perguntou-me.Ouvi as perguntas que ela não fez. Eles sabem que os judeus já

não podem dar aulas, e que perdi o emprego? Importam-se comisso?

— Monsieur de Nerciat e Mr. Pryce-Jones vão lá passar esta tarde— disse eu.

Ela endireitou-se.— Juntos? Fizeram as pazes?Era verdade. Na semana anterior, farto do impasse, o francês

pedira a Miss Reeder que fizesse de mediadora.— A directora é formidável — contara-me Mr. Pryce-Jones. —

Não tínhamos arcabouço para ela.— Quando Miss Reeder bate o pé — acrescentou Monsieur de

Nerciat —, a Biblioteca inteira treme.E a sala de leitura voltara a vibrar com os debates entre os dois.— Os EUA vão entrar na guerra!— Os americanos são isolacionistas. Vão ficar de fora.As saudades que eu tinha das suas discussões!— Ainda bem que resolveram as coisas — felicitei Monsieur de

Nerciat, que passou pela minha secretária para dizer bonjour.— Bem, tive de me pôr «nos sapatos dele».Ri-me da expressão idiomática, já que nós, franceses, dizemos

«na sua pele».— Foi difícil dar o primeiro passo? — quis saber.— Teria sido mais difícil perder um amigo.

*

Formara-se uma fila de leitores na sala de referência, e eurespondia a questões como «Como se faz canjica?» ou «Pode irdizer àquela mulher ali para parar de falar tão alto?». Quandochegou a vez do Paul, também ele tinha uma pergunta. «Podes sairpara o almoço?»

O meu olhar desviou-se para a sala infantil. O Paul e eu podíamosestar juntos. Fora a Bitsi quem o dissera, e a sua bênção significavamais para mim do que a de qualquer padre.

Perto de Parc Monceau, um bairro elegante conhecido pelas suasembaixadas, o Paul conduziu-me a um majestoso edifício de pedracalcária.

— Aonde me levas? — perguntei, enquanto subíamos a escadariade mármore.

Ele sorriu.— Vais ver.No segundo andar, destrancou a porta de um apartamento ainda

mais grandioso do que o da Margaret. Cortinas de veludo cingidascaíam sobre as janelas altas. À luz do sol, os prismas do candelabrocintilavam.

— Quem é que vive aqui? — sussurrei, extasiada.— Provavelmente algum empresário rico que fugiu para a Zona

Livre.

— Como conseguiste as chaves?— Um amigo na mesma situação que nós. Encontra-se com as

miúdas dele aqui.Um apartamento para encontros românticos!O Paul roçou o nariz no meu pescoço.— Amo-te — disse. — Faria qualquer coisa por ti. Qualquer coisa

mesmo.Eu queria aquilo mais do que tudo, mas tinha medo. Medo de que

tudo mudasse, medo da dor, medo de que fazer amor nos ligassepara sempre, medo de que não o fizesse.

— Também é a primeira vez para mim — disse ele.Olhando-me nos olhos, esperou pela minha resposta.Acariciei-lhe a face.— Eu quero.Os dedos dele tremiam enquanto me desabotoavam o vestido.

Como era divino, desnudar o meu corpo. Como era divino ver o delesem ter medo de que a maman interrompesse. Ele acariciou asminhas velhas meias de seda.

— Que tu es belle — disse, e deitou-me no divã.Ergui as pernas, e ele entrou lentamente. Ao princípio doeu, mas,

ao olhar para o Paul, senti-me feliz por ser ele. Quando se moveudentro de mim, as minhas ancas ergueram-se ao encontro das suas.A minha mente parou de analisar cada pequena coisa.

A seguir, aninhada contra o seu corpo, perguntei-me por querazão os livros saltavam esta parte. Fora perfeito e, mais do queisso: fora certo. Estar com o Paul era um sonho, e importante, ecerto.

Quando ele se moveu, ergui a cabeça e olhei em volta. Perguntei-

me onde nos levaria o corredor. Nua, fui cortando os raios de solque aqueciam o soalho. O Paul seguiu-me. A primeira portaconduzia a um escritório com secretária dourada. O Rémy teriaadorado a colecção de requintadas canetas de tinta permanente queencontrámos na primeira gaveta.

— Porque não levaram os seus tesouros? — perguntei.— Quando a guerra rebentou, as pessoas fugiram em pânico.Não queria recordar aqueles dias terríveis. Retirei o Paul daquela

divisão, deixando todas as questões para trás. A porta à esquerdaconduzia a um boudoir cor-de-rosa, onde subimos para a cama dedossel. Balouçámos, hesitantes, de um pé para o outro, atécomeçarmos a saltar. Para cima e para baixo, e ríamos comocrianças. O Paul foi o primeiro a parar, de súbito sério. Adorava amaneira como ele olhava para mim, com tanta admiração nos olhos.

Ofegante, deixei-me cair na cama e enfiei-me debaixo doedredom, sabendo que ele me seguiria naquele macio paraíso. Assuas pernas entrelaçaram-se nas minhas, e ele sussurrou «Estamosem casa» para a emaranhada nuvem do meu cabelo.

Quando saímos do calor da cama, deslizámos pelo chãoescorregadio até à sala, onde vestimos as roupas deixadas numapilha impaciente. O Paul mostrou-me o seu relógio de bolso.

— Temos de ir, antes que aquela rabugenta da dentadura gigantese queixe da tua demora.

— Promete que podemos voltar — pedi, enquanto fechávamos aporta atrás de nós.

Ele prendeu-me uma madeixa do cabelo atrás da orelha.— Todos os dias, se quiseres.Demorámo-nos na frente da Biblioteca.

— É melhor entrar — disse, trémula. O meu corpo parecia teracordado de um longo sono. Reparava em cada pestanejar, emcada fôlego, em cada bater do coração. Perguntei-me se alguém iareparar numa mudança em mim.

CAPÍTULO 25

Odile

O balcão de atendimento estava vazio. Que estranho. O Boris nãoera pessoa para abandonar o seu posto. Continuei até à sala deleitura, onde os meus habitués estavam sentados, imóveis. Ninguémfalava, ninguém lia. Perguntei a Madame Simon se tinha visto oBoris. Ela abanou a cabeça, nem se dando ao trabalho de me ralharpor regressar do almoço cinco minutos atrasada.

Alguma coisa estava assustadoramente errada. Percorrirapidamente toda a Biblioteca. A secção da referência estavadeserta, tal como a sala infantil. O gabinete de Miss Reeder estavatrancado. O Além estava vazio. Por fim, encontrei a Bitsi novestiário, enroscada a um canto, com os joelhos contra o peito.

Ajoelhei-me ao seu lado.— É o Rémy?— Não. — Os seus olhos não descolavam do chão.— O teu irmão?Ela olhou para mim, com os olhos violeta inundados de mágoa.— Miss Reeder anunciou que se vai embora.Não podia ser verdade.— Ela foi com o Boris pedir autorização de viagem — acrescentou

a Bitsi.— Porque é que vai agora, depois deste tempo todo? —

perguntei.— Os administradores em Nova Iorque enviaram um telegrama a

ordenar-lhe que saia de França imediatamente. Pensam que é sóuma questão de tempo até a América entrar na guerra, e têm medoque ela seja presa como estrangeiro inimigo.

Deixei-me cair no chão ao lado da Bitsi. Não conseguia imaginar avida sem a directora na sala ao lado, onde podia enfiar a cabeçapela abertura da porta e pedir-lhe conselhos. Se não fosse ela, aBitsi e eu não seríamos amigas. Miss Reeder ofereceu-me umaoportunidade para crescer. Não me deu um sermão. Confiou emmim, acreditou que eu aprenderia as minhas próprias lições. O quefaria sem ela?

Dois dias depois, ajudei Miss Reeder a arrumar os seuspertences. Embora soubesse que a segurança dela importava maisdo que qualquer outra coisa, e que aquilo era para o seu bem, eumovia-me lentamente, querendo mantê-la connosco o máximo detempo possível. Na gaveta, um caderno de moradas vermelhotransbordava de cartes de visite de pessoas como o embaixadorsuíço e a duquesa de Windsor. Guardei-o na mala.

— O que vai fazer nos Estados Unidos? — perguntei.— Abraçar a minha família e saber de todos os momentos que

perdi. Para além disso, ainda não pensei muito. Talvez voltar para aBiblioteca do Congresso, ou candidatar-me à Cruz Vermelha.

— Eu gostava que…

— Eu também gostava. Custa muito partir. Estou tão orgulhosa daBiblioteca e do facto de termos continuado abertos. Mas, quandonão se tem notícias do mundo lá fora… nem sequer da própriafamília… — Vi o brilho das lágrimas, e ela retomou o trabalho dearrumar a sua colecção particular: livros preferidos que trouxera decasa, primeiras edições autografadas de admiradores, e váriosvolumes franceses.

Lá se ia Rilke, lá se ia Colette, e, quando os livros estivessemencaixotados, lá se iria Miss Reeder. Vê-la esvaziar as estantes eradoloroso, por isso virei-me para a secretária. Na gaveta de baixoestava uma caixa de correspondência. Sabia que não deviabisbilhotar, principalmente com Miss Reeder mesmo ali, mas nãoresisti quando vi a sua letra ousada e curva. Era uma carta para«Mãe e pai».

Não se pode planear com mais de um dia de antecedência, por isso não sei o que ofuturo me reserva. Tenho, no entanto, a sensação de que a nossa Biblioteca vaicontinuar para sempre. Estamos a fazer um excelente trabalho, tendo em conta asdificuldades. Não é fácil, quando temos de ficar na fila da comida antes de ir para otrabalho; quando tudo é extremamente difícil de adquirir, incluindo roupa, sapatos,medicamentos, etc.; quando não há aquecimento nem água quente; quando tudo é tãocaro. Ver as filas entristece o coração. Não há sabão, não há chá, não há nada. Otorno de ferro funciona — de uma forma muito polida, é certo — mas é duro; oh, muitoduro…

Porém, as dificuldades físicas parecem pequenas quando comparadas com as docoração. Aqui na Biblioteca tivemos a nossa dose, como todos os outros, mas, dealguma forma, toca-nos mais de perto quando ocorre no nosso próprio edifício, entre onosso pessoal. Um dia espero contar-vos a história.

Com amor,Dorothy

A missiva lembrava-me as que eu tinha escrito ao Rémy. Cheiascom a crua verdade da Ocupação, eu escondera aquelas cartasdentro dos velhos clássicos na minha prateleira de baixo. Queriaprotegê-lo, da mesma maneira que Miss Reeder protegia os pais.Havia tanto que não podíamos dizer.

— Foi maravilhoso trabalhar contigo — disse ela.— A sério?— Promete-me apenas que vais pensar antes de falar. Podes

saber o Sistema Decimal de Dewey de cor, mas se não conseguiresconter a língua esse conhecimento é um desperdício. As tuaspalavras têm poder. Em especial agora, em tempos tão perigosos.

— Prometo.Quando ela terminou de arrumar as suas coisas, apenas restava

o papel com o número de telefone do Dr. Fuchs.— Ele disse que podíamos ligar de noite ou de dia. Espero que

nunca precises de o fazer.Na festa de despedida, a condessa levou os seus criados para

distribuírem copos de vinho, mas os meus habitués não tiveramcoragem para participar.

— Quem vai ficar no lugar da directora? — perguntou Mr. Pryce-Jones.

— A nossa Odile — disse Monsieur de Nerciat.— É demasiado nova — disse Mme. Simon, com a dentadura a

matraquear. — O conselho de administração nunca vai autorizar.— Talvez ofereçam o trabalho ao Boris — aventou Mr. Pryce-

Jones.— Um russo ao leme da Biblioteca Americana? — disse Mme.

Simon. — Têm de encarar a verdade. A Biblioteca vai fechar.

— Vamos fazer um brinde — disse a condessa, para impedir queo ambiente se tornasse soturno.

Erguemos os copos. Embora Miss Reeder estivesse muito magra,o seu sorriso era radiante.

— A todos vocês, foi uma honra. Nenhum tributo conseguiriaexprimir a minha devoção, profundo afecto e alta consideração.

— Que recorde apenas os dias melhores — disse o Boris,enquanto lhe apresentava o nosso presente, um globo de neve comuma Torre Eiffel lá dentro. Quando ela o abanou, minúsculaspartículas douradas dançaram à sua volta.

Um pouco afastadas, a Margaret, a Bitsi e eu observámos osleitores que se despediam da directora. Margaret brincava com aspérolas. Não tinha conseguido contactar a família em Londres e nãosabia como se encontravam no meio do Blitz. A Bitsi apertava EmilyDickinson contra o peito. Com aquele soldado alemão acantonadono seu apartamento, nem sequer em casa conseguia fugir à guerra.

No dia seguinte, Miss Reeder sairia da Zona Ocupada,atravessaria a Zona Livre até Espanha e seguiria depois paraPortugal, onde um transatlântico a levaria de volta para a América.Pensei no Rémy, no irmão da Bitsi, em Julien e nos outrosprisioneiros de guerra. Pensei na alegre Miss Wedd, cujo crime erater nascido em Inglaterra. Na nossa catalogadora canadiana, asevera Mrs. Turnbull; em Helen-e-Peter; e agora em Miss Reeder, aum mundo de distância. 823. E Depois Não Havia Nenhum.

CAPÍTULO 26

Lily

FROID, MONTANA, AGOSTO DE 1986

Sempre que observava as estantes de Odile, um livro diferentechamava por mim. Havia dias em que era um título com letras vivasque me atraía; noutros, um grosso volume pedia para ser lido.Nessa tarde, foi Emily Dickinson. A minha mãe gostava de um dosseus poemas. O verso de que me lembrava era: «Esperança é acoisa com penas que se empoleira na alma.» No interior do finovolume, o ex libris «Biblioteca Americana de Paris Inc, 1920»mostrava o sol a erguer-se sobre um livro aberto, um horizonte tãovasto como o mundo. O livro encontrava-se em cima de umaespingarda, quase a enterrá-la — o conhecimento a eliminar aviolência. Enquanto percorria as suas páginas, uma fotografia apreto e branco guardada lá dentro caiu para o chão.

Odile, que regressava da caixa do correio, apanhou-a.— É a maman, o papa, o Rémy e eu.O bigode do pai dominava-lhe o rosto e fazia-o parecer severo. A

mulher posava praticamente atrás dele, e perguntei-me se seriatímida. Odile e a mãe usavam vestidos, os homens, fatos.

— O seu pai era empresário?— Não, comissário da polícia.Sorri.— Ele sabe que roubou um livro da Biblioteca?Ela não retribuiu o sorriso.— Sabe que sou uma ladra.Fiquei a morrer por saber o que queria ela dizer com aquilo, mas,

quando ia perguntar, o telefone tocou. Sabia que era a Eleanormesmo antes de ouvir a sua estridente carência.

— Está aí a Lily? Estou a precisar de ajuda…— Lá se vai a lição de Francês de hoje — resmunguei. Voltando a

enfiar a foto no livro, reparei que havia mais algumas lá dentro, edesejei poder ficar.

— O bebé continua com cólicas?— Mais oui.Ao longo de dois meses, ninguém tinha conseguido dormir. Pior, o

bebé não mamava. A enfermeira dizia que quanto mais tensa aEleanor estivesse, mais tempo demoraria o Benjy a «agarrar». Como pai sempre no trabalho, era eu que cuidava da Eleanor, dando-lhepalmadinhas nas costas, como fazia quando punha o Joe a arrotar.

Com pouco mais de um ano de diferença, ambos os rapazesusavam fraldas de pano por baixo de cuecas de plástico. A Eleanorensinou-me a mudar uma fralda e depois a mergulhar a suja decocó na sanita antes de a enfiar na máquina. Eu não sabia porqueinsistia ela em usar as de pano quando toda a gente usavadescartáveis. Talvez porque pensava que mais trabalho significavamais amor.

Encontrei a Eleanor na cozinha, onde estavam mais de trinta

graus. Suor escorria-lhe pelo rosto, e o Benjy berrava nos seusbraços.

— Porque é que ele não pára? É por minha culpa? — gemia aEleanor. Chorava quase tanto com o bebé.

— Já comeste hoje? — Cheirei o bebé para ver se precisava delhe mudar a fralda. Cheirava bem. Ela não. — Tomaste banho?

A Eleanor olhou para mim como se eu estivesse a falar em persa.Mexi três ovos com uma mão enquanto embalava o Benjy com aoutra. Enquanto ela devorava a omelete, limpei o nariz do bebé como bibe.

Quando o meu pai chegou a casa, fez a única coisa que podia.Ligou a ventoinha e apontou-a para a Eleanor. Depois de a ouvirqueixar-se, ligou à avó Pearl, que veio no dia seguinte.

— Que cheirete — comentou ela, pousando uma caixa cheia debiberões e tetinas de borracha na bancada.

— Biberão? — protestou a Eleanor. — O que é que as pessoasvão pensar?

Ela mandou a Eleanor descansar. Eu ocultei o sorriso por detrásdo meu livro. Quando a avó Pearl mandava alguém descansar eraporque precisava de descansar dessa pessoa. Apertando o cinto dogasto roupão cor-de-rosa, a Eleanor arrastou-se para a sala. A avóPearl preparou o leite e enroscou a tetina. Marchou para a sala eenfiou o biberão na mão da Eleanor.

— Agora dá de comer a essa criança.— Mas a Brenda amamentou.— Pára de te comparar com um fantasma!—Mãe! — A Eleanor fez um gesto na minha direcção.Disparaître significa deixar de estar visível, cessar de existir.

Envolvi-me em francês como se fosse um xaile e fui ter com Odile,que estava a trabalhar na sua horta. Levantou-se e limpou as mãosao vestido.

— Bonjour, ma belle. Comment ça va?Era o único adulto que me perguntava como eu estava. Os outros

perguntavam pelos meus irmãos.— Como se diz «fantasma»?— Le fantôme.— E «triste»? — Eu tinha aprendido a palavra há algum tempo,

mas precisava de novo dela.— Triste. — Ela abraçou-me. — A escola começa amanhã?— Sim. Eu e a Mary Louise inscrevemo-nos nas mesmas

disciplinas.— É uma dádiva passar tempo com os melhores amigos. Nem te

consigo dizer como sinto falta da minha. — Ela enfiou dentro docesto o alho-francês que tinha arrancado da terra. A sua expressãoparecia triste.

— Tem tempo para uma lição de Francês? — dissemossimultaneamente.

Aeroporto, un aéroport. Avião, un avion. Janela do avião, unhublot.

Hospedeira, une hôtesse de l’air. Anfitriã do ar. Lado a lado nanossa secretária, que era a mesa da cozinha de Odile, escrevi ovocabulário. Normalmente, estudávamos palavras do quotidiano,como «passeio», «prédio», «cadeira».

— Porque me está a ensinar vocabulário de viagem?— Porque, ma grande, eu quero que voes.Ao jantar, enquanto a Eleanor levava o rolo de carne para a mesa,

a avó Pearl seguiu-a, a implicar com ela como uma galinha adebicar o milho.

— O mundo não vai parar se dormires uma sesta. Só tens essacamisa? Quando foi a última vez que lavaste o cabelo? Onde está oteu brio?

A Eleanor pousou o creme de milho na mesa com um baque.— Mãe!Em momentos como aquele, eu recordava-me de que a Eleanor

era apenas dez anos mais velha do que eu.— E onde estão aquelas tuas amigas? — continuou a avó Pearl.

— Porque é que não te ajudam?— A Lily diz que a Brenda fazia tudo sozinha.— Como é que ela se lembra?A Eleanor virou-se para a mãe.— A Lily não ia mentir!Senti o meu rosto ficar vermelho.— Bem…— Não estou a dizer que mentiu — apressou-se a dizer a avó

Pearl. — Mas estou-te a dizer que uma mulher com três filhosprecisa de ajuda.

— Eu arranjo-me sozinha. — A Eleanor soava tão amuada comoa Angel, a irmã da Mary Louise.

Como de costume, o pai chegou a casa dois minutos antes dahora do jantar. Comemos em silêncio, exceptuando os gritos deBenjy. A Eleanor nem sequer deu graças antes.

Enquanto ela e a avó Pearl davam banho aos rapazes, lavei aloiça, arrumei os brinquedos, dobrei a roupa e contei as horas paraa escola começar.

Durante a semana, a avó Pearl cozinhou e repetiu a Eleanor quecomida para bebé comprada na loja nunca tinha matado ninguém.Antes de se enfiar no seu Buick, disse à filha:

— Apoias-te muito na Lily. Não há mais ninguém que possaajudar? Que tal aquela simpática Odile?

A Eleanor cruzou os braços.— Eu consigo fazer tudo sozinha. Além disso, a Lily é da família.Ela considerava-me família? De repente, ajudar já não me parecia

um sacrifício tão grande. No entanto, conseguia ouvir a voz da MaryLouise como se ela estivesse ao meu lado.

— A Eleanor faz-te trabalhar como uma escrava. Achas que éassim que se trata uma verdadeira filha?

Em Geografia, aprendemos sobre a China, onde o governo dizaos casais que só podem ter um filho. Ao ver como a Eleanor estavaesgotada, não me parecia uma política assim tão má.

— Na China, as raparigas não contam. Os pais querem rapazesque possam trabalhar nos campos — continuava a professoraWhite, não reparando que a nossa comunidade agrícola era igual.

— Já reparaste que a única coisa que nos ensinam sobre ospaíses comunistas é que são péssimos? — sussurrou a MaryLouise.

— Sim, porque Froid é o máximo.Na China, eu teria bastado. Se fosse um rapaz, o papá ter-me-ia

deixado ter aulas de condução. Já estaria a guiar. Já me teria idoembora. Enquanto a professora continuava o seu monólogo, deitei acabeça por um minuto, a sentir a madeira fria contra a minha face. A

minha casa era a China. Imaginei-me a tomar um banho, imaginei omeu pai e a Eleanor a prenderem-me os ombros e a segurarem omeu corpo debaixo de água, imaginei a vida a escapar-se-me.

— Lil? — A Mary Louise deu-me um toque nas costas.Acordei. Os outros estavam todos a sair.— Não ouviste a campainha?A bocejar, cobri a boca e senti um fio de saliva colado ao queixo.— A babar-se pelo Robby — comentou a Tiffany Ivers ao passar

por mim.Rezei: Deus, por favor, que ele não tenha visto.— Ignora-a — disse a Mary Louise. — Queres vir lá a casa?— A Eleanor precisa de mim para cuidar dos bebés.— E na sexta? Podias dormir lá, como costumavas fazer.Eu queria. Queria mesmo.— Não posso.Arrastei-me para casa, onde havia fraldas para mudar e Weeble

Wobbles espalhados pelo linóleo como minas terrestres. Bien sûr, oBenjy estava aos gritos. À mesa da cozinha, com a camisa rota quevestira a semana toda, a Eleanor embalava-o, enquanto o Joechoramingava aos seus pés. Dei-lhe uns mimos antes de atacar alouça suja que se estendia pela bancada.

— Não precisas de fazer isso — protestou ela debilmente. A Lily éfamília. Esterilizei as coisas que precisavam de ser esterilizadas.Embalei o Benjy até ele adormecer. Mesmo a dormir, fungava.Passando-o a Eleanor, corri para a casa de Odile para uma liçãorápida.

Céus, adorava a calma ali. Sem bebés a chorar. Sem uma únicacoisa fora do sítio. Jornais dobrados no cesto ao lado da poltrona

dela. Os nossos livros arrumados de acordo com o sistema decimalOdile-Lily. As pequenas fotografias emolduradas do marido e filho.

— Fale-me de Mr. Gustafson.— O Buck? — Ela franziu os olhos, como se não pensasse no

marido há muito tempo e não tivesse a certeza de que era a ele queme referia. — Um homem é um homem. Atraente, de uma formarude, com barba por fazer naquelas suas bochechas coradas.Gostava de caçar, que foi onde arranjou aquela alcunha. Matou oprimeiro veado, um macho[16] de seis pontas, aos 10 anos. Aquelacarcaça sarnenta foi a nossa primeira discussão. O Buck queria acabeça do pobre animal em cima da lareira; eu não a queria pertode mim.

— Quem venceu?— Bem, ma grande, essa foi a primeira lição que aprendi como

jovem esposa. — Levantou-se da mesa e dirigiu-se para o lava-loiça. — Por vezes, quando se ganha, perde-se. Livrei-me dacabeça empalhada. O homem do lixo levou-a quando o Buck estavano trabalho. Mas ele ficou zangado durante muito tempo.

— Oh.— Pois, oh. — De costas, ela ia guardando os pratos no armário.— O que é que gostavam de fazer juntos?— Criámos o nosso filho.— E depois de ele crescer?Ela virou-se para mim.— O Buck e eu não tínhamos muito em comum. Ele gostava de ir

a jogos de futebol; eu preferia ler. Mas gostávamos ambos de fazerboas caminhadas. Ele era romântico. Nunca deixou de me abrir as

portas, nunca deixou de me dar a mão. À meia-noite, por vezes,íamos ao parque e andávamos de baloiço, como crianças.

Era o máximo que ela alguma vez contara da sua vida, e fiqueiem silêncio, esperando que continuasse.

— Depois de ele morrer, doei a maior parte das suas coisas àcaridade, as ferramentas, a carrinha. Mas guardei a espingarda.Precisei de ficar com alguma coisa que tivesse sido importante paraele.

O telefone tocou. Outra vez a Eleanor. Voltei para casa. Depois defazer o jantar e lavar a loiça, caí na cama ainda de calças de ganga,demasiado cansada para estudar. De qualquer maneira, a aritméticaempalidecia ao lado da lição de Odile: amor é aceitar alguém, todasas suas partes, mesmo aquelas de que não gostamos ou que nãocompreendemos.

Quando a Eleanor chegou a casa depois da reunião de pais,bateu com a porta das traseiras.

— Lily? — gritou. — Onde estás?Na sala, a tomar conta dos rapazes, onde haveria de estar? No

meu colo, o Joe puxava-me o cabelo; deitado na manta que tricoteipara ele, o Benjy reparava nos dedos dos pés pela primeira vez.

A Eleanor entrou.— A professora White disse que adormeces nas aulas. Disse

aquilo como se eu é que tivesse a culpa. Eu não sou uma má mãe!Porque não vais adiantando o jantar enquanto dou de comer aoBenjy?

Puxou a camisa para cima da barriga descaída e com uma teia de

aranha de estrias. Fugi para a cozinha antes de ela desapertar osutiã e libertar o mamilo gretado. Vê-lo uma vez tinha sido osuficiente. Desejava que a Eleanor confiasse menos em mim.Desejava que voltasse às cassetes de aeróbica e às conversas comOdile, mas ela passava a maior parte do seu tempo a fazer comidacaseira para o bebé e a chorar junto ao lava-loiça. «É mãe, mastambém é uma mulher», dissera-lhe Odile. Parecia-me que aEleanor desistira da mulher que tinha sido.

Pouco a pouco, deixei de fazer os trabalhos de casa e de andarcom a Mary Louise. Até o francês estava fini. A Eleanor precisavade mim. Por vezes, ela ficava simplesmente sentada a contemplar aparede.

— Não queres pegar no Benjy? — perguntava-lhe. Ou: — Olha,Eleanor, o Joe tem os dentes a rebentar. — Ela mal fazia um aceno.

Quando chegou a minha avaliação, percebi o que tinhaacontecido. Matemática: 3-. Inglês 4-. Ciências: 3-. História: 3-.

— O que foi que aconteceu? — perguntava o professor Moriarty avermelho. Voltei para casa com medo de que, tal como a Eleanor,também eu tivesse desistido da rapariga que tinha sido.

— Lily? — chamou Odile do seu alpendre.Continuei a andar.— Lily, o que se passa? — Ela conduziu-me para sua casa e

retirou-me o boletim de avaliação.— Oh, là là — fez.— Tenho de ir, a Eleanor precisa da minha ajuda.O aroma a chocolate encheu o ar. Odile trazia uma bandeja de

biscoitos. Atirada para o seu sofá, com migalhas a espalharem-sepelas minhas roupas, devorei-as sem sequer as saborear.

Ela observou-me tristemente.— O que se passa em casa?— Rien. Nada. — Não me queria queixar.— Tens de te impor.— Não pode falar com eles? — perguntei.— A longo prazo, isso não vai ajudar. Precisas de aprender a arte

da negociação.Soltei um ronco de desdém.— Como se me ouvissem.— Conversa com eles.— A Eleanor não tem mãos a medir.— Diz ao teu pai como te sentes.— Ele não se vai importar.— Faz com que se importe.— Como?— O que é que ele quer? — perguntou Odile.Ponderei na questão.— Que o deixem em paz.— O que é que ele quer para ti?A mãe queria que eu fosse para a faculdade. Ela quase tinha ido,

mas, em vez disso, casara-se. Se o pai queria alguma coisa paramim, eu não sabia o que era. E nunca lhe iria perguntar, pelo menosem casa, onde a Eleanor e os rapazes devoravam toda a suaatenção.

— Talvez… talvez possa ir ter com ele ao emprego. Mas podezangar-se.

— Ou não. Tens de tentar.

Na manhã seguinte, vesti-me com o mesmo cuidado com que mevestia para ir à igreja. O que diria ao meu pai? Eram oito quarteirõesaté ao banco, e fui praticamente a correr, esperando que ninguémme denunciasse por estar a faltar à escola. Quando Mr. Ivers me viua andar de um lado para o outro à porta do gabinete do meu pai,troçou e disse que devia ser urgente, se eu tinha de marcar horapara ver o meu próprio pai.

Quando ele saiu, ficou confuso.— Porque não estás nas aulas? — Depois ficou assustado. —

Aconteceu alguma coisa aos meninos?Claro. Os meninos.— A Lily está aqui para uma conversa entre pai e filha — brincou

o chefe, mas o meu pai não se riu. Embaraçado, enfiou-me numacadeira no seu escritório.

— Espero bem que seja importante. — Uniu as mãos sobre a suaimensa secretária.

— Eu… eu…— Então? O que se passa?A sua fúria tornou as coisas mais fáceis.— Tenho saudades de aprender Francês e de estar com a Mary

Louise e de fazer os trabalhos de casa e de ler. Estou farta defraldas sujas.

— A Ellie precisa da tua ajuda.— Mas serei a única a ver que tudo o que ela faz é chorar? Ela

precisa de mais do que eu lhe posso dar.— Ela vai ficar bem.— Pode precisar de um psicólogo.— Os psicólogos são para pessoas doidas.

— Para pessoas deprimidas.— Tens de ajudar mais.— E tu? Eles são teus filhos.— Eu trabalho aqui.— E precisas de trabalhar em casa. — Bati com o meu boletim de

avaliação na secretária. — Até quando a mamã morreu eu entrei noquadro de honra. Podes não te importar que eu seja uma ama-seca,mas não era isso que a mamã queria para mim.

A cabeça dele recuou como se a minha verdade o tivesseatropelado.

— Fico feliz por ajudar. A sério. Mas quero ter aulas de Francês.Quero ir para a faculdade.

Ele apontou para a porta como se eu fosse alguém que nunca sequalificaria para um empréstimo.

— Eu levo-te à escola.Não falámos. Fiquei a olhar pela janela, e desejei que fosse a

janela de um avião, que Odile tivesse razão e, um dia, eu pudessevoar.

O meu pai chegava sempre a casa dez minutos antes das seis,mesmo antes do jantar. Pela primeira vez, atrasou-se. A Eleanorperguntou-me se eu queria comer, mas, como ela ia esperar, eudisse que também esperaria. Mantivemos a carne assada no forno.À mesa da sala de jantar, o Joe saltitava no meu colo e a Eleanorsegurava no Benjy, que tinha parado de chorar, como por magia.Normalmente, dávamos banho aos rapazes às sete da noite, mas,nessa noite, continuávamos à espera do meu pai. Naquele brevemomento de paz, a Eleanor perguntou-me o que lhe perguntavasempre a ele.

— Como correu o teu dia, querida?— Fui ao banco.— Ao banco? — Ela ficou confusa, como se se tivesse esquecido

de que Froid tinha um banco.— Precisava de… — De que é que eu precisava? A Eleanor

olhava para mim intensamente, ouvindo-me como nunca antes. —Precisava de falar com o pai. Sobre a faculdade.

Ela soltou uma estranha gargalhada e disse:— Pelo menos uma de nós é suficientemente corajosa para dizer

o que quer.Cheirei o ar.— Não te cheira a queimado?Enfiou-me o Benjy nos braços e correu para a cozinha. Segui-a,

com o Benjy a balouçar na minha anca e o Joe colado à minhaperna. Havia fumo a sair do forno.

— Desisto — chorou a Eleanor, retirando a assadeira queimada.O meu pai entrou, de pasta na mão. Eram oito, o que equivalia a

meia-noite em qualquer outra parte do mundo.— Nem sequer um telefonema a dizer que ias chegar tarde? —

gritou ela, e atirou com a carne estorricada na sua direcção. Eleergueu a pasta em frente da cara e baixou-se. A carne estorricadaatingiu a parede, caiu no chão, e rebolou, indo parar aos seus pés.

Eu estava orgulhosa da Eleanor.— Deixas-me sozinha para eu fazer tudo — acusou ela.Levei os meus irmãos para a sala.— Nunca estás em casa — continuou. — Estás lá com a Brenda

ou aqui comigo?Brenda. Nunca ninguém dizia o nome dela.

— Oh, mãe — sussurrei. — Tenho saudades tuas.— Porque estás triste? — perguntou o Joe. Acariciei-lhe o cabelo,

macio como as penas de um pintainho.O meu pai murmurou palavras suaves, mas a Eleanor respondia.— Que conversa é essa, de que quero dar passos maiores do que

a perna? — gritou. — Quando comprei fraldas descartáveis,disseste que ela usava de tecido. Eu nunca chego aos calcanharesda Santa Brenda!

— Nessa altura, não havia outras opções — gritou ele emresposta. — Eu não estava a dizer que devias usar tecido. Estava arecordar-me de como as coisas eram diferentes. Não hánecessidade de fazeres tudo sozinha. As pessoas têm tentadoajudar. Pára de as afastar.

Silêncio.— A pessoa que quero que me ajude és tu.Quando contei a Odile que o meu pai decidira deixar de trabalhar

aos sábados para ajudar a cuidar dos rapazes e que a Eleanor tinhacomprado uma tonelada de fraldas descartáveis, ela disse:

— Vês o que é impores-te? Nem sempre há uma solução, mas,se não tentares, nunca saberás.

— Não tenho a certeza de que tenha sido a ida ao gabinete domeu pai. — Contei-lhe da Eleanor e da carne voadora.

Odile uniu as mãos.— Parece-me que também inspiraste a Eleanor a falar. Bravo!Agora que Odile e eu tínhamos tempo ininterrupto, fui de novo

buscar o livro com as fotografias. Sentadas no sofá, vimos as fotosda sua família.

— Tenho tantas saudades deles — disse ela ao passar para a foto

seguinte, que mostrava uma beldade de cabelos escuros com umvestido às bolinhas. Odile sorriu como se tivesse deparadoinesperadamente com uma amiga.

— É Miss Reeder. Era a minha chefe na Biblioteca e a pessoaque eu mais admirava.

A imagem seguinte mostrava uma senhora de turbante a falarcom um oficial com óculos de armação de arame e uma suástica nobraço.

— Não vale a pena pensar no passado — disse Odile, o tom tãopétreo como o seu rosto. Enfiou as fotografias no livro.

Porque teria uma fotografia de um nazi?— Conheceu um nazi?— O Dr. Fuchs ia à Biblioteca.Quando imaginava nazis, estavam a matar pessoas em campos

de concentração, não a requisitar livros. Parecia inadequado que elasoubesse o nome dele.

— Paris estava ocupada — explicou Odile. — Não os podíamosevitar, e nem toda a gente o queria fazer. Ele era aquilo a que osnazis chamavam um «protector das bibliotecas».

— Então ele salvava livros?— Não é assim tão simples.Pensei no que tinha aprendido na escola.— A minha professora de História disse que os europeus deviam

ter sabido dos campos. Disse que era óbvio.— Soube deles depois da guerra. Na altura, a minha família

apenas tentava sobreviver. Eu preocupava-me com amigos ecolegas anglófonos que foram presos como «estrangeiros inimigos».Embora os judeus tivessem sido proibidos de entrar nas bibliotecas,

nunca me ocorreu que também eles seriam presos e que muitosseriam mortos.

Odile ficou calada durante um longo momento.— Está zangada por eu ter perguntado?— Mais non. Desculpa, estava perdida nas minhas memórias.

Durante a guerra, nós, bibliotecários, íamos entregar livros a amigosjudeus. A Gestapo até baleou um dos meus colegas.

Balear um bibliotecário? Isso não era como matar um médico?— Mataram Miss Reeder?— Ela já se tinha ido embora, por essa altura. Os nazis

prenderam vários bibliotecários, incluindo o director da BibliotecaNacional. Nós temíamos que Miss Reeder fosse a seguir. Fiqueidestroçada quando ela partiu. Mas dizer adeus é um facto da vida. Aperda é inevitável.

Estava arrependida de ter ido desenterrar aquelas fotos; só atinham deixado triste. Mas depois ela envolveu-me ternamente orosto entre as mãos e disse:

— Mas, por vezes, a mudança traz coisas boas.

