ORGANIZACIONAL - Declatra

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ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL AS VÍTIMAS DOS MÉTODOS DE GESTÃO NOS BANCOS VOLUME II

Transcript of ORGANIZACIONAL - Declatra

Assédio morAl orgAnizAcionAl

as vítimas dos métodos de gestão nos bancosvolume ii

Copyright© Projeto Editorial Praxis, 2016

Coordenador do Projeto Editorial PraxisProf. Dr. Giovanni Alves

Conselho EditorialProf. Dr. Giovanni Alves (UNESP)Prof. Dr. Ricardo Antunes (UNICAMP)Prof. Dr. José Meneleu Neto (UECE)Prof. Dr. André Vizzaccaro-Amaral (UEL)Profa. Dra. Vera Navarro (USP)Prof. Dr. Edilson Graciolli (UFU)

1ª edição 2016 | Bauru, SP

Projeto Editorial Praxis

organizadoresJane Salvador de Bueno GizziRicardo Nunes de Mendonça

Gabriela Caramuru Teles

Assédio morAl orgAnizAcionAl

as vítimas dos métodos de gestão nos bancosvolume ii

Projeto Editorial PraxisFree Press is Underground Press

www.canal6editora.com.br

Impresso no Brasil/Printed in Brazil2016

Assédio moral organizacional: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos - Volume II / Jane Salvador de Bueno Gizzi, Ricardo Nunes de Mendonça e Gabriela Caramuru Teles (orgs). — Bauru: Canal 6, 2016.

236 p. ; 23 cm. (Projeto Editorial Praxis)

ISBN 978-85-7917-401-8 1. Organizações. 2. Instituições bancárias. 3. Condições de tra-

balho. 4. Assédio moral. I. Gizzi, Jane Salvador de Bueno. II. Men-donça, Ricardo Nunes de III. Caramuru Teles, Gabriela. IV. Título.

CDU 34:331.101

A8444

Ilustração da capa“Composition V” – Wassily Kandinsky (1911) Neue Galerie, Coleção privada de Ronald Lauder

“Até certo ponto, o desgaste maior da força de trabalho, inseparável do prolongamento da jornada de trabalho, pode ser compensado com uma remuneração maior. Além desse ponto,

porém, o desgaste aumenta em progressão geométrica, ao mesmo tempo que se destroem todas as condições normais de

reprodução e atuação da força de trabalho. O preço da força de trabalho e o grau de sua exploração deixam de ser grandezas

reciprocamente comensuráveis.”

(Karl Marx)

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Sumário

■■ APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9Elias Hennemann Jordão

■■ PROJETO MÉTODOS DE GESTÃO E ADOECIMENTO DE TRABALHADORES – CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA . . . . . . . . 13Gabriela Caramuru TelesGuilherme Cavicchioli UchimuraJúlio GnapPaula Talita Cozero

■■ ASSÉDIO E INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA: BREVES CONSIDERAÇÕES . . . 61Guilherme Guimarães Feliciano

■■ DEPENDÊNCIA E SUPEREXPLORAÇÃO NO TRABALHO BANCÁRIO BRASILEIRO: UMA APROXIMAÇÃO EMPÍRICA . . . . . . . . . . . . . . 113Gabriela Caramuru TelesGuilherme Cavicchioli UchimuraRicardo Nunes de Mendonça

■■ PRESENTEÍSMO: SUAS CAUSAS, fORMAS E CONSEqUÊNCIAS NO MUNDO DO TRABALHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127Margarida BarretoRoberto HeloaniLuiz Salvador

■■ O MAL-ESTAR E A SOCIEDADE DE GESTÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147Jane Salvador de Bueno Gizzi

■■ ASSÉDIO MORAL E MEIO AMBIENTE DE TRABALHO: PERCEPÇÕES DA JUSTIÇA DO TRABALHO SOBRE A ORGANIzAÇÃO DO TRABALHO BANCÁRIO COMO VETOR DE POLUIÇÃO AMBIENTAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157João Gabriel Pimentel LopesDenise Arantes Santos Vasconcelos

■■ PESqUISA ESTATÍSTICA: ORIGENS E SUA ADMISSIBILIDADE EM PROCESSOS JUDICIAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171Julio Gnap

■■ SOBRE ASSÉDIO E A PROfISSÃO BANCARIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183Laerte Idal Sznelwar

■■ DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO AO DIREITO fUNDAMENTAL AO CONTEÚDO DO PRÓPRIO TRABALHO E AO MEIO AMBIENTE ORGANIzACIONAL SAUDÁVEL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191Leonardo Vieira Wandelli

■■ NOTAS SOBRE O ASSÉDIO ORGANIzACIONAL E SEUS EfEITOS DELETÉRIOS PELO OLHAR DA “CLÍNICA” DO TRABALHO . . . . . . . . . . . . . . . 219Milca Micheli Cerqueira Leite

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APrESENTAÇÃo

Elias Hennemann Jordão1

Os humanos perdem a saúde para ganhar o salário, depois perdem o salário para recuperar a saúde.... Esta tem sido a máxima de vida das civilizações con-temporâneas. Depois de décadas em busca de uma aposentadoria ou uma velhice tranquila, de uma boa casa, de um bom carro e uma vida confortável, nos dedi-camos de tal forma ao trabalho que esquecemos que nosso corpo é uma máquina maravilhosa e precisa de atenção e cuidados. Muitos dos males que nos advém são imperceptíveis e só se manifestam com o passar dos anos, ou tardiamente.

O sistema produtivo que nossos corpos se inserem, na ânsia do lucro cada vez mais estratosférico, muda sistematicamente sua metodologia de produção e torna os trabalhadores reféns ou pressionados, ora para manter sua renda ora para con-quistar mais consumo. Nas três últimas décadas, a modalidade de remuneração que até então passava normalmente por salários fixos passou para um percentual maior em remuneração variável, de modo a vincular a remuneração à produti-vidade, que também está atrelada à manutenção do emprego. Esta combinação danosa traz consequências negativas e irreversíveis na vida dos trabalhadores. A intensidade do trabalho e a incerteza da remuneração adoecem cotidianamente os bancários, deixando para sociedade um número altíssimo de incapacitados tanto para a vida laboral quanto para a vida familiar e social. Os restos da exploração do

1 Presidente do Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região.

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trabalho pouco importam às empresas e ao capital, pois a taxa de lucro dos bancos é o que determina as ações de gestão da empresa, independente das consequências nas vidas dos bancários atingidos.

É comum o trabalhador começar sua carreira em um banco estando total-mente sadio e encerrar sua carreira ou se aposentar por motivos de saúde, já em condições físicas e emocionais precárias. Se por um lado sabemos que este mal atinge a todos, é em nossa rotina que percebemos o quanto os bancários são afe-tados e adoecidos. Se há algumas décadas o adoecimento dos bancários era um adoecimento físico hoje a categoria é atingida tanto em seu físico como a parte psíquica, com total nexo causal com a profissão.

Nossa atuação enquanto representantes dos trabalhadores têm sido contun-dente tanto na prevenção, como na comprovação, caracterização e responsabiliza-ção do adoecimento decorrente do trabalho; desde há muito temos nos aprofun-dado e investido na temática para um enfrentamento qualificado do problema.

Igualmente importante como a luta por uma remuneração digna e justa, está o esforço do sindicato na garantia de melhores condições de trabalho com foco na saúde do trabalhador. Para isso não temos medido esforços em atuarmos em todas as frentes possíveis, seja em mesa de negociação geral, em mesas temáticas, em estudos e pesquisas, na busca de parcerias para enfrentamento do problema e na área jurídica. O Projeto Vítimas do Itaú, organizado pelo Sindicato dos Ban-cários de Curitiba e Região junto ao Instituto Defesa da Classe Trabalhadora é um esforço de pesquisa empírica e campanha de prevenção no enfrentamento aos adoecimentos decorrentes dos métodos de gestão assediosos. O enfrentamento é desproporcional, contra um sistema que domina e impõe regras, mas não de-sistimos e a cada pequena vitória é uma injeção de ânimo para continuarmos defendendo a vida.

Muito ainda há que ser feito, e a principal tarefa é criar nos trabalhadores a consciência de classe para que compreendamos que a disputa fraticida no dia a dia somente trará benefícios aos patrões. A tentativa de captura da subjetividade dos trabalhadores e a suposta justa retribuição é um engodo do capitalismo, que ao final sempre descarta estes mesmos trabalhadores quando já estão adoecidos e não produzem o mesmo. Ainda é muito comum os trabalhadores pensarem que são imprescindíveis para a empresa, vez que fizeram o jogo proposto pelos bancos e por isso seriam insubstituíveis. A ficha só cai quando o bancário é descartado pelo banco e tudo se torna um enorme pesadelo, pela carência de renda e, muitas

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APRESENTAÇÃO

vezes, a falta de saúde. Para o banco somos apenas números em um cadastro geral de trabalhadores.

Ter saúde, não precisar tomar remédios, poder pegar os filhos e netos no colo, estar bem para viajar, conseguir se alimentar bem, estar feliz e próximo de quem amamos, ter o movimento dos membros (braços e pernas) garantido, ter a cabeça funcionando bem e coração pronto para a luta é o mínimo de dignidade exigi-da por aqueles que produzem diariamente a riqueza apropriada pelos donos dos bancos.

O presente livro é um esforço para somarmos contribuições de pesquisadores, professores, advogados e médicos no combate ao adoecimento no trabalho bancá-rio e aos métodos de gestão praticados pelos bancos.

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ProJETo mÉToDoS DE GESTÃo E ADoECimENTo DE TrABALHADorES

CADErNo 2: o CASo Do iTAÚ Em CuriTiBA

Gabriela Caramuru Teles1

Guilherme Cavicchioli Uchimura2

Júlio Gnap3

Paula Talita Cozero4

AtuAção sindicAl

A Secretaria de Saúde e Condições de Trabalho e a Secretaria de Assuntos Ju-rídicos Coletivos e Individuais do Sindicato dos Bancários e Financiários de Curi-tiba e Região - SEEB têm desenvolvido amplo trabalho acolhendo os bancários e bancárias adoecidos. A prevenção e cuidado com a base do sindicato, formada por aproximadamente 18.400 bancários, com 8 mil sindicalizados (60% estão em bancos privados e 40% em bancos públicos) é a justificativa da existência das se-cretarias nesse sindicato.

1 Pesquisadora jurídica. Advogada. Mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná e mestranda em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná

2 Pesquisador jurídico. Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina.3 Estatístico. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná.4 Pesquisadora jurídica. Advogada. Mestra em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade

Federal do Paraná. Professora de Direito do Trabalho no Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil.

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A atuação das secretarias se materializa em diversas atividades, como a for-mação e prevenção dos trabalhadores, a orientação em ações individuais e coleti-vas, e, sobretudo, o atendimento ao bancário adoecido. A prática proposta pelas secretarias, além do acolhimento diário aos trabalhadores, é a ação sindical de enfrentamento as práticas de gestão que adoecem.

A partir de 2006, foi adotado o preenchimento de uma ficha no ato da homolo-gação, pelo próprio trabalhador desligado do banco, abrangendo informações sobre sua saúde. Esse é um dos principais meios para conhecermos e denunciarmos a rea-lidade dos adoecimentos ligados ao trabalho, possibilitando ações sindicais voltadas às demandas desses trabalhadores. Apresentamos ao final deste texto uma imagem deste instrumento, denominado Ficha de Informação para Homologação.

Pela proximidade com os bancários adoecidos e pelo reconhecimento da re-alidade precária do trabalho em bancos, o SEEB foi proativo na proposição e sus-tento da pesquisa em questão.

As secretarias do sindicato denunciam diariamente os métodos de gestão as-sediosos no âmbito do trabalho bancário, indicando que a organização do tra-balho se encontra intrinsecamente ligada ao adoecimento dos trabalhadores. Na atuação sindical das secretarias, é inegável a percepção de que os métodos de ges-tão assediosos, na busca por mais lucro e produtividade, são parte de uma política de gestão cuja consequência é o sofrimento e o adoecimento dos trabalhadores.

Longas jornadas de trabalho, controle do uso do banheiro, intensificação do trabalho, precariedade na relação com os superiores e colegas de trabalho, metas abusivas, desrespeito com os trabalhadores, práticas antisindicais e ameaças de demissão são exemplos do cotidiano do trabalho bancário, observado e combati-do pelo Sindicato dos Bancários e Financiários de Curitiba e Região.

O sindicato optou por desenvolver nessa pesquisa, realizada junto com seus parceiros, um trabalho científico capaz de comprovar a ilicitude das práticas de gestão abusivas, voltado a capacitar os trabalhadores e as direções sindicais na transformação da realidade dentro do ambiente de trabalho.

Para o sindicato, o assédio moral sofrido pelos bancários deve ser compreendi-do como parte de uma estrutura de organização dos bancos, direcionada a maior lu-cratividade possível. A busca cega por altos rendimentos determina um ambiente de trabalho perverso, o qual leva parte significativa dos trabalhadores ao adoecimento.

Os resultados da pesquisa apresentados neste caderno reafirmam a necessi-dade da luta radical para enfrentar o assédio moral organizacional. A Secretaria

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

de Saúde e Condições de Trabalho e a Secretaria de Assuntos Jurídicos Coletivos e Individuais veem neste projeto mais um elemento de luta direcionado a frear a superexploração do trabalho bancário.

Ana Maria Fideli Marques Secretária de Saúde e Condições de Trabalho

Karla Cristine Huning Secretaria de Assuntos Jurídicos Coletivos e Individuais

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

introdução à ExPosição dos rEsultAdos

Os direitos sociais e a qualidade de vida dos trabalhadores estão intrinse-camente relacionados às conquistas acumuladas e às permanentes lutas durante muitos anos na história do capitalismo.

Inegável é o conhecimento dos bancários e das bancárias sobre seu próprio local de trabalho. Afinal, ninguém precisa explicar a esses trabalhadores os des-prazeres da jornada de trabalho. Ainda assim, para além do conhecimento prático acumulado pela categoria, o presente trabalho se justifica diante da escassa e difi-cultosa produção de pesquisas científicas direcionadas à superação dos males do trabalho explorado.

Ocorre que as pesquisas sobre adoecimento laboral e condições de trabalho – em especial as empíricas – são tímidas no âmbito acadêmico, espaço no qual a disputa ideológica de “qual conhecimento será produzido” também dá o ar da graça: é esse mais um espaço de luta de classes.

Mais escassas ainda são as pesquisas autônomas, ou seja, pesquisas realizadas no seio da classe trabalhadora e, consequentemente, direcionadas às disputas en-tre capital e trabalho. De fato, no Brasil ainda são raras as pesquisas realizadas por inciativa dos sindicatos de base, seja com vistas a formar os dirigentes sindicais, informar a sociedade sobre a realidade laboral ou fortalecer os argumentos nas negociações coletivas.

Na contramão da produção científica hegemônica, partimos da premissa de que é fundamental à classe trabalhadora desenvolver processos autônomos de avaliação do trabalho e das condições de vida dos trabalhadores durante a jorna-da de trabalho.

Fruto da parceria entre o Sindicato dos Bancários e Financiários de Curitiba e Região – SEEB e o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora – IDECLATRA, a presente pesquisa integra o projeto MÉTODOS DE GESTÃO E ADOECIMEN-TO DE TRABALHADORES, cujo principal objetivo é produzir e investigar um complexo sistema de dados envolvendo o adoecimento no trabalho bancário, os métodos assediosos para extração de mais-valor e a relação entre ambos.

Entre 2014 e 2015, concluímos a primeira etapa deste projeto, na qual fo-ram investigados o adoecimento e o sofrimento psíquico dos trabalhadores na realidade do HSBC BANK BRASIL S/A em Curitiba/PR. Como desdobramento dessa primeira pesquisa, podemos destacar a publicação do livro Assédio Moral

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Organizacional: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos5 e a disseminação do Movimento Vítimas do HSBC6, aos quais remetemos os leitores que ainda não conhecem o trabalho realizado.

Ainda em 2015, iniciamos uma segunda etapa do projeto, dessa vez delimi-tando a investigação ao âmbito do grupo ITAÚ UNIBANCO S/A em Curitiba. Nosso objetivo é seguir testando e verificando a hipótese de que o atual modelo de organização do trabalho nos bancos favorece o adoecimento dos trabalhadores bancários.

A pesquisa empírica se realizou em duas etapas de análise distintas: a primei-ra se refere à situação de saúde dos trabalhadores desligados do ITáU entre 2006 e 2014; a segunda se refere aos processos trabalhistas movidos em face do Itaú entre 2011 e 2015.

A pesquisa revela sua importância nos próprios dados apresentados na se-quência deste caderno, que são ainda mais graves do que o esperado. Entre os trabalhadores desligados de 2006 a 2014, no Banco ITAÚ, em Curitiba, 42,2% re-feriram problemas de saúde, ou seja, quase a metade dos empregados. No caso de trabalhadores em agência operacional esse número chega a 49,3%.

A pesquisa demonstra também que os problemas de gênero presentes na so-ciedade se verificam estatisticamente na organização do trabalho bancário. As trabalhadoras desligadas referiram problemas de saúde no momento da homolo-gação em uma proporção maior do que os homens – 46,4 e 37,4% respectivamente –, demonstrando que as mulheres são as mais atingidas pelas doenças do trabalho no âmbito pesquisado.

Na análise dos processos judiciais, verificou-se que 42,1% das ações ajuizadas em face do ITAÚ apresentavam pedidos de indenização por dano moral baseadas em métodos de gestão assediosos. Longas jornadas de trabalho foram reclama-das por 65,1% dos bancários, seguidas por 47,4% de reclamações quando a metas abusivas, 46,1% quanto a precariedade nas relações com superiores e colegas de trabalho e 40,6% quanto à falta de pausas no trabalho.

5 ALLAN, Nasser Ahmad; GIZZI, Jane Salvador Bueno; COZERO, Paula Talita. Assédio moral orga-nizacional: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos. Bauru: Canal 6, 2015.

6 Para saber mais, consultar as páginas <vitimasdohsbc.com.br> e <www.facebook.com/vitimasdo-hsbc>.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

A precarização do trabalho bancário se confirma pela proporção encontrada de trabalhadores adoecidos pelo trabalho. As doenças mentais/psíquicas são re-latadas por 25,8% dos bancários com pedido de danos morais, sendo que 12,9% alegam depressão.

É interessante notar que as doenças osteomusculares (casos de LER/DORT) seguem existindo em níveis alarmantes, com reclamação em 12,5% das ações ajui-zadas pelos bancários. Nota-se, portanto, que não houve a substituição de um pro-blema pelo outro: agora os dois se somam, em um cenário no qual os problemas de saúde mental disparam o adoecimento dos trabalhadores bancários.

Esses são apenas alguns dos dados que estão divulgados no conteúdo deste caderno, o qual se divide em três partes além desta introdução. Primeiramente, serão expostos os dados obtidos da análise das homologações dos trabalhadores do ITAÚ desligados no período de 2006 a 2014. Na segunda seção, apresentamos o relatório referente à análise dos processos judiciais movidos em face do ITAÚ entre 2011 e 2015. Por último, apresentamos em breves comentários quais são os próximos passos do projeto MÉTODOS DE GESTãO E ADOECIMENTO DE TRABALHADORES.

Instituto Declatra.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

rElAtório i – situAção dE sAúdE dos trAbAlhAdorEs dEsligAdos do itAú (2006-2014)

Aspectos metodológicos

Assim como na pesquisa voltada ao HSBC, foram definidos alguns critérios metodológicos com o objetivo de produzir estatísticas mais consistentes e mais informativas acerca das condições de trabalho a que estão submetidos os traba-lhadores do Banco ITAÚ.

O trabalho de pesquisa se iniciou identificando as homologações que trazem o registro de problemas de saúde referidos pelo trabalhador desligado. Essa inves-tigação foi possível graças à implementação pelo SEEB de um formulário sobre condições de saúde, o qual é autopreenchido, no próprio sindicato, pelos trabalha-dores desligados no momento da homologação da rescisão contratual.

Em seguida, todas as homologações foram digitadas e armazenadas em banco de dados, sendo que, no caso das homologações em que o trabalhador não referiu problema de saúde, foram digitados apenas o ano da demissão, tipo da demissão, sexo, idade, sindicalização, tempo de banco, local de trabalho e cargo quando do desligamento.

Também nesta pesquisa foram definidos locais de trabalho e cargos ou fun-ções para classificação dos desligados. Em conjunto com o SEEB, foram definidos três locais de trabalho como indicadores: Departamentos, Agência área Opera-cional e Agência área Comercial. Como funções, foram definidas: Caixa, Geren-te, Técnico/Operador, Assistente, Analista, Assessor, Agente/ Atendente, Superin-tendente, Coordenador/Supervisor e Outros.

Devido à grande diversidade observada na nomenclatura de cargos, também com a participação do SEEB foram definidos grupos de funções e os cargos que corresponderiam a cada grupo, além de relacionar esses cargos aos específicos locais de trabalho. Casos especiais foram reportados ao SEEB que então definia a classificação. No caso dos Gerentes, realizou-se uma sub-classificação para discri-minar Gerentes Operacionais, Gerentes de Departamento, Gerentes de Agência e Gerentes de Contas.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

No quadro abaixo, apresenta-se de modo esquematizado como, ao final, fo-ram compostos os grupos com os cargos que apareceram com maior frequência.

CLASSIFICAÇãO DOS DESLIGADOS SEGUNDO GRUPOS DE CARGOS E DE LOCAIS1 - Departamento:Superintendente / Gerente RegionalGerente (de Serviços Gerais, de CPSA, Jurídico, etc.)Analista (de Processamento de Serviços, de Relacionamento, Administrativo, de Suporte, Po-der Público, Comex, de Sistemas, etc.)Técnicos / Operadores de serviçoOutros (Profissionais, Jurídicos (Representante Legal, Coordenador Suporte Jurídico), Consul-tores, Suporte Funcional, Operador de Negócios, Auditor, Inspetor, Programador, etc.

2 - Operacional (agência):Gerente (Operacional)CaixaCoordenador/Supervisor, (Coordenador, Tesoureiro, Supervisor (Processamento Agências, Operacional), Chefe Serviço Bancário, CSB, Chefe Serviço Operacional, Coneg, etc.)Assessor

3 - Comercial (agência):Gerente (de Agência) (Gerente Geral, Gerente Geral de Agência, Gerente, Gerente Geral de Contas, Plataforma).Gerente (de Contas) (Gerente de Relacionamento, Gerente Uniclass, Gerente Empresas, Gerente PF e PJ, Gerente de Negócios, Gerente Comercial, etc.)Assistente (de Gerente, Comercial, Assistente Prod. PF, etc.)Agente / Atendente (Comercial, de Negócios, Orientador Caixa Eletrônico, Autoatendimento)

LOCAIS: Departamento: SDIS, CPSA, ACC, USD-GSO, GORT, DEJUD, Unidade de Segurança, Poder Público, Sustentabilidade, Representante LegalAgência: Plataforma, PAB, Private, Corporate, Leasing, Câmbio, Middle, Superintendência, Consultoria AgênciasITAU BBA

Considerações iniciais

Com base nas Fichas de Informação para Homologação arquivados no SEEB, relativas ao período 2006-2014, foram analisados e computados 1.197 casos de demissões do banco ITAÚ. Em 505 destas homologações havia referência a pro-

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blemas de saúde, o que corresponde a 42,2% dos trabalhadores desligados neste período. Se se considerar esse grupo de 1197 trabalhadores como representativo do universo de trabalhadores do ITAÚ de Curitiba e Região Metropolitana, pode--se estimar, com 95% de confiança, que, nesses 9 anos, entre 39,4% e 45% dos funcionários do ITAÚ de Curitiba e região apresentavam histórico de problemas de saúde.

Resultados estatísticos

Na sequência, são apresentados quadros e tabelas pelos quais se expõem as es-tatísticas produzidas, seguidos por breves comentários dos aspectos considerados mais importantes.

Os anos de 2011 e 2012 concentram o maior número de desligamentos no período (37,8%). O maior percentual de trabalhadores desligados referindo pro-blemas de saúde ocorreu em 2006 (50,8%).

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Os maiores percentuais de referência a problemas de saúde verificam-se, por categoria: i) na área operacional; ii) entre caixas; iii) entre as mulheres e iv) entre os trabalhadores com mais de 10 anos de banco.

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Entre os gerentes de contas verifica-se um menor percentual de referência a problemas de saúde em comparação com os demais gerentes. A diferença obser-vada resulta significativa a um nível de 99% de confiança.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Dos 505 desligados que referiram algum problema de saúde, a maioria citou o estresse (240 ou 47,5%), vindo a seguir a citação de problemas no ombro (40%). Considerando o total de desligados no período 2006-2014, problemas de estresse corresponderiam a 20,1%. Se se considerar esse conjunto de trabalhadores como representativo do universo de trabalhadores do ITAÚ, de Curitiba e Região, pode--se dizer, com 95% de confiança, que entre 17,8% e 22,4% desse universo estariam sentindo este problema de saúde.

Entre os 505 desligados no período 2006-2014 que referiram pelo menos um problema de saúde, são significativa maioria as mulheres e os sindicalizados. Com relação à natureza das demissões, a grande maioria é de demissões sem justa causa (72,1%). Enquanto 15% foram a pedido do trabalhador.

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A maioria dos que referiram problemas de saúde (59,4%) trabalhava há mais de 10 anos no banco.

Afastamento do trabalho por problemas de saúde foram relatados por 37% dos que relataram problemas de saúde. Considerando o total de desligados no pe-ríodo (1.197) os afastados por problemas de saúde correspondem a 15,6%. E, dos afastados, mais de um terço (33,7%) afirmou que não houve emissão de CAT. No entanto, dos que disseram não ter havido emissão de CAT, 88,9% tinham como comprovar esse afastamento.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Entre 2006 e 2014, 187 dos trabalhadores desligados que referiram proble-mas de saúde tiveram afastamento de trabalho (ver quadro 1.3-B). Dentre estes, as mulheres são a maioria (62,6%), o que corresponde a 18,5% do total de mulheres desligadas no período.

Quanto ao cargo dos que tiveram afastamento, a maior e mais significativa parcela é composta por gerentes. Porém, se se considerar o total de desligados, os analistas compõem a maior população (29,9%).

Com relação ao tempo de trabalho, a maioria dos que tiveram afastamento trabalhava há mais de 10 anos no ITAÚ (70,1% dos afastados e 22,2% do total de desligados com mais de 10 anos de banco).

Na questão do local de trabalho, a maioria dos que já se afastaram do trabalho é composta por trabalhadores da área comercial. Porém, se se considerar o total dos desligados por local de trabalho, o percentual maior é dos trabalhadores de departamento.

