Patronos da arte dos sons: a actividade musical na Patriarcal e na Capela Real de Lisboa entre 1750...

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CRISTINA FERNANDES INET-MD, Universidade Nova de Lisboa Q uando D. José subiu ao trono em 1750 herdou do seu pai, D. João V, “a Igreja Patriarcal mais rica, e magnífi- ca, que se conhecia no mundo”, nas palavras do cronista Frei Cláudio da Conceição 2 . Outra fonte preciosa para a histó- ria da Capela Real e da Santa Igreja Patriarcal de Lisboa - o Mappa de Portugal Antigo e Moderno, de João Baptista de Cas- tro 3 - diz-nos que o Rei Magnânimo nela “exercitou novas grandezas, que já pareciam impossíveis à imaginação, e somente sondáveis e factíveis à dilatada esfera da sua idea”. Tendo em conta o quadro mental e os códigos vigentes nas sociedades do Antigo Regime, poderíamos pensar que o tom encomiástico destas descrições contém alguma dose de exagero. No entanto, também os viajantes estrangeiros des- creveram com igual espanto as grandezas da Patriarcal. Em 1726, o naturalista suíço Charles Merveilleux escreveu que “a magnificência com que o Patriarca de Lisboa oficia ultrapassa a do Papa nos dias de maior solenidade”, podendo dizê-lo “com conhecimento de causa” pois viu “oficiar um e outro” 4 e, quase oitenta anos depois, em 1801, o médico francês Hugues-Félix Ranque refere-se numa das suas cartas ao “brilho” do Patriarca e do seu colégio, “cuja composição imita a do Chefe da Igreja”, bem como à sua “capela muito boa de músicos, entre os quais diversos castrados italianos” 5 . Já depois da família real ter partido para o Brasil, o inglês Samuel Broughton mostra-se deslumbrado com a teatralidade do cerimonial na Patriarcal da Ajuda, que lhe fez lembrar “mais um espectáculo no Covent Garden do que uma cerimó- nia religiosa”. E acrescenta: “A Música, que raramente se interrompia ao longo do ritual, era solene e de grande efeito. A tribuna do coro está equipada com um órgão de superior quali- dade, o qual, juntamente com um conjunto de cantores italia- nos, produzia um dos mais belos coros que alguma vez ouvi” 6 . Durante a vigência do Absolutismo monárquico, a Igre- ja manteve em toda a Europa estreitas relações com o Esta- do. Em Portugal, essa união íntima entre o poder civil e o poder religioso converteu-se num modelo ideológico de longo alcance, estrategicamente arquitectado por D. João V e posto em prática através do colossal investimento na ins- tituição do Patriarcado de Lisboa. Mediante um hábil pro- cesso de negociações junto da Cúria Romana, a Capela Real do monarca foi contemplada com sucessivos privilégios que incluíram a sua elevação a Colegiada em 1710 e a Igreja e Basílica Patriarcal em 1716 7 . Patronos da arte dos sons A actividade musical na Patriarcal e na Capela Real de Lisboa entre 1750 e 1807 1 Torre da Patriarcal e Torre do Relógio António Rodrigues Lages, Altissonância Sacra Restaurada. 1769 | BNP M.M. 5999

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CRISTINA FERNANDES INET-MD, Universidade Nova de Lisboa

Q uando D. José subiu ao trono em 1750 herdou do seu pai, D. João V, “a Igreja Patriarcal mais rica, e magnífi-ca, que se conhecia no mundo”, nas palavras do cronista

Frei Cláudio da Conceição2. Outra fonte preciosa para a histó-ria da Capela Real e da Santa Igreja Patriarcal de Lisboa - o Mappa de Portugal Antigo e Moderno, de João Baptista de Cas-tro3 - diz-nos que o Rei Magnânimo nela “exercitou novas grandezas, que já pareciam impossíveis à imaginação, e somente sondáveis e factíveis à dilatada esfera da sua idea”.

Tendo em conta o quadro mental e os códigos vigentes nas sociedades do Antigo Regime, poderíamos pensar que o tom encomiástico destas descrições contém alguma dose de exagero. No entanto, também os viajantes estrangeiros des-creveram com igual espanto as grandezas da Patriarcal. Em 1726, o naturalista suíço Charles Merveilleux escreveu que “a magnificência com que o Patriarca de Lisboa oficia ultrapassa a do Papa nos dias de maior solenidade”, podendo dizê-lo “com conhecimento de causa” pois viu “oficiar um e outro”4 e, quase oitenta anos depois, em 1801, o médico francês Hugues-Félix Ranque refere-se numa das suas cartas ao “brilho” do Patriarca e do seu colégio, “cuja composição imita a do Chefe da Igreja”, bem como à sua “capela muito boa de músicos, entre os quais diversos castrados italianos”5. Já depois da família real ter partido para o Brasil, o inglês Samuel Broughton mostra-se deslumbrado com a teatralidade do cerimonial na Patriarcal da Ajuda, que lhe fez lembrar “mais um espectáculo no Covent Garden do que uma cerimó-nia religiosa”. E acrescenta: “A Música, que raramente se interrompia ao longo do ritual, era solene e de grande efeito. A tribuna do coro está equipada com um órgão de superior quali-dade, o qual, juntamente com um conjunto de cantores italia-nos, produzia um dos mais belos coros que alguma vez ouvi”6. Durante a vigência do Absolutismo monárquico, a Igre-ja manteve em toda a Europa estreitas relações com o Esta-do. Em Portugal, essa união íntima entre o poder civil e o poder religioso converteu-se num modelo ideológico de longo alcance, estrategicamente arquitectado por D. João V e posto em prática através do colossal investimento na ins-tituição do Patriarcado de Lisboa. Mediante um hábil pro-cesso de negociações junto da Cúria Romana, a Capela Real do monarca foi contemplada com sucessivos privilégios que incluíram a sua elevação a Colegiada em 1710 e a Igreja e Basílica Patriarcal em 17167.