Paris

1 de Dezembro de 1941

Monsieur l’Inspecteur:Escrevo-lhe para o informar de que a Biblioteca Americana abriga mais estrangeiros

inimigos do que um campo de internamento.Para começar, há a arrivista americana Clara de Chambrun. Ela passa mais tempo

na Biblioteca do que em casa, onde uma boa esposa deve estar. Dedica os seus diasa solicitar fundos aos amigos chiques da alta sociedade para sustentar a Biblioteca.Duvido que declare estas receitas.

Não gosta de alemães (ou «hunos», como lhes chama) e desrespeita os seusregulamentos. Só porque é condessa não significa que não precise de seguir asregras. Creio que ela leva livros às escondidas a leitores judeus. Quem sabe o quemais andará a tramar? É muito dissimulada.

Faça-lhe uma visita e veja por si. Vai ver como ela acha que está acima da lei.Assinado,

Alguém que sabe

CAPÍTULO 27

Odile

PARIS, DEZEMBRO DE 1941

Clara de Chambrun, a nossa nova directora, tinha ajudado afundar a BAP em 1920. Juntamente com Edith Wharton e AnneMorgan, foi uma das administradoras originais. A condessa não sóescrevera vários ensaios sobre Shakespeare como traduzira assuas peças para francês. Ela e Hemingway partilhavam o mesmoeditor. Mais recentemente, naqueles últimos meses, procuravadoadores para cobrir as despesas, desde a compra de carvão aopagamento de salários, e escrevia cartas para evitar que asautoridades nazis obrigassem o Boris e o zelador a trabalhar naAlemanha como parte do plano Relève. Eu temia que, comoestrangeira proeminente, ela pudesse ser presa.

No balcão de atendimento, partilhei os meus receios com o Borise a Margaret, enquanto ele carimbava a Harper’s Bazaar deMadame Simon. Ele disse que Clara tinha casado com o condeAldebert de Chambrun, um general francês, em 1901. Tinha duplacidadania e não seria considerada estrangeira inimiga.

Nessa altura, irrompeu pela sala Monsieur de Nerciat, com Mr.

Pryce-Jones nos calcanhares.— Pearl Harbor foi atingido por kamikazes! — gritou o francês.Reunimo-nos à sua volta.— O que raio é um kamikaze? — perguntou a Margaret. — E

onde é Pearl Harbor?— O Japão atacou uma base militar americana — traduziu Mr.

Pryce-Jones.— Isso significa que os Estados Unidos vão entrar na guerra? —

Senti uma centelha de esperança de que os alemães fossemderrotados em breve.

— Julgamos que sim — disse Monsieur de Nerciat.— Os americanos vão aniquilar os nazis! — exclamei.— Não podem fazer pior do que o exército francês — disse a

Margaret.A minha cabeça virou-se. Como se atrevia a Margaret a criticar

soldados como o Rémy, quando ela tinha sido a primeira a fugir paraParis?

— Olha que as forças britânicas foram muito rápidas a retirar paraa porcaria da tua ilha.

Olhámos furiosas uma para a outra, e eu esperei que ela retirasseo que tinha dito.

— Não devíamos falar de política, pois não? — respondeu elafinalmente.

Ofereceu um ramo de oliveira, não uma desculpa. Tentei não ficarzangada. A Margaret não era indelicada de propósito. Com medo dedizer alguma coisa de que me arrependesse, apressei-me a voltarpara a máquina de escrever na sala das traseiras, esperando quetrabalhar no boletim informativo me distraísse. Antes da Ocupação,

fazia sair quinhentas cópias do nosso mimeógrafo, mas, com aescassez de papel, agora postava uma única no quadro deinformações.

Mr. Pryce-Jones puxou uma cadeira para junto de mim.— Ouvi-la a martelar nas teclas desde a sala de leitura.Apontei a fita.— É tão velha que as letras saem cada vez mais desmaiadas.— Pensei que estivesse a dar largas à sua fúria. O que a

Margaret disse do exército francês não foi simpático.— Eu sei que ela não fez de propósito, mas magoou-me. — Cobri

as teclas r, e, m e y com os dedos. — Sinto tanto a falta do meuirmão, e sei que ele lutou duramente.

— A Margaret também sabe. De vez em quando, fala sem pensar.— Todos fazemos o mesmo. — Precisava de um entrevistado

para o boletim daquele mês. — Que espécie de leitor é? Quais sãoos livros de que mais gosta?

— A verdade?Aproximei-me mais. Iria confessar que lia romances

escandalosos?— Ainda na semana passada, livrei-me da minha colecção inteira.— O quê? — Abdicar de livros era como abdicar de ar.— Tinha a minha dose de Sófocles e Aristóteles, de Melville e

Hawthorne, livros que tive de ler na faculdade ou oferecidos porcolegas. Já passei tempo suficiente no passado. Quero o hoje, oagora. F. Scott Fitzgerald, Nancy Mitford, Langston Hughes.

— O que fez aos seus livros?— Quando soube que a colecção da professora Cohen tinha sido

pilhada, encaixotei os meus livros e levei-lhos. Roubar livros é comoprofanar sepulturas.

Embora Mr. Pryce-Jones falasse como se estivesse satisfeito porse livrar de uma colecção construída ao longo de uma vida, eupressentia a verdade. Ele separara-se dos seus livros porque aprofessora tinha sido obrigada a separar-se dos dela. Fez-mepensar em como havia pessoas com problemas mais graves, doresmais graves.

Mas continuava zangada com a Margaret.

KRIEGSGEFANGENENPOST

12 de Dezembro de 1941

Querida Odile,Sabes como sei que não me tens contado tudo nas tuas cartas? Não te queixas do

papa há séculos, e raramente mencionas o Paul. Talvez penses que não podesescrever sobre ele porque eu não posso estar perto da Bitsi. Enganas-te. Quero ouviro papa a ralhar e a maman a tagarelar. Quero saber-te apaixonada. Diz-me o quesentes realmente, não o que achas que eu suporto saber — preciso da tuahonestidade tanto quanto do teu amor. Ter apenas um pouco de ti, sentir-te a censurarcada frase, está a dar cabo de mim. Não estamos juntos, mas não precisamos deestar distantes. A Bitsi hesita quando escreve. Eu também o faço. Quero proteger-vos.Não quero que saibas. Quero que saibas.

As coisas aqui estão mais difíceis. Temos fome, estamos cansados. As nossascabeças estão baixas, as nossas roupas esfarrapadas. Ansiamos por voltar para casa.Tememos que as nossas noivas nos esqueçam. Choramos quando pensamos queninguém nos pode ouvir. O que mais nos incomoda é a palavra «prisioneiros»,associada a criminosos. A única coisa que fizemos foi lutar pelas nossas convicções eo nosso país. O arame farpado está sempre na nossa visão periférica.

Beijos,Rémy

20 de Dezembro de 1941

Querido Rémy,Vou tentar não esconder nada. Eu e o Paul arranjámos forma de não sermos

espiados pela maman. Ele encontrou um apartamento abandonado para encontros àtarde. Decorámos o nosso boudoir com os meus livros e os seus desenhos daBretanha. Não há aquecimento, e ficámos os dois constipados, mas valeu a pena!Nunca tinha esperado descobrir algo mais excitante do que ler.

Agora que a Alemanha declarou guerra aos EUA, e que os americanos em Françasão estrangeiros aliados, receio que os nazis encerrem a Biblioteca de vez. Embora opessoal tente mostrar-se de boa cara, estamos cansados e assustados. Parecemosbrinquedos a perder a corda. Por vezes fico zangada sem razão. Por vezes tenhodificuldade em pensar. Por vezes não sei o que pensar.

De qualquer maneira, vamos organizar a festa de Natal. A condessa diz quepodemos trazer família, se forem de «qualidade superior», por isso convidei a mamane a «tia» Eugénie. O papa não pode vir, tem reuniões. É por isso que não me queixodele — nunca está em casa.

Beijos,Odile

O aroma do vinho quente com especiarias do Boris pairava pelaBiblioteca. Castanhas crepitavam na lareira. Bitsi ajudava crianças acortar velhos catálogos para fazer ornamentos para o abeto.Margaret e eu fomos buscar as fitas vermelhas ao armário edecorámos a sala de leitura.

— O meu apartamento está gelado — disse ela. — Podia usaralguns destes livros velhos como lenha.

Instintivamente, agarrei um romance e comprimi-o contra o peito.Preferia morrer de hipotermia a destruir um único livro. Muitos delestinham sido enviados da América para os soldados na GrandeGuerra. Lidas em trincheiras e hospitais improvisados, as suashistórias traziam conforto e evasão.

— Estava a brincar — disse a Margaret. — Sabes isso, nãosabes?

— Claro… — Mesmo assim, era uma coisa horrível de se dizer.Passei para um canto afastado, embalando O Retrato de DorianGray. 823. Inalei o odor ligeiramente bafiento do livro, imaginandoque era uma mistura de pólvora e lama das trincheiras. Sempre queabria um livro usado, gostava de acreditar que libertava o espírito deum soldado.

— Pronto, velho amigo — sussurrei. — Já estás em segurança,estás em casa.

— A falar sozinha? — gracejou a Bitsi, com a maman e a Eugénieatrás.

— Então é aqui que tu trabalhas — disse a maman. — Não é tãosujo como eu pensava.

Eugénie riu-se.— Achaste que ela trabalhava numa mina de carvão?A maman deu-lhe uma palmadinha no braço na brincadeira.Cada conviva trazia uma iguaria que era escassa e terrivelmente

cara, obtida no mercado negro ou junto de primos na província. Umcremoso Camembert. Um cesto de laranjas. Eugénie passou o pratode foie gras que ela e a maman tinham preparado com o fígado deganso que o Paul trouxera da Bretanha.

Um silêncio espalhou-se pela sala quando a condessa, com a suaestola de arminho, entrou na festa de braço dado com o marido, umcavalheiro de cabelos brancos vestido de smoking. Mesmo semmedalhas ao peito, era evidente pela sua postura — peito espetadopara fora, a examinar friamente os convidados como se fossem assuas tropas — que tinha sido general.

Perto da mesa das bebidas, Madame Simon encurralou Clara deChambrun, dando uma longa explicação de como fizera o seu velhoturbante a partir de um roupão. A condessa lançou um olhar de«salva-me» ao marido, que, como um cão obediente, se apressou alevá-la dali.

— O homem comandou soldados em dois continentes — disseMr. Pryce-Jones.

— Mas não há dúvida quanto a quem manda agora — observouMonsieur de Nerciat.

— O general encontrou a sua Waterloo.— Encontrou a sua Waterloo? Casou com ela.Paul levou-me para a minha secção preferida das estantes, o 823,

onde nos juntámos a Cathy e Heathcliff, Jane e Rochester. Olheipara os seus lábios, rosados do vinho. Lentamente, ele ajoelhou-sena minha frente.

— És a mulher da minha vida — disse. — O primeiro rosto quequero ver quando acordo, a pessoa que quero beijar à noite. Tudo oque dizes é tão interessante… adoro ouvir-te falar das folhas deOutono a estalar debaixo dos teus pés, da leitora rabugenta a quemdeste troco, do romance que lês na cama. Posso confessar-te osmeus pensamentos mais profundos, os meus livros preferidos. Acoisa que mais quero é uma continuação das nossas conversas.Casas comigo?

O pedido do Paul era como um romance perfeito, o seu finalinevitável e, no entanto, de alguma forma, uma surpresa.

Da sala de leitura, ouvia a voz da minha mãe a perguntar:— Onde estão o Paul e a Odile?E depois a Eugénie a responder:

— Oh, por uma vez na vida, deixa-os em paz.— Quem me dera estar no apartamento — sussurrei —, no nosso

boudoir cor-de-rosa.— Também adoro estar sozinho contigo, mas…— Mas o quê?A sua maçã-de-Adão agitou-se nervosamente.— Não devíamos andar a esconder-nos, não está certo. Não sei

quanto tempo mais vou…— O papa não vai descobrir.— Porque é que tens de envolver sempre o teu pai?— Eu não faço isso!— Não vamos discutir — pediu ele.Acariciando-lhe o rosto, observei as mudanças que a guerra

tecera: sombras negras reuniam-se debaixo dos seus olhos; linhasformavam amargos parênteses em volta da sua boca. Tanto tinhamudado. Eu queria que algumas coisas ficassem iguais — o meutrabalho na Biblioteca, as nossas escapadelas à tarde.

— És a pessoa que me faz sobreviver a esta guerra — disse ele—, aos meus deveres no trabalho. Quero que estejamos juntos.

— Sim, meu amor. Quando o Rémy for libertado.Ajoelhei-me. Paul começou a dizer alguma coisa, talvez amo-te,

talvez não quero esperar, mas beijei-o e as suas palavras perderam-se sob a minha língua. Ele puxou-me contra o peito. As minhasmãos introduziram-se debaixo do seu casaco, da camisola, dacamisa, até chegarem ao calor da sua pele. Ao fundo, amigoscantavam «Silent Night», mas o Paul e eu continuámos unidos, osolhos fechados para tudo excepto para a nossa paixão.

A minha família continuou a contar os dias do cativeiro do Rémy,quando 1941 deu lugar a 1942. 12 de Janeiro: Querido Rémy, És oúnico a quem posso contar: o Paul pediu-me em casamento! Vamoscasar quando chegares a casa. 20 de Fevereiro: Querida Odile, Nãoesperes por mim. Sê feliz agora. 19 de Março: Querido Rémy, eu e aMargaret já não temos mais meias, por isso cobrimos as pernascom pó bege. A Bitsi acha que somos malucas. 5 de Abril: QueridaOdile, A Bitsi tem razão! Obrigado pela encomenda. Como sabiasque queria ler Maupassant?

Toda a gente tinha de se registar para alguma coisa — as donasde casa para obter rações, os estrangeiros e judeus, na polícia.Embora Mr. Pryce-Jones se apresentasse todas as semanas nocommissariat, a Margaret não fora lá uma única vez. Nos edifíciosapareciam escritos V de Vitória sobre os nazis, mas também se via«Abaixo os judeus». O marechal Pétain, o herói da Primeira GuerraMundial que tinha sido nomeado chefe de Estado, transformara omote francês «Liberdade, Igualdade, Fraternidade» em «Trabalho,Família, Pátria». Parecia que o estado de espírito dos parisiensesera «Tenso, Zangado, Ressentido».

Paul e eu passeávamos sob as sombras frondosas dos CamposElísios, onde deparávamos com cafés cheios de nazis e as suasgarridas namoradas. Os soldados usavam marcos deutsche paracomprar cerveja e bugigangas como pulseiras ou pó-de-arroz.Longe da Frente Oriental, os homens queriam esquecer a guerra nacompanhia de encantadoras e solitárias parisiennes.

Eu não culpava as raparigas. Aos 18 anos, quem não anseia pordançar? Aos 30, mães precisavam de ajuda para pagar as contas.Os maridos tinham sido mortos em combate ou estavam presos em

Stalags. As mulheres continuavam com as suas vidas o melhor quepodiam. Ainda assim, ao lado delas, sentia-me uma labrega.Beliscava as bochechas, querendo dar-lhes um pouco de cor, elembrava-me a mim mesma: É chique estar maltrapilha.

— Só posso sonhar oferecer-te uma jóia. — Paul olhava desobrolho franzido para os casais. — Não poder oferecer-te as coisasboas que mereces… é humilhante como tudo!

— O que sinto por ti não tem nada a ver com bugigangas.— Aquelas vacas têm tudo o que querem enquanto nós

passamos necessidades. São umas putas, a chupar…— Não é preciso seres grosseiro!— Deviam ter vergonha, a colarem-se aos malditos boches, a

lamberem as botas ao inimigo. Gostava de lhes ensinar uma liçãoque nunca esquecessem.

Deu um passo na direcção dos Soldaten e das suas raparigas.Tinha o queixo cerrado. Os punhos fechados. Não parecia o mesmo.Pela primeira vez, assustou-me.

— Não provoques uma briga. Não vale a pena. — Agarrei-lhe obraço e segurei-o com força.

Os Soldaten estavam a tornar-se impossíveis de evitar. Enchiamos nossos cafés preferidos, montavam cada vez mais postos decontrolo nas nossas ruas. Era difícil saber onde iriam aparecer. Acaminho de Montmartre para entregar obras científicas ao Dr.Sanger, passei por uma barricada de metal que não existia ali no diaanterior. Um dos soldados agarrou na minha sacola e despejou oconteúdo no chão. Estremeci quando os pesados volumes atingiram

o pavimento e se abriram. Ele pegou num e folheou-o. Talvezprocurasse códigos ultra-secretos ou uma faca escondida lá dentro;talvez estivesse apenas entediado. Olhando de relance o título, fezum sorriso de desdém.

— A mademoiselle anda a ler tratados sobre Física?Tinha passado muito tempo desde as minhas aulas de Física no

lycée. Se me fizesse alguma pergunta, ficaria em sarilhos. Podiadizer que os livros eram para um vizinho, ou podia responder comoutra pergunta.

— Está a dizer que as mulheres têm de se contentar com livrossobre bordados?

Ele passou-me a sacola e mandou-me apanhar os livros.Quando regressei à Biblioteca, tentei avisar a Margaret, mas ela

recusou-se a dar valor ao perigo em que estava, mesmo enquantoenchíamos caixotes para enviar para campos de internamento ondeestrangeiros como a nossa Miss Wedd e a livreira da margemesquerda, Miss Beach, estavam aprisionadas.

— Já te registaste na polícia? — perguntei pela décima vez.— Eu sinto-me francesa, isso deve bastar — respondeu a

Margaret, depositando cuidadosamente um Pudim de Natal por cimade um Tarte de Pombo.

— Talvez devesses ir ter com o Lawrence à Zona Livre.— A amante dele não ia gostar.Amante? Não, não podia ser. Revisitei as nossas conversas,

procurando as pistas que me tinham escapado. Ela tinha dito queele estava com uma pessoa amiga, e eu levara as suas palavras àletra. Margaret nunca referia ter recebido cartas do marido, nuncamencionava ter saudades dele. Senti-me uma idiota, a tagarelar

sobre o Paul enquanto ela sofria em silêncio. Eu sabia ler livros,mas não pessoas.

Sabia que uma amante podia significar um divórcio, e tive medode que a Margaret se mudasse para Londres, ou pior,desaparecesse como a tia Caro. Devo ter parecido preocupada,porque a Margaret pousou uma mão na minha.

— Os laços diplomáticos entre a França e a Inglaterra foramcortados — disse ela. — O Lawrence ficou por causa dela. Eu e elevivemos vidas separadas. Não é o que eu desejava… em especialpela Christina, que nunca vê o pai. Mas já aceitei.

— Ele é um idiota. Tem de ser, se não vê como és linda ecorajosa.

Margaret sorriu, trémula.— Nunca ninguém me vê como tu.A minha mão apertou a dela.— Achas que ele vai querer o divórcio?— Casais como nós não se divorciam, «seguem em frente».— Então vais ficar?— Nunca deixarei a Biblioteca.— Prometes?— A promessa mais fácil que alguma vez fiz.— Fico feliz por não te ires embora, mas não quero que tenhas

problemas. E se fores presa como Miss Wedd? Por favor, pensanisso, vai registar-te no commissariat. É a lei.

— Nem todas as leis são para ser obedecidas. — Ela soltou osdedos dos meus e colocou firmemente a tampa sobre a caixa delivros. Caso encerrado.

CAPÍTULO 28

Margaret

À prateada luz da noite, a Margaret subiu os degraus da estaçãode metro a perguntar-se que livro iria ler à filha ao deitar. Bella theGoat ou Homer the Cat? Foi já demasiado tarde que reparou numnovo posto de controlo. Recuou lentamente.

Um soldado exigiu: Vos papiers. Falava francês com um durosotaque alemão.

Margaret estendeu os documentos.Ele olhou-os e depois virou-se para ela, carrancudo.— Anglaise?Inglesa? O inimigo.Segurou-a pelo braço. Os nós dos dedos roçaram-lhe o peito e

ela recuou, desviando o peito do toque.Margaret era a única estrangeira que tinham encontrado.

Fazendo-a caminhar na sua frente, avançaram pelo passeio. Elanunca tinha sentido tanto medo. Sabia que os homens podiam enfiá-la nalgum pátio abandonado e servir-se dela, e a sua vida mudariapara sempre.

Seis quarteirões à frente, entraram numa esquadra de políciarequisitada. Lá dentro, havia secretárias num lado da sala e, no

outro, uma cela de detenção onde três senhoras de cabelosgrisalhos estavam caídas num banco. Os borrões de rímel na cara eos vestidos enrugados disseram a Margaret que elas estavamaprisionadas há vários dias.

— A minha filha… — disse, quando o soldado a empurrou paradentro da cela. — Posso telefonar, por favor?

— Isto não é um clube de campo — replicou ele. — Não é nossaconvidada.

As senhoras abriram espaço para ela no banco, e a Margaretsentou-se empertigada na beira. Normalmente, ter-se-iaapresentado como Mrs. Saint James, mas parecia disparatado essetipo de formalidade numa cela.

— Sou a Margaret. O meu crime é ser inglesa.— O nosso também.— Apanharam-nos quando estávamos a voltar para casa depois

do nosso clube literário.— Fomos uma detenção e tanto!— Aqueles vigorosos soldados devem sentir-se orgulhosos por

impedirem senhoras de ler Proust.Algum tempo depois, os oficiais saíram, deixando apenas um

jovem soldado que lia à sua secretária.— Entre nous, acho que aquele guarda está enfeitiçado pela

nossa nova amiga.Margaret reparara no olhar do rapaz a viajar do livro para elas.

Mas, naquela infecta esquadra de polícia, o que mais havia paraver?

— Há quanto tempo aqui estão? — perguntou a Margaret.— Há uma semana. Quando tiverem pessoas suficientes, vão

enviar-nos para um campo de internamento. Sem água, semcomida, só piolhos e soldados entediados.

À medida que o serão se prolongava e elas se preparavam parapassar mais uma noite ali, as senhoras ficaram inquietas.

— E se nunca nos libertarem?Margaret retirou The Priory da carteira.— Vou ler uma história. — As mulheres prepararam-se. — «Era

quase de noite. Os automóveis, a serpentear como lançadeiras naestrada entre duas cidades separadas por vinte quilómetros, tinhamos faróis acesos. De vez em quando, os portões do priorado deSaunby eram iluminados.» É uma velha casa imponente. Prometo,vão-se sentir confortáveis aqui.

No final do capítulo, uma das senhoras bocejou. As trêsajoelharam-se e fizeram as suas camas para a noite, corpos nochão de cimento, cabeças sobre as carteiras. Margaret juntou-se aelas.

— Fique com o banco, querida.— Não é tão almofadada como nós. Fique ali em cima.Margaret comoveu-se com esta simples generosidade.— Prefiro estar convosco.Deitando a cabeça sobre The Priory, a Margaret brincou com as

suas pérolas. O colar que tinha sido da mãe e não valia nada, aocontrário das jóias que Lawrence esperava que ela exibisse nasfestas. Mas, quando a Margaret usava as pérolas, sabia que estavarodeada do amor da sua mãe, como uma criança, quando ela lhesentia o sussurro dos lábios sobre a testa.

Estuda muito, para não teres de trabalhar numa fábrica como eu,dizia-lhe a mãe, mas a avó dizia a Margaret que ela podia ter

qualquer homem que quisesse, que a sua aparência régiacompensava o facto de ser de uma classe inferior. A avó comparavaapanhar um homem a pescar um peixe: vai aonde houverabundância, usa o teu melhor isco, e fica calada. Margaret e asamigas arranjavam forma de se demorar na frente de umrestaurante elegante, passando recatadamente pela entrada.Quando ela viu Lawrence, tão atraente com o seu fato azul-escuro,deixou cair a carteira. Ele apanhou-a. Anzol, linha e chumbo.

No casamento, usara um vestido de seda de Jeanne Lanvin. Aboca doía-lhe de sorrir. Nunca pensara no futuro para além dacerimónia, e não sabia nada da noite de núpcias. O choque foi tãoíntimo, tão estranho, que ela não se importou de não irem de lua-de-mel. Lawrence era um jovem diplomata, e ele e a Margaret foramconvidados para um importante jantar, que esperavam poderconduzir a conversações de paz.

No Putney, serviam-se cocktails. Com a mão ao fundo das costasde Margaret, Lawrence exibia-a — Voici ma femme! — enquantopassava do embaixador italiano para o contingente alemão. Elaficou surpreendida por toda a gente falar francês; estavam emInglaterra, afinal de contas.

— É a língua da diplomacia — explicou ele. — Disseste-me queestudaste Francês.

E fora exactamente assim que o fraseara quando ele tinhaperguntado. Ela tivera o cuidado de não mentir. A verdade é quereprovara em quatro anos de Francês. Mas, durante o namoro, eraele que conduzia as conversas e preenchia todos os espaços embranco que ela ia deixando. Margaret não pensara que isso viesse aser importante.

Engolindo o seu cocktail de um trago, a Margaret observou asoutras esposas a usarem frases espirituosas para gerar sorrisosrelutantes e até risos abertos de outros rígidos diplomatas.

À mesa do jantar, foi incapaz de comunicar com o áspero russo àsua direita e com o tímido checo à sua esquerda. Esperava algumapequena mostra de apoio da parte de Lawrence, mas o maridoolhava para ela como a mãe dele olhara, com desdém. Felizmente,as mulheres tinham retirado para um salão enquanto os homensfumavam os seus charutos. Margaret esperara conversar sobremoda, mas as senhoras falaram da actual situação política. Ela nãoas conseguia acompanhar — um duce em Itália, um chanceler naAlemanha, um presidente e um primeiro-ministro em França. Eraconfuso.

Quando o tormento finalmente terminou, ainda não tinhaterminado. Na frente do hotel, enquanto ela e Lawrence esperavamque o Jaguar lhes fosse levado, uma francesa de vestido de cetimbeijou-o na face (muito perto da boca) e disse num inglês perfeito:«Vai ter de pagar à pequena Margaret uma assinatura do jornal,para ela ter alguma coisa para dizer.»

No carro, a Margaret disse:— Não correu assim tão mal. Vou procurar uma explicadora para

relembrar o meu francês.Ele não respondeu. À luz do candeeiro da rua, a Margaret viu-o

com a mesma expressão que a mãe dela fizera quando, ao acabarde chegar do mercado, vira que as framboesas maduras que tinhacomprado estavam com bolor. Era um olhar de aversão, masaversão por si própria, por se permitir ser enganada.

— Diz-me o que tenho de fazer, que eu faço-o — suplicara a

Margaret.Ele não olhou para ela. Nunca mais lhe tocou.Na semana seguinte, a Margaret convidou amigas para o chá. As

raparigas estavam entusiasmadas por ela — uma casa elegante, ummarido rico, um anel de diamante.

— Tens tudo o que desejaste!Na cela, uma das mulheres aproximara-se mais, e o seu calor

ajudou-a a relaxar. Ao adormecer, percebeu que era verdade, elatinha tudo o que desejara. Só queria ter desejado mais.

A meio da noite, a Margaret foi despertada do seu sono. Alguémlhe tocava no ombro. O guarda estava agachado sobre ela. Recuou,tentando afastar-se, mas não tinha muito espaço de manobra.

— Vou soltá-la — sussurrou ele.A porta da cela estava aberta. Ela fez um gesto para acordar as

senhoras.— Elas não, só a senhora.— Porquê eu?— É linda. Não devia estar aqui.Ele era como Lawrence. Via o que queria ver. Ela voltou a deitar-

se.— Eu libertava-vos a todas, se pudesse — disse o soldado —,

mas não seria capaz de explicar uma cela vazia.Ela fez-lhe um olhar zangado, furiosa por ele lhe ter mostrado a

possibilidade de liberdade apenas para lha recusar depois.— A guerra não o ensinou a mentir?— Vou ter problemas.

— O seu comandante vai berrar consigo e fazê-lo sentir-se mal. Oque é o pior que nos pode acontecer? Sermos enviadas para umaprisão longe dos nossos entes queridos, sem comida, semaquecimento, sem livros.

— Eu solto-vos a todas…— Merci. Danke.— Eu solto-vos a todas se me ler o romance.— O quê?— Encontramo-nos uma vez por dia. Nas escadas do Panteão, ou

onde quiser.— Isso é absurdo.— Um capítulo por dia.Ela gostaria de lhe ler a expressão, mas o rosto dele estava na

sombra.— Porquê?— Quero saber o que acontece a seguir.

Paris

9 de Maio de 1942

Monsieur l’Inspecteur:Escrevo para o informar de que, na Biblioteca Americana, a directora Clara de

Chambrun, Longworth em solteira, escreve mentiras e desculpas para manter obibliotecário principal e o zelador em Paris, em vez de os deixar serem despachadospara trabalhar na Pátria.

Boris Netchaeff visita casas de leitores judeus. Todas as noites, leva várias fornadasde livros. Não me espantaria que estivessem a contrabandear livros obscenos. Ele nãotem qualquer moral e recusa-se a manter pura a colecção da Biblioteca. Diz queadquiriu a nacionalidade francesa, mas tenho as minhas dúvidas.

Faça o seu trabalho — livre Paris destes estrangeiros degenerados.Assinado,

Alguém que sabe

CAPÍTULO 29

Odile

O pequeno-almoço consistiu em algumas colheres de papas deaveia e um ovo que a maman dividiu em três, tendo o cuidado dedevolver os pedaços esmigalhados de gema à sua clara. As suasfaces, anteriormente roliças, eram agora ameixas chupadas. O papatinha perdido tanto peso que ela lhe apertara as calças. O bigodeem forma de vassoura já não conseguia esconder a triste curva dasua boca.

— Devias ser uma mulher casada, não uma bibliotecária solteira— disse-me ele. — O que é que se passa contigo?

Olhei a cadeira do Rémy. Sentia a falta do seu apoio.— O Paul é um jovem maravilhoso — continuou o papa.— Então porque não se casa o pai com ele?— Basta! — ordenou a maman.Pela primeira vez, o meu pai calou-se. Quase consegui ouvir o

Rémy dizer Era só isso que era preciso? Uma palavra? Se nóssoubéssemos…

No trabalho, ainda mal tinha transposto a ombreira quando o Borisme carregou de livros. Não me importei. Todos tínhamos deenfrentar postos de controlo e eu sabia que ele e a condessa

entregavam tantos como eu. A caminho da casa da professoraCohen, tentei gozar a bela manhã de Junho, mas as críticas dopapa ecoavam na minha cabeça. O que é que se passa contigo? Oque é que se passa contigo?

Deixei-me cair no canapé da professora. O meu olhar oscilouentre o relógio alto que arrotava as horas, o jarro sempre vazio e asnuvens de preocupação nos olhos da professora.

— Está tudo bem?Não era muito profissional entrar em desabafos, mas tinha sido

ela a perguntar.— O papa acha que eu me devia casar.Ela debruçou-se para a frente na cadeira.— Está noiva do Paul?— Sim! — Sabia bem partilhar com a professora o meu segredo.

— Mas só o Rémy é que sabe. E agora a professora.As nuvens dissiparam-se.— Isto exige champanhe. Infelizmente, vamos ter de nos

contentar com xerez. — Foi ao aparador buscar uma garrafa eesvaziou as últimas gotas em dois copos.

— À Odile e ao seu rapaz.Saboreámos o vinho doce.— Porque não contou aos seus pais?— Assim que o fizer, o papa vai marcar a data do casamento e

escolher nomes para os netos. A maman tem costurado tanto que omeu enxoval enche uma sala inteira… uma pessoa conseguiaafogar-se ali em naperões. Mas, acima de tudo, quero esperar peloRémy. A decisão é minha, não do meu pai.

— Compreendo, minha querida. Compreendo mesmo. Mas a

minha mãe costumava dizer-me: «Aceita as pessoas tal como são,não como quererias que fossem.»

— O que é que isso significa?— O seu pai é velho, não vai mudar. E os cães não têm gatinhos,

por isso está a ser tão teimosa como ele. A única coisa que podemudar é a maneira como o vê.

— Não sei se isso é possível.— Fale com ele. Diga-lhe o que sente pelo Paul, e que deseja ter

o Rémy ao seu lado.— O papa só quer ver-me casada.— Ele também sente a falta do seu irmão. De certeza que vai

compreender.Amuei.— Não conhece o meu pai.— Quando for mais velha…Despedi-me dela e desci as escadas, irritada, a bater com os pés.

Quando for mais velha! O que é que se passa contigo? Ao descerintempestivamente a rue Blanche, reparei numa morena com umelegante casaco azul e uma estrela amarela na lapela. Estaquei, e oorgulho ferido, de súbito, não podia estar mais longe da minhamente.

Os judeus já não podiam dar aulas, entrar em parques ou sequeratravessar os Campos Elísios. Não podiam usar cabines telefónicas.Tinham de se sentar na última carruagem do metro. Continuando naminha direcção, a morena ergueu o queixo, mas a sua boca tremia.Ouvira falar das estrelas amarelas, mas era a primeira que via. Nãosabia como reagir. Devia sorrir amigavelmente para mostrar quenem toda a gente concordava com aquela bizarra identificação?

Devia fixar os olhos em frente, como de costume, para lhe mostrarque nada tinha mudado? Não olhando para a mulher, provaria que avia como qualquer outra pessoa. Quando nos cruzámos, desviei oolhar.

Os judeus não estavam apenas a ser banidos. Agora eram alvos.E eu a queixar-me à professora Cohen dos meus problemasinsignificantes.

Durante toda a manhã, a Margaret e eu reparámos livros usados.Já não podíamos encomendar livros novos, por isso cada um eraprecioso. Cansada e com fome, passei a cola na capa, para cima epara baixo, para cima e para baixo, lentamente, depois maislentamente ainda, como um gira-discos a apagar-se. Ela tinhaparado de trabalhar há algum tempo. O canto direito da sua bocaergueu-se num sorriso. Chamei-a pelo nome, mas não respondeu.

— Margaret? — Dei-lhe um toque no joelho.— Desculpa, estava perdida em pensamentos.— Um risco profissional — retorqui.Ela riu-se. A luz nos seus olhos falava de amor. Teria feito as

pazes com o marido?— O Lawrence voltou para casa?Ela olhou para mim de boca aberta, consternada.— Céus, não! O que te fez pensar numa coisa dessas?— Pareces feliz. — Ela sempre fora bonita, mas a sua expressão

tinha mudado nas últimas semanas, tornando-se mais animada. Eracomo se o nevoeiro matinal tivesse dado lugar ao sol da tarde, umamudança tão gradual que eu não a vira até àquele momento.

Hesitante, quase como se estivesse surpreendida, disse:— Suponho que esteja, sim.— Alguma razão especial?— Estou a reler The Priory, desta vez em voz alta.— Em voz alta?— Para alguém que não o conseguiria de outra maneira.Antes que pudesse descobrir mais, a nossa atenção foi desviada

pelo som de botas de soldados. O Bibliotheksschutz e dois lacaiostinham entrado. Os leitores ficaram tensos. Os parisienses estavamacostumados aos Soldaten na rua, mas não na nossa Biblioteca.Tinham passado vários meses desde a última visita do Dr. Fuchs, emuito tinha mudado: Miss Reeder partira e a Alemanha estavaagora em guerra com a América. Seria por isso que ele ali estava?

Endireitando os óculos de armações douradas, o Dr. Fuchs pediupara falar com a directora, por isso escoltei os homens ao gabinetede Clara de Chambrun. Bitsi seguiu-nos cautelosamente.

Habituada a oficiais nazis, a condessa manteve a posturadisplicente quando ele foi anunciado. O mesmo não se poderia dizerdo Bibliotheksschutz. Os seus olhos arregalaram-se perante a visãode uma desconhecida à secretária de Miss Reeder. Olhou em voltado gabinete e depois fez-me uma expressão carrancuda, como seeu tivesse sequestrado a directora dentro do gigantesco cofre.

— O que se passa aqui? — exigiu saber.— Apresento-lhe a condessa Clara de Chambrun, que dirige a

Biblioteca — disse-lhe.— Onde está Miss Reeder? — Ele soava preocupado.— Voltou para casa — replicou a condessa.— Eu garanti-lhe que aqui estaria sob a minha protecção. Porque

é que partiu?— Sem dúvida porque terá considerado uma ordem para

regressar mais imperativa do que a sua garantia.Juntando-me a Bitsi no corredor, perguntei:— Porque é que ele está zangado?— A directora foi-se embora sem se despedir. Ele não está

zangado, está magoado.Ah. Não consegui evitar gostar dele por ele gostar de Miss

Reeder.Ele interrogou a condessa acerca das suas qualificações, o valor

da colecção e a apólice de seguro da Biblioteca. Satisfeito, debitouas regras, desde a proibição de aumentos para o pessoal até àvenda de livros.

— Dei a minha palavra de que esta Biblioteca será mantida —continuou. — Se a autoridade militar interferir de alguma forma,encontrará o meu número de Paris e de Berlim na gaveta de MissReeder. Em caso de problemas, ligue.

KRIEGSGEFANGENENPOST

30 de Novembro de 1942

Querida Odile,Perdoa-me não ter escrito — não havia papel. Muitos de nós estamos doentes. O

meu ferimento ainda me dá problemas. Os guardas não nos estão a tentar matar, mastambém não se esforçam para nos manter vivos. Um disse-me que também não têmmedicamentos para si próprios.