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Entre trabalhadores na função de caixa, foram mais citados problemas no ombro e o estresse. Já entre os gerentes e os assistentes são o estresse, a depressão e a insônia. Destaca-se aqui que a esmagadora maioria dos assistentes, eram” assis-tentes de gerente”, o que pode explicar a coincidência desses problemas relatados, reforçando a prevalência desses problemas na função de gerente e de assistente de gerente.

Técnicos/operadores e analistas citaram mais os problemas no ombro, que é também o principal problema entre coordenadores/supervisores etc.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Metade dos gerentes de departamento (50%, ou, 3 gerentes) citaram o proble-ma do estresse. No caso dos gerentes de operação, os principais problemas igual-mente são: estresse, insônia e problemas nos punhos. Gerentes de agência citaram o estresse e os ombros. Quanto aos gerentes de contas, que apresentam os menores percentuais de problemas de saúde, destaca-se novamente o estresse.

Nos departamentos e nas áreas operacionais, os problemas de saúde mais re-feridos são problemas/dores nos ombros (24,0% e 24,6%). Ao passo que nas áreas comerciais, o estresse é o problema mais referido com 21,2%.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

A definição dos grupos para classificação dos problemas de saúde referidos foi feita com a assesso-ria do médico do trabalho Doutor Elver Moronte.

No geral, problemas osteomusculares são os mais referidos (28,9%). E apa-recem com maior frequência nos departamentos e nas áreas operacionais. Sen-do que, nas áreas comerciais, são os problemas mentais/psíquicos os mais refe-ridos com 26,4%. Finalmente, as doenças crônicas têm um percentual maior nos departamentos.

Problemas osteomusculares são mais referidos entre caixas e analistas. Pro-

blemas mentais/psíquicos são mais referidos entre assistentes e assessores. As do-enças crônicas têm um percentual maior entre técnicos/operadores. Entre geren-tes, as doenças mais referidas pertencem ao grupo mental/psíquico.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Dos 505 desligados que referiram algum tipo de problema de saúde, 287 (56,8%) citaram depressão e/ou estresse (24,0% do total de desligados no período).

Entre as mulheres que referiram problemas de saúde, 59,5% citaram depres-são e/ou estresse (27,6% das mulheres desligadas no período).

Entre assessores e assistentes estão os maiores percentuais dos que citaram depressão e/ou estresse.

Analisando quanto ao tempo de banco, importante observar que a partir de “2 anos” os percentuais diminuem conforme aumenta o tempo de casa, o que pode ser indicativo de que os métodos de gestão abusivos são orientados com maior intensidade para os funcionários mais novos.

Do total dos que referiram depressão e/ou estresse, 22,6% apresentam his-tórico de afastamento por problemas de saúde (9,5% do total de desligados no período). Deve-se observar, contudo, que esses afastamentos podem ser devidos a outras causas.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

Dos 505 desligados que referiram algum problema de saúde, 245 (48,5%) cita-ram problemas nos ombros e/ou punhos (20,5% do total de desligados no período).

Entre as mulheres que referiram problemas de saúde, 50,3% citaram proble-mas nos ombros e/ou punhos (23,4% das mulheres desligadas no período).

Entre caixas, analistas, técnicos/operadores e assessores estão os maiores per-centuais dos que citaram ombros e/ou punhos.

Analisando quanto ao tempo de banco, observa-se que os percentuais aumen-tam conforme aumenta o tempo de casa .

Por local de trabalho, o que se destaca é o percentual significativamente me-nor na área comercial para os problemas nos ombros ou nos punhos.

Dos que referiram problemas nos ombros e/ou punhos, 20,2% apresentam histórico de afastamento por problemas de saúde (8,5% do total de desligados no período). Deve-se observar, contudo, que esses afastamentos podem ser devidos a outras causas.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Analisando a quantidade de problemas de saúde relatados por cada bancário desligado no período, verifica-se que, quanto aos problemas osteomusculares, crescem os relatos na medida em que aumenta o tempo de trabalho no banco.

Com um ano de banco, verifica-se, no máximo, alguém referindo 3 proble-mas osteomusculares, resultando, em média, 1,5 problemas por cada desligado que referiu problemas osteomusculares.

Entre os desligados com mais de 10 anos de banco, encontra-se alguém que referiu até 8 problemas osteomusculares, com a média se aproximando de 3 pro-blemas por cada desligado que referiu problemas osteomusculares.

Com relação às doenças mentais/psíquicas e crônicas, os números médios evoluem menos com o aumento do tempo de banco.

No geral, e para todo o período, o tempo médio de banco dos desligados é 13,7 anos. O maior tempo médio de banco é dos técnicos/operadores, e o menor é dos agentes/atendentes.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

* Em alguns anos nãso foram registradas homologações de gerentes de departamento.

No geral, e para todo o período, o tempo médio de banco dos gerentes desliga-dos é 11,7 anos. O maior tempo médio de banco é dos gerentes de departamento, e o menor é dos gerentes de contas.

Análise de algumas características segundo tempo de banco dos desligados

Verificou-se que o conjunto dos trabalhadores desligados do banco Itaú entre 2006 e 2014 apresenta um contingente expressivo com muitos anos de trabalho no banco, podendo esse universo ser dividido quase que igualmente entre tra-balhadores com menos de 10 anos (598 casos) e com mais de 10 anos (591 casos). Em 9 homologações não havia a informação de tempo de trabalho no banco. Essa condição pode determinar perfis diferentes de trabalhadores, e conhecer em que consiste tais diferenças será de interesse para agregar novas informações a esta análise. A tabela C.1, na página a seguir, mostra diferenças importantes entre os trabalhadores com até 10 anos de banco e os com mais de 10 anos de banco. E pode-se perceber diferenças significativas quanto aos locais de trabalho, cargos e também quanto ao percentual de sindicalização.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

As tabelas C.2 e C.3, mostradas na sequência, indicam que entre os com 11 ou mais anos de banco destacam-se problemas osteomusculares (ombro, princi-palmente). Já entre os com até10 anos de banco destacam-se problemas mentais--psíquicos (estresse e depressão).

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

A tendência indicada nas tabelas C.2 e C.3 é confirmada na tabela C.4, que traz os problemas de saúde agrupados (osteomusculares, mentais e crônicos) com os percentuais obtidos por faixas de tempo de trabalho no banco ITAÚ.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

* Entre os desligados com até 5 anos de banco, o percentual de referência a doenças mentais/psíqui-cas é significativamente maior do que o percentual de referência a doenças osteomusculares. Entre os desligados com mais de 10 anos de banco ocorre o contrário, sobressaindo-se os problemas osteomusculares.

Adendo: comparativo das pesquisas ITAÚ e HSBC (homologações)

Finalizando a análise da pesquisa com base nas homologações dos desligados do banco Itaú, será apresentado na sequência um comparativo de alguns destes resultados com os que foram obtidos na pesquisa dos desligados do banco HSBC. Na pesquisa do HSBC foram analisadas as homologações de 3.904 trabalhadores desligados desse banco entre 2008 e 2013.

O ITAÚ apresenta o maior percentual geral de trabalhadores desligados com relatos de problemas de saúde. Porém, estes se concentram majoritariamente entre

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

os que tinham mais de 10 anos de banco, e como esses são quase metade dos des-ligados (ver quadro 1.2), tiveram maior peso no percentual geral. Com até 10 anos, o percentual dos que relatam problemas de saúde é maior no HSBC.

Os principais problemas de saúde relatados são basicamente os mesmos nos dois bancos.

Os percentuais de afastamento por problemas de saúde são bastante próxi-mos, e podem estar indicando um parâmetro de afastamento por problemas de saúde nestes dois bancos (=> 15%).

Quanto à emissão de CAT, a diferença é bastante significativa, com um per-centual bem maior de não emissão por parte do HSBC.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

rElAtório ii – ProcEssos trAbAlhistAs Em fAcE do bAnco itAú (2011-2015)

Aspectos metodológicos

Com o objetivo de examinar os casos mais específicos que envolvem métodos de gestão e adoecimento, focou-se a análise nos processos que indicavam pedido de indenização por danos morais.

Dessa forma, foram adotados os seguintes procedimentos:a) Encaminhamento de ofício ao Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Re-

gião para obtenção da listagem dos processos judiciais ajuizados em face do ITAÚ desde o ano de 2011.

b) Separação dos processos com vistas a analisar os processos judiciais con-siderando duas hipóteses: i) o aprofundamento do assédio e sua naturali-zação como método de gestão no espaço de trabalho nos últimos anos; ii) o aumento dos pedidos de indenização tendo como causa assédio moral na prática da advocacia trabalhista.

c) Realização de triagem buscando identificar reclamatórias trabalhistas individuais tendo como reclamantes empregados submetidos aos méto-dos de gestão do ITAÚ. Dessa forma, foram excluídos processos coletivos, como ações civis públicas e, ainda, reclamatórias ajuizadas por trabalha-dores não sujeitos diretamente aos métodos de gestão do ITAÚ, como os empregados terceirizados licitamente (excluíram-se, assim, empregados vigilantes e da área de limpeza por exemplo). A listagem fornecida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região relacionava um total de 1.089 processos ajuizados contra o banco ITAÚ no período de janeiro de 2011 a junho de 2015. Essa triagem teve como resultado a listagem dos 473 tra-balhadores subordinados ao ITAÚ que ajuizaram reclamatória de dano moral em face do banco no referido período.

d) Os 473 processos com reclamatória de dano moral foram analisados se-paradamente. Este exame de cada reclamação trabalhista foi dividido em quatro itens básicos: i) identificação do trabalhador, situação no banco e situação do processo; ii) perigos psicossociais a que está exposto o traba-

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

lhador; iii) problemas de saúde ligados ao trabalho; iv) encaminhamento judicial da questão.

A identificação do trabalhador, situação no banco e situação do processo fo-ram anotados da seguinte maneira:

a) Idade: anos completos do trabalhador no momento do ajuizamento da ação. Como exemplo, se foi identificado que o trabalhador possuía 20 anos e 11 meses ao ajuizar a ação, consta no banco de dados a idade 20 anos.

b) Tempo no banco: tempo de trabalho no banco ITAÚ em anos. Constam os números “arredondados para cima”, de forma que, se o empregado tra-balhou três meses, consta “até 1 ano”; se trabalhou 9 anos e 2 meses, cons-ta “até 10 anos”.

c) Sexo: masculino e feminino. d) função e local de trabalho: foram incluídas no banco de dados informa-

ções sobre a função desempenhada e o local onde o trabalhador exercia o labor, conforme detalhamento exposto adiante.

e) Ano da demissão: ano em que aconteceu a rescisão contratual.f) O questionário preenchido para cada um dos processos foi construído

conjuntamente pelos pesquisadores envolvidos no projeto, por um esta-tístico e por um médico do trabalho. Para preencher o formulário foram analisados todos os documentos e petições presentes no processo (petição inicial, contestação, laudos periciais, receituários médicos, depoimento de testemunhas etc.).

Ressalte-se que, em alguns casos, um mesmo empregado ajuizou mais de uma reclamatória. Nesses casos, foram analisados os processos conjuntamente, com vistas a extrair o maior número de informações, contabilizando-se apenas um registro no banco de dados.

Perigos psicossociais a que está exposto o trabalhador

Estes itens foram elaborados com base na tabela de perigos psicossociais li-gados ao trabalho elaborada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), com

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

algumas alterações introduzidas devido às especificidades do trabalho bancário, conforme listagem e descriçãoa seguir:

1. Subutilização de habilidades (teor do trabalho): situações em que é or-denado ao empregado que exerça atividades que exigem capacitação in-ferior àquela que foi contratado para desenvolver ou que tem condições intelectuais de desenvolver. Exemplo: gerente que, ao retornar ao trabalho após licença médica devido à doença é colocado para auxiliar clientes em informações básicas na entrada do banco.

2. Alto nível de incerteza (teor do trabalho): situações em que o empregado trabalha sob incertezas acerca do teor das atividades que deve realizar, tem surpresas sobre suas tarefas, não sabe exatamente quais são suas fun-ções na empresa.

3. Exposição contínua a pessoas devido ao trabalho realizado (teor do tra-balho): empregado que fica continuamente exposto a clientes. Exemplo: trabalho no caixa ou em teleatendimento.

4. Sobrecarga ou pouca carga (carga e ritmo de trabalho): situações em que há excesso de trabalho, quando há relato de que habitualmente não é pos-sível fazer as atividades designadas no horário da jornada de trabalho normal, quando o ritmo de trabalho é continuamente fora do que seria considerado normal devido ao grande volume de atividades a serem de-sempenhadas. Casos de pouca carga são aqueles em que o trabalhador tem pouca atividade de modo a ficar ocioso.

5. Altos níveis de pressão por tempo (carga e ritmo de trabalho): situações em que há tempo reduzido ou insuficiente para realizar determinada tarefa.

6. Continuamente sujeito a prazos (carga e ritmo de trabalho): situações em que o empregado está cotidianamente sujeito a prazos.

7. Metas abusivas (carga e ritmo de trabalho): situações em que são impostas metas além do razoável ao empregado. As metas abusivas são uma combi-nação dos itens 4, 5 e 6, de forma que quando havia reclamação indicando abuso nas metas, foram apontados no formulário este item 7 conjunta-mente aos itens 4, 5 e 6.

8. Horários imprevisíveis (horário de trabalho): horário de trabalho incerto. Exemplo: trabalhador é convocado para trabalhar após o horário previsto

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

para sua saída ou em dias que costumeiramente não trabalharia de modo a interromper sua rotina e planejamento acerca do trabalho.

9. Falta de controle da carga de trabalho (controle): empregado não tem pre-visibilidade sobre a carga de trabalho, é surpreendido por cargas diferentes a cada período. O exemplo mais comum trata-se do aumento das metas estabelecidas durante o dia (se metas diárias) ou do mês (quando mensais).

10. Ritmo de trabalho (controle): ritmo exacerbado de trabalho que é mar-cado pela combinação de prazos exíguos para cumprimento de um alto número de atividades.

11. Controle do uso do banheiro (controle): quando o tempo de qualquer pau-sa é controlado diretamente pelo empregador, de forma que o empregador tem controle sobre o uso que o empregado faz do banheiro – quando vai e quanto tempo demora. Este item estende-se a casos em que, devido ao excesso de trabalho, o empregado vê-se impedido de se ausentar de seu posto de trabalho.

12. Condições ambientais ruins (ambiente e equipamentos): nos casos em que as condições físicas (não no plano de relações interpessoais) são inade-quadas, havendo, por exemplo, falta de espaço físico para realizar o traba-lho, ruído excessivo, problemas ergonômicos, etc.

13. Comunicação fraca (cultura organizacional e função): problemas decor-rentes de pouca comunicação entre os colegas de trabalho e entre os supe-riores hierárquicos e o empregado.

14. Baixos níveis de apoio para a solução de problemas e desenvolvimento pessoal (cultura organizacional e função): quando empresa não conta com política de apoio a empregados que passam por problemas no tocan-te ao desenvolvimento do trabalho. O caso mais recorrente é a demissão discriminatória de empregado doente.

15. Isolamento físico ou social (relações interpessoais): empregado apresenta--se isolado no ambiente de trabalho, separado dos demais física ou social-mente, obstado de estar nos espaços de sociabilização da empresa.

16. Precariedade das relações com superiores ou colegas de trabalho (relações interpessoais): casos em que os empregados relatam humilhações cons-tantes, ambiente pesado e ruim entre os colegas, competitividade exa-cerbada estimulada pela empresa, pressão exagerada, assédios habituais entre colegas e superiores hierárquicos.

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17. Conflito interpessoal (relações interpessoais): casos em que há problemas pessoais – de ordem íntima, particular – entre os empregados, com con-sequências no ambiente de trabalho.

18. Falta de apoio social (relações interpessoais): empresa não fornece apoio para que os empregados resolvam problemas que, mesmo não diretamen-te relacionados ao trabalho, acabam afetando seu exercício. Exemplo re-corrente acontece quando o empregado é impedido de faltar por motivo de saúde.

19. Ambiguidade de papéis (papéis na organização): casos em que há desvio ou acúmulo de função.

20. Estagnação da carreira e incerteza (desenvolvimento da carreira): casos em que empregado está estagnado ou tem incertezas sobre o desenvolvi-mento de sua carreira no plano individual, quando a empresa não dá a ele previsibilidade sobre o seu futuro ou quando não concretiza o plano de carreira estabelecido.

21. Insegurança no trabalho (desenvolvimento da carreira): quando empregado sofre ameaças gerais em relação ao desenvolvimento de sua carreira: ameaça de demissão, de transferência de agência ou de local de trabalho, etc.

22. Ameaça de demissão (desenvolvimento da carreira): ameaças de demissão diretas e indiretas (item mais específico em relação ao “21. insegurança no trabalho”)

23. Demandas conflitantes do trabalho e vida pessoal (interface lar/trabalho): situações em que há queixas diretas de que as exigências feitas pela em-presa conflitam com a vida pessoal do empregado (por exemplo, viagens constantes e de longos períodos).

24. Uso de fantasia: empregado é obrigado a usar fantasias ou roupas que o deixam em posição vexatória no ambiente de trabalho.

25. Exposição e cobrança vexatória produtividade: empregado sofre cobran-ças em relação à sua produtividade de forma vexatória, ou tem sua produ-tividade exposta de forma humilhante (não foram incluídos aqui os casos em que são expostos rankings de produtividade em murais, pois, apesar de serem vexatórios, a jurisprudência tem considerado que não ultrapas-sam os limites do poder diretivo do empregador)

26. Sinalização na mesa quando ausente: casos em que há sinalização de que o empregado está fazendo pausa no trabalho (para ir ao banheiro, tomar

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

água, etc), fazendo com que todos os empregados saibam que ele está fora de seu posto de trabalho enquanto a sinalizar estiver presente.

27. Exigência superior às habilidades: é exigido do empregado que exerça atividades para além daquela que foi contratado e que não está relacio-nada exatamente a suas funções, fazendo com que passe por situações vexatórias.

28. Humilhação na demissão: casos em que o empregado sofreu conduta ve-xatória por parte de superiores e colegas de trabalho no momento em que foi comunicado de sua dispensa.

29. Exigência de prática ilícita: empregado é obrigado a realizar procedimen-tos fraudulentos, como, por exemplo, compensar um cheque sem a assi-natura correta.

30. Discriminação: casos em que o empregado relata algum ato discrimina-tório no ambiente de trabalho por razões diversas, como deficiência, reli-gião ou doença.

31. Falta de pausa para recuperação: não é concedido ao empregado intervalo para que se recupere dos esforços repetitivos e afins, situações em que o empregado reivindica o cumprimento do artigo 72 da CLT.

32. “Demissão” abusiva: empregado relata que sua despedida foi ilegal. O caso mais comum é a dispensa discriminatória em razão de doença.

33. Estorno da comissão: quando há estorno de uma parcela paga a título de comissão devido a motivos alheios ao empregado (acontece habitualmen-te quando o empregado recebe comissão pela venda de cartões de crédito e deve “devolver” a comissão se o cartão for cancelado antes de certo tem-po de uso).

34. Invasão da vida privada: quando empresa pratica atos com vistas a inves-tigar a vida privada dos empregados, invadindo a esfera íntima do mesmo.

35. Promessa frustrada: quando a empresa faz promessas em relação ao tra-balho e não cumpre, como, por exemplo, divulgar que pagará prêmio para o empregado que alcançar determinada meta, mas não pagar.

Além desses casos, anotaram-se ainda os casos em que o pedido de indeni-zação por danos morais dizia respeito especificamente à prática antissindical e ao risco pela exposição do empregado que é obrigado a transportar dinheiro de forma insegura e inadequada.

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Problemas de saúde ligados ao trabalho e afastamento

O formulário para análise dos processos contava com os seguintes itens re-lacionados a reclamações dos empregados no tocante à saúde: a) depressão, b) estresse, c) ombro, d) punho, e) ansiedade, f) síndrome do pânico, g) braço-ante-braço, h) insônia, i) coluna, j) cotovelo, k) problemas cardiovasculares, l) mãos, m) cefaleia, n) síndrome de burnout, o) problemas gastrointestinais, p) hipertensão, q) arritmias cardíacas, r) dedos, s) audição, t) voz, u) visão.

Os itens que especificam partes do corpo humano (como ombro, punho, co-tovelo, etc.), foram considerados todas as vezes em que o empregado fazia menção a qualquer desconforto, dor ou doença na região específica.

Frise-se que as queixas referentes a dor, desconforto ou doença foram assina-ladas mesmo não havendo comprovação nos autos, vez que se optou nesta pesqui-sa por dar ênfase aos depoimentos e relatos dos empregados.

Os itens acima especificados estão enquadrados em três grandes grupos: do-enças mentais/psíquicas, doenças osteomusculares e doenças crônicas, na forma a seguir:

a) Doenças mentais/psíquicas: depressão, estresse, ansiedade, síndrome do pânico, insônia, síndrome de burnout.

b) Doenças osteomusculares: ombro, punho, braço-antebraço, coluna, coto-velo, mãos, dedos.

c) Doenças crônicas: problemas cardiovasculares, cefaleia, problemas gas-trointestinais, hipertensão, arritmias cardíacas, audição, voz, visão.

Encaminhamento judicial

A pesquisa conta ainda com a análise do encaminhamento judicial das re-clamatórias trabalhistas: situação do processo (arquivado ou em andamento), se consta no processo laudo pericial, se houve acordo judicial, qual foi o resultado em 1ª instância, se houve recurso no tocante à indenização por danos morais, qual foi o resultado de eventual julgamento em grau de recurso.

A análise dos processos foi realizada entre junho de 2015 e abril de 2016. A situação processual diz respeito ao que constava nos autos neste período.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Classificação dos demandantes segundo grupos de cargos e de locais de trabalho

Ver quadro transcrito na página 27.

Resultados estatísticos

Todo esse grande conjunto de informações pesquisadas junto aos processos dos 473 trabalhadores filtrados – aqueles que acionaram o ITAÚ por dano moral entre 2011 e junho de 2015 – foi armazenado em um banco de dados, seguindo-se os tra-balhos de conferência e tabulação. Os resultados apurados serão agora apresentados em tabelas acompanhadas de breve análise estatística, iniciando-se pelo perfil dos demandantes, segundo o ano em que foi ajuizada a ação em face do banco ITAÚ.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

O número absoluto de processos por assédio moral em face do ITAÚ vem crescendo desde 2011. Entre 2012 e 2014, o crescimento foi de 27%. Lembrando que os números de 2015 são parciais, e que em meados de 2011 foi quando se ini-ciou o processo de digitalização dos processos. Vê-se que as mulheres compõem a maioria dos reclamantes de danos morais (56,2%). Os trabalhadores de agência (comercial), os gerentes em geral e os gerentes de contas em particular também compõem as maiores parcelas dos processantes do Itaú, por danos morais, entre janeiro de 2011 e junho de 2015. E quase metade dos processos tem como recla-mantes trabalhadores com mais de 10 anos de trabalho no Itaú (49%).

Em média quase um quarto dos processos ajuizados em face do ITAÚ (24,5%), no período analisado, foram de trabalhadores que continuavam com vínculo tra-balhista junto ao banco. E a quase totalidade dos processos (97,7%) continuava em andamento quando da pesquisa, ou seja, ainda não havia sido arquivado em definitivo.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Do total de processos ajuizados entre janeiro de 2011 e junho de 2015, 17,8% tiveram laudos emitidos. Sendo que, dentre laudos emitidos, 48,8% reconheceram nexo causal ou concausal entre doença e trabalho. No momento da pesquisa, ape-nas 15 processos (3%), haviam resultado em acordo entre as partes. No momento da pesquisa, 251 processos (53,1%) tinham sentença (julgamento em 1º grau).

Comentário dos pesquisadores

Os peritos judiciais verificam se existe ligação entre a doença e o traba-lho. Contudo, além da tradicional insensibilidade de grande parte dos peritos, vemos ainda casos em que a perícia médica reconhece doença causada pelo trabalho, mas o juiz não concede indenização ao traba-lhador. É o caso do processo RT 0001194-23.2012.5.09.0007.

Dos 251 processos que tinham sentença de primeiro grau no momento da pesquisa, 70 (27,9%) tiveram o pedido de condenação por dano moral julgado pro-cedente em primeiro grau.

Dentre esses 251 processos sentenciados, 157 (62,5%) receberam pedido de recurso em relação ao pedido de dano moral, seja pela parte autora ou pela parte ré. Em 51 desses 157 pedidos de recurso (32,5%), o pedido de indenização formu-lado pelo trabalhador resultou procedente em acórdão proferido pelo Tribunal Regional do Trabalho.

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Comentário dos pesquisadores

Várias são as artimanhas jurídicas utilizadas para naturalizar a pre-carização do trabalho. Na RT 0001549-28.2012.5.09.0041, a sentença se baseou no “princípio do maior rendimento”, que na verdade não é próprio nem compatível com o Direito do Trabalho, justificando por que o trabalhador deveria dedicar todas suas energias ao empreendi-mento do empregador.

Os maiores índices de pedidos procedentes foram identificados, sob o crité-rio sexo, entre as mulheres e, sob o critério cargo ou função, entre os bancários com cargo aqui não classificados ou não informados, os analistas e os gerentes de agência. Quanto ao tempo de serviço, não se percebe grande diferença entre os percentuais.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Comentário dos pesquisadores

O assédio moral organizacional é uma realidade que também abrange os funcionários de alto escalão. Na RT 0001645-62.2013.5.09.0088, o autor prova que, após um ano de queda na produtividade, foi enviado a treina-mento com um capitão do BOPE. Ocorre que o bancário foi submetido a rastejar no chão, fazer intensos esforços físicos e se confrontar com equi-pes adversárias, passando por terror físico e psicológico. Durante o treina-mento, o banco deixou claro que o objetivo do era punir os participantes.

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Quanto aos riscos psicossociais referidos pelos trabalhadores, dentre os pro-blemas mais citados se destacam as longas jornadas, as metas abusivas e os riscos relacionados ao ambiente de trabalho com níveis de relacionamento interpessoal potencialmente danosos.

A questão das longas jornadas de trabalho, por exemplo, é citada por quase dois terços (65,1%) e as metas abusivas por quase metade (47,4%) dos reclamantes de dano moral em face do ITAÚ. Em 18% dos processos pesquisados houve a ci-tação de problemas específicos, não arrolados na lista previamente elaborada, os quais serão detalhados mais adiante.

