Uma leitura geopolítica do conflito brasileiro-argentino Itaipu-Corpus

21
ISSN 1677 – 8049 ANO 7 – NÚMERO 25 Janeiro 2009 GEOGRAFIA PUBLICAÇÕES AVULSAS UMA LEITURA GEOPOLÍTICA DO CONFLITO BRASILEIRO-ARGENTINO ITAIPU-CORPUS (1974-79) Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos Publicação de textos no formato de pré – impressão do Departamento de Geografia e História da Universidade Federal do Piauí – UFPI

Transcript of Uma leitura geopolítica do conflito brasileiro-argentino Itaipu-Corpus

ISSN 1677 – 8049

ANO 7 – NÚMERO 25 Janeiro 2009

GEOGRAFIA

PUBLICAÇÕES AVULSAS

UMA LEITURA GEOPOLÍTICA DO

CONFLITO BRASILEIRO-ARGENTINO

ITAIPU-CORPUS (1974-79) Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos

Publicação de textos no formato de pré – impressão do Departamento de Geografia e História da Universidade Federal do Piauí – UFPI

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

1

Reitor da Universidade Federal do Piauí

Prof. Dr. Luís dos Santos Júnior Diretor do Centro de Ciências Humanas e Letras

Prof. Ms. Antônio Fonseca dos Santos Neto Chefe do Departamento de Geografia e História

Prof. Ms. Mário Ângelo de Meneses Sousa Coordenador do Curso de Licenciatura em Geografia

Prof. Ms. José Ferreira Mota Júnior

Expediente GEOGRAFIA Publicações Avulsas Ano 7 – nº 25 – Janeiro 2009 Coordenação: Prof. Dr. Francisco de Assis Veloso Filho [email protected]

Conselho Editorial: Prof. Dr. Agostinho Paula Brito Cavalcanti (UFPI) Prof. Dr. Edson Vicente da Silva (UFC) Prof. Dr. José Luís Lopes de Araújo (UFPI) Prof. Dr. José Carlos Godoy Camargo (UNESP – Rio Claro) Prof. Ms. José Ferreira Mota Júnior (UFPI) Prof. Dr. Ricardo Wagner ad-Víncula Veado (UDESC)

Endereço para correspondência: Universidade Federal do Piauí Departamento de Geografia e História Campus da Ininga – Teresina – PI 64.049-550 Tel. 0XX 86 3215-5778

Geografia/Universidade Federal do Piauí, Departamento de Geografia e História, Coordenação de Geografia – nº 25 (Janeiro 2009). Teresina: UFPI, 2008. 1. Geografia Publicações Avulsas. I. Universidade Federal do Piauí – Coordenação de Geografia

ISSN 1677 – 8049 C.D.D. 910

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

2

UMA LEITURA GEOPOLÍTICA DO CONFLITO BRASILEIRO-ARGENTINO

ITAIPU-CORPUS (1974-79)

Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos1

Resumo

O presente artigo tem como objetivos: a) demonstrar uma leitura geopolítica das relações Brasil-

Argentina no contexto 1974-79; b) argumentar como a construção da hidrelétrica de Itaipu foi o

principal aspecto de uma política externa entendida como política de poder ao projetar a influência do

Brasil sobre o Paraguai, configurando uma preponderância regional junto com várias outras dimensões

de poder.

Palavras chave: Brasil, Geisel, política externa brasileira, geopolítica, Itaipu.

Abstract

The present article has the following aims: a) demonstrate a geopolitical reading on Brasil-Argentina

relations in the 1974-79 context; b) argue toward the way how Itaipu construction was the main aspect

of a foreign policy defined as a power politics in order to make a larger influence of Brazil on

Paraguay and create a regional preponderancy with the addition of several power dimensions.

Key words: Brazil, Geisel, Brazilian foreign policy, geopolitics, Itaipu.

1 INTRODUÇÃO

Como seria possível efetuar uma leitura de uma frente da política externa brasileira –

aquela referente às relações com a Argentina - do governo de Ernesto Geisel (1974-79) com a

perspectiva de um forte determinismo geográfico sob a ótica de que o Brasil buscava alçar à

condição de potência média? Como entender parte da nossa política exterior à época sob a

perspectiva de uma política de poder – uma projeção de poder no além-fronteiras entendida

sob diferentes dimensões: econômica, militar etc. - que visava o objetivo mencionado com

uma forte dose de influência da perspectiva geopolítica clássica? Esboçar respostas a essas

perguntas é objetivo desse texto.

�� � �� ���� � � �� � �� � � ������ � � � � �� � � �� � �� �� � � � � � � � � � �� � � � ���� � ���� � � ��� � � � �� � �� � � ������ � � � � � � �� � � � � � � �� � � � �� � �� � � � � � � � � �!� � � � �� � � � � � � � � � � � � � �� " � � �� � � �� � �� # ��$� � � � � � % � � � � � � � � � �� � � � � $� � �� & ��� � � � ��� � � �� �� �� � ���� � � � ��� ��� � � � � ' � � � �� � � ��� � � �� � � � ( � � ��� � �� � � �� � �� � � ������ � $� � � �� � �� � � � � �) ) * � �� � ��& �� � � � � � � + � ,- �� � � � � � �� � � �� � �� �� ������ � � � � � . / ,� � � �� / 0 � � � �� ���� �� # ��� � � % � � � � � 1 �� �� � � � �� �� � ����� �� � � � � ��� ����� �� � � � # � � � � �� � � � ��� � � % � ��� � � �� � �� �2� � � � �� $�34 4 5 6�7 8 �,* �9��

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

3

No texto que se segue, o argumento central a ser exposto toma a política externa

brasileira em questão como importante decorrência da projeção de poder do Brasil no âmbito

do cone sul-americano. Tal ponto remete ás influências do geógrafo britânico Halford

Mackinder (1861-1947) sobre o então capitão do exército brasileiro Mário Travassos.