O meu companheiro de beliche, Marcel, voltou à carga. Depois do fiasco com avaca, atirou com o tractor da velha frau para uma valeta. Está tão maltratado como o

tractor — quando capotou, ficou com um braço esmagado por baixo. O Kommandantofereceu-se para o substituir, mas a frau já não quis mais ajuda francesa.

Outro companheiro trabalha para uma jovem viúva que tem o corpo da Mae West ea cara de um anjo (ariano). Aproximaram-se e, quando ele fala de ficar aqui depois daguerra, sentimos pena.

Ela deu-lhe um aparelho de rádio como agradecimento por ajudar na colheita.Alguns dos alemães são virulentos como Hitler, mas outros são anti-nazis e ouvem aBBC. Tem sido difícil a falta de comunicação contigo e com o resto do mundo.Estamos contentes por termos notícias diárias, mesmo que não tenhamos pão todosos dias.

Vivo para as tuas cartas e para a esperança de te ver. Tenho a sorte de possuir umafamília que se importa comigo. Muitos nunca recebem notícias de casa. Seconseguires enviar a Marcel Danez um pacote de doces, sei que vai ficar contente.

Beijos,Rémy

Na sala infantil, a Bitsi mordeu o lábio enquanto lia a carta. Rémytinha boas intenções, mas como podíamos enviar comida para umdesconhecido quando não havia suficiente para a família?

— Bonjour, les filles — disse a Margaret ao entrar. — Odile,porque não estás na sala da referência? Os leitores já fazem fila.

— Tivemos notícias. — E traduzi a carta.Ela franziu o sobrolho.— Vão enviar-lhe um pacote decente todos os meses, prometo.No dia seguinte, ela trouxe uma pequena caixa com linguiça,

cigarros e chocolate.— Como? — perguntámos, atónitas.— Não se preocupem com isso.Lembrando-me dos retratos dourados nas suas paredes, imaginei

a Margaret a vender os antepassados um por um, para poderalimentar o Rémy. Ela era a mais querida das amigas.

20 de Dezembro de 1942

Querido RémyEsperamos que o pacote chegue em segurança. O casaco de malha serve-te?

Reconheces as cores? A lã é da camisola que a maman guardou de quando éramoscrianças. Desculpa as mangas não serem do mesmo tamanho. No meu caso, a práticanão leva à perfeição.

Ontem à noite, eu e o Paul fomos ver Hamlet no Teatro Odéon, uma produção dacondessa. Foi maravilhoso fazer uma coisa normal, como fazíamos antes da guerra.Eu e a Bitsi vamos colher azevinho na floresta para podermos decorar os pacotes delivros que entregamos. Ultimamente tem havido menos pedidos, o que é estranho.

A Bitsi sente terrivelmente a tua falta. Todos sentimos. Queremos-te em casa.Beijos,

Odile

KRIEGSGEFANGENENPOST

1 de Fevereiro de 1943

Querida Odile,Obrigado pela comida deliciosa! Ainda mais maravilhoso foi ver a cara do Marcel

quando recebeu o pacote. Por favor, não se privem por nós. Eu nunca devia terpedido.

Está tudo bem aqui. Excepto o facto de o Marcel quase ter sido morto. Na sala deconvívio, alguns prisioneiros tinham-se aglomerado à volta do rádio a ouvir a BBC, osom não estava mais alto do que um suspiro, quando os guardas irromperam por aliadentro. O resto do pessoal fugiu dali, mas o pobre Marcel estava tão absorvido quenão reparou. Os guardas destruíram o aparelho, alinharam-nos a todos no pátio —cem homens sem casacos, claro — e prometeram ser clementes se confessássemos.Nenhum de nós admitiu nada. O Kommandant obrigou o Marcel a ajoelhar-se eencostou-lhe uma pistola à cabeça. «Diz-me quem estava contigo, senão eu mato-te.»Sabes o que o idiota respondeu? «Então morro sozinho.»

Beijos,Rémy

Paris

1 de Junho de 1943

Herr Kommandant:Tenho escrito à polícia francesa sem quaisquer resultados. Agora viro-me para si.A Biblioteca Americana tem caricaturas de Hitler na sua colecção e qualquer pessoa

as pode ver. E não é só isso. Como mencionei à polícia, os bibliotecários levam livrosàs escondidas aos sócios judeus, incluindo livros proibidos que ninguém devia ler.

A bibliotecária Bitsi Joubert diz coisas infames sobre os soldados alemães. Ela temum acantonado no seu apartamento, e só Deus sabe como o maltrata. A voluntáriaMargaret Saint James compra comida no mercado negro. Olha-se para as suas facescheias e ninguém imaginaria que tanta gente está praticamente esfomeada. O sócioGeoffrey de Nerciat doa dinheiro a Résistants e abriga-os no seu grandiosoapartamento.

Na sala das traseiras da Biblioteca, o sócio Robert PJ ouve a BBC, o que éestritamente proibido. E esse não é o único barulho incómodo que se ouve. Ouvem-sepassos furtivos a vir do sótão — sempre trancado — e pergunto-me o que ou quemestarão os bibliotecários a esconder.

Faça uma visita e veja por si.Assinado,

Alguém que sabe

CAPÍTULO 30

Odile

Quando o correio chegou, guardei as revistas de moda nasprateleiras. Mode du Jour recordava os leitores de que «Ainteligência e o gosto não estavam racionados», e que embora ossapatos ficassem gastos, os chapéus não. Tinha saudades da Timee da Life. Virei-me para me solidarizar com o homem atrás de mim,que nunca tinha visto antes. Em tempos teria olhado para os seuslábios cerrados e o fato de tweed verde e assumiria que se tratavade um professor empertigado. Agora, diria um espião. Paranóia.Estava contaminada pela propaganda nazi. De certeza que erainofensivo, embora ele tivesse enfiado um velho jornal no bolso docasaco.

Franzi o sobrolho.— Os periódicos ficam aqui.Ele devolveu-o à prateleira e saiu.— Brava! — aplaudiu o Boris. — És tão intimidante como a

Madame Mimoun na Biblioteca Nacional, um verdadeiro dragão.Fiz uma mesura.— Eu esforço-me.Quando a Bitsi chegou ao trabalho, limitou-se a cumprimentar-nos

com um aceno de cabeça. Ultimamente andava tão calada que meassustava. Querendo ficar de olho nela, insisti que precisava deajuda para entregar livros à professora Cohen. Subimos as escadasem caracol para o segundo andar, onde a professora nos retirou aspesadas biografias dos braços.

— Terminei o meu romance! — Ela apontou para a pilha de papelsobre a mesa.

— Parabéns! — exclamei.Fiquei espantada ao ver que o brilho animado no seu olhar estava

extinto e o desapontamento lhe ocupara o lugar.Ela suspirou.— O editor não o vai publicar.Eu conhecia muito bem a razão, e sabia que ela também.

Nenhum editor francês poderia publicar uma obra de um escritorjudeu.

— Lamento — disse.— Eu também. Em qualquer caso, nunca o teria terminado sem a

Odile. Não só pelos livros que trouxe para a minha pesquisa, maspela sua companhia e bondade. Tornou-se a minha janela paraParis. Livros e ideias são como sangue; precisam de circular e dão-nos vida. Lembrou-me de que existe bondade no mundo.

Devia ter ficado entusiasmada com tal elogio. Em vez disso, ummedo frio instalou-se nos meus ossos.

— Fala como se se estivesse a despedir.— Estou a dizer que não sabemos o que vai acontecer. — Ela

estendeu-me o manuscrito. — Por favor, mantenha-o em segurança.Honrada pela sua confiança, beijei-a em cada face.— Tem a certeza de que não o quer enviar a um colega?

— Esta é a única cópia. O romance fica mais seguro consigo.— Como se chama? — perguntou a Bitsi.— La Bibliothèque Américaine. — A Biblioteca Americana.— Então é definitivamente um drama! — replicou a Bitsi.— Espere até conhecer as personagens. Um elenco de

excêntricos! — A professora piscou o olho. — De certeza que vaireconhecer algumas.

Luz, 535; manuscritos, 091; bibliotecas, 027.Quando nos acompanhou à porta, já parecia mais animada. Nas

escadas, a Bitsi e eu ouvimos o enérgico tap-a-tat-tat da máquina deescrever. Esperava que a professora estivesse a trabalhar numasequela.

No caminho de volta, a Bitsi comentou:— É uma grande responsabilidade.Enfiei as páginas na minha sacola.— Vamos pô-lo no cofre.Virando para a nossa rua, passámos por três filles de joie de

meias de rede que estavam na risota. De cabelo amarelodesalinhado, o trio pavoneava-se numa névoa de pungenteperfume.

— Vadias! — A Bitsi agitou a mão na frente da cara para dispersaro cheiro. — Há pessoas que não sabem que há uma guerra —continuou em voz alta enquanto entrávamos na Biblioteca. — Ontemde manhã, vi um bando de prostitutas a cambalear pela rua.Tresandavam a álcool. Há uma coisa chamada bom gosto!

Na sala das traseiras, pousei o manuscrito sobre a mesa e fiz aBitsi sentar-se.

— As pessoas erradas é que ficam com as coisas certas — disse,

a voz crua. — Tenho fome. Não consigo pensar. As estações vãopassando, mas não sinto saudades dos dias. Natal, Ano Novo,ainda bem que se foram. Agora é Páscoa, e a única coisa que se vaierguer são os preços. Sinto a falta do Rémy. Se não fosse por ele,era capaz…

— Vamos escrever-lhe. — O desespero dela assustava-me. Rémyia ajudar. Pensar nele fazia-nos sempre sentir melhor. Tirei um lápisda minha mala.

— Tu usas minúsculas, eu uso maiúsculas.

Querido RÉMY, saudações DA Biblioteca ONDE sentimos A tuaFALTA. A odile SUGERIU esta IDEIA louca BRILHANTE.

— Esta carta parece um pedido de resgate — disse ela. — Quemsabe se a vai receber?

— Pelo menos vamos confundir os censores.Bitsi fez um meio-sorriso. Foi o suficiente.— Achas que a professora Cohen se importaria se déssemos uma

espreitadela no seu romance? — perguntou ela.Dividida entre respeitar a privacidade da professora e consolar a

Bitsi, virei o frontispício e li em voz alta: «O Além está repleto doperfume celestial de livros bafientos. As suas paredes estãoforradas de estantes altas cheias de tomos esquecidos. Nesteacolhedor patamar entre mundos, não existem janelas nem relógios,ainda que um ocasional eco do riso de uma criança ou umabaforada a croissant de chocolate se erga do piso térreo.»

— É a minha secção preferida da Biblioteca — observou ela.— Também a minha.

Estava prestes a ler a frase seguinte quando ouvimos uma mulhergritar:

— Estou farta de esperar! Dêem-me os meus livros, senão…!— Oh, não. Outra escaramuça.Apressámo-nos para o balcão de atendimento, onde meia dúzia

de leitores esperavam para requisitar livros, e percebemos que atéClara de Chambrun tinha emergido do seu escritório.

— O que se está a passar? — quis ela saber.— Mrs. Smythe está farta de esperar — disse o Boris à condessa.

Para a sócia, disse: — Por favor, seja paciente e volte para o seulugar na fila.

— Vou informar a polícia — rosnou ela.— De que somos ineficientes? — Ele ergueu uma sobrancelha. —

Bem podia denunciar o país inteiro.As pessoas na fila riram-se baixinho da réplica.— Vou denunciá-lo por atender judeus.— Basta! — A condessa agarrou Mrs. Smythe pelo braço e

conduziu-a para a porta. — E nunca mais volte.A sócia começou a chorar.— Não consigo passar sem os livros que encontro aqui.

*

No balcão de atendimento, bem antes de a Biblioteca abrir aopúblico, enquanto o Boris e eu arrumávamos cartões nas bolsas delivros devolvidos, deixei que os meus pensamentos se desviassempara o Paul. Ao meio-dia, íamos encontrar-nos no apartamento, oúnico lugar onde a desilusão nunca entrava. Íamos relaxar no

boudoir rosado, onde os seus desenhos da Bretanha enfeitavam aparede. Eu adorava-os: um campo de trigo salpicado de papoilas,fardos de feno dourado, o velho cavalo de dorso arqueado.

Um bater insistente trouxe-me de volta ao presente. Vi o Dr.Fuchs a espreitar pela janela. Porque teria vindo tão cedo, esozinho? Convidámo-lo a entrar, mas ele não saiu do degrau.

— Tenham cuidado — sussurrou. — A Gestapo está a montararmadilhas. Não deixem que livros proibidos caiam nas mãos deles.Vão usar qualquer pretexto para vos prender. — Olhou por cima doombro. — Não posso ser visto aqui.

— Que espécie de armadilhas? — perguntei, mas ele já se foraembora a correr.

— Ouvi dizer que a Gestapo está a assumir o controlo de Paris —referiu o Boris enquanto acendia um cigarro — e que são ainda maisperigosos.

Mais perigosos do que os nazis que tinham derrotado o exércitofrancês? Mais perigosos do que os Soldaten que patrulhavam noitee dia?

Trabalhámos o resto da manhã num silêncio perturbado.Quando saí da Biblioteca à hora do almoço, fiquei espantada ao

encontrar o Paul no pátio.— Não íamos encontrar-nos no apartamento? — perguntei.

Ultimamente, baralhava tudo.— O meu amigo e a namorada estiveram lá ontem. Havia mobília

nova misturada com as coisas antigas, mas eles não pensarammuito no assunto. Estavam, hum, a beijar-se, quando ouviramalguém entrar. Esconderam-se por um bocado, depois saíram às

escondidas pelas escadas de serviço. Ele voltou lá mais tarde, masa fechadura tinha sido trocada.

O nosso ninho desaparecera, o lugar onde nos podíamos abraçar;o lugar onde podíamos dizer tudo, ou absolutamente nada; o sítioonde podíamos esquecer a guerra.

— E os teus desenhos? — perguntei tristemente.— Eu faço outros. — Enlaçou-me a cintura com um braço. —

Anima-te, arranjei um sítio novo para nós.Na rua, encontrei Mme. Simon.— Onde é que pensam que vão? — quis saber.Ainda consternada pela falta do apartamento, tentei engolir em

seco.— A Mademoiselle Souchet tem o direito de almoçar —

respondeu o Paul.— Desde que esteja de volta à uma — disse-me ela.— A mademoiselle não trabalha para si — disse ele, a mão a

apertar-me com mais força enquanto me conduzia ao longo dopasseio.

— Não precisavas de ser brusco — disse-lhe. — Ela é como arabugenta tia March nas Mulherzinhas. Áspera por fora, masbondosa por dentro.

— Nem toda a gente tem um «por dentro».— E nem toda a gente é criminosa — respondi num tom ligeiro.— Há pessoas que são exactamente como se apresentam ao

mundo. — Parámos na frente de um imponente edifíciohaussmaniano. — É aqui.

No átrio, os nossos passos eram abafados por uma espessa

carpete carmim. Ao ver o candelabro dourado, tive uma estranhasensação de déjà vu. Talvez já tivesse ido ali entregar livros.

No apartamento em cima, as cortinas de brocado estavamcorridas. Não me interessava a vista, só o Paul me interessava.Queria uma hora em que pudéssemos esquecer tudo. Quando eleme beijava os seios, a barriga, o traseiro, todo o meu corpocrepitava.

A seguir, ainda nus, visitámos o apartamento como se fosse ummuseu, admirando os vasos chineses sobre a prateleira da lareira,os Velhos Mestres nas paredes. Mas o melhor era a cozinha:chocolate no armário. A nova casa não era assim tão má — explorarera excitante.

Mas estávamos a ficar atrasados, por isso atirei a camisa e ascalças ao Paul. Ele vestiu-as, mas não as abotoou; em vez disso,ajudou-me a apertar as costas da minha blusa. Atrás de mim, quasereverentemente, beijou-me a nuca enquanto apertava os botões demadrepérola. Era nesses ternos momentos que mais o amava.

Imersa nos meus sentimentos, mal percebi o clique na fechadura,o ranger de dobradiças.

— Quem diabo são vocês? — perguntou, autoritário, um homemcom peito de barril.

Descalços e descompostos, o Paul e eu separámo-nos de umpulo.

— Esta casa agora é minha.Encaminhei-me para a porta. Paul deu-me a mão e puxou-me

para si.— Pensávamos…— Saiam! E fiquem longe daqui.

De cabeça baixa, voltámos acabrunhadamente para a Biblioteca,embaraçados por termos sido apanhados. Onde nosencontraríamos agora? Outra pergunta estava também a formar-se.De quem era aquele apartamento?

— Não fizemos nada de mal — disse o Paul. Deu-me um rápidobeijo na face e seguiu para a esquadra da polícia. De quem era oapartamento? Afogueada, entrei na secção dos periódicos antes deme lembrar que trabalhava na sala da referência. Sem jornaisactuais, poucas pessoas passavam por ali, por isso fiquei espantadaao ver alguém a remexer numas revistas velhas.

— Posso ajudá-lo?— Reparei que alguns leitores são estrangeiros. — Parecia-me

conhecer a sua cara. Ah, sim, o homem de tweed que tentarasurripiar um jornal.

— Um dos nossos muitos motivos de orgulho. Aqui toda a gentese sente em casa.

— Gostaria de os contactar.— Destruímos os nossos registos. Não queríamos que caíssem

nas mãos erradas — repliquei num tom sarcástico, e dirigi-me parao balcão de atendimento, onde o Boris e a Bitsi conversavam comas cabeças ligeiramente inclinadas uma para a outra.

— Ele perguntou-me de onde sou — sussurrou o Boris. — Disse-lhe que sou parisiense.

— Vem cada vez com mais frequência — disse a Bitsi. — Quandoestá atrás de mim, sinto-lhe o hálito azedo no meu pescoço.

Passei o pé sobre o dela.— O que é que ele queria? — perguntou o Boris.— Perguntou pelos nossos sócios estrangeiros.

— Por falar em estrangeiros — disse a Bitsi —, onde está aMargaret?

Já devia ter chegado.— Liga-lhe — disse o Boris.Liguei-lhe durante toda a tarde, mas ninguém atendeu. E se

tivesse sido presa, como Miss Wedd? Não, havia alguma razão paranão ter vindo, uma razão perfeitamente razoável. Olhei para orelógio. O mostrador estava impassível, os ponteiros recusavam-sea andar. Levando o pulso ao ouvido, escutei os batimentosdesmaiados. O pânico cresceu no meu peito e ficou difícil respirar.

— Vai — disse o Boris. — Nós tratamos das coisas por aqui.Fiz mais uma chamada, depois corri para a casa da Margaret.

CAPÍTULO 31

Odile

O mordomo veio abrir a porta.— A Margaret está? — perguntei, a olhar ansiosamente por cima

do seu ombro para o interior do apartamento. Imperturbável comosempre, ele conduziu-me ao quarto da patroa, que estava deitadana cama, rodeada por lenços amarrotados. Abracei-a.

— Graças a Deus que estás aqui. Tive medo que tivesses sidopresa!

— Estou doente — disse ela, rouca. — Tentei ligar, mas nãoconsegui fazer a chamada. O telefone tem estado a falhar a semanatoda.

Sentei-me ao seu lado.— Até pedi ao Paul para vir cá ter, para o caso de termos de

participar um desaparecimento.— Não precisavas de te preocupar. — Havia segurança no seu

tom de voz.— Claro que me preocupo! A cidade está atulhada de nazis.— Estou-te a dizer, não precisavas de te preocupar. — Olhou para

o corredor, para verificar se não havia nenhum criado por perto,antes de sussurrar: — Conheci uma pessoa.

— Conhecemos pessoas novas todos os dias.— Não, conheci alguém.Estaria a tentar dizer-me que se tinha apaixonado?— Na Biblioteca?— Não. Não te queria assustar… mas fui presa.— Presa? — gritei.— Chiu! Era exactamente por isto que não te queria contar.Agarrando a seda azul da colcha, perguntei-me como podia ela

ter escondido de mim uma coisa daquelas. Não me ocorreu quetambém não lhe tinha dito que estava noiva do Paul.

— Depois de ser libertada, o Felix deu-me um documento que medá liberdade de movimentos.

Ela tratava-o pelo nome próprio? Isso significava que era o seunamorado? Era demasiada coisa para assimilar. Ela escondera umsegredo. Confraternizava com o inimigo. Todo o meu corpo secontraiu de fúria.

— Disseste que o Paul vem a caminho? — dirigiu-se para otoucador e empoou o nariz cor-de-rosa.

Agora era eu que olhava para o corredor.— Não estás bem para ter companhia — disse eu, rigidamente. —

É melhor ir-me embora.— Não faças o que os parisienses fazem, quando escondem os

verdadeiros sentimentos por detrás de um rígido véu de delicadeza.— Não sei do que estás a falar.— Se queres ir, vai. Mas não finjas que é por eu estar constipada.

— Os nossos olhos encontraram-se no espelho. Os meus estavamperturbados, os dela resolutos. — Se o Felix não me tivesselibertado daquela cela bafienta, a mim e a três outras senhoras de

idade, estaríamos todas a apodrecer num campo de internamento. Eo que seria da minha filha? Pensa nisso.

As suas palavras fizeram sentido. Ela podia ter desaparecido,como a nossa Miss Wedd. Eu tinha de parar de tirar conclusõesprecipitadas, parar de criticar os outros. Era tão má como a MadameSimon.

— Desculpa — disse-lhe. — O mais importante é que estás emsegurança. Tens a certeza de que te apetece companhia?

— Só fico com tonturas quando me levanto. Pede à Isa paratrazer uma bandeja de chá. Vou ter contigo num instante.

Na sala, os velhos nas molduras douradas continuavam ali.Sempre que a Margaret me levara um pacote para o Rémy eusentira-me culpada, a imaginar aquelas pinturas a serem arrancadasdas paredes e vendidas para comprar mantimentos. Mas, se osretratos estavam ali, como conseguira ela a comida?

Pedira a um nazi.Margaret e um nazi. Que estranho juntar as duas coisas.

Pertenciam a livros diferentes, em estantes diferentes. Mas, àmedida que a guerra se prolongava, as pessoas iam ficandoemaranhadas. As coisas que eram a preto e branco — como queimpressas numa página — misturavam-se para formar um cinzentolamacento.

Quando o Paul chegou, puxei-o contra mim.— O que se passa? — Ele deu-me um beijo no alto da cabeça.— Nada. Estou contente por te ver. Contente por seres tu.— Nem acredito nestes retratos. É como se estivesse no Louvre.— Nem tudo o que brilha é integridade — respondi.— Hum?

Margaret apareceu. Como adorava fazer entradas em grande.Paul e eu afastámo-nos.

— Desculpe tê-lo afastado do seu trabalho, Paul. Foi simpático dasua parte ter vindo. A Odile tem muita sorte de o ter.

As orelhas do Paul ficaram vermelhas e ele sorriu, envergonhado.— É sempre um prazer revê-la.Dei-lhe uma cotovelada para o recordar de que não estávamos ali

para fazer conversa de circunstância. Ele precisava de a avisar doperigo — eu não estava convencida de que um simples papel doseu apaixonado a pudesse proteger.

— Dizem que os boches prenderam mais de duas mil mulheresestrangeiras — disse ele firmemente em inglês.

— Eu sei.— Está em perigo aqui — disse ele. — Devia partir.— Vocês também podiam ter fugido para a Zona Livre no Sul —

argumentou a Margaret. — Mas ficaram.— Eu tenho de ficar num sítio onde o Rémy me consiga encontrar.— Eu quero estar com a Odile — disse o Paul. — Pense na sua

filha.— Londres também não é segura. — Margaret tossiu para o seu

lenço.— Tenha cuidado — advertiu ele. — Se vir alemães a aproximar-

se, atravesse a rua para o outro lado.Ninguém podia evitar os nazis, nem sequer na Biblioteca, e eu

sabia que a Margaret também não o desejava particularmente.

Uma semana mais tarde, a Margaret encurralou-me no vestiário e

atirou-me uma caixa com uma fita prateada. Abri-a e cheirei ochocolate — ouro do mercado negro. O meu estômago borbulhou.Não queria os seus bens de proveniência duvidosa, mas não meconsegui impedir de retirar um pedaço. Quando o chocolate leitosose derreteu na minha boca, perguntei-me o que fizera ela paraconseguir um tal luxo, perguntei-me o que mais receberia. Seda?Carne de vaca? Quais eram os seus números de Dewey? O maispróximo que tinha era o 629 para bichos da seda e o 636.2 paragado. Não encontrava os números certos. Não podia acreditar emtudo o que ela recebia enquanto nós passávamos necessidades.

— Durante o período de encerramento anual da Biblioteca, eu e oFelix vamos de férias. Parece que Deauville é maravilhosa. A amafica a tomar conta da Christina e, se alguém perguntar, vou dizerque fiquei contigo… — Ainda na sua nuvem de felicidade, aMargaret flutuou para a sala de leitura.

Os chocolates eram deliciosos. Ia enviar o resto ao Rémy. Iamesmo. Depois de comer só mais um pedaço.

*

Ao fim da tarde, enquanto o Boris e a condessa reviam oorçamento no gabinete dela, fiquei eu ao balcão de atendimento.Quando o telefone tocou, esperei um pedido de entrega de livros.

— Exijo falar com Clara de Chambrun. — A pessoa do outro ladofalava em francês com um ligeiro sotaque alemão. — Pode seramanhã às nove e meia. Diga-lhe para entrar directamente eexpresse o meu pesar por não poder ir à Biblioteca. — Não tiveoportunidade de responder antes de a chamada ser desligada. O

que queria o Dr. Fuchs com a condessa? Iríamos perder outraamiga?

No andar de cima, espreitei para o escritório da condessa.Quando o Boris reparou em mim, as suas sobrancelhas arquearam-se de preocupação. Claro, ele sabia que havia alguma coisa errada,era bibliotecário — uma espécie de psicólogo, empregado de bar,porteiro e detective.

— Tenho uma mensagem — anunciei.A condessa olhou-me por cima dos óculos de leitura.— Sim, do que se trata?— O Dr. Fuchs insistiu em falar consigo amanhã no escritório dele

— disse.— Ah, sim?— A condessa e o general têm de sair da cidade — disse o Boris.— Para eles o prenderem a si no meu lugar? — retorquiu ela. —

O que foi que ele disse exactamente?Repeti-lhe a mensagem.— Eu vou consigo — disse o Boris.Eu não queria que ele fosse — tinha mulher e uma filha pequena

que dependiam dele. Tentei encontrar um argumento convincente.Era ele que tinha as chaves, por isso tinha de estar ali para abrir demanhã? Não, limitar-se-ia a entregar-mas.

— Pelo que percebi — comecei lentamente —, o Dr. Fuchs temum fraquinho por senhoras. É melhor que seja eu a acompanhar acondessa.

— Não vou levá-la para fazer uma visita a um nazi! — protestouela. — O que diriam os seus pais?

— Honestamente, o meu pai também não queria que eu

trabalhasse com estrangeiros capitalistas aqui. O papa écommissaire, por isso a minha família já tem tido contactos comnazis. — Só disse isto para vencer a discussão. Nunca pensava emcomo o meu pai passava os seus dias, nem com quem.

— Tem a certeza de que me quer acompanhar? — perguntou ela.Eu tinha medo de ir ao quartel-general nazi, mas, ao pensar nos

livros com encadernação de pele nas prateleiras da condessa, nosromances que eu entregara a leitores, no manuscrito da professoraCohen escondido no cofre, decidi que valia a pena lutar pelaspalavras, que elas valiam a pena o risco.

— Absoluta.Não havia tempo para me demorar no que podia ou não podia

acontecer — estávamos demasiado ocupados com o funcionamentoda Biblioteca. Regressei ao balcão de atendimento, onde Mme.Simon perguntou:

— Onde diabo se meteu? Eu podia ter saído daqui com aqueleslivros!

Quando o último sócio saiu, enfiei os livros para a professoraCohen dentro da sacola e apressei-me a subir o boulevard. Poucopassava das sete, mas as silhuetas escuras dos edifícios erguiam-se ameaçadoramente à minha volta. Eu crescera na cidade e sentia-me tão segura nas avenidas como nos braços da minha mãe. Mas,naquela noite, sempre que olhava para trás, o homem de fato detweed estava ali. Quando atravessei a estrada, ele tambématravessou. Olhei para trás; ele parou e folheou uma revista numquiosque. Caminhei mais depressa. Ele continuou, como que numpasseio de fim de tarde, o rosto sinistro franzido. Nas sombras, via a

sua pasta numa mão e na outra… o brilho de uma arma, o canovirado para mim.

Virando bruscamente à direita, encostei-me ao prédio sujo. Asminhas pernas agitavam-se, incentivavam-me a desatar a correr.Espreitei pela esquina. Quando ele se aproximou mais, vi que o quejulgara ser o cano de uma arma era uma revista enrolada,provavelmente comprada no quiosque.

Desviei-me do meu caminho para o despistar, e corri ao longo doelegante Faubourg Saint-Honoré, passando pela Hermès, depoispelo palácio presidencial, à procura de um lugar para me esconder.Não estava longe do Le Bristol, onde Miss Reeder tinha ficadoinstalada no início da Ocupação. Eu já entregara livros a hóspedesenfermos ali. Desatei a correr e, antes que o porteiro conseguissechegar ao seu posto, abri a porta de rompante e corri para arecepção, onde supliquei ao concierge que me deixasse sair pelastraseiras. Ele conduziu-me rapidamente ao longo do sumptuososalão oval, passámos uma porta trompe l’oeil, entrámos numacozinha ruidosa, e depois fez-me sair para uma rua lateral.

Enquanto recuperava o fôlego, perguntei-me se deveria entregaros livros ou ir directamente para casa. Decidi que tinha o direito devisitar quem me apetecesse.

— Já pensava que não vinha — disse a professora Cohen.— Vim pelo caminho mais longo.Ela passou a mão sobre a capa do livro, tão amorosamente como

a maman ao acariciar-me o rosto. A professora já requisitara Bom-Dia, Meia-Noite pelo menos dez vezes. Quando lhe pergunteiporque gostava tanto do livro, respondeu:

— A Jean Rhys é intrépida. Diz a verdade e escreve para os

desesperados e os vulneráveis.Abri uma página ao acaso, como costumava fazer para ficar a

conhecer um livro. Paris está tão bonita esta noite… Estás linda,esta noite, minha bela, minha querida, e, oh, que cabra queconsegues ser! Estremeci. Não era assim que pensava na minhacidade, de todo.

Ao ver a minha reacção, a professora disse:— Não te esqueças de que Rhys está a descrever Paris na pele

de uma estrangeira com pouco dinheiro e sem ninguém que a ajude.Eu adorava a professora Cohen, e queria amar o que ela amava.— Prometa-me que mo deixa ler quando terminar. Acha que vou

gostar?Ela apertou o xaile com mais força à sua volta.— Não tenho a certeza. Não tem um final feliz.

Às nove da manhã do dia seguinte, a condessa e o maridoaguardavam no seu carro à frente do meu prédio. O chapéu de cocodo general cobria-lhe a maior parte do cabelo branco. Como muitosparisienses, estava com enormes olheiras. Quando carregou noacelerador, o Peugeot arrastou-se pelas ruas empedradas comouma velha pileca que não quer ser montada. Do banco traseiro,reparei que ele passava mais tempo a olhar para a mulher do quepara a estrada. Subimos os Campos Elísios, passámos o Arco doTriunfo e chegámos ao Hotel Majestic, o escritório do Dr. Fuchs.

— Entro contigo? — perguntou o general.— Somos perfeitamente capazes de responder a umas perguntas.— Então espero aqui — disse ele, agarrado ao volante.

O átrio estava vazio. Uma loura desengraçada — as parisienseschamavam a estas mulheres «ratos cinzentos», por causa das suasfeias fardas — conduziu-nos ao espartano gabinete do Dr. Fuchs.Sentado rigidamente à secretária, o Bibliotheksschutz parecia tãoperturbado como nós. Quando não se levantou para nos receber,como era adequado, percebi que havia alguma coisa muito errada.Em francês, ele avisou-nos:

— Têm de dizer a verdade.A condessa empertigou-se.— Não há qualquer pergunta a respeito da Biblioteca a que não

respondamos inteiramente.— Recebemos uma carta anónima a acusar a Biblioteca de fazer

circular tratados anti-Hitler.Tínhamos sido denunciados?— Estas caricaturas foram descobertas na vossa colecção. —

Atirou um dossiê à condessa.Ela folheou as páginas.— Os desenhos datam de antes da guerra, e periódicos como

estes nunca saem da sala de leitura. — Ela pousou o dossiê nasecretária. — Garanto-lhe que eu nunca trairia a instituição queprometi salvaguardar.

— Se eles circularam — acrescentei sarcasticamente —, foiporque um dos seus compatriotas os levou. Vi um a tentar roubarum jornal.

— Chiu — sussurrou a condessa. — Pense antes de falar.— Sei que também fazem circular livros proibidos — continuou

ele.— O senhor disse a Miss Reeder que não precisávamos de os

destruir — argumentei.Com a menção da directora, a postura dele suavizou-se.— Mas, a partir de agora, têm de os manter trancados à chave. —

Respirou fundo. — Mesdames, parece que encontrámos umasolução. — Passando para o inglês, talvez para que o rato cinzentoà escuta no corredor não compreendesse, acrescentou: — Ficomuito feliz por vós. Não vou ocultar que também estou muito felizpor mim próprio.

Levantou-se, e percebemos que a reunião tinha terminado.Notando que até o Dr. Fuchs era cauteloso junto do rato cinzento, acondessa e eu continuámos em silêncio até regressarmos ao carro.

No caminho de volta para a Biblioteca, fiquei a pensar na estranhadeclaração do Dr. Fuchs. Era possível que, se tivéssemos sidoconsideradas culpadas de alguma infracção, também ele o seria,como administrador das bibliotecas da Zona Ocupada.

Assim que transpusemos a entrada, o Boris retirou uma garrafinhada gaveta e serviu um pouco de bourbon em três chávenas de chá.A condessa sentou-se numa cadeira e bebeu um pouco.Rapidamente, expliquei as alegações.

— O Fuchs sabe das nossas entregas especiais? — perguntou oBoris.

— Não creio — disse ela. — Mas, depois disto, decidi que, emvez de esperarmos por Agosto para o nosso encerramento anual,será melhor fecharmos a Biblioteca ao público amanhã.

O Dia da Bastilha. Outro feriado sem qualquer razão para sercelebrado.

CAPÍTULO 32

Boris

Boris e Anna costumavam jogar às cartas na casa dos vizinhosaos serões de terça-feira. Com ou sem guerra, com ou semOcupação, iam à casa dos Ivanov para um copo de vinho e umjantar ligeiro que se foi tornando cada vez mais ligeiro a cadasemana que passava. Hélène brincava com Nadia no quarto. Pordetrás de portas fechadas, com Bach a tocar no fonógrafo, aspersianas fechadas, os casais desabafavam perante fatias de salo.À mesa, podendo fazer confidências com velhos amigos, o Vladimirfalou do aluno que ele e a Marina escondiam no sótão da suaescola. Os pais tinham desaparecido, e o rapaz escondera-se emcasa durante três dias antes de dizer a alguém. Embora tivesseapenas 13 anos, o Francis comia como um cavalo de trabalho, e eradifícil adquirir rações adicionais.

A conversa virou-se para os seus próprios filhos. Boris adoravaouvir Anna falar de Hélène. O seu tom tornava-se terno. Os olhostambém. Embora estivesse exausta das filas para o pão, para amanteiga, para tudo, Anna não deixara que a guerra escrevessenada no seu rosto. Não havia rugas de preocupação, nem de fúria.Por vezes, os ombros dele curvavam-se, derrotados e amargos com

a vida — afinal, tinham fugido da Revolução para seremconfrontados com uma guerra. Mas Anna sentava-se tão direitacomo sempre, até as forças dela se tornarem as dele.

Depois de a mesa ser levantada, o Boris baralhou e distribuiu ascartas. Anna sorriu quando viu a sua mão, e ele ficou satisfeito.

Ouviram bater à porta. Sobressaltados, olharam uns para osoutros. Talvez seja alguma coisa, talvez não seja nada. A pessoahá-de ir embora. Vamos esperar.

Bam! Bam! Bam! na porta. Embora os seus olhares seencontrassem, os amigos não disseram nada. Vladimir, Marina eAnna pousaram as cartas. Boris manteve as dele na mão. Vladimirfoi à porta e espreitou por le judas. As suas costas ficaram rígidas,confirmando o que o Boris já sabia. Gestapo.

Ah, apanharam-nos — a jogar cartas e a ouvir Bach, enquanto asnossas filhas brincam ao faz-de-conta no quarto. Vladimir abriu aporta lentamente. Quatro nazis empurraram-no da sua frente eentraram. Um deles apontou uma arma a Vladimir. Dois arrancaramos livros das prateleiras; outro rasgou as almofadas do divã.Malditos espiões, nunca estavam satisfeitos. Talvez tivessem sabidodo rapaz. Vladimir e Marina eram professores, não revolucionários,mas ali estavam eles em sarilhos por ajudarem uma criança. Porque outra razão estariam ali os nazis? Não que eles precisassem deuma razão.