Comentário dos pesquisadores

Embora as metas abusivas sejam uma realidade cruel para os trabalha-dores, temos dificuldade em estabelecer os limites do poder diretivo dos bancos. Uma solução que vem sendo mais adotada pelos juízes e pelo tribunal é identificar as metas abusivas a partir da cobrança de resultados superiores a 100% aos trabalhadores (p. ex. RT 0000783-19.2013.5.09.0015 e 0000783-19.2013.5.09.0015).

O índice de ações relatando práticas antissindicais, apesar de não estar no topo da lista, também merece destaque. Foram 39 processos judiciais relatando esse tipo de gestão no ITAÚ.

Comentário dos pesquisadores

A prática antissindical é recorrente dentro do banco ITAÚ. Como exemplo, no processo RT 0000790-18.2011.5.09.0003, verificamos que uma bancária reintegrada foi proibida de relacionar-se com o sindica-to. Nenhum informativo sindical poderia ser entregue à trabalhadora, devendo serem todos escondidos da trabalhadora.

Na RT 05878/2013 encontramos outro exemplo de prática antisindi-cal por parte do banco. A bancária foi impedida de participar do mo-vimento grevista, sendo obrigada a trabalhar no período de greve. O

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

direito de greve, “direito de todos os direitos trabalhistas”, é reiterada-mente violado pelo Banco ITAÚ.

Dos problemas de saúde referidos, destacam-se o estresse e problemas nas mãos. Sendo que o grupo de doenças mentais e psíquicas é referido na maior par-cela das reclamações de doença (33,6%), com as doenças osteomusculares apare-cendo em 27,9% das reclamações.

Comentário dos pesquisadores

As doenças psicologias são uma constante dentro dos bancos. Em mui-tos dos processos analisados, verificamos que a organização do tra-balho foi indicada como a causa de condições patológicas, tais quais

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transtornos do sono, pavor em ir ao trabalho, agressividade, esgota-mento emocional, deterioração da relação familiar, despersonalização e perda da produtividade.

Os problemas psicossociais aparecem na tabela 3 classificados em problemas relativos às condições de trabalho e a métodos assediosos (ver quadro 5). Do total de processos por dano moral, 97% referiam problemas psicossociais que vão de condições de trabalho (longas jornadas, por exemplo), questões de carreira (estag-nação na função), métodos assediosos (metas abusivas, por exemplo) a práticas de gestão (problemas nas rotinas de trabalho). Sendo que métodos assediosos e/ou más práticas de gestão aparecem em 91,3% dos processos pesquisados.

Quanto à questão da saúde, no total 29,6% citaram algum problema. Esse per-centual é significativamente maior entre os não desligados: 63,5%. Investigando a causa dessa grande diferença, verificou-se que a grande parte dos que ainda man-têm vínculo empregatício com o banco, são, na realidade, trabalhadores afastados por problemas de saúde. Dos 84 laudos de saúde que haviam sido emitidos até o momento da pesquisa, 56 (67%) são de trabalhadores não desligados.

Comentário dos pesquisadores

As cobranças excessivas, como e-mails constantes, humilhações e ex-posições da produtividade dos bancários são práticas que permeiam a organização do trabalho bancário. Na RT 0001472-33.2012.5.09.0004, o banco Itaú foi condenado em R$ 76.922,90 pela presença de um “cli-ma de terror no ambiente de trabalho”, caracterizando-se o assédio moral organizacional.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Entre outros problemas que afetam os bancários do Itaú, destacam-se de maneira bastante evidente questões referentes à falta de segurança nas agências, inclusive com experiências de assalto vividas pelos trabalhadores, as quais geral-

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mente estão ligadas à menção de falta de apoio social pelo banco no período pos-terior aos traumas vivenciados.

Chama a atenção que, entre os trabalhadores de departamento e da parte ope-racional das agências, os problemas de saúde mais citados são ombro, punho e co-tovelo (osteomusculares). Ao passo que entre os trabalhadores da parte comercial das agências e os que trabalham em estruturas de terceiros, os problemas mais citados são a depressão e o estresse (problemas mentais-psíquicos).

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Nos departamentos e nas partes operacionais das agências preponderam pro-blemas osteomusculares. Enquanto que nas demais áreas ocorrem com maior fre-quência as doenças mentais-psíquicas.

Comentário dos pesquisadores

O isolamento é aplicado pelo empregador como punição ao traba-lhador que sofre doenças causadas pelo trabalho. Na RT 0000761-88.2013.5.09.0005, uma trabalhadora provou que foi deixada sem fun-ções na agencia após o retorno de seu afastamento. Uma clara política de constrangimento ao trabalhador.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

Apesar do pequeno número de gerentes de operação ou departamento e ge-rentes de agência, os percentuais verificados podem estar indicando similaridades e diferenças entre as 3 funções: gerentes operacionais e de departamento podem estar sentindo mais as longas jornadas de trabalho. Enquanto os gerentes de agên-cia e os de contas, além das longas jornadas podem ter mais problemas com me-tas abusivas, relacionamento com superiores e ameaças de demissão. Sete dos dez gerentes de agência mencionaram falta de apoio social no seu trabalho. No geral, os principais problemas identificados nesse grupo são longas jornadas, metas abu-sivas e problemas de relacionamento.

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CADERNO 2: O CASO DO ITAÚ EM CURITIBA

Gerentes operacionais e de departamento podem estar sentindo problemas de estresse, insônia e cefaleia. Enquanto os gerentes de agência e os de contas podem ter mais problemas com depressão, ansiedade e as síndromes (pânico e burnout/esgotamento). Quanto a outros problemas de saúde, vale citar que oito gerentes de conta citaram transtorno de adaptação e dois citaram transtorno afetivo.

comEntários dos PEsquisAdorEs

A título de desfecho, cabe ressaltar que o trabalho de pesquisa não acaba por aqui. Por este caderno disponibilizamos os dados estatísticos produzidos pelo nosso trabalho de organização e análise documental. É necessário pontuar, entre-tanto, que os resultados apresentados não constituem o ponto final dessa segunda fase do projeto MÉTODOS DE GESTãO E ADOECIMENTO DE TRABALHA-

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

DORES, voltada a investigar a realidade do Banco ITAÚ em Curitiba. Para além da tabulação dos números e indicadores apresentados, remanesce a necessidade de investigar o real significado dos resultados brutos desvelados.

O principal objetivo dessa veiculação, portanto, não é apresentar respostas prontas e acabadas aos leitores. É, pelo contrário, provocar-lhes questionamen-tos. O que quer dizer, por exemplo, que quase metade dos empregados bancários referiu doença no momento de seu desligamento do banco? São inúmeras as per-guntas que ainda devem ser feitas, culminando em um trabalho de investigação teórica ainda aberto e inacabado.

A pesquisa entra em uma nova etapa, em que os dados levantados serão ana-lisados em estrita observância ao rigor próprio do discurso científico, conside-rando a bibliografia existente sobre o tema e os aspectos metodológicos perti-nentes. Quanto a isso, é importante dizer que não escapa dos nossos objetivos a necessidade de relacionar os dados levantados à totalidade social e, transbordan-do a teoria em prática, traçar estratégias efetivas para combater o assédio moral organizacional.

Em outras palavras, cabe-nos ainda traduzir os resultados apresentados em conhecimentos voltados à práxis da luta por um trabalho não mercantil e que não mais adoeça aqueles que vivem do trabalho.

Ao publicarmos os dados levantados neste caderno, estendemos e encoraja-mos essa tarefa a todos os pesquisadores comprometidos com a produção de co-nhecimento direcionado à superação da exploração capitalista – sejam esses em suas vidas particulares bancários, médicos, juristas, docentes ou estudantes –, au-torizando desde já o uso exaustivo deste caderno para fins formativos, científicos e acadêmicos.

Se o deus do mercado segue ameaçando e castigando os trabalhadores, elabo-rando métodos cada vez mais sofisticados de exploração de seus corpos, cabe-nos avançar mais um passo e seguir materializando, como Paulo Freire dizia, nosso “profundo interesse em conhecer a realidade para poder transformá-la”. Foi com essa convicção que o projeto MÉTODOS DE GESTãO E ADOECIMENTO DE TRABALHADORES foi idealizado pelos parceiros que assinam este caderno, e assim seguiremos trabalhando para atingirmos esses objetivos.

Instituto Declatra.

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ASSÉDio E iNVErSÃo Do ÔNuS DA ProVA: BrEVES CoNSiDErAÇÕES

Guilherme Guimarães Feliciano1

introdução

Além das inúmeras polêmicas que suscita no campo do direito material, o assédio moral também representa, para os estudiosos do processo, uma fonte for-midável de controvérsias e perplexidades. Entre elas, talvez a mais significativa diga respeito à repartição do ônus da prova nas ações judiciais que discutem con-textos concretos de assédio moral e o seu tratamento jurídico (prevenção, repres-são, reparação).

Assim, p. ex., tem-se por adquirido, na França, incumbir ao réu desincumbir--se do ônus da prova relativamente ao alegado assédio moral (“harcèlement mo-ral”), desde que o autor logre demonstrar fatos que permitam presumir o assédio (artigo L 122-52 do Code du Travail)2. Assim é que

1 Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Facul-dade de Direito da Universidade de São Paulo. Livre-Docente e Doutor pela Universidade de São Paulo. Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (2015-2017). Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP.

2 Cf., por todos, Isabelle Bourkhris, “La preuve et le harcèlement moral”, in http://www.village-justi-ce.com/articles/preuve-harcelement-moral,981.html (acesso em 23.12.2005).

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

l’article L 122-52 du code du travail prévoit que le salarié établisse les faits qui permettent de présumer de l’existence d’un harcèlement.

Cela est conforme à nos procédures civiles et pénales- le supposé har-celeur bénéficiant de la présomption d’innocence-

Le salarié demandeur devra établir la matérialité des éléments de faits précis et concordants qu’il présente au soutien de ses allégations.

Au vu de ces éléments, il incombe au défendeur de prouver que ses actes sont justifiés par des motifs étrangers à tout harcèlement. Le juge formera alors sa conviction.

Em Portugal, da mesma maneira, à vista do que dispõe o Código do Trabalho lusitano (artigo 29º c.c. artigo 25º, 5), entende-se inverter-se a distribuição do ônus da prova, sopesando sobre a posição jurídico-processual do empregador, em todos aqueles casos nos quais o alegado assédio configura típica conduta discriminató-ria. Veja-se por todos, nesse sentido, o Acórdão da Relação do Porto n. 3819/08, julgado em 2.2.2009.

É essa, ademais, uma clara tendência legislativa em toda a Europa ocidental. Não por outra razão, aliás,

[...] a União Européia firmou acordo entre os países-membros, aprovan-do a inversão do ônus da prova na hipótese de assédio sexual. Na mesma direção trilhou o legislador francês, na lei que coíbe o assédio moral no trabalho. Admite-se a inversão do ônus da prova, revertendo para o agressor o encargo de provar a inexistência do assédio, na medida em que o autor da ação já tenha apresentado elementos suficientes para per-mitir a presunção de veracidade dos fatos narrados na petição inicial.3

Entre nós, enfim, até por influência do pensamento estrangeiro, diversos tri-bunais regionais do trabalho já trataram de, igualmente, relativizar ou inverter o “onus probandi” nos processos que versam danos morais. Poderiam fazê-lo?

Compreendamos melhor os pressupostos dessas teses.

3 Márcia de Novaes Guedes, Terror Psicológico no Trabalho, São Paulo, LTr, 2003, pp.47-48.

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ASSÉDIO E INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA: BREVES CONSIDERAÇÕES

1. o ônus dA ProvA no dirEito ProcEssuAl brAsilEiro

No Brasil, o Código de Processo Civil de 2015, tal como já havia feito o código de 1973 e, antes dele, o de 1939, assimilou a teoria rosenberg-chiovendiana de dis-tribuição do ônus da prova, positivando duas regras estáticas de repartição (artigo 373). Mas, diferentemente dos diplomas anteriores, positivou hipóteses gerais de relativização do paradigma rosenbergiano (à semelhança do que já fizera, décadas antes, o Código Civil português, em seu artigo 344º), como se lê textualmente no parágrafo 1º do mesmo preceito. In verbis:

Art . 373 . O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou ex-tintivo do direito do autor.

§ 1o Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diver-so, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

§ 2o A decisão prevista no §1o deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou exces-sivamente difícil.

§ 3o A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando:

I - recair sobre direito indisponível da parte;

II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.

§ 4o A convenção de que trata o § 3o pode ser celebrada antes ou du-rante o processo.

O CPC/2015 não fez mais, neste particular, que trazer aos escaninhos da lei processual geral algo que há muito já estava assimilado pelo direito processual brasileiro. Com efeito, mesmo sob a égide do CPC/1973 − quando a única possibi-

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lidade legal de inversão do ônus da prova era aquela da pactuação entre as partes (artigo 333, par. único) e, ainda assim, se a convenção incidisse sobre direitos (rec-tius: pretensões materiais ou “direitos prováveis”) de cárater disponível4 −, havia hipóteses específicas de inversão ou exclusão do “onus probandi” positivadas na legislação esparsa. Citem-se, como exemplos:

— a inversão do ônus da prova nas ações consumeristas, em favor do consu-midor, e “a critério do juiz”, quando houver verossimilhança da alegação e/ou hipossuficiência do autor, “segundo as regras ordinárias da experi-ência” (permissão legal contida no artigo 6º, VIII, do CDC, já reportada supra)5;

— a inversão do ônus da prova em matéria de publicidade, sendo certo que “[o] ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunica-ção publicitária cabe a quem as patrocina” (artigo 38 do CDC), em caráter incondicional6;

— a inversão do ônus da prova, em favor do devedor, nas ações relativas a estipulações usurárias e afins, ainda que não regidas pelo CDC, desde que haja verossimilhança da alegação (MP n. 2.172-32, de 23.08.20117);

4 V., e.g., a proibição do artigo 51, VI, do CDC.5 Grassa, a propósito, debate doutrinário e jurisprudencial sobre a natureza da hipossuficiência que

autorizaria a inversão condicional do artigo 6º, VIII, do CDC: se hipossuficiência técnica, se hi-possuficiência econômica (como é a laboral), ou ainda se ambas. V., no primeiro sentido (hipos-suficiência técnica), TJSP, AI n. 301006-4-7, 3ª Câm. Direito Privado, rel. Des. LUIZ ANTÔNIO DE GODOY, j. 18.11.2003; TJSP, AI 214037-4-9, 1ª Câm. Direito Privado, rel. Des. PAULO DIMAS MASCARETTI, j. 25.09.2001).

6 Quanto à incondicionalidade, cf., por todos, Xavier Leonardo, Imposição e inversão..., pp.296-297. V. também TJSP, Apel. Cível n. 255461-2-6, 9ª Câm. Cível, rel. Des. ALDO MAGALHãES, j. 06.04.1995, in RT 716/182.

7 A medida procurou conter os efeitos funestos das atividades usurárias e de agiotagem, declarando “nulas de pleno direito as estipulações usurárias, assim consideradas as que estabeleçam: I - nos contratos civis de mútuo, taxas de juros superiores às legalmente permitidas, caso em que deverá o juiz, se requerido, ajustá-las à medida legal ou, na hipótese de já terem sido cumpridas, ordenar a restituição, em dobro, da quantia paga em excesso, com juros legais a contar da data do pagamento indevido; II - nos negócios jurídicos não disciplinados pelas legislações comercial e de defesa do con-sumidor, lucros ou vantagens patrimoniais excessivos, estipulados em situação de vulnerabilidade da parte, caso em que deverá o juiz, se requerido, restabelecer o equilíbrio da relação contratual, ajustando-os ao valor corrente, ou, na hipótese de cumprimento da obrigação, ordenar a restituição, em dobro, da quantia recebida em excesso, com juros legais a contar da data do pagamento indevido” (art. 1º), e alcançando ainda “as disposições contratuais que, com o pretexto de conferir ou transmitir

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ASSÉDIO E INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA: BREVES CONSIDERAÇÕES

— a inversão do ônus da prova, em favor do segurado, nas ações judiciais de aposentadoria (reforma), derivada da correspondente inversão do en-cargo probatório no plano administrativo (ut artigo 29-A, §1º, da Lei n. 8.213/19918, com a redação da Lei n. 10.403, de 08.01.2002)9;

direitos, são celebradas para garantir, direta ou indiretamente, contratos civis de mútuo com estipu-lações usurárias” (i.e., simulações maliciosas — art. 2º). E, em todos esses casos, dispõe que “[n] as ações que visem à declaração de nulidade de estipulações com amparo no disposto nesta Medida Pro-visória, incumbirá ao credor ou beneficiário do negócio o ônus de provar a regularidade jurídica das correspondentes obrigações, sempre que demonstrada pelo prejudicado, ou pelas circunstâncias do caso, a verossimilhança da alegação” (art. 3º — g.n.). A ementa da MP n. 2.172-32/2001, aliás, já diz a que veio, nos planos material e processual: “Estabelece a nulidade das disposições contratuais que menciona e inverte, nas hipóteses que prevê, o ônus da prova nas ações intentadas para sua declaração” (g.n.).

8 In verbis: “O INSS terá até 180 (cento e oitenta) dias, contados a partir da solicitação, para fornecer ao segurado as informações previstas no caput deste artigo”. O caput diz que “[o] INSS utilizará, para fins de cálculo do salário-de-benefício, as informações constantes no Cadastro Nacional de Informações Sociais - CNIS sobre as remunerações dos segurados”.

9 Com esse entendimento, cf. , por todos, Sandra Aparecida Sá dos Santos, A inversão do ônus da pro-va como garantia constitucional do devido processo legal, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, pp.97-98. In verbis: “Antes, o contribuinte era obrigado a apresentar a carteira de trabalho para comprovar o tempo de serviço e a remuneração. Agora, é o INSS que deve fornecer as informa-ções relativas ao tempo e ao valor da contribuição do segurado, constantes do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS). [...] É evidente que ocorrerá a inversão do onus probandi na esfera ju-risdicional havendo necessidade de propositura da ação, pelo contribuinte, visando ao recebimento do benefício previdenciário, uma vez que cabe ao INSS fornecer ao segurado todas as informações constantes do Cadastro Nacional das Informações Sociais, nos teros da mencionada lei” (g.n.). Como se trata de uma interpretação derivada da inversão administrativa, esta hipótese é obviamente mais polêmica. Assim, em sentido contrário, v. Xavier Leonardo, Imposição e inversão..., p.310: “Não se trata, efetivamente, de uma regra de inversão do ônus da prova. Isto porque, em primeiro lugar, sua aplicação limita-se ao procedimento administrativo voltado para o recebimento do salário-de-bene-fício [rectius: do benefício]. Em segundo lugar, não se inverte um ônus de provar ao se estabelecer um dever legal de prestação de informações, no caso, constantes do Cadastro Nacional de Informações Sociais”. Mas a seguir concede: “A não apresentação dessas informações pelo INSS, porém, pode ser utilizada como elemento de convicção do julgador ao apreciar uma demanda voltada para o recebimento do benefício previdenciário”. De nossa parte, acompanhamos Sá DOS SANTOS: se o único objeto da prova, nos pedidos simples de aposentadoria, é o tempo de serviço ou contribuição e o elenco histórico das contribuições — todas informações disponíveis no CNIS —, e se o INSS é legalmente obrigado a apresentá-los no procedimento administrativo (não se exigindo, naquele âmbito, qualquer atividade probatória anterior do segurado), não é lógico que, na demanda judi-cial, essa vantagem seja perdida. O ônus da prova resta aprioristicamente invertido, até mesmo em homenagem ao princípio da aptidão para a prova. Se, todavia, a prova documental carreada pela autarquia infirmar a pretensão inicial, caberá ao autor a contraprova, seja ela documental (v., no

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— a exclusão ou inversão do ônus da prova, nos processos que demandam prova pericial médica, em desfavor da parte recusante à perícia que pres-supõe disponibilidade física (artigo 232 do NCC10).

Para mais, a par dessas possibilidades legais, tanto a jurisprudência cível como sobretudo a trabalhista já eram ricas, antes mesmo do CPC/2015, em casuísticas de inversão/exclusão do ônus da prova, ora “secundum legem”, ora “praeter legem” ou até mesmo “contra legem”, pelos mais variegados motivos. Vejamos, para o caso específico da jurisprudência trabalhista.

2. invErsõEs PrEtoriAnAs do ônus dA ProvA no ProcEsso do trAbAlho: brEvE Escorço

Nos tribunais laborais, há larga jurisprudência sumulada sobre repartição do ônus da prova, ora meramente declaratória do modelo legislativo em vigor, ora efetivamente inovadora (= inflexões pretorianas). Vejamos alguns casos.

A Súmula n. 6, VIII, do TST dispõe, sobre equiparação salarial, que “[é] do empregador o ônus da prova do fato impeditivo, modificativo ou extintivo da equi-paração salarial”. Isto era apenas reproduzir, “in litteris”, o dispositivo do artigo 333, II, do CPC/1973 – e, agora, do artigo 373, II, do CPC/2015 −, já que o empre-gador será o réu. Melhor faria o enunciado se esclarecesse, p.ex., o que se considera como fato impeditivo, modificativo ou extintivo da equiparação: e.g., a diversa perfeição técnica ou a diversa produtividade entre paradigma e paragonado, ou ainda o tempo de serviço na função superior a dois anos, todos fatos impeditivos à luz do artigo 461, caput e §1º, da CLT.

A Súmula n. 12 do TST dispõe que “[a]s anotações apostas pelo empregador na carteira profissional do empregado não geram presunção ‘ juris et de jure’, mas apenas ‘ juris tantum’”. Outra vez o verbete não trouxe grande novidade, a não

plano administrativo, o artigo 29-A, §2º, da Lei n. 8.213/1991), seja mesmo oral (v. artigo 55, §3º, da Lei n. 8.213/1991). V. ainda, supra, o tópico 27.3.1, n. III (quanto à interpretação conforme do artigo 55, §3º, da Lei n. 8.213/1991).

10 In verbis: “A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame”. V. a respeito G. G. Feliciano, Direito à prova..., passim.

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ser por assegurar ao empregado o direito processual à contraprova. No subtexto, reputa-se satisfeito, pela prova preconstituída em CTPS, o “onus probandi” do em-pregador em torno da matéria.

A O.J. SDI-1/TST n. 215 dispunha que “[é] do empregado o ônus de comprovar que satisfaz os requisitos indispensáveis à obtenção do vale-transporte”, i.e., a sua necessidade e a manifestação de vontade perante o empregador. Nisto, mais uma vez, apenas aplicava a lógica do “ei incumbit probatio qui dicit non qui negat”. No entanto, essa orientação foi cancelada pela Resolução n. 175, de 24.05.2011, o que levava a supor que a jurisprudência do TST poderá vir a infletir o ônus da prova, em favor do empregado, também nessa hipótese. E, de fato, foi editada em 2016 a Súmula n. 460 do TST, pela qual “[é] do empregador o ônus de comprovar que o empregado não satisfaz os requisitos indispensáveis para a concessão do vale--transporte ou não pretenda fazer uso do benefício”. Dá-se, pois, clara inversão do ônus da prova, pois caberia ao reclamante, a priori, fazer a prova dos requisitos indispensáveis para o direito ao vale-transporte (fatos constitutivos do direito).

Já a Súmula n. 212 do TST estabelece que “[o] ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando negados a prestação de serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação de emprego cons-titui presunção favorável ao empregado”. Aqui efetivamente se inverteu o ônus da prova, a partir de uma presunção “hominis” derivada do princípio da continui-dade da relação de emprego: embora seja alegação do empregado a data e o modo de terminação da relação de emprego, cumprirá ao empregador provar eventual data ou modo mais favorável aos seus interesses, resolvendo-se as dúvidas em seu detrimento (e infletindo-se, portanto, a regra do artigo 818 da CLT, na direção do que fez a legislação portuguesa, ut artigos 435º, 1 e 3, do CT).

A O.J. SDI-1/TST n. 233 pontificou que “[a] decisão que defere horas extras com base em prova oral ou documental não ficará limitada ao tempo por ela abrangido, desde que o julgador fique convencido de que o procedimento questionado superou aquele período”. Nisto, modulou o ônus da prova, infletindo parcialmente a regra do artigo 818 da CLT: comprovadas as sobrejornadas em certo periodo, o juiz poderá, também por “praesumptio hominis”, considerer que as mesmas sobrejornadas eram praticadas em outros períodos, não abrangidos pela prova (o que significa, na práti-ca, inverter o ônus da prova dos excessos nos períodos não provados).

A O.J. SDI-1/TST n. 301 dispunha que ,“[d]efinido pelo reclamante o período no qual não houve depósito de FGTS, ou houve em valor inferior, alegada pela

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reclamada a inexistência de diferenças nos recolhimentos de FGTS, atrai para si o ônus da prova, incumbindo-lhe, portanto, apresentar as guias respectivas, a fim de demonstrar o fato extintivo do direito do autor”. Aqui também se aplicava, a rigor, o princípio da melhor aptidão para a prova (já que a guarda das guias é tempo-rariamente obrigatória para o empregador, ut artigos 2º e 3º da IN SIT/MTE n. 84/2010), mas buscava travesti-lo de legalidade formal com a remissão ao artigo 818 da CLT, “interpretando” o dispositivo para reconhecer uma “alegação de ine-xistência de diferenças”. Nada obstante, também essa orientação foi cancelada pela Resolução n. 175/2011, o que insinuava refluxo jurisprudencial, agora num sentido menos tuitivo. Não foi, porém, o que ocorreu . Em 2016, editou-se a Súmula n . 461 do TST, pela qual “[é] do empregador o ônus da prova em relação à regularidade dos depósitos do FGTS, pois o pagamento é fato extintivo do direito do autor (art. 373, II, do CPC de 2015)”. Nesse caso, porém, seguiu-se o padrão do artigo 373, I, do CPC/2015.

A Súmula n. 338 do TST, enfim, consubstancia atualmente o mais bem aca-bado exemplo de inflexão do ônus da prova no universo processual trabalhista, em matéria de duração do trabalho, redistribuindo a carga probatória conforme a aptidão para a prova (embora, na literalidade do artigo 818 da CLT, a alegação de jornada extraordinária seja sempre do empregado); nesse encalço, dispõe:

JORNADA DE TRABALHO . REGISTRO . ÔNUS DA PROVA (in-corporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 234 e 306 da SBDI-1) - Res . 129/2005, DJ 20, 22 e 25 .04 .2005 I - É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injusti-ficada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracida-de da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrá-rio. (ex-Súmula nº 338 – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003) II - A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário . (ex-OJ nº 234 da SBDI-1 - inserida em 20.06.2001) III - Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são in-válidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jorna-

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da da inicial se dele não se desincumbir. (ex-OJ nº 306 da SBDI-1- DJ 11.08.2003)11.

