Um Concerto no Grande Hotel Abismo: O Diálogo Artístico de Thomas Mann e Adorno em Doutor Fausto

14
185 UM C ONCERTO N O G RANDE H OTEL A BISMO: O D IÁLOGO ARTÍSTICO D E T HOMAS M ANN E A DORNO E M DOUTOR FAUSTO Kaio F elipe [email protected] Mestrando em Ciência Política (IESP/UERJ) Resumo: Este artigo trata da colaboração entre o escritor Thomas Mann e o filósofo Theodor Adorno para o romance Doutor Fausto (1947). Ambos desenvolveram uma fecunda relação intelectual que permite penetrar nas principais discussões acerca da criação artística no Século XX. Começo pela síntese de algumas das principais questões estéticas tratadas por Adorno, como a possibilidade existencial da arte em um mundo em crise e as questões filosóficas suscitadas pela música dodecafônica de Arnold Schönberg. Os dois capítulos seguintes são mais especificamente sobre Doutor Fausto: no primeiro deles tratarei também da correspondência entre Mann e Adorno, por meio da qual desenvolveram uma colaboração decisiva para o romance; no segundo, demonstrarei a influência das idéias deste filósofo na criação dos personagens Adrian Leverkühn, Kretzschmar e mesmo do Diabo com o qual o protagonista Leverkühn pactua, e também comento sobre o personagem-narrador Serenus Zeitblom e sua relação com um ensaio de Adorno sobre a narrativa contemporânea. Palavras-chave: Thomas Mann; Adorno; estética; música. OUVERTÜRE O escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) fez em 1901 suas primeiras anotações para um possível projeto de trabalho sobre um pacto entre um artista o e diabo. Foi, no entanto, apenas em Março de 1943, que Mann finalmente decidiu escrever seu romance baseado no mito fáustico. Esta decisão evidenciava “uma aura de sensação de vida inteira em torno desse núcleo temático” (MANN, 2001: 21), afinal um tema recorrente em sua obra é a crise moral do artista, dilacerado entre seus impulsos estéticos e suas obrigações sociais, entre a irresponsabilidade que há na dedicação exclusiva ao “espírito” e os difíceis fardos da “vida”. Publicado em 1947, Doutor Fausto deu uma dimensão metafísica e histórica para essa temática, ao transformar o drama pessoal do pianista Adrian Leverkühn, o protagonista do romance, em uma alegoria do próprio destino do povo alemão sob o regime nacional- socialista e a II Guerra; em outras palavras, Doutor Fausto une a tragédia da Alemanha ao esgotamento da arte contemporânea. O gênio de Leverkühn, que não quis sucumbir à mediocridade, apela para o demônio, enlouquece e a redenção de sua arte torna-se sua própria condenação: “O talento que se fundiu com o mal pelo pacto paga, na esfera artística, com a aniquilação do compositor e, embora de forma distinta, na esfera política, com a aniquilação da Alemanha.” (BACKES, 2003: 253) Para elaborar os momentos mais técnicos do romance (por exemplo, as composições de Leverkühn e suas reflexões sobre música), Thomas Mann contou com a contribuição de um dos pensadores mais contundentes do Século XX: Theodor Adorno (1903-1969). Este filósofo, mais conhecido por ser o líder da primeira geração da Escola de Frankfurt, escreveu

Transcript of Um Concerto no Grande Hotel Abismo: O Diálogo Artístico de Thomas Mann e Adorno em Doutor Fausto

185

UM CONCERTO NO GRANDE HOTEL ABISMO: O DIÁLOGO ARTÍSTICO DE THOMAS MANN E ADORNO EM DOUTOR

FAUSTO

Kaio Felipe [email protected]

Mestrando em Ciência Política (IESP/UERJ) Resumo: Este artigo trata da colaboração entre o escritor Thomas Mann e o filósofo Theodor Adorno para o romance Doutor Fausto (1947). Ambos desenvolveram uma fecunda relação intelectual que permite penetrar nas principais discussões acerca da criação artística no Século XX. Começo pela síntese de algumas das principais questões estéticas tratadas por Adorno, como a possibilidade existencial da arte em um mundo em crise e as questões filosóficas suscitadas pela música dodecafônica de Arnold Schönberg. Os dois capítulos seguintes são mais especificamente sobre Doutor Fausto: no primeiro deles tratarei também da correspondência entre Mann e Adorno, por meio da qual desenvolveram uma colaboração decisiva para o romance; no segundo, demonstrarei a influência das idéias deste filósofo na criação dos personagens Adrian Leverkühn, Kretzschmar e mesmo do Diabo com o qual o protagonista Leverkühn pactua, e também comento sobre o personagem-narrador Serenus Zeitblom e sua relação com um ensaio de Adorno sobre a narrativa contemporânea. Palavras-chave: Thomas Mann; Adorno; estética; música. OUVERTÜRE

O escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) fez em 1901 suas primeiras anotações

para um possível projeto de trabalho sobre um pacto entre um artista o e diabo. Foi, no entanto, apenas em Março de 1943, que Mann finalmente decidiu escrever seu romance baseado no mito fáustico. Esta decisão evidenciava “uma aura de sensação de vida inteira em torno desse núcleo temático” (MANN, 2001: 21), afinal um tema recorrente em sua obra é a crise moral do artista, dilacerado entre seus impulsos estéticos e suas obrigações sociais, entre a irresponsabilidade que há na dedicação exclusiva ao “espírito” e os difíceis fardos da “vida”.