Boris já não se espantava ao encontrar tais homens. Osparisienses tinham visto os nazis no seu melhor, de botasengraxadas, a comprar bugigangas para as suas mães em casa. Eno seu pior. Bêbados, a cambalear pelas ruas. De caras vermelhasdepois da ríspida rejeição de uma parisienne. Claro, os nazis tinham

visto os parisienses no seu pior. Famintos e ressentidos, a gritar unscom os outros na fila do talho. Não, eram inimigos íntimos. Em cimauns dos outros, ao lado uns dos outros, ao lado de si próprios.

O nazi com a pistola rosnou qualquer coisa em alemão. Anna,Marina e Boris tinham continuado sentados à mesa. Isto enraivecia-o: porque estavam ali sentados tão calmamente?

— Levantem-se! — gritou em francês.Anna ergueu-se com a graça de uma czarina a levantar-se de um

trono. Não ia mostrar que estava assustada. Ia provar-lhes que tinhavencido.

— Tu aí à porta — disse o nazi a Vladimir. — Vai para o pé dosoutros! Mãos ao ar!

Eles levantaram as mãos e o Boris percebeu que ainda seguravaas suas cartas.

A arma foi apontada ao Boris. Porque o iriam prender? Tanto aRússia como a América estavam em guerra com a Alemanha, e eleera um franco-russo a trabalhar numa instituição americana. Sim,agora reconhecia o homem que brandia a pistola, embora a doninhativesse ido de fato de tweed para lhes revistar a colecção, à procurade provas de traição. O espião estivera tantas vezes na sala deleitura que Odile comentara: «Alguém tem de dizer ao filho da mãeque a coisa decente a fazer seria pagar uma subscrição daBiblioteca.»

Aquela Odile! Riu-se. Ele riu-se.A Luger disparou. A dor percorreu o corpo do Boris. O sangue

encharcou-lhe a camisa esbranquiçada. Ele soltou as cartas, queflutuaram no ar e lhe caíram aos pés. A dor era excessiva.

Cambaleou. E, naquela última dança, pensou: Diz às crianças queas amo. Anna, oh, Anna. Sabes tudo o que eu sinto.

Ele não se lembrava de cair, não sentiu a cabeça bater no chão.Sentiu Anna ao seu lado, viu o vermelho que escorreu da camisapara as mãos de cera da mulher. Ouviu os nazis gritarem. Era tudoexcessivo. Boris ansiava por subir a escadaria em espiral, caminharpor isoladas fileiras de livros, perder-se no doce silêncio do Além.

CAPÍTULO 33

Lily

FROID, MONTANA, AGOSTO DE 1987

A Angel, a irmã da Mary Louise, reinava na primeira página doFroid Promoter. Rainha do Baile. Diva da lavagem automóvel,vestida de biquíni, a angariar dinheiro para órfãos ou oacampamento das cheerleaders. O seu olhar conseguia transformaro cérebro de um homem adulto em estrume. A Mary Louise e eupassávamos horas a perguntarmo-nos como poderíamos ser comoela. Para obter respostas conclusivas, entrámos às escondidas noquarto da Angel, de orelhas espetadas atentas ao perigo, como umsinal de Sue Bob a aproximar-se pelo corredor. Um bafo de perigofundia-se com o odor enjoativamente doce de perfume Giorgio.

A Mary Louise apalpou o interior das gavetas da cómoda. No seudedo saiu pendurado um sutiã preto com copas tão grandes queconseguiriam conter bolas de softball. Acariciámos camisolas deangorá mais macias do que pele, e segurámo-las contra os nossospeitos lisos. Qual seria a sensação de ter a mão do Robby a subirpor debaixo da camisola, à procura da minha pele? Uma delícia.Debaixo da cama, encontrei uma caixa de sapatos cheia de

corpetes de bailes de finalistas passados e uma caixa cor-de-rosa.Lá dentro, comprimidos serpenteavam em espiral como a casca deum caracol. O contraceptivo na minha mão era como uma arma —ambos tinham o poder de parar um corpo humano. Retirei um dalamela, mas a Mary Louise mandou-me pô-lo de volta.

No toucador, a maquilhagem estava disposta sobre uma bandejacomo instrumentos de cirurgia. O eyeliner azul fazia com que osolhos da Angel se tornassem mares intermináveis. Quando oexperimentámos, parecia que alguém enlouquecera com uma Bic.Finalmente, perdemo-nos no roupeiro, completamente cheio desedosos vestidos. Tocar neles era como dar a mão ao paraíso.

Quando cheguei a casa, Odile e Eleanor estavam no sofá, àespera.

— A Sue Bob ligou — disse a Eleanor lugubremente ao levantar-se.

Eu nem podia acreditar que o relatório dos serviços deinformações tinha chegado antes de mim.

— Sabes que é errado bisbilhotar. — Eleanor não estavazangada. Parecia… preocupada. — Gostavas que eu fosse mexernas tuas coisas?

— Força! — disse eu amargamente. — Não tenho segredos.— Ma grande — disse Odile, levantando-se também —, toda a

gente tem segredos, e sentimentos privados. O teu pai, a Eleanor,eu. Sê grata pelo que as pessoas te dizem quando estãopreparadas para o dizer. Tenta aceitar os seus limites ecompreender que estes limites normalmente não têm nada a vercontigo.

Vendo que eu não percebia o significado do conselho de Odile, a

Eleanor simplificou.— Não sejas bisbilhoteira. Ainda vais meter-te em problemas.— É a mim que dão sermões, quando a Angel é que toma a

pílula?Eleanor arfou, enchendo-me de satisfação.Os dedos de Odile enterraram-se nos meus braços.— Ouve bem: não há nada pior do que contar os segredos de

outra pessoa. Porque é que nos hás-de contar, a nós ou a outrapessoa qualquer, assuntos que só dizem respeito à Angel? Estás atentar fazer com que ela tenha problemas? Destruir a suareputação? Magoá-la?

— Acho que não pensei.Odile olhou para mim com uma expressão zangada.— Então, na próxima vez, pensa! E fica de boca fechada.— Ninguém gosta de uma queixinhas — acrescentou a Eleanor.

Depois, ambas voltaram a sentar-se e retomaram a sua conversa.— Então acha que eu devia ir? — perguntou Odile. Pela primeira

vez, era ela que soava insegura.— Ir aonde? — perguntei.— A Chicago! — guinchou a Eleanor.— Chicago — suspirei, desejando poder fugir das pessoas que

observavam cada gesto que eu fazia, poder ir para uma cidadecheia de arranha-céus e restaurantes chiques. — Tem de ir!

— Não apanho o comboio desde que aqui cheguei, há quarentaanos. E há quarenta anos que não vejo a minha amiga Lucienne.

— Porque é que não foi antes? — perguntei.— Ela convidou-nos, mas o Buck nunca quis ir. Depois de ele

morrer, eu já tinha adquirido o hábito de dizer não.

— Pense nas lojas e nos teatros! — disse a Eleanor. — Oh, se eupudesse… E não seria maravilhoso ver a sua amiga?

— Ela quer que eu passe lá um mês inteiro.— A Lily e eu podemos levá-la à estação — ofereceu a Eleanor.— Vou pensar nisso — disse Odile, o que, na minha experiência,

significava não.Na cama, nessa noite, quando adormeci a ler Homecoming, os

sons de uma discussão filtraram-se por debaixo da porta do meuquarto.

— A Sue Bob não consegue controlar as filhas e acha que mepode vir ensinar a criar a minha? — dizia o meu pai. — A Angel éuma causa perdida, e a Mary Louise está a seguir-lhe os passos.

— Disparate — disse a Eleanor. — A Mary Louise é só divertida.A gratidão inundou o meu coração ensonado. A porta abriu-se a

ranger e os chinelos da Eleanor sussurraram ao longo da alcatifa.Ela desligou-me o candeeiro.

— Obrigada — murmurei.— Porquê?Por não te zangares comigo por andar a bisbilhotar. Por

encorajares a Odile. Por veres o melhor na Mary Louise. Porcompreenderes. Não disse nada disto, mas enrosquei-me melhordebaixo do edredão e senti-me feliz como não me sentia há muitotempo.

Dez dias depois, a Eleanor e eu levámos Odile à estação em WolfPoint. Do banco traseiro, via a terra inculta passar por mim edesejava ser eu a partir.

Enquanto esperávamos na plataforma, Odile perguntou:— E se ela mudou? E se não nos dermos bem? Vou estar ali

presa.— Pode sempre vir para casa mais cedo — replicou a Eleanor. —

Froid não vai a lado nenhum.— Não é de Froid que vou sentir falta — disse Odile.O meu pé deslizou sobre o dela.— Também vou ter saudades suas.O Empire Builder chegou a chocalhar e ela entrou. Na plataforma

vazia, a Eleanor e eu acenámos enquanto Odile desaparecia.

Duas semanas mais tarde, ao jantar, enquanto estava a cortar ofrango de Joe, pedi novamente ao meu pai para me deixar ter aulasde condução.

— A Mary Louise já tem a carta.— Porque é que te comparas com outras pessoas? És uma

rapariga linda e única.Limpei o ketchup que cobria o rosto de Joe.— Sou única, sim, a última da minha turma a tirar a carta. — Eu

queria dizer-lhe que não me podia manter para semprehermeticamente fechada na sua casa. A Mary Louise tinha-meensinado a conduzir na estrada de terra que levava à lixeira. Nãoera assim tão difícil.

— Depois do que aconteceu àquela tal de Flynn, eu morreria depreocupação — respondeu ele. — Não quero que corras nenhumrisco.

Jess Flynn tinha entrado numa carrinha com rapazes que

estavam a beber e a conduzir. Quando a Ford se despistou, elamorreu instantaneamente. A nossa vila chorou esta morte durantecinco anos.

— Os adolescentes não conduzem bêbados para a escola —argumentou a Eleanor. — Não há nada de mal em uma jovemmulher ter um pouco de independência, e não é melhor que elaganhe prática antes de ir para a faculdade?

O meu pai acusou-a de estar do meu lado para me fazer gostardela. Eleanor começou a levantar a mesa, atirando com os talherespara cima dos pratos. Agora eu estava entalada no meio dadiscussão, uma discussão acidentalmente iniciada por mim.

Depois do jantar, a Mary Louise apareceu. De pernas cruzadas nochão, encostadas à minha cama, ouvimos Cure.

— O meu pai e a Eleanor estão outra vez a discutir — disse-lhe.— Quem me dera poder fugir para Chicago.

— Ias levar uma eternidade a poupar. Só eras capaz lá para os30.

— Quando for demasiado velha para aproveitar.— Lily — guinchou a Eleanor do corredor. — Baixa essa música,

está a assustar o Benjy! Porque é que não vão as duas regar asplantas da Odile? Já devem estar meio mortas, por esta altura.

A sala de Odile parecia-me na mesma — um cesto de lã ao ladoda poltrona, a mesa de centro que exibia os meus trabalhos: umsaquinho de alfazema, um marcador de livros de cabedal — masnão havia Bach a tocar, e ninguém perguntou como tinha corrido omeu dia. A casa não cheirava a biscoitos acabados de fazer; o odorabafado fazia a casa esvaziar-se. Com as cortinas corridas, comOdile ausente, a sala parecia um corpo sem alma.

Toda a casa estava aberta para nós. Podíamos fazer o que bementendêssemos. E nunca voltaríamos a ter aquela oportunidade.Abri uma gaveta, mas não guardava mais do que velhos recortes dejornal.

— De que é que estás à procura, já agora? — perguntou a MaryLouise enquanto regava os fetos ressequidos.

— Pistas. — Eu queria descobrir as coisas que Odile nunca mecontaria. Retirei livros das prateleiras, na esperança de encontraroutra foto, uma carta de amor, um diário. O proibido era excitante. Ede que outra maneira haveria de descobrir coisas? Não sejasbisbilhoteira. Ainda vais meter-te em problemas. Senti um soupçonde culpa, mas continuei a folhear as páginas.

— Talvez não conheças a Odile tão bem quanto pensas. E se elaesteve apaixonada por um nazi?

Lembrei-me da fotografia do «Protector das Bibliotecas». Não erafeio, para nazi. Abanei a cabeça.

— Nem penses! Ela era da Resistência, transportava códigosescondidos em livros. Aposto que estava apaixonada por um dosresistentes, oh, e se calhar ele morreu numa missão secreta.

— Ela não se riu durante um ano inteiro — acrescentou a MaryLouise à história. — Mas depois viu Mr. Gustafson, e ele ajudou-a avoltar a sorrir. Como é que se conheceram, já agora?

Pus-me a adivinhar.— Foi lançado em França de pára-quedas e baleado pelo inimigo.

Levaram-no para o hospital onde ela trabalhava como voluntáriauma vez por semana.

— Mas, quando o conheceu, começou a trabalhar como voluntáriatodos os dias.

Observámos a foto de casamento de Odile. De boca firme, anoiva olhava para a câmara. Buck olhava para ela, os olhosapatetados de amor.

— Não o consegues ver deitado na cama de hospital, a olhar paraela com adoração? — perguntei.

— E ela também gostou dele, mas não o podia dizer porque, naaltura, as mulheres fingiam ser tímidas.

— Definitivamente. — Imaginei Odile de boina, a desafiar aGestapo da mesma maneira que fazia frente ao meu pai. Apostoque escondia judeus no seu apartamento.

— Se a Odile tivesse escondido a Anne Frank, ela ainda estariaviva hoje.

— Podes crer — disse a Mary Louise. — Vamos ver o que mais éque ela tem!

Deixámos os livros num monte e dirigimo-nos para o quarto. AMary Louise desapareceu no quarto de vestir.

— Uma caixa de jóias! Aposto que está cheia de rubis de umantigo amante!

Segui-a. Mal cabíamos as duas lá dentro. A minha face roçou nasmangas de blusas de Odile. Num cabide, uma camisa de noite derenda preta — tão sensual que a sua mera visão nos fez corar. Aarma de Buck estava encostada ao canto. Não devíamos estar noquarto de Odile, junto às suas roupas, às suas coisas. Eu sabiadisso. Mas não conseguia impedir-me de acariciar os seus casacosde caxemira, dobrados como se ainda estivessem na loja.

A Mary Louise apontou para uma caixa branca na segundaprateleira a contar do tecto. Retirei-a e ela abriu o fecho dourado.

— Não está trancada — espantei-me.

— Que seca. — Retirou um monte de papéis.— Talvez sejam cartas de amor!Era o que eu esperava, um pedaço do passado de Odile, na letra

de um apaixonado. Buck ou outra pessoa qualquer, um homemespantoso e estrangeiro. O papel estava rígido como bacon eamarelecido pelo tempo. Peguei na primeira folha. A letra feminina efluente fazia lembrar a de Odile. Não de um amante, então. Ofrancês não era fácil de entender. A carta estava cheia de palavrascomo «folia», que tinha visto uma vez e há muito abandonara nofundo do meu cérebro.

Paris

12 de Maio de 1941

Monsieur l’Inspecteur,Porque não anda à procura de judeus não declarados na clandestinidade? Aqui tem

a morada da professora Cohen, rue Blanche, 35. Era professora de uma dita Literaturana Sorbonne. Agora convida alunos a irem à casa dela ouvir as conferências só parapoder continuar na folia com colegas e estudantes, quase todos homens — comaquela idade!

Quando sai à rua, vê-se a um quilómetro de distância, com aquela capa púrpura,uma pena de pavão torta no cabelo. Peça à judia a certidão de baptismo e opassaporte, vai lá ver a sua religião. Enquanto bons homens e mulheres francesesandam a trabalhar, a Senhora Professora fica sentada a ler livros.

As minhas indicações são certas, agora é consigo.Assinado,

Alguém que sabe

Um ódio com quarenta e cinco anos erguia-se da página. Era por

isto que Odile não falava do seu passado, porque as palavras eramtão feias?

Senti-me como se estivesse no meio de um globo de neve quealguém tinha abanado, só que as peças lá dentro não estavamcoladas no fundo, e tudo girava — a casa de tijolo, o poste, o gatovadio, o carro da polícia. Todos entrámos em órbita com a neve quenão era neve, mas pedaços de papel amarelecido, confettiputrefacto que eu fizera com a carta.

A Mary Louise bateu-me.— Porque é que a rasgaste?— O quê? — perguntei, ainda atordoada.Ela apontou para os fragmentos aos nossos pés.— Ela vai descobrir, de certeza. Estamos em sarilhos.Já nada fazia sentido.— Não quero saber.A foto do «Protector das Bibliotecas» acendeu-se na minha

mente. Odile guardava-a com fotografias de entes queridos. Talveztivesse andado com o nazi, e talvez o tivesse ajudado no seutrabalho. Afinal de contas, nunca regressara a França, e a famílianunca a visitava. Talvez a tivessem renegado.

— O que dizia a carta?Eu não queria que ela soubesse como as pessoas eram horríveis.

Não queria partilhar as minhas suspeitas sobre o que Odile tinhafeito. Se não foi ela quem escreveu a carta, porque a teria na suaposse?

— O que é que dizia? — repetiu a Mary Louise.— Não percebi.— Tudo bem. — Deu-me uma palmadinha nas costas. — Talvez

não fales francês tão bem como julgas.Tínhamos descoberto a pista que eu desejara. E agora… sentia-

me fria. E nauseada.— Se não percebeste aquela, lê outra. — Apontou para as cartas

na caixa.— Não há nada para compreender. É só lixo. Lixo velho. — Tentei

rasgá-las, mas a Mary Louise tirou-me as cartas e arrumou-asexactamente como as tínhamos encontrado.

— Quero ir para casa — disse eu.— Talvez tenhas razão. É melhor irmos.— Sim, talvez seja melhor — disse Odile.Odile.Virámo-nos para ela. Tinha as sobrancelhas erguidas, enroladas

como pontos de interrogação. O que estávamos a fazer no seuquarto? O que eram aqueles pedaços de papel aos nossos pés?

Ela estava feliz por me ver. Percebia-o pela curva dos seus lábios,pelo seu olhar terno.

A Mary Louise e eu estávamos habituadas a meter-nos emsarilhos, embora nunca tivéssemos sido apanhadas em flagrante.Uma parte de mim queria pedir desculpa a Odile por ter invadido asua privacidade, mas a maior parte de mim queria que ela mepedisse desculpa por aquela carta horrível, por me ensinar aquelashorríveis palavras francesas, por me fazer pensar que tinha sido daResistência quando era apenas uma mentirosa.

— Foram vocês que tiraram os meus livros das prateleiras? — Asua voz era serena.

Deixando cair as cartas, a Mary Louise desviou-me para o lado efugiu. Mas se Odile me ensinara alguma coisa fora a impor-me.

Olhei-a directamente nos olhos. Directamente nos seus doces olhoscastanhos.

— Quem é a senhora?

CAPÍTULO 34

Odile

PARIS, 19 DE JULHO DE 1943

A Bitsi não se deu ao trabalho de dizer bonjour. Irrompeu pelo meuquarto, estava eu à secretária a escrever ao Rémy. Desalinhada esem fôlego, anunciou:

— O Boris estava a jogar às cartas!— Cartas?— E levou um tiro!— Um tiro? — A minha mão voou-me para o coração. — Ele

está… está vivo?— Levaram-no para o Hospital Pitié para interrogatório.Sob controlo da Gestapo, o hospital da «Piedade» era

praticamente uma sentença de morte. Não, o Boris não. Nãosuportava perder outro amigo.

— Em casa só ando de um lado para o outro, a afligir-me —continuou a Bitsi —, por isso fui à Biblioteca adiantar trabalho. Acondessa tinha acabado de chegar de uma conversa com o Dr.Fuchs. Ela disse que a mulher do Boris lhe ligou à meia-noite. Demanhã, a condessa foi directamente falar com o Bibliotheksschutz.

«Boris Netchaeff trabalha na Biblioteca há quase vinte anos»,informou-o. «Ele nunca faria nada que a comprometesse. Prometeuajudar se houvesse algum problema.»

» Ele pediu-lhe para fazer um relatório escrito. Ah! A condessapercebe de nazis e dos seus relatórios. Apresentou um relatocompleto do incidente, dactilografado e assinado por umatestemunha. Ele ligou a alguém, que o informou de que o Boris iaser deportado.

— Deportado!— Mas o Dr. Fuchs prometeu intervir.Era alguma coisa. Eu sabia que ele ia manter a sua palavra. O

Bibliotheksschutz não era tão mau como os outros todos.— Como podemos ajudar o Boris?— Ajudando a Anna.Fomos de bicicleta à casa dos Netchaeff, no subúrbio de Saint-

Cloud. A Anna está? Entrámos no apartamento, repleto de amigos eparentes a falar em voz baixa. Sim, a Hélène estava na sala ao ladoe ouvira tudo. Pobrezinha, só tem seis anos. O que procuravam osnazis? Espero que deixem a Anna ver o Boris. Acredita que aGestapo teve a lata de regressar, e às três da manhã, imagine.Queriam os cigarros que tinham visto em cima da mesa.

Mais tarde nessa noite, Anna regressou, pálida como a lua. AGestapo enfiara-a numa sala húmida numa cave e mostrara-lhevárias fotografias de homens que ela não conhecia — as mesmasque tinham mostrado ao marido — antes de a deixarem vê-lo. Aindacom a camisa ensanguentada, o Boris não fora visto por um médico.

Em Agosto, o Boris foi transferido para o Hospital Americano,graças à intervenção do Dr. Fuchs. Tinha sido atingido no pulmão e,como o ferimento não foi tratado durante vários dias, sofria de umainfecção que lhe ameaçava a vida. Ao fim de um mês, os médicospermitiram-lhe ter visitas além da mulher. Quando a Bitsi e euchegámos ao grande átrio de entrada do hospital, a Anna disse-nos:

— Ele já se sente melhor. Ontem, para se meter comigo, só mepedia para lhe trazer um maço de Gitanes.

Sorri, sem ter a certeza de que o Boris estivesse a brincar.— Olá! — disse a Margaret, correndo para nós. — Desculpem o

atraso.Não a via há semanas. Bronzeada e despreocupada,

transbordava de felicidade.— Pobre Boris! — exclamou. — Porque não me disseram há mais

tempo?— Eu liguei — respondi laconicamente. — Não devolveste as

minhas chamadas.— Estava na praia com… — Olhou de relance para a Bitsi e a

Anna. — Estava na praia. Devia ter mantido mais contacto.A caminho da enfermaria do Boris, uma das enfermeiras

cumprimentou-me calorosamente. Era comovente ser recordada.Conversámos as duas no corredor enquanto a Anna foi verificar seele estava acordado.

Uma vez no quarto, fui direita ao Boris. Com todos os desvelos damaman, puxei-lhe o cobertor sobre o peito. Ele tinha os olhosempapados de analgésicos, mas o canto da sua boca ergueu-se,como costumava acontecer quando se preparava para dizer umatolice.

— O nosso país tornou-se mesmo a França de Kafka.— Foi uma Metamorfose. — Tentei manter o tom ligeiro.— Desculpa deixar-te sozinha no balcão de atendimento — disse

ele.— Não me importo… gosto de ajudar os leitores. Claro, os nossos

habitués não deixaram que o encerramento anual os impedisse devir todos os dias! Agora, promete-me que não abusas.

— Do meu prazo de validade? — gracejou.Demasiado comovida para falar, a Bitsi deu-lhe um beijo na face e

depois desviou-se para o canto da sala.— Boris, há que admirar o teu sentido de oportunidade —

comentou a Margaret. — Levas um tiro e ainda recuperas durante oencerramento anual.

— Não é a primeira vez que levo um tiro — disse ele com a vozarrastada —, mas espero que seja a última.

— O quê? — exclamou ela.As pálpebras dele fecharam-se.— Cansa-se facilmente — explicou a Anna, enquanto nos

acompanhava à entrada —, mas ele insiste que vai voltar aotrabalho num instante.

— Acredito — disse a Bitsi. — Quando podemos voltar a visitá-lo?Precisa que olhemos pela Hélène?

Enquanto as duas conversavam, a Margaret puxou-me de parte.— Não posso apresentar o Felix à minha filha, ela é demasiado

pequena para guardar segredo. Mas preciso que alguém o conheça,que veja como é bom. Gostava que o conhecesses.

Ela estava mesmo à espera de que eu fosse tomar um chá com oseu amante?

— Não devias estar com ele — respondi bruscamente.— Ele salvou-me a vida. Está a salvar a vida do Rémy.Ela tinha razão. Mas não tinha razão.— Só te peço uma hora — insistiu.Margaret falava muitas vezes sem pensar, mas, para pedir uma

coisa tão vil, não estava apenas a ser irreflectida, tinha de estarlouca.

— Até cinco minutos seria demasiado!— Quando precisaste de uma coisa de mim, não te disse não! —

Foi-se embora, zangada.— Estão a discutir? — perguntou a Bitsi.— Não é nada — respondi. — Sabes que às vezes tenho mau

feitio.— Só às vezes? — Ela arqueou as sobrancelhas.

KRIEGSGEFANGENENPOST

3 de Setembro de 1943

Minha querida Odile,Esta pode bem ser a última carta que te escrevo. Tenho estado doente, e os

companheiros dizem-me que

tenho delirado. O meu ferimento nunca sarou, e, sem medicamentos, a infecção estásempre a piorar.

Não deixes que esta guerra, ou seja o que for, te separe do Paul. Casa com ele,dorme nos seus braços todas as noites. Não há razão para que sejamos os doisinfelizes. Se eu estivesse aí, estaria com a Bitsi. Passaria cada minuto com ela.

Aconteça o que acontecer, por favor, não chores. Acredito em Deus. Tenta ter fé.Beijos,Rémy

Imaginei-o deitado em frios catres de madeira, longe de todos osque ama. Oh, Rémy, volta para casa, por favor. Por favor, volta paracasa. A minha barriga comprimiu-se e corri para a casa de banho,onde me acocorei enquanto o meu estômago se esvaziava. Nãomorras, por favor. Por favor, não morras. Quando já não restavanada dentro de mim, passei para o corredor e encostei-me à parede.Todo o meu corpo doía, a barriga, a cabeça, o coração. Passei asmãos pelo rosto, pelo cabelo, pelo pescoço, a tentar acalmar a dor.Tinha de haver alguma coisa que eu pudesse fazer. Abri o armáriodos medicamentos e peguei em unguentos, emplastros demostarda, um frasco de aspirina (restavam três comprimidos ládentro), qualquer coisa que pudesse ajudar. De braços cheios, fuiprocurar uma caixa na cozinha.

— O que se passa? — A maman olhou para a confusão sobre amesa. — O que te aconteceu ao cabelo? Pareces uma louca!

Li-lhe a carta.— Oh, meu querido… — Ela ajudou a preparar o pacote, embora

ambas soubéssemos que já tínhamos excedido a quantidade quelhe podíamos enviar naquele mês. — As autoridades podem nãoaceitar — disse ela —, mas vamos tentar.

Como era espantoso que fosse ela a mais calma. Até esta carta,eu estivera convencida de que o Rémy voltaria para casa. Talvez amaman, que passara pela Grande Guerra, soubesse a verdade, epor isso tenha sofrido tanto com a notícia do seu aprisionamento.

Uma semana mais tarde, ao regressar do trabalho, fiqueiespantada ao encontrar o apartamento às escuras, como se não

estivesse lá ninguém. Acendi a luz do vestíbulo e espreitei para asala. Sozinha, a maman estava sentada vestida de preto.

— Chegou a notícia — disse. As suas faces, e até os lábios, eramde um branco fantasmagórico. A emoção esvaziara-se da sua facecomo sangue.

Um papel jazia aos seus pés, e percebi que o Rémy estava morto.Uma vez, quando tínhamos 10 anos, brigámos e eu caí com força,

tanta força que fiquei sem fôlego. Caída de costas, incapaz de memover, não consegui levantar a cabeça, não consegui dizer «Nãotiveste culpa». Pensei que estava paralisada, que alguma coisa separtira. E senti isso mesmo agora, incapaz de despir o casaco, depestanejar, de ir para junto da maman. Fiquei ali de pé, com tudocongelado dentro de mim.

— Passei tanto tempo com esperança de que fosse libertado —disse ela —, de que conseguisse voltar para nós.

— Eu também, maman. — A minha voz prendeu-se. — Eutambém.

Ter esperança doía, mas agora sabia que era mais dolorosodesistir da esperança. Deixei-me cair ao seu lado. Ela agarrou-me amão. As contas do seu rosário enterraram-se na minha palma.

— Mas depois, mesmo antes desta última carta — continuou ela—, eu soube. De alguma maneira, soube.

— Estava sozinha quando chegou a notícia? — perguntei.— A Eugénie estava cá, graças a Deus.Acendi o candeeiro.— Onde é que ela está?— Quis ir vestir de luto.— Devíamos mandar chamar o papa.

Ela desligou o candeeiro.— Ele não merece saber.— Oh, maman…— O Rémy alistou-se para provar ao papa que era um homem.Mesmo que isso fosse verdade, a culpa não traria o Rémy de

volta. Se ela continuasse obcecada com o meu pai, ele ficaria mortopara ela, tão morto como o Rémy. Eu tinha de desviar a maman doseu ressentimento.

— Precisamos de dizer à Bitsi — lembrei.— Basta dizer amanhã. Deixá-la ter uma última noite antes de lhe

partirmos o coração.Em silêncio, a maman e eu mergulhámos no choque da dor.

Durante quanto tempo, não sei. Claro que ele não estava morto.Nunca poderia estar morto enquanto ela própria não tivesseacabado de sentir e pensar. 813. De Olhos Pousados em Deus. Eusó tinha de continuar a pensar nele. Rémy a escrever um artigo àsecretária. Rémy sentado no nosso café preferido, com um gatomalhado ao colo, a beber um café. Rémy a rir com a Bitsi. Rémy.Oh, Rémy. Os companheiros dizem-me que tenho delirado. Rémytinha morrido. Mas como era possível, quando havia tanto que lhequeria dizer?

CAPÍTULO 35

Paul

À sua secretária no commissariat, o Paul tinha uma coisa emmente: Odile. Se se concentrasse nela, conseguia esquecer tudo oresto. Odile no dia em que se tinham conhecido — ela estavazangada e o Paul não sabia porquê. Odile quando ele lhe dera umramo de flores e o seu olhar se suavizara. A boca dela, doce e ácidacomo cerejas. O ondular das suas ancas. Odile de vestido preto,Odile sem o vestido preto. Os seus seios. Adorava acariciá-los,prová-los.

O chefe bateu-lhe na secretária.— Não tem trabalho para fazer?Paul mudou de posição na cadeira.— Sim, senhor. Mas porque…— Não tem nada que fazer perguntas. O que tem é de calar a

boca e seguir ordens. Aqui está a lista.Paul não compreendia. Quando a guerra fora declarada, a polícia

prendera comunistas, boches pacifistas a viver em França, ummonte de pessoas inglesas — até senhoras, e também os judeus.No cartaz ao lado da sua secretária, o regulamento declarava:«Judeus de ambos os sexos, franceses e estrangeiros, serão

sujeitos a verificação aleatória. Também podem ser internados. Osagentes das forças policiais são responsáveis pela execução dapresente ordem.»

Alguns colegas tinham gostado de expulsar pessoas dos seusapartamentos. Outros fingiam-se doentes para escapar ao trabalhodesagradável, mas não era essa a maneira de ver de Paul.Considerara brevemente fugir para a Zona Livre, mas recusara-se aabandonar as suas responsabilidades, como fizera o seu pai. Paulqueria lutar no Norte de África com as Forças Francesas Livres, masnão podia abandonar Odile. Recusara a promoção que o pai delalhe oferecera para a fazer saber que ela estava em primeiro lugar.Contara-lhe coisas que nunca confiara a ninguém. As suas opções:ou Odile, ou tudo e todos os outros. A decisão era fácil.

Pôs-se a caminho da morada mais distante na lista. Não queriapensar no trabalho. Apenas Odile o conseguia afastar da sua mente.Odile na cama. Odile nua na cozinha, a mexer chocolat chaud notacho de cobre de um desconhecido. Ao princípio, os encontrostinham sido excitantes, mas agora Paul estava cansado de seesconder. Queria casar com Odile. E se o Rémy nunca maisvoltasse? Ninguém se atrevia a aludir a essa possibilidade. O quepodia Paul fazer? Pedir uma licença especial, e assim que eladissesse sim… Chegou à morada. Não queria pensar no que estavaprestes a fazer. Odile a dizer je t’aime. Odile a admirar os seusdesenhos. Odile a ler-lhe Éluard em voz alta. Odile. Odile. Odile.

Paul subiu dois lanços de escadas e tocou à campainha. Umasenhora de cabelos brancos apareceu à porta e ele disse:

— Madame Irène Cohen? Mandaram-me escoltá-la à esquadra dapolícia.

— O que foi que eu fiz?— Provavelmente nada. Quero dizer, já é… — Ia dizer velha, mas

não era educado recordar uma mulher da sua idade. — É umaverificação aleatória.

Quando ela se virou para ir buscar um livro à mesa, Paul reparounuma pena de pavão presa no seu coque.

— Faz bem em levar um livro — disse ele. — A administraçãotem-se tornado cada vez mais demorada.

— Eu conheço-o. É o noivo da Odile. — Ela enfiou-lhe o finovolume contra o peito. — Por favor, entregue-lhe isto, ela vai saber oque fazer.

Surpreendido, ele atrapalhou-se, e o livro caiu. Quando a lombadaatingiu o chão, as páginas abriram-se e Paul viu o ex libris daBiblioteca Americana — Atrum post bellum, ex libris lux. Odile tinha-lhe dito o que significava: «Depois da escuridão da guerra, a luz doslivros.»

Apanhou o livro.— Madame, sou polícia, não um moço de recados. Há-de estar de

volta à hora do jantar e vai poder devolver-lho pessoalmente.— É ingénuo, meu rapaz.Paul endireitou-se, pronto para protestar. Ingénuo! Era um homem

experiente! Só porque era soldado não significava que não tivessevisto nada. Até viajara por toda a França. Era o ganha-pão da suamãe. Quem era ela para criticar, a senhora maluca com uma penano cabelo? Pena no cabelo. Agora lembrava-se dela. Bem, nãopropriamente dela. Havia muitas pessoas de idade na Biblioteca, enão conhecia o nome de todas. Lembrava-se da admiração de Odile

quando falava da sua sócia preferida, a professora com uma penade pavão no cabelo.

A professora Cohen vestiu o casaco. Quando Paul viu a estrelaamarela na lapela, começou a transpirar, e gotas de vergonhaescorreram pelo seu corpo. Quisera falar a Odile do ajuntamento,aquela terrível manhã de Julho em que ele e outros da polícia,incluindo o pai dela, tinham prendido milhares de judeus, famíliasinteiras, até crianças. Mas não era só o trabalho dele, era também odo pai dela.

Paul contemplou o livro da Biblioteca que tinha nas mãos. Deviaproteger Odile ou confiar nela? Devia fazer o seu dever e prender aprofessora Cohen, ou sair daquele apartamento e nunca maisvoltar?

CAPÍTULO 36

Odile

Desde que chegara a notícia, a maman não me deixava ir a ladonenhum. Durante dez dias, seguiu-me pelo apartamento o tempotodo. Eu ansiava pelo Rémy e por solidão para o chorar, mas amaman mantinha-se de vigia. No divã, abri O Silêncio do Mar, 843,e ergui-o como um escudo. Só precisava de um momento desossego, ou, melhor ainda, de me atirar de volta ao trabalho. ABiblioteca precisava de mim, e eu estava presa em casa.

— Espero que esse livro não te perturbe — disse a maman.Pousei-o.— Perdi o regresso do Boris. De certeza que ele não está pronto

para trabalhar.— Nem tu! Sofremos um choque terrível.A única visita que a maman autorizava era a de Eugénie. Eu

olhava-as, ambas de preto, enquanto tratavam das cenouras quecresciam nos vasos à janela.

— Mais um dia ou dois — dizia a maman.— Já vão estar maiores, por essa altura — concordava Eugénie.Na casa de banho, preparavam a roupa para lavar. A criada fugira

de Paris, e ninguém a censurava. Mas isso deixava a roupa por

lavar. A maman e Eugénie envergavam velhas combinações parafazer o trabalho sujo. Despejavam água a ferver sobre a roupa nabanheira. Esfregar, enxaguar, torcer. O esforço criava-lhes um brilhode satisfação no rosto. O trabalho dava à maman alguma coisa parafazer, algo melhor do que chorar.

Tentei ajudar, mas Eugénie afastou-me.— Vais estragar as mãos. Terás a vida toda para fazer estas

tarefas.Elas torciam, eu sentia-me inútil.— Esta guerra — dizia a maman.— Esta guerra — concordava Eugénie.Esta guerra criava estranhas parcerias.— Eu faço. — Lutei com uma toalha molhada, mal conseguindo

extrair qualquer água.— Ela nunca se teria safado na quinta — riu Eugénie.— A minha filha é rapariga da cidade — disse a maman

orgulhosamente. — Mais cérebro do que músculo. Quando tinha aidade dela, torcia o pescoço de uma galinha sem sequer pensar noassunto.