O mesmo se diga, mais recentemente, da Súmula 443 do TST, aprovada por ocasião da Segunda Semana Jurídica do Tribunal Superior do Trabalho (2012), presumindo, à falta de prova bastante das razões objetivas da dispensa, que é dis-criminatório a dispensa de empregado portador de vírus HIV ou de outra doença de caráter estigmatizante. Nesses casos, presumida a discriminação, aplicam-se integralmente os efeitos da Lei n. 9029/199512. Estabilizou-se, com o novo ver-bete, jurisprudência que há muito vinha sendo repercutida nos tribunais regio-nais13. In verbis:

11 O artigo 74, §2º, da CLT estatui que “[p]ara os estabelecimentos de mais de dez trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho, devendo haver pré-assinalação do período de repouso”. Logo, por dever legal, o empregador com mais de dez empregados está obrigado a manter controles de ponto, o que o torna muito mais apto para produzir essa prova em juízo. “A contrario”, manter esse ônus com o empregado, por obediência cega à letra do artigo 818 da CLT, significaria “premiar” o empregador desidioso com suas responsabilidades administrati-vas: desatendendo ao comando do artigo 74, §2º, da CLT, não geraria prova preconstituída; e, por seu ilícito (sancionado com multa, ut artigo 75 da CLT), teria em juízo a vantagem de que a prova da jornada alegada caberia, de regra, ao trabalhador-reclamante. Nada mais ignominioso.

12 A Lei n. 9029, de 13.04.1995, “[p]roíbe a exigência de atestado de gravides e esterilização e outras praticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de traba-lho, e dá outras providência”.

13 V., e.g., TST, AIRR n. 8925-84.2010.5.01.0000, 8ª T., rel. Min. MáRCIO EURICO VITRAL AMA-RO, j. 03.08.2011, in DEJT 05.08.2011. In verbis: “AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA - EMPREGADA PORTADORA DO VÍRUS HIV. DISPENSA IMOTIVADA. REINTE-GRAÇÃO. PRESUNÇÃO DE ATO DISCRIMINATÓRIO . INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. Nega-se provimento ao Agravo de Instrumento que não logra desconstituir os fundamentos do despa-cho que denegou seguimento ao Recurso de Revista. Agravo de Instrumento a que se nega provimen-to” (g.n.). Ou,ainda, TST, RR n. 124400-43.2004.5.02.0074, 1ª T., rel. Des. JOSÉ PEDRO DE CA-MARGO RODRIGUES DE SOUZA, j. 25.04.2012, in DEJT 11.05.2012. In verbis: “RECURSO DE REVISTA - EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS HIV - DISPENSA IMOTIVADA - PRESUNÇÃO DE ATO DISCRIMINATÓRIO - DIREITO À REINTEGRAÇÃO. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que a dispensa imotivada de empregado soropositivo é presumidamente dis-criminatória, salvo comprovação de que o ato decorreu de motivo diverso. Viabilizado o recurso por divergência válida e específica, merece reforma a decisão do Regional, para que se restabeleça a r. sentença que concedeu ao reclamante o direito à reintegração. Recurso de revista conhecido e provido” (g.n.). Vale lembrar que, na estreita visão do artigo 818 da CLT, nada disso seria possível.

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DISPENSA DISCRIMINATÓRIA . PRESUNÇÃO . EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE . ESTIGMA OU PRECONCEI-TO . DIREITO À REINTEGRAÇÃO – Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012. Presume-se discriminatória a despedida de em-pregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à rein-tegração no emprego

Chega-se, por fim, à figura dos assédios, i.e., do assédio sexual e do assédio moral. Embora a matéria ainda não esteja sumulada, a técnica da inversão do ônus da prova tem sido frequentemente aplicada pelos tribunais regionais do trabalho. Com efeito, em diversos julgados se tem admitido, à falta de prova da normalidade da conduta, que o abuso foi perpetrado, mesmo à falta de testemunhas oculares. Sobre essas nos debruçaremos, adiante, no tópico n. 4. Registre-se, porém, não ser essa a jurisprudência dominante nos últimos anos, especialmente em alguns tribunais regionais14.

14 Assim, p.ex.: “ASSÉDIO MORAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. INDENIZAÇÃO INDEVIDA. Não res-tando provado, por parte da reclamante, o alegado assédio moral, correta a sentença ao não deferir a pleiteada indenização correspondente” (TRT 7ª Região, RO n.0001721-79.2010.5.07.0013, 2ª Turma, rel. Paulo Régis Machado Botelho, in DEJT 14.11.2011). “INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. INEXISTÊNCIA DE PROVA. Não demonstrada pela prova dos autos o propalado assédio moral perpetrado pela reclamada, o indeferimento do pedido de indenização por danos morais é medida que se impõe. Recurso parcialmente provido” (TRT 7ª Região, RO n. 0000702-47.2010.5.07.0010, 2ª Turma, rel. Maria Roseli Mendes Alencar, in DEJT 03.10.2011). “DANOS MORAIS. AUSÊNCIA DE PROVA. O panorama instrutório se presta suficientemente para respaldar as lúcidas conclusões da magistrada sentenciante quanto à ausência de elementos probatórios robustos da ofensa moral alegada, em face mesmo da impossibilidade de se dar crédito aos depoimentos das testemunhas do autor - sob suspeita de troca de favores e aliciamento - os quais, por outro lado, foram contrariados, em seu conteúdo, pelas testemunhas conduzidas pela empresa que ressaltam o clima de tranquili-dade e harmonia na agência gerenciada pela Sra. Rosângela, impondo-se, pois, a confirmação da sentença vergastada, também neste tocante” (TRT 7ª Região, RO n. 0079900-91.2009.5.07.0003,1ª Turma, rel. Rosa de Lourdes Azevedo Bringel, in DEJT 08.11.2011). “ASSÉDIO MORAL. ÔNUS DA PROVA. Indevida indenização por danos morais quando não restou evidenciado o alegado assédio moral, ônus que incumbia ao reclamante (artigo 818 da CLT c/c artigo 333, inciso I, do CPC). Não se vislumbram nos autos quaisquer indícios de que tenha o autor tenha sofrido constrangimento em ra-zão de receber salário inferior aos paradigmas indicados. Sentença que se mantém” (TRT 9ª Região, RO n. 1558-2008-094-09-00.0, 4ª Turma, rel. Sérgio Murilo Rodrigues Lemos, in DJe 14.05.2010 , p. 243). V. ainda, entre outros, TRT 9ª Reg ., RO n . 00297-2006-673-09-00-7-ACO-34648-2007, 1ª

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Afinal, poderão os tribunais, à falta de previsão legal expressa, consolidar esse entendimento? Com que fundamentos? Vejamos.

3 . ôNUS DA PROVA E INfLEXÕES fORMAIS . INTERPRETAÇÃO CONfORME

A inflexões procedimentais como essas que estamos examinando, quando le-gitimadas por juízos concretos de ponderação jusfundamental, temos chamado de inflexões formais do devido processo legal. Com isto, queremos significar que

[...] as inflexões formais decorrem de específicos poderes assistenciais que as ordens jurídicas democráticas acometem a juízes e tribunais, sob limites, para que os exerçam atendendo às necessidades objetivas do litígio e às características do bem da vida “sub iudice”;

e que

[...] a escrutinação desses poderes permite identificar normas cons-titucionais adscritas definidoras de novos direitos processuais funda-mentais, aptos a justificar imediatamente grande parte das inflexões formais (e a extremá-las de deflexões ilegítimas), como o direito a um processo efetivo, o direito a um procedimento adequado (para o direi-to material em tese e para as circunstâncias fático-concretas), o direito a um contraditório eficaz, o direito a uma jurisdição corretiva e trans-formadora, o direito à coisa julgada constitucional e o direito a meios de execução efetivos e adequados.15

São, pois, alterações pretorianas da ordem positiva de repartição do ônus da prova, que eram outrora decididas fora de qualquer permissivo legal expresso,

T ., rel . Des . UBIRAJARA CARLOS MENDES, in DJPR 23.11.2007; TRT 3ª Reg., RO n. 0001235-68.2011.5.03.0014, 2ª T., rel. Des. JALES VALADãO CARDOSO, in DEJT 02.02.2012.

15 Guilherme G. Feliciano, Por um processo realmente efetivo: Inflexões do “due process of law” na tutela processual dos direitos humanos fundamentais, São Paulo, LTr, 2016. p.1355 e ss.

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explicando-se pouco ou mal em perspectiva legal-positiva, mas que se compreen-dem bem sob a égide de inflexões formais constitucionalmente inscritas e juridi-camente legítimas (sempre no contexto de ponderações judiciais concretamente estabelecidas). Já não é mais assim, para o processo civil, à luz do atual artigo 373, §1º, do NCPC; como talvez jamais tenha sido para o processo do trabalho, à luz do artigo 765 da CLT.

E, em uma ou outra perspectiva, tais inflexões cabem nos processos que ver-sam sobre assédios morais? Certo que sim.

Em todas as variações baseadas na teoria das inflexões do devido processo legal formal, as intervenções – e, na espécie, as inversões ou exclusões do ônus da prova – devem ser operadas com base em argumentação jusfundamental bastante. Amiúde, dão-se em processos que discutem, nalguma dimensão, direitos humanos funda-mentais em tese afetados pela conduta da parte finalmente onerada com o encargo da prova (como o direito à vida, à saúde, à imagem ou ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ou os próprios direitos sociais fundamentais), ora em processos nos quais se reconheceu que uma das partes detinha instrumentalmente a melhor aptidão para a prova (e.g., quanto à prova da notificação da autuação de trânsito — em relação jurídica de tipo subordinativo que nada tem, p.ex., com o CDC e a regra do art. 6º, VIII — e quanto à própria prova da jornada na Súmula n. 338 do TST). Essa constatação já nos dá indícios do que diremos logo adiante, quando buscarmos formular uma justificação constitucional de fundo para todas as inflexões aqui comentadas (ou, ao menos, a maior parte delas).

Por ora, todavia, interessa dizer que essa variabilidade de hipóteses não se explica adequadamente com a interpretação − mais ou menos elástica − dos pre-ceitos jurídicos definidores de regras de repartição do “onus probandi” (artigo 373 do CPC/2015). Há, sim, inflexões formais que devem ser reconhecidas. E, para assim demonstrar, recorramos mais uma vez ao processo laboral e ao contraponto com TEIXEIRA FILHO. Comentando o artigo 818 da CLT, o jurista paranaense obtempera que

a grande tarefa da doutrina trabalhista brasileira, que tanto tem se em-penhado em cristalizar o princípio da inversão do ônus da prova, em benefício do trabalhador, consistirá em encontrar, no próprio conteú-do do art. 818 da CLT, os fundamentos que até então vem procurando, abstratamente, para dar concreção ao princípio da inversão do encargo

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da prova em prol do trabalhador. Vale dizer: o caminho sugerido é o da elaboração de uma precisa exegese daquele artigo, cujo verda-deiro sentido ainda não foi idealmente apreendido pela inteligência doutrinária16.

Com efeito, em relação às inversões de carga probatória quanto a jornadas extraordinárias, p.ex., vimos há pouco o entendimento do autor: se o empresário contesta o pedido de horas extras, atrairia para si o ônus da prova, por força doa artigo 818, já que estaria a alegar a normalidade da jornada — o que, diga-se, vai além da hipótese da Súmula n. 338 do TST, que só admite tal inversão quando pende sobre o empregador a obrigação de documentar, ut artigo 74, §2º, da CLT. Da mesma forma, TEXEIRA FILHO advoga que, se o autor pede verbas rescisó-rias alegando ter sido demitido sem justa causa, e se o réu apenas alega não o ter dispensado, a prova da demissão injusta seria do trabalhador, então à luz do artigo 333, I, do CPC/1973 (hoje, artigo 373, I, do CPC/2015), por ser esse o fato constitu-tivo do seu direito às rescisórias; já à luz do artigo 818 da CLT, o “onus probandi” seria do réu, por ter alegado o fato negativo (de que “não despediu”).

Há nesse raciocínio, com todas as vênias, dois enganos. Primeiramente, há um equívoco quanto à correta interpretação das regras de

repartição estática do artigo 333 do antigo CPC (e, portanto, do artigo 373 do CPC atual). Nos contratos de trabalho por prazo indeterminado, em que opera mais fortemente o princípio da continuidade da relação de emprego (veja-se a Súmula n. 212 do TST), o fato constitutivo do direito às verbas rescisórias é a mera dispen-sa, que sempre se presume injustificada. Não é, portanto, a “dispensa imotivada”; a adjetivação não compete à esfera de encargos probatórios do trabalhador. Basta examinar a CLT para assim concluir, em inteira harmonia com a “Satzbautheorie” de ROSENBERG. Pela sintaxe do artigo 477, caput, da CLT17, duas locuções condi-

16 Manoel Antonio Teixeira Filho, Curso..., v. II, p.976.17 In verbis: “É assegurado ao empregado, não existindo prazo estipulado para a terminação do respec-

tivo contrato, e quando não haja ele dado motivo para cessação das relações de trabalho, o direito de haver do empregador uma indenização, paga na base da maior remuneração que tenha percebido na mesma empresa”. O artigo 477 da CLT ainda norteia toda a indenização rescisória nas dispensas sem justa causa, embora a sua figura principal — a indenização por tempo de serviço do artigo 478 da CLT (outrora equivalente a um mês de remuneração por ano de serviço efetivo, ou por ano e fração igual ou superior a seis meses) — esteja hoje substituída pela indenização do artigo 18,

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cionam negativamente a oração principal (que diz do “direito de haver do empre-gador uma indenização”): a expressão “não existindo” (prazo preestabelecido para a terminação do contrato) e a expressão “quando não haja” (justa causa do empre-gado). A “Grundnorm”, portanto, está no preceito segundo o qual “[é] assegurado a todo empregado o direito de haver do empregador [na rescisão] uma indenização, paga na base da maior remuneração que tenha recebido na mesma empresa”; e sua característica definidora, à vista do título do próprio capítulo18, é o fato “rescisão” (= cessação das relações de trabalho). Mas o mesmo dispositivo abriga as respec-tivas contranormas, a saber, a predeterminação da vigência contratual (que afasta, e.g., o direito ao aviso prévio indenizado) e a motivação obreira para a cessação do contrato (por demissão ou justa causa do empregado, reduzindo sensivelmen-te os direitos rescisórios). Assim, pelo modelo rosenberguiano, admitindo-se não haver controvérsia sobre a cessação do trabalho (como não há, no exemplo de TEIXEIRA FILHO), o ônus da prova será do reclamado (empregador), seja quanto à natureza do contrato de trabalho (prazo determinado), seja quando à motivação obreira para a cessação (demissão — observando-se a formalidade do artigo 477, §1º, se havia mais de um ano de casa19 — ou justa causa do empregado), caso opo-nha esses fatos à pretensão autoral. Precisamente como se orienta atualmente a pacífica jurisprudência trabalhista, sem necessidade de qualquer inflexão formal.

Por outro lado, levada às suas máximas consequências, a proposta de TEIXEI-RA FILHO conduz ao absurdo (“reductio ad absurdum”): se o artigo 818 da CLT deve ser interpretado de modo que todas as alegações de fato da defesa — digam ou não com as “características definidoras” das contranormas (ROSENBERG), vazem ou não fato negativo — atraiam o encargo da prova, e se essa regra não ad-mite inflexões, então não teríamos encontrado uma “alternativa hermenêutica” ao

§1º, da Lei n. 8.036/1990 (equivalente a quarenta por cento dos depósitos corrigidos do FGTS, tal como devidos da admissão à dispensa), com arrimo no artigo 10, I, do ADCT. Assim é que, p.ex., o décimo terceiro e as férias proporcionais seguem sendo calculadas de acordo com a “maior remu-neração que tenha percebido na mesma empresa”, o que inclui a integração de horas extraordinárias e de outros títulos salariais habituais.

18 Cap. V do Título IV da CLT: “Da Rescisão”.19 In verbis: “O pedido de demissão ou recibo de quitação de rescisão de contrato de trabalho, firmado

por empregado com mais de 1(um) ano de serviço, só será válido quando feito com a assistência do respectivo Sindicato ou perante a autoridade do Ministério do Trabalho” (g.n.). Trata-se, para parte da doutrina, de formalidade “ad solemnitatem”, que condiciona a própria validade da resili-ção por iniciativa do empregado com mais de um ano de casa.

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princípio da inversão do ônus da prova (ou, dir-se-ia mais corretamente, princípio da repartição dinâmica do ônus da prova), mas uma solução de quase absoluta isenção processual do trabalhador (ou, pior, do autor, que em vários casos poderá ser o empregador20): alegasse o que bem desejasse, o ônus da prova seria sempre do réu, desde que simplesmente negasse o fato (porque, como advertiu CHIOVENDA — supra —, toda negação é a alegação de um fato diverso, e vice-versa). Na prática, somente o réu provaria, o que é insustentável.

Por fim, parece muito claro que toda a elaborada argumentação é construída em torno uma preocupação meritória e louvável: evitar que a utilização do regra-mento estático do CPC conduza a armadilhas probatórias que mortifiquem as pretensões materiais dos trabalhadores no processo laboral. Mas essa preocupa-ção com a especificidade “ontológica e finalística” do processo laboral (na expres-são do autor) não é outra coisa senão admitir a necessidade de inflexões concretas na repartição estática da lei (que, a rigor, é tão estática no CPC como o é na CLT). Tanto é assim que, logo adiante, o próprio TEIXEIRA FILHO pondera:

“A propósito, muito mais coerente e harmoniosa com os princípios do processo do trabalho seria a adoção subsidiária do inciso VIII, do art . 6º, da Lei n . 8 .078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) [...]. [...] Como se nota, o Código de Defesa do Con-sumidor, numa atitude vanguardeira, sob a perspectiva legislativa, au-torizou o juiz a inverter o ônus da prova, em benefício do consumidor, em duas situações específicas, a saber: a) quando forem verossímeis as suas alegações; b) quando este for hipossuficiente, ou seja, economica-mente debilitado. Pois bem. Conquanto entendamos que o art. 818, da CLT, seja autossuficiente, em matéria de onus probandi, nada obsta a que se utilize, em caráter supletivo, a regra inscrita no inciso VIII, do art . 6º, do CDC, máxime, nos casos em que o trabalhador for, ver-dadeiramente, hipossuficiente”21.

20 E.g., inquéritos judiciais para apuração de falta grave (em face de empregados estáveis), ações de consignação em pagamento, ações meramente declaratórias (ou de simples apreciação), ações pos-sessórias, reconvenções etc.

21 Manoel Antonio Teixeira Filho, Curso..., v.II, pp.977-978 (g.n.). De se recordar, a propósito, que, ao contrário do que pode sugerir o excerto, a “hipossuficiência” objeto do artigo 6º, VIII, do CDC não

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Ora, se a legislação processual trabalhista só admite a invocação das normas de processo civil (comum ou especial) quando houver omissão da CLT, e se o pró-prio autor reconhece não ser o texto celetário omisso nessa matéria (“ex vi” do multicitado artigo 818), o que justificaria que o intérprete não pudesse buscar am-paro na legislação processual civil comum (artigo 333 do CPC), mas estivesse livre para abeberar-se na legislação processual civil especial (artigo 6º, VIII, do CDC)? Do ponto de vista do direito positivo, absolutamente nada. O que TEIXEIRA FI-LHO propõe, afinal, é uma inflexão do devido processo formal-legal (que, pela li-teralidade do artigo 769 da CLT, não consentiria com qualquer regra de repartição do ônus da prova diversa da que se contivesse no artigo 818). Mas uma inflexão animada, na sua “escolha” — e se há escolhas, não há neutralidade técnica —, pela maior identidade do ônus dinâmico condicionado da Lei n. 8.078/1990 com as características inerentes ao processo laboral e o direito material a ele subjacente. Uma escolha animada, mais, pela dignidade diferenciada das pretensões materiais geralmente vazadas no processo do trabalho (direitos individuais e sociais funda-mentais), que se agrava pela debilidade econômica presuntiva de uma das partes (reflexível em sede processual). Ou, em suma: uma escolha animada por conexões de jusfundamentalidade.

E como podemos justificá-las, identificá-las e defini-las? Vejamos.A permissão do sistema jurídico-positivo para as inflexões do devido proces-

so formal raramente decorre do manejo de técnicas formais de hermenêutica con-vencional (como é a interpretação extensiva “pura”) ou de métodos de integração (como é a analogia). Ao revés, as inflexões formais amiúde decorrem de esforços de interpretação conforme a Constituição («verfassungskonforme Auslegung») . E a interpretação conforme a Constituição — que, para autores como CHRISTIAN STARCK 22, WALTER BERKA23, JORGE MIRANDA24, GOMES CANOTILHO25

é exatamente, para boa parte da jurisprudência nacional, a hipossuficiência econômica que decorre do artigo 3º, caput, da CLT, mas sim uma hipossuficiência de ordem técnica (v., supra, nota n. 2322).

22 Cf. Mangoldt, Klein, Starck, Kommentar..., Band 1, pp.163-164 (“Gebot der Verfassungskonformi-tät”).

23 Cf. Walter Berka, Lehrbuch Verfassungsrecht: Grundzüge des österreichischen Verfassungsrechts für das juristische Studium, Wien, SpringerWienNewYork, 2005, pp.23-24.

24 Cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, t. II, pp.232 e ss.

25 Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., pp.1151-1152.

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e GILMAR MENDES26, chega a consubstanciar um genuíno princípio herme-nêutico — é, como se sabe, um instrumento que (a) não perfaz simplesmente uma técnica de interpretação, mas antes se situa no próprio âmbito do controle de constitucionalidade27 (difuso ou concentrado); e (b) não se limita a processos lógico-formais de exegese (como na interpretação enunciativa ou na interpretação gramatical), mas antes se escora nos conteúdos substantivo-constitucionais para se desenvolver (e, logo, é um processo lógico-material de interpretação, que se abre racionalmente a valores).

O princípio orienta que, perante os múltiplos significados de um dispositi-vo infraconstitucional, dentro do âmbito (e limite) do sentido possível do texto (“des möglichen Wortsinnes”), os intérpretes/aplicadores da Constituição esco-lham aquele(s) que o torne(m) consonante com a Constituição, e não aquele(s) que resulte(m) em sua declaração de inconstitucionalidade28. É, segundo MENDES

26 Cf. Gilmar Mendes et al., Curso..., pp.119-120.27 Nesse sentido, no Brasil, há paradigmática jurisprudência no Excelso Pretório. V. STF, Representação

n. 1417-7/DF, rel. Min. MOREIRA ALVES, TP, j. 09.12.1987, in DJ 15.04.1988, p.8397. In verbis: “O princípio da interpretação conforme a constituição (verfassungskonforme Auslegung) é princípio que se situa no âmbito do controle da constitucionalidade, e não apenas simples regra de inter-pretação. A aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que, ao declarar a inconsti-tucionalidade de uma lei em tese, o STF — em sua função de corte constitucional — atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo. Por isso, se a única interpretação possível para compatibili-zar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a constituição, que implicaria, em ver-dade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo” (g.n.). A ementa e o julgado trabalham com a ideia de a mínima conformidade com a vontade do legislador “lato sensu” — inclu-sive quanto à literalidade mínima (ao referir “a finalidade inequivocamente colimada pelo legislador, expressa literalmente no dispositivo em causa”). Como resultado do julgado, o Senado Federal editou a Resolução n. 31/1993, suspendendo a eficácia do par. 3º do artigo 65 da LO-MAN (que tratava de vantagens pecuniárias de magistrados).

28 Berka, Lehrbuch..., p.23. Para bem delimitar as possibilidades do instrumento — dentro da litera-lidade do texto normativo — e assim extremar as hipóteses de interpretação conforme daquelas da inconstitucionalidade “in abstracto”, o lente da Salzburg acrescenta: “Voraussetzung für die Anwen-dung der ˵Korformitätsregel“ ist zunächst ein Auslegungsspielraum, der durch den Wortsinn be-grenzt wird. Widerspricht ein Gesetz nach seinem eindeutigen Sinn der Verfassung, kann und darf es nicht verfassungskonform interpretiert werden [...]”. É como tem se manifestado, ademais, o próprio VfGH (1986). De outra parte, extrai-se igualmente da jurisprudência do VfGH (1996) que a inter-pretação conforme não prescinde de juízos de ponderação (“Abwärung”), pela via da proporcionali-dade/razoabilidade. Assim, p.ex., em sede de limitações ao direito de propriedade, entendeu-se que

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et al., “um cânone interpretativo [que] ao mesmo tempo que valoriza o trabalho legislativo, aproveitando ou conservando as leis, previne o surgimento de conflitos, que se tornariam crescentemente perigosos caso os juízes, sem o devido cuidado, se pusessem a invalidar os atos da legislatura”29.

Mas não é só. Para além de se escolher a interpretação que se compatibilize com a Constituição (e não o contrário), intelecções mais recentes da «verfassun-gskonforme Auslegung» sinalizam que, entre as várias interpretações constitu-cionais de uma norma, há que se optar por aquela que mais agudamente se orienta para a Constituição, ou que melhor corresponda ao seu programa normativo30. No dizer de MENDES, vê-se no princípio um “mandato de otimização do querer [ob-jetivo] constitucional”. E é esse o ponto fulcral, nomeadamente em sede de direitos humanos fundamentais. Tendo em conta que a literalidade do artigo 344º do CC não veda expressamente outras hipóteses de inversão do ônus da prova, extrair do preceito a sua “ratio essendi” — como fez, e bem, LYNCE DE FARIA — para com ela autorizar inversões pretorianas onde as mesmas razões de necessidade ou con-veniência se ponham, com vista à consecução de decisões de mérito mais afinadas com as possibilidades concretas das partes e a dignidade das pretensões mate-riais envolvidas, é indubitavelmente um modo de otimizar o «due process of law» (quanto à efetividade da jurisdição e ao mais amplo acesso à ordem jurídica justa); e, por ele, os próprios direitos fundamentais “in tese” vindicados. Realiza-se, de resto, o princípio da máxima efetividade (especialmente importante em contextos de crise ou vulnerabilidade hipotética de direitos humanos fundamentais, como, p.ex., nos supostos de assédio moral).

Nem por isso, porém, estava ferido de morte, no que tange à repartição do ônus da prova, o disposto no artigo 333 do CPC/1973 (e tanto menos no artigo 373

a interpretação conforme, que valha a constitucionalidade do ato normativo, só poderá ser aquela que assegure ao proprietário uma fruição econômica razoável do bem: “Eigentumsbeschränkenden Regelungen ist in verfassungskonformer Auslegung zu unterstellen, dass sie unter einem Vorbehalt des wirtschaftlich Zumutbaren stehen” (Berka, Lehrbuch..., p.24). V. Sammlung der Erkentnisse und wichtigsten Beschlüsse des Verfassungsgerichtshofes n. 11.036/1986 e n. 14.489/1996 (respectiva-mente)..