Publicado em 1947, Doutor Fausto deu uma dimensão metafísica e histórica para essa temática, ao transformar o drama pessoal do pianista Adrian Leverkühn, o protagonista do romance, em uma alegoria do próprio destino do povo alemão sob o regime nacional-socialista e a II Guerra; em outras palavras, Doutor Fausto une a tragédia da Alemanha ao esgotamento da arte contemporânea. O gênio de Leverkühn, que não quis sucumbir à mediocridade, apela para o demônio, enlouquece e a redenção de sua arte torna-se sua própria condenação: “O talento que se fundiu com o mal pelo pacto paga, na esfera artística, com a

aniquilação do compositor e, embora de forma distinta, na esfera política, com a aniquilação da Alemanha.” (BACKES, 2003: 253)

Para elaborar os momentos mais técnicos do romance (por exemplo, as composições de Leverkühn e suas reflexões sobre música), Thomas Mann contou com a contribuição de um dos pensadores mais contundentes do Século XX: Theodor Adorno (1903-1969). Este filósofo, mais conhecido por ser o líder da primeira geração da Escola de Frankfurt, escreveu

186

obras importantes sobre estética e arte contemporânea, sendo que uma delas em particular – a Filosofia da Nova Música – incentivou Mann a procurá-lo em busca de auxílio para a gestação de Doutor Fausto. A colaboração de ambos prolongou-se durante quatro anos, e Adorno foi influência crucial para as digressões artísticas de pelo menos três personagens importantes da obra: Adrian Leverkühn, seu professor Kretzschmar e o Diabo que aparece ao protagonista em uma das passagens mais perturbadoras da obra.

Ao longo deste artigo trato desta colaboração artística entre Mann e Adorno, pois a relação que ambos desenvolveram por meio de suas correspondências e em Doutor Fausto permite penetrar nas principais discussões acerca da criação artística e da teoria estética no Século XX.

No próximo capítulo (Leitmotiv) descrevo de forma sucinta algumas das principais questões estéticas tratadas por Adorno: o ensaio como forma adequada à crítica de arte; a possibilidade existencial da arte em um mundo em crise; a questão do Novo e a importância da vanguarda artística; as questões filosóficas suscitadas pela música moderna (em particular a dodecafônica de Arnold Schönberg); e, por fim, a posição do narrador no romance contemporâneo.

Em Contraponto há um breve resumo da trama de Doutor Fausto e tratarei do diálogo propriamente dito entre Mann e Adorno, por meio de suas correspondências entre 1943 e 48 – período em que o romance fáustico e A Gênese do Doutor Fausto (obra autobiográfica em que Thomas Mann relata as circunstâncias em que seu romance foi gestado) foram escritos.

Em Concerto, apresento a influência adorniana sobre os personagens Leverkühn, Kretzschmar e o Diabo; além disso, discutirei brevemente sobre o narrador de Doutor Fausto, na medida em que Adorno o cita explicitamente em um ensaio de 1954 (Posição do Narrador

no Romance Contemporâneo) para exemplificar soluções que os romancistas do Século XX estão utilizando para lidar com os paradoxos da narração em uma literatura que já não tem mais a objetividade épica de outrora. Por fim, apresento minhas considerações finais sobre o tema (Finale), que incluem um balanço crítico sobre Adorno e Mann.

Cabe uma última observação antes de prosseguir. O “Grande Hotel Abismo” citado no

título deste artigo é um termo sardônico criado pelo filósofo Georg Lukács (1885-1971), desafeto de Adorno e da Escola de Frankfurt, presente no prefácio que escreveu em 1962 à sua Teoria do Romance: “Uma parte considerável da inteligência alemã, inclusive Adorno, alojou-se no ‘Grande Hotel Abismo’ (...), um belo hotel, provido de todo conforto, à beira do

abismo, do nada, do absurdo, entre refeições ou espetáculos comodamente fruídos, [o que] só faz elevar o prazer desse requintado conforto.”

1 Se esta crítica de Lukács ao tão alardeado pessimismo dos frankfurtianos é válida ou não, é algo que veremos no decorrer deste artigo.

LEITMOTIV: AS REFLEXÕES ESTÉTICAS DE THEODOR ADORNO Theodor Ludwig Adorno Wiesengrund nasceu em Frankfurt no ano de 1903. Filho de

um empresário judeu e uma cantora corso-genovesa, ele cresceu numa atmosfera dominada por interesses artísticos, teóricos e políticos. Adorno estudou filosofia e música e lecionou em

1 Vide LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 18.

187

sua cidade natal até 1933, quando foi expulso pelos nazistas. (Cf. ADORNO & MANN, 2006: 37) Passou algum tempo em Oxford e se mudou junto com os demais membros do Instituto de Pesquisa Social (a “Escola de Frankfurt”) rumo à cidade de Nova York. Em 1941 instalou-se em Los Angeles, e era vizinho de Thomas Mann e do músico Arnold Schönberg (1874-1951) – como veremos adiante, duas figuras com quem cultivou fortes relações artísticas e intelectuais. Oito anos depois de seu exílio nos Estados Unidos, Adorno voltou para Frankfurt, onde lecionou na universidade local, da qual chegou a ser reitor. Faleceu devido a um ataque cardíaco, em 69.