Quando pensava que ia enlouquecer com saudades do Paul e daBiblioteca, a Bitsi irrompeu pela porta da entrada e passou pelamaman. Como nós, estava de luto.

— Precisamos de ti. — Espetou um dedo no meu peito emcensura, como se tivesse sido minha a ideia de ficar em casa. — Acondessa está frágil. O Boris não devia estar fora da cama. Todosnós sofremos.

O olhar de Eugénie dardejou para a maman.— A Odile precisa de descansar.

— Também eu — disse a Bitsi. — Também a senhora.— Eu preciso da Odile aqui. — A maman tremia. — Se lhe

acontecesse alguma coisa…Abracei-a, compreendendo de repente porque tinha sido mantida

em casa.

Encostando-me à ombreira da porta, observei o Boris, ocupado nobalcão do atendimento. Estava magro, dentro do seu fato. Haviaagora prata a riscar-lhe as têmporas. Se não tivesse sido acondessa e o Dr. Fuchs… Quando ele me viu, ergueu-selentamente, a vacilar sobre os pés. Preocupada com os seusferimentos, beijei-o em cada face com cautela; ele esmagou-meentre os braços emaciados.

Afundando-me no cheiro telúrico dos seus Gitanes, disse-lhe:— A Anna vai-te matar, quando descobrir que estiveste a fumar.— Ainda tenho um pulmão em condições — protestou ele.Ri-me. Ainda não pronta para parar de lhe tocar, limpei-lhe um

pouco de pó da gravata.— Lamento pelo teu irmão — disse ele.— Sim. Eu também.Em breve estávamos rodeados. A condessa, Mr. Pryce-Jones,

Monsieur de Nerciat e Madame Simon expressaram as suascondolências. Tão jovem. Tão triste. Uma pena. Esta guerra…Quando pensei que ia desatar a chorar, Mr. Pryce-Jones disse:

— Sentimos a falta do nosso árbitro preferido.Sorri.— Discutir não tem graça, sem a Odile aqui — acrescentou

Monsieur de Nerciat.O tom era ligeiro, mas a preocupação nos seus olhos contava

uma outra história.Senti-me com sorte por ter amigos assim, por estar de volta ao

meu lugar. A caminho da sala de referência, inspirei o meu aromapreferido no mundo — livros, livros, livros.

Margaret saiu do meio das estantes, tão hesitante agora como noprimeiro dia. Estremeci por dentro quando me lembrei de que ela mequis apresentar o seu Leutnant.

— Soube do Rémy — disse ela.Ao ouvir o nome dele, agora tão raramente pronunciado, as

lágrimas libertaram-se.— Acerca do que aconteceu — continuou ela. — Era pedir

demasiado. Percebo isso agora.— Tenho a certeza de que o Felix é encantador, e a minha família

apreciou a comida que ele conseguiu para… — Não consegui dizero nome do meu irmão na mesma frase do do seu amante.

— Rezei tanto por ti e pela tua família. Desculpa não ter ido a tuacasa… não sabia se seria bem-vinda.

A guerra roubara tanta coisa. Eu tinha agora de decidir se iapermitir que levasse também a nossa amizade.

— Teria sido uma perda de tempo — expliquei. — A maman nãodeixava ninguém entrar.

— Nem sequer o Paul?— Nem sequer a Bitsi.— Não estavas a gozar quando disseste que era rígida.— De certeza que há muito trabalho para fazer. — Acenei para as

pastas na minha secretária. — Queres ajudar-me?

— Mais do que tudo.A cadência da Biblioteca tomou conta de nós e passámos o dia a

resolver quebra-cabeças. (Onde posso encontrar informação sobreCamille Claudel? Qual é a história de Cleveland?) Mantive uma mãono bolso, sobre a última carta do Rémy. Sabia-a toda de cor, mas,quando os últimos leitores do dia saíram, uma linha regressou desúbito: Não deixes que esta guerra te separe do Paul.

Liguei para a esquadra.— Estou livre! Vem à Biblioteca.Enquanto andava de um lado para o outro no pátio, a condessa

aproximou-se.— Tentei duas vezes entregar livros à professora Cohen, mas ela

não tem estado em casa. Podia ir tentar agora?— Tenho coisas combinadas com uma pessoa para esta noite.

Posso ir amanhã?— Suponho que sim — disse ela indulgentemente. — Esta

pessoa tem «Um rosto magro… um olho azul»?— Sim. — Reconhecia a citação, e acrescentei: — Mas não um

«espírito inquestionável».Ela continuou a andar sob as acácias, as suas folhas

sussurrantes iluminadas pela luz desmaiada dos candeeirospúblicos. Lembrei-me de outro verso de Como Lhe Aprouver: «estasárvores serão as tabuinhas / Em que o meu amor se gravaráprofundamente.»[17]

Quando o Paul chegou, corri para os seus braços.— Lamento tanto pelo teu irmão — disse ele.Aninhei-me mais no seu corpo.— Tentei visitar-te — continuou. — A tua mãe é um dragão.

— A guerra mudou-a.— Mudou toda a gente.Não queria pensar na guerra, nas pessoas queridas que tínhamos

perdido, no meu amado Rémy. A caminho de casa, perguntei:— Como está o trabalho?— Bizarro.A pergunta antigamente era banal, mas agora parecia uma arma

carregada. Enquanto passeávamos, perguntei pela sua tia (sabiaque não devia mencionar a mãe), mas ele não respondeu. Pergunteise o colega dele regressara, depois da baixa por doença.

— Está tudo bem?Parámos. Percebi que ele queria dizer alguma coisa.— Diz.— Há alguns dias… bem… O teu pai diz que o que estamos a

fazer…— O meu pai? — interrompi. — O que tem ele a ver seja com o

que for?Paul encolheu os ombros e continuou a andar.Apanhei-o.— O que é que se passa?Ele olhou directamente em frente.— Porque é que haveria de se passar alguma coisa?

*

No dia seguinte, pela primeira vez, o Paul não passou naBiblioteca durante as suas rondas. Desejei que não lhe tivesseacontecido nada. No trabalho, ele tinha de lidar com todo o tipo de

pessoas. Já interrompera mais do que uma zaragata entre bêbados,e por vezes os rufias do mercado negro espancavam polícias quetentavam confiscar os seus ganhos ilícitos.

Pela segunda tarde seguida, o Paul não apareceu. À hora dofecho, enfiei os romances para a professora Cohen na sacola. Aosubir as escadas em caracol, esperei ouvir a sua máquina deescrever, mas havia apenas um silêncio sinistro. Bati à porta.

— Professora?Nada.Encostei o ouvido à porta. Silêncio.Bati com mais força.— Professora? É a Odile.Onde poderia estar àquela hora da noite? Teria ido visitar alguém,

ou ter-lhe-ia acontecido alguma coisa? Talvez tivesse ido ter com asobrinha, na província. Mas ela não mencionara quaisquer planosde viagem. Talvez estivesse doente, embora, apesar das privações,sempre tivesse continuado de boa saúde. Bati de novo, depoisesperei mais vinte minutos antes de voltar para casa.

No trabalho, na manhã seguinte, disse ao Boris:— Pela primeira vez, a professora não foi à porta. Não soube o

que fazer. Será melhor chamar alguém? Volto lá hoje?Esperei que me dissesse que me estava a preocupar sem razão,

mas ele disse:— Vamos lá agora.A caminho, confidenciou-me que três sócios judeus a quem

entregava livros tinham desaparecido. Não sabíamos o que pensardisto. Teriam fugido de Paris e da ameaçadora presença dos nazis,ou ter-lhes-ia acontecido alguma coisa?

Quando chegámos, o Boris bateu; eu chamei:— Professora! É a Odile.Mas não houve resposta.

Quando o Paul não apareceu durante mais uma semana, fiqueidevastada. A tia Caroline tinha perdido o tio Lionel; a Margaretperdera Lawrence. Talvez o Paul tivesse perdido o interesse emmim. Desde que a minha família soube do meu irmão, deixei de serboa companhia. Estava chorosa e tinha dificuldade em concentrar-me no que as pessoas me diziam. Talvez o Paul estivesse comoutra pessoa. Paris estava a transbordar de mulheres carentes.Lembrava-me de quando tínhamos passado por cafés cheios deSoldaten e as suas raparigas, a maneira como ele olhara para asprostitutas de grandes decotes.

Ao entardecer, quando saí da Biblioteca, o Paul estava à minhaespera. Aliviada, precipitei-me para o abraçar, mas ele manteve-meà distância de um braço.

— O que se passa? — perguntei.Ele não me olhou nos olhos.— Não fiques zangada.Eu sabia. Ia partir-me o coração.— Desculpa não ter vindo mais vezes, em especial depois de

teres sabido do Rémy. É só trabalho. Tem sido horrível.O quê? Isto tudo não era por causa de uma flausina, era por

causa do trabalho? Senti-me horrivelmente por ter duvidado dele.— Estou feliz por teres vindo. — Tentei acariciar-lhe o cabelo, mas

ele desviou a cabeça.

— Prendi uma pessoa que conhecemos. A professora Cohen.Aquilo era absurdo.— Deve haver algum engano. — Cohen era um nome bastante

comum.Ele retirou um livro da mala. Bom-Dia, Meia-Noite. O último

romance que lhe entregara. Tirei-lho das mãos.— Quando?— Há várias semanas. Quis dizer-te…— Porque é que não me disseste? — Era por isso que a

professora não estava em casa. Não, não podia ser. Comecei aandar na direcção do apartamento dela.

Ele seguiu-me.— Deixa-me ir contigo.— Não.— Desculpa não te ter contado — disse ele, puxando-me o braço.Libertei-me e desatei a correr. As solas de madeira dos meus

sapatos atingiam o passeio e faziam eco. Passei pelo talhoentaipado, a chocolaterie sem chocolate, a boulangerie onde donasde casa tentavam comprar pão, a brasserie onde os bochesbrindavam com a sua bier.

Subi as escadas de caracol duas a duas e martelei na porta.Alguém se moveu do outro lado, provavelmente a professora apreparar um bule de chá. Ela tinha saído, mais nada. Agora jáestava em casa. Ouvi o ranger do soalho, o girar da chave nafechadura. Ela está bem. Foi só um mal-entendido. Encostei-me àporta e tentei recuperar o fôlego.

A porta abriu-se. Uma loura com um elegante vestido azulperguntou:

— Sim?Endireitei-me.— Vim ver a professora Cohen.— Quem?— Irène Cohen. — Espreitando por cima do ombro da mulher, vi o

grande relógio de pé, os ponteiros parados nas 3:17. A jarra decristal estava cheia de rosas. As prateleiras ostentavam agora umacolecção de canecas de cerveja.

— Tem a morada errada.— Esta é a morada certa — insisti.— Ela já não vive aqui. Este apartamento agora é meu.— Sabe para onde é que ela foi?A mulher bateu com a porta.Quem era aquela? Porque estava na casa da professora, entre as

suas coisas? Porque estava a dizer que o apartamento era dela?Precisando de respostas, dirigi-me para a porta do Paul, no hostel.

Ele fez-me sinal para entrar, mas fiquei no corredor.— Porque é que prendeste a professora Cohen?— O nome dela estava na lista de judeus.— A lista? Há uma lista?Ele anuiu.— Prendeste outros?— Sim.Pensei no primeiro apartamento abandonado onde o Paul e eu

nos tínhamos encontrado. Embora tivesse perguntado de quem era,nunca me interessara verdadeiramente. Agora percebia a quempertenciam os apartamentos, por que tinham os seus tesouros sidodeixados para trás. Cobri a boca de horror quando me lembrei de

como o Paul e eu nos tínhamos divertido nas casas das pessoas,como nos tínhamos deliciado entre os seus lençóis.

— Perdoa-me por não te ter dito antes — disse ele. — Nuncamais te escondo nada.

Olhei para ele, sem saber o que dizer.— Como é que a posso encontrar?— Sou um peão na hierarquia. Sabes a quem tens de perguntar.Saí sem uma palavra. A tola bibliotecária da referência. O meu

trabalho era encontrar factos; em vez disso, virara as costas àverdade. Devia ter feito perguntas, em vez de enterrar a cabeça nasalmofadas de desconhecidos.

Em casa, percebi que o Paul tinha razão — o meu pai era apessoa com quem tinha de falar. Quando lhe explicasse tudo, elegarantiria que a professora era libertada, talvez no decurso de umahora. A mesa já estava posta. A maman serviu a sopa nas tigelas.Umas massas cinzentas a nadar em água.

— O que eu não daria por um alho-francês — queixou-se.O papa sorveu a colher.— Fazes tanto com tão pouco.— Merci. — Para variar, ela permitiu-se aceitar um pequeno

elogio.— Papa, uma das minhas amigas foi presa.A colher dele imobilizou-se. Os seus olhos desviaram-se

nervosamente para a maman.— Quem é, querida? — perguntou ela.— A professora. Já vos falei dela… foi quem me ajudou a

conseguir o emprego na Biblioteca. O Paul disse que a prendeu.Toda a tremer, a maman olhou para o papa.

— Porque é que haveriam de prender a pobre mulher? Oh, estaguerra.

— Pronto, já incomodaste a tua mãe — disse-me ele.Percebi que ele não ia dizer muito mais.

Depois do pequeno-almoço, dirigi-me ao commissariat do papa, acompor argumentos na minha cabeça. Nunca lhe pedi nada. Não vaipelo menos tentar? Passei pelo guarda ensonado e apressei-mepelo corredor até ao seu gabinete. Era cedo; a secretária não estavaali para o proteger. Abri a porta.

Ele ergueu-se da secretária.— A maman está bem?— Está.— O que fazes aqui?Sem saber muito bem o que dizer, olhei em volta. Havia dezenas

de envelopes empilhados em volta do perímetro. No chão ao ladoda secretária, cartas espalhadas, como que varridas por um punhofurioso.

Apanhei algumas.

Roger-Charles Meyer é um puro judeu, bem, tão puro quanto essa raça pode ser, enão vou esconder o facto de que ficaria encantado se ele fosse levado… Ésimplesmente o que esse indivíduo merece. Ficaria muito grato se pudesse facilitar asua queda.

Passei para a seguinte.

Não me vai dizer que gosta desses sujos judeus. Estamos mais do que fartos.Enquanto os nossos entes queridos estão a ser mortos ou feitos prisioneiros, os

judeus continuam com os seus negócios. Nós, pobres imbecis franceses, estamos amorrer de fome. E não basta morrer de fome. Quando há mantimentos, vão todos paraos judeus.

E a outra.

Senhor,Escrevo para o informar de um caso de que deve ter conhecimento. Na rue Du

Couédic 49, um certo Maurice Reichmann, um comunista de origem judaica, está aviver com uma francesa. Muitas vezes testemunhamos cenas terríveis à sua porta.Penso que se dignará a fazer o que tem de ser feito, e os negociantes da rua dizemantecipadamente Merci.

A última listava nomes com as correspondentes moradas e ostítulos profissionais, notando no final: 74 gros juifs. Setenta e quatrojudeus importantes.

— Não compreendo. — Atirei as cartas para o lixo.— Denúncias — disse o papa com relutância. — Chamamos-lhes

«cartas dos corvos».— «Cartas dos corvos»?— De pessoas de coração negro que espiam os vizinhos, colegas

e amigos. Até membros da própria família.— São todas como aquelas? — perguntei.— Algumas vêm assinadas, mas na maior parte das vezes são

anónimas e falam de vendedores do mercado negro, résistants,judeus, pessoas que ouvem a rádio inglesa ou dizem mal dosalemães.

— Há quanto tempo é que isto dura?— Desde 1941, quando o marechal Pétain foi à rádio dizer que

esconder informação é um crime. Estes «corvos» convenceram-se

de que estão a fazer o seu dever patriótico. E o meu trabalho éconfirmar a veracidade de cada carta.

— Mas, papa…— Foi-me deixado bem claro que, se eu achar o trabalho

detestável, há dezenas de homens na fila para o meu lugar.— Não está certo.— Deixar-te morrer de fome também não.Eu assumira que ele passava os dias a ajudar pessoas…— Isto… é por mim?— Tudo o que eu e a maman fizemos nas últimas duas décadas

foi por ti e o teu irmão! O explicador de Latim do Rémy. As tuasaulas de Inglês. E aquele enxoval. A maman ficou quase cega abordar. Quando casares, vais ter coisas suficientes para encher umaloja.

— Mas eu nunca pedi nada.— Não tinhas de o fazer.A compreensão atingiu-me como um cassetete. Toda a minha

vida, eu fora orgulhosa. Nunca hesitara em rebelar-me contra opapa e em pensar por mim mesma. Vi o que aconteceu à tia Caro etrabalhei muito pela minha própria independência. Agoracompreendia com inquietante clareza que, embora nunca tenhapedido nada, nunca precisei de o fazer — os meus pais tinhamestendido as roupas, as oportunidades e até os pretendentes naminha frente como um tapete vermelho. Estava atónita. O Paul nãoera quem eu pensava. O papa não era quem eu pensava. Eu nãoera quem pensava.

O meu pai pescou as cartas do caixote do lixo.— Vou fazer o meu dever e investigar todas elas.

— Dever?— O meu trabalho é fazer cumprir a lei.— Mas e se a lei estiver errada? E que será dos homens e

mulheres inocentes prejudicados por essas acusações? — Ouvi aminha voz quebrar, como acontecia sempre que discutia com o meupai. Lembrei-me de que estava ali por uma razão. — Papa, porfavor, podemos falar da professora Cohen?

— Todos os dias, dezenas de pessoas pedem a minha ajuda paraprocurar membros da família. Não as posso ajudar e não te possoajudar a ti! — Pegou-me no braço e obrigou-me a sair. — Já tedisse, não te quero aqui. Isto não é lugar para uma raparigarespeitável.

Lá fora, ao frio, enrolei-me no meu xaile. Como posso ajudar aprofessora, perguntei ao Rémy.

Informa a condessa, ouvi-o dizer. Ele estava certo. Ela tinhamuitos contactos privilegiados. De certeza que podia ajudar. Corripara o seu gabinete.

À secretária, ela tinha os olhos fixos na chávena de chá e a bocamostrava uma expressão triste.

— Já disse aos outros e agora tenho de lhe dizer a si — explicou,trémula. — A nossa amiga Irène Cohen ia ser deportada.

Não era demasiado tarde. A condessa e o Dr. Fuchs podiamsalvar-lhe a vida, como tinham salvado a do Boris.

— Ela estava em Drancy.Um centro de detenção a norte de Paris. Espera. Estava?— As condições ali eram deploráveis. Mal podia acreditar nos

meus ouvidos quando o meu marido as descreveu. Tentámosintervir, mas infelizmente…

Não. A professora Cohen não. O chão debaixo dos meus pésoscilou, e estendi uma mão para me apoiar à parede, sentindo que,se não me agarrasse, tudo se iria desintegrar.

— Ela tentou passar-me uma mensagem — disse-lhe. — O meupai… as cartas… A culpa é minha.

— Não se pode culpar — disse a condessa. — Soubemos que ofilho e a nora de Mme. Simon se mudaram para o apartamento daprofessora. Não é preciso ser-se o Sherlock Holmes para perceber oque aconteceu. Parece que a Madame e o filho andavam emcomunicação com vários commissariats e até com a Gestapo.

A chata com os dentes de lápide tinha escrito cartas de corvo?Víamo-la todos os dias e só agora descobríamos quem ela eraverdadeiramente?

— Espero bem que nunca mais cá volte!— Não vai voltar, acredite. Mas ainda não terminei. A Irène

desapareceu. O meu marido acredita que ela tenha conseguidoarranjar forma de sair do centro de detenção.

A professora sobrevivera ao penoso treino de uma prima ballerinae ao quase impossível curso na Sorbonne. Foi ali professora, contratodas as expectativas, e sobreviveu a três maridos. Se alguémconseguia escapar à prisão, seria ela. Não podia regressar ao seuapartamento, mas podia ficar com amigos na província… Euprecisava de acreditar que ela estava bem, precisava que elativesse um final feliz. Pensei numa frase de Bom-Dia, Meia-Noite:Quero um longo e calmo livro sobre pessoas de grandesrendimentos — um livro como um prado verde e as ovelhas que alipastam… Leio a maior parte do tempo e sou feliz.

CAPÍTULO 37

Odile

Sentada à secretária, de caneta na mão, não conseguia parar depensar nas cartas dos corvos. Era verdade que os parisiensesligavam muito às aparências, à forma como amigos edesconhecidos se vestiam. Admirávamos um cachecol usado daforma certa, a jovial inclinação de um chapéu, mas agora essaapreciação transformara-se em crítica, em inveja. Quem julga elaque é, a exibir aquelas peles? Porque é que ele tem sapatos novos?O que fez a Margaret para conseguir aquela pulseira de ouro?

Perguntei-me quem escreveria aquelas cartas. Olhei para ohomem com o fato comido pelas traças. Escreveste alguma? O meuolhar desviou-se para a mulher de boina azul. Ou foste tu? Toda agente parecia normal. Ou o que se tornara normal — faminto eabatido.

Boris veio lembrar-me de que tinha de sair mais cedo para ir aomédico.

— Pareces distraída.— Só abatida — respondi.Aquelas cartas. Tinha de haver alguma maneira de salvar outras

pessoas do destino da professora Cohen. No balcão do

atendimento, enquanto a Margaret e eu carimbávamos livros paraos leitores, percebi que, se não houvesse cartas de corvos, nãohaveria detenções.

Puxei o colarinho da blusa. Como podia estar tanto calor emNovembro?

— Estás corada — brincou ela. — A pensar no Paul?Não reparei no tom ligeiro e abanei a cabeça.— Onde é que ele anda, a propósito? Não passa por cá há

séculos.— Preciso de sair — disse. — É só por uma hora. Cuidas das

coisas por aqui?— Mas eu sou só uma voluntária.— Faz-te de mandona como o Boris. Vai correr tudo bem.— Mas porque é que tens de ir? Sentes-te mal?— Sim — respondi distraidamente. — Estou só enjoada.Enquanto seguia a passo apressado pelo boulevard, pensei em

explicações a dar no caso de a secretária do papa estar de guarda:«Estava aqui por perto.» Para o caso de ele estar a trabalhar: «Amaman perguntou se vais chegar a casa a horas para o jantar.»Tinha esperança de que não estivesse lá ninguém, de conseguirentrar e sair e voltar ao trabalho antes de alguém excepto aMargaret saber que eu tinha desaparecido.

Na frente do commissariat, hesitei. Tinha medo de ser apanhada.Quando o papa estava zangado, a sua fúria torrencial eraassustadora. Ainda assim, tinha mais medo da pessoa em que metornaria se não fizesse alguma coisa. Pensei naquelas cartas, emtodas as que chegavam a cada dia, e entrei. Evitando os homensfardados por ali, mantive-me por perto da parede.

A secretária do papa não se encontrava à vista e a porta dogabinete não estava trancada. Contemplei os montes de cartassobre a secretária, o armário, o peitoril, antes de enfiar uma mãocheia na minha sacola. Apertando o fecho, espreitei para fora. Oshomens andavam para cima e para baixo pelo corredor. Agarrada àsacola, avancei.

— Tu aí, pára! — gritou um guarda.Mantive a cabeça erguida e continuei a andar.— Alto!Estava prestes a desatar a correr quando dedos gordurosos me

agarraram pela nuca.— Qual é a pressa? — perguntou o polícia, uma mão em mim, a

outra na arma dentro do coldre.Concentrara-me tanto no papa que não ponderara que podia

haver perigo da parte de outra pessoa qualquer. Estava tãoassustada que não conseguia falar.

Homens saíram dos seus gabinetes. Alguns pareciam severos,outros apreensivos. Um comandante de cabelos brancos perguntou:

— O que se passa?— Encontrei esta a andar por aqui à socapa, senhor.O comandante franziu o sobrolho.— O que pensa que está a fazer, mademoiselle?Não respondi. Não conseguia.— Mostre-me a sua identificação — ordenou o guarda.Tinha a carte d’identité na sacola. Se a abrisse, iam ver as cartas.O guarda agarrou a mala e, instintivamente, como se ele fosse um

bandido no métro, arranquei-lha da mão.Finalmente, recuperei a voz.

— Vinha tentar falar com o meu papa, mas ele não está. —Apontei para o escritório dele.

A expressão do comandante suavizou-se.— Deve ser a Odile. O seu pai tem razão, é a rapariga mais

bonita de Paris. Desculpe ter sido brusco. Duplicámos a segurançapor causa dos sabotadores.

— Sabotadores? — repeti debilmente. Era isso que eu era? Ossabotadores recebiam sentenças de morte. Na Biblioteca, tínhamossabido recentemente que um sócio fora condenado a trabalhosforçados por imprimir tratados para a Resistência.

— Não precisa de se assustar — disse ele. — Nós mantemos oseu pai em segurança.

Tentei dizer «obrigada», mas a minha boca apenas tremeu.— É uma menina tímida, não é? Não preocupe essa cabecinha

bonita. Corra para casa.Agarrada à sacola, voltei rapidamente para a Biblioteca.— Então? — perguntou a Margaret, seguindo-me para junto da

lareira. — O que era assim tão importante?Atirei as cartas para o lume e fiquei a vê-las arder.— Surgiu uma coisa importante.— Tens noção do risco que correste?Teria ela descoberto o que eu acabara de fazer?— O… o que queres dizer com isso?— Deixar a Biblioteca abandonada é completamente

irresponsável! A condessa está exausta… sabias que ela está tãodecidida a proteger este lugar que passa a noite no escritório? ABitsi é praticamente muda, a não ser que estejas aqui. O Boris nãodevia estar a trabalhar. Estamos a contar contigo.

Parado no pátio, o Paul olhou para mim pela janela, o rosto cheiode mágoa. Abanei a cabeça. Foi-se embora. De vez em quando, eletentava de novo. Seguia-me por entre as estantes, nas ruas, sob acinzenta chuva de Inverno. Estava comigo mesmo quando nãoestava. Fiquei zangada com ele por não me ter dito de imediato oque se passara com a professora. Zangada comigo mesma pelaminha cegueira. Zangada porque, apesar de tudo, tinha saudadesdele.

Segui o caminho de seixos por entre a névoa matinal e estavaquase a chegar à Biblioteca quando ele me apanhou.

— Consegues perdoar-me? — perguntou.— A professora foi enviada para Drancy, sabes.— Não sabia.— Ninguém sabe o que lhe aconteceu.De cabeça baixa, ele foi-se embora. Senti os meus ombros

encurvarem-se. Olhar para ele lembrou-me de como fechara de bomgrado os olhos e me divertira nas casas dos desaparecidos.

*

Todos os dias, à hora do almoço, corria para o commissariat,passava pelo beligerante guarda, entrava no gabinete do papa eenfiava cartas na sacola. De volta à Biblioteca, queimava-as. Àmedida que as semanas passavam, fui ganhando confiança. Em vezde cinco, levava uma dúzia. Centenas delas ficavam, e chegavammais todos os dias. Embora desejasse destruí-las a todas, sabia queisso só provocaria um escrutínio.

No entanto, temia ser apanhada. Quando regressava ao trabalho,

estava sempre a olhar para trás. Em casa, desenvolvi um tique.Antes da missa de domingo, estava a atar o lenço no hall deentrada. O papa parou para endireitar a gravata. Os nossos olhosencontraram-se no espelho.

— Ça va? — perguntou ele gentilmente.Acenei com a cabeça.— Desculpa não poder…— Não poder o quê? — perguntei bruscamente.O papa desviou o olhar.Quando ele foi buscar o casaco, a maman disse:— Não tens estado em ti, estas últimas semanas. O que se

passa?— Nada.— Andas mesmo… evasiva. Porque é que o Paul nunca mais cá

veio?— Se não sairmos já, vamos chegar atrasados.Ela levou a mão à minha testa.— Deves andar a chocar alguma coisa. Ou estás… — Lançou um

olhar horrorizado à minha barriga.Afogueada, respondi:— Não é o que estás a pensar.— Fica em casa. Descansa.Quando eles saíram, escrevi no meu diário: Querido Rémy, tenho

sido egoísta e cega. Falhei com a professora, mas estou a tentarcorrigir as coisas.

A campainha tocou e fui atender, assumindo que a maman seesquecera da carteira.

— Não devia ter vindo — disse o Paul. — Mas podem encontrar-

me em casa.Tinha sangue seco a coagular em volta das narinas.— O que raio? — Fiz-lhe sinal para entrar.Ele não se moveu.—Não quero que os teus pais me vejam assim.— Eles estão na igreja. Então, o que aconteceu? — perguntei

enquanto o fazia sentar.— Um daqueles filhos da mãe nazis andava a cambalear pela rua,

podre de bêbado. Agarrei-o por trás e comecei a bater-lhe. Queriafazê-lo pagar por ter posto aqui os pés. Ele defendeu-se, mas parti-lhe o nariz, de certeza. Talvez lhe tenha partido umas costelas.Depois fugi. Não me arrependo do que fiz, mas, hoje em dia, nuncase sabe quem está a ver.

— Agora estás a salvo. — Limpei-lhe o rosto com o meu lenço.Tinha saudades de lhe tocar, saudades do seu toque. Estavacontente por ele ter vindo, embora desejasse podermos voltar atrás,àquele dia na Gare du Nord, a um tempo em que sentia uma únicacoisa por ele: amor absoluto.

— Antes, a maior detenção que tinha feito foi por condutadesordeira. Quando eu… Bem, nunca pensei que iam prender umasenhora idosa como ela.

— Não podias ter adivinhado. — Lembrei-me dos livros que lhedevia ter entregado. — Todos temos os nossos arrependimentos.

— Amo-te — disse ele. — Diz que me vais perdoar.

CAPÍTULO 38

Odile

No gabinete da condessa, olhei para o colchão improvisado ondeela dormia todas as noites para olhar pela Biblioteca — tinha 70anos, mas estava pronta para confrontar soldados nazis. Algunslivros aguardavam ao lado da sua almofada. Baixei-me para ver ostítulos, mas a Bitsi puxou-me a manga e levou-me para junto dosoutros, que se tinham reunido à volta da secretária. Reuniões queanteriormente enchiam a sala de pessoal eram agora reduzidas àsecretária, o zelador, Bitsi, Boris, Margaret, eu e Clara deChambrun.

— Mr. Pryce-Jones foi preso — começou a condessa — e enviadopara um campo de internamento.

Não! Mais um amigo perdido, preso por ser um «estrangeiroinimigo».

— Monsieur de Nerciat tem estado a lutar pela sua libertação —continuou ela.

— Tenho lido relatos perturbadores — disse o Boris. — Não estãoa mandar as pessoas para campos de internamento, mas paracampos de morte.

— Propaganda — disse ela terminantemente. — Pense nos

boatos que temos ouvido.— Foi denunciado? — perguntou a Bitsi.— É provável.Esta guerra estava a levar toda a gente que eu amava. Tudo — o

meu país, a minha cidade, os meus amigos — estava a ser pilhadoe traído, e eu ia pôr um ponto final naquilo da única maneira quesabia. Precisava de destruir aquelas cartas. Já não me interessavasaber se teria problemas. Uma coisa era certa. Algo tinha de arder.Saí a correr da Biblioteca, com o Boris e a Bitsi a gritarem atrás demim.

— Volta aqui!— Estás em choque.No commissariat, corri para o gabinete do meu pai, fechando a

porta atrás de mim. Agarrei numa carta e rasguei-a em dois, depoisnoutra, depois mais uma. O som do papel a ser rasgado nunca mesoara tão satisfatório. Percebendo que o papa podia entrar aqualquer momento, enfiei um punhado de cartas na sacola,amarrotando-as em feias bolas.

A maçaneta girou e a porta abriu-se. Recuei da secretária,enquanto fechava a mala o mais depressa possível.

— Minha extremosa filha — disse o papa secamente. — A fazeruma visita?

Não sabia como me comportar.Ofendida? Desconfia da própria filha?Despreocupada? Estou aqui. Grande coisa.Honesta? Sim, sou uma ladra.— Temos recebido cartas a perguntar por que razão a polícia não

deu seguimento a informação de «correspondência» anterior. Era

estranho, já que investigamos cada acusação. Eu não percebia. —Olhou vincadamente para as cartas que eu tinha rasgado. — Agorapercebo.

A minha mão comprimiu-se na sacola.— Não tens nada a dizer em tua defesa? — perguntou.Abanei a cabeça.— Eu podia ser preso. Eles condenam à morte os traidores.— Mas de certeza que não o iam culpar.— Meu Deus, como podes ser tão ingénua? — Pousou as palmas

das mãos sobre a secretária e baixou a cabeça, quase numaposição de derrota.

— Mas, papa…— Se fosses qualquer outra pessoa, prendia-te. Vai para casa. E

nunca mais voltes.Saí apenas com uma mão cheia de cartas. A coisa mais

importante que podia fazer, e tinha falhado.

CAPÍTULO 39

Lily

FROID, MONTANA, AGOSTO DE 1987

Encurralada no quarto de vestir, entre camisolas e segredos, fiqueia olhar para Odile, que ainda tinha a sua carteira na mão, elegantecomo sempre. As cartas jaziam no chão entre nós. Porque não andaà procura de judeus não declarados na clandestinidade? As minhasindicações são certas, agora é consigo.

— Quem é a senhora? — perguntei.A boca de Odile abriu-se, depois fechou-se e tornou-se uma linha

apertada. O seu queixo ergueu-se e, tal como eu a olhava demaneira diferente, ela olhava para mim de maneira diferente. Comreserva e grande mágoa. Quando não me disse nada, apanhei ascartas e enfiei-lhas na cara. Ela não se moveu.

— Porque tem isto consigo? — exigi saber.— Não as queimei, como as outras… Tencionava fazê-lo.— Pensei que era uma heroína, que escondia judeus.Ela suspirou.— Infelizmente, não. Só cartas.— De quem?

— Do meu pai.— Isso é um disparate. Ele não era polícia?Os olhos dela pareciam assombrados, como se tivesse visto um

fantasma. O silêncio enchia o quarto e a nossa amizade. Apenas seouvia o grito solitário de uma gaivota perdida, o camião do lixo aentrar na rua, o bater do meu desgraçado coração.

— No início da guerra — disse ela —, a polícia prendiacomunistas. Durante a Ocupação, reunia os judeus. As pessoasescreviam cartas a denunciar vizinhos. Algumas das cartas eramenviadas ao meu pai. Eu roubava-as para ele não conseguir caçarinocentes.

— Não as escreveu? — Logo que fiz a pergunta, soube que não.Odile olhava para as cartas a tremer na minha mão.— Não te censuro por andares a mexer nas minhas coisas, por

estares entediada e curiosa. — Os seus olhos arrefeceram até setornarem meras fendas que me fixavam como se eu não fosse nada.— Mas acreditares que eu era capaz de escrever aquelas palavras!O que foi que eu fiz para te fazer pensar que era capaz de umtamanho mal?

Olhou para a janela, e percebi que era porque não suportavaolhar para mim. Eu não tinha o direito de ir revistar o seu quarto devestir, de vasculhar o seu passado. De abordar coisas que ela tinhaenterrado por alguma razão. A guerra, o papel desempenhado peloseu pai, talvez até a razão por que saíra de França.

— Pensar que voltei para casa mais cedo porque tinha saudadestuas. — Deixou-se cair na cama. Sentou-se, não direita como naigreja, mas com as costas curvadas de mágoa.

— Vai — disse-me. — E não voltes.

— Não, por favor. — A abanar a cabeça, dirigi-me para ela. Comopodia tê-la acusado de tal coisa? Ia compensá-la. Ia tratar do seujardim, cortar-lhe a relva, remover a neve da sua porta durante oInverno todo. Ia fazê-la esquecer a minha pergunta tola e impulsiva.— Desculpe.

Odile levantou-se e saiu do quarto. Ouvi a porta da entrada abrir-se. Ela saiu.

Na sala, fechei a porta, depois arrumei-lhe os livros, esperandoque estivessem na ordem correcta. Aguardando pelo seu regresso,sentei-me no sofá, direita como ao domingo. Mal me atrevendo amover-me, esperei uma hora, depois duas. Ela não voltou.

*

O seu tom parecia terminante. Foi o que disse a Eleanor. Espereique gritasse comigo, mas ela disse:

— Claro que está zangada. Já estás a ver porque é que eu e oteu pai te dizemos para não seres bisbilhoteira.

O que eu tinha feito era pior do que bisbilhotar, mas estavademasiado envergonhada para admitir o meu verdadeiro crime.

No dia seguinte, bati à porta de Odile, mas ela não abriu. Nessanoite, escrevi uma carta a pedir desculpas e pu-la na sua caixa decorreio. Quando saí para a escola de manhã, encontrei-a por abrirno nosso tapete da entrada. Na missa, enquanto algumas pessoasrezavam para obliterarmos os russos antes que eles nosobliterassem a nós, pus-me de joelhos e roguei pelo perdão deOdile. A seguir, vi-a a tagarelar com o padre Maloney no vestíbulo.Parecia reluzir ao falar sobre Chicago. Quando me aproximei, ela

pediu licença e dirigiu-se para casa em vez de ir ao salão. Nasemana seguinte, sentei-me no banco dela, esperando infantilmenteque depois do «Padre Nosso», quando os paroquianos apertavamas mãos e diziam «Paz de Cristo», ela ao menos olhasse para mim.Mas Odile deixou de ir à missa.