Travassos, em meados dos anos 30 do século XX, identificou uma área-pivô na América do

Sul para o desequilíbrio da balança de poder em favor ou de Brasil ou de Argentina,

raciocínio análogo àquele desenvolvido pelo geógrafo britânico. Far-se-á uso de uma

literatura que, senão na totalidade, em alguma medida converge para esse entendimento.

A posição do Brasil neste contexto foi a de preponderância em relação a seus vizinhos.

A categoria preponderância aparece de modo pouco desenvolvido em obra de Raymond Aron

(1986: 221) como um subtipo intermediário entre hegemonia e equilíbrio. As formulações

abaixo do professor Leonel Itaussu Mello explicam em que situação há a preponderância –

nos termos aronianos - de uma unidade política sobre outra:

Entendemos que a situação típica de preponderância configura-se quando, no âmbito de

um determinada grupo de unidades políticas, a ruptura do equilíbrio de poder não

engendra para a unidade beneficiária uma posição de supremacia incontestável, nem

reduz as demais a um estado de impotência, que são característicos da hegemonia. Por

outras palavras, o que tipifica a preponderância é que o peso ou a influência superiores de

uma certa unidade não lhe conferem, necessária ou automaticamente, uma posição de

supremacia ou de comando nas suas relações com as unidades mais fracas que integram a

constelação política. Ocorre que o conjunto formada por unidades de poder desigual

insere-se geralmente num contexto mais amplo e constitui apenas o subsistema de um

sistema maior que relativiza a superioridade de peso da unidade preponderante. Assim, a

preponderância exercida pela unidade de maior peso dentro daquele subsistema encontra-

se subordinada, por sua vez, à hegemonia de outra unidade mais poderosa, que ocupa o

vértice do sistema mais abrangente. (Mello, 1996: 49)

Ao aplicar-se esta tipologia às unidades políticas ao entendimento do subsistema

americano onde temos o choque da política de poder brasileira com a norte-americana,

pondera-se o seguinte:

1) Aron identifica que por razões histórico-geográficas, há uma hegemonia norte-americana

no Novo Mundo; (Aron, 1986: 222)

2) A afirmação anterior é reforçada pelo fato que desde o fim dos antigos impérios coloniais

nas Américas, quais sejam, o português e o espanhol, não houve nenhum Estado que

impusesse uma paz do tipo imperial, que detivesse o monopólio da violência legítima, "nem

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

4

unidades subalternas totalmente destituídas de autonomia como centros de decisão política"

(Mello, 1996: 50). Este ponto também se adeqüa ao objeto estudado, uma vez que não há, no

período referente a esta política externa, uma supremacia norte-americana no extremo lógico

de uma dominação por império. O próprio afastamento e choque da política de poder

brasileira com a política de poder norte-americana é ilustrativo desta perspectiva.

Ressalve-se que o conceito de geopolítica aqui usado escapa àquele amplamente

difundido no âmbito das relações internacionais, vagamente associado às questões de cunho

local ou regional incidentes sobre algum tema das relações internacionais. Define-se a

geopolítica como o campo que lida com a ligação dos eventos políticos e indica as diretrizes

da vida política dos Estados, a partir de uma dedução de um estudo geográfico-histórico dos

fatos políticos, econômicos, sociais e sua interrelação. Em outras palavras, um verdadeiro

determinismo do meio físico sobre a conduta política estatal (Bobbio et alii, 1992: 544-5).

A linha de argumento a ser desenvolvida passa pelos antecedentes ligados ao governo

Geisel no que refere a Itaipu no contexto da Bacia do Prata. Posteriormente, avaliarei

brevemente as influências das formulações geopolíticas de Golbery e Travassos com as ações

da política externa de Geisel junto à Bolívia e o Paraguai. Por fim, elencarei vários

argumentos que configuraram a preponderância brasileira no contexto da Bacia do Prata no

período referido.

2 ANTECEDENTES

No pós-1964, o início do contencioso mais aberto entre Brasil e Argentina se dá em

1973 com a assinatura por Brasil e Paraguai do Tratado de Itaipu. Este estabeleceu a

construção em regime de parceria da hidrelétrica homônima no trecho conjunto do rio Paraná

de Brasil e Paraguai compreendido entre a Foz do Rio Iguaçu e o Salto Grande de Sete

Quedas. Itaipu está localizada a 17 Km da fronteira argentina seria construída a jusante do rio

Paraná (ver Mapa 1). A construção daquela que seria até então a maior hidrelétrica do mundo

viria acompanhada de iniciativa brasileira de construir uma ferrovia que ligasse o Paraguai à

costa atlântica brasileira e complementasse a ligação ao sistema rodoviário, além de conceder

depósitos francos nos portos de Santos e Paranaguá. Essas medidas possibilitariam diminuir o

enclausuramento paraguaio e diminuir sua dependência da ligação fluvial, e mais longa,

através da Argentina e do porto de Buenos Aires, principal via de acesso ao exterior.

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

5

Mapa 1 – A localização de Itaipu e Corpus

Fonte: Pereira, 1974: 230.

A manobra brasileira baseou-se nas teses de Mário Travassos. Conforme está

exposto em Projeção Continental do Brasil, o curso dos rios da Bacia do Prata em direção ao

estuário platino de Buenos Aires torna os países mediterrâneos da região, Bolívia e Paraguai,

dependentes do eixo de comunicações fluvial e ferroviário num eixo Norte-Sul em relação ao

porto argentino citado para que pudessem ter acesso ao Oceano Atlântico. A ação brasileira,

partindo desta constatação, para conseguir uma posição mais favorável em relação à

Argentina na América do Sul, seria a construção de uma malha viária transversal no sentido

Leste-Oeste. Essa rede de comunicações possuiria a vantagem de uma menor distância entre

os países mencionados e o oceano. Isto se daria através dos portos de Santos e Paranaguá

(Travassos, 1935: 27-37 e 119-126).