29 Gilmar Mendes et al., Curso..., p.119. Daí que a constitucionalidade se presume, enquanto a incons-titucionalidade deve ser demonstrada “de modo cabal, irrecusável e incontroverso”.

30 Cf., por todos, Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1999, pp.290-291. V. também Gilmar Mendes, Curso...,p.120.

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do CPC/2015, atualmente, considerando-se que, agora, há exceções à regra geral dispostas no próprio parágrafo 1º). O modelo rosenberg-chiovendiano – prova dos fatos constitutivos pelo autor, prova dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos pelo réu − segue como pano de fundo para as relações processuais civis e laborais, em todo caso. Todavia, sob competente argumentação jusfunda-mental (sindicável no tribunal “ad quem”), aquele modelo pode ser dinamizado, com inversões ou exclusões pretorianas do “onus provandi”, diante de circunstân-cias concretas justificadoras. Não são decisões despóticas. São decisões juridica-mente fundamentadas, de base constitucional, que se sujeitam a todos os controles próprios do sistema recursal.

Enfim, na vereda da argumentação jusfundamental, exatamente com que base jurídica constrói-se a inversão?

A justificação material constitucional, a nosso ver, explica-se quase por si mes-ma. Na dicção de UGARTE CATALDO (referindo-se ao processo laboral e, logo, à questão do assédio moral trabalhista),

“[n]ão existe uma única técnica de mitigação probatória, mas várias modalidades distintas que, sem embargo, servem a um mesmo objeti-vo: facilitar a posição probatória (aligeirar o ônus da prova) do traba-lhador autor, alterando o axiona central em matéria probatória, de que a prova de um fato corresponde a quem o alega, atendida uma plura-lidade de razões de política judiciária: a realização de interesses gerais de justiciabilidade dos direitos fundamentais — garantias de justiça —; lidar com o problema prático consistente nas dificuldades da prova do fato discriminatório ou contrário ao direito fundamental — debilidade da posição probatória —, o que leva a estabelecer regras específicas de distribuição da prova a favor da posição subjetiva do trabalhador, agravando-se simetricamente a do empresário demandado” 31.

31 José Luis Ugarte Cataldo, El nuevo derecho del trabajo, Santiago de Chile, Editorial Universitaria, 2004, p.132 (g.n.). Não por outra razão, no Anteprojeto de Reforma do Processo do Trabalho brasi-leiro, propusemos a positivação do princípio do ônus dinâmico da prova (artigo 762-C, §2º, V), que se basearia “na melhor aptidão para a prova, nas constelações de indícios, na verossimilhança das alegações ou na utilidade do processo, sem prejuízo de outros elementos que informem uma reparti-ção fundamentada, exarada em decisão judicial que anteceda a fase instrutória e seja previamente

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Já a justificação processual desafia uma certa problematização, para melhor entendimento.

A rigor, o chamado “princípio da aptidão para a prova” — pelo qual o encargo da prova deve caber aprioristicamente àquele que a puder produzir com menor sacrifício, ou sem dificuldade excessiva que impeça ou estorve sensivelmente a satisfação da pretensão material32 — nada mais é do que uma concreção do direito à tutela judicial efetiva, no sentido de um acesso à jurisdição plena e justa. Com efeito, os órgãos jurisdicionais têm o dever de repelir toda interpretação formalista e desproporcional de elementos procedimentais que os conduzam a negar acesso ou efetividade à jurisdição. Ao revés, devem adotar as intelecções que resultem mais consentâneas com a perspectiva funcional do exercício do direito à tutela judicial, abrangente do tripé acesso, mérito e satisfação. Ora bem, uma jurisdição que se resolva com insuficiente instrução probatória é uma jurisdição que produz decisões de mérito menos fidedignas à realidade. Noutras palavras, aproxima-se menos do ideal conceitual de Verdade como valor-tendência33.

Com isto, bem se vê que a modulação dinâmica do ônus da prova conforme a melhor aptidão probatória tem, por detrás de si, valores jusfundamentais liga-dos ao «due process of law»: acesso à jurisdição como acesso à melhor decisão de mérito atingível (v., no CPC/2015, o artigo 4º: direito à “decisão de mérito justa e efetiva”); lealdade e cooperação processual; Verdade como valor-tendência do processo. É nessa medida que, tal como as justificativas de ordem material, tam-bém a justificativa de ordem processual, no que diz com a aptidão para a prova, tem fundo jurídico-constitucional. Independentemente de quaisquer debilida-des materiais do “ex adverso” (que podem reforçar a conclusão, mas pela lógica jurídico-material), a parte com melhor aptidão para produzir a prova acerca dos fatos relevantes, pertinentes e controvertidos do processo é quem, exatamente pela condição de mais apta, deve, em princípio, produzi-la (até porque, já sabemos, o princípio “nemo tenetur edere contra se” aplica-se mormente ao processo penal,

comunicada às partes do dissídio, prevenindo-se a surpresa” (§18). Cf. G. G. Feliciano et al., Fênix..., pp.132 e 134.

32 Cf., e.g., Manoel Antonio Teixeira Filho, A Prova no Processo do Trabalho, 5ª ed., São Paulo, LTr, 1991, p.84 (reportando-se a PORRAS LÓPEZ). V. também, do mesmo autor, Curso..., v. II, p.977.

33 V., a respeito, Guilherme G. Feliciano, Por um processo..., §18º, n. III.

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não ao processo civil ou laboral34). Daí se extrair que, não a produzindo injustifi-cadamente, possa vir a suportar o ônus da prova quanto àqueles fatos: escandali-za que, por descumprir o seu dever geral de cooperação processual, quando não obrigações ou deveres materiais de documentação ou preconstituição, a pessoa logre obter uma vantagem no processo. Um raciocínio jurídico que conduza a esse resultado é, em si mesmo, antissistemático.

A rigor, mesmo a “objetividade abstrata” da teoria de ROSENBERG permitiu soluções que não raro abrigam, a nosso sentir, pendores mais teleológicos do que lógico-formais. Excelente exemplo está nas considerações do próprio ROSENBERG quanto ao ônus da prova de uma “violação grave de deveres conjugais” nas ações de divórcio (§43 do EheG): dever-se-ia esperar do cônjuge ofendido — o autor (e, àquele tempo, geralmente o homem35) — não apenas a prova da prática faltosa do “ex adverso”, senão também a prova da “ausência das circunstâncias que obstam a que os eventos que fundam a demanda se apresentem como grave falta conjugal” (i.e., a inocorrência de legítima defesa ou de enfermidade mental, ou de qualquer outra razão especial que justificasse, p.ex., a ausência de coabitação sexual, e que viesse a ser alegada pela ré). Segundo ROSENBERG, essas circunstâncias não se ligariam a normas impeditivas de direitos (como se dá, de regra, com a legítima defesa), mas seriam apenas a concretização do conceito de “violação grave e culposa”, integrante da “ facti species” da norma constitutiva. Provar a culpa do adversário, aqui, signi-ficaria provar inclusive a inexistência de excludentes de culpa e/ou de ilicitude (o que já não se admite nos tribunais de hoje). O mesmo se daria, outrossim, nas ações judiciais para a privação da legítima: apontados, e.g., os maus tratos ao “de cuius”, se o réu alegasse legítima defesa ou estado de necessidade ao tempo da agressão, caberia à parte que quer ver o réu privado da legítima não apenas provar os maus tratos, mas também a inocorrência da excludente; do contrário, os maus tratos não se provariam “culposos” para os fins do § 2333, 2, do BGB36.

Ora, em ambos os casos, a repartição sugerida por ROSENBERG recrudes-ce sobremodo a carga probatória daquele que, pretendendo alterar o “status quo”

34 V. também G.G. Feliciano, Direito à prova..., Cap. IV, tópico 4.1.35 Tanto que, nalgumas referências, o próprio ROSENBERG referiu-se ao pretenso ofensor como “ré”

ou “demandada”, na flexão feminina.36 Rosenberg, La carga..., pp.188-189. MÚRIAS, porém, parece ver justamente o contrário (Por uma

distribuição..., p.49).

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patrimonial, cria o risco de levar a contraparte ao relativo desamparo (assim, e.g., nas ações de perdimento da legítima, ou ainda nas ações de divórcio, se fosse réu o cônjuge virago); e a recrudesce tão intensamente que inclusive acomete, à parte ofendida ou interessada, a prova de fatos negativos definidos (e.g., de que a agres-são não se deu em legítima defesa). Ao revés, em outras situações (em maioria, aliás), a legítima defesa é vista como pressuposto da norma impeditiva e, por isso mesmo, objeto de prova do agressor (não do agredido) — até porque não tem a ver com culpa, mas com ilicitude.

Em outra passagem, discorrendo sobre “os casos em que o ônus da prova recai principalmente sobre o réu”, novamente se insinua o interesse pelos resultados concretos da repartição. Identificando a dificuldade de a parte provar fato nega-tivo (presente — mas ignorada — na hipótese anterior), ROSENBERG funda-se nisso para argumentar que o “onus probandi” haveria de ser da contraparte. É o caso da venda sob condição potestativa suspensiva de satisfação do comprador (ou resolutiva de sua insatisfação): o implemento da condição, se consistisse na aprovação, deveria ser provado pelo vendedor; assim como deveria ser provado pelo comprador, se consistisse na desaprovação. Isso porque, “em caso de se haver entregue a mercadoria ao comprador para que a aprove ou examine, o silêncio, isto é, uma omissão, vale como aprovação (§ 496, inc. 2) — e, por conseguinte, neste caso se trata de uma condição suspensiva negativa — [...]; o adversário [é que] terá que mostrar a declaração de desaprovação por parte do comprador”37, obviamente com melhores condições para fazê-lo (aptidão?), já que seria geralmente o próprio comprador. A expressão “em caso de” indica, ademais, flerte com a ideia de “ônus da prova concreto”.

Daquela justificação material constitucional para as modulações concretas do “onus probandi” não falam, ademais, apenas os processualistas. Também na doutrina constitucionalista encontram-se vozes de nomeada apontando para a ne-cessidade de que o ônus da prova tome em consideração a dignidade das preten-sões materiais subjacentes, especialmente se dotadas de jusfundamentalidade (= direitos fundamentais, garantias constitucionais e liberdades públicas). Inclusive em Portugal. Partindo da hipotética processualização de questões jusfundamen-tais como a objeção de consciência (artigos 41º, 6, da CRP e 5º, VIII, da CRFB), o direito de asilo (artigos 33º da CRP e 4º, X, da CRFB), a manifestação ou reunião

37 Idem, pp.357-358.

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pacífica e sem armas (artigos 45º da CRP e 5º, XVI, da CRFB) e a proibição de associações armadas, paramilitares, racistas ou fascistas (artigo 46º, 4, da CRP e artigo 5º, XVII, da CRFB), GOMES CANOTILHO38 reportou que

“[o] princípio básico sobre repartição do ónus da prova é, como se sabe, este: a repartição do õnu da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (assim, precisamente, o art. 516º do Código de Processo Civil português). Tranferindo, de plano, este princípio para os direi-tos, liberdades e garantias, o princípio da repartição do ónus da pro-va poderia formular-se assim: quem invocar um direito fundamental (rectius: um direito, liberdade e garantia) deve fazer prova de que lhe assiste esse direito. Mas as coisas não são assim tão simples.

“[...] As consequências de uma radicalização do princípio geral do ónus de prova neste domínio justificam já eta primeira interrogação: quem suporta o risco de não ver provido o que se pede — ser ou não ser objector de consciência? O titular do direito á objecção de consciência ou o Estado?

“[...] O risco do ónus de prova incide, em termos gerais, sobre a parte (o titular do direito) que reclama o direito de asilo. O risco, como se vê, redunda ou pode redundar numa discricionariedade total das autori-dades quanto à produção da prova do direito de asilo.

[...] Mas uma manifestação com armas tradicionais (e.g., de índios, de zulus) cabe ou não no âmbito de protecção jurídico-constitucional? A quem cabe o ónus da prova?

[...] Quem é que tem de provar que não é associação armada, mili-tar, paramilitar, militarizada, racista ou fascista? Os cidadãos ou as autoridades?”

E, após uma série de considerações (que passa pela própria análise do ônus da prova — na verdade, ônus da alegação e da demonstração, pois neste caso não há matéria fática — decorrente da inversão ditada pela “presumption of

38 J. J. Gomes Canotilho, Estudos..., pp.169-175 (“O ónus da prova na jurisdição das liberdades: Para uma teoria do direito constitucional à prova”).

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constitutionality”das leis), termina por argutamente indagar: “será o legislador mais livre na conformação de regras processuais probatórias, de incontornável re-levância para a efectividade dos direitos, do que na restrição material de direitos, liberdades e garantias?” Ou — o que é o mesmo —, “poderá o legislador processual estabelecer regras probatórias conducentes a uma distribuição injusta do ónus da prova?” Por tudo o que já se viu supra, e supondo-se que a “injustiça” configure-se pela virtual lesão a direitos, liberdades e garantias, a resposta é pronta e inequí-voca: não. O «procedural due process» deve se conformar ao «substantive due process»39 — o que significa que as soluções processuais legislativas, no marco do «procedural due process», não podem tisnar perene e desproporcionalmente outros direitos fundamentais.

Por isso mesmo, na resposta àquela indagação, CANOTILHO termina por formular o princípio do “in dubio pro libertate”, nos seguintes termos:

“Um limite material restritivo da liberdade de conformação da pro-va pelo legislador é constituído pela especial dignidade e importân-cia atribuídas a determinados bens constitucionais (vida, liberdade, integridade física). Isto justifica que quando alguns direitos inviolá-veis estejam sujeitos a restrições e estas restrições pressuponham a existência de determinados factos acoplados a juízos de prognose, o ónus da prova pertence não a quem invoca o direito mas a quem cabe decretar as restrições . Assim, por exemplo, quando estiver em causa a aplicação de uma medida privativa de liberdade em caso de perigosidade criminal baseada em grave anomalia psíquica, o ónus da prova pertence não ao titular do direito à liberdade, mas às entidades (judiciais ou outras) que solicitam a medida de segurança” (g.n.).

E conclui:

“Os direitos fundamentais transportam sempre uma dimensão subjec-tiva (são «direitos das pessoas») e uma dimensão objectiva (transpor-tam dimensões jurídico-objectivas que devem pautar a conformação do direito ordinário). Compreende-se que quando a medida justa

39 Guilherme G. Feliciano, Por um processo..., §25º, n. III.

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da distribuição do ónus da prova é fundamental para a garantia de um direito, se devem evitar teorias abstractas e apriorísticas (como a já referida de Rosenberg) e se imponham soluções probatórias não aniquiladoras da própria concretização de direitos, liberdades e ga-rantias ” (g.n.).

No mesmo sentido, ademais, a jurisprudência estadunidense já vem reconhe-cendo uma insuficiência metódica das regras de distribuição do ônus da prova, quando estão em causa direitos fundamentais da pessoa (“basic constitucional rights”)40. Não se trata, portanto, de uma percepção isolada ou anarquista.

Mas o fato é, esteja inserta em um estatuto jurídico-substantivo ou em um estatuto jurídico-processual, uma regra legal probatória raramente será injusta “in abstracto”. A injustiça amiúde será casuística: desvelar-se-á apenas no caso concreto, diante dos pressupostos e das circunstâncias de aplicação daquela regra. É o que se passa em sede de repartição do ônus da prova. O modelo rosenberg--chiovendiano não é injusto “in se”; aliás, jamais sustentamos isso. A injustiça não está na regra, mas na sua peculiar concretude em certos contextos. Nessa esfera, o legislador já não pode agir; e, nada obstante, impende corrigir os excessos de-rivados do poder de conformação legislativa, ainda se imprevisíveis ao tempo da conformação, ou o sistema falharia em um de seus mais relevantes papeis (função de imperativo de tutela dos direitos fundamentais41). Deve agir, portanto, o juiz.

4. ônus dA ProvA E Assédio morAl

Historicamente, os textos legislativos de processo civil e laboral positivaram modelos de repartição do “onus probandi” que se caracterizam pela abstração, pela fixidez (modelos estáticos) e pela configuração “ex ante”. Disso não resulta, porém, que tais modelos não admitam inflexões formais de cariz judicial, calibra-das pelo «substantive due process» (proporcionalidade, capacidade de aprendiza-

40 Cf. Michael Nierhaus, Beweismass und Beweislast. Unterscuchungsgrundsatz und Beteiligtenmi-twirkung im Verwaltungsprozess: Studien zum Offentlichen Recht und zur Verwaltungslehre, Berlin, F. Vahlen, 1989, passim.

41 Canaris, Direitos fundamentais..., pp.59 e ss.

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gem), de acordo com necessidades concretamente aferidas e à mercê de circuns-tâncias excepcionalmente relevantes. De outro modo, privar-se-ia o juiz do poder de eleger as técnicas processuais mais adequadas para prover jurisdição efetiva. É que os modelos estáticos não são capazes de tomar em consideração as particula-ridades do direito material e do caso concreto para a distribuição do ônus da prova. O processo de conhecimento de feitio liberal é um processo neutro; e, logo, injus-to em alguns contextos, porque insensível às necessidades do direito material, não permitindo ao juiz inverter o ônus da prova de acordo com a situação concreta que lhe é trazida (MARINONI42). Se o direito de acesso à ordem jurídica justa — ou à justa composição do litígio — traduz um gradiente apreciável de justiça material, é ingente admitir que o exercício adequado do direito constitucional de ação, na perspectiva da máxima efetividade, supõe “a necessidade de procedimento, cog-nição, provimentos e meios executórios adequados às peculiaridades da pretensão do direito material”43. Logo, não pode haver um encilhamento formal irredutível. Quando as regras estáticas de repartição do ônus da prova tendem a determinar o sacrifício (materialmente) injustificado das pretensões de direito material, evocar a cláusula do «due process of law» significará, inclusive, reconhecer que o juiz detém meios bastantes — dir-se-ia mesmo “poderes implícitos”44 — para evitar aquele sacrifício e reconduzir o binômio processo-procedimento a uma condição razoavelmente isonômica e calibrada.

Pois bem. Para essa recondução, o “meio” por excelência foi explicitado há pouco: as regras legal-formais de distribuição do “onus probandi” desafiam, em todo caso, interpretação conforme a Constituição, em regime de ponderação prá-

42 Cf., e.g., Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença, 3ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, p.31.

43 Luiz Guilherme Marinoni, Novas linhas do processo civil, 2ª ed., São Paulo, Malheiros, 1996, p.124.44 Pela teoria dos poderes implícitos, para cada competência ou atribuição outorgada pela Consti-

tuição estão implicitamente outorgados amplos poderes para a respectiva execução, desde que não expressamente limitados. Surge na jurisprudência da U.S. Supreme Court, quando aos po-deres do Congresso, e daí se espraia para o mundo. Foi já evocada pelo STF em algumas ocasiões (recentemente, v. STF, HC 107644/SP, 1ª T., rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. 06.09.2011: reconheceu-se ao delegado de polícia, por lhe competirem as funções constitucionais de polícia judiciária e a apuração das infrações penais, ut artigo 144, §4º, da CRFB, o poder implícito de conduzir coercitivamente o suspeito para prestar esclarecimentos, se ele a isso resistir, ainda que inocorrente qualquer hipótese legal de prisão). Confira-se, de resto, o §33º, infra.

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tica e harmônica de bens e direitos (HESSE) e sob fundamentação concreta. Esse instrumento servirá para evitar o modelo estático — que passa a ter papel ordi-nário ou residual45 no sistema processual não-penal (já não, porém, como critério absoluto ou incondicional) — quando a sua observância cega ameaçar concre-tamente a integridade de outros direitos fundamentais em tese (“direitos prová-veis”) ou mesmo os escopos naturais do «due process of law». Em tais casos, à vista dos interesses materiais em jogo e da própria funcionalidade do processo, o juiz redistribuirá o ônus probatório, com a devida e prévia comunicação às partes (e sob regular contraditório, atual ou diferido). Poderá fazê-lo “ex officio” ou a requerimento das partes, com a competente fundamentação; em não o fazendo — ou indeferindo, p.ex., o requerimento correspondente —, sinalizará que a de-manda concreta não tem traços de excepcionalidade que permitam suspender o modelo ordinário-residual, de modo que a repartição far-se-á segundo o esquema legal-formal em vigor (no Brasil, artigos 373 e 374 do CPC/2015, inclusive para o processo laboral; em Portugal, artigos 342º a 344º do CC).

A utilidade/necessidade da fundamentação prévia da repartição dinâmica, a partir de uma hermenêutica constitucional focada na máxima efetividade dos direitos humanos fundamentais em tese afetados, arranca da constatação de que o esquema rosenberguiano representou decerto uma evolução, mas é hoje insufi-ciente para racionalizar a repartição do ônus da prova no processo civil46; e, nes-

45 “Residual”, aqui, como adjetivo concernente a fundo, raiz ou âmago (v. iDicionário Aulete, verbete “resíduo”, in http://aulete.uol.com.br — acesso em 15.07.2012), e não como “resto”, “escória” ou “sobra”. O modelo rosenberg-chiovendiano segue sendo o modelo de fundo, a que retrocedem todos os casos que não desafiem a distribuição dinâmica do ônus probatório.

46 Além das razões já alinhavadas, quanto à sua fixidez ancilosadora, pode-se acrescentar, com MÚ-RIAS (especialmente para o caso português): a “Normentheorie” é estéril no plano legislativo (não consegue assegurar a estabilidade afiançada e pressupõe um legislador disposto a enunciar a lei segundo os seus esquemas linguísticos, o que é por tudo duvidoso), torna-se inutilizável sempre que o aplicador do direito não possa reconduzir o seu juízo a um texto legal ou equiparável (assim, e.g., se decidir por princípios jurídicos implícitos, por cláusulas gerais ou por conceitos jurídicos indeterminados), é limitada — quando não contrariada — pelos próprios limites do instituto do ônus da prova e, por fim, o seu “ funcionamento [...] em casos de «normas autônomas incompatíveis» implica uma atenção incompleta à avaliação substantiva dos problemas” (Múrias, Por uma distri-buição..., pp. 87-92, 131-143 e 160). No mesmo diapasão, MICHELI obtempera que não se podem reger pela mecânica da repartição estática do ônus probatório, ainda quando haja matéria de fato, os julgamentos que se façam por princípios gerais de direito, pela aplicação de princípios do direito

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sa alheta, popor uma repartição dinâmica constitucionalmente ancorada parece convergir para a ideia de uma distribuição fundamentada como norte para o me-lhor equacionamento do problema (MÚRIAS47).

Poder-se-ia objetar, porém, que essa é uma solução propícia às instabilidades e à insegurança jurídica (como de resto objetarão todos os que lerem estas linhas com os olhos do juiz “enunciador”). Essas críticas aparecem muito dura e eviden-temente nas monografias de TARUFFO48 e VERDE49, por exemplo. Essa margem de insegurança, segundo nos parece, é da natureza mesma das técnicas processu-ais que procuram equacionar o processo a partir de parâmetros materialmente mais justos; é, por assim dizer, o “preço” de um binômio processo-procedimento mais afinado com as pretensões materiais subjacentes e a realidade de entorno. E , não bastasse, é também um aspecto do espírito do nosso tempo.

Nada obstante, é perfeitamente possível buscar tecnologias que minimizem a sensação de imprevisibilidade, engendrando conceitos e procedimentos a que possam aceder os operadores mais ávidos por juízos subsuntivos (mas, é claro,

comparado ou pela própria aplicação do costume. Cf. Gian Antonio Micheli, “Teoria geral da pro-va”, in Revista de Processo, trad. Arruda Alvim, São Paulo, Revista dos Tribunais, jul./set. 1976, n. 03, pp.161-168; e ainda, do mesmo autor, L’onere della prova , Padova, Cedam, 1942, passim.

47 Por uma distribuição..., pp.156-157. Como esplendidamente evidenciou, “[n]uma área em que os «fac-tos» relevantes não se encontram previstos na lei, a «teoria» redunda em pura arbitrariedade e fonte de desequilíbrio entre as partes, pela unilateralidade da «distribuição»” (p.157); e, por conta disso — em-bora sem caminhar adiante na investigação de quais poderiam ser os critérios materiais que funda-riam com maior especificidade a distribuição do ônus probatório —, sinaliza claramente a sua opção por um recuo nas “grandes narrativas”, de que são espécies as teorias generalizantes. Percebe-se isso no elogio que faz a WAHRENDORF, a quem creditou“o grande mérito de querer fundamenta o ónus da profa por institutos, e não, de uma vez só, para a totalidade do sistema” (g.n.).

48 Michele Taruffo, “Presunzioni, inversioni, prova del fatto”, in Rivista Trimestrale di Diritto e Pro-cedura Civile, Milano, Giuffrè, 1992, v. 46, n. 3, pp. 755-756. Para TARUFFO, o risco de arbítrio e manipulação, quando a repartição do ônus da prova é feita pelo juiz, “caso por caso e ex post”, seria incontornável e insuportável. Considerando-se, porém, o que registramos na nota n. 2396, concluir-se-á que, em um ambiente de renascimento da jurisprudência dos valores pela matriz do “pós-positivistismo”, esse risco já existe, mantenha-se ou não a fé nas virtudes do regramento geral e abstrato daquela repartição. Cada vez mais se julga com base em princípios, em ensejos que dificilmente poderiam ser reduzidos ao modelo rosenberguiano ou a qualquer outro modelo estático-formal. Melhor será, portanto, desenvolver conceitos, discursos e rotinas que permitam a controlabilidade das decisões judiciais nesse novo ambiente. É o que propomos.

49 Giovanni Verde, “L’inversione degli oneri probatori nel processo”, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, Giuffrè, 1992, v. 46, n. 3, p.720 (menos incisivamente).

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sem jamais reproduzir a lógica estritamente cartesiana do direito moderno legal--formal, repleto de conformidades “more geometrico”). Ao inverter ou modular concreta e dinamicamente o ônus da prova (“ex post legem”), o juiz não o fará ar-bitrariamente, esgrimindo lugares-comuns teóricos (“dignidade da pessoa huma-na”, “prevalência dos direitos humanos”) como salvo-condutos de manipulação; ao revés, aliará à argumentação jusfundamental, como causa eficiente da inver-são/modulação, uma ou mais dessas tecnologias, adensadas em bom lastro teórico e reconhecidas pela “communis opinio doctorum”.