No salão, as senhoras reuniram-se atrás do buffet a servir sumo edonuts. Odile já tinha faltado a um mês de missas.

— Alguém tem visto Mrs. Gustafson? — murmurou Mrs. Ivers.— Tentei ver como ela estava — replicou a velha Mrs. Murdoch.

— Ouvia-a a andar lá dentro, mas ela não foi à porta.— Como antes.— Quem me dera ter sido mais simpática.— Também eu.— Deve ter acontecido alguma coisa terrível. Nem quando o filho

morreu ela faltou à missa.

*

Eleanor decidiu que o tratamento silencioso já durava há temposuficiente e marchou para a casa de Odile.

— A Lily sabe que se portou mal — defendeu-me do alpendre. —É uma miúda e cometeu um erro. Uma miúda que a adora e temsaudades suas.

Odile deixou que a Eleanor dissesse a sua tirada, depois fechougentilmente a porta.

A precisar de intervenção divina, levei o Joe à igreja e acenditodas as velas que consegui.

— Vamos rejar — disse ele.

Dei a Deus dois dias. Quando ele não respondeu, tentei umaabordagem mais directa. Na sacristia, o padre convidou-me a entrarna cozinha. Sem a batina, parecia um avô qualquer. Passou-me umprato de Oreos, mas, para variar, eu não tinha fome. Pensando quemeias-verdades era melhor do que nenhuma verdade, construí umahistória, tendo o cuidado de não dizer nada sobre as minhasacusações.

— É só isso? — perguntou o Colarinho-de-Ferro cepticamente.Durante tanto tempo, quisera ter um segredo guardado no

coração. Alguma coisa que apenas eu soubesse. Agora tinha umsegredo, mas não era excitante, era patético.

— Ela apanhou-me a bisbilhotar. É muito grave.— Suficientemente grave para deixar de vir à igreja?— Porque é que não me deixa pedir desculpa?— Por vezes, quando as pessoas passaram por tempos difíceis,

ou foram traídas, a única forma de sobreviverem é afastando-se depessoas que as magoaram.

No sábado à tarde, o carro do Colarinho-de-Ferro encostou aopasseio. Abri a janela e baixei-me para ninguém me ver a espiar. Elee Odile falaram amigavelmente no seu alpendre sobre a angariaçãode fundos. Assim que o padre mencionou o meu nome, ela voltoupara dentro de casa.

*

A vida continuou sem Odile. Comecei o décimo primeiro ano semas nossas lições de Francês. Não sofria uma perda tão grandedesde que a minha mãe morrera. Mas a mãe não fora uma escolha.

A Odile escolhera ficar afastada. Ao voltar da escola, passei pelacasa dela. As cortinas estavam corridas. Sabia que, se fosse àporta, estaria trancada.

À hora do almoço, a Mary Louise e o Keith estavam a namorardebaixo das bancadas, o que me deixou sozinha na cafetaria. ATiffany Ivers passou por mim.

— Aposto que a tua madrasta mal pode esperar que acabes aescola e lhe desampares a loja.

A Tiffany implicava com o John Brady porque o pai era o porteiro;conseguira que toda a gente chamasse «Pizza Pepperoni» a MaryMatthews por causa do seu acne. Eu era a única miúda na escolacom uma madrasta. O divórcio era problema de cidade grande, e amorte de uma mãe tão jovem era, felizmente, coisa rara. Eu nãoquereria que ninguém passasse pelo que eu tinha passado.

— Sabes como se diz «madrasta» em francês? — perguntei.Ela ficou a olhar para mim, os olhos mortiços meio ocultos pela

franja enrolada. Porque é que passei anos a comparar a minha sortecom a dela, o meu aspecto com o dela? Lembrei-me da camisolaque a minha mãe tricotara, como eu me preocupara mais com aopinião da Tiffany Ivers do que com os sentimentos da minha mãe.

— Belle mère — continuei. — Significa linda mãe.— Achas que isso é francês? Parece que tens é algum problema

na fala.Alguns anos antes, aquilo ter-me-ia feito chorar. Agora sabia que

as pessoas que diziam coisas cruéis deviam ser cortadas da nossa

vida. Fui-me embora. Longe dos seus comentários maldosos, dasua mente tacanha, sentia-me mais forte.

Até no seu silêncio, Odile continuava a ensinar-me.

Às 7:33 de sábado, acordei com o guincho do Scooby-Doo.— Há quem esteja a tentar dormir — gritei para o corredor.— Oki-doki — gritou o Joe em resposta, e baixou uma fracção do

volume.Joe e Benjy, Benjy e Joe. Eu adorava-os, mas davam comigo em

louca. Sempre que me sentava, o Benjy agarrava-me pela cintura eiçava-se para o meu colo. Se a nossa casa tinha um refrão, era:«Joe, querido, podes tirar o dedo do nariz? Joe, tira esse dedo donariz imediatamente! Tira o dedo! Já!» Céus, como tinha saudadesde Odile. Não havia um momento em que não estivesse conscientedo que tinha perdido, do que tinha desperdiçado por ser impulsiva eegoísta.

Eleanor espreitou para dentro do meu quarto.— Porque é que não vamos as duas dar uma volta de carro? —

disse ela. — Vamos dar uso a essa licença de aprendizagem.— E os meninos? — Nunca íamos a lado nenhum sem eles.

Nunca íamos a lado nenhum, ponto.— Não faz mal nenhum ao teu pai tomar conta deles. Hoje vai ser

um dia de raparigas. Vamos a Good Hope.Adorei a sensação do volante nas minhas mãos, o zumbido do

motor quando carreguei no acelerador, as longas extensões depastagens, as vacas que nos olhavam ao passar. Adorei quandonos aproximámos da cidade e já havia mais do que uma estação de

rádio. Adorei estar longe da escola, dos rapazes, de ter magoadoOdile.

Good Hope tinha trinta mil habitantes. Mesmo antes dechegarmos aos limites da cidade, encostei à berma para a Eleanorpoder conduzir. Passámos uma Dairy Queen e um Best Western,cadeias que existiam no resto do mundo. Froid tinha sinais de Stoponde nunca ninguém parava; em Good Hope havia verdadeirossemáforos. Os passeios tinham o dobro da largura dos nossos, eera preciso pagar para estacionar. Parámos mesmo na frente domaior armazém no Montana, The Bon. Que é «bom» em francês.Cinco andares de tijolo amarelo que cintilava ao sol. Até as portaseram imponentes, de bronze e vidro sem uma única mancha. Ládentro, fomos recebidas pelo odor a Wind Song. Ilhas de cosméticoschamavam por nós. Eleanor guiou-me para o balcão da Clinique,onde a vendedora usava uma longa bata branca, como uma médica,como alguém em quem podíamos confiar. Riscou vários tons debatom no seu pulso. Pareciam fitas de seda. Considerámo-las astrês com cuidado, como se estivéssemos a seleccionar as cortinaspara a mansão do governador.

Decidimo-nos pelo Perfect Peach, e a Eleanor pegou no livro decheques.

— Não vais comprar nada? — perguntei.— Acho que não.— Mereces alguma coisa bonita.— Veremos. — Ela estava embaraçada, mas eu não compreendia

porquê. Era uma senhora casada. O dinheiro também era dela. Nãoera?

Fiz finca-pé.

— Fizemos esta viagem toda.Eleanor deixou-se convencer. Comprou um tubo prateado de Pale

Poppies. E parecia radiante.No Mezzanine Bistro, com vista para o piso térreo, escolhemos

uma mesa perto do parapeito vidrado, para podermos observar aspessoas como se estivéssemos num café parisiense. Depois depedirmos, vi uma elegante vendedora a puxar as meias para cimaquando julgava que ninguém estava a olhar.

Quando o empregado trouxe as sanduíches, uma club para aEleanor e uma French Dip para mim, ela perguntou:

— Estás a ter um dia bom?— Mais oui — respondi, enquanto mergulhava a minha sanduíche

no jus.Depois do almoço, Ellie e eu fomos lavar as mãos à casa de

banho. Na frente do espelho, penteámo-nos e retocámos o batom.Nunca me tinha sentido tão próxima dela. Se fôssemos francesas,este seria o momento em que eu passava do formal vous para oinformal tu.

Voltámos para a carrinha e ela sentou-se no lugar do condutorpara a saída da cidade. A música rock na rádio desintegrou-se eEllie rolou o botão para a nossa estação de country local. A torre deágua de Froid, «castelo de água» en français, surgiu no horizon.

Quando entrámos na nossa rua, vimos o camião-tanque dosbombeiros. Era difícil ter a certeza, a cinco blocos de distância, masparecia estar estacionado na frente da nossa casa.

— Os meninos! — arfei. Ellie acelerou. No único dia em que nãoestávamos… Teria Joe encontrado os fósforos na gaveta? Por favor,que eles estejam bem, rezei.

O camião estava na casa de Odile. Farrapos de fumo saíam dasua janela. Um bombeiro recolhia uma mangueira vazia da casa.Ellie puxou o travão e saltámos do carro. Havia vizinhosaglomerados no passeio, onde encontrámos Odile sentada naberma. Mrs. Ivers envolveu-lhe os ombros com uma manta, mas elanão pareceu reparar.

— O que aconteceu? — perguntou Ellie ao comandante dosbombeiros.

— Incêndio na cozinha — explicou ele. — Qualquer coisa deixadano forno.

— Os biscoitos da professora Cohen — disse Odile. — Pensocada vez mais nela. A culpa foi minha.

— Estas coisas acontecem — consolou-a Ellie. Agachámo-nos arodear Odile.

— A culpa foi minha — insistiu ela.— Não foi de propósito — disse eu.Odile olhou para mim. Fiquei tão feliz que nem me importei por ela

estar a fixar-me com os olhos muito abertos, como se eu fosse umadesconhecida.

— Desculpa — disse ela.Engoli em seco.— Não, eu é que… — Havia tantas coisas que queria dizer.

Adoro-a. O seu perdão significa tudo para mim. Peço muitadesculpa.

— Porque não vem para a nossa casa? — disse Ellie.Levei-a para casa, para o meu quarto, onde ela se deitou.— Quer que eu saia? — perguntei.— Senta-te. — Ela deu uma palmadinha na cama. — Quero que

saibas. Há coisas que aconteceram durante a guerra de queninguém fala, nem sequer hoje. Coisas tão vergonhosas que asenterrámos debaixo de um cemitério secreto, e depoisabandonámos para sempre as sepulturas.

Com a mão a abraçar a minha, apresentou-me o seu elenco depersonagens. A querida maman e a prática Eugénie. O tempestuosopapa. Rémy, o malicioso irmão gémeo que eu veria sempre queolhava Odile. A sua namorada, a Bitsi, corajosa bibliotecária. Paul,tão atraente, apaixonei-me por ele também. Margaret, tão divertidacomo a Mary Louise. Miss Reeder, a condessa, e Boris, o coração ea alma da Biblioteca. Pessoas que eu nunca conheceria, que nuncaesqueceria. Viviam na memória de Odile, e agora na minha.

Quando ela terminou, senti que a história era um livro que tinhalido, uma parte de mim para sempre. Quando os nazis entraram naBiblioteca, estremeci entre as estantes. Ao entregar livros àprofessora Cohen, tropecei nas pedras da rua, com medo de que osnazis soubessem da minha missão. Quando a comida começou aescassear, o meu estômago protestou e a minha fúria cresceu. Liaquelas terríveis cartas e não soube o que fazer.

— Foram corajosos — disse eu a Odile. — Manterem a Bibliotecaaberta, e permitirem que todos pudessem requisitar livros.

Ela suspirou.— Eu só fiz o mínimo.— Le minimum? O que fez foi extraordinário. Levou esperança

aos leitores. Mostrou-lhes que, na pior das alturas, as pessoascontinuavam a ser boas. Salvou livros e pessoas. Arriscou a suavida ao desafiar os malditos nazis. Isso é imenso.

— Se pudesse voltar atrás, teria feito mais.

— Salvou pessoas ao esconder aquelas cartas.— Se tivesse destruído todas as cartas dos corvos na primeira

vez que as vi, mais vidas podiam ter sido salvas. Levei demasiadotempo a compreender o que precisava de ser feito. Estava comdemasiado medo de ser apanhada.

Quis continuar a argumentar, mas os olhos dela fecharam-se.

Ao jantar, enquanto Odile dormitava, Ellie e o meu pai decidiramque ela ficaria connosco até a sua cozinha ser remodelada, e depoiscomeçaram a conversar de outras coisas. Eu não conseguia pararde pensar nas cartas dos corvos. Embora gostasse de acreditar queeu não teria mandado para a prisão pessoas inocentes, já provaraque era capaz de tirar conclusões precipitadas e atacar. Ao ver omeu pai comer o feijão que tinha no prato, reparei que o seu cabeloestava a ficar grisalho. Perguntei-me que preocupações omanteriam acordado à noite, o que estaria disposto a fazer paraproteger a sua família. Voltei a pensar na história de Odile, sentindoque havia alguma coisa que não batia certo.

Todos os verões, a avó Jo e eu passávamos tardes a beberlimonada no seu alpendre fechado. Ela era apaixonada por puzzles.Despejávamos as peças na mesa e reconstruíamos céus azuissobre castelos bávaros. Uma vez em que estávamos encalhadas nomeio de campos de trigo, aquelas fotos fragmentadas foram a minhaprimeira visão do mundo exterior. O vício dos puzzles da avó — doispor semana — tornaram-se dispendiosos, por isso a minha mãecomprava-lhe uns em segunda mão. A vantagem: eram baratos. A

desvantagem: horas gastas num puzzle para descobrir que faltavampeças, perdidas muito antes da quermesse na igreja.

Já há muito tempo que não sentia aquela frustração de um puzzleincompleto, mas reconhecia agora a mesma sensação. Faltava umelemento na história de Odile. Uma parte da estrutura, ou um doscantos. Se Odile amava Paul, porque casou com outra pessoa?

CAPÍTULO 40

Odile

PARIS, AGOSTO DE 1944

Os Aliados estão-se a aproximar. A notícia rolou pela rue deRennes, demorou-se pelas ruas laterais. Sussurrou pelos caminhosdo Père Lachaise e chegou ao Moulin Rouge. Estão-se a aproximar.A notícia trepou os degraus do metro e saltitou sobre os seixos dopátio até ao balcão de atendimento. Tínhamos ouvido dizer que osAliados tinham desembarcado nas praias da Normandia há mais dedois meses, por isso onde estariam? A imprensa — cheia depropaganda — não ajudava. Dependíamos do boca-a-boca.

— Os Aliados já devem estar mais perto — disse-me o Borisenquanto íamos despachando livros.

— Já vi alemães a enfiar as malas em veículos na frente doshotéis ocupados.

Mr. Pryce-Jones, trémulo desde o seu tempo no campo deinternamento, apoiava-se numa bengala quando transpôs a entrada.Tinha sido libertado há três semanas; Monsieur de Nerciat seguia-ode perto, com as mãos estendidas, temendo que o seu amigocaísse.

— Eu não devia estar em Paris — balbuciava Mr. Pryce-Jones —quando outros continuam presos. E tinha de usar a minha idadecomo pretexto para me fazer sair?

— Não, meu caro amigo, podia ter-lhes falado da sua debilidademental.

Escondi o sorriso por detrás de A Volta no Parafuso, 813. Haviacoisas que nunca mudavam.

— Onde estão os Aliados? — perguntou Monsieur de Nerciat.— Devem vir a caminho — disse o Boris.Mal podia esperar para contar a Margaret, que ia regressar nesse

dia após uma semana a cuidar da filha, que tivera papeira. Quandoa vi chegar depois do almoço, mal a reconheci. A aba de um novochapéu branco ocultava-lhe os olhos, e o vestido de seda a condizerera tão branco como um vestido de baptizado. É chique sermaltrapilha, lembrei-me a mim mesma enquanto passava a mãopelo meu cinto gasto.

— Aquela coisa é mais recortes do que pele — disse ela quandose juntou a mim à minha secretária. — Deixa-me oferecer-te umconjunto.

— Não — respondi, mais bruscamente do que tencionava. Toda agente sabia o que roupas como as da Margaret significavam. Paulchamava às mulheres que dormiam com Soldaten «colchõesempalhados». Mas talvez eu estivesse a ser injusta. Ela sempretivera lindas roupas. Eu própria usara muitas das suas coisas. Onovo conjunto não era necessariamente do seu amante.

— O que foi que perdi? — perguntou.— Dizem que os Aliados vão chegar em breve!Esperava que ficasse entusiasmada como todos nós, mas ela

apenas disse:— Ah.Bitsi veio cumprimentá-la, com a opala da minha avó no dedo.

Quando os meus pais conversaram sobre oferecer o legado a Bitsi,eu insisti. Queria que ela ficasse com a peça, que soubesse que aconsiderávamos da família. Até lhe mostrara o espaço que o Rémye eu considerávamos o nosso lugar secreto. Entre lençosamarrotados e bolas de cotão, deitámo-nos lado a lado, eu agarradaao soldadinho de chumbo do meu irmão, ela ao livro preferido dele,Ratos e Homens. Cresci a acreditar que o amor durava até queviesse uma amante dividir um casal, mas a Bitsi provara que nem amorte conseguia destruir o verdadeiro amor. Naquele escuro ventre,chorámos, e as nossas lágrimas ligaram-nos como irmãs mais doque qualquer casamento alguma vez o poderia fazer.

Eu tinha recebido uma carta de um dos amigos do Rémy, epassei-a a Bitsi.

Cara Odile,Chamávamos «Juiz» ao seu irmão, porque era a ele que recorríamos para resolver

as nossas disputas. Até lhe fiz um martelo com uma pedra, um ramo e um pouco defio. Aqui presos, longe de casa, estamos frustrados e zangados. Entediados efamintos. Não é preciso muito para alguém perder a cabeça. «Juiz», dizia eu, «o seutribunal está em sessão? O Louis não pára de invocar o nome do Senhor em vão. OJean-Charles passou-se e atacou o Louis.» Os nossos argumentos podem parecermesquinhos, mas o Juiz levava cada um a sério e conseguia acalmar homens quetinham chegado ao limite. Sentimos a sua falta.

Cordialmente,Marcel Danez

Quando vi a expressão da Bitsi animar-se ao ler, insisti que elaficasse com a carta. O tributo de Marcel era tudo para mim, maspara ela significava mais. Vi-a apertar o papel contra o coração edirigir-se para a sala infantil.

Ao observá-la, a Margaret sussurrou:— Aquele cabelo dela parece uma coroa de espinhos! A pequena

Bitsi ainda se há-de fartar do papel de viúva chorosa e arranjar umapaixonado.

A sua insinuação — de que o luto da Bitsi pelo Rémy era umafachada — atingiu-me como um soco. Não suportava a ideia de aBitsi poder esquecer o meu irmão. O meu peito doeu tanto que malconsegui respirar. Saí da sala a correr. Se abrandasse, se parassepara pensar, ter-me-ia recordado de um tempo em que a virtude daBitsi também me fizera sentir culpada; o escárnio da Margaret tinhamenos a ver com a Bitsi e mais com a sua própria vergonha.

Quando o Boris me viu sair, disse:— Tens a certeza de que podes deixar a Margaret sozinha na sala

da referência?— Ela acha que tem as respostas todas, acredita!— Tem sido uma boa amiga para ti e para a Biblioteca.— Porque é que estás a ficar do lado dela?Ele fez uma careta.— Vai.Precisava de falar com alguém que me compreendesse. Na

esquadra, o Paul ofereceu-me a sua cadeira.— Não vais acreditar no que a Margaret me disse.— É a guerra. Todos dizemos… e fazemos coisas de que nos

arrependemos. — Ele raramente se referia ao passado. A minha

recusa em entregar livros daquela única vez. A sua detenção daprofessora Cohen. A maneira como nos tínhamos divertido noslençóis dos desaparecidos. Era a única maneira de continuarmoscomo casal.

— Eu sei.— A vida vai voltar ao normal.— Dizemos o mesmo há anos. E se for isto o normal?— Nada dura para sempre — disse ele, a esfregar-me

suavemente as costas.— Na semana passada, quando contei à Margaret que a maman

foi ao talho de madrugada e que já havia dez donas de casa na fila,a resposta foi: «Porque é que ela não compra no mercado negro?»Com que dinheiro, gostaria eu de saber. Seja como for, a comidadela vem do Fe…

Interrompi-me. Não, não, não, fazes sempre isto. Agora não. Ficade boca fechada!

— O que é que ias dizer? — quis ele saber.Soprei.— Nada.— A Margaret é boa rapariga — disse o Paul —, para uma

inglesa, quero eu dizer.— Boa rapariga? Ela insinuou que a Bitsi estava a representar.— As pessoas falam sem pensar. De certeza que não o fez por

mal.Ele não teria tanta pressa em defendê-la se soubesse do

namorado nazi. Margaret tinha a vida facilitada. Bastava-lhe estalaros dedos ossudos e tinha festas, couture, jóias e viagens à praia.

— Ela insinuou que a Bitsi vai arranjar um amante.

— Claro, a Bitsi vai sempre amar o teu irmão, mas talvez umdia…

— Talvez um dia? — interrompi bruscamente. — Ela nunca vaiesquecer o Rémy. Nunca! Nem toda a gente é uma sem-vergonhacomo a Margaret.

As mãos do Paul imobilizaram-se sobre os meus ombros.— Não falas a sério.Como podia ele acreditar o pior de Bitsi, mas o melhor de

Margaret?— Não falas a sério — repetiu.Virei a cara para ele e tive um cruel prazer em dizer:— Ela tem um amante alemão.A minha declaração flutuou pelo ar entre nós, o espaço de um

fôlego.Os lábios do Paul torceram-se de aversão.— Desavergonhada!Ao ouvir este eco da minha própria palavra, percebi que tinha

deixado que o meu mau génio levasse a melhor. Tinha de ter maiscuidado e ser menos crítica.

— Não devia ter dito o que disse. Tinhas razão, tens semprerazão. Ela é simpática, foi boa para a minha família. Graças a ela, oRémy teve sempre o que comer. Na Biblioteca, não sei o quefaríamos sem a sua ajuda. E está lá agora, a fazer o meu trabalho.

— Vadias como ela vão ver o que as espera.— Por favor, não fales assim. O marido dela é um imbecil. Ela

merece melhor. Tens razão, as pessoas falam sem pensar, como eufiz agora. Por favor, promete-me que não vais dizer nada.

Paul ficou em silêncio.

— Não vais dizer nada, pois não?— A quem é que haveria de dizer? — Ele virou-me e continuou a

massajar-me os ombros, os dedos desta vez a enterrarem-se commais força.

CAPÍTULO 41

Odile

Em Paris, o gás tinha sido cortado e quase toda a gente ficou semelectricidade, mas havia uma certa energia no ar. Cartazes coladosnos edifícios instavam os parisienses a «atacar o inimigo onde querque ele se encontre». A polícia entrou em greve, tal como osfuncionários dos caminhos-de-ferro, as enfermeiras, os carteiros eos operários siderúrgicos. Paul ajudava a desenterrar pedras dascalçadas e a fazer barricadas, tudo o que pudesse encurralar eemboscar o inimigo.

Eu só tinha lido sobre o combate, uma coisa que acontecia muitolonge, mas agora ouvia tiros em ruas próximas e as pessoaspegavam fogo a carros e tanques. Os boatos faziam ricochete comobalas. Eram os americanos a chegar para nos libertar! Não, era DeGaulle! Não, os parisienses tinham-se fartado e estavam a ripostar!Os alemães estavam a retirar! Não, não iam desistir sem dar luta!

Nas idas e vindas do trabalho, eu caminhava encostada aosprédios, com medo de atiradores, com medo de bombas, com medode que nada mudasse e tivéssemos de viver assim para sempre.

Na noite de 24, enquanto tentava terminar Viagem no Escuroantes que a vela se apagasse, os sinos das igrejas de Paris

começaram a tocar. Levantei-me e encontrei os meus pais nocorredor. Em camisa de dormir, a maman olhava para o céu, comoque a maravilhar-se com um milagre de Deus. O papa estendeu osbraços, como costumava fazer quando o Rémy e eu éramospequenos e galopávamos ao seu encontro. Eu sabia que os meuspais estavam a pensar o mesmo que eu — se ao menos o Rémyestivesse aqui. Sem palavras, abraçámo-nos, percebendo que aOcupação estava a chegar ao fim.

Paris foi libertada. Mr. Pryce-Jones entrou a coxear na Biblioteca,a gritar: «Os alemães fugiram.» No seu encalço, Monsieur deNerciat exclamava: «Estamos livres!» Depois de me beijarem orosto, os dois homens abraçaram-se, soltando-se rapidamente.Eram os únicos a ser discretos. Eu abracei a Bitsi, o Boris e acondessa. Os criados desta trouxeram todo o champanhe querestava na adega. Bebi mais nesse dia do que tinha bebido em todaa vida.

— A guerra ainda não terminou — avisou Mr. Pryce-Jones.— Mas é o início do fim — disse a condessa.— Brindo a isso — proclamou Monsieur de Nerciat.— Você brinda a qualquer coisa, velho amigo!No escasso relvado, funcionários e leitores riam e beijavam-se e

choravam. A banda — composta por três sócios — alternava entre«Stars and Stripes Forever» e «A Marselhesa». Paul e eu dançámostoda a noite. Era como se eu tivesse contido a respiração durantemeses e conseguisse agora soltar o ar. Tinha vivido no presente,quase temendo o futuro. Mas a luta para sobreviver chegara ao fim,

e podíamos começar a fazer planos. Permiti-me sonhar com um lare filhos.

Apesar das festividades, a Margaret andava sorumbática. O seuLeutnant tinha sido preso, e ela não sabia para onde o tinhamlevado. Pior, ao fim de quatro anos de ausência, o maridoregressara. A vida com Lawrence estendia-se na sua frente comouma desolada estrada rural. Para a distrair, convidei-a para umpasseio nas Tulherias. Entre as árvores, sob a luz entrecortada, vi-abrincar com as suas pérolas. Queria consolá-la, mas não sabia oque dizer.

Ouvimos uma balbúrdia do outro lado da vedação, o bater de umtambor e parisienses a gritar. Talvez um desfile para celebrar alibertação, ou talvez a vitória! Esperando animá-la, puxei a Margaretpara o portão.

Do outro lado da rue de Rivoli, centenas de homens, mulheres ecrianças aplaudiam enquanto um homem a bater num tambor iapassando. A seguir, um velho de fato esfarrapado trazia uma galinhapendurada, agitando-a no ar. Por entre a cadência do tambor,pareceu-me ouvir um choro.

— Não pode ser. — Margaret apontou para o velho.Quando ele se aproximou, vi que não era uma galinha, mas um

bebé nu que ele segurava. Ao ver a criança a chorar, senti-meenlouquecer de choque.

— Os boches deixaram uma recordação — gritava ele, a balouçaro bebé junto às pernas.

— Bastardo, bastardo — entoava a multidão. — Filho de uma

puta!Atrás dele, dois homens arrastavam uma mulher pela rua. Estava

nua e não tinha cabelo. Tinha os pés ensanguentados de seremarrastados pelas pedras da calçada, o corpo branco de medo. Umtriângulo escuro de pêlos púbicos destacava-se na sua pele. Elatentava soltar-se, chegar ao filho, mas os carrascos puxavam-napara trás.

— Vagabunda! — gritou um homem na multidão. — Onde estáagora o teu amante?

Nunca tinha visto uma mulher despida, e agora eu própria mesentia nua e violada. Dei um passo em frente para a ajudar, mas aMargaret agarrou-me pelo braço.

— Não há nada que possamos fazer — disse.Ela tinha razão. Aquilo não era um desfile, era uma turba. Não

havia como os deter. As pessoas eram selvagens; tivera anos deprovas disso.

— Bastardo, bastardo — entoavam. — Filho de uma puta! —Lágrimas escorriam-me pelas faces. Completamente rodeadas, aMargaret e eu tentámos avançar, cortar o mar de cotovelos ossudose desdenhosos dedos apontados.

— Os alemães nunca teriam permitido isto — censurou umamulher de meia-idade.

— Está a ver aquele que agarra a rapariga, ali à direita? — disseoutra. — Na semana passada estava a servir cerveja e saucissesaos boches.

— O que é que isso interessa? — ripostou um homem. — Aquelavadia quebrou as regras.

— Não escolhemos quem amamos — sussurrou a Margaret.

— Não tem nada a ver com amor — replicou ele. — Só as putasfazem o que ela fez.

Margaret tremia. Estava chocada pela condenação da multidão ouidentificar-se-ia com a jovem mãe? Apertei o seu corpo contra omeu e levei-a para casa.

O dia ainda não tinha terminado. A quatro quarteirões dedistância, num palanque improvisado no meio da praça, um oficialda cidade vestido de azul, branco e vermelho segurava uma mulherpela nuca. Vestida com o que parecia ser a sua melhor roupa, elafixava os olhos em frente enquanto um barbeiro lhe rapava acabeça. Zip, zip, zip, como se fosse a coisa mais natural do mundo,como se tivesse rapado o cabelo a dezenas de mulheres. Enquantoa tesoura deslizava pelo seu couro cabeludo, tranças cor de areiacaíam-lhe sobre os ombros. Le barbier atirou-as para o chão comolixo. Ao lado do palco, rodeadas por homens fardados, cincofrançaises observavam o que lhes ia acontecer enquanto a multidãoaplaudia. Não haveria julgamento, apenas aquela indecorosasentença. Ao ver as mulheres de olhos secos e dignas, limpeitambém as minhas lágrimas.

CAPÍTULO 42

O Quarteto da Barbearia

Em patrulha, o Paul e os colegas Ronan e Philippe cruzaram-secom a Margaret, que regressava do mercado com um molho decenouras raquíticas no seu cesto de verga. Ao ver o Paul, elacumprimentou-o.

— Que bom vê-lo.Os homens trocaram olhares. É aquela, a vadia com o boche. E

então, onde é que ele anda agora? As pérolas em volta do pescoçoda Margaret lembraram ao Paul de tudo o que nunca puderaoferecer a Odile. O vestido de seda branca e o chapéu lembraram aRonan e Philippe que havia anos que não compravam roupa novaàs mulheres. Num impulso, o Paul agarrou a Margaret pelo cotoveloe começou a levá-la. Philippe agarrou-a pelo outro braço.

— Meu Deus, Paul! Aonde vamos? Pare! As minhas cenourascaíram!

Margaret riu-se, acreditando que eles estariam a ser levados pelaalegria da libertação, quando perfeitos desconhecidos se beijavam edançavam. Este riso fez revirar o estômago do Paul, deixando-oainda mais zangado. Ela não sentira qualquer perigo, o que deixavaos homens ainda mais furiosos. Como se atreve ela a rir-se de nós?

Eles eram perigosos, raios. O facto de não terem lutado no exércitonão fazia deles cobardes. Tinham passado a guerra a patrulhar acidade, e conheciam cada um dos seus centímetros mais escusos edesertos.

Philippe e Paul arrastaram Margaret para um beco vazio. Ronantirou-lhe o cesto da mão, e ela sorriu alegremente, pensando queele ia apanhar as cenouras. Quando disse merci, ele atirou com ocesto para a janela suja de um cubículo de porteiro abandonado.

Paul empurrou Margaret para o chão. Ela tentou levantar-se,tentou várias vezes, mas eles atiravam-na de novo ao chão.Margaret olhou para trás, na esperança de ver alguém passar.

— Socorro! — gritou a uma parisienne, que estugou o passo,tendo o cuidado de virar a cara.

— Cabra inglesa — disse o Paul. — Abandonam a luta, afundamos nossos navios e voltam quando já está tudo acabado!

— Eu estive aqui o tempo todo! — gritou a Margaret. — Consigo ecom a Odile.

— Esteve com um boche qualquer. É o que ela diz.— Estão a castigar as vadias que dormiram com nazis — disse

Philippe. — Collaboration horizontale. Eu vi-as, tosquiadas na praça.— É o que ela merece — disse o Paul.Margaret apoiou-se numa mão e conseguiu ficar de joelhos.Eles gostavam de a ver de joelhos.— Por favor, não.Os homens não tinham planeado aquilo. Nunca fariam mal a uma

mulher. Nunca tinham desejado fazer mal a uma mulher. Mas aliestava ela, na sua frente, uma prostituta no chão. Estrangeira.

Conspurcada. A comer bife enquanto eles passavam fome. A usarum vestido novo enquanto as suas mulheres não tinham nada.

Ela não era mulher para eles, já não era. Tinham sido espancadose humilhados. Agora era a sua vez de bater, de atacar, de cortar.

Paul levou os dedos às pérolas dela.— Quem te deu isto?— A minha mãe.— Mentirosa! — Ele puxou até as pedras se enterrarem no

pescoço da Margaret.— Eram da minha mãe.— Aposto que foi o teu amante. — Puxou o colar, e o fio partiu-se.

Pérolas caíram à volta dela numa triste constelação.— Da minha mãe — chorou ela, enquanto Philippe as apanhava e

punha no bolso.— Cala-te, ou ainda te vais arrepender. — Ronan estendeu uma

faca a Paul. — Queres fazer as honras?Ela queria dizer-lhe: «Nós jantámos juntos. Foste à minha casa.

Quando a Odile estava indecisa a teu respeito, eu defendi-te», masa sua voz desapareceu juntamente com a coragem.

Paul pegou na faca.

CAPÍTULO 43

Odile

O quarto proibido cheirava a naftalina. Era talvez o único sítio deParis que não mudara durante a guerra. A última vez que a mamanme autorizara a entrar, eu tinha 15 anos. Com fantasias de umfuturo a flutuar na minha cabeça, deliciava-me com o meu enxoval,com os tesouros que as mulheres da minha família tinham criadopara o meu casamento. Uma arca de madeira continha uma mantade bebé tricotada pela minha avó. Em breve, o Paul e eu teríamosum pequenote. Desdobrei a etérea camisa de noite branca que amaman tinha costurado.

— Para a tua lua-de-mel — dissera ela timidamente. Eu nãoestivera com o Paul desde que ele me contara da professora Cohen,e não tínhamos procurado um novo sítio para os nossos encontros.Sentávamo-nos empertigadamente no divã enquanto a mamantagarelava sobre falhas na porcelana. Um casamento seria umrecomeço. Imaginei-me na igreja, a caminhar ao encontro dele.Absorvida no meu devaneio, mal ouvi baterem à porta. Segui o ruídoinsistente, e encontrei o Paul no patamar, com o rosto banhado detranspiração.

— O que raio? — ri-me. — Pareces um miúdo, a bater dessa

maneira. Estás mesmo assim tão impaciente?Ele agarrou-me as mãos.— Vamos casar.Era como se me tivesse lido a mente.— Vamos fugir para casar — pediu-me. — Hoje. No registo civil.— Os banhos não têm de ser publicados? A maman vai ficar

devastada se não casarmos na igreja. Além disso, gostava que aMargaret fosse minha madrinha.

— O casamento é para nós os dois, mais ninguém. Os teus paisvão compreender. Esquece os banhos, eu tenho uma licençaespecial. Já a trago no bolso há muito tempo, com esperança.

— Uma licença especial?— Por favor, aceita.Paul sabia sempre o que eu queria.— Embrasse-moi — disse-lhe.Nos meus braços, ele tremeu.— Amo-te. Amo-te tanto. Vamos para longe, para nunca mais

voltar.Ficariam os meus pais desiludidos se o Paul e eu fugíssemos, ou

ficariam secretamente aliviados? Não havia dinheiro para umvestido de noiva, e muito menos para uma boda de casamento.Uma coisa era certa: depois do longo limbo da Ocupação, eu queriaestar com o Paul.

— Sim!— Deixa um bilhete aos teus pais. Vamos para a casa da minha

tia, para a lua-de-mel. Tenho de ir para longe! Temos de ir paralonge.

— Está tudo bem? Não pareces tu. Talvez devêssemos esperar.

— Não esperámos já tempo demais? Eu quero casar contigo.Quero uma lua-de-mel.

Lua-de-mel, pensei, sonhadora, enquanto punha na mala unsvestidos esfarrapados, a camisa de noite do meu enxoval (quasecerta de que a maman não se importaria) e a querida EmilyDickinson para a viagem de comboio. Paul ligou ao chefe deestação e pediu-lhe para avisar a sua tia. Mal tínhamos acabado desair pela porta, ele com a minha mala na mão, lembrei-me:

— Espera! Não posso deixar o trabalho.

— Diz-lhes que precisas de uma semana para a nossa lua-de-mel. Como podem dizer que não ao verdadeiro amor?

Enquanto escrevia um bilhete para a filha da vizinha ir entregar,perguntei-me se fugir para casar era romântico ou precipitado.

Ao balcão da mairie, a secretária nem ergueu o olhar dapapelada.

— Voltem para a semana. O presidente tem a agenda cheia.Eu tivera as minhas dúvidas a respeito da fuga, mas agora que

havia oposição…— Por favor — pedi —, estamos apaixonados.— Paris pode ter sido libertada — acrescentou o Paul, com um

tom de histeria na voz —, mas a guerra continua. Ninguém sabe oque o futuro reserva. Nós vamos casar, e a senhora vai ajudar.