Patronos da arte dos sons A actividade musical na Patriarcal e na Capela Real de Lisboa entre 1750 e 18071

Torre da Patriarcal e Torre do Relógio António Rodrigues Lages, Altissonância Sacra Restaurada. 1769 | BNP M.M. 5999 

duraram vários anos e motivaram intervenções urbanísticas nas ime-diações) estavam praticamente concluídas e a maioria dos cantores de alto nível contratados por D. José também cantava na Patriarcal. Além de compositor de ópera, David Perez era um prestigia-do autor de obras sacras, continuando a produzir nessa área, e Giovanni Giorgi mantinha os cargos de compositor da Patriarcal e de professor do Real Seminário de Música. Por seu turno, os compositores portugueses que tinham sido bolseiros em Roma - nomeadamente João Rodrigues Esteves (c.1700- c.1751), Fran-cisco António de Almeida (c.1702-1755?) e António Teixeira (1707-1774) - encontravam-se no auge da maturidade. Tal como a Ópera do Tejo, a Patriarcal foi destruída pela catástrofe de 1755, mas a sua actividade rapidamente foi reto-mada, ainda que com uma diferente organização logística. Se por um lado a Patriarcal tinha de continuar a manter as suas funções públicas na qualidade de catedral, a família real não podia prescindir da Capela Real, um dos pilares legitimadores da monarquia. A solução foi repartir os meios humanos (eclesiásticos e musicais) por dois locais, situação que se man-teve nos 37 anos seguintes. A Capela Real foi anexada à nova residência da corte - a “Real Barraca” na Ajuda - e a Patriarcal passou por sucessivas instalações. Inicialmente funcionou na Ermida de São Joaquim e Santa Ana (contígua ao Palácio do Marquês de Abrantes, em Alcântara), vindo depois a ocupar um templo próprio no Sítio da Cotovia (hoje Praça do Príncipe Real) que acabaria por ser destruído por um incêndio (1756-69); a Igreja de S. Roque (1769); a Igreja do Convento de S. Bento (1769-72) e a Igreja do Convento de S. Vicente de Fora (1772-1792). Em 1792 foi de novo reunida à Capela Real (na Ajuda), retomando-se assim o ideal de D. João V17.

Verdadeira corte eclesiástica concebida à imagem do Vati-cano, a Patriarcal passou a incorporar a mais alta hierarquia da Igreja portuguesa. O Patriarca encontrava-se no topo de um conjunto impressionante de mais de 200 dignitários8 - cada cerimónia que celebrava e cada uma das suas saídas públicas tomavam a forma de um verdadeiro espectáculo barroco. Esta “espécie de Papa”, como lhe chamou em 1798 o francês Joseph Carrère9, era afinal de contas o Capelão Mor do Rei. Como escreveu António Filipe Pimentel, o Rei Magnânimo foi “o único Príncipe Católico a possuir um Papa por Capelão.”10. A fusão da Capela Real (instituição paralela à das restantes cortes do Antigo Regime) com os modelos rituais e estéticos das Capelas e Basílicas Pontifícias constitui uma especificidade singular no panorama europeu, cuja legitimação passou por um enorme investimento nos vários sectores da criação artísti-ca. De acordo com o conceito de “Estado-espectáculo” caracte-rístico do Antigo Regime, D. João V uniu numa lógica de “obra de arte total” a pompa litúrgica e o cerimonial áulico, as artes plásticas e decorativas e a dimensão coreográfica e teatral do ritual sacro, o poder retórico da palavra e da música. Recor-rendo a uma imagem proposta por Rui Vieira Nery, “tratava-se, avant la lettre, de um verdadeiro dispositivo performativo mul-timédia cujo impacte psicológico nos presentes não pode ter deixado de ser poderosíssimo”11. Não era apenas o esplendor arquitectónico e decorativo da Patriarcal que se devia equiparar a São Pedro de Roma, con-forme demonstram os estudos de Maria Teresa Mandroux-França, Margarida Calado ou Angela Delaforce12. A aquisição de valiosas obras de arte sacra e de alfaias litúrgicas de origem romana foi acompanhada por um investimento na arte dos sons, que viria a transformar por completo a vida musical por-tuguesa, doravante marcada pela influência do barroco italiano. A música e os músicos constituíram um pilar funda-mental da prodigiosa máquina cerimonial que alimentava a Patriarcal. Nesta perspectiva, procedeu-se à cópia integral dos cerimoniais, manuais litúrgicos e livros de coro roma-nos, à importação de repertório polifónico e em stile concer-tato e à contratação de numerosos cantores da Capela Giu-lia, incluindo o seu mestre de capela, Domenico Scarlatti (1685-1757), que esteve ao serviço da corte de Lisboa entre 1719 e 1729. Em 1725 era contratado Giovanni Giorgi (? – 1762), compositor veneziano que tinha sido mestre de capela da Basílica de São João de Latrão e que viria a exer-cer uma intensa actividade em Portugal13. Clérigos portu-gueses foram instruídos em Roma sobre a execução do cantochão e alguns jovens compositores portugueses aper-feiçoaram a sua formação na Cidade Pontifícia a expensas da corte14. Foi este dispositivo monumental que D. José herdou em 1750, quando subiu ao trono. Todavia, a actividade musical da Patriarcal em meados do século XVIII tem ficado na sombra em grande parte dos estudos, ofuscada pela paixão e pelo enor-me investimento do novo monarca na ópera, bem patente na construção do mítico e efémero edifício da Ópera do Tejo, pro-jectado por Giovanni Carlo Sicinio Galli Bibiena, e na contra-tação de artistas de topo como o compositor napolitano David Perez (1711-1778) ou os castrati Giziello e Cafarelli15. Tem-se esquecido frequentemente, que durante os cinco anos que precedem o Terramoto de 1755, a Patriarcal beneficiava de con-dições privilegiadas. Algumas das mais imponentes descrições do interior do templo, como a de Chevalier de Courtils16, datada de Junho de 1755, referem-se precisamente a esta época. As obras de ampliação do antigo espaço da Capela Real do Paço da Ribeira (que 17 