Acrescente-se a isto a situação de cerco em que se encontrava a Argentina pelas

alianças informais entre Brasil e demais países contíguos. A Bolívia possuía governo que

ascendera ao poder com apoio logístico, militar e ideológico do regime militar brasileiro, além

de possuir com este afinidade ideológica. Um governo uruguaio autoritário que emergiu ao

poder com um golpe impetrado pelo presidente Bordaberry e cujas Forças Armadas também

mantinham afinidade com o regime brasileiro. Por fim, o governo chileno que emergiu após a

ruptura institucional liderada por Pinochet teve no Brasil, em 1973, o primeiro país a

reconhecê-lo. Além disso, a ajuda econômica brasileira, da ordem de US$ 150 milhões, no

primeiro ano do novo governo do Chile superou o montante americano no mesmo período.

Considerando a existência de um litígio entre Chile e Argentina pelas demarcações territoriais

na área do Canal de Beagle que levou à diminuição do comércio entre os dois países na ordem

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

6

de US$ 400 milhões anuais, o Brasil ocupou este espaço com uma postura na ótica da

realpolitik de neutralidade neste conflito. Assim, o Brasil incrementou as suas exportações

para o Chile em 125%, segundo dados de 1978, ocupando o espaço deixado pela Argentina.

Por fim, havia a Argentina, passando de um regime autoritário para uma democracia

encabeçada por Peron (Mello, 1996: 127-133).

A passagem a seguir expressa sinteticamente o quadro com o qual o governo Geisel

se defronta no âmbito regional já no seu início em 1974:

Alteravam-se também os termos da equação geopolítica regional à medida que, com o

processo de regressão autoritária nos países do Cone Sul, o cerco do autoritarismo

brasileiro ia sendo gradativamente substituído pelo isolamento da democracia argentina.

Nesse quadro, enquanto o Brasil cultivava uma parceria especial com os Estados Unidos

e ampliava sua influência sobre o subsistemaplatino, fazendo pender para o seu lado os

pratos da balança de poder, a Argentina se distanciava da potência hegemônica do

continente e se isolava de seu contexto contíguo sul-americano”. (Mello, 1996:133)

3 O ACORDO DE COOPERAÇÃO E COMPLEMENTAÇÃO INDUSTRIAL COM A

BOLÍVIA NO CONTEXTO DA BACIA DO PRATA

O então governo de Hugo Banzer na Bolívia tinha relações próximas com o regime

militar brasileiro. Este proporcionou em anos anteriores, condições e apoio logístico para o

golpe de Estado que lhe levara ao poder em 1971, como parte de toda a ação brasileira no

Cone Sul de apoiar a ascensão de governos não hostis aos EUA (Mello, 1987: 183-188).

Havia, portanto, condições favoráveis ao Brasil na relação com o referido país. Contudo, há a

ressalva de que a Bolívia assumia uma posição diplomática pendular em relação aos maiores

países da Bacia do Prata, Brasil e Argentina. O referido país mediterrâneo buscava tirar

proveito da disputa entre os dois países. Nesta perspectiva é que a Argentina possuiu um

acordo com a Bolívia onde esta forneceria gás natural ao vizinho platino na ordem de 150

milhões de pés cúbicos diários, totalizando 1,1 trilhão de metros cúbicos ao fim de 20 anos.

Com a assinatura de acordos de maior amplitude com o Brasil no início do governo Geisel, a

Bolívia parecia estar mais inclinada para o lado brasileiro do que para o argentino.

Há de se destacar já em meados de 1974 o Acordo de Cooperação e

Complementação Industrial firmado pelos presidentes do Brasil e da Bolívia, Ernesto Geisel e

Hugo Banzer. Os chamados Convênios de Cochabamba tiveram como principais pontos:

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

7

a) A Bolívia se comprometia a fornecer anualmente 240 milhões de pés cúbicos diários de gás

natural durante 20 anos por um preço a ser reajustado semestralmente com base nas

flutuações internacionais dos preços de hidrocarbonetos. O montante deste fornecimento em

duas décadas corresponderia a 1,7 trilhões de metros cúbicos, sendo que as reservas

bolivianas corresponderiam a 3,7 trilhões de metros cúbicos. Isto significaria uma economia

de 45.000 barris de petróleo importados por dia, ou o equivalente à economia para o Brasil de

US$ 300 milhões por ano em 1978 (Nazario, 1983: 52).

b) O Brasil financiaria econômica e tecnologicamente a instalação de um pólo de

desenvolvimento siderúrgico e petroquímico na região sudoeste da Bolívia. Dotaria a Bolívia

inicialmente de um empréstimo de US$ 10 milhões e financiaria os equipamentos e

instalações fabricados em solo brasileiro e avalizaria os demais adquiridos no exterior pelos

bolivianos, totalizando US$ 650 milhões. Comporiam o complexo industrial um gasoduto,

uma siderúrgica, uma petroquímica e uma fábrica de cimento. O gasoduto abasteceria o Brasil

com gás boliviano a partir de Santa Cruz de la Sierra até Paulínia, onde há uma refinaria de

petróleo da Petrobrás desde 1972. O complexo industrial seria localizado na província de

Santa Cruz de la Sierra, região fronteiriça de influência brasileira e de tendência inclusive

separatista. Mais especificamente, o pólo siderurgico-petroquímico seria localizado na área de

Mutum. A indústria petroquímica produziria com base no gás de petróleo mil toneladas

diárias de fertilizantes, enquanto que outra fábrica produziria idêntica quantidade de cimento.

A usina siderúrgica processaria os minérios da jazida de Mutum, localizada a 30 Km da

fronteira com o Brasil, com reservas estimadas em 30 a 40 bilhões de toneladas, suficientes

para abastecer as necessidades mundiais por 200 anos. A região em questão possuía reservas

minerais de ferro, manganês e gás natural. A produção prevista seria de 900 mil toneladas de

ferro e 500 mil toneladas de aço, 40% das quais seriam compradas pelo Brasil. Além disso, o

Brasil cederia 4 “zonas francas” à Bolívia (Corumbá, Porto Velho, Belém e Santos)

destinadas à exportação e comercialização de produtos bolivianos e financiaria a construção

de uma ferrovia de 300 km de extensão ligando Santa Cruz de la Sierra a Cochabamba.

Na perspectiva de uma política externa entendida enquanto política de poder e,

portanto, na perspectiva de relações econômicas interestatais vinculadas à mesma política de

poder, estes acordos tiveram importante significado. Por um lado, representaram o corolorário

de um antigo anseio de formulações geopolíticas de Mário Travassos e Golbery do Couto e

Silva na medida em que o controle e expansão brasileiras sobre o coração continental,

localizado na Bolívia seriam de vital importância para desequilibrar a balança de poder em

favor do Brasil e minimizar a posição argentina no cone sul e na Bacia do Prata em particular.

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

8

Conforme esta tese, o Brasil deveria neutralizar o eixo vertical de comunicações Norte-Sul

proporcionado pelos rios da Bacia do Prata. As comunicações naturais de Paraguai e Bolívia

com o Oceano Atlântico, através dos cursos fluviais, bem como toda uma malha ferroviária

verticalizada, convergindo para Buenos Aires. Para neutralizar este eixo de comunicações

Norte-Sul favorável aos argentinos, impunha-se ao Brasil tirar proveito das menores

distâncias para a ligação de Bolívia e Paraguai com o oceano criando uma malha de ferrovias

e rodovias horizontal, no eixo Leste-Oeste. Neste mesmo raciocínio, caberia também ao Brasil

projetar-se sobre um triângulo situado na Bolívia, tido como o heartland ou coração

continental sul-americano. Este triângulo simbolizaria a intersecção dos principais sistemas

naturais (Andes, Amazônia e Bacia do Prata) no Cone Sul e suas respectivas influências.

Assim, Cochabamba seria o vértice de influência andina, Sucre o de influência platina e Santa

Cruz de la Sierra sofreria a influência amazônica2 (ver Mapa 2).

Ademais, isto traria importantes conseqüências para as relações Brasil-Bolívia na

medida em que vincularia em termos de dependência e subordinação um setor vital da

economia boliviana à economia brasileira. Este vínculo poderia levar a uma consolidação

irreversível no sentido colocar este país mediterrâneo na órbita de influência do Brasil.

Por outro lado, potencializariam a transformação da referida região numa reserva

estratégica para a economia brasileira pelo menos no que tange ao ferro da região boliviana de

Mutum. As jazidas de ferro ali localizadas correspondem a cerca de 12% das reservas

mundiais. Do ponto de vista econômico, o Brasil não tinha necessidade de ferro. Com o

acréscimo do ferro oriundo dali, as reservas brasileiras do referido minério seriam da ordem

de 60 bilhões de toneladas e constituiriam 60% das reservas mundiais. As reservas bolivianas

em questão teriam um significado no acordo brasileiro-boliviano plausível somente nesta

perspectiva da política de poder brasileira e na disputa por uma preponderância brasileira em

relação à vizinha Argentina.

Tal atitude se insere numa estratégia assemelhada àquela usada nas relações

bilaterais com o Paraguai a fim de estabelecer uma sociedade binacional para a exploração

dos recursos hídricos do rio Paraná, que abordaremos mais adiante. A exportação deste

minério para o Brasil significaria dificultar a venda do mesmo para a Argentina e traria como

desdobramento o retardamento do desenvolvimento de sua indústria siderúrgica, perpetuando

3� : � �� � � � � � � ( � � ; � � � �� % � � � � � ��� � � � ��� � � �� �� ( 0 ���� < �� � � � � �� � �� � �� �� ��� � � � � � � � �� � � �� �� & � �& �0 ��� �� % � � � ���� �� � � � / �� �+ ��� �� = �

� � �� �� � �� �� ���� ��� � �� >��) 4 ? �@ �� �A � ��- � �& �� � ' �� � ��� �� �� �A $���& � + & �� ���� � � ��� �� � �� 0 ���� �� �& � � ��� �� �� # �� �� � �� �� � �� � �0 �� � ,� �� B �� � ��� �� � �= � �0 � �� ��� �� ��� � � ��� � �� � �� ���� ����������% � � �� ��� ��� �� � ��� �� �� � ����� ��� � � ����� ��� � � � ��� � �� � ����� �� � ���� � �� �= � �0 � �� �@ % � � �� � = � �� � �� % � � � � � � � ����� � � � �� � ��� � � � � & � � �� $� � �� � � ����� �� � � = � �0 � �� $� � �� � ��� � � � ����� �� �� �� � �� �� � � �� � � �� 2( � � ; � � � �$� �) * C � � ��) ? 39��� � �� �� �1 � �� # � � ���� � �� � ��� � � � ��� ��� � � �� � � � � ��� ��� � � � � ���� � �( � � ; � � � �$�� � � � ��� ��( � ���$��) ) ) ��

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

9

o caráter primário-exportador da economia argentina. Isto complicaria a posição argentina,

uma vez que não dispunha de jazidas de ferro e estava mal situada na bacia platina no acesso

aos recursos minerais e energéticos. Isso tornaria muito difícil um desenvolvimento auto-

sustentado para a Argentina.

Mapa 2 - O triângulo geopolítico de Mário Travassos

Fonte: Mello, 1987: 83.

Por fim, a construção da ferrovia ligando Santa Cruz de la Sierra a Cochabamba

possibilitaria o controle do coração continental e o triângulo geopolítico de Travassos,

possibilitando a comunicação transversal oeste-leste. Isto abriria a possibilidade de abrir as

portas do Oceano Pacífico, caso fossem construídos trechos complementares de uma ferrovia

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

10

transcontinental, ligando Santos a Arica, no Chile, como já sugerira anteriormente Mário

Travassos (Mello, 1987: 188-193).

Também no caso dos suprimentos de gás natural, também havia a auto-suficiência

brasileira deste recurso mineral. O acordo com o governo boliviano neste caso também não

perdeu de vista a amplitude de uma política de poder, uma vez que isto poderia proporcionar

futuramente uma reserva estratégica para o Brasil, com a possibilidade deixar as reservas

internas intocadas (Nazario, 1983: 52). Tal quadro criaria uma situação mais confortável para

o Brasil diante das dificuldades existentes em relação ao abastecimento de petróleo no cenário

internacional, caso o fornecimento de gás fosse concretizado e perdurasse o quadro de

encarecimento de tal recurso.

4 A CONTROVÉRSIA ITAIPU-CORPUS

O conflito argentino-brasileiro envolvendo Itaipu, hidrelétrica brasileiro-paraguaia e

Corpus, uma hidrelétrica que seria erguida conjuntamente por Argentina e Paraguai,

constituiu o pólo de maior tensão e principal ponto da agenda de política externa envolvendo

Brasil e Argentina no período aqui tratado.

Na visão da diplomacia argentina, o andamento da implementação do empreendimento

de parceria brasileiro-paraguaia deveria ser executado mediante um sistema prévio de

consultas às partes interessadas de modo a não prejudicar o projeto de uma futura hidrelétrica

de parceria argentino-paraguaia, a de Corpus. Propunha também um estudo multilateral. A

diplomacia brasileira, conforme já foi visto anteriormente, rejeitava a consulta prévia pois

entendia que a decisão era de competência de Brasil e Paraguai, rejeitando qualquer decisão

de ordem multilateral. Entendia ainda ser tal mecanismo contrário à soberania do país, além

de defender o pleno direito de explorar recursos naturais não-estáticos existentes em seu

próprio território. Apenas concordava no fornecimento de informações e na perspectiva de

não causar prejuízos ao território vizinho, uma vez que se tratava de recursos não-estáticos

que fluíam para outro país. Durante o decorrer de todo o governo Geisel, a postura brasileira

foi a de executar as obras sem qualquer consulta prévia.

Em 1974, por trás dos aparentes indícios diplomáticos de que o governo argentino

buscava mudar o caráter das relações com o Brasil, o então presidente Perón buscava romper

o isolamento argentino com os países da Bacia do Prata e reverter este quadro favoravelmente

à Argentina através de uma ofensiva política visando a retomada dos projetos abandonados de

represas e hidrelétricas. Ilustrativo disto foi a resolução dos litígios fluviais e territoriais com

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

11

o Uruguai, melhorando as relações entre os países. Daí nasceu o Convênio de Cooperação

Econômica, assinado entre os dois países em agosto daquele ano, quando Perón já havia

falecido. Não é demais lembrar que em novembro de 1973 os mesmos países assinaram o

Tratado dos Limites do Rio da Prata (Souto Maior: 1996: 346). Em 1973, Perón já houvera

visitado o Paraguai, tendo firmado o Tratado de Yaciretá visando construir a barragem

homônima, além de impulsionar as negociações para a construção das hidrelétricas de Corpus

e Salto Grande em parceria com o Paraguai, até então projetos estancados.

A Argentina também lançou-se a iniciativas no âmbito multilateral com o mesmo

objetivo de opor-se às iniciativas brasileiras e romper seu isolamento. Aos poucos, o epicentro

do litígio foi concentrando-se principalmente em Itaipu.

A posição argentina era a de que o empreendimento brasileiro-argentino inviabilizaria

a hidrelétrica argentina-paraguaia se o projeto de Itaipu não permitisse a elevação de Corpus

entre 105 e 115 metros acima do nível do mar. Fora destes parâmetros, o projeto de Corpus

conforme os especialistas, seria economicamente inviável. Ademais, outro perigo constante à

Argentina seria gerado para as regiões fronteiriças que poderiam ser inundadas a partir da

abertura das comportas da represa ou de acidente envolvendo a quebra da barragem. Por sua

vez, o Brasil pleiteava uma cota máxima de 100 metros acima do nível do mar para Corpus.

No aspecto geoestratégico, havia preocupações colocadas a público pelo influente

General Guglialmelli, porta-voz de setores civis e militares argentinos alarmados com a

perspectiva de crescente ligação não só da Bolívia, Paraguai e Uruguai do ponto de vista

viário e portuário com o sul do Brasil, como também das províncias argentinas de Corrientes

e Misiones. Além do abandono a que estavam relegadas, a distância das mesmas províncias

do porto de Buenos Aires e a maior distância proporcionada pelo eixo ferroviário e fluvial no

sentido Norte-Sul de comunicações constituiria mais um atrativo para a tendência centrípeta

em relação às rodovias, pontes e portos brasileiros no sentido Leste-Oeste (ver Mapa 3). O

eixo horizontal brasileiro de ligação com o Oceano Atlântico tinha a seu favor a menor

distância em relação a Buenos Aires. Novamente, o “fantasma” da projeção continental

brasileira preconizada por Mário Travassos e posteriormente por Golbery do Couto e Silva

acirrava os ânimos da rivalidade entre brasileiros e argentinos, principalmente na percepção

do establishment militar argentino. Conforme esta ótica, a construção de Itaipu seria o

corolário da “satelitização” daquelas províncias, assim como ocorrera com Bolívia e Paraguai,

e possibilitaria a instalação de um pólo brasileiro de desenvolvimento na região que pioraria

esta situação. Tal manobra era chamada pelo General Guglialmelli de “Operativo Misiones”.

Haveria, portanto uma irradiação da influência brasileira à região argentina de Misiones, bem

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

12

menos povoada que outras, à semelhança da ocupação de departamentos paraguaios na

fronteira com o Brasil como ocorrera no caso dos “brasiguaios”.

Mapa 3: Eixo de Comunicação Leste-Oeste com o Oceano Atlântico

Fonte: Mello, 1987: 262.

Reforçariam este quadro alguns fatores importantes. Seriam eles a estagnação

econômica da Argentina que remontava os anos 50, o seu pequeno crescimento demográfico

(1,6% de crescimento anual), além do caráter concêntrico de sua economia e população, com

os principais focos localizados em sua região portuária, próxima a Buenos Aires, e nos

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

13

pampas. Enquanto a área metropolitana da província de Buenos Aires e o litoral

representariam respectivamente 64,4% e 14,4% do Produto Interno Bruto argentino, o

Nordeste geraria apenas 3%, o menor percentual de todo o país.

Também a região metropolitana concentraria 45,7% de toda a população do país. Dos

30 milhões de habitantes argentinos, somente cerca de 2% estaria em Misiones, cerca de 520

mil pessoas. Haveria, portanto, um caráter centrípeto da população e economia argentinas em

relação à região de Buenos Aires e dos pampas. Em contraposição, o Brasil possuía um

crescimento demográfico anual de 2,4%, além de um movimento migratório centrífugo que

partia do litoral para as direções oeste-sudeste-sul, além de expressiva população na região

setentrional correspondente aos estados fronteiriços do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande

do Sul, detentores do equivalente de dois terços da população argentina, aproximadamente 20

milhões de habitantes (14% da população do Brasil à época) (Mello, 1996:143-149 e 1987:

261 e 263). Outro aspecto de destaque é a participação de toda esta região no centro

nevrálgico da economia brasileira, o eixo sul-sudeste.

Portanto, a percepção da Argentina teria sido de que o empreendimento brasileiro

tinha uma vocação “imperialista” e de cerco da Argentina (ver Mapa 4). De modo sintético, o

temor da Argentina era de que

... a compatibilização com Itaipu resultasse em prejuízos insanáveis à rentabilidade

econômica de Corpus, que com isso perderia seu poder compensador como uma das

peças-chave do tabuleiro platino. O valor estratégico de Corpus estava exatamente em seu

papel de contrapeso à presença de Itaipu: o projeto binacional argentino-paraguaio

poderia reequilibrar parcialmente a balança de poder platina e neutralizar relativamente a

preponderância brasileira no Paraguai por meio do incremento da parceria argentina com

o país guarani, que retomaria a pendularidade política em relação aos poderosos vizinhos”

(Mello, 1996:148)

A inviabilidade econômica de Corpus tinha como questão fundamental as cotas de

construção acima do nível do mar. A perspectiva de um entendimento ficou mais difícil no

período 75-78, quando ambos endureceram posições.

A próxima passagem aborda bem o problema:

Com efeito, em uma reunião da equipe técnica e do ministro Azeredo da Silveira com

Geisel, este informou que a posição brasileira se deveria caracterizar, daí por diante, pelo

endurecimento. Se a Argentina tinha o direito, segundo as normas internacionais, de

construir uma barragem a uma cota de 98 metros e o Brasil já aceitara 100, que este fosse

o limite definitivo. Nenhuma concessão a mais seria feita.

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

14

Essa atitude de maior rigidez do governo brasileiro era uma resposta a modificações que a

Argentina teria feito referentes a entendimentos anteriores (setembro e dezembro de

1978) sobre Itaipu e Corpus. Neles, o Brasil e o Paraguai se haviam comprometido a

aceitar uma cota de 105 metros - o que implicava uma redução de potência instalada em

Itaipu de 12.600 MW para 11.720 MW/ Em troca o Brasil teria autorização para que a

usina de Itaipu operasse em ponta, isto é, para que fosse permitido que as comportas

fossem fechadas de forma a armazenar o máximo de água no lago e estas só serem

turbinadas em horas de maior consumo de energia. Essa operação, na medida em que

incidia sobre o nível do Rio Paraná, um rio internacional, só poderia ser realizada com o

consentimento dos outros dois países. Se esse não fosse dado, a capacidade de geração de

energia em Itaipu diminuiria cerca de 3 milhões de quilowatts”. (Camargo e Ocampo,

1988: 75-6)

Mapa 4: Visão argentina dos objetivos geopolíticos brasileiros

Fonte: Mello, 1996: 149.

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

15

Além disso, o Brasil resolveu aumentar a cota de turbinas a ser construída de 18 para

20 com o aceite paraguaio. Este quadro tornou a situação entre os dois países ainda mais

tensa.

5 A PREPONDERÂNCIA BRASILEIRA NA BACIA DO PRATA

O comportamento pendular da diplomacia do Paraguai, Uruguai e Bolívia foi uma

tendência histórica que se constituiu num fator de equilíbrio de poder na região rivalizada por

Brasil e Argentina. As implicações de um empreendimento da natureza de Itaipu teriam um

significado de alterar este equilíbrio, conforme já foi abordado. Seria, portanto,

...um acordo bilateral firmado entre unidades soberanas sobejamente desiguais - uma

potência média e um Estado tampão - era suscetível de produzir sensíveis modificações

no xadrez geopolítico platino e afetar a segurança, os interesses, e as relações dos países

limítrofes envolvidos com o Brasil, seja diretamente, no caso do Paraguai, seja

indiretamente no caso da Argentina.No caso do Paraguai, a associação ao projeto

energético e o reforço da rede viária apresentavam o risco de transformarem-se em

instrumentos de ampliação da influência político-econômica brasileira sobre um enclave

amortizador cuja tradicional diplomacia pendular, similar à praticada pelo Uruguai, havia

sido, historicamente, um fator de preservação do equilíbrio regional e, ao mesmo tempo,

uma garantia da própria independência frente aos dois vizinhos maiores. (Mello, 1996:

136).

A dependência e o vínculo paraguaios com o Brasil a partir da construção da usina de

Itaipu tomaram nítidos traços no período aqui estudado. Com a construção do

empreendimento citado, o país guarani viveu um surto de crescimento, com média de 8,7% ao

ano, tendo seu Produto Interno Bruto passado de US$ 769 milhões em 1972 para US$ 2.860

milhões em 1980. Incrementou-se a agricultura com o fluxo de capitais e colonos brasileiros

para as fronteiras com o Brasil, estes chamados de “brasiguaios”. Seu número estimado seria

entre 500 mil e 700 mil pessoas. Eles ocupavam uma faixa fronteiriça de 700 km de extensão,

por 10 km de profundidade. Com 70 mil km², a área equivaleria a 17% de todo o território

paraguaio ou os territórios de Bélgica e Holanda somados (ver Mapa 5). Por outro lado, a face

perversa deste boom econômico mostrava uma dívida externa de US$ 2 bilhões, um

contigente de 220 mil desempregados e cerca de 1,8 milhão de exilados políticos e

econômicos, sendo 300 mil no Brasil e 800 mil na Argentina. O índice de desemprego beirava

16% e o Banco do Brasil tornou-se o maior credor do país com a quantia de US$ 374 milhões.