Reparando nas nossas expressões tensas, ela foi ver se opresidente executava uma cerimónia repentina. Paul pôs-se a andarde um lado para o outro; eu sentei-me numa gasta cadeira demadeira. Devíamos ter feito aquilo há anos, mas eu quisera o Rémyjunto de mim. Toquei no lugar vazio ao meu lado.

— Também queria que ele estivesse aqui — disse o Paul.A secretária conduziu-nos à salle des mariages, onde nuvens

brancas cobriam a tinta azul-clara do tecto. O presidente envergou asua faixa azul, branca e vermelha e começou a cerimónia. Paullimpou o suor da testa com as costas da mão. Estava tão nervosoque, quando chegou o momento de dizer «Sim», o presidente tevede lhe tocar.

No compartimento do comboio, o Paul pegou no jornal e leu umalinha, depois dobrou-o apressadamente e pousou-o no colo. Cruzoue descruzou as pernas. Sempre que se agitava, o seu joelhochocava com o meu.

— O que se passa? — perguntei, a esfregar a perna.— Nada.— Arrependido?— Arrependido? — Ele olhou-me cautelosamente.— De casar.Ele pousou uma mão pegajosa sobre a minha.— Eu amei-te desde o primeiro instante em que te vi.— Tu amaste o porco assado da maman.— O que eu não daria por uma grande fatia agora.Tanta coisa a que tínhamos atribuído pouco valor.A tia do Paul, Pierrette, foi buscar-nos à estação com o cavalo e a

carroça.— A pessoa de quem tanto ouvi falar! Prazer em conhecê-la. — A

sua pele rosada era como cabedal, mas ela parecia mais saudáveldo que a maior parte dos parisienses.

Ao fogão, um faisão assava no espeto. Gordura escorria sobre ofogo; as chamas saltavam e lançavam fumo. Não sentia um aroma

tão suculento há anos, e fiquei com água na boca. Sobre a mesa,uma tigela de puré de batata fumegava. Desejei poder atacar deimediato.

— Não é um grande banquete de casamento — desculpou-se atia Pierrette. — Mas também não fui avisada com grandeantecedência. — Deu um beliscão ao Paul, que sorriuenvergonhado.

— Para nós é um banquete — disse eu.Tentei comer devagar, mas o jantar era demasiado delicioso — o

Paul e eu devorámos tudo. A tia deixou-nos sozinhos a comer asobremesa à luz da lareira. Paul deu-me à boca colheradas depudim flan. O creme deslizava pela minha garganta, suaves gotasde felicidade.

No nosso quarto, o Paul introduziu uma mão debaixo da minhasaia enquanto eu fechava as persianas.

— Sê paciente! Tenho de vestir a minha camisa de noite.— Não consigo esperar. — Empurrou-me para cima da cama.

Beijei-o suavemente. Ele desapertou as calças e levantou-me asaia.

— Calma — murmurei, enquanto ele empurrava a minha roupainterior para o lado. — Temos a vida toda.

— Amo-te. — Ele mergulhou dentro de mim. — Promete-me quenunca me deixas. Não importa o que aconteça.

— Claro, prometo-te.

*

Na manhã seguinte, ele aparelhou o cavalo e fomos de carroça à

aldeia para comprar um anel. No mostrador do joalheiro, dúzias dealliances brilhavam, seguramente vendidas por poucos francos porpessoas desesperadas.

— Não dará má sorte? — perguntei ao Paul, enquanto ele enfiavauma no meu dedo.

— Um casamento feliz não depende da sorte, mas das intenções— replicou o joalheiro.

O anel servia perfeitamente. Durante os sete dias seguintes, malconsegui parar de sorrir.

O comboio para Paris estava atrasado. Quando me preocupei porchegar atrasada ao emprego, o Paul insistiu que podíamos irdirectamente para a Biblioteca, quando chegássemos.

— Não precisas de me acompanhar — disse eu.— Mas eu quero, Madame Martin. E precisa também de alguém

que lhe leve a mala.— Não vais chegar atrasado?— Esta semana faço as noites.Na sala de leitura, na mesa em frente das janelas, fiquei atónita

ao ver um bolo de noiva, chocolates, champanhe e um bule de chá.— Planeaste isto tudo? — perguntei-lhe.— Foram eles. — Paul indicou os nossos amigos. Lá estava a

condessa, parecendo orgulhosa. O Boris e a Bitsi a sorrir. Monsieurde Nerciat e Mr. Pryce-Jones a implicar um com o outro. «Eu disse-lhe que tinham casado.» «Não, eu é que lhe disse.»

— Estou a ver porque gostas de trabalhar aqui — disse o meupai. — Quem me dera ter vindo visitar-te mais cedo.

— Oh, papa! Estou tão feliz por vê-lo aqui agora.

— Parabéns, ma fille — disse a maman, enquanto ela e Eugénieme abraçavam.

Maravilhei-me com o açucarado bolo de casamento (Oh, asrações que toda a gente tinha doado! Isso significava mais do quequalquer outra coisa!) e obsequiei-os com o apaixonado pedido decasamento do Paul. Depois ele contou como foi a cerimónia.

— Onde está a Margaret? — perguntei a Bitsi.— Não apareceu esta semana. Mandámos-lhe um convite, mas

ela não respondeu.Franzi o sobrolho. Estaria doente? Ou talvez Christina? Comecei

a dirigir-me para o telefone, mas uma rolha saltou — um sinal decelebração, o meu som favorito no mundo inteiro — e a condessaofereceu um copo de champanhe. Paul e eu ouvimos tributos defamília e amigos enquanto nos enchíamos de bolo. Mal repareiquando ele me deu um beijo no rosto e saiu para trabalhar.

Entontecida com a comemoração, meio a cambalear, pus-me acaminho da casa da Margaret, e ao atravessar a dourada PonteAlexandre III vi de relance a Torre Eiffel.

— Olá, linda dama de ferro! — gritei-lhe.À porta, Isa cumprimentou-me. Uma criada à porta? Que

estranho. Talvez o mordomo também estivesse doente.— A Madame não está.— Quando volta?Isa tentou fechar a porta.— Ela não vai a lado nenhum, no seu estado.Empurrei a porta e entrei.

— No seu estado? Está… de bebé?— Quem dera — disse Isa, lacrimosa.— Está doente? O marido está cá?— Não, ele pegou na pequena Miss e voltou para Inglaterra.— Isso não faz sentido. — O champanhe subira-me à cabeça, e

senti dificuldade em seguir o que ela me dizia. — Espere. Disse queela não ia a lado nenhum. Então está em casa?

— A Madame não quer ver ninguém.— Mas eu sou a sua melhor amiga.Isa hesitou.— Ela pode estar a dormir.— Se estiver, eu já volto.Avancei a cambalear pelo corredor, levando a mão à parede de

vez em quando para me equilibrar. Que disparate, claro que aMargaret me queria ver. Uma pena que tivesse perdido a festa. Quealtura terrível para adoecer. Só a Margaret podia ser tão azarada.

À ombreira do quarto na penumbra, vi-a a dormir e soube que adevia deixar descansar, mas não consegui conter a minha excitaçãoe aproximei-me em bicos de pés. Uns tufos de cabelo tinham-secolado junto à sua orelha, e o resto tinha poucos milímetros decomprimento. O seu pescoço parecia apresentar umas nódoasnegras. Pestanejei. Claramente, bebera mesmo demais. Mais non,mesmo depois de esfregar os olhos, o cabelo da Margaret estavacurto, as nódoas negras permaneciam. O pulso dela, ligado comgaze branca, repousava sobre a colcha. Parecia que tinha sofridoum acidente. Não. Ela parecia ter sido tosquiada: espancada etosquiada como a jovem maman na rua. O pensamento deixou-mesóbria.

Sem abrir os olhos, ela perguntou:— Quem era à porta, Isa?— Eu.Margaret sentou-se.— O que aconteceu? — perguntei.— Como se não soubesses. — A voz dela era um rouco sussurro.Olhei para as nódoas negras que lhe debruavam a garganta.— Quando?— Há uma semana.Recordei o nervosismo do Paul, a sua insistência na nossa

partida. Alguma coisa estava errada. Como podia não ter visto?— Porque lhe contaste de mim e do Felix? — perguntou ela.— Eu não… — Eu não queria.— Tu és a razão pela qual isto aconteceu! — Ela ergueu uma mão

à cabeça nua.Comecei a tremer e agarrei-me à cabeceira da cama.— Não.— Então porque é que ele fez isto?— Não sei.— Mentirosa! — disse a Margaret. — E eu que pensava que os

círculos diplomáticos conseguiam ser cruéis. Diz-me, amiga, o quefoi que lhe disseste exactamente?

— Nada, a sério…— Sim, o Felix dava-me coisas. Mas eu partilhei-as, acreditando

que tu farias o mesmo por mim. Tu sabias exactamente de quemvinham aqueles presentes.

— Sim, mas eu nunca me rebaixaria…— Rebaixares-te? Não tiveste de o fazer, porque eu o fiz por ti. E

pelo Rémy.— Eu não te pedi nada!— Não precisaste de o fazer.— A culpa não é minha.— Então de quem é? — perguntou ela.O seu olhar nu enervou-me. Olhei para a janela, para o toucador,

para o retrato de Christina.— Qual é o mal de se querer alguém? — continuou a Margaret. —

De se ser desejado? Foste tu que disseste que eu estava num paísestrangeiro, que podia fazer o que me apetecesse.

— Referia-me a andar de bicicleta, não a envolveres-te com umnazi!

Margaret levou a mão ao pescoço, como que para tocar nas suaspérolas, como fazia quando estava perturbada, mas, pela primeiravez, não as tinha.

Ela precisava de saber que eu não lhe quisera fazer mal.— Não fui eu que fiz isso.— O Paul tinha a arma, mas foste tu que puxaste o gatilho.— Então e tu? O que disseste sobre a Bitsi se fingir chorosa…— Foi imperdoável — disse a Margaret. — Pelo menos eu admito

quando erro.— Contei a uma única pessoa.— Como pudeste trair-me?— Tinha inveja.— Inveja de mim, quando tinhas o emprego perfeito, uma família

que te ama e um homem devotado?Eu nunca pensava no que tinha, apenas no que queria ter.— Também não é assim tão mau. O cabelo volta a crescer.

— Achas que o pior que ele me fez foi ao meu cabelo? Por tuacausa, perdi tudo. — Ela ergueu o pulso partido. — Vês o que mefizeram? Não consigo vestir-me, não consigo escrever à minha filha.Se me detestavas tanto, preferia que tivesses contratado umassassino, porque, para a minha família, é como se estivesse morta.A criadagem pôde escolher se ficava comigo ou se ia para Inglaterracom o Lawrence e a Christina. Ninguém senão a Isa quis ficar noapartamento com uma prostituta como eu.

— Eu nunca quis…Margaret atirou a colcha para trás e ergueu a bainha do seu

negligée, revelando os vergões que lhe marcavam as pernas.Fechei os olhos com força, desejando poder retirar as minhaspalavras, desejando poder desfazer o mal.

— Cobarde! Se eu tenho de aguentar as cicatrizes, tu podesaguentar olhar.

Ela eriçava-se de fúria. O seu espírito fora magoado, mas nãoquebrado.

— O Lawrence fotografou-me, sabes. Se eu ousar fazerestardalhaço, ele usa as fotos em tribunal para provar que sou umamãe inadequada. Só às prostitutas é que raparam o cabelo, certo?Como é que alguma vez vou recuperar a minha filha?

— Eu podia telefonar ao Lawrence, explicar…— Telefonar ao Lawrence, explicar — troçou a Margaret. — É

melhor ires embora.— Eu podia ficar e ajudar-te. Fazer as refeições, escrever à tua

família.— Não quero mais a tua «ajuda». Sai, por favor.Dirigi-me para a porta.

— Espera! — disse ela.Virei-me. Faria qualquer coisa por outra oportunidade. Ela tinha

de me perdoar. Tínhamos passado por tanto juntas.— Está uma caixa azul na prateleira do quarto de vestir. Traz-ma.Tentei entregar-lhe o pacote, mas ela disse:— É para ti. Pedi ao Felix para o procurar. Quando o usares,

espero que te lembres do que fizeste e percebas o que significa seruma verdadeira amiga.

Lá dentro estava um cinto vermelho. A pele era macia comomanteiga, o cinto era comprido e fino como um chicote.

— Como posso compensar-te? Por favor, dá-me umaoportunidade.

Margaret virou a cara para a parede.— Vai. Nunca mais te quero ver.

CAPÍTULO 44

Lily

FROID, MONTANA, JUNHO DE 1988

-A mulher do meu pai tirou-me o Forever! — queixei-me aOdile enquanto irrompia pela sua cozinha. — Ela diz que Judy

Blume escreve «cenas de sexo». A censura é uma coisa errada!— Também é errado fazeres uma fita em vez de te sentares a ter

uma conversa. — Odile terminou de secar o último prato. — Deviasperguntar à Ellie o que é que ela receia.

— Hum?— Ler é perigoso.— Perigoso?— A Ellie tem medo de que o livro te ponha ideias na cabeça, tem

medo que queiras experimentar o sexo.— Eu li o África Minha e não estabeleci uma plantação de café no

Quénia!Odile mostrou um pequeno sorriso, que significava que eu tinha

dito algum disparate.— Não há muitas pessoas que possam fazer isso. Já o sexo é

uma parte natural da vida. Mas é um grande passo, e a Ellie estápreocupada.

— Eu nunca tive sequer um encontro — disse eu. — Por esteandar, nunca vou ter. A Ellie quer estragar-me a vida.

— Sabes que isso não é verdade.— A única coisa que lhe interessa é o meu pai e os miúdos.— Não estás farta desse refrão? A Ellie faz o seu melhor. Tenta

pôr-te na pele dela.— Blerrc!— Nos sapatos dela. Alguma vez pensaste em como a Ellie se

sente? Durante todos estes anos, ela e o teu pai nunca compraramum sofá ou um candeeiro novo. Ela cozinha nas panelas da tuamãe, come dos pratos da tua mãe. Não achas que isso deve serestranho? Tens a certeza de que és tu a intrusa?

Odile tinha alguma razão.— O amor não é racionado. A Ellie pode gostar de vocês todos.

Devias falar com ela.— E se…— Dá o primeiro passo.A caminho de casa, vi os rapazes a correrem no pátio das

traseiras. Joe acenava com uma pistola de água a Benjy, que usavaa sua manta de bebé como uma capa. Ambos correram para mim, ecada um agarrou-me uma perna.

— Minha — disse o Benjy.— Não — contrariou o Joe —, ela é minha.— São os dois meus. — Abracei-os.Lá dentro, passei a mão sobre a mesa de jantar da minha mãe, as

cortinas que ela tinha costurado, as pinturas de aves que ela tinha

escolhido. Nada ali pertencia a Ellie, a curadora não remunerada domuseu da Brenda.

No quarto principal, na cadeira de baloiço da minha mãe, a Elliecosia as meias do meu pai.

— Já acabaste a tua fita? — perguntou.— Desculpa ter fugido — disse, a fúria dissipada. — Não foi muito

maduro da minha parte.— Querida, eu só quero o melhor para ti.— Eu sei. — Fui ao seu encontro, e ela abraçou-me.

*

Para comemorar a minha carta de condução, Odile convidou-nos,a mim e a Ellie, para irmos comer um sundae na Husky House. Noreservado cor de laranja, Odile colocou um presente sobre a mesa.

— Encomendado em Chicago. — Puxei suavemente a fita develudo e abri a caixa. Lá dentro estava uma boina cinzenta, maciacomo uma pomba.

— J’adore! — Precipitei-me sobre a mesa para a beijar em cadaface. — Nunca mais a vou tirar!

Ela endireitou a boina sobre a minha cabeça.— Pareces uma francesa — disse a Ellie. O melhor elogio que

alguém me podia fazer.Em casa, no meu quarto, de boina na cabeça, peguei no disco de

Josephine Baker que Odile me emprestara e passei os dedos aolongo do rosto de Josephine, com inveja do seu sorriso fácil, da suapele fresca, da sua confiança. Descalcei os sapatos e tirei a camisae as calças. De sutiã e cuecas brancas, olhei para o meu reflexo

magricela, a perguntar-me qual seria a sensação de ser um sexsymbol de meias de seda. Peguei num marcador preto e desenheicírculos à volta das minhas coxas, onde imaginava que as meiaschegariam. Não era suficiente. Queria desenhar-me toda uma novavida.

Naquele Verão antes do 12.º ano, a Mary Louise e eutrabalhámos no Motel O’Haire. Aspirávamos e fazíamos as camas,limpávamos sanitas e esfregávamos banheiras. Ganhava-se maisdo que a tomar conta de crianças, e Mrs. Vandersloot dava-nosCoca-Cola nos intervalos.

Na primeira semana de Agosto, o motel estava cheio detrabalhadores agrícolas sazonais. Os homens trabalhavam donascer ao pôr-do-sol, e eram quase todos velhos e grisalhos,embora sempre tivéssemos esperança de ver algum que fosse novoe atraente. Desde o Texas à ponta do Oklahoma, passando peloDakota do Sul até chegar a nós, no Montana, eles ajudavam àcolheita da América. Aqueles homens não estavam presos anenhuma terra, como nós estávamos. Eram livres, e invejávamo-los.

Os seus elogios faziam-nos corar. Olhavam para nós como sefôssemos mulheres. Na noite anterior, sob uma lua atenta, a MaryLouise tinha saído às escondidas para se encontrar com um deles.Beberam e curtiram na caixa aberta da carrinha dele. Ela disse queo Johnny sabia o que fazia, mais do que o seu namorado, o Keith.

Agora, os trabalhadores iam partir, levando a sua maquinaria e apromessa de aventura. Enquanto carregava o aspirador ao longo docorredor, choquei contra um deles, que pegou no Hoover com uma

mão e me segurou com a outra para eu não cair. Cheirei o trigo nasua gasta camisa de algodão. Endireitei a boina e ergui o olhar parao seu rosto. Céus, era tão atraente. Bronzeado do tempo passadoao sol. Teria 21 ou 22 anos. Olhos que tinham visto vários estadosamericanos, longas extensões de estrada, e sinais verdes, muitossinais verdes. Um homem.

— Porque está uma rapariga bonita como tu a carregar esta coisavelha? Trabalhas aqui?

— Sim?— Onde queres que o ponha?— Quarto número quatro.— Não precisas de sussurrar, amor. Não estamos na igreja.Destranquei a porta. Ele pousou o aspirador na frente da

televisão. Os lençóis estavam numa pilha no chão. A Mary Louiseteria assobiado e dito: «Alguém se divertiu aqui ontem à noite!» Maseu não era a Mary Louise.

— Gosto do teu chapeuzinho. — Ele aproximou-se, até ficarmos adois centímetros de distância. Sabia que ele conseguia sentir o meucoração a bater com força. — És tão bonita como uma corça.

Os meus olhos fecharam-se com o choque dos seus lábios sobreos meus. Nunca nada me soube tão bem.

— Vamos, Mike — gritou um trabalhador no átrio.Separámo-nos. Contive a respiração. A sua mão calosa acariciou-

me a face.— Estás bem? — perguntou.Anuí. Ele ia esquecer-me assim que chegasse à auto-estrada,

mas eu recordaria o nosso beijo para sempre. Passei o resto damanhã a levar os dedos aos lábios.

A seguir ao trabalho, a Mary Louise e eu passámos pela minhacasa para encher o alimentador de colibris da minha mãe. Depoiscontinuámos a andar, e passámos pelas Escoteiras no parque.Mesmo fora dos limites da cidade, deitámo-nos no prado, com a suaerva rígida como feno. A poucos metros, um esquilo pôs a cabeçade fora de uma toca. Estava um tempo quente e seco, era semprequente e seco. Ao longe, ouvíamos uma ceifeira a rosnar sobre ocampo. Uni as mãos atrás da cabeça. A Mary Louise sugava umalâmina de erva. As nuvens passavam sobre nós, nunca sedemorando muito tempo. O resto do mundo via MTV, enquanto nósvíamos reposições da Casa na Pradaria. A escola estava a umasemana de distância. Pensei que ia morrer da paz e do silêncio.

— Promete-me que vamos sair daqui — disse ela.

No meu último primeiro dia de escola, usei uma saia quecombinava com a boina, e toda a gente ficou a olhar para mim deboca aberta — em Froid, quem não usava calças de ganga era ummutante. A Mary Louise e eu não tínhamos nenhuma aula emcomum. Sempre que a via, ela estava ao fundo do corredor com oKeith. Eu tentava abrir caminho por entre confusos caloiros, masnunca conseguia chegar perto dela. O Robby e eu tínhamos omesmo horário. Ele sentava-se na fila ao lado, tal como na igreja, talcomo sempre. No fundo, sabia que ele gostava de mim. Mas nãoconfiava no fundo.

Depois da escola, chez Odile, bebia café au lait e contemplava asua foto de casamento. Alguma vez algum homem olharia para mim

como o Buck olhara para ela? Como o Keith olhava para a MaryLouise?

— Já mal vejo a Mary Louise — queixei-me, magoada por ela meter abandonado tão facilmente como abandonara MatemáticaAvançada.

— Uma característica da amizade é que nem sempre se está nomesmo sítio ao mesmo tempo — disse Odile. — Lembras-te dequando andavas muito ocupada com a Ellie e os meninos? Agora éa Mary Louise quem está ocupada. O primeiro amor é assim. Ocupatodo o teu tempo.

— Falas como se o amor fosse uma sanguessuga.Ela riu-se.— Bem, e é.— Não é nada! — retorqui acaloradamente.— Ela volta. Dá-lhe tempo.Pensei na maneira como a Mary Louise corava quando o Keith a

abraçava. Quando me aproximava, ele puxava-a pela cintura e dizia:«Vamos.» Ela seguia-o, porque queriam estar sozinhos. A MaryLouise tinha tudo primeiro. Primeiro beijo. Primeira base. Primeiroamor.

— É normal sentir ciúmes — comentou Odile.— Eu não sinto ciúmes!— É normal — repetiu ela. — Só que…— Só que o quê?— Tenta recordar-te de que o teu dia vai chegar — terminou ela,

insatisfatoriamente.Sim, claro.Em casa, a Ellie preparou o meu jantar preferido, bife e batatas

fritas servidos com uma salada verde. Todos comiam primeiro asalada, mas eu comia a minha no fim, seguida de um pedaço dequeijo, como uma parisienne.

— Tens de usar isso o tempo todo? — perguntou o meu pai.— É uma boina. C’est chic.— Não a tiras há meses. É chique cheirar mal?Ignorei-o.— Le steak est délicieux!— Podes mandá-la falar francês? — pediu o meu pai a Ellie.Ela sorriu. Acho que gostava quando eu falava francês.— Já pensaste no que te disse sobre a candidatura à faculdade?

— perguntou o meu pai.— Já te disse, vou ser escritora.— Escrever não é uma profissão — disse ele.— Diz isso à Danielle Steel — replicou a Ellie. — É mais rica do

que o Jonas Ivers!— Vais estudar Contabilidade — disse o meu pai. — Precisas de

uma rede de segurança.— Uma rede de segurança? Achas que vou fracassar? Seja como

for, não é da tua conta o que eu estudo.Ele apontou o garfo na minha direcção.— Se sou eu que pago, é da minha conta.— Contigo, tudo se resume ao dinheiro.— Um dos trabalhos de um bancário — disse ele — é garantir que

toda a gente tenha um plano.Já não sabia como tínhamos passado de um jantar agradável

para uma discussão por causa da faculdade.— Eu acho — interveio a Ellie — que o que o teu pai está a tentar

dizer é que ele tem visto pessoas perderem as suas casas,empresários perderem os seus negócios, e que não quer que tusofras como eles.

Depois do jantar, fui à casa de Odile.— Quando tinha a minha idade, sabia o que queria ser?— Eu adorava livros, por isso tornei-me bibliotecária. Precisas de

encontrar a tua paixão.— O meu pai disse que eu tinha de aprender uma profissão.— Não está errado. Precisas de te sentir viva, mas também

precisas de pagar a renda. É importante que uma mulher tenha oseu próprio dinheiro. Eu trabalhava como secretária da igreja egostava de ter um rendimento. Tu precisas de ter opções.

— Só gostava que ele não me desse sermões.— A querida professora Cohen dizia sempre: «Tenta aceitar as

pessoas tal como elas são, não como queres que sejam.»— O que é que ela queria dizer com isso?— Estava a falar do meu pai. Ela disse que ele só queria o meu

bem, mas eu não acreditei. Tu e o teu pai são diferentes, mas issonão significa que ele não te ame ou não se preocupe contigo.

No dia do baile de Inverno, disse a mim mesma que não meimportava que ninguém me convidasse. Os rapazes de Froid nãotinham miolos. Eu haveria de encontrar a minha alma gémea emNova Iorque; já me tinha candidatado a Columbia. Com cincomilhões de homens, algum haveria de gostar de mim. Simone deBeauvoir só encontrara Sartre aos 21 anos.

Na cafetaria, a Mary Louise veio ter comigo e convidou-me para ir

à sua casa depois do jantar, para ver o seu vestido. Durante meses,esquecera-se da minha existência. Agora queria exibir-se.

— Não posso — menti. — Tenho muitos trabalhos de casa.— Por favor!Uma parte de mim queria ser uma boa amiga. Uma parte maior

queria que o Keith lhe desse com os pés, para ela ficar tão infelizcomo eu.

Depois do jantar, deixei-me cair na poltrona de Odile.— A Mary Louise abandonou-me. Outra vez.— Não te tinha convidado para ires lá ver o vestido?Olhei para os livros na nossa prateleira 1955.34. Ponte para

Terabítia, Raízes, Minha Ántonia.— Não quero ir.— E se eu também for? — perguntou Odile.Endireitei-me.— Isso pode ajudar.Durante todo o caminho para a casa da Mary Louise, ela

observou-me. Como um falcão, diria a minha mãe. Assim queentrámos pela porta, a Mary Louise rodopiou para nós. Com o seuvestido em tom pastel, pescoço e ombros expostos, parecia maisdelicada do que nunca.

O seu corpo tinha mudado quase da noite para o dia. Os seusseios erguiam-se ousadamente como as Montanhas Rochosas,enquanto os meus continuavam rasos como as planícies. As suasancas curvavam-se como um sino, mas o meu corpo, direito comoum lápis, não se suavizara.

— O que acham? — Alisou o corpete.— Fabuloso — disse Odile.

Cruzando os braços sobre o peito atrofiado, pensei por umminuto, até encontrar o elogio mais significativo:

— Mais bonita do que a Angel!— Não! — A Mary Louise olhou-se ao espelho ao lado do

bengaleiro. — A sério?Anuí, incapaz de proferir mais palavras. A inveja acumulou-se

como lágrimas e, naquele momento, quando ela estava mais bonitado que nunca, mal suportei olhar para ela.

O Keith chegou. Parou mesmo à entrada, e Sue Bob deu-lhe umpequeno toque para se aproximar da Mary Louise. A maneira comoele a olhou fez-me sentir impotente. Uma bílis amarga subiu-me àgarganta; engoli uma vez, e outra. Sem saber se ia aguentar muitomais, fui-me encaminhando lentamente para a porta. A Mary Louisecorreu para mim e Sue Bob tirou uma foto de nós as duas. «Porquehaverias de estar infeliz e sozinha?», disse a bílis. «Uma verdadeiraamiga não te teria obrigado a vires aqui. Está a celebrar às tuascustas, não percebes? Diz aí ao atleta borbulhento o que eladisse… que o trabalhador sazonal com quem ela curtiu beijavamelhor, fazia tudo melhor.»

Com o braço da Mary Louise em volta da minha cintura, eu disse:— Keith…Odile franziu o sobrolho.— Devias saber… — continuei.— Não — sussurrou Odile. — Uma palavra é o que basta. Estou a

ver os corvos a voar em círculos na tua cabeça.

CAPÍTULO 45

Odile

PARIS, SETEMBRO DE 1944

Como pudeste trair-me? A pergunta da Margaret ecoava na minhacabeça enquanto eu caminhava pelo passeio, na direcção do rio ede casa. Embora a magnífica Ponte Alexandre III pairasse na minhafrente, eu via apenas o escalpe rapado da Margaret. Queriaesconder-me no meu quarto, ou confessar à maman e a Eugénie.Mas ambas ficariam horrorizadas pela forma como eu pusera aminha melhor amiga em perigo. Contara ao Paul. Não, estavademasiado envergonhada para encarar a maman. Não podia ir paracasa. E não podia ir à Biblioteca, onde toda a gente adorava aMargaret. Ela deixara claro que nunca mais me queria ver. O quesignificava que não voltaria à Biblioteca se eu lá trabalhasse, e queia perder os seus amigos e a sua vocação.

Pouco tempo antes, eu estava a lançar olhares desconfiados asócios e a perguntar-me que tipo de pessoa seria capaz de escreveruma carta de corvo. Agora sabia: alguém como eu. Monsieurl’Inspecteur, Margaret Saint James — uma súbdita britânica —

ousou apaixonar-se por um soldado alemão. Até entregara a minhaqueixa a um polícia.

Atravessei rapidamente o Sena, com a fivela do cinto na mão, apele a balouçar como um pêndulo. Debruçando-me sobre oparapeito, olhei para a água. Eu era uma besta, tal como o Paul.Tirei a aliança do dedo e atirei-a ao rio. Pronto. Já não era meumarido. Íamos divorciar-nos, e nunca nos voltaríamos a falar.Divórcio. Uma divorciada era pior do que uma mulher caída. «O quevão os vizinhos pensar?», perguntaria a maman. Não lheinteressaria a razão por que nos divorciávamos. Ia pôr-me na rua,como fizera à tia Caro.

Uma hora antes, estava a celebrar o meu futuro. Agora haviaapenas trevas. Não sabia o que fazer. Vagueei pelos CamposElísios, passei por casais a jantarem ao ar livre, por uma fila àentrada de um cinema, e continuei a andar, sem saber aonde ia, atéchegar ao Hospital Americano. Quando passei por uma ambulânciaà entrada, uma enfermeira disse:

— Ainda bem que estás de volta. Precisamos de ajuda.Margaret não queria ter nada a ver comigo, mas eu podia cuidar

dos feridos ali. Ia ficar no hospital — pessoal e voluntários dormiamem catres —, como fizera no início da guerra. Não teria de encarar aminha família e amigos, e o Paul nunca me encontraria. Aliviada,deixei-me cair no alpendre de cimento da entrada das traseiras.

Margaret tinha razão. Eu nunca admitira como ficava zangadaquando ela insultava soldados como o Rémy, ou quando insinuavaque o luto da Bitsi era uma fachada. Nunca admitira ter ciúmes dasua vida glamorosa. Engolira o meu ressentimento e, como umagarrafa de champanhe que é agitada, as emoções podem explodir.

Naquele momento, eu quisera castigá-la, e um momento bastavapara destruir uma vida — a da Margaret e da sua filha.

Um soldado americano de muletas aproximou-se a saltitar.— Olá, rapariguinha.Funguei, e ele passou-me um lenço.— O que se passa?Mordi o lábio, com medo de abrir a boca, com medo de deixar sair

a história toda.Ele sentou-se ao meu lado.— O que se passa?— Fiz uma coisa horrível.— Bem, acho que qualquer um consegue perceber isso.O seu olhar era tão intenso, que tive de deflectir aquela atenção.— De que Estado é?— Do Montana.— Como é o Montana?— O paraíso.Os leitores do Kentucky diziam a mesma coisa, tal como soldados

de Kent e de Saskatchewan.— Vai ter de me convencer.— O Montana é o sítio mais bonito do mundo, e olhe que isso é

dizer muito, tendo em conta que estamos aqui sentados na belaParí. Eu só queria fugir da minha vilazinha labrega, mas, se tiver asorte de voltar, juro que nunca mais de lá saio. As pessoas sãodecentes, honestas. E antes eu julgava que isso era aborrecido.

— Aborrecido pode ser bom, para variar.— Porque é que fala tão bem inglês?— Aprendi na Biblioteca Americana, quando era pequena.

— Há um Hospital Americano e uma Biblioteca Americana?— E não se esqueça da Companhia de Radiadores Americana e

da Igreja Americana! Monsieur de Nerciat, um dos nossos sócios,costumava dizer na brincadeira que os americanos tinhamcolonizado Paris sem dizerem a ninguém.

Ele riu-se.— Que sócios?— Sou bibliotecária. Bem, era.— Adorava ver a sua Biblioteca. Talvez me possa lá levar.Franzi o sobrolho.— Tem razão. — Ele esfregou a coxa. — Com esta perna, é

melhor ficar sossegado. Mas gostava de passar mais tempoconsigo.

Na tarde seguinte, fizemos um piquenique no alpendre. Ele tinhatrocado a ração de cigarros por presunto e uma baguete. Disse-meque não havia uma nuvem no céu. Disse-me que eu tinha de provaro guisado de vitela da sua mãe. Dois dias depois, pediu-me emcasamento.

Eu queria ir-me embora sem ver ninguém que tivesse conhecidoantes. Recomeçar de novo e ser outra pessoa, ser alguém melhor.Ia ter saudades dos meus pais, mas eles ficariam melhor sem mim.Ia ter saudades dos meus colegas e dos meus habitués, mas, naminha ausência, a Margaret poderia continuar. Adorava a Biblioteca,mas a Margaret era ainda mais importante para mim, e eu ia provar-lho.

— Rapariguinha? — Buck olhava para mim com tantacompreensão, que senti que lhe podia contar tudo. E, no entanto, dealguma maneira, senti que ele já o sabia.

— Claro que caso contigo.Ele puxou-me contra si. Senti o calor do seu peito, o algodão

macio da sua camisa. Senti-me em segurança.No dia em que regressei da Bretanha, levei a minha mala para a

Biblioteca. De madrugada, quando apenas o zelador por ali seencontrava, fui buscá-la, juntamente com o último maço de cartasde corvo que tinha roubado. Na secretária da Bitsi, coberta comdesenhos de crianças, canetas pegajosas e a sua chávenapreferida, que mais ninguém queria porque estava lascada, escrevi:Querida Bitsi, por favor, cuida da querida Margaret. Diz à maman eao papa que estou bem, diz-lhes que lamento. Olha pelo manuscritoda professora. Amo-te como uma irmã, como uma gémea. Da tuaOdile. Vagueei pela Biblioteca para dizer adeus. Primeiro pela salados periódicos, onde tudo começara. Depois pelo Além, onde passeia mão pelas lombadas dos livros para lhes fazer saber que nãoseriam esquecidos. E saí da Biblioteca pela última vez.

CAPÍTULO 46

Lily

FROID, MONTANA, JANEIRO DE 1989

Quando saí da casa da Mary Louise, Odile perguntou-me o quequase dissera ao Keith.— Nada.

— Lily — repreendeu-me.— Ela enganou-o com um trabalhador sazonal.— Isso não é da tua conta. Porque haverias de lhe contar?— Não sei!— Bem, pensa nisso.— Queria tê-la de volta.— É possível que estejas zangada com ela? — perguntou Odile.— Talvez.— Qual é o seu verdadeiro crime?— Não quero falar disso.— Paciência!Sabia que ela não ia desistir.— Eu não tenho namorado e ela tem dois. Nestes últimos meses,

esqueceu-se completamente de mim.

— Compreendo — disse Odile.Soube tão bem ouvir aquela palavra. A bílis amarga dissipou-se.— Se a Mary Louise fez alguma coisa que te magoou, diz-lhe —

continuou ela. — Não o prendas dentro de ti, e não penses que tevais sentir melhor se ela ficar infeliz. A Mary Louise tem um coraçãogrande. Tem espaço para ti e para o Keith.

Quando chegámos perto da casa de Odile, ela acrescentou:— Também vais ter namorados.— Sim, sim.— Acredita em mim. — Sob as estrelas, eu conseguia ver a sua

expressão solene. — O amor vai chegar e partir e chegar de novo.Mas se tens a sorte de possuir uma verdadeira amiga, guarda-acomo um tesouro. Não abdiques dela.

Odile tinha razão, eu precisava de guardar a Mary Louise. Mas, sealguma vez lhe confessasse o que quase fizera, tinha a certeza deque ela nunca mais me falaria.

Odile abriu a porta e sentámo-nos no sofá.— Quero fugir.— Não fujas.— Porque não?— Eu digo-te porque não. Porque eu fugi.— O quê?— Tal como tu, sentia vergonha. Fugi dos meus pais. Do meu

trabalho. E do meu marido.— Deixou o Buck?— Não, o meu primeiro marido. O meu marido francês.Fiquei confusa.— Não és a única com inveja da tua melhor amiga — admitiu

Odile.— A Odile?— Eu traí-a. — Ela levou a mão à fivela do seu cinto. — A

Margaret disse que nunca mais queria voltar a ver-me. Nóspartilhávamos o mesmo círculo social, e ambas adorávamos aBiblioteca. Mas, para ela, era um trabalho de amor. Trabalhavacomo voluntária, altruisticamente, dava de si sem receber umcêntimo em troca.