De certa maneira, a filosofia de Adorno é monolítica, demonstrando uma notável constância, o que corrobora a sua crença de que – pelo menos até agora – a História foi apenas a repetição mítica, o eterno retorno. (Cf. VANDENBERGHE, 2009: 181)

Em seu instigante texto O Ensaio como Forma, Adorno discute o processo de escrita da crítica de arte. Para este autor, o ensaio pode ser definido como uma forma expositiva que não tem uma preocupação sistemática, na medida em que nele o autor apresenta livremente suas ideias. O estilo ensaístico possui um impulso anti-sistemático, aproximando-se assim da concepção romântica do fragmento, “uma vez que a própria realidade é fragmentada”; sendo

assim, o ensaio “encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas”. O ensaísta busca

se aprofundar em seu objeto, e não o reduz a outra coisa, mas sim “unifica livremente pelo

pensamento o que se encontra unido nos objetos de sua escolha”. Além disso, no ensaio a

dimensão da experiência do concreto, ao invés da mera abstração, reside no fato de que “o

pensador faz de si mesmo o palco da experiência individual.” O ensaio é a forma crítica por

excelência; embora não parta de um ponto de vista pré-determinado, isso ocorre porque ele parte daquilo sobre o que deseja falar, portanto de algo já formado; ou seja, o ensaísta “se

recusa a deduzir previamente as configurações culturais a partir de algo que lhes é subjacente.” (ADORNO, 2003: 19-35)

Já em Teoria Estética, sua última obra, Adorno afirma que o lugar da arte se tornou incerto na contemporaneidade. A autonomia que ela adquiriu, após se ter desembaraçado da sua função cultual, vivia da idéia de humanidade; contudo, esta foi abalada à medida que a sociedade se tornava menos humana. Eis um paradoxo: quanto mais livres as obras de arte se tornaram dos fins exteriores, tanto mais perfeitamente se definiram enquanto organizadas, por sua vez, na dominação. (Cf. Idem, 1988: 11)

Se por um lado a autonomia da arte – isto é, quando ela se guia apenas por seus próprios critérios, por mais “anticomerciais” que estes possam ser – suscitou a cólera dos consumidores de cultura, por outro a arte contemporânea está marcada pelo caráter fetichista das mercadorias, isto é, predomina a tendência segundo a qual o consumidor pode projetar à vontade as suas emoções na obra de arte. Até antes desta fase da “administração total”, o

sujeito que contemplava, ouvia ou lia uma obra devia esquecer-se de si, tornar-se indiferente, desaparecer nela. Ou seja, a identificação deveria ser segundo o ideal de assemelhar-se à obra, e não tornar a obra semelhante a si mesmo. Porém, ao tornar-se tabula rasa de projeções subjetivas, a obra de arte desqualifica-se. (Cf. Ibidem: 29)

A obra de arte, segundo Adorno, é também Artefact, isto é, produto do trabalho social. Com isso, a obra comunica-se e tira o seu conteúdo da realidade empírica que recusa; eis uma posição intermediária entre o sociologismo vulgar (presente, por exemplo, em boa parte da crítica literária marxista) e o uma teoria idealista que separa radicalmente a atividade artística

188

das demais atividades humanas (Cf. JIMENEZ, 1977: 72-73) – por exemplo, o credo do “L’art pour l’art”, que acaba por desligar a arte do Uno e o Todo do qual ela necessariamente deve partir. Em outras palavras, se por um lado, a obra de arte, enquanto mônada, é fechada e possui sua lei formal, essa autonomia não a torna algo simplesmente externo à sociedade, uma vez que reflete em seu interior todo o exterior: “A posição adorniana ressalta essa ambigüidade da obra de arte, de ser ao mesmo tempo autônoma e heterônoma, o que impede as leituras simplificadoras dos dois extremos.” (ALVES, 2009: 8)

Para Adorno, a definição do que é arte é sempre dada previamente pelo que ela foi outrora, “mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende ser e

àquilo em que poderá talvez tornar-se.” (Ibidem: 13-17) A arte movimenta-se, e põe tudo em risco para manter este movimento. Eis onde reside a “aposta” de Adorno nas vanguardas, no

Novo: nada é tão prejudicial ao conhecimento teórico da arte moderna como a sua redução a semelhanças com a arte anterior: “Através do esquema do ‘Tudo já foi feito’, esvanece-se a sua especificidade.” O desencantamento do mundo, marca da modernidade, exige uma arte

que expresse a situação soturna da qual emerge, que desvele a irracionalidade desta realidade: “A arte representa a verdade numa dupla acepção: conserva a imagem do seu objetivo

obstruída pela racionalidade e convence o estado de coisas existente (...) da sua absurdidade.”

(ADORNO, 1988: 31; 68) Adorno, contudo, logo depois afirma que a arte, por preservar um elemento mágico,

também precisa negar o caráter reificado do mundo moderno: “O factum da arte, imitação do encantamento, é um escândalo que [esse mundo] não suporta.” (Ibidem: 74) Portanto, graças ao Novo, a crítica torna-se momento objetivo da própria arte. Segundo Adorno, uma frase de Arnold Schönberg poderia ser um slogan do Novo: “Quem não busca não encontra”. (Ibidem: 34) Aliás, este compositor, cuja obra envolve uma fase atonal e se consolidou em uma dodecafônica, será alvo da maior parte das discussões da obra Filosofia da Nova Música.

Em poucas palavras, pode-se dizer que seu caráter revolucionário de Schönberg reside no fato de que seu sistema tonal pretendeu substituir o de Bach-Rameau2, que foi o padrão da música ocidental durante mais de dois séculos. Em vez das 24 tonalidades do sistema tradicional, “Schönberg só admite uma única tonalidade: os 12 sons, entre os quais nenhum é destacado e todos desempenham a mesma função. Não há mais tom maior nem menor. Não há consonâncias nem dissonâncias.” (CARPEAUX, 1999: 379)

Estas inovações musicais levaram Adorno a considerá-lo o maior compositor vivo. Sendo assim, considera necessário fazer um esclarecimento construtivo de sua música, que se permanecesse incompreendida, ameaçaria recair no obscuro e no mitológico. (Cf. ADORNO & MANN, 2006: 38) Este risco é expresso de forma explícita já na introdução da obra:

A música dodecafônica diz ‘nós’, mesmo quando viva unicamente na fantasia do compositor, sem alcançar nenhum outro ser vivente; mas a coletividade ideal, que esta música ainda leva em si como coletividade separada da empírica, entra em contradição com o inevitável isolamento social e o caráter expressivo particular que

2 Johann Sebastian Bach (1685-1750) e Jean-Philippe Rameau (1683-1764), compositores do período barroco, são considerados um momento de transição na música moderna por terem restabelecido a ordem tonal.