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

16

O comércio paraguaio também exemplifica esta tendência. Concomitante à

emergência de seu “milagre econômico”, houve um aumento da ordem de 373% do comércio

brasileiro-paraguaio, passando de US$ 134 milhões em 1974 para US$ 500 milhões em 1980.

De modo mais detalhado, pôde-se avaliar que US$ 409,2 milhões corresponderam às

exportações brasileiras e US$ 91, 5 milhões às exportações paraguaias em 1980, contra

respectivamente, US$ 98 e US$ 36 milhões em 1974.

Mapa 5: Penetração e ocupação dos brasiguaios

Fonte: Mello, 1996: 140.

A participação em termos absolutos no comércio bilateral aumentou mas a

participação paraguaia diminuiu de 27% em 1974 para 18% em 1980, enquanto a participação

brasileira subiu de 73% para 81%. O perfil assimétrico da pauta de exportações seria o pano

de fundo de tais alterações. No lado paraguaio, as exportações caracterizaram-se

principalmente por produtos primários (algodão, menta, soja e carne). Diversamente, o Brasil

primava por exportar manufaturados, dentre os quais eletrodomésticos, ônibus, caminhões,

automóveis, cimento, armas, munições etc. Por outro lado, a maior influência brasileira sobre

o país guarani impunha seus reflexos no comércio argentino-paraguaio. Em 1974, o comércio

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

17

envolvendo Argentina e Paraguai equivalia a 71% do intercâmbio paraguaio-brasileiro. Em

1980, o percentual do movimento comercial entre Argentina e Paraguai havia diminuído

proporcionalmente, representado somente 47% do comércio brasileiro paraguaio. Ainda na

perspectiva de percentagens, o comércio brasileiro-paraguaio. Ainda na perspectiva de

percentagens, o comércio brasileiro-paraguaio cresceu nominalmente 373% no período 1974-

1980, enquanto que o montante argentino-paraguaio aumentou 245%.

Outro aspecto de fundamental relevância para avaliação da preponderância brasileira

no Paraguai foi aquela envolvendo o consumo da energia elétrica produzida em Itaipu.

Conforme o acordo de 1973, cada país teria direito a metade dos 12,6 milhões de kw a serem

gerados na usina binacional. O Brasil também teria prioridade na compra do excedente

energético paraguaio. Afinal, o consumo deste país era inferior aos 715 mil kw produzidos

por apenas uma das 18 turbinas da referida usina. Um aspecto técnico atinente ao vizinho

guarani era aquele que dava conta do seu sistema de freqüência elétrica. Ele é idêntico ao dos

demais países da América Latina, ou seja, de 50 ciclos. O Brasil, diferentemente, adotava um

sistema de 60 ciclos, como fazem os Estados Unidos (Mello, 1996: 133-142).

A construção do empreendimento paraguaio-brasileiro não concretizou a posição

brasileira de reconversão do sistema paraguaio de distribuição de energia elétrica de 50 para

60 ciclos, cujas implicações para o Brasil seriam a de facilitar a compra do excedente

energético paraguaio e abrir o mercado paraguaio aos eletrodomésticos brasileiros e, ao

mesmo tempo, fechar esse mercado à concorrência dos similares argentinos. Portanto, se esta

possibilidade se concretizasse, haveria uma grande redução de influência argentina no

Paraguai, minimizando a função de país tampão e subvertendo por completo as relações de

poder nesta região, com a hegemonização do país guarani pelo Brasil. No entanto, manteve-se

o sistema paraguaio de 50 ciclos. A pressão brasileira durou até 1977, quando, após longas e

difíceis conversações, o Brasil concordou em adotar um sistema de dupla freqüência em

Itaipu. Este fato se insere na perspectiva mais ampla da existência de uma preponderância

brasileira e não uma hegemonia sobre o Paraguai, a despeito da convergência de fatores

econômicos e demográficos (o caso dos “brasiguaios”) amplamente favoráveis ao Brasil:

A resistência paraguaia ao assédio brasileiro e sua recusa em aceitar as conseqüências

técnicas e políticas da mudança da ciclagem prolongou-se até 1977 quando após árduas e

prolongadas negociações, o Brasil finalmente concordou com a instalação de um sistema

de dupla freqüência em Itaipu. Essa solução de compromisso fixou limites à

preponderância brasileira, manteve uma porta aberta à influência argentina e assegurou

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

18

com isso um espaço de pendularidade imprescindível à preservação da soberania

paraguaia.

Assim, tanto a recusa paraguaia em alterar seus sistemas de freqüência quanto a aceitação

brasileira de dupla ciclagem constituem fortes indícios de que, mesmo nas relações

interestatais mais assimétricas, há que se considerar o papel desempenhado pela instância

política, uma vez que a economia e a demografia não são, por si mesmas, suficientes para

transformar em hegemonia a preponderância exercida pelo país mais forte sobre o mais

fraco”(Mello, 1996: 142).

Já no que diz respeito à preponderância brasileira sobre a Argentina, indicadores de

diversos tipos devem ser considerados. Isto estaria em conformidade com o conceito de

política de poder multifacetado aqui empregado, como foi demonstrado em relação ao

Paraguai. A preponderância brasileira sobre seus vizinhos na Bacia do Prata emergiu nos anos

70. Já foi abordado a perspectiva da influência brasileira sobre o Paraguai e a Bolívia sob um

corte do desequilíbrio de poder por trás das manobras brasileiras no contexto da Bacia do

Prata. Serão agora arrolados os vários elementos de poder que permitiram configurar a

situação de preponderância brasileira.

