Os Corpos - Google Groups

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© R.R.

Rodrigo Magalhães nasceu em 1975.É livreiro. Vive em Lisboa.

Em casa, Ema andadescalça, e a primeira coisaque faz quando chega élivrar-se dos sapatos. Comeuma maçã na cozinha àsescuras, encostada ao lava-louças, olhando pela janela.O casal da casa defrontediscute na sala de estar,diante dos dois filhos,nenhum dos quais deixa deolhar para a televisão. Nasala liga ela própria a

televisão. Está a passar nonoticiário uma notícia sobreo homem que autopsiouessa tarde. Já não selembrava dele. A morte é agrande niveladora.

Rodrigo Magalhães

Título: Os CorposAutor: Rodrigo Magalhães1.ª edição em papel: Setembro de 2017Revisão: Carlos Pinheiro

Design da capa: Rui Rodrigues · Quetzal Editores

© Rodrigo Magalhães e Quetzal Editores[Todos os direitos para a publicação desta obra em Língua Portuguesa, excepto Brasil,reservados por Quetzal Editores]

Quetzal EditoresRua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 11500-499 [email protected]. 21 7626000

ISBN: 978-989-722-422-5

Para a Salomé, decifradora

e para a Lúcia, anjo desta história,que tentou salvar este livro da irrelevância.

NO PREFÁCIO À SUA NOVELA Os Náufragos do Batávia, Simon Leyscomeça por fazer uma advertência ao leitor, dando-lhe conta do seulongo interesse pelo caso desse naufrágio e aproveitando a ocasiãopara assinalar o facto de existir já um outro livro sobre o assunto,em tudo superior ao seu. Depois, resignado, conta na mesma a suahistória, esperando pelo menos que isso convença os leitores alerem o livro a que se referiu. Passa-se algo semelhante com estelivro, com uma diferença importante e que é o facto de, emboratendo contado na mesma a minha história, saber de antemão queoutros a contariam melhor. Ao contrário de Leys, sempre atento aqualquer novo volume sobre o naufrágio, não li nenhum livro sobre oassunto, mas sei que existe pelo menos um, escrito por umaaustraliana chamada Kerry Greenwood, autora de uma série depoliciais que têm como protagonista a flapper Phryne Fisher, osquais também não li. Seja como for, o caso, real, apresentavapossibilidades romanescas que não eram de desprezar.

Deu-se na Austrália, na praia de Somerton, em 1948. Umhomem apareceu morto no areal. Bem barbeado, bem vestido, umcigarro apagado por trás da orelha. Não trazia quaisquerdocumentos de identificação. As etiquetas da sua roupa tinham sidocortadas, não arrancadas, e não apresentava sinais de violência.Supôs-se que teria sido um veneno a matá-lo, mas a autópsia nãorevelou indícios de substância alguma. Os seus últimos passosforam mapeados, com alguma certeza, a partir de objectos que

trazia nos bolsos e de testemunhos. No entanto isso não chegoupara que conseguissem identificá-lo e, numa iniciativa inédita nosanais da polícia australiana, decidiu-se embalsamar o cadáver. Ocaso, já de si misterioso, ganhou novas dimensões com adescoberta de um pedaço de papel, escondido num compartimentosecreto no bolso das calças do homem. No papel estavam duaspalavras: Taman Shud. A polícia, num gesto de grande graciosidadeliterária, pediu ajuda aos bibliotecários da cidade, os quais nãodemoraram a estabelecer que as palavras podiam ser encontradasna última página do Rubaiyat, de Omar Khayyam, apontando, deforma igualmente rápida e escrupulosa, que a grafia correcta seriaTaman Shod ou Tamam Shud. A partir daqui o mistério não tinhasenão como adensar-se. Não me alongarei. A informação pertinentepode encontrar-se na internet, onde, por acaso, descobri a história.Pode começar-se por aqui:https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Taman_Shud.

Resta uma questão. Porquê escolher de tão suculento manjarapenas uma pequena porção, para mim central mas ainda assimdiminuta? A morte é o nosso destino partilhado. Na incapacidade dese dizer alguma coisa sobre ela, permanece a possibilidade decircular em seu redor.

Please, accept the mystery!

JOEL & ETHAN COEN, A Serious Man

O primeiro corpo

Look in my face: my name is Might-Have-Been;I am also call’d No-More, Too-Late, Farewell.

DANTE GABRIEL ROSSETTI, A Superscription

TALVEZ

CERTA VEZ VOLTOU DOS BILHARES com o nariz partido. Abusara da ironiacom um dos jogadores, um gordo de cabelo lambido e blusão denapa, que sem aviso lhe dera uma cabeçada, voltando em seguidapara o jogo, gabando-se daquilo que acabara de fazer. Os seus doisamigos aproximaram-se dele, tremendo de medo do gordo, temendotambém que ele procurasse alguma espécie de retaliação que oscolocasse a todos em perigo. Mas não conseguia sequer levantar-sesozinho e tiveram de ampará-lo até casa, segurando-lhe a mãoenquanto abria a porta do prédio e carregando-o depois escadaacima. À porta de casa, e como não conseguia indicar a chavecorrecta, as mãos tremendo, um dos amigos tocou à campainha. Foia mãe que veio abrir. Olhou para ele, abanando a cabeça, e recusoutocar-lhe. Não os deixou entrar, antes esperando que o filho maisvelho viesse do fundo da casa buscá-lo à porta. Suspirou quandoviu aquilo de que se tratava. Pegou no irmão, passando o braço delesobre o seu ombro. Algumas gotas de sangue pingaram para otecido azul do pijama. Os dois rapazes aperceberam-se então doroupão creme da senhora e dos seus pés nus. Já estavam todos nacama e eles ali à porta, a empatá-los. Iam dizer alguma coisa para

se desculpar quando ela lhes fechou a porta na cara, confirmandoque dali não deveriam esperar refúgio. Depois desse incidentepareceu que se endireitava. Regressou aos hábitos antigos, essesde acordar cedo, ir às aulas, não se fiar demasiado na inteligência.Passava mais tempo em casa. Quando se ausentava informava amãe do sítio onde poderia contactá-lo. Ao contrário do que elapensava, fazia-o por si próprio. O incidente com o gordo deixara-oaterrorizado. Sabia, claro, que do outro não havia mais nada aesperar e bastava que não voltasse a provocá-lo. Aquilo que temiaera que outro qualquer, mais rápido e mais forte, o escolhesse deforma aleatória, matando-o no próprio local ou levando-o,imobilizado, para algum local remoto onde seria torturado e sódepois assassinado. Passou a sonhar com isto, passando noitesquase em claro, acordando do mesmo pesadelo a intervalosregulares, sempre tenso, angustiado. Levantava-se cedo e ia àsaulas porque não dormia. Apresentava-se de olhos vermelhos emantinha-se acordado escrevendo tudo aquilo que se dizia na aula,não só aquilo que era dito pelo professor mas também aquilo que osalunos diziam entre si, em surdina. Quando era chamado a intervir,coisa rara, fazia-o com concisão e inteligência, até nas matériasmais difíceis. Mas tomava o seu tempo, escolhendo os termos maiseconómicos. A falta de sono entorpecia-o e por vezes falhava-lhe avoz. Terminando, voltava a sentar-se, retomando a redacção. Nafaculdade era quase anónimo e ninguém falou daquilo que sepassara nos bilhares. Ainda assim passou a sentir da parte dos seusamigos uma certa frieza, um decréscimo de entusiasmo quando oencontravam, como se temessem que a sua fraqueza fosseinfecciosa. Compreendia-os. Não seria ele capaz de fazê-lo, se ospapéis se invertessem e lhe coubesse a oportunidade de se

desinteressar do assunto? Há apenas uma medida tolerável demiséria alheia.

O irmão, achando que isso serviria para ajudá-lo a recuperar,filiou-o numa juventude partidária, sob o público pretexto de lhe daralguma coisa a que pudesse agarrar-se, uma ideologia parasustentá-lo. Iam juntos às reuniões, duas vezes por semana. Opartido era de centro-direita e a ideologia, vaga, mas aprendeu agostar das reuniões. Fez alguns conhecimentos, daqueles que oirmão não se cansava de dizer que lhe seriam úteis no futuro.Apreciava o fervor posto nas discussões, embora desconhecesse asvantagens efectivas da aprovação de determinada moção emdetrimento duma outra. Na realidade não lhe interessava. Limitava-se a sentar-se lá atrás, ao lado do irmão. Quanto mais tempodurassem as discussões mais tempo demoraria a voltar para casa,para o seu combate nocturno, no qual, como aprendeu ao ler Hegel,era ambos os combatentes e o próprio combate. Isso não fazia comque dormisse melhor, mas ajudava-o a encarar a provação comoutro ânimo, como se a mitificasse e a tornasse de algum modomais digna. Não falou a ninguém dos pesadelos e não deu trocoquando lhe perguntaram a razão pela qual parecia estar sempre tãocansado.

O irmão arranjou uma namorada e começou a dormir fora quasetodas as noites, não demorando para que se mudasse a títulodefinitivo. Restaram ele e a mãe, que à noite adormecia na saladiante da televisão, e por ali acabava por ficar, muito direita no sofá,parecendo alerta e fingindo apenas estar a dormir. Aprendeu a nãose preocupar com a leveza aparente do sono dela e, deixando-a nasala, servia-se da garrafa de brandy, escondida num armário dacozinha. Bebia um ou dois pequenos goles sôfregos e depois

voltava a colocá-la no lugar. Uma dose mais generosa garantiria umefeito mais potente, talvez uma noite mais descansada, mas nãopodia arriscar-se a fazê-la desconfiar. Planeava comprar umagarrafa de substituição, mas só quando esta estivesse já perto dofim. Poderia então bebê-la quase toda, essa garrafa futura, eassegurar-se uma noite de merecida letargia. Só não sabia com quedinheiro. Dependia da mãe, que lhe dava abertamente dinheiro paratabaco, embora ambos dissessem que ele não fumava. Pagava-lhetambém as propinas, a comida, a renda de casa, todo o tipo decontas, calçava-o e vestia-o. O dinheiro que lhe davam os avós erabom mas demasiado restrito, só nos anos e no Natal. Mantinha-secomo podia, embora, em abono da verdade, não tivesse grandesgastos. Apenas criara esta ideia de si próprio, essa ilusão de seacreditar a viver no limiar da pobreza, como repetiriam os seusbiógrafos. A verdade era que lhe faltava ainda fazer alguma coisadigna de nota. Mas não duvidava de que viria a ser parte de algumacoisa maior. Imaginava a posteridade, perdendo-se nessesdevaneios. Por uma vez era ele quem triunfava. Depois o tempopassava, o pó acumulava-se nos cantos, a vida não mudava. Porisso continuou a ir às reuniões, onde antes só ia para encontrar oirmão. Mas o primogénito deixou caducar a filiação política e elepassou então a sentar-se sozinho naquela sala cheia dedesconhecidos. Algumas amizades teriam de ser feitas se pretendiacontinuar a assistir às reuniões, pois, apesar de tudo, esse era oúnico sítio onde lhe parecia que se poderia dar alguma coisa.Passou então a sentar-se mais à frente, onde se estava, de modosimultâneo, mais perto da acção e num dos pontos propícios àinteracção. Foi aí que se conheceram, ele e Mario, que lhe disseque ia ser jornalista. Daqueles que marcam uma época. Coisa para

três ou quatro Pulitzer, se não tivesse tido o azar de nascer nestepaís de merda! Mesmo assim faria aquilo que lhe competia. Sabiaque daí a muitos anos ainda falariam dele e das coisas que ajudaraa construir. O seu nome seria sinónimo de algo significativo. Naverdade, pareceu-lhe embriagado, embora não tartamudeasse.Tinha até uma certa capacidade articulatória que lhe conferiaautoridade sobre quem o ouvia. Apresentou-se dizendo apenas quese chamava Mario, ao contrário de todos os outros que se tinhamsentado antes dele, fazendo questão de afirmar os seus sonantesnomes de família, todos parecidos e dados à confusão. Repetiu onome dele de olhos fechados, como que para melhor o memorizar.Quando os reabriu continuou a falar. Sob pseudónimo já escreviapara uns quantos sítios. Elogiavam-lhe a gramática e a ironia. Sabiaporque sabia que estava destinado a voos mais elevados. Aoterminar ria-se, cúmplice. Era então que na sua presença os outrosse tornavam mais vulneráveis. Havia alguma coisa de convidativonaquele riso. Eram seus iguais, percebiam a piada, podiam rir. Marioconvidava os outros a acompanhá-lo, mas apenas se oentendessem.

Voltaram a encontrar-se na reunião seguinte. Abriu muito osolhos quando o viu chegar. Parecia que esperara nunca mais voltara vê-lo. Apertou-lhe a mão, demorando-se mais do que serianecessário, envolvendo a mão dele entre as suas. Temeu quequisesse levá-lo para a cama. Já lhe tinha acontecido antes. Estavasentado a ouvir as ruminações de um aspirante a subsecretáriosobre a política de pescas da nação e ouvia alguém ocupar acadeira ao lado da sua. Virava-se e lá estava um rapaz, da suaidade ou por vezes um pouco mais velho, sorrindo-lhe. Aconteceravárias vezes. Tivera de se escusar sempre, de modo mais ou menos

agressivo. Mas isso não significava que desdenhasse totalmente daideia. Já dera por si a fantasiar com isso enquanto se masturbava.Mas estas abordagens eram sempre erradas e compreendia agora anoção de virgindade, esse saber preservar-se. Desde sempre sósoubera gastar-se. Orgulhava-se disso, embora não o admitisse aqualquer um. Mas poderia admiti-lo a um amigo, algo que muita faltalhe fazia. E amante algum poderia ajudá-lo a sentir-se maisacompanhado. Tornara-se um desses homens que se confessamapenas com a maior das dificuldades, um género taciturno que atraium tipo peculiar de mulher, dessas que os supõem pecadoresmesmo que o não sejam e pretendem redimi-los, a bem ou à força,se tal se revelar necessário. Acabavam por fugir dele. Em sua casajulgava-se que era ele que as punha a andar. A mãe falava dissocom a futura nora diante dele e do irmão. Ele encolhia os ombros.Falava com o irmão sobre futebol enquanto a mãe, de turbante,deslumbrava a outra com a sua interpretação da vida sentimental dofilho, seus vícios e virtudes. Também à mãe não se confessava. Quesabia ela? Quando falava disso com o irmão, as mulheres nacozinha a lavar a louça, este perguntava-lhe sempre se lhe queriacontar alguma coisa. Ria-se, fanfarrão. Dizia que não precisava depsiquiatras. Depois ficavam em silêncio, a fumar e a ver as notícias.Não contava fosse a quem fosse, era coisa para se partilhar com umamigo, que era aquilo que precisava que Mario, ou qualquer outro,fosse para ele.

Conseguiu libertar a sua mão da de Mario e sentou-se. O outrocomeçou de imediato a falar, mas desta vez em surdina. Havia umtipo que lhe devia uns dinheiros e com o qual combinara encontrar-se depois da reunião. Ele estaria interessado em acompanhá-lo?Era num café de má fama, não muito longe da sala onde se

reuniam. Conhecia o local apenas de nome. Nem sequer lheocorreu que pudesse ser perigoso. Disse que sim. Mario sorriu,satisfeito. Depois levou um dedo aos lábios. Recostou-se econtinuou a assistir a uma exposição sobre os parquímetros e osinconvenientes da sua colocação. Ficou surpreendido que nãodissesse mais nada. Tomara-o por um desses faladorescompulsivos, que não conseguem manter-se calados. E talvez fossemesmo esse o caso. De cada vez que olhava para ele, o outrolevava o dedo aos lábios e procurava não se rir. De certo modo,comportava-se como uma criança. Tudo aquilo que fazia era feitocom total seriedade. E isso incluía este faz-de-conta de que apenasos dois estavam a par. Entretanto a facção dos interessesorganizados digladiou-se com a facção menor do interesse público.Quando a reunião terminou, foi dos primeiros a sair, convencido deque Mario o seguia, apenas para chegar à rua e perceber que afinalestava sozinho. Ficou parado a olhar para a porta, por entre osafiliados que iam saindo. Talvez o tivessem retido. Acendeu umcigarro. De certeza que não demorava. No entanto teve tempo deacabar de fumar esse cigarro e também de encontrar alguns dosfamigerados contactos que o irmão o incentivara a fazer. Falavamde coisas que não fazia qualquer esforço para entender,concordando e atirando, a intervalos, com uma frase feita, naesperança de se ver livre deles. Mas eram tenazes. E comoconheciam muitos dos outros, tendiam a agregá-los à sua volta, semque se deslocassem um milímetro que fosse da sua presa inicial, aprimeira vítima da sua oratória, procurando talvez exibi-la como umtroféu. Deixou-se então ficar onde estava, sorrindo e apertandomãos. Mario acabou por sair e fez-lhe sinal com a cabeça para queo seguisse, sem se preocupar em aproximar-se do grupo. Despediu-

se dos seus convivas. Ficaram a vê-lo ir-se embora sem dizer nada.Depois regressaram à sua tertúlia, já esquecidos dele, ou assim oimaginava enquanto procurava não correr para alcançar o outro.Conseguiu alcançá-lo ao fundo da rua. Parou de imediato e virou-separa trás, olhando por cima do ombro dele, como se verificasse seeram seguidos. Depois acendeu um cigarro. Limpou o nariz com ascostas da mão, a fungar. Os olhos por trás das hastes redondasfitavam-no com uma intensidade lânguida. Esperamos ali, do outrolado da rua, disse ele apontando para um toldo amarelo, sob o qualse foram abrigar. Não sabia aquilo de que estavam à espera e nãoperguntou. Procurou interessar Mario naquilo que achara do seuencontro com os outros, mas sem qualquer sucesso. Passeava paratrás e para diante, levando o cigarro aos lábios e juntando depois asmãos atrás das costas enquanto caminhava, sem olhar para ele enão respondendo. Acabou por se calar. Acendeu também umcigarro, abrigado à entrada da loja de desporto, escondendo-se dofoco de luz emitido pelo candeeiro, procurando ao menos ver antesde ser visto. Mario não tinha tais preocupações. Parecia indiferenteao facto de ser visto ali. Continuava a sua caminhada circular, paraadestrar a impaciência, quando estacou e ergueu as mãos ao céu.Ao fundo da rua perfilava-se um rapaz, que lhe imitou o gesto mascomo que desculpando-se. Dirigiu-se-lhe e abraçou-o. Apresentou-ocomo o seu amigo artista, sem dizer o nome, mas ele não seimportou. Estendeu a mão ao tipo de barba e ombros largos.Qualquer amigo de Mario era agora seu amigo.

O café ficava do outro lado da rua, num primeiro andar. Tinhamde subir umas escadas exteriores. Durante a espera não viraninguém subir e apenas dois rapazes tinham descido. Não pareciamdiferentes dele. Deixou que os outros subissem à frente, em

silêncio. Esperou com Mario no patamar enquanto o artista seguia, aver se já tinha chegado aquele que lhes interessava, reaparecendopouco depois. O puto já lá está, disse ele. Faço isto sozinho, sequiseres. Suavemente. Mario discordou. Ele ficaria no patamar,pronto a deter um rapaz louro, mesmo louro, vestido de preto, botasda tropa, a parafernália óbvia. Os outros iam lá acima. Nãodemoravam. Ficou sozinho, a repetir que o rapaz seria muito louro.Acendeu um cigarro para parecer perigoso. Subiram duas raparigasa conversar, sem sequer olhar para ele. Desceu aquilo que sópoderia ser uma banda, duas caixas de guitarra, um estojo de baixo,uma tarola, os quatro de preto mas nenhum deles louro. Esse nãodemorou a aparecer, de braço dado com o artista, não como se seamparassem mas antes como se este o usasse como um escudo.Parecia assustado, e ainda mais depois de vê-lo. Mario desceuatrás deles. Ordenou ao rapaz que se ajoelhasse. Este obedeceu. Oartista, com a mão que trazia enfiada no bolso do casaco, apontou-lhe à nuca com aquilo que parecia ser um revólver. Pede desculpa,disse Mario. O artista deu-lhe uma pancada com o que poderia ser ocano da arma. E depois outra, e ainda uma terceira. O rapazcomeçou a chorar. Balbuciou um pedido de desculpa. Mais alto,disse Mario. Depois piscou-lhe o olho e, por gestos, deu-lhe aentender que era a sua vez de entrar em cena. Repetiu a ordem. Oartista deu outra pancadinha. E ele deu um passo em diante, nãoum passo, apenas a sugestão de um passo, endireitando-se. Atirouo cigarro para o chão. Mais alto!, ouviu-se dizer com rispidez. Osoutros sorriram, enquanto o rapaz fungava e dizia, entre soluços, oquão arrependido estava. Agora dá-lhe o dinheiro, disse Mario, e viuque o outro, tremendo, lhe estendia um molho de notas. Agarrou odinheiro. Depois pontapeou o rapaz nos testículos, com toda a força

que tinha, talvez procurando fazer com que pagassem todos de umavez, o filho da puta do gordo, a mãe e as suas opiniões sobre ele, oirmão e a sua inacção, a mulher do irmão a olhar para ele compena, os conhecimentos do partido a apertarem-lhe a mãomolemente, todos. Os outros pareceram surpreendidos eapressaram-se a levá-lo dali. Deitado no chão ficou aquele que eramuito louro, dobrado, a gemer. Quis voltar atrás e voltar a pontapeá-lo. Nunca fora assim tão violento com ninguém. Soubera-lhe bem oexercício arbitrário desse poder. Mas arrastaram com ele escadaabaixo, ao fundo viraram à direita e empurraram-no por umasarcadas próximas. Sentia os corpos deles contra o seu, algumacoisa pontiaguda espetando-o entre as costelas, lembrando-lhe queo artista tinha uma arma, e não pensou mais em debater-se. Deixouque o levassem. Mantiveram-se calados durante todo o trajecto,excepto quando se aproximavam demasiado de outras pessoas.Nessas alturas era Mario quem começava a falar, sobre a primeiracoisa que lhe ocorresse, fosse isso o mercado de capitais, um filmeou alguma coisa mais pessoal, dirigindo-se ao artista, que lherespondia no mesmo exacto tom, algo exagerado, empregado paraconvencer quem os ouvisse de que discutiam já com algum calor.Por si continuou calado. Já nem sequer o empurravam. A presençada arma tornara-se óbvia para os três e tornara desnecessáriaulterior intimidação. Só pararam umas ruas adiante, num salão debilhares. Só no interior se apercebeu do local onde estava, o mesmoonde o gordo o destruíra com uma única cabeçada. Olhou em redor,em busca da silhueta inchada do outro, à escuta do seu riso porcino.Mas não havia quase ninguém no salão e esse não figurava entreos poucos que estavam. Em certas noites ainda sonhava com ele,embora também não figurasse no elenco dos seus pesadelos.

Surgia em alguns sonhos gloriosos, desses que começara a terdesde que conhecera Mario, diferentes daqueles que sonhavaembalado pelos livros, colectivos todos, abstracções. Nesta novaestirpe erguia-se em terrível glória. Derrubava o gordo comsurpreendente facilidade, assassinava-o, e depois arrastava-o pelarua até aos bilhares, à porta dos quais o deixava. As pessoas afumar à porta olhavam para ele com temor enquanto, com as mãosainda cobertas de sangue, entrava para jogar uma partida. Mas noseu regresso ao salão apenas seguiu Mario até uma mesa próximada zona de jogo, incógnito. O artista fechava a fila. Sentaram-se.Aqui podemos conversar à vontade, disse-lhe o amigo. O barulhodas tacadas abafa o som. Veio o empregado. Pediram três cervejas.Já esquecera o odor peculiar dos bilhares, a madeira e giz. Pediramoutra rodada, e Mario explicou-lhe de onde vinha, e para onde ia,aquele dinheiro, em termos vagos e calando-se quando alguém seaproximava.

Escusavas de lhe ter batido, disse o artista depois da terceiracerveja. Olhou para ele com espanto. E tu? Não lhe deste com apistola na cabeça? Os outros dois riram-se. O artista enfiou a mãono bolso do casaco e deste tirou um pequeno objecto metálico, queexibiu na palma da mão. Era um dedal. Enfiou-o na ponta doindicador, perante o olhar divertido de Mario. Bateu com o dedal namesa. No copo de cerveja. Depois fez-lhe sinal para que seaproximasse e ele inclinou-se para diante. O artista imitou umapistola com a mão, apontando-lhe com o dedal, e depois, esticando-se, bateu-lhe com o indicador na testa e ele percebeu por fim,enquanto os outros se riam. E com eles seria sempre assim, algumpormenor que o excluía, algum plano secreto do qual ele não estavaa par, como se não o considerassem digno de saber dessas coisas.

Mario não era seu amigo, não como ele o desejara. Essa honracabia ao artista. Para ele sobravam algumas migalhas. Nada mais,até haver apenas nada. Mas não se apercebeu disso de imediato, etardaria até demasiado tempo a fazê-lo. Nessa noite, sentado entreos dois enquanto se riam dele, acabaria também ele a rir-se doestratagema e a não saber bem como justificar a sua agressividade.É verdade, disse Mario, que aquele não fica a dever mais. Dos trêsfoi ele quem se riu mais alto, mas o raciocínio do outro continuava,dialéctico, contrapondo que o louro também poderia não voltar acomprar e olhando para ele de modo severo. O controlo éimportante, advertiu-o. Baixou a cabeça, envergonhado. Continuouno entanto a acompanhá-los. Os termos em que se processava onegócio tornaram-se mais claros, a cocaína que Mario vendia vinhado depósito de apreensões da polícia, desviada dos registos poralguma mão zelosa untada por um subsecretário, e era depoisdistribuída a partir das sedes da juventude do partido. Era por issoque ficava para trás nas reuniões, a combinar detalhes e aapresentar resultados, como numa empresa. Ofereceu-lhe umaespécie de parceria, ocupando o lugar ao seu lado. Receberia porisso uma percentagem, uma perspectiva que lhe agradou. Olhoupara o artista. E ele?, perguntou. Mario esclareceu-o. Ele faz ascoisas dele e tu fazes as tuas, mas trabalham ambos para o mesmo.Depois chamou o empregado que passava e pediu mais umarodada e a conta, que já se fazia tarde. Acendeu depois um cigarro,enquanto esperava que ele se decidisse. Disse que sim, sempensar. Depois caiu em si e perguntou se era costume haverviolência. Mario garantiu que não, o artista concordou. Já houverauns tabefes, coisa pouca. Nada como aquilo que ele fizera. Oimportante era saber conduzir a conversa, ser implacável com a

rédea e saber conduzir o outro aonde se queria ir. A vantagemnumérica era uma táctica que tornava mais suave o processo decondução. Bastava que parecesse ameaçador e soubesse intervirquando necessário. Não havia qualquer necessidade de deixar queas coisas se descontrolassem. Concordaram todos que a prudênciaera essencial. Voltou a dizer que sim, pensando apenas no dinheiroque lhe pagariam para que parecesse ameaçador.

À mãe disse que arranjara um part-time como moço de recadosnum escritório, o que nem sequer estava muito longe da verdade.Ela achou suspeito. Perguntou-lhe onde era o escritório. Respondeuindicando uma área vaga da cidade, sorrindo e dizendo que nãotinha memória para os nomes das ruas. Como conseguira então oemprego, perguntou ela em seguida. O pai de um colega da escolaera o patrão, disse ele. Como se chamava o colega, insistiu ela. Econtinuou a insistir, embora ele acabasse por responder a todas asperguntas e lhe fosse permitido ir-se. Mas a mãe continuou ainterrogá-lo, a intrigar-se com o seu regresso às saídas nocturnas, aestranhar a ausência de notícias da escola, nem uma reunião depais, nem um boletim com notas, questionando-o também sobreisso. Respondeu-lhe quase sempre com sucesso. Assim que juntoudinheiro suficiente alugou um quarto em casa de uns amigos deMario e deixou-a a falar sozinha.

O tráfico prosperava e dele apenas se esperava que estivessepresente para lucrar. Mario apresentou-o a pessoas do partido, quelhe apertaram a mão e lhe pediram que lhes fizesse uns favores.Lucrou com isso, claro. Deixou de ir às aulas. Saía com Mario todosos dias, por vezes passava o dia com ele. O artista aparecia apenasde tempos a tempos, sempre como uma surpresa. Aprendeu queera mais velho do que eles, vivia para lá do rio, no Sul, e apenas

vinha à cidade de tempos a tempos. Não se misturava com os dopartido. Parecia ter os seus próprios negócios e surgir apenas apedido de Mario. Sobre a sua alcunha, envergonhado, disse apenasque gostava de pintar.

Quando não estava ocupado, lia. Lia muito, por vezes porrecomendação do mentor. Livros sobre espionagem e estratégia.Muita ficção científica, muitas vezes versando o tema da existênciade uma realidade oculta e hostil, existindo por trás da outrarealidade real, num jogo de espelhos e enganos que deliciavamMario e a ele o assustavam, incapaz de imaginar que pudesse haverrealidade mais hostil do que aquela. Mas não se queixava. Estavapor cima e aí pretendia permanecer. Mario dava-lhe agora tarefas demaior responsabilidade, testes dos quais se desenvencilhavasempre bem. Decorava os nomes de todos aqueles com quem secruzava e, para auxiliar a memória, escrevia-os depois em casa numcaderno. Aspirava a autonomizar-se, um dia.

Veio mais um Verão. Esperou por Mario junto a um café, vendo-ochegar por fim, com um saco de pano a tiracolo. Queixou-se docalor. Seguiu-o para o café e sentaram-se numa mesa ao fundo. Ooutro parecia agitado. Tinha agora um telemóvel, que pousara sobrea mesa e fazia rodar, impelindo-o pela antena. Pediu uma águafresca. Pegou depois no telefone, marcou um número e encostou oaparelho ao ouvido. Atenderam de imediato. Disse que sim.Mencionou a água e disse ainda agora mesmo, antes de desligar.Disse-lhe que ia à casa de banho e ergueu-se. Levou o telemóvel,que enfiou no bolso, mas deixou pendurado na sua cadeira o sacode pano. Chegou a água e a sua cola, que ele tomou devagar,sentindo um frio estremecimento nos dentes de cada vez quetocavam num pedaço de gelo. Esperou que Mario regressasse.

Entraram três homens, que olharam em redor. Fixaram-no e doisdeles avançaram direitos a ele, sem pressa. O terceiro ficouencostado ao balcão, junto à porta. Um dos homens, com olhosverdes, perguntou-lhe se se podia sentar. Ele disse que sim e ooutro instalou-se. Suava muito, a testa molhada. Pousou em cimada mesa um crachá da polícia. Deixa-me ver esse saco, disse comvoz cansada.

Passou um terrível mês na prisão até que um advogado ligadoao partido o conseguiu libertar. Não houve julgamento, mas quandoisso aconteceu já dissera o nome de Mario, incriminando-o. Nãomencionou o nome de ninguém que pudesse libertá-lo, ninguém queestivesse acima. Percebeu sem dificuldade quem o tinha traído. Edepois, quando perguntou aos polícias se já tinham encontradoMario, foi-lhe dito que nada daquilo que dissera pudera serverificado. Quando saiu em liberdade procurou o mentor, para queeste se justificasse, mas nunca mais o encontrou.

REMEMORAVA DIANTE DO ESPELHO, enquanto se vestia. Fora tambémMario quem o ensinara a vestir e aprendera com ele a interpretarcom correcção o ambiente onde iria apresentar-se e a saber estarseguro do tipo de impressão que pretendia causar. Acabou porconhecer bem o exercício. Havia até uma lição que, antes de todasas outras, acabou por dominar na perfeição e que consistia naescolha da gravata, a qual agora usava como uma espécie deprimeira pedra do edifício da sua apresentação. Desta vez, e porquena sua opinião a situação exigia alguma solenidade, optou pelagravata vermelha e azul, reminiscente duma gravata do uniforme deum colégio que o seu mentor frequentara. Dispôs a roupa que iriavestir em cima da cama. Depois sentou-se no chão, de pernascruzadas. Inspirou fundo. Fechou os olhos. Concentrou-se narespiração. Todos os dias, ao acordar, procurava reencontrar-seatravés da meditação. E isso não fora algo que aprendera comMario, mas algo que descobrira por si e que contribuíra até paralibertá-lo do alcance do outro. Pelos seus próprios meios nunca oteria conseguido, pois aquele exercia uma misteriosa atracção sobreos que o rodeavam, como um centro magnético ao qual fosseimpossível resistir. Lera há pouco, naquilo que achava que seriaapenas uma biografia de São Paulo, algo que o lembrara de Mario.Interessam-lhe as almas, como a um demónio. Sabia manter osoutros interessados, satisfazendo-lhe as vontades e conseguindoentrar em qualquer sítio. Não era um homem bonito, mas as

mulheres eram atraídas pelo seu espírito, pelo seu humor e por umacerta aura de anarquia que mantinha em seu redor. Não era atlético,mas os outros homens pareciam temê-lo. O artista, por exemplo,parecia preso do mesmo fascínio, e em parte da mesma repulsa,que o mantinham a ele preso ao seu instrutor. Vestiu-se devagar, aouvir na rádio uma canção que lhe recordava, ela também, a terríveldécada de noventa. Desde que se marcara este encontro com Marioque tudo aquilo que o rodeava lhe lembrava o outro e a forma como,apesar de tudo, o carregara durante todos estes anos. Mario era oúnico que restava, aquele que ainda importava. A sua mãe há muitoque morrera. Com o irmão estava pouco. Sabia que tinha uma filhacom a segunda mulher. Mas não havia nada que o irmão lhepudesse dizer que se revelasse útil. Tentara-o demasiadas vezesdesde que morrera a mãe. Não sentia saudades dela, nem tão-pouco o poderia ter ajudado. Sustentada pelo irmão, perdera ocontacto com a realidade, sempre de turbante, começando a fumardepois dos setenta, com boquilha e tudo, recebendo em casa umavariedade de vizinhas e vagas conhecidas, que olhavam para elacom assombro enquanto profetizava, sibilina. Deixou de a visitarquando começou a manter essas sessões. Falavam-se, quando ofaziam, pelo telefone, o mesmo meio pelo qual o irmão lhe deu anovidade. A mãe morreu. Sabia como as coisas se sucediam e já oesperava. Mas, quando foi com o irmão empacotar as coisas dela,sentiu um ligeiro choque ao aperceber-se de que a casa ondemorrera era ainda exactamente a mesma em que ele crescera.Imaginara que a casa, como a mãe, também se tivessemetamorfoseado. De certo modo sentiu-se desapontado. A únicacoisa que mudara fora o cheiro a tabaco, o qual viera entranhar-seem tudo, numa casa onde até há pouco era ele o único fumador de

quem se guardava memória e um que se fazia questão que fumasseà janela ou na varanda. Tal como a mãe previra, advertindo-oquando descobrira que ele fumava, a casa ia ficar toda a cheirar atabaco. Talvez lhe tivesse menosprezado os dotes premonitórios.Mario nunca fumara e também não lhe apreciava o hábito. Tolerava-o, até porque o artista também fumava. Revelava sempre maiortolerância pelos hábitos do mais antigo.

Olhou-se ao espelho. A gravata aparecia muito bem entre aslapelas do casaco, de dupla fiada de botões, cinzento e castanho.Enfiou as mãos nos bolsos. Tinha alguma coisa no direito, umacaixinha rectangular de cartão. Tirou-a do bolso. Uma caixa depastilhas elásticas. Agitou-a. Ainda tinha algumas. Fez cair umadelas para a palma da mão e levou-a depois à boca. Mentol. Saiu decasa adiantado. Decidira na véspera que iria a pé. Não era longe efaria bem em caminhar, para descontrair. Quando chegou aindafumou um cigarro à porta do café. Esperava reconhecê-lo deimediato, apesar de já ter passado tanto tempo. Mas ao perscrutar asala não o encontrou. Ao invés, achou o rosto do artista, agora sembarba e careca. Sorria-lhe, um sorriso triste que lhe conheciadoutras ocasiões. Não lhe agradava o seu papel naquele caso efazia questão de demonstrá-lo à partida. Demorou a decidir se sesentava à mesa do artista ou se lhe virava as costas e saía portafora. Acabou por sentar-se, apertando a mão ao outro antes de ofazer. Trocaram cumprimentos vagos, cordialidades. O empregadoaproximou-se e anotou o pedido dele. Retirou a chávena vazia queestava diante do artista e ajeitou os guardanapos. Quando seafastou, o artista pousou a mão esquerda em cima da mesa. Estavafechada, mas ele apercebia-se do objecto que estava oculto no seuinterior. O seu coração acelerou. O artista olhou em redor. Depois

abriu a mão e retirou-a de cima da mesa, revelando um embrulho depapel. O empregado aproximava-se e sentiu a tentação de usar asua própria mão para esconder o embrulho. Mas não moveu a mãoe calculou, como Mario lhe ensinara. O papel era de motivo natalícioe, apesar de a quadra ter terminado, não estava totalmente fora deépoca. O homem nem sequer repararia nele, ou reparando não fariacaso. Pousou o café e afastou-se, olhando já para uma outra mesadonde o chamavam. Fez que sim com a cabeça, resignado. Nemsequer olhou para a mesa, mas tanto ele como o artista oobservaram durante todo o processo, com a atenção necessária emsemelhantes experiências. Depois o artista voltou a pousar a mãoem cima da mesa, empurrando o embrulho para ele. Pegou-lhe. Eraleve, embora o objecto que envolvia parecesse feito dum materialmaciço. O artista disse que havia instruções no interior e que oabrisse apenas quando estivesse só. Depois ergueu-se e estendeu-lhe a mão, para se despedir. Não voltariam a ver-se, disse. Desejou-lhe boa sorte e deixou-o sozinho. Ficou a olhar para diante, sem sevirar para o ver sair. Não lhe faltaria. Pegou na chávena com mãotremente, a outra pousada no colo com o embrulho na palma e osdedos apertando-o com força, procurando distinguir pelo tacto aforma do objecto oculto. O papel cedia, mas parecia estar envolvidonoutra protecção, e resistia às suas tentativas de lhe delinear o perfilexacto. Desistiu. Tinha quase a certeza de que sabia aquilo queseria. Mas o elemento de incerteza deixava-o ansioso. Enfiou oembrulho no bolso do casaco. Despejou o café em dois golesatabalhoados e levantou-se. Junto ao balcão perguntou a direcçãoda casa de banho, que lhe foi indicada por uma mulher de facesrosadas e olheiras cavadas. Ao fundo do balcão, à esquerda.Agradeceu e despediu-se. A mulher sorriu de forma maquinal, os

cantos dos lábios erguendo-se a custo. Fechou-se no cubículo.Sentou-se sobre a tampa da sanita e tirou o embrulho do bolso. Opapel estava amachucado, árvores verdes com rebordos amarelos,um fundo vermelho. Rasgou o papel e atirou-o para o chão. Porbaixo deste estava gaze cirúrgica. Desenrolou o tecido devagar,suspirando. Debaixo da última camada estava um chauabti, talcomo suspeitara desde que pegara no embrulho. Era de madeira,sem indicação quanto ao nome do seu proprietário. Fora pintado deazul e, sobre este, a negro, acrescentaram-se os olhos e os outroselementos decorativos do homúnculo. Estava munido de umaespada, um homem livre. Nas suas costas estava colado umquadrado de papel, que ele descolou com cuidado. Desdobrou-o.Era a letra de Mario. Na mensagem estava uma morada, junto aomar, a várias horas de viagem do sítio onde se encontrava, e, porbaixo desta, aquilo que poderia ser uma ordem ou uma advertência,«regra n.º 4». Memorizara as regras há muito tempo. A númeroquatro advertia-o para o facto de que seria seguido. Não olhes paratrás; nunca estás completamente sozinho. Fora ele que as ensinaraa Mario. Perceber que o outro ainda se lembrava delas era coisapara o comover. Dobrou o papel e enfiou-o no bolso. Saiuapressado, com a estatueta na mão. Teria de passar por casa, aindaque a urgência pudesse ser grande. Precisava dalgumas coisas ehavia ainda o assunto da empregada, que vinha às quartas-feiras, eà qual devia deixar um recado minucioso. Apanhou um autocarroque o deixava à porta de casa, viajando de pé. Durante o trajectoadmirou o chauabti, segurando-o entre o polegar e o indicador,mantendo-o à altura dos olhos. Como todos os outros que vira, esteera tosco, o corpo esculpido duma única peça de madeira, a boca eo nariz pouco elaborados, um braço ao longo do flanco esquerdo e o

outro erguido junto ao peito, o cotovelo arredondado, desleixado. Namão direita trazia a espada, um traço negro sobre o corpo azul. EraMario quem os esculpia. Adaptara a espada a partir do chicote como qual os capatazes mantinham a ordem no porvir. Chocava-o quehouvesse apenas escravos e amos, que nem depois da morte semudasse o enredo. Os olhos negros fitavam-no, sem expressão.Não parecia nem um pouco mais livre do que os outros. Talvezfosse apenas ele que se libertara de facto do outro e agora, apóspensar tanto nele, tudo lhe parecesse um pouco ridículo. Apeou-sea poucos metros de casa. Levantara-se um estranho nevoeiro.Ergueu a gola do casaco. Passava sempre a quadra natalícia afungar. Constipava-se com facilidade, por mais que se agasalhasse.Em casa ensacou aquilo que lhe pareceu pertinente, deixandodepois o saco sobre a cama, e consultou na internet o horário doscomboios. Tinha quarenta e cinco minutos. Reservou o lugar eimprimiu o comprovativo, que dobrou em quatro e pôs no bolsointerior do casaco. Escreveu um recado, detalhado, que colocousobre a mesa da cozinha e, ao lado, um envelope com o pagamentoda semana. Fechou o gás. Enfiou a mão no bolso, para se certificarde que o chauabti ainda lá estava. Tocou-lhe apenas com a pontados dedos. Mas esse ligeiro toque confortou-o. Sabia que aestatueta era um pobre avatar de Mario e que pouco importavaaquilo que lhe acontecesse. Mas criara um laço com ela e tinhaagora uma superstição que a envolvia. Se algo viesse a acontecer-lhe, ele e Mario não se reencontrariam. Sentia-se no auge das suascapacidades, e o momento era propício. Não queria perder estaoportunidade.

Sai de casa e fecha a porta devagar. A chave fica na fechadura,do lado de dentro. Fica a olhar para a porta, a calcular. Em cima da

cama ficaram o saco e o telemóvel. E tem agora menos tempo parachegar à estação. Não tem onde escrever, isto se quisesse deixaralguma espécie de recado. Hesita. Pensa nos seus possíveisperseguidores. Se de facto o seguem, que notas estarão a tomar?Resigna-se. Suspira e dá as costas à porta, apressado. Ainda sesegue o problema de como chegar à estação. Na rua não avista umúnico táxi e põe-se a caminho, caminhando depressa. Mantém-seatento a automóveis pretos de tejadilho verde, mas sabe que duasou três ruas adiante ultrapassará o ponto em que ainda lhe serãoúteis. Caminha com a mão direita no bolso, apertando a estatuetaazul entre os dedos de unhas bem tratadas. Com a esquerdaaconchega a gola erguida do casaco ao rosto. Tem a carteira, ochauabti e o bilhete com as instruções, tudo aquilo que seriainsubstituível num horário tão apertado como aquele que lhe foiimposto. Pensa depois em Mario, se estará mais gordo ou maismagro, se terá perdido cabelo e quão branco estará aquele que lheresta, se usará ainda os mesmos óculos redondos, trivialidades àsquais não tem como responder. Chega à estação quase sem seaperceber. Atravessa o saguão, procurando discernir no placardelectrónico a linha à qual deve dirigir-se. Vê pior do que costumavaver e tem de se aproximar. Tira do bolso o comprovativo, desdobra-oe verifica o número do comboio. Compara-o com o placard. Linhanúmero 6. Ainda tem dez minutos. Vai sentar-se junto à locomotiva,num banco de madeira onde bate algum sol. A caminhada deixou-oa transpirar. Odeia suar. Tira o casaco e dobra-o sobre o joelho, deforma displicente. O chauabti escorrega do bolso e cai sem ruído,rodando para debaixo do banco. Ele acende um cigarro. Fumadevagar. Está quase a embarcar. Sente-se confiante, apesar doincómodo que lhe provoca a transpiração. Deita o cigarro para o

chão e pisa-o com a ponta do sapato. Põe-se depois em pé e, decasaco dobrado sobre o braço, embarca com agilidade.

NUNCA MAIS

O UNIVERSO ESTÁ EM EXPANSÃO, disse ele para concluir. Tem vindo aexpandir-se desde o início duma de três formas possíveis. Cadauma destas hipóteses propõe antecipar como continuará a suaexpansão e, em última análise, procurar compreender o modo comopoderá terminar esse movimento. Num universo aberto, podecontinuar de modo infinito. Num universo plano também o poderiafazer, mas acabaria por chegar a um ponto em que o crescimentoseria zero. Num universo fechado, chegaria a um ponto em que aexpansão se tornaria impossível e colapsaria sobre si próprio, dandotalvez origem a um outro big bang, um outro início, um outrouniverso. Teremos mais facilidade em imaginar um universo cujaexpansão não tenha um fim, apesar da óbvia contradição que essaideia representa para com a nossa própria experiência daexistência. A essa facilidade chama-se esperança. A ideia de quealgo pode continuar para sempre, ao passo que nós somos finitos,não deixa de ser reconfortante. No entanto, é importante notar queessa esperança só pode ter lugar porque estamos a falar aqui e nãoem Varanasi, onde a ideia do universo fechado, que se destrói ereconstrói, faria apenas parte do folclore local e não encerraria tãoóbvias analogias com a experiência dos ouvintes. Suponho que nocaso da hipotética classe de Varanasi aquilo que mais contradiria a

sua experiência seria a segunda hipótese, na qual a expansão se vêobrigada a chegar a um término e a permanecer nesse estado deimobilidade para sempre. E para sempre, como sabem, é muito,muito tempo. Demasiado tempo para que nada de diferenteaconteça.

Tirou os óculos, dobrou-os e enfiou-os no bolso da camisa. O fimabrupto do discurso pareceu tomar os ouvintes de surpresa. Por fimum aplauso tímido ergueu-se da frente da sala, onde estavamsentados os outros professores. Mas da parte maior do auditório,aquela onde estavam sentados os alunos e os seus pais, a únicacoisa que se ouviu foi um breve suspiro de alívio, cortado cerce pelaintervenção de algum adulto mais atento às convenções. Sabia bemque os alunos o detestavam desde aquele incidente na cafetaria.Seria de esperar que os pais também não lhe dedicassem afecto.

Deixou o palco pelos bastidores, em passo acelerado. Saiu doauditório e atravessou a correr o pátio deserto do colégio, passospesados ecoando entre pavilhões encerrados para as festividades,onde se consagravam os melhores alunos do trimestre anterior. Asagração das bestas, colocara ele como título do discurso, o qual,lembrava-se agora, deixara esquecido no palco. Escrevera-o deuma só vez, ainda sob o efeito daquilo que acontecera. Procuraraescusar-se, invocando o seu estatuto de recém-chegado, mas narealidade pensando já em deixar a escola. Era tradição,responderam-lhe, que fosse um professor novo a proferi-lo, um ritode passagem para o orador e para a audiência. Procurou entãoescrever o discurso como um lamento ou um desabafo, que servisseaqueles capazes de o compreender. Acabara por ficar apenas comum discurso críptico, que ninguém compreenderia. Pouco importava.Só iria adicionar à geral má impressão que se criara em relação a

ele. E o seu desaparecimento, sem uma palavra a ninguém, iriaemoldurar o seu retrato na memória daquela casa. Não opendurariam na parede junto dos fundadores e dos seus honradosherdeiros, mas a sua memória perduraria em infâmia, adicionandoao mausoléu que era a sala dos retratos um cheiro ácido,intoxicante, que se toleraria com estoicismo, como prescreviam asregras da escola. Como prova do seu crime teriam as duas páginasdo discurso, que algum zeloso funcionário se empenharia emconservar para a posteridade. Não seria por isso um anarquista, ouum anticristo. Mas recordá-lo-iam sempre com incómodo, que eratudo aquilo a que poderia almejar um antigo punk.

Na ponta oposta ao auditório ficavam os aposentos dosprofessores, onde conviviam docentes que se tinham tornado parteda mobília, não se imaginando afastados um instante que fosse daescola, e recém-chegados indolentes como ele, demasiadopreguiçoso para procurar o seu próprio alojamento na cidadevizinha. Chegara apenas com uma mala de viagem, afectando umar espartano, apertado no único fato que lhe sobrara da catástrofe.O inventário da sua mala fazia-se de uma penada, mas deespartano tinha apenas a aparência, como depressa puderamcomprovar aqueles que o admitiam nas suas mesas às refeições.Lamentava o desaparecimento da sua biblioteca, sem especificar ascircunstâncias do mesmo. Desgostava-o o som dos discoscompactos e descrevia a sua colecção de vinis, definindo-se comoaudiófilo a quem por essa altura ainda o ouvisse. Por vezes referia-se a uma catástrofe que o acometera, sem nunca se alongar notema. Quando se sentia arrebatado, e porque ensinava literatura,comparava a sua situação à de Auerbach, exilado em Istambul,escrevendo Mimesis de memória, sem outros auxiliares que não os

livros que conseguira carregar na sua fuga. Quando se sentiamelancólico sentava-se longe dos outros, carrancudo, nãorespondendo a quem o cumprimentasse. E, no entanto, quandoentrava numa sala de aula era apenas cordial, claro quando aclareza era necessária e rígido quando lho exigiam. Fazia aquilopara que lhe pagavam, sem esquecer o gosto de ensinar. Os alunosrespeitavam-no, parecendo até que alguns se lhe afeiçoavam, equando por fim chegava à cama sentia que apesar de tudo fizera aescolha certa.

Subiu os degraus dois a dois até ao segundo andar, ondechegou a ofegar. Percorreu o corredor em largas passadas até aoseu quarto. Guardara a mala vazia debaixo da cama. Abriu-a sobrea colcha e esvaziou o roupeiro lá para dentro. Os cabides ficaramcaídos no chão ou pendurados de forma precária no varão. Correu àcasa de banho e voltou com a escova e a pasta dos dentes no bolsodo casaco. Saiu sem apagar a luz, deixando a porta aberta. Desceuas escadas olhando por cima do ombro, como alguém que viesse deabandonar a cena de um crime. Chegado à rua viu que haviaalgumas pessoas à porta do auditório. Aproveitavam uma qualquerpausa na cerimónia para fumar um cigarro e não pareceram vê-lo,entretidos a falar entre si. Arrastou a mala até à portaria, acenou aovigilante e procurou sorrir-lhe, aliviando o nó da gravata vermelha eazul, que decidira usar para conferir solenidade à sua provocação eque levava ainda ao pescoço. O homem limitou-se a erguer a mão eregressou de imediato à leitura do jornal.

A cidade não era distante, mas ainda assim teria de se apressar.Teve de apanhar ainda um autocarro, para conseguir chegar aocomboio que lhe convinha. Embarcou no último instante. Procurou oseu lugar, errando pelos corredores concorridos. Quando o

encontrou, quatro carruagens adiante, incluindo o bar, com chãoalcatifado e um balcão de plástico, empurrou a mala para ocompartimento superior e sentou-se. O seu lugar era na coxia, massentou-se junto à janela. A paisagem era monótona e suspirou dealívio ao vê-la ficar para trás. Nessa ânsia de fugir nem reparara nonome do local onde faria o transbordo. Perguntaria ao revisor.

Acordara cedo, por causa do discurso, uma última aula antes dedesaparecer. Pensou que isso deixaria uma impressão duradouranos alunos, tanto como aquilo que se passara na cafetaria. Tinha avaidade dos coléricos, desses que desejam ser conhecidos apenaspelas suas explosões, em fragmentos, esquecidos o resto do tempoe sem qualquer noção de continuidade. De si próprios dizem porvezes que são como cometas. Não estão errados, embora pareçamalgo desconcertados quando se concorda com eles. Pretendem sercontrariados, assegurados do seu erro. Aquilo que querem é que osrecoloquem no contínuo, que lhes demonstrem que ainda têm lugar.Quando não o fazem, mostram-se espantados. Se os interrogam,tornam-se hostis. Se porventura o interrogassem sobre o que olevara a cometer aquela loucura na cafetaria, não haveria forma deprever a sua resposta. Disse uma coisa à polícia, uma outra aodirector, ainda outra aos alunos e para si pensava com certeza umaquarta coisa, da qual não falaria a ninguém. Agia desde semprecomo um fugitivo, alguém que fala dos seus passos comambiguidade. Por vezes cansava-se desse exercício. E por fimentregue a si próprio, embalado pelo ritmo do comboio, não tardou aadormecer.

Dormiu durante aquilo que lhe pareceu uma grande grandeporção de tempo, interrompido apenas pela intervenção do revisor.Verificou o bilhete e informou-o que teria de fazer um transbordo,

numa estação cujo nome reconheceu mas do qual, no torpor dosono, se esqueceu de imediato. Voltou a adormecer. Sonhou queera novo outra vez, baixista duma banda chamada Porcupine, umarecordação da adolescência transmutando-se de modo quaseimperceptível numa outra coisa, um delírio ansioso sobre o seuregresso a casa. A banda subia ao palco, o cenário era o pavilhãodo clube local e a sala estava cheia. Ele era o terceiro dos quatro aentrar e ouvia-se uma gargalhada junto ao palco, distinguindo-se daaclamação do público em geral. Soube que lhe era dirigida, umprimeiro sinal do que estaria para vir. Postou-se numa ponta dopalco, do lado direito de quem assistia. Era o canto mais escuro edele distinguia, ao fundo da sala, a porta de entrada. Achouestranho reconhecer todas as pessoas que entravam ou saíam. Acidade não era assim tão pequena. Mal começaram a tocar ouviugargalhadas à sua frente. Era a sua irmã e o namorado, rodeadosdas amigas dela, seguidas pelos amigos dele, numa sucessão deondas de rostos conhecidos, uma gargalhada que envolvia todo opavilhão e crescia, emudecendo tudo à sua passagem. Mas issoparecia estar a acontecer-lhe apenas a ele. O resto da bandapermanecia imune. O vocalista vociferava, o guitarrista contorcia-se,o baterista massacrava os tambores com precisão marcial. Ninguémouviria o baixo, mas ele continuou a tocar, na sua posição habitual,tronco erguido e pernas abertas. Executava tudo com competência,mas parecia ter-se dado uma cisão entre o seu corpo e a suamente. O primeiro continuava a movimentar-se por si só, a segundaerrava em pânico dentro deste, procurando fazê-lo funcionar a seufavor, largar o baixo e correr para os bastidores. Enfiar-se no carro efugir. Nunca mais voltar a casa, olhar sempre para diante. Mas ocorpo tinha outras ideias. Não saía da sua pose e não falhava uma

nota. Ao fundo, muito distante, conseguia ouvir o ruído queproduziam em conjunto, um rumor na avalanche de gargalhadas,sempre em crescendo. Entretanto tinham continuado a entrarespectadores. Sabia os nomes de todos. Estimava-os. Todosescarneciam dele. Entraram os seus pais. A sua mãe abriu caminhoaté à frente, à força, e cuspiu-lhe. O pai observou tudo de braçoscruzados, a rir-se como os outros. Entraram os seus avós, osquatro, embora apenas sobrasse um com vida. Abriu-se umaclareira e trouxeram-se cadeiras para eles. Relhos, ficaramsentados a gargalhar. Sentiu que estava a afogar-se. Acordou, emsobressalto.