— Como conseguiu partir?— Se eu ficasse, ela teria perdido tudo, especialmente o lugar que

considerava a sua casa. Eu também adorava a Biblioteca, masadorava mais a Margaret. Demasiado envergonhada para contar averdade aos amigos e família, com demasiado medo dasconsequências, casei com o Buck e saí de França sem dizer adeus.Nunca vi a campa do meu irmão, e espero que os meus paistenham conseguido recuperar o seu corpo. — Ela respirou fundo. —Fugi. E, antes de ti, nunca contei isto a ninguém.

Lancei os braços ao seu pescoço, mas ela não retribuiu o abraço.— Nunca me conseguirei perdoar — sussurrou.— Pelo que fez à Margaret?— Por tê-la abandonado.— Ela disse-lhe para se ir embora.— Por vezes, é nessas alturas que devemos ficar.Atónita pelo que ela tinha dito, olhei para os fetos junto à janela,

os discos bem alinhados, a prateleira dos nossos livros preferidos.Depois do tornado de revelações, quase esperava descobrir queaquelas coisas tinham caído no chão.

— Mas… sabe sempre dizer a coisa certa.

— Porque disse tantas coisas erradas.— É mesmo bígama?— O Buck morreu. Agora já não sou.Rimo-nos, embora não fosse engraçado. Mas até era.— O que é que tinha feito? Era assim tão mau?Quando Odile terminou de contar a história da Margaret e do seu

amante, e de como o Paul e os colegas a tinham atacado, as peçasem falta encaixaram-se nos seus lugares e consegui ver a imagemcompleta.

— Mesmo que o que está a dizer seja verdade…— É verdade — interrompeu ela severamente. — Eles partiram-

lhe o pulso.— A culpa não foi sua. A Odile não partiu ossos a ninguém.— Foi como se o tivesse feito. Denunciei-a.— Cada pessoa é responsável pelas suas acções.— Normalmente, concordo — disse ela —, mas não neste caso.

Os riscos eram demasiado grandes. Pus a Margaret em perigo.Nunca disse uma palavra sobre isto a ninguém, nem sequer aoBuck — Ela olhou-me nos olhos. — Mas estou a dizer-te a ti porquenão quero que cometas o mesmo erro. Controla a tua inveja, senãoserá ela a controlar-te.

Desejei conseguir convencer Odile daquilo que sentia ser averdade, que ela nunca faria mal a ninguém.

— Alguma vez se pergunta o que terá acontecido à Margaret?Acha que foi para Inglaterra para ver a filha? Alguma vez a tentoucontactar, para saber se ela estava bem?

Odile abriu uma gaveta e retirou um recorte do Herald de Junhode 1980; ali figurava um perfil de Margaret Saint James:

Tínhamos perdido amantes, família, amigos, o nosso modo devida. Muitos de nós recolhiam as peças das suas vidas, emboraalgumas peças se tenham perdido para sempre. Tivemos de nosreinventar.

Conheci uma pessoa que lidou com a sua perda destruindocoisas. O estrondo dos pratos a cair no chão era o seu consolo.Talvez quisesse partir coisas antes que as coisas a partissem a ela,mas a destruição incomodava-me. Eram anos magros em Paris; oracionamento continuou bem para além da guerra. Tínhamos fome,estávamos cansados.

Pedi à sua criada para me dar os estilhaços, pensando que ospoderia consertar, mas não tinham reparação possível. Juntei osfragmentos para alegrar as roupas usadas da minha filha. Osleitores da Biblioteca admiraram os broches. Comecei a vendê-los, eas parisienses usavam o meu trabalho. O que está na moda emParis não demora a ser usado no mundo inteiro.

*

Fiquei encantada por ver a Margaret viva e com saúde, e umaverdadeira artiste.

— Tem a certeza de que ela perdeu a custódia da filha?— Ela tinha a certeza que sim…— De acordo com o artigo, a filha vivia com ela.Odile releu o recorte.— Nunca o tinha interpretado dessa maneira.— Talvez as coisas não tenham acabado assim tão mal para a

Margaret. Está aqui a morada da sua boutique em Paris. — Aponteia página. — Devia escrever-lhe.

— Ela pode não querer.— Devia tentar.— Quero respeitar os seus sentimentos.— Tem medo de que ela não lhe responda.— Também.— Escreva-lhe! — Talvez nisto eu fosse parecida com a minha

mãe, a optimista militante. Sentia que podia haver um final feliz paraOdile e Margaret, sentia-o de todo o coração. O amor vai chegar epartir e chegar de novo. Guarda uma verdadeira amiga como sefosse um tesouro. Não abdiques dela.

— Vou pensar no assunto.Tínhamos percorrido uma estrada escura, cheia de feios

sentimentos, mas ela vira-me no meu pior momento, e ainda meamava. Beijei-a em ambas as faces e dei-lhe as boas-noites. Maisuma vez, Odile salvara-me.

CAPÍTULO 47

Odile

FROID, MONTANA, 1983

Passei mais um dia de aniversário sozinha, a ver atletismo natelevisão, porque o Buck e o Marc gostavam de desporto. Lembrei-me de como costumávamos os três assistir às provas juntos nosofá, e Buck carregava no botão do silêncio («Os malditos locutoresnunca dizem nada de jeito, de qualquer maneira.») só para eu poderouvir Bach na aparelhagem.

Talvez eu vivesse demasiado o passado. Era fácil, quando haviatantas memórias doces. Saboreei a minha noite de núpcias comBuck, algo surpreendida por ter encontrado de novo o prazer. «Oamor é como o mar. É uma coisa em movimento, mas tambémimóvel, e toma a forma da costa que encontra, e é diferente emcada costa.» 813, De Olhos Pousados em Deus.

Claro, houve tempos difíceis. Como quando conheci os pais doBuck, na casa deles, de acordo com os costumes deles.

— Mãe, pai, aqui está a surpresa de que vos falei. A minha miúda,Odile — disse Buck orgulhosamente, puxando-me para o seu lado.

— Muito gosto — disse eu, pronunciando claramente as palavras,

como a condessa.— A deal? — disse o pai dele.— Ordeal[18] — corrigiu a mãe.

— É Oh-dile, e dei o nó em França — disse Buck.O pai do meu marido olhou para mim cautelosamente. O vago

sorriso da mãe transformou-se numa careta amarga.— Como podes ter casado sem estarmos presentes? —

perguntou.— Então e a Jenny? — disse Mr. Gustafson.— Ela é como uma filha para nós — disse Mrs. Gustafson. —

Enquanto estavas… fora, passávamos as festividades juntos.Fora? Buck não tinha estado a banhos na Europa, mas sim em

combate.— Toda a gente assumia que tu e a Jenny tinham um

compromisso — continuou ela.Olhei para o Buck.— Era a minha namorada do liceu — explicou-me. — Nunca lhe

pedi para esperar. Já não sou um miúdo. A guerra… Ela nunca vaicompreender como tu. Entre todas as pessoas, és a única quepercebe.

Era verdade, Buck e eu tínhamos a guerra — a mãe dele nemconseguia dizer a palavra. Mas o tempo continuou, e tivemos muitomais em comum — um lar, um filho, felicidade.

Os meus sogros nunca gostaram de mim, mas o padre Maloneyera bondoso. Contratou-me como secretária da igreja, e eu gostavade escrever o boletim e reuni uma pequena biblioteca no vestíbulo.Demorou algum tempo até as pessoas da vila me perdoarem por ter

«roubado» o Buck à sua namorada de liceu, mas, quanto maisazedas se mostravam essas pessoas, mais doce ele se tornava.Quando mostrei ao Buck uma foto do pátio da BAP, ele plantou umcanteiro de petúnias igual ao da Biblioteca. Através de um camaradado exército no Leste, conseguiu arranjar livros em francês, e asminhas estantes cobriram-se com romances da professora Cohen,passados no Egipto depois da guerra. Embora o manuscrito que elame confiou nunca tivesse sido publicado, eu gostava de pensar quese encontrava em segurança na Biblioteca. Buck nunca se queixavada despesa da minha assinatura da edição parisiense do Herald,nunca comentava que as notícias chegavam com uma semana deatraso. «Há mulheres que querem jóias, tu precisas de papel», diziaele. «Eu sabia disso quando casei contigo.»

Eu lia sempre a coluna das notícias da BAP, e foi assim que fiqueia saber que Miss Reeder tinha voltado a trabalhar na Biblioteca doCongresso; Miss Wedd fora libertada do campo de internamento evoltara a tratar da contabilidade da Biblioteca; a Bitsi fora promovidaa vice-directora; a condessa publicara as suas memórias; e o Borisreformara-se. Era uma satisfação saber que a Biblioteca continuava.Ao longo dos anos, vi o meu pai ser entrevistado a propósito doaumento do tráfico de droga na cidade e a Margaret a figurar numartigo sobre personalidades importantes. Tinha saudades de todos,e especialmente da Margaret.

Agora vagueava pela casa, um fantasma sem ninguém a quemassombrar. Comia sozinha. Dormia sozinha. Estava farta de estarsozinha. No quarto de vestir, olhava para a minha caixa de jóias naprateleira alta, onde tinha escondido as cartas que não fora capazde queimar. Cometi erros. Aprendi, mas não suficientemente rápido.

Toda a minha vida tinha sido um romance, cheio de capítulosentediantes e excitantes, dolorosos e cómicos, trágicos eromânticos, e era agora a altura de reflectir na última página. Euestava sozinha. Se ao menos a minha história terminasse. Se aomenos tivesse coragem para fechar o livro de uma vez por todas.

A espingarda de Buck estava encostada ao canto. Havia póacumulado na mira. Perguntei-me se estaria carregada.Conhecendo Buck, estava, sim. Tu eras a arma, Paul foi o gatilho.Não, não foi isto que a Margaret disse. Ele era a arma, mas tupremiste o gatilho. Prime o gatilho. Pega na arma e prime o gatilho.Peguei na arma.

A campainha tocou. Não me importei. A campainha tocou. O meudedo aproximou-se do gatilho. Alguém entrou e disse: «Olá.»Reconheci a voz. Era a rapariga que morava na casa ao lado. Volteia pôr a espingarda no lugar.

— Alguém em casa?Atordoada, dirigi-me para a sala.— Estou a fazer um trabalho sobre si. Quero dizer, sobre o seu

país — disse a rapariga. — Não quer vir lá a casa, para eu aentrevistar?

Era estranho ver outra pessoa na minha sala.— Isto parece uma biblioteca — acrescentou ela.A última vez fora há quatro anos, quando o agente fúnebre levara

o corpo de Buck.A rapariga virou-se para sair.— Quando? — perguntei.Ela olhou para trás.— Que tal agora?

Parecia que a vida me tinha oferecido um epílogo.

CAPÍTULO 48

Lily

FROID, MONTANA, MAIO DE 1988

-A faculdade vai ser um novo capítulo na tua vida — disse-meOdile enquanto saíamos da missa. — Cabe-te a ti fazer com queseja um capítulo excitante. — Ia ser. Fui aceite em Columbia, a MaryLouise no Institute of Art, em Nova Iorque. Graças a Deus, porquenão conseguia imaginar a vida sem ela. O Keith matriculara-se naVo-Tech em Butte, mas prometera escrever-lhe. O Robby ia ficar. ATiffany ia para a Northwestern, ou talvez para a Northeastern. Sentiuma nostalgia inesperada pelos meus colegas, até por aqueles dequem não gostava.

No salão, todas as mesas tinham sido especialmente decoradascom cestos de flores das cores da turma de finalistas, vermelho ebranco. Junto à máquina de café, os homens conversavam sobre oastuto presidente Reagan, que estava em Moscovo para umacimeira. Nós, mulheres, aguardávamos na fila para os bolos.

— Deve estar muito orgulhosa da Lily — comentou Mrs. Iverspara Odile.

— Agora vai para a faculdade e vai voltar mais esperta do que

todos nós — disse a velha Mrs. Murdoch.— Já é mais esperta do que alguns — replicou Odile, a olhar

vincadamente para as outras senhoras, que dispersaram.Lembrei-me da frase envoyer balader, que significa literalmente

mandar alguém passear.— Elas tentam sempre falar consigo — disse eu a Odile.— Quem?— Aquelas senhoras. Dizem «Está bom tempo» ou «Que belo

sermão», e a Odile manda-as sempre dar uma volta.— Elas foram más para mim.O tom petulante espantou-me. Também a espantou a ela — vi nos

seus olhos quando se apercebeu disso.— Mas têm tentado compensá-la — sugeri. — Não está na altura

de lhes dar uma oportunidade?Odile olhou para as senhoras, que se serviam de café. Juntou-se

a elas ao pé da cafeteira e pegou no jarro de natas.— Que sermão revigorante, o de hoje — disse-lhes.A sorrir tremulamente, Mrs. Ivers disse:— É verdade.— O padre estava inspirado — acrescentou Mrs. Murdoch,

estendendo a sua chávena.Odile serviu-lhe as natas.

Na manhã da cerimónia de formatura, pus a minha boina e ovestido da Gunne Sax, peguei no discurso e fui para a casa deOdile. No relvado, tordos-americanos debicavam o chão. Quase techamaste Robin. Tem coragem. Oh, mamã. Eu tentei…

Odile estava tão excitada como eu com a formatura. Até tinhasubstituído o velho cinto vermelho por um preto muito elegante.

— Très belle — comentei.Ela corou.— Lê-me o teu discurso.Fingi estar no palco.— Dizem que os adolescentes não ouvem. Bem, nós ouvimos.

Ouvimos o que dizem e o que não dizem. Por vezes precisamos deconselhos, mas nem sempre. Não ouçam quando alguém vos dizpara não ir incomodarem uma pessoa — procurem-na e façam umamigo. Nem sempre as pessoas sabem o que fazer ou dizer. Tentemnão levar isso a mal; nunca se sabe o que têm no coração. Nãosintam medo de ser diferentes. Aprendam a impor-se. Em temposmaus, lembrem-se de que nada dura para sempre. Aceitem aspessoas tal como são, não como querem que elas sejam. Tentempôr-se nos seus sapatos. Ou, como diria a minha amiga Odile, «nasua pele».

Ela fez-me um enorme sorriso.— Trazes tantas pessoas no teu coração.Abracei-a. Parecia-me tão pequena como um colibri.Ellie chegou com a máquina fotográfica, e Odile insistiu em

retocar o batom antes de posar comigo. Depois chegou a hora. Osrapazes queriam que Odile se sentasse com eles na traseira dacarrinha. Ellie e a avó Pearl sentaram-se ao meio. O meu paideixou-me conduzir. E nem sequer ofereceu os seus habituaisavisos de Não atropeles os miúdos a jogar no passeio.

Na escola, a Mary Louise, já de batina e chapéu, pôs uma borlapreta na minha boina. No ginásio, a nossa classe de cinquenta

pessoas estava sentada nas filas da frente. Como pesadas cabeçasde trigo a sussurrar umas com as outras mesmo antes da colheita,os nossos murmúrios ondulavam pela sala. Olhei para trás, para osamigos e família que nos tinham vindo apoiar. A vila estava atrás denós. Sempre tinham ali estado. Agora era o adeus. Agora era umolá. Estava pronta, podia partir. Fora isto que eu desejara duranteanos: sair. E, no entanto…

Quando fiz o discurso, a minha voz tremia. Percorrendo o públicocom o olhar, encontrei a expressão orgulhosa do meu pai, eacrescentei:

— Finalmente, um conselho da filha de um bancário: encontrem avossa paixão, mas tenham o cuidado de ter um emprego que pagueas contas.

Toda a gente se riu. A banda tocou «Only the Young», de Journey.Um por um, cada aluno foi chamado pelo nome, e recebemos osdiplomas no pódio. A seguir, com um rugido de excitação, lançámosos chapéus no ar. A Mary Louise e eu abraçámo-nos. Uma portaescancarava-se na nossa frente.

Em casa, Joe, Benjy e eu saímos do carro e os adultos seguiram-nos. Chegaram amigos para a minha festa, e a Ellie levou-os paradentro da casa.

— A Carol Ann fez o bolo, de chocolate, claro, sabem como é aLily!

Olhei para Odile.— Uma lição de Francês?— Se for rápida.À sua mesa da cozinha, fiquei contente por ter Odile só para mim,

como sempre. Ela passou-me um envelope. Lá dentro estava umbilhete de avião para Paris e um postal a preto e branco. Abracei-a.

— Não acredito! — Examinei o bilhete. Era apenas um.— Onde está o seu? — perguntei. — Não vem?— Desta vez, não.Li o postal.«Para a Lily, para o Verão, com todo o meu amor.» Paris. Não me

parecia possível. Onde ia ficar? Com o meu quarto no dormitório e asessão de orientação, Nova Iorque parecia-me simples, emcomparação com isto. Mas Paris? Eu não conhecia ninguém. Ondeconheceria pessoas?

Quando virei o postal e vi a fotografia, a resposta tornou-seevidente. Na frente de uma velha mansão majestosa, havia umcaminho de seixos bordejado por amores-perfeitos, ou talvezpetúnias. Lá dentro, a olhar pela janela, via-se uma mulher cujorosto branco estava oculto pela larga aba do seu chapéu. Por baixoliam-se as palavras «Biblioteca Americana de Paris, abertadiariamente».

NOTA DA AUTORA

Em 2010, quando trabalhei como gestora de programação naBiblioteca Americana de Paris, os meus colegas Naida KendrickCulshaw e Simon Gallo contaram-me a história do corajoso pessoalque manteve a BAP aberta durante a Segunda Guerra Mundial.Naida foi curadora da exposição sobre a Biblioteca durante e depoisda guerra, consultando bibliotecários de sítios tão distantes comoBoise, Idaho. É uma pessoa brilhante, e penso nela como a minhaMiss Reeder. Simon está na Biblioteca há cinquenta anos e sabetudo sobre a BAP. Além de partilhar os seus conhecimentos, reviutodos os números decimais de Dewey neste livro. Os números sãoos usados hoje, não em 1939. Explicou-me que cada biblioteca tema sua própria forma de classificar os livros.

Sou fascinada pela bravura e dedicação dos bibliotecários da BAPdurante a Segunda Guerra Mundial. Características que persistemno pessoal de hoje. A pesquisa para o romance durou vários anos.Ao longo deste tempo, a directora Audrey Chapuis e a vice-directoraAbigail Altman foram extremamente encorajadoras, partilhandohistórias, documentos e contactos. Conheci os filhos de BorisNetchaeff, Hélène e Oleg. Foi por eles que soube da experiência doBoris no exército, obtendo informações sobre a sua família. Amulher de Boris, Anna, era condessa, a Comtesse (née) Grabbé; o

Boris não tinha título, mas os seus antepassados eram todospríncipes ou condes. Quando Anna e Boris saíram da Rússia,deixaram tudo para trás. Hélène foi mencionada em A Biblioteca deParis — ela estava no apartamento quando a Gestapo baleou o seupai. Ela escreveu: «Durante a minha infância, passei muitos dias naBiblioteca Americana… Tinha apenas poucos meses quando o papalá me levou pela primeira vez… Ainda me lembro do som do bonitosoalho que rangia ou estalava quando alguém andava depressa, edo cheiro dos livros, e outros pormenores como as portas fechadasonde eu não podia entrar. Não percebia porquê, e ainda penso quetalvez houvesse pessoas lá escondidas…» A Biblioteca usava cadacentímetro quadrado de espaço disponível, por isso o comentário deHélène fez-me pensar se os bibliotecários teriam escondido sóciosjudeus durante a guerra.

Boris trabalhou na Biblioteca até aos 65 anos. Faleceu em 1982,com 80 anos. Hélène diz que o pai era increvable (incansável, ouimpossível de perfurar), apesar de ter sido baleado no pulmão trêsvezes pela Gestapo e fumasse um maço de Gitanes por dia.

Quando Miss Dorothy Reeder regressou aos Estados Unidos,angariou dinheiro e procurou sensibilizar o público para a CruzVermelha na Florida. Depois trabalhou na Biblioteca Nacional emBogotá, na Colômbia, antes de voltar a juntar-se à equipa daBiblioteca do Congresso. Graças aos arquivos da American LibraryAssociation, o seu relatório ultra-secreto sobre a vida em Parisdurante a guerra está disponível na internet. Agradeço a ajuda deCara Bertram e Lydia Tang, dos Arquivos da ALA. Foi um prazer lera correspondência de Miss Reeder e partilhá-la neste livro. A minhacarta preferida foi para a sua colega Helen Fickweiler. «Uma das

coisas mais difíceis que alguma vez tive de fazer foi quando te pedia ti e ao Peter para deixarem a Biblioteca e voltarem para casa. Sei,no entanto, que é a única decisão certa e justa, e tanto a minhacabeça como o meu coração vão funcionar muito melhor no dia emque souber que estão sãos e salvos em Nova Iorque.

» Não há palavras para exprimir a minha profunda gratidão pelatua lealdade e devoção por ficares connosco ao longo de tempostão difíceis e desafiadores. O teu trabalho sempre foi excelente e,sem o teu conhecimento e eficiência, duvido que estivéssemos emposição de continuar.»

Miss Reeder menciona o dinheiro que Helen deveria receber dofundo da Biblioteca em Nova Iorque ao chegar — cem dólares, oequivalente a um mês de salário — e a carta de recomendação quetambém ia receber. A directora encerra a carta assim: «Quanto a ti,se alguma vez tiver uma equipa, onde quer que esteja, serás aprimeira na minha lista de colaboradores, querida Helen; comoposso alguma vez agradecer-te, ou dizer-te o que sinto?»

Helen Fickweiler e Peter Oustinoff casaram-se quandoregressaram aos Estados Unidos. Kate Wells, da Providence PublicLibrary, partilhou um artigo da edição de 19 de Junho de 1941 doEvening Bulletin: «Miss Fickweiler perdeu seis quilos durante a suaestada na Paris ocupada pelos nazis e diz que, enquanto viver, nãoquer voltar a olhar para um nabo nem uma única vez, depois de serobrigada a consumir o legume de tantas formas diferentes…» Aneta de Helen e Peter, Alexis, escreveu: «A Helen trabalhou com omovimento da Resistência em Paris, e conheceu ali o Peter. Eletambém esteve com as forças aliadas e trabalhou com as forçasamericanas, francesas e russas. A Helen foi bibliotecária em Nova

Iorque e no Chemists Club e, mais tarde, na Universidade doVermont.»

A guarda-livros, Miss Wedd, regressou do campo de internamentoe trabalhou na BAP até à reforma. Tenho uma fotografiaencantadora da festa de despedida. O seu rosto está radioso, e elatem um corpete vestido. Evangeline Turnbull e a filha trabalharamambas na Biblioteca até a guerra ser declarada. Como canadianase, portanto, parte da Commonwealth, foram consideradas súbditasbritânicas e estrangeiras inimigas. Regressaram ao Canadá emJunho de 1940.

O Dr. Hermann Fuchs, o Bibliotheksschutz, ou «Protector dasBibliotecas», encarregado da actividade intelectual na França,Bélgica e Holanda ocupadas, regressou a Berlim depois da guerra econtinuou a ser bibliotecário. Não foi Fuchs mas o Dr. Weiss e o Dr.Leibrandt, este último especialista na Europa Oriental, quemorganizou a pilhagem das bibliotecas eslavas em Paris. MartinePoulain, especialista em bibliotecas francesas, escreve: «O papelexacto que Fuchs desempenhou continua a ser difícil de determinar.Considerado com benevolência (bienveillance) pelos colegasfranceses antes, durante e depois da guerra, ele esteve sem dúvidamais envolvido nos delitos nazis do que a memória colectiva deixatransparecer.» O Dr. Fuchs deixou Paris com as tropas alemãs em14 de Agosto de 1944. Escreveu a um colega francês: «Parto comocheguei, um amigo das bibliotecas francesas e de certosbibliotecários franceses… Primeiro sob as ordens de Wermke,depois como chefe do serviço de bibliotecas, fiz os possíveis paranão deixar quebrar os laços que nos unem. Nem sempre fui bem-sucedido no que queria fazer, e não consegui ajudar todos os que

me pediram. Muitas vezes, as circunstâncias eram mais fortes doque eu; muitas vezes, as necessidades militares obrigavam-me adesistir de acções que tinha iniciado. Cabe-vos a vós, franceses,julgar a minha conduta.»

No seu livro de memórias Shadows Lenghten (Charles Scribner’sSons, 1949), Clara de Chambrun escreveu que o Dr. Fuchsaconselhou o pessoal da BAP a ter cuidado, porque a Gestapoestava a montar armadilhas, e que foi mais tarde convocada por elepara explicar porque é que a colecção da Biblioteca continhamaterial anti-germânico. A condessa também descreveu uma alturaem que um sócio ameaçou denunciar a Biblioteca. As cartas dedenúncia eram imensas, nesta época. Uma fonte alega que foramenviadas entre três a cinco milhões delas, outra menciona entrecento e cinquenta e quinhentas mil. As cartas a denunciar aBiblioteca foram criadas por mim; são, no entanto, compostas apartir de cartas nos arquivos do Mémorial de la Shoah, o Museu doHolocausto francês. As cartas que Odile encontra no gabinete doseu pai são reais. Estas cartas, repletas de um tal ódio e fúria, sãodifíceis de ler. Muitas delas são violentas e irracionais. Na sua maiorparte anónimas, criticam membros da família, amigos e colegas.Além de denunciarem judeus, as acusações iam desde ouvir a BBCa dizer-se coisas negativas sobre os alemães, ou à infidelidade demulheres cujos maridos eram prisioneiros de guerra, ou quemcomprava ou vendia artigos no mercado negro.

Os acontecimentos deste livro são baseados em pessoas eeventos reais, mas alterei alguns elementos. Na vida real, foi asecretária Miss Frikart quem acompanhou a condessa ao quartel-general nazi para falar com o Dr. Fuchs. Foi Miss Reeder quem

disse acerca dos livros que «nenhuma outra coisa possui aquelamística capacidade de nos fazer ver com os olhos de outraspessoas. A Biblioteca é uma ponte de livros entre culturas», quandopublicitou o Serviço dos Soldados. Além disso, condensei o tempoapós o primeiro encontro de Miss Reeder com o Dr. Fuchs. Acondessa estava fora, na sua terra natal. O seu encontro com MissReeder e o pessoal ocorreu uns meses mais tarde.

O meu objectivo ao escrever este livro foi partilhar este capítulopouco conhecido da história da Segunda Guerra Mundial e fazerouvir as vozes dos corajosos bibliotecários que desafiaram os nazispara ajudarem leitores e partilharem o amor da literatura. Quisexplorar as relações que fazem de nós quem somos, bem como amaneira como nos ajudamos ou prejudicamos uns aos outros. Aspalavras que usamos moldam percepções, tal como os livros quelemos, as histórias que contamos uns aos outros e as histórias quecontamos a nós mesmos. O pessoal estrangeiro e os sócios daBiblioteca eram considerados «estrangeiros inimigos», e váriosforam presos. Sócios judeus não eram autorizados a entrar na BAPe muitos foram mais tarde mortos em campos de concentração.Uma amiga disse que acredita que, quando lêem histórias passadasna Segunda Guerra Mundial, as pessoas gostam de se perguntar oque teriam feito. Julgo que uma pergunta melhor é o que podemosfazer agora, para que as bibliotecas e a aprendizagem sejamacessíveis a todos e para tratarmos as pessoas com dignidade ecompaixão.

AGRADECIMENTOS

Un grand merci à extraordinária agente Heather Jackson, pela suabondade e por ter encontrado a casa perfeita para A Biblioteca deParis, e à sua co-agente, Linda Kaplan, por levar o livro à atençãode agentes e editores de todo o mundo.

Um tremendo obrigada à equipa da Atria, desde a minha editora,Trish Todd, que me convenceu com as suas primeiras palavras,«Conquistaste-me com o sistema decimal de Dewey», até LibbyMcGuire, Lindsay Sagnette, Suzanne Donahue, Leah Hays, MarkLaFlaur, Ana Perez, Kristin Fassler, Lisa Sciambra, Wendy Sheanin,Stuart Smith, Isabel DaSilva e Dana Trocker. A todos agradeço oapoio e o entusiasmo. Sentidos agradecimentos a Lisa Highton e aKatherine Burdon, e à equipa da Two Roads no Reino Unido. Umasalva de palmas às revisoras Tricia Callahan e Morag Lyall pela suaatenção a todos os pormenores.

Muito obrigada ao meu marido, à minha irmã e aos meus pais, bemcomo aos meus amigos e colegas que leram rascunhos e cujoencorajamento me fez continuar: Laurel Zuckerman, Diane Vadino,Chris Vanier, Wendy Salter, Mary Sun de Nerciat, Adélaïde Pralon,Anna Polonyi, Maggie Phillips, Emily Monaco, Jade Maître, Anca

Metiu, Alannah Moore, Lizzy Kremer, Kaaren Kitchell, RachelKesselman,

Marie Houzelle, Odile Hellier, Clydette e Charles de Groot, JimGrady, Susan Jane Gilman, Andrea Delumea, Maddalena Cavaciuti,Amanda Bestor-Siegal e Melissa Amster.

Cresci a amar bibliotecas e livrarias. Precisamos desses espaçosmais do que nunca, e agradeço aos dedicados e esforçados livreirose bibliotecários que criam estes paraísos literários.

Bestseller do New York Times, do USATODAY e do Washington Post

Eleito o livro mais esperado do ano peloLibrary Journal e Goodreads

Baseada na verdadeira saga dos heróicosbibliotecários da Biblioteca Americana emParis durante a Segunda Guerra Mundial,esta é uma inesquecível história de amor,

amizade, família e sobre o poder da literaturapara nos unir. A Biblioteca de Paris mostra

que o heroísmo extraordinário pode, porvezes, ser encontrado nos lugares mais

silenciosos

Paris, 1939. A jovem Odile Souchet tem tudo: um bonito namorado

polícia e um emprego de sonho na Biblioteca Americana em Paris.No entanto, quando a guerra estoura e os nazis marcham sobre acidade, Odile corre o risco de perder tudo o que é importante paraela, incluindo a sua amada biblioteca. Porque os livros contêmpalavras proibidas e ideias que devem ser destruídas, sabe que, nosmomentos difíceis, os templos da cultura estão em perigo. Odile nãopode permitir que isso aconteça: ela deve salvar essas páginas,para que possam alimentar a mente de quem chegar depois. Comos seus companheiros, junta-se à Resistência com as melhoresarmas que possui: os livros. Coloca o centro à disposição dosjudeus: expulsos das suas casas, sentem-se seguros entre os livros,e Odile defendê-los-á, custe o que custar. Contudo, quando aguerra, finalmente, termina, em vez da liberdade, Odile sente ogosto amargo de uma indescritível traição.Montana, 1983: Lily é uma adolescente solitária em busca deaventura. A sua velha vizinha solitária desperta-lhe o interesse.Conforme Lily vai sabendo mais sobre o passado misterioso davizinha, descobre que partilham o amor pela linguagem, os mesmosanseios e o mesmo ciúme intenso, sem suspeitar que um obscurosegredo do passado as liga.

Os elogios da crítica:«Uma carta de amor a Paris, ao poder dos livros e à beleza dasamizades.»Booklist

«Um romance encantador, rico em detalhes... Os leitores deliteratura histórica deixar-se-ão envolver pelo realismo da narrativa e

pela amizade que se constrói entre uma viúva e uma jovemsolitária.»Publisher's Weekly

«O livro mais desejado dos últimos anos.»The Guardian

«Inteligente e sensualmente rico... Um romance feito sob medidapara aqueles que apreciam livros e bibliotecas.»Kirkus Review

«Bem estruturado e ricamente povoado.»New York Journal of Books

«O que torna A biblioteca de Paris uma leitura tão terna é aexperiência da autora# A sua pesquisa meticulosa dá vida àspersonagens#. Juntas, as verdadeiras histórias fornecem uma visãomaravilhosa sobre relacionamentos e amizades que transcendem otempo e o lugar.»«O que torna A biblioteca de Paris uma leitura tão terna é aexperiência da autora# A sua pesquisa meticulosa dá vida àspersonagens#. Juntas, as verdadeiras histórias fornecem uma visãomaravilhosa sobre relacionamentos e amizades que transcendem otempo e o lugar.»

«Um romance irresistível e totalmente envolvente que irá agradaraos bibliófilos e aos fãs de ficção histórica.»SUNDAY EXPRESS

«Cativante, ricamente alinhavado.»Woman's world

Janet Skeslien Charles é a autora premiada de Moonlight inOdessa, que foi traduzido para dez idiomas. Tem tambémpublicados pequenos textos em revistas como a Slice e a MontanaNoir.Janet começou a interessar-se pela incrível história real dosbibliotecários que enfrentaram o "protector do livro" nazi quandotrabalhava como gerente de um programa na Biblioteca Americanaem Paris.O seu romance A biblioteca de Paris será publicado em trintapaíses. Divide o seu tempo entre Montana e Paris.www.jskesliencharles.com

Título original:The Paris Library

Edição em digital: julho de 2021

Copyright © 2020 by Janet Skeslien CharlesEsta edição foi publicada por acordo com Kaplan/DeFiore Rights

através de The Foreign Office

© desta edição:2021, Penguin Random House Grupo Editorial Unipessoal, Ld

Tradução: Ester CorteganoRevisão: Madalena Alfaia

Capa: adaptação de Teresa Coelho sobre design gráficode Riccardo Gola/PEPE nymi, sob direcsão artística de Stefano Rossetti

Tradução: Ester CorteganoRevisão: Madalena Alfaia

Capa: adaptação de Teresa Coelho sobre design gráficode Riccardo Gola/PEPE nymi, sob direcsão artística de Stefano Rossetti

ISBN: 978-989-784-395-2

Composição digital: Newcomlab S.L.L.

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[1] Bram Stoker, Drácula, tradução de Ana Falcão Bastos e Cláudia Brito: Lisboa, Relógiod'Água, 2017. (N. da T.)

[2] Fiodor Dostoievski, Crime e Castigo, tradução de Joaquim Leite: Porto, Civilização,1974. (N. da T.)

[3] Em inglês, respectivamente e à letra, french kiss (beijo francês), french toast (tostafrancesa) e french fries (batatas fritas francesas). (N. da T.)

[4] Charles Dickens, Tempos Difíceis, tradução de Daniel Jonas: Lisboa, Relógio d'Água,2016. (N. da T.)

[5] Robin: tordo-americano. (N. da T.)[6] Ao contrário do que acontece em português, em que se designam os grupos de aves,

de modo geral, como «bando», em inglês existem diferentes, e curiosos, nomes colectivospara as diferentes espécies. Optou-se aqui por traduzi-los à letra, para dar ideia da suadiversidade e efeito de estranheza. (N. da T.)

[7] Ordeal: provação, infortúnio, suplício. (N. da T.)[8] Louisa May Alcott, Boas Esposas, tradução de Isabel Veríssimo: Lisboa, Oficina do

Livro, 2016. (N. da T.)[9] No original, itsy-bitsy. (N. da T.)[10] Herman Melville, Moby Dick, tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves:

Lisboa, Relógio d’Água, 2005. (N. da T.)[11] Trocadilho com hairdresser, cabeleireiro. Enquanto hair significa cabelo, heir significa

herdeiro. (N. da T.)[12] Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho, tradução de Alice Gomes: Lisboa,

Editorial Aster, s.d. (N. da T.)[13] Charlotte Brontë, Jane Eyre, tradução de Maria Fernanda Cidrais: Lisboa,

Civilização, 2012. (N. da T.)[14] Katherine Paterson, Ponte para Terabítia, tradução de Rita Simões: Lisboa, Dom

Quixote, 2007. (N. da T.)[15] Edith Wharton, A Idade da Inocência, tradução de Teresa de Sousa Gomes: Mem

Martins, Europa-América, s.d. (N. da T.)[16] No inglês, buck. (N. da T.)[17] William Shakespeare, Como Lhe Aprouver: Porto, Lello & Irmão, 1955. (N. da T.)[18] A deal: acordo, negócio. Ordeal: provação, suplício. (N. da T.)

Índice

A biblioteca de Paris

Capítulo 1. OdileCapítulo 2. LilyCapítulo 3. OdileCapítulo 4. LilyCapítulo 5. OdileCapítulo 6. OdileCapítulo 7. MargaretCapítulo 8. OdileCapítulo 9. OdileCapítulo 10. OdileCapítulo 11. OdileCapítulo 12. LilyCapítulo 13. OdileCapítulo 14. OdileCapítulo 15. OdileCapítulo 16. OdileCapítulo 17. OdileCapítulo 18. OdileCapítulo 19. Miss ReederCapítulo 20. OdileCapítulo 21. LilyCapítulo 22. Odile

Capítulo 23. OdileCapítulo 24. OdileCapítulo 25. OdileCapítulo 26. LilyCapítulo 27. OdileCapítulo 28. MargaretCapítulo 29. OdileCapítulo 30. OdileCapítulo 31. OdileCapítulo 32. BorisCapítulo 33. LilyCapítulo 34. OdileCapítulo 35. PaulCapítulo 36. OdileCapítulo 37. OdileCapítulo 38. OdileCapítulo 39. LilyCapítulo 40. OdileCapítulo 41. OdileCapítulo 42. O Quarteto da BarbeariaCapítulo 43. OdileCapítulo 44. LilyCapítulo 45. OdileCapítulo 46. LilyCapítulo 47. OdileCapítulo 48. LilyNota da autoraAgradecimentos

Sobre o livroSobre Janet Skeslien CharlesCréditosNotas