INVESTIGAÇÃ

David Perez Gravura de Francesco Bartolozzi, c. 1774‐1780 | Foto BNP 

Apesar de todas as vicissitudes, a representação simbólica da monarquia continuou a ter a sua maior visibilidade pública graças às cerimónias litúrgico-musicais da Capela Real e da Patriarcal, já que a actividade operática de corte se transfor-mou depois do Terramoto num divertimento de natureza semi-privada nos teatros reais da Ajuda, de Salvaterra e de Queluz. As medidas do Marquês de Pombal no sentido de limitar o poder da Igreja conduziram à diminuição do número de dignidades da Patriarcal mas, como adiante se verá, o inves-timento na música manteve-se e foi até reforçado. Com a subida ao trono de D. Maria I, em 1777, a Capela Real e a Patriarcal sofreram um novo impulso. Em 1781 e 1788, a Rainha fez publicar novos Estatutos, respectiva-mente dirigidos aos dignitários eclesiásticos e aos Capelãos Cantores18 e confirmou as Constituições pª governo do Coro dos Muzicos da Cappella Real e Patriarchal, que subsistem em diferentes cópias manuscritas datadas de 1788 e redigidas em português e italiano19. A soberana mostrou uma clara vontade de retomar o modelo idealizado pelo seu avô, D. João V, o que se traduz na preocupação pelo rigor do ritual litúrgico segundo as normas romanas. No início da década de 1780 mandou vir de Roma uma série de partituras e manuais litúrgicos para os mestres de cerimónias e em 1792 voltou a reunir a Capela Real e a Patriarcal. O Prínci-pe Regente, D. João, deu seguimento a estas medidas e reforçou também o investimento musical nas várias Capelas anexas aos palácios de Queluz, da Bemposta e de Mafra. Neste contexto de forte interpenetração simbólica entre o poder civil e o poder religioso nem sempre existe uma distin-ção clara entre o patronato real e o patronato eclesiástico até porque o estatuto de Patriarcal resultou precisamente de uma promoção da Capela Real. Faz mais sentido distinguir entre as cerimónias extraordinárias (geralmente ligadas a efemérides da monarquia ou a eventos de forte significado sócio-político) e a liturgia quotidiana. No primeiro caso é possível localizar várias partituras destinadas a celebrar datas importantes liga-das à vida da família real expressamente compostas “por Ordem de Sua Magestade” ou “por Ordem de Sua Alteza”. Temos também conhecimento da intervenção directa do Patriarca ou de alguns dignitários eclesiásticos na promoção de determinados repertórios, como é o caso do tradicional Te Deum de acção de graças no último dia do ano, realizado na Igreja de São Roque antes da expulsão dos jesuítas e, poste-

riormente, na Capela Real da Ajuda. Esta cerimónia deu ori-gem a imponentes obras policorais da autoria de António Tei-xeira, João de Sousa Carvalho, Jerónimo Francisco de Lima, António Leal Moreira, Marcos Portugal ou Giuseppe Totti, entre outros. No caso das cerimónias quotidianas, a composi-ção das peças era em geral assegurada por músicos ao serviço da Patriarcal e/ou da Capela Real (compositores, organistas, mestres do Real Seminário de Música e outros) que recebiam um suplemento no ordenado para exercer essa tarefa20. Tanto na Patriarcal como na Capela Real da Ajuda, os músicos repartiam-se por várias hierarquias. Os capelães can-tores, responsáveis pelo cantochão, estavam associados ao chamado “Coro” litúrgico, que funcionava em paralelo com o coro profissional, responsável pelo repertório polifónico ou em sitle concertato e em geral designado como “Coro dos Italianos”. Os Livros de Pagamentos da Patriarcal fazem a distinção entre este último e o “Coro dos Portugueses”, de dimensões mais reduzidas e com remunerações mais baixas. Os portugue-ses com melhores vozes e melhor técnica podiam ser “agregados ao Coro dos Italianos”, mas a sua percentagem foi sempre bastante reduzida. Esta estrutura incluía numerosos cargos internos indis-pensáveis ao desempenho musical, à organização do ritual, à produção e distribuição do repertório e à disciplina, entre os quais os de Inspector, Mestre de Capela, Apontador, Vice-Apontador, 1º e 2º Corista (ou Regentes), além dos vários Cantores, Organistas, Compositores, Seminaristas e Copistas. Havia ainda um Arquivista das Solfas, um Afina-dor e um ou mais Organeiros21. Os restantes instrumentis-tas integravam outros departamentos musicais da corte, como a Orquestra da Real Câmara e a Banda Real (também conhecida como Charamela Real), sendo apenas convocados quando o repertório o exigia. A lista de despesas de 1754 publicada por João Baptista de Castro22 e depois reproduzida por outros autores tem sido implicitamente identificada com uma época áurea da Patriar-cal. O número de 444 pessoas ao serviço da instituição, entre as quais 71 cantores italianos e portugueses (ou 67 se conside-rarmos apenas os cantores efectivos), 4 organistas, um compo-sitor “de Solfa italiana” [Giovani Giorgi], um afinador de órgãos e um copista, impressiona, mas se analisarmos os Livros de Mesadas posteriores a 1769 verificamos que, pelo menos no capítulo da música, o investimento não diminuiu.

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INVESTIGAÇÃ

Magnificat, António Leal Moreira Arquivo da Fábrica da Sé Patriarcal de Lisboa 

Te Deum, José Joaquim dos Santos, 1793 Arquivo da Fábrica da Sé Patriarcal de Lisboa 

Após o Terramoto, o número de dignidades das primeiras hierarquias sofreu uma quebra, mas mantiveram-se os seus elevadíssimos ordenados. Em contrapartida, nos inícios da década de 1760 já se tinha conseguido reunir um efectivo de cantores (italianos e portugueses) semelhante ao do período pré-Terramoto. O conjunto viria a atingir nalguns dos anos seguintes um total de mais de 80 cantores profissionais23. Durante o reinado de D. Maria I, a Capela Real da Ajuda contava com uma média de 24 a 30 cantores, enquanto a Patriarcal tinha cerca de 50. Cada uma das instituições possuía 5 ou 6 organistas, que actuavam de forma rotativa enquanto os cantores se dividiam por duas turmas que alternavam sema-nalmente. Entre o início da década de 1760 e 1807 a Capela Real e a Patriarcal no seu conjunto empregaram cerca de 140 cantores italianos. O número de transalpinos efectivos por ano oscilou entre os 63 (em 1776) e os 30 nos inícios do século XIX, atingindo uma percentagem de quase 100 por cento na Capela Real da Ajuda, cujo vínculo mais próximo à família real se traduziu num aumento de prestígio24. Havia também vários cantores italianos na Patriarcal, sen-do os restantes portugueses, na sua maioria formados pelo Seminário de Música anexo à instituição. Os salários mensais dos italianos oscilavam entre os 40$000 e os 60$000 réis logo desde o início do contrato, enquanto uma grande parte dos portugueses da Patriarcal ganhava entre 12$500 e 20$000 e tinha de fazer um percurso profissional mais gradual. Alguns dos italianos da Capela Real recebiam ainda remunerações adicionais pagas pelo Real Bolsinho e tinham direito a genero-sas ajudas de custo. Os Livros de Mesadas (os quais incluem em simultâneo o pessoal da Capela Real da Ajuda e da Patriarcal) ilustram bem o reforço dos quadros musicais durante o reinado efectivo de D. Maria I e a regência do Príncipe D. João (Fernandes, 2010: 54). O extenso aparelho musical da Capela Real e da Patriarcal tinha que dar resposta a um calendário de cerimónias muito intenso, o que pressupunha, por um lado, a divisão de tarefas e, por outro, a produção de um vasto repertório. Noutras insti-tuições de dimensões mais reduzidas e nalgumas Capelas Reais europeias, a figura do Mestre de Capela coincidia com o res-ponsável musical supremo e com um compositor de renome. Esta tradição não se verificava na corte de Lisboa desde o rei-nado de D. João V, até porque seria impossível em termos práticos. O cargo musical mais importante era o de compositor da Real Câmara em acumulação com o de Mestre de Música dos Infantes. O Mestre de Capela da Patriarcal era, em geral, um cantor com funções de coordenação, a quem cabia a marca-ção do compasso nos serviços quotidianos, não tendo que ser obrigatoriamente o compositor mais prolífico e credenciado. O desconhecimento desta particularidade conduziu no passado à atribuição errónea do posto de Mestre de Capela a composito-res que nunca o exerceram. O equívoco estende-se de Domeni-co Scarlatti a Marcos Portugal, passando por David Perez e João de Sousa Carvalho, entre outros25. Mais do que compôr, cabia ao Mestre de Capela mandar compôr e mandar copiar a música necessária26. Os composito-res oficiais da corte forneciam a maior parte do repertório para as datas mais solenes do calendário litúrgico e para as efeméri-des da corte, mas o quotidiano era assegurado por um amplo conjunto de compositores que acumulava a criação musical com outras funções. Os principais fornecedores eram os Mes-tres do Seminário e os Organistas, que recebiam “ordenado com obrigação de Compositores” e, por vezes, outros músicos ao serviço das diferentes instituições27.