No que concerne a questões geográficas, o Brasil possui uma massa territorial três

vezes maior que a Argentina. Isto permitiria uma maior amplitude fronteiriça, além de melhor

posicionamento de seus portos em relação à rota do Cabo no Atlântico Sul, bem como uma

melhor localização em relação ao “coração continental” situado na Bolívia, conforme já

abordado. Uma vulnerabilidade brasileira seria sua dependência de petróleo, onde a produção

endógena abasteceria, então, somente 20% da demanda interna. Uma outra desvantagem diria

respeito aos problemas acarretados por sua equatorialidade à sua economia agrária de tipo

tropical, uma vez que apenas 8% do país está em áreas temperadas.

Quanto ao aspecto demográfico, é conhecida a disparidade populacional entre os dois

países em 1975. O Brasil beirava 100 milhões de habitantes ao passo que a vizinha platina

restringia-se a 26 milhões. A população economicamente ativa era de 34,7 milhões de

brasileiros contra os 10 milhões de argentinos.

Tomando alguns indicativos econômicos, tem-se em 1975 um PIB (Produto Interno

Bruto) brasileiro da ordem de US$ 177 bilhões enquanto na Argentina, tinha-se o

correspondente a US$ 74 bilhões, pouco mais que dois quintos brasileiros. Na produção de

importantes minérios, o Brasil perderia na produção de petróleo em 1975: 10 mil metros

cúbicos brasileiros contrastavam com os 32 mil metros cúbicos argentinos. Contudo, em

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

19

outros minérios a superioridade brasileira se impunha. No caso do carvão: 2,8 mil toneladas

brasileiras contra 0,5 mil toneladas argentinas. No caso do ferro, fundamental para a indústria

siderúrgica, o contraste é flagrante: 88,5 mil toneladas brasileiras contra 0,3 mil toneladas

argentinas. Em relação ao aço houve a produção de 2,2 milhares de toneladas na Argentina e

8,3 milhares no Brasil. Em termos de produção de energia elétrica, o Brasil produziu, em

1975, 79 milhões de quilowatts-hora, enquanto a Argentina ficou restrita a 30 milhões. As

exportações brasileiras atingiram, em 1975, US$ 13,9 bilhões, ao passo que as argentinas US$

4,7 bilhões. Por sua vez, as importações argentinas constituíam o montante de US$ 5,5

bilhões e as importações brasileiras US$ 23,3 bilhões. Se forem consideradas as exportações

intra-regionais, houve novamente a superioridade brasileira com a cifra de US$ 710 milhões

perante os US$ 355 milhões argentinos. Já nas importações intra-regionais a superioridade

brasileira foi de US$ 79 milhões contra 30 milhões. Todos estes dados relativos a exportação

e importação têm como base preços de 1980 (Mello, 1996: 168-185).

Todo este diferencial percebido em quase todos os quesitos favoravelmente ao Brasil,

são uma pequena amostra da situação que configuraria uma preponderância brasileira também

sobre a Argentina.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou apresentar uma leitura em que as várias dimensões que

compõem uma política externa entendida enquanto política de poder levou a um quadro de

preponderância brasileira no contexto das relações brasileiras com seus vizinhos da Bacia do

Prata no período de 74 a 79 sob o governo de Ernesto Geisel. Tal leitura colocou em

evidência uma grande importância dos elementos geográficos, mostrando a consecução das

formulações de Travassos. De acordo com ele, o desequilíbrio da balança de poder em favor

de Brasil ou Argentina dependeria da projeção de poder desses Estados no Cone Sul sobre as

unidades políticas mediterrâneas dessa região, a saber, Bolívia e Paraguai. Quem

influenciasse tais países, teria uma melhor perspectiva de poder regional. Nessa direção,

vários empreendimentos da diplomacia desse período efetivaram tal perspectiva. Destaque

para o conjunto de ações que se relacionou à parceria paraguaio-brasileira no tocante à

construção da hidrelétrica de Itaipu, caracterizando não somente um aumento da influência

econômica sobre o vizinho país guarani, como também um concomitante aumento dos

diferentes elementos de poder de ordem econômica, energética etc. para configurar uma

posição de poder privilegiada do Brasil no contexto regional.

GEOGRAFIA Publicações Avulsas, Ano 7, nº 25, p. 1-21, janeiro 2009

20

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aron, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília:Universidade de Brasília, 1986. Bobbio et alii, Norberto. Dicionário de Política. Brasília, UnB, 1992, volume 1. Camargo, Sônia; Ocampo, José M. V. Autoritarismo e Democracia na Argentina e no Brasil -uma década de política exterior: 1973-1984. São Paulo, Convívio, 1988. Couto e Silva, Golbery. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro, Jose Olympio, 1967. Nazario, Olga. Pragmatism in brazilian foreign policy: the Geisel years, 1974-1979. Miami, Coral Gables,Tese de Doutorado, University of Miami, 1983. Mackinder, Halford John. El Pivote Geografico de la Historia. In: Antologia Geopolitica, Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1985, pp. 65-81. __________________________. Democratic ideals and reality. New York: Henry Molt and Company, 1942. Mello, Leonel Itaussu de Almeida. A geopolítica do Brasil e a Bacia do Prata. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica, 1987. _____________________________. Argentina e Brasil: a balança de poder no cone Sul. São Paulo: Annablume, 1996. ____________________________. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Edusp, Hucitec, 1999, 228 pp. Passos, Rodrigo Duarte Fernandes. “Pragmatismo Responsável” e política de poder: a política externa do Governo Geisel. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Ciência Política, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1998. ____________________________. Um esboço crítico às concepções geopolíticas clássicas, In: Mialhe, Jorge Luís (org.). Direito das Relações Internacionais: ensaios históricos e jurídicos, Campinas: Millennium, 2007, pp. 361-378. Pereira, Osny Duarte. Itaipu: prós e contras. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974. Souto Maior, Luiz A. P.. O “Pragmatismo Responsável”. In: Albuquerque, José Augusto Guilhon. Sessenta Anos de Política Externa Brasileira - Crescimento, Modernização e Política Externa (volume 1), São Paulo: Cultura Editores Associados, Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP, 1996, pp. 337-360. Travassos, Mário. Projeção Continental do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1935.