A insônia do vampiro ivan jaf-

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As aventuras de um vampiro com insonia pela história do Brasil e de Portugal na idade média. pode ser usado nas aulas de História por profs.

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Apêndice

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Capítulo 29

Capítulo 28

Capítulo 27

Capítulo 26

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Capítulo 25

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Capítulo 24

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Capítulo 23

Capítulo 22lil !l111!);) Ili'111 !li;I;1 1,'1 ,111\' d"

Capítulo 21

Capítulo 20

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Capítulo 16

Capítulo 15i",1 ,Iv

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Capítulo 14

Capítulo 13

Capítulo 12

Capítulo 11

Capítulo 10I' ~j( \::111"11 I, I dI ',I l!l i1j 111(!li •• ,- •....•.••••••

Capítulo 9iJil'" 'I'iíll, 111.1'" 1\1111 PIII,ill'1(',I'III\" ",'" """

Capítulo 8~li\;( I \ I,," i;-I (~, :.! 11~~"1';" il:) l)~;d < () r l:,'

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Capítulo 7!.,)i.HI'\i i: j:i[u \\11\;d ("-,t;'~ ,\ 1.l1il

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Capítulo G

Capítulo 5

Capítulo 4

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I~IIi,#I1

II•

.'•lvan Jaf

mais conhecedores da natureza humana e do VamplrlSmo. Podemos

estudar, aprender a ler, a pintar, a falar outras línguas. Podemos nos

desenvolver espiritualmente. O espírito não volta ao que era antes, du­rante o dia, como o cabelo e as unhas.

Procurei, portanto, a psicanálise, que é uma das furmas de desen­vulvimento ao alcance dos vampiros e o que mais se aproxima de um

tratamento" .

Naturalmente, a psicanalista era uma v~lll1pira também.

Como eu poderia me abrir, falar de mim, sc'm disfarces nem men­

tiras, P~lLI uma psicanalista humana, normal? Eu a mataria de susto na

primeira sessão - além da dificuldade de arranjar horário à noite.H{l muitos profissionais liberais vampiros espalhados por uma ci­

dade grande. Meu técnico de inform{ltica, que me socorre quando umvírus invade meu computador, entra voando pela janela do meu escri­tório. Tenho um encadernador de li vrus cuja oficina é em um jazigo

perpétuo no cemitério do Caju.

Nós precisamos "viver", como qualquer um. E prestamos serviçosuns aos outros.

A minha psicanalista-vampiro tinha consultório em um prédio, na

orla de um parque com flores, gramados e árvores frondosas. Devia sermuito bonito durante o dia, mas isso nem eu nem ela íamos saber nunca.

À noite era sinistro, Icomo nos convén1, con1 morcegos enormes voando

entre as copas das amendoeiras e v~lgabundos com ares ameaçadores.Ela morava no décimo andar. O edifício era luxuoso, portaria com

piso de mármore branco, maçanet;ls douradas, tapetes orientais ... ainda

bem que eu não sofria de ausência de reflexo, como acontece com aJguns

vampirus, pois ~lSparedes eram todas espelh~Hbs e o porteiro teria ficldomuitu assustado.

Apertou minha milo com firmeza. Seu corpo físico devia ter uns 40anos. Entre nós é uma gall:' horrorosa dizer que uma vampira é bem con­

servada. Tinha um sorriso muito doce e franco. Um sorrisu de quem resol­

veu todos os seus problemas. Um sorriso que deix;lva a gente à vontade.Eu a achei muito bonita. Cabelos escuros presos no alto da cabeça.

Jeam e camisa social de seda preta. Um olhar penetrante, como o das

corujas. Um corpo leve e ágil, como o dos morcegos. Dois caninos pon­tudos se dest;lcando quando sorria.

Quando ela blou meu nome ... seu tom de voz era suave, mas grave,nlllt'n rn1110se viesse de aJl!um lugar muitu profundo. E seu hálito nilo

A lnsônia do Vampiro

fedia a abatedouro, como o da maioria de nós, mas, ao contrário, era

corno um passeio por um campo de lavanda.Eu não sabia nada sobre ela. Tinha sido indicada por um amigo, um

joalheiro judeu, vampiro, sofrendo havia séculos ele uma grave mania

de perseguição.

Fiquei curioso para conhecer o "relato" dela."Relato" é a maneira pela qual a pessoa virou vampiro, e quase sem­

prt é o tema que surge na cunversa quando dois de nós se encontram

pela primeira vez. Mas não est~ívamos ali para trocar "rt1atus·'.() consultório era numa ckpendê'ncia isobda do apartamento.

Ao contrário do que eu esperava, era alegre, colorido, com quadros

abstratos nas paredes, móveis modernos e um grande janelão aberto

voltado para o parque.

Ela se sentou numa poltrona preta, de apar2'ncia muito macia e ma­

ternal; e eu me deitei em seu "divã", um caixão de jequitibá maciço,

com braçadeiras de prata, acolchoado por dentro com um veludo preto

espesso e com dois travesseiros de renda branca, um para a cabeça e

outro para os pés._ Deve entrar muita luz do sol aqui, durante o dia - eu disse.

~- Com todo esse janelão ...

Foi um comentário bobo, que demonstrava todo o meu descon!i)rto._ Certamente - ela sorriu. - Mas eu nunca vi.

_ É tudo muito bonito. E impedvel - continuei, sem saber ()

que fazer.- Tenho uma ótima diarist~1.

- Não consigo encontrar uma boa ...- O nome "diarista" nos deix;l inconscientemente de m3 vontade.

__ É verdade. Este mUIHlo IÚO foi feito para os v;unpiros. Vou ten­

tar encontLlr um;l "noturnisra ".

Ela riu. Eu j-jquei olhando para o tetu.

Numa primeira sessiío de an;llise, não h3 como evit~n certo p:lI1ico.

() sujeito est;Í prestes a re\'olver o passado, a mexer em {lguas p<lrac1as,a revirar todo o lodo do fundo, a fazer a sujeira vir à tona. Ser \'ampiro

só piora as coisas. Eu tinha mais passado que um livro de História. E a

sujeira, o lodo ... O que eu estava fazendo ali?

- Vamos começar? - ela perguntou, docemente.

E foi assim que inici;lmos minhas sessôes de análise, uma vez por

semana, às quintas-feiras, às três horas da madrugada .

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- Não posso ficar assim eternamente ...Ela sorriu:

- Não somos tão eternos assim ...

Tinha razão. É claro que somos bem menos mortais que as pes­soas comuns, mas também morremos. O sol nos torra. Se cortam

nossa cabeça e a afastam bem do resto do corpo, ou se espetam uma

estaca no nosso coração ... () mais comum em vampiros muito antigos

é enlouquecer e se matar. Se jogam no fogo, ou esperam o sol nascer

deitados na areia da praia, ou sentados tranqüilamente na varanda

do apartamento.

Meu apartamento tinha varanda.- Vamos nos concentrar nas Glusas de sua crise, e não na insônia

- ela insistiu. - Você acabará dormindo.

- Tudo bem.

Ela também explicou que psicanálise para vampiros era diferente

da que se pratica com humanos.

- No seu caso, por exemplo, não é possível nos

basearmos nas relações com pais e mães biológicos

porque, depois de tantos séculos, não há como selembrar direito deles, não é?

- Não lembro mesmo.

- Os vampiros têm um segundo nascimento,

que é a noite em que viraram mortos-vivos, e esse

costuma ser um trauma mais marcante do que () par­

to, o desmame ou uma surra do pai. Nesse segundo

nascimento, surge inevitavelmente um segundo pai,

~__ ou mãe: o vampi.ro, ou vampira, que os transformou"':~:': em mortos-VIVOS.

~ IJtt,. E ,I 1: F' .,"',:-:.• +.' ." - ~sse eu reCOf( o lem. ()J um van1pJ[o11' •.•.,.,.maluco.

- Nossos segundos pais são mais importan­

tes do que os pais biológicos porque não nos

dão a vida, mas a quase-eternidade, o que gera uma rela­

ção de amor e ódio muito mais profunda. E duradoura ...-Entendo ...

- Vamos partir daÍ. Do seu n:lS(llll('lllo (01110

vampiro.

Quanto à minha insônia, logo na primeira sessão ela afirmou ser

apenas uma conseqüência.

- Conseqüência de quê? - perguntei.

- Estamos aqui para descobrir.

_ Nlas eu preciso dormir. Tentei me enterrar, sem caixjo, mas nem. '

aSSln1 conseguI._ Esse método só dá certo para males físicos, você sabe.

- Estou desesperado ..._ A instll1ia é o sintoma ele uma crise. E ela se agrava nos vampiros,

por terem dias infinitos pela frente. Mas é apenas um sintoma. Não se

preocupe com ela. Quando a causa passar, a insônia passa.

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_ Certo. Então vou iniciar contando o meu "relato", em Portugal, no

século ...Ela colocou a mão direita em meu ombro. Seu toque foi suave e

relaxante. E o mais espantoso é que não a senti se mexer. Eu podia jurar

que não havia sido a mão dela, porque sua voz continuou distante, vin-do lá da poltrona. Mas só havíamos nós dois ali.

_ Não _ ela disse. - Por favor. Nada de começar pelo "pai" e vir

até o ano 2006 ... Basear o processo psicanalítico num resgate da memória

pessoal de um sujeito de ')00 anos levaria toda a eternidade ...-- É verclade.

_ Um ego de 500 anos não tem mais jeito - ela riu. - Faremos

uma recapitulação da sua vida, como a psicanálise prega, mas não foca­da na sua pessoa. Em nossas sessões, você trará à tona histórias de outros

vampiros que conheceu. Vamos ver como eles viveram e enfrentaramseus destinos. E como o influenciaram.

_ Vou ficar falando dos outros?_ É uma boa maneira de tentar aplacar a angústia egomaníaca que

faz as pessoas não conseguirem se desligar dos seus problemas pessoais,não acha?

_ Não sei por onde começar ..._ Escolha alguCm no passado ... Algum vampiro que tenha sido

importante na sua vida mudado seu destino ...Ficamos em silêncio. Ela esperava que eu começasse a falar, mas me

senti vazio e desconfortável.Mexi-me um pouco no caixão. Fechei os olhos.Deixei afinal o espírito me guiar, para trás, no tempo; nas lembsanças ...

O primeiro a surgir foi Raimundo Pascoal.Meu velho amigo Raimunclo Pascoal. Um vampiro que, na Lisboa

do século XVIIl, enlouqueceu e resolveu ser pai.

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os protestantes, quetambém fizeram uma

intensa caça às bruxas

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A Peste Negra matoumilhões de pessoas apartir do século XIVna Ásia e na Europa.A doença, causadapor uma bactéria, étransmitida ao homem

pelas pulgas dos ratos.Em seu primeiro estágio,a peste provoca febree inchaços na pele,chamados de bubos- dai ser conhecida

também como pestebubônica. Em seguida,a bactéria invade a

corrente sangüineae causa hemorragiainterna Hoje em dia érara e mdlS facilmente

controlada, graças aouso de antibióticos.

A Peste Grande foi

a maior epidemia dePortugal. Na época,muitos a chamaram

de "peste sem nome",porque era proibidomencionar a doença.Prejudicou a economiado pais, pois mUitoscamponeses morrerame deixaram as terras

da IgrejiJ e dos nobressem cultivo. O governoimpôs uma série demedidas preventivas,como o isolamento e

a sindlização das casasdos doentes, além

de punições áquelesque não cumprISsemas normas: multas,açoitamento e atémesmo a morte.

de um velho moribundo que agonizava junto a uma pi­lha de cadáveres.

Era o ano da Peste Grande, como ficou conhecida a

terceira e maior epidemia de todas, em que chegaralli amorrer setecentas pessoas por dia em Lishoa. Já não ha­via onde enterrar os corpos. Jogavam-se os «HLlveres em

valas comuns, às dezenas, para serem comidos pc!os «les,ratos e doninhas.

A peste era fulminante. A pessoa podid cair morta na

rua sem antes ter sentido nada. A Igreja tinha certeza de quese tratava de castigo do céu pelos pecados dos cristãos-novos.

O mau cheiro dos corpos apodrecendo era insuportável.Mais de um terço da populaç;lo de Lisboa morreu.

Umas 40 mil pessoas.

As epidemias de Peste Negra sempre foram consi­deradas grandes geradoras de vampiros. Mas isso é ummito. O motivo não era a peste em si.

Um tratado publicado pela Igreja, denominado Maf.­

leus mal(~jicarum, de 1484, e aprovado pelo papa Inocên­cia VIII, reconheceu a existência dos mortos-vivos. Pou­

co depois, a Reforma Protestante corroborou a crença de

que a Peste Negra gerava esses mortos-vivos, com o pró­prio Lutero afirmando que ouvira cadáveres mastigandoem suas tumbas. Isso só reforçou o mito.

Na verdade, o fato de não se dar um enterro cris­

tão decente às vítimas, pela rapidez e qHantidade em quemorriam, levava o povo a acreditar que os mortos nãohaviam morrido em paz, e isso jc1os predispunha a acharque estavam gerando mortos-vivos. Quando os ouviamse mexer. .. Mas era comum cadáveres se mexerem, e até

se autodevorarem, porque muitas pessoas atacada;; pelapeste, n3 pressa, eram enterradas ainda vivas. Sei disso

porque foi o que aconteceu comigo.Acordei do torpor da doença dentro de uma cova ain­

da aberta, ao ser puxado para fora por uma figura sombria,numa noite gelada de dezembro de 1506, em Lisboa.

Fui erguido no ar sobre os outros cadáveres, e o homem,muito magro e alto, com uma cabeleira branca imensa, in-

clinou a cabeça sobre u meu pescoço e mordeu minha ju­guIar. Lembro apenas que estremeci e comecei a ouvir meu

coração bater forte, como um tambor numa gruta, cada vez

mais fórte, e senti um alívio completo de todas as dores quevinha sofrendo por causa da peste, e chorei de felicidadeenquanto via imagens e u\lvia suns deiminha infinci;l. Mel!

curpu j()j amolecendo e esfriandu, balançando nos hraçosdu vampiro como uma calça no v:\T:l1 numa noite fria, atC­

qUl· ele-retirou os dentes, arrotou t' me jogou lk volta :1 pi­lha de cadáveres, COIl1U os hum:lllos Clzem com o pauzill!JodC'Puisque acabam de chupeIr o picoll-.

Assim que ele se aLIstou tive uma sede terrível e chu­

pei o sangue de um corpo de mulher que estav;l perto,também vivo, e que acabara de ser chupado pelo mesmovampiro. Havia sangue dele no pescoço dela.

Foi assim que me tornei vampiro.Não foi nada grandioso.

- Você está contando o seu "relato". - A psicana-lista balançou a cabeça.

- Saiu sem querer... - me desculpei.- Nada aqui sai sem querer.

- É que isso tem ligação com a forma como encon-trei Raimundo ...

Não era a Peste Negra, portanto, que gerava os vam­

piros, como acreditava o povo. O que acontecia era que,quando se espalhava a notícia de que a epidemia estava

assolando uma cidade, vampiros de todas as partes vi­nham para farrear com o sangue fúto dos moribundos.

E tinham liberdade de ação, já que ninguém se preocu­pava em investigar as mortes.

Na embriaguez da hehida, não se preocupavam emmatar as vítimas depois, como deve ser feito; ao contrá­

rio, deixavam restos de seu próprio sangue lambuzados no

pe~coço delas, as quais, por sua vez, precisavam de sanguee mordiam os corpos meio-mortos ao lado, bebendo restos

de sangue de vampiro, tornando-sI' v:llllpiros l:llltll("lll, ,_assim por diante.

--:'.fifi""•••••••,,,,

A Reforma Protestante

foi um movimento de 4contestação das práticas

da Igreja Católica no •século XVI que dividiu ocristianismo, fundando •

as Igrejas Protestantes, IIMartinho Lutero

liderou o movimento, "apresentando COIllO

pl'illcipals reivilldicacóf'~_ IIo fim ela compra doperdào 1)PloI,pe;ri" I

COllletlciop " lr"cill';(J('das E,crlll1r.r', (,11111 ",

so elll 1011111) 11,)1,1 !l', Iidiolllas de' 1 ,J(I,II',II·.

Afirmou a e,II'<I(liI,II\I'moral e IlldIVlilll.rII',II,'atingir a SaiV<lldl', '.1 '111

precisar de rlt(l,II'., ' 1 '1111'

exigia o cat(illi 1"1111 ,

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As feiterias feram

as primeiras bases

que os portuguesesmontaralT, nas coiônias

Elas serviam para

gual'diu suprimentoscomo comida, armas e

ferramentas, e também

como po';to piHaestclbel"cer trocas de

produtos com indlos.A rir,'iils, no

Brasil, foi fumlacla em

15U4 em Cabo friO

- hojl' unia eiclddedo estado cio Rio de

Janeiro.

As capitaniashereditárias foram

criadas para ajudar

Portugal a colonizar asterras brasileiras

O rei dividiu o território

em enormes "fatias",

que iam do litoral atéo interior descollhecido,

para entregá-Ias

a quem qUisesse

explorar suas riquezas.Os berlf'ficiados

eram c11alllaclos de

"donatárlos", porque,

apesar de Ilão seremos donos da terra,

reprec,entavam aautondade máxima 110

local. Os dOllatários

Ilao pilgavam impostos,mas deviam fUlldar vilas

e atrair colemos para

cultivar a terra,

Raimundo Pascoal foi um desses vampiros a chegar

a Lisboa em 1569, atraído pela peste, depois de mais de

trinta anos peregrinando pelos campos miseráveis de

Portugal, alimentando-se de vacas, ratos e uma ou outrarapariga que lhe lembrasse a amada Almerinda.

Vinha com uma sede tremenda. Assim que acabou de

chupar o sangue do velho, ia partir para o pescoço ele umanegra praticamente morta, com o corpo já coberto pelas fe­ridas, quando eu o arrastei para os fundos ele uma constru­ção de pedra e ordenei que parasse com aquilo.

_ Chupar o sangue dos mortais é uma arte que ne-cessita de capricho e moderação - disse a ele, com meuar afetado de vampiro culto.

Eu já era um vampiro experiente nessa época, com4R anos de corpo mortal e mais 63 de vampiro criado

na metrópole, freqüentando a Corte da Rainha viúvaD. Catarina, levando uma vida calma e refinada, culti­

vando meu espírito, dedicando-me a prazeres eruditos

como a pintura, a música e a literatura e acompanhando

a expansão colonial portuguesa, que, àquela altura, já es­tabelecera feitorias por toda a África e dividira o Brasil

em capitanias hereditárias.Não queria ver minha Lisboa infestada de mortos-

vivos sem nenhuma classe; por isso, rondava à noite as

valas onde jogavam os corpos para impedir que vam­

piros como Raimundo gerassem mais vampirqs comoRaimundo.

Ele me escutou, humilde, de cabeça baixa. Eu já esta-

va de costas, me afastando, quando ouvi seu pedido:

_ Queria ser como o senhor. Estou cansado de serum morto-vivo sujo e atrasado, vestindo essas r@upas

rasgadas e molambentas, retiradas de cadáveres de ce­mitério. Quero ser assim ... Falar bem ... Usar punhos de

renda, gargantilhas e perucas ...Alguém que sinceramente nos admira, que diz que

fará tudo para ser como nós, nos é irresistível.Foi assim que começou nossa amizade.

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A lnsônia do Vampiro

L---- ------.----_/ ..--

.r '--_

A idéia de !Juinto

el'a uma

antiga profecia, Uplcado per'íocJo barroco

portugués >:'.;11,:,

segundo d qual PortuCJa!

sucecierlcl os quatro

g'·alld~·, wlll;~'''QS ela

AntlCluldacle 82IJllónia,Medu-- F\;\!"~~;"i,C; I'pua

~ P,:II f Ia C p"clre

j('SUltCi ,t\JltUI"iIG \\2Ira

It:,'Uf~J('-11 il~'UL: d ,;cie,'d no

IIIUI"I"lt-'lllu H-:"I CI,-ie a

IÇJI·f::'.icl CI:ltcJlic':1 l:Jusc(j':a

rede]ir ;':1Réiorma

f'rol,,·~.tilllll· ,,O que fiCOU

(Lllil C cntre:-

r~E-"rcnl(iJ) I reunindo

un-Ia PI"oposta poiitKaP Iell(jlu:,a pala ailrrnar

o c1cslitlQ e a missão da

Coroa Pmtuguesa de

IUtlt& cristãos e Judeus

tluma única crença.

'.----'-,'--=:~_;;F;,:~

simplesmente sumira num turbilhão de sangue e areia.Quando a primeira nau chegou a Lisboa trazendo a no­

tícia, Raimundo Pascoai estava no cais, como tàzia todas as

noites desde que o rei partira. Ao saber que o corpo não fóraencontrado, gritou que D. Sebastião não havia l1lorrido 1

Tanto confundira o rei consigo mesmo que acredi­

tava que D. Sebastião era imortal como um vampiro. Ecomcçou a gritar no meio do povo que o rei voltaria I

(:OIllO ninguém queria acreditar na morte física do

rei, nJO havia mesmo um corpo para provar sua morte, e

o fmatismo católico da época bcilitava a crença em qual­

quer absurdo, a verSJO de Raimundo Pascoal se propa­gou como f~)go em palha st'cI.

E, na verdade, chegou até nossos dias.

Ele er:\ um vampiro teimoso. Se ainda estivesse mor­

to-vivo, seria sebastianista até hoje, ou seja, acreditaria

que D. SebastiJo não morrera e que voltaria para levarPortugal novamente aos seus dias de glória, consertando

tudo o que está errado e fundando o <)Ul!lt,) !lll!,t'li ••.Mas D. Sebastião nJO apareceu nunca mais. Nem os

deram notícias dele. Portugal, tendo gasto o

que nJO tinha na empreitada,perdido a maior parte de seus

fidalgos e precisando pegar di­

nheiro com a Espanha par:l pag:1r

o rei acabou mesmo partindo para a África, com oi­

tocentas naus. Raimundo quis ir junto, mas tive de con­

vencê-ia da inutilidade de um soldado que só poderiacombater à noite.

Foi sorte meu amigu nio ter ido. O rei nio quis se­

guir os conselhos prudentes de guerrear a partir da costa,apoiando-se na esquadra naval. Resolveu ir terra adentru

e vencer o inImIgo em casa.