A composição fazia parte da aprendizagem da generalidade dos músicos, sendo contemplada no plano de estudos do Real Seminário de Música da Patriarcal, em conjunto com o canto, o acompanhamento e os instrumentos de tecla (órgão e cravo). Criada por D. João V em 1713, esta escola de música seria res-ponsável pela formação dos mais importantes compositores por-tugueses setecentistas, mas também de muitos cantores e orga-nistas que trabalharam na Capela Real, na Patriarcal e noutras instituições. Os alunos internos rondavam as duas dezenas por ano, mas as aulas da parte da tarde eram abertas a estudantes externos, que em 1761 totalizavam o número de 50. Alguns dos discípulos mais dotados, como os compositores João de Sousa Carvalho, Jerónimo Francisco de Lima, Brás Francisco de Lima e Camilo Cabral, foram seleccionados em 1760 para aperfeiçoar os estudos em Nápoles, vindo depois a integrar o corpo docente28. Os compositores que suportavam o sistema produtivo da músi-ca sacra em torno da Patriarcal e da Capela Real da Ajuda entre 1750 e 1807 podem repartir-se por quatro categorias principais.

1. Compositores da Real Câmara (e/ou da Patriarcal), que foram simultaneamente Mestres de Música da Família Real, como é o caso de David Perez (activo em Portugal entre 1752 e 1778); João de Sousa Carvalho, que acumulava o cargo a partir de 1778 com as funções de Mestre do Semi-nário da Patriarcal; e Giuseppe Totti, contratado em 1779 como cantor (soprano) da Capela Real da Ajuda e nomeado Compositor e Mestre de Suas Altezas em 1800.

2. Compositores que trabalharam à distância, enviando partituras para a Casa Real portuguesa, dos quais se destacam o já referido Giovanni Giorgi (Compositor da Patriarcal e Mestre do Seminário entre 1725 e 1755, data em que abandonou Lisboa, continuando porém a enviar partituras para a Capela Real e para a Patriarcal a partir de Génova até 1762) e Niccolò Jommelli, que assinou um contrato com a corte portuguesa em 1769 onde se compro-metia a enviar todos os anos uma ópera séria, uma ópera cómica e várias peças de música religiosa.

3. Compositores da Patriarcal (e/ou da Capela Real) nomeados oficialmente, cujo ordenado relativo a outras funções incluía um suplemento para a composição de música sacra. Nesta categoria salientam-se organistas da Capela Real da Ajuda João de Sousa Vasconcelos29, João Cordeiro da Silva, Joaquim Pereira Cardote e António da Silva Gomes e Oliveira; os organistas da Patriarcal José Álvares Mosca, José do Espírito Santo e Oliveira e Marcos Portugal; mestres dos Seminário como Jerónimo Francisco de Lima, José Joaquim dos Santos, António Leal Moreira e Marcos Portugal; e os cantores da Patriarcal Gioachino Pecorario e Antonio Puzzi (este último foi nomeado mestre de capela da Basílica de Mafra em 1805).

4. Músicos que tinham outras funções mas que também escreveram obras para os serviços litúrgicos da Patriarcal e das restantes Capelas Reais. Nesta categoria encontram-se personalidades como Antonio Tedeschi (cantor, libretista e professor de música da família real), Giuseppe de Porcaris (mestre de capela da Patriarcal), Luciano Xavier dos Santos (organista da Capela Real da Bemposta), José António de Figueiredo e João Pedro da Matta (organistas), Nicolau Ribeiro Passo Vedro, Brás Francisco de Lima e Eleutério Franco de Leal (mestres do Seminário), José Cláudio de Almeida, Antonio Fratta, Vicente Miguel Lousado, Joaquim do Vale Mixelim, José António Gomes Pincete, Giuseppe Constantino Valluci e António José do Rego (cantores da Patriarcal), entre outros. 19 

INVESTIGAÇÃ

Se na primeira metade do século XVIII, a Patriarcal de D. João V provocou o deslumbramento (e também muitas críti-cas), depois de 1755 assistimos à solidificação de uma máquina gigantesca de produção de música religiosa, que extravasa o bloco formado pela Capela Real e pela Patriarcal. Este consti-tuía o núcleo principal de uma vasta rede que abrangia outras Capelas Reais e um amplo conjunto de igrejas e conventos de Lisboa e arredores que beneficiava do patrocínio da monarquia. Entre as Capelas Reais há que distinguir as que tinham produção musical própria, como a Capela da Bemposta (pertencente à Casa do Infantado), a Capela Real de Vila Viço-sa e Mafra (a partir dos inícios do século XIX), das que não dispunham de músicos profissionais assalariados em perma-nência como é o caso de residências tão importantes nas roti-nas da corte como os palácios de Queluz e de Salvaterra. Estas recorriam a cantores (e por vezes a organistas) da Capela Real da Ajuda e da Patriarcal e a instrumentistas da Orquestra da Real Câmara cada vez que a família real aí se instalava. Em correlação com devoções pessoais dos membros da monarquia, festas dos Santos padroeiros de igrejas, capelas e conventos, datas históricas ou outros eventos, podemos encon-trar periodicamente os elementos dos vários departamentos musicais da Casa Real nos conventos do Bom Sucesso, das Portas do Céu em Telheiras, de Belém, do Sacramento, do Livramento ou de São Francisco de Paula, nas igrejas da Memória, de São Roque ou de Santo António, na Basílica da Estrela, no Colégio dos Nobres ou ainda nas Festas das Ordens Militares, entre muitos outros locais. A enorme quantidade de música religiosa do século XVIII e dos inícios do século XIX ligada à Patriarcal, às Capelas Reais e à Basílica de Santa Maria, depositada no Arquivo da Fábrica da Sé Patriarcal de Lisboa, na Biblioteca Nacional de Portugal (especialmente nos fundos do Seminário da Patriar-cal e do Conde Redondo e na colecção Ernesto Vieira) e nas Bibliotecas da Ajuda, do Paço Ducal de Vila Viçosa e do Palá-cio de Mafra, entre outras, testemunha uma vasta produção e circulação de partituras manuscritas.

A análise do acervo do Arquivo da Sé de Lisboa, que rece-beu a colecção mais importante e coesa de música religiosa ligada às instituições de que nos ocupamos, permite obter uma ideia bastante próxima do perfil do repertório interpretado. Obviamente, a presença de determinada obra nem sempre é sinónimo da sua utilização, mas tendo em conta o espírito prag-mático da época e o cruzamento com outras fontes históricas é possível obter um quadro bastante credível, ainda que parcial. Contabilizando os compositores activos até às primeiras décadas do século XIX representados na colecção encontramos 136 autores, dos quais 52 são italianos. Destes últimos, 14 viveram em Portugal exercendo funções como cantores, com-positores ou professores, mas há também casos de composito-res que nunca vieram a Lisboa como os de Niccolò Jommelli (1714-1774) e de Pascale Piseri (c.1725-1778) - respectivamen-te com 11 e com 29 obras - representativos de uma relação privilegiada de encomenda à distância. Alguns filhos de canto-res italianos da Capela Real e da Patriarcal distiguiram-se tam-bém como compositores, como é o caso de Gioachino Pecora-rio, João José Baldi, dos irmãos Luiz Mariano e Tomás Maria Ceccoli, Antonio Puzzi e Fortunato Mazziotti. No repertório importado dominam as obras de compositores romanos como Giovanni Bassetti, Paolo Belinzani, Pietro Paolo Bencini, Girolamo Bezzi, Francesco Ciampi, Antonio Foggia, Paolo Lorenzani ou Virgilio Mazzochi, entre outros, vários deles do século XVII, ilustrando a tradição e o gosto herdado da Patriarcal de D. João V (Fernandes, 2010: 232-233). Como seria de esperar, os músicos da Patriarcal e da Capela Real mais representados são os que recebiam “ordenados com fun-ção de compositor”. Giovanni Giorgi distancia-se de todos os res-tantes com a imponente soma de 326 obras (quase todas compostas entre 1755 e 1762 e enviadas a partir de Génova), seguindo-se na casa das 70 e das 80 peças autores como João Rodrigues Esteves (um dos bolseiros de D. João V em Roma), José Joaquim dos San-tos (um dos mais talentosos compositores portugueses dos finais de setecentos) e dois napolitanos que tiverem importantes cargos na corte: David Perez e Antonio Tedeschi (1702-1770).

Recibos do copistas Manuel Marques Lagoa e Manuel Álvares Mosca Arquivo da Fábrica da Sé Patriarcal de Lisboa 

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INVESTIGAÇÃ

As novas obras escritas pelos compositores da Patriarcal nas últimas décadas do século XVIII dominavam a vida musi-cal, mas coexistiam com repertório herdado dos reinados de D. João V e de D. José, sobretudo da autoria de Giorgi, Tedeschi, Perez e Jommelli. Nos finais de setecentos algumas das obras escritas por estes dois últimos compositores (falecidos respecti-vamente em 1778 e 1774) tinham adquirido o estatuto de câno-ne local. Os casos do Mattutino de’ Morti de Perez (publicado em Londres por Brenmer em 1774) e do Requiem de Jommelli interpretados na festa anual da Irmandade de Santa Cecília até a finais do século XIX são os mais conhecidos, mas outras parti-turas de Perez como o Requiem e as Matinas da Conceição e do Natal ou o Te Deum para a aclamação de D. Maria I (recuperado nos baptizados reais) continuavam a ser executadas. A presença de música mais antiga também não era despicienda como indiciam os exemplares bastante numerosos de peças de Frei Manuel Cardoso (com 24 obras no Arquivo da Sé Patriarcal) e Diogo Dias de Mel-gaz (10 obras). O uso de obras em stile antico e stile moderno (com destaque para as múltiplas possibilidades do stile concertato), ou se quisermos de composições que recriam a textura da antiga polifonia renascentista e de composições que reflectem as tendências do pós-barroco e do classicismo, nem sempre decorre de um maior ou menor conservadorismo, mas sim da funcionalidade litúrgica. No repertório sacro luso-brasileiro setecentista coexistem numerosos estilos e influências. Páginas musicais relativamen-te austeras em stile pieno (ou vero stile para usar a expressão do compositor Girolamo Chiti) da antiga escola romana (algumas delas policorais) podiam surgir lado a lado com peças com uma forte contaminação da música profana, incluindo ecos da modi-nha e da ópera. O escritor e viajante britânico William Beck-ford, que tantas vezes elogiou a música de Perez e Jommelli que ouviu na Patriarcal como “sublime”, “augusta e perturba-dora”, deixou-nos também descrições como esta, relativa a uma cerimónia na Igreja de Santo António:

“The ceremony was extremely pompous. A prelate of the first rank, with a considerable detachment of priests from the royal chapel, officiated to the sounds of lively jigs and ranting minuets, better calculated to set a parcel of water-drinkers a dancing in a pump-room, than to direct the movements of a pontiff and his assistants.”30. Nos finais de setecentos, composi-tores como António Leal Moreira, João Cordeiro da Silva, António da Silva Gomes e Oliveira, Giuseppe Totti, Antonio Puzzi ou Marcos Por-tugal, entre outros, desenvolveram repertórios específicos da Capela Real e da Patriarcal de Lisboa, caracteriza-dos pelo recurso a uma instrumenta-ção com partes obbliggate ou concer-tantes para dois violoncelos e dois fagotes (que se emancipavam assim da função de baixo contínuo) com o apoio do contrabaixo e do órgão. Este mode-lo viria a transitar para a Capela Real do Rio de Janeiro a partir de 1807.