Analisemos três dessas tecnologias50 − algumas foram já tangidas acima e ou-tras tantas foram exploradas em outros escritos51 − que “flexibilizam” o esquema rosenberg-chiovendiano de repartição formal-abstrata do “onus probandi”.

50 V., por todos, Elena Maria Catalano, “Prova indiziaria, probabilistic evidence e modelli matematici di valutazione”, in Rivista di Diritto Processuale Civile, Padova, CEDAM, 1996, v. 51, n. 2, pp.519 e ss.; Xavier Leonardo, Imposição e inversão..., pp.194 e ss. (citando PATTI, TARUFFO e a pró-pria CATALANO). Das tecnologias que menciona, porém, algumas há que devem ser desde logo descartadas ou mitigadas. Assim, e.g., a tecnologia da probabilidade quantitativa, de origem es-tadunidense, que pretende ser um método de racionalização e quantificação matemática do nível de pertinência entre a prova produzida e os fatos alegado, expresso pelo chamado «teorema de Bayes»: P(X/E) = P (E /X). P(X)/P(E), onde “X” e “E” são os eventos que se quer relacionar, “P(X/E)” é a probabilidade de um evento “X” dado um evento “E” e “P(E/X)” é a frequência estatística com a qual, dado “X”, verifica-se “E”. Poder-se-ia eventualmente aplicar essa tecnologia, no processo civil, para inverter o ônus da prova, mas jamais para excluí-lo absolutamente, porque desumaniza a justiça (Xavier Leonardo, Imposição e inversão..., p.198). Na prática, a tecnologia da probabilidade quantitativa já fundamentou condenações criminais perante cortes norte-americanas, como na corte de Los Angeles, com o célebre caso COLLINS (em que se admitiu como prova cálculos es-tatísticos que indicavam haver uma única possibilidade, sobre doze milhões, de que em um casal diferente dos COLLINS, mas com as mesmas características físicas narradas pela vítima — jovem branca, loira de cabelos presos em rabo de cavalo, com jovem negro e barbado em automóvel ama-relo —, houvesse praticado o assalto). Outro modelo bem similar, mas sem a pretensão de apuro matemático, é a tecnologia da probabilidade lógica (dita “baconiana”), muito utilizada nos siste-mas de «common law»: a partir de um procedimento de sucessivas tentativas lógico-argumentati-vas de destruição lógica da relação entre a prova produzida e a alegação (= “method of eliminative reasoning”), obter-se-ia solidez quanto à verdade dos fatos no processo; mas, ao invés de dados esta-tísticos, utilizar-se-iam, para aquela redução, as máximas de experiência e as presunções “hominis. No fim, essa teoria acaba desafiando os mesmos defeitos da anterior: deformação da lógica jurídica e desumanização das decisões judiciais.

51 V., mais uma vez, Guilherme G. Feliciano, Por um processo..., passim.

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4.1. O princípio da melhor aptidão para a prova

Já o definimos acima. Pode ser compreendido – parafraseando-se CARNE-LUTTI − como o princípio instrumental pelo qual se atribui a prova à parte que esteja mais provavelmente em situação de dá-la52.

Tal princípio informa, p.ex., a racionalidade da Súmula n. 338 do C.TST, a da cancelada O.J. SDI-1/TST n. 301 (ônus da prova quanto ao FGTS) e provavelmente a do cancelamento da O.J. SDI-1/TST n. 215 (ônus da prova no vale-transporte), como também a de diversos os julgados portugueses acerca da inversão do “onus probandi” nas ações de preferência (v. ac. STJ de 26.09.1991 e todos os similares).

No Brasil, seu emprego é comum no próprio Tribunal Superior do Trabalho. Vejamos, “ad exemplum”:

AGRAVO DE INSTRUMENTO . RECURSO DE REVISTA . DEPÓ-SITOS DE fGTS . ÔNUS DA PROVA . PRINCÍPIO DA APTIDÃO PARA A PROVA . 1 . Segundo a jurisprudência firmada nesta Corte Superior, cabe ao empregador o ônus de comprovar a regularidade dos depósitos de FGTS, entendimento que se justifica pelo princípio da ap-tidão para a prova, inclusive pelo fato de que a empresa deve manter em seu poder os comprovantes dos depósitos do FGTS. 2 . Admite-se o recurso de revista interposto contra acórdão regional proferido em desconformidade com a iterativa, notória e atual jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (art. 896, § 7º, da Consolidação das Leis do Trabalho). 3 . Agravo de instrumento de que se conhece e a que se dá provimento.

(TST, RR n. 2149-25.2012.5.02.0015, 4ª T., rel. Des. Conv. ROSALIE MICHAELE BACILA BATISTA, j. 16.12.2015, in DEJT 18.12.2015).

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA . RES-PONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA . TERCEIRIzAÇÃO . ENTE PÚ-BLICO . CULPA IN VIGILANDO . ÔNUS DA PROVA . PRINCÍPIO DA APTIDÃO PARA A PROVA . Nos termos do acórdão regional, a

52 V. Julio Cesar Machado, Jr., O ônus da prova no processo do trabalho, 3ª ed., São Paulo, LTr, 2001, p.145.

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condenação do Estado do Rio de Janeiro, tomador da mão de obra, de-correu da inversão do ônus da prova, em razão de ser o ente público de-tentor dos documentos capazes de demonstrar sua efetiva fiscalização. O Juízo a quo pautou-se no princípio da aptidão para a prova. Verifica--se, ademais, que o Regional não se afastou do entendimento exarado pelo STF, no julgamento da ADC n.º 16/DF, o qual previu a necessidade da análise da culpa in vigilando do ente público tomador de serviços. Atribuiu, no entanto, ao Recorrente o ônus de demonstrar que fiscali-zou a empresa prestadora de serviços no adimplemento das obrigações trabalhistas. A decisão, calcada no princípio da aptidão para a prova, está em consonância com a atual jurisprudência desta Corte Superior. Agravo de Instrumento conhecido e não provido. (TST, AIRR n. 3852120125010471, 4ª T., rel. Min. MARIA DE ASSIS CAL-SING, j. 17.2.2016, in DEJT 19.2.2016).

É o que resta textualmente positivado, ademais, no artigo 373, §1º, do CPC/2015, ao dispor que, “[n]os casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído” (g.n.).

4 .2 . A tecnologia da Anscheinsbeweis: prova por verossimilhança

Importada do processo civil alemão – conquanto também se possam reco-nhecer suas bases teóricas na jurisprudência norte-americana dos prima facie ca-ses53 −, a Anscheinsbeweis baseia-se em “hipóteses-tipos” definidas pela lei ou pela

53 “A prima-facie case is a lawsuit that alleges facts adequate to prove the underlying conduct suppor-ting the cause of action and thereby prevail. Below’s an example dealing with employment discrimi-nation claims. […] A plaintiff can establish a prima facie case of race discrimination under Title VII by establishing that (1) he or she belongs to a racial minority; (2) he or she applied and was qualified for a job for which the employer was seeking applicants; (3) he or she was rejected for the position despite his or her qualifications; and (4) the position remained open after his or her rejection and the

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jurisprudência que, uma vez verificadas no caso concreto, bastam para a satisfa-ção do ônus probatório da parte, por mera verossimilhança (= plausibilidade, cre-dibilidade, atributo do que parece ser verdadeiro ou tem condições de realmente ter acontecido) da alegação. Diante da hipótese-tipo (prima facie case), incumbirá à parte contrária provar que aquele fato presuntivo não se verificou.

Com efeito, é esse o modelo de repartição que a jurisprudência norte-ame-ricana tem aplicado aos casos de alegadas práticas discriminatórias no emprego, na esteira do célebre McDonnel Douglas Corporation v. Green (411 U.S. 792)54, precedente que remonta ao ano 1973. Não há, portanto, regulação legal. Por aquele

employer continued to seek applications from other people with similar qualifications to the plaintiff. McDonnell Douglas v. Green, 411 U.S. 792, 802 (1973). In Texas Dept. of Community Affairs v. Burdi-ne, 450 U.S. 248, 253 (1981), the Supreme Court stated that”[t]he burden of establishing a prima facie case of disparate treatment is not onerous.” […] After the plaintiff has established a prima facie case, the burden of production shifts to the employer to articulate a legitimate, non-discriminatory reason for the plaintiff’s rejection” (The ‘Letric Law Library, disponível em http://www.lectlaw.com/def2/p078.htm, acesso em 2.10.2016 - g.n.).

54 McDONNELL DOUGLAS, empresa do segmento aeroespacial sediada em St. Louis at the time of the lawsuit, but has since been acquired by Boeing . Percy Green was a black me-chanic and laboratory technician laid off by McDonnell Douglas in 1964 during a reduction in force at the company.Louis e adquirida pela BOEING, demitira em 1964 o mecânico e técnico de laboratório PERCY GREEN, homem negro, durante um episódio de corte de pessoal. GREEN, ativista de movimentos de direitos civis, entendeu-se discriminado por sua cor e, juntamente com outros trabalhadores descontentes, iniciou uma série de protestos e bloqueios em detrimento da empresa. Ulteriormente aos incidentes, qualificado para uma vaga de mecânico que se abrira na McDONNEL DOUGLAS, GREEN não foi admitido, agora com o argumento de que havia participado dos protestos anteriores e causado prejuízos à empresa. GREEN levou o caso à EEOC e à corte distrital, de cuja decisão recorreu para a U.S. Court of Appeals for the Eighth Circuit e, finalmente, para a U.S. Supreme Court, onde obteve ganho de causa por nove votos a zero. Em sua decisão, a U.S. Supreme Court registrou: “1. A complainant’s right to bring suit under the Civil Rights Act of 1964 is not confined to charges as to which the EEOC has made a reasonable-cause finding, and the District Court’s error in holding to the contrary was not harmless since the issues raised with respect to 703 (a) (1) were not identical to those with respect to 704 (a) and the dismissal of the former charge may have prejudiced respondent’s efforts at trial. 2. In a private, non-class-action complaint under Title VII charging racial employment discrimination, a private, non-class-action complaint under Title VII charging racial employment discrimination, the complainant has the burden of establishing a prima facie case, which he can satisfy by showing that (i) he belongs to a racial minority; (ii) he applied a and was qualified for a job the employer was trying to fill; (iii) though qualified, he was rejected; and (iv) thereafter the employer continued to seek applicants with complainant’s qualifications” (g.n.). Na espécie, eram todos fatos desde logo incontroversos, o que tornava as alegações de GREEN verossímeis “ab ovo”.

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precedente, desde que sejam verossímeis as alegações do autor (pelo seu pertenci-mento a uma minoria racial, pela sua qualificação para o posto e pelo fato de que o posto foi depois ocupado por indivíduo com qualificações similares55 – vide nota n. 52), pode-se reconhecer um “prima facie case”, incumbindo ao réu a prova de que as condutas e procedimentos corporativos pautaram-se por critérios objetivos e legítimos56.

Em sentido similar, invertendo o “onus probandi” quando das alegações do autor se deduza a existência de “indicios fundados de discriminación” — seja em razão da raça, da etnia, da religião, das convicções, da deficiência, da idade ou da orientação sexual —, vejam-se, na Espanha, os artigos 32 e 36 da Ley n. 62/2003, de 30 de dezembro (para o processo judicial civil e contencioso-administrativo). Ou, mais extensivamente (para todo o contexto europeu), a Diretiva n. 97/80/CE, de 15 de dezembro (sobre o ônus da prova em casos de discriminação por motivo de sexo), no seu artigo 4º; a Diretiva n. 2000/78/CE, de 27 de novembro (sobre igualdade de tratamento no emprego e na ocupação), no seu artigo 10; a Diretiva n. 97/80/CE, de 15 de dezembro (sobre o ônus da prova em casos de discriminação por motivo de sexo), no seu artigo 4º; e a Diretiva n. 2000/43, de 29 de junho (sobre a aplicação do princípio da igualdade de trato das pessoas independentemente de sua origem racial ou étnica), em seu artigo 8º. Em todos esses casos, bastará, para a inversão do ônus da prova − que deve ser transposta para a ordem legislativa dos Estados-membros −, a mera alegação (ou apresentação) de fatos que permitam presumir a existência de discriminação direta ou indireta. Na dicção de ORMA-ZABAL SáNCHEZ57,

55 Aspectos que ora exsurgirão desde logo incontroversos, ora demandarão alguma prova. Em de-mandando provas, estaremos mais próximos da tecnologia das constelações de indícios, senão das próprias presunções judiciais (em se identificando, num bem definido fato a provar, a figura de um fato-base presuntivo).

56 George Rutherglen, Employment Discrimination Law: visions of equality in theory and doctrine , New York, Foundation Press, 2007, pp.35-54.

57 Guillermo Ormazabal Sánchez, Carga de la prueba y sociedad de riesgo, Madrid, Marcial Pons, 2004, pp.134-135. No entanto, o autor compreende que “el término ‘presumir’ o ‘presunción’ se en-tende como equivalente a indicio o elemento que, sin probar ni permitir deducir logicamente e lacto discriminatório correspondiente, sugere certa verosimilitud o probabilidade en su comisión. La apor-tación de dichos indícios provocaria la inversión de la carga de la prueba [...]”. A ser assim, se é ônus do autor subministrar a prova preliminar de fatos indiciários (e não apenas alegar de modo verossí-

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[s]e atendemos à literalidade do preceito, é plausível concluir que o le-gislador europeu não pretendeu utilizar o instituto das presunções em sua acepção técnica [...], ainda que literalmente utilize o termo ‘pre-sunção’ nas referidas diretivas. Do contrário, o preceito resultaria, ao menos no direito espanhol, supérfluo, pois parece evidente que se o autor aporta fatos que eprmitem presumir o fato discriminatório cor-respondente, dito fato quedará fixado e procederá, sem mais, conde-nar o demandado. Como também é evidente que o demandado poderá aportar provas para desvirtuar dita presunção, se esta não é do tipo iuris et de iure, coisa que não sucede no nosso caso.

A rigor, em todos esses casos, o que se dá é uma pura inflexão formal do en-cargo probatório em favor da parte que noticia, de modo verossímil, a lesão a um seu direito humano fundamental (notadamente o direito à isonomia formal e ao tratamento não-discriminatório).

E no caso brasileiro?A tecnologia da Ancheinsbeweis, que, como visto, usualmente tem em mira

situações de aguda assimetria na comunidade processual e/ou pretensões mate-riais especialmente protegidas, foi positivada no Brasil pelo já referido artigo 6º, VIII, do CDC (“... quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação...”), podendo decerto ser aplicada em outras espécies litigiosas, notadamente na Justiça do Tra-balho (por força do próprio artigo 769/CLT, já que o processo civil consumerista também pode ser considerado “processo comum” para aquele efeito58).

mil, a partir do que é “ab ovo” incontroverso), parece-nos que estaríamos no âmbito da constelação de indícios, não na Ancheinsbeweis. E não é como entendemos esta hipótese, com todas as vênias.

58 Não por outra razão, aliás, antes do CC/2002 – ou mesmo depois −, diversos julgados evocavam o artigo 28 do CDC para fundamentar, nas execuções trabalhistas, a desconsideração da personalidade jurídica do empregador. V., por todos: “DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALI-DADE JURÍDICA. PENHORA SOBRE BEM DO SÓCIO. A desconsideração da personalidade jurídica, ‘disregard of legal entity doctrine’, oriunda do sistema de ‘common law’, consiste na cons-trição de bens particulares dos sócios e ex-sócios da pessoa jurídica, sempre que frustrada a execução direta nos bens dessa. No ordenamento jurídico nacional vigente, encontra guarida nos artigos 28 do Código de Defesa do Consumidor e 50 do Código Civil, de aplicação subsidiária ao Processo do Trabalho. Proposta a reclamatória trabalhista em face do empregador e das empresas integrantes do grupo econômico, somente os sócios que se retiraram há mais de dois anos desde o ajuizamento da ação (arts. 1003, parágrafo único, e 1032 do CCB) é que não poderão ter seus bens pessoais atingidos

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No processo laboral brasileiro, aliás, a Ancheisbeweis tem sido intuitivamente aplicada para inverter o ônus da prova em ações civis acidentárias (nas quais, pelo acidente e/ou pela doença ocupacional, pede-se indenização civil ao próprio em-pregador — com base no artigo 7º, XXVIII, “in fine”, da CRFB —, presumindo-se o nexo de causalidade entre o trabalho e a lesão sofrida, se se tratar p.ex. de hipóte-se coberta pelo chamado nexo técnico-epidemiológico administrativo59, ou mesmo como regra geral). Também aparece, ademais, na já sedimentada jurisprudência que admite a inversão do ônus da prova da dispensa discriminatória, em se tra-tando de empregado soropositivo para HIV (ou portador de outras doenças igual-mente estigmatizantes). É o que dita a recente Súmula n. 443 do TST. In verbis:

DISPENSA DISCRIMINATÓRIA . PRESUNÇÃO . EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE . ESTIGMA OU PRECONCEI-TO . DIREITO À REINTEGRAÇÃO (Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012). Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que sus-cite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.

E, da jurisprudência originária:

“O despedimento injusto do empregado portador do vírus HIV, ain-da que assintomático, presume-se discriminatório e como tal, não é tolerado pela ordem jurídica pátria, impondo-se, via de conseqüência,

na execução. Agravos de petição conhecidos e desprovidos.” (TRT1O, 3ª T., AP 00377-2008-014-10-00-2, Rel. Juiz Conv. Grijalbo Fernandes Coutinho, DEJT 10/2/2002). Agravo de petição conhecido e provido” (TRT 10ª Reg., RO n. 796-2012-00210000/DF, 00894-2009-008-10-00-0  AP, rel. Des. DOUGLAS ALENCAR RODRIGUES, 3ª T., j. 23.1.2013, in DEJT 1.2.2013 – g.n.).

59 Cf. artigo 21-A, caput, da Lei n. 8.213/1991, com a redação da Lei n. 11.430/2006. In verbis: “A perícia médica do INSS considerará caracterizada a natureza acidentária da incapacidade quando constatar ocorrência de nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e o agravo, decorrente da relação entre a atividade da empresa e a entidade mórbida motivadora da incapacidade elen-cada na Classificação Internacional de Doenças - CID, em conformidade com o que dispuser o regulamento” (g.n.).

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sua reintegração” (TRT 3ª Reg., RO n. 16691/1994, 3ª T., rel. LEVI FER-NANDES PINTO, j. 26.07.1995 - g.n.)60.

O aresto acima encerra uma das decisões regionais precursoras, no Brasil, desta tese e matéria. Hoje, quase vinte anos depois, é jurisprudência praticamente consolidada no Tribunal Superior do Trabalho, como visto imediatamente acima.

Registre-se, por fim, que boa parte dos autores nacionais e estrangeiros identi-fica, em praticamente todos os casos de assédio (sexual ou moral), hipóteses típicas de discriminação61. Tal se dá sobretudo por influência de doutrina e jurisprudên-cia norte-americana62, já que o Civil Right Act (1964), que rege a matéria, não con-templa hipóteses autônomas de “assédio” (harassment), restando a evocar, mesmo para esses casos, o seu título VII (que reprime, como “unlawful employment prac-tice”, todas as hipóteses de “discrimination based on race, color, religion, sex and national origin”)63. Logo, a nosso ver, essa não é uma redução conceitual que deva ser necessariamente acatada no sistema jurídico brasileiro, onde há muito se autonomizou a figura do assédio (v., e.g., o artigo 216-A/CP, no âmbito da União, ou a Lei n. 12.250/2006, no Estado de São Paulo), sem compulsória correlação com as teorias da discriminação. Nada obstante, a se entender daquele modo (i.e., a se compreender que os assédios são sempre subtipos de discriminação), não será apenas por meio da tecnologia da constelação de indícios (infra), mas também – a

60 Trata-se de um dos arestos regionais precursores, no Brasil, desta tese e matéria. Hoje, quase vinte anos depois, já é jurisprudência praticamente consolidada no Tribunal Superior do Trabalho, como visto.

61 V., por todos, Firmino Alves Lima, Teoria da discriminação nas relações de trabalho, São Paulo, Elsevier, 2011, passim.

62 V., e.g., Meritor Savings Bank v. Vinson (1986), o mundialmente famoso Clinton v. Jones (1997) e ainda Oncale v. Sundowner Offshore Services, Inc. (1998). O primeiro tratou de ação judicial movida por Mechelle Vinson em face do Meritor Savings Bank, sob as alegações de que sofria de assédio sexual no trabalho e de que o Civil Right Act proibia quaisquer hipóteses de discriminação no ambiente de trabalho; já perante a U.S. Supreme Court, afirmou-se o entendimento – a favor da autora – de que a interpretação da Civil Right Act deveria ser ampla, abarcando todas as formas de discriminação direta e indireta (disparate treatment) no ambiente de trabalho, inclusive os assé-dios. Já o último pacificou, também na U.S. Supreme Court, a compreensão de que a Civil Right Act também protege os trabalhadores contra assédio sexual praticado por pessoas do mesmo sexo.

63 Nada mudou a respeito, ademais, com a edição do Civil Right Act de 1991, sob George W. Bush, nem tampouco com o Lily Ledbetter Fair Pay Act, de 2009.

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depender do caso –pela tecnologia da Anscheinsbeweis, que o juiz do Trabalho poderá, à luz do artigo 765/CLT, inverter o ônus da prova, reconhecendo a discri-minação “prima facie” e dando disso notícia oportuna à parte contrária (artigo 373, §1º, in fine, CPC/2015).

4 .3 . A tecnologia das constelações de indícios

Por fim, cabe falar da tecnologia que melhor se aplica às hipóteses de assédios morais e sexuais nas relações de trabalho: a das constelações de indícios. Baseia-se na ideia de que um conjunto coerente de fatos laterais tendentes ao fato principal (objeto da prova) satisfaz o respectivo “onus probandi”64 e permite atribuir à con-traparte processual o ônus de provar a inocorrência do fato principal ou a impres-tabilidade dos indícios para a inversão no caso concreto.

É essa a tecnologia por detrás da O.J. SDI-1/TST n. 233 (extensão presuntiva da jornada alegada), na medida em que o “convencimento” do julgador, quanto à extensão da jornada, evidentemente derivará do conjunto coerente de fatos late-rais indiciários (p.ex., mesmos superiores hierárquicos, mesma unidade, mesmo “modus operandi” etc.). In verbis:

HORAS EXTRAS . COMPROVAÇÃO DE PARTE DO PERÍODO ALEGADO . A decisão que defere horas extras com base em prova oral ou documental não ficará limitada ao tempo por ela abrangido, desde que o julgador fique convencido de que o procedimento questionado superou aquele período.

64 Note-se que, conquanto sejam ideias próximas (v. Leonardo Xavier, Imposição e inversão..., pp.205-206), as constelações de indícios não se confundem com as presunções “hominis” (ou judiciais), em ao menos dois aspectos: (1) enquanto as presunções em geral pressupõem um fato-base mais ou menos delimitado ou preconcebido, as constelações de indícios refletem uma multiplicidade de fatos laterais — amiúde ainda mais laterais que um fato-base presuntivo —, aferíveis quase que in-teiramente “ex post”, desde que coerentes e convergentes; e (2) as presunções judiciais têm regulação legal em algumas ordens jurídicas (e.g., artigo 351º do CC português), o que é bem mais incomum em se tratando de constelações de indícios (o que “a priori” confere ao aplicador do direito uma maior liberdade de utilização, desde que não se queira aplicar à espécie algum argumento de tipo “ex minorem, ad maiorem”).

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A tecnologia das constelações de indícios tem, outrossim, reconhecimento legislativo em alguns sistemas, como na Itália (artigo 4º, 5, da Legge 10.04.1991 n. 12565, sobre “azioni positive per la realizzazione della parità uomo-donna nel lavoro”):

“5 . Quando o requerente fornecer elementos de fato também derivados de dados de caráter estatístico relativos ao recrutamento, aos regimes retributivos, à atribuição de tarefas e qualificações, às transferências, à progressão na carreira e às demissões, idôneos a fundar, em termos precisos e concordantes, a presunção de existência de atos ou com-portamentos discriminatórios por motivo de sexo, incumbe o réu o ônus da prova sobre a insubsistência da discriminação” (g.n.)66.

Veja-se que, no caso italiano, não se cuida de mera verossimilhança, como ocorre nas cortes estadunidenses e até mesmo nas brasileiras (supra, tópico 4.2). Exige-se, ao revés, a demonstração de dados concretos (= fato) que, concordantes e precisos num certo sentido (= coerentes), funcionarão como constelação de indí-cios e imporão a inversão do “onus probandi”.

Mas, se sistema italiano – e em outros similares −, há a lei, já não é assim no caso brasileiro.

No processo civil brasileiro, se muito, poder-se-á trabalhar, para esse efeito (inversão do ônus da prova sob base indiciária), com o artigo 375 c.c. do CPC/2015 (correspondente ao artigo 335 do revogado CPC/1973):

O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de ex-periência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.

65 Em Xavier Leonardo, Imposição e inversão..., p.206, aparece equivocamente grafada como “Lei Ita-liana nº 5” (na verdade, 125).

66 No original: “5. Quando il ricorrente fornisce elementi di fatto desunti anche da dati di carattere statistico relativi alle assunzioni, ai regimi retributivi, all`assegnazione di mansioni e qualifiche, ai trasferimenti, alla progressione in carriera ed ai licenziamenti - idonei a fondare, in termini precisi e concordanti, la presunzione dell`esistenza di atti o comportamenti discriminatori in ragione del sesso, spetta al convenuto l`onere della prova sulla insussistenza della discriminazione”.

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O mesmo se diga, ademais, do processo do trabalho, até com maior expressão jurídico-positiva, porque o juiz do Trabalho poderá valer-se do multicitado artigo 765 da CLT. In verbis:

Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo deter-minar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas.

De todo modo, a despeito da pobreza dos textos legais, as constelações de indí-cios podem e devem ser empregadas como tecnologias auxiliares de balizamento da argumentação jusfundamental para a inversão do ônus da prova. É precisa-mente o que tem acontecido nos casos em que os tribunais reconhecem inver-sões de carga probatória em ações relativas a assédio moral e sexual, em países como Brasil e França, como também, de certo modo, em Portugal, e com reflexos sentidos na Espanha. Vejamos.