189

o próprio isolamento lhe impõe. (...) A incoerência de uma obra solipsística para grande orquestra não somente reside na desproporção entre a massa numérica do cenário e das poltronas vazias ante as quais se executa a música, mas também atesta que a forma como tal transcende necessariamente o eu em cujo âmbito se experimenta, enquanto a música que nasce nesse âmbito e o representa não consegue superá-lo positivamente. Esta antinomia consome as forças da nova música. Sua rigidez deriva da angústia da obra diante de sua desesperada falta de verdade. (ADORNO, 2009: 24-25)

Schönberg, segundo Adorno, é subversivo por mudar a função da expressão musical: “as primeiras obras atonais são documentos no [mesmo] sentido dos documentos oníricos dos psicanalistas.” As obras deste compositor são simultaneamente documento e construção: “Nelas nada permanece das

convenções que garantiam a liberdade do jogo.” A técnica dodecafônica, portanto, culmina na “vontade de superar a oposição dominante da música ocidental, a

oposição que há entre a natureza polifônica da fuga e a natureza homofônica da sonata.” Além disso, esta técnica escraviza a música ao liberá-la; o sujeito impera sobre a música mediante o sistema racional, mas sucumbe a ele, pois nenhuma regra se mostra mais repressiva do que aquela que impomos a nós mesmos: “O

sujeito subordina-se-lhe e busca proteção e segurança, porque se desespera de poder dar por si só verdadeira realidade à música.” (Ibidem: 40-41; 50; 60)

Ao se colocar como intérprete filosófico de Schönberg, Adorno pretende explicar seu isolamento: como artista, ele não foi anti-social; o mundo lhe foi hostil porque não suporta ouvir, na sua música, as desarmonias gritantes de nossa época. “Schönberg teria assumido a tarefa ingrata de dizer a verdade, que

sempre é dura, para expiar a mentira da arte acadêmica e os crimes que esta esconde sob o manto da pseudobeleza; a música de Schönberg tollit pecata mundi [tira os pecados do mundo].” (CARPEAUX, 1999: 381)

Sendo assim, Adorno acreditava que as experiências musicais da Segunda Escola de Viena, expressas na técnica atonal e posteriormente dodecafônica de composição, haviam produzido as condições de possibilidade para se pensar um conceito renovado de sujeito e de razão. (Cf. SAFATLE, 2009: 174) Destarte, em Filosofia da Nova Música Adorno se empenha em compreender as potencialidades estéticas abertas por esta vanguarda musical:

A música de Schönberg quer emancipar-se em seus dois pólos: ela libera as pulsões [Triebhafte] ameaçadoras, que outras músicas só deixam transparecer quando estes já foram filtrados e harmonicamente falsificados; e tensiona as energias espirituais ao extremo; ao princípio de um Eu que fosse forte o suficiente para não renegar (verleugnen) a pulsão (...). Embora sua música canalizasse todas as forças do Eu na objetivação de seus impulsos, ela permaneceu ao mesmo tempo, durante toda a vida de Schönberg, algo “estranho ao eu”. (ADORNO apud SAFATLE, 2009: 177)

190

Já em seu ensaio Posição do Narrador no Romance Contemporâneo, Adorno afirma que o romance foi a forma literária específica da era burguesa, contudo no Século XX enfrenta uma crise: não consegue mais dominar artisticamente a existência, o que é uma decorrência do subjetivismo, “que não

tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o preceito épico da objetividade.” (cf. ADORNO, 2003: 55) Não basta mais ao romance a linguagem do relato, e a narrativa se tornou impossível com a desintegração da identidade da experiência, “a vida articulada em si mesma e contínua, que só a

postura do narrador permite.” (Ibidem: 56) Para Adorno, o impacto da II Guerra Mundial e das intensas

transformações sociais e econômicas desde o fim do Século XIX feriram o tecido comunitário do qual o narrador partia; isto é, a objetividade épica não é mais possível. Diante desse cenário, os melhores romancistas são justamente os que apresentam as soluções mais inteligentes para essa “crise da narrativa”. Além de autores como Proust, Kafka e Joyce, o autor cita “o último Thomas Mann”, isto é,

a fase final da obra deste escritor, cuja principal expressão é Doutor Fausto: Só hoje a ironia enigmática de Thomas Mann, que não pode ser reduzida a um sarcasmo derivado do conteúdo, torna-se inteiramente compreensível, a partir de sua função como recurso de construção da forma: o autor, com o gesto irônico que revoga seu próprio discurso, exime-se da pretensão de criar algo real, uma pretensão da qual nenhuma da suas palavras pode, no entanto, escapar. (Ibidem: 60)

CONTRAPONTO: SUMÁRIO DE DOUTOR FAUSTO E A CORRESPONDÊNCIA DE THOMAS MANN E ADORNO

Já nos primórdios de sua carreira literária Thomas Mann demonstrava sua paixão pelo

tema da música, entrelaçado com a tensão entre o artista e a sociedade sobre a qual já comentei na Introdução. O personagem Hanno de Os Buddenbrooks, que é filho de uma violinista holandesa, demonstra grande talento no piano, tocando com extrema melancolia:

Era o motivo, o primeiro motivo que ressoava! (...) No culto fanático desse nada, desse fragmento de melodia, curta e infantil invenção harmônica de um compasso e meio, havia algo de brutal e embotado e, ao mesmo tempo, de ascético e religioso, alguma coisa de crença e abandono de si próprio... Manifestou-se certa viciosidade, no exagero e na insaciabilidade com que o menino gozava e explorava essa sua invenção; um desespero cínico, desejo de volúpia tanto quanto do ocaso, mostrou-se na cobiça com que sugava dela a derradeira doçura, até o esgotamento, até o nojo e o tédio. (MANN, 1975: 656)

Mais de quarenta anos depois, seu romance fáustico combinará questões artístico-musicais com uma reflexão sobre o contexto histórico alemão, país que à época ainda estava sob o regime nacional-socialista, o qual forçou o próprio

191

Thomas Mann, crítico contundente dos ultra-nacionalistas desde meados da década de 20, a se exilar em 1933.