Outras categorias contemplavam a preferência pela sonoridade sombria das violetas nas composições destina-das à Semana Santa da autoria de José Joaquim dos Santos e a chamada música “para rabecões31 e instrumentos de vento” (sem violinos nem violetas), usada em exemplos do Te Deum “de corte” como o que David Perez escreveu para a aclamação de D. Maria I e em Missas ligadas à represen-tação sonora do poder real interpretadas por ocasião do nascimento dos Infantes. Nos serviços litúrgicos quotidia-nos da Capela Real e Patriarcal, o coro e os solistas eram porém apenas acompanhados pelo órgão ou por um conjun-to de baixo contínuo. A orquestra completa era usada a título excepcional nas grandes efemérides da monarquia, em festas especiais do calendário litúrgico ou em cerimó-nias como o Te Deum de acção de graças do Dia de São Sil-vestre, neste caso em composições para duplo coro e dupla orquestra. Num contexto onde o catolicismo enformava ainda a vida quotidiana e a sociabilidade continuava a revestir-se de padrões eclesiásticos, o calendário litúrgico oferecia nume-rosas ocasiões de exibição do fausto monárquico, reforçan-do assim a dimensão sacral do Estado Absoluto. Até ao final do Antigo Regime, a corte portuguesa continuou a investir no carácter espectacular do ritual sacro como prin-cipal estratégia de representação simbólica do poder atra-vés do bloco formado pela Capela Real e pela Patriarcal. A música e os músicos eram pilares essenciais de uma gigan-tesca máquina cerimonial que foi sendo reforçada ao longo da segunda metade do século XVIII. Ao contrário do número de dignidades eclesiásticas, drasticamente reduzido depois do reinado de D. João V, os quadros da Patriarcal chegaram a contemplar perto de uma centena de músicos efectivos, cujos ordenados absorviam entre 20 a 25 por cento das mesadas pagas por esta instituição. Este foi o núcleo principal de uma complexa rede de produção e difu-são de música sacra e o principal circuito de circulação de músicos profissionais (portugueses e italianos) e de repertó-

Novum Directorium Chori, 1791  Novum Manuale Chori, 1793 

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rio. Funcionava ainda como pólo de formação através do Seminário da Patriarcal, a principal escola de música antes da fundação do conservatório em 1835. Os numerosos com-positores ao serviço destas estruturas criaram um corpus de várias centenas de obras tendo em vista as necessidades da

7. Pela Bula Apostolatus ministério (1 de Março de 1710) o Papa Clemen-te XI erigiu a Capela Real em Colegiada de S. Tomé e pela bula áurea In Supremo Apostolatus solio (7 de Novembro de 1716) foi elevada a Igreja Metropolitana e Patriarcal, com a invocação de Nossa Senhora da Assumpção. Nesta ocasião dividiu-se a metrópole de Lisboa em duas dioceses, ficando a Oriente a chamada Arquiepiscopal Oriental (actual Sé), que continuou a pertencer ao antigo arcebispo metropoli-ta, e a Ocidente o Patriarcado, sob jurisdição do Patriarca. D. Tomás de Almeida foi nomeado Patriarca, vindo a obter em 1737 a dignida-de cardinalícia. A partir de 13 de Dezembro de 1740, pela Bula Salva-toris nostri Mater do Papa Bento XIV, a diocese de Lisboa Oriental foi incorporada no Patriarcado. Extinguia-se assim a antiga Sé Oriental, que passou a ser designada Basílica de Santa Maria. Para uma descri-ção mais detalhada do processo ver FERNANDES, 2010: 3-4.

8. Segundo CASTRO, 1763: 185-192, depois da união das duas dioce-ses, em 1740, o colégio Patriarcal ficou constituído por 24 Principais; 72 Monsenhores (divididos em várias hierarquias: Presbíteros, Pro-tonotários, Subdiáconos e Acólitos); 20 Cónegos; 12 Beneficiados (da primeira criação); 32 Beneficiados (da segunda criação); 32 Clérigos Beneficiados, e outros Ministros. Os Principais de hábito cardinalício trajavam de violeta e escarlate, à maneira do camareiro papal, e os Monsenhores de hábito prelatício envergavam vestes roxas, tendo direito à mitra.

9. Joseph CARRÈRE - Voyage en Portugal et particulièrement à Lisbone. Paris: Deterville, 1798, p. 290.

10. António Filipe PIMENTEL - Arquitectura e Poder: O Real Edifício de Mafra. Lisboa: Livros Horizonte, 2002, p. 100. Sobre a Patriarcal e o projecto ideológico de D. João V associado à esta instituição veja-se também do mesmo autor: D. João V e a festa devota: do espectáculo da política à política do espectáculo. Arte Efémera em Portugal (Catálogo da Exposição). Lisboa: Fundação Gulbenkian 2000, p. 151-166; e D. Tomás de Almeida (1716-1754). In Carlos A. Moreira AZEVEDO; Sandra Costa SALDANHA; António Pedro Boto de OLIVEIRA (coord. de) - Os Patriarcas de Lisboa. Lisboa: Alethêia Editores, 2009, p. 7-22.

11. Rui Vieira NERY - Espaço Profano e Espaço Sagrado na Música Luso-Brasileira do Século XVIII. Revista Música. São Paulo, V. 11 (2006), p. 16. O uso das potencialidades teatrais do ritual sacro como estratégia de representação simbólica do poder régio é também tratado pelo mesmo autor em: O Teatro Eclesiástico: A Liturgia Musical Bar-roca como Espectáculo. O Barroco e o Mundo Ibero-Atlântico (ed. Maria da Graça VENTURA). Lisboa: Colibri, 1998, p. 103-116.

12. De Marie Thérèse MANDROUX-FRANÇA destacam-se os seguintes estudos: La Patriarcale du Roi Jean V de Portugal. Colóquio Artes 83 (1989), p. 34-43; A Patriarcal do rei D. João V de Portugal. O Triunfo do Barroco. Lisboa: Centro Cultural de Belém, 1993, p.39-53; La Patriarcale del Re Giovanni V di Portogallo. Giovanni V di Portogallo (1707-1750) e la cultura romana del suo tempo. Roma: Argos, 1995, p. 81-111. Ver também Margarida CALADO - Arte e Sociedade na época de D. João V [texto policopiado]. Lisboa: [s.n.], 1995. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (12 vols.); e Angela DELAFORCE - Giovanni V di Braganza e le relazioni artis-tiche e politiche del Portigallo con Roma. Giovanni V di Portogallo (1707-1750) e la cultura romana del suo tempo. Roma: Argos, 1995, p. 21-39.