Na França, entende-se que o artigo L 122-52 do Código do Trabalho autoriza o juiz, a partir de indícios, a inverter o ônus da prova em favor do reclamante. A teor desse preceito,

[e]n cas de litige relatif à l’application des articles L. 122-46 et L. 122-49 [harcèlement], le salarié concerné présente des éléments de fait lais-sant supposer l’existence d’un harcèlement . Au vu de ces éléments, il incombe à la partie défenderesse de prouver que ses agissements ne sont pas constitutifs d’un tel harcèlement et que sa décision est justifiée par des éléments objectifs étrangers à tout harcèlement. Le juge forme sa conviction après avoir ordonné, en cas de besoin, toutes les mesures d’instruction qu’il estime utiles” (g.n.).

Não há, como se vê, qualquer distinção, para esse efeito, entre os assédios (harcèlements) sexual e moral. Daí que, nas palavras de BOURKHRIS67,

67 Isabelle Bourkhris, cit.. No mesmo sentido, v. Anne Orsay, “La notion de harcèlement moral trois ans apres l’adoption de la loi du 17 janvier 2002”, in Le village de la justice, 2004, disponível em http://www.village-justice.com/articles/harcelement,71 (acesso em 15.07.2012)

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l’article L 122-52 du code du travail prévoit que le salarié établisse les faits qui permettent de présumer de l’existence d’un harcèlement. […] Au vu de ces éléments, il incombe au défendeur de prouver que ses actes sont justifiés par des motifs étrangers à tout harcèlement”.

Deduz-se, pois, haver uma inversão do ônus probatório quanto ao fato prin-cipal (o assédio); mas, para tanto, o autor deverá fazer alguma prova: provará “elementos de fato que deixem [permitam] supor a existência de um assédio” (= constelação de indícios). Ou, na dicção do Conseil Constitutionnel (examinando preventivamente este exato preceito),

[…] les règles de preuve plus favorables à la partie demanderesse ins-taurées par les dispositions critiquées ne sauraient dispenser celle-ci d’établir la matérialité des éléments de fait précis et concordants qu’elle présente au soutien de l’allégation selon laquelle la décision pri-se à son égard constituerait une discrimination en matière de logement ou procéderait d’un harcèlement moral ou sexuel au travail […]” (Con-seil constitutionnel, Décision n. 2001-455 - g.n.).

Acrescente-se que, sem essas medidas processuais, a tutela jurídica do tra-balhador contra o assédio moral caminharia para a inanição. Isso porque, mes-mo com elas, no ano de 2004, 85% das ações judiciais distribuídas ao Conseil des Prud’hommes de Paris alegavam algum tipo de assédio moral. Dessas, po-rém, somente 5% levaram a uma condenação por assédio, o que se explica “par l’abondance des plaintes qui rend plus difficile à faire passer le harcèlement avéré, les juges voulant éviter d’ouvrir une boîte de Pandore”68. Não por outra razão, aliás, houve quem concluísse que,

[d]ans la pratique, la présomption [rectius: a inversão] semble ineffica-ce, imposant encore un fardeau trop lourd à la victime. De fait, même si elle partage le fardeau de la preuve entre le salarié et l’employeur, le salarié doit tout de même faire la preuve de la matérialité des éléments

68 Orsay, cit.

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de fait. Pour ce faire, il est généralement nécessaire de faire entendre les témoins du harcèlement”69.

Na percepção de parte da doutrina francesa hodierna, portanto, sequer serviria bem aos casos de assédio a inversão do ônus da prova baseada em constelações de indícios, porque de todo modo o reclamante teria de produzir alguma prova. Ten-dem a sugerir, pois, que os casos de assédio sejam pensados ao modo dos “prima facie cases” – ônus primacial do réu, independentemente de quaisquer provas ou in-dícios prévios −, o que nos reporta às reflexões da parte final do tópico anterior (4.2).

Já em Portugal, o Código do Trabalho (artigo 29º, 1) define os assédios como

todo o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fac-tor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dig-nidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.

Logo adiante (n. 3), o Código lusitano especifica o assédio sexual (“comporta-mento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objectivo ou o efeito referidos no número anterior”), sem o elemento subjetivo do injusto que o qualificaria no sistema penal brasileiro (= intuito de obter favor sexu-al, ut artigo 216-A do CP); e, para mais, equipara os assédios à discriminação para certos efeitos (artigo 29º, 3), seguindo de perto o pensamento norte-americano.

Daí que, no modelo português, alegada e fundamentada a circunstância de assédio baseado em fator de discriminação, pode-se bem concluir pela incumbên-cia do empregador quanto ao ônus de provar que não há tratamento diferenciado, nos termos do artigo 25º, 5 e 6. Aproximar-nos-íamos, também aqui, da figura dos “prima facie cases”, estudados no tópico anterior. No entanto, é certo que esse qua-dro hermenêutico parecia mais claro na redação do anterior Código do Trabalho português (Lei n. 99/2002), à luz dos artigos 24º e 23º, 3.

69 Julie Bourgault, “Le harcèlement moral en France: un concept juridique subjectif-objectif ?”, Regards croisés sur les politiques publiques visant à contrer la violence au travail, in Santé, société et solidari-té, Québéc, Observatoire franco-québécois de la santé et de la solidarité, 2006, n. 2, p.113.

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Na Espanha, para a relativização dos critérios estáticos de repartição do ônus da prova, os trabalhadores dispõem do preceito inserto no artigo 181, 2, da Ley 36/2011, de 10 de outubro, “reguladora de la jurisdicción social”. In verbis:

Artículo 181 Conciliación y juicio . 1 . Admitida a trámite la demanda, el secretario judicial citará a las partes para los actos de conciliación y juicio conforme a los criterios establecidos en el apartado 1 del ar-tículo 82, que habrán de tener lugar dentro del plazo improrrogable de los cinco días siguientes al de la admisión de la demanda. En todo caso, habrá de mediar un mínimo de dos días entre la citación y la efectiva celebración de aquellos actos. 2 . En el acto del juicio, una vez justificada la concurrencia de indicios de que se ha producido viola-ción del derecho fundamental o libertad pública, corresponderá al demandado la aportación de una justificación objetiva y razonable, suficientemente probada, de las medidas adoptadas y de su propor-cionalidad . 3 . El juez o la Sala dictará sentencia en el plazo de tres días desde la celebración del acto del juicio publicándose y notificándose inmediatamente a las partes o a sus representantes. (g.n.)

Sobre a possibilidade de aplicação desse preceito – ou do seu correspondente, na revogada Ley de Procedimiento Laboral − aos casos de assédio, o Superior Tribunal de Justiça da Catalunha pronunciou-se positivamente já em 2011, con-quanto, no mérito, negasse provimento à suplicación, por não reconhecer presente sequer a constelação de indícios. In verbis:

[...] En materia de vulneración de derechos fundamentales, el orde-namiento procesal laboral exige que, dentro del proceso, el deman-dante aporte los indicios de la vulneración alegada, de tal forma que solamente entonces es cuando se invierte la carga de la prueba, cor-respondiéndole al demandado aportar una “justificación objetiva y razonable suficientemente probada, de las medidas adoptadas y de su proporcionalidad” (artículo 179.2 de la LPL). La peculiaridad de la prueba en estos casos no consiste en la exoneración del demandan-te de toda carga probatoria, sino en la menor intensidad de ésta con respecto a la que le incumbe al demandado. Al primero le basta con

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constituir una prueba de presunciones poniendo de manifiesto la serie de indicios de los que pueda racionalmente presumirse la exis-tencia de la violación denunciada. Aportado lo anterior, al demanda-do le corresponde acreditar que su comportamiento no ha implicado la violación de ningún derecho fundamental alegado por aquél (STC 180/1994, 82/1997, 90/1997, 202/1997, 74/1998, 87/1998, y 38/2005, y STS de 9-2-1996 y 15-4-1996 entre otras).

Existe una consolidada doctrina jurisprudencial que ha insistido en que el elemento configurador del acoso moral, es la intencionalidad o finalidad perseguida, que no es otra cosa que la de causar un mal o daño al trabajador acosado con el fin de minar la moral del trabajador y desestabilizarlo, marginándolo o causándole un perjuicio. Y en el caso de autos, no nos encontramos ante unas conductas habituales de presunto acoso dirigidas por otras compañeras de trabajo hacia la ac-tora, sino ante hechos puntuales reflejados en las cartas de queja remi-tidas por la actora, acontecidos en días muy concretos. Ello evidencia que nos encontramos ante un conflicto personal entre trabajadoras, producido en días determinados, en que poco o nada tiene que ver la empresa y sí las actitudes personales y subjetivas de los afectados . Estaríamos en presencia de rencillas entre compañeros de trabajo que incluso han llegado a ser sancionadas por la empresa, pero que, por sí solas, no constituyen acoso, y por tal motivo no cabe entender infringi-do el artículo 14 de la CE, al no haberse discriminado a la actora.

(Tribunal Superior de Justicia de Catalunya, Sala de lo Social, Senten-cia n. 2.745 de 14.4.2011 – g.n.)

Especificamente para os casos de assédio sexual e moral, ademais, a questão-do ônus da prova mereceu intensa preocupação legislativa na cena política espa-nhola. Como relata RUBIO DE MEDINA70,

M. LORENTE ACOSTA y J. A. LORENTE ACOSTA reparan respecto a las conductas de acoso sexual que éstas, por su naturaleza y al rela-

70 María Dolores Rubio de Medina, Extinción del contrato laboral por acoso moral – mobbing, Barce-lona, Bosch, 2002, p.45.

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cionarse estrechamente con lo privado, determinan que la conducta acosadora sea difícilmente probada, siendo comportamientos que son «fácilmente utilizables como chantaje». Así, pues, la principal di-ficultad con la que nos encontraremos dentro de un proceso de este tipo es probar las acusaciones de acoso; es decir, las conductas concre-tas cometidas por el empresario y/o los compañeros del acosado y que son causa de la imposibilidad de seguir desempeñando el trabajo por el desgaste físico y psicológico que provocan en el actor. Precisamente por la dificultad que existe para probar estos hechos la Proposición de Ley del derecho a non sufrir acoso moral en el trabajo del Grupo Socialista […] proponía en los supuestos de acoso moral la inversión de la carga de la prueba, de manera que correspondiera al demando probar la inexistencia de conductas de acoso moral” (g.n.).

Por fim, no Brasil, observa-se idêntica tendência – ainda que atualmente mi-noritária −, na jurisprudência e na própria legislação.

No âmbito dos tribunais, merecem especial destaque os julgados do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região que inverteram o ônus da prova em casos de assédio moral e sexual, não raro para resguardar a própria utilidade do processo. Leiam-se, por todas, duas paradigmáticas decisões (uma das quais nos honrou com extensa citação):

INDENIzAÇÃO POR DANOS MORAIS – ASSÉDIO SEXUAL – CONSTELAÇÕES DE INDÍCIOS – CARACTERIzAÇÃO . Para a indenização por danos morais tendo como causa de pedir o assédio sexual é incabível a exigência de prova cabal e ocular dos fatos, uma vez que o assédio sexual, por sua natureza, é praticado, estrategicamen-te, às escondidas. Se houver fortes e diversos indícios apontando para a conduta abusiva do ofensor, deixando evidente o constrangimento reiterado sofrido pela vítima, pode-se concluir pela caracterização do assédio sexual, ou seja, a partir da constelação de indícios tem-se por configurada a prática do ilícito e o consequente deferimento do pleito indenizatório”. No corpo do voto (que inclusive honra este Autor com uma referência): “Com relação ao ônus da prova, o dispositivo legal atribui à parte interessada o ônus de provar os fatos alegados. Com

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efeito, ao autor cabe demonstrar os fatos constitutivos do seu direito e ao réu os fatos impeditivos, modificativos e extintivos (art. 818 da CLT c/c art. 333 do CPC). Contudo, com relação ao direito processual do trabalho e especialmente no caso do assédio sexual, o encargo pro-batório da vítima vem recebendo flexibilizações necessárias.[...] Nas palavras do D. Juiz do Trabalho da 15ª Região, Guilherme Guimarães Feliciano, o Magistrado pode e deve recorrer a modelos alternati-vos como são a tecnologia das constelações de indícios, a prova por verossimilhança, aplicação do princípio da instrumentalidade e o contexto jusfundamental no qual se leva em consideração os direi-tos fundamentais que estão em jogo no processo. [...] Nesse mesmo sentido Pinho Pedreira nos informa que se tem admitido “o recurso à prova indireta, ou seja, a prova por indícios, presunções ou ‘prima facie’, fundada esta última na probabilidade, invertendo-se, assim, o ônus da prova (...) uma presunção permitirá a inversão do ônus da prova quando houver prova de recusa mais ou menos expressa ten-dente a demonstrar que o autor da conduta deveria saber que esta não era desejada e constituía assédio.” O mesmo autor sustenta que a prova de efeitos prejudiciais (denegação de emprego ou promoção, despedida ou demissão forçada), em consequência da recusa aos avanços sexu-ais, constituirá uma prova prima facie de assédio. [...] A jurisprudência pátria também tem e manifestado no sentido de ser possível a com-provação da conduta criminosa do assédio sexual através de indícios: “Não se pode olvidar que a prova desta espécie de ilícito trabalhista (assédio sexual) é extremamente difícil. Normalmente o assédio é camuflado, silencioso, praticado às escondidas, por isso as regras de presunção devem ser admitidas e os indícios terem sua importância potencializada, sob pena de se permitir que o assediador se beneficie de sua conduta.” (TST. 6ª Turma. AIRR n. 49740-47.2005.5.15.0053, Rel.: Ministro Augusto César Leite de Carvalho, DJ 3 jun. 2011). [...] A exigência de prova robusta de uma conduta que normalmente é re-alizada às escondidas dificulta ou praticamente inviabiliza a conde-nação da ilicitude. Da mesma forma que não é possível obter prova documental do pagamento feito por fora, também não se pode exigir prova cabal do assédio realizado na intimidade das astúcias do asse-diador. Diante disso, deve-se conjugar a série de indícios que consta

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dos autos para verificar se é possível concluir pela caracterização do assédio mencionado”

(TRT 3ª Reg., RO n. 01302-2010-129-03-00-9, 2ª T., rel. Des. SEBAS-TIãO GERALDO DE OLIVEIRA, j. 05.07.2011, in DEJT 12.07.2011 - g.n.).

ASSÉDIO SEXUAL . DIfICULDADE DE COMPROVAÇÃO . INDE-NIzAÇÃO . fIXAÇÃO DO VALOR DEVIDO . RESPONSABILIDA-DE OBJETIVA DO EMPREGADOR . É certo que circunstâncias que envolvem o assédio sexual são de difícil comprovação, porque o que agente procura se cercar de todo o cuidado que o ato exige, não permi-tindo a presença de pessoas que o possam denunciar, mas a testemu-nha da autora informa os fatos que autorizam a conclusão de que assis-tiu a parte da conversa e, em juízo, afirmou que ouviu a pessoa acusada dizendo que pretendia encontrar com a reclamante e que esta não teria aceitado a proposta. O próprio juízo sentenciante argumenta que, se tiver havido qualquer iniciativa por parte da pessoa que foi indicada como autora do ato, no sentido de constranger sexualmente a recla-mante, tal fato não restou demonstrado. Aliás, a prova de fatos dessa natureza quase sempre é difícil, em razão das condições em que são praticados. No caso dos autos, pode-se afirmar que os contatos man-tidos entre o acusado e a reclamante foram além dos limites profis-sionais, apesar de o ilustre julgador concluir, com o que não concordo, permissa venia, que “não o suficiente para se concluir de que tenha havido o alegado assédio sexual” (f. 107). Apesar de este julgador estar convicto da ocorrência do fato, ainda pesa em favor da reclamante o princípio in dubio pro operario, que deve ser aplicado . Não só pelas condições de hipossuficiência, mas − e especialmente − por se tra-tar de sexo feminino, alvo de tais procedimentos que não condizem com a dignidade da trabalhadora. Se admitirmos a continuação deste tipo de conduta, teremos as regras ditadas pelo elemento mais forte fisicamente no seio da comunidade de animais irracionais ou retor-naremos à idade pré-histórica, em que o macho se valia do seu cajado impiedoso e colocava em estado de inconsciência a fêmea e dela fazia uso como bem lhe aprouvesse, e ela não podia resistir às investidas e

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abusos. Na sociedade atual, guardadas as devidas proporções, o abuso do poderoso continua e todos devemos lutar para extirpar este mal que campeia − ainda quase impunemente − na comunidade global, impie-dosamente. Não só quanto à mulher − alvo mais fácil −, mas também o pobre, o negro, o desafortunado, que é explorado em todos os sentidos, ainda que para trabalhar mais e ganhar menos que os outros. Entendo, por tudo isto, que ficou provado o assédio sexual, devendo o reclamado pagar a indenização por danos morais postulada, bem como arcar com o pagamento das verbas da rescisão indireta do contrato de trabalho, que declaro neste ato, conforme está sendo postulado na peça inicial. E, tratando-se de responsabilidade objetiva do empregador, nos termos do artigo 932 do Código Civil brasileiro, deve este arcar com os danos causados por seu preposto no evento, podendo, se entender que deve, se ressarcir com o causador do prejuízo, em ação própria, o que foge a esta reclamação.

(TRT 3ª Reg., RO n. 0192-2006-056-03-00-6, 3ª T ., red. Juiz BOLIVAR VIEGAS PEIXOTO, in DJMG 15.7.2006 - g.n.).71

Na 14ª Região do Trabalho, ademais, cite-se o seguinte julgado:

71 Decisão que, a propósito, foi mantida pelo Tribunal Superior do Trabalho (conquanto por razões basicamente formais, na linha da Súmula n. 126 do TST). V. TST, AIRR n. 192/2006-056-03-40.0, 3ª T., rel. Min. ALBERTO BRESCIANI, j. 21.3.2007. In verbis: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA - DESCABIMENTO. DANO MORAL – AUSÊNCIA DE PREQUESTIO-NAMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE REVOLVIMENTO DE FATOS DE PROVAS. Traduz-se o requisito do prequestionamento, para fins de admissibilidade do recurso de revista, pela emissão de tese expressa, por parte do órgão julgador, em torno dos temas destacados pela parte, em suas razões de insurreição. Por outra face, a moldura fática da questão repele o conhecimento do recurso de revista. Esta é a inteligência da Súmula 126 do TST. Deixando a parte de fazer patentes as situações descritas nas alíneas do art. 896 consolidado, correto o despacho que nega curso à revista. Agravo de instrumento conhecido e desprovido”. O recorrente apontava justamente violações dos artigos 818/CLT e 333, I, CPC/1973 (além do próprio artigo 216-A/CP). No seu voto, porém, o relator re-gistrou que, “além de alicerçada na denominada ‘máxima de experiência’ (CPC, art. 335), a decisão recorrida está calcada, ainda, na prova testemunhal, realidade que torna patente a inespecificidade dos paradigmas indicados para o confronto de teses”, admitindo, implicitamente, que as máximas de experiência possam ser utiliziadas para a inversão do ônus da prova em supostos de assédio, mercê das contestações de indício (ainda que não se tenha sufragado explicitamente a tese). Com o advento do artgo 373, §1º, do CPC/2015, essa possibilidade nos parece ainda mais palmar.

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OITIVA DE TESTEMUNHA – DISPENSA – SUSPEIÇãO – VALIDA-DE – É válido o indeferimento de oitiva de testemunha que declara sua intenção no insucesso da parte, em virtude de inimizade, nos termos do artigo 405, § 3º, III, do Código de Processo Civil. ASSÉDIO SEXUAL – INVERSãO DO ÔNUS DA PROVA – POSSIBILIDADE – Nos casos de assédio sexual é possível a inversão do ônus da prova em favor do obreiro, considerando sua hipossuficiência em face do empregador e desde que constatada a verossimilhança de suas alegações, nos ter-mos do art . 6º, VIII, do CDC, aplicado subsidiariamente por força do art . 8º e parágrafo único da CLT . DANO MORAL – ASSÉDIO SEXU-AL – CONFIGURAÇãO – ÔNUS DA PROVA – Invertido o ônus da prova em favor do empregado, em virtude da dificuldade de comprova-ção do assédio sexual pela vítima, visto que este crime geralmente não ocorre na presença de terceiros, e não se desincumbindo a reclamada do encargo de comprovar a inexistência deste ilícito, mantém-se a conde-nação da empresa ao pagamento de indenização por dano moral.

(TRT 14ª Reg., RO n. 01036.2006.041.14.00-3, rel. Juiz Conv. LAFITE MARIANO, in DOJT 08.08.2007 – g.n.).

Para mais, especificamente quanto ao assédio moral, tramita pela Câmara dos

Deputados o Projeto de Lei n. 2.369/2003, de autoria do Deputado VICENTINHO (PT/SP), que “[d]ispõe sobre o assédio moral nas relações de trabalho”. A ser apro-vado, nos termos do seu artigo 7º (acrescido pela Emenda Aditiva n. 02), será regra processual, no Brasil, a de que

“[o] juiz pode determinar a inversão do ônus da prova, caso seja veros-símil a alegação de assédio moral” (g.n.)

Pelo teor literal do texto, estaríamos outra vez mais próximos da Ancheins-beweis do que, propriamente, das constelações de indícios (que efetivamente exi-gem algum fato concreto, específico para o caso, já provado ou incontroverso). Seja como for, porém, não destoa de todo o conjunto apresentado acima. Estamos diante de uma indelével tendência de relativização do ônus da prova em supostos de assédio moral e sexual. Tendência que, no Judiciário ou no Legislativo, promis-sora e paulatinamente se densifica.

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considErAçõEs finAis

Pelo quanto apresentado, podemos então concluir, para o caso brasileiro, que, a uma, as regras do artigo 373 do CPC/2015 e do artigo 818 da CLT não normas preceptivas “a priori” (FERRAZ JR.72), mas não são normas estritamente proibiti-vas (tanto que admitem convenções processuais em contrário), pois sua “ratio es-sendi” e força de incidência não as classifica entre as normas constitucionalmente imperativas, ligadas à Wesenskern do devido processo formal73.

A duas, concluiremos que, em casos especiais o juiz pode — desde que o faça fundamentadamente e sob contraditório (atual ou diferido) — esquivar-se do mo-delo estático rosenberg-chiovendiano (artigo 373/CPC), para modular, mitigar, redistribuindo ou mesmo excluir o ônus da prova, para além da “ditadura do alegado” e da “Normentheorie”, e não apenas com base em presunções (artigos 374, IV, e 375 do CPC/2015, Súmula 16 do TST etc.), mas também com base em tec-nologias específicas reconhecidas pela “communis opinio doctorum” (e.g., aptidão para a prova, constelação de indícios, «Anscheinsbeweis» etc.).

A três, por fim, concluiremos que, dentre esses “casos especiais”, a classe mais evidente é a dos que reclamam inflexões do modelo abstrato de repartição do ônus da prova para o fim de prestigiar pretensões materiais ligadas a direitos humanos fundamentais (individuais ou sociais), sendo essa jusfundamentalidade o “leit mo-tiv” de grande parte das inflexões hoje consagradas na jurisprudência brasileira. É o que já se verifica, em diversos julgados, nos dissídios que envolvem alegações de assédio laboral (moral ou sexual), notadamente por meio da tecnologia das constelações de indícios (mas com abertura para, nos casos de assédio tipicamente discriminatório, recorrer-se também à tecnologia da Ancheinsbeweis).

E assim há de ser doravante, com progressiva sistematicidade, desde que se reconheça que, na imensa maioria dos casos, exigir do assediado a prova cabal do assédio corresponderá a, na prática, invocar o devido processo legal formal para fulminar os prováveis direitos subjetivos subjacentes à alegada agressão. Afinal,

72 Ferraz Jr., Introdução..., pp.125-126.73 Sobre a garantia de conteúdo essencial (Wesensgehaltgarantie) e sua aplicação à teoria das inflexões

formais no devido processo legal, ver, uma vez mais, Por um processo..., passim.

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como há décadas ponderou THOMAS KUHN – e mais uma vez o evoco em um escrito −, “não existem algoritmos neutros para a escolha de uma teoria”74.

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74 Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, p.248.

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DEPENDÊNCiA E SuPErEXPLorAÇÃo No TrABALHo BANCário BrASiLEiro:

umA AProXimAÇÃo EmPÍriCA

Gabriela Caramuru Teles1

Guilherme Cavicchioli Uchimura2

Ricardo Nunes de Mendonça3

i. introdução

O presente trabalho se debruça sobre a exploração singular na América Lati-na, estudando o caso do trabalho bancário e adoecimento na cidade de Curitiba/PR. Para tanto faz uso da obra O Capital, de Karl Marx, de obras selecionadas de Ruy Mauro Marini, referência teórica da Teoria Marxista da Dependência, e de uma pesquisa empírica realizada entre 2011 a 2015, com os trabalhadores ban-cários de Curitiba e Região, denominada Métodos de Gestão e Adoecimento de Trabalhadores.

1 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestranda em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). E-mail: [email protected].

2 Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Pesquisador Jurídico. E-mail: [email protected].

3 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pós-graduado em Direito Pro-cessual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e Mestre em Direito pela mesma Instituição. Professor de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho no Cen-tro Universitário UniBrasil. E-mail: [email protected].

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

Diante da estrutural troca desigual de mercadorias entre países dependentes e centrais, somada à dívida pública e às importações de tecnologias e patentes, verificamos uma brutal transferência de capital a partir da América Latina para outros países.

Como política de compensação das perdas por transferência, a estratégia de superexploração do trabalho é largamente empregada na América Latina. A supe-rexploração do trabalho consiste em categoria informada por três indicadores: (i) intensificação do trabalho, (ii) aumento da jornada de trabalho e (iii) pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor de reprodução.

Com mercados reduzidos pelos baixos salários, presenciamos um divórcio entre a produção e a realização de mercadorias, de modo que, as mercadorias produzidas pelos países dependentes são consumidas principalmente pelos países centrais. Assim se agrava a divisão internacional do trabalho, em que os países da América Latina produzem matérias-primas baratas para a exportação, e os países centrais têm na industrialização seu eixo produtivo. O caráter particular da explo-ração do trabalho na América Latina denuncia o subdesenvolvimento como um estado permanente de exploração dos países dependentes pelos países centrais.

A partir do aprofundamento da revisão bibliográfica, a presente pesquisa in-vestiga em que medida pode se verificar empiricamente o quadro da superexplo-ração do trabalho nos marcos do trabalho bancário brasileiro, em especial por meio da análise em concreto dos três indicadores desta categoria. Para tanto, tes-tamos as hipóteses dependentistas sob a luz dos resultados estatísticos obtidos na pesquisa Métodos de Gestão e Adoecimento de Trabalhadores, em cujos relatórios se pode observar uma descrição da organização do trabalho bancário na década atual.

ii. o PAdrão dE rEProdução dEPEndEntE E A suPErExPlorAção do trAbAlho

O trabalho humano é a fonte de toda a riqueza da sociedade, é pelo trabalho humano que transformamos a natureza e produzimos os valores de uso necessá-rios à produção e reprodução da vida. O trabalho é o que diferencia os animais humanos dos outros animais, pois o próprio ato de trabalhar transforma simulta-

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DEPENDÊNCIA E SUPEREXPLORAÇÃO NO TRABALHO BANCÁRIO BRASILEIRO: UMA APROXIMAÇÃO EMPÍRICA

neamente o ser humano. O trabalho é, portanto, construtor da humanidade (EN-GELS, 2011).