O comboio estava parado, a carruagem vazia. A ausência deruído tranquilizou-o. Espreitou lá para fora. Lembrou-se por fim donome da estação de transbordo, e também de onde o conhecia.Tinha um bom amigo que ali morava. Com mais tempo talvez lhefizesse uma visita. Ergueu-se por fim do lugar, os movimentos aindalassos. Ficou de pé no corredor a olhar para o outro lado. Depoisvirou-se para tirar a mala do compartimento superior, mas esteestava vazio. A sua mala desaparecera. Apalpou os bolsos. Aindatinha a carteira e as chaves. A escova dos dentes e a bisnaga dedentífrico permaneciam no bolso do casaco. Amaldiçoou a suaimprudência e saiu para a gare, onde apenas se avistava, ao fundo,um empregado de limpeza, varrendo de forma ausente o mesmometro quadrado da plataforma. Correu até ele.

— Não viu passar ninguém com uma mala?O homem ergueu os olhos, curvado sobre a vassoura e sem

deixar de varrer. Repetiu a pergunta, julgando que ele não o ouvira,mas o outro ouvira-o à primeira.

— Passo o dia a ver pessoas com malas.

Já sabia que a pergunta era estúpida. Em desvario nãoconseguira formulá-la doutra forma. Mas a ironia enfureceu-o.Respirou fundo. Repetiu a pergunta, numa versão melhorada.

— Isso não é comigo. É furto — e inclinou-se para diante, oqueixo pousado na ponta da vassoura, a palavra dita muito devagar.— Para isso precisa da polícia, que está na esquadra — e apontoupara a saída da esquerda —, mas olhe que não devia ter descuradoa bagagem. Há muitos avisos nas carruagens.

Cerrou os punhos e mordeu o lábio para se impedir de esmurraro homem. Respirou fundo. Estava a começar a suar.

— Não precisa de me insultar.O homem parou de varrer. Endireitou-se.— Não queria irritá-lo. É só que hoje não é um bom dia. A greve

começou há uma hora e foi toda a gente para casa. Eu fico aquiporque não trabalho para os ferroviários, sou da brigada de limpezae nessa ninguém faz greve. Como já não há comboios, o chefe daestação só volta quando isto acabar. É daqueles que vai de fériasnas greves. Faz o trabalho de sapa, e os graúdos decidem.Entretanto, vai de férias. Os polícias pensam noutra coisa. Estessindicatos nem concentrações convocam. Deixam tudo na mão dosburocratas. Lá em cima é que decidem tudo…

O homem sorriu. O professor sorriu também, resignando-se porfim à sua sorte.

— Mas há uma esquadra do outro lado da rua — disse ovarredor, apontando para a porta da estação — que está sempreaberta. A justiça não dorme, não é?

Atravessou a rua em frente à estação, a cidade deserta e comoque morta, nem carros, nem transeuntes à vista. Apenas ele, o

varredor e o polícia cujo perfil se desenhava diante da porta daesquadra pareciam ter restado no meio da debandada geral.Convenceu-o do contrário a barulheira que ecoava de dentro daesquadra. Ouviam-se urros e o som de várias pessoas andandodepressa para cá e para lá. O polícia, sem olhar para ele e viradopara o interior da esquadra, fez-lhe sinal para que esperasse. E eleali estacou, ao lado do polícia, ouvindo o ruído, sem que percebesseaquilo que se passava. Como todos aqueles que desconfiam daautoridade, atribuía-lhe ao mesmo tempo uma espécie difusa deomnisciência e, por instantes, acreditou que toda aquela confusãose devia à detenção da pessoa, ou pessoas, que lhe tinhamroubado a mala. Ao invés de cessarem, os urros tornaram-se maisaltos e aproximavam-se da porta, da qual o polícia se afastou,pisando-o sem se desculpar e colocando-se à sua frente, de braçosabertos, para o impedir de se aproximar. Um carro da polícia surgiudo fundo da rua, pneus chiando, e parou diante da esquadra. Umhomem, tão gordo que teve de passar de lado pela porta estreita daesquadra, saiu algemado, empurrado por polícias em desalinho.Continuava a berrar, nada que se compreendesse, de camisolainterior imunda e descalço. A muito custo conseguiram enfiá-lo nobanco traseiro do automóvel, que saiu disparado. Os políciasficaram parados no passeio, a vê-lo afastar-se, comentando dadificuldade em algemá-lo, sem rir. Depois, um a um, foram entrandona esquadra, seguidos pelo polícia que lhe estivera a barrar ocaminho, e ficou sozinho no passeio, sem ninguém a quem sequeixar e sem outro remédio senão segui-los. Passou as portas devidro, abertas para a passagem do gordo e que ninguém sepreocupara em voltar a fechar. Havia já poucos agentes junto àentrada e estavam todos de costas para a porta, a galhofar.

— Boa noite — disse ele, para surpresa dos polícias. Voltaram-se em sobressalto, em tal aturdimento que lhe recordaram osKeystone Cops a que assistia quando era criança, um bando depolícias desastrados perseguindo assaltantes não muito mais ágeis,tropeçando a cada obstáculo. Mas não havia bonomia no tom doagente que lhe respondeu.

— Diga.A secura fê-lo recuar. As risadas cessaram e a temperatura na

sala baixou a um mínimo glaciar. Todos os olhos se voltaram paraele.

— Bem, eu estava na estação de comboios — e ergueu a mão,indicando com o polegar a direcção aproximada da estação — edistraí-me e…

A recordação do rosto impassível do varredor e das suasobservações impertinentes levou-o a recomeçar, temendo encontrarali a mesma resistência.

— O que aconteceu foi que a minha bagagem foi roubada naestação. E parece não haver ninguém a quem me possa dirigir. Naestação, isto é. E foi-me sugerido que viesse aqui…

— Foi-lhe sugerido? — disse o polícia que o pisara à porta,interrompendo-o. Os outros permaneceram em silêncio, esperandoos resultados do interrogatório que acabara de começar parapoderem intervir. Era o outro quem tinha a responsabilidade deguardar a porta, competindo-lhe também fazer uma triagem dasqueixas que os cidadãos viessem apresentar, considerando-as ounão dignas de nota e de passagem ao círculo seguinte da cadeia decomando, a qual, com gravatas tortas, rostos afogueados, semchapéu, observava com atenção e aguardava o desfecho.

— Sim. Na estação.

— Foi outro passageiro?— Como?— Se foi outro passageiro que lhe sugeriu que viesse aqui. À

esquadra.— Não, foi um funcionário. Não havia mais…— Mas acabou de dizer que não havia ninguém para o ajudar. —

A confusão em que as perguntas pareciam ter lançado o seuinterlocutor dava uma aura triunfal ao polícia, que trocava olharestrocistas com os seus colegas.

— É verdade, mas…— Então é verdade que havia um funcionário?Começou a desesperar. Mesmo a umas dezenas de quilómetros,

a escola parecia ainda conspirar contra ele, como se se obstinasseem impedi-lo de partir em sossego para continuar a sua vida noutrosítio. Esperava que a qualquer instante surgisse pela porta daesquadra o director da escola, acompanhado de um contínuocarregando a sua mala, e se apressasse a levá-lo de volta, sob oolhar aprovador dos polícias, que se amontoariam no passeio a vê-lo partir.

— Sim. Um varredor. Mas não havia chefe de estação.— E foi esse varredor que lhe sugeriu que viesse à esquadra?— Sim. Mas de facto não me garantiu que me ajudassem. —

Arrependeu-se da ironia logo após proferi-la, mas a forma como opolícia se empertigou fê-lo reconsiderar.

— Estamos aqui para ajudar, mas precisamos que nos ajude aajudá-lo. — O polícia parecia ofendido. — Não precisa de sersarcástico.

Não respondeu. Esperou pela pergunta seguinte.

— Diz o senhor que a sua bagagem foi roubada — pareciam terpassado para uma nova etapa, mais ríspida mas com sorte menosexasperante que a anterior.

— É verdade. Uma mala castanha de pele, de uma carruagemparada na estação.

— E viu a pessoa que roubou a sua mala?— Não vi ninguém. Levantei-me do lugar e a mala já não estava

lá.— Adormeceu?Respirou fundo. Não percebia por que motivo se sujeitava àquele

interrogatório absurdo com tanta calma, sem procurar forçar opolícia a aceitar a sua queixa. Supunha que isso lhe desse tempopara pensar no que poderia fazer a seguir, sem considerar quedurante esse tempo a sua mala seria aberta, escrutinada e, uma vezdescoberto que nada havia nela de valor, abandonada nalgumarbusto, à mercê de quem passasse, e a ele sobrar-lhe-ia essaroupa que trazia vestida, a melhor que tinha, a escova dos dentes eo dentífrico que enfiara no bolso e, do mal o menos, a carteira.

— Sim, mas por segundos. Tive azar.— Foi imprudente — disse o polícia, fitando-o, como que

convidando-o a ser irónico novamente.— Confesso que sim.O seu desempenho contrito pareceu apaziguar o polícia.— E deseja apresentar queixa?— Certamente.— Contra desconhecidos, claro.— Claro — e sorriu por fim, convencido de ter chegado ao fim do

ordálio.

A audiência fora debandando durante o interrogatório e, quandoeste terminou, estavam apenas os dois.

— Aguarde um pouco — indicou-lhe um banco corrido demadeira, sem costas —, o colega deve estar a voltar. Eu tenho deretomar o meu posto no exterior.

Agradeceu e sentou-se. O agente saiu e ele ficou sozinho. Olhouem redor. Quando fora a última vez que estivera numa esquadra?Quando quer que tivesse sido, fora muito longe dali, mas pareciahaver uma uniformidade inabalável no estado de desleixo em quetodas as esquadras que conhecia se encontravam. O banco corrido,desconfortável, o estuque amarelecido e manchado de humidade,os quadros de cortiça com comunicações internas e advertências decarácter geral, dirigidas aos visitantes. E num canto a incontornávelsecretária do oficial de dia, arrumada e limpa, à espera. Em frente acadeira do queixoso e por trás a cadeira vazia do oficial. Na paredelá atrás, um outro quadro com cartazes de pessoas procuradas.Havia quatro, todos com a fotografia e uma legenda com o nome e adescrição do crime pelo qual eram procurados. Havia uma mulherno grupo, acusada de — sem querer pôr os óculos, teve de esticar-se para diante para conseguir ler — assalto à mão armada. Tinhaum nome estrangeiro e parecia tão nova que poderia aindadesconhecer a existência de armas, quanto mais a forma correctade empunhá-las. Ao seu lado um homem mais velho, com umapelido semelhante, perseguido pelo mesmo crime. Debaixo destaquadrilha, à direita, estava a foto de um indivíduo de bigode, fundasrugas em redor dos olhos. O seu delito? Atropelamento, com vítimamortal, e fuga. Ao seu lado havia outra foto de um homem, comóculos e aquilo que pareciam cabelos soltos de um rabo de cavalo.Pareceu-lhe familiar. O seu nome, bem como o delito que o guindara

àquela posição, estavam tapados pelas costas da cadeira. Ialevantar-se para poder ler quando entrou o oficial de dia. Não selevantou até que o oficial lhe solicitasse. Então foi sentar-se diantedele e voltou a contar a sua história. Descreveu o conteúdo da suamala, hesitando nas cores de algumas peças de roupa. Quandoterminou a enumeração, o oficial pareceu desapontado, como senão compreendesse para quê fazer tanto barulho por tão pouco. Portrás do oficial, o rosto do homem de óculos continuava a fitá-lo,como que desafiando a sua memória a localizá-lo. Quando pareciabem encaminhado, o oficial fazia alguma observação que o distraía.

— Não espere muito — avisou-o, sem pena. — Estas queixasraramente dão nalguma coisa.

— Compreendo — respondeu ele.Um telefone começou a tocar na sala adjacente. O oficial olhou

nessa direcção, talvez esperando ver chegar alguém para o atender.Por fim acabou por se levantar e, desculpando-se, foi ele próprioatendê-lo. Inclinou-se sobre a secretária para espreitar e reparouque o oficial estava de costas para ele. Sem pensar arrancou ocartaz, de forma apressada, cortando o procurado pelo queixo, edobrando-o em quatro enfiou-o no bolso. O outro regressou àsecretária, deu-lhe a sua cópia da queixa e despediu-se dele semlhe apertar a mão. Agradeceu e levantou-se. Dobrou o papel aomeio e pô-lo no bolso do casaco. Sobre o cartaz que acabara deroubar de uma esquadra de polícia! Sentiu-se entontecer quandopensou nisso. O oficial não parecia ter reparado que faltava a fotode um dos criminosos procurados e nem sequer olhou para ele asair, saindo sem saber aonde dirigir-se, virando à direita apenaspara pôr metros entre si e a esquadra. Percorreu a rua paralela à

linha férrea e voltou a virar à direita. Entrou num café. O empregadofranziu o sobrolho quando o viu entrar.

— Olhe que já estamos a fechar…Olhou em redor.— É rápido. Dê-me um maço de tabaco, desses vermelhos, e um

isqueiro.Enquanto o empregado ia buscar os dois artigos que ele pedira,

tirou a foto do bolso e desdobrou-a. Tinha a certeza de queconhecia aquela cara, não na sua forma actual, mas numaencarnação anterior. O empregado pousou as coisas sobre obalcão, batendo-as com mais força do que seria necessário eanunciando-lhe o total. Pagou e dirigiu-se para a saída, mas antesde sair parou e voltou-se para trás.

— Sabe onde encontro um sítio para beber uma cerveja?— Ao fundo da rua há uns quantos — respondeu o homem,

impaciente.Desceu a rua, com a foto numa mão e o tabaco e o isqueiro na

outra. Não fumava desde que se casara, há cinco anos, e não tinhaagora particular desejo de o fazer. Só entrara no café para poder vera fotografia com mais atenção, talvez sentar-se um pouco econcentrar-se para tentar perceber de onde conhecia aquelehomem. Mas o empregado obrigara-o a apressar-se e apenas apudera ver de fugida, acabando por sair antes com um maço detabaco na mão. Parou na rua deserta. Ouvia-se uma televisão. Pôsa foto no bolso. Tirou o celofane do maço de tabaco, puxou de umcigarro e acendeu-o.

Na cidade anterior estivera num sítio semelhante. As mesmasparedes revestidas de madeira, e os bancos toscos, cobertos com

almofadas para dar algum conforto à pretensa rusticidade do lugar.Os mesmos homens sozinhos ao balcão, fitando os copos decerveja como nigromantes com os seus oráculos. Fizera-seacompanhar por outro professor, cujo quarto ficava ao lado do seu ecom quem se habituara a conversar. Tinham-se embriagado e ooutro revelara muito mau génio, começando a discutir com ele porcausa de alguma coisa de que já não se lembrava. Acabara porvoltar sozinho para a escola, de táxi, enquanto o outro deambulavapelas ruas estreitas da cidadezinha. Da janela da sua sala de aulavira-o regressar na manhã seguinte, atravessando o pátio com acamisa enxovalhada e sem um sapato. Cancelaram-lhe o curso nopróprio dia. Foi o mais próximo que esteve de fazer um amigodurante o ano que passara e foi com pena que o viu partir.

Desdobrou a foto sobre a mesa. A luz não era muito boa.Acendeu o isqueiro e pôs os óculos. O nome do homem não lhe erafamiliar. Era procurado por homicídio, o que o sobressaltou. Teria jávisto a cara dele nas notícias e, na sua desorientação, parecera-lhehá pouco um velho conhecido? No entanto já não era o aspectoactual do rosto que reconhecia, mas um rosto mais jovem, aindavisível sob as rugas e o envelhecimento. Quem teria sido vítimadeste homem? E o roubo da sua foto da esquadra não poderia, dealgum modo, impedir a polícia de o deter? E se sim, não seria issocaso para o acusarem de obstrução à justiça? Por esta altura jádeveriam ter dado pela falta do cartaz e saberiam que só poderia tersido ele.

— Vai provocar um incêndio?O homem estava parado junto à mesa, a sorrir. Faltava-lhe um

canino, o que lhe desequilibrava o rosto, a boca.— Com esse isqueiro. Um incêndio.

Tapou o rosto do fugitivo com a mão e apagou o isqueiro.— Não, não vou — disse ele, dobrando a foto e colocando-a no

bolso.— Não é daqui, pois não? — disse, pousando o copo sobre a

mesa. Tirou uma bolsa de tabaco do bolso e, espalhando os demaisapetrechos no tampo, começou a enrolar um cigarro sem deixar delhe sorrir. Lambeu a mortalha com a ponta da língua, rápida como ade um gato, acendeu o cigarro e, apoiando as mãos na mesa, ficouà espera que ele falasse.

— Nota-se muito? — acabou por responder, tendo decidindo nãose indignar e alinhar com o outro. Se a sorte por fim se decidia amostrar-lhe um rosto amigável, por que razão deveria recusá-lo? Játivera o suficiente de azar e má vontade para não aceitar agoraumas tréguas.

— Numa cidade pequena aprende-se depressa a identificar osforasteiros — o homem sorriu, o espaço negro entre os seus dentestão brancos atraindo-o a olhar unicamente para ele, ignorando oslábios gretados que se moviam devagar, o bigode incipiente, osolhos fixos.

— Sou da capital.O outro assobiou.— Nunca mais lá vai chegar! — e puxou uma cadeira vazia, na

qual se sentou sem ser convidado, como se aquilo que ia dizer aseguir requeresse maior conforto. — Nem sequer se sabe se agreve acaba amanhã.

Ficou tão desalentado com aquilo que o outro afirmou que nemsequer lhe disse que ninguém o convidara a sentar-se. Só queriavoltar para casa, sem sequer lhe ocorrer que todos os locais a quealguma vez dera esse nome estavam, por culpa própria, fora do seu

alcance. E com a morte da mãe, última da família, já não havianinguém que tivesse a obrigação de o acolher. Só se lembrou dasruas familiares, dos cafés onde ainda sabiam o seu nome, dosrecantos que mapeara, do bom. No entanto, não era estúpido nemingénuo. Sabia que a capital o rejeitaria, que lhe virariam as caras elhe dariam as costas e que estaria ainda mais sozinho em casa doque estivera na escola, onde alguns alunos ainda o incentivavam.Mas o pouco de bom que se dera na sua vida sucedera na capital.Cada vez que saíra acabara sempre de forma catastrófica, comsequelas que lhe demoravam anos a resolver. A capital agarrava-sea ele, a escola agarrava-se a ele, até esta cidadezinha de merda seagarrava a ele! Sofria dessa tenacidade dos lugares, e habituara-sea reconhecer um sítio onde descansar.

Disse o seu nome ao outro e estendeu-lhe a mão.— Bebe mais uma? — e mandou vir duas cervejas.Depois começou a falar. Como falou! Queixou-se de todos os

seus colegas, tratando-os pelos nomes, da escola, do sistema deensino, da hipocrisia dos pais, muito revoltados por saberem que eleesbofeteara um dos meninos em pleno refeitório, um pirralho quelhe derrubara o tabuleiro do almoço de propósito e se recusara apedir desculpa, procurando antes argumentar com ele, com ele!,que a culpa não fora sua, e esses hipócritas gritando pela suacabeça, como se nunca lhes tivessem dado umas chapadas,acabando ele por ficar com os pais e a sua hipocrisia às costas e,pesando sobre esta, o rancor que os alunos passaram a dedicar-lhe,os olhares de esguelha que os colegas lhe deitavam, com o directorda escola, todo ufano, a garantir-lhe que não haveria sangue,embora o melhor a fazer fosse apresentar desculpas públicas peloseu gesto.

— Pedir desculpa? Nunca! Nunca!Afirmava o seu credo diante do seu novo amigo, de dedo em

riste, como se pretendesse convertê-lo às vantagens do mesmo. Oálcool, já se sabia, tornava-o megalómano. E depois, como se issonão bastasse, começou a falar da mulher com quem fora casado eda vida que tinham, sem ser avaro nos pormenores. O outro poucodizia, fazendo uma pergunta ou outra de vez em quando, para lhedirigir o discurso ou, quando ele se dispersava, para o trazer devolta aos eixos. No resto do tempo contentava-se em ouvir,enrolando os seus cigarros e bebendo devagar, em pequenos goles.

Esquecera por completo a mala que lhe fora roubada, a possívelacusação de obstrução à justiça e até o empenho da cidade contraele. Abandonava-se ao riso e aos prazeres da cumplicidademasculina, seguro de que amanhã seria um dia tão bom pararecomeçar como hoje.

Depois o outro sugeriu-lhe que fossem a um sítio que conhecia,junto ao mar. Concordou. Seguiu-o em silêncio pelas ruazinhas daparte velha. Começou a impacientar-se.

— Ainda falta muito? — perguntou após passarem ao lado de umjardim, no centro do qual se erguia uma árvore de copa larga, cujaraiz larga estava à superfície, e que lhe pareceu, sob aquela luz, amais bela árvore que alguma vez vira. Quis parar a observá-la,cansado de andar, mas o outro instou-o a continuar.

— Já falta pouco!Atravessaram a estrada e encaminharam-se para um túnel que

os levaria a uma praia ou pelo menos às proximidades do mar. Doishomens desceram as escadas na outra ponta e avançaram paraeles, um de cada lado do túnel. O seu companheiro estacou, aopasso que ele continuou a avançar, talvez pensando ainda na

árvore. Nem se apercebeu quando os dois homens convergiramsobre ele. Agarraram-no e encostaram-no à parede. Aquele comquem fizera o caminho até ao túnel aproximou-se dele. Apalpou-lheos bolsos, sem que oferecesse resistência. Tirou-lhe a escova dosdentes do bolso e partiu-a em duas. Pegou depois no dentífrico.Deixou cair a embalagem no chão e pisou-a. A massa brancaescorreu abundante para o chão, um ligeiro aroma de flúor. Por fimtiraram-lhe a carteira do bolso.

— É para aprenderes — disse aquele que considerara seuamigo, crescendo para ele de dedo em riste —, é para ver seaprendes!

Depois os três homens afastaram-se tranquilamente, rindo entresi.

Demorou muito tempo até que conseguisse mover-se. Quandopor fim conseguiu fazê-lo, correu para a saída mais próxima, aquelapor onde se tinham evadido os outros. Quando chegou ao topo nãoviu o mar, como esperava, mas apenas a estrada e, do outro ladodesta, o jardim onde se destacava a enorme copa da árvore. Nãohavia sinal dos seus assaltantes. Achava que, passo por passo,talvez conseguisse reproduzir o trajecto até à esquadra, ondeapresentaria queixa. Mas não conseguiu reunir a vontadenecessária para atravessar a rua. Não lhe tinham levado oscigarros, nem o isqueiro, que tinha no bolso das calças. Colocou umcigarro entre os lábios e acendeu-o. Soprou o fumo, cujo rastoseguiu enquanto se dissipava no ar por cima da sua cabeça. Porentre as folhas da árvore via-se o céu, onde uma estrela brilhavasolitária, já tão longe dele e afastando-se mais a cada instante. OUniverso continuava em expansão, talvez para sempre, mas o seuuniverso há muito que entrara em colapso e, aos quarenta anos, já

não lhe sobrava nenhum amigo. Quando acabou de fumar ajeitou agravata. Desceu as escadas e voltou ao túnel. Atravessou-o semreceio. Do outro lado estava a praia. O mar ondulava, não numrugido mas num discreto ronronar. Defronte estava o paredão, ondese perfilavam alguns restaurantes e cafés, que pareciam todosencerrados. Enfiou as mãos nos bolsos e começou a andar. Noterceiro dos restaurantes havia gente. Como lhe restavam unstrocos, incólumes no bolso das calças, pediu uma empada e comeu-a em pé, junto ao balcão, a olhar para a televisão e para a salavazia, sem vontade nenhuma de pedir o auxílio dos presentes.Quando acabou de comer, saiu sem se despedir e seguiu caminho.Parou muitos metros adiante para fumar um cigarro. Encostara-seao corrimão da escada para o areal a fumar, mas sentiu umavontade súbita de ir sentar-se na areia. Desceu até à areia seca.Sentou-se, encostado a uma rocha. Fumou o cigarro até ao fim, aolhar para o mar. Começou a escurecer.

TARDE DE MAIS

SÓ SE LEVANTOU DO SOFÁ quando a mão começou a mostrar sinais deimpaciência. Já o chamara três vezes para que fosse à porta, a cujacampainha continuavam a tocar com insistência. Não lhe apetecianada ter de receber o chato do avô, sempre a advogar os benefíciosda bicicleta que lhe oferecera e que estava a enferrujar na garagem,sempre a dizer-lhe o quão pálido estava e a obrigá-lo a sair de casa,a mover-se do sofá, que era o único sítio onde lhe apetecia estar, depijama, prostrado de vergonha. Tão-pouco lhe agradava levantar-separa deixar passar as tias, seguidas pelos silenciosos esposos. Ocortejo, que se iniciava de forma tão solene, encerrava-se com abarulhenta horda dos seus primos, todos mais novos que ele, unsmais e outros menos, todos indiferentes à sua necessidade desossego. Adoravam o seu pai, que lhes fazia todas as vontades, etemiam a sua mãe, como todos.

Abriu a porta. O avô, de blusão amarelo, sorria para ele.Estendeu-lhe um envelope.

— Parabéns!Aceitou-o e agradeceu. Beijou-lhe ambas as faces, suaves e

morenas.— Ainda estás assim? — disse o avô, olhando de forma

desaprovadora para o neto, de pijama e roupão, cabelo sujo, ainda

com a forma que lhe dera a almofada. O rapaz fungou. Encolheu osombros e não respondeu.

Apareceu a mãe, a secar as mãos no avental. Olhou para oenvelope e depois para o sogro.

— Ele não merece — e abriu a mão na direcção do filho.Resignado, deu-lho e ela guardou-o no bolso do avental, à altura dopeito. Beijou o sogro, dois beijos rápidos no rosto.

Viu o carro do pai a entrar na curva para a garagem. Ao somdaquele o avô ergueu os olhos. Olhou para trás.

— Vem aí o meu filho!E o rapaz, aborrecido com a efusividade que se seguiria e

sabendo de antemão que o seu desmazelo se tornaria um dostemas da conversa, aproveitou a distracção da mãe e do avô edesapareceu para dentro de casa.

Foi à casa de banho e viu-se ao espelho. Tinha remelas eolheiras. O cabelo estava imundo, oleoso, sem ver pente há váriosdias. O roupão estava roto no ombro e tinha uma nódoaesbranquiçada na zona abdominal. Talvez dentífrico, talvez iogurte.Não se lembrava e não queria saber. Em breve chegariam os tios. Eque lhe interessava isso? Ia sentar-se no mesmo exacto sítio nosofá e continuaria a olhar para a televisão como até aí. Estava a verOs Sopranos. Outra vez. Era o seu dia de aniversário e ia oferecer-se os sete episódios que lhe faltavam para concluir a série. Nemsequer ia lavar a cara. Mas tinha fome. Da casa de banho dirigiu-seà cozinha. A mãe estava a decorar um bolo com flores de açúcar.Fazia-as ela própria, com afinco, a pontinha da língua surgindodentre os lábios quando se concentrava a sério. Olhou para ele comdesgosto, sem dizer nada. O rapaz abriu o frigorífico. Tirou umiogurte grego com pedaços de alperce, nos quais julgava estar

viciado. Deixava a fruta para o fim e comia-a com os dedos, quelimpava às mangas do roupão.

Na sala estão o pai e o avô. Calam-se quando ele entra. O pailevanta-se e dá-lhe um abraço desajeitado. Tem as mãos ocupadase não retribui.

— Parabéns, filho!Afastam-se um do outro com incómodo.— Obrigado, pai — diz o rapaz, indo sentar-se em frente à

televisão.Ignora um débil convite do avô para que converse com eles,

olhando-o de esguelha e suspirando. Pousa o iogurte no sofáenquanto procura o controlo remoto. Os outros dois observam-noem silêncio. Toda a gente vai ignorar o assunto, até a mãe, se nãoconseguirem confrontá-lo de forma directa. Não reage aprovocações, nem a gestos de cortesia. Também não responde aperguntas directas. Fala apenas quando é preciso. Não é rude.Defende-se com o silêncio e o olhar, e nenhum deles tem a coragemnecessária para se tornar mais ameaçador. Assim chegaram a umimpasse. Enquanto este não se resolve, encontrou aquilo queprocurava. Vai sentar-se, de pernas cruzadas sobre o sofá, com oiogurte sobre a perna esquerda. Carrega no play. Começa a cançãodo genérico. O pai senta-se ao lado do avô, que lhe pergunta pelasirmãs. Ele abana a cabeça e encolhe os ombros.

— Este ano somos só nós.— Também é bom — diz o avô, sem convicção.O rapaz abana o pé ao ritmo da canção. Ficou encantado com a

novidade. Tocam à porta. Deixa cair os ombros, desalentado. Se astias não vêm, quem será? Olha para o pai, que nem sequer pensaem levantar-se. Volta a pousar o iogurte no sofá. Põe o episódio em

pausa e levanta-se com o comando na mão. Respira fundo eespreita pela vigia. Do outro lado está um homem que nãoreconhece de imediato, embora lhe pareça familiar. Encosta-se àporta. O homem estende a mão para a campainha, mas não toca.Hesita. Parece o tio, irmão da mãe.

— Que estranho! — pensa o rapaz. Enfia o comando no bolso doroupão. Abre a porta de repente. O homem estremece mas mantém-se firme. Está vestido de forma impecável, demasiado solene até.Traz gravata, pulôver e camisa branca. Mudou muito não tendomudado nada. Sorri. Estende-lhe a mão.

— Sou o irmão da tua mãe. Lembras-te de mim?O rapaz acena que sim com a cabeça e aperta-lhe a mão, não

sem antes a limpar às calças do pijama.— E parece que fazes anos hoje, não é? — o tio tira um

embrulho do bolso do casaco. Papel pardo vermelho-escuro,rectangular. Aceita-o. É um livro. Cabe no bolso. A mãe não darápor ele. O pai chama da sala.

— Quem é?— É para a mãe — responde o rapaz. Faz sinal ao tio para que o

siga. O pai grita para a cozinha que está alguém à porta para ela,que não ouve à primeira. Quando por fim percebe e aparece na salaa despir o avental já o filho e o irmão estão dentro de casa. Estãoparados junto à porta fechada, observados com espanto pelo maridoe pelo sogro. Fica surpreendida com a aparição do irmão, tãoelegante ao lado do seu desmazelado filho. Mas não demora arecompor-se. Avança para ele de braços abertos.

— Podias ter avisado que vinhas — diz ela, depois de seabraçarem.

— Ontem ainda não sabia que vinha. Estava por perto e lembrei-me do aniversário do meu sobrinho — e põe a mão no ombro dorapaz, que não se desvia ou retrai. Aceita a mão do tio, o que aespanta. No entanto prefere concentrar-se no irmão. Depois terátempo para o resto.

— Estavas por perto? A fazer o quê? A trabalhar?O rapaz olha para o tio, que está a olhar para a irmã, rosto

fechado, granítico, uma interrogadora implacável. Ambos o sabem,mas, dos dois, é ele quem parece mais bem preparado para lheresistir.

— Mais ou menos — responde o tio, numa voz hesitante —Estou entre trabalhos. Amanhã tenho de estar na capital.

— E hoje não faz anos também a tua mulher? — deixa cair aspalavras com calculada perversidade. — Se calhar foi por isso quete lembraste da família.

O tio engole em seco. A mãe permanece muito perto dele, o queparece incomodá-lo. O sogro e o pai estão atentos ao desenlace. Orapaz pensa em intervir, intercedendo em nome do tio. Mas a mãenão o permitiria. E com o embrulho no bolso não se atreve acontrariá-la.

— Ex-mulher — diz por fim o tio. — É verdade, mas com ela jánão falo.

O pai ergue-se do sofá. Aproxima-se e estende a mão ao recém-chegado. Puxa-o para si.

— Que falta de educação a vossa! — diz para a mulher e para ofilho. — Nem sequer o convidam a sentar!

Guia-o até ao sofá mais pequeno, onde está sentado o avô. Estefinge que se ergue, sem quase se mover de onde está. O rapaz vaisentar-se no seu lugar. De pé fica apenas a mãe, olhando para o pai

com fúria, enquanto este desempenha o papel de bom anfitrião e seoferece para ir buscar uma bebida para o convidado.

— Aceito um copo de água — diz o tio. O pai segue para acozinha e a mãe segue-o. Ouve-se o ruído da torneira a correr e aser fechada. Mas demoram mais do que seria razoável para umatarefa tão simples. O rapaz imagina a mãe de dedo em riste diantedo pai enquanto este segura o copo cheio com ambas as mãos.

— Eu sou o avô do aniversariante — diz, de mão estendida parao tio.

— Sim, eu lembro-me de si.O pai regressa, com o copo de água e menos sorridente. Na

cozinha ficou a mãe. Volta a ouvir-se o ruído de pratos e talheres.Estende o copo ao outro.

— Lembras-te do meu pai? — diz apontando para o avô, o qualsorri, cúmplice, para o tio.

— Lembro sim. Já nos cumprimentámos — e bebe um golinhode água. Parece que lhe treme a mão quando pousa o copo namesa. Quando o rapaz era mais novo já o tio lhe pareciadesconfortável entre os outros adultos. E, embora passassem muitotempo juntos, tão-pouco acreditava que se sentisse muito melhorcom ele. Apenas pareciam adaptar-se um ao outro de modo maisfavorável. Viam televisão em silêncio, por vezes interrompendo comalguma observação acerca de algo que tivessem acabado de ver.Apreciavam a companhia um do outro. Tinham até desenvolvidouma espécie silenciosa de confiança, ou assim parecera ao rapazquando o tio deixou de aparecer e ele começou a lembrá-lo compena. Pouco depois começou a falar-se dele, agora que já nãoestava presente. Destruíram-no com a ferocidade própria daquelesque se julgam impunes. Roubara a empresa e estava preso, bem

feito! Quando saiu ainda quis matar a mulher, tentou empurrá-lapara a frente de um carro! Ela não apresentou queixa, mas disse aquem quisesse ouvi-la aquilo que acontecera. Divorciaram-se, claro!Tudo neste tom triunfalista de quem assiste, confortável, àdestruição de uma vida e a acha bem extinta. Até a mãe participara,regozijando-se na desgraça do irmão, necessária expiação pelavergonha que a forçava a passar. Sentira falta do tio, mas acabarapor esquecê-lo, como esquecera essa ex-tia, tão insólita ao lado doseu homem, opinando sobre tudo sob o olhar complacente dele. Porfelicidade não opinava sobre a televisão, para a qual nunca olhava.Estava no negócio das almas e também precisava de audiência.Considerava-se iluminada, uma intelectual do espírito, como diziamuns panfletos que certa vez mandou fazer, um dos quais a mãeesquecera na casa de banho e ele lera. Má construção frásica,argumentação pobre, três erros ortográficos. Ficava eriçada se aconfundiam com uma espírita. Mas não chegava a compreender-seaquilo que pretendia ser. Alguma forma de guru, embora não fosseclaro qual a disciplina a que se dedicava. Por ele tê-la-ia empurradoalegremente para debaixo das rodas do primeiro carro. Não oespantara então, e não o espantava agora, que o tio o tivesse feito.Aquilo que, pelo contrário, ainda o intrigava era a parte do assalto.Ninguém parecia saber muito sobre isso. Talvez a ex-mulhersoubesse, mas não voltara a vê-la. Deixara a cidade. Talvez tivesseaté mudado de nome, com medo de que o tio a perseguisse. Olhoupara ele, sentado entre o pai e o avô. Se tinha vergonha de sair àrua por ter sido apanhado a copiar num exame, que coragem serianecessária para fazer aquilo que o tio acabava de fazer?

— Sabe que eu também já estive preso? — diz o avô,arregaçando as mangas do blusão, encarando o silêncio geral como

um incentivo para que continue. — Por questões políticas, coisassem importância! Foi há muito tempo. Mas estive preso quasequinze dias, sem ver a luz do Sol e a comer puré de batata todos osdias!

O tio ri-se. O avô ri-se também, feliz por encontrar alguém queaprecia o seu humor.

O rapaz aproveita a pausa que se cria quando esmorecem asgargalhadas.

— E o tio, quanto tempo esteve preso?Viram-se os três para ele, recordados da sua presença.— Dois anos e meio — responde após uma longa hesitação,

olhando para o cunhado em busca de auxílio, mas dele recebendoapenas um encolher de ombros.

— É muito puré de batata — diz o avô, com desalento.— E porque é que foi preso? — sabia de cor a resposta à

primeira pergunta e apenas a fizera para poder fazer esta outra, averdadeira.

O pai ergue-lhe as sobrancelhas, procurando dissuadi-lo deprosseguir o interrogatório. Mas nada pode fazer em relação àquiloque acaba de dizer. Olha para o tio. O avô está inclinado paradiante, curioso. Olha para um e para outro. Entra a mãe, com umbolo e uma garrafa de champanhe.

— De que é que estavam a falar?O pai arregala-lhe os olhos, comprime os lábios. Parece

aterrorizado, o que é absurdo.— Ele estava a perguntar-me sobre a prisão — diz o tio,

apontando para o rapaz.— E tu disseste a verdade? Ou também lhe mentiste?

A mãe pousa o bolo sobre a mesa. Dá a garrafa ao marido, paraque a abra, mas este apenas a aceita e segura junto ao corpo, àespera de que o cunhado reaja ao que ela disse.

— Ainda estávamos a começar. Não tive tempo de lhe mentir —e sorri, num esgar tímido só para ela, que começa a esboçar umsorriso mas retoma o controlo quase de imediato. O rapaz apostariaque o pai nem se apercebeu.

— Tens muita lata! — responde a mãe, saindo para a cozinha eregressando pouco depois, com cinco copos de champanhe. Pousa-os na mesa. Ergue-se e olha para o filho.

— Achas bem que se apresente assim no dia de anos? — dizpara o irmão, com um ar pesaroso.

— Bem, o aniversário é dele… — responde este, suspirando. Oavô dá-lhe uma cotovelada. Sussurra-lhe alguma coisa sobreexercício físico. Sorri e concorda, sem interesse naquilo que o velhodisse mas conseguindo, ainda assim, satisfazê-lo e levá-lo arecostar-se, sorridente, olhando para o neto com uma expressãosabedora, desafiante.

— Anda deprimido — diz o pai, irónico. Tem a garrafa dechampanhe entre as pernas e empurra a rolha com os polegares.Contorce o rosto enquanto o faz. A mãe olharia para ele comimpaciência se não estivesse ali o irmão. A presença dele fê-laesquecer aquilo que é habitual, até o seu ressentimento com omarido e o duradouro feudo com o seu único filho.

— A depressão é uma doença muito séria — diz o avô, olhandode forma grave para o pai, que o ignora. Liberta por fim a rolha dogargalo, com um forte estalido que abafa as palavras do velho.Consegue não derramar nada sobre a carpete, nada que secompare com a noite de Natal, quando ficou aquela mancha

horrorosa junto ao sofá grande. Serve primeiro a mulher e depoisserve-se a si. Enche em seguida um terceiro copo, que passa ao tio.O avô recebe também o seu. Pousa a garrafa na mesa. Resta umcopo, que julga ser para o rapaz. Deixa-o por encher, cedendo ainiciativa à mãe. Esta não olha para ele mas para o irmão, alheia àgarrafa pousada sobre a mesa e à diplomática iniciativa do pai,destinada a reconciliá-los, mas que teve como único efeito deixá-loexposto ao ridículo, com o copo na mão, à espera de que ela aja.Cora, mas ninguém dá por nada. O avô está impaciente. Bate o pé.O tio parece constrangido, claro. A irmã e o sobrinho olham-no e opai, vexado e apenas para não ter de ver a mulher, põe-se tambéma olhar para ele. Por fim, incapaz de suportar a tensão, ergue o copoem direcção ao filho.

— Parabéns! — diz com voz trémula, olhando em redor e nãopara o filho, nunca para o inútil do filho, em busca de quem se lhejunte.

O avô ergue o copo.— Muitas felicidades para o meu netinho!O pai agradece o apoio e bebe um grande gole de champanhe,

sem esperar pelo tio ou pela mulher. Imitam-no, o tio num salto,como que despertando, pondo-se até de pé para pronunciar os seuspróprios bons auspícios, e a mulher por não lhe sobrar alternativa,tomando um golinho e pousando o cálice em seguida. O rapaz nãoresponde aos festejos, embora o comova o gesto do tio. Mastambém o despreza por imitar o pai, que considera um idiota. Sabeque a mãe tem a mesma amarga opinião. Observa-a a manejar afaca, distribuindo maciças fatias de bolo. Não recebe nenhuma. Otio olha para ele, com pena. O avô come a sua em silêncio, fitando a

nora com rancor, perguntando por fim se foi ela quem enfeitou obolo.

— Está muito profissional — diz o avô sem sorrir, gastando compena o maior dos seus adjectivos, numa derradeira tentativa paraconvidar a víbora a dar-lhe o flanco. Mas ela evita o obstáculo que ovelho lhe coloca, agradecendo entredentes e desfazendo-se delecom um modesto aceno da mão. Não está para esses jogosestúpidos, não com o irmão ali em casa, a olhá-la com aquilo quetodos tomam por piedade mas que ela sabe, com toda a certeza, serapenas troça. Nem sequer olha para o velho, o qual se resigna aomalogro do seu plano e retoma a degustação.

O rapaz, entediado, decide atacar.— Diga lá, tio! Porque é que foi preso?O pai, coitado, engasga-se. Cospe um gole de champanhe para

o chão. Mortificado, olha em redor. O tio, o avô e o rapaz olham devolta, procurando não rir. Mas a mulher ignora-o. Acaba de sesentar, na expectativa daquilo que o irmão vai dizer, e quando elenão diz nada, ainda distraído com o seu estúpido marido, encarrega-se de lhe chamar a atenção.

— O teu sobrinho fez-te uma pergunta, mano.O tio olha para ela, ainda a tentar conter o riso. Não parece

recordar-se da pergunta do rapaz. Este resiste à tentação de arepetir, na expectativa de que a mãe o faça e que, assim o fazendo,lhe acrescente autoridade. Mas ela não o faz. Olha apenas para oirmão. Ele sabe aquilo a que ela se refere. Está apenas a ganhartempo.

De súbito o tio ergue-se do sofá. Deixa sobre a mesa meia fatiade bolo num prato e um cálice praticamente cheio. Ajeita a gravata ealisa o pulôver. Está afogueado. O ar condicionado está numa

temperatura amena e ele está de casaco, camisola de malha,gravata e camisa. Talvez esperasse uma festa mais formal. Talvezseja a sua única roupa, o rapaz não sabe como é sair da prisão, quedificuldades esperam aqueles que o fazem.

— Preciso de apanhar ar — diz para o rapaz. — Se vierescomigo conto-te tudo.

A mãe olha para o irmão como se pretendesse despedaçá-lo. Opai encolhe-se.

— Isso quer dizer que posso acabar o seu bolo? — interrompe oavô, que estava já há algum tempo de olho na suculenta metadeque o outro deixara por comer.

— Claro, claro — responde o tio, incentivando o velho com umgesto.

O avô agradece e pega no prato do tio. Passa a fatia de bolopara o seu prato, usando para isso o seu garfo. Depois recosta-se,os pratos um sobre o outro, e começa a comer, olhando para o tio,instando-o a continuar.

— Se a mãe deixar… — diz o pai, encolhendo os ombros,aquiescendo a qualquer decisão que a mulher venha a tomar.

O rapaz olha para a mãe, expectante.— Passeiam em frente à casa. Ou lá atrás no terreno, se

preferirem — diz ela, seca.Levanta-se do sofá num salto e corre até à entrada, voltando, no

mesmo passo, com um par de botas e um casaco. Desembaraça-sedos chinelos e calça as botas. Veste o casaco. Põe-se em pé.

— Já estou pronto! — exclama, evitando olhar para a mãe.— Vamos lá — diz o tio, saindo de trás da mesa e passando

junto da mesa grande, à qual a mãe está sentada. Evita o olhar do

pobre pai, que não percebe nada. É simples, pensa o rapaz, commaldade.

Sai primeiro o tio, vestido com garbo e bem penteado, a gravatavermelha e azul bem ajustada ao pescoço esguio. Segue-o osobrinho, as calças do pijama mal enfiadas por dentro das botaspesadas. Fecham a porta. O avô suspira. Talvez lhe tivesseagradado acompanhá-los.

— PORQUE É QUE ESTÁS DE CASTIGO? — pergunta o tio mal fecha aporta.

O rapaz cobre os olhos com a mão, desabituado do exterior.Olha primeiro para a porta. Está mesmo fechada e a mãe está dooutro lado. Depois olha para o tio. Faz-lhe sinal para que o siga,afastando-se da porta. O homem segue-o, de mãos por trás dascostas.

— Fui apanhado a copiar na escola — responde, envergonhado,encolhendo em seguida os ombros como se pretendessedemonstrar que não era algo que o preocupasse —, mas não foiisso o pior. Gabei-me, entre amigos, de usar sempre cábulas. Dissetambém que só me tinham apanhado uma vez e que não voltariam aapanhar-me. Enfim! Uma estupidez! Fui atraiçoado. Chamaram amãe à escola. Outra vez. Dois dias seguidos.

Faz uma pausa para respirar, olhando sobre o ombro para aentrada, onde nada se move.

— A gabarolice é uma espécie de orgulho — disse o tio.O rapaz concordou, em silêncio.— Conheço bem a doutrina. Qualquer forma de orgulho será

castigada.Abana a cabeça, desalentado. Abre a boca, como se se

preparasse para dizer alguma coisa, mas não emite qualquer som,apenas um ligeiro silvo, talvez um suspiro.

— Enganar é uma arte. A tua mãe sabe bem disso, conseguecompreendê-lo.

Remexe nos bolsos do casaco até tirar dois maços de tabaco, demarcas diferentes. Passa os cigarros de uma caixa para a outra.Amarrota o pacote vazio e olha em redor, à procura de um caixotede lixo, como se caminhassem rua abaixo e não em redor da feiacasa da irmã, nas traseiras da qual havia um pequeno terreno ondeela plantava tomates e cenouras. O rapaz estende-lhe a mão aberta.Faz-lhe sinal para que lhe passe o maço amarrotado, que depoisguarda no bolso do roupão.

— Acha que se lhe tivesse dito ela teria sido mais branda?— Talvez. Se não te gabasses — diz o tio, antes de acender um

cigarro.Ficam a olhar para o ar, para a nuvem de fumo que o vento leva

para cá e para lá, destroçando-a.— A tua mãe reconhece a validade de um bom esforço, ainda

que os outros saiam enganados.O rapaz olha para ele com incredulidade. Será possível que

acredite que a mãe retém alguma da piedade que lhe conheceu? Éverdade que não o expulsou ao encontrá-lo na sala de estar da suacasa, nem lhe recusou comida ou bebida. Mas o rapaz tambémsabe da importância que a mãe atribui aos laços de sangue. Mesmoque isso não a tenha impedido de se juntar ao coro que zurzia noirmão, o qual não parece ter-lhe qualquer rancor. Não lhe sentequalquer veneno na língua quando se refere à irmã. Parece até queo faz com afecto, atenção com que a mãe não é frequentementebrindada. Talvez seja porque isso o enfraquece aos seus olhos quese vira para ele e sem hesitar diz:

— Porque é que foi preso?

O tio sopra uma nuvem de fumo, olhando o rapaz, os olhosremelosos e o cabelo revolto, a mesma intensidade da mãe.Reconhecia-a nele, sob o casaco de camuflado, sob o roupão e opijama, nos mesmos gestos tensos de quem não suporta esperar.

— Havia uma mulher… — começa a dizer o tio.— Sim, a tia — interrompe o rapaz, com impaciência.O homem sorri, espantado com a agressividade do rapaz.

Apesar de tudo a irmã sempre soubera ser mais paciente.— Não. Outra mulher.Há sempre outra mulher, pensa o rapaz. Que vida tão entediante!

Sempre a caírem nos erros uns dos outros. Com o seu pai aconteceo mesmo. Enrabicha-se por uma morena, como diz a mãe, e depoisvem a chorar para casa, a pedir perdão e a jurar que nunca maisfaz. Ouviu uma vez a mãe a falar disso, debruçada sobre a listatelefónica na cozinha. Falava para si, enquanto procurava umcanalizador. Eu não quero saber que ele ande a enfiá-la nessasputas, dizia entredentes, mas de cada vez que voltar para casa achoramingar vou esfolá-lo mais um bocadinho! A canalizaçãoentupia com frequência e a mãe achou que era altura de mudá-la.Sabia bem que o pai não se iria opor. Seria o tio como o pai? Olhoupara ele, a fumar, tão diferente de todos eles.

— Quando foi isso? — pergunta.O tio olha para cima, calculando.— Estás com quantos anos?— Dezasseis.— Nasceste em noventa e oito…A ponderação do tio começa a enervá-lo. O homem apercebe-se

disso. Faz um gesto apaziguador.— Desculpa. Tenho fraca memória.

Mas o rapaz acha que é apenas uma pobre desculpa. Percebebem que o tio está à procura da melhor maneira de começar. Temeter pouco tempo e não está disposto a esperar mais.

— Deve ter sido por meados de dois mil e sete, não? — dispara.O tio coça o queixo.— Mais tarde. Setembro.Fica na expectativa, achando que por fim vai começar, o tio

dizendo que tem a certeza de ser Setembro porque tirava sempreférias no fim de Agosto, e nesse ano já tinha estado de férias. Sorri.Estava separado da mulher e fora passar férias com a sua amante.Era a primeira vez que saíam juntos da cidade. Passaram umasemana no campo, a tomar banho no rio, a conversar na varandaaté de madrugada. O rapaz desconfia da candura do postal, masnão diz nada. O tio continua a falar. Foram as melhores férias quealguma vez teve e foi com pena que as viu acabar. Quando voltouao trabalho sentiu-se miserável. Queria o seu pedaço de campo, oseu refúgio. Já estava outra vez a pensar em assentar. Algumaspessoas são mesmo assim, diz como se se defendesse. Nãofuncionara à primeira. Mas podia funcionar à segunda. Sóprecisavam desse refúgio, um sítio para onde pudessem fugirsozinhos. Para isso precisavam de dinheiro. Não entrou empormenores sobre o plano, mas disse que fingira um assalto.Trabalhava com valores, e baixou um pouco a voz para o dizer.

— Fiquei com um grande galo aqui — sussurra o tio, apontandopara a testa. — Foi tudo muito realista!

Demora a retomar o seu relato. Esfrega a testa e suspira.Alguém o denunciou, diz por fim. Um dos outros denunciou-o, talvezporque apertassem com ele. Nunca descobriu qual deles foi e, porseu turno, não denunciou nenhum dos seus. Assumiu a autoria do

esquema, o que era verdade e algo de que se orgulhava, perdendo-se do mundo por orgulho, como um anjo.

Da prisão não fala.O rapaz pergunta na mesma. Acha que não terá outra

oportunidade e não lhe importam os escrúpulos do tio.Estão agora nas traseiras da casa, onde não havia quaisquer

janelas e nenhuma possibilidade de serem escutados pela mãe.Avança sobre o tio, de forma mole, quase imperceptível. A sualíngua é afiada, mas o resto do corpo é menos incisivo, e o homemdemora a perceber que procuram encurralá-lo. Olha distraído para oterreno. Pondera na resposta que poderia dar, olhando para cima,os cantos dos lábios repuxados para baixo, um trejeito que o ajuda aconcentrar-se.

Mas antes que possa responder o rapaz ergue um dedo,lembrando-se de algo importante.

— E a mulher? O que é que lhe aconteceu?Interrompeu a ponderação do tio porque o deixava impaciente

tanto tempo morto, mas também por pudor, como se se mantivesseainda a confiança que antes os unira e, em nome dela, refreasse oseu ardor. De tudo aquilo que o tio poderia ter para lhe contar erasobre a prisão que mais queria saber. Já deduzira quase tudo aquiloque restava, faltava um bloco opaco com dois anos e meio deduração, acerca do qual fizera já as mais ferozes especulações. Noentanto, retraía-se de procurar verificá-las. Ao invés, acenava àpresa com uma distracção que, podia ter a certeza, lhe sairia cara.

O tio olha para ele, intrigado.— A minha mulher?O rapaz não disse nada. Esperou.— Isso é outra história — disse o tio.

— Não — disse o rapaz —, é a mesma história!Olharam-se intrigados, não se compreendendo. Depois o rapaz

deu um passinho atrás.— A outra mulher. O que é que lhe aconteceu quando o tio foi

preso? — pronuncia as palavras devagar, de modo que o outropossa compreender.

O tio compreende por fim.— Não sei. Nunca mais ouvi falar dela.Fala como se soubesse apenas de forma vaga de quem falam.

Não mostra rancor nem despeito. Parece tê-la já esquecido. O rapazacha que a culpa é da prisão, com a qual por vezes sonha,pesadelos asfixiantes, hediondos. Não acredita que se possaregressar intacto do cativeiro. O tio parece prová-lo. Embora ajacom normalidade, não está presente por inteiro. O rapaz nãopercebe com exactidão aquilo de que o tio terá aberto mão.

— E a tia? A sua mulher?O tio olha para diante, não para ele. Ri baixinho.— Sumiu-se. Andou a dizer que tentei matá-la. É maluca!— Toda a gente acreditou nela — diz o rapaz, encolhendo os

ombros. — Até a mãe.O homem olha para ele. Sorri-lhe.— Salvar as aparências é o credo da tua mãe.O rapaz não diz mais nada. Faz sinal ao tio para que regressem.

Mas o homem não se move. Acende um cigarro.— Eu não volto. Já me chega de festa. Tenho de ir apanhar o

comboio, antes que comece a greve.— Vai para onde?Afinal, pensa o homem, o sobrinho não é tão feroz como o

julgou. Há ainda alguma candura no rapaz.

— Tenho onde estar — responde.Sopra o fumo devagar.— Não me apetece ficar a meio do caminho. Tenho pressa e não

tenho dinheiro para alugar quartos de hotel.O rapaz pensa em dizer alguma coisa sobre o exílio, uma

comparação entre este e a prisão. Mas não diz nada, limitando-se aerguer a mão, gesto com que pretendia acompanhar a suametáfora. A sua mão direita fica assim erguida entre os dois e o tio,interpretando-o mal, envolve-a na sua e aperta-a. Pensa que orapaz, sem nada mais a acrescentar, se despedisse dele.

— Feliz aniversário! — diz o tio. Depois faz uma caríciadesajeitada no cabelo revolto do sobrinho, que se encolhe. Afasta-se em seguida sem olhar para trás, formal e elegante. O rapaz nãoacredita que alguma vez volte a vê-lo. Sente o peso no bolso doroupão. É o presente que o tio lhe entregou ao chegar. Tira-o dobolso. Está embrulhado em papel verde-claro. Rasga-o. É um livro,intitulado Pensamentos para Mim Próprio, o seu autor um tal MarcoAurélio, que ele não conhece. No meio há uma folha de papel,dobrada em quatro. Resiste à tentação de retirá-la de entre aspáginas e lê-la, recordando-se de que já voltou a estar em campoaberto e que a mãe pode aparecer a qualquer instante, ou até oidiota do pai, a mando dela. Enfia o livro no bolso. Amassa o papelde embrulho numa bola e, certificando-se de que ninguém oobserva, atira-a para o telhado. Vai ler mais tarde, no quarto. Ouporventura apenas na rua, levando-o dissimulado entre os seuslivros da escola. Sim, talvez seja isso o melhor!

ADEUS

SENTA-SE AO BALCÃO DA CERVEJARIA, entre um homem que bebe emsilêncio olhando em frente e um grupo de três mulheres queesperam, aborrecidas, que vague uma mesa. Apoia os cotovelossobre o balcão e procura chamar a atenção do empregado, queparece perdido, avança um passo e recua dois, pára diante de umcliente com a bebida na mão, olhando para ele, olhando para ela,procurando na sua memória uma ligação entre os dois.

Uma das mulheres bate o pé, impaciente, enquanto as amigasseguram copos de vinho e amaldiçoam a lentidão com que as outraspessoas comem. No seu horizonte, ameaçada pela vagarosaingestão alheia, está uma festa à qual não podem faltar. Discutemas vantagens de procurar, a esta hora, outro sítio para jantar. Amulher continua a bater o pé, o salto do sapato percutindo de formamonótona contra o soalho. O empregado aparece à frente dele comuma cerveja que não conseguira ainda pedir, mas que aceita epaga. Dois lugares adiante das mulheres, um homem de camisaazul-celeste, como a dele, observa a transacção e esbraceja.

Pega na sua cerveja e levanta-se. O homem suspira, ambas asmãos em redor do copo. A mulher percute e as outras argumentamcom a sorte para que possam sentar-se em breve. Ao fundo, longeda porta, o jogo passa num televisor, em redor do qual se

congregam, de pescoço erguido para o ecrã, alguns homens emmangas de camisa e copo na mão. Fica parado atrás deles. Faltamdez minutos e o jogo continua empatado. Ninguém vai aparecerantes que acabe. Redescobriu a pontualidade na pior altura.

Acaba a cerveja e regressa ao balcão. O homem desapareceu,tal como as três mulheres. No seu lugar está agora um casal, eledebruçado sobre ela, a mão pousando-lhe de forma displicentesobre o joelho enquanto gesticula. Parecem-lhe tão jovens que ofazem interrogar-se sobre quando terá começado a sentir-se velho.Naquela que fora a sua cadeira está pousado o casaco da rapariga.Por fim chega um dos seus amigos. Aproxima-se dele de braçosabertos, uma desculpa muda para o atraso. Abraçam-se. É umhábito recente, herdado das infindáveis gerações de homens queprecederam a sua, um costume sancionado pela tradição, mais umaconcessão ao expectável. Assim as perguntas que lhe sucedem. Oamigo senta-se ao balcão, de lado, o cotovelo apoiado. Os seusolhos perscrutam as pernas da rapariga enquanto procura mostrar-se interessado nas respostas dele. O círculo amplia-se, entre maisabraços, palmadas nas costas, pedidos de bebidas. Os amigos vãochegando por ordem cronológica, como se se encenasse umarevisão da sua vida e dos seus tempos. O primeiro, por exemplo,traz consigo um rapazinho de calções e mãos nos bolsos, com umacicatriz no joelho direito. Aquele que acaba de chegar faz-seacompanhar dum rapaz, cerca de treze anos, vestido com esmeromas sempre um pouco enxovalhado. E ainda faltam dois, que jáchegarão meio bebidos e não antes que o jogo, que acabou deentrar no prolongamento, se conclua. Sabe sob que forma osacompanhará, como sabia já das sombras que trariam consigoaqueles que agora o ladeiam. Não é a primeira vez que as vê. Mas

nunca as vira desfilar diante dos seus olhos por esta exacta ordem eteme perder mão nos símbolos que parecem brotar à sua volta.Distraem-no, interpelando-o com uma questão prática: há uma mesavaga no centro da sala, grande o suficiente para todos, e se vãocontinuar à espera não podem ao menos fazê-lo sentados? Insistemcom ele para que se sente à cabeceira, o que acaba por fazer apósalguma hesitação. Fazem um brinde, erguendo-se dos seus lugaresde copo em riste e chocando-os com demasiada força, salpicandode cerveja a toalha acabada de colocar. Depois, por instantes,parecem esquecer-se dele, sentado na sua longínqua cabeceira amatutar diante do copo de cerveja. Falam de coisas às quais perdeo fio.

O empregado traz as entradas, que vai dispondo com esmerosobre a toalha, dando pequenos toques nos pratos para os deixarna posição exacta. Distribui depois as ementas e retira-se, não semantes se certificar de que todos pedem mais uma cerveja. Não abrea ementa e acende um cigarro. Fuma desde sempre. Começouatrás dum muro na escola, sentado no chão a torcer os lábios,tentando suportar a náusea mas armado do seu ar mais duro paraquem pensasse em rir-se dele. Fumou todas as marcas e todos osformatos, sem nunca pensar em parar. Aguentou a faculdade comnoites passadas em branco a soprar delicadas filigranas de fumoenquanto abria caminho pelos árduos caminhos da economia.Acendeu cigarros uns nos outros enquanto esperava que algumarapariga lhe devolvesse um telefonema e lhe desse um indício, umqualquer. Suportou longas esperas tendo por únicas companhias opacote rectangular de cartão e um isqueiro de plástico. Combateuinsónias com eles, sentado à mesa da cozinha diante de um copode água fresca, esfregando os olhos e pensando que já não fazia

sentido voltar para a cama, a luz da manhã entrando tímida pelajanela. Nunca deixou de gostar de fumar, da pausa que issoproporcionava nos outros gestos, aqueles que são obrigatórios.

Dá-se a chegada ruidosa dos dois que faltavam. Mais abraços,mais brindes, comentários sobre quais as entradas recomendadas.Mergulham depois na silenciosa tarefa de contemplar a ementa.Comparam-se, a meia voz, as vantagens de determinado pratosobre um outro. Dois deles escolhem o mesmo e gera-se algumaconfusão, nenhum disposto a abrir mão da sua escolha. Sana-se adisputa com uma promessa de partilha dos pratos, o que os lançanuma nova disputa, onde cada um se apresenta mais ansioso que ooutro em voltar atrás na palavra já dada. Também essa nova rixa écircunscrita e, feito o pedido e recolhidas as ementas, recostam-senas cadeiras, beberricando dos seus copos altos de cerveja, todosos olhos postos nele. Atenua a solenidade do momento ao não seerguer do lugar para discursar. Fala devagar, escolhendo aspalavras com cuidado e sem olhar para nenhum deles durantedemasiado tempo, procurando abrangê-los a todos no mesmogesto. Ergue o copo ao terminar e todos se lhe juntam, os coposchocando sobre a mesa, à qual começam agora a chegar os pratos.Ergue-se o familiar desejo de solidão, ameaçando submergi-lo.

Começam a comer, servindo-se das diversas travessas.Observa-os enquanto mastigam. Um é careca, o outro usa óculos, oterceiro tem maus dentes e o último, o mais antigo, acha que vai serjovem para sempre. Lê neles não só o seu passado mas tambémalgo daquilo que poderá vir a ser o seu futuro. Começou a perdercabelo, e letras distantes, ou demasiado pequenas, já lhe causamdificuldades. Mas não se imagina com óculos, uma extensão da suaincapacidade para se ver a envelhecer, e já não sorri tanto como

antes, os dentes manchados de nicotina envergonham-no e tornou-se uma daquelas pessoas que riem sempre de boca fechada.Observa-os então sem falar, não como se não pertencesse ao grupomas antes como um senhor observaria os seus vassalos entreguesao livre emprego do seu tempo. Não é raro que adopte essa posturaquando o acomete o desejo de solidão. Imagina-se então àcabeceira de uma longa mesa, populada por aqueles que lhe devemobediência.

Para enriquecer a ceia, aquele que tem maus dentes conta umahistória sobre ele, uma das muitas sobre a sua pretérita má sortecom as mulheres. Quando ainda estavam na faculdade tinhamvivido juntos noutro país durante um ano, eles e o careca, ao abrigode um programa de intercâmbio. Tinham sido pois convidados parao réveillon e lá se tinham disposto a apresentar-se à porta de umacasa que não conheciam, enregelados e já meio embriagados, olote de bebidas que tinham comprado para a festa encurtado pelasparagens para aquecer. Levavam as garrafas em sacos de plásticode uma cadeia de supermercados, as alças presas nos pulsos e asmãos nos bolsos dos casacos, nos bolsos interiores dos quaistraziam miniaturas, whisky. Não falavam e apenas paravam detempos a tempos, numa paragem de autocarro ou em qualqueroutro sítio que lhes oferecesse protecção contra o frio. Sentavam-semuito juntos e passavam a garrafa entre si. Depois prosseguiam,atravessando as multidões que se aglomeravam em algumas ruas,na expectativa da festa que se anunciava, ou caminhandoquarteirões inteiros sem ver ninguém. Por fim conseguiram chegar àcasa para onde os tinham convidado.

Tocaram à porta e ficaram à espera de que alguém viesse abrir,esfregando as mãos e batendo os pés para se manterem quentes.

Não ouviam qualquer som pelo intercomunicador, embora o carecalhe encostasse o ouvido e jurasse que podia ouvir o som de risosabafados. Ele afastou-o e quis avaliar por si essa hipótese, já furiosocom a perspectiva de terem ido até ali apenas para serem gozados.Mas não ouviu nada. O careca jurava que tinha ouvido, e ele negou-se a acreditar. Como já estavam a ficar bêbados, a disputa não tinhamodo de ser sanada. O dos dentes em mau estado absteve-se deintervir, nem sequer para comprovar a versão de um ou de outro,mantendo-se afastado da porta, segurando o saco de bebidas quelhe coubera com ambas as mãos, uma garrafa de cerveja enfiada nobolso do casaco. Esperaram durante dez minutos, tocando à porta,discutindo, chamando o nome do rapaz que os convidara. Algunsvizinhos vieram espreitar à janela, mas nenhum interveio.

Se calhar não é esta casa, disse o careca, e começou a remexernos bolsos, à procura do papel onde tomara nota do endereço, massem conseguir encontrá-lo.

O número é este, disse o dos dentes, e ele concordou. O carecaolhava para eles abanando a cabeça, ainda à procura.

Tem de haver algum engano, murmurava para si, um númerotrocado, qualquer coisa…

O prédio tinha um pequeno alpendre, dois ou três degraus que oseparavam da rua. Desceu-os segurando a garrafa de vinho pelogargalo. Ficou de costas para a casa, parecendo ao dos dentes — ocareca nem tinha reparado que ele se afastara — que decidira ir-seembora e estava apenas a escolher o lado da rua por onde partir.Viu-o beber, em dois goles, o resto do vinho e depois, sem aviso,virar-se para a casa e arremessar a garrafa vazia contra a porta,onde se estilhaçou. Passara rente à cabeça curvada do careca, quese lembrara de um último bolso onde ainda não procurara. Passara

diante dos olhos arregalados daquele que tinha os dentes em mauestado e fora quebrar-se no meio da porta, deixando uma manchavermelha na porta pintada de branco.

Este filho da puta faz-nos vir até aqui, disse por fim.Não parecia querer justificar-se, mas antes que se lhe juntassem

num exercício de vingança. O careca protestou de forma débil, mas,quando viu que o dos dentes lhe virava as costas e começava adescer as escadas, apressou-se a juntar-se-lhes. O dos dentespousou o saco e tirou a garrafa de cerveja do bolso. Esvaziou-a nopasseio e, fazendo pontaria, atirou-a também na direcção da casa.Não acertou na porta mas na parede ao lado desta. Riu-se da suafalta de pontaria. O careca não tinha nenhuma bebida a meio.Pegou numa garrafa cheia e estava prestes a atirá-la quando umdos vizinhos gritou alguma coisa. Os outros dois ergueram ascabeças para ver de onde vinha a voz. E o careca, por sua vez,atirou a garrafa de forma trôpega, acertando apenas no degraucimeiro do alpendre e depois, com o seu saco de bebida às costas,desatou a correr rua abaixo. Seguiram-no, sob um coro de protestosdos vizinhos. Não corriam muito depressa, cheios de roupa eembriagados, mas felizmente, recordou o dos dentes, estavademasiado frio para que alguém pensasse em persegui-los. Umasruas adiante abrandaram, virando-se para trás para confirmar quenão havia mesmo ninguém a persegui-los. Ficaram parados duranteuns instantes a recuperar o fôlego, curvados para diante, as mãospousadas nos joelhos, os sacos com as bebidas caídos no chão aoseu lado.

O dos dentes interrompeu a história para beber um grande golede cerveja, esvaziando o copo e aproveitando para pedir outra. Ospratos vazios começaram a ser retirados. Ao seu lado, o dos óculos

pediu a lista das sobremesas, que o empregado debitou de formamonocórdica enquanto segurava os cinco pratos vazios. Quandoterminou teve de recomeçar porque ninguém prestara atenção e, desúbito, todos estavam muito interessados em coisas com açúcar.Mas no final a coisa saldou-se apenas em duas musses dechocolate, mais cinco cafés e pedidos de informação sobre asaguardentes disponíveis, à qual o empregado teve de se escusar,prometendo voltar em seguida com uma carta apropriada. No hiatoque se seguiu acenderam-secigarros e o careca instigou o dosdentes para que continuasse a história, da qual parecia já ter-seesquecido. Recomeçou. Estavam portanto a recuperar o fôlegoquando se colocou o problema daquilo que ainda poderiam fazernessa noite. Tinham também todas aquelas bebidas e não iampassar a noite a carregá-las. Abriram uma garrafa de vinho, com osaca-rolhas que ele trazia no bolso. Beberam-na depressa, emgoles sôfregos, passando-a de mão em mão, finos fios escarlatesescorrendo-lhes dos cantos da boca para os queixos malbarbeados. Ele limpou a boca com as costas da mão e perguntou-lhes o que achavam que deveriam fazer.

Mais adiante há uma praça. Deve haver alguma coisa aacontecer por lá, disse ele.

Nenhum dos outros deu qualquer alternativa e acabaram porsegui-lo em direcção à tal praça, onde de facto se preparava umaespécie de celebração. No centro havia um palco, no qual se moviaum vagaroso técnico de som, verificando cabos e microfones parauma qualquer banda que haveria de aparecer. Em frente ao palcoestavam algumas pessoas, sentadas em círculos no chão, a beber ea rodar charros. Aproveitaram para se sentar também, pousando ossacos no interior do pequeno círculo que tinham formado. Abriram

outra garrafa de vinho e verificaram que já só tinham mais uma, oresto dos sacos ocupados com cerveja a amornar e uma garrafa dewhisky, a qual tinham decidido entre os três guardar para o fim, paraquando já não houvesse mais nada para beber. Uma raparigaergueu-se de um dos círculos e passou junto deles, sem os olhar.Havia um bebedouro por trás deles e ela curvou-se sobre este parabeber água. Segurava o cabelo com uma das mãos enquanto bebia.O careca e o dos dentes nem repararam nela, entretidos aespecular sobre as horas que seriam, nenhum deles com um relógiopor onde confirmar. Mas ele, que também não tinha relógio e nãoestava assim tão interessado em saber se o ano já se findara ounão, viu nisso uma oportunidade e ergueu-se.

Vou descobrir, disse ele, para espanto dos outros dois.Dirigiu-se em passo incerto até ao bebedouro, a garrafa de vinho

na mão. Colocou-se ao lado da rapariga, esperando que elaacabasse de beber. Os outros olhavam para ele, sem compreendero que estava a fazer e, fosse isso o que fosse, por que razão levaracom ele a garrafa de vinho. A rapariga só reparou nele quandoergueu a cabeça e pareceu espantada de o ver ali, o corpooscilando de forma ligeira, a garrafa na mão e um sorriso idiota norosto. Disse-lhe alguma coisa que os outros dois não ouviram,curvando-se demasiado para diante, com aquele exagero que osbêbados põem nos gestos mais simples ao quererem passar umaimagem de sobriedade que tudo neles se empenha em contrariar. Arapariga olhou para ele, não compreendendo aquilo que ele lheperguntava. Ele gesticulou, a garrafa perigosamente perto de seentornar, ao que os outros dois suspenderam a respiração, cadagota uma preciosidade que não deveria desperdiçar-se, jáesquecidos daquelas que tinham desperdiçado no seu impulsivo

exercício de destruição. Enfim a rapariga percebeu aquilo que elelhe perguntava. Fez um gesto de desalento, erguendo em seguidaas mangas do casaco, primeiro a direita e depois a esquerda, paralhe mostrar que também não tinha relógio. Isso não o dissuadiu detentar conversar com ela, que parecia mais interessada em voltar asentar-se junto dos amigos e o escutava com um sorrisocondescendente. Voltaram do bebedouro, separando-se junto aosoutros dois. Ela seguiu, voltando-se para trás para fazer um breveaceno, e foi juntar-se aos seus. Por sua vez ele ficou de pé emfrente dos outros, que tinham as cabeças erguidas na sua direcçãoe esperavam que dissesse alguma coisa. Acendeu um cigarro ebebeu um gole de vinho antes de devolver a garrafa ao careca.

Vamos sentar-nos ali, disse por fim, fazendo um sinal com acabeça na direcção do círculo onde estava sentada a rapariga.Pegou num dos sacos, esperando que os outros se levantassem. Ocareca olhou para ele e franziu o sobrolho, o gargalo da garrafa naboca. O dos dentes ficou também a olhar para ele, de mãoestendida para a garrafa que o careca ainda não largara.

Ela convidou-nos?, perguntou hesitante, os seus olhos pequenospassando dele para a garrafa na mão do careca e regressando aele, esperando uma resposta ou a sua vez de beber.

Convidou, respondeu ele, a ficar impaciente. Mudava o saco deuma mão para outra, o cigarro entre os lábios, os olhos fixos neles.Passou o saco que segurava ao dos dentes e inclinou-se para pegarno outro, tombado no interior do círculo. O terceiro saco já estavavazio e deixaram-no no chão quando se ergueram, e, com ele àfrente, aproximaram-se do círculo onde a rapariga estava sentada.Ela pareceu espantada de os ver chegar. Os amigos dela, que setinham apercebido da conversa junto ao bebedouro, disfarçaram os

risos enquanto olhavam para eles ali em pé, com os seus ridículossacos de supermercado nas mãos, cheios de roupa como se asruas estivessem pejadas de neve. Os risos abafados incluíam arapariga, a qual, para não ser desagradável e depois de uma breveconsulta muda com aqueles que a rodeavam, os convidou a sentar-se ao pé deles. O careca e o dos dentes sentaram-se no lugar emque estavam, fora do círculo. Mas ele deu um passo adiante e foisentar-se mesmo ao lado da rapariga. Os amigos dela deixaram-nopassar, ainda divertidos. Estendeu a garrafa à rapariga, querecusou. Perante isso não lhe restou senão oferecer aos restantes,ao que uma mão mais afoita lha arrancou da mão. Fizeram-na rodarno círculo e quando regressou às mãos dele já estava vazia. Masisso não pareceu incomodá-lo, ocupado a tentar conversar com arapariga, procurando interpretar os acenos incomodados dela e osseus monossílabos como indícios favoráveis. Observando-o, ocareca e o dos dentes temiam por ele. O careca ainda foi até elecom outra garrafa, sussurrando-lhe enquanto lha passava que secalhar era melhor irem-se embora. Ele abanou a cabeça.

Ela está caidinha, disse.O careca desistiu e abandonou o círculo. Foi sentar-se de novo

ao pé do outro, continuando a observar a forma desastrada como oseu amigo procurava cortejar a rapariga, sem deixar de lhe oferecerda nova garrafa, que ela voltou a recusar, pousando-a depois entreas suas pernas dobradas sem oferecer aos outros membros dogrupo. Ele falava e aproximava-se dela. Ela recuava a cadamovimento seu e os amigos dela pareciam ter-se esquecido já dabonomia com que lhe tinham permitido sentar-se, começando aolhá-lo com hostilidade. Mas como se viessem em seu auxílioacenderam-se então as luzes no palco e, onde antes estivera

apenas um técnico, a banda começou a tomar as suas posições.Tocavam alto, demasiado alto, as guitarras abafando a voz, ovocalista procurando competir ainda assim, empertigando-se à beirado palco, veias salientes no pescoço. A bateria parecia uma turbina.O baixista poderia nem sequer estar a tocar, a sua contribuiçãoperdida no meio da avalanche desencadeada pelos outros músicos.De qualquer modo isso parecia não incomodar os espectadores.Despertaram do torpor em que tinham estado até aí e de imediatose ergueram dos seus círculos no chão e se foram aproximando dopalco, formando nesse movimento uma massa mais ou menoshomogénea, da qual sem pena se deixaram excluir o careca e o dosdentes. Quanto a ele, a partir do momento em que a rapariga selevantou não lhe ocorreu outra alternativa que não levantar-setambém e segui-la. Ela avançou muito depressa, procurando talvezperder-se dele no meio dos outros espectadores, a mão posta noombro de um dos rapazes que a acompanhara no círculo e queagora a guiava para longe dele. Atrás dele vinham os outrosmembros do grupo, pouco ansiosos por chegarem até à frente.

Do que a seguir aconteceu tanto o careca como o dos dentestinham versões contraditórias. Concordavam em relação aomomento em que se tinham apercebido de que eclodira algumaespécie de confusão e que ambos tinham de imediato tido a certezade que o seu amigo estava envolvido. Discordavam em relação aotempo que tinham demorado a chegar até ele e dos obstáculos quetinham tido de ultrapassar. Na versão do careca, o percurso eramais lento e aventuroso, mas era o outro quem contava a história ea sua versão era mais sucinta, menos atribulada. Na cabeceira damesa, a fumar, de olhos baixos, ele fazia rodar o isqueiro sobre amesa. Os outros dois recostavam-se nas cadeiras, com copos de

aguardente na mão, procurando mostrar-se interessados na história.O careca resistia à tentação de intervir. Vinha aliás a combatê-ladesde que se iniciara a narração, esboçando por vezes a intençãode erguer a mão para interromper o outro, mas sem nunca passardo esboço. De qualquer modo, chegados ao ponto em que tinhamconseguido encontrar o seu amigo no meio dos espectadores, asversões voltavam a entrar em sintonia e tornava-se desnecessáriointervir. Junto ao palco, disse o dos dentes, tinha-se formado umaclareira. No centro desta estava ele e à sua frente estava a rapariga,gritando com ele, falando tão depressa no seu idioma que nãoconseguíamos acompanhar aquilo que dizia. Sentado no chãoestava o rapaz que a guiara até à frente. Tinha a testa cheia desangue. Havia restos de vidro e vinho no chão e ele tinha aindaaquilo que sobrava do gargalo na mão direita. Pusemo-nos ao ladodele e procurámos acalmar a rapariga, mas ela não estava paraisso. Continuava a gritar e a única coisa a fazer, antes que olinchassem, era sair dali o mais rápido possível. O nosso medo eraque ele ainda não se quisesse vir embora, e sorriu o seu sorriso dedentes estragados, mas correu tudo bem. Toda a gente estava devolta do rapaz caído e aproveitámos que a rapariga se distraiu comalguma coisa para lhes virarmos as costas e abandonar a praça.Quando deram pelo nosso desaparecimento estávamos outra vez acorrer como possessos rua acima. Fomos parar em frente à casaonde deveríamos ter estado numa festa e onde havia agora luzes esons de música. Fomos tocar à porta, à procura de um sítio paranos escondermos. Enquanto esperávamos que viessem abrir aporta ele disse assim, Afinal ela não estava interessada. O rapazque nos tinha convidado veio abrir a porta e, embora estranhasse onosso aspecto, convidou-nos a entrar. Nem tínhamos tido tempo de

tirar os casacos quando se começaram a ouvir os foguetes e aspanelas a bater e os gritos. E este cabrão só disse, Afinal ela nãoestava interessada!

O dos dentes é o único que se ri. O careca esboça um sorrisoque significa que se tivesse sido ele a contar tudo teria corridomelhor. Os outros começam de imediato a falar de outra coisa. Eele, sentado à cabeceira, fica a pensar se será só aquilo. Tantosanos e a única coisa que resta é esta história, que nem sequerserve para arrancar uma gargalhada a ninguém. É útil para ele quehaja pouco a dizer, mas sente ferida a vaidade. Depois da história oânimo esmorece e em breve se começa a bocejar, a sugerir-se queé tarde. São os últimos na sala. Os empregados estão encostadosao balcão, a conversar sobre o jogo que passou, e ele ergue a mão,procurando atrair a atenção de um deles. Pede a conta, a qual, aocontrário do combinado, não dividirão por cinco mas que ele seencarregará de pagar. Não lhe apetece passar pela confusão dascontas, de quem deve o quê, de quem comeu ou bebeu seja o quefor e que esteja a ser pago pelos outros. Na rua dividem-se em doisgrupos. Por ironia, volta a ficar com os mais antigos, o dos óculos eaquele que quer ser jovem para sempre, apertado em camisasgarridas próprias de rapazes mais novos e ostentando apertadoscolares com pendentes em metal que se assemelham a trelas. Ocareca e o dos dentes despedem-se dele. Abraços e palmadas nascostas. Desce a rua com os outros dois até uma paragem de táxis e,sob o pretexto de ainda ter muito que fazer, é o primeiro a partir,despedindo-se deles com um aceno. Fecha a porta do táxi e dá oendereço. Recostando-se no assento fecha os olhos. Enfim só. Orádio está desligado. Os ruídos da rua chegam abafados. Ele voga

num doce mar de esquecimento. Crê ter abandonado a sua antigavida.

Após alguns minutos de viagem o taxista acena com umatentativa de conversa. Primeiro diz alguma coisa sobre o jogo, aoqual ele, distraído, responde com um murmúrio que não incentiva ohomem a continuar. Mas uns metros adiante volta a tentar. Fala dagreve, da praga que são os sindicatos. Ele abre os olhos, irritadocom a insistência do homem. Suspira de forma audível. O taxistaolha-o pelo retrovisor. Ele devolve o olhar, impassível. Desfazia-o alimesmo, se necessário. O outro encolhe-se. Apressa-se a concluir,dizendo que de quem ele tem pena é daqueles que ficam entredestinos, lá no meio do deserto. Mas parece ainda ter alguma coisapara dizer. Continue, diz ele, agora interessado no deserto de quefala este homem.

Uma vez, diz o taxista, à conta duma brincadeira destas tive dedormir ao relento. Até a estação fecharam. Vinha tesinho, tesinho!Dormi na rua, e faz um gesto de resignação. Era Inverno. Nãogostei!

Sorri, compadecido, mas não deixa de recordar ao homem queaquilo que descreve não parece bem um deserto. Pergunta onde foique isso lhe aconteceu e o outro, manobrando o volante numacurva, menciona uma cidadezinha junto à costa, um nome que eleconhece bem.

Chegava-se lá de comboio. A estação ficava afastada do centro,ao qual se chegava através de um casario de calçada antiga,íngreme e escuro. Aí, verificou-o mais tarde, proliferaram bares,como tendem a fazer nas cidades costeiras, cidades de Verão nasquais pouco resta para fazer no Inverno. Bebe-se. De qualquermodo era demasiado novo para beber álcool quando frequentara a

cidade. Demorava-se na praia, com os tios. Olhava de longe para asoutras crianças, mordendo o lábio inferior enquanto se debatia entrejuntar-se-lhes ou brincar sozinho. A tia empurrava-o com suavidadepara que fosse brincar com os outros. O tio sorria, encorajador.Levantava-se da toalha e ia até junto dos outros, que jogavam a umjogo que nunca tinha visto. Atravessava o areal, aproximando-secom cautela. Na zona onde jogavam a areia estava mais húmida,menos pesada. Os gritos excitados dos jogadores entusiasmavam-no. Olhava para trás. A tia dormia, mas o tio olhava por ele.Acenavam. Virava-lhe as costas e corria até junto dos outros.

O táxi pára de repente, sacudindo-o. Num reflexo agarra obanco, preparando-se para um impacto que nunca chega.

Já chegámos, diz o homem sem desligar o taxímetro.Mas o passageiro não diz nada. Olha para o taxista com uma

espécie de espanto. Com olhos novos, como um convertido. Ergueas mãos, preparando-se para falar, mas não pronuncia qualquerpalavra. Respira fundo. Tira o cinto de segurança.

Pode esperar por mim? Demoro vinte minutos, meia hora nomáximo, diz por fim. Parece estar de novo sob controlo, embora asua respiração ainda pese.

O taxista olha para ele, por sobre o ombro.Vai para muito longe?, e ele responde que vai para a estação de

comboios. Não é longe. Pode ser, diz o outro depois de uma curtapausa.

Não se esqueça da greve, acrescenta apontando para o relógio,enquanto ele abre a porta. Acena com a cabeça, anuindo, antes desair e fechar a porta, procurando no bolso as chaves das outrasportas que ainda terá de abrir antes de chegar a casa. No elevadorvê-se ao espelho. Conserva um porte atlético. Não se desleixou e

está ainda capaz de deixar tudo para trás. E agora esta memória,incólume ao incêndio meticuloso que ateou nas suas recordações.Da sua vida anterior apenas quer as cinzas, não pretende deixarnada de pé. Ateará este último fogo e desaparecerá entre o fumo.

Quando desce, o taxista está fora do carro a fumar. Olha-o dealto a baixo, enquanto ele se encosta também ao táxi e acende umcigarro. Barbeou-se. Talvez seja um daqueles homens que têm dese barbear de manhã e à noite. Ele próprio precisa de se barbear,embora a sua barba não seja assim tão forte. Passa a mão peloqueixo, sentindo os pêlos rugosos, crescendo até enquanto ele olhade esguelha para o seu passageiro. A roupa é de qualidade, ocolarinho da camisa branca bem engomado, a gravata é vermelha eazul, de tecido fino que não sabe nomear. Não trabalha à noitecomo ele, nem passa os dias num estado de aturdimento exausto.As suas experiências não se complementam. Nada têm a dizer umao outro, senão arriscadas tentativas de encontrar um territóriocomum, um exercício ao qual o taxista já devotou esforço suficientee do qual não tirou outros dividendos além do movimentoininterrupto do taxímetro, cronometrando a duração da viagem.

Quando acabar de fumar seguimos, não?Olha para o homem, que olha por sua vez, em silêncio, para o

prédio de onde acaba de sair, fumando.Sim, diz, acho que teremos de ir em breve.Pensei que teria bagagem, diz o taxista, a despropósito e contra

a sua própria decisão de não voltar a estender a mão ao outro.Não vou por muito tempo, responde o homem, sorrindo. E de

qualquer modo, acrescenta, para aquilo que vou fazer não precisode bagagem.

O taxista ajeita o boné na cabeça. Dá um último trago no cigarro,segurando-o entre o polegar e o indicador. Deixa depois cair abeata, sem a pisar. Fica no passeio, a arder, consumindo-sedevagar.

Encaminha-se para o seu lugar. Abre a porta e apoia o cotovelona capota.

Estou pronto, diz.Não fuma dentro do carro?, pergunta o homem, sem olhar para

ele, de olhos fitos num ponto elevado do prédio, talvez a sua própriajanela, como se não fosse verdade que partia por pouco tempo equisesse guardar na memória os detalhes do feio bloco deapartamentos, para que essa imagem o ajudasse a regressar oupudesse, de algum modo, confortá-lo durante a sua ausência.

Só no Verão, responde, olhando também ele para cima,precisando de reflectir sobre a melhor resposta a tão inesperadapergunta. No Inverno, não. Fico constipado com muita facilidade. E,além disso, o táxi não é meu. O patrão não gosta muito de ter oscarros a cheirar a fumo.

O passageiro concorda, acenando com a cabeça. Atira o cigarropara o chão. Pisa-o com a biqueira do sapato, esmagando-o.

Vamos?, e abre a porta do automóvel, acomodando-se emseguida no seu lugar. Põe o cinto e espera que o motorista ponha omotor a funcionar.

O táxi desliza rua abaixo, sem pressa. O cliente penteia-se, comum pente de alumínio que guarda depois no bolso interior docasaco.

O rádio está ligado. Daft Punk, ainda «Get Lucky». Que ano tãolongo! Já passou o Verão e está sozinho outra vez. Trocou uma poroutra e no fim foram-se as duas embora. Não é a primeira vez que

lhe acontece, mas não quer dizer que goste. Incomoda-o estarsozinho, ser a sua própria companhia. É pouco gregário, apesar defalar com todos. Aprendeu a interpretar as tendências gerais, ostópicos de mediano interesse. Não aprofunda, a não ser que odesafiem. Discorre sem dificuldade sobre desporto, cultura popular eassuntos políticos, internos ou externos. Um novo locutor irrompeem cena. Anuncia o nome do seu programa, patrocinado por umamarca de radiadores. Entra um anúncio. No regresso, o locutorpropõe uma charada, jogo próprio para noites frias de Inverno,apropriadas à companhia de um radiador. Numa sala fechada háduas portas, uma ao lado da outra. Uma das portas leva ao Paraíso,a outra leva ao Inferno. Diante de cada uma das portas há umhomem. Um deles mente sempre, o outro diz sempre a verdade.Mas não sabemos qual é qual. As portas também não estãoidentificadas. Com apenas uma pergunta, deve descobrir-se qual éa porta para o Céu. O locutor faz uma pausa. Depois continua, semqualquer inflexão. Todo o caminho para o Paraíso é o Paraíso, poisJesus é o Caminho. Catarina de Siena, esclarece. Tem a respostaao enigma na ponta da língua, mas não há meio de conseguirformulá-la. Entretanto chega-se à estação. Faz-se o pagamento, opassageiro diz adeus, pára-se adiante na praça, no final duma longafila, vai-se comer qualquer coisa de olho no carro, um kebab, atelevisão a distrair da profissão, a fila não se move um milímetro.Fuma um cigarro antes de entrar na estação. Agora viaja sempre decarro e há anos que não entra numa gare. Sempre desconfiou decomboios, do alargado consenso popular em relação a tudo o que éferroviário. O romantismo dos comboios deixa-o indiferente. Gostaainda menos desde que não se fuma. Atravessa o saguão, ondeestão poucas pessoas, a maioria diante do quadro electrónico que

anuncia as partidas e chegadas. Uma rapariga corre para abilheteira, atravessando-se à sua frente, as abas longas do casacosaltitando no seu encalço. Um homem tem às costas uma mochilacom um dístico pacifista cosido no tecido e depois com tintavermelha, um grande x pintado sobre o símbolo. Uma mulher desaltos altíssimos olha em redor, aflita. Três militares estão sentadosnum banco, as trouxas pousadas entre as pernas. Dois delesdormem, a cabeça pousada na bagagem. O do meio olha para ele,embora não se conheçam. O quiosque dos jornais está fechado.Adiante há uma feira do livro. Está fechada, os livros dentro dumgrande invólucro de plástico, como crianças prematuras. PabloPicasso olha para ele do interior da tenda, fotografado a trêsquartos, a boca coberta pela gola erguida do casaco e a cabeçatapada por um chapéu, o olho direito nas sombras e o esquerdoapontado para ele. Inclina-se para espreitar alguns dos outros livros,procurando reconhecer capas ou títulos. Lê mais quando estásozinho. Não vê nada que lhe interesse, nem mesmo o olho dePablo. Ao fundo sai-se para a zona do cais onde há uns bancos demadeira nos quais se pode fumar. Senta-se no primeiro queencontra. No seguinte estão dois adolescentes, um rapaz e umarapariga, olhando em silêncio para um tablet, um brilho pálidoiluminando-lhes o rosto. Deixa cair o isqueiro. Cai para debaixo dobanco. Agacha-se para o apanhar. Agarra o isqueiro. Junto a eleestá uma estatueta de madeira. É azul, como o seu isqueiro. Temolhos negros, egípcios, sem expressão. Parece ser alguma espéciede soldado, pois traz uma espada na mão direita. O corpo foi malesculpido, apesar de o braço cruzado sobre o peito ser de melhorexecução que o resto. Mete-o no bolso. Talvez dê sorte. Fuma ocigarro enquanto o comboio diante dele inicia a marcha, os

passageiros acomodando-se ainda na azáfama da partida. Quandoregressa para junto da viatura a fila tem a mesma dimensão. Osoutros taxistas estão em grupos, a conversar, a jogar às cartas.Enfia-se no carro e dá meia-volta, deixando para trás a estação e afila imóvel. Liga o rádio. Lembra-se por fim da resposta ao enigma.Sorri, abanando a cabeça. No centro haverá mais movimento. Aindanão é tarde. De qualquer modo, quando está sozinho custa-lhe maisir para casa.

O segundo corpo

Todos temos um centro de atracção misterioso, um sol invisível e remoto, em volta do qual

gravitamos, confusos, até sermos atraídos para ele.

TEIXEIRA DE PASCOAES, São Paulo

A VEZ DO CADÁVERA testemunha

CHEGAVA COMO UM SUSSURRO, suave brisa que anunciava atempestade ainda em formação. Falava devagar mas de formamuito clara. Queria saber onde reclamava uma herança.

É da minha mãe, disse.Filha única de filhos únicos. A quem poderiam deixar o dinheiro?Procurou o dossier com a informação que lhe pedira, sem a

olhar. Abriu-o sobre o balcão e ela inclinou-se sobre este, como seambos fossem procurar. Sorriu, cortês, e convidou-a a afastar-se.

Pegou no papel que ele lhe estendeu, agradeceu e afastou-se acaminho dos elevadores.

Viu-a passar meia hora depois, em direcção à saída. Nãoesperava voltar a vê-la e não pensou mais no assunto.

Quando saiu da repartição atravessou a rua, afrouxou o nó dagravata e entrou na tasca defronte. Bebeu um copo de vinho aobalcão. Parecia que passava a vida ao balcão. Fez uma piada sobreisso e toda a gente se riu, menos o surdo que estava detrás do dito.Continuou a limpar um copo, com o mesmo metódico desprezo com

que limpara tantos antes desse. Era a única coisa que fazia e nãoparecia ter vontade de aprender outra.

Pousou o copo no mármore e bateu com ele duas vezes. Ohomem trouxe-lhe outro e recolheu as moedas. Bebeu esse maisdevagar e depois ainda bebeu mais um, sem dizer mais nada,ouvindo apenas aquilo que diziam os outros. Ria-se quando erapreciso e o resto do tempo ficava apenas inerte, de copo na mão, aolhar.

Começaram a doer-lhe as pernas e foi sentar-se na paragem doautocarro, à espera.

Demorou ainda uma hora a chegar a casa. No caminhoencontrou um antigo colega da escola técnica, que acabara de serpai. Eram da mesma idade, tinham o mesmo emprego, bebiam osmesmos copos nos mesmos sítios, e agora havia esta diferençafundamental entre eles. Era aqui que as suas vidas começavam adivergir. Não se deram conta disso. Ele deu-lhe os parabéns, o outroagradeceu, ruborizando, coisa que fazia com muita facilidade. Naescola chamavam-lhe o Farol, de alto que era mas também por ficar,tão amiúde, com as faces avermelhadas. Despediram-se cincoparagens antes da sua, todas passadas a olhar pela janela e semque ninguém viesse sentar-se ao seu lado. Morava no fim da linha,aliás um pouco para lá deste.

Cozinhou e comeu.Dormiu cedo e não sonhou.Na manhã seguinte ela estava à porta da repartição, à espera

que esta abrisse. Não o viu a olhar para ela.Foi almoçar e ao voltar, de casaco ao ombro, lá estava,

encostada ao balcão, não como se o esperasse, mas apenas

parada a descansar. Reconheceu-o. Não havia ninguém paraatender senão ela, que se pôs a conversar com ele.

Havia algo de petulante nela, que o repelia e atraía emsimultâneo.

Não estava perdida, nem estava à espera de ninguém. Entregaraaquilo que lhe tinham pedido e recebera então um prazo, de cincohoras, para que a situação se resolvesse. Como morava longepreferira esperar por ali. Já almoçara e falava sem parar.

Ele perguntou-lhe onde é que morava. Leia os autos que fica asaber tudo, respondeu ela, desencostando-se do balcão.

Pediu desculpa quando ela começou a afastar-se, temendo tê-laofendido. Olhava para o relógio. Estou atrasada, disse e saiu muitodepressa, acenando e sem lhe dar tempo de dizer mais nada.

Leu os autos, como ela lhe sugerira. No dia seguinte já tinha umnúmero de telefone e uma morada. Não era tão distante quanto issoe havia até um telefone de trabalho, com um endereço de duas outrês ruas abaixo. Ou acima, não tinha a certeza. De repente omundo era ela, e ele o seu perseguidor.

Conseguiu marcar um encontro, ligando-lhe para o trabalho. Agiuao abrigo da herança, única coisa que sabia de certeza sobre ela.Esperava-a com ansiedade quando se viu num espelho, não comoentão era mas como veio a ser. Reconheceu-se, e aí soube queestava a sonhar. Não tardou a acordar. Ficou de olhos fechados aouvir a mulher respirar.

Nunca sonhava com ela, não assim pelo menos.

Quando se levantou e abriu as cortinas ainda era de noite.

Desde que enviuvara acordava cada vez mais cedo, mas antesdisso já a mudança de domicílio forçara alterações no seu ritmobiológico. É o ar marítimo, dizia-lhe a mulher, sem sombra de ironia,ao apanhá-lo a resmungar a horas tão matutinas, antes de se virarpara o outro lado e adormecer, lapidar, deixando-o sentado noquarto às escuras, a ouvir o refluir das ondas que se insinuava pelasjanelas entreabertas, estranhando o silêncio das ruas e até a suapresença naquele local. Então, incapaz de adormecer, levantava-see, vestindo-se, saía para a rua. Errava sem destino pelas ruaspróximas à sua, num raio muito curto que, à medida que o hábito demadrugar sem propósito se foi instalando, começou a alargar-se atéincluir o paredão junto à praia. Mas esse movimento expansionistasó veio a verificar-se mais tarde, quando passou a sair tão cedopara a rua que nem os cafés estavam ainda abertos, descobrindo-seperante o mar que, empedernido citadino, só conhecia de rarosperíodos de veraneio e que por não saber nadar o deixavadesconfortável, a imensa massa opaca estendendo-se até aohorizonte, ondulante e refluente.

A mudança para as proximidades do mar fora ideia da mulher,que crescera num local semelhante antes de ter ido para a cidade,antes do casamento, antes de tudo. E agora, convencida de que seaproximava do fim da vida, a carreira laboral interrompida peladetecção de uma doença cardíaca, queria voltar para perto do mar,regressar aonde fora feliz. Planeou o regresso com grandegenerosidade, procurando um destino junto à costa que lheagradasse a ele também e não dois bilhetes para o buraco de ondeprimeiro saíra. Mesmo que para isso tivesse de ir construindo deforma paciente os alicerces dessa ideia no espírito dele, cujareforma estava ainda distante. Foi uma cansativa edificação, pois o

marido não se deixava convencer da bondade de tal ideia e nãocapitulou sem lhe dar luta. Aquilo que acabou por convencê-lo deque a mudança era justa — e não só isso como também que eraalgo que ele lhe devia, uma pequena gentileza que repararia umalacuna terrível — foi a cartada que ela jogou em último lugar, aderradeira, aquela que o repreendia por nunca ter querido filhos,algo que os prendesse ao sítio onde estavam e que, como ela dizia,a realizasse enquanto mulher, alguma coisa que os impedisse detrocarem a confusão da cidade pela quietude da beira-mar. E ele,mesmo não concordando, achou que talvez fosse mais fácil deixarde lutar e deixá-la levar a sua avante. Mas também não deixou quese passasse muito tempo na sua nova morada antes de lhe recordarque as coisas não se tinham passado tal como ela as descrevera,que ele não vestira a pele de ogre para impedi-la de parir — dissera-lho mesmo assim, meio entornado depois do jantar — e que, se nãotinham tido filhos, fora de comum acordo. Ela discordou. E essadiscordância lançou as bases da paz podre em que passaram aviver.

Faziam todas as refeições a dois, ela cozinhando e lavando emseguida a louça, ele comendo e deixando-se depois ficar sentadoenquanto a mulher, devagar, ia removendo pratos e copos, sem quetrocassem qualquer palavra ou limitando-se a ecoar qualquer coisadita na televisão, ligada de manhã à noite, do pequeno-almoço atéao momento em que ele a desligava, após erguer-se em sobressaltodo seu dormitar intermitente na poltrona, e carregando depois para acozinha o seu próprio cálice, vazio e viscoso, no qual bebia licoresfrutados, e fazendo por fim o resignado caminho para o quarto, ondese despia às escuras e se deitava ao lado da mulher que ressonava.

Por vezes saíam para espairecer, sem que de factoconseguissem fazê-lo, a hostilidade que nunca explodia adensando-se entre eles, apartando-os, ele de jornal debaixo do braço e mãosnos bolsos e ela de leque barato, quando fazia calor, ou guarda-chuva, se o dia o auspiciasse, caminhando ao longo do paredão,vendo o mar, o areal cheio ou vazio consoante a estação, os paisestendidos ao sol e as crianças brincando à sua ilharga, osgalanteadores da praia comparando entre si músculos e bronzeadospara entontecimento das raparigas, a extensa língua arenosaestendendo-se vazia diante dos seus olhos, o céu invernosofundindo-se com o mar escurecido. Também enquanto caminhavameram poucas as palavras que trocavam e se se atacavam — o queera raro — era apenas que um deles deixava cair algumas palavrasvenenosas das quais o outro fazia caso. Ele tinha as suas insónias,os seus passeios matinais, as suas peculiares amizades masculinase os seus licores, e ela tinha a casa, o cinema uma vez por semana,as irmãs da caridade e um coração fraco.

Certo dia levantou-se muito cedo e saiu para a rua. Era Outono echovia, aguaceiros que iam e vinham. Atravessou a rua a correr,alargando o alcance dos seus passos miudinhos de velho,procurando não escorregar. Enfiou-se num café cujo dono era umseu conhecido e, encostando-se ao balcão, fez um comentáriosobre o tempo. Lá mais para a tarde é que ela vai cair à séria,respondeu o homem por detrás do balcão. Depois estendeu-lhe ojornal, munido do qual foi sentar-se junto à janela. Abriu-o sobre amesa, mas nem sequer pôs os óculos de que precisava para ler,limitando-se ao invés a olhar lá para fora, para a rua que começavaa ganhar vida, para os ensonados madrugadores que passavam

carrancudos diante dos seus olhos, de chapéus de chuva e golaslevantadas, cabelos molhados e faces escanhoadas, para osautocarros que circulavam ainda vazios, parando no semáforo queregulava o trânsito nesse cruzamento. Acometeu-o uma sensaçãode nostalgia pelos seus dias de parte produtiva do todo que, a essahora, começava a agitar-se. Erguer-se da cama bem cedo com umpropósito, ser o primeiro a chegar e esperar no café pela hora deentrada enquanto se lê o jornal e os colegas vão chegando e,espreitando as gordas, comentam as notícias do dia. Trabalharaquarenta e cinco anos. Não conhecia nenhuma outra vida e nãopodia conformar-se à ideia de que fora expulso e de que aquilo quelhe restava era adaptar-se ao exílio ou limitar-se a esperar pelamorte, suportando a lenta passagem dos anos, uma terrível esperada qual não havia libertação que não fosse a derradeira, aquela daqual não há fuga nem desvio. Levantou-se e saiu do café com acabeça cheia de ideias de morte, sem se despedir e deixando ojornal sobre a mesa. Voltou para casa. Aquilo que o ocupava nãoera a morte abstracta, essa que tocará a todos os outros, mas aoutra mais concreta, a sua, aquela cujo simples pensamento lhedeixava um sabor estranho na língua.

Subiu as escadas com pernas pesadas, esperando nãoencontrar a mulher. Não tinha o hábito de regressar tão cedo dosseus passeios e tinha apenas uma ideia vaga das rotinas dela. Aporta de casa estava só no trinco, sinal de que ela estaria ainda emcasa, o que de imediato o indispôs. Chamou-a enquanto entrava,mas não obteve resposta. Talvez ainda estivesse a dormir. Seriaisso que fazia, desperdiçar as manhãs a ressonar e a rebolar nacama? No entanto, o quarto estava vazio, a cama feita, e dirigindo-se à cozinha também aí não a encontrou. Da sala não vinha o ruído

da televisão e, sabendo que ela não estaria no sofá sem a terligado, nem se deu ao trabalho de verificar. Antes sequer que oalívio de não a encontrar se pudesse instalar, já a irritação, aolembrar-se da porta no trinco, se lhe viera sobrepor. Sairia todas asmanhãs sem trancar a porta? Como se vivessem numa aldeia emque apenas os estranhos fossem de temer, mas à qual nuncachegassem estranhos? Na casa antiga nunca se deitava sem antester dado as três regulamentares voltas à chave. Seria agora assimtão confiante? Ele não a descreveria desse modo. Cautelosa emesquinha, sim, e calculista também. Mas confiante? Poderia apequena vitória de ter conseguido levá-lo atrás dela operar essatransformação, dotando-a de uma confiança que ele não sehabituara a reconhecer-lhe? Fosse como fosse, aquela vacaestúpida sairia sempre sem fechar a porta à chave?

Abanando a cabeça, exasperado, voltou à cozinha. Escolheu umpêssego da fruteira e lavou-o. Pegou numa das facas postas a secare foi sentar-se à mesa da cozinha. Cortava rodelas finas de pêssegoe levava-as à boca segurando-as entre o indicador e a lâmina.Mastigava devagar, saboreando o fruto, remoendo a sua indignaçãopelo comportamento incauto da mulher. Reparou que, na outraponta do corredor, a porta da casa de banho estava fechada, o quenão era habitual. Comeu a última rodela e pousou a faca sobre amesa. Roeu o caroço e cuspiu-o para a palma da mão, pondo-o emseguida ao lado da faca, antes de se erguer e atravessar o corredor.Parou diante da porta fechada. Abria para dentro. Empurrou-a comas pontas dos dedos, mas ela não se moveu. Apoiou então a palmada mão e voltou a empurrá-la, sem que esta se deslocasse. Algoparecia estar a bloqueá-la do interior e, sem saber o que fazer,chamou o nome da mulher, mas não houve resposta. Encostou o

ombro esquerdo à porta, concentrando nele todo o seu peso, e porfim ela cedeu um pouco, abrindo uma fresta larga o suficiente paraque pudesse espreitar para o interior. No chão da casa de banhojazia a sua mulher. Não lhe via o rosto, oculto pela porta, masreconheceu a camisa de noite que mal lhe tapava as pernasinchadas. Os pés estavam enfiados entre a sanita e o bidé, oesquerdo erecto, apoiado no calcanhar, e o direito caído para adireita, ainda com o chinelo calçado.

Deu um passo atrás, sentindo o coração a pulsar de formaviolenta, em desacerto. Voltou a chamar o nome da mulher, sabendoque era inútil. Dirigiu-se então ao quarto, onde estava o telefone, emarcou o número das emergências. A telefonista, num tom ríspido,perguntou-lhe se a mulher ainda respirava e quando respondeu quenão sabia, que nem sequer lhe vira o rosto, ouviu-a suspirar e nãoconseguiu impedir-se de sentir que ela lhe censurava o desleixo.Não lhe vira o rosto, repetiu, mas estava caída no chão da casa debanho, bloqueando a porta que ele tivera de forçar, e não esboçaraqualquer protesto. Respirando ou não, estaria de certeza numasituação delicada. A telefonista voltou a suspirar antes de lhe pedir amorada. Começou por dar a morada antiga, mas ainda foi a tempode rectificar esse erro. Do outro lado da linha disseram que iamenviar uma ambulância de imediato, e a ligação interrompeu-se semque lhe dessem qualquer outro conselho. Pousou o auscultador.Voltou para junto da porta fechada e, encostando-se contra ela,voltou a empurrar, conseguindo forçá-la de forma gradual,procurando não olhar para os pés da mulher, que estremeciam e semoviam a cada centímetro ganho. Enfim a porta abriu-se osuficiente para que pudesse introduzir a cabeça e espreitar para o

interior, onde a mulher estava tombada entre a banheira e a porta,de boca e olhos abertos, fitando o tecto com um espanto vazio.

Quando a ambulância chegou, abriu a porta aos enfermeiros,dois rapazes afogueados e um pouco rudes, os quais lheordenaram, sem mais, que os conduzisse até à sinistrada, e ele,com um gesto lasso da mão, indicou-lhes a porta da casa de banho.Fecharam-se com ela lá dentro, não o deixando entrar. Foi sentar-seà mesa da cozinha, dando as costas aos enfermeiros que seafadigavam de volta do seu sinistro, ou se limitavam a olhar para amulher caída na casa de banho, abanando a cabeça com pesar pornão haver nada que pudessem fazer por ela. Não os via e não podiasaber aquilo que faziam. De frente para a janela empoeirada pelaqual entravam alguns raios de Sol, que acolhia de cabeça erguida eolhos fechados. As nuvens reagrupavam-se rapidamente,bloqueando por instantes o ténue brilho do astro, mas não tardavamem voltar a dissipar-se. Aceitava do mesmo modo quieto os doismovimentos desta alternância. Um tamborilar de dedos na porta dacozinha distraiu-o da sua meditação e fê-lo virar-se para trás. Naombreira estava um dos enfermeiros. Falhou-lhe o coração, disse.Tinha perdido a rudeza com que entrara. Olhava para o chão,humilde como um penitente, de chapéu na mão. Fora o contactocom a morte que assim o humilhara? Olhou para o enfermeiro semdizer nada. O rapaz sentiu-se obrigado a continuar. Percebe quetemos de levar a senhora para o hospital? Em princípio nãoautorizamos que os familiares nos acompanhem. Temos de trazer amaca para cima, disse o outro. Ele concordou, acenando com acabeça mas sem fazer um movimento para se levantar. O rapazficou ainda alguns instantes à entrada da cozinha, parecendo termais alguma coisa para dizer mas sem saber como fazê-lo. Por fim

deu as costas ao homem e desapareceu. Virou-se de novo para ajanela. Fechou os olhos. Pareceu-lhe que se equivocavam aoconfundi-lo com algum pobre viúvo desamparado.

Declarado o óbito teve de iniciar os preparativos para o funeral.Não havia família para notificar. A mulher tinha uma irmã ainda viva,mas com a qual, por razões que ele desconhecia, deixara de se dar.O que significava que todo o trabalho lhe caberia. E se o tinha todonada o impedia de tirar dele alguma recompensa, uma espécie deúltima palavra sobre a questão da mudança de domicílio, palavraessa cujo uso lhe era outorgado pela sua condição de partesobrevivente. Primeiro pensou que o ideal seria fazer transportar ocorpo para a cidade e, em paralelo, fazer-se também transportarpara o mesmo destino e aí retomar a sua vida. Dissuadiu-o desseplano o elevado custo do transporte e, por despeito, decidiu entãovingar-se dela dando-lhe o funeral mais pobre que conseguisseencontrar, feito com os materiais mais ordinários que lheapresentassem os agentes funerários consultados. Não estavadestinado a ter a última palavra, e isso tornava-o quezilento.Começou por pegar nos medicamentos para o coração que elaguardava numa gaveta de cabeceira, despejou as embalagens nasanita e, puxando o autoclismo, assistiu à sua submersão comprofundo agrado. Em seguida limpou a casa de todos os vestígiosdela, cada naperom e bibelot, cada fotografia e produto de higiene,acumulando-os em sacos do lixo que, um após outro, descarregouno caixote ao fundo dos três lanços de escadas. Para o final deixouo roupeiro, do qual ainda teria de escolher a roupa com que elaseria enterrada. Nessa noite adormeceu na poltrona meditandonesse problema, embalado pelos goles de licor bebidos pelo gargalo

viscoso. O problema entre mãos não o impediu de madrugar.Dirigiu-se ao quarto e abriu as portas do roupeiro. Esperava-o umaescolha complicada, isto se quisesse levar até às últimasconsequências o plano insensato de vilipendiar a memória damulher e os ritos que assinalavam a sua partida da Terra. Oproblema agigantava-se pelo facto de ela ter sido uma mulher debom gosto, o que o obrigaria a vasculhar o roupeiro em busca dopior que pudesse encontrar. Empilhou blusas e vestidos em cima dacama, cada vez mais frustrado por não conseguir encontrar a peçaexacta para a função. Foi à cozinha buscar os sacos que tinhamsobrado da limpeza do dia anterior e começou a enchê-los, semresistir à tentação de rasgar uma blusa mais requintada ou algumasaia mais elegante como se, forçando-o a recordar a elegância comque a mulher se vestia, fossem apenas mais uma forma de elaafirmar, do além, a sua vitória total sobre ele. Por fim decidiu-se porum vestido bonito, mas já coçado e remendado, e um par desapatos cambados. Pousou ambas as peças sobre a cama ededicou-se a fechar todos os sacos, os quais, quando pudesse,haveria de levar às irmãs caridosas mostrando grandeza edesprendimento, apresentando-se também de luto já feito e feridasarada. Nessa mesma tarde levaria a roupa que escolhera àfunerária. Fechou a porta do quarto e saiu para o seu passeio.

No funeral apenas estavam ele e o padre. Os dois coveirosobservavam a uma distância respeitosa, ambos de boné na mão.Das irmãs da caridade, assíduas da paróquia, nem sinal, e ele ficousozinho à beira da cova enquanto o religioso se postava à cabeceirado caixão. Citou dos Salmos de memória, rodando as contas doterço entre os dedos, sem olhar para o viúvo. Terminada a citaçãofalou, sem se alongar demasiado, sobre as virtudes da falecida.

Com pesar referiu-se ao seu grande coração, o seu fraco coração, eusou as mesmas exactas palavras que o enfermeiro empregara namanhã em que ela morrera. O viúvo, detectando a coincidência,repetiu-as para si, baixinho, de olhos fixos na lápide despida dequalquer adorno, sem fotografia, sem sinais de carinho por aquelaque em breve seria coberta de terra, e, arrependendo-se da suavileza, sentiu-se por fim responsável, ele que pronunciara comconvicção os votos que o obrigavam perante esse coração e dosquais não se recordava já há tanto tempo. Olhou para a cova compena, demorando-se no caixão barato, rememorando a triste formacomo a mulher se apresentaria vestida no Além, sentindo vergonha.Engoliu-a em silêncio, resignando-se a esse peso. Não reagia jácomo se suspeitasse de que era somente um novo modo de sedeclarar a sua derrota, antes aceitando-a por inteiro e por culpaprópria. Finda a cerimónia despediu-se do padre e, dando as costasà defunta, abandonou cabisbaixo o cemitério, antes até que oscoveiros descessem o caixão e o cobrissem de terra.

Habituou-se a custo à rotina de homem só. Cozinhava — mal —para si, demorava-se pelos cafés e à noite adormecia na poltronadiante da televisão, embriagado. Muitas eram as noites em que nemsequer ia à cama e saía para a rua com a amarrotada roupa comque dormira. Não cosia os buracos nos calcanhares das meias, nãoengomava as camisas, usava camisolas de malha a desfiar. E nãodeixou nunca de madrugar, todos os dias expulso do conforto dosono, o qual começou a acreditar que talvez não merecesse.Passou a Consoada caminhando para cá e para lá ao longo doparedão, encasacado, incapaz de voltar para casa, e na passagemde ano adormeceu ainda antes de se iniciarem os festejos,

acordando tão dentro do novo ano que até a emissão televisiva játerminara.

Num dia de Janeiro acordou no quarto e, ao erguer-se para abriras cortinas, percebeu que era ainda de noite. Dormira vestido, sobrea colcha. Saiu para a rua no mesmo enxovalho em que acordara.Caminhou até ao paredão, indiferente aos cartazes eleitorais quenos últimos dias tinham alastrado por toda a cidade, sucedendo-se,poste sim, poste sim, numa alternância de rostos e símbolos que oaliciavam à participação e procuravam seduzi-lo com palavras quelhe surgiam ocas e desprovidas de sentido. Percorrera cerca de umquarto da extensão do paredão quando, ao fundo de umas escadasatravés das quais se acedia à praia, viu um homem deitado naareia. Estava imóvel e parecia dormir. Tinha um fato vestido eparecia asseado, diferente dos bêbados que por vezes encontravanos seus passeios, passando a cambalear por ele ou estendidos deborco no areal como náufragos, quase todos turistas que seexcedessem na noite anterior. Tomou-o por algo nocivo, um sinal deque a degenerescência em que se viam mergulhados já não olhavasequer à classe. Apesar de nauseado com as conclusões a que ohomem o forçara, prosseguiu o seu caminho e acabou por esquecê-lo. Chegado ao final do paredão, que terminava numa muralha derochas na qual as ondas vinham quebrar-se, sentou-se por instantesnum banco a contemplar a revolta massa aquosa e depois, fartando-se, iniciou o caminho de volta. Desviou-se da rota para beber umcafé ao balcão de uma pastelaria ainda deserta e voltou em seguidaao trajecto planeado, caminhando devagar e sem se deixar intimidarpela chuva que ameaçava cair a qualquer momento. Ao longedistinguiu o mesmo homem deitado na praia, parecendo não se ter

mexido. Movido por um impulso que não saberia identificar, desceuas primeiras escadas que encontrou e fez o resto do caminho peloareal, avançando com dificuldade. Quando se encontrava perto osuficiente chamou-o, mas o homem não se moveu nem deuqualquer indicação de o ter ouvido. Voltou a chamar, avançando,lembrando-se da mulher caída atrás da porta e pela qual tambémchamara em vão. Parou junto a ele e, inclinando-se, chamou denovo, mas sem obter resposta. Tocou-lhe ao de leve com a biqueirado sapato no braço esquerdo, que estava dobrado sobre o peito,mas o homem, com um cigarro meio fumado entre os lábios, não semoveu e também não abriu os olhos para ele. Irritado, pontapeou-lhe o braço, e a cabeça, encostada às rochas, deslizou para adireita, caindo-lhe o cigarro dos lábios e, rodando sobre a gravatavermelha e azul, acabando por tombar sobre a lapela do casaco.Percebeu afinal que o homem só poderia estar morto e apressou-sea subir as escadas. Entrou no primeiro café aberto que encontrou,descrevendo ao empregado de forma atabalhoada aquilo que vira eclamando, com insistência, a presença da polícia. Desconfiado, oempregado tirou o telefone de trás do balcão e marcou o númeroenquanto o outro olhava para ele, desejando poder não terpontapeado o cadáver, apenas mais uma de entre tantas coisas quedesejava poder não ter feito.

Esperou na praia pelos polícias.

Os polícias

À MEDIDA QUE O TURNO SE APROXIMA DO FIM fica mais rabugento equalquer coisa pode enfurecê-lo. Gira o botão do rádio sem se determais do que alguns segundos, em busca da mirífica estação quepossa satisfazê-lo, a qual, a existir, jamais encontrará girando obotão com tanta ansiedade. Queixa-se do tempo, que não é carnenem é peixe, nem Outono nem Inverno.

E quando a colega lhe pede para parar, porque tem de ir à casade banho, resmunga entredentes, num protesto que abarca todas asmulheres e as suas necessidades, fazendo o carro estacar combrusquidão diante de um café e inclinando-se sobre ela para lheabrir a porta, num gesto impaciente que só a custo pode serconfundido com cortesia.

A porta do café bate com estrondo por trás dela, sobressaltandoo empregado que está a limpar uma das mesas no canto,debruçado sobre o tampo. Ergue-se do que está a fazer, com opano na mão, para a ver passar, mas ela limita-se a erguer umamão para ele, sem parar, assinalando-lhe que o viu e como quedesculpando-se do descuido com que largou a porta, mas não diznada e, com a mão livre, vai desapertando o blusão. Empurra aporta da casa de banho, que ainda está fechada à chave. Vira-se

para o homem e faz-lhe o gesto de rodar uma chave numafechadura imaginária, ao que ele remexe nos bolsos até encontrá-la.Ela faz sinal para que lha atire, o que faz com perícia. Inclina acabeça em agradecimento e vira-lhe as costas. Introduz a chave nafechadura e roda-a.

Depois daquilo deveria ter aceitado o trabalho de secretária quelhe propuseram, alguma coisa que o retirasse das patrulhas, umoutro cargo que o salvaguardasse das horas passadas na viatura deum lado para o outro a piorar as hemorróidas, a fazer conversa comuma colega que, grande parte do tempo, nem sequer lhe respondia.Talvez o considerasse um velho chato, um machista, má companhia.Ela que se fodesse! Também sabia estar calado, se quisesse!

Ergue-se a custo. Lava o rosto, a boca, antes de se olhar aoespelho. A luz é forte, demasiado clara, mas tremeluz como se algofizesse mau contacto. Coloca a palma da mão sobre a testa paraavaliar a temperatura. Não vomitou nada de sólido, só um líquidoespesso e esbranquiçado que escorre ainda pela sanita. Puxa oautoclismo. Ajeita a camisa, o nó da gravata. Aperta o blusão. Saida casa de banho de cabeça descoberta, boné na mão e cabelocurto. Pergunta-se se se notará.

Têm uma chamada, um cadáver que apareceu na praia. Suspira.O turno quase a acabar e agora isto, pensa ele.

Entra no carro. O colega arranca, informando-a da chamada.Encaminham-se para a praia, o automóvel deslizando pelas ruassonolentas.

Olha para o corpo sem paixão de decifrador, só um potencialproblema. Boceja, enquanto o velho fala.

Levanta a gola do casaco para se proteger do ar frio e húmido.Enfia ambas as mãos nos bolsos e fita o velho.

Gesticula, nervoso, sem saber a qual deles deve dirigir-se.Queixa-se do empregado do café, que a princípio não acreditou nelee que, depois de ter conseguido convencê-lo da necessidade defazer o telefonema, não mais deixou de o olhar como se o achasseresponsável pela morte do outro.

Ela procura fazer-lhe ver que agora não é isso que lhesinteressa, mas antes a forma como encontrou o cadáver.

Acaba por pedir ao velho que pare, deixando-o continuar aindaum bom bocado depois de ela lho ter pedido.

Ajoelha-se junto ao corpo.Com a ponta da caneta levanta as abas do casaco do homem,

primeiro a direita e depois a esquerda, não encontrando quaisquervestígios de ferimentos.

Tem de se chamar alguém, diz ela, erguendo o rosto para ocolega.

A equipa médica demorará cerca de vinte minutos.Faz sinal à colega de que precisa de lhe falar à parte. Adverte-a

de que se pretende ficar ali depois do turno não deve contar comele. Ela encolhe os ombros.

Podes ir já embora, se preferires.

Vira-lhe as costas e caminha pelo areal até onde se encontra ovelho, para informá-lo de que seguirá com ele para a esquadra,onde recolherão o seu depoimento.

Afastam-se sem se despedir dela.Desce a rampa, onde conferenciara com o colega, e vai fazer

companhia ao morto.

Este não é grande conversador, desabafa com outro agentequando entram na esquadra, sem se importar de que o velho estejaao seu lado. O outro sorri.

Durante o trajecto não lhe arrancou mais que monossílabosnervosos, como se o arrastassem algemado para o local onde sepronunciaria a acusação.

Olha para o cadáver, cujos olhos estão abertos.Mas não está a vê-lo ou sequer a pensar nele. Ao invés, pensa

naquilo que aconteceu ainda há pouco, as náuseas e o vómito naacanhada casa de banho.

Coloca as mãos por baixo do casaco, para sentir a barriga.

Do testemunho do homem não constará nada que ele nãoconhecesse já do seu breve colóquio no areal. Ninguém levantaobjecções a que o velho se vá, e ele passará aquilo que resta doturno na galhofa à porta da esquadra, esquecido do corpo na praia eda colega que deixou a guardá-lo.

Senta-se numa rocha, as pernas dobradas ao nível da cabeça dohomem, olhando para o mar. Reconhece a ambulância e a outraviatura pelo ruído que fazem, mesmo sem sirenes.

Quando montarem a tenda para ocultar o cadáver de olharescuriosos, já alguém lhe terá providenciado uma boleia para aesquadra.

A colega está a sair de uma viatura à porta da esquadra quandoele, de duche tomado e cigarro ao canto da boca, vem a descer asescadas. Cumprimenta-a com um aceno de cabeça, que ela retribui,mas não pára para conversar. O final do turno traz-lhe sempre umacréscimo de energia que dissipa caminhando até à loja do irmão,na ponta oposta da cidade que conhece como a palma da mão.Nunca viveu noutro sítio e diz, a quem o quiser ouvir, que nuncaquis viver noutro sítio.

Adormece na paragem, mas por sorte a mulher que se sentou aoseu lado acorda-a com uma cotovelada. Alega que foi acidental,desfazendo-se em desculpas.

Se perder este autocarro desencontra-se do marido. Apanham omesmo, ele numa direcção e ela noutra, e as paragens são umadefronte da outra. Se se desencontrarem vai carregar sozinha arevelação para casa e adormecer no sofá, triste.

Não leva o trabalho para casa. Despe-o como despe a farda.Mas os seus passos conduzem-no às proximidades do paredão

e dá por si a pensar no homem que encontraram há pouco. Não é aresolução do problema que o ocupa, antes a serenidade no rosto do

homem. Crê que se suicidou, e os suicidas com os quais se cruzounão deixaram nunca cadáveres tão compostos, tão sem mácula.

Ele ainda está na paragem, a ler. Quando chega junto dele lançaos braços em seu redor. Ao fundo da rua, já se perfila o autocarro.Beija-o nos lábios, no rosto. Encosta-lhe os lábios ao ouvido esussurra a novidade, ansiosa.

O autocarro chega, a fila avança e eles com ela, abraçados, atéque ele se some no interior e ela volta a ficar sozinha, não maisúnica portadora do segredo.

O irmão está cá fora, encostado à porta da loja, a fumar e aconversar com um dos habituais. Falam da guerra na Jugoslávia, dadesagregação do bloco soviético, do equilíbrio de poderes queimpedia essas coisas. Calam-se quando ele chega junto deles.

— Parece que encontraste alguém na praia — diz o habitual asorrir, canalha.

Não lhe responde e entra na loja vazia. O irmão, sem sedespedir do outro, atira o cigarro para o chão e segue-o.

Encontrá-lo fê-la perder o sono. Lembra-se de umas quantascoisas que precisa de comprar e, em vez de seguir para casa,continua rua abaixo até à mercearia.

Enquanto aguarda junto à caixa pelo total, sente uma vontadesúbita de tomar a mão calejada da mulher entre as suas e contar-lhea novidade. Mas limita-se a passar-lhe o dinheiro e a sorrir quandose despede.

Entra depois na farmácia, paredes-meias.

Passa por trás do balcão, afastando a cortina que delimita a lojae a separa do estúdio e, ao fundo deste, abre uma porta recortadana parede, decorada com a fotografia de uma paisagem florestal, eentra por fim em casa. O irmão segue-o, sem dizer uma palavra.Sabe que quando falar não lhe vai perguntar se sabe quem é ohomem na praia. Dirá apenas, É dos nossos?

E, quando ele disser que não, vai desconfiar dele e repetir apergunta, ameaçador.

Sobe no elevador com o saco das compras na mão e orectângulo cartonado do teste de gravidez no bolso do casaco. Vaiesperar até que ele chegue do trabalho para o fazer e verão oresultado juntos. Não quer ser uma daquelas mulheres que fazem oteste sozinhas, às escondidas, sentindo-se culpadas de algumairresponsabilidade ou temerosas daquilo que o marido terá paradizer. Será partilhado desde o princípio, como tudo, ou não será.

É preciso que erga a voz e fale com rispidez para que o irmão seconvença. E isso somente à terceira, quando já tiverem surgido osnomes, coisa que o indispõe.

Chegada a casa volta a sentir-se exausta. Deixa as compras nacozinha e encaminha-se para o quarto, onde larga o casaco no chãoe se deixa cair vestida sobre a cama.

Fecha-se no quarto. Ouve os passos do irmão, descendo emdirecção à loja. O maldito sinal sonoro não se cala, como se umcliente tivesse parado na entrada da loja, confundido com aausência de lojista.

Abre as janelas, o ar frio irrompe no quarto abafado, e ele deita-se na cama a fumar, olhando para o tecto. Na tela encardida emanchada de humidade esboçam-se os primeiros traços de umrosto, que aprendera a conhecer e agora terá de saber esquecer.

Acorda de um breve sono e fica deitada de barriga para cima,envolvendo o ventre com as mãos, os dedos cruzados, escutandoos rumores distantes que sobem da rua, grata pela oportunidade derecomeçar.

Uma inesperada perturbação vem intrometer-se na sua gratidão.Ter um filho, um sonho concretizado ao fundo do qual se encontra opesadelo de não poder saber o que será dele quando já não pudercuidá-lo, impedindo-o quem sabe de se abandonar à morte numapraia vazia.

Não sonha com ele, como nunca sonhou com nenhum dosoutros. Não são tantos que possa chamar-lhes legião, mas sente omodo como se lhe agarram às pernas quando caminha, como lhefazem pesar os passos esses mortos.

Esta criança vai abandoná-la, sairá de casa para fazer o seupróprio caminho no mundo, dando passos trocados, tropeçando,errando pelos caminhos até se encontrar sem mais caminho parapercorrer.

Fê-lo por outros, diz-se, por outros que não sabem sequer o seunome e que nunca poderão agradecer-lhe.

Fê-lo por lealdade.

Quando até isso falha, pensa no irmão e diz que foi por ele que ofez, desejando poder estar livre dessa sombra sinistra, de traçossemelhantes aos seus, poder estar livre dele de uma vez por todas.

Não consegue impedir-se de chorar ao imaginar o fim queaguarda o seu filho por nascer, por formar. As lágrimas não são porela ou pelo marido, mesmo que saiba que nenhum deles será aindaquando se fechar o círculo que começa a traçar no seu quarto demobília desirmanada, com caixas de cartão pelos cantos e umapintura que seria necessário refazer, mas para a qual nunca hátempo. Se chora é apenas pela criança cujo rosto não conheceainda e pela triste inevitabilidade da sua morte.

Não conhecia os outros e é raro que pense neles. Tudo seconcentra no rosto do suposto suicida, seu parceiro de viatura e queajudou o irmão a estrangular, colaborando em seguida no embustede o pendurar de uma trave no tecto, a cadeira caída por baixo dopendido, o cenário montado com a exactidão de cenógrafos quereconstituem no palco o local de uma morte famosa.

Era preciso que ele desaparecesse, consolou-o o irmão depoisde levado a cabo o acto. Não se sentiu consolado por isso, nemalguma vez sentira necessidade de o ver desaparecer, ainda quepudesse ter denunciado os grandes, arrastando com eles ospequenos, como o seu irmão. Já antes se manchara com actossemelhantes, cometidos sobre pessoas cujo desaparecimentointeressava a outros. Porque deve ele preocupar-se com aquilo queinteressa aos outros?

Se ainda chora é porque se sente defraudada.

Certa noite viu-se encurralada num beco por um rapazito comum revólver. Perseguira-o após apanhá-lo em flagrante. Nãoesperava que estivesse armado. Os ladrões de automóveis nãocostumam estar. Salvou-a que a arma encravasse. Ficou paralisada,e o rapaz sumiu-se sem deixar rasto. O marido instou-a a pedirtransferência para uma cidade mais pequena, embora ela oavisasse que seria difícil. Tiraram-na das ruas, mas não teve deesperar muito. Um suicídio fez com que se abrisse uma vaga numacidadezinha costeira, e escolheram-na para nova parceira doresmungão com quem partilha agora a viatura. Uma novaoportunidade, uma forma de recomeçar, a hipótese de conceberuma criança que vai morrer.

Inquieto, levantou-se da cama. Caminha em círculos pelo quarto.Acende outro cigarro.

Ouve as vozes que chegam da loja. Uma mulher com duascrianças, os miúdos deitando as mãos a tudo o que podemenquanto ela se debruça sobre o balcão para fazer quem sabe quenegócio com o seu irmão, que gere a loja mas não negoceia só emfotografia. Nas traseiras, por trás do cenário florestal diante do qualse sentavam os pequenitos para a sua primeira fotografia, há umlaboratório e ao lado um armazém, cheio de coisas que o irmãovende sem ter licença para isso. Caixas de madeira com álcoolcontrabandeado. Volumes e volumes de tabaco que não passarampor nenhuma alfândega. Entre o laboratório e o armazém está aescada que conduz ao andar de cima e assinala o início da casa. Oseu quarto, o quarto do irmão, uma cozinha e uma casa de banho, amesma casa acanhada onde viveram com os pais e partilharam um

quarto, que hoje é seu. O irmão dorme naquele que pertencia aospais.

Há dinheiro, claro, mas o dinheiro não se mostra e não se gasta.Isto dizia o pai e repetia a mãe. Isto diz agora o irmão e repete-o

ele, por atavismo. Mas também há dinheiro para ele, mesmo nãoparticipando nos negócios. O que é de um é de todos. O mesmocom os problemas, o problema de um é problema dos dois. Por issoandou a enterrar corpos na floresta, a simular suicídios, a obstruir ajustiça que jurou fazer cumprir. Trabalha para o Estado, mas quemde facto o emprega é a família, e não é raro que o irmão, já bebido,se vanglorie e esfregue as mãos de contentamento por poder contarnas suas fileiras com um homem da lei. Chega-se à janela e cospelá para baixo, para a entrada da loja, enojado com a engenhosamaneira que arranjou de desperdiçar a sua vida.

Mas os destinos não se espelham uns nos outros apenas porforça do pessimismo. Amam-se, ela e o marido, e amarão essacriança microscópica, essa fantasia tornada carne que ela alberganas suas entranhas, desenvolvendo-se em silêncio, alimentando-sedela. O amor, ou pelo menos um amor como o deles, tem deoferecer alguma espécie de garantia, e ela agarra-se a isso, asmãos tacteando a barriga ainda lisa.

Deve descansar, por ela e pelo feto, para que cresça saudável ese lhes apresente em toda a sua perfeição, volvidos os meses degestação. Fecha os olhos para se forçar a adormecer, mas deimediato lhe surge, pairando na escuridão, o rosto do homem napraia, envolvido por uma fosforescência fantasmagórica. Não lhereclama nenhuma atenção em particular, não reivindica tão-poucoqualquer acção que possa conduzir à decifração do seu enigma, o

cadáver de um estranho que aparece numa cidade pequena, fora daépoca turística, sem identificação, sem marcas de violência,aparecendo apenas, de olhos abertos em direcção ao mar. Com osolhos cerrados evita pensar nas mirabolantes coincidências queunem o aparecimento desse corpo sem vida na praia e o simultâneosinal de vida que se acendeu dentro dela. A alma não existe, diz-se,e mesmo que existisse não circularia para cá e para lá, saindo deum corpo para entrar noutro, a breve chama extinguindo-se aliapenas para reaparecer acolá, transformada mas única.

Deita-se de barriga para baixo. Enterra o rosto na almofada,forçando-o de encontro ao tecido como se desse modo pudesseextinguir a luminescência desse rosto que a persegue.

E por fim, quando já está para além do esforço e não encontramaneira de afastar o rosto impassível, tudo escurece e acaba poradormecer.

Volta a deitar-se. Liga o rádio com o controlo remoto e vaigalgando estações, sem pressa, identificando aquilo que ouve antesde passar adiante. Pedaços de noticiários, estrondosas entradas emcena de patrocinadores de concursos matinais para reformados,êxitos nostálgicos de cançonetistas nacionais, trechos nobres demúsica erudita, ensurdecedores sucessos de pistas de dança,directos da greve dos ferroviários, apressadas entrevistas de rua,intermináveis tabelas patrocinadas por publicações musicaisestrangeiras, monocórdicos fazedores de opinião debitandoestatísticas estafadas sobre a segurança rodoviária, tudoconcorrendo por uma migalha da sua atenção.

Cobre a cabeça com o lençol, como fazia quando aindapartilhava o quarto com o irmão e o atacavam as insónias, remetido

à sufocante imobilidade daquele quartinho, daquele mundinho,socorrendo-se das vozes de outros para lhe provarem que haviamais mundo lá fora, todas unindo-se numa única melodia que nuncaencontrou forma de seguir sem acabar por adormecer.

Desperta-a o telefone. É a sua irmã, a qual lamenta tê-laacordado. Os pais acabam de telefonar a avisar que chegaram acasa sãos e salvos, apesar das catastróficas estatísticas relativas àmortalidade nas estradas durante as festas poderem sugerir que oresultado seria diferente. Não lhe telefonaram também? Respondeque não, ensonada, e a irmã, reassegurada na sua posição demensageira familiar, passa a enumerar todas as coisas que aapoquentaram nestas duas semanas de convivência com os pais.Hospedou-os durante os feriados e pôde observá-los com atenção.Partilhou os resultados da sua observação com o marido, o qualconcorda com ela. A mãe ouve cada vez pior e entra em negaçãoquando lhe sugerem, ainda que da forma mais velada, o uso de umaparelho, e o pai parece esquecer-se com mais frequência do sítioonde põe as coisas. Assente, exausta.

E ela como está? Sente assomar-lhe à boca a grande novidade.Engole-a a custo e responde uma banalidade. Sem mais assunto,despedem-se. Volta a adormecer.

A VEZ DA CIDADEO jornalista

TELEFONEMAS, TANTO NA VIDA DE DAVID gira à volta de telefonemas queelaborou até um directório dos mesmos. A maior parte é compostapor aqueles que se relacionam com o trabalho, os quais divide emtrês categorias:

— os prometedores, aqueles nos quais as suas fontes o colocamno caminho de alguma coisa que desconhecia ou descurara,indicando-lhe qual a direcção a seguir ou obrigando-o a rectificaralguns dos passos já dados, e que são, de entre todos, aqueles queprefere;

— os constrangedores, na essência muito semelhantes aosanteriores mas diferentes destes num pormenor fundamental, pois aidentidade de quem lhe liga é quase sempre disfarçada, não tantopara protecção própria mas antes para o retardar, ameaçar ou tentardesviar do curso de alguma investigação;

— e por fim os obrigatórios, consistindo naqueles que se vêobrigado a fazer ou a receber dos seus superiores, ou dosadvogados destes, e através dos quais ambas as partes fazem uma

avaliação do potencial danoso de publicar determinado artigo semcortes.

Uma parte menor é ocupada pelos telefonemas ditos pessoais,que se dividem no mesmo número de categorias que os anteriores.

Há aqueles que são de amizade, sobre os quais há pouco aacrescentar; os familiares, compostos por longas conversas comuma irmã, casada e mãe de três filhos, ocorrendo por regra àsprimeiras horas da madrugada, sob a forma de colóquiosconfessionais alimentados a whisky, movidos a sinceridade total,necessários pela distância que os separa mas também raros, peloturbilhão emocional que por vezes provocam nos participantes,conversas tão raras como aquelas que mantém com o pai viúvo, aofinal da tarde e sempre em passo acelerado, obedecendo aoprincípio consagrado de nelas se revelar o menos possível aoperscrutador ouvido do progenitor, incansável censor de todos osseus gestos; e também os ex-familiares, erráticas e enervantesconversas mantidas com a ex-mulher, que só lhe telefona quandotem alguma coisa a apontar-lhe, como um atraso no pagamento dapensão de alimentos, por exemplo, e durante as quais ela dáapenas os indícios mais vagos sobre o local onde se encontra,como se ele pudesse pensar em persegui-la, algo que em estadosalcoólicos ideais já chegou a ocorrer-lhe, as linhas telefónicascarregadas de uma energia crepitante como não lhe acontece commais ninguém, chamadas tensas que terminam sempre antes depoder falar com o filho, em cujo rosto por vezes pensa mas sempoder já estar certo de lhe atribuir os precisos traços faciais que lhecorrespondem.

Uma terceira parte, considerável, reserva-se para a última dascategorias, a dos telefonemas recreativos. Tem o mesmo número de

subcategorias das anteriores e apresenta-se do seguinte modo:— sexuais, incluindo o exótico desporto de ligar a horas

impróprias para mulheres cujo número obteve por meios lícitos, paralhes propor ilícitos diversos;

— os psicológicos, ou de vilania, feitos em regime pós-laboralmas associados de forma inextricável a questões de trabalho, edurante os quais mascara a voz para melhor chantagear ouameaçar, consoante aquilo que lhe parece apropriado, alguma fontemais esquiva ou testemunha relutante;

— e os alimentícios, ou viciosos, como também os designaquando se sente mais moralista, destinados à obtenção de álcool ahoras tardias ou, em qualquer horário, de estupefacientes fumáveisou inaláveis.

De todas as categorias possíveis, calhou que o despertassenessa manhã um prometedor, o seu favorito.

Identificou a voz nasalada, mas não se lhe dirigiu pelo nome,aliás não disse nada e limitou-se a ouvir que na praia se acabava deencontrar um cadáver e, pelo secretismo com que a polícia tratava oachado, talvez lhe fosse útil um passeio matinal. Depois de desligarficou deitado a olhar para o despertador, não acreditando que aindafosse tão cedo. Passeios matinais nunca tinham sido uma das suasactividades favoritas, e praguejou e esperneou por ter de deixar acama a semelhante hora. Se vestisse roupa de desporto poderia dara impressão de que a sua aparição no local era casual. Mas ondeiria encontrar roupa desportiva àquela hora? Não no seu roupeiro. Equem acreditaria que ele praticava desporto? Semelhante crençaimplicaria também admitir que o preocupava o físico, uma ideia queaté a mais desatenta das observações desmentiria sem dificuldade.Restava-lhe assim envergar a sua própria pele e apressar-se, isto

se ainda esperasse obter um vislumbre daquilo que se passava napraia.

Atravessou a cidade de carro, as janelas fechadas, o cigarroentre os lábios, as notícias na rádio. A greve começara no diaanterior e continuava hoje, com aumento previsto da adesão. O jogodos sub-21 terminara empatado. O actor que aparecera morto emcasa sofrera, ao que parecia, um ataque de epilepsia. Guioudepressa pelas ruas molhadas e chegou por fim à descida para apraia, o mar ao fundo, enervante.

Caminhou até ao local onde se encontravam os curiosos. Apesarda hora ainda eram alguns, a maior parte com os coletes amarelosdos grevistas, bandeiras enroladas e pousadas num monte, a olharpara os agentes na praia sem grande interesse. Dois políciasmantinham-nos afastados da escada que ligava o paredão ao areal.Se houvera tumulto já há muito se extinguira e restava apenas umresquício de energia dormente no ar, infectando por igual os mironese os agentes da autoridade, mantendo ambos no seu lado dabarricada, uns sem motivo para avançar e outros sem grandevontade de se verem obrigados a impedi-lo. Embrenhou-se nogrupo, procurando reconhecer entre os rostos dos presentes aqueledo possuidor da voz nasalada, mas, embora encontrasse rostosfamiliares, não o viu em parte alguma. Avançou sem dificuldade atéà primeira fila e saudou os polícias pelos respectivos nomes.Responderam entredentes, sem especial efusividade. Espreitoupara a praia, distinguindo mais alguns rostos conhecidos entre ospolícias que cirandavam em redor da tenda branca onde estaria ocadáver. Não restava muito para ver.

Abandonou a sua posição na dianteira e voltou para trás, parajunto de um punhado de homens que fumavam. Acendeu o seu

próprio cigarro e cumprimentou alguns dos homens, que lheresponderam com revirares de olhos e mal disfarçadas expressõesde desdém. Era ponto assente que, junto daqueles homens, a suanão era a melhor das reputações e que os galões de paladino daverdade com que por vezes se enfeitava não os impressionavam.Ossos do ofício. Conduziu um breve interrogatório sem que lhecontassem alguma coisa que não pudesse deduzir por si próprio.Não se sabia de quem era o cadáver dentro da tenda, quase decerteza não seria dali, pois não havia qualquer indício deperturbação no rosto dos polícias que observara. Não demorou aperceber também que a única coisa que ainda mantinha aqueleshomens à espera era o facto de não serem ainda horas de ir.Pareciam miúdos numa visita de estudo, deixados a si própriosperante alguma coisa que não compreendiam e que não osinteressava, à espera que fossem horas, algo aborrecidos,pontapeando o chão, rindo de parvoíces. Dali não poderia esperarnada.

Afastou-se dos fumadores e voltou a intrometer-se entre o outrogrupo até chegar perto dos polícias. Sacou do bloco e da caneta eescolheu aquele que lhe parecia mais débil. Disparou duasperguntas. Isso forçou o outro, que considerava mais forte, a intervir.Anos de contactos tinham-no levado a desenvolver determinadasteorias sobre o comportamento da polícia da cidade e fora-lhesugerido pela observação que, subjacente à cadeia de comandodessa força, como talvez de qualquer outro grupo comcaracterísticas semelhantes, existia uma cadeia de vaidade. Assim,qualquer contacto com um elemento mais débil dessa força do qualo mesmo não se conseguisse desenvencilhar sozinho levaria àintervenção do colega que estivesse mais próximo, visando essa

intervenção acentuar dois tipos diferentes de vaidade: primeiro, aimagem da corporação fica salvaguardada graças aos superiorespoderes de expressão desse elemento e, em segundo lugar e porvia destes mesmos poderes, este afirma-se como mais forte que ooutro, numa lógica de competição interna que um observadorexperiente poderia usar a seu favor. De tantas vezes repetida, aexperiência corria o risco de perder a graça, embora nuncaperdesse a utilidade. Neste caso concreto, perante o balbuciardesajeitado do polícia inquirido e a pronta e articulada intervençãodaquele que se encontrava ao seu lado, obtivera confirmação oficial,ou aquilo que, uma vez escrito e impresso, passaria como tal, deque a identidade do cadáver permanecia desconhecida e que tudoapontava para um caso de suicídio. O material não era abundante,mas já se dava por contente que tivessem mencionado a hipótesede um suicídio, do qual a experiência recente o ensinara adesconfiar. Agradeceu a colaboração dos agentes e afastou-sefechando o bloco, onde não tomara nota alguma.

Na redacção ponderou o seu próximo passo. Haveria umcomunicado da polícia, que não quereria perder, mas até lá aindahavia muito trabalho que poderia adiantar. Alguém deveria saberalguma coisa sobre o homem encontrado na praia, mas para chegara essa pessoa teria de começar por perguntar às pessoas certas e,num caso como este, a dificuldade maior estava em saber comodistinguir as pessoas indicadas para a função. Sobre a secretáriamantinha um arquivador de fichas telefónicas, das quais nãoconstavam os nomes dos proprietários dos números, mas apenasalcunhas e pseudónimos, um sistema destinado a confundirpotenciais espiões. A chave dessa agenda cifrada encontrava-senoutra agenda, de capa vermelha e de bolso, e no seu telemóvel,

objectos que trazia sempre consigo, ou traria, se não tivesse saído àpressa. Após infrutíferos exercícios mnemónicos optou por telefonarem primeiro lugar para a sua fonte na esquadra, cujo número vinhana lista.

Anunciou-se ao carrancudo agente que atendeu como umfamiliar, um irmão, para ser exacto. Anunciar-se como o marido teriasido demasiado arriscado, podendo dar origem a interacções dasquais não saberia como desenvencilhar-se. Pediu para falar comela, fazendo questão de especificar o cargo que ocupava eacentuando o tom de nervosismo que se esperaria de alguém queligasse para falar com um familiar ocupado por um trabalho muitoimportante, próprio de quem acha que poderá estar a serinconveniente, falho de tacto, carregando um pouco de mais nacaricatura mas conseguindo escapar incólume e obtendo por fim adesejada ligação.

Ao reconhecer-lhe a voz mostrou-se nervosa e até evasiva.Ambos conheciam os procedimentos a adoptar caso não lhe fosseconveniente falar naquele momento, mas ela não lhe dava qualquersinal de não ser seguro, portanto perguntou-lhe o que sabia docorpo na praia. Suspirou, aborrecida. Todos pareciam sempre tãoentediados, tão indiferentes.

Disse que não sabia nada de especial. Caucasiano, quarentas,sem feridas visíveis. Falava-se de veneno, mas a ser essa a causaa toxicologia teria de ser feita fora e demoraria umas semanas.Esperava-se pela autópsia. Estavam a procurar alguma identificaçãodo cadáver e fariam uma conferência de imprensa no dia seguinte,como de costume. Concluiu, acrescentando que se ligara para issopoderia ter recorrido aos canais oficiais e não tinha necessidade dea incomodar. O caso não era secreto e nada indicava que tivesse

qualquer ligação com os outros, disse, e depois manteve-se emsilêncio, à espera de que ele replicasse. Não o fez, apesar dediscordar dela e achar que todo o cuidado era pouco. Agradeceu edesligou.

David tirou o cigarro de trás da orelha e acendeu-o. Se nãohouvesse ligação, por que razão empregariam tanto secretismo,desenterrando quem sabe de onde aquela espécie de tenda comque haviam ocultado o cadáver? Quando tinham descoberto oúltimo dos seus corpos, não tinham agido de modo semelhante, pelacalada? Chamava-lhes seus não por ter com eles alguma ligação,mas por ter sido ele o primeiro a uni-los, descobrindo, ou melhor,intuindo, procurando depois as provas que sustentassem a suaintuição, que havia pontos em comum entre esses três cadáveres,na aparência tão distintos uns dos outros. Além do polícia que seenforcara, havia também um maquinista com ligações aocontrabando que morrera electrocutado em casa. O único políciacom quem conseguira falar a sós no local, um novato de rostoredondo e vermelho, disse que o cadáver tinha os dedos de ambasas mãos tão deformados que parecia ter andado a enfiá-los numatomada durante algum tempo. Poderia ter sido forçado a fazê-lo?Fora isso que perguntara ao rapaz, à procura de confirmação paraas suspeitas que tinha já há algum tempo sobre a incorruptibilidadedas forças da Ordem naquele território. Foi interrompido de formabrusca por outro agente, que surgiu das suas costas e que, com umencontrão no braço, dado de forma deliberada mas aparentandodisplicência, como certas faltas no futebol, quase o fez largar otelemóvel com o qual filmava a expressão desconfiada do rapaz.Ouviu o mais velho dizer-lhe, Com este não se fala!, e sentiu umapontinha de orgulho por ser popular.

Quando telefonou para a morgue, a pedir permissão para ver ocadáver, teve de aceitar a seca negativa que lhe endereçou amulher que atendeu. Teve de fazer outro telefonema, para compraruns gramas e poder embrenhar-se, precavido, num clube ondeparava o patologista-chefe. Era ainda novo e bronzeado, um artistada corrupção que sabia como entrar em todo o lado e ao qual nãoera difícil chegar. Já se conheciam de outros sítios, ambos exiladosna cidadezinha costeira, brilhante e pronta a ser saqueada por quemsoubesse mexer-se, como certa vez lhe dissera o anatomista.Aliciou-o à casa de banho, acenando-lhe com a coca. Quando seviram sozinhos nos urinóis, tendo esperado que um terceiro sealiviasse e saísse, encostaram-se à parede a conversar. Estendeu-lhe o pacote. O outro olhou para ele, divertido. Agarrou-o e ficoucom ele na mão, como se ainda pudesse recusá-lo. Já sabes,advertiu-o, não tiras fotografias nenhumas e não falas disto nojornal. Depois tirou um bloco do bolso, rabiscou alguma coisa,arrancou a folha e dobrou-a em quatro antes de lha passar. Só falascom ela, acrescentou antes de abrir o pacotinho sobre o lavatório e,olhando à direita e à esquerda, dar duas snifadelas. Empertigou-se,percorrido por um arrepio. Guardou o pacote no bolso. A tipa é deconfiança, disse. Limpou o nariz e saiu, não esperando por ele. Cáfora fingiram que não se conheciam. Verificou o telemóvel. Trêschamadas não atendidas, todas de pessoas que não teriam nada deútil para lhe dizer. Por superstição só abriu o papel que o outro lhedera quando chegou à rua. Tinha apenas uma palavra escrita. Umnome de mulher. Ema.

Sentou-se dentro do carro, estacionado defronte do clube, evoltou a ligar para a morgue. Atendeu-o a mesma mulher. Tinha umavoz cansada. Não seria do trabalho, disse para si próprio. Sabia as

taxas de mortalidade do distrito. Apresentou o mesmo caso da vezanterior, adicionando-lhe desta vez o pedaço de papel e a suaimediata proveniência. Ela suspirou e disse que teria de confirmarcom o seu superior. David concordou e esperou que ligasse devolta.

A anatomista

NA SEGUNDA CLASSE ERA EMA ZUNZUM, a entomologista. Assim abaptizara um colega, que também sabia dizer tiranossauro aocontrário sem pestanejar e tinha queda para a comédia. Não sofreracom o apodo, impronunciável para as outras crianças, e de factoandava sempre a observar insectos, entretida em particular com asidas e vindas das formigas. De qualquer modo incomodou-a, comose fosse um convite para um jogo ao qual não sabia jogar, ecomeçou a desconfiar do rapaz, evitando-o sempre que podia, semno entanto conseguir impedir-se, sentada longe da azáfama dasmeninas e da brutalidade dos rapazes, de se apanhar a olhar paraele, a distingui-lo da disforme massa dos outros. Estava apaixonada,mas não sabia o que era.

Mas na faculdade já era Ema Zunz, do título quase homónimo,agraciada sem conhecimento de causa por um colega com quemfazia o favor de foder. E agora era apenas Ema, doutora Ema nasocasiões oficiais, desinteressada por igual dos trilhos invisíveisseguidos pelas formigas e da química dos corpos vivos. Dedicara-seà morte, e esta deixava-lhe pouco tempo para o resto. Viajava noseu encalço, não para a encontrar em abundância, mas paraencontrar um sítio onde aplicar-se com todo o fervor que possuía.

Tratava os cadáveres com cuidado, quase com carinho, comoobservara um dos seus superiores numa carta de recomendação:aluna exemplar. Preciso apenas de uma mesa, costuma dizer de sinas entrevistas. Nunca ninguém se ri.

Embora o novo posto não seja exigente, começa por olhar comdesconfiança para a ausência quase permanente do seu chefe.Esperava poder aprender alguma coisa com ele. Mas depressa sehabitua à quietude que advém desse absentismo. Sabia que teria detransigir com alguma coisa para a manter. Por exemplo, abrir a portaa quem o chefe envie, desde que não queiram tocar nos cadáveres.Até hoje não se lhe apresentaram dilemas maiores, e o jornalistanão está prestes a fazê-lo. Trata-o pelo nome, o que parecedesconcertá-lo. Examina os dedos do cadáver que chegou demanhã, sem lhes tocar, consciente do seu olhar sobre ele, um poucoatemorizado por ela, ou assim parece a Ema.

Já vira o homem duas vezes, ambas com o seu chefe. Levava-oa examinar cadáveres que o próprio insistira em autopsiar. Nãoperdera tempo a apresentá-la, nem ela insistira nessa cortesia,mantendo-se de lado, a observá-los. Pouco lhe importa os negóciosem que estão metidos ou as suspeitas que pretendam confirmar.Tão-pouco se opõe a abrir-lhe a porta e a deixá-lo espreitar aquiloque quiser. Os seus apontamentos pessoais, guarda-os no ipad, noqual ele não se atreverá a pôr a mão. É tão ciosa das suas possescomo dos seus cadáveres. Habituou-se por isso a tomarprecauções. Fala pouco. Ouve com atenção. Sabe tornar-seameaçadora, se necessário. Não tira os olhos do homem até elevoltar a vestir o casaco, agradecer-lhe e sair.

Apaga as luzes. Fecha a porta à chave e vai de cabeça baixapelos corredores, sem falar com ninguém. Não reconhecerianenhum dos seus colegas na rua. Naquilo que lhe concerne,trabalha sozinha. No refeitório senta-se a um canto, a comer umasanduíche que leva de casa, com os auscultadores postos e a olharpara o ipad. Está entretida a licitar numa edição em vinil de TheVelvet Underground. Não é a primeira edição, claro. Mas estáassinada por Holmes Sterling Morrison, guitarrista da banda. Já teveuma cópia, não assinada, que perdeu a experimentar uma coisa, eestá empenhada em conseguir esta para a substituir. Afinal, nãoperdeu a memória ao casar-se com a morte e ainda aprecia a suaquinquilharia.

Depois do almoço vai ao pátio para fumadores, nas traseiras doedifício. Não se junta aos grupos e não fala com ninguém. Passeiapara cá e para lá, o que parece inquietar os outros. Os seus olhosnão se afastam do ecrã. Ouve «Pale Blue Eyes» e abana as ancascom uma languidez tão ligeira que ninguém repara. Apaga o cigarro,acocorando-se para o extinguir devagar num canteiro, rodando ofiltro entre o polegar e o indicador. Deixa-o no cinzeiro à saída eesgueira-se por entre um grupo que sai. De regresso ao seu postofecha a porta à chave. Tira os auscultadores. Despe o casaco ependura-o no cabide. Não se esquece do ipad, no qual gravará orelatório. Põe a máscara. Os rapazes já trouxeram o corpo. Umdeles ficou para a ajudar a virá-lo.

O homem mede cento e oitenta e três centímetros. A pele ébranca, duma forma de palidez muito comum entre os britânicos. Ocabelo é castanho-claro, quase arruivado em algumas áreas. Nas

têmporas está a encanecer. No topo começa a escassear. Osombros são largos e a cintura estreita. O corpo conserva aelasticidade decorrente de alguma prática atlética. As mãos e asunhas estão bem tratadas, sem calosidades ou quaisquer vestígiosde trabalho manual. Os primeiros e os quintos dedos dos seus péssão em cunha, o que lhes dá uma curiosa forma pontiaguda. Osgémeos são pronunciados, como seriam os de um corredor.Observa a forma dos pés com maior atenção. Parecem habituadosa estar em pontas. Talvez fosse bailarino.

Como todas, as cidades costeiras são propícias à morte.Suicídios no Inverno, afogamentos no Verão. Não é raro que sedepare com cadáveres que surgem por identificar. O desconhecidonão a impressiona. Concede que o seu tom de pele não é muitocomum na região. Mas não lhe atribui importância maior. Asmercadorias circulam, os homens circulam no seu encalço e podemmorrer em qualquer sítio. É essa uniformidade que permite queEma, também ela, circule. Seja como for, esses que ficam poridentificar acabam quase sempre por sê-lo. Quando não o são,adquirem algum estatuto e efabula-se sobre eles, futilidade à qualnão adere. Da especulação a que a obriga o trabalho diz que estáfora das suas mãos. É de uma outra ordem de vontade e ela sóacata.

Analisa o pescoço. Mede o tórax e escrutina o abdómen.Observa os genitais e toma o peso aos testículos. Vira-se para orapaz. Ele aproxima-se de imediato, sem que ela diga nada.Posiciona-se no local que lhe está destinado. Viram o cadáver, paraque ela inspeccione o ânus e a área dorsal. O ajudante permanece

sempre em silêncio, não falando a não ser que ela lhe dirija apalavra. Colocam o cadáver de novo de barriga para cima e o rapazdesaparece, indo sentar-se junto à parede a olhar para o chão.Examina os membros superiores e inferiores. Por fim, lembrando-sedo jornalista, estuda-lhe as unhas, sob as quais não há nada, talcomo não há ferimentos ou lesões, tatuagens, cicatrizes ouquaisquer deformações.

Pega no bisturi. Começa pela cabeça. Quando corta, fá-lo comprecisão, com absoluta concentração. Uma incisão vertical. Separao couro cabeludo, sob este a pele. Corta através da carne atéchegar ao osso, para o qual emprega uma serra. O pulso não lhedói, a mão não lhe treme. Age de forma maquinal, um instrumentoutilizado para observar outro, agora inerte. Relata aquilo queencontra numa voz monótona, nasalada. Está a ficar constipada. Océrebro, normal, apresenta sinais pouco comuns de congestãovascular. Inclina-se sobre o corpo, a respiração pesada colando-secontra a máscara. Desse único elemento não pode retirar nenhumaconclusão. Terá de examinar o resto das partes. Retira as amostrasde que necessita e depois o encéfalo, que pesa e regista.

Debruça-se sobre o rosto do cadáver. Examina-lhe os olhos,primeiro o direito e depois o esquerdo. Mantém-nos abertos,utilizando o polegar e o indicador. Não apresentam quaisquerindícios suspeitos. Em seguida, pega no bisturi e faz uma incisão,desde a base da garganta até à zona púbica, como se desenhasse.Evita o umbigo, fazendo o mesmo aquando do segundo corte, maisprofundo. A regra é evitar feridas ou cicatrizes, por antigas quesejam. Já o cortou, nos primeiros cadáveres que examinou sozinha.

Queria ver aquilo que aconteceria, visto ter sido sempre advertidaem relação a ele. Ficou desapontada ao perceber que não acontecianada. O umbigo separava-se simplesmente em duas metades,como um fruto demasiado maduro.

Separa a pele e os músculos do dorso para os flancos, expondoas costelas. Apesar de envergar luvas, fica sempre com a sensaçãode ter tocado com a ponta dos seus dedos nus na carne morta, algoque, apesar de tudo, a incomoda. Não aceitaria um caminho isentode espinhos que lhe testem a vocação. Aprendeu a dominar arepulsa que lhe causava cada um dos passos do procedimento.Apoiou-se nesse primeiro triunfo e fá-lo agora com precisão, masainda olha a cada instante para as luvas, certificando-se de que nãoestão rasgadas. Os seus lábios compõem um esgar enquanto o faz.Quando conclui, cruza os braços, as pontas dos dedos escondidosnas axilas, e espreita sob a gaiola formada pelas costelas. Osórgãos olham-na num silêncio comprometido.

Fende a articulação costoclavicular com o bisturi, precisa e lenta.Quebra as costelas, manejando o costótomo com destreza. Gostade sentir nas mãos a frieza de metal dos seus instrumentos detrabalho, ferramentas lisas e de simples manutenção. São suas eguarda-as numa maleta, a qual leva consigo para casa quandotermina o dia. A cidade pôs ferramentas semelhantes a essas à suadisposição. Mas apresentou-se de maleta no primeiro dia e recusou-se, delicadamente, a usá-las, dizendo preferir as suas.Concordaram, pensando talvez que a excentricidade dela acabariapor poupar-lhes dinheiro. Não sabe se isso se passou. Mas sabe

qual a pressão que deve exercer sobre as pegas para que a lâminacorte, a direito, as costelas de qualquer cadáver.

Faz o inventário dos órgãos internos, descrevendo-os emdetalhe. O coração não apresenta qualquer problema. Encontrasinais de congestão na faringe e no estômago, onde há sangueentre os restos de comida. O baço está inchado, cerca de três vezeso tamanho que deveria ter. O fígado, quando cortado, revelaexcesso de sangue. Se lhe pedissem opinião, Ema diria que ohomem morrera de uma hemorragia gástrica aguda, que lheprovocara uma congestão do baço, do fígado e do cérebro. E dariacomo quase certa a hipótese de semelhante hemorragia ter sidocausada por alguma forma de veneno. Para esse efeito retira asamostras necessárias, que envia para a capital por não ter à suadisposição as ferramentas necessárias.

O telefone toca. O rapaz ergue-se para o atender. Acena com acabeça, obediente, e olha para ela. É o chefe. Quer falar-lhe.Pergunta-lhe como está a correr, num tom nervoso. Pareceembriagado. Responde que não encontrou nada de concreto e vaimandar as amostras para o laboratório toxicológico. Terão umaresposta nos próximos dias. O chefe suspira. Deve estar a serpressionado, mas ela não tem como ajudá-lo. Agradece ainformação e despede-se dela. Desliga e volta para junto docadáver. Certifica-se de que retirou tudo aquilo de que necessita e,convencida, faz sinal ao rapaz para que o cosa. Já confia nele paraque o faça. No início tinha de acompanhá-lo durante todo oprocesso. Mas agora já pode colocar os auscultadores e ouvir orelatório que gravou.

Quando o rapaz sai, Ema fica ainda para trás, debruçada sobre asecretária. Não se despedem. Com ela não se desperdiçampalavras. Quando termina aquilo que estava a fazer, ergue-se dacadeira e espreguiça-se, para esticar as costas. Apaga a luz e fechaa porta à chave. Fuma um cigarro no pátio deserto enquantoprocura conformar-se ao resultado adiado da licitação, por questõestécnicas que ninguém esclarece. Ocupa-se com burocracias o restodo dia, esquecida do desconhecido. Pensa em Sterling Morrison, det-shirt branca com riscas pretas. Embora a morte ainda a seduza,têm vidas independentes. Não lhe é pedida devoção total e é livrede se perder em frivolidades, o bigode do guitarrista, o cabelocaindo sobre os olhos, uma nota ecoando num lugar longe dali.

Quando sai do trabalho desce até à garagem. Estacionou nolugar do chefe. É isso que faz nos dias em que sabe que ele não vaiestar. Os seguranças não ousam dizer-lhe nada. Talvez se tenhameles próprios apercebido do padrão e achem desnecessárioincomodá-la. Conduz até junto ao mar, até ao bar irlandês onde sehabituou a ir nestas últimas semanas. Senta-se num canto, a bebercerveja preta. Por vezes lê, com o cotovelo pousado em cima damesa e o queixo apoiado na mão. Também responde aos mails quea mãe lhe envia, ponderando cada palavra que escreve. Às vezesfica a olhar para a televisão, como os outros. Já aconteceu quehomens venham meter conversa com ela. Passou uma noite comum deles, mas não voltou a vê-lo.

Em casa, Ema anda descalça, e a primeira coisa que faz quandochega é livrar-se dos sapatos. Come uma maçã na cozinha àsescuras, encostada ao lava-louças, olhando pela janela. O casal da

casa defronte discute na sala de estar, diante dos dois filhos,nenhum dos quais deixa de olhar para a televisão. Na sala liga elaprópria a televisão. Está a passar no noticiário uma notícia sobre ohomem que autopsiou essa tarde. Já não se lembrava dele. A morteé a grande niveladora e até os rostos confunde. No final poucoimporta quem foram ou aquilo que fizeram. Alguns passarão pelasmãos dela. E ela, quando chegar a sua vez, será examinada eaberta por outro que tenha seguido o mesmo sacerdócio. Recordaráo seu rosto? Saberá o seu nome?

Os depoimentos

— QUEM É ESTE HOMEM? — dizia o segundo polícia, aquele que semantivera até aí em silêncio. Tinha uma foto do rosto dodesconhecido. Erguia-se da cadeira, de forma tranquila. Apoiava aspalmas das mãos na mesa. Apontava para a imagem e repetia apergunta.

O seu colega, que fazia as perguntas pragmáticas, recostava-sena cadeira a olhar para as testemunhas. Por vezes cruzava osbraços e não voltava a intervir. Fumava com enfado o seu cigarroelectrónico, soprando aromáticos anéis de fumo que se dispersavamno ar. Mas havia ocasiões em que também intervinha nointerrogatório. Procurava esclarecer pormenores, pequenas coisas.Tomava nota, à mão, das respostas a todas as perguntas que faziae não anotava nada daquilo que perguntava o seu colega, a agendabranca pousada sobre a mesa, o lápis a servir de marcador.

Algumas das testemunhas não superavam sequer a prova dafotografia, a qual decerto já teriam visto, isto se se apresentavamcomo aptas a identificar o homem que aparecera na praia. Era umestranho momento de vergonha para todos, polícias incluídos. Atestemunha começava por hesitar. Umas aproveitavam essemomento para denunciar a epifania que as levara até ali como umasimples ilusão. Outras apenas pediam desculpa e saíam tão

depressa quanto podiam, temendo talvez que os polícias aspusessem a ridículo. Uma das testemunhas acusou-os de teremtrocado as fotos, ou nem isso, apenas de terem formas de alterá-lade modo tão subtil que pareceria a mesma a quase todos.Enfatizava a palavra «quase» e saía a ameaçá-los com processosjurídicos. Três admitiam ter embolsado dinheiro para o fazer, tendo-se depois apercebido de que não eram capazes de mentir.

De entre aquelas que tinham uma resposta para o segundopolícia, muitas apenas suspeitavam sem terem para isso grandefundamento. Por exemplo, uma afirmava que o homem era o vizinhodo segundo andar, de quando ainda vivia no prédio da tia, um rapazque às vezes tomava conta dela. Tinha envelhecido, claro. Nãocrescera ela própria, envelhecendo também? Era o mesmo cabelocastanho-claro, agora a encanecer nas têmporas. O mesmo rosto,menos arredondado, mais novo. Quando questionada sobre a últimavez em que tinha estado com esse homem, não lhe foi difícilfornecer a data exacta, vinte e um anos antes. Para ela, notava-se,era uma data que contava. Os problemas começavam quando seprocurava saber se ouvira sequer falar do vizinho durante esseperíodo. Ou quando se lhe perguntava se se lembrava do nome.Dizia que não e que não se lembrava. Não adiantava insistir muito.As datas e as dificuldades mudavam de testemunha paratestemunha. O essencial mantinha-se, o desconhecido continuavapor identificar.

Nem todas vinham tão mal preparadas. Uma em particularapresentou-se até com um dossier. Afirmava que o desconhecidoera um advogado com o qual trabalhara numa empresa deimportação e exportação, intermediários legais. Trabalhavam nasimediações da estação, embora tivessem os seus contactos no

interior. Ajudavam-nos a garantir que a mercadoria lhes chegava àsmãos com celeridade, de modo a poderem legalizá-la, ou não, commaior risco e recompensa, e entregá-la a quem de direito. Aclientela que serviam não era vasta, a cidade era pequena. Istopassara-se oito anos antes. Entretanto tinham-se separado, emtermos amigáveis. Ouvia falar dele de tempos a tempos. Souberaque acabara por deixar a cidade. Não sabia dizer para onde. Masainda se cruzavam, pois o seu ex-sócio mantinha negócios nacidade e suspeitava até que se tratava do antigo negócio comum,apenas com um novo nome. Para despistar quem quisesse segui-los tinham por hábito fazê-lo, mudando de nome a cada seis mesese não se esquecendo de informar os clientes. No entanto, nuncaprocuravam um novo escritório e faziam questão de aparecer pouco.Faziam tudo por escrito. No dossier trazia provas daquilo que dizia.Quaisquer crimes que aí pudessem estar já teriam prescrito. Traziatambém uma fotografia, de um homem que parecia idêntico aodesconhecido. E além disso um nome, para que investigassem.

Nenhum dos depoimentos seguintes se revelaria tão próximo daverdade, daquilo que se poderia então imaginar como tal. Estava-sediante do problema da identidade do desconhecido. Não haviaprogresso algum a registar e havia pressão para resolver o casodepressa. Começavam já a afiar as facas para as eleições, uns adesafiar as estatísticas de segurança da Câmara, e o presidente,sabendo aquilo que realmente importava, aparecia em público agarantir que em breve haveria uma solução e que a cidade estaria,como sempre estivera, apta a proteger todos os veraneantes. Todostratavam o caso como um homicídio, e procuravam assim apoderar-se dele. Mas não se encontrara qualquer indício de crime. Nemsequer de suicídio, como alguns ainda sustentavam. Perante a

inanidade de todos os outros depoimentos, optou-se por seguir apista do antigo intermediário. Rivalidades entre departamentoslevaram a que a fotografia do advogado fosse copiada, pirateadanas redes sociais e depois chegasse enfim aos jornais. Rolaramcabeças. Não se perdoava semelhante falta de perspicácia. Os quesobraram tentaram aproveitar a publicidade e acordaram entre sique, dadas as circunstâncias, o melhor a fazer seria que sesoubesse também o nome do homem. Assim ficariam menos malaos olhos do público. E quem sabe se não teriam sorte? Opresidente ficaria furioso, gritaria traição e esbracejaria. Mas empúblico diria que era importante que todos se envolvessem nabusca, dando a entender que aprovava a atitude de abertura dasautoridades. Rendia-lhe mais votos ser conciliador diante doseleitores. Só em privado se ouvia o estalar do seu longo chicote,exigindo reparação da parte daqueles que o tinham traído.

No escritório do seu adversário não se usavam chicotes. Ocandidato estava encostado ao beiral da janela, o nó da gravatadesfeito, em mangas de camisa, a fumar. Depois daquilo que diziamas últimas sondagens havia uma sensação de apaziguamento, umabonomia que envolvia toda a equipa. Tinham conspirado todosjuntos e agora cheiravam a vitória, já se imaginavam a ocupar oedifício. Bastava que continuassem a impacientar o presidente paraque este, como previsto, demitisse o comissário e pusesse a forçapolicial contra ele e do lado deles. Em seguida insistiriam naquestão da segurança, erguendo a bandeira do desconhecido e sempor uma única vez usar a palavra «violência». O novo comissárioseria fraco, como é sabido. A sua escolha não seria vista com bonsolhos, e uma má decisão pode custar um triunfo que antes pareciacerto. Depois disso era só esperar que a cúpula do partido oposto

decidisse que a cidade era uma perda aceitável e se desligasse dopresidente. Sabiam como ele sobrestimava o seu carisma, a suainfluência pessoal. Daqueles sobre os quais julgava ainda ter poder,esses que bastavam para pôr a cidade a mexer-se a favor deles,não havia nenhum que não estivesse já farto do velho bode. Haviaacordos assinados, por datar, com todos eles. Ainda assimguardavam o champanhe, claro. Esperavam que o partido fizesse asua parte e ameaçasse alvos de maior importância, menosapropriados ao veraneio, para que pudessem celebrar a suaconquista. Até lá tramavam contra o presidente, tramavam entre si eaté com representantes do partido oposto, tudo em proveito próprio.Falavam ao telefone enquanto bebiam água mineral em garrafas devidro, que reciclavam para poder exibir as estatísticas, e ninguémfumava, senão o candidato. Observava a rua, esquecido dos outros.Não tinha carinho algum pela cidade, tão diferente da sua. Dodesconhecido nada lhe interessava, senão que servisse de máscarapara a horda de devoradores na qual, sedento de poder, militava.

Por esses dias começaram a aparecer uns cartazes, artesanais,em que anónimos cidadãos se deixavam fotografar com umamáscara do desconhecido. A princípio ninguém reparou neles. Erammuito pouco chamativos, mal impressos e perdiam-se na paisagemsaturada da cidade. Não aspiravam a rivalizar com os cartazeseleitorais, feitos para atrair o olhar, mesmo a distâncias razoáveis.Tão-pouco pareciam interessados em fazê-lo, escreveu o bloggerque primeiro reparou neles, acrescentando que aquilo quepropunham era que os observassem de perto, coisa que ninguémpensaria em fazer com os cartazes da campanha. Quem se desseao esforço de o fazer, continuava o texto, iria aperceber-se de que ocenário era sempre o mesmo. Parecia ser uma espécie de pátio —

uma mesa de plástico encostada a um canto, ao lado de um montede cadeiras — e haveria outras pessoas presentes, além defotógrafo e modelo. No chão podia ver-se uma sombra, uma massaindistinta composta por aquilo que pareciam três corpos. Olhandocom atenção, contam-se três cabeças. Tratar-se-ia então de umainofensiva conspiração de amigos? O modelo, que ocupava o centroda foto, aparecia fotografado do peito para cima, não sendo possíveldiscernir sexo ou idade. A máscara que trazia posta era aquilo quemais atraía o olhar. Ao longe todos os cartazes pareciam iguais,mas quem se aproximasse iria notar que eram todos diferentes e,repetindo-se, nunca se repetiam. O cenário era sempre o mesmo,aquilo que mudava era o modelo, por vezes com cabelo comprido,doutras vezes careca, vestindo-se à homem ou à mulher. O textoterminava com a conclusão do autor, auto-intitulado maiorcoleccionador e investigador em memorabilia do desconhecido, umdiscurso enfadonho sobre as possíveis intenções do autor, ouautores, desse acto. Um comentador leu-o e partilhou-o. Muitos dosseus seguidores fizeram o mesmo. O círculo de intérpretes alargou-se, embora a maior parte inquirisse sobre a identidade dodesconhecido e quase tantos outros apenas especulassem.

Os poucos que de facto interpretavam dividiam-se entre aquelesque o faziam pelo ângulo político e os outros, os estetas. No fimvinham aqueles que o faziam como comédia, imitando os gestosdos anteriores. Chegou a falar-se disto como se fosse um assuntopertinente em termos políticos, a emergência de novas forças, umdisparate que matou aquilo que ainda restava de seriedade nadiscussão. Os cartazes deixaram de aparecer no dia em que seafastou a onda de frio, antes que viesse a chuva. E, quando estacomeçou a cair com tamanha intensidade que arrancava até os

cartazes dos candidatos, a cidade esqueceu por completo oproblema que a mantivera ocupada até aí. Todos procuraram abrigo,temendo uma tempestade, como temem sempre as cidadescosteiras. Alguns abasteceram-se, como quem se prepara parasofrer um cerco prolongado. Esgotaram-se artigos inesperados,como fraldas descartáveis e dentífrico. O presidente anunciou umaconferência de imprensa, em directo na televisão. Todos temeram opior. Apresentou-se muito digno. Anunciou que a investigação àidentidade do homem da praia, aquele a quem todos se referiamcomo o desconhecido, não estava esquecida e, para que pudessecontinuar com maior probabilidade de ser bem-sucedida, decidira-seque o cadáver seria entregue a um embalsamador na segunda-feiraseguinte. Agradeceu a atenção. Fez uma pausa. Atónitos, nenhumdos presentes conseguiu formular uma pergunta de imediato, e opresidente aproveitou para descer do palanque, longe do qual nãoera obrigado a responder-lhes. Saiu da sala sob os protestos dosjornalistas, recuperados do choque mas impotentes para o obrigar aregressar. O canto do bode, comentaria um deles com um colega àsaída, abanando a cabeça, desalentado com aquela perda detempo. Resta-nos ir à procura do embalsamador!, respondeu ocolega, a rir-se. Foi a televisão quem o encontrou primeiro. Era umhomem grande e gordo, de camisa de flanela e suspensórios. Aslentes dos seus óculos eram muito grossas. Falava olhando emdiante, os olhos esbatidos por detrás do vidro. Não pareciasurpreendido ou envergonhado. A sua mulher, grande e gorda comoele, com lentes de espessura comparável, apareceu também àporta. Era simpática e inteligente, tal como o marido. Convidou aequipa de reportagem a entrar, para se abrigar da chuva, que setornava cada vez mais violenta. Serviram chá e biscoitos, falaram

das eleições. Não os deixaram filmar em casa. Ele respondeu amuitas perguntas sobre o embalsamamento. Depois jogaram àsueca, em silêncio.

A morte por resolver, com aquilo que poderia implicar dedemérito para a actual administração, acabou por pesar pouco nasurnas. O que derrotou o presidente foi o desinteresse que o partidolhe demonstrou, ocupado a lutar com unhas e dentes por bastiõesmais valiosos. Isso e a sua soberba. Confiava demasiado na boamemória que a cidade teria dos seus mandatos e esquecia todos osinimigos que criara, talvez na esperança de que também eles otivessem esquecido. Quando se confirmou que perdera, exigiu que odeixassem sozinho. Fechado no escritório, do qual teria dedespedir-se em breve, pensou na mãe antes de começar a chorar.Quando vieram avisá-lo de que o motorista estava pronto, aindatinha os olhos vermelhos. Mas ninguém teve ânimo para o consolar,velho bode irascível, a arrastá-los a todos para o fundo. Do outrolado da cidade foi a mulher do vencedor quem chorou, também emprivado, por ter de passar a viver nessa cidadezinha à beira-mar.Aguentou o sorriso até o marido acabar de discursar. Entãoescapou-se das comemorações, alegando que ia fumar. Ao invés,fechou-se no primeiro gabinete vazio que encontrou. Escondeu acara entre as mãos e começou a soluçar. Lá fora o marido recebiaas felicitações dos enviados do partido, que lhe afirmavam nunca terduvidado da sua capacidade e confirmavam que a vitória eranacional. Havia na cúpula quem quisesse felicitá-lo em pessoa. Umdos enviados pegou no telemóvel e marcou um número, antes delho passar. Não teve tempo de perguntar com quem ia falar antes deouvir, ao fundo, uma voz sumida que dizia o seu nome. Era ofundador do partido. Ouviu e agradeceu no final. Devolveu o

telefone. Acendeu um cigarro, de mãos trémulas. No exterior osjornalistas começavam a ir-se embora, aproveitando que a chuvaparara. De qualquer modo a notícia já estava feita. O poder tinhamudado de mãos. Mas nem por isso a velha roda do mundo deixarade girar, e havia assuntos pendentes. No mesmo dia apresentou-seperante as autoridades um homem que tinha muitas parecençascom o desconhecido. Os detectives responsáveis foram informadosde imediato, o homem levado para um gabinete. Os dois políciasvieram sentar-se diante dele. Quando lhe perguntaram quem era,respondeu que era o intermediário de quem andavam à procura. Osrumores sobre a sua morte tinham sido algo exagerados, citou. Etinha modo de provar que era quem dizia ser. Exigiram ver essasprovas e depois, resignados, deram-lhe autorização para sair dasala. Ficaram sentados sem dizer nada, olhando para o chão. Ohomem saiu da esquadra, passou diante da estação ferroviária,onde já não havia quaisquer indícios da greve da semana anterior, eseguiu rua abaixo. Ergueu a gola da gabardine. No bolso trazia umguarda-chuva. A chuva amainara, mas previam-se ainda aguaceirospara os próximos dias.

A VEZ DO GINECEUIrene

AINDA CHOVE QUANDO IRENE ENTRA no hospital, desapertando o lençoazul que traz na cabeça. Dobra-o em quatro e enfia-o no bolsoenquanto se dirige para o elevador. Não estaca à porta, comoalguns dos outros, espreitando à direita e à esquerda indicaçõespara o caminho certo, enxameando a recepção de mão estendida.Sabe dirigir os passos e tem feito este trajecto com suficienteassiduidade. Pára junto ao elevador. Carrega no botão e espera. Umhomem pára ao seu lado. Cumprimentam-se com certa timidez e, aoentrarem para o elevador, colocam-se em pontas opostas, ambosencostados a um canto. De permeio, entram três enfermeiras, decapa escura, mexendo nos telemóveis. Ninguém fala. Ele sai noquinto andar e ela no sétimo, a seguir às raparigas.

Na recepção não precisa de dizer quem vai visitar, e algumas jáa conhecem pelo nome. Ela sabe os nomes de todas. As outrasdisseram-lhos. Sempre teve esta facilidade em falar com aspessoas, levando-as a confiar nela, a revelarem-se-lhe. Masalgumas são mais esquivas. Ou a ocasião ideal nunca se apresenta,como lhe acontece com o homem do elevador. Ainda não se

proporcionou o momento para que troquem algumas palavras.Nunca estiveram sozinhos no elevador ou sequer lado a lado e nemtão-pouco tiveram ocasião, enquanto esperam, de estar juntos umpouco mais. Chegam sempre à mesma hora, com demasiadaexactidão, a ocasião gorando-se a cada novo dia. É verdade quenão se esforçou para chegar mais cedo, mas guarda-lhe algumrancor por nunca ter sido mais afoito. Perdoa-o de imediato,sentindo um pouco de vergonha por, na sua idade, ainda seencalorar com tais coisas. Perdeu-se sempre por homens maisnovos. Sente-se elegante no seu impermeável castanho, compradona Alemanha. Traz num bolso o jornal, no outro o lenço. O homemdo elevador é já como uma quimera, um devaneio que se dissipa àmedida que avança em direcção ao quarto, a mão no bolso,acariciando o lenço fresco, memórias mais duradouras vindosobrepor-se a desconhecidos em elevadores, arrastando no seumovimento até aquilo que o lenço, na sua delicadeza, poderiaevocar e indo mais atrás, ao âmago da sua história.

A rapariga está sentada junto a ele, os cotovelos apoiados sobrea cama. Está distraída. Quando se apercebe da presença de Irene,endireita-se na cadeira. Ergue-se para a cumprimentar. Cheira bem.Trata-a agora com aquilo que considera deferência excessiva, masé amável e sabe fazer-lhe a delicadeza de a deixar a sós com ele.Alega desta vez ter de fazer um telefonema. As coisas continuam amover-se, diz ela, como se se desculpasse. Irene sorri-lhe. Até já,responde, mas Clara já não está lá para ouvir. Restam ela e Victor,em coma há onze dias. Inclina-se sobre ele, afasta-lhe o cabelosuado da testa. Segura a mão dele entre as suas. Murmurapequenos incentivos, coisas deles, íntimas. Fá-lo na esperança deque a ouça, de que lhe reconheça a voz. Se isso não for suficiente

para trazê-lo de volta, alguma das palavras que lhe diz podechamar-lhe a atenção, dar-lhe um fio a que possa agarrar-se. Omédico já lhe recomendou que continuasse a fazê-lo, se lhe dáalento. O paciente pode estar consciente, apenas incapaz decomunicar. Quem sabe o que pode ajudá-lo a vencer esseobstáculo? Irene apostou na força da memória que partilhava comele, ciente da possibilidade de que poderia não ter tanto poder sobreVictor como tinha sobre ela. Ele tinha toda uma vida da qual elanada sabia, apenas um vislumbre aqui e ali, graças a Clara. Era pai,coisa que o seu primeiro casamento não lhe proporcionara. Mas eratambém viúvo, ainda novo. Vivera na América, voltando para casa jácasado com uma americana, da qual enviuvou, criando a sua filha etrabalhando. Vivera tanto tempo longe dela. Só uma espécie devaidade lhe permitia continuar a insistir em tentar acordá-lo com assuas irrelevantes recordações.

Senta-se. Tira o jornal do bolso e desdobra-o. Pousa-o sobre ocolo enquanto coloca os óculos. Lê da primeira página, dando umaentoação particular a cada manchete, como fazia na pequena casaem que primeiro tinham vivido, a mesa encostada a um canto, osofá defronte, Victor em pé a desenhar, um joelho apoiado nacadeira, de costas para ela que, sentada no sofá, lhe lia o jornal. Lêcom voz solene as declarações dos responsáveis sindicais,regozijando-se com os resultados da greve e a mudança de posiçãoda administração, forçada pela acção concertada dos trabalhadores,solidários e motivados à acção em prol do bem comum. Reproduz,num tom entediado, a reacção do porta-voz da administração,tentando não soar vingativo quando menciona as vagas medidaslegais que a mesma pensa vir a tomar. Lê ainda mais duasmanchetes, a primeira sobre a morte de um futebolista. O mundo

mostra-se consternado. Reconhecem a grandeza do falecido eperdoam-lhe os defeitos. O desporto mais velho do mundo, comentaela. A outra notícia versa a tempestade que se prepara, da qual achuva dos dias anteriores foi apenas um prelúdio. Olha para Victor.Tem os olhos fechados e não parece sequer respirar. Olha para ládele, pela janela do quarto, para as nuvens que se adensam, comoque convocadas para se virem reunir sobre a cidade e aguardandoagora novas ordens. Da primeira página segue para o miolo,destacando umas notícias e ignorando outras, prosseguindo até àpágina doze onde, na coluna da direita, em terceiro lugar, há umabreve notícia sobre o desconhecido. Depois do embalsamamentonão é muito comum que ainda se fale dele. Essa excentricidade dopresidente deposto, agora apontada como apenas mais uma,pudera preservá-lo da putrefacção, mas fizera-o desaparecer daimaginação da população. Irene habituara-se a ler para Victor sobreo desconhecido, um insólito folhetim sem resolução à vista,especulando depois sobre a identidade daquele homem, tendo atétentado envolver Clara nesse jogo mas sem sucesso. É demasiadotétrico, justificou-se a rapariga, embora ela não lho tivesse pedido.Era para ele que falava, e como a rapariga entrara enquanto ela ofazia, por cortesia para com ele, vira-se obrigada a incluí-la. Sentira-se aliviada por ter recusado, mesmo à custa de vê-la fechar-se,sentando-se em silêncio ao lado do pai. Victor compreenderia, claro.Tal como a Irene, também a ele lhe agradava a especulaçãoenquanto simples exercício. E quem sabe se não agradará tambémà rapariga, quando o momento não se apresentar tão grave? Poragora habituou-se a interromper o exercício se Clara regressa,continuando a ler o jornal para o ex-marido e sorrindo para arapariga. Em relação ao desconhecido, entretanto, não se

conseguiu ainda chegar a nenhuma conclusão. A notícia não diznada de novo, apenas uma pista que se revela falsa. Mais uma,parecendo tão ténue como as anteriores e servindo apenas paramanter a chama acesa. No entanto, quantos seriam aqueles queainda se lembravam da existência dessa chama? Tinha sido sempreassim com as causas a que se tinham agarrado, ela e Victor. Ondeantes havia uma legião, no final sobravam apenas eles dois, últimosportadores da tocha. Não abandonavam as fileiras a mando dospartidos. Não cediam à pressão popular. Não arredavam pé até quea coisa se fizesse ou acabasse por se desmoronar, razão pela qualtraziam ambos tantas cicatrizes. Edifícios inteiros tinham ruído sobreeles. Metáforas tontas. Mas certa vez parte de um edifício quaselhes caíra em cima quando, na Ópera, parte do tecto ruiu. Ela tinhapousado sobre o joelho o lenço azul que Victor lhe oferecera, omesmo que traz agora no bolso, dobrado em quatro. Assistiam aDer Rosenkavalier, um favorito de Victor, que desgostava quasetanto das inclinações wagnerianas e apocalípticas da mulher comoela da sua atracção pelo ridículo. Reconciliava-os um amor comumpor Hugo von Hoffmannsthal, que talvez tivesse gostado ele próprioda história do desconhecido. De qualquer modo ainda não existiadesconhecido nessa noite em que o tecto quase lhes caiu em cima.Ela ficou muito nervosa e não quis que voltassem para casa. Temiaaquilo que lhes poderia acontecer no caminho. Victor, a princípio,opôs-se. Mas a intransigência da mulher acabou por convencê-lo.Alugaram um quarto num hotel ao lado da Ópera. Adormeceu asoluçar, com a cabeça no colo dele. No dia seguinte, ao pequeno-almoço, Victor falou-lhe pela primeira vez na sua ideia para umacasa junto ao mar. Quando saíram chovia e ela cobriu a cabeça como lenço azul, o mesmo que traz hoje no bolso, dobrado em quatro.

Tem muito simbolismo para ela e ainda acha que poderia tê-lo paraele também. Já lho mostrou numa visita anterior, achando que talvezo trouxesse de volta. Não funcionou, e Irene não gosta de se repetir.

Mas não resiste a repetir com Victor tudo aquilo que sabemsobre o desconhecido, o qual pode bem ser a última causa quepartilham. Anima-a ainda a esperança de que o cadáver sejadevolvido à família. Enquanto crescia, assustava-a a ideia de morrerlonge de casa, que ninguém tivesse notícias suas nunca mais eacabasse enterrada numa campa sem nome. A mãe tranquilizava-a,garantia-lhe que nunca lhe iria acontecer semelhante coisa, aindaque Irene suspeitasse que não tinha quaisquer meios para sustentaressa garantia. Aceitava-a como aquilo que era, amor incondicional.Retribuía. Cresceu rodeada de amor. Mas não deixou de sentir porvezes o mesmo medo, ainda que agora o tivesse já intelectualizadoe dissecado. Era do apagamento que tinha medo, do súbito extinguirda chama. Desaparecer e ser esquecida, como se nunca tivessecaminhado sobre a terra. O facto de morrer longe de casa, a campasem nome, tudo isso era apenas folclore, a sua mitologia. Outrasvieram substituí-la, mas o centro permaneceu o mesmo. Era apenaso medo da morte. Quem não tem medo de morrer? No entanto, essamitologia inicial regressou quando começou a interessar-se peloexílio e pelos exilados, muito depois de Victor, lendo extensamentesobre o assunto, assistindo a conferências, agindo como sempreque se entusiasmava com alguma coisa, mas procurando agora nãose envolver, comovendo-se apenas em privado. A doençaperseguia-a como uma nuvem, visível para todos e de todosconhecida, ou assim parecia, tantas vezes ouvia dizer que se lhereferiam como uma pessoa doente. Temia que algum episódio maisemocional os convencesse da justiça desses comentários. Como

ninguém procurou esclarecer junto dela a doença de que se falava,Irene tão-pouco tomou a iniciativa. Comovia-se pois em privado. Odestino trágico dos exilados despertou nela o antigo temor de morrerlonge de casa. Mas agora deixara de pensar em primeiro lugar noseu pobre corpo na campa sem nome. Pensava antes nos outros,nos poucos que viessem à sua procura. Como poderiam encontrá-lae levá-la para casa? Restituí-la ao seu devido lugar? E é essa ideia,de que cada um seja restituído ao seu devido lugar após a morte,que agora lhe interessa. É por sua causa que ainda espera que ocorpo do desconhecido seja devolvido à família, seja ele quem for,sejam eles quem forem. Gostaria de poder ajudar a fazê-lo eacredita que, de certa forma, é isso que faz quando procura não seesquecer de nada sobre ele. Quando o tempo vier, estarápreparada. Para benefício de Victor, que gosta de listas, e paratreinar a memória, repete aquilo que sabem. Pega num caderno quetraz no bolso interior do impermeável. Procura a página correcta ecomeça a ler. Janeiro. Um homem apareceu sem vida na praia.Olhos castanhos, cabelo castanho-claro, ombros largos, cinturaestreita, como um bailarino. Bem tratado e bem vestido, com umagravata igual à do colégio de Victor, vermelha e azul como nafotografia que tinha no atelier. Sem carteira ou documentos deidentificação. As etiquetas da roupa tinham sido cortadas, nãoarrancadas. Nos bolsos trazia um bilhete de autocarro usado, umbilhete de comboio de segunda classe, ainda por usar, um maço detabaco de uma marca com cigarros de outra marca, um pente dealumínio, uma carteira de vinte fósforos, doze dos quais intactos, euma caixa de pastilhas elásticas de mentol. Na autópsia não seencontrou qualquer causa para a morte. Por decisão do presidentecessante, um pouco a despropósito, mandou-se embalsamá-lo.

Impressionava-a a visão que tinha do corpo embalsamado, umaestátua mirrada, como se o seu interior se fosse esvaziando deforma progressiva e só lhe restasse enrugar-se. Imaginava-o comhorror, do qual Victor não teria partilhado, ele que, embora seempenhasse, era o primeiro a rir-se das coisas em que seenvolviam, encontrando-lhes com facilidade um lado ridículo do qualfazia pouco em privado, rindo-se muito os dois com as parvoíces emque reparava, Irene um pouco envergonhada por estar a rir-se eVictor deliciado com a sua própria perversidade. Nem quis imaginaraquilo que faria com o desconhecido! Por vezes adoptava outro tom,mais vago, com um fundo de amargura ao qual Irene era muitosensível, mas que não lhe suscitava qualquer reacção.Considerava-o um desabafo sem qualquer importância, uma válvulapara aliviar a pressão de estar casado com ela.

A casa e as causas, desabafava Victor enquanto discutiam osplanos que, sob a sua rigorosa supervisão, lhes tinham desenhado.Era uma casa pouco ortodoxa, não uma única estrutura mas doisedifícios colocados lado a lado, de frente para o mar, ligados por umtúnel. Um dos edifícios seria funcional e o outro seria a casa deles.Ambos teriam as mesmas dimensões e os mesmo dois andares.Cada um teria além disso uma cave, unida pelo já referido túnel àsua congénere. Diante deles haveria um labirinto, que desembocarianuma falésia, como num sonho que Irene tivera, errando descalçapela terra húmida e sob uma chuva crescente, que lhe ensopava aroupa de tal modo que a obrigava a libertar-se dela, incapaz de darmais um passo sob essa carga, libertando-se do casaco primeiro eem seguida da camisola de lã, ao peso da qual esteve em risco desucumbir, acabando por conseguir deixá-la para trás eapercebendo-se pela primeira vez de que está num labirinto, do qual

procura então sair, a terra transformada em lama sob os seus pés, achuva cada vez mais forte, e Irene procurava correr, virava àesquerda como deve fazer-se nos labirintos, mas não encontravacentro algum, desesperava mas prosseguia, guiando-se pelo rugidodo mar, avistando por fim uma saída, pela qual soprava uma terrívelventania, o que não a impedia de atravessá-la e encontrar-se entãonuma falésia, defronte da placidez negra do mar, sentindo-se livre,não só do labirinto, mas de tudo, cheia de felicidade. Sorria quandolho contou, de barriga para cima na cama, a nuca aninhada entre obraço dele e a almofada, preenchida por uma espécie de graça quecontagiou Victor. Tinham visto um terreno junto a uma falésia nessatarde. Ambos encararam o sonho dela como um bom presságio.Iniciou-se um processo de aquisição. E no princípio, encantado,Victor concordou com tudo. Mais tarde reconsiderou. Insistiu paraque o labirinto fosse mais distante da falésia. Inquietava-o a saúdemental da mulher. Temia que a libertação com que ela sonharapudesse confundir-se com a morte. Também o psiquiatra que elacomeçara a consultar fazia essa associação, desaconselhando-a deadquirir aquele terreno com o intuito de o habitar. Apontava o ruídoconstante do mar e o silvo do vento como factores a evitar comparticular obstinação. Irene não compreendia aquilo que diziam.Poderiam acreditar que pretendia suicidar-se? Que pudesse pensarem lançar-se da falésia? Que disparate, pensava desalentada. Domédico não esperava nada. Mas que Victor o acreditasseentristecia-a, algo que acabava sempre por enfurecê-la. Discutia porisso com maior ardor, opondo-se com temível intransigência aqualquer alteração. O desconhecimento que o marido demonstravaacerca das suas intenções levara-a a sentir um profundo rancor, umpouco como se ele a tivesse enganado de todas as vezes que lhe

dissera que a compreendia. Ripostava com veemência, ofendida.Por vezes interrogava-se sobre o modo como certos dos seus actospoderiam ter sido interpretados. Começou a cismar nisso, tornando-se taciturna e fria. Victor não a desmentiu, o que apenas piorou asituação.

Irene passou a interpretar o seu sonho como uma libertação detudo aquilo que a prendia e lhe pesava, incluindo o marido. Agiu emconformidade e assim, como que por capricho, cortou os laços queos prendiam, exigindo o divórcio. Não lhe deu sequer oportunidadede tentar explicar-se, mas apesar disso acabou por resignar-se eassinou os papéis. Vendeu a sua parte do terreno a Victor e voltoupara casa dos pais, fugindo apenas com o essencial, escapandocom engenho à morte em terra estranha. Do ex-marido não soubemais nada. Nem sequer tentou procurar saber através de amigoscomuns. Era como se nunca se tivessem conhecido, algo que nãolhe parecia estranho e que apenas viria a intrigá-la anos mais tarde.Não era bem que a intrigasse o destino dele em particular, masantes o destino geral de todos os seus amantes. Por vezesimaginava-os a todos como rochas no espaço profundo, negro e frio,rodopiando sobre si próprias e colidindo com outras que executam omesmo movimento, marcando-se umas nas outras e afastando-seem seguida, rodopiando, para não mais voltarem a encontrar-se. Equando Victor já era apenas um nome, uma memória doce eamarga, um telefonema de um hospital informou-a de que elesolicitava a sua presença. Ficou surpreendida, mas teve sangue-friosuficiente para tomar nota dos dados antes de desligar. Mais tarde otelefone tocou de novo. Uma rapariga com sotaque inglês, navariante norte-americana, apresentou-se como Clara, filha de Victor.Lamentava incomodá-la. Explicou-lhe que o pai tivera um acidente,

mencionando o estado comatoso em que estava. Procurando serdelicada, explicou também que o seu contacto era o único que o paitinha na sua ficha daquele hospital. E como que para se justificaracrescentou que a mesma era antiga. Não se alargou empormenores e não a convidou a visitá-lo. Mas isso para Irene já nãoimportava, pois, de súbito, o seu primeiro marido tinha-lhe sidodevolvido e ela não deixaria de ir em seu auxílio. Via-o como elefora e fez de imediato a viagem, animada por essa aparição.

No entanto, ao chegar, espantou-a o desconhecido deitado nacama do hospital. Quanto à rapariga, da qual já não se lembrava,não a acolheu com gosto, mas revelou-se menos difícil do queparecia. A pouco e pouco foi sabendo da América, da viuvez deVictor, da casa na falésia, onde Clara agora vivia sozinha.Incomodou-a que tivesse acabado por ser construída. Imaginoucomo seria, mas não perguntou nada. Mas dessa primeira vez,quando se apresentaram e, após alguma resistência, a rapariga adeixou sozinha no quarto, olhou para o seu ex-marido semconseguir reconhecê-lo. Acabou por conseguir recuperá-lo, aquiloque ainda sobrava dele, no decorrer das visitas seguintes, mas, porvezes, ao pensar em Victor, dava por si a pensar também nodesconhecido, outro que ela se empenharia em fazer regressar àsua família, àquilo que dela restasse, a não deixar que se dissipassea sua memória.

Clara

PASSEIA PELO HOSPITAL, de mãos nos bolsos das calças largas do fato.Não se intromete e poucas vezes lhe barram a passagem.

Já deu por si em corredores pouco usados do hospital, ondefuncionários fardados se espantam com a sua presença mas nadafazem para a esclarecer. Talvez estejam convencidos de que temuma autorização para circular. Se não a tivesse, como teria chegadoaté ali?

A maneira formal como se veste deve conferir-lhe tambémalguma autenticidade, apesar de não ter identificação visível. Osfuncionários dão os bons-dias, parecendo algo confusos, e seguemcaminho. Raramente vê as suas fardas nas áreas públicas econcluiu por isso que deve encontrar-se numa área restrita dohospital, onde não há doentes ou familiares, enfermeiras ouseguranças, onde as paredes não são brancas mas cinzentas e ochão não é alcatifado. Agrada-lhe essa ausência de artifício, deconsolo.

Por vezes senta-se nalgum canto abandonado a fitar astubagens que serpenteiam pelas paredes, distraindo-se do tempoque passa e regressando ao quarto para encontrar o pai sozinho,sem sinais da sua primeira mulher. Por vezes a sua forma estáainda impressa no assento do cadeirão e prefere ficar de pé. O pai

jaz de olhos fechados, entubado. Cada uma das máquinas que orodeiam afirma que ainda vive, e ela respira fundo, resignada aesperar mais tempo para que ele morra. Teme que a espera sejalonga e que Irene insista em esperar com ela.

Tentou aliciá-la para que se lhe juntasse nesse interesse ridículopelo desconhecido da praia, do qual mais ninguém se lembrava epelo qual Clara nunca se interessou. Quando a mulher lheperguntou se não via nele qualquer mistério, respondeu que viaapenas um problema que não lhe dizia respeito, de forma seca.Irene pareceu aliviada pela recusa, agindo como se a desejasse,sorrindo cortês e mudando de assunto. Corpos que apareciam edemoravam a ser identificados eram comuns para ela, habituada aogrande estado do Texas e ao seu vizinho mexicano, embora nuncativesse visto um cadáver ao vivo antes de vir para a Europa.

As piores vezes são aquelas em que a encontra e insiste emfazer-lhe perguntas. Só se vai embora quando está satisfeita com aresposta. Foi assim que lhe contou do Texas e da Europa, dobasquetebol, da casa, da morte da mãe, do acidente do pai. Nãoadmitiria, mas soube-lhe bem falar de tudo isso, e na realidade nãorevelou nada que ela não pudesse averiguar sozinha.

Daquilo que se passava em casa não falou, nem sequer daprópria casa, embora pudesse perceber que era um assunto que lheinteressava. A casa, ou o gineceu, como a mãe passou a chamar-lhe de forma irónica, dispunha-se como uma ferradura diante dopenhasco, um edifício de um andar, alongado e curvo, com umespaço relvado no interior, os vinte e seis metros do campo debasquetebol ocupando o centro, vegetação baixa a toda a altura, àespera do filho que nunca chegou para concretizar o destino que amãe planeara para si própria, chegando ao invés Clara, pela qual

ninguém esperara. A mãe olhava para ela como se se tivesseesvaído em vão, incapaz de compreender que piada cruel era essaque faziam às suas custas. O pai não se esquecera ainda domundo, como faria depois da morte da mãe, e tomou conta darapariga, de longe e com frieza, como se apenas pretendessemantê-la viva e não lhe dedicasse qualquer afecto.

Quando a mãe morreu, o pai recolheu aos túneis, a limpar asarmas na sua colecção e a ouvir as suas comédias musicais,subindo apenas para as refeições e para praticar a sua destrezacom o gatilho, um omnipresente odor a whisky acompanhando assuas aparições. Apesar disso disparava bem. Certa vez abateuaquilo que parecia um falcão. Mas não se envolve em nada que serefira à casa. Deixou também de trabalhar. Vivem dos rendimentos.Foi ela quem tomou a iniciativa de mandar desmontar as tabelas,sob o pretexto de que estavam a enferrujar e podiam tornar-seperigosas. O pai, sentado num velho e manchado sofá amarelo,oleava uma carabina que tinha pousada sobre as pernas. Tinha ospés juntos sobre o sofá, as pernas abertas, a espingarda pousadasobre os joelhos ossudos. Estava nu da cintura para baixo. Deixaracrescer um bigode que o tornava sinistro.

Pediu-lhe opinião sobre as tabelas. Pergunta à tua mãe, disse opai, sem sequer levantar os olhos da tarefa que o ocupava. E depoisdisso ela não voltou a pedir-lhe opinião para nada, deixando dedescer as escadas para ir ter com ele, supervisionando as obras nacasa e administrando o dinheiro. Ficara parada no círculo central docampo enquanto os homens começavam a retirá-las. Nessa alturaainda fumava e parara para ver enquanto as desmontavam, semsair do círculo, segurando um cigarro na mão enluvada, o capuz acobrir-lhe o cabelo louro, um dia de orvalho e nevoeiro, o campo

molhado da chuva que caíra na noite anterior e que formara poçasde água, numa das quais se reflectia a tabela que estava aindaintacta, essa que ficava mais próxima da falésia e junto à qualencontrara o corpo da mãe. Os arbustos por trás da linha finalagitavam-se, os seus contornos esbatidos pelo nevoeiro que seerguia, maciço. Clara voltava para casa de madrugada, ainda umpouco drogada, com sono, e a princípio achou que alucinava. Ficouimóvel. O campo molhado devolvia um reflexo tétrico e fragmentado,apenas o poste e parte da tabela, intactos o aro e o cesto. O corpoestava também reflectido, uma forma negra e pesada, na qualconseguiu, a pouco e pouco, reconhecer a mãe. Despertou do seutranse e, em desequilíbrio, correu até junto dela. Os sapatos altosfaziam-na tropeçar e chegou mesmo a cair, o joelho raspando nochão, o collant rasgado e a pele esfolada. Descalçou-se antes depercorrer a distância que faltava. Ajoelhou-se trémula junto da mãe.Não parecia ferida. Tinha uma saia vestida, coisa rara. Erguia-se,soprada pelo vento, revelando-lhe as pernas bem torneadas deatleta. Abanou-a, e depois novamente, com mais força. Correu atécasa, as meias ensopadas pesando-lhe. Tocou à campainha eesmurrou a porta. Chamou pelo pai, aos gritos, até que eleapareceu, desgrenhado e vermelho, os olhos semicerrados. Seguiu-a, de pijama e pantufas, os braços cruzados sobre o peito, as mãosfriccionando os braços, procurando mantê-los quentes. Ficou paradonessa posição durante muito tempo diante do corpo da mulher, semreagir aos gritos da filha, agindo como se não os ouvisse.

Por fim ajoelhou-se e colocou dois dedos no pescoço da mulher,procurando-lhe a pulsação. Olhou para a filha. Dá-me o teu telefone,disse. Teve de repetir várias vezes antes que Clara se lembrasse de

que tinha um telemóvel. Estava no bolso do casaco que não selembrava que tinha vestido. Sentia-se nua. O vento frio fustigava-a.

O pai ligou para as emergências e devolveu-lhe o telefone.Ordenou-lhe que fosse a casa buscar alguma coisa com que tapar amãe e ela voltou com uma manta, a qual não cobria o cadáver porinteiro. Para o prender usaram os sapatos dela como pesos, masnão funcionou. Tiveram então de ser eles próprios a segurar namanta, pisando-a, um de cada lado, até que chegasse aambulância, na qual foi levado o corpo da mãe. Ficaram a vê-laafastar-se, o pai a tremer, tapando-se com a manta, e a filhasoluçando, sempre prestes a quebrar mas sem quebrar de facto.Quando a viatura desapareceu da sua vista, o pai olhou para ela, osolhos muito abertos, como se a visse pela primeira vez, suspirou,nada mais restando que fazer, as costas encurvando-se-lhe a cadapasso, a filha seguindo-o à distância, vendo-o entrar em casa sujeitoa esse tremendo peso que parecera ter-lhe vindo pousar sobre osombros e o forçava a curvar-se, curvando-se ainda mais para abrir aporta da cave, a qual fechou à chave atrás de si, não voltando aaparecer diante da filha senão três dias depois, de barba por fazer eolhos injectados de sangue, fitando-a como se regressasse de umalonga ausência, da qual, na verdade, nunca voltou.

De um único golpe Clara ficou sozinha, realmente só, e nãoapenas de forma tácita como até aí. A mãe, soube-o depois,envenenara-se. Tinha cancro nos ovários. Primeiro uma filha edepois a doença, que a impedia de voltar a dar à luz. Vestiu-se demodo formal, saiu de casa antes de raiar o sol. Não deixou qualquerexplicação, nenhum bilhete. Tomou barbitúricos, que não costumavatomar e que teria adquirido de propósito. Um frasco vazio foiencontrado por um polícia ruivo, que procurou reconstituir para ela

os últimos movimentos da mãe. Teria tomado os comprimidos juntoà falésia, bem afastada da casa e depois, à medida que se iasentindo mais sonolenta, caminhou até ao campo, onde terá parado,acabando por deitar-se diante do círculo dos lances livres, nosquais, segundo se dizia, era exímia. O ruivo disse que era possívelque tivesse morrido de hipotermia, talvez acreditando que isso seriaum consolo para Clara. A mãe adormecera no campo que mandaraconstruir para treinar e para o filho que teria, do qual faria um atletade elite, um sonho sonhado no próprio símbolo da suaimpossibilidade e do qual já não acordaria.

Sendo uma mulher obstinada, procurara ainda assim encontrarna rapariga alguma coisa que fosse aproveitável. Mas depressacompreendeu que a concretização do seu plano se adiara, e portempo indefinido. O marido não parecia interessado em ter maisfilhos. Afogava-se em trabalho. Começara a coleccionar armas,como se sentisse falta do Texas. A proximidade do mar pareciaafectá-lo e evitava estar em casa. A mulher suspeitava que tinhaamantes. Ele garantia que não, estava apenas a custar-lhe adaptar-se. Passei muitos anos fora, dizia. E a seguir dizia sempre que aculpa era também da casa, demasiado longa. Não reclamou dostúneis, nem da mulher ou da filha, ou sequer da terrível ferida entreambas, pois Clara acreditava que o seu nascimento, de algummodo, destruíra a vida da mãe. Recriminava-se por isso, emborasoubesse que estava fora das suas mãos. Procurava compensá-la,mas não tinha nada com que pudesse apaziguá-la. O pai sabiacomo isso a consumia, mas não intercedia por ela. Viviam nessereino turvo das meias-palavras e comunicavam por isso com grandedificuldade, todos eles incapazes de dizer a verdade.

Quando chegava ao quarto e não havia qualquer sinal de Irene,sentava-se no cadeirão, a olhar para o pai, em silêncio. Cansando-se de fitá-lo, olhava para os monitores. Não fazia qualquer esforçopara despertá-lo, embora o médico a incentivasse a fazê-lo.Permanecia calada, por vezes lia, embora não o fizesse em voz alta,como aconselhavam as enfermeiras, dando-lhe o exemplo de Irene,a quem louvavam a determinação, dando a entender umarecriminação que lhe era dirigida. Não lhes ligava, masdesagradava-lhe a maneira como a olhavam. Por isso começara avaguear pelo hospital, evitando o exterior, onde era permitido fumar,algo que deixara de fazer há muito pouco tempo. Fugia à recaída,desintoxicava-se, alimentava-se de batidos que preparava em casae levava consigo para todo o lado, fazia exercício, correndo demanhã, antes de ir para o hospital. Começara há uma semana, paracombater a impaciência que a mantinha incapaz de dormir. A esperaangustiava-a, tornava-a ansiosa. O exercício cansava-a, aliviandoum pouco da tensão que acumulava. Por enquanto não corriagrandes distâncias, mas ambicionava chegar até à fábricaabandonada, uns bons quilómetros para sul. Sabia que tentaria atéconseguir. Reconhecia a mãe nessa obstinação. Para ser justa,reconhecia também o pai. Por vezes sentia que não havia nela nadade novo, ou melhor, nada de seu, que se compunha apenas departes dos pais, uma ideia que a horrorizava.

Mas há outras ideias que a consolam, e às quais se agarra. Umadelas é essa de que o pai vai morrer. Tudo será dela. Venderá acasa, claro. Isso será a primeira coisa da qual se vai desfazer. Nãomais viverá no gineceu, essa cruel alcunha que a mãe pôs à casa,cheia da amarga ironia que a envenenou contra a filha. Nem voltaráa descer à cave, a nenhuma das caves preparadas como abrigos

antinucleares, dispostas em sucessão sob a casa, ligadas pelostúneis nos quais o pai vagueava durante a noite, pensando. Talvezpensasse na mulher. Chegava-lhe saber que não era nela quepensava.

Tudo morrera com a mãe, uma ironia apropriada, pois tudonascera também dela. Fora ela quem escolhera o pai, quem tomaraa iniciativa com esse homem mais velho que ela. Terem filhos foiideia sua e essa outra de abandonarem o Texas também a tiveraela. Quando soube do terreno, pressionou o marido para aíconstruírem uma casa, ainda que ele lhe tivesse contado dopropósito inicial, dos planos de Irene. Não quis saber. Começava jáa ter os seus próprios planos. Soube sempre que nunca seria umagrande basquetebolista, não apenas por ser mulher, e decidira adiara consagração para a geração seguinte, para o mirífico rapaz quedela nasceria. Tinha a convicção de que o seu primeiro filho seria dosexo masculino. Não a partilhou com o marido e tão-pouco lhe faloudo seu plano. Quando mencionou o campo de basquetebol, fez comque parecesse um capricho de antiga praticante. De passagemdisse que talvez os filhos quisessem aprender com ela, embora narealidade não pretendesse ter mais do que um, o qual bastaria. Equando o marido referiu a ideia do túnel, de imediato lhe ocorreuque poderiam ter um ginásio subterrâneo, onde se exercitaria oprodígio prometido, sempre adiado, como Clara dizia para si,pensando naquele cujo lugar ocupara no mundo, ao qual ainda seagarram com insuspeita tenacidade os dedos inertes do pai,secundado pelas máquinas às quais está ligado e que emitem, aintervalos regulares, sinais de encorajamento que só servem para adesencorajar, que accionam o velho mecanismo da ansiedade, a luzao fundo do túnel que demora a anunciar-se. Suspeita que essa

ansiedade é talvez a única coisa a que pode chamar sua. Chegou aafeiçoar-se-lhe, de modo cauteloso, como por vezes age comalguns dos homens que a cortejam, esses que lhe despertamsuspeitas e para os quais, não obstante, se sente mais atraída.

Descalça os sapatos e aninha-se no cadeirão, as pernasdobradas e os pés sob o corpo. Continua a chover. Entra umaenfermeira, que a cumprimenta com um aceno da cabeça. Tira atemperatura ao doente, tomando em seguida nota da mesma. Fixaos indicadores das máquinas, anotando os valores de umas eignorando outras, obedecendo a um ritual que Clara já observoumuitas vezes mas não chegou ainda a compreender. Num dia umasmáquinas parecem ser mais importantes e, no seguinte, são asoutras que se observa com maiores escrúpulos. Na verdade, o únicoaspecto ritual parece ser o tomar da temperatura, o qual talvezcondicione a posterior observação dos resultados. Clara observa aenfermeira. Não a anima qualquer fogo de curiosidade. Pensa narazão para o seu comportamento como poderia pensar na razãopara que continue ainda a chover, ambas sem real interesse paraela.

Desce à cafetaria, com janelas altas e finas, pelas quais a luz dodia se esgueira, fraca. Senta-se a beber um café. Trouxe um livroconsigo, para dissuadir quem queira meter conversa com ela. É umacolectânea de contos de um escritor italiano, traduzido para inglês,uma colecção angustiante de histórias. Aquela que começa a ler àmesa da cafetaria conta a história de um homem, chamadoGiovanni Corte, que dá entrada num hospital para ser tratado a umcaso pouco preocupante de uma doença não nomeada. Colocam-nonum quarto no sétimo andar, garantindo-lhe que em breve estará emcasa. Circulam entre os doentes rumores de que os andares mais

baixos são reservados para os casos mais graves e que no últimode todos se encontram apenas os moribundos, esses para os quaisjá não há esperança. Certo dia pedem-lhe que ceda o seu quarto aoutro doente, uma mulher que se vê forçada a levar para o hospitalas suas duas crianças, necessitando por isso de mais espaço. Éapenas temporário, prometem-lhe, embora não o informem deimediato que o seu novo quarto será no sexto andar. À medida quea sua estada se prolonga vê-se obrigado a mudar mais do que umavez de quarto, suportando delicados pedidos por parte do pessoalmédico ou sujeitando-se a caprichosos imprevistos, sempre com apromessa nunca cumprida da brevidade e de todas as vezes paraum andar inferior, numa imparável descida para a morte. Aoterminar sente-se a sufocar. Pousa o livro sobre a mesa. Vê ashoras no telemóvel. Em breve se encerrará mais um dia de espera.Irá para casa, onde também sufocará, na expectativa de que o diaseguinte possa ser o último dessa longa espera, uma angústia que oescritor soube captar de uma forma muito eficaz. Tem alguma penaque o hospital onde se encontra não adopte o mesmo modelo, que opai não seja mudado de quarto à medida que piora e que isso lheindique se a espera se encontra ou não perto do fim.

Sobe ao quinto andar pelas escadas, para escoar mais algunsminutos. Percorre o corredor com vagar e, ao entrar no quarto,encontra uma enfermeira junto à cama do pai. As máquinas emitemo seu monótono zumbido. A mulher olha para ela, sorrindo. Deimediato sente que os olhos se lhe enchem de água. Lágrimasescorrem-lhe pelo rosto. A enfermeira aproxima-se dela. Abraça-a,procurando consolá-la, sem desconfiar que chora apenas por estarcansada de esperar.

A VEZ DO ESCRITOR

E SE, ESCREVEU ELE, alguém tivesse visto o homem deitado na praia,talvez uma mulher que more num andar alto, ocupada com a suavida e reparando sem reparar, saindo e fechando a porta da varandaonde fora apenas aproveitar a moderna solidão daqueles quefumam, voltando para a mesa onde tem família e amigos, viu ohomem na praia mas não pensou mais nele, a casa silencia-se, saiantes de dormir para passear os cães, dois caniches rancorososque se odeiam, embora só pareçam demonstrá-lo quando estão ostrês a sós, ninguém convence a filha, o marido finge que os bichosnão existem, começam a rosnar ainda no elevador, se vira àesquerda é o mar e há sempre gente, vira à direita, um adianta-se eo outro só vai arrastado, o primeiro pára logo para mijar, o segundoestá deitado e começa a impacientar-se, põe-lhe o pé em cima,recomenda-se que o animal seja adestrado, há quem advogue que,em casos semelhantes, se pegue o animal perturbado ao colo, masela preferia morrer a ter de segurar naquele pedacinho de merda, amiúda que lhes pegue, não são dela?, não é isso que diz quando elalhe sugere que talvez seja altura de se livrarem deles?, levantando-se, empertigada, tão parecida com ela naquela idade, uma ironia e

um vago orgulho por ter engendrado uma preguiçosa como ela, queengendrará outra semelhante, a sua é uma genealogia de filhasúnicas, criaturas mimadas que nunca falham um bom casamento,um emprego seguro num canto esconso do edifício do estado, umcorpo miúdo, um envelhecimento plácido, lento e misericordioso, einvariavelmente uma vida de fel, disparado sobre quem quer quelhes atravesse o caminho, teve de aprender a doseá-lo para seproteger de si própria, por exemplo não correndo atrás da filha epuxando-a pelos cabelos, como lhe apetecia, arrastá-la pelocorredor, a gritar e a espernear, obrigá-la a sentar-se direita e aouvi-la, duas bofetadas que a põem a chorar, agachar-se paraagarrar um dos bichos, segurá-lo no chão enquanto ladra,impotente, descalçar um sapato, um daqueles com salto demadeira, esmagar a cabeça do cão e não a da miúda, obrigá-laantes a aprender, de certeza que lhe seria útil, mas não se levantado sofá, resigna-se, vai lá fora fumar um cigarro, começa-lhe aapetecer fumar, passa um casal, o rapaz vai a fumar, pede-lhe umcigarro, a rapariga fica parada, a olhar para o pé dela sobre o dorsodo cão, submetendo-o, a olhar indignada para o rosto dela, o rapazpassou-lhe o cigarro e viu por fim o cão, o pé sobre o cão, o que éque está a fazer?, ela levanta a mão, para o advertir, ele repete apergunta, ela diz que não tem de falar com ele, que cresce para ela,como se isso a intimidasse, que divertido!, diz para ela tirar o pé decima do cão, ela responde, de cigarro em riste, o cão é meu!, eleinsiste, ela cansa-se daquilo e diz o meu marido é da secreta,descobre o teu nome e faz com que te capem!, a rapariga agarra-lheo braço, deixa estar, marco, vamos embora, e puxa-o, descem a ruae deixam-na em paz, o cão já acabou de mijar, ela fica com umcigarro mas sem lume, tira o pé de cima do outro, o qual se assanha

logo contra o seu igual, incapaz de se erguer contra ela, puxaambas as trelas, para lhes mostrar quem manda, arrasta-os de voltapara casa e vai para a cama sem fumar, o marido ressona no outroquarto, adormece, acorda à hora do costume, despacha tudo e sai acorrer, fuma à porta do trabalho junto a alguns colegas quecomentam o corpo que encontraram na praia, ela não diz nada, nãose lembra do homem que viu deitado no areal, lembra-se bem dacara de parvo do rapaz quando lhe disse que mandava capá-lo, àhora de almoço vê as notícias na televisão, reconhece o areal elembra-se por fim do homem que viu, dá por si a pensar se estariavivo ou morto quando o viu, e esse pensamento abre uma fenda poronde a mulher se some, sem que saibamos o que foi feito dela, nãoimporta o seu destino ao escritor, que se levanta e dá uns passospela sala, acende um cigarro, as janelas estão abertas em par, nãose aproxima demasiado delas, as ruas estão silenciosas, a cidadedorme e ele é o único ainda a pé, fica parado diante da janelaaberta, a sentir o vento frio no rosto, volta a sentar-se e escreve oseguinte, um rapaz, órfão de pai, enfia na cabeça que o homem dapraia é o seu pai, que voltou dos mortos mas acabou assassinado,como o lázaro do filme que viu na noite da passagem de ano, a mãejá a dormir, a última tentação de cristo, não viu o princípio eadormeceu antes do fim, só viu aquilo que aconteceu a lázaro, aquem cristo chamou à porta da caverna onde o tinham sepultado,ordenando-lhe que se erguesse, a pedra que barrava a entrada aser removida, o fedor a decomposição que se escapa da caverna eameaça sufocar todos, só jesus permanece diante da entrada, achamar pelo defunto, pelo redivivo, que se ergue e caminha para oexterior, cego pela claridade, aclamado e olhado de esguelha comonenhum homem antes dele, cristo abraça-o, ampara-o, quando

voltamos a vê-lo está sentado diante da sua casa, a ver o pôr-do-sol, parece manso como um cordeiro, vê os homens aproximando-se da casa, tudo no mundo voltou a ser novo para ele, aindaespantado por voltar a respirar, desabituado da ideia de propósito,não vê qualquer ameaça naqueles que se aproximam, só vê alâmina desembainhada quando é tarde de mais, morre umasegunda vez, que decepção terrível!, adormeceu pouco depoisdisso, mas foi a primeira coisa de que se lembrou ao acordar, ameio da madrugada do primeiro dia do ano, depois o desconhecidoapareceu na praia, acompanhara a mãe ao cemitério dois diasantes, tinham-se sentado num banquinho, a mãe contara-lhe maisuma vez a história do acidente que vitimara o pai, continuava a nãofazer muito sentido, mas absteve-se de fazer perguntas, sabia quenão havia mais nada que a mãe lhe pudesse dizer, mesmo quequisesse, podia ser um interrogador implacável, fora-o com ela,espremera-a até que ela chorasse e admitisse que não lhe estava aesconder nada, dessa vez ficaram sentados a olhar para osciprestes, a mãe trauteando baixinho, enlaçando os dedos uns nosoutros, o rapaz em silêncio, a olhar para as campas, a alimentaresperanças num reaparecimento do pai, quem é que podia morrernum acidente tão estúpido?, então apareceu o homem na praia, demadrugada, em janeiro, e aquilo que se equilibrava de formaprecária agitou-se, o rapaz associou as duas coisas, a sua fantasiae esta coincidência, não disse nada à mãe, não partilhou estasteorias com ninguém, descobriu na sua cabeça uma porta que nãosabia que existia, como a porta no chão daquele filme, aquele quefizera a mãe chorar, e a ele o deixara com uma erecção, queprocurou disfarçar, quando kim basinger se despiu, a mãe nunca lhedisse por que razão chorara, ele não insistiu muito, sentia-se

impuro, como se a sua carne fosse uma afronta às lágrimas da mãe,foi a sua fase católica, não durou, pensou que esta expediçãotambém seria breve, que não havia muito para ver do lado de ládessa porta, mas tudo adquiriu estranhas ligações entre si, fantasiae realidade fundiram-se numa única entidade, chamava-lhe averdade, deitado na cama lia uma e outra vez tudo aquilo que seescrevera nos jornais, erguendo pontes entre locais demasiadodíspares, avançando razões para que tanto se obstinassem emsepará-lo do pai, por vezes sonhava que era porque juntos eramperigosos, era por isso que os mantinham afastados, para issoestavam dispostos a matar, quem seria afinal essa gente?, masdesinteressando-se da resposta o escritor levantou-se de novo,precisava de desentorpecer as pernas de tempos a tempos,escrevia à mão e ergueu-se com a caneta em riste, ficou a olharpara ela, como se perguntasse por que razão o perseguia, há tantotempo e de forma tão tenaz, questionando a sua utilidade, pô-la nobolso do roupão, acendeu um cigarro e foi até à outra ponta dacasa, onde estava escuro, sentou-se à mesa da cozinha, a deixarcair a cinza para a mão, apagou o cigarro no lava-louças, lavoudepois a mão, limpando-a às calças enquanto regressava aoescritório, atravessando o corredor com passos pesados, ocorreu-lhe uma expressão, a santidade do trabalho, riu-se, procurou acaneta e voltou a sentar-se para escrever que na sua cidade já nãose procurava o conforto da fé, já não se buscava aconselhamento,de certo modo o padre tornara-se obsoleto, sabia-o ele e sabiam-notambém aqueles que ainda se preocupavam em procurá-lo, tantocomo aqueles que o ignoravam, tirando alguns exaltados ninguémfalava do assunto, e o padre era assim livre para ruminar naquiloque lhe interessasse, oficiando as necessárias vezes por dia,

distraindo-se com outras coisas no resto do tempo, muito cedodeduzira por si só da inexistência de deus, convenceu-se de quetrabalhava apenas para uma empresa, com roupagens diferentesmas ainda assim um negócio, e tudo isto antes de ter lido o curameslier, com intuitos didácticos, não se reviu na sua revolta,ninguém lhe pedia que fingisse acreditar em algo que lhe eraestranho, só se lhe pedia que fizesse o seu trabalho e, em troca,ofereciam-lhe ocupação vitalícia, podia ter arranjado outro sustento,não era nenhum tolo, se alguém lhe perguntasse diria que aquiloque perdeu o irado cura foi o seu lado acomodatício, é um lado quepartilha com ele, com menos angústia, sabe apreciar as vantagensdesse estilo de vida, e rege-se pelo seu próprio credo, movendo-secomo sob uma máscara, mas ainda fala com deus, sente-o comouma obrigação contratual, o que não o impede de retirar confortodisso, gosta de o fazer ajoelhado, como manda a tradição e lheensinaram no seminário, louvavam-lhe a postura digna, sempre foibom a fingir, também finge no púlpito, procurando aí passar apenasmensagens de esperança, uma chama de amor pelo próximo que,apesar de tudo, sente ser seu dever preservar, soube do cadáverpor intermédio do representante de um grupo que pretendia fazerbandeira do rosto do desconhecido, a sua filosofia e os seusmétodos eram nebulosos, o padre não se importou de rezar a missaque lhe pediam, embolsou o dinheiro, não via semelhanteorganização registada no fisco, fê-lo com o corpo ausente,demorados recursos quase conseguiram levá-lo a estar presente naigreja, o último dos tribunais deu razão à câmara e o desconhecidoficou onde estava, adorado à distância por um punhado dos seusfiéis, achariam de facto que o messias seria esse homem de fatobem escovado e pernas de bailarino?, lera isso no jornal e achara

um dado curioso para se imprimir, de qualquer modo os fiéisapresentavam-se vestidos como o seu profeta, casaco cinzento ecastanho, calças castanhas, pulôver de malha, camisa branca egravata vermelha com riscas azuis, bem barbeados, nas lapelas doscasacos traziam pins com a sua insígnia, o rosto do desconhecidonuma reprodução stencilizada, num preto e branco minimal, nãofalavam muito e o que diziam era aos cochichos, agindo como se napresença do cadáver, com respeito, saudavam-se com um aceno dacabeça sem se tocarem, tratavam-se por irmão, intitulavam-seirmandade do desconhecido espírito, e se não lhes importava aausência do cadáver era porque parecia sustentá-los uma crençaverdadeira, dessas que relevam os problemas e se alimentam de sipróprias, uniam-se ao desconhecido em espírito e não tinhamnecessidade de estar na presença do seu corpo, teve vontade de serir deles mas fez o serviço com seriedade, depois bebeu um copo àsaúde da irmandade, dormiu descansado e sonhou com odesconhecido, disse-lhe o seu nome, o que faz com que o escritorhesite, pousa a caneta, levanta-se para ir à cozinha, desta vezacende a luz, liga a cafeteira eléctrica e abre o armário onde está ochá, também o café, tira uma lata e outra, à procura da lúcia-lima,está ao fundo, ao lado do copo azul de plástico que não se lembravade ter guardado ali, fica parado a olhar para o copo, a mão pousadana lata onde guarda as ervas, a tinta gasta da tampa, a passagemdo tempo, o irrecuperável e o desgaste constante, entorpece, sente-se a bordo de um comboio que atravessasse uma noite terrível,demorada e insone, a cafeteira dispara, despertando-o, arranja ochá e quando recomeça escreve que o acto de desaparecer é umdos mais arriscados, assim o pensava ao pequeno-almoço umilusionista, hospedado junto à estação, de cabelo branco e ralo,

penteado para trás, o telemóvel pousado sobre a mesa vibrou,inclinou-se para ver quem era mas deixou-o tocar, aproveitava-se dagreve dos ferroviários para desaparecer, reapareceria em glóriaquando lhe conviesse, na pior das hipóteses no dia seguinte, namelhor daí a três dias e num clima mais favorável, entretantoarrastava-se o braço de ferro entre o sindicato e o governo, com oqual ele acompanhava mais um croissant, erguendo-se da cadeiraainda a mastigar, sem tirar os olhos da televisão, enquanto osdirectos eram filmados a menos de cem metros do hotel, podia ir láver isto!, ocorreu-lhe enquanto se mantinha junto ao buffet, enfiavaumas coisinhas nos bolsos sem ninguém ver e ia lá espreitar, mas asua dificuldade sempre fora desaparecer, não o contrário, dissoninguém se podia queixar, teve entradas lendárias, com o fogo e asserpentes, ou em 86 no casino, quando surgiu ele próprio emchamas, ostentando um ar horrorizado, conseguia libertar-se docasaco a arder, batia-o com violência contra o chão para extinguir ofogo, erguia-se, desgrenhado, olhava para os espectadores,compunha o cabelo, alisando-o com a palma da mão, pedia-lhesdesculpa pelo incidente e recitava-lhes um poema sumério sobre ofogo, durante a recitação baixava-se para agarrar no casaco, depoisvestia-o e convidava os espectadores a verificarem em que estadose encontrava, passeando-se entre as mesas, e para estupefacçãode todos o tecido parecia não ter sofrido qualquer dano, foi umtriunfo, nunca disse a ninguém como o fizera, esse levava-oconsigo, não que alguém se importasse, agora só o convidam naqualidade de consultor, júri disto, júri daquilo, passa a vida a viajarde borla, sempre de comboio, às vezes tem alguém à sua espera,um cartaz com o seu nome, tantas vezes mal escrito!, e doutrasvezes tem de se desenvencilhar sozinho, perguntando direcções e

nunca se perdendo, não muito pelo menos, ser velho é umavantagem, há sempre alguém que se oferece para ajudar, é por issoque usa a bengala, para isso e para efeitos cénicos, enfim, com osbolsos cheios de pãezinhos e um monte de bacon, enrolado numguardanapo de pano que leva na mão, à vista de todos, decidemesmo sair, ir apanhar ar junto à praia, esquecido do clamor dosferroviários, desapareceria à vista de toda a gente, não demorou aatravessar a cidade, não se deteve, as cidades eram todas iguais,se viste uma já viste todas, dizia para si, a mastigar uma tiraestaladiça de bacon, uma saúde de ferro, em 86, no casino, jáestava nos quarenta, a praia está já ali, o mar ao longe, há pessoasa passear cães no areal, de casacos compridos e cachecóis, osbancos estão todos vazios e ele vai sentar-se num, abre oguardanapo sobre as pernas, tira um pãozinho do bolso, abre-o comos polegares, vai petiscando o miolo, aproxima-se uma raparigacom um cão, entrega-lhe um panfleto, vai-se embora a rir, a falar aotelefone, o cão ainda olha para trás, atraído pelo cheiro do bacon,distrai-se do panfleto, o qual lhe voa das mãos mas fica preso nacalçada, tem um rosto desenhado, ele inclina-se para diante,reconhece o rosto, recua espantado, o panfleto voa, uma ilusão, oescritor deixa cair a caneta, pousa a cabeça sobre o caderno, olhapela janela, pensa no copo azul, que paira no ar diante dos olhosdele, como o graal, pensou em saltar, claro que pensou, quem nãopensaria?, ele saltara daquela janela, estava sentado à secretária,como agora, edgar chegou e anunciou o que ia fazer, ele pegou nachávena de chá, desconfiado da determinação do rapaz, que subiupara o parapeito e saltou, antes que pudesse levantar-se, as mãosdiante do rosto, nem um som, levantou-se e foi espreitar, não era oindizível mas era uma espécie de horror, recuou, voltou a sentar-se,

pousou a cabeça sobre o caderno, como agora, tornou-se um hábitoessa prostração, durante a qual já pensou em saltar, quem nãopensaria?, distraem-no os mortos dos outros, ergue a cabeça epega na caneta, apoia o cotovelo esquerdo na mesa, debruça-sesobre o caderno, escreve, os irmãos tinham uma desavença,nenhum dos dois sabia com exactidão como começara, era já umhábito, não era que não se falassem mas faziam-no sempre comgrande crispação, com impaciência, por vezes discutiam à frente dequem estivesse, já por três vezes fora necessário separá-los,entristeciam-se as esposas de ambos, que se tinham tornadoamigas, não uma dessas amizades ditadas pelo desespero, antesuma autêntica afinidade electiva, falavam ao telefone todos os dias,sem que os maridos soubessem, sem que nenhum delesperguntasse, felizmente nenhum dos casais tem filhos, não sujeitamcrianças a estes tristes eventos, a mulher do mais velho acha queestá tudo relacionado com uma faca, uma história tétrica, umsegredo de família que a do mais novo desconhece, ofende-se, aoutra desvaloriza, ela própria descobriu por acaso, contou-lhe omarido, muito bebido, numa passagem de ano na casa de alguémque não conheciam, amigo de amigos, dormiram no quarto de outrapessoa, estava tão embriagado que não conseguiria conduzir, elaainda não tinha carta, deitaram-se, sobre a cama estava penduradauma espada, decorativa, de súbito o marido apontou para cima,tinha estado a murmurar alguma coisa que ela não acompanhara,pouco satisfeita por ter de passar ali a noite, o gesto súbitosobressaltou-a, não olhou de imediato para cima, ficou a olhar paraele, furiosa, o homem encolheu-se, sorriu desajeitado, voltou aapontar, erguendo o dedo devagarinho, nunca te contei a história dafaca?, e aí ela olhou para cima, viu para onde ele apontava, acho

que não, respondeu, há uma faca, começou ele, uma faca que obisavô, tetravô?, a genealogia confundia-o, uma faca que umantepassado seu oferecera como presente de casamento à suasegunda mulher, usara-a para cortar a garganta da primeira,porquê?, perguntou ela, não se sabe, diz por fim o marido,encolhendo os ombros, de qualquer modo, continua ele, a facatornou-se uma relíquia da família, é guardada pelas mães eentregue ao filho mais velho, que sou eu, mas a minha mãe sempregostou mais do meu irmão, aposto que lha deu, aposto que sim,apoia-o ela, aposta que ganhas!, diz o marido sem sorrir, de olhosmarejados, não demorou a adormecer, a mulher do mais novo estáincrédula, nunca viu essa faca lá em casa, a outra ri, achas que temostrava a faca se nem sequer te contou a história?, é verdade,admite a mais nova, agora só fala do homem que apareceu napraia, diz que aprecia a serenidade da imagem, que lhe parece umamaneira digna de morrer, apeteceu-me esbofeteá-lo!, por causadessa notícia até se fechou no estúdio a pintar, ainda pinta?,interrompe a outra, acrescenta que era bom que o convencesse aexpor, dava-lhes jeito o dinheiro, a mais nova suspira, diz quedesistiu, só já pinta por divertimento privado, entretanto passa osdias enfiado lá em baixo e ela a ter de tratar de tudo, a mulher domais velho pergunta se viu o que ele está a pintar, mostrou-lhe umafotografia, ela não pode ir lá abaixo sem ficar cheia de alergia, e ébom?, pergunta a outra, curiosa, ainda não está acabado mas já ésumptuoso, creio que é uma espécie de alegoria, representa ohomem na praia, mas sem rosto, substituído por uma colagem depedaços de rostos, sem ordem aparente, ao seu lado estão as suasposses, alinhadas, incluindo os seus documentos de identificação,apenas um pouco desfocados, de modo que não se perceba de

imediato que são indecifráveis, a mais velha suspira, o escritorsuspira, passa a mão pelo cabelo, levanta-se de súbito, tropeiacorredor abaixo até à cozinha, abre o armário, derruba pacotes dechá, agarra no copo azul, tudo estremece quando o faz, volta aoescritório num passo incerto, o chão oscila-lhe sob os pés, segura ocopo com ambas as mãos, pensara em correr corredor fora e atiraro copo pela janela, sem pensar, viver sem pensar, que engraçado,ri-se, que ideia tão insólita!, o tremor no soalho diminui, pousa ocopo na secretária, parece irradiar uma energia maligna, os outrosobjectos ressentem-se da sua presença, volta a pegar nele e vaicolocá-lo no parapeito, com sorte voará e poderá guardar o seulivre-arbítrio para outros desafios, senta-se, tira um cigarro do maço,é o último, acende-o, o copo parece brilhar, faz por ignorá-lo, abreuma gaveta, tira outro maço, fecha a gaveta com o joelho, debruça-se sobre o caderno, começa a escrever, uma rapariga, trapaceira eviolenta, foi castigada pelo seu pai a ficar encerrada num barracão,onde dormiria, após a primeira noite veio queixar-se que osmorcegos não a deixavam dormir, pedia permissão para levar apressão de ar, e duas lanternas, acrescentou o irmão mais novo,uma bestazinha morena que dessa vez escapara incólume, o paidisse que podia levar uma lanterna e a espingarda, não discutiu e láforam, o pequenito saltitando satisfeito ao lado da maior, que nasmanhãs seguintes não se queixou e dormiu sempre até tarde, naquarta manhã o pai sentiu-se desconfiado e foi inspeccionar obarracão, o qual usava para guardar excedentes, mercadoria paga,de alta durabilidade, sempre vendável a médio prazo desde queacondicionada nas condições apropriadas, não o fazia, tê-las nobarracão era uma má decisão, estavam separadas da rapariga poruma grade, o que era bom, não confiava nela, embora por vezes

nem ouvisse aquilo que dizia, atento aos seus movimentos, eradada às explosões, mas sem perceber de onde teriam vindo agoraesses morcegos decidiu por fim investigar e, ao ver os buracos notecto, percebeu que o seu rol de más decisões ainda não seencerrara, não havia morcegos, vivos ou mortos, em lado nenhum,também não havia janelas, todas no chão em estilhaços exceptouma, aquela por cima da cama onde dormia a rapariga, aespingarda estava encostada à parede, a lanterna não estava àvista e por baixo da cama estava uma caixa de cartão, tinha pacotesde pilhas para a lanterna, suspeitou da mão da mulher, amaldiçoou-se por tê-la deixado levar a pressão de ar, achou que se deveriaabster de voltar a castigá-la, pareceria ridículo, de qualquer modo amercadoria parecia intacta, a miúda apenas se divertira a dispararpara o tecto com a arma que ele lhe dera, podia queixar-se?, saiudo barracão a chamar pelos filhos, isabel, samuel, apareceram-lhepela mão da mulher, penteados e apresentáveis, meteu-os a todosdentro do carro, tinha um negócio novo do outro lado da colina,turismo de retiro na mata, uma rede de cabanas, todas com jacuzzie televisão, uma piscina comunitária, restaurante, actividades ao arlivre, da última vez que lá tinham estado os quatro não tinha corridomuito bem, ainda havia obras a decorrer, o ruído pusera os miúdosem fuga, deixara a mulher a interrogar o empreiteiro e seguira-os,para que não se afastassem demasiado, ouvia a voz estridente desamuel chamando a irmã, isabel!, isabel!!!, ISABEL!!!, tanto à direitacomo à esquerda, como se corresse de um lado para o outro,clamando com maior impaciência a cada novo ponto de inflexão,avançando aos repelões, sem que ela se preocupasse emresponder-lhe, gritando a plenos pulmões, calando-se de súbito ameio de um grito, desaparecendo à esquerda do pai, que estugou o

passo para o alcançar, veio a encontrá-los aos dois numa clareiraadiante, o rapaz andando para cá e para lá, os pés enfiados nunsgrandes sapatos de homem, tropeçando a cada passo, a raparigaestava sentada no chão a alisar uma folha de jornal, de onde saíramesses sapatos?, foi a isabel que os encontrou, a rapariga funga, acara suja, estavam embrulhados numa folha de jornal, ergue-a, temuma fotografia do desconhecido, és tu!, diz o rapaz, a aproximar-sedele, trôpego, descalça isso e vamos embora, mas és tu!, insiste,não digas disparates, responde o pai com um ligeiro tremor na voz,o escritor fica sem coisas para dizer, olha para o copo, um ordináriorecipiente de plástico mas que o enche de inquietação, oscila umpouquinho com o vento, ganhou um brilho perturbante, que nuncateve quando o rapaz bebia por ele, insistia nisso e lavava-o elepróprio, se necessário, pensaram que lhe passava, não passou,nem o escritor nem a sua mulher se recordavam de onde apareceraaquele copo, sobre isso já ninguém diria nada, o rapaz estavamorto, a mulher fizera as malas e não voltara a telefonar, e ele jánão queria saber de nada, não se interessava por ninguém, masainda sabia escrever, sentava-se então à secretária, para passar otempo, e começava a escrever que não seria de esperar que umadeformação lhe granjeasse quaisquer favores, mas tinha garbo elábia, às quais aliava uma disposição natural para satisfazer osdesejos dos outros, em particular os das mulheres, desejandoprovar-lhes a sua grande valia, e em virtude disso alimentava agorauma família, trabalhando como comercial, com carro próprio,frequentador de hotéis casuais, tudo pago pela empresa, pedefactura em todo o lado e nunca fica a perder, parece que é muitocontrolado, ainda assim alguns não hesitam em levantar suspeitas,falando da intimidade dele com as meninas da contabilidade,

acusações que lhe são ditas na cara, piadas arriscadas, ousadaspor anos de convivência, longe dos ouvidos do patrão, na estranhasolidariedade dos subordinados, acolhe-as com uma espécie deorgulho mesmo sabendo que não são verdade, no trato permaneceexuberante, não se sabendo de quaisquer querelas, parece umhomem feliz, tem uma mulher bonita que o ama, três filhossaudáveis, um rapaz e duas raparigas, o rapazito penteia-se comoele, às vezes até esconde três dos dedos da mão para lhe imitar odefeito, o indicador esticado, o polegar hirto, como uma pistola!, dizele, incentivando-o, por vezes erguem ambos as suas pistolas edisparam, outras vezes o miúdo cansa-se de o imitar e perguntacoisas, como é que ficaste sem os dedos?, doeu?, doeu muito?, asfilhas reviram os olhos, outra vez?, desabafa a menor das duas,aprendeu com a outra a arte de o fazer, exalando ostensivamentecomo se lhe fosse impossível tolerar semelhante estupidez,ameaçando erguer-se mas limitando-se a enterrar o corpo, de formamais tenaz, no sofá que partilha com a irmã, sabendo ambas que éinútil protestar, o pai vai sempre fazer aquilo que lhe pediremprimeiro, o que lhe reclame a atenção mais imediata, os maispequenos primeiro, ama-os e quer que, em relação a ele, todosestejam nos mesmos termos, todos saibam aquilo que queiramsaber sobre ele, sobre quem era antes de ser o pai, aquilo que sefaz pelo primeiro filho não se nega ao segundo, e depois disso nãohá como negá-lo ao terceiro, ainda que isso implique repetir-semuitas vezes, contou-lhe então mais uma vez do acidente em queperdera os dedos, as miúdas suspiram mas não se levantam, estãotodos juntos nisto, a mãe também, sentada em silêncio atrás do pai,a vê-lo manobrar a situação, confia nele e de qualquer modo está deolho na mais velha, a qual costuma ser mais participativa, a escola

nova deixa-a ansiosa, depois do jantar o pai estende-se no sofá comos auscultadores, a família agindo como se na sua ausência, osmiúdos bicando-se, a mulher impondo a disciplina, um teatro da vidadoméstica, fecha os olhos, acorda sozinho na sala, as luzesapagadas, a tv ainda ligada, nela está o rosto de um desconhecido,pairando sobre ele como uma ameaça, bem barbeado, penteado,uma gravata vermelha e azul que lhe inspira genuíno horror, o tecidodo diabo, aqueles olhos mortos olhando para ele, ameaçando soltarsobre a sua família uma maldição impronunciável, que género deterror era agora este?, poderia lidar com isso, pobre aleijado queera, com mulher e três filhos a seu cargo, seria capaz de carregarmais este peso?, o escritor murmura alguma coisa sobreinterrupções e atira a caneta para cima da mesa, levanta-se, dá umavolta ao escritório, a caneca de chá está vazia, vai à cozinha e voltaa enchê-la, vem corredor fora de olhos postos no copo, de cujamalignidade por vezes suspeita, um objecto diabólico posto nomundo para lhe destruir a vida, um ordinário pedaço de plástico, jádesejou que o rapaz o tivesse levado consigo ao saltar, sem perderum momento para pensar no facto cru de que o rapaz saltaramesmo, aquilo que agora o incomoda é a sua hesitação no destinoa dar ao copo azul, que problema patético!, houve críticos que oacusaram disso mesmo, de se perder em problemas patéticos, semqualquer noção de enredo, não discordava, era de facto umminiaturista, via-se assim, a resgatar pormenores da enxurrada domundo, nada de importante, apenas átomos que colidem, masincapaz de pensar esses eventos em maior escala, uma quepermitisse esclarecer as ligações, unificando-as numa únicanarrativa, especializou-se por isso no fragmento, alinhavava-os unsa seguir aos outros, deixando à vista sugestões de unidade entre as

partes, criando desse modo um enredo que a todos incluísse, não oentenderam assim os críticos, não o entendia assim ele próprio, masentendeu-o assim o público, tornou-se o caso literário do ano, muitofalado e pouco lido, a encher os bolsos de dinheiro, o suficiente parapoder tirar uma licença sem vencimento, a mulher ganhava bem,aguentavam-se durante uns meses, para que ele pudesse escrever,ter outra rotina, ser mais produtivo, para usar a nomenclatura emvoga, o rapaz ainda não era nascido, a mulher saía cedo paratrabalhar e ele ficava acordado, de roupão e pijama à secretária, aligar o computador e a beber chá de copos de papel, sobras de umafesta que a mulher organizara em sua honra, nada se desperdiçava,assim poupava-se a ter de lavar mais louça, a mulher, laura, estavasempre com pressa, mal olhando para ele, um beijo dado a correr,ou soprado junto à porta de casa, ficava depois por sua conta,escreveu o livro novo em três meses, saiu a tempo do natal ecavalgou a onda do anterior, ainda mais dinheiro, a editoraapresentou-lhe um contrato para um terceiro, um adiantamento,compraram uma casa, tiveram um filho, o terceiro livro saiu no finaldo verão, vendeu bem até ao natal, e aí começou a vender muitobem, essa torneira só se fechou no natal seguinte, mas aí já tinhaassinado contratos de tradução, franceses, espanhóis, suecos,húngaros, e estava prestes a concluir o quarto livro, calendarizadopara o verão, prolongou a licença, o chefe olhou para ele de lado,laura aconselhou-o a não se despedir, não acreditava que aquilopudesse durar, isso ofendeu-o, fodeu por isso a ama do rapaz, àhora da sesta, uma rapariguinha morena que ronronava o nomedele, senhor elias, e depois só elias, enquanto ele a comia por trás,de pé e contra a parede contígua ao quarto do filho, fizeram-no maisumas vezes e depois a rapariga despediu-se, a mulher achou

estranho, o miúdo foi para um infantário, se calhar foi daí que trouxeo maldito copo!, desabafa, senta-se, escreve, uma rapariga desceas escadas descalça para ir despejar o lixo, sobe-as depois atrautear, deixou a porta aberta e a gata saiu de casa, é um animalirascível, acocora-se junto a ela, deixando que lhe cheire a mão, quea reconheça, a gata aproxima-se, pega-lhe pelo cachaço e, antesque esperneie demasiado, atira-a para dentro de casa, fecha aporta, satisfeita com a resolução do problema, as chaves tambémestão do lado de lá, quando se apercebe deixa-se abater, encosta-se à parede a pensar, desespera, foda-se!, desce as escadas e vaiao café no fim da rua, ao balcão pergunta se não lhe emprestam umescadote, o empregado revira os olhos, um cliente oferece-se para aajudar, mas antes diz-lhe que olhe para a tv onde está odesconhecido em grande plano, sabe que ele é do futuro?, diz ohomem, olhos brilhantes de convicção, ela ri-se, não consegueevitar, é a única a rir, se ainda a ajudarem não vai ser com muitoboa vontade, deixa cair a caneta, respira fundo, o ar é frio, osúltimos dias de março, não há vento, o copo azul continua firme nobeiral e ele a navegar, sempre a navegar, diz para aqueles que ointerrogam que o que faz é navegar, avistar continentesdesconhecidos e imaginar aquilo que neles se passa, como se fossede facto um explorador a quem pedissem relatos de terras distantes,exigindo-os à razão de um por ano e assim o obrigando aempreender perigosas viagens umas atrás das outras, à frente dasua pobre frota, composta por ele e uma dactilógrafa, continua aescrever à mão, uma última liberdade que se permite agora que atéa sua imaginação parece ter sido ocupada, reduzindo-o por fim àescravidão, primeiro tiranizada pelo rapaz e agora pelodesconhecido, aparecido no aniversário da morte do seu primeiro

amo, ao qual substituiu com grande eficácia, a mulher, a quemmandava tudo aquilo que escrevia, já não o conheceu, não apreciouque ele só escrevesse sobre o rapaz, ou melhor, conseguiriaperdoá-lo se só escrevesse, mas obrigou-a a ler cada uma daspáginas e, mesmo depois do modo como ela reagira, ainda teve acoragem de as publicar, aproveitando a publicidade que se gerava apartir das entrevistas, usando a sua própria perda como chamariz,sugerindo a ideia de que aquilo que se estava prestes a contar eraextraído em bruto da realidade, muito sedutora para quem ouve,para quem lê, menos para quem a vive e não quer, ainda que porinterposto meio, voltar a vivê-la, era esse o caso de laura, começoua olhá-lo de viés, ele citava-lhe exemplos famosos de profunda dortransformada em arte, já há muitos anos que só escreves merda,disse ela sem pestanejar, também sem gritar, isso começou maistarde mas não muito, não apareceu em nenhum dos eventosassociados ao livro, não se prostituiria, depois de os gritoscomeçarem aquela deixou de ser a sua casa, foi fácil fazer as malase ir-se embora sem que ele procurasse detê-la, nem ela o deixaria,não havia nada entre eles que não estivesse quebrado, dela nãosoube mais nada, e ele ficou onde estava, para onde iria?, ficou emcasa a escrever, os telefonemas e visitas dos familiares jáescasseavam, o luto alheio dura pouco, encontrava-se com adactilógrafa, que arranjava maneira de decifrar a sua caligrafia e lheenviava, por mail, uma primeira versão, revia-a, enviava-a para aeditora, para os manter de apetite aguçado, vivia assim, encontrava-se com duas ou três pessoas, sempre durante o dia, à noiteescrevia, suspira, alisa a página onde estava a escrever, pega nacaneta, escreve, olha para a página, escreveu o nome dele, gabriel,o guê muito torto e o ele demasiado distante das outras letras,

desproporcional, ri-se, é uma criança feliz, não é seu filho mas gostadele e não se importa de passar ali a noite, depois daquilo queaconteceu ontem até agradece, vinham no carro, junto ao mar, ela aconduzir, os faróis estavam avariados, escurecia agora tãodepressa, um homem surgiu diante do automóvel, acertou-lhe,deram com ele uns metros adiante, a amiga apontou a lanterna dotelemóvel para o rosto do homem, parecia morto, arrastaram-nopara a berma, tinham medo de continuar ali, quando voltaram aocarro tremia, pediu à amiga que conduzisse, no dia seguinteencontraram um corpo na praia, perto do local onde isto se dera,tem estado em casa a roer as unhas, a fumar e a olhar para o ecrã,borrada de medo de que digam o nome dela, mas não aqui, olharpara o menino pacifica-a, dá graças por isso, agradece tambémainda estar viva, o escritor olha para a janela, o copo desapareceu,levanta-se dum pulo, aproxima-se da janela, dobra-se sobre o beiral,não há vestígios do objecto, o problema resolveu-se por si, mas se otivesse visto cair teria saltado para o agarrar, procurando a pobreabsolvição possível?, ou teria apreciado o momento em que selibertava de vez de tudo aquilo?, esperara uma intervenção doacaso, uma ondulação caótica percorrendo o planeta e passandotambém diante da sua janela, uma brisa mais forte que levasse ocopo, agora isso dera-se e não sabia o que fazer, ainda tinha acaneta na mão, atirou-a lá para fora, talvez isso resolvesse esteoutro problema, viu-a cair durante uns instantes, rodopiando, outroobjecto de plástico, não experimentou alívio algum ao livrar-se dela,tão facilmente poderia livrar-se do isqueiro e isso não o faria deixarde fumar, como seria até semelhante coisa possível?, havia todauma legião de isqueiros prontos a substituir esse, caixas oucarteiras de fósforos seguindo-os, um infindável desfile de material

inflamável disposto a acender-lhe mais um cigarro, o mesmo com ascanetas, de todos os formatos e cores, das quais também tinha umagaveta cheia, certa noite depois da morte do rapaz sonhou que seencontrava num armazém cheio até ao tecto de copos azuis deplástico, do mesmo tom daquele que trazia edgar encantado,competia-lhe encontrar o copo certo e se o fizesse com sucesso ofilho ser-lhe-ia devolvido, começou a empatar, não desejava tê-lo devolta, acordou em choque, a mulher acordou também, disse apenasque tivera um pesadelo mas não lhe contou no que consistia, que serecusara a aceitar o regresso do filho por egoísmo, que só oaceitaria se lhe levassem em troca a memória, a janela, o copo azul,se o aliviassem desse peso poderia viver com o filho redivivo, deoutro modo iria sempre estranhá-lo, olhá-lo com espanto, evitariatocar-lhe, não seria o seu filho, a sua memória doeria empermanência, uma ideia que o aterrorizava, a dor do passadosempre presente, a ideia já se formara antes mas só a admitia agoracomo criação sua, era ateu, materialista, um inimigo dosobrenatural, e, não possuindo a ciência as ferramentasnecessárias, por que outro modo poderia o filho ser-lhe devolvido?,veria o seu mundo destruído e não seria capaz de o sacrificar, edgardecidira saltar, talvez já tivesse visto o suficiente, o mundo não ébonito, não pensara também ele em saltar?, e isso até antes de orapaz o fazer, pensara em saltar de janelas altas, do topo dosedifícios, de pontes, de penhascos, tudo sítios dos quais seaproximava sempre com apreensão, embora aquilo que de factotema seja sobreviver, é esse medo que o mantém vivo, tentar e nãoconseguir, sobreviver e adicionar peso ao fardo que já carrega, umcansaço mortal pesando-lhe sobre os ombros, não era estranho àneurastenia, estava habituado ao apoio da mulher, ela própria atreita

a crises, apoiavam-se um ao outro e ambos se reforçavam nomiúdo, dois dias depois do pesadelo gritaram um com o outro e elafoi-se embora, agora estava cada um por sua conta, descobriu quepassava pior sem o rapaz que sem a mulher, edgar era do seusangue, reconhecia-se nele, com ela tinha uma longa história, masdizia-se que se não fosse esta teria sido outra qualquer, teriamvivido bem os dois se o rapaz nunca tivesse existido, mas não haviacomo negá-lo, é verdade que não havia vestígios, a roupa e osbrinquedos dados para a caridade, nenhum deles fantasiara sobreguardá-los para um segundo filho, sobrara o copo azul e tambémesse se extraviara, afasta-se da janela, sente fome, na cozinhaainda há tostas e compota, contenta-se com pouco apesar da famaque lhe deram, sabe que lhe chamam mercenário e coisas piores,laura dizia-lhe sempre para não ligar, na altura não demonstravatanto repúdio por aquilo que ele publicava, escrevera sobre a morteda mãe dela e ela disse-lhe que achara comovente, embora todo oepisódio tenha sido atroz e ambos o soubessem, até se dispusera acomparecer em algumas das sessões de autógrafos, dessa vez nãotivera os mesmos escrúpulos, nem sequer fizera as malas, ri-se,percorre o corredor até à cozinha, serve-se de mais chá, arranjaquatro tostas e senta-se a mastigar em silêncio, olhando paradiante, quando termina pega na chávena e volta para o escritório,tem uma fotografia sobre a secretária, é o seu pai, vestido com umuniforme igual ao do neto que não conheceu, casaco cinzento ecastanho, calças castanhas, pulôver de malha, camisa branca egravata vermelha com riscas azuis, antes do seu pai já muitoshomens da sua família tinham frequentado o mesmo colégio,também ele o frequentou, na fotografia o pai está na praia, umaperna esticada e a outra dobrada, o pé apoiado numa rocha, poderia

ser aquela junto à qual encontraram o corpo do desconhecido,vestido do mesmíssimo modo, inquiriu, não frequentara o colégio, foitudo o que soube, o mistério distraiu-o do rapaz, obcecou com elemas em vão, era impenetrável, fez o de sempre, aquilo que fazagora: tira uma esferográfica azul da gaveta e escreve.

Os dois corpos

É sabido que Proust era um obcecadopela fotografia e que procurava, por todos os meios,

obter a fotografia das pessoas que amavae admirava. Um dos rapazes por quem se apaixonou

quando tinha vinte e dois anos, Edgar Auber,ofereceu-lhe, a seu insistente pedido, um retrato.

Nas costas da fotografia escreveu,à guisa de dedicatória: Look at my face: my name is Might

Have Been; I am also called No More, Too Late,Farewell.

GIORGIO AGAMBEN, Profanações

TALVEZ

EU SOU AQUELE QUE MANDAM para fazer o trabalho sujo.Engano, porque uso chapéu e fato de três peças. Porque sou

educado e não levanto a voz. Pareço inofensivo, um cavalheiro comuma certa idade. São poucos aqueles que não me deixam entrar e,com maior ou menor relutância, todos me convidam a sentar.Agradeço, aceito o convite e não digo nada. Espero que sejam elesa falar primeiro, a dar conta daquilo que esperam. Por vezes tiro ochapéu da cabeça e pouso-o no colo. Não cruzo a perna e não merecosto. Sento-me direito, na ponta do sofá ou da cadeira que meofereçam, o que parece enervá-los. Já me propuseram, à falta demelhor, que me sentasse numa cama. Nessas ocasiões prefiro ficarde pé.

Oferecem-me sempre algo que beber. Não aceito nada senãoágua engarrafada. Certa vez um ofereceu-me do seu próprio jantar,a tremer. Recusei, claro. Confecciono toda a minha comida e seisuportar bem um estômago vazio. Não invejo os seus cafés caseirosou o seu chá aguado. Não cobiço os seus licores. Sento-me direito equando o momento me parece propício apresento a prova. Procedi

assim com aquele a quem, segundo me disseram, chamavam «oartista».

Enfiei a mão no bolso e voltei a tirá-la, fechada. Coloquei-adebaixo do chapéu, perante o olhar intrigado dele. Abri-a e ergui ochapéu, como um mágico. Apercebi-me de que estremeceu quandoviu aquilo que eu tinha na mão. Procurou disfarçar a perturbação,como outros antes dele. Agem como se o mundo não estivesse aídesde sempre, rodando sobre o seu eixo, com poucas surpresaspara quem sabe ver. Não lhe faltava talento para a dissimulação,mas ignorei a sua farsa. Ergui a estatueta entre nós, deitada sobre apalma aberta da minha mão.

— Um chauabti — disse eu, olhando para ele — perpetua oprivilégio para além da morte. Aquele que em vida possui servoscontinua a possuí-los mesmo quando esta se finda. Fica isento detrabalhar para o seu sustento no outro mundo, garantida a suaposição pela presença em efígie daqueles que o servem.

Segurei a estatueta entre o polegar e o indicador, rodando-a paraum lado e para o outro. O artista, sentado à minha frente,empalideceu. Não disse nada, embora soubesse que o tinha namão. Olhei em redor, as paredes cobertas de telas sem vida, todasassinadas com o mesmo nome. De artista tinha pouco. Guardei opormenor, que talvez me fosse útil adiante. Senti a vontade que eletinha de dizer alguma coisa, de preencher aquele vazio que secriara. Mas continuei, não lhe dando oportunidade de falar eobrigando-o, ao invés, a ouvir a minha voz monótona, perorandosobre os materiais em que se esculpiam essas estatuetas, sobre osignificado de determinadas inscrições mágicas apostas sobre elas,sobre a sua função simbólica e os apetrechos agrícolas com que sesubvertia essa função, sobre a introdução da figura do capataz e a

particularidade daquela estatueta, presa entre os meus dedos,segurando uma espada, coisa nunca vista em nenhuma dasdinastias, dando-lhe a impressão de dominar por inteiro o assuntoquando dele nada sabia, apoiando a minha autoridade apenas numacerta forma de verbalizar, seca e autoritária, usada com totalconfiança. Por vezes, para dominar outros homens, basta aconfiança em si.

Pareceu impressionado, talvez soubesse do assunto aindamenos do que eu. Inclinou-se para diante, à beira de dizer algumacoisa. Inclinei-me também, olhando-o a direito, a estatueta presapelas pontas dos dedos. Incentivei-o a falar, para ouvir da boca deleaquilo que já sabia e talvez algo mais. Há sempre algo mais,escondido na tessitura do discurso, alojado nas insuspeitas orlas doque é dito. Tenho, dizem-me, um talento natural para o detectar.Tenho, porque o sei, uma habilidade natural para voltá-lo contraquem fala. Quis que falasse e falou, embora nada daquilo que dissefosse novo, a versão mutilada de uma história que já ouvira repetir amais do que uma pessoa e que se algum mérito tinha era apenas oda concisão. Não revelara, por livre vontade, nada que eu nãosoubesse. Cabia-me, pois, interrogá-lo.

Interrogar é uma arte muito particular. Interrogar sem usar aforça, sem erguer a voz, sem me levantar do lugar onde estousentado, tudo isso a torna uma disciplina de grande exigência.Demorei a aprendê-lo, claro. Ao princípio usava a força, como osoutros. Sei que alguns associam a minha mudança de atitude àpassagem dos anos, a algum enfraquecimento da massa muscular,ao anúncio da decrepitude. Murmuram entre si que seria fácileliminar-me, agora que sou velho e mole. Enganam-se. Teria sidomais fácil quando tudo o que sabia era flectir os músculos. Não sou

agora mais rápido ou mais forte do que já fui. Mas de certo modosou-o. Seria demasiado exaustivo explicá-lo.

Interroguei então o artista, que já o esperava. A sua expressãoera uma de resignação, os olhos fixos em mim, submisso. Comeceipelos nomes que mencionara, de cuja lista estava ausente o únicoque me interessava. Insistiu em Mario, mas desfiz-me dessainsistência com um gesto mole da mão. O estatuto de Mario comotraidor já estava estabelecido. Agora precisava de uma confirmaçãodaquilo que já sabia sobre o outro, cujo nome parecia estar rodeadode uma aura de pudor que me desagradava. Insisti, sem que elecedesse. Procurei não me impacientar e decidi rodear o obstáculo.

— Este chauabti não veio parar às minhas mãos por acaso —disse eu, segurando a estatueta pelos pés diante dele —, mas tão-pouco me pertence.

Aquele a quem chamavam artista sem que o merecesse abanoua cabeça, concordando. Perguntei-lhe se sabia a quem pertencia.Voltou a concordar. Parecia atordoado, como se se apercebessepela primeira vez da minha presença em sua casa e nãocompreendesse quem me deixara entrar. Insisti, querendo que fosseele o primeiro a mencionar o nome que faltava. Voltou a falar deMario e senti, pela primeira vez, que começava a impacientar-mecom este idiota. Seria por lealdade que se recusava a implicar ooutro, mencionando apenas aquele cujo nome já estava sujo? Nãosabia de nenhum laço tão profundo entre os dois. Talvez tentasseapoucar-me, tomar-me por parvo, um exercício perigoso. Olhei paraele, medindo-o. Era maior do que eu, mas quem o não é? Nãoparecia habituado ao exercício da violência, mas as aparênciaspodem iludir. Guardei a violência como alternativa e prossegui ointerrogatório.

— Não é de Mario que quero falar — disse eu.O artista baixou a cabeça, fitando a carpete. Quando voltou a

erguê-la parecia armado de uma nova determinação. Fitou-me eperguntou como obtivera a estatueta. Falei-lhe então do taxista, cujoexemplo trazia guardado, pronto a ser usado numa eventualidadecomo esta, um desafio. Há sempre um momento, mais cedo ou maistarde, em que crêem poder desafiar-me, lutar de igual para igual. Ébom ter um exemplo para lhes apresentar, alguma coisa que osobrigue a repensar a sua atitude. Expliquei-lhe primeiro da vigilânciaque falhara e deixara escapar o portador do chauabti. Dá-lheconfiança saber que falhamos, embora saiba que é ilusória.

A VERDADE É QUE O VELHO nunca tocou no taxista.Sentava-se a um canto quando o trouxeram. Ocultava parte do

rosto nas sombras, o chapéu castanho pousado no chão.Levantara-se apenas para fazer um aceno ao prisioneiro, para

adverti-lo da sua presença e do modo como isso indicava que osseus problemas estavam apenas a começar, voltando depois asentar-se e acendendo uma cigarrilha.

O taxista já vinha em silêncio, de olhos muito abertos, os pés aarrastar. Os dois homens que o traziam já o tinham instruído sobre ainutilidade de gritar. Tombaram-no na cadeira de ferro no meio dasala. Olhou em redor, as paredes nuas, o estuque a cair, a alcatifamanchada e engelhada, as janelas fechadas.

Contorceu-se um pouco quando quiseram algemá-lo, mas bastouuma bofetada para o sossegar. Deixou depois que o prendessem,sem oferecer resistência. Um dos homens colocou-se por trás dacadeira. O outro postou-se do lado direito, de braços cruzados. Ovelho levantou-se, pegando no chapéu e pousando-o na cadeiravazia. Atirou a cigarrilha para o chão e pisou-a com a ponta dosapato bem engraxado. Deu um estalo com a língua, olhando para otaxista.

Do bolso tirou um cordão, fio telefónico, que enrolou na mãodireita enquanto avançava. Executou o gesto com deliberadalentidão, atraindo o olhar do prisioneiro para as suas mãos efazendo com que ficasse mais agitado a cada passo que o velho

dava. Começou a choramingar, mas o homem postado por trás dacadeira atingiu-o na nuca, com força, para que se calasse. Gemeuum pouco, em soluços abafados, de cabeça baixa. Quando voltou aerguê-la, o velho estava diante dele, o fio tenso entre as duas mãos.

Encolheu-se na cadeira, os pulsos algemados. O velho avançouaté estar quase em cima dele, sem proferir qualquer palavra,esticando-lhe o fio diante do rosto. E quando por fim falou referiu-se-lhe pelo nome, como se fossem conhecidos de longa data. Inclinou-se sobre o taxista. Perguntou-lhe pela estatueta, o fio deslizando deforma lenta pela curva do queixo e aproximando-se-lhe do pescoço.Repetiu a pergunta, mais devagar. O homem por trás da cadeirasegurou o pescoço do taxista com uma mão, uma tenaz, paraobrigá-lo a responder. Gemia, como se uivasse baixinho. A sua vozera um fio delicado, quebradiço.

Disse que não sabia nada da estatueta. A mão apertou, os dedoscravaram-se-lhe no pescoço, que se inclinou um pouco,pressionando-se contra o fio vermelho que o velho mantinhaesticado contra a sua pele. Retesou-se ao contacto, como se oforçassem contra uma víbora. Debateu-se. Foi preciso que o homemo segurasse com as duas mãos, que o outro que estava ao ladodescruzasse os braços e se aproximasse, abrindo e fechando ospunhos, para que se resignasse à imobilidade, ao toque que orepugnava. O velho repetiu a pergunta, o taxista repetiu a resposta.Forçado, elaborou. Encontrara a estatueta na estação doscomboios, debaixo de um banco. Ficou com ela. Podia devolvê-la,se era isso que queriam.

O velho riu-se. Perguntou se achava que teriam dificuldades emreavê-la. Voltou a rir-se e fez um sinal ao homem que se postara aolado, e este tirou a estatueta do bolso, mostrando-a ao taxista, que

não respondeu e se limitou a olhar estupidamente para ela. Aestatueta regressou ao bolso do homem. Mais perguntas. Disseram-se nomes, que o prisioneiro negou conhecer, embora se insistisse. Ea mensagem na estatueta?, perguntou o velho, tão perto do taxistaque este tinha de entortar os olhos para conseguir fitá-lo. Nãoobteve resposta, não havia qualquer resposta que ele pudesse dar,ainda que a tenaz voltasse a apertar e o fio se lhe marcasse napele, num fino vergão vermelho. O velho afastou-se, um passo, doispassos, sem deixar de fitá-lo. Baixou os braços. Enrolou o fio namão direita.

Com a mão livre fez sinal ao homem do lado. Este devolveu-lhea estatueta e o velho pô-la no bolso. Não iria fazer mais perguntas,anunciou. Não havia nada que lhe pudesse dizer, embora tivesseperguntado com a necessária educação. Talvez os outros fossembem-sucedidos onde ele falhara. Fosse como fosse, já não sairiadaquela sala. Nomes tinham sido pronunciados, rostos tinham sidovistos. Havia demasiado em jogo. Apresentou-lhe as suasdesculpas, mas não era ele o responsável último. Tinha contas aprestar e não poderia salvá-lo. O taxista empalidecera. Fitava ovelho. Movia os lábios, em silêncio. Talvez hesitasse, talvez rezasse.O velho virou-lhe as costas. Pegou no chapéu e encaminhou-separa a porta. Pelo caminho deixou o fio na mão do homem queestava por trás da cadeira de ferro, e este, num gesto rápido,enrolou-o em redor do pescoço do prisioneiro. A verdade é que ovelho nunca tocou no taxista, mas gabava-se de o ter feito.

QUANDO ACABEI DE LHE FALAR do taxista, vi como a determinação quehá pouco subira ao rosto daquele a quem chamavam o artistadesaparecia a pouco e pouco, desvanecendo-se e deixando no seulugar uma máscara de apreensão, de pânico mal contido. Olhavapara a porta, como se temesse que pudesse entrar mais alguém,sem perceber que aquele que deveria temer já ali estava há algumtempo e que fora a sua própria mão a dar-lhe passagem.

Ergui as mãos para lhe chamar a atenção. Fitou-as com espanto,pestíferas coisas que deixara entrar em sua casa. Desviou os olhos,mirando a biqueira do meu sapato, o chão por baixo dela, o cimento,a estrutura do prédio, a terra sobre a qual se apoiava, o núcleoardente do planeta. Parecia imbuído de uma nova compreensão.Não era daqueles que crêem que o mundo se resume aos seuspassos, ao que os seus olhos abarcam, justificando com isso o seuespanto perante aquilo que não conhecem, que não podem abarcarporque o todo não é abarcável, redutível a uma única experiência,por vasta que seja. Teria a sua dose de conhecimento, drogas eputaria, rixas e fanfarronice. Não o nego, porém isso não o ajudaria.É demasiado para qualquer um, até para mim que já vivi mais doque esperava e mantive sempre os olhos abertos.

— Há uma coisa… — disse o artista, pedindo-me permissãopara se levantar.

Autorizei-o a levantar-se. Não foi longe, agachando-se junto àjanela. Tirou uma caixa de cartão da pequena estante que aí havia.

Por instantes pensei que poderia ter uma arma. Mas apostara quenão era homem de armas e vi o meu instinto recompensado quandocomeçou a esvaziar a caixa, cheia de papéis, até encontrar aquiloque procurava. Ergueu-se e entregou-me um envelope acolchoado,dobrado ao meio. Desdobrei-o sobre o colo enquanto elepermanecia de pé, na expectativa, o conteúdo da caixa espalhadono chão. A resistência que parecera mostrar ainda há pouco estavaquebrada. Voltara a mostrar-se dócil, solícito. Examinei o envelope,no qual não havia remetente. Estava vazio.

— Era nisso que vinha o chauabti — disse ele, sem que lheperguntasse nada —, e trazia também uma carta que deitei fora.Tinha instruções.

— Que tipo de instruções?— Sobre o modo de fazê-lo chegar a quem se destinava — e

após respirar fundo disse por fim o nome que eu queria ouvir, onome que não era de Mario mas daquele que, sem nos avisar, selançara ao seu encontro, o nome do traidor. Já o sabia antes mesmodo taxista. Mas queria ouvi-lo pronunciado por outro, confirmado porum que não fosse dos nossos.

— Tem um carimbo no canto, mas está esbatido — disse oartista.

Virou-me as costas e abriu outra caixa, da qual tirou uma lupaque me entregou junto com o envelope. Voltei a examiná-lo e, talcomo dissera, lá estava o carimbo, com a designação da estação decorreios que processara o pacote. Mario, que nunca fora desleixado,confiara de facto naquele a quem chamavam o artista e não osupunha capaz de traí-lo. Mas o medo pode muito.

Fotografei o envelope com o telemóvel, o nome da estaçãoampliado pela lupa. Depois levantei-me, ajeitando o vinco das

calças. Devolvi-lhe ambos os objectos, mas, a princípio, não quisaceitá-los. Parecia autorizar-me a levar o que quisesse da sua casa,o que fosse, contanto que não extraísse do bolso nenhum fiotelefónico, que não emitisse nenhum silvo agudo ou sinal especialpara convocar os meus capangas. Interessava-lhe apenas a suasegurança, a integridade do seu corpo e a longevidade da suabiografia. Para esse efeito estava disposto a fechar os olhos a tudoaquilo que acontecesse aos outros, esses de quem é tão fácildistrairmo-nos.

— Já tenho aquilo que quero — disse-lhe, mais para quepegasse nos objectos que lhe estendia do que para tranquilizá-lo,pois nunca me interessara o seu conforto e teria feito o que fossenecessário para o quebrar, mas era daqueles que quebram porsugestão — e agora devo deixá-lo. Agradeço-lhe a hospitalidade.

E acentuei a ironia com um floreado da mão, que passoudespercebido àquele que não tinha direito a ser chamado artista.

Acompanhou-me à porta, que abriu segurando ainda noenvelope e na lupa. Encaminhei-me para as escadas, sem quereresperar pelo elevador que se oferecera para me chamar. Pareciaconvencido de que nos separávamos em bons termos, mas malcheguei à rua peguei no telefone e ordenei que o seguissem nospróximos dias, de forma óbvia, para que não se convencesse deque a sua deslealdade passara impune. Depois concentrei-menaquilo que era importante, no assunto que me levara até ali, o qual,embora longe de estar concluído, tinha agora uma direcção poronde ser seguido. Há dos nossos por todo o lado e esse eratambém o caso na cidade de onde viera o envelope. Estava velho eperdera influência, mas ainda teria utilidade. Tirei o chapéu, enfiei-me no carro e segui viagem.

O VELHO FOI RECEBIDO POR UMA MULHER que envelhecera mal, umaruína demasiado pintada que se apresentou como sobrinha dopresidente. Até na família continuamos a tratá-lo assim!, disse ela,cacarejando nervosa enquanto o conduzia corredor fora. Os hábitosdemoram a morrer, continuou ela, nervosa. Seguiu-a, com o chapéuna mão, o nó da gravata deixado lasso da viagem, o corredoriluminado como se fosse de noite, embora fossem apenas quatro datarde, um cheiro estranho a cola disseminando-se pela casa, comose um grupo de crianças estivesse por trás de uma das muitasportas fechadas fazendo os seus trabalhos manuais, em silênciomal contido em virtude da presença de visitas na casa. Os saltosdos sapatos da mulher ecoavam no chão de madeira. Virou antesde chegar à sala do fundo, entrando num pequeno estúdio ondeestava o presidente, rodeado de fotos e tubos de cola.

Fitou-os com espanto, os punhos da camisa com nódoas. Otampo da secretária à qual se encontrava sentado estava coberto defotografias de formatos diversos, dois grandes álbuns abertos diantedele. A mulher apresentou-os, quase soletrando o nome do velho,enquanto rodeava a secretária e, colocando as mãos nos ombrosmagros do presidente, lhe segredava que era um enviado dosamigos da capital. Depois abriu a janela por trás dele, saudando deforma efusiva a entrada de ar fresco. Ainda sufocamos todos, disseela, abanando-se com a mão anelada. Indicou uma cadeira ao velhoe ofereceu-se para lhe guardar o chapéu, oferta que ele declinou.

Sentou-se de pernas cruzadas, o chapéu pousado sobre o joelho.Estou aqui ao lado, disse ao presidente, de novo com as mãos nosseus ombros, inclinada sobre ele, e em seguida saiu, deixando-os asós.

Os dois homens permaneceram em silêncio, o presidenteolhando para as fotografias espalhadas sobre a secretária e o velhofitando-o, de chapéu apoiado no joelho e pé balouçando lentamente.Os nossos amigos mandaram-no?, disse por fim o presidente, semerguer os olhos. A sua voz era como um instrumento desafinado,partido. O velho confirmou e aproveitou a ocasião para explicar arazão pela qual ali estava. Mas o outro não ouviu. Remexia nasfotografias com os seus dedos hesitantes, de velho. Perguntou porum desses amigos comuns, morto há três anos. Referiu outro, caídoem desgraça e cujo nome já não se pronunciava. Depois cuspiu onome do líder actual, com desprezo. Parecia demente.

Abandonaram-me, continuou o presidente, segurando uma fotoentre os dedos trémulos, abandonaram-me para que perdesse eagora pedem-me favores, como se não me lembrasse de nada,como se fosse um trapo velho, e agora pedem-me para farejar, paraencontrar o rasto do cachorrinho tresmalhado que mijou na cama dodono, ainda sirvo, afinal ainda sirvo para isso, as eleições à porta equerem que me ponha a cheirar pelos cantos, tudo a acontecer aomesmo tempo, acham que sou um criado, um pau-mandado, eu souo poder, eles são só nomes, eu sou o poder, não lhes devo favores,não devo nada a ninguém!

Exaltara-se e erguera a voz, o que fez com que a mulher abrissea porta e fitasse o velho, recriminando-o por ter irritado o presidente.Este alheara-se e pegara no tubo, que espremia pelo meio, comouma criança, pondo cola a mais na foto que colava no álbum,

sujando as mãos, as mangas, colando as páginas umas nas outras.Fechou o álbum com raiva. A mulher aproximou-se dele, pôs-lhe amão no ombro e sussurrou algo que o velho não conseguiu ouvir.Limpou-lhe as mãos e abriu outro álbum, devolvendo-lhe a cola.Depois pediu ao velho que a seguisse. Este obedeceu.

A mulher fechou a porta do estúdio e, atravessando o corredor,entrou na saleta que ficava defronte. Pediu ao velho que fechasse aporta. Terá reparado que o presidente não está bem, disse ela, emvoz baixa, querendo certificar-se de que mais ninguém a ouvia. Eleanuiu. Não lhe pediu que se alongasse sobre a condição de quepadecia, antes lhe explicou, de forma sucinta, aquilo que procuravae se ela poderia ajudá-lo.

Não lho propôs em desespero, nem ela fingiu mostrar-seofendida. Na saleta havia, ao canto, uma cadeira na qual a mulherse sentou. O velho permaneceu de pé. Conheço o nome desseMario, cuja fama o precede, disse ela, mas não creio que possaajudá-lo em relação ao outro. Ele agradeceu, pronto a ir-se embora.

Mas, continuou a mulher, há uma coisa que talvez lhe interesse eque, quem sabe, talvez o ajude na sua busca. Contou-lhe então ahistória do desconhecido que aparecera morto na praia e que opresidente, de forma tão inesperada, decidira mandar embalsamar.Por precaução?, arriscou ela.

Para responder a perguntas como as minhas?, disse ele. Amulher sorriu, esfíngica. Ofereço-lhe um chá?, perguntou ela. Afinalestamos na terra do limonete!

Beberam o chá na cozinha de tecto alto, em silêncio, cada um doseu lado da mesa.

QUANDO DEIXEI A CASA DO PRESIDENTE, o sabor alimonado demorava-seainda na minha língua, como uma recordação terna, um poucoamarga. O caminho afunilara-se, mas persistia, ao fundo, uma luzfugidia. Veria o cadáver. Teria para isso de ficar pela cidade, pelomenos até ao dia seguinte. Se o cadáver embalsamado fosse odaquele que procurava, teria a minha conclusão. Se o não fosse,também a teria, mas de um modo menor. Nunca aprecieiperseguições infrutíferas.

Dirigi-me ao centro. Aluguei um quarto num hotel que já viramelhores dias, uma jóia degradada dos tempos em que a cidadeservia de estância balnear para os abastados. Descansei na cama,descalço mas vestido, deitado sobre a colcha, de olhos abertosfitando o tecto branco-sujo. Deixei que o telemóvel tocasse sem memover. Quereriam respostas, mas não havia ainda nenhuma quelhes pudesse dar. Acabei por adormecer.

Era de noite quando acordei. Desci até à rua, onde havia poucagente. Os que passavam iam agasalhados e apressados. Procureium sítio onde jantar, errando pelas ruas estreitas da cidade velha,deixando-me levar até junto da praia. Havia restaurantes junto aoareal, caixas oblongas de cor ocre que prometiam diversos tipos depeixe e aqueles pratos de carne que se podem encontrar, semvariações, de norte a sul do país. Aborrecem-me as ementas. Entreinaquele que me parecia mais cheio e sentei-me a um canto, defrente para a porta. Segundo me contara a sobrinha do presidente, o

corpo aparecera não muito longe dali. Após fazer o pedido pergunteiao empregado se sabia o local exacto. Apresentei-me como escritor,um disfarce ao qual o toque excêntrico do chapéu conferia maiorautenticidade. O rapaz pareceu espantado, como se o evento sobreo qual o interrogava se tivesse dado num passado brumoso do qualera improvável que ainda alguém se lembrasse. Coçou a cabeça.

— Foi mais à frente, parece-me. Ao pé das escadas — disse,fazendo um gesto vago com a mão que não indicava com exactidãoqualquer direcção.

Deixei cair o assunto e esperei pelo prato de polvo, seco eborrachoso, que não comi até ao fim. E depois de pagar pedi-lheque me acompanhasse à porta e me indicasse quais eram asescadas a que se referia. Hesitou, mas depois acedeu,acompanhando-me até ao exterior. Cruzou os braços para seproteger do frio.

— Ali à frente — indicou com um movimento da cabeça —, assegundas escadas.

Agradeci e segui pelo paredão, segurando a aba do chapéu.Quando me voltei para trás não havia ninguém à porta dorestaurante, o candeeiro sobre a porta dando à cena toda umaaparência de fantasmagoria. Desci as escadas que me indicara oempregado. A areia húmida desfazia-se em torrões sob os meuspés. No escuro, o mar continuava o seu movimento, rolandoimperturbável. A mulher dissera que o corpo fora encontrado napraia, sem lesões visíveis. Mas não dissera, nem eu perguntara, emque estado o tinham encontrado. Que roupa tinha vestida. Em queposição se encontrava. Olhei em redor. O areal era vasto e aspossibilidades eram incalculáveis. Caminhei em diante, em direcçãoao rumor crescente e intenso do mar. Tirei o chapéu, para que não

voasse, e ergui a gola do casaco. Olhei para trás. O paredão eraapenas uma sombra, iluminada aqui e ali pelo clarão doscandeeiros. A claridade das janelas dos restaurantes era atenuadapelas cortinas. Era um sítio solitário, um bom sítio para se morrer.Mas limitei-me a dar costas às ondas e a regressar ao hotel,perdendo-me algumas vezes pelo caminho.

De manhã revi o dia anterior. Procurava alguma coisa que metivesse escapado. Mas não existia qualquer ambiguidade, qualquerzona de sombra que merecesse um exame mais atento. Adiei omomento de sair, embora estivesse já vestido. Sentei-me junto àjanela, a observar a rua. Pessoas, automóveis e animais desfilaramsob o meu olhar. A simples variedade da rua de uma cidadepequena deveria ter bastado para me convencer da minhaincapacidade para abarcar tudo, perceber tudo. Mas a idade nãotraz toda a sabedoria, nem tão-pouco nivela a arrogância.

Sabia que o cadáver embalsamado não seria o do homem queeu procurava. Não poderia ter a certeza até que o visse, mas tinha aintuição de que a minha busca não se encerraria com um simplesdispositivo romanesco. O corpo poderia até ser de Mario e poderiaaté ter sido o outro quem o matara, mas isso também não resolveriao meu problema. Tinha explicações a pedir a um homem que seevaporara. Chegara ao fim do caminho. Para diante só existia ovasto mundo, e nele havia muitos sítios onde um homem podiadesaparecer.

No bolso do casaco tinha a estatueta. Rodei-a entre os meusdedos. Coloquei-a no parapeito e fechei a janela. Não havia maisninguém que pudesse impressionar com a sua aparição. Esgotara asua utilidade e deixei-a ali para que outro reparasse nela e a levasseconsigo. Talvez acabasse num saco do lixo ou numa gaveta de

perdidos e achados. Talvez fizesse uma viagem tão misteriosa comoa do seu fugidio proprietário. Fosse como fosse, nunca mepertencera, e agora o simples contacto com a sua superfície toscaservia para me recordar um falhanço. Deixei-a para trás sem pena efechei a porta atrás de mim. Tomei o pequeno-almoço, sozinho nasala acanhada. Entreguei a chave na recepção e saldei as minhascontas.

De dia estava mais quente. Sentei-me num jardim, não muitolonge do hotel. Havia no centro deste uma grande árvore, comgrossas raízes que serpenteavam, nodosas, pelo chão e uma copalarga como uma casa. Do outro lado da estrada havia o mar. Fumeiuma cigarrilha e atravessei a passagem subterrânea até à praia,onde me sentei a ver o mar. Adiava o momento de visitar o museumunicipal, onde se encontrava o cadáver. Tomei um café numaesplanada quase vazia, onde súbitas rajadas de vento derrubavamos suportes dos guardanapos e tornavam a leitura do jornal quecomprara um exercício de dificuldade elevada. Quando por fimdecidi que já adiara o suficiente, consultei no telemóvel a localizaçãodo museu e, de posse dessa informação, levantei-me contrariado efiz o caminho num passo lento.

O museu não tinha nada que o qualificasse como apetecível.Pobres relíquias do esplendor piscatório passado, gráficos sobre aerosão costeira, fotografias amarelecidas de inaugurações. Ocadáver estava num canto, sob uma redoma. Era um desconhecido,como já sabia que seria. Apenas mais um mistério que nãodecifraria. Não me demorei junto dele, voltando à sala onde estavamas fotografias da inauguração de uma fábrica cuja arquitectura meinteressara. Perdera o interesse pelo corpo, se alguma vez o tivera.Sabia à partida que não estava ali para responder às minhas

perguntas, embora ainda tivesse especulado sobre isso com asobrinha do presidente. Ouvi passos. Vi então um homem com umamala castanha, muito maltratada, e uma criança ao colo. A criançatinha um coelho de peluche apertado junto ao peito e fitou-me cominteresse. O homem não pareceu sequer ter-me visto. Giramos emórbitas distintas e alheamo-nos com facilidade dos outros. Vi-osdesaparecer e regressei à fotografia que observara até aí, operáriosnovecentistas de fato-macaco e boné na cabeça posandoorgulhosos junto de uma pilha de sacos contendo quem sabe queproduto, sorrindo-me do outro lado da morte com os seus sorrisosenigmáticos, provocando-me para que acreditasse que tudo aquiloque está no mundo talvez seja um mistério à espera de serclarificado.

NUNCA MAIS

O MEU IRMÃO.Foi raro que nele pensasse, mas agora não penso senão nele.

Esta obsessão alastrou como um fogo. Teria consumido a minhacasa e a minha família se a minha mulher soubesse da suaexistência. Consegui não descurar a monótona tarefa de escolher oque seria o jantar e não me alheei das dificuldades da nossa filhacom a matemática, mas sem deixar que se extinguisse a chama queme animava a reencontrar o meu irmão mais velho, do qual metinham separado as más relações entre os nossos pais divorciados.

Hoje teríamos ficado ambos com o mesmo progenitor. Na alturadecidiu-se, de forma salomónica, que a um pai correspondia umfilho, e a família viu-se separada, cortada ao meio. Calhou-me aminha mãe, da qual não me posso queixar, embora talvez devessefazê-lo. Tratou-me com carinho, mas é certo que também meenvenenou contra o meu pai e pareceu esquecer-se de que algumavez tivera outro filho. E assim também eu me esqueci do meu irmão,o qual não comparecia nas minhas festas de aniversário,meticulosamente coreografadas pela minha mãe, e que frequentavaescolas que eu, ainda que o quisesse, seria incapaz de imaginar,mantendo amizades e rotinas que porventura me pareceriaminconcebíveis. E se uma vez nos encontrámos não foi porque

alguém o planeasse, mas apenas por um acaso, desses que porvezes acontecem e que têm o condão de serem constrangedorespor igual para todos os envolvidos. Fazíamos férias no Sul, junto àcosta. Alugava-se uma casa a meias com a família da minha tia,casada com um contabilista taciturno, mãe de dois primosmacilentos e acanhados, que mal falavam à mesa e cuja companhiame aborrecia. Passávamos o dia na praia e à noite jantávamosnalgum dos poucos restaurantes que a vila oferecia. O desígnio dopaís como destino turístico dos reformados do Norte do continenteera ainda desconhecido nesses dias e se, por acaso, se ouvia numadas mesas vizinhas alguma língua estrangeira isso era um motivode exótico deleite para os locais. Entre esses restaurantes haviauma marisqueira que o tio preferia acima de tudo e à qualregressávamos com frequência. Diante do estabelecimentoespraiava-se uma grande esplanada, povoada por homens debabete e pequenos martelos de madeira a postos, prontos a lançar-se à casca de alguma sapateira sob o olhar expectante da prole queos rodeava. Na nossa mesa era o contabilista que desempenhavaessa função de sumo-sacerdote.

Certa noite, entre uma e outra martelada, reparei que a minha tiaolhava em redor com um ar ansioso e se inclinava depois para airmã, procurando segredar-lhe alguma coisa ao ouvido e levando-atambém a perscrutar os arredores, o rosto empalidecido. Inclinei-metambém eu, indiscreto, para ouvir aquilo de que falavam. Nãocompreendi o contexto, mas escutei, de forma clara, as palavras «oteu marido», proferidas com angustiada solenidade pela mulher docontabilista, e isso fez com que também eu me pusesse a olhar àvolta, julgando que o reconheceria de imediato, embora se tivessempassado já muitos anos e o meu próprio reflexo no espelho fosse já

tão diferente daquilo que uma vez fora. Não reconheci ninguém,claro, e foi com alguma estranheza que me apercebi do homem quede súbito surgira junto à nossa mesa, sorrindo de formaenvergonhada, e do rapaz pouco mais velho que eu, todo vestido depreto, que o acompanhava.

O meu pai apoiou as mãos nas costas de uma cadeira vazia àminha frente e saudou-nos, perante o aturdimento dos meus primos,que olhavam para o seu próprio pai, procurando alguma indicaçãosobre o modo correcto de agir. A minha mãe ergueu-se, rígida, eestendeu-lhe a mão. Virou-se depois para mim e ordenou-me queme levantasse.

— É o teu pai. Cumprimenta-o — disse, de modo seco, e assistiuenquanto me levantava e estendia a mão ao homem e apertava asua, que era pequena e suada. Estendeu a outra mão sobre a mesae tocou-me no rosto, como se procurasse acariciá-lo mas nãosoubesse de modo exacto como haveria de fazê-lo. Quando noslargámos as mãos apontou para o rapaz.

— O teu irmão — anunciou numa voz hesitante, talvezesperando que soubéssemos como reagir, mas não encontrámosmelhor forma senão apertarmo-nos também as mãos, de modofugidio, sem nada para dizermos um ao outro.

A minha mãe abandonou então o seu lugar à mesa e, rodeando-a, aproximou-se do rapaz. Segurou-o pelos ombros e beijou-lheambas as faces, um gesto que não lhe agradou, pois procuroulibertar-se de imediato das mãos dela e deu um passo atrás, jápronto para encerrar a reunião familiar e voltar para a mesa de ondetinham vindo e onde, como agora se tornava claro, havia uma outrafamília que os esperava, de pescoços erguidos e rostosexpectantes. Saberiam aquilo que se passava entre nós?

Tão depressa como tinham surgido, o homem e o rapazdespediram-se, e pude ver então que, chegando junto à sua mesa,não voltaram a sentar-se. Pelo contrário, foi o resto da sua família,uma mulher e duas crianças pequenas, duas meninas, que seergueu dos seus lugares e os seguiram para fora da esplanada,desaparecendo numa esquina a seguir ao restaurante. Só depois dedesaparecerem a minha mãe voltou a sentar-se ao meu lado e, paraencerrar o estranho momento, a comida chegou e o meu tio pôdeenfim brandir o seu martelo, um som que ficou a ecoar na minhacabeça durante o resto dessa noite.

Eu tinha então nove anos, quinze o meu irmão, estávamosseparados há cinco anos e não voltámos a encontrar-nos. O tempopassou, imperceptível embora visível. O cabelo da minha mãe,preto, ganhou matizes acinzentados que com o passar dos anos setornaram prateados e por fim brancos. Cresci. O mundo expandiu-se, tornando pequeno o mundo caseiro, materno. Tive a minhaprimeira casa com vinte e um anos, um quarto alugado numa casapara estudantes. A segunda, conheci-a com vinte e quatro, nomesmo ano em que me casei, e ainda é nela que vivo. Nuncapensei no meu irmão, naquilo que entretanto se teria passado comele, nas casas que teria frequentado. A prontidão com que a minhamãe parecera esquecê-lo acabara por contagiar-me.

Devo à minha filha ter-me despertado dessa doença.Esperávamos pelo jantar na casa da minha infância, eu no sofá eela sentada ao meu colo, folheando antigos álbuns de fotografias,enquanto as mulheres se afadigavam na cozinha. Esperava que asroupas estranhas a fizessem rir ou, se não isso, as expressõesrígidas de alguns dos retratados. Mas passava cada página comabsoluta concentração, apontando para uma ou outra figura,

perguntando de quem se tratava ou aquilo que fazia. Respondia-lheo melhor que podia. Ela olhava para cima, expectante, ouvia aresposta e prosseguia, os deditos na ponta da grossa página quepassava, revelando um novo conjunto de fotografias. Observavacada uma antes de perguntar. Distraí-me com algum ruído vindo dacozinha, talvez um talher que caíra, e quando voltei a olhar a criançaela olhava-me, intrigada. Apontou para uma fotografia.

— Este és tu?Eram duas crianças num sofá, apertadas uma contra a outra. A

mais pequena, na qual me reconheci, estava espremida num abraçoque lhe dava a mais velha. Disse que sim e de imediato veio a outrapergunta, a ponta do dedo sobre o rosto ao lado do meu.

— E quem é este?Sabia a resposta, mas não a dei de imediato. E, quando por fim

respondi, menti.— Não me lembro — disse eu, e ela voltou a olhar para o álbum,

não duvidando da minha palavra e avançando para a fotografiaseguinte. Desagradou-me mentir-lhe, um hábito que não tinha, epassei o jantar a matutar, taciturno, na razão pela qual inauguraratão vergonhoso costume, cortando a carne com vagar até sentir aserrilha da faca a roçar no prato e ignorando os sonoros suspirosdesaprovadores da minha mãe.

Depois do jantar ofereci-me para lavar a louça. Deixei a mulher ea filha na sala, sabendo que a dona da casa não se contentaria comconfiar na minha destreza e viria espreitar sobre o meu ombro.Separei todos os talheres para o primeiro da pilha de pratos, comome instruiu. Agrupei os copos. Reservei as travessas para o final.Ela sentou-se à mesa, por trás de mim, de pescoço esticado e panopousado sobre os joelhos. Lavei as facas e os garfos com cuidado,

um de cada vez e não aos três e quatro de cada vez como fazia emcasa, não para lhe agradar mas para ganhar tempo e formular apergunta da forma exacta. Embora, como vim a verificar quando afiz, essa exactidão não me proporcionasse maiores hipóteses desucesso.

— Tenho pensado no meu irmão e preciso de saber o que é feitodele.

O rosto da minha mãe contorceu-se, os lábios apertados numtrejeito de desprezo.

— Se queres saber do teu irmão devias perguntar à puta do teupai, já que foi ela que o criou — respondeu, nervosa. Depoisergueu-se, pousando o pano no banco, e saiu da cozinha.Regressou pouco depois, ignorando os chamamentos da neta, quepersistiam embora ela já não estivesse à vista. Pousou sobre amesa um cartão com um canto dobrado. Peguei-lhe com a pontados dedos. Um nome, uma morada, um número de telefone, umsítio por onde começar. Guardei o cartão no bolso da camisa eacabei de lavar a louça, sob o olhar carrancudo dela. Quandovoltámos para a sala a criança dormia, e Elsa, a minha mulher,apercebeu-se de imediato da estranha electricidade que fluía entremim e a minha mãe e foi ela quem sugeriu que já devia ser tarde.

Carreguei a miúda adormecida para o carro. Coloquei-a nacadeirinha.

— A avó não veio sequer à janela — disse Elsa, tirando umcabelo que se atravessara no rosto da miúda e acomodando-sedepois no seu lugar. Concordei que era estranho. Antes de pôr ocarro em funcionamento levei a mão ao peito, tocando ao de leve obolso da camisa e garantindo que o cartão ainda lá estava.

Quando cheguei a casa pu-lo na carteira e, nos dias seguintes,levei-o comigo para todo o lado, tirando-o de tempos a tempos doseu novo lugar e olhando para ele antes de voltar a arrumá-lo, aindahesitante sobre o melhor curso de acção. Temia esperar demasiadodaquilo que a mulher pudesse ter para me dizer, isto se quisessedizer-me alguma coisa. Talvez o veneno que a minha mãe, de formatão paciente, tentara instilar-me tivesse sido ministrado também pelomeu pai à sua parte da família, quem sabe se com mais sucesso.Não partilhei a ansiedade que sentia com a minha mulher, masdesenvolvi antes uma série de pequenos subterfúgios que mepermitiam fitar o cartão quando o quisesse, passando mais tempodo que o necessário na casa de banho, fechando a porta do quartoquando lá estava sozinho, chegando até a simular esquecer-me dacarteira na cozinha apenas para, a meio da noite, poder levantar-mesob o pretexto de ter sede e ficar a fitá-lo sob a luz demasiado clarae sem qualquer ruído a distrair-me dessa contemplação. Convenci-me também de que a minha mãe sabia muito mais do que aquiloque parecia e apoiei essa convicção no facto de ter guardado emsegredo esse cartão, achando que a sua casa poderia guardaroutras provas. Sabia as suas rotinas e não me foi difícil entrar-lheem casa durante o seu domingo cultural, que a levava de museugratuito em museu gratuito, e espiar-lhe as gavetas. Não descobrinada e ainda tive de me justificar a Elsa, por ter demorado tantotempo no supermercado.

— Não havia aquele pão de que eu gosto e as filas eram de fugir— respondi, pouco convicto da eficácia do argumento. Fitou-medesconfiada, mas não disse nada, abalando de forma intempestivapara a cozinha onde a miúda não parava de chamar por ela. Fiqueina sala pensando que talvez estivesse a ir longe de mais com este

secretismo desnecessário. No dia seguinte faria o telefonema eacabaria de vez com a incerteza.

A MULHER SOUBE DE IMEDIATO quem ele era.— A tua voz é parecida com a do teu pai — disse ela, numa

vozinha sumida, que parecia dissolver-se entre o auscultador e oseu ouvido, obrigando-o a colá-los de forma incómoda. Temia perderalguma informação fundamental.

— Devíamos encontrar-nos para conversar. Já estou à tuaespera há muito tempo. Quase perdera a esperança — e riu-se, umchilrear em surdina. Encolheu-se ainda mais no cubículo,procurando escudar-se dos olhos e ouvidos dos colegas quepassavam para cá e para lá, falando sobre prémios e apólices.

— Sim — respondeu por fim —, temos muito para conversar.— Temos, sim. Não moro assim tão longe do teu trabalho.

Devias passar aqui em casa. Vou dar-te a minha morada.Tomou nota da morada, sentindo a mão algo trémula sobre o fino

cilindro da caneta.— Estou sempre em casa, por motivos de saúde — rematou a

mulher, sem que ele tivesse ainda acabado de escrever.— Passo em sua casa durante esta semana — disse ele, de

cotovelo apoiado na secretária e mão na testa, procurando conter avontade de sair de imediato do trabalho e ir a correr encontrar-secom esta mulher, como um homem que tivesse uma amante que odesvairasse e o tornasse irresponsável, incapaz de se concentrar.

— Talvez amanhã, se puder ser — acrescentou, sentindo a testaquente, uma onda de calor propagando-se pelo seu corpo.

— Quando quiseres — a voz da mulher soou-lhe mais próxima,tentando-o.

Despediram-se. Pousou o auscultador. A sua mão ainda tremia.Olhou para o post-it onde escrevera a morada. Conhecia o nome

da rua, embora não conseguisse localizá-la com exactidão. Dobrouo papel e meteu-o no bolso da camisa, determinado a sacudir aperturbação em que o deixara aquele breve telefonema. Iaconcentrar-se no trabalho, afogar-se nele e esquecer o irmão, quepor certo não lhe devotaria um único segundo do seu tempo. Mas amaré que esperava nunca chegou, e os papéis que tinha diante dosolhos pareciam-lhe escritos numa linguagem alienígena,incompreensível. Fixava letras que se recusavam a formar palavrase pareciam pairar sobre as páginas, em anárquico desarranjo. Saiupara almoçar com a vergonhosa sensação de ter desperdiçado amanhã. Foi só por altura do café que começou a pensar no facto dese poder encontrar em casa da sua mãe um cartão com o telefoneda sua rival, a qual tratava de puta para baixo sempre que alguém amencionava. Havia engrenagens a mover-se nas suas costas, dasquais ele nada sabia. Talvez a própria mãe pudesse estancar-lhe acuriosidade, embora ele duvidasse da sua boa vontade nesseassunto. Restava a outra mulher.

Tirou o post-it do bolso. Perguntou a um empregado quepassava se sabia onde era aquela rua. O homem sorriu.

— É esta rua — disse como se fosse óbvio. — Mas esse númeroé mais lá para baixo.

Fitou o homem, espantado. Almoçava todos os dias naquelerestaurante há mais de dez anos. Já ali se encontrara com Elsa, asua filha já comera musse de chocolate ao seu colo, numa mesanão muito distante daquela. Até a mãe já ali estivera, com a mala

pousada sobre o colo e os lábios contraídos de desgosto ao ver ossítios que o seu filho frequentava. E ao fundo da rua estava aquelamulher, que não saía à rua quem sabe desde há quanto tempo.Sentiu uma vertigem.

Pagou e saiu, mas não regressou ao escritório. Ao invés,encaminhou-se na direcção oposta, para onde o empregado lheindicara que ficava o número 34. Desceu a rua, o coração a batercom força, o papelinho amarelo na mão. Estacou diante da portaverde, sem pensar naquilo que se diria no escritório sobre o seuatraso, logo ele que era tão pontual.

A mulher morava no terceiro andar. O prédio tinha cinco andarese todo o ar de não ter elevador. De súbito qualquer impedimento lheparecia válido para adiar o encontro. Mas não se conseguiu forçar arecuar. Avançou e tocou à campainha. Depois esperou, de ouvidoencostado ao intercomunicador. Não aconteceu nada. Voltou atocar. Uma voz diferente daquela com a qual falara ao telefoneperguntou quem era. Disse o seu nome e o nome da mulher comquem pretendia falar, em parte esperando que a morada estivesseerrada e lhe tivesse sido concedido um adiamento. Esperou porinstantes, o coração acelerado, as palmas das mãos suadas. Porfim ouviu um zumbido e a porta abriu-se.

Não havia elevador. Subiu os degraus devagar. A porta estavaentreaberta, mas abriu-se quando ele se preparava para bater,surgindo de trás dela uma rapariga negra e gorda, que o olhava comdesconfiança.

— A senhora está na sala — disse a rapariga, dando-lhepassagem.

Seguiu corredor adiante, não reparando em nada daquilo que orodeava, guiado por um rectângulo de luz ao fundo. Seguiam-no os

passos da rapariga, pesados. Respirava pela boca, como umaasmática.

A mulher estava sentada numa cadeira de rodas, de costas paraa porta. Tinha a cortina aberta e espreitava pela janela.

— Está aqui o senhor — disse a rapariga, do umbral.Sentiu-se obrigado a avançar. Ficou parado no meio da sala

enquanto a mulher executava a manobra de se virar de frente paraele. Movia-se com aquilo que lhe parecia precisão teatral. Parou,não quando estava de frente para ele mas numa posição que adeixava a três quartos, o rosto parcialmente visível.

— Podes aproximar-te — disse por fim.Sentiu a rapariga atrás dele a avançar, como que instando-o a

obedecer à sua patroa, e deu um passo em diante.— Senta-te — disse a mulher, com um gesto para uma poltrona

coçada. Obedeceu. Era desconfortável.A rapariga atravessou a sala e desapareceu por uma porta ao

fundo. Reapareceu pouco depois, com uma caixa de cartão nasmãos. Pousou-a no colo da mulher e saiu da sala, fechando a portaatrás dela.

A mulher estendeu-lhe a caixa quadrada. Teve de se erguer dapoltrona para poder pegar-lhe e ficou de pé, olhando para a tampacastanha e para o rosto da mulher, de uma para a outra comlentidão, talvez esperando um sinal que o autorizasse a abri-la. Masela não disse nada e ele voltou a sentar-se, com a caixa pousadasobre o braço da poltrona e a sua mão sobre a tampa. Raspava coma unha no cartão, esperando que lhe dirigissem a palavra.

— Não são coisas importantes — disse por fim a mulher. — Sãoapenas umas coisas que fui salvando ao longo dos anos. Não sabiaque as salvava para ti, mas aí estão. São tuas.

— Salvá-las? De quê?— Do desastre do tempo — respondeu a mulher, sorrindo.

Pousou as mãos sobre as pernas inertes, mas ele resistiu àtentação de lhe perguntar por elas, optando antes por seguir o planoque o levara até ali.

— Tenho pensado muito no meu irmão. A minha mãe — disseele, sorrindo envergonhado — deu-me o seu número de telefone.Pode ajudar-me?

Fitou a mulher, sentindo-se um pobre pedinte. Desviou os olhosdela, para a parede, na qual pendia uma vista marítima, e daí para ajanela aberta, cuja claridade o cegou.

— O teu irmão sempre foi difícil. Rebelde. Saiu de casa mal tevepossibilidades de fazê-lo. Ficou sozinho com os seus livros, comosempre quis. Mas até os rebeldes têm de comer. Dá aulas numcolégio na província. Posso dar-te a morada, se quiseres procurá-lo.

— Não tenho nenhum número de telefone — acrescentou apósuma pausa, como se se desculpasse. Tirou uma agenda dumabolsa que estava pendurada do lado direito da cadeira. Folheou-adevagar e tirou por fim um cartão com um canto dobrado, que lheestendeu. Tinha uma morada, escrita a esferográfica verde. Não eralonge. Duas, no máximo três horas de carro.

A porta abriu-se e a rapariga entrou, pesada.— Está na hora — disse.— A minha carcereira é pontual — disse a mulher, sorrindo. —

Poderemos conversar mais noutro dia, se quiseres.Levantou-se da poltrona e estendeu a mão à mulher, que lha

apertou sem força.— Gostaria muito. — Acomodava a caixa de cartão debaixo do

braço e não sentia qualquer vontade de regressar àquela casa.

A rapariga acompanhou-o à saída e fechou-lhe a porta sem umapalavra, sem sequer esperar que ele acendesse a luz. Tacteou aparede até encontrar o interruptor. Depois desceu as escadas,detendo-se num patamar entre o primeiro e o segundo andar. Tiroua tampa da caixa. Algumas fotografias: o pai e o irmão, debruçadossobre um jogo de cartas; o irmão, num instantâneo de adolescência,de rosto marcado pelo acne e blusão de cabedal de gola erguida; opai, de perna traçada, sentado numa poltrona muito semelhanteàquela em que ele estivera sentado há pouco. Viveriam naquelacasa? Soubera da morte do pai pela boca seca da sua mãe. Nãofora há mais de cinco anos que recebera a notícia. Teria a vida dopai decorrido ali, tão perto da sua, e sem que alguma vez setivessem encontrado?

A luz apagou-se de repente, interrompendo-lhe a ruminação.Pousou as fotografias na caixa e, deixando-a no degrau, levantou-see voltou a tactear até ao interruptor. O telemóvel vibrou-lhe no bolso.Um sms do trabalho, um colega a perguntar-lhe se estava bem. Nãorespondeu. Voltou a sentar-se na escada. Desta vez evitou asfotografias. Um isqueiro de metal cromado, desses que serecarregam com gasolina. O pai usava um destes. Guardava-o nobolso da camisa e ele, pequenino, gostava de trepar por ele acima elançar-lhe a mão ao bolso para o agarrar. Abria-o e fechava-o, abria-o e fechava-o. O som metálico deliciava-o, mas enlouquecia a mãe,a qual se apressava a vir arrancar-lho das mãos. Repreendia depoiso pai, que se ria e acomodava melhor a criança ao colo. Abriu oisqueiro e tentou acendê-lo, mas sem sucesso. Pô-lo de volta nacaixa, onde estava também um par de óculos de leitura, com umaarmação metálica que se desmontou nas suas mãos. Faltava umparafuso. No fundo da caixa pareceu-lhe ver o seu rosto de infância

olhando para ele, mas a luz voltou a apagar-se. Dessa vez pegou nacaixa e desceu às escuras os degraus que o separavam da rua.

Respirou o ar frio com gosto, como um homem que regressassedas cinzentas regiões dos mortos, onde o ar não circula e a luz nãopenetra. No trabalho disse que se sentira mal e tivera de ir a umaurgência. Estava tudo bem, mas esquecera-se de trazer umajustificação e não avisara ninguém porque ficara sem bateria. Ocolega que lhe mandara o sms pensou em dizer alguma coisa, maslimitou-se a olhar para ele com cumplicidade. Viria a descobrir quese acreditava no escritório que se demorara na casa de massagenssituada umas ruas acima. Mas nem nessa altura lhe perguntaramque caixa era aquela que trazia debaixo do braço. Pousou-a nochão do cubículo e quando saiu tapou-a com o casaco. Ao chegar acasa deixou-a na mala do carro, voltando para a recuperar quandofoi à rua despejar o lixo. A mulher não a viu, embora o tivesse vistoentrar em casa. Parecia que apenas ele podia vê-la.

ACORDEI NO DIA SEGUINTE a pensar que padecia de cegueira, que omundo não poderia ter girado desse modo mesmo diante dos meusolhos sem que eu tivesse reparado no seu movimento. Ocupara-mecom a minha vida, com o meu umbigo. Deixara que os meus olhosse fechassem àquilo que me rodeava. Grassava também em meuredor. Não trouxera a caixa para casa, cruzando-me com Elsa, semque ela a visse? É verdade que procurei ocultá-la e me apressei aopassar junto dela. É também verdade que a caixa era pequena. Masainda assim.

Escondi o meu troféu no escritório, por trás dos dossiers quetrazia do trabalho. Guardei comigo o isqueiro e recuperei, do bolsodo casaco que usara no dia anterior, o cartão com o canto dobrado,a coordenada de que precisava para encontrar o meu irmão. Depoisfui trabalhar, pensando na justificação que poderia dar a Elsa parapassar o fim de semana fora. Consumia-me nessa obsessão, e otrabalho escapou-se-me por entre os dedos. Por diversas vezes merepreenderam a falta de atenção. Argumentei com a minhacondição, sem me alongar sobre a mesma, e suportei comestoicismo os olhares trocistas. A minha mente divagava, longe domeu cubículo, da troça dos colegas, da admoestação do chefe.Perscrutava o futuro e não encontrava nenhum modo de me furtarum fim de semana inteiro à harmonia doméstica. Ou melhor,nenhum que não passasse por confessar a Elsa aquilo que metrazia obcecado e ao qual ela não daria a devida atenção,

acusando-me, como já antes me acusara, de me perder porcaprichos e negligenciar a família. Certamente suspeitaria de outramulher. Teria razões para fazê-lo. Voltei para casa sem descortinarqualquer solução.

Após o jantar a solução apresentou-se, de forma inesperada.— Inscrevi-me num retiro de ioga — disse Elsa, quando

estávamos na cozinha, empilhando a louça para lavar. A meninatinha ficado no chão da sala, rodeada de brinquedos. — É este fimde semana.

— O próximo? — respondi, tentando não parecer ansioso,percebendo que o acaso viera em meu auxílio e procurando não odenunciar.

— Sim. Preciso que tomes conta da Rosa.— Claro que sim — disse eu, fingindo que não reparava na

forma apreensiva como olhava para lá da porta da cozinha, temendoquem sabe que catástrofes para a filha, agindo como se meconsiderasse pouco capaz para tomar conta dela.

Explicou-me em que consistia, onde seria, com quem, aquilo queteria de levar. Não ouvi. Pensava já naquilo que teria eu próprio deempacotar, se quisesse fazer a viagem nesse fim de semana. Iriaem busca do meu irmão e levaria pela mão a minha filha, porobrigação mas também para que ela o presenciasse. Pareceu-meimportante.

Era terça-feira. A semana passou devagar. Ocultei o crescendode excitação que ameaçava submergir-me a cada novo dia vencido.Por fim, na madrugada de sábado, Elsa pegou na mala que fizerana noite anterior e foi pé ante pé ao quarto de Rosa, despedir-sedela, tentando não a acordar mas sem sucesso, o que por fim mefez levantar da cama onde estava de olhos abertos, esperando o

momento em que a porta batesse e pudesse pôr o meu plano emmarcha.

Acompanhei Elsa à porta, onde ela passou para o meu colo aensonada Rosa, e despedimo-nos com um beijo. Tranquilizei-aquanto ao bem-estar da criança, ainda que isso não parecesseconvencê-la. Saiu por fim, após fazer uma última carícia à filha.

Carreguei Rosa para a cozinha, de cuja janela pude ver a viaturade Elsa pôr-se em andamento e desaparecer ao fundo da rua.Depois arranjei o pequeno-almoço e sentámo-nos ambos à mesa dacozinha. Rosa, tal como eu, tinha o gosto do segredo e não me foidifícil fazê-la minha cúmplice. Confiava na minha capacidade paracuidar dela, ainda que a sua mãe não confiasse. Além dissoadorava andar de automóvel e comprometi-me a deixá-la ouvir assuas canções favoritas durante a viagem. Conspiraríamos ao somdas suas personagens preferidas, o que parecia deliciá-la.

Empacotei aquilo de que precisávamos e estabeleci a rota. Trêshoras chegariam para fazer a viagem. Guardei o cartão com o cantodobrado no bolso da camisa. Juntei-lhe o isqueiro do meu pai, quepretendia usar como prova se fosse necessário. Pus Rosa nacadeirinha e prendi-a com o cinto de segurança, o coelho depeluche pousado no seu colo. O saco com a nossa roupa foi para abagageira, duas mudas para Rosa e nenhuma para mim, menosdado aos acidentes. O saco dos mantimentos pu-lo aos pés dobanco do passageiro, cheio com bolachas, leite com chocolate eágua, o indispensável para uma harmoniosa conspiração com amiúda.

Rosa adormeceu quase de imediato e pude fazer a primeira horada viagem em perfeito silêncio, sentindo um leve formigueiro naponta dos dedos, uma leve convulsão no estômago, tudo indícios do

nervosismo que pairava em meu redor mas que se recusava emfixar-se na minha pele, ameaçando dominar-me mas mantendo-se,apesar de tudo, ao largo.

A criança acordou com vontade de ir à casa de banho. Distraí-acom canções e parvoíces durante os quilómetros que faltavam até àpróxima estação de serviço, onde se recusou a usar a casa debanho e me obrigou a segui-la em busca do canto mais abrigado,onde se acocorou para urinar como a mãe a ensinara a fazer. Nãoquis a minha ajuda para se limpar e apenas me pediu que, durantetodo o processo, lhe segurasse no coelho. Quando terminouestendeu-me a mão, para que lho devolvesse, e seguiu-me para ocarro, no qual nos sentámos de portas abertas e comemos bolachase bebemos leite com chocolate. Depois retomámos a marcha, cadaum na sua posição, as canções estridentes ecoando dentro dopequeno automóvel enquanto Rosa, num murmúrio, fingiaacompanhar a letra, mas na realidade se limitava a tropeçar nassílabas, virada para a janela, olhando a paisagem que passava, deolhar ausente e mordiscando a parte mais carnuda do seu polegar.

Não foi difícil encontrar a morada que estava escrita no cartão.Ficava no alto de uma pequena colina, quatro edifícios semelhantescercados por um muro não muito alto e um portão aberto, junto aoqual havia uma guarita. Parei o carro a poucos metros do portão e,após assegurar a Rosa que não demoraria, dirigi-me à guarita. Aprincípio o guarda olhou-me como se me conhecesse, mas essaimpressão logo se desvaneceu e foi substituída por uma expressãode profundo enfado. Disse-lhe quem era e ao que vinha. Repeti onome do meu irmão e cheguei até a mostrar-lhe o cartão com amorada escrita a esferográfica verde, que rodou entre os seusdedos, mirando-o de todos os ângulos antes de mo devolver.

— São parecidos, sim — disse por fim, olhando-me de cima abaixo —, mas o seu irmão já não trabalha aqui. Não sei se vale apena entrar para falar com alguém.

A notícia não me decepcionou. Sentia que o caminho não serialinear. Como poderia sê-lo?

— Era só com o meu irmão que queria falar. Não deixounenhuma morada?

— Porque será que as pessoas perguntam sempre isso? —respondeu, a sorrir.

Sorri também, um pouco envergonhado com a minhaingenuidade.

— Mas no seu caso nem tudo é mau — disse ele e, fazendo-mesinal para esperar, voltou a entrar na guarita, de onde regressoucom uma mala de viagem em muito mau estado. Pousou-a aosmeus pés.

— Umas semanas depois de o seu irmão se ter ido emborarecebemos isto. Vinha da Polícia e parece que lhe tinha sidoroubada.

Agachei-me para examinar a mala. Tinha uma etiqueta queindicava que fora expedida de uma esquadra que não ficava sequerno distrito.

— É muito longe daqui? — perguntei eu, apontando para aetiqueta.

O guarda agachou-se junto a mim. Olhou para a etiqueta comose a visse pela primeira vez. Ergueu-se, sem deixar de olhar para amala. Quando voltou a fitar-me empalidecera. Parecia ter algumacoisa para dizer mas não saber como dizê-lo.

— Uma hora, mais ou menos — disse por fim. — É umacidadezinha simpática, com praia. Mas tem poucas atracções, e as

que tem não são muito populares. Algumas são até um poucomacabras.

Não prestei muita atenção àquilo que o homem dizia. Peguei namala, que era muito leve, embora sentisse que alguma coisachocalhava dentro dela. Imaginei o que seria, tentado a abri-la maspreferindo fazê-lo quando estivesse a sós e bem longe dali.

— Têm até um homem embalsamado. Não uma múmia —continuava o homem —, mas um contemporâneo. No museumunicipal, veja lá! Eu nunca o vi, mas li sobre ele no jornal —concluiu.

— E a mala? — disse eu, ignorando-o. — Como é que a malaveio aqui parar?

— Parece que lha roubaram, como já tinha dito, e o seu irmãoapresentou queixa. Quando a recuperaram, não conseguiramcontactá-lo. Como tinha a morada do colégio numa etiqueta,mandaram-na para aqui. Parece que não têm muito espaço paraestas coisas.

Senti uma ligeira pressão nas têmporas.Relacionara o desaparecimento do meu irmão e o cadáver

embalsamado.— Em que direcção devo seguir? — perguntei, incapaz de

formular a pergunta que pudesse clarificar as minhas suspeitas eoptando, ao invés, por limitar o diálogo a coisas práticas.

— Oeste — respondeu e apontou para a auto-estrada que seestendia, longilínea, além da povoação vizinha.

Voltei para o carro, onde Rosa começava a impacientar-se. Dei-lhe um pacote de bolachas, sabendo que o guarda ainda nosobservava, e enquanto ela comia pousei a mala no banco vazio aomeu lado e arranquei, possuído pela insensata semente que as

meias-palavras do homem tinham plantado em mim. Imaginavaencontrar o meu irmão embalsamado, convertido em tétricaatracção numa cidadezinha costeira. Fiz o trajecto em menos deuma hora, cometendo algumas imprudências que me teriam validosonoras censuras por parte de Elsa. Rosa gargalhava, numaexcitação assustada, de polegar na boca, a outra mão fechadafirmemente em redor das orelhas do coelho. Parecíamos ambosanimados por uma energia maníaca, que a entrada na cidade poucofez para dissipar. Estaquei o automóvel diante de uma loja defotografia, para sobressalto de dois homens que conversavam nopasseio, um polícia fardado e o outro, parecido com ele mas maisgasto, como se fossem irmão mais novo e irmão mais velho.Perguntei se sabiam onde podia ver o homem embalsamado, sematentar na ridícula pergunta que fazia e sem que eles tão-pouco ofizessem, indicando, ao mesmo tempo e sem questionar, o caminhopara o museu municipal, o qual não ficava muito longe dali.

Entrei no museu com Rosa ao colo e a mala na mão. No bolsoda camisa tinha o isqueiro do meu pai. Carreguei a minha herançapelos corredores quase desertos do pobre museu até parar enfimdiante do corpo embalsamado. Protegia-o uma redoma de acrílico,coberta por uma fina camada de pó, que Rosa fez questão demarcar com as pontas dos seus dedos quando, segurando-a, meaproximei para ver melhor. Era de facto macabro, embora o homemparecesse apenas dormir. Nada o aparentava a mim. Não era o meuirmão. Soube-o de imediato, embora não visse o meu irmão hámuitos anos. Não era ele. Era apenas outro, mais um desses cujavida talvez tenha decorrido paralela à minha sem que nuncatenhamos reparado um no outro. Fosse como fosse, o meu irmãocontinuava perdido para mim, vivendo quem sabe que tipo de vida,

e eu dissipara-me nesta busca infrutífera, na qual não sentiraqualquer alívio. Saí do museu, segurando a porta para uma mulhere um rapaz de preto, esperando o inevitável telefonema de Elsa e amentira que, com a cumplicidade de Rosa, teria de lhe contar.

TARDE DE MAIS

A MULHER DE VESTIDO AZUL avança entre a multidão que se acotovelajunto ao rio.

Trazem garrafas de champanhe e contam os minutos. Aexpectativa aumenta, palpável. Erguem a cabeça para o céu, àespera do fogo-de-artifício que anuncia a entrada no novo ano.

Perdeu o casaco. Erra tremente, a bolsa junto ao peito. Tem ocabelo pintado de louro e traz três anéis, todos na mão esquerda.

Fotografam a antecipação do momento, como fotografarão oevento e o que lhe suceda. Os mais ansiosos acariciam as rolhasdas garrafas. Vêem-na passar, ela que vai de olhos perdidos noutromundo. Fica para lá do mar, nem acima nem abaixo. Para lá. O maré um meio de lá chegar, mas há outros.

Escorrega na calçada húmida. Os sapatos são demasiado altos,o miúdo tinha razão. As miúdas só se riram, viperinas.

NÃO ME LEVANTO CEDO, DEIXO-ME FICAR. Já a minha mãe se queixava.Mas os miúdos não se queixam. São independentes. Sabem quenão estou a dormir. Podem incomodar-me quando quiserem efazem-no quase sempre. São egoístas e tenazes, como eu. Peguei-lhes a insolência. O resto apanharam do pai e uns dos outros.Damo-nos bem e tenho orgulho de todos. Mas a verdade é quenunca quis ter filhos. Ainda hoje pensei nessa vontade, com pena denão a ter mantido.

Do pai não se fala. Ninguém o proíbe, mas dá-se o caso deconcordarmos todos que é um assunto a evitar. Cumpre asobrigações, inquire à distância do andamento das coisas e é tudo.Os miúdos, quando se lhe referem, tratam-no pelo nome próprio.Bufam quando têm de falar com ele ao telefone. São meus, pari-oseu. É espesso, o sangue entre nós.

Levanto-me tarde. Mas isso não significa que durma muito.Tenho insónias. Deixei de fumar. Mastigo pastilhas elásticas paranão estar sempre a comer. Bebo chás, bebo whisky, embora motenham proibido. Se quiser posso fazer. É esse o meu lema. Estivepara lá do mar e regressei, sei o caminho. Se quiser voltar apercorrê-lo não será porque o whisky me convenceu.

Não trabalho. Tenho muito tempo livre. Administro o dinheiro domeu ex-marido na casa que o meu pai me comprou. Não me queixo.

É assim que as coisas são. De manhã e à noite sou mãe. Durante odia sou eu e é sobre mim que vou falar. Outros irão intrometer-seentre nós, mas não te percas do som da minha voz e chegaremosambos vivos ao fim.

No princípio era eu a fugir de casa.

Dezasseis anos. Seduzida por um homem de vinte e nove.Arrependo-me daquilo que fiz aos meus pais. Mas aquilo que ele mepodia dar era mais urgente. Não me fez trabalhar e fiz aescolaridade obrigatória. Depois sustentou-me. Nunca me pediu porisso nada que não quisesse dar. Sou uma mulher livre, apesar dasaparências.

O pai, aquele-cujo-nome-não-pronunciamos, era arquitecto.Desenhou a casa onde vivemos, a mesma onde vivi com ele.Depois de tudo pedi ao meu pai que a comprasse, e ele nempestanejou. Talvez seja por isso que a mais nova, quando querreferir-se ao seu pai, diga o nome do meu. Luis.

Deixou-nos para trás. Uma mulher sem emprego e três crianças.Fiz com que pagasse. Afinal fora ele quem insistira para que noscasássemos. Não lhe guardo rancor. Sobrevivemos juntos a muitacoisa. Por vezes sinto-lhe a falta.

Tornei-me promíscua. Não me envaidece dizê-lo. Durmo melhoracompanhada. Mas não levo gajos para casa, embora saiba que éisso que pensam de mim. Traço linhas. Protejo as crias.

Circulo. Faço amigos em sítios insuspeitos. Frequentodeterminados locais. Os homens são muito fáceis. As mulherescedem com mais dificuldade, embora também cedam. Mas canso-me com a mesma facilidade com que se cansam de mim. Temossempre a cabeça noutro sítio. Somos todos da pior espécie depredadores, aqueles que se cansam da caça.

Criança, fugitiva, concubina, mãe, esposa, artista, mulherperdida, suicida falhada, predadora cansada, memorialista degaveta. Como foi que cheguei aqui?

Dos primeiros papéis já sabemos, a fuga e o uso a que me dei.

Depois as crianças, uma a cada três anos. Plim. Plim. Plim. Nãofoi difícil reconciliar-me com os meus pais depois disso. Casámo-nos pelo registo. Quando ele acabou por ir-se embora, já eu odesejava há muito tempo.

Mesmo assim tive medo, claro.

Mas as circunstâncias, como também já se sabe, jogaram a meufavor. Nunca tive de trabalhar. Eduquei os meus filhos noanarquismo, a partir de Max Stirner, mas modificando-o à medidaque avançávamos.

Tenho gostos sexuais particulares, sobre os quais não voudiscorrer. Quando me vi sozinha fui forçada a descobrir se haviamuitos por aí que os partilhassem. Comecei pelos conhecidos, a

tactear. Não demorou para que passasse também a procurar entredesconhecidos. Passei a frequentar as redes sociais, à caça.

Pé ante pé comecei também a fazer «as minhas peças», comolhes chamo, relutante, envergonhada. São miniaturas, montadascom paciência. Faço-as com cartão pintado à mão. Pedi ao meuirmão que viesse fotografá-las quando achei que tinha suficientes.Quinze. Mostrei-as, a medo, aos mais próximos. Por insistênciadestes abri a porta aos outros todos. Fizeram-se encomendas.

Não sei qual das duas coisas aconteceu primeiro, ou sequer se aprimeira influenciou a segunda. Mas de repente estava exposta etinha de combater, como os outros.

Seja como for, datam dessa época as três primeiras peças quevendi. Número 17, 24 de Março. Número 12, 7 de Fevereiro.Número 9, 28 de Janeiro. Todas procuravam recriar a sensação deestar pela primeira vez debaixo de fogo, ou pelo menos sugeri-la.

Seguia qualquer um que me chamasse. Queria ser desejada,inscrever-me na memória de todos. Começara a temer a morte, oapagamento, mas nunca temera o perigo. Ousava. Arriscava-me.Tive a sorte de sair com poucas cicatrizes.

Conheci muita gente. Mas vivo longe do centro, resguardada. Osmiúdos dão-me lastro.

Cada noite de liberdade acabava de madrugada. Aguentava bemo álcool, suportava as drogas, dançava, tinha espírito. Todos mequeriam. Sorvia a vida em grandes golfadas.

Em casa, entabulava conversas com estranhos para me distrair.Adicionava pessoas nas redes por capricho. Dos poucos quequestionavam, uns faziam-no por vaidade, a testar o terreno comuma mulher nova, e outros conversavam, ao que parecia, pelosimples prazer de conversar. Criava-se alguma tensão nessasconversas. Desvendávamo-nos. Encontrei-me com alguns, a outrosdeixei de responder. Custa-me prolongar a tensão. Quero tudoagora.

E no entanto.

PÁRA. DESCALÇA-SE. DESEQUILIBRA-SE. Amparam-na. Acocora-se.Acaba por sentar-se no chão. Treme. Insiste que está apenas umpouco bêbeda. Ri-se, de modo frouxo. Acabam por esquecer-sedela. Trauteia baixinho uma canção antiga. Sente as nádegasgeladas.

Ouvem-se palmas. O fogo-de-artifício começa e podem abrir asgarrafas que seguravam de modo nervoso, na expectativa. Passam-nas agora de mão em mão. É entusiasmante acreditar que se poderecomeçar.

Levanta-se, trémula. Caminha para o rio. Os sapatos ficarampara trás. A água gelada entorpece-lhe os pés. Já tem água até aojoelho quando se apercebem dela. Alguns riem-se. Há quemfotografe. Mas ela não saberia dizer. Olha para a frente, não para aoutra margem, mas para além dela. Continua a andar. O vestidoflutua à sua volta, um estranho animal azul. Envolve-lhe a cintura,para melhor puxá-la para longe da costa.

CHEGUEI ADIANTADA. Esperei, em frente ao portão do Jardim Botânico.Vestido azul, salto alto. Meias de rede. Ligas. Casaco comprido,

antracite. A fímbria do vestido sob a negrura do agasalho.Atrasou-se. A rua defronte era movimentada. Temi que algum

conhecido me visse.Entrei para o jardim, de inspiração francesa, e percorri em

passos miúdos as largas alamedas. Mantinha a mão no bolso docasaco, não por causa do frio, mas para controlar os movimentos dotelemóvel. Sabia que mandaria uma mensagem. Não telefonaria.Nunca telefonava.

Além de mim, só um rapaz de casaco preto. Trazia uma melena,também preta, na testa.

Sentei-me num banco frio de pedra, defronte de uma árvore cujonome científico não conseguia dizer sem tropeçar nas sílabas.Parecia-me apenas um carvalho. Estava a ficar aborrecida. Aexcitação escorria pelo meu corpo abaixo e começava a sentir-meestúpida por estar vestida daquele modo. Era a primeira vez quenos íamos ver, a sério que era. Não é só para os outros que tenhode dizer isto, mas também para mim, para minha instrução.

Escrevíamo-nos, se consegues acreditar nisto. Carteávamo-nos.É de rir!

Da primeira vez que falámos disse-me que via as pessoas comocorpos flutuando no espaço, sujeitos a colidir. Achei que era maluco.Depois descreveu aquilo que queria fazer-me. Quando acabou

estava molhada até à raiz dos cabelos. Não por a descrição serexcepcional, longe disso, mas porque partilhava muitas dasparticularidades das minhas próprias fantasias. Via-me reflectida.Mas não vou entrar em pormenores, não há tempo para tudo.

O rapaz observava-me de um modo que julgava discreto,aproximando-se de forma óbvia e fingindo mexer no telemóvel.

Vestira-me daquele modo por saber que me excitaria quando eleme tocasse. Achava que era inevitável. Ansiava por isso e nemsequer tinha a certeza do aspecto que teria. Toleraria inúmerasvariações daquilo que idealizara, contanto que o espírito semantivesse. As palavras trocadas tinham construído umaidealização partilhada, ou pelo menos assim me parecia. Emboraele fosse fugidio, tínhamos estabelecido um léxico comum, para serempregado no encontro que um dia teria lugar.

Chovera durante a manhã. As cores estavam por isso maisvivas, carregadas. O rapaz era como uma mancha na periferia domeu olhar. O telefone vibrou no meu bolso. Uma mensagem dumsupermercado, a recordar-me descontos que nunca me lembraria deusar. Voltou a vibrar enquanto lia. Outra mensagem. «Estou a ver-te.»

Ao longo da alameda havia um jardineiro, de macacãofluorescente e boné. Havia ainda algumas crianças, tocando nasplantas e umas nas outras, empurrando-se e atropelando-se.Tinham batas idênticas. Duas mulheres de óculos escuros euniforme controlavam-nas à distância, com rispidez. No varandim,um par de namorados fotografava-se. Uma mulher sentada falavaao telefone e fumava, a lancheira pousada ao seu lado. Do outrolado do jardim havia um pequeno grupo de escoteiros. E haviatambém o rapaz, passando por trás de uma espécie de palmeira e

surgindo à minha frente. Pediu desculpa pelo atraso, numa vozaguda, ansiosa. Deixei cair o telefone, mas consegui apanhá-loantes que caísse ao chão.

Disse-me como se chamava e que o nome pelo qual o conheciaera apenas um pseudónimo. Desculpou-se de novo e perguntou sepodia sentar-se ao meu lado. Viera a pé e estava cansado.

Recusei, o que pareceu surpreendê-lo. Exigi-lhe que seexplicasse. Fez uma expressão de despeito, os lábios comprimidos.Tinha o rosto pálido e o cabelo era oleoso. Fungou. Depois falou dotio. A prisão, os Pensamentos de Marco Aurélio. Não precisou deme dizer o nome do tio, embora me tivesse agradado ouvi-lo. Mastambém não seria eu a dizê-lo. Ainda não passara assim tantotempo. Por fim mencionou as circunstâncias em que o vira pelaúltima vez, o livro, a folha dobrada em quatro.

Perguntei pelo conteúdo do papel. Enfiou a mão no bolso.Estendeu-me a folha amarrotada. Desdobrei-a. Reconheci acaligrafia. Era uma lista de passwords. Junto a estas havia umconjunto de instruções, numeradas. Na terceira mencionava-se omeu nome. O plano era simples. O rapaz deveria estudar acorrespondência do seu tio comigo e reproduzi-la, não a imitando,usando para isso um perfil falso. O propósito da experiência eraincerto. O primeiro objectivo era atrair-me. Seguir-se-iam instruçõesque nunca chegaram. Arqueia as sobrancelhas, como se issoresumisse a nossa situação. Quis reagir, descompô-lo. Mas fiqueisentada com o papel na mão, de boca aberta, a olhar para o rapaz.Achou que isso significava que eu o compreendia e aceitava.Sentou-se ao meu lado e respirou fundo.

Nunca mais recebi nada, disse. Deu-me o livro, foi-se embora. Edepois nada. Quando ouvi falar do cadáver já tinha passado um

ano. Qual cadáver?, perguntei eu. Enfiou novamente a mão nobolso. Mesma mão, mesmo bolso. Passou-me para as mãos outrafolha de papel dobrada em quatro. Esta era mais lisa, mais dura.Devia reconhecê-las pelo tacto. Era uma impressão de ecrã, umanotícia que dava conta da existência dum corpo embalsamado nummuseu municipal. O homem aparecera numa praia e fora impossívelde identificar. A data da sua descoberta estava sublinhada commarcador vermelho. O rapaz apontou o nome da cidade. Era para aíque ele ia, diz. A data coincide.

Olhei para ele, incrédula. Tudo aquilo me parecia umamonstruosidade, mas sentia-me incapaz de reagir à altura. Soubeainda antes que o dissesse que quer que vá com ele. Espereiapenas que o dissesse. Aceitei de imediato. Não consegui negar-mea seguir esse enigma disposto em meu redor.

Não é longe, disse ele de modo exploratório. Tenho carro, disseeu. O rapaz não soube o que dizer. Não havia nada que pudessedizer. A minha decisão estava tomada, quer fizesse a viagem comele ou a fizesse sozinha. Olhei para ele. Olhava para o chão.Parecia esvaziado, um instrumento sem ninguém que lhe desseuso. Tomei as rédeas. Disse-lhe aquilo que íamos fazer. Nãodiscutiu. Acatou tudo. Despedimo-nos sem sequer um aperto demão. Afastou-se, tristonho, sem olhar para trás.

No caminho para casa continuo sem saber aquilo que pensar.Não pensava no compromisso que assumira com o rapaz. Sabiaque não reclamaria se o quebrasse. Apoquentava-me a facilidadecom que me deixava atrair para qualquer aventura. Tinha fome detudo e não sabia dizer que não. Há tanto mundo que nos passa aolado. Talvez me distraísse da pedra que ainda trazia nas mãos, apesar, a pesar.

Para me distrair no imediato penso no tio do rapaz. Sabia queestivera preso. Que a mulher andara a dizer que a queria matar.Nada disso me dizia respeito. Tínhamos sido amantes nos últimosanos do meu casamento. Bons amantes. Entendíamo-nos bem.Tinha uma outra mulher, com a qual vivia. Escolheu-a a ela, semque eu lhe prestasse grande atenção. Havia demasiada coisa amover-se à minha volta. Ainda nos escrevemos, umacorrespondência cuja importância só compreendi quando mais tardea reli. Passei a pensar nele com uma nostalgia salvífica, como seguardasse o segredo da minha felicidade. Tentei encontrá-lo, massem sucesso. A possibilidade de redenção esbateu-se, restou amemória. Mas espantava-me o esquema que montara. Que quereriaele de mim?

SOB OS SEUS PÉS PEDRA LODOSA, escorregadia. Um passo em frente eo contacto quebra-se. Sente-se flutuar na gentil ondulação. Em seuredor, o balão do vestido. Depois, lentamente, descende. Nãosustém a respiração. A água entra-lhe nas narinas. Tem os olhosabertos no escuro.

Tiram-se casacos. Ouvem-se gritos. Um dos homens baixa-separa descalçar os sapatos. Na zona mais alta há um que larga ocasaco no chão e mergulha. Na escuridão o vestido emite um brilholigeiro. Guia-se por ele, sustendo a respiração. Enlaça-a pelas axilase puxa-a para cima. Arrasta-a consigo para terra. Rodeiam-nos. Jáse chamou uma ambulância. Cobrem-nos com casacos. Um homemajoelha-se junto a eles. Tira a rolha de uma garrafa. Vodka, diz comum sotaque eslavo. O homem recusa, a tremer. Ela endireita-se,como se despertasse, e estende a mão para a garrafa. Bebe umgrande gole. Arrepia-se e contorce-se. Devolve a garrafa e fechandoos olhos deita-se na calçada, embrulhada num casaco vermelho acheirar a fumo.

O RAPAZ SENTOU-SE AO MEU LADO NO CARRO, parecendo desconfortável.Disse-lhe que podia puxar o banco para trás, mas não se mexeunem respondeu. Pôs o cinto e sussurrou que não era preciso.Olhava em redor, encolhendo-se de vez em quando. Fingira ir paraa escola, como sempre. Temia ser visto. Reconheci os sinais. Nãoqueria que o vissem comigo, mas era algo mais do que isso. Nãoqueria ser visto de todo, como se estivesse habituado a esconder-se, a furtar-se às explicações. Não voltara a interrogá-lo. Quepropósito serviria? Não queria saber que vida tinha, onde morava,quem eram os seus pais. Éramos unidos apenas por uma máscarae nenhum de nós parecia inquietar-se com o facto de não termosqualquer intimidade, de comermos quilómetros em silêncio. E noentanto dois dias antes éramos confidentes e amantes. De vez emquando torcia-se no banco e olhava para mim. Quando olhava paraele fugia. Olhava em frente, para a estrada, ou pela janela dopassageiro. Parámos para fazer chichi. Desapareceu no cubículo.Bebi um café e esperei na fila para a casa de banho. Quando saíprocurei por ele no café. Não estava sentado ao balcão nem emnenhuma das mesas. Havia ao fundo uma pequena sala escura,com máquinas de salão. Sobre a entrada um néon vermelho, ondetrês letras se tinham já fundido. Da palavra «Arcade» sobravam aterceira, a quinta e a sexta letras. Tirei uma fotografia com otelemóvel. Um empregado olhou para mim, sem dizer nada. Pareciater vontade de dizer alguma coisa, mas baixou os olhos e continuou

a recolher chávenas de café. Resmungava entredentes. O rapaztambém não estava junto às máquinas. Três adolescentes olharam-me com interesse, mas ignorei-os e virei-lhes as costas. Estaria láfora, junto ao carro. Mas também não o encontrei aí. Estava noexterior, sim, mas não onde o procurava. Estava junto ao parqueinfantil, a olhar para o maciço de árvores por trás da estação deserviço. O vento agitava as copas das árvores. O cabelo caía-lhepara os olhos. Tinha uma barra de chocolate e mordiscava-a,distraído. Não se sobressaltou quando me aproximei dele. Tirououtra barra do bolso e ofereceu-ma. Rasguei o invólucro com osdentes. Chocolate e biscoito. Perguntou se não era melhor irmosandando. Concordei. Faltava pouco. Pediu-me que ligasse o rádio.Era um programa de inquéritos, vox populi. Perguntei-lhe se queriaque mudasse a estação. Encolheu os ombros. Qualquer coisaserve, disse. A música de que eu gosto não passa na rádio,acrescentou. Disse-lhe que não acreditava e perguntei de quemúsica gostava. Actualmente só ouço Bob Dylan, respondeu, eescapou-me um Credo! Riu-se. Pedi-lhe desculpa e ri-me também.Estou habituado, disse. Não parecia resignado, mas desinteressado.Adiante não havia nuvens. O céu era de um azul translúcido.Soprava um vento frio. Liguei o aquecimento. Limpou o nariz com ascostas da mão. Tinha dedos brancos, compridos. Unhas sujas.Perguntei-lhe se o incomodava. Abanou a cabeça. Como é queconheceu o meu tio?, perguntou. As palavras saíram num borbotão.Disse que não acreditava que não o soubesse. Corou. Por dedução,disse ele. Mas não estava lá, não consigo imaginar como foi. Olhopara ele. Percebi o pedido. Poderia ter sido eu a fazê-lo. Vi-mereflectida. Queria ver tudo, saber tudo. Não me contentava comaquilo que os outros me davam a entender. Não o tomara por um

dos meus. Talvez fosse apenas aquilo, aquela história. A atracçãoque o mundo exerce não é igual para todos. Há quem se contentecom menos. Há uma quantidade inevitável de lacunas, claro.Ninguém está imune. Os limites são mais estreitos do que aimaginação ou a vontade e nem um sai saciado. Por isso contei-lheaquilo que queria saber. Uma obra de misericórdia. Não era nada demais. Uma noite de copos, conversa, a casa dele, escura e deparedes despidas, a cama. Foi a primeira vez. Houve mais. Tambémlhe falei sobre elas. Fui tão exacta quanto pude, mesmo sabendo deantemão que haveria lugares onde as minhas palavras nãochegariam. A linguagem também tem os seus limites, como tudo. Ea forma como vivemos nos outros e estes vivem em nós não cabenessas fronteiras. Quando acabei convidei-o a fazer mais perguntas,se assim o desejasse. Mas não disse nada. Tomei a iniciativa eperguntei se achava que o cadáver era do tio. Duvido muito, dissede imediato. Para que serve então a viagem? Para te certificares?Encolheu os ombros. É uma aventura, respondeu. Quero ver comoé que acaba. Resisti a dizer-lhe que não acabava, que não haviadesenlace e as coisas se encadeavam umas nas outras sem parar,e acabei por não dizer nada. Começou um noticiário. Estávamos achegar. Ouvia-se o rumor do mar, para lá dos feios blocos deapartamentos. Rugia baixinho, na expectativa. Tinha saudades domar. Perguntei-lhe se queria parar e ir à praia. Disse que não faziaquestão. A pele do seu rosto era branca, leitosa. Não pareciahabituada ao sol. Fiz-lhe a vontade, embora me apetecesse descerao areal. Iria depois, qualquer que fosse a resposta que o museunos reservava. Nenhuma das respostas possíveis me obrigava àceleridade. Podia apanhar sol, sentir o ar salgado na cara. Não fariadiferença alguma. Subimos a escadaria do museu e o rapaz, gentil,

deu-me passagem. Não era necessário bilhete. Apontaram-nos oinício da exposição. Não perguntámos pela atracção principal, porvergonha. Mas como não havia mais ninguém apressámo-nosatravés das salas vazias, ignorando as fotografias e os rectângulosde cartão que as elucidavam, os gráficos, os artefactos históricos. Omuseu tinha a forma de uma ferradura. A sala onde estava ocadáver marcava o momento da inflexão. Aproximámo-nos docadáver, eu de braços cruzados sobre o peito, o rapaz seguindoatrás de mim, a arrastar os ténis. Fomos para lados opostos doacrílico que o cobria. Parecia mumificado, embora se percebesseque o processo não era antigo. A pele emanava um brilho ténue.Quis tocar-lhe, apoiar a ponta dos dedos na sua testa, nos seuslábios. Queria saber que tipo de frio emanava. O rapaz olhou paramim. Não é ele, pois não? Olhei para o cadáver. A roupa é muitoparecida, acrescentou o rapaz. Era ele? Não tinha a certeza.Poderia ser. Inclinei o pescoço para um lado e para o outro. O rostoera semelhante, ou seja, desenhado do mesmo modo. Haviadiferenças substanciais no nariz. O do cadáver não era torto, nemparecia ter sido partido. Tinha os olhos fechados. Os dele eramcastanhos, quase pretos. Seria importante ter podido vê-los antesde responder. O cabelo era mais escuro, não daquele castanhoclareado. E era mais ralo também. Nunca o vira vestido daquelemodo, embora lhe reconhecesse alguma elegância. Mas gravata epulôver não era aquilo que associaria com ele. Não é ele, disse porfim. O rapaz concordou, embora não deixasse de deitar uma últimaespreitadela ao cadáver. Olhámos um para o outro. Tomava a minhapalavra como boa. Estendeu-me a mão por cima do acrílico. Apertei-a. Era fria, mole. Pensei com asco naqueles dedos no meu corpo.Dois dias antes teria deixado que me possuísse. Estava então

imbuído de um poder que já não lhe pertencia, como um homempossesso a quem o espírito abandonasse e deixasse, confuso, nomeio da rua. Larguei-lhe a mão com agrado. Olhei em redor. Haviaoutras coisas na sala. Fotografias do areal, dispostas de modocronológico. Olha aqui, disse o rapaz. Junto aos pés havia umaplaca de cartão, rectangular. Tinha uma fotografia e um pequenotexto. O rapaz inclinou-se para diante e leu o texto. Era sobre oembalsamador. Acocorei-me para ver a fotografia. Um homemgordo, com óculos, de camisa de flanela. Sorria, orgulhoso. Quissaber quem seria, como seria a sua voz, o interior da sua oficina.Nada acaba. Salta daqui para ali, urgente, inconstante. Vamosembora? Disse que sim. Na entrada, junto à recepção, estava umamulher de cabelo curto. A recepcionista ria-se dela. Talvez tivessedito alguma parvoíce. À saída insisti em ir à praia, embora eleargumentasse com as horas. Apontava para o relógio que não tinha,apreensivo. Ignorei-o. Teria de confiar em mim. Sentámo-nos naareia, junto às rochas. Ergueu a gola do casaco e encolheu-se. Fuiaté à beira da água. Fiquei gelada, mirrada dentro do casaco,indefesa. Nem mesmo quando depois me ofereci às águas do riosenti semelhante frio. Foi preciso que o rapaz viesse buscar-me,levando-me enlaçada no seu braço. Parece que há sempre alguémpara afastar-me da água, para me resgatar. É uma ilusão perigosapara se manter. Na praia fui subjugada, no rio senti-me tentada. Nãohá uma razão, não é assim que funciona. O coração pende, o corpoinclina-se de acordo. É fácil desaparecer.

ADEUS

O HOMEM TINHA PÉSSIMOS DENTES. Era disso que me lembrava melhor.Daquilo que me disse guardei registo e não tenho necessidade deusar a memória. Quanto a ele, arquivara-o na categoria exígua daspessoas que se distinguem pelos seus dentes e pensei tê-loesquecido, mesmo sabendo das dificuldades que tenho paraesquecer até o mais anódino dos conversadores. E se finjo que osesqueci a todos é apenas para aliviar a memória, a qual reservopara outras coisas, coisas minhas, mas não é raro que regressemdo fundo da minha memória e queiram recomeçar a conversa. Oumelhor, que me obriguem a ter de recomeçá-la. Detesto pontassoltas e se me deparo com alguma tento de imediato atá-la. Nãopreciso que me recordem da insensatez desta aversão. Bem sei queo mundo é um gigantesco novelo de pontas soltas. O que se passaé que, apesar disso, ainda é possível atar uma ou outra, dar-lhessentido.

Tal pareceu depois ser o caso com o homem que tinha mausdentes, com quem primeiro falara acerca de um seu amigo,desaparecido de circulação e com contas a prestar. Não mealongarei sobre essa contabilidade. Não era eu a credora, tão-poucoa minha fonte. Pagavam-me para o encontrar. Melhor: pagavam aquem me pagava. Caço recompensas a mando duma empresa do

ramo. Não seria elegante dar muitos pormenores. Basta que digaque se tratava de uma situação que envolvia dinheiros alheios, comcontorno semelhante ao do famoso caso de Jean-Claude Romand,embora menos sangrento e de explicação mais fácil: o falsointermediário tornara-se ganancioso e, na iminência de serdesmascarado, pusera-se em fuga. O seu último acto conhecidofora um jantar, no qual participara o homem com maus dentes.Soube-o por outro dos seus amigos, também ele presente nessejantar, um canastrão que usa casacos de cabedal e camisasdemasiado apertadas, com o qual me deitei algumas vezes aoabrigo de uma névoa de vapores etílicos, os quais, ao dissiparem-se, me descobriam na sua cama, da qual me apressava a sair,jurando manter segredo e obrigando-o ao mesmo. Não sei se o fez,os do seu tipo raramente o fazem, gostam de se vangloriar das suasconquistas. De cada vez que nos encontramos, aborda-me comuma cumplicidade que me constrange e em relação à qual poucoposso fazer. Pontas soltas, como eu dizia. Ainda que não sejapossível atá-las, há algumas que nos permitem partir em busca daconclusão para uma outra que, na aparência, não se relaciona comela. Foi assim que cheguei ao desdentado. Os contornos exactos decomo o fiz são segredo. Também tenho direito a contribuir para aonda de informação incompleta que varre o mundo.

Do desdentado diziam-me que era o mais próximo de umconfidente que tinha o fugitivo. Também havia mulheres, claro, masdas poucas que encontrei nenhuma quis falar daquilo que meinteressava, demasiado ocupadas a mastigar rancores antigos. Ohomem que eu procurava não parecia ser daqueles que deixamsaudades, e foi com alguma expectativa que fui encontrar-me com oseu confidente. Não o incomodou que quisesse gravar a conversa,

pois era afinal muito pouco aquilo que tinha para me dizer. Oumelhor, era muito, mas pouco que se aproveitasse para o efeitopretendido. Do fugitivo sabia todas as manias, até algumasdaquelas que se guardam para o quarto. Contava tudo aquilo quepodia, como se temesse que o tempo lhe faltasse, rindo-se muito eexibindo o desastre gengival que era o seu sorriso. Dos negóciossabia pouco, ou dizia saber pouco, não sei. Cansei-me depressa deo ouvir e deixei-o falar. Olhava-o com atenção fingida e abanava acabeça a intervalos regulares, incitando-o a continuar, mais por vícioprofissional do que por interesse naquilo que dizia. Escutei-o commais atenção quando me falou de como se tinham conhecido, napraia, numa praia que eu também frequentara, a umas horas dacapital. Tínhamos mais ou menos a mesma idade, embora eudisfarçasse melhor a minha. Teríamos estado na mesma praia,talvez mirando-nos de longe como os adolescentes tendem a fazer,sem coragem para mais? Algum deles teria tentado atingir-me comuma bola enquanto me dirigia para o mar, procurando chamar-me aatenção da pior forma possível? Daquilo que o homem me contou, ofugitivo teria sido bem capaz de fazê-lo. Era-lhe difícil abordar asmulheres de uma forma normal. Já ouvira as mesmas queixas dealgumas das mulheres que o tinham conhecido. O seu percursoparecia marcado por uma certa instabilidade, para usar um termosuave. Isso só tornava mais inconcebível que alguém pudesse terconfiado naquele homem para gerir o seu dinheiro e saber ondeinvesti-lo. Mas a miragem da riqueza gera muita cegueira, e hámuita coisa que se finge não ver quando há dinheiro envolvido.

Fosse como fosse, não havia nada que o desdentado pudessedizer-me que tornasse mais fácil encontrar o fugitivo. A políciadeclarou a sua impotência, os cães de caça que algumas vítimas

contrataram, e nos quais eu me incluía, regressaram de cabeçabaixa e mãos vazias. Por uma vez parecia que conseguira serdiscreto. E na sua discrição conseguiu que se esquecessem dele,relembrado apenas nos tribunais onde se acumulavam as inúteisqueixas. A minha vida pessoal obstinou-se em distrair-me dele e deoutros casos, de tal modo que me foi sugerido que umas fériastalvez me fizessem bem. O tom era de ameaça, não de bondade.Obedeci. Fiz uma pequena mala e reservei um quarto num resortcampestre, com piscina aquecida e horizontes largos.

Passei o primeiro dia numa espreguiçadeira, enrolada emmantas, a folhear jornais regionais. Não trouxera nada que ler eentretinha-me com fotos de baças inaugurações e resultados deconcursos de pesca, erguendo os olhos de vez em quando para oimóvel campo que se estendia à minha frente, seguindo sem grandeinteresse as vagarosas idas e vindas de um tractor, acompanhandoo voo de aves cujo nome desconhecia, afundando-me numa espécieperigosa de inércia. Na realidade, e embora não fosse esse oobjectivo inicial, o meu exílio da capital era também uma forma deme pôr à prova, de abandonar a febril necessidade de ocupação,sempre ocupada com outras coisas que me impediam de me ocuparcomigo.

À noite jantei, sozinha, no restaurante do resort, procurando nãoolhar demasiado para aquilo que faziam os poucos hóspedes. Haviaum casal novo, a rapariga com cabelo em cachos e dentes salientese o rapaz magro e tenso, e um casal velho, que sorria muito a todosos empregados e entre si, embora não os tenha visto pronunciarqualquer palavra. Um homem sozinho, numa mesa ao canto, decachucho no dedo e garrafa de vinho num lustroso frapê, olhandosem disfarçar na minha direcção, erguendo o mindinho de cada vez

que dava um gole. Não teria dificuldades em levá-lo para o meuquarto. Fingiria ser outra pessoa, outro tipo de mulher. O mundooferece-nos oportunidades limitadas para que nos transformemosnum dos nossos outros eus, e eu sentia que estava já perto deesgotá-las, e que qualquer nova alteração poderia ser definitiva.Permaneci portanto no meu lugar, tentando alhear-me doscomensais e pensando, de todas as coisas possíveis, no fugitivo,que se obstinara também ele em mudar de pele, talvez de mododefinitivo. Na sua fuga talvez tivesse parado num sítio parecido comeste, rodeado, como eu, por exemplos aleatórios da raça, elespróprios porventura em processo de mudança, sacudindo pedaçosda velha pele que insistiam ainda em colar-se à nova. Fui dormir apensar em peles que se rasgam para revelar uma outra, nova emais brilhante, igualmente fadada ao cansaço e à sujidade. Masdormi sem sonhar com quaisquer metamorfoses, um sono límpido enegro, imperturbado.

Ao pequeno-almoço o elenco era outro, embora o casalsorridente continuasse presente, sentado à mesma mesa. Haviacrianças, poucas, sentadas à mesa com os pés a balouçar,comendo de forma distraída vigorosos croissants, deixando cairgrandes migalhas. Os pais, de olhar ensonado, não reparavam. Asempregadas sim, com reprovação, cochichando entre si e sorrindode forma maquinal se alguém as interpelava. A observação matinal,tão exacta à claridade nova, sempre me aborreceu. Prefiro oentardecer, as zonas de sombra, onde a decifração é maisnecessária. Voltei a atenção para um novo molho de jornais,acabado de chegar, ignorando os diários de circulação nacional, queme chamariam de volta a uma realidade que me expulsara e da qualme sentia ainda alheada. O jornal da região trazia na capa uma

chamada de atenção — «Atracção insólita!» — e dirigi-me deimediato à página onde se desvendaria o prodígio, ansiosa porsaber o que se designaria por insólito naquelas paragens. Haviauma foto, um esquife com uma tampa de vidro numa sala escura, epor baixo desta uma legenda: Sob a redoma o desconhecidopermanece por identificar. Não era visível aquilo que estava emexposição, apenas uma silhueta que poderia ser de qualquer coisa,e a princípio achei que se perdera alguma palavra antes de«desconhecido», coisa que não me espantaria, pois habituara-me jáaos exóticos hábitos de revisão daquele jornal. Mas no texto o casotornava-se mais claro. Numa cidade vizinha, cujo nome não éimportante, havia uma sala recôndita no museu municipal onde semantinha um cadáver embalsamado, exposto sob uma redoma. Otermo era inexacto. Aquilo que resguardava o cadáver era umavitrina. O cadáver, continuava o texto, surgira na praia em Janeirodo ano anterior e, apesar das «inúmeras diligências», não forapossível estabelecer a sua identidade. Optara-se por embalsamá-lo,assim mesmo, sem qualquer explicação sobre aquilo que poderia terlevado a uma tal decisão. Nenhum dos poucos entrevistados — umpolícia, um autarca, um médico — se desviava da tese, absurda, deque esse procedimento poderia ajudar à identificação futura docorpo. O texto, seco em demasia para um cabeçalho tãoentusiástico, terminava sem adiantar qualquer explicação para oevento, qualquer teoria. Mas haveria certamente mais a dizer,soubessem fazer-se as perguntas certas. É sempre disso que setrata. Levantei-me com o jornal nas mãos, a ler novamente o artigosobre o desconhecido. Sentia vontade de beber mais café.Aproximei-me da máquina, onde uma mulher me obstruía apassagem. Não compreendia como aquela funcionava, quanta força

devia aplicar de modo constante para que pudesse sair o melhorcafé possível, ou pelo menos um que não fosse expelido emespirros. Expliquei-lhe como deveria fazer e espreitei enquanto elaseguia as minhas instruções, sorrindo muito e de modo ansioso.Não se saiu muito melhor, mas sujou um pouco menos a toalha.Corou. Agradeceu-me baixinho e seguiu o seu caminho. Enquantotirava o meu café pensei se seria a primeira vez que a mulher viauma máquina daquelas. São muitíssimo comuns em hotéis. Talvezfosse a sua primeira vez enquanto hóspede de um hotel. Pareceranervosa. Estaria a esconder-se e temera que a minha intervenção adesmascarasse? Seria sequer uma mulher? Era-o, claro, mas issodeixara de ser o mais importante. Passei pela mesa da mulher e vi-aa olhar para mim, mas creio que já não a reconheci. Estava àprocura de um homem em fuga, de novo na pista, curiosa masfarejando a medo.

Para relaxar entretinha-me a resolver casos práticos. Um fugitivopára num sítio como este. Quais são as probabilidades de serreconhecido? Dependem em primeiro lugar da sua notoriedade e,em segundo lugar, da circulação de informação. O meu fugitivo eraum desconhecido, embora popular no seu pequeno círculo. Apenasum grande acaso levaria a que o reconhecessem. Era discreta aperseguição que lhe moviam, privada, sem queixumes públicos esem notícias. Evitariam qualquer ruído se o soubessem morto eembalsamado numa cidadezinha discreta. Continuaria a interessar-lhes aquilo que acontecera ao dinheiro. Se soubessem, nãoperderiam tempo a informar-me. Teria de ver por mim própria, nãoera?

Fui ao quarto buscar o tablet e desci para vir sentar-me junto àpiscina, onde não estava ninguém, e ali fiquei, a pesquisar, a

matutar.

OS POUCOS DENTES QUE SOBRAM são esverdeados, com camadasancestrais de tártaro. É isso que nele mais chama a atenção, e amulher força-se a não olhar demasiado para eles, pois irão distraí-la.

Aperta a mão do homem, apresentando-se. Aceita com umsorriso a cadeira que ele lhe oferece. Pousa o telemóvel sobre amesa e espera que o homem se sente. Oferece-lhe uma bebida,que ela recusa. Ele serve-se de whisky. Pede-lhe permissão paragravar a conversa, apontando para o objecto em cima da mesa. Eleassente. Liga o gravador e descreve o assunto que a leva ali,mencionando o nome do homem que procura. Não provoca nenhumestremecimento. O caso é-lhe familiar. Já o terão interrogado antes.Isso facilita-lhe o trabalho. O homem mantém as mãos pousadas emcima da mesa, os dedos entrelaçados em redor do copo.

Primeira pergunta. Tem ideia do paradeiro? Abana a cabeça.Segunda pergunta. Pode sugerir algumas alternativas? Menciona ashabituais. Terceira pergunta. Pode descrevê-lo? Começa por dizerque é alto. Ela interrompe-o. Psicologicamente, acrescenta. Ohomem recompõe-se e recomeça. Impulsivo, violento, calculista,diplomático. Quarta pergunta, com a ressalva de dever ter sido feitaantes. Foi lesado na burla? Quase nada. Não tenho dinheirosuficiente para ser burlado. Ri-se. Quinta pergunta. Gostaria desaber onde está escondido? O homem ergue as mãos. Olha paraela como se a resposta fosse óbvia. Responde na mesma. Claroque sim. Teve este azar, mas é um amigo. Quer-se sempre bem aos

amigos. Tem-se saudades. Sexta pergunta. É verdade que háepisódios anteriores, de burla e até de violência? Revira os olhos.Suspira. Podia contar-lhe muita coisa. Conte, diz ela. Estávamos emErasmus, começa ele. Pronuncia um nome que ela conhece,escandinavo. Uma noite de passagem de ano. Adolescentes embusca de diversão. Bebidas alcoólicas em sacos de plástico. Frio eneve. Sorri, cúmplice. Fomos todos adolescentes, não é? Elaaquiesce, revirando os olhos. O homem volta a sorrir e continua. Ahistória que lhe conta fá-la lembrar-se doutra, dum livro que Dianaestivera a ler. Um nome escandinavo. Não era que as históriasfossem iguais, mas havia, a uni-las, um veio fino de experiência queune ele também uma dada geração de europeus e que é alheio àscondições meteorológicas. O que se dá na neve dá-se também emclimas mais temperados. Uma tensão permanente, umanecessidade de iludir as regras. Conseguia ouvir Diana a falar-lhedo livro, a abarcá-las às duas nessa juventude sem fronteiras aquem este falava. Estava errada. Foi falsa até ao fim, a puta. Nãohavia nada a uni-las. Olhou para o homem, ao qual não deixara deouvir, sem se sobressaltar quando o discurso cambiou para aviolência. Conhecia a história, contada por outros, embora commenos adornos. Não era uma história que por si só permitissechegar a conclusões sólidas. Ouvira outras. Não o quereria poramigo e não confiaria nele. Perguntava-se como fora que tinhamconfiado em semelhante criatura, mas, no fundo, desejava apenasque o homem aparecesse morto e lhe encurtasse o cansaço. Quelhe desse tempo para remoer no seu pobre julgamento de Diana,em como a quisera e confiara nela. Encornada outra vez. Que sina!Sétima pergunta, diz ela, recomeçando após um período de silêncio.O homem terminara a sua história e ficara a olhar para ela, à

espera. Sétima pergunta, repete. Endireita-se na cadeira. Onde ecomo é que se conheceram? Na praia, responde sorridente. Diz onome da praia com gosto. Reconhece-o. Passava lá férias com ospais, a acampar. Conhecemo-nos como os miúdos se conhecem,continua. De um momento para o outro temos um amigo novo!Descobrimos depois que morávamos perto um do outro.Continuámos a encontrar-nos e acabámos por ir para o mesmoliceu. Nunca perdemos o contacto. Oitava pergunta. Esteve com oamigo na noite antes de este desaparecer? Concorda. Nonapergunta. Pareceu-lhe que estava a despedir-se? Pagou-nos ojantar, o que não era habitual. Fizera um bom negócio. Obrigámo-loa discursar. Ri-se. Despediram-se à porta do restaurante. Pareciaapressado, como sempre. A manhã seguinte foi um choque paratoda a gente. A mulher acena com a cabeça, empática. Decidiu nãolhe contar que outras investigações indicam que estaria a despedir-se. Visitara a irmã numa sexta-feira à noite e no domingo fizeratrezentos quilómetros para visitar os pais. Viajou muito no fim desemana seguinte, pequenas viagens solitárias de carro, numitinerário errático que a lista de transacções do seu cartão de créditoajudou a esclarecer. Soube-se onde estivera, não aquilo que fora láfazer. Comparando o trajecto com a informação biográfica de quedispunham não foi difícil relacioná-los. Visitou sítios onde vivera ouestudara, uma cidade do interior onde passara um ano a trabalhar, aterra onde nascera a sua primeira mulher, bagatelas sentimentais.No dia em que desapareceu sabe-se que comprou um bilhete decomboio para a praia que o homem mencionara, mas não se sabese o usou. Décima pergunta, diz ela. Eu estive aqui? Não, diz ele.

Desliga o gravador. O homem diz que lhe pode contar muitacoisa. Dá exemplos. Olha para ele sem reagir. Disse-lhe que eram

dez perguntas. Não tem tempo nem vontade para ouvir mais. Eaqueles dentes!

O HOMEM TEM DENTES NOVOS. Desta vez bebe chá. Sorri ainda mais enão se impacienta comigo quando hesito quanto ao modo decomeçar. Saber como extrair coisas dos outros é uma técnica querequer manutenção. Os dias de inactividade deixaram-meenferrujada. Exponho enfim as razões que me trazem de volta, semmencionar o cadáver embalsamado. Evitarei a todo custo deixá-losaber, pois estou a trabalhar para mim e posso dar-me ao luxo deguardar segredo.

Concorda em ajudar-me naquilo que puder. Pergunta se destavez também terei um número fixo de perguntas. Ri-se, os dentesdemasiado brancos alinhando-se, perfeitinhos, falsos. Todo eleparece ter sido infectado por essa falsidade, uma pessoa deplástico. Um andróide!, diria Diana. Esfregaria as mãos uma naoutra e redobraria a atenção com que observava a criatura. Paramim seria apenas plástico. Porque não me abandona este fantasmada companhia dela? Não é a primeira vez que me deixam. É difícilestar comigo. Obsessiva, dizem. Violenta, queixam-se. Nunca traí,nunca bati. Mas menti, como todos mentem. Que me importa aquiloque dizem? Não havia nenhuma entre elas que tivesse continuado asussurrar-me ao ouvido.

— Primeira pergunta — digo, para me concentrar. Volta a rir-se.Ri-se demasiado. Preferia-o sem dentes. Dessa vez também a ouvi,a sibilar-me um nome. Cyril Kornbluth. Tomei nota, enquanto elecontava a história da passagem de ano. Já a conhecia, mas só

dessa vez me ocorreu o livro que Diana lera no ano anterior. E,quando isso aconteceu, ouvi-a. A sussurrar, com aquela pronúnciaperfeita. Cyril Kornbluth.

Ergo os olhos. O homem tem a chávena a caminho da boca.Olha-me, curioso. Recomponho-me.

— Primeira pergunta — repito. — Quando se conheceram, napraia, sabe o que ele estava lá a fazer?

— Estava de férias. Como eu.— Sim. Mas estava com os pais? Ou com uma colónia de férias?

Talvez algum parente?— Claro. A tia Diana!Respiro fundo.— Quem é?— Era.Ignoro a correcção. Repito a pergunta.— Era a tia favorita. Uma solteirona com dinheiro. Adorava-o!— Conheceu-a? Na praia?— Não. Ele estava sozinho. Andava à vontade, ela não lhe

proibia nada. Só ouvi o nome da boca dele. Sei que morreu, noestrangeiro.

— Eles davam-se?— No dia a dia?— Sim.— Bem, isso acho que não. Nunca falava dela. Dos pais falava.

Conheço-os bem. Estão muito desagradados com este assunto.— Curioso verbo.Não responde logo. Olha para mim. Sorrio-lhe.— Apesar de tudo, parece-me a melhor forma de definir a atitude

deles — digo eu. Concorda. Bebe outro gole de chá. Continua.

— Seja como for, não falar dela não significa que não sedessem. Ele foi uma pessoa muito esquiva, pouco dada aintimidades.

Faz uma pausa. Põe o ar grave.— Acha estranho falar dele no passado? — pergunto, à espera

de que a resposta seja algo onde possa enfiar as unhas.— Estou rodeado de morte. Falo de toda a gente no pretérito

perfeito. O ano passado morreram os meus pais, um primo, trêsamigos e o meu cão. O círculo está a fechar-se. Foi por isso quepus isto.

Aponta para os dentes.— Para ir mais apresentável. Sei que vão lembrar-se de mim

sem dentes. Mas assim vou mais satisfeito.Sorri, cansado.— Caso a sua vez seja a próxima.O meu tom fá-lo retrair-se. Estou impaciente, embora não saiba

bem com que fim. Há uma névoa diante dos meus olhos, o caminhoé incerto. Fico ansiosa.

— Acha que sou supersticioso?— Eu própria sou supersticiosa.O tom. Condescendente, apressado.— Não sou um ignorante — diz ele, ríspido.Desculpo-me, finjo ignorância, mas não tenho medo da rispidez

dele.— Estudei História, sabe?Procuro não revirar os olhos. Vai lançar-se numa arenga sem fim

e vou ser obrigada a magoá-lo. Devo acalmar-me, ser maispaciente. Nada tenho a ganhar com isto.

— Não segui a vocação primária. Fiz outra vida. Mas tenho boamemória. Um historiador polaco definiu um rei como uma entidadecom dois corpos. Um é físico, claro. Mas o outro é político,simbólico. Dos dois, o físico, ou mortal, é o menos importante.

Olha para mim, a ver se estou a acompanhá-lo.

— É uma variação da ideia de alma, esticada para cobrir umpovo inteiro e prolongar dinastias. Se a reduzir à minha escala, semsúbditos nem dinastias, serve de metáfora para a memória.

Mexo-me na cadeira. Percebo que não vou obter mais nada, queme resta seguir a pista que me deu. Se o outro se estava adespedir, não iria despedir-se também da tia, ou pelo menos da suamemória? Terei de segui-lo. Talvez esteja embalsamado e posto sobuma vitrina. Fico sentada e escuto o homem dos dentes.

— Estamos todos de passagem, acorrentados uns aos outros.Vivemos na memória alheia, até daqueles que não conhecemos enada sabem sobre nós. Há rostos que vivem nas minhasrecordações e com os quais me cruzei apenas uma vez. É uma vidaincompleta, claro. Sobrevivemos em partes dispersas, sem quealguém consiga reconstituir-nos na totalidade.

Parecia ter deixado de falar para mim e falar agora apenas parasi, à volta de uma ideia que não sabia bem como formular. As suaspalavras acercavam-se de um núcleo fugidio, esquivo, ao qual nãoconseguiam chegar.

— Vivemos simbolicamente nos outros. Não consigo dizê-lomelhor, por muito que tente.

Ri-se, farto de se ouvir. Mas ainda acrescenta mais umaspalavras.

— Queria impressioná-la com uma metáfora certeira, mas faltam-me as palavras. Há sempre alguma coisa que falta. É isso a vida,não é? Há sempre alguma coisa que falta.

Sorrio. Acabou por conseguir, apesar do discurso errante. Deu-me a desejada metáfora. Já não se ri. Bebe outro gole de chá e olhapela janela. Alheou-se de mim. Tanto melhor. Já tenho o que quero.Ponho-me de pé, devagar. Acalmei. Olha para mim sem interesse,espantado que eu ainda ali esteja. Estendo-lhe a mão, que apertade forma enérgica mas por instinto, um automatismo. É óbvio que asua mente vagueia. Pensa com certeza naquilo que lhe falta. Nãodigo nada sobre as suas perdas. Que poderia eu dizer que lhe fosseútil?

Em casa planeio a viagem. Mas não demoro a distrair-me. Abrouma garrafa de vinho. De copo na mão vou sentar-me no chão juntoà estante da sala. Tenho poucos livros. Desses, alguns eram deDiana. Não os abro. Não lhes toco. Guardo-os na prateleira maisalta. Na última, junto ao chão, guardo álbuns fotográficos. Tiro umdeles. Capa castanha de pele, uma boa encadernação. Foi daminha mãe. Abro-o, apoiando-o nos joelhos. Fotografias de férias.Passo para as últimas páginas. Procuro um conjunto de fotografiasa cores. Agfamatic 55 C.

Sou eu na praia, de biquíni e bandelete. Devo ter uns doze anos.Tenho os braços abertos. Sorrio. Estou a fazer uma pose habitualnessa idade, a de mestre-de-cerimónias. Abro os braços parachamar a atenção para a praia atrás de mim. Noutra estou com omeu pai, os dois de costas para o mar, ele sem sorrir, de mão empala sobre os olhos franzidos, a ficar com barriga. Noutra aindaestou com a minha mãe, ambas sentadas numas escadas, ela de

boca aberta, capturada no acto de dizer alguma coisa. Devolembrar-me de mostrá-las ao meu pai.

Todas essas fotografias estão cheias de outras pessoas, outrosbanhistas. Detenho-me em particular nos rapazes da minha idade.Não encontro semelhanças com nenhum dos dois, seja o dosdentes ou o seu amigo desaparecido, e no entanto talvez estejamambos presentes. O copo de vinho está vazio. Fecho o álbum.Esfrego os olhos, com força. Levanto-me para ir à cozinha. Naprateleira mais alta está um livro, de lombada colorida, azul-claro ecor-de-rosa. Psicadélica. The Man Whose Teeth Were All ExactlyAlike. O título está escrito em letras negras, perfeitas como aprimeira dentição. Rio-me, resignada. Diana vive ainda, irónica erebuscada na sua forma de comunicar. Na cozinha encho outrocopo de vinho. Deixo o álbum no chão e as luzes acesas e vousentar-me em frente ao computador. Pesquiso por cyril kornbluthgreen teeth. Lá está, na wikipédia: Kornbluth never brushed histeeth, and they were literally green. Suspeitava que seria isto, umfarrapo de um momento, uma história contada ao acaso por Dianaque tomara residência na minha memória. Esquecera-a. Mas foi-merecordada. Como é estranho o tecido da nossa vida!

SAIU DE CASA CEDO, o cabelo ainda um pouco molhado, e desceu àgaragem.

Tinha um Stingray laranja, cujo motor ronronava.O carro envaidecia-a.Custara-lhe caro. Esperara três anos por ele.Conhecera Diana, que o adorou e esperou com ela.Mostrou-lhe uma fotografia, uma mulher junto a um carro.Uma escritora — sempre os escritores!Pele clara, frágil, mas de rosto fechado e cigarro na mão.O Stingray dela era branco, como o vestido.Não era frágil, não vestia de branco.Já nem sequer fumava.Mas não pensava em nada disso enquanto conduzia.Nesses momentos o seu pensamento flutuava, embora contido

no habitáculo.Pensar no carro enquanto o conduzia pacificava-a.Preferia viajar sozinha. Nem sequer tinha rádio.Debaixo do banco tinha um revólver, do qual Diana nunca soube.Não deixaria que lhe roubassem o carro.Protegia-se de ameaças que outros consideram improváveis.Perseguia fugitivos, animais acossados.Era expectável alguma ferocidade.E não deixaria que lhe roubassem o carro.

Já o empunhara, para dissuadir. No entanto, nunca premira ogatilho.

Estacionou junto à praia.Sabia que ninguém esperava que fosse ela a sair do automóvel.Comentaram-no. Chegaram-lhe aos ouvidos os sons dessa

surpresa.Fotografaram o automóvel, de longe. Não fez caso deles.Observou o areal, mais largo do que se lembrava.O mar era negro, imperscrutável.Dispensou-se de descer as escadas.Chega-lhe o cheiro, o som, a areia cinzenta estendendo-se mar

adentro.Dirigiu-se aos que lhe cobiçam o carro.— O museu? — perguntou ela.— Ao fundo da rua, no jardim com a árvore grande —

responderam-lhe, apontando.Era uma mulher-polícia. Musculada. Atraente.Um nome de homem tatuado no pulso esquerdo. Aliança.

Tatuagem de mãe.Seguiu a direcção indicada.A árvore era frondosa, sim, mas a raiz impressionou-a mais.Nodosa, serpenteante. Vetusta e ameaçadora.O museu era um pálido edifício, escondido a um canto.Na recepção pediu um mapa da colecção.Uma das mulheres riu-se dela.— Não se perde — disse a outra, abafando o riso.Agradeceu a ironia e prosseguiu a visita.O edifício era frio, demasiado escuro.A colecção era, na sua maioria, fotográfica.

Pesca, indústria, caminho-de-ferro, turismo.O percurso, diga-se, era elementar.A manufactura era local. Gralhas, más reproduções.Tinha um charme pitoresco.Mas a única coisa que tinha para ver era o cadáver.Estava ao fundo, numa sala redonda.A vitrine estava suja, poeirenta.A pele do homem emitia um brilho baço.Não era quem ela procurava — claro que não era!E já nem sequer precisava que fosse.Era a viagem pela viagem. Percebia-o agora.Perguntou-se por que motivo o teriam embalsamado.«Para ajudar na investigação», disse-se.Por capricho, pensou ela.Para perpetuar o mistério, sussurrou Diana no seu ouvido.Engoliu em seco.Não voltou a olhar para o homem.Fez o caminho de volta e cruzou-se com um velho de chapéu

escuro.Levou a mão à aba para a cumprimentar.Junto à saída havia postais.Comprou um, uma paisagem.Moitas hirsutas e nevoeiro. Um campo de jogo coberto de chuva.A linha final do campo corta a fotografia ao meio.Acima, a névoa. Em baixo, o reflexo desfocado de uma tabela de

basquetebol.

Sobre o Autor

RODRIGO MAGALHÃES

Rodrigo Magalhães não é casado, não tem filhos, não tem hobbies,nem animais de estimação; não tem tatuagens, nem piercings. Sabenadar, mas não sabe andar de bicicleta; não sabe negociar; não temjeito para títulos. Não vive bem sem música; não tem a discografiacompleta de Bob Dylan, embora gostasse; não é de opinar; nãogosta de ser fotografado; não consegue ler só um livro de cada vez;não gosta de falar ao telefone; não tem televisão. Gosta muito dapalavra «não».