O narrador de Doutor Fausto é o humanista Serenus Zeitblom, que conta a sombria história de seu melhor amigo, Adrian Leverkühn, dotado de grande genialidade artística, mas melancólico e atormentado, a ponto de pactuar com o diabo para adquirir maior inspiração artística. O pacto foi selado quando em 1906 (quando Adrian tinha apenas 21 anos), por meio do intercurso sexual com uma prostituta, a qual portava o vírus da sífilis. Esta doença degenerativa fez com que Leverkühn oscilasse, nos vinte e quatro anos seguintes, entre momentos de profunda debilitação física com outros de intensa criatividade.

É possível dizer que o Fausto de Mann é um músico porque, “se foi

especialmente em termos musicais que a Alemanha enriqueceu enormemente a cultura ocidental, também já estava presente nesse dom as sementes da catástrofe germânica.” (MISKOLCI, 1998: 197) O meio artístico do protagonista

Adrian Leverkühn é a música serial, dodecafônica, a qual apresenta uma racionalidade quase escolástica, mas cuja “constelação” – e seu amigo Serenus Zeitblom logo o percebe – pertence ao “irracional” campo da astrologia: “o

racionalismo que Leverkühn invocava tinha, para a contida humanidade de Serenus, boa parcela de superstição, de crença num demonismo vago; um sistema que, antes de racional, parecia mais apropriado a ‘dissolver a razão humana em

magia’.” (BACKES, 2003: 254) A primeira das duas obras-primas de Adrian Leverkühn é Apocalipsis cum

figuris, terminada em 1919. Com essa obra marcada pelo negativo teológico e pelo caráter impiedoso, o compositor procurou revelar o segredo mais profundo do homem: “a sua ambigüidade, nossa identidade tanto de bestialidade quanto da mais pura nobreza de sentimentos.” (RIEMEN, 2011: 78) Sua última composição

é a cantata sinfônica Lamentação do Doutor Fausto, um sombrio réquiem – afinal, pouco após concluir esta obra, Leverkühn sucumbiu à sífilis e ficou em estado vegetativo pelos dez anos seguintes, até falecer em 1940 – que foi descrita da seguinte forma por seu amigo Zeitblom:

O final é puramente orquestral: um adágio sinfônico, ao qual passa aos poucos o lamentoso coro, que começou poderosamente após o galope infernal. É, por assim dizer, o caminho inverso ao Hino à Alegria, a negação congenial daquela transição da sinfonia ao júbilo vocal, é sua revogação... (...) Quão definitivamente não ressoa isso de cada compasso, cada nota desse Hino à Tristeza! Não há dúvida de que a cantata foi concebida com olhos fixos na Nona de Beethoven, como seu contrapeso no sentido mais melancólico do termo. (MANN, 1996: 659-660)

Doutor Fausto evidencia o caráter problemático e em última instância fracassado de uma arte criada com base em um isolamento da realidade, isto é, em uma tentativa de realizar-se humanamente na pura interioridade. Antes de

192

perder completamente a razão, o próprio Adrian Leverkühn faz uma dura autocrítica de sua opção pelo isolamento:

... ao invés de cuidarem sabiamente de tudo quanto for necessário na terra, a fim de que nela as coisas melhorem, e de contribuírem sisudamente para que entre os homens nasça uma ordem suscetível de propiciar à bela obra novamente um solo onde possa florescer e ao qual queira adaptar-se, os indivíduos freqüentemente preferem (...) se entregar à embriaguez infernal. (Ibidem: 673)

Resumida a trama, cabe agora entrar no tema central deste artigo. Um fato decisivo para a criação deste romance é que o filósofo Theodor Adorno, que era vizinho de Mann em Hollywood, a partir de 1943 tornou-se o conselheiro do escritor em matéria de música, depois que este leu e se interessou pelo escrito de Adorno sobre Schönberg presente em Filosofia da Nova Música. Eis uma passagem do diário de Thomas Mann que revela a importância da leitura dos manuscritos de Adorno para a gestação do Doutor Fausto:

À noite, outra vez o texto de Adorno sobre música, que me elucida alguns pontos e ao mesmo tempo evidencia toda a dificuldade do meu intento. (...) Eu tinha nas mãos, de fato, algo ‘importante’. Era uma crítica profunda da

situação artística e sociológica, de extremo refinamento e atualidade, que apresentava uma singularíssima afinidade com a idéia de minha obra, com a ‘composição’ que eu estava vivendo, tecendo. (Idem, 2001: 39)

Segundo Mann, o interesse de Adorno pelo seu livro “crescia à medida que

ele se inteirava de seu conteúdo e que começou a mobilizar para o romance sua faculdade imaginativa musical.” (Ibidem: 95) O autor de Teoria Estética também disse, numa carta de 03 de Junho de 1945, que quando encontrou Thomas Mann na “remota costa oeste” teve a sensação de estar, pela primeira e única vez,

pessoalmente de frente com a tradição alemã na qual foi educado, e mais do que isso, também à capacidade de resistir a essa tradição. (Cf. ADORNO & MANN, 2006: 19)

Em uma correspondência de 30 de Dezembro do mesmo ano, Mann pediu auxílio na questão da “montagem”, técnica narrativa que buscou utilizar em seu

romance: Aquilo sobre o que anseio receber uma resposta comentada é principalmente o princípio da montagem, que se estende de maneira peculiar, e talvez bastante chocante, por todo esse livro - e, com toda a franqueza, sem fazer nenhum segredo. Ainda há pouco voltou a me chamar a atenção, de forma meio divertida, meio inquietante, como tive de caracterizar uma crise de doença do herói, recolhendo no livro, de modo literal e exato, os sintomas de Nietzsche, como eles aparecem em suas cartas, junto com cardápios prescritos etc., por assim dizer colando-os uns sobre outros, eles que são conhecidos de todos. Desse modo, utilizei, de acordo com a montagem, o motivo da venerada e da amada, permanecendo invisível, nunca encontrada, evitada na carne, a senhora Von Meck de Tchaikóvsky. Historicamente dado

193

e conhecido como é, eu o colei e fiz as bordas se desvanecerem, afundando-o na composição como um tema mítico e sem lei, sabido de todos (a relação é para Leverkühn um meio de tratar a proibição do amor, o mandamento da frieza feito pelo Diabo). (Ibidem: 21)

Além disso, Mann encontrou-se regularmente com Adorno durante os quatro anos em que escreveu o romance; leu-lhe passagens da obra e pediu ajuda para as descrições da música que Leverkühn compunha. Embora o destino do personagem tenha mais a ver, como ficou explícito acima, com Friedrich Nietzsche do que com Arnold Schönberg, a crise artística enfrentada por Adrian (e a sua resolução diante da mesma) se assemelha bastante à análise que Adorno fez da situação com que Schönberg se deparou com suas inovações, na medida em que este “elucida a fatalidade que lança às trevas míticas a iluminação

construtiva e objetivamente necessária da música, por motivos também objetivos, e, por assim dizer, por cima da cabeça do artista.” (MANN, 2001: 41)

CONCERTO: OS PERSONAGENS ADORNIANOS EM DOUTOR FAUSTO

Há três personagens que parecem ter sido inspirados por essas reflexões estéticas de

Adorno. O primeiro deles é justamente Adrian Leverkühn, que constrói uma técnica de composição bastante inspirada no estilo dodecafônico analisado por Adorno em Schönberg: “Tal estilo, tal técnica (...) não admitiria nenhuma nota, nem uma única, que não cumprisse na construção geral sua função de motivo. Não haveria mais nenhuma nota livre.” (MANN, 1996: 655) O coração da experiência musical de Schönberg, da forma como foi capturado por Adorno - e nesse ponto fica evidente a inspiração que forneceu para a criação do protagonista de Doutor Fausto - “é uma dialética da solidão. Ele leva ao paroxismo a concepção da música

como expressividade, como canto da alma, insufocável – e tragicamente incompreendido.”

(MERQUIOR, 1969: 64) Um aspecto de Leverkühn que lembra o próprio Adorno é sua personalidade

introspectiva e até misantrópica; o filósofo de Frankfurt era constantemente criticado pela sua “atitude high-brow, cheia de mal disfarçado desprezo pela cultura popular de qualquer espécie.” (Idem, 1987: 160)

O segundo dos personagens “adornianos” é Wendell Kretzschmar, professor de

música que conduz a vocação artística de Adrian. No início do romance ele faz uma palestra sobre vários temas que interessam profundamente a seu pupilo: a relação entre cultura e barbárie, Música e ascetismo, o reencontro com o Elementar... – e, por fim, a história do anabatista Beissel, que inventou uma teoria musical heterodoxa, “por demais extravagante e arbitrária para que pudesse ser aceita pelo mundo exterior.” (MANN, 1996: 90). Kretzschmar terá um papel decisivo (e, por assim dizer, mefistofélico) na decisão de Adrian de se tornar um músico.

Os manuscritos de Adorno, segundo Mann, foram uma leitura estimulante e de muita importância para a criação de Kretzschmar (Cf. ADORNO & MANN, 2006: 9), que herda de Adorno várias digressões, dentre elas uma sobre a importância da “personalidade absoluta” na

música: “A Arte progride (...) e o faz por intermédio da personalidade, que é produto e

194

instrumento da época, e na qual fatores objetivos e subjetivos ligam-se até tornarem-se indistinguíveis, assumindo uns a forma de outros.” (MANN, 1996: 181)

Por fim, ironicamente ou não, o Diabo com quem Leverkühn faz o pacto também se assemelha a Adorno. No início de sua soturna conversa com Adrian, “Ele” se parece com um rufião, “falando alemão e espalhando frio”; porém, à medida que seu interlocutor começa a se

sentir à vontade, o Diabo muda de fisionomia, tomando a forma de um elegante musicólogo, “um intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre Arte e Música, teórico e

crítico, que ele mesmo faz tentativas no campo da composição musical, na medida das suas capacidades.” (Ibidem: 322) Qualquer semelhança com a vida do próprio Adorno seria mera coincidência?

Este parentesco se reforça quando o Diabo começa a tecer considerações sobre a crise da arte moderna que parecem fortemente inspiradas nas de Adorno. Segundo “Ele”, a

composição tornou-se mais difícil na arte emancipada, devido à submissão à técnica. A aparência auto-suficiente da Música se tornou impossível:

A cada instante, a técnica, na sua totalidade, exige dele [do artista] que se submeta a ela e impõe a única resposta certa, que no momento lhe parece admissível. Chega-se então ao ponto no qual as composições do artista (...) não passam de soluções de rebus técnicos. A Arte transforma-se em crítica. Conversão muito honrosa, inegavelmente, e que requer muita rebeldia em plena subordinação, muita independência, muita coragem. (...) A crítica ao ornamento, à convenção e à generalidade abstrata é uma e a mesma. O que permanece objeto dela é o caráter ilusório da obra de arte burguesa, do qual a Música participa, ainda que não crie nenhuma imagem. (Ibidem: 324-326)

Cabe dizer, no entanto, que Mann ficou com a consciência aliviada quando Adorno não “torceu o nariz” para a utilização de seus comentários de crítica

contemporânea a fim de levar o personagem demoníaco a, conforme diz Adrian, “cortejar a arte”. (Cf. Idem, 2001: 122) Porém, há quem sugira que o pensador frankfurtiano também não ficou exatamente contente com o fato de que seu modernismo estético foi associado ao Diabo. Segundo José Guilherme Merquior, a arte do compositor Leverkühn é uma consumada metáfora do pathos demoníaco embutido no apocalipse do esteticismo moderno, e quando Adorno contribuiu para a descrição da música de vanguarda de Leverkühn, “o fez, é claro,

inadvertidamente – e não ficou nada satisfeito quando viu como Mann acabou usando a sua ajuda...” (MERQUIOR, 1987: 193) Podemos, contudo, tomar isso

como um gracejo do sempre sarcástico Merquior e recorrer ao que disse Donald Prater, um biógrafo de Mann:

“Adorno tratou de forma benevolente o fato de Mann ter se apropriado de muitas de suas próprias observações sobre o cenário musical contemporâneo, tal com as expôs em sua Philosophie der neuen Musik, utilizadas sobretudo nos comentários ácidos do Demônio de Mann. (...) Theodor Adorno, embora permanecendo em silêncio, deu a impressão de estar descontente com a falta de crédito à sua colaboração, (...) [mas] ficou satisfeito quando Mann lhe

195

garantiu que escreveria um balanço autobiográfico completo sobre a gênese e o desenvolvimento do romance, no qual o filósofo receberia o merecido crédito por sua inestimável ajuda.” (PRATER, 2000: 481-499)

A promessa de Thomas Mann foi cumprida: de fato várias páginas de A Gênese do Doutor Fausto demonstram a importância de Adorno para a construção de seu romance. Aliás, este não se fez de rogado e, numa carta de 1948, expressou sua empolgação com o “romance sobre o romance”: “Mal posso esperar para ver a portinhola para a eternidade que o seu romance abrirá para mim. Não preciso lhe dizer o que significa para mim o seu reconhecimento de meus esforços excêntricos, bem como a sua intenção de trazê-los à luz.” (ADORNO & MANN, 2006: 38) A amizade entre ambos perdurou até a morte de Mann, em 1955; durante os últimos anos, trocaram cartas sobre, por exemplo, o último romance deste (Confissões do impostor Felix Krull) e a música de Wagner.

Finalmente sobre a questão do narrador Serenus Zeitblom à luz de Adorno, nas palavras de Mann “decidi não contar eu mesmo a vida de Adrian Leverkühn,

mas inseri um outro que a contasse, portanto escrevendo não um romance, mas uma biografia com todas as características pertinentes ao gênero.” (MANN, 2001:

30) A inserção deste narrador – no caso, o professor universitário Serenus Zeitblom, o melhor amigo de Leverkühn – permitiu situar a narrativa num plano temporal duplo, entrecruzando polifonicamente os eventos que abalam o narrador enquanto escreve com os fatos por ele apresentados, de tal forma que seu tremor advém tanto das vibrações de bombardeios distantes quanto ao terror interno que tem ao se lembrar da trajetória do amigo. (Cf. Ibidem: 30-31)

Zeitblom constantemente “quebra a quarta parede” e confessa ao leitor a

incapacidade de fazer uma narração neutra e imparcial diante dos terríveis acontecimentos que afligiram seu amigo Leverkühn e seu próprio país. Várias passagens de Doutor Fausto simbolizam esta autoconsciência de Zeitblom quanto à limitação de seu papel enquanto narrador; por exemplo, a seguinte:

Para mim, cada palavra que escrevo nestas páginas tem o mais ardente interesse, mas quanto não devo cuidar-me em considerar isso uma garantia de sentimentos iguais da parte de pessoas indiferentes! Por outro lado, cumpre não esquecer que não escrevo para o momento nem para leitores que por hora nada saibam de Leverkühn, de modo que não possam pretendem receber informações pormenorizadas a seu respeito; pelo contrário, preparo esse relato para um tempo em que as premissas da atenção pública forem totalmente diversas e, como posso assegurar, muito mais propícias, numa época em que a curiosidade pelas peripécias dessa vida pungente, apresentadas com habilidade ou sem ela, for mais intensa e menos fastidiosa. (Idem, 1996: 42)

Este trecho deixa explícita a situação precária do narrador deste romance, na medida em que revela uma mistura de ceticismo e pálida esperança: se por um lado Zeitblom afirma a impossibilidade de que seu relato consiga “tocar” seus

leitores sobre a tragédia de seu amigo da mesma forma que esta o afetou, por

196

outro ele espera que, no futuro, caso a guerra e o totalitarismo já sejam coisas passadas, haja um ambiente propício para que sua biografia de Leverkühn possa servir como retrato de uma época.

FINALE

O esforço que procurei empreender neste artigo foi o de mapear os principais aspectos

do diálogo artístico de Thomas Mann e Theodor Adorno durante a criação do romance Doutor

Fausto. Fascinava a Mann a peculiar afinidade com que o programa estético de seu romance se comunicava com a estética vanguardista de Adorno. Em ambos é possível encontrar uma reflexão sobre a possibilidade da construção de uma nova subjetividade por meio das inovações técnicas da “nova música”. A diferença é que Doutor Fausto explora esse tema também em sua dimensão moral, alertando para o risco de um esteticismo diabólico – do qual, segundo Mann, não escapava a própria música moderna na qual Adorno via tantas potencialidades.

Como já expus sinteticamente as idéias de Adorno, agora posso ser mais normativo: não compactuo com o tom amargo que permeia a estética adorniana. Lukács tem certa razão quanto critica o “desespero cultural” deste pensador; mas, bancando o “advogado do diabo”, é preciso reconhecer que Adorno vê uma luz no fim do túnel; basta lembrar sua defesa das vanguardas artísticas, em particular a música dodecafônica de Schönberg. Por outro lado, não posso deixar de concordar com Merquior quando este diz que Adorno possui um ascetismo melancólico, segundo o qual só o martírio da forma poderia refletir, se não espelhar, a miséria do homem moderno. Para Adorno, “escrever poesia depois de Auschwitz é bárbaro”, e a arte já não pode mais ter um caráter afirmativo: “O único humanismo que resta a compele a

representar, em formas torturadas, ‘nossa idade satânica’.” (MERQUIOR, 1987: 192) A arte da ruptura seria assim, em sua reação à repressão iluminista da civilização moderna, uma “falência necessária”. (Idem, 1969: 94)

Thomas Mann oferece em seus romances uma perspectiva mais humanista que esta, mas sem deixar de ser realista. O que fica evidente em Doutor Fausto é o caráter problemático e em última instância fracassado de uma arte criada com base em um isolamento da realidade, em uma tentativa de realizar-se humanamente na pura interioridade. Mann chegou a dizer que, ao escrever Doutor Fausto, pretendia elaborar “um romance da minha

época, disfarçado numa história de vida de artista altamente precária e pecaminosa.” (MANN,

2001: 35) É a sua obra mais política; constitui-se numa tomada de posição, em reação contra o esteticismo e a decadência e em prol dos valores humanistas. Mann como mais ninguém estava convencido do fato de que o nazismo não era essencialmente um fenômeno político, mas estava enraizado na cultura alemã; Zeitblom expressa tal consciência austera ao maldizer “os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero humano

originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar sua vida à base de teorias!” (MANN, 1996: 648-649)

Mann também acreditava que, embora nem a arte possa salvar o homem, ela poderia libertar a alma humana do medo e do ódio, e assim auxiliar o homem em sua viagem pela vida. (Cf. RIEMEN, 2011: 83) A maneira como expôs os dilemas da música erudita moderna

197

por meio da trágica história de seu Fausto mostram uma sensata desconfiança com relação aos excessos das vanguardas artísticas. Colocar na boca do Diabo as mais progressistas e ousadas opiniões sobre arte mostra que Thomas Mann não via nesse “niilismo aristocrático” - ora ironizado, ora preconizado pelo Diabo e por Adrian - uma panacéia para as angústias humanas diante da modernidade. A arte pode ter, no máximo, um papel consolador e pedagógico, inclusive pelo exemplo negativo, ao mostrar que os impulsos esteticistas têm um caráter perigoso e até mortal – algo, aliás, que o próprio “pecador” Leverkühn reconheceu, à beira do colapso.

PARTITURA (REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS) ADORNO, Theodor. Filosofia da Nova Música (3ª Ed.). São Paulo: Perspectiva, 2009. ________________ Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003. ________________ Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1988. ________________ & MANN, Thomas. Correspondencia 1943-1955: Theodor W. Adorno y Thomas Mann. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006. ALVES, Marco Antônio Sousa. Reflexões sobre a obra de arte a partir da Teoria Estética de Adorno: efemeridade, fragmentação, hibridismo e isolamento social. Trabalho apresentado no III Encontro de Pós-Graduandos em Filosofia, PUC-SP, São Paulo, 2009. Disponível em: http://academia.edu/867169/Reflexoes_sobre_a_obra_de_arte_a_partir_da_Teoria_Estetica_de_Adorno_efemeridade_fragmentacao_hibridismo_e_isolamento_social BACKES, Marcelo. A Arte do Combate: a literatura alemã em cento e poucas chispas poéticas e outros tantos comentários. São Paulo: Boitempo, 2003. CARPEAUX, Otto Maria. Uma Nova História da Música. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. JIMENEZ, Marc. Para Ler Adorno. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. MANN, Thomas. A Gênese do Doutor Fausto: Romance sobre um romance. São Paulo: Mandarim, 2001. _____________ Doutor Fausto. Rio de Janeiro: Record, 1996. ______________ Os Buddenbrooks: decadência duma família. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. MERQUIOR, José Guilherme. Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. _________________________ O Marxismo Ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. MISKOLCI, Richard. “A filosofia da história no Doutor Fausto”. In: Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, pp. 191-208. São Paulo, 1998. PRATER, Donald. Thomas Mann: Uma Biografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

198

RIEMEN, Rob. Nobreza de Espírito: um ideal esquecido. Petrópolis: Vozes, 2011. SAFATLE, Vladimir. “Theodor Adorno: a unidade de uma experiência filosófica

plural”. In: Pensamento alemão no século XX: grandes protagonistas e recepção no Brasil, volume 1 (org.: Jorge de Almeida e Wolfgang Bader). São Paulo: Cosac Naify, 2009. SCHMIDT, James. “Mephistopheles in Hollywood: Adorno, Mann and

Schoenberg”. In: The Cambridge Companion to Adorno. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 148-180, 2006. VANDENBERGHE, Frédéric. A Philosophical History of German Sociology. New York: Routledge, 2009.