Os mouros gostar:lm dess:1 estratégia. Deixaram queos inimigos se afundassem cada vez mais nas areias du

deserto. Quando jj n:lo havia mais :ígua nem comida,

D. Sebastiio e us 16 mil homens que ainda estavam de pé

fóram atacadus e destroçados. Os poucos que conseguiramescapar levaram a Lisboa :1notícia: não haviam visto o rei

de Portugal morrer nem cair prisioneiro. D. Sebasti:lo

fv10uros eram os povos

árabes muçuimanos

do Norte da j1.frica que

ocuparam a regiãoda Peninsula Ibérica

durante a expansão do

Império Muçulmano, noséculo VIII d.C

O domínio rnuçulmaflo

começou em 711 e 56

temllrlOU em 1492,

(-0111 as ~Juerras dp

reconquista.

O longo perlodo ele

dominação rJei>:ou

marcas profundas da

cultura .31'abc 1--13ilrl9ua,

na arqultf'llüa e nas

praticas ITltilt,lres dos

povos daquela região

•a lvan Jaf•

Constantlnopla,PaiesliIld e f'v'lt1rro(os

forar1l palcos de grandesbatalhas entre crrstaos

e muçulmanos durante

as Cruzadas- uma

série ele batalhasqú'éos árabes muçulmanos

e os europeus cristilos

travaram ao longo departr' da Id,1dc· Média

por rdzéJe', pollticas _p religiosas. Urna das

prltlClpeil'. dlspllta'. era

pelei posse dil <' idildr.' de

Jerusalem, local silnto

pala ludeus, Cttstilus

e IllUçullTlallos

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o resgate aos mouros pelos nobres que sobreviveram, acabou anexado à

Espanha, em 1580, e se afundou de vez.Com o reino passando por tantas dificuldades, o povo tão desiludido

e miserável, o sebastianismo criado pelo meu amigo tornou-se uma epide­

mia espiritual, alienante, como as novelas de tevê hoje em dia.Nesse período, eu morava na minha quinta, a uns vinte quilômetros

de Lisboa. Construíra, num porão sem janelas, de paredes de pedra,

um sarcélfago de mármore com uma tampa bem pesada, onde instaleium cômodo caixão de nogueira para passar confortavelmente os dias. À

noite, saía para passear em Lisboa, onde possuía um pequeno sobradono Bairro Alto, e ia à Ópera, ao teatro e às festas na Corte. Era recebidonormalmente, sem que ninguém desconfiasse ele que tninha pele com-

pletamente branca não era pó-de-arroz.Algumas noites, não resistindo à tentação de beber sangue humano,

atacava alguma fielalga. Depois, me apropriava de seus bens, principal­mente ouro e jélias, e dessa fórma juntava dois remorsos num só.

Raimundo Pascoal seguia meus passos.Vestia-se como eu, aprendia a andar como eu, lia o que eu lia (de­

pois que o ensinei a ler), assistia aos espetáculos que eu recomendava,enfim, tentava ser uma cópia mais nova de mim.

Mas era meio louco. Isso acontece com freqüência. Simplesmente

há espíritos que não se adaptam ao vampirismo.Nunca esqueceu Almerinda.Fora transformado em vampiro justamente quando o que mais

queria na vida era casar-se e ter filhos. Essa impossibilidade eterna odesesperou para o resto de suas noites.

_ Não se deve transformar uma pessoa em vampiro se ela est~1pres­

tes a realizar um desejo -lembrou minha psicanalista. - Seu espírito

fica preso a esse desejo irrealizável._ É verdade - concordei._ Assim como levamos as marcas do nosso corpo físico para a eterni-

dade dos mortos-vivos, também levamos os desejos insatisfeitos.

_ E naquele tempo não havia psicanálise ... Minha sorte é que, de­

pois de semanas na agonia da peste, quando fui transformado em vam­piro, já não desejava mais nada a não ser morrer.

Page 11: A insônia do vampiro   ivan jaf-

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Santos Padres são os

"Pais da IgreJa", queviveram entre os séculos

11e VII, no Oriente e no

OCidente, d'lvu',gandoe construindo mUitos

dos conceitos e normas

da Igreja Católica que

vigoram até hojeMuitos deles foram

perseguidos e mortos

por suas atlvlrlarlps e

Idelas, Santo Ago"tlnhoe São Jerônlmo foram

algum dos SalltosPadres,

Em 1580, o relllo

português se

subordinou à Espanha

A Rl'stauraçãc), ocorrida

seis décadas depois,

se deu por uma

conspiração formada

por UITI grupo de

nobres que levou o

duque de Bragança ao

trono, restabelecerldo a

soberania portuguesa,

culpa em dela, por "ter a madre seca". Talvez, por ser

religiosa demais, não inspirasse muito a libido real.

Não era para ser uma gravidez comum. O rei pre­

cisava procriar com sua rainha e ter um filho homem, a

fim de assegurar uma suceSSJO tranqüila. Por isso nJO se

falou em outra coisa por muito tem po em Lisboa: como

fazer D. João V ser pai. .

Foi então que Raimundo Pascoal voltou a pensar no

assunto com obsessão, como se o problema do rei fos­

se também o seu, numa mistura de desejo particular e

patriotismo.

- Raimundo projetava-se na figura elos' reis - a

psicanalista Lllou. - O rei é uma encarnação ela figura

paterna e estabelece um vínculo muito forte com seussúdi tos.

- Pois é. () problema de D. João V passou a ser o

problema do meu amigo vampiro. Gerar um filho.

o sexo real virara assunto de Estado. A rainha

D. Maria Ana Josefa chegara da Áustria havia j~l dois

anos para dar infantes à Coroa, e nada. () rei, toda a Cor­

te o sabia, cumpria a sua parte duas vezes por semana,

religiosamente. O povo fazia nove nas e oraçê'>es.

A rainha seguia os preceitos médicos. Ficava abso­

lutamente imóvel depois de o rei sair ela cama, l;;jara que

não se perturbassem os líquidus comuns, Nas vésperas,

LlZia suas devoções, visitava o convento elas carmelitas

descalças da Conceição dos Cardais, rezava novenas para

São Francisco Xavier, proferia o nome dos santos de horaem hora, inteirava-se dos martírios a seu favor e ~utros

sacrifícios particulares de padres e freiras nos conventos

por todo o reino. E nada. E, já na cama com o rei, antes

do ato, rezavam os dois, para que dessa nova tentativa

resultasse afinal um herdeiro para o trono.

Uns diziam ser a quantidade de percevejos na cama

real que impedia a gravidez, e para isso rezavam a SantoA l,,;vn 'l F.n~ rl" nllP n~ li\lr",~~f'rb nr:lp':l f' rb (,o(,f'ir:l.Oll-

A lnsônia do Vampiro

tros afirmavam que os distraíam os ataques de piolhos, os quais infesta­

vam as perucas da nobreza, chupando mais sangue que todos os vampiros

portugueses juntos. Para os crentes, Deus podia estar querendo dispensaro rei e fazer que a rainha concebesse sem pecar, como lvIaria, pijra que, no

futuro, Portugal tivesse um novo Messias como soberano ... que bem podia

ser o próprio D. Sebastião, como imaginava Raimundo Pascoa1.

Alguns, mais práticos, sugeriam uma infinidade cle-chás, emplas­

tros, promessas e obrig:lvam a rainha a reZilr o ten;o na cama, emhaixo

de s~u cobertor de penas trazido da Áustria, depois qllC' () rt'i pilrtia, rl~­

pt'tindo sem parar uma "ave-mari;\ cht'ia cle-graça (...), bendito C- u frutudo vosso ventre ... " até dormir.

Dizem que ela se confessava minutos antes de fIzer St'xo, (UIll medo

dt' morrer em pecado durante o ato.

Raim\1l1do Pascoal acompanhou toda eSsa movimt'ntac,:ãu. Rezava

o terço, fazia l1ovena, sofria com os alarmes falsos, sempre aflito parasaber das novidades.

Foi um dos que mais vibraram quando, afinal, a notícia da gravi­

dez se espalhou. Era como se o filho fosse dele, e, a rainha, sua amadaAlmerinda.

Porém, como o filho 11:10 era dele, pass;lda a euforia Raimundo

caiu na realidade, e numa melanculia profunda. Deixou de freqüentar

as festas na Corte, a ()pera, o teatro. Saía à l1oÍtl', solitário, pelas vielas

imundas de Lisboa, percorria os bairros pobres cLt cidade, alimentan-

, du-se do sangue de cães vadios que perambubvillll aus milhares por

toda a parte.

Às vezes mordia o pescoço de algum bêbado in(ol1scit'nte nas sarje­

tas e aparecia na quinta embriagado, resmungando sem pilLtr que que­

ria ser pai, amaldiçoando () dia em que havia se tornado vampiro e seafastara de Almerinda.

Tive paciência. Era meu amigo.

Cuidava dele, Seguia-o à noite para ver por onde andava. Vigiava

para saber quem eram suas companhias. Que pescoços mordia.

Culpo-me, ainda hoje, por não estar com ele na madrugada do dia

25 de abril de 1755, quando tudo aconteceu.

Page 12: A insônia do vampiro   ivan jaf-

rcpdindu us palavrôes lusitanus. ()s guizos

IIllS Pl'SC1'Ç'l'S das cabras e das mulas. ()s gri­lllS dos \l'ndedores ambulantes. Os martelm

h:ltl'Ilc1lJ n;ls higurnas, /\s n 'lhs das CllTUÇ':\S

"lllll'Jldl), .\'0 sah'as dl's n:\vius nlJ j1l)rtl).,~

.\ n"ite, na qual p:\ssl'i :\ ''yi\lT'' depuis

l\<- \:\l11pirL), ;\cunll'ci:\ II 0llUStl). A \ilJ1tnci:\

n;l" \ 1l'1a.. Sl'Il1 ilulllin:l<;<iu prlJ\lJ(;\\:\ Ulll tllqUl' dl

rlcul hn l'SP<'Illânl'o. ]"L\\i:1 rni! h:1\TS d(, ha Ild idos,

,:..;ruj1o,s :ll'lll:\dus t' nuhres :lI'ruan'irus. () hando

l il IS 1';l1n Iilhas Sual bs alacava :\'0 C\ rruagl'ns qUl

S(' :\\Tisc\v:ull l"ntrl' (1'0 hccos cSlrl'itos, unde l\1Uit:1S

\('(''0 ('llubv:\\1\ n:\s fugas. J\ cscllrid:lu c :\'0 Li< ki ..

r:\s sinuusas slTviam ;lS cmhuscadas. ( ) cUllllTciu

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v:lri:lV:lIll sl'gundo ;1 import:lnci:l d;\ vÍtill1:1. As ..

s:tssinos protíssionais conll'ss:\vam-sc :lO padre, 1:1­

(i:l\11 seus donativos l' S:IÍaIll sel1l pl'Cados.

( ) COl1llTeio abri:1 (t'do e 1l.'CI1:IV:\:\0 tuque de

rl'ColhLT, Um vampiro, se qUiSCSSl' e\1Cont'r:lr pes­

Sl):lS dl) j1ovo, tinha de fn:qüent;u as tabernas e os

prL)stíhu\os, cmbora nos dois lug:\res n;\o houvesse

l, ljU(' pudéssemos consumir (' o cheiro dl' tabaco

hr:lsikiro l'strag;lsse \1OSSl)olLrto,

Rai lIlu\1dl J Pascoa 1, sel1lpre meL ncúlico, era

:\ssÍ<hll' no hotl'ljllilll da ROS:l, n:\ rll:l Nov:\; <IlI

\1l' l'st;lhl'1ccillll'nto lk "m:ld:lIl1l' Sj1l'n('n", onde

h:I\'i:\ \1111:\imagem de S:lIllu /\nltl!1io n:\ j1ort:l,

j1:\r:1 :ltr:\ir os h()mcns :\ IX'Clr. Meu amigu era

CilllllSl) 11llr ch:lInar ;lS mcninas dl' /\!mcrinda

l' IIlei r l11úsic\s l1ltlllldJ! iC1S na gu it:\ rr;\.

N:1\1l)itl' de ~') (k :lhril de 17')\ R:\imundo

saiu do hotcquil1l da Rosa, :\tra\'CSSUll u Ter­

n:i ro do Paço, a grande praÇ:l em frente :10

Tejo, e ficou v:1gandn pela Ribeira, entre as

barracas de peixes, fechadas àquela hora da

noite. Estava com uma sede terrível. Não he­

bia S;\ngue havia três di;ls. Sua pele j:í mur ..

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A lnsônia do Vampiro

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A parteira verificou se as bainhas das fraldas estavam bem-feitas.

Bainhas de fraldas bem costuradas impediam que o bebê ficasse em máposição dentro do útero.

A mulher berrava, sacudia as pernas, revirava a cabeça, invocavasantos e demônios. As virgens tocavam os sinos. As senhoras rezavam as

ave-marias. O cheiro do sangue enlouquecia o meu amigo, com os olhosnegros e fundos colados aos buracos da treliça.

A partei~a suava, agora entre as pernas da mulher, e gritava súplicasdesesperadas ao profeta Daniel; às santas Cunegundes, J uliana e Mar­

(rarida; e I)rometia ir sentar-se na cadeira de Nossa Senhora da Guia; en r

empenhava a palavra com o próprio Jesus de que o pai da criança ofere­

ceria aos cofres do rei o peso cio recém-nascido em prata ou trigo.() cheiru do sangue entranhava cada vez mais no corpo de Raimun­

do Pascoal. Vampiros, como os lobos, dependendo ela sede, são capazesde enlouquecer e atacar.

Meu amigo já estava a ponto de rasgar com seus dedos ossudos elongos a frágil treliça, entrar naquele quarto e dizimar com os dentestodas as nove virgens e as velhas, só para cravar os dentes na dona

daquele sangue fresco que ... Então, ouviu um berro agudo! Um grito!Um choro!

chava, e seus olhos se tornavam opacos. Um vampiro nesse estado é muito

perigoso. Ele ia embuçado, com um capote preto que o cobria do pescoçoaos pés, e um chapéu de abas largas. Assim se vestiam os homens quandoprecisavam sair à noite. A capa escondia as armas. Impunha respeito.

Ia sem rumo, corroído de saudades de Almerinda, esmagado pelaeternidade sem sentido.

Seguiu vagando, ao acaso, entrando cada vez mais nos becos escu­

ros da freguesia da Madalena, os lábios tremendo de sede, os caninos jásobre o queixo.

Atravessava ruelas muito escuras e estreitas, onde muravam trabalha­dores do comércio, com o costul11e de dormir cedo e acordar cedo.

Ouviu uma estranha algazarra de humanos.

Passava da meia-noite, de um dia de semana, e aquele barulho de

humanos o intrigou. As vozes vinham do beco do Espera-Rapaz.Era uma construção de granito, de dois anelares, coberta por telhas

de barro. No rés-elo-chão, havia uma porta estreita, fechada, com uma

imagem de São Lázaro pregada no centro. No andar de cima, três jane­las cobertas com treliças de madeira, unidas por uma única sacada. Erade lá que vinha a gritaria.

Raimundo Pascoal pulou para a sacada e olhou pelas janelas. Depoisde chupar sangue, é o maior prazer do vampiro: ver sem ser visto.

No primeiro cômodo, à esquerda, uma mulher estava deitada em

uma cama, rodeada por nove meninas, cada uma com um pequeno sinonas mãos, que badalavam de vez em quando. Atrás das meninas, umgrupo de velhas rezava nove vezes seguidas a ave-maria, parava, torna­va a rezar nove vezes.

Uma velha, entre as ave-marias, acendia e espalhava velas por todoo cômodo.

A mulher, que parecia sonolenta, de repente gritou muito alto. Sóentão Raimunelo compreendeu.

Ela estava parindo.

Por isso as nove meninas virgens e as nove ave-marias, uma paracada mês de gravidez.

A mulher gritava cada vez mais alto, e se contorcia, e batia a nuca

no espaldar da cama. A parteira pegou sua mão e lembrou-a de que,desde Eva, era preciso parir com dor.

Raimundo sentiu o cheiro de sangue. Suas narinas dilataram. Osr~ninos btei:uam.

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Page 14: A insônia do vampiro   ivan jaf-

A Insônia do Vampiro

fumando charutos brasileiros. Um gordo, com bigodes compridos e

roupas endomingadas, e um magro e alto, de vinte e poucos anos, cles­

cabelaclo, suando a camiseta puída. Este era o pai, e recebeu o bebê comum ar transtornado e alegre.

Logo as duas levaram o bebê para o terceiro cômodo, e Raimundo Pas­

coal novamente as acompanhou, deslizando silenciosamente pela sacada.

Havia apenas U,11acama, e um nicho na parede com uma imagem de

Santa Rira, que dava paciência e era advogada das causas desesperadas.A parteira colocou o hebê na cIma e () cobriu com uma manta. Ele

parou de berrar. Estava cansado. ()s olhos muito abertos, vendo tudo

pela primeira vez.

A ~xlrteira saiu, preocupada em recolher o resto do cordão umbilical

que ficara numa bacia, no leito da p;lrturiente. Se um gato ou algum

rato o levasse, o garoto seria ladrão. Precisava também cobrir a cabeça

da mãe com o chapéu de um homem corno, a fim de que a placentasaísse sem problemas.

A avó ficou mais um pouco, ocupada em acender, e deixar queiman­

do num prato, uma sola de sapato, para afugentar as bruxas. Depois saiue deixou o bebê sozinho.

Raimundo não conseguiu se despregar da janela. Não era mais o

cheiro de sangue que o atraía. Era a imagem do bebê, em sua caminha,

silencioso, olhando as paredes do quarto, o teto, o corpo ;15 vezes tre­mendo ainda em espasn10s nervosos.

Cada qual é filho das SU;lS obras.

Dois séculos pensando no assunto, era só uma questão de ocasião.

Em movimentos felinos, no mais absoluto silêncio, abriu a janela eentrou.

() heb2- olhou aquele rosto hranco, os dentes enormes, viu os dois olhos

pretos hrilhanelo no escuro, mas não chorou. Ainda não conhecia o mal.

Raimundo sentiu o cheiro de carne, fresca, viva, tenra como umbotão ele flor. Suas veias ardiam ele sede.

Não era um vampiro mau. Contentava-se com Glbras, ratos até. 1{;)ra­

mente, para aplacar os instintos, atacava algum bandido nas vielas escuras

de Lisboa; ou um inglês ou holandês, "um protestante pagão elos infer­

nos", como dizia; e mesmo assim passava semanas se culpando.Aproximou seu rosto, e de sua boca saiu um sussurro:

- Meu filhinho ... meu filhinho ...

O bebê abriu muito os olhos e começou a chorar.

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Page 15: A insônia do vampiro   ivan jaf-

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Como sabemos, o bafo dos vampiros é uma das coisas mais fedoren­

tas que existem. Uma mistura insuportável de mofo e carne estragada.

Ele cobriu os olhos do récem-nascido com as mãos, num gesto de

hipnose que eu havia ensinado para ele caçar galinhas sem que ficassemcacarejando como doidas, e o menino dormiu imediatamente.

Raimundo pegou-o assim, indefeso, e o segurou no colo. Embalou-ocom uma canção ele ninar de sua aldeia.

"Que se dane", pensou. E cravou os dentes no pescocinho do bebê.

Só a pontinha dos caninos penetrou na carne macia, até encontrar aveia jugular.

Imediatamente sentiu seu corpo esquentar.Sugou um pouco mais.

Necessitou de todo o seu autocontrole para parar.Recolocou o bebê na cama e o cobriu novamente.

Ninguém ia imaginar. A marca no pescoço parecia com uma mor­dida de mosquito.

O bebê abriu os olhos, ansioso, com sede.

Raimundo Pascoal furou a ponta do próprio dedo indicador da

mão direita. Quando o sangue saiu, deu para () bebê mamá-Ia. Baru­lhos nos cômodos ao lado o fizeram voltar à realidade.

Os nove sinos tornaram a repicar. As ave-marias. E os berros damãe.

Raimundo Pascoal voltou à sacada, deslizou até a primeira janela,grudou () rosto na treliça e ficou muito espantado.

Todo o ritual se repetia. A avó tornava a acender as vebs. A partei­

ra implorava aos céus a ajuda de todos os santos q\le conhecia. A mãegritava, se debatia, torcia a cabeça para os lados. As nove virgens, assus­tadas, cobriam os olhos com as mãos.

A mulher estava parindo outro.

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A lnsônia do Vampiro

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se virar por conta própria, como aleijados, mutilados e

cri,l11ças, porque eles ficarão assim par;l sempre.

Puis fui essa ú! tima regra que fiquei gritando Stmp,lrar após saber, uma sem;lI1a depois, da barb,lfiebde

que J\,limundo cometera, qu,mdo o remurso afin;11 (J t~?C( JIl kssar.

N,lo transr()rn1t'i u bebê em Y<1mpiru - ele gri­

Ll\ <1t;ullbl-m. - Só dei uma ll10nlidinha Ilele, e depuis

(' ;lm<1ll1eIltei cum Ulll pouguillhu du meu sangue, p,lraele parar de churarl S() isso' Um puul]uinhu s{). Nilo v,li

,IC(,ntecn nada! () bebê será ullla crianç;l nurm;tl. Estuuarrependidul Pruntu!

( ) Y,lIl1pirismu nilo l' um;1 ciC'nci;\ exatal -~ l"ll dis­

se. -- Nu ITlulHlo dos mortos-vivos, como no dus vivos­

YiYos, e ;\t( no dos mortos-murtos, tudo pode acontecer!

Ate- murder o pescuço do bebê, apesar de ser uma cuvar­

di;l, tudo hemo A carne, mesmo a morta-viva, é fraca.l\ifas

tL"rdadu seu sangue a ele logo depois, mesmo que só o da

ponta do dedo, isso foi uma temeridade sem precedentes,l' ningul-m pode saber o que vai acontecer!

Eu estava furioso. Raimundu se excedera. Eu repe­

tira exaustivamente as regras. E ele ;lgor;l infringia umadebs, da m;lIleira mais inf:tntil.

Ni1u tT,1 sú um;\ guest;lu l,ticl da minha p;lrte. Como

em toda cidade grande, havia uma cungreg;lçJO de vam­piros em Lisbo;l, liderada pur uma l1lorta--viY;1 chamadaR()sa Lu],;\.

Ela yiYia num corpo de 3U ;mos, era gord;l e tinha

sido cUIldcIl;llh a levar cum ela um bigude espessu portod,1 ;1 t'tcrni(bde. Dizia ter mais de seis sl'cuJos lk vam­

PlrLSJn(), e ter estadu presente nas 111, ,,' ',Ir I I I de

II (>1. Era Uma vampira histérica e muito cruel.

I'\unca fui um morto-vivo social, nJO freqüenta\'a asrt'lJJ1iôes da congregaçiío, mas sabiam da minha existên­

CIa, visitavam às vezes minha propriedade no campo e ti­

nham-Ine como um vampiro esnobe mas respeitador das

rt'gras, Raimundu Pascoal, ;lté então, agi,) como eu, porISSOnos deixavam em paz,

Page 17: A insônia do vampiro   ivan jaf-

A lnsônia do Vampiro • •

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- Tenho absoluta certeza de que, se aquele bebê se tornar um vam­

pirinho, você e ele serão considerados proscritos, e Rosa Loba os conde­

nará à morte, E é bem provável que eu, como seu tutor, seja jogado namesma fogueira I

- Tenho fé de que o bebê n.'1o vai virar vampiro.

- Fé?! Diabo ele vampiro católico! Você n.'1o pode mentir para

mim! - gritei. - O seu propósito fui, sim, o ele faztT uma criança,um filho vampiro' f~isso que você vem Lllando há mais de duzentos

anos! Niio faz idéia da barbaridade que cometeu? I () espírito vampi­ro se desenvolve, progride, como o dos humanos normais! Seu "filho"

vai evoluir indefinidamente, mas aprisionado num corpo de bebê!

Um bebê que poderá ler AristóteIes, mas n.'1o conseguirá nem en­

gatinhar atrás de uma vítima! Que poderá dar uma aula sohre Arte

Grega, mas será incapaz de morder um pescoço, por não ter dentes!

O que você imagina? Que vai assistir ao crescimento do seu garoto?Que ficará feliz quando surgirem os primeiros dentinhos? Dois ca­ninos de leite?

Raimundo não respondia. Olhava para o chão. Eu ficava cada vezmais irritado.

- O que você quer? Fazer uma família? Pai, mãe, filhinhos, todosvampiros, ninguém envelhecendo? Uma Lunília eterna?! Diabo!

A verdade anda sobre a mentira, como o azeite sobre a ~1gua. En­

quanto eu falava, Raimundo Pascoal ia concordando, admitindo que,de fato, quis transformar o bebê em vampiro.

Assistir a alguém se deixar vencer pela verdade é um espetáculo triste.- Tem raziío - ele disse, derrotado. - Sou um ser das trevas.

Devia saber que não posso amar ninguém.Aquilo me arrasou.

- Não, Raimundo, ao contrário ... Podemos amar. Nenhum vampiroconseguiria sobreviver se não amasse as coisas, as pessoas, os bichos ...

.- Certo - concordou minha psicanalista. - Um vampiro pode

anur. Amar é um dos truques que usamos para suportar a eternidade.

Mas não podemos nos iludir, querendo criar laços duradouros. Não

podemos construir pontes sólidas. Vivemos demais. O tempo destrói

tudo. O mundo gira. É impossível construir alg;o realmente sólido so­bre um planeta que se move.

- Niio - Raimundo Pascoal choramingava. _

Amar só funciona com os humanos. Nós, vampiros, so­mos apenas n10nstros.

-- Você acredita em Deus, náo acredita? - argumen­tei. -- V(lCê é católico! Desistiu de ser franciscano, mas

agora se considera um jesuíta, niio é? Pois se acredita em

Ikus, e que Ele criou todas as coisas, ent.'1o tem de admitir

que v~lInpirus também s50 expressões da vuntade divina.

Sumos parte du mundu, e n~lo erros da natureza. Se Deus

nus criuu, é necessáriu inocentá-Lo. Não somos monstros!

Para cunvencê-lu, e confurt;Í-lu, cheguei a afirmar

ter in!()rmaçües seguras de que havia um par de vampi­rus na Arca de Noé, quando Deus decidiu renov:1f todas

as espécies, e que certamente também éramos descen­dentes de Ad.'1o.

N:lo adiantou. Nunca vi um vampiro tão melancóli­

co. Naqueles tempos ainda não havia psicanálise. A gente

tinha de se virar com os amigos. Ele só repetia:- Somos monstros! Somos monstros!

- Eu não sou um monstro! - gritei. - Sou apenasraro. Os eclipses são raros, e não são monstruosos! Ser

monstro ou não é uma quest.'1o de opinião. Um vampiro

num deserto é um monstro? Se não há ninguém em voltap:lfa se espantar, nada é monstruoso.

Mas tudo o que eu dizia a ele era pregar no deserto.Era malhar no ferro frio. Como está escrito no Ecksi:\s­\(·s, "o número de insensatos é infinito".

Agora, o importante era ir até a casa do bebê ver o

que estava acontecendo. Precisávamos vigiJ-lo todas asnoites, dali em diante, para ver se ele se transformaria

em vampiro. Tínhamos de ser os primeiros a saber, paratomar alguma providência.

Em lugares relativamente pequenos, como a Lisboa

do século XVIII, de tudo se cuida, de tudo se murmura, e

a notícia de um bebê vampiro se espalharia como a peste.

A idéia de rever o bebê animou Raimunoo, c S\I:1 pr("()cup _. .açao Imediata foi mas! ig:1 r 11111 IlIll" L\ll, " "" ( 1.11" ,-o. 1',11 ,I

acahar COII I ,. I I I II li 111.1\1 1.1 11, L 11, I' 111.11, 1"11\.11 11111 1.111 I"

Ecieolastc's é um

dos livros do Velho

Testamento da Bíblía.

O nome é cJIIglllado duhebraico kohe/et ("Cl

pregador") A autolia ela

obra é tlaellclollall1lente

a~rlbuida ao Rei

Salomão, ainda quemUitos historiadores

acreclltem que Lellha',leiU eScrita séculos

ciepoi'. ele sua morte.

Retletlndo sobre a

natureza humana,

o Eclesldstes aponta

para a ímportânciado desenvolvimento

espiritual em detrimento

dos prazeres mundanos.

Page 18: A insônia do vampiro   ivan jaf-

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Eu vinha tentando convencê-Io a se lavar havia meses, sem sucesso.

Agora, ele rapidamente tinha preparado uma tina de água morna, es­fregava-se com uma barra de sebo de cachorro e até cantava.

- A parte de natureza humana que resta em nós anseia por criarvínculos com a realidade - disse a psicanalista - , e o maior deles, o

mais profundo, é a L11l1ília.Como para nós é impossível... não podemosprocriar, não podemos reproduzir pela carne, só pelo sangue ... transfor­mamos pessoas queridas em vampiros.

Vendo ele ali, dentro da tina, tomando banho para ir visitar o "filho",comentando como Almerincla ficaria feliz se soubesse ... me dei conta deque a loucura de Raimundo Pascoal era como a cidade de Veneza: ele ia

vivendo de lembranças, enquanto afundava, muito lentamente.Apressei-o e partimos.

Já era uma questão de salvar minha própria pele. Aquela histórianão podia chegar aos ouvidos de Rosa Loba .

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Os dois primeiros cômodos estavam às escuras. Na ausência de luz,

posso ver as emanações de calor dos corpos e dos objetos. No primeiro,havia a cama larga, onde a mulher que parira dormia, ao lado do marido.

No segundo, a sala, duas cadeiras, uma mesa e um baú comprido quetambém servia de assento.

No terceiro, afinal, a cama, com o nicho de Santa Rita na pare­de. Ao lado, perto da porta fechada, a avó dormia, sentada numacadeira.

Sem dizer palavra, Raimunelo abriu o trinco da janela e entramos.

Passei a mão sobre os olhos ela velha e a hipnotizei, para ter certezade que não acordaria.

O quarto pequeno recendia a couro queimado. Tinh:lm muito medo

de que as bruxas viessem atacar seus behês e os chuchassem, quer dizer,

sugassem sua energia. Num canto, à esquerda da janela, vi uma baciacom as cinzas de várias solas de sapato.

Assim que entrou, Raimundo parou ao lado da cama e ficou olhan­

do. Aproximei-me e parei junto a ele. Custou-me entender.

Com a manta de Li até o pescoço, não havia uma só, mas duascabecinhas!

- O que significa isso?

Raimundo simplesmente halançou a cabeça e disse:- Gêmeos.

- Como, gêmeos?

-- Ora, a mãe tirou dois filhos da mesnw barrig:1.- E você chupou o sangue dos dois?- Claro que não.

- Qual deles é o hebê-vam pi ro?

Raimundo inclinou-se, puxou a manta para baixo e procurou as

marcas da mordida nos pescocinhos. Ficou confiJso. Hipnotizamos os

dois, que estavam prestes a acordar, e os seguramos no colo, cada um o

seu, e os reviramos de alto a baixo atrás das marcas dos dentes de Rai­mundo. Nada.

Encontramos apenas duas tatuagens: um peixe pequeno na nádegaesquerda de cada um deles. Algumas bmílias marcavam os filhos com

os símbolos de sua profissão, para identificá-Ios em caso de perda ou

roubo. Nunca entendi por que os portugueses escolhiam para isso uma

parte do corpo que raramente é vista, obrigando o sujeito a arriar ascalças para se identificar.

A Insonla 00 vamplru

Comecei a cheirar o lugar. Numa bacia pequena, embaixo da cadeira

da velha, encontrei os restos de um emplastro, com uma gosma de sal e

rosmaninho. Haviam descoberto as picadas, e as tratado. A pele jovem do

bebê cicatrizara em uma semana. Por mais que tentássemos, não pude­mos descobrir Inarca nenhUlna, em nenhum pescoço.

Os dois bebês eram iguais como dois ovos.

Fiquei furioso.

- Agora n:io sabemos qual dos bebê·s é vampiro' Vamos precisarque nos :ljudem o céu, a fortuna e o acaso' Todos os trh'

() mais irritante er;1 o ar de IJ<1ternidade de Raimundo Pascoa!. To­

talmente inconsciente do perigo, olhava para os dois cumo se tivesse

acordado no meio da noite e viesse ver se os tllhinhos estavam dormindo

hem. Tornou a cobri-Ios até o queixu com a manta, e tenho certez;1 de

que por dentro estava cantando Ulna canção de ninar.

Fiquei sem saber o que fazer. Arrastei Raimuncio para fc)ra do quar­to, escalei a parede e o sentei ao meu lado, no telh:ldo.

-- E :lgora? E agora? --eu me perguntava em voz alta.

Ele colocou a m:io em meu ombro, balançou a cabt'çl resignado edisse:

- Disponha o céu como lhe aprouver.

Eu já ia dar um soco em sua car:l branca quando ouvimos o choro do

bebê. Nos deitamos de bruços no telhado, de clbeça para baixo, e olhamospara dentro do quarto.

A mãe chegou em seguida, esfregando os olhos de sono, e tentou

~lCordar a velha, cutucando-a de todo jeito. Mas eu h;wia me esqueci­do de retirá-Ia da hipnose. Sacudiu-a pelos ombros, mas a velha não

acordava. Achou que estava morta. Chegou o m;lri<io, viu que a velha

respirava e voltou para:l cama, dizendo para a mulher amamentar logoas crianças p;lra que parasseUl de chorar e o deixassem dormir.

A m:ic sentou na pequena cama e colocou um bebê em cada seio.

Olhei p:lra o lado. RaiUlundo Pascoal estava completamente embe­vecido com :1 cena. Tive pena dele. Em seus devaneios, ele devia estarvendo ali a própria Almerinda alimentando seus filhos.

. Eu também estava feliz com aquela cena. Se os dois bebês tomavam

leIte, era sinal de que nenhum deles havia virado vampiro.

Levei meu amigo até nossos cavalos e partimos, de volta p:lfa o meusobrado no Bairro Alto.

Ele ia atrás de nlinl CUIII" 11111 ~,(IIJ.llld'III"., 'lill" "'1'1111",111,,1.11'"

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~o à casa do beco do Espera-Rapaz. E eu ia pens:mdo, fnenclo um 1:;;(­lanço da situaç}o.

- \ ~()Cl· ncTn }_lrt.:'\~i";;J "'C' :I1C/dT1()(Lif - ,Jt dj.\~·.=-.-- 1)('J~u ~L~r pLin­tiio no L:lh:H!O L1:l ldq ,kJn '()7inhu.

ab,()lur~1 Cer!t':~a de qu~

Tudo indic1\'a que nada aconteceria.

~bs a diligt'nci:l ta 1118eda bO:1 sone .

Decidi nJU desgrudar dos gémeos até ter

- :\}o. Eu \ ou iumu.Ele podia morder o bebé nO\:lIlkntt ...

nc:-.hu;n \Jelcs cr~l \<{111piru. Iri~l!TJ()s YlgL:t-lo:-; DIJS 11ltSt.:'S st~LlintC's. ()u~ln­\.fll C(lnt~:l ts~a n1inh~l inrcns~~1c' ~-lI{~lú11Und(j Fj~l"C(J,-lL .. nunCJ \i urn ..~lr:n-piru t,lu feliz.

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1., I O,marido de Antôn~a, Júlio, era p.eixeiro tam~ém, mas ~anhav~ uns Fiquei al.erta. P~recia uma simples dor de garganta inflal~1ada. Dei-:J trocaaos quando apareCia algum serVlCO de pedrelfo. Ter o-emeos plora- . ue o pai e a mae resolvessem o problema, acendendo \·elas e em-, . • ' te> };é'1 q

.' i ra mUito a situação econômica da família, e quem os salvava era o pai de . lhando o pescocinho em emplastros de banha de porco, mel, 1050a

____..11' JÚ.lio, colocando discretamente algumas moedas embaixo do travesseiro l)fUbuCTueifo. E fazendo oracões a São Sebastião, que curava as feridas

~ ,. l..-. esa b -'>

.-JA dos bebes. Fora ele quem pagara as despesas de um parto tão caro. . ternas e externas.""""'E'" . Além do pai e da mãe, morava na casa a avó materna. Por passar qua- 10 Como o bebê bocejava muito, chamaram uma curandeira. Ela diag-

~ I i se todas as.noites com os netos, foi tantas vezes hipnotizada por nós que n05ticou quebranto, mau-olhado, trespasso, e passou várias noites ao~ I I acabuu l1:elO lesa. ..... . . lado dele na cama, repetindo: _ _. _. . .~ I, Eu )d e~ta\a. cansado daquIlo. DepOIS da eXCItação das pnmelras se- _ ... eu te benzo en1 nome de Deus, em nume de Jesus, a hUla em

~ II :nal~:ls, ~~erdl U Interesse, conv:ncido de qu<:, ati.nal, a mordida do meu que Deus na~ceu, m~~ sen?or Jesus,Criste~, t'l~ ponho ml~lhas mãos o~deJ ! aml .•..o nao t!ilha afetado o bebe em nada. Os dOIS mamavam e cresCIam vós pondes \cossa DlVlOa \ 1ftude, Santa Eusebla panu Santa .~~a, San-

~ : normalmente. Eu só c~ntinua~a ~aquela vig.ília por medo de que Rai- ta Ana pariu a Virgem. a _Virgem pariu 1'\osso Senhor J.esus Cnsto, as-~ i i mundo, vendo que a cnança nao virava vamp1fO, a n10rdesse de novo. sim como essas palavras sao santas verdades, assim vos t1fe meu SenhorII Ele, ao contrário, a cada dia ficava mais excitado, mais acentuava lesus Cristo este mal, este olho, este quebranto, seja fora do corpo e das

seus delírios paternos, a ponto de várias vezes, estando a velha incons- ilhargas e de todos os membros desse pecador. ..ciente, trocar fraldas. ~las o bebê não melhorava.

Kunca vi um vampiro mais feliz. Tomava banho quase todo começo Fiquei cada vez mais preocupado.

de noite, antes de sairmos, e começou a inventar tc)rmulas para combater Mordidas leves de vampiro, em que as vítimas são hipnotizadas e

o mau hálito: bochechos com infusões; novenas à Santa Apolônia, que, já nem sabem que foram atacadas, costumam inflamar gargantas. _que servia para dores de dente, talvez também melhorasse o cheiro deles; Raimundo, ao contrário, em sua ignorância, concluiu que seu hlho

e chegava a lavar a boca com água e sal depois de beber sangue. só podia ser o outro, porque vampiros não adoecem, e passou a se dedi-Inventou uma pasta com sabão, cravo e hortelã amassados, e essência car exclusivamente ao bebê saudável.

de eucaJipto, uma novidade recém-chegada da Austrália. Ele esfregava Em uma noite quente de meados de setembro de 1755, porém, de-

a pasta nos dentes com uma escovinha feita com os pêlos mais duros da pois de horas tossindo e chorando sem parar, mexendo muito as pernas

base da crina de seu cavalo. Antes, passava entre todos os dentes um e os bracinhos, e bem no meio dos trabalhos da curandeira, cercado pela

longo fio do rabo do cavalo. Eu nunca tinha visto aqueJe método antes. avó e pelos pais, o bebê chorou sangue.

Não sei se Raimundo inventou o dentifrício, mas com certeza fói o paida moderna higiene bucal. .

O único detalhe a estragar sua alegria era não saber qual era o seu"filho".

Todas as noites procurava sinal das marcas de seus dentes mas elas

haviam sumido irremediavelmente. Os meninos eram absolutam~nte idên­

ticos. A saída foi amá-los da mesma maneira, C0111a secreta esperança de

que um dos dois virasse vampiro, pondo fim àquela dúvida.

O começo desse fim foi com um choro repetido, sofrido, que nãoparava, acompanhado por uma tosse seca.

Após mais de três meses, pela primeira vez um dos bebês se distin­

guia do outro. Só um tossia, tinha febre e chorava daquela maneira.

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o pai, mais prátIco, pegou uma lágrima no dedo para ver se era(Tuemesma. Era .~'ln

. ' ~t.,.mãe ,lpertava os braços contra o peito. Tinha medo de chorar...:;"de seus olhos também brotasse sangue a acusariam de ter-se deitadoL.~ •• O o demônio e a jogariam numa fogueira.LU.l~

A curandeira, tentando aparentar a calma que a profissão exige

ji.l!1te dos fatos incompreensíveis, e procurando vender seus serviços,.1i1fhSOU-sea dar seu diagnóstico:. _ O beb~ sofre de carne talhada, ou rendida.

()u seja, ele"estava ferido.Havia certa lógica.

_ Se aparece sangue - ela explicou -, a carne está aberta em algum

ponto, que é por carnes rasgadas que o sangue sai de dentro dos nossos.::orpoS.Não se ver onde está a ferida só indica que ela é interna. Como() bebê está a chorar há tantos dias, o motivo disso deve ser ter carne

talhada na garganta. Por aí, pois, saiu o sangue, em tal quantidade que

brotoU pelos olhos ..-\.mãe e o pai aderiram imediatamente a essa explicação e pediram

que iniciasse logo ° tratamento. Tiveram de arrastar a avó para um can­to. Ela não parava de rezar, ajoelhada, com os olhos saindo das órbitas eos braços erguidos aos céus.

.-\.curandeira cobriu o menino de sinais da cruz, enquanto repetia:_ Em nome e virtude de Deus Pai, em nome e virtude de Deus Fi­

lho, em nome e virtude de Deus Espírito Santo, três pessoas divinas emum só Deus verdadeiro, Nosso Senhor nasceu, Nosso Senhor morreu,Nosso Senhor ressuscitou, e a Virgem o pariu ficando sempre Virgem,

antes do parto, no parto e depois do parto, rogo ao Senhor, por virtudedessas santas palavras, e por virtude de vossa sagrada morte e paixão,que esta ferida ou fogo seco fique são e salvo e não crie outro mal ne-nhum, Amém ...

Era esta a situação: uma velha louca em transe místico, repetindo semparar um exorcismo, ajoelhada a um canto; uma mãe catatônica, tentan­do lembrar se não tinha traído seu marido com o diabo em sonhos; uma

mulher de olhos fechados, inclinando o corpo para a frente e para trás,fazendo sinais-da-cruz e rezando sem parar; um homem andando d(' 11111

lado para o outro, xingando o céu e a terra por não esta r d<11'111 i I li I. I ;'1< JlIl'I.I

hora, pois no dia seguinte havia um muro clcpcdr:ls P:ILI 1"1)',11<1, I11I1 1"1,,

esperneando, berrando, chorando S;lllglll'; 11111 S<').', I IlIC I. , 1"1,, ,1)'."'111111

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.-bém chorando, assustado e querendo mamar; e dois vampiros, de cabtcapara baixo, pendurados no telhado. ~

'\ião haYia nada que eu pudesse tàzer, a não ser controlar a~ dnsi"spaternas de Raimundo.

Tivemos de esperar toda a noite, até que a curandeira saísse. Ebafirmou que CJ tratamento exigiria drias outras visitas.

Quando todos afinal dormiram. faltava pouco tempo para o sc,] lIdS­

cer. Eu já estava preparado. Matara um pombo num telhado peno. Cif­

tei-Ihe o pescoço, e o menino chupou-o comu se fosse uma mamac1,ird.

com sofreguidão, aos olhos de Raimunclo, em bevecido, que em seguida

limpou bem sua boquinha. colocou-o contra o ombro direito para YUt'

arrotasse, embalou-o um pouco, cantando suavemente, e depois o p(JSna cama, com o irmão.

O bebê sossegou. Dormiu tranqüilamente. Voltamos às pressas paranossos caixões, em meu sobrado no Bairro Alto.

Acordamos no princípio da noite, e naturalmente partimos muitoaflitos para ver o que acontecia com o nosso bebê.

Não precisamos de muito tempo pendurados no telhado para com­preender o que se passara durante o dia.

Depois que saímos, e devíamos ter previsto isso, já de dia, o bebê

acordou e, como todo bebê depois de mamar, regurgitou. Só que não foileite. Regurgitou sangue.

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ótt:' curar CLif.:-:Cê.S ao

Nascido na Grécia

por volta do século

V a.c., HqJócrales e

considerado o "pai 03n....edicina" Em oposicão

a pfátiC~S :,upf2rstlcio:::,as,

ele desenvo!v'éU um

rí":etodo cien1:f!cc) r~:)

diagnó~~tico de d(::'f:"',ça:~.Crio'.l tC1!-:·t·~~nU:,-'

,:cdiÇ}o de é1!(~a :).:::r".::1

~r:C'dic( (':'Jlt_',

ri2S J~~;~é;cul,dacf': CH~\\ e,:;I'~d-':él,

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De

"~ôr,ç~!"ar" D :~I,>i€T::e,el!"õ ;:-l?I·':C,') ci.:i5:n-: dS

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mUito procurados p€:i05

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no Ocid~::-jle:::te ::,eC'~dQ

n-',~f·i'J,

d,:red:t,-r,!,:' -~~e~~.~;:.:\'ss;vel

11":F:Ji Ir~fi~<';3cc,es,

t:i:rrlilléir fe::;r'?, o:)r e

Culpa tet1e de me matal;

porque em lugar de cura,'nor remédio me deu a sepultura.

iram apenas curandeiros de luxo, que não vacilavam

:;-111 receitar pó de múmia, raspas de chifre de boi, óleo'" ollro ou Inercúrio, e assustavan1 o paciente, sempre

;;:zc:ndu o que aquele fez: abriu sua valise de couro sobre. 1"·1 j11ostrando nincas, Scrr~lS, s'lncias, lancetas, ÚIClS,l.l iJ.l-, - .. ' . r- ::. .

:'rc:':111I)S ... Tudo de aço suec<), p,lra justificar o preço.. ,Limitou-se, purém, a Llzer perguntas à mãe e a eX,I-

!Ilin~lr os olhos e ;1 garg;lnt:l do hehê. Pouco depois, deu

!I \('redicto:_ ( ) menino esLÍ tuberculoso.

Era uma doença comum. As imundícies jogacbs das

iand;ls ajudavam a prop;!g:1f essas Jnuléstias contagiosas.F nos meses chuvosos, ou no inverno, a umidade e o frio

pentt~:l\am naquelas casas pohres, sem aquecimento, co­hrind" todas as coisas de mofo.

O novo diagnóstico umbtm fez sentido. Na tubercu­

lose, (1 doente cospe sangue.

- O fato de o bebê ter chorado sangue - o médico

explicou - deve-se ao desvio ,lu t1uxo san,L;üíneo. () san­

gue-. em vez ele sair peb h.)(.l, chegou primeiro aos olhos,

subindo pelos onais lacrimais.

A.uscultandu os pulmôes do bebê·, concluiu:

- Trata-se de uma tuberculose branda, talvez ape­

nas uma pneumonia, que se curará com uma meia dúziade S,l!' :;,rias.

Aos pais, horrorizados COI11 a perspectiva de sangrarum hebê de seis meses, () doutor consolou:

- Isso abreviará a cura, pois o sangue que teima em

~~otar aos poucos, pela boca e até pelos olhos, sairá logot Uma vez, pelos cortes.

O avô paterno coçou a cabeça. Se uma consulta custa­

ra-lhe um dobrão, quanto não sairiam seis sangrias? Pela

e~pressão de seu rosto adivinhei suas intenções: já qUl' llél\'Ia dol'S . . d' I .netos exatan1ente IguaIS, po Iam (t'I X;Ir v,., ,,c "

c10entinh .o se curava por 51 n1eSITIO,sempre ' •...1:111.111111

Page 25: A insônia do vampiro   ivan jaf-

i com um barbeiro ambulante, O homem estava de branco, com man­

~~asde sangue seco na camisa e cara de sono',Trazia também uma valise,_i ue \';lg3bunda, de couro cru ensehado, e Ia de dentro tirou uma lance-~l q, b' 'd d 'tJ, uma pequena aCla e uma caixa e ma eira com sanguessugas.

A mãé deu um grito:_ Sanguéssugas não. gUé o médico não as receitou'O bc:rbtiro deu de ombros e colocou as "bichas·' de \'olta na v:l1ise.Cl hcb2. tüdo o témpo, chorav.l.Eu é RdimunJo sabi,illlCJSque ele estava nOV~1Elentecom séde de

sancrUé.111:tS lÜO podíamos fazer nada. R,1imunc1o ;lpertava as núos no" t"

beiral do telhado, com o ódio mortal que enlouquece um vampiro.e Vir:~2r,l.

ZT wn ti» If ' b ' ri' _

~r

r•• A InS0111a UU VCJlllf)IIU lG:fo~,"

•• !.,,~' I v ~ n J a T f ' .,JiI '1 f

,JJt O c:c')rá') era uma O próprio médico, porém, vendo que naquela caSa s6 St ~• moeda de aura . d b ld d' h li:

",. PClftuguesa e hlspano- comia sopa e e roegas, ou sar In a com a lace, e prt-

,IJI 11' õn".IE'Cicõna'.=l.,r.,;-ao3 .. em,.: vendo di.ficu.ldadesem receber seus honor.ários, contentou_,r_~'~:,n7~s..,:er~~"=~T~=,,~:2.lcom seu dubrju, fechou a valise e disse: -

!fia I e , LJ - u.,,,~a,,~_,_ O

,.. I I sec,,!c ;<';<,/3':2 24 cr,,! - A sangria é simples e pode ser feita por qualqUtrA I I -- - -."" - "-"'- ..• -. b b',.- I lero, :,~~e 'e,' ",~,e,,",c ar eira.11 i 'r:- ;.,TI(::lr'~I:) r",,-.;:.. •.. ,""1:::-

,JII I I ;='",-c:;--,--;;-:,'a~=-ê Retirou-se em seguida, estimando as mdhoras.,JJj I I ~~~~,r~~~,~~,:>;~=;,=~~~, O sogro suspirou aliviado. A mãe mandou o mari,i"

IA '11 C~r~," .,' ..~>-,'O' s:l!r e buscar Uin barbeiro,

~ 111 ~.~i.=::;nc.".'e,c~.:~~:5-,f~;~3' 1'\a Lisboa d.aquela época encomra\'a-se U~llbarlJtifílI :'=:é~3, :JS:ã~ ' em cada esquma, a qualquer hora, Pouco depOISemra\:l 'J

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1fJ.·•lvan Jaf

o pai teve de segurar o bebê, enquanto o barbeiro o virava para ()lado esquerdo e fazia um torniquete acima do cotovelo do bracinho di­

reito. O homem tremia. Era a primeira vez que sangrava um bebê. Pós

a bacia por baixo e procurou, com a ponta do dedo indicador, a veia ba­

sílica. que ia do torniquete att o ombro. Era uma H:ia de volume mtdiCi.

su perficial. e ele logo a encontrou. Com a lanceta, cortou a pele" do lxbê.

a,é arin:;ir a ""c·i". O sangu,:- ,,'en(1SU êscor!'eu logo. ti;lgindo o fundi>

b~1cia. De Ul1i ~dulto de t1r,1[i:1\.lflS dllzcntu5 ,zum,lS de"5;,lIgue. Tirel):.l

nl:-t~:d:-. com muito med,), e ]':·go ~lp~1í<::ceua aV(I. con1 um e"mplastr(, '1<::rosma:linhu para cobri r o ferimênto.

Tornaram a pôr o bebê de barriga para cima.

É f:lcil imaginar o quanto ele be"nava e esperne;l\a nesse momento.

O barbeiw estava muiw aflito. O avô (I pagou, e"combiruram ,I,próxim.as SeSS(le"S.;\ avó reza\ a o ttrço e reacendia ,1 vela do niei1u c\c

SaDta Rita. O pai sentara na cade"ira. exausto pela tens2io. A m:ie ar:,,'­ment;1\';1 o outro filho.

Foi ent:io, nu poucu espaço de tc:mpo qUe"u deixaram em P,1Z, clue o

bebê-\ampiro c(Jnseguill \'irar de bruços, enfiar a cara dentro da bacia gele

aincb estava sobre a cama e beber seu próprio sangue, diante de todos.

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~II~IIi

':""I"

morte-vida: o fanatismo cego gerado pela crença na verdade absoluta dapalavra de um Deus único.

Se uma pessoa fosse denunciada aos Tribunais do Santo Ofício, eraquase certa sua condenação; por isso, a peixeira, seu marido e todos Osque a cercavam se apavoraram. Por menos, muitos já haviam caído nasgarras da Igreja.

O cônsul inglês, por instalar um recém-inventado pára-raios no te­

lhado de sua casa, foi denunciado à Inquisição da cidade do Porto porpossuir o poder diabólico de domesticar o fogo do céu.

Dois irmãos morreram nas masmorras por denúncia dos vizinhos,que os viam se ajoelhar e rezar diante de deuses africanos de jade sobrea lareira. Os deuses não passavam de lembranças de uma viagem. Naverdade, eles cultuavam o grande crucifixo que havia na parede, sobreas estátuas, mas que não se via da janela.

Um pai e seu filho foram queimados vivos por serem vistos, de lon­

ge, batendo com paus na base de uma das inúmeras cruzes que se espe­tavam nas encruzilhadas para cortar o caminho aos lobisomens. O queeles queriam era matar uma cobra.

Além da heresia, o Santo Ofício condenava a bigamia, o homosse­xualismo e a feitiçaria.

Um bebê que chorava, vomitava e bebia sangue era obra de feitiça­

ria, pacto sexual da mãe com o diabo, vítima de bruxas, um monstro ge­rado por magia negra, enfim, um prato cheio para o tribunal da Igreja.

Eu e Raimundo acompanhávamos o drama da família, de ponta­cabeça no telhado, protegidos pela escuridão da noite, e o que mais meirritava era que meu amigo custava a se dar conta da gravidade do caso,tão orgulhoso estava de seu "filhinho" ter sido capaz de se aHastar ebeber o sangue da bacia.

O desespero histérico da mãe a fez voltar-se novamente para acurandeira, embora o sogro a prevenisse:

- Olha que curandeiras também são tidas como feiticeiras. Isso sópiora a situação.

Estávamos chegando ao final de setembro de 1755. Por mais queo boato corresse, por mais que o barbeiro dominicano se encarregassede espalhá-l o por todas as esquinas, até chegar ao conhecimento dos

membros do Santo Ofício, e daí serem tomadas as primeiras providên­cias, a mãe acreditou que teriam algumas semanas, e pôs toda a sua fé eesperança em que a curandeira poderia curá-Ia. Curado, seria a palavra

de um barbeiro contra a de uma família inteira, já que a curandeiraaceitara o suborno do sogro para guardar os fatos para si.

Eu e Raimundo acompanhamos tudo, noites a fio.Incitada pelos pais do bebê e incentivada pelo dinheiro do avó, a

curandeira mostrou serviço.l\Janreve-se firme no diagnóstico anterior e continuou o tratamento

tópico para carne talhada ou rendida, aplicando papas de azeite quente(l;m massa de pão em forma de cruz na garganta do bebê, bafejandojúmaça de tabaco em seu peito e rezando em voz muito baixa palavrasininteligíveis.

Porém, como carne talhada no interior do corpo não explicava o

fato de o garoto ter enfiado a cara na bacia para beber o próprio sangue,ela teve de dar um segundo diagnóstico:

- Ele foi vítima de malefício.

Doenças comuns eram o resultado de castigos divinos, mas, quando

o sujeito apresentava sintomas muito estranhos, era certo estar sofrendode feitiço provocado por alguém, pessoa ou monstro das trevas, e aí oprocedimento de cura era outro.

- É preciso saber quem provocou o malefício, para poder anularseus poderes.

Foi então que a avó, que sempre se recusara a admitir o trabalho dacurandeira, por ser contrário à sua cada vez mais crescente e fanáticafé católica, lembrou-se das marcas das duas picadas que encontrou no

pescoço do bebê, na noite do parto. Ela só não sabia dizer em qual dosdois encontrara as marcas.

- O bebê foi atacado por monstros chupadores de sangue de re­cém-nascidos - concluiu a curandeira.

- Eu não sou parva! - a avó protestou. - Sei muito bem dosperigos, por isso preguei a imagem de São Lázaro na porta de casa! Evenho queimando solas de sapato no quarto desde o dia do parto, quepara isso já estraguei calçados quase novos!

- Solas de sapato espantam apenas bruxas - retrucou a curandei­ra -, e nada adiantam contra lobisomens e vampiros.

Foi a primeira vez que fomos citados.Olhei para Raimundo e balancei a cabeça.

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o tratamento prosseguiu por vários dias.Um sabugo de milho, com o cabelo da mãe na ponta, foi espetado

. 1 um alfinete e colocado numa gaveta.,-(.]1 ~

. :\ mãe e o pai foram obrigados a dormir invertidos, um com os pés

" "l(losnara a cabeca do outro, para impedir que o lobisomem voltasse.\lr,· r '.\ 11l;1ep3.SS0U toda uma noite com uma g<11inhapreta sem cabeça

,-.bre a barriga.Um grande sapo seco f"i colocade) sob o tr<wesseiro do bebê, por

dU;I' nuites, e dê)'ois enterndo junto ao muro do cemitério, enquanto1 cUf;tndclra pedia <lpoio )s alm.lS dos defuntos, as quais, por estarem

Jl~,li, pre~)ximasele Deus, pCJdi:]mser mais bem üuvidas.A CHia noite ela vinha com rezas e rituais diferentes, usando V;}S­

se.uras, facas, azeite, água, fogo, incenso, mel, banha de porco, cabeça

de frango, raÍzes ... Tudo isso à custa do dinheiro do avô, que abrirauma conU num armazénl da Ribeira, cujo dono começou a desconfiar

que ali havia rituais de feitiçaria. Uma família não podia consumir tudo<,quiloem tão poucos dias, nem ter tanta urgência de sete rabos de porcoàs sete d3 manhã no dia 7 de outubro, entrando e saindo do armazém

com sete passos para a frente e sete para trás.A curandeira só não usava velas. Elas eram monopólio da avó, que

queria rivalizar em matéria de rituais, espalhando velas por toda a casa:cinco velas sempre acesas nos braços das cadeiras; velas imensas, do tama­nho do bebê enfeitiçado, sobre a cômoda da sala; velas cercando os santos,

os quais começaram a proliferar por todos os cantos da casa; e a cada velaacesa muitos pais-nossos e ave-marias; fora as novenas e as idas à igrejaduas vezes ao dia; e os terços rezados durante toda a noite.

Eu não suportava mais aquilo tudo. Estava prestes a acompanharRail1lundo numa chacina para resgatar o pobre coitado do bebê, que

sofria todo tipo de maluquice nas mãos daquela gente. Mas o temor deque um ataque de vampiros chegasse aos ouvidos de Rosa Loba sempreme fazia recuperar o juízo e a paciência. E esperar.

Raimundo Pascoal sofria muito.O bebê chorava durante toda a noite, berrava furiosamente, e a úni­

ca coisa que podíamos fazer era dar-lhe um pouco de sangue de pombo,nas raras vezes em que o deixavam a sós.

O bebê gostava de sangue, isso é certo. Acalmava-se, dormia pro­fundamente logo em seguida. Mas também mamava o leite da mãe.

Outra coisa estranha: ele estava crescendo.

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Durante o dia, um oficial do Tribunal de Inquisição do Santo Ofício. aoSpais do bebê uma intimação para comparecerem à presença dolevou .

'sidor-mor, na semana segUinte.rnqUl. . .

A noite, eu e Ralmundo, entretldos sobre o telhado, olhando o que

se (1:!~,a\"ano quarto dos bebês, fomos agarrado; pelos pescoços, pela.• •. 1 lescomunal d"ólsmãos dô Morcegão, e arrastados por sobre os te-ler~. v '. ~,

"h'j,l(lo; da freg.uesla da l\1adalena.IJ• tI -~ ....

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o lugar fedia à carne podre, mofo e xixi de rato. Baratas e imensas

ratazanas circula vam à vontade por todos os cantos.

A luz vinha de quatro grandes lamparinas de azeite penduradas nas

paredes, que produziam sombras dançantes.Era uma caverna artificial, com um conjunto de piscinas vazias

:,Ci fundo, onde haviam colocado alguns caixôes. ~ichos retangulares,

;:bertos, como bclich:s. c)briam um~l eL1sparedes. A um canto, desta­

(.,dos. sl'bre ~ilTl;1pedra aira ê c!UL1. dois caixôes hL\Ll\hUS. Um, muito

" ~'cF;trH'. () outro. irnenso.

. Os proprinúiu' daqueles do;s clixl>(s estaV:lm bem :1 nossa frente:

1<"5:1 Luha e seu se\Cur:lIlça, o Morcegãd.

t\usa Lüba devia n-.edir ménos ele um l1iétrn e meio, gordinha, sem

nenhuma curva, como um:! rolha. Era cabeluda. US;l\<1 uma long:l

Iranç:1, e o higude act:'ltu:du. Vestia-se de preto, sempre. Sua aparência

(;,,;ca era de uma tipic:l mulher portuguesa de 3(1 anos daquela época,

entlhecida prtm:,turamente pelas quantidades industriais de açúcar

brasileiro que consumia. Seus únicos dentes eram os dois caninos sa­

;ientes na :lfC;l(1a superior. CarrC:i,!..lva no rosto os traços da ascendência:nOUD.

Seu segurançcl, o Morcegão. era um negro de dois metros de altura,coberto de músculos.

Ele fora tLl!1Sic)rmadu em vamriro assim que as primeiras levas de

c~;cr;l'.'OSchegar;lJ11 a Lisboa. no começo do século :XV. Sua tC)fça era es­

}':int(ISCI.Podia erguer pec1r;,s que pesavam toneladas. Dar saltos tão altos

c'iarg(IS que eraJ11 quase vôos, puLmdo sobre ruas inteiras.

i\]t'l11 de nós, t'l11 volta, mais de vinte vampiros e morcegos, e dois

,:-:'«ncles e peludos Jubisomens.

1\':\0 gosto de lobisomens. PeSSO;lS normais durante a maior parte

do tempo, em cleterrninadas noites de lua cheia viram monstros sangui­

nolentos descontrolados, atacando a primeira vítima que encontram.Como geralmente são os caçulas de uma família de sete irmãos, são mi­

mados, cheios de manias e caprichos, sempre se achando injustiçados eperseguidos.

- A "monstruosidade" deles não é permanente, como a nossa ­

explicou minha psicanalista. - É mais parecida com o que chamamosde "crise", ou "surto".

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Rosa Loba estava possessa:_ Um barbeiro está há dias a perambular pela fregue­

.;'1 da Madalena, a espalhar a notícia de que um bebê bebeu'J.'

uma bacia cheia de sangue. Isso pode ser o indício de umbebé-\-ampiro. E como os vampiros não se razem sozinhos,aí tem coisa. Coisa muito errada. Pelo fio se acha o novelo.~1andei investigar e descobri a casa do bebê. E que vocêsdois têm p3ssado rodas as noites em cima do telh;,do dela'

Eu já vinha me preparando para aquilo:_ Justamente. Também ouvimos falar na história

que o barbeiro anda contando, daí passamos algumas noi­tes sobre o tal telhado, para saber do que se tratav;:.

Ela me encarou, desconfiada.

- Não gosto de VOCtS - disse. - Fic3111a tentar\iver vidas de anjo em corpo de vampiro. Tenho certeza

de que estão metidos nisso.- Absolut3mente - retruquei. - Sou um estudioso

(].)mundo das trevas e quis imestig3r se o bebê fora ata­

cado por alguma criatura das que chucham recém-nasci­dos, como as bruxas; ou até mesmo as lendárias Ílllin,;i.', da

Grécia~ou as lanf!.-,uyare.c, malaias~ ou quem sabe uma /i/;r/"

ludia, já que há tantos judeus em Lisboa ...Sempre fiz o tipo vampiro-culto. Continuei:- Depois de noites e noites de vigília. posso adiantar

que não detectamos nada de mais no bebê. É um lX'bêabsolutamente normal, humano. Não foi atacado nem

sofreu nenhum malefício. O que ele está é tísico. Por issoexpeliu sangue. Fizeram-lhe uma sangria, e ele acaboupor cair com a cara dentro da bacia. Só isso. Um aciden­

te. Ele não pretendia beber, de jeito nenhum. A mentedominican3 do barbeiro, louco para lev3r denúncias à

I~quisição, que todos sabemos estar nas mãos dos domi­nlcanos, acrescentou ao fato uma versão fantasiosa.

Acho que teria convencido Rosa Loba não fosse apresença de Raimundo Pascoal a meu lado, olhando-me

Com ar aparvalhado, sem disfarçar que ouvia o que eudizia pela primeira vez.

- Tudo pode ser - ela disse -, mas para mim vo-

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cês andam a querer colher legumes no mar. Criaram um bebê-vampiro,o que é uma infração terrível e condenável. e que os levará à fogueira,com bebê e tudo.

Os outros vampiros, e os lobisomens. grunhiram de satisfação.Eu precisava ser esperto. Percebi algc! ali que podia usar.- T.)r,··~c\ 11rl")'-')r (]1'r'" ':'""'\'-:;r' '-"-('n1-""':-';;:""j •..••r,--l .... -1,-,,1- --1--;, -r':' . ...,.'.....-..,-·l. _", '_',r ,-~~, .t" '- ' ..., .••..•~ .•.•...•,) •..•\.. -}~ ~,,-•..I...-L 1J.d,.j~1 ~,~_,llC' •..) .••.• L l..~LC,11,,-~\1 '.' l<::-~:

\"(lCt mesma analisar. Se os espt:ci,:distas católic,'s do Tribun,il Li"

()fíciu são caJ")aze;; de s~tbcr~e~lJ,gu~~rrj:0 YJ1T}1_~ir(lI_>u n:icl. C('!11(J f-1L\.i ,> ".

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- E CL1fC' que sei íjizer Se ~t tratJ Ol: r:~u d~ tIll1 i)t"bt-\>~llllplr,(J t1Ycr n~l~ .i"l1}(".<':"

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como uma baforada de charuto, e, em seguida, uma minúscula velha, sópele e ossos, ergueu-se muito lentamente, até ficar sentada.

Suas mãos apoiavam-se nas bordas de madeira do caixão. Os dedoseram finos e nodosos, como gravetos ressecados. A pele forrava o rostocomo papel celofane sobre uma caveira, tão fina que se podiam ver asraízes dos dentes. Uma manta preta. mofada e puída. com babados derenda amarelados pelo tempo, cobria o esqueleto da velha. Era uma vi.,:!"pavorosa, mesmo para os olhos de um vampiro. mas o que mais me cho­cou foi que aquele espectro usa\a uma cabeleira postiça. uma bela penlCt

morena. de cabelos longos e cacheados. Um cadáver vaidoso.A velha ficou imóvel. sentada dentro do caixão. olhos vidrados. "1\8"

respirava. Apenas desprendia, de vez em quando, pequenas baforaebsde poeira cinza.

- Esta é i\laria Romana - Rosa Loba explicou -, a vampira maisvelha de Portugal. l\lorcegão a foi buscar, num cemitério do outro ladodo Tejo, porque Maria Romana tem o poder de revelar se o sangue deum humano foi contaminado pelo de um vampiro. Ela arranhará a peledo bebê com sua unha. Se, em sete noites, o arranhão tiver deixado uma

marca permanente, há sangue de vampiro correndo nas veias desse pe­queno corpo.

Eu não esperava pela aparição de uma coisa como aquela ... MariaRomana. Mas uma chefe de congregação precisa ter seus truques, mm­trar por que é a líder. Tudo bem. Eu continuava tranqüilo. A velhapodia arranhar o bebê todo que não ia acontecer nada.

Rosa Loba descobriu o bebê e levou-o no colo, nu, para junto da velha.Eu não acreditava que ela tivesse forças para levantar o braço, mas MariaRomana começou a erguer a mão direita, fechada, lentamente, como umamarionete guiada por um fio invisível. Também muito devagar, foi esten­dendo o dedo indicador, e aí vimos sua imensa unha, preta de sujeira.

Rosa Loba aproximou o bebê daquele dedo descarnado. Num sú­bito movimento para a frente e para baixo, como se tivesse levado umadescarga elétrica, Maria Romana arranhou a coxa esquerda do bebê.

O sangue apenas aBorou à superfície. Uma fina linha vermelha.Maria Romana foi amparada por Morcegão, que a deitou novamen­

te no caixão e começou a fechar a tampa.- Fiquei admirado com os poderes de Maria Romana - eu disse,

para aparentar segurança. - Como estudioso, gostaria de voltar parasaber mais sobre ela. Agora precisamos levar o bebê para casa. Têm

todos a minha palavra de que daqui a sete noites nóso traremos novamente para conferir o resultado doarranhão.

_ "Traremos", não! - Rosa Loba me corrigiu

de novo. - Seu amigo Raimundo Pascoal cá ficatoda a sel11ana,con10 garantia.

Tomei um susto. ~ão havia pensado nisso. 1\10s-

uei-me indignado:_ Desconfiam de mim' Isso é um despropó-

sit'). \1111,1 arbitrariedade 1 Fazer meu amigo prisio­neiro. tendo apenas uma leve suspeita'

_ ~30 perca seu tempo a falar, que as pala­vras desacreditam as obras. Tenho cá certeza de

que são culpados, que já sei há tempos que Rai­mundo Pascoal não se conforma em ser vampiro

e que até hoje, duzentos anos depois, ainda sonhacom sua amada Almerinda. Todas as mulheres

dos prostíbulos de Lisboa sabem que ele sofre pornão ter uma família.

Ela estava bem informada.

Tentei ser mais agressivo, pegando Rai­

mundo pelo braço:- Vou levá-Io comigo de qualquer jeito.

- Se digo pedra, pedra há de ser, mes-mo que seja pau! - ela gritou.

:\lorcegão deu dois passos para a fren­te, na minha direção, o suficiente para queeu soltasse Raimundo e me conformassecom seu destino.

Ela tornou a embrulhar o bebê na man­ta e o devolveu a mim:

- Daqui a uma semana, se o arranhãotiver se transformado numa cicatriz. vocês

três vão para a fogueira. Vampiros que des­respeitam as regras não têm uma segundachance. Cachorro que come galinha nãoserve mais para tomar conta de galinhei~ro. Só matando.

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Raimundo Pascoal estava estranhamente alheio a tudo. Acenei para

eie, fiz um sinal positivo. Ele pareceu nem me enxergar.

Era 30 de outubro de 1755. Un1J sexta-feira. Eu só \"()1ta,ia na pró­xima quinta. 0:ão havia nada que eu pudesse fazer.

Colocaria o bebe em sua cama. ao lado do irmão. e ficaria vigia:ido,

todas as noites. para que nenhum vampiro. ou lobison,e:n. ou que;'ü

quer que aparecesse d~'ls tH'V:lS a mando de Re,sa Luba dcsc1,brisse LJUc

ha\"ia d()i~ bebês. gtn1tO~. c;"':(1tan1entc jgu~lIS,curnu dU~lS ;(lt~lS de' 3,2T1J.

:\"dU tivc up0rtunidade de dizer;1 R;,imund" PascoaJ que aquele: erao beb2 hum,lnu. () 01!tfO. (J :1Orm,,1.

fJe p~l'''aria U!1"'!~lSI.:'!Tl~t!!:: d()~·~Ji~·:l)(~s.S;ií ti\. L.~ L'u111l(JUlt~1 pella d{J

meu amIgo.:\' unca mais o veria.

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Acendi a lamparina. Dezenas de ratos corriam de um lado para o outro,guinchando, muito assustados. Cachorros uivavam ao longe. ~leu cavalorelinchava, aflito, escoiceando as paredes de tábuas da cocheÍra.

Falta\'a pouco para as dez horas da manhã. :-\ão podia abrir a pOrta.Temi ser um ataque da congregação.

::'\uvo estrC:1TJe<:imento,seguido de um estrondo forte, chegou a medesequilibrar. em quadro caJU da parc:de. O dntaro com água tombc)ue quebrou.

Seria :\lorcc:g:io, temando pôr abaixo meus alicerces de pedra - l\Lscomo era possÍ\'eL se estávamos em pleno dia, e ele era um v:lmpiro.como eu-

Os ratos afinal encontraram uma brecha entre as pedras e o ch:io debarro e saíram. Tudo ficou quieto. Deitei novamente no caixão. :'-Jãohaviao que fazer. Esperei o pIOr.

Nada mais aconteceu. Definitivamente quieto. Voltei a dormir.

Assim que o sol se pôs, pulei cio caixão, selei meu cavalo e parti paraLisboa.

Na estrada, cruzei com uma multidão vindo em sentido contrário.

Homens, mulheres, cri:lnças, \'elhos. Todos pareciam ter acabado de

\'er ° demônio. Alguns, com panos enrolados na cabeça, empapados desangue. Esfarrapados. l\luitos precisavam ser arrastados, com pernas ebraços quebrados. Vários vestiam apenas ceroulas. Todos cobertos depoeira e cinza, com os olhos vidrados de terror.

Fugiam de Lisboa.Chicoteei o cavalo. Do alto de uma colina, olhei a cidade. Lisboa

ardia numa imensa fogueira!Deixei meu cavalo amarrado às portas da cidade. Ele se reCU~'1va;1

prosseguir. Segui a pé.O céu er;l pura fumaça negra.As labaredas subiam alto, iluminando as ruas destroçadas, as racha­

duras que se abriam em abismos na terra.

l'ão havia mais nada de pé. Paredes, torres, campanários, palácios,mosteiros, telhados ... tudo desabara, rachara, e milhares de pessoas gri­tavam sob os escombros. Choros, gritos, pedidos de socorro. Pessoassemi-esmagadas por blocos de pedra gritavam por misericórdia. Pilhasde corpos ardiam sob o madeirame dos telhados desabados.

Loucos vagavam entre as chamas.

Eu via tudo através de uma nuvem de pó e cinzas. Prosseguia,

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contornando pirâmides de cadáveres, umedecendo as botas em poçasde sangue, ouvindo gemidos dos moribundos e ladainhas de homens tmulheres ajoelhados, abraçados a pedaços de cruzes arrancadas às igre_jas em ruínas.

Eu atravessava entre terros retorcidos. escalava montanhas de pedra~que. até o dia anterior, haviam sido igreias e palácios. Abria caminho entreparedes de fumaça, ouvindo corpos ainda vives crepiLmdo no tc'go.

:\tàstava de mim pessoas énlouquecidas que': tentavam me agarr~tras pernas, os braços. Pulava. com saltos de vampiro. gr.1ndes Cf:.!krac;

abertas nas ruas, de cujo fundo escuro relinchavam cavalos e gritavarl1

pessoas tragadas pela terra. Eu ia em frente. Eu precis.wa saber U '-jLkhavia acontecido.

O fogo ardia por todos os lados. Tanta luz que parecia dia.

LTma nlula em chamas corria, roçando-se entre os escombros, t"\l'd­lhando o fogo onde ainda não havia.

Eu precisava saber. .\1as era como se eu já soubesse.

O Terreiro do Paço desaparecera. Desaparecera o largo do Pc:louri­nho, a casa do Haver o Peso, o mercado do peixe. Não sobrara um.1 S'l

barraca. A terra se abrira, tragando tudo, as construções. O fogo trans­formava o que restou em cinzas.

Havia barcos, de cascos para o ar, por todos os lados.Atravessei a freguesia da Madalena.

Desapareceram os Hospitais dos PaJmeiros e da :Misericórdia. le­

vando seus peregrinos, seus cegos, suas ramalhtiras, o homem qUt inll­rava nas escadas e fazia tatuagens.

Desa pareceram a rua :\'ova dos Ferros e todas as suas livrarias; a rua

dos Ourives de Prata; a ermida das Pedras Kegras.

Desa pareceram as ruelas e escadarias escuras, onde as prostitutasprestavam seus serviços; os açougues da rua das Carniças Velhas; o pa­lácio do Correio-mar; os becos do João das Armas, do Oliveira da Pa­daria, do Cura.

Não restava mais nada do beco do Espera-Rapaz. Nada.Uma grande fenda, paralela ao Tejo, tragara todas as casas. Tudo

era poeira e fumaça.

Parei diante do que antes era o sobrado da família do bebê. Cho­

rei sangue. Ainda não havia compreendido o que acontecera. Confllso,

acreditava que tudo aquilo era urna vingança de Rosa Loba, por desco- 1~.brir que eu a enganara, mostrando o bebê errado. '

Enchi-me de coragem e fui direto ao inimigo. Caminhei para os li­

mites da freguesia, direto para o cemitério paroquial da ermida de Nos­sa Senhora da Consolação. Em meu ensandecido jUÍzo, queria afrontarRosa Loba, amaldiçoá-Ia por aquela destruição.

Custou-me reconhecer o local. A Porta do Ferro havia afundado

numa cratera. A ermida desabara e era agora um monte de entulho

fumegante. Corri para o cel11it~rio. Uma fenda gigantesca o cortara defora a fora. Sem ptnsar, pulei dentro dela.

A cavtrna artificiaL o balneário romano, ainda estava lá. Coberto de

pedr~lssolras, terra, poeira.. Ainda via os caixi'íts, ul1pilhados nas paredes, alguns espalhadosnelo chão. Os de :\lorce2:ão e Rosa Loba continuavam sobre os grandes

blocos de pedra retangular. 'Todos mortos.

.-\.fenda aberta na terra expusera a congregação à luz do sol' Todoshaviam virado punhados de cinzas, em seus caixões sem tampa.

Pedaços de vigas em chamas caíam na fenda. Eu tinha de sair dali.

Procurei ... até encontrá-Io. Estava em um caixão de pinho vagabundo.Tudo o que restava de Raimundo Pascoal era o anel de esmeralda

brasileira que lhe dera de presente, e que ainda brilhava entre o monti­nho de cinzas.

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o próprio Palácio da Santa Inquisição ruiu. E a Casa da Alfândega,a Vedoria Geral de Guerra e muitas outras construções que abrigavaminstituições públicas importantes.

Tudo isso aconteceu em um domingo de céu limpo. sem nuvens. namanhã agradável de um dia de grande devoção religiosa.

Ao final do terremoto, as águas do Teja recuaram mais de mil me­trOS, deixando dezenas de barcos e navios ":!1calhados. Uma multidão,

:;sq;suda com a terra que ainda tremia de tempos em tempos. t com osInc~ndIOs, fugiu para o leito seco do riü. procurando at~lstar-se o mais

possível daquele pesadelo.O Teia. então, tornou a avançar. Uma onda de dez metros de altura.

A onda investiu contra a parte baixa de Lisboa. Cobriu o Terreiro

do Paço. Varreu a freguesia da I'v1adalena. Arremessou barcos dois qui­!ómetros terra adentro.

Centenas morreram afogados na ressaca, arrastados pelas águas queavançavam em turbilhões de ondas sucessivas, estraçalhando barcos, en­

golindo e destruindo o recém-construído Cais da Pedra, todo em már­more bruto.

Depois do terremoto, e do maremoto. o fogo ficou livre para com­pletar a destruição.

As chamas das milhares de velas acesas no dia santo se espalharamrapidamente.

Os incêndios duraram uma semana. As labaredas avançaram sem

parar, consumindo tudo, objetos e corpos. Não havia como combater o

fogo. Os tremores de terra haviam secado as poucas fontes de Lisboa.Durante sete noites vaguei pelo caos, com a absurda esperança de

ainda encontrar o bebê vivo.

Na madrugada do domingo do terremoto, eu escutara a família dis­

~utir sobre em qual igreja iria assistir à missa no dia santo. A velha beataInsistia que fossem ao templo do Convento do Carmo, um dos mais im­POrtantes da cidade, para que todos vissem como eram devotos. A mãe e

o pai preferiam presenciar o culto em algum templo dominicano, comouma forma de agradar à Inquisição.

. Ficaram de decidir na manhã seguinte, e eu acabara sem saber a queIgreja tinham ido.

Na primeira noite, corri para as ruínas do Convento do Carmo .

. Desesperado, revirei os escombros com uma energia descomunal,atirando longe pedras imensas e vigas de madeira.

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Nada. Quatrocentos corpos esmagados, muitos ainda gemendo. Obebê não estava lá.

Fui a outro templo importante, a basílica de Santa Maria. Sua navecentral havia desabado sobre centenas de fiéis. :\ada.

Ti\'e de parar as buscas. O sol nasceria em breve.

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colares, anéis, moedas - de corpos mortos ou ainda em agonia. Cruzeicom um franciscano que dava extrema-unção aos moribundos e depoislhes roubava moedas e tabaco.

Turbas saqueavam a igreja Patriarcal, levando os valiosos para.­mentos e ornamentos. :Multidões reviravam as ruínas do Palácio Bra­

gança, levando as jóias da Coroa, as baixelas, as ta peçarias de seda comfios de ouro; hordas roubavam as especiarias das Índias, nos armazénsexpostos da Casa da Alfândega, e os bens das mansões desabadas dos. .COIllerClantes ncos.

L:ma rica senhora, coberta ele jóias com diamantes brasileiros, as

pernas esmagadas por uma pedra de cantaria, gritava por ajuda emmeio aos escombros. 'em homem, bem vestido, arrancou-lhe meticulo­

samente as jóias e jogou-lhe mais pedras em cima.Eu precisava encontrar o bebê.Já procurara em todas as grandes ruínas. Por duas noites estive reme­

xendo nos mil e quinhentos corpos esmagados pelas paredes de pedra doConvento da Trindade.

Havia mais ele cem lugares onde a tlmília podia ter assistido à missa dodia de Todos os Santos naquele domingo, e eu resokera começar pelos quetinham reunido grandes multidões, até chegar às pequenas ennidas. Isso meparecia mais sensato do que procurar ao acaso nas ruínas das paróquias.

A semana passou. Lisboa era um acampamento caótico. Os corposainda não enterrados ou queimados começavam a feder terrivelmente.

1\1inha esperança era alimentada pelos gemidos que ainda se escuta­vam, saindo de sob os escombros e do fundo das fendas, de corpos às vezesjá cobertos de cal.

Uma mulher foi encontrada seis dias depois do terremoto, sob umarco de pedra, com o pé esmagado, abraçada a uma imagem de SantoAntônio, e sobrevivendo graças a uma parreira cheia de cachos de uva quedesabara com a casa.

Mas esperança tem limite.

- Para nós - a psicanalista lembrou -, que duramos quase umaeternidade, a esperança ser a última que morre não traz nenhum alento.

No fim da primeira semana, o incêndio já se extinguia por si próprio, ossobreviventes comiam ratos, mulas, cavalos, cães e até cascas de árvores, e ca­minhava-se sob uma chuva fina de cinzas. A fumaça não deixava ver o céu.

" ,,, •.••...,•••••..••..• v ••.••• 11 P I I V

Bandos de freiras perdidas passavam entre as ruínas. Fanáticos enlou­

quecidos insistiam em penitências absurdas, chicoteando as próprias cos­tas. Beatos andavam pelos becos carregando imagens de santos e rezandodia e noite. Padres jogavam 05 corpos nas fendas e os cobriam de cal eten3. dando uma extre1113-unção colt-tiva.

P<1reide procurar o bebê.:\leu sobrado 110 Bairro Alto fora COlTlpletamente consumido pelo

t; ,:'u. Dêcidi recolha-mê à quinta, cue n:,o fora abllbJa DeIO terremoto.b ~!

p:lssdria um te111poLi até os humll11(Jsse organizarem..'\ tamília do beco do ESDêf:I-RaD:lzn:io existia mais. R:iÍmundo Pas-o •

COltldesapllfecera. ROS:l Loba, :\Iorceg:io e toda a congrega(ío haviam\]fado cinza. O Pabcio da Inquisiç:1o desllbara.

Er:<,portanto, a sétin1ll noite de buscas, e eu voltava para casa, confor­mado, quando a sone me pregou uma peça.

Estava lxm diante do pequeno templo dominicano do Corpo Santo

quando vi um grande ajur.tamento de padres daquela seita, realizandouma vigília em torno do convento destruÍdo.

A grande e pesada abóh,c1a que C'lbria a capela desabara, trazendojunto as grossas paredes de pedra, e um sino de ferro pesando toneladas,soterrando umas três dezen:ls de fiéis que assistiam à missa das dez. Eles

sabiam que era impossível haver sobreviventes e se preocupavam mais em

resguardar o convento de saques do que em vasculhar os escombros.Com minha audição de vampiro, ouvi claramente estranhos ruídos

sob as ruínas.Amanheceria em breve. Eu tinha pressa. Incentivei os padres a revol-

verem as pedras, dizendo que ouvira barulho de gente viva L1 embaixo.Começaram a trabalhar, a princípio com muita má vontade, mas logoouvimos duas crianças a berrar sob as ruínas.

Lá estavam os gêmeos I

l\'1aisde vinte padres dominicanos fi:Jramtestemunhas.Quatro grossas vigas de madeira brasileira haviam escorado o grande

sino, criando uma bolha de ar sob ele. Isso não havia impedido que muitos

corpos jazessem ali, esmagados, cortados.Apenas os dois bebês estavam vivos, embaixo do sino.Um sobrevivera chupando o leite do peito de uma mulher, que não

era Antônia Batista, a mãe dele.

O outro, para horror total dos padres, chupava o sangue que S;\Í;I do

pescoço cortado de um homem muito gordo.

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Lisboa começou a se erguer das cinzas.Não era uma tarefa simples. Um terço da cidade fora

destruído. As sedes administrativas tinham vindo abaixo.

O rei, D. José I, que nunca tinha dado provas deter grande iniciativa, e muito menos de heroísmo, numataque de pânico se pôs a rezar, e não saiu de Belém.Dos três ministros, um ficou inválido com o susto,

o OUtro fugiu. O terceiro, Sebastião José de Carva­lho e ~lelo, mais tarde conhecido como marquês de

Pombal, foi quem tomou as rédeas da situação.Foi nessa ocasião que ele proferiu a célebre frase:- É preciso cuidar dos vivos e enterrar os mortos.Com tanta gente ferida e desamp:lr;rd:I,,' 1:1111'""I

dáveres apodrecendo nas r\1;IS,c<Jlllid"" 1'(11',I,IH"I(I',.

roídos por ratos, isso P:Ij'('l'j:1<.,)\ j",

Assinavam em cruz e podiam passar toda

uma vida sem ter de tratar com a administração.,ública. Registros de nascimento eram anotados

~elos p3dres, nas paróquias, em grandes cader-noS de capas sebosas. O terremoto, o 111,uemoto

e, pc,r t1m, o incêndio haviam destruído a maiornarre desses registros e apagado definiti\'amen-:. l11ilhJres de vínculos L1J11iJiares."

I;nurou-se o passado dos gemeos. Seus paisn:iu a~xueceran1. Estavam 111ortOS.

Sobre\'Íverem foi considerado um milagre:. O

fato de SC'femgêmeos reforçou a mística. Viraramsímbolos. Um mau e um bom. Um enviado por Deus;

li Ulltru, pelo Demônio._ Temos de cuidar para não embaralhá-Ios -lem­

brou um padre -, pois são tão iguais que corremos orisco de trocá-Ias, e santificar o filho das trevas.

Eu não podia fazer nada. Vicente, afinal, por outrosmotivos, acabara nas mãos da Igreja. Ele não era um

vampiro completo, não dormia de dia. Eu não poderiacriá-Io. Recolhi-me à minha quinta e fiquei assistindo aoseu destino.

As coisas funcionavam assim na Lisboa do séculr)XVIII, e foi por isso que os bebês encontrados vivos nosescombros do convento dominicano foram logo batizadr.scom nomes de santos.

Um, o que se alimentara de leite, o bom, foi chalhad(Jde Antônio, em homenagem a Santo Antônio, o padrOei_ro de Portugal.

O outro, o que chupara sangue, o mau, re:ebêu "nume de Yiceme, em repres:dia a São \'iceme, oTO de Lisbo,1.

Enquanto Santo AntôIlio mostrara-se muito eTicaz

ao proteger o resto de Portugal de tão terrível trélgédia,São \ 'icente havia demonstrado não ter o menor prestí­gio perante Deus.

De fato, o terremoto só causou destruição no Cé'ntrude Lisboa. Até os arredores, como a região ao norte, ondeeu tinha a minha quinta, a apenas vinte quilômetros, t~l­ram poupados. Isso, aliás, foi o que salvou a nobreza.

Naquele domingo de Todos os Santos, a quase totalida­de dos fidalgos encontrava-se em suas quintas. Como sem­pre, passavam o fim de semana fora, acordavam tarde e as­

sistiam às missas de domingo em suas capelas particulares.Toda a família real estava em Belém, a apenas onze

quilômetros. Se estivessem no Paço da Ribeira, que veiototalmente abaixo, teriam morrido.

A imensa maioria das vítimas era do povo.Comentou-se que Deus era :ibsolutista.Agora os gêmeos chamavam-se, portanto, Antônio

e Yicente.

Ninguém se preocupou em saber quem eles eram an­tes, de onde vinham, quem seriam seus pais.

Naquela época, as pessoas do PO\'o tinham apenaso nome de batismo e, como sobrenome, a profissão queexerciam: Ricarda do Peixe, Teodoro das Couves, Pe­dra Sapateiro; ou o nome do santo padroeiro da família:

Teresa Batista, ~laria Genoveva; ou de uma árvore quebrotava em seu quintal: Teodoro Pereira, Clara Figueira;ou uma característica física: Álvaro Manco, José Vesgo.

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sen,jc :YE'/5tê: sc..'me:lte

enl CêSO de guerra.

Se não agissemde novo a peste.

Percorrendo a cidade em sua carruagem, dia e noite,Pombal dava ordens e assinava decretos.

Cuidar dos vivos... Construir albergues. barracas.tendas .. -\brigar os bandos de freiras perdidas. Confiscartoda a comida possíYêl inclusive as armazenadas nos po­f(-)esdos n,n-ios atracados na costa. Impedir que os preçosaumentassem. Cortar impostos. Recolher alimentos naspro\"íncias vizinhas.

Enterrar os mortos ... Organizar tropas de coveiros.Cobrir os corpos com bastante cal. Atirar cadáveres aomar, ;}marrados 3. pedras. Os padres davam a extrema­unç50 por atac3.do, confiando que Deus, no céu, saberiaquem er3. quem.

Criaram-se patrulhas. Um juiz, um confessor e umcarrasco percorriam os escombros, condenando e executan­do no ato quem fosse pego em flagrante de pilhagem.

Na Praça do Rossio, vi duzentos corpos balanç3.ndona forca e outras tantas cabeças espetadas em est3.cas nasesqull1as.

Enfim, muita coisa a ser feita, em curto prazo. Eu,porém, não me envolvia com a "noite-a-noite" dos hu­manos, muito menos com o dia-a-dia, e me limitei a al­

guns p3.sseios por Lisbo3., para ver como iam as cois~lse para acompanhar, como já disse, o futuro de \'icente,que, por algum motivo que ainda me era estranhá, n30me saía da cabeça.

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Os i:umin,stas íoram os

primeiros a contestar e

CDnde~,ar o ,A.bsolutismo

:::~:'Jrc='c,;da ce:Il",.;....CO ca1'J~:C2

8e7E-nO!arn os direitos

0cr:"';~2:se un!\'e"sê.!s:

:)r':);:r:-=:Cla:::'? ~Yi\:3C;3

::·e':;:;d-= e "25!s:e:--Cld

as >'3"-;:2';. :f~:~:'::'-:jgai.....- r- sr:-:::; ch~~c,;~:

SC-='"'2S :'":c 7::-:-1:;,::

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ur-:-.êrn-:a("jadê f'Jn.j~Qa

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G;Jsr'ião ern ~21-S. CJs

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C:)~é~i·,.,O~e se aeolcar a

:xe;;:s.::ãeo :ia E\'ar:gelhono rr:'...i:"'.jQ e aosideaiS dE ;J:J8reza dC'5

or;;;,e:rc'33pc.'IS10iOS.Fcran~: :i-r:..;;to alua:-ites

nê :nqu:Slção.

Os Jesuítas eram oadrE~

iiga::os a Corrlpanh!a de}ESJS, urna ir~Tiandade

exci~sva pa;'a O clero

catci:co Tundaaa PDf

inac;o de Loy'oia, em15.34. ~c:·am mL.,lito

ir::Donanles paraa ConH2-Reforma

(niovirnento queco",batEu a Reforma

Protestõnte), poise:-:fa~i:::?'."3m a

obediência ao papa

Os Jesu;tõs tinham

grande iní'uênm

politca por serem

educadores e, muitas

vezes, con"essores e

conselheiros dos reis.

Pascoal, apesar de venerá-Ias, tinha de fugir dos crUci_fixos e das águas bentas como fugia do sol. Eu, que souateu e iluminista, posso dormir abraçado a uma cruz tlavar o rosto com água benta.

- A psicanálise vampírica já estudou esse fenôme_no. O vampiro que acha que os símbolos católicos sAI)

do '·bem". e que ele próprio é do "mal", é afetado e podtaté ser destruído por eles. É um problema psicossomáti_

co,., sintomas org,'inicos produzidos por influencias p~í­quicas ... Já curei muitos vampiros disso. Basta melhorarsua auto-estima, ou seja, nós precisamos nos achar du"ben1".

- Tem razão. Eu tentava conversar com Raimundu,"O catolicismo nos considera obra do demônio", eu im­

plicava com ele. "Como pode um vampiro, como VOCt.

ter fé num Deus que quer destruí-Ia?"

"Louvo o Deus católico por tudo o que faz", Rai­mundo Pascoal explicava. "Daí, louvo-O por precisarnos destruir."

Eu ria daquela lógica absurda.

Depois do terremoto eu teria perguntado a Raimun­

do Pascoal: "Se você estivesse com metade do corpo es­magado pelas ruínas de uma igreja, onde foi venerá-Lo,vendo ao lado toda a sua família morta, mesmo assim es­taria satisfeito com as obras de Deus?".

Quando eu o encostava na parede com a minha razão.

seu argumento final era uma espécie de reza, em qu~ ficl­va repetindo: "Tudo em minha volta pode ser destruído,contanto que me reste só Deus e eu",

Ao que eu retrucava: "Se você estiver sozinho comDeus, é porque está morto".

Tenho muitas saudades de meu amigo RaimundoPascoal.

O povo, por sua vez, tinha muito medo.

Era um medo antigo, fruto de muitas tragédias:as pestes, os terremotos, o sumiço de D. Sebastião, aderrota para os mouros, a ocupação espanhola, a deca-

dência de um império que já fora senhordo Ocidente.

A Igreja aproveitou para esfolar as cons-ciências. O misticismo foi lêvado ao paroxismo.Tudo foi usado para aumentar esse medo,

Inclusive Yicente.Os dominicanos entregaram os gêmeos aos

it'5UiLlS,que eram mais poderosos em matériade' pf\lpaganda e articulação política, De co­n1l1macordo, usaram os dois como símbolosdo mal e do bem. Da destruição e da recons­

tru(io, Dos pecados e da absolviçi1o. Do cas­

tigo e da salvaçi1o. Caim e Abel.Levaram os bebés para o mosteiro de

São Bento, um dos poucos a permanecer

de pé, e lá foram expostos, como motivo deperegrinação.

Redigiram panfletos explicando, em lin­gua;em barroca, as circunstâncias milagros:lsem que haviam sido encontrados, depois deuma sen1ana enterrados vivos, e como un1 so­

brevivera com leite, e o outro, com sangue.Antônio foi colocado num berço folheado

a ouro, junto ao altar, ao lado de uma estátuade Santo Antônio, enorme. Uma ama-de-leite

com ares virginais foi encarregada de ama­ment<1-lo na frente de todos.

Yicente foi aloiado numa cela imunda na

masmorra, em um leito de palha suja e úmida.Um carrasco iria alimentá-Io com sangue de

ratos e galinhas.Assim que o povo soube, formaram-se lon-

gas filas.

Os padres conduziam primeiro a Antô­nio, o símbolo de uma vida pura e religiosa,

Depois, a Vicente, a representação viva dopecado, do mal, da monstruosidade, do pa­ganismo.

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,'"E-:?ren·::e 2A peregrinação atravessava as noites. As vezes eu

estava entre os fiéis.

:\'ão agüentava ver o bebê-vampiro naquela situaçàoe tària alguma coisa para salvá-lo. nem que custasse mi­nha própria 111CJrte-vje13.

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Page 47: A insônia do vampiro   ivan jaf-

Nos países da Pe~insu!aIbérica, a ciénc:a

I!uminista demoro,j mais

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. I• I' O século XVIII ficou

'!1 conhecido como Século. das Luzes por marcar

'.. :1 , d"mm",'mm'O do! Iluminlsmo na Europa,

o que teve reflexospolíticos e cuit'urais

- incluindo a eXllnçãodo "obscurantismo"

causada pe'G domínio

oa Ig~e.:2 e ':jS!llOr:êiqUJas ôOSD:ut:5tas.

::eguncic' essa r0êJ':~;rac€ pensar, a raZdO seria

o prlnc:pal meiO de

Ilbertac~o do h·yriem,

a que! se daria porr:leio da Educacão

e da partic:pação

Doinica ےfi um gOl.,'Erno

repreSE!itat.II'O econstitUCional. Na

-,"merlca, seus ecos

chegaram com aindecenoéncia dos

estados Unidos,em 1775. No

Brasil, influencia a

Inconfidência Mineira,em 1739.

Os déspotas esclareCidosforam os monarcas

Que adotaram os ideais

i1uministas, ou seja,

"esclarecidos" pelasnovas idéias, mas aliados

ã burgueSia em um

esforço de adequar o

regime monárqulCO aos

"novos tempos".

Pois bem: eu prefiro ser uma superstição a um monstrodas trevas.

Naquela época, a razão avançava por toda a Europa.Até os regimes absolutistas já precisavam de "déSpotasesclarecidos" para poder continuar no poder.

E, nesse contexto de idéias iluministas, o terremotode Lisboa foi um marco.

Portugal era considerado o país europeu mais atra­sado, justamente por ainda estar nas mãos do clero.Após o terremoto, Deus começou a ser questionado emPortugal.

Como acreditar na perfeição das obras de Deus de­pois daquilo? Como continuar afirmando que Suas obrastrazem em si o caráter de seu Criador? Como ensinar

para uma criança, cujos pais foram esmagados dentro deuma igreja, que tudo o que Deus faz tem de ser glorifica­do? Como convencer os fiéis de que a crença em Deus osprotegia contra o mal, se o terremoto soterrara justamen­te os que assistiam à missa?

O terremoto destruiu a maioria dos conventos,

igrejas, mosteiros e ermidas, numa hora e num dia emque todos estavam lotados. Como dizer que aquilo foicastigo de Deus, se castigados foram os que acredita­vam n'Ele?

A bondade de Deus tornava-se, no mínimo, suspeita.As dúvidas surgiram. Mesmo entre os devotos. Uma es­pécie de mal-estar metafísico. Uma certa mágoa ... Deusnão devia ter feito aquilo ...

A explicação iluminista fazia mais sentido e começoua ganhar adeptos: terremotos eram sucessos da natureza,e não da cólera divina; não se tratava de castigo divino, esim de causas naturais; a noção de bem e de mal era hu­

mana; a natureza não conhecia a moral, sujeitava-se aoselementos que às vezes entravam em fúria uns contra osoutros e produziam catástrofes que atingiam os seres hu­manos, mas cujo alvo não era a humanidade; a nós cabiaapenas nos defender, nos proteger da natureza, usando arazão.

IlumiDlstas mais radicais diziam que o terremoto

fora castigo, sim, mas contra os jesuítas, tanto que derru­bara todos os seus sete templos. Os jesuítas se defendiam,afirmando que Deus destruíra muitos outros templos ecentenas de casas. Os iluministas concluíram, então, queDeuS não tinha uma mira boa.

O Iluminismo precisou da ciência para justificar o

terremoto, mas a ciência da época era tão maluca quantous delírios místicos ...

"A Terra é um ovo gigante, cu;o fogo central consti-

tui a gema, e a grand~ massa líquida, a clara, e portanto émuito natural que, de vez em quando, a casca, onde vive-mos, se rache."

"A Terra é um ser vivo, que às vezes gagueja.""Terremotos são ataques epiléticos do planeta.""Lisboa foi construída sobre um caldo fumegante de

betume, enxofre e nitro, capaz de provocar tempestadesintestinas, como peidos, produtoras de trovões (o que ex­

plica o estrondo que se ouviu antes do sismo), e que, nãotendo um orifício pelo qual escapar, provocam o rompi­mento das camadas rochosas."

Para mim, a humanidade que se danasse com suasloucuras e suas tentativas de explicar o inexplicável.Encontrava-me aflito como nunca me acontecera an­

tes, Precisava resgatar Vicente daquela condição humi­lhante. Mortificava-me ver o bebê-vampiro naquela cela

imunda, exposto como a encarnação do mal, servindoà mistificação fanática dos religiosos. Sentia uma fúriaincontrolável.

Não podia tomá-lo nos braços e escapar, enfrentandoa multidão, as centenas de padres e o destacamento de

soldados que o prestígio dos jesuítas conseguira deslocarpara dar segurança ao mosteiro de São Bento.

Mas mesmo esse ato suicida eu teria tentado, se Vi-cente não tivesse resolvido as coisas por mim.

O que ele fez foi simples: não fez nada.Desde que o retiraram dos escombros da igreja, não

bebeu nem mais uma gota de sangue.

é se tOf:!ar .:or.r'E:c!oa eUliiiza::ia. Essa den-,ua

ccorre'J por cc:!ta caforte dorninac3o da

Igreja e dos a'/3ílçOS da('Jntra-F:.e7orrna. ,A,ss:r:""

a :dé!3 de OLi:::' "Jeus

qUIs assim" CC:'l,tinuouse misturanDO C0fi'. 25

superS1.;çÕes P:jPU:d!'~Se a cléncla prat'C.~da no

períooo medieval.

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II,.

Chorava, berrava, tentavam lhe dar mamadeiras de sangue, aprOxi_

mar ratos com barrigas abertas, enfiar pescoços cortados de galinha (11)

'o, boco.ma, de com;n",," eho;ando. Então. ,1""".lh, Ie;,c. o''''"',i.como o de qü"lquer criança, e ele mamava, e se acalmava, e dr'rnli"como um anJo.

Frustrou os pbno5 da Igr-:jJ.

Cma semana de procissc,es depois, a notícia j,\ hJ\lJ Sê esp:dh.\dl': I,

Llêb;: du mal, C,rim,:. alma ruim por tr:lS do krrelTluto. tf.t Llil~.l Lr'J .

.-\s ribs aCll>:iLim. Ch jesmüs decidiram iIl\estJr elll C'~1tfl'S til''''k;~liLtgrc, cumu o da madre sLlJ.kriurJ do [(JJ)\tnro d,) Anunci.'"J,!, li;l,.•religiosa ,juminicana obsef\'ante qUé', desdé' a rrdgé,/iJ, l'umitd\,l I' I ic­mônio em t{>rma de altinetcs.

A.ntóni,'; L1l11bém fói descartado. Sem a comp,H;l~;lO com o m,d. li h:'1])

:~;l()tinha .'2'ac" l,enhurn,L .\:in,:.:utm :úia ri!.l p"r;1 \ t:r Ull) btb~s,-r ""'JéI­

memadu por Um,l rapariga que met3de de Lisboa sJhia niio Ser \ir,~tl'l.CJs jesUít,15 c('meçaram J pensar em como Se li\Tar deles.

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.-05 'rnêL;S passos" erama desobediência aosvotos de castidade:

rrIJ!::as vezes, as TrE:!rêS

7i:S\'am g:-av:das, senaocbr:gadas a abortar ou a2ba~!dor:ar os filhcs.

Quando abri a pesada porta de madeira para sair, asdobradiças rangeram como se eu tivesse apertado o pes­coço de dois gatos sonolentos. O padre se ergueu na camae começou a resmungar:

- Quem é? Quem é?

A única luz vinha do lado de fora, da lamparina naparede do corredor. Refugiei-me na sombra da porta. Opadre levantou, esticou a cabeça, olhou o corredor. Seu

pescoço ficou muito perto de meus dentes. l'vleu corpotremeu. Eu devia ter bebido mais, antes de sair de casa

àquela noite. Dois copos de sangue de cabra não eramsuficientes para aplacar a vontade irresistÍvel de enfiarmeus dentes naquele pescoço gordinho e suculento. Euprecisava só esticar os braços, puxar o corpo do padre,cravar os caninos naquela jugular pulsante ... Podia sen­tir o coração do homem batendo junto com o meu.

É uma espécie de delírio. Um vampiro nesse estadodeixa os limites do próprio corpo. Sentimos o sangue davítima bombeando, correndo nas veias, como se já fosseo nosso sangue.

Dei-lhe uma pancada na nuca e joguei-o de volta à

cama. Era o mais sensato a fazer. Não queria roubar umbebê que chupara sangue de um cadáver na mesma noiteem que encontrassem uma vítima de vampiro.

Apaguei a lamparina do corredor e apressei-me na di­reção da parte frontal do mosteiro, onde eu sabia existiruma grande escadaria de pedra que levava ao térreo.

Madrugada. Não havia ninguém desperto,Desci as escadas muito rápido, quase invisível para o

olhar de um humano. Saí próximo ao imenso portal deentrada. Dois sentinelas dormiam, sentados no chão, as

costas apoiadas na parede. Soquei-os na testa. Não fariamal deixar um rastro de violência comum, que combi­nasse com o rapto do bebê.

Repeti o trajeto que o povo fazia, na fila para visitarVicente. Percorri corredores estreitos e escadas sombrias,afundando-me nos subterrâneos do mosteiro. No cami­

nho, abati com socos três guardas, surgindo das trevas an-

tes que me vissem. Do último retirei as chaves do grande portão de ferro

que isolava as celas dos condenados, onde haviam enfiado ·Vicente.Apaguei as duas lamparinas que iluminavam o longo corredor.

Como já disse, no escuro posso ver o calor que sai dos objetos, sua ener­

gia pura. O último guarda era uma bola redonda e vermelha, que veioao meu encontro. na escuridão, ver quem apagara as luzes, Derrubei-oe tirei de seu cinturão a chave com. que abri a cela de Vicente.

Ele dormia como um anjo.Passei a mão em seu rostinho, hipnotizando-o para que não chorasse.

Embrulhei-o bem na manta fedida com que haviam forrado sua cama esaímos do mosteiro, voltando pelo mesmo caminho, até o janelão do tercei­

ro piso, de onde pulei para a escuridão das ruínas de Lisboa.Corri como um lobo assustado.

Tinha a impressão de estar sendo seguido.Atravessei como uma bala o que restara do Paço da Ribeira. Havia

fogueiras acesas por todos os lados, e sobreviventes tentando dormirem barracas improvisadas.

Alguma coisa estava em meu encalço.Corri muito. Praticamente voei. Imensas paredes de pedra, sem telha­

dos, projetavam sombras fantasmagóricas umas sobre as outras. Paredesque pareciam destruÍdas a dentadas por um gigante enlouquecido.

Um pavor terrível me brotava das entranhas. Apertei Vicente aindamais contra o meu corpo e mudei de rota, saí dos becos, enveredei pelas

ruínas, pulei sobre casas desabadas, sobre abóbadas destruÍdas de igre­jas, por baixo de imensos pórticos caídos, sabendo que o que quer quefosse ia me alcançar, não ia poder fugir daquilo.

E, então, lá estava ela, sobre os escombros de uma paróquia, com osbraços cruzados sobre o peito.

Rosa Loba.

-.

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_ Deus protege até os mosquitos no ar - ela falou, embalandoVicente. - Estávamos fora da gruta na hora do terremoto, a passaro dia em uma cova rasa, num cemitério de paróquia para os lados doBairro Alto, a resolver uma questão entre dois lobisomens, dos quaisum foi devidamente queimado. Pois lá também a terra se abriu e nos

surpreendeu o sol. iv1as,como vê, tivemos tempo de cobrir-nos, apesarde sairmos bem chamuscados. Lá o terremoto foi mais delicado. Deusnão fez distinção entre bons e maus, mas entre ricos e pobres.

-1\las havia cinzas nos caixões de vocês -lembrei.

_ Viu, dona Rosa? - Morcegão queixou-se. - Eu não disse? Os

malditos vampiros piolhentos dormiam nos nossos esquifes quandoviajávamos.

_ Lamento muito o que aconteceu - falei -, mas não tenho cul-

pa. O terremoto foi ..._ É sempre um consolo nas desgraças achar quem as lamente -

ela ironizou. - Agora temos o bebê verdadeiro. Vocês dois morrerão.Ela sabia.

_ Eu me enganei - menti. - Peguei o menino errado. Esse aí é ocerto. Mas ele não é vampiro. Esteve com os jesuítas, no mosteiro de SãoBento, e não aconteceu nada. Podem se informar. Poupem o bebê. Se há

um culpado disso tudo, foi meu amigo Raimundo Pascoal, mas ele estámorto, foi torrado pelo sol, vocês sabem disso!

Rosa Loba sacudiu os ombros.

_ Quem recebe morte repentina, depressa termina a pena. Cada

um que o mate a sorte, ou Deus, que o fez. Mas você há de arder lenta­mente, por ter enganado uma chefe de congregação. Não vim ao mun­do para fazer papel de parva. E levará junto este filhinho das trevas, poisLisboa toda sabe que sobreviveu sob os escombros do convento domini­cano do Corpo Santo chupando o sangue de um homem.

_ Estava embaixo do sino. Como queria que se alimentasse? Qual-

quer bebê faria isso.Falei aquilo sem nenhuma convicção. Não havia mais argumentos.

Lancei o pé direito para trás, contra a virilha de Morcegão. Havia forçasuficiente para derrubar uma parede, mas ele apenas largou o meu pesco­ço e levou as duas mãos à parte atingida, mais de susto que de dor.

_ Tente me ferrar, para ver como dou coice! - gritei.E bati-lhe na cabeça com um pedaço de caibro. Uma pancada que

teria derrubado um touro. Morcegão caiu de joelhos. Várias bolhas estou-

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;--

raram, transformando o lado direito de seu rosto numa pasta gosmenta,Acertei-lhe novamente a cabeça, de cima para baixo. Aquilo racharia umbloco de pedra. O caibro se quebrou, e ele nem se mexeu. )Jum mo\'i_

mento muito rápido, agarrou minha perna direita e puxou. Caí. Então,calmamente, ele quebrou minha canela, como se fosse um graveto.

Urrei de dor. Vampiros sentem dor. Temos sangue, veias, sentimen_tos, mau hálito.

Em seguida, até com certa delicadeza, .\lorcegáo quebrou-me a ca­nela esquerda.

Não parou. Partiu os meus dois fémures. Com cuidado, para que C's

ossos náo rasgassem a pele. Estava me preparando }Xlraa fógueira.

- Acho que assim não dará mais coices, dona Rosa - ele explicou,depois do serviço pronto.

De todos os lados, das ruínas de Lisboa, surgiam vampiros imun­dos, cobertos de terra, raÍzes, com mato saindo dos cabelos desgrenhados,roupas em frangalhos, larvas brotando dos bolsos.

A horda fétida, com rostos e mãos sujos de sangue, silenciosa, noscercou.

Lembro-me apenas de fragmentos de imagens.O sorriso de Rosa Loba.

Ratazanas fugindo dos escombros.

Morcegão erguendo rápido uma fogueira, usando o madeirame dotelhado desabado.

Rostos nojentos me olhando entre as bolhas gosmentas.

Eu era um saco vazio. l\forcegão me arrastou pelos cabelos parajunto do fogo, que já ardia, alto.

Rosa Loba gritava, erguendo Vicente nos braços, exibindo-o.Ia atirá-lo ao fogo.

Ivforcegão apertava meu pescoço. E me erguia.As labaredas chamuscaram minhas calças, queimaram-me as botas.

O cheiro da carne assando. Ouvi um grito. Fechei os olhos. Continuei

suspenso no ar. Tudo parecia ter parado depois daquele grito.um homem estava em pé, no alto de um muro. Uma silhueta, alta,

imponente, com uma capa preta esvoaçante e uma longa cabeleira branca.- Pare com isso, bruxa covarde! - a silhueta falou.

Fiquei de olhos muito abertos. Aquela voz era familiar.Clemente.

cal.

_ Esta não é sua congregação, Clemen-

te' - Rosa Loba gritou.-Não há mais congregação em Lisboa

_ meu pai falou. - A que existia aqui osol incinerou. E a responsabilidade foi sua.Dormir em caixões abertos é fruto de sober­b.:le indisciplina.

_ Cada um que olhe por si, e não fará

pouco - ela tentou manter a autoridade. ­Está interrompendo um ritual de punição. Se

quer discutir procedimentos, conversemosdepois, de chefe para chefe. Agora, afaste-se.ivlorcegão, jogue esse traste ao fogo.

Eu era isso mesmo, um traste. Morcegão

tornou a pegar-me pelo pescoço e lançou-me

à fogueira.Num movimento ainda mais rápido,

meu pai bateu-me nas costas e me atirou porsobre o fogo, jogando-me longe.

Morcegão avançou para ele com as mãos

em garra. O que aconteceu em seguid<l pa­receu absurdo. Quando o gigante negro

agarrou meu pai pelos ombros, estava semcabeça.

Foi difícil de compreender. O corpo de

Morcegão desabou. Sua cabeça estava nochão. Meu pai segurava uma fina e curta espa­

da, que tirara de trás da capa. Fisgou a cabeçade Morcegão com a ponta da espada e a atirou

ao fogo. A cabeça ardeu, chiando como umbolinho de bacalhau no azeite quente.

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- Inimigos, quanto menos, melhor - meu pai sorriu.

Rosa Loba era outra pessoa. Ainda com Vicente no colo, pareciauma pobre mãe desamparada.

A platéia de vampiros esfarrapados continuava muda, mas de

olhos muito abertos. Não tàziam parte da antiga congregação de Rosa

Loba. Eram apenas mortos-vivos arrebanhados em cemitérios de pro­víncias, atraídos pelos milhares de cadáveres frescos de Lisboa. J\ãoquerIam se meter.

Clemente tomou Vicente das mãos de Rosa Loba e o aconchegounos braços.

- Este bebê está crescendo - ele disse. - E bebe leite. Não foi

transformado em vampiro. Você sabe disso. Rosa Loba. Quer apenasexercer a tirania. Se eu fosse você, sairia o mais rápido possível dê Por­

tugal. Se permanecer aqui, convoc.J.rei uma reunião com outros chefes

de congregação e, pode ter Cêrtêza, vamos jogá-Ia numa fogueira.

Ela estava sem alma. l\lurcha. Pêrmaneceu calada e quieta.Clemente enxotou os outros, como pombos.

Depois empurrou com os pés o corpo de l\lorcegão para dentro dafogueira.

- A cabeça deve estar sempre junto ao corpo.

Segurando Vicente num dos braços, com o outro me ergueu.- Tire forças da fraqueza, filho. Vamos para casa.

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lIl# lvan Jaf•

Naquela época, derrota significava destino. Não eram muito otimistas.Eu invejava o pragmatismo de meu pai. Queria ser como ele.

- Não quer não - a psicanalista balançou a cabeça. - 'Você estáaqui, neste consultório, justamente para se distinguir de seu pai, simple~­mente porque não é como ele, não pode, nem precisa ser.

l\"aquela noite, Clemente nos levou, eu e o bebê, para a minha quinta.Eu estava com as pernas arruinadas. Para me recuperar, deveria fi­

car embaixo da terra por pelo menos seis meses, tempo em que os meusossos voltariam a se soldar com perfeição.

Antes, porém, precisava resolver o destino de Vicente.-1\'ão é vampiro. Entregue-o a alguém, para que o criem - Cle­

mente aconselhou.

- Mas ele chorou e bebeu sangue ...- É normal. Raimundo deu sangue a ele. Sangue é gostoso. i\;ós

sabemos disso. Ele quis mais. Berrou e chorou tanto por isso que o sanguebrotou de seus olhos. Quando viu e sentiu o cheiro de sangue na baci~l,mergulhou de cabeça. Se Raimundo tivesse dado açúcar, Vicente teriaatacado açucareiros. E, embaixo do sino, chupou o pescoço do gordo por­que estava maIs perto.

O cinismo pode ser bastante sensato.- E, depois de ter passado dias chupando sangue sob os escombros,

Vicente nem quer mais sangue. Isso prova que o que ele teve foi uma ânsianormal de bebê. Quando se saciou completamente, acabou enjoando. Evoltou a querer leite.

- Não sei... Não existe um método rápido e definitivo de saber seVicente é um vampiro ou não? O senhor já ouviu falar numa velha cha­mada Maria Romana?

- Maria Romana ... - ele riu. - Aquilo foi um embuste de RosaLoba. É um truque antigo, usado pelos chefes de congregação, quandoquerem condenar alguém. O arranhão da unha de uma vampira velh;lcomo aquela sempre forma uma cicatriz medonha, em qualquer pessoa,viva ou morta-viva, mas depois some.

Senti-me um idiota.

- Preciso fazer alguma coisa, Clemente. Saber se Vicente é ... tercerteza ...

- Apenas enterre-se por um tempo. Se você quer manter a sanidade,

meu filho, é melhor não ter outro rumo na vida senão aquele que o acasomostrar.

Ele cuidou de tudo.

Fingindo-se de grande senhor, um conde, levou Vicente a Setúbal,uma aldeia do outro lado do Tejo, para ser criado por uma família de

agricultores que conhecia bc:m, mas que, é claro, nem desconfiava de suacondição de vampiro. Deixou com eles uma bolsa com moedas de ouro,

prometendo contribuir periodicamente, caso o menino fosse bem tratado.Exigiu que nunca revelassem ao menino quem pagava por sua educaç3.o;

por isso receberiam visitas misteriosas, sempre de madrugada.O casal não fez perguntas. Era comum filhos bastardos da nobreza

serem dados a Úmílias estranhas, para evitar escândalos. Filhas, quasesempre, paravam nos conventos.

Clemente os instruiu a, no futuro, contar a Vicente que seus pais ha­viam desaparecido no terremoto, e ele fora recolhido, pelo casal de agricul­tores, por piedade, nas escadarias que sobraram da Casa de l\fisericórdia.

Quanto à Rosa Loba, Clemente convenceu-me de que o melhor eradeixá-Ia ir:

- );'.1 verdade, n3.oé bom matar uma chefe de congregação sem le­var o caso a instâncias superiores. Reunir vários chefes de congregações ...Fique tranqüilo. Tenho certeza de que ela não causará mais problemas.Está destruída. Não tem escolha. Terá de sair de Portugal.

Quanto a mim, ele mesmo, antes de voltar para a cidade do Porto,abriu uma cova confortável no chão de terra do meu porão e me enterrou.

Enquanto eu me recuperava embaixo da terra, em cima Lisboa faziao meSlno.

Pombal continuava a dar ordens, a assinar decretos, a mandar que aca­bassem logo de botar abaixo as ruínas. Derrubavam paredes que insistiamem ficar de pé e colocavam o entulho em carroças de bois, que em filas inin­terruptas despejavam tudo no Tejo, ou nas colinas ao norte da cidade.

A região mais atingida pela estratégia do bota-abaixo foi a beira doTejo. Agora totalmente nivelada, tornou-se um bairro comercial, com

rUas traçadas à régua e distribuídas de acordo com as profissões. Umapara os cambistas, outra para os lapidários e ourives, outra para os sapa­teiros, douradores, peleteiros ...

A reconstrução de Lisboa criou oportunidades de trabalho para mi­lhares de homens. Um imenso canteiro de obras. Pagavam-se quinhentos

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réis por dia a pedreiros e carpinteiros. Contrata_vam-se ferreiros, pintores, carreiras, canalizado_res, condutores de carroças ...

Para financiar tudo isso, impôs Pombal, en­

tre muitas outras medidas, o confisco das pro­priedades cujos donos haviam morri do, que

eram muitas. Foi esse o destino do que restou de

meu sobrado no Bairro Alto. Não pude provarque estava vivo ...

Lisboa se transformava. Sua nova arquite­tura mostrava a passagem da mentalidade reli­

giosa, com seus becos e ladeiras sinuosas, para ailuminista, de quadras simétricas, ruas niveladas,

Cé'ntros de comércio e lazer. O místico dava lugarao prático.

A vida voltava ao normal.

E, com ela, as intrigas políticas.A aristocracia, enriquecida com as 3 mil

toneladas de ouro brasileiro que entraram naprimeira metade do século XVIII, havia aban­

i.rr& donado a produção e o comércio, deixando as

~'""_ terras sem cultivo. O dinheiro que chegava das

:liJZI~.·".colônias, principalmente do Br~sil, perdia-se nas.~~.' Importações da Inglaterra. NavIOS carregados de'1J!ili '\ ouro brasileiro i~m diret~men_te para o porto de

. ~. ., Londres. Para pIOrar a sItuaçao., a terça parte do, 'I reino, incluindo terra e imóveis, era do clero, que

~l~~ "nada produzia e só dava despesa.

r 'I '-~j Mas o ouro começou a escassear. As colônias

/L:('~ sofriam invasões de outros países. Navios eram<~. "':"'1. roubados por piratas. Para manter o luxo, a Cor-

te aumentava impostos e se endividava com aInglaterra.

O terremoto acabou de arrasar essa econo­mia decadente.

A Igreja, com tantas propriedades perdidas,entrou em crise financeira profunda. Em crise

também ficou a nobreza.

IUma nova camada social, os grandes comerciantes, contando com

o capital inglês e aliando-se a Pombal, começou a conquistar poder

político.O rei D. José I deu carta branca a Pombal, o que enfureceu a nobre­

za e o clero.

"Afaste-se da política", meu pai sempre me aconselhou. "Políticoscostumam ser psicopatas perigosos. Podem contaminar os vampiroscom suas vaidades. São péssimas influências para nós."

Seis meses depois saí da minha cova. Tinha as pernas perfeitamenterestauradas, mas completamente bambas, e tive de reaprender a andar.Nada de meses de fisioterapia, é claro, mas durante algumas semanascaminhei como bêbado.

Meus cabelos pareciam raízes de capim arrancadas com a mão.Tive de me enterrar completamente nu, e o contato da pele com a

terra durante seis meses a torna murcha e fina, quase transparente. Eume sentia uma minhoca deprimida.

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o mais influente desses profetas da desgraça era um jesuíta chama­

do i\1alagrida, espécie de santo milagreiro, freqüentador das altas rodasda Corte. Acabara de voltar do Brasil, onde havia peregrinado muitosanoS pelo sertão, do PiauÍ à Bahia, pregando sermões dramáticos, emque se açoitava em público. Lembro-me de ter lido um panfleto que elet:scre\'ê~Uchamado juízo da !'erdadeira calL,a do terremoto que padeceu a

Cor!t' de Li.,boa 110 primeiro de 1l0z.:embro de 1755, em que o jesuíta expli­(Jva que o abalo da terra não se deu por causas naturais, mas, sim, pelocxce,so de pecados da nação, e deixava no ar uma intriga com endereçocerto: Pombal, "0 perpétuo inimigo que muito importava comhater".

Pombal o expulsou de Lisboa.O rei D. José I obedecia aos seus decretos.

l\blagrida t()i mandado justamente para Setúbal, onde vivia Vicente.Eu não estava gostando daquelas coincidências. Preocupava-me

com o destino dos gêmeos. Estavam próximos aos dois maiores focosde intriga política: o duque de Aveiros e o padre Malagrida. E os doisconspiradores não ficavam quietos.

Sempre que podia eu ia a Setúbal, secretamente, sem que o casalque o criava, nem o próprio Vicente, soubesse. Queria conferir se omenino manifestava algum traço de vampirismo. E, não sei bem porque, ia também à quinta de Azeitão, ver como andava Antônio.

Ambos cresciam fortes e saudáveis.

Antônio se misturava entre os serviçais do duque de Aveiros, estri­beiros, porteiros, esmoleiros, mordomos, pajens, mestres-salas, armeiros,capitães de guarda, criados de quarto, camareiras, trinchantes de car­nes... Era criado por uma cozinheira gorda, que o enchia de comida.

Vicente também não podia reclamar. As moedas de ouro de Cle­mente, e depois as minhas, que eu passava ao casal nas madrugadas,misteriosamente envolto em capas escuras, elevaram bastante o pa­drão de vida da família de agricultores, que tratavam o menino adota­do como um investimento a ser protegido com a própria vida.

JVlaseu via a quinta de Azeitão transformar-se num antro de cons­piradores, com reuniões secretas contra o governo, irradiadoras de intri­gas, delações e traições.

E Malagrida continuava a pregar contra Pombal, transformandoSetúbal numa trincheira da Companhia de Jesus, ponto de convergênciade fanáticos, com suas procissões diárias de beatos descalços, cordas nopescoÇo e coroas de espinhos na cabeça. Já via a hora em que o exércitoarrasaria a cidade.

'U,re•

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Mas 1756 chegou ao fim, sem que pudessem conter o avanço doIluminismo sobre Lisboa. Surgiram avenidas largas. O estilo neoclás_sico foi substituindo o barroco. Jesuítas perdiam poder sobre as ins­tituições de ensino. Reformas políticas e administrativas afastavam aIgreja do Estado.

A nobreza tinha mais prestígio que força. Eram apenas quaw)duques, dez marqueses e trinta condes. O clero, sim, era poderosü.Influenciava diretamente o povo. E não queria as mudanças. Eram

sebastianistas, conservadores. Afast3r a Igreja do Estado foi um golpemortal para eles. Trataram de indispor a população contra o governoe suas leis.

O ano de 1757 também terminou. Vivia-se sobre um barril de pól­vora. Pendurado no telhado da quinta do duque de Aveiros, eu escu­tava planos conspiratórios.

Na noite de 3 de setembro de 1758, pouco antes da meia-noite, orei voltava de carruagem para seu barracão palaciano. Vinha de umencontro com a amante, a esposa do filho do marquês de Távora, tam­bém marquês, ambos conspiradores assíduos à quinta do Azeitão.

Acompanhei o atentado de cima de uma árvore.Os dois primeiros tiros vararam as cortinas da carruagem, mas

não acertaram D. José L

Pedro Teixeira, seu cocheiro, chicoteou os cavalos. Passou pelasformas sombrias de dois homens, encapuzados, cobertos por longascapas.

Mais adiante, novos tiros.

O braço e o ombro do rei foram atingidos.D. José I caiu no chão da carruagem, banhado em sangue. Pe(ho

Teixeira, também ferido, conseguiu fugir. .Não voltaram ao barracão. Aquilo parecia mais vingança de ma­

rido traído do que atentado político. O certo era abafar o fato, evitaro escândalo; por isso, Pedro Teixeira conduziu a carruagem para a

região da Junqueira, onde morava o médico pessoal de D. José r. Fi-.zeram-lhe um curativo de emergência, e servidores discretos deramsumiço na carruagem crivada de balas.

O rei retomou a seus aposentos e trancou-se, alegando indisposição.O sol ia nascer. O diabo de ser vampiro é ficar sem saber o que se

passa durante o dia. Somos como ascensoristas, ou motoristas de táxi,sofrendo com histórias interrompidas.

.~.-

O que aconteceu na manhã seguinte, segundo ouvi contar depois,foi uma estupidez sem tamanho.

O próprio duque de Aveiros apareceu no palácio para saber notíciasda saúde do rei. Isso sem que o atentado tivesse sido divulgado.

E a besta do duque, quando informado de que o rei estava "indis-

posto", ainda brincou:_ O mal de que ele sofre dne-o a alguma donzela.Por três meses ainda Pombal e o rei guardaram o atentado em

segredo, preparando o terreno, investigando. Os autores do atentadojá se julgavam a salvo.

De repente, o barril explodiu.Agentes da polícia avançaram sobre a quinta de Azeit:i.o e captu­

raram o duque. Como era comum patrões jogarem nos empregados a

culpa sobre seus delitos, os serviçais fugiram.Descobri, tarde demais, que a cozinheira havia desaparecido com

Antônio.

Os Távor3s também foram presos.

Os conspiradores tentaram transformar o caso numa questão dehonra, desfecho de um caso de adultério, crime passional, mas essa

versão comprometia o rei e não foi aceita.Submeteram todos à tortura, com aparelhos confiscados da Inqui­

siç:1o. O duque de Aveiros, poupado, mesmo assim confessou tudo.Bastaram alguns interrogatórios para que denunciasse um por um.

Sobrou até para o velho jesuíta exilado em Setúbal, Malagrida. Porinfluenciar os Távoras com seus conselhos e participar das reuniões na

quinta de Azeitão, foi preso, juntamente com seus criados e algunsseguidores mais fanáticos. Usaram-no para implicar a Companhia deJesus no atentado.

A lei não previa castigo específico para regicidas. Dizia apenas quedeveria ser exemplar, e o mais cruel possível.

De 12 para 13 de janeiro de 1759, numa bela noite de eclipse lunar,a multidão se aglomerou em Belém, à beira do Tejo.

Caía uma chuva fina.

Trazida em uma pequena liteira, apareceu a matriarca, a marquesaLeonor de Távora.

A marquesa subiu os degraus do cadafalso. Ataram-lhe as mãos evendaram-lhe os olhos. Cortaram sua cabeça.

Depois dela, seu caçula foi colocado sobre a "aspa", que era uma

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armação de duas vigas grossas de madeira formando um x, onde amar­

ravam os braços e as pernas dos condenados. Um carrasco quebrou-lhetodos os ossos com um pesado martelo de madeira. Primeiro as pernas,depois os braços, por fim afundaram-lhe o peito, deixando-o morrerlentamente.

Em seguida, da mesma forma, na aspa, mataram o marquês jo­vem, cuja mulhe-r, a marquesinha, era amante do rei.

Fazia parte da sentença que o velho marquês de Távora assistisseà morte dos parentes. Assim foi feito, e esmigalharam-lhe os ossos.

Depois um conde e mais três cúmplices.Quanto ao duque de Aveiros, o protetor de Antônio, untaram-no de

breu, colocaram-lhe um saco de enxofre no pescoço e o assaram vivo,lentamente, numa fogueira. Era um homem baixo, mas volumoso. Umfilete de gordura escorria entre as cinzas. O vento afastava as chamas, eele só acabou de morrer no final da tarde.

Lembro que noites depois, encontrando por acaso um lobisomemnuma estrada de barro perto de minha quinta, comentamos como o serhumano ~ 1110nstruoso.

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No mesmo janeiro de 1759, prenderam l'vfalagrida. Em setembro,D. José I assinou um decreto expulsando a Companhia de Jesus do ter­ritório português e confiscando todos os seus bens.

Mesmo destino tiveram os jesuítas expulsos das colônias. Principalmen­te os do Brasil, os que mais incomodavam a administração portuguesa.

Malagrida ficou mofando na prisão da Junqueira, onde fez jejuns

e penitências, e escreveu cois livros, ambos ditados diretamente por Je­sus Cristo. Deus em pessoa o designara embaixador do Céu na Terra e11era-Ihe a missão de prc,reger a Companhia de Jesus, que seria a fun­dadora de novos inlpérios. Ele conversa\a sobre ° assunto diretamentecom Santo Inácio, São Felipe e São Francisco.

Não era preciso ser iluminista para concluir que ele estava comple­tamente maluco.

Foi iulgado e condenado pelo tribunal do Santo Ofício, que na épo­(;1 era presidido por ;\uno de Melo, por "coincidência" irmão de Pom­bal, e queimado na fogueira em setembro de 176l.

Eu seguia minha vida de vampiro culto, estudando muito, princi­palmente os novos filósofos iluministas e os grandes avanços da físicapropostos pelo inglês Isaac Nevvton. Ia à Ópera e ao teatro.

Quando Vicente completou 13 anos, decidi levá-Ia para Lisboa. Ins­talei a família de agricultores num sobrado do Bairro Alto, perto domeu antigo local de pouso na cidade.

Queria que ele estudasse Artes. O menino havia adquirido umahabilidade espantosa. A partir dos 7 anos, passava horas desenhandoanimais e pássaros com um graveto no barro mole, ou nos muros,com pedaços de carvão. Também reproduzia catedrais destruídaspelo terremoto.

Matriculei-o, por intermédio dos pais adotivos, no Colégio dos No­bres. Fundado em 1761, para os filhos da nobreza terem uma formaçãomais moderna, tinha um ensino afastado do modelo jesuítico. Emborasem poder provar uma ascendência aristocrática, um saco de moedas deouro convenceu o reitor a aceitar Vicente.

Nessa época, Pombal gozava de um poder quase ilimitado, e houveum período de paz. A não ser por uma guerra desastrada contra a Es­panha, em 1762, na região de Trás-as-Montes, e que teria fortes ligaçõescom o destino dos gêmeos.

Aos 16 anos, Vicente era um rapaz magro e desengonçado, com a vas­ta cabeleira preta do pai e os olhos mouriscos da mãe, mas extremamentebonito - onde passava as mulheres o espiavam por trás das gelosias.

Page 60: A insônia do vampiro   ivan jaf-

Com Dugood, produziu uma grande planta da cidade de Roma

para doar à Real Biblioteca, cujo acervo começava a ser recomposto, de­pois da grande destruição provocada pelo terremoto. Doaram tambémum álbum aquarela do com retratos de nobres.

A única coisa estranha em Vicente era sua fixação pelos peixes.

Aos domingos, de ia às barracas de peixes, que voltavam a se reunir na

Ribeira, para comprar vários, um de cada espécie, e os reproduzia a Lápis.em seu quarto de estudante. freneticamente, antes que se estrag~lssem.

Eu tinha certeza de que ele não sabia nada sobre o seu passado.

A mania dos peixes mostrou-se inofensiva. Concluí que SU<lfixaçãodecorria da tatuagem que carregava impressa na nádega e de seu inte-

resse pelos anim<lis.Porém, como sempre dizia Clemente: "Tantas vezes o cântaro vai à

fonte que acaba quebrando".Em 1775, ali mesmo, próximo ao Terreiro do Paço, Vicente conhe-

ceu uma prostituta que o levou para um quarto na rua Suja.Quando ela viu a tatuagem do peixe, contou a Vicente que ele tinha

um irmão!

~ IVOII JOI•

Nunca mais bebera sangue. Era uma alma sensível, um artista.Gostava de desenhar, e dos animais. Ficara famoso em Setúbal por re­colher e tratar centenas de cães vadios, que naquela época infestavam

Portugal.Paralelamente ao Colégio dos Nobres, começou a estudar desenho

e pintura com um mestre inglês chamado Guilherme Dugood. quetambém era ourives e trabalhava para a Corte. Foi lá que aprendeu:lS técnicas da gra\"ura e da :lquarela. interessando-se muito por estaúltim:l. Yicente iria se tornar um mestre em aquarela.

Foi no ateliê de Dugood. ajudando no trabalho de ourivesaria, qucpela primeira vez te\"e nas mãos o ouro brasileiro. Ficou tão f3scinaduque julgou SC"f o Brasil um paraíso.

Dugood produzia estampas de Lisboa a pedido de Pombal, queencomendava imagens que reproduzissem a reconstrução da cidaJe,como uma forma de propaganda de sua administração. Aos 18 anos,Vicente passava os dias diante de palácios. praças, ruas, ou nos pátios doCastc'lo de São Jorge, recriando em aquarelas a luminosidade de Lisboae as águas cor de estanho do Tejo ao crepúsculo.

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Page 61: A insônia do vampiro   ivan jaf-

_ Com certeza são filhos de peixeiros - ela afirmou._ E como se chama meu ... irmão?- Antônio.

_ O que ele faz? Onde mora?_ É um militar. Um soldado. Vive na fortaleza de Bragança. Ain-

da deve estar lá.Isso não saiu mais da cabeça de Vicente.Ficou obcecado pela idéia de encontrar o irmão.Duas semanas depois ele largou tudo, encheu uma valise com rou­

pas, papéis e um estojo de aquarelas, e partiu rumo a Trás-os-Montes.Tive maus presse:l1l:imentos. Atravessar as províncias do interior

de:Portugal naqueles te:mpos era um aro muito temerário. Havia tan­td miséria no campo, um ul abandono. as estradas viviam tão infesta­das de bandidos, que os viajantes precisavam fazer te:stamentos antes

de partir.Vicente despediu-se dos pais adotivos, comovido, muito grato, mas

afirmou que nada nem ninguém no mundo poderia impedi-lo de en­contrar o irmão gêmeo e resgatar seu passado. Talvez Antônio soubesse

quem eram seus pais, mortoS no terremoto de 1755.O casal, sem saber se o que havia combinado há tantoS anos com

o homem misterioso que lhe trouxera o bebê era afinal verdade, pre-feriu calar-se.

Vicente partiu numa manhã fria de novembro de 1775.Tinha 20 anos de idade.

Eu o segui, escondido.Ele nunca me vira. Não sabia da minha existência.

Eu passava os dias dentro de alguma tumba vazia, nos mal cui­dados cemitérios provincianos, e às noites, depois de chupar o sanguede uma cabra, ou espremer um franguinho sem cabeça numa caneca,deitava-me nos telhados das estalagens onde ele se abrigava, velando

por sua vida.Não tinha dificuldade em encontrá-lo. Era só seguir uma espécie

de fluido emocional que ele desprendia e eu podia captar.De Lisboa à cidade do Porto não houve nenhum incidente. Havia

um serviço de carruagens regular, e a estrada não era de todo ruim.A nova administração pombalina iniciara até a colocação de gLlIlt1cscolunas à beira da estrada, para marcar as 1égll:ls.Nu ;ill(,.I(' (;i<h 111.11

co desses, havia um relógio de sol. () pruhl(·111.1 (' (111<' ,I', \1'/(', ,I I, )',11.1

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terminava à sombra. Deu-se então um grande debate: havia os parti­

dários de se errar a medição, deixando algumas léguas maiores do queas outras, e os que achavam mais correto ficar o relógio de sol sem sol.Não chegaram a nenhuma conclusão, esqueceram a idéia dos marcos eabandonaram a reforma da estrada.

N a cidade do Porto, aproveitei para encontrar Clemente e avisá-Iodo projeto do garoto e da minha apreensão.

- Fico orgulhoso do meu "neto" - ele disse. - Você está se tor-nando uma velha vampira rabujenta, com medo de tudo.

- i\tas é uma viagem tão arriscada ...

- Vicente é valente, e o valente está entre o covarde e o imprudente.Da cidade do Porto Vicente subiu o rio D'Ouro numa barca de

transporte de vinho, até a vila de Peso da Régua. Para segui-Ia, tive deme esconder dentro de um barril durante o dia, e à noite me alimentarde sangue de ratazanas no porão.

Até aí tudo transcorrera tranqüilamente, sem nenhum perigo. DePeso da Régua a Mirandela ele ainda pôde contar com serviços de car­ruagens. Daí em diante, porém, avançando cada vez mais para o norte,em direção à Espanha, só lhe restou ir a pé, por estradas desertas.

A nobreza abandonara os campos, indo para as cidades atrás do

luxo fácil que o ouro do Brasil podia comprar. Deixara a terra entreguea agregados e parentes, que viviam de cevar porcos e criar galinhas daÍndia, comer trem aços, pinhões, broas de milho e pastéis de tutano, e aabanar as moscas com rabos de raposa.

Eram raras as estalagens. Vicente via-se obrigado a dormir em se­

des de fazendas decadentes, com criadas velhas cozinhando em panelasde barro, onde a gordura fazia crostas castanhas; senhoras frisando 9cabelo com garfos quentes, bebendo em canecas de prata enegrecida, epapagaios catando piolhos sob as asas.

Ele passava as noites frias de dezembro ao pé de alguma larei­ra, bebendo vinho barato, jogando o faraó, o pacau ou o chincalhão

com algum grupo de homens miseráveis e embrutecidos, enquantoeu ,pena va sob a neve do lado de fora, sentado entre os galhos de umaárvore, ou com o corpo esticado sobre o chão de tábuas de um sótão,quando os havia.

Eu continuava apreensivo. O rapaz chamava muita atenção comseu ar cosmopolita, o jeito de estudante aristocrático, as maneiras re­

finadas, as roupas caras. Cruzava as estradas usando chapéu redondo,

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-.casaco preso à cintura, calças atadas com fita, camisa bordada e pu­nhos rendados.

Quando a noite chegava, eu saía do buraco na terra onde haviame enfiado, louco de preocupação, e o procurava em alguma casa pelocaminho.

Até aquela noite terrível. Véspera do Natal de 1775.Era madrugada, e eu não o encontrava em parte alguma.Há dois dias começáramos a subir a Serra do Nogueira. Não ha­

via estalagens nem casas, a neve cobria as escarpas, a estrada sinuosae estreita parecia um caminho de cabras, e os uivos dos lobos famintosecoavam nas grutas e nos paredôes.

Eu corria montanha acima, desesperado, sem conseguir captar ne-nhum sinal de Vicente.

Ele não podia ter se afastado da trilha. Não havia nada em volta. Teriade ter dormido em alguma gruta daquelas, como nas duas noites anterio­res. Fora muito fácil achá-Ia então, e velar por ele, espantando os lobos.

Só me restou voltar um bom trecho e percorrer novamente a trilha,

vasculhar todas as grutas do caminho, com uma rapidez a que só os

vampiros desesperados podem chegar.Afinal o encontrei.No fundo de uma reentrância, tão pequena que tive de puxá-Ia pe-

las pernas.O lado esquerdo de seu ventre havia sido aberto por um golpe de

faca. Um pedaço de intestino saía para fora.Estava na fronteira entre a vida e a morte, mas sua alma ainda lutava

para ficar com o corpo. Uma poça de sangue formou-se sobre a pedra.Esfreguei dois galhos secos com tanta energia que eles pegaram fogo

em minhas mãos. Fiz uma fogueira para esquentá-Ia. E chorei.Meu rosto ficou coberto de lágrimas de sangue.A vida de Vicente se esvaía diante de mim.Eu teria dado minha eternidade idiota por ele, para que vivesse sua

curta vida mortal.Salteadores de estrada, como eu pensei. Haviam roubado sua valise

e o deixado para morrer numa fresta de rocha. Os lobos sentiriam ocheiro do sangue e o devorariam. Não sobrariam rastros do crime.

Sentei-me a seu lado. Só me restava ver sua morte. Confortá-Ia no

momento final. Aconteceu, porém, uma coisa inacreditável.Num movimento muito lento, sem que eu tivesse feito nada, o pe-

Page 63: A insônia do vampiro   ivan jaf-

daço de intestino, com contrações nervosas, foi voltando para dentro doventre e acabou se acomodando lá.

Sempre muito devagar, a pele aberta à faca, um grande rasgo demais de um palmo, começou a se fechar, como um zíper. Uma ou duashoras depois o ferimento havia desaparecido.

Vicente abriu os olhos. Suas pupilas estavam completamente negras.

A pele de seu rosto ... mais branca do que a neve em volta.Ele sorriu. Eu também.

Seus dois caninos superiores deYÍam medir agora uns sete centímetros.

Eu sabia o que faur.Em pouco tempo voltei com uma raposa sonolenta e cortei seu pes-

coço. \'icente bebeu o sangue com avidez.

Page 64: A insônia do vampiro   ivan jaf-

raiva. Alguns fatos de sua vida deviam estar fazendo sentido. Tudo era mui­to assustador para ele, mas pelo menos estava conhecendo seu passado.

Cada um de nós aceita o fato de virar vampiro de um jeito. Vicente

fingiu que se conformava com aquele destino. Rápido demais.Por fim fizemos um silêncio pesado. Encostei-me também a uma pe­

dra e ficamos olhando para a lua. em lobo uivou ao longe.

_ O que você pensa em fazer daqui para a frente? - acabei pergun-tando, afinal ele estava entrando numa noYa existência.

_ Seguir viagem. Chegar logo a Bragança. Encontrar Antônio.

_ É como você diz - lembrei à psicanalista. - Era seu maior de­

sejo quando virou vampiro ... encontrar o irmão, saber sobre sua família,seus pais biológicos ... e continuou com esse desejo todo o tempo, mesmodepois de vampiro, quando geralmente não damos mais importância aonosso passado mortal.

Eu simplesmente o segui. Sentia-me muito bem por tudo ter-se escla­recido e Vicente estar a meu lado, morto-vivo e bem disposto, apesar demuito confuso.

Tive de convencê-Io de seus novos poderes. Passávamos os dias es-

condidos no fundo das cavernas. À noite, escalávamos as montanhas e

corríamos pelas estradas, mais rápido que lobos. Em pouco tempo che-

gamos a Bragança.Era uma das muitas vilas portuguesas abandonadas à própria sorte,

com a única diferença de abrigar uma fortaleza incrustada em seus arre-

dores escarpados.Na guerra de 1762, contra os espanhóis, ela vivera dias agitados.O rei da França, Luís XV, após várias derrotas na luta contra os ingle­

ses, na disputa para saber quem era a primeira potência comercial do mun­do, aliou-se à Espanha e exigiu que Portugal rompesse com a Inglaterra.

D. José I era cunhado do rei Carlos m, da Espanha. Tinha de aderira um tratado chamado Pacto de Família. Mas Portugal dependia da In­

glaterra para tudo. Não podia romper com ela. Não rompeu. Pressionadapela França, a Espanha invadiu Portugal em março de 1762,num conflitoque ficou conhecido como Guerra Fantástica. O exército português era umapiada. Os soldados eram recrutados à força entre os criados das grandescasas da província, pelos comandantes das tropas, que arrebanhavam qual­

quer homem entre 15 e 60 anos que não pudesse pagar para escapar dessedestino trágico.

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A defesa do território começou a ser feita pelos próprios camponeses,

armados de foices, paus e alguns bacamartes velhos usados na caça às ra­

posas, irritados com as ir.vasões de propriedades, as lavouras pisoteadas eo confisco de galinhas, porcos, cabras e vinho.

As tropas espanholas, que não eram muito melhores que as lusitanas,recuaram.

Para Pombal, a maior dor de cabep não era a guerra, mas a despesa

com a alimentação, e por decreto fez cortêS na quantidade de comida ofe­

recida ZlS tropas. Isso pro\'ocou deserções em massa.Uma autoridade inglesa chegou a reclamar que Espanha e Portugal

n.1o esta\'am faz'.:ndo uma guerra a sério, segundo os princípios milita­res lxisicos.

Um ano depois, um tratado de paz entre Inglaterra e França fez ;}

Espanha recuar para seu território, e a guerra simplesmente acabou,tão absurda que, quando contaram os mortos, descobriram apenasdois: um pedreiro e um cavalariça, que não tinham nada a ver coma história.

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J.I'i\

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o coitado recebia apenas um par de botas, calção, umsabre ou um mosquete, o qual na maioria das vezes termi­

nava vendendo. Davam-lhe uma sopa e dois pães por dia.Esquadrões de soldados maltrapilhos e esfomeados

mendigavam pelas vilas e estradas.Os ohciais não levavam uma vida muito mdhor, rece­

ber:.do soldos com atraso de mais de ano, só se linando d,l

miséna por um casamento rico.

A Guerra Fantástica pôs em ação esse exército de comé­dia pastelão.

Os primeiros destacamentos espanhóis avançaram

sobre a vila de lvliranda. A tropa portuguesa ali aquar­telada explodiu o próprio paiol de pólvora, arruinando afortaleza e capitulando sem resistência.

Os espanhóis logo ocuparam Bragança, Chaves e Torre

de !\loncorvo, s~mpre espantados com a facilidade com queos portugueses se rendiam.

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fa:ta se objetivos claroslevaram a 1550,

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Page 66: A insônia do vampiro   ivan jaf-

Quando chegamos à fortaleza de Bragança, numa noite extremamen­

te fria de começo de janeiro de 1776, treze anos após o fim da guerra,tivemos uma visão da pobre vida que Antônio levara .

•-\s cabras dormiam dentro dos alojamentos. Os soldados jogavam e

bebiam pelos cantos, o mato crescia por todos os lados, abelhas tàziam

colméias nas bocas dos canhôes. muros se estàrelavam e a ferrugem cor­roÍa as baionetas e os mosquetes .

.-\ tropa viYia de pequenos expedientes na \ila. como colar editais nas

paredes, :liucLu a rezar as ladainhas ou patrulhar estradas. Ou partia parau ruubo, CUI110 salteadores comuns.

:'\ão tivemos ditlculdades em saber notícias de .-\ntônio.

A cozinheira do duque de Aveiros tinha parentes em Bragança e, apa­

vorada com a prisão e a condenação do patrão à tc)gueira, fugira com An­

tônio para Tds-os-1\lontes. Ali vivera na pobreza até sua morte, quando o

garoto, abandonado, sem mais opçôes, entrara para o exército.

Antônio estivera aquartelado ali desde os 13 anos.

Tornara-se um soldado arruaceiro e violento. Havia um ano matara

dois homens, por causa de mulheres e jogo, e, para não ser pego, fugira

com um contratador de mão-de-obra, que o levara para o Brasil, para otrabalho em plantações de tabaco, em Pernambuco.

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luminoso, com um sol intenso. Ele era um pintor, deslumbrado pela cor.Achava que aqui devia ser o paraíso. Agora tinha um motivo. O irmão..\las eu o convenci a adiar um pouco a viagem. Ele precisava aprenderprimeiro a ser vampiro. l\'"ãopodia entrar num navio assim, como esta­va, e ficar quarenta dias preso numa embarcação, entre humanos mor­tais. Seria descoberto. Custou-me, mas voltou comigo a Lisboa.

- Você quis ganhar tempo ... Pretendia convencê-Io a não ir.-É.- E então·

- Não consegui. Ele ficou uns dois meses na minha quinta. Ensineio básico. Ele aprendeu rápido. Cma noite eu acordei, e Vicente simples­mente tinha ido embora. Foi para o Brasil. Pronto. Foi isso.

Fiquei calado.Havi,l aqueles silêncios durante as sessões, e eram como se a analista

estivesse abrindo a minha cabeça para procurar alguma coisa lá dentro.- O que você fez? ~ ela perguntou.- O que eu podia fazer? Vampiros são solitários. Eu me confor-

mei. Continuei vivendo a minha morte.- Triste?

Quando eu ficava em silêncio, ela podia ver dentro da minha cabe­

ça. Com certeza. Fiquei apavorado. Falei qualquer coisa.- Lisboa estava convulsionada, porque o rei D. José I passava

muito mal, paralisado desde 1774. Pombal dependia do apoio dele. Arainha, D. I\1aria, filha do rei e herdeira natural do trono, sem pre ti­nha sido contra Pombal. Ela apoiava os jesuítas, queria a volta deles aopoder. Começou a encabeçar o movimento dos descontentes ... os jesuí­tas, os comerciantes que haviam caído em desgraça, a nobreza afastada:Quando o rei afinal morreu, em fevereiro de 1777, Pombal caiu definiti­

vamente ... Foi demitido em seguida. Todos ficaram contra ele. A Igrejavoltou com toda a força. Nobres presos foram libertos. Degredados re­tomaram. Eu não queria assistir à volta do obscurantismo, à vitória daIgreja. Resolvi abandonar tudo. Vendi minha quinta e saí de Lisboa.

- Veio para o Brasil.- É. E foi uma decisão muito acertada. Pouco tempo depois a

França declarou o Bloqueio Continental, contra o bloqueio marítimodeterminado pela Inglaterra e proibindo os países europeus de esta­belecerem comércio com os ingleses. Portugal ficou no meio da briga.Não tinha como enfrentar as tropas francesas de Napoleão nem podia

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desrespeitar OS tratados assinados com a Inglaterra. Para

piorar a situ3ção, a rainha D. Maria I enlouqueceu com­pletamente. Passava os dias deitada, gritando "Ai, Jesus!Ai, Jesus", vendo o demônio em tudo. Tiveram de passar

o poder ao seu iilho, que viria a ser o nosso D. João VI.Resultado: el11 1808 a Corte portuguesa rambtm fugiu

para o Brasil._ \'ocê veio para o Brasil por problemas políticos ..._ "t:. Sentimentais também. Sempre gostei daqui.

Sabia que viréi vampiro em 15062 O Dr:!sil tinha sidodescuberto pelos portugueses h:1\'ia seis anos. O que Por­

tugal fez C(;111esta terra? Chupou seu sangue. É como seo Brasil fosse meu innão, entende? Começamos juntosnossa mone-\'ida.

;\lais um grande silêncio.Eu tremia de medo. Não tinha mais o que dizer. Mi­

nha voz não saía. Percebi como havia dado voltas, como

havia esmiuçado o passado, a política, a história, como saí­ra do assuntO, numa espiral, girando, mas passando sem­

pre pelo mesmo lugar, cada vez mais perto do centro daquestão ... E ela ali, olhando dentro da minha cabeça.

O silêncio. Dessa vez ela o deixou prolongar até tor­

nar-se completamente insuportável. Duas gotas de sangueescorreram de meus olhos.

Eu não conseguia dizer uma palavra. Ela olhava den­tro de meu cérebro e sorria. Eu implorava para que ela que­brasse o silêncio, mas ela o deixou ir até o limite, até falar:

_ Você sabe qual é a característica mais importante

da psicanálise? O que faz o processo analítico ser um "tra­talnento"?

_ Não ... - gaguejei, apavorado com o tom de suavoz.

_ Aqui, nesta sala, comigo, é o único lugar e momen-

to para você em que a mentira não vale a pena._ Não estou entendendo.

_ A mentira sempre é útil. Se não fosse, a gente fala­

ria a verdade, que é mais simples, não precisaria inventarnada. Mas aqui, meu amigo, entre nós dois, a mentira é

Em 1804, Napoieão

Bonaparte tornou-se

'imperador da França,Para enfraGu"cer

sua princlpai rival, a

1~,(]laterrj, ele d"cretcu,

ern 1806, o Bloqueio

ConTlflen"!a!, Dr'~)'bincjo

C)5 pa:ses europeus defazer comércio (om

'Ji(]!eses. Fortu(j31,~;é1CF=I()na! al!acJo 03

Inglaterra, não d·::dlOU

o ij:oqueic. r'J(~p'~'piedo,

e:-I~áo, invacJi~Jo (!3ís

p-Jr terra, em 1208.

;.\n~,ê3 de SlJd c:,e;1é'tda,

:-10e:ltarito, a corte

portuguesa cc)nsegulu

fugir para ~ Brasil.

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P,"r?.. 1.tlil van Jaf•

um mau negócio. Você está me pagando. :Vlentir aqui é jogar dinheiro fora. Sem

falar na perda de tempo.

Fiquei muito assustado.

A entonação de sua voz lembrava a de Rosa Loba. Ela me encostou na pa-

rede e tive de reagir. Infantilmente.- Eu não estou mentindo.

Eb deixou minha frase cair, desamparaeb. num abismo de silêncio infinito.

Quando voltou a [dar, tinha uma voz novamente suave, maternal:

_ Vicente não era um vampiro. Pode ter sido contaminado naquela noi­

te: por Raimundo Pascoal, a ponto de vir a chorar sangue e a querer bebê-lu,mas isso não foi suficiente para transformá-lo. \'icente continuou crescendo.

tornou-se um rapaz!

Eu parara de lutar por dentro. As lágrimas de sangue escorriam à von­

tade. !\1eu corpo estava duro como pedra, dentro do caixão. Ela vertia suas

p3lavras dentro da minha cabeça aberta, com suavidade, como um bule encheuma xícara de chá ...

_ ~aquela noite, nas montanhas de Trás-os-Montes, ao descobrir Vicen-

te com a barriga aberta, à beira da morte, você o mordeu. Você o mordeu e

depois deu a ele o seu sangue.- Ele ia morrer. ..

- Foi você que o transformou em vampiro!--- Ele ia morrer 1

- Kinguém soube. ~inguém sabe! Nem o

11I1I1)rioVicente!I·Je estava inconsciente! Estava quase

1111IrllI'

1'1.1IIW.i,," 11111pouco mais de silêncio, para

\' I 11111ill.l"1,;i1;I\'ras caírem no vazio.1,'11,11111"\'.\\OU a falar, eu me sentia muito

I, \, I 1," ·,'grl'do de dois séculos e meio não

111' 1"',,1\;1 mais na consciênCia.I LI ('l1lbalava minha mente, como a um

\" \"

Quando eu pedi para você contar o pas­

'"I' I" (I, ,s outros vampiros, e não o seu, queria

. 1"' Illvestigasse como os outros lidaram com o

1,11",\,' ser vampiro. Que obsessões desenvolve­

1,1111.( :O\TIO suportaram suas noites infinitas.

Como suportar minhas noites infinitas ..._ Raimundo Pascoal quis ser pai, formar uma família. Com tantos

séculos de vida, você deve ter conhecido milhares de vampiros, mas foi

escolher logo ele. Você e Raimundo Pascoal perseguiram a mesma coisa.Uma família. Um pai. Uma mãe. Filhos. Família ~ a sensação de uma

vida completa. Olhe para mim.Ela tirou um lápis de dentro de: um estojo de madeira. Segurou-o

com as duas mãos e o quebrou. De:puis, pegou seis ou sete.'. juntou-os.

I'ão conseguiu quebrá-los. Sorrimos. Eu havia entendido._ A eternid~1de nos !1,assacra - ela continuou. - Tudo muda.

:v1enos nós. Os vampiros têm de ;lcompanhar o tempo. É esse o perigo.

Um dia o vampiro acorda e descobre que quer desistir. :\'ão suportamais suas noites infinitas. :-'1a5 não desiste, porque tem alguém que pre­

cisa dele. Fez uma "Llmília". Um lápis sozinho quebra fácil...

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Continuei sorrindo.

- Você \'eio para o Brasil atrás de \Ticente.

o silêncio já não me incomoda\'a mais.

(.-\lguma coisa me dizia que eu dormiria bem naguek dia.1

-- Est~~ na hOLl de che;ar :w }3Llsil - ela soniu. - Seu pasSac1(lem Pürtugal i<1 acabou h:1 muito tempCI .. -\h;1S. nosso hor:írio tambtm.Até quinta-feira.

Eu falaria v.hre \ ·iCé!1te. Claro.

E sobre come,. V1ra sah'ar-Ihe -1\id-1. com rodo (I -1111"rque um ]xlipr,de ter. condenei-u a uma dupla nuldiç~ll).

Como hOl11ém. a ser um \·ampiro.Cumo pintor, a nunca mais \'er a luz cio sol.

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