13. Cristina FERNANDES – ‘Il dotto e rispettabile Don Giovanni

liturgia e do cerimonial áulico. Não obstante os avanços na pesquisa musicológica nos últimos anos e um crescente interesse dos intérpretes por estes repertórios, a maior par-te da música produzida na segunda metade do século XVIII no contexto da Patriarcal e das Capelas Reais aguarda ain-da edição moderna, estudo e interpretação.

1. Este artigo baseia-se na investigação realizada no âmbito da disserta-ção de doutoramento da presente autora - Cristina FERNANDES - O sistema produtivo da Música Sacra em Portugal no final do Antigo Regime: a Capela Real e a Patriarcal entre 1750 e 1807. [texto polico-piado] Évora: [s.n.], 2010. 2 Vols. Tese de doutoramento em Músi-ca e Musicologia apresentada à Universidade de Évora - e prossegui-da no projecto de pós-doutoramento intitulado Música na Capela Real e Patriarcal (1716-1834): modelos, repertórios e práticas performativas, em curso no Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos de Música e Dança (INET-MD), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com o apoio de uma bolsa da FCT. Uma versão preliminar do texto foi apresentada no III Ciclo de Conferências para o Estudo dos Bens Culturais da Igreja - Mecenas e Patronos: A Encomenda Artística e a Igreja em Portugal. Lisboa, Centro Cultural do Patriarcado, 28 a 30 de Maio de 2009.

2. Fr. Cláudio da CONCEIÇÃO - Gabinete Histórico X (1745-50). Lis-boa: Impressão Régia, 1823, p. 142.

3. João Baptista de CASTRO - Mappa de Portugal Antigo e Moderno. Lisboa: Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1763. 2ª edição, Tomo III, Parte V, p. 185.

4. Charles Fréderic de MERVEILLEUX - Memórias instrutivas sobre Portugal. O Portugal de D. João V visto por três forasteiros (ed. Castelo Branco CHAVES). Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983, p. 222.

5. Hughes-Félix RANQUE - Lettres sur le Portugal. Paris: Desenne, [ca. 1808 ?], Carta IV, p. 55-56: “L’archevêque de Lisbonne est patriarche de tout le royaume et la piété des rois de Portugal s’est plue à l’entourer detout l’éclat que comporte cette dignité éminente. Il a un collège composé à l’imitation de celui du chef de l’église, de principaux qui dans l’église sont vêtus comme les cardinaux; de prélats mitrés, qualifiés de monseigneurs; de chanoines avec le titre de seigneurie et de près de quatre-vingt bénéficiers, tous très-bien rentés. Une très-bonne chappelle de musiciens, parmi lesquels plusieurs Castrati italiens, est attachée à cette église.” Agradeço a Rui Vieira Nery a gentil cedência das citações relativas à música nos relatos dos viajantes estrangeiros, material que virá a incorporar uma obra (em preparação) dedicada à música e à dança na sociedade luso-brasileira do final do Antigo Regime (1750-1834).

6. Samuel BROUGHTON - Letters from Portugal, Spain & France. Londres: Longman, Hurst, Rees, Orme, & Brown, 1815, Carta IV (Belém, Dez. de 1812), p. 34-35 e 37: “The patriarchal church at Bellem is very magnificent, and the service is performed with all the strictness of religious ceremony. The Prince Regent formerly attended this church, which being considered generally as the chapel royal is mostly frequented by the people of the first fashion. Upon Christmas-eve it was lighted-up for the performance of grand mass, which lasted from about nine o'clock in the evening till two in the morning. The splendor of the church was greatly increased by the lights, and produced a very brilliant effect. But the impression made upon my feelings was too theatrical, and I was more often reminded of a spectacle in Covent Garden than of religious ceremony.” (…) “The music, which seldom ceased during the rites, was solemn and affecting. The orchestra is furnished with a very superior organ, which, together with a band of Italian singers, produced the finest chorusses I ever heard. The band contained at this time several first-rate vocal performers who executed beautiful duets, solos &c. one of them being reckoned the finest singer in Europe, and esteemed equal to Madame Catalani.”.

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Giorgi’, illustre maestro e compositore nel panorama musicale portoghese del Settecento. Rivista Italiana di Musicologia. Nº 47 (2012) p. 157-203.

14. Sobre a vida musical durante o reinado de D. João V veja-se Rui Vieira NERY - O Barroco Joanino. Sínteses da Cultura Portuguesa: História da Música. Lisboa: Comissariado para a Europália 91- Portu-gal/Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1991, p. 84-98; Gerhard DODERER; Cremilde Rosado FERNANDES - A Música na Socie-dade Joanina nos relatórios da Nunciatura Apostólica em Lisboa 1706-1750. Revista Portuguesa de Musicologia vol. 3 (1993) p. 69-81; e João Pedro d’ALVARENGA - Domenico Scarlatti in the 1720s: Portugal, Travelling and the Italianization of the Portuguese Musi-cal Scene. Domenico Scarlatti Adventures. Essays to Commemorate the 250th Anniversary of his Death (ed. Massimiliano Sala, W. Dean Sutcliffe). Bologna: Ut Orpheus Edizioni, 2008, p. 17-68.

15. Um panorama da ópera em Portugal no século XVIII e da políti-ca musical de D. José é traçado por Manuel Carlos de BRITO - Opera in Portugal in the Eighteenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

16. Description de Lisbonne Extraite du Journal de la Campagne des Vaisseaux du Roy en 1755, par le Chevalier des Courtils. Bulletin des Etudes Portugaises, Nouvelle Série, Tome XXVI. Lisboa: Institut Français au Portugal, 1965, p.145-164.

17. As sucessivas mudanças de instalações da Patriarcal e alguns aspec-tos da Capela Real na Ajuda são descritos, entre outras fontes, no Cód. 11103 da Biblioteca Nacional de Portugal; no Compêndio do Código da Santa Igreja Patriarcal de Manuel Teixeira de TORRES (Biblioteca da Ajuda, 51-II-72); ou no já referido Mappa de Portugal Antigo e Moderno de João Baptista de CASTRO. Já no século XX, Jordão de FREITAS fornece várias informações relevantes em A Capela Real e a Igreja Patriarcal na Ajuda. Lisboa, 1909. Separata do Boletim da Real Associação de Architetos Civis e Archeologos Portuguezes.

18. Estatutos da Santa Bazilica Patriarcal de Lisboa. Lisboa: na Oficina de António Rodrigues Galhardo, 1781; Estatutos dos Padres Cape-lães Cantores da Santa Basílica Patriarcal de Lisboa. Lisboa: na Officina Patriarcal, 1788.

19. Constituições pª governo do Coro dos Muzicos da Cappella Real e Patriar-chal já approvadas, e autorizadas do Fedelissimo Rey o Sr. D. José I e confirmadas também da sempre Augusta Nossa Fedelissima Soberana Reinante a Sra. D. Maria I. Biblioteca da Ajuda, 54-XI-37 Nº 195.

20. Em relação às despesas com os músicos (cantores italianos e portu-gueses, organistas, mestres do Seminário da Patriarcal) e com os dignitários eclesiásticos destaca-se a colecção de Livros de Mesadas do fundo da Patriarcal de Lisboa, depositado na Torre do Tombo. A série inicia-se em 1769, data em que as rendas e despesas foram cen-tralizardas a partir do Erário Régio. Os novos procedimentos são descritos nas Letras do Eminentissimo Senhor Cardeal Patriarcha de Lisboa Nas quais com conselho, e consentimento Regio estabelece o regimen-to, que para a arrecadação, e distribuição das rendas da mesma Santa Igreja (Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Ministério do Reino, Livro 101, p. 121-215).

21. Uma das fontes mais importantes para conhecer a estrutura musical da Patriarcal foi redigida em 1788 pelo tenor bolonhês D. Gasparo Mariani: Osservazioni Correlative alla Reale, e Patriarcal Cappella di Lisbona (1788), Biblioteca da Ajuda, 54-XI-37, nº 192. Entre os orga-neiros encontram-se figuras tão importantes como António Xavier Machado e Cerveira (organeiro da Casa Real a partir de 1792) e Joaquim António Peres Fontanes, identificado nalguns documentos como “organeiro da Capela Real da Ajuda”.

22. Castro, 1763: 189-192. Uma outra lista de despesas bastante seme-lhante, datada de 1747, pode encontrar-se na Biblioteca Nacional de Portugal - Colecção Pombalina, Pba 141, f. 195.

23. O Compendio do Código da Santa Igreja Patriarcal (Biblioteca da Aju-da, 51-II-72), de Manuel Jozé Teixeira TORRES, dá conta de um total de 94 cantores, 12 organistas e 67 capelães cantores em 1797, discriminando ainda os restantes cargos da Patriarcal (nesta época a funcionar na Capela Real da Ajuda). Os Livros de Mesadas dão valo-res ligeiramente inferiores se contabilizarmos apenas os cantores efectivos, mas se o cálculo incluir também os aposentados então a soma atinge em vários anos mais de 90 cantores.

24. Para uma abordagem mais aprofundada acerca dos cantores italianos ao serviço da Patriarcal e da Capela Real ver Cristina FERNANDES - La fortuna del Coro dos Italianos della Cappella Reale e della Patriar-cale di Lisbona nel secondo Settecento. Rivista Italiana di Musicologia. Vol. XLII, Nº 2 (2007) p. 235-268.

25. A distinção entre Mestre de Capela e Compositor da Real Câmara ou da Patriarcal remonta à contratação de Domenico Scarlatti por D. João V em 1719. O Padre Francisco de Carvalho manteve o posto de Mestre de Capela enquanto Scarlatti era Compositor e Mestre de Música da Família Real. Este cargo foi sucessivamente ocupado por David Perez, João de Sousa Carvalho, Giuseppe Totti e Marcos Portugal no Brasil. O posto de Mestre de Capela da Patriarcal foi exercido durante 16 anos pelo contralto Carlos Gianetti, que esteve em Portugal entre 1719 e 1755; pelo cantor e presbítero napolitano Joseph de Porcaris (1707-1772); pelo tenor romano Carlos Baldi (fl. 1779); pelo baixo Gregório da Silva Henriques e pelo tenor Joaquim de Oliveira (n. 1749), mencionado num documento de 1806 nessa qualidade. Mais detalhes em FERNANDES, 2010: 205-217.

26. Os Estatutos da Patriarcal não mencionam claramente as funções do Mestre de Capela mas um Aviso do Patriarca datado de 1780 (ANTT - Patriarcal, Igreja e Fábrica, Avisos, Cx. 59) relativo a Gregório da Silva Henriques, que acumulava os cargos de 1º Regente, Mestre de Capela e Arquivista, é bastante explícito: (…) “he Sua Majestade servida mandar lhe acrescentar mais quarenta mil reis por anno, que principiou a vencer em dous do mes de Julho próximo pretérito; com a obrigação porem de compor as Solfas de Cantochão dos Officios, que de novo se lhe mandar; e ordenar todos os Livros de Cantoria, que forem precisos para qualquer função da Capella ou da Bazilica; mandando também compôr a Muzica de Canto de Órgão, ou Canto de Estante, as Missas, os Motetes, ou Himnos aos Mestres do Seminário, que recebem ordenado com obrigação de Compositores.”.

27. A remuneração adicional pela composição era relativamente pequena em comparação com os salários dos cantores mais credenciados (que chegavam a atingir os 60$000 por mês) mas é provável que as obras de grande envergadura fossem pagas à parte. Na segunda metade do século XVIII, o salário dos Organistas com funções de compositores era de 16$666 réis mensais enquanto os que eram apenas intérpretes ganhavam 12$500. Os vencimentos dos Mestres do Seminário osci-lavam entre os 30$000 e os 40$000 nos finais da década de 1780, ascendendo nalguns casos aos 50$000 a partir dos anos 90.

28. Na mesma data viajaram ainda para Nápoles, com a finalidade de estudar no Conservatório de San Onofrio a Capuana, os cantores Joaquim de Santa Anna e José de Almeida. ANTT - Ministério dos Negócios Estrangeiros – Passaportes, séc. XVIII, Lv. 362.

29. Sobre João de Sousa Vasconcelos ver Cristina FERNANDES - Devoção e Teatralidade. As Vésperas de João de Sousa Vasconce-los e a Prática Litúrgico-Musical no Portugal Pombalino. Lisboa: Colibri/FCSH-UNL, 2005.

30. William BECKFORD - Italy, with sketches of Spain and Portugal, 1787-1788. Londres: Rupert Hart-Davis, 1954 (Carta XIII, 13 de Junho de 1787) p. 60-61.

31. Designação para violoncelo ou contrabaixo (na época “rabecão pequeno” e “rabecão grande”).

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