A forma como se realiza e organiza o trabalho e a reprodução da vida é res-ponsável por construir relações sociais de produção particulares, singulares a cada realidade histórica distinta. A forma de produção que organiza o trabalho nos marcos da propriedade privada é o capitalismo, que remete o trabalho a uma forma histórica degradada, ou seja, imprime no trabalho o caráter dual de ser ao mesmo tempo valor de uso e valor de troca (MARX, 2014).

Conforme o materialismo histórico, todos os modelos de produção, a partir das forças produtivas e suas relações de produção, utilizam o trabalho de forma particular. No capitalismo, a força de trabalho humana, única mercadoria capaz de gerar um valor superior ao seu custo, ou seja, o mais-valor, é a fonte de pro-dução de riquezas e pilar da acumulação capitalista. A exploração do trabalho é, dessa maneira, alicerce do funcionamento no modo de produção vigente (MARX, 2014).

A exploração do trabalho se fundamenta na extração do mais-valor, em um processo de valorização do capital inicial do capitalista, dentro de um circuito de troca de mercadorias. A extração de mais-valor acontece no modelo de produção do capital de três formas distintas: o mais-valor absoluto, o mais-valor-relativo e o mais-valor extraordinário (MARX, 2014).

Toda a exploração do trabalho no capitalismo, e a superexploração do traba-lho no caso da América Latina, perpassam estas três formas. É necessário, con-tudo, compreendermos a jornada de trabalho para analisarmos as estratégias do capital (MARX, 2014). Dessa maneira, a jornada de trabalho deve ser dividida em dois momentos. A primeira parte da jornada, o tempo de trabalho necessário, é o tempo pago ao trabalhador. O tempo responsável pela reprodução da força de trabalho gasta em processo. A segunda parte da jornada de trabalho é o valor excedente, ou seja, o tempo apropriado pelo comprador da força de trabalho, o mais-valor (MARX, 2014).

Nas estratégias de extração do mais-valor, o mais-valor absoluto é aquele em que o tempo de trabalho necessário permanece estável, enquanto o capitalista, para aumentar o mais-valor, aumenta a jornada de trabalho, e, portanto, a segun-da parte da jornada relativa ao mais-valor excedente. Com a restrição da jornada de trabalho pelo direito, e a possibilidade de aumento de produtividade por in-

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

cremento tecnológico, o capitalista encontrou uma segunda forma de extração de mais-valor (MARX, 2014).

Nesse tipo de extração de mais-valor, com uma jornada de trabalho fixa, de modo que se encontra restrita a extração de mais-valor pela extensão do traba-lho excedente - pelo aumento de horas de trabalho -, o capitalista passa a reduzir a primeira parte da jornada, o tempo de trabalho necessário (MARX, 2014). O capitalista faz tal procedimento com o aumento da produtividade do trabalho e a diminuição do valor unitário em cada mercadoria, que, barateada, faz cair o tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho (MARX, 2014). Com a redução do tempo de trabalho necessário, aumenta-se, proporcionalmente, a parte relativa a segunda parte da jornada, o trabalho excedente. Essa é a forma de extração do mais valor chamado mais-valor relativo (MARX, 2014).

O mais-valor extraordinário, por sua vez, é uma forma relativa a concorrência entre capitais e se realiza na medida em que um capitalista consegue um aumento de produtividade a frente dos outros concorrentes, de modo a poder baratear a fabricação de sua mercadoria. Contudo, ele continua a vender sua mercadoria pelo preço médio de mercado, retirando dessa diferença o mais-valor. O mais-valor extraordinário só existirá até outros capitalistas descobrirem a nova tecnologia, e baratearem igualmente outras mercadorias, dando fim a diferença do capital pioneiro (MARX, 2014).

A exploração do trabalho é parte da estrutura geral do modelo internacional de produção capitalista. Contudo, ela deve ser analisada particularmente, ou seja, à luz dos espaços econômicos singulares, como é o caso da América Latina. O modelo de produção capitalista organiza suas leis gerais de acumulação conforme a materialidade própria de cada região. Dessa maneira, desenvolve um padrão de reprodução particular nos países centrais e um padrão de reprodução particular dos países dependentes, permanecendo, todavia, nos marcos da teoria do valor (MARINI, 2011).

Para analisarmos a exploração do trabalho em nosso caso concreto, e a forma de superexploração do trabalho bancário no capitalismo brasileiro, partimos da negação da condição de subdesenvolvimento nacional compreendida como uma etapa para o desenvolvimento tradicional dos países centrais. De modo complexo, o subdesenvolvimento é analisado como condição da exploração dos países peri-féricos pelos países de capitalismo central.

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DEPENDÊNCIA E SUPEREXPLORAÇÃO NO TRABALHO BANCÁRIO BRASILEIRO: UMA APROXIMAÇÃO EMPÍRICA

A superexploração do trabalho na América Latina tem relação direta com a condição de troca de mercadorias e desenvolvimento dos países centrais, estrutu-rados em uma divisão internacional do trabalho que permanece desde a naciona-lização das colônias exploradas. A relação de troca determina etapas de produção mais complexas no centro e etapas de produção menos complexas com exportação de matérias primas baratas na periferia (MARINI, 2011).

O processo de transferência de capitais dos países da América Latina para os países de capitalismo central estrutura a superexploração do trabalho nos países dependentes. A transferência de capital acontece na América Latina pela dívida pública com os países centrais, responsável pela transferência de quase a metade da riqueza produzida nos países periféricos; pela importação de tecnologia e pa-tentes em face da dependência tecnológica (MARINI, 2011); e pelas trocas desi-guais por preços de produção diante da diferença entre as composições orgânicas de capitais entre os países (MARX, 1988).

Diante da perda de mais-valor pela transferência, o capitalista nacional utiliza a superexploração do trabalho como técnica de compensação da perda nas trocas. A superexploração do trabalho na América Latina consiste em uma categoria que evidencia a especificidade geopolítica deste continente na divisão internacional do trabalho, caracterizando-se por três indicadores: (i) aumento da jornada de tra-balho (mais-valor absoluto), (ii) intensificação da jornada de trabalho (mais-valor relativo) e (iii) pagamento da força de trabalho abaixo do valor de reprodução. (MARINI, 2011).

A novidade apresentada por Ruy Mauro Marini consiste no terceiro destes in-dicadores: o pagamento estrutural da força de trabalho abaixo do valor de repro-dução. Trata-se de uma condição identificada nos casos em que os trabalhadores não têm garantido sequer o valor destinado à reprodução da sua força de trabalho (MARINI, 2011). Marx já previa essa possibilidade em O Capital. Contudo, para o autor, essa é uma técnica eventual, que acontece, por exemplo no movimento de aumento do exército industrial de reserva pelo incremento tecnológico. Nesse caso, a força de trabalho poderá ser paga abaixo de seu valor de reprodução, com reprodução atrofiada (MARX, 2014).

A maior intensidade do trabalho é verificada na América Latina em diversas realidades. A divisão internacional estabelece trabalhos mais precários à perife-ria, destinando à América Latina um significativo número de trabalhadores em condição de trabalho análoga à de escravo. A precarização dos trabalhos no cam-

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po, com mortes por exaustão, a reduzida expectativa de vida dos trabalhadores da América Latina em relação aos do capitalismo central e os adoecimentos de-correntes do trabalho, que intensificam tanto o desgaste físico quanto o desgaste psicológico dos trabalhadores, se concentram sobretudo em países periféricos. Exemplo desta prática é a reterritorialização de departamentos responsáveis pelo telemarketing, pertencentes a empresas multinacionais, que repassam aos países periféricos trabalhos notoriamente precários.

Além do aumento da intensidade, a superexploração do trabalho é identifica-da pelo aumento da jornada de trabalho. Constata-se que, na América Latina, as regulações de jornadas de trabalho apresentam limites legais com mais horas de trabalho e férias reduzidas em relação aos países centrais, isso ainda sem conside-rar as violações aos limites legais praticadas corriqueiramente pelos capitalistas. Isso se verifica ao compararmos a jornada de trabalho legal dos países da América Latina à dos países centrais. Na França, por exemplo, a jornada legal é de 35 horas semanais. Em outros países, como áustria, Canadá, Holanda, Itália, Nova Zelân-dia e Portugal, a jornada de trabalho é regulada em 40 horas semanais. No Chile (45 horas semanais) e no Brasil (44 horas semanais), as jornadas são ampliadas. Os trabalhadores trabalham em média 4 horas a mais por semana, somando 16 horas de trabalho a mais no mês. (DIEESE, 2010).

Já no que se refere ao terceiro mecanismo de superexploração, os baixos salá-rios e menor poder de consumo dos trabalhadores latino-americanos e brasileiros se consolidam na reprodução atrofiada da força de trabalho. Os elementos da su-perexploração do trabalho estão presentes estruturalmente no contexto brasileiro.

A superexploração tem nuances ainda mais assombrosas para majorar o tra-balho excedente e a formação de mais-valor, como é o caso do trabalho infantil, do trabalho em condições análogas à de escravo (que em realidade é trabalho assa-lariado próprio do capitalismo e da extração do mais-valor absoluto com redução de custos) e o trabalho feminino precarizado.

O padrão de reprodução dependente, que compensa a transferência de capital com a superexploração do trabalho, encerra o ciclo de subordinação na medida em que promove um divórcio entre a produção e o consumo nos países da Amé-rica Latina (MARINI, 2011).

Os baixos salários, decorrentes do pagamento da força de trabalho abaixo do valor da reprodução, encerram um mercado interno fragilizado nos países depen-dentes. Sendo assim, a realização das mercadorias produzidas na América Lati-

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na encontra um óbice na impossibilidade de consumo dos trabalhadores latino--americanos, que com baixos salários não conseguem absorver uma significativa produção nacional (MARINI, 2011).

Diante do mercado interno insuficiente para a realização das mercadorias produzidas, o movimento do capital reforça o caráter dependente ao direcionar a produção nacional para os países centrais. A opção de realização das mercado-rias nos países centrais, em face da impossibilidade de realização em território periférico pela superexploração, consolida o padrão de reprodução dependente na América Latina (MARINI, 2011).

A superexploração do trabalho na América Latina e no Brasil aparecem como elemento de manutenção da condição dependente e tem reflexos na divisão in-ternacional do trabalho, como o atraso tecnológico e a menor produtividade na periferia (MARINI, 2011).

iii. A suPErExPlorAção do trAbAlho bAncário: do univErsAl Ao PArticulAr

Como síntese da revisão teórica realizada na seção anterior, podemos apontar que a superexploração do trabalho é uma categoria que, caracterizando a condição geopolítica da América Latina na divisão internacional do trabalho, é informada por três indicadores: (i) intensificação do trabalho, (ii) aumento da jornada de trabalho e (iii) pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor de reprodução.

A partir deste quadro, pretendemos verificar empiricamente a existência da superexploração do trabalho nos marcos do trabalho bancário brasileiro, em es-pecial por meio da análise em concreto dos três indicadores apontados acima. Mais especificamente, pretende-se testar as hipóteses dependentistas sob a luz dos resultados estatísticos obtidos na pesquisa Métodos de Gestão e Adoecimento de Trabalhadores, em cujos relatórios se pode observar uma descrição da organiza-ção do trabalho bancário na década atual.

O projeto Métodos de gestão e adoecimento de trabalhadores, atualmente em andamento, é o resultado de uma parceria realizada desde 2014 entre o Sindicato dos Bancários e Financiários de Curitiba e Região – SEEB e o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora – IDECLATRA, organização do qual fazemos parte na qua-

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

lidade de pesquisadores. O principal objetivo do projeto é produzir e investigar um complexo sistema de dados envolvendo o adoecimento no trabalho bancário, os métodos assediosos para extração de mais-valor e a relação entre ambos, tendo por hipótese que o atual modelo de organização do trabalho nos bancos favorece o adoecimento dos trabalhadores bancários.

Entre 2014 e 2015, concluímos a primeira etapa deste projeto, na qual foram investigados o adoecimento e o sofrimento psíquico dos trabalhadores na realida-de do HSBC BANK BRASIL S/A em Curitiba/PR. Como resultado dessa primeira pesquisa, realizou-se a publicação do livro Assédio Moral Organizacional: as víti-mas dos métodos de gestão nos bancos, ao qual foi anexado o relatório completo da pesquisa realizada.

Ainda em 2015, iniciamos uma segunda etapa do projeto, com metodologia idêntica, mas dessa vez delimitando a investigação ao âmbito do grupo ITAÚ UNIBANCO S/A em Curitiba/PR. Como resultado, publicou-se o livro Projeto métodos de gestão e adoecimento de trabalhadores. Caderno 2: o caso do Itaú em Curitiba.

As pesquisas empíricas se realizaram, em cada uma das duas etapas concluídas, em dois momentos de coleta de dados distintos. O primeiro destes momentos se refere especificamente à situação de saúde dos trabalhadores desligados dos ban-cos, com dados levantados a partir de formulários sobre condições de saúde auto-preenchidos, no próprio sindicato, pelos trabalhadores desligados no momento da homologação da rescisão contratual. O segundo momento se refere à sistematização das informações constantes em processos trabalhistas, dados coletados a partir da análise de todas as ações movidas por trabalhadores bancários em face dos bancos no município de Curitiba entre 2011 e a data da realização das pesquisas.

Acreditamos que os dados levantados e sistematizados nos relatórios de pes-quisa produzidos pelo projeto poderão conduzir uma verificação empírica da existência e dos contornos da superexploração do trabalho bancário no Brasil.

III.I. Intensificação do trabalho e aumento da jornada de trabalho

Começando pela intensificação do trabalho, as pesquisas revelaram que, entre os trabalhadores que ajuizaram ação pedindo indenização por danos morais em face do HSBC, houve relato de riscos psicossociais na seguinte ordem:

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Precariedade das relações superiores ou com colegas 72,7%;Altos níveis de pressão por tempo: 57,9%;Sobrecarga: 55,9%;Continuamente sujeito a prazos: 53,6%;Ritmo de trabalho: 51,2%;Insegurança no trabalho: 47,6%;Metas abusivas: 45,8%;Ameaça de demissão: 35,4%;Controle do uso do banheiro: 17,1%.

Interpretando os dados transcritos acima à luz dos atuais conhecimentos so-bre a organização do trabalho, podemos afirmar que seis entre os nove principais riscos psicossociais identificados representam métodos de gestão de intensifica-ção do trabalho. Altos níveis de pressão por tempo, sobrecarga, continuamente sujeito a prazos, ritmo de trabalho, metas abusivas e ameaça de demissão: todos esses riscos psicossociais, além de favorecerem o adoecimento dos trabalhadores que a eles se sujeitam, resultam em um ambiente de elevação das taxas de mais--valor relativo e mais-valor absoluto. Diante destes fatores, combinados com a re-muneração variável, os trabalhadores sentem-se obrigados a intensificar o próprio ritmo do trabalho. De modo complementar, os gestores exigem de seus subordi-nados o cumprimento das metas coletivas sob pena de punições.

No caso do ITAÚ UNIBANCO, entre os trabalhadores que ajuizaram ação pedindo indenização por danos morais, houve relato da existência de riscos psi-cossociais na seguinte ordem:

Longas jornadas de trabalho e sem convívio social: 65,1%Metas abusivas: 47,4%aPrecariedade das relações superiores ou com colegas: 46,1%Faltas de pausas: 40,6%Ameaça de demissão: 37,2%Exposição vexatória da produtividade: 23,5%Ritmo de trabalho: 19,5%Sobrecarga: 19,2%

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De modo semelhante ao HSBC, percebe-se que, cinco entre os oito princi-pais riscos psicossociais identificados representam métodos de gestão de intensi-ficação do trabalho: metas abusivas, ameaça de demissão, exposição vexatória da produtividade, ritmo de trabalho e sobrecarga. Ou seja, não basta que a jornada de trabalho legal brasileira seja superior à dos países de capitalismo central. Os capitalistas do ramo bancário ainda descumprem os limites legais por meio de práticas ilícitas como exigência de jornadas extraordinárias de modo injustifica-do, falta de pausas e controle do uso de banheiro.

Identificados como riscos psicossociais na pesquisa, estes elementos apresen-taram-se em níveis elevados o suficiente para percebermos que não são práticas de gestão isoladas, mas sim métodos integrantes de uma cultura organizacional baseada no assédio. O objetivo desta organização do trabalho parece não ser outro senão o de elevar, de modo combinado, a intensidade e a jornada do trabalho.

Em outras palavras, trata-se de uma disputa pelas proporções entre salário e mais-valor, na qual os capitalistas se aproveitam do controle dos meios de pro-dução para elevar a exploração do trabalho. Podemos concluir que a combinação da intensificação do trabalho com o aumento das jornadas de trabalho está pre-sente na organização do trabalho bancário brasileiro. Em um quadro marcado pela transferência de valor de nossa localidade geoeconômica latinoamericana para países de capitalismo central, podemos afirmar que estes mecanismos de elevação das taxas de mais valia (relativa e absoluta combinadas) representam um mecanismo de compensação das perdas de valor tidas pelos capitalistas bancários nacionais na divisão internacional do trabalho.

III.II. Pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor de reprodução.

Resta verificar se está presente na organização do trabalho bancário brasi-leiro o terceiro indicador da superexploração: o pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor de reprodução. Tendo em vista que a pesquisa não levantou os padrões remuneratórios do trabalho bancário brasileiro, resta impossível ana-lisarmos se os salários pagos aos trabalhadores são suficientes para a reprodução de sua força de trabalho.

Existem, porém, outros dados que podem nos auxiliar nesta verificação. Em uma interpretação sistemática dos dados obtidos na pesquisa, podemos afirmar

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que o elevado índice de adoecimento apreendido na categoria bancária está re-lacionado aos métodos de gestão adotados pelos bancos. Dentre os trabalhado-res que ajuizaram ação pedindo indenização por danos morais, 30,5% (HSBC) e 25,8% (ITAÚ UNIBANCO) relatam ser portadores de doenças mentais ou psíqui-cas, tais quais depressão, estresse e síndrome do esgotamento.

Dentre os trabalhadores desligados do HSBC entre 2008 e 2013, do total de 3.904 trabalhadores desligados, 1.476 (37,8%) referiram problemas de saúde. No caso do ITAÚ UNIBANCO, entre 2006 e 2014, do total de 1.197 trabalhadores desligados, 505 (42,2%) referiram problemas de saúde.

Assim, a impossibilidade de reprodução da força de trabalho se apresenta nos altos índices de adoecimento e na incapacidade para o trabalho a que são submeti-dos os trabalhadores bancários brasileiros. O elevado índice de trabalhadores adoe-cidos no momento da rescisão contratual indica que o adoecimento é consequência da organização do trabalho bancário, sendo uma prática corriqueira dos capitalistas bancários a ruptura do vínculo de trabalho com aqueles que já não possuem mais condições de realizar as taxas de mais-valor relativa e absoluta esperadas.

Com base nesse raciocínio, entendemos ser possível afirmar que o pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor de reprodução se revela em dois aspectos apreendidos na pesquisa: (i) impossibilidade de manutenção de índices básicos de saúde como consequência dos métodos de gestão adotados pelos bancos e (ii) elevados índices de adoecimento como causa da incapacitação dos trabalhadores a continuar no ramo do trabalho bancário.

Por último, apesar de a presente pesquisa permitir significativo avanço em re-lação à verificação da superexploração do trabalho bancário, é necessário apontar que as conclusões ora esboçadas se fortaleceriam com a comparação dos dados da organização do trabalho bancário nos países centrais, movimento que, apesar de necessário, escapou à viabilidade da presente pesquisa.

iv. conclusão

A superexploração do trabalho nos países da América Latina é sustentáculo para a condição de dependência e subdesenvolvimento dessas economias. Na con-tramão da alta concorrência internacional, que se materializa na frágil condição

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de reprodução da vida dos trabalhadores no Brasil, o sentido do que compreende-mos como desenvolvimento apenas pode ser a superação do modelo de produção do capital.

Suplantar a divisão internacional do trabalho que remete aos países depen-dentes trabalhos precários e etapas menos complexas de produção, romper com a transferência de capitais para o centro, como motivo da superexploração por com-pensação, e fortalecer direitos do trabalho são reformas necessárias na resistência à dependência e à superexploração do trabalho.

Mais direitos sociais fomentam o fortalecimento do mercado nacional. Com jornadas de trabalho reduzidas, os níveis de desemprego são enfrentados. Com salários maiores, aumenta-se o consumo, fortalecendo a indústria e diminuindo a disparidade entre o setor primário dependente e o setor industrial. Dessa ma-neira, enfrentar o subdesenvolvimento é caminhar para a ampliação dos direitos do trabalho.

No caso dos trabalhadores bancários brasileiros, o enfrentamento à superex-ploração com a redução da jornada de trabalho garantiria maior qualidade de vida à categoria que, como demonstramos, tem sua vida solapada pela disposição do tempo à valorização do capital. O trabalho não submetido a metas, que intensifi-cam o trabalho e elevam os níveis de adoecimento da categoria, deve ser suprimi-do em uma organização da produção que proponha a superação da alienação do trabalho. O pagamento da força de trabalho abaixo do valor da reprodução dos bancários, que os coloca como uma das categorias com maior nível de adoecimen-to psicológico e os leva em elevados índices à incapacidade laboral, reproduz de forma atrofiada essa força de trabalho e deve ser enfrentado.

As políticas para amenizar a dependência esbarram nos limites do próprio modelo de produção, que se alimenta da divisão internacional do trabalho desde o período de nacionalização das colônias. A superação da superexploração do tra-balho na América Latina só pode ocorrer com a construção de um novo modelo produtivo, que suplante a extração do mais-valor e a sociedade de mercadorias.

Superar o modelo dependente e sua intrínseca precarização, verificada no exemplo no trabalho bancário brasileiro, pressupõe o controle social da produção por trabalhadoras e trabalhadores e o rompimento com as transferências para o centro, possibilitando o consequente aumento da qualidade de vida e a materiali-zação da dignidade aos trabalhadores latinoamericanos e brasileiros.

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rEfErÊnciAs bibliográficAs

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PrESENTEÍSmo: SuAS CAuSAS, formAS E CoNSEquÊNCiAS No muNDo Do

TrABALHo

Margarida Barreto1

Roberto Heloani2

Luiz Salvador3

O tema que nos propomos a debater - a questão do presenteísmo no Serviço Público constitui uma reflexão complexa. Isso nos impõe traçar algumas proposi-ções que mostrem, - mesmo que de forma breve, - a dimensão inter-relacional que envolve o presenteísmo e as condições de trabalho. Comecemos por conceituar o seu manifesto oposto, ou seja, o absenteísmo. Para a Organização Internacional do Trabalho – OIT o absenteísmo consiste na “falta ao trabalho por parte do em-pregado”, que pode ocorrer tanto por licença médica devido a doenças e acidentes como por direitos legais ou licenças não programadas e até mesmo férias. Neste caso, o absenteísmo caracteriza um “período de baixa laboral”. E a doença, quan-do diagnosticada, pode revelar uma incapacidade temporária para a execução do trabalho atribuído, o que pode significar um tempo de trabalho perdido, incluin-do as ausências justificadas ou injustificadas. Aqui, falamos de temporalidade,

1 Doutora em Psicologia Social – Departamento de Psicologia Social, PUC/SP. Coordenadora da Rede Nacional de Combate ao Assédio Laboral e outras manifestações de Violência no Trabalho.

2 Formado em Direito e Psicologia. Professor Titular e pesquisador da Faculdade de Educação (FE) e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Também é conveniado à Universidade de Paris X.

3 Advogado trabalhista e previdenciarista, Ex-Presidente da ABRAT, Pres. da ALAL, Repres. Bras. no Depto. de Saúde do Trabalhador da JUTRA, assessor jurídico de entidades de trabalhadores, membro do DIAP e do corpo de jurados do TILS (México)

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pois o absenteísmo não é apenas um indicador de adoecimento e sofrimento. É tempo improdutivo, pois afeta diretamente a rotina da produção O afastamento por adoecer ou desmotivação, quem sabe, surja como solução ao insuportável: longas jornadas, exposição aos novos riscos, relações hierárquicas autoritárias, transbordadas por desrespeito e não reconhecimento.

As inovações tecnológicas e os impactos decorrentes das mudanças na organi-zação do trabalho são percebidas como condições que, ao alterar frequentemente a dinâmica laboral, podem afetar a saúde do trabalhador na medida em que ultra-passam a capacidade de adaptar-se a essa nova realidade. Neste sentido, não são tão distintas as causas do presenteísmo e do absenteísmo, mesmo quando, tradi-cionalmente, enxergamos somente o segundo, ou melhor, o avesso do primeiro: o trabalhador falta por motivo de doença ou análogo a este. No presenteísmo, o trabalhador comparece e permanece além de sua jornada, apesar de adoecido.

Por que se trabalha enfermo? Trabalha-se adoecido para não perder o em-prego, por medo de entrar no corte, de ser o próximo da lista, de ser rejeitado e descartado, de fazer parte da dança da cadeira, de ser discriminado. Às vezes, pelo receio- e que angústia!- de se imaginar descartável... E por esses motivos, vive te-meroso e converte-se em um presente que está ausente. É aqui que, curiosamente, presenteísmo e absenteísmo apresentam aspectos comuns, ou melhor, são duas faces da mesma moeda. Explicando melhor: ao afastar-se verificamos que essa ausência nem sempre é pura e simples responsabilidade do trabalhador, mas sim das condições de trabalho, da forma de administrar e organizar o trabalho, de dis-tribuir as tarefas, da falta de uma política séria de prevenção dos riscos, quer sejam os antigos ou emergentes. Também corresponde a uma história vivida e aprendida ao longo dos anos... Todos nós conhecemos as causas que podem levar ao absen-teísmo: doenças do trabalho ou não oriundas deste, praticas desmotivadoras e até aversivas ou mesmo condições laborais insalubres. Esta dimensão nos coloca a necessidade de refletirmos e compreendermos, que trabalho, doenças, relações la-borais e emoções se interpenetram dinamicamente, instaurando uma nova forma de viver, que muitas vezes, mostra-se catastrófica, na medida em que hoje, temos mais doenças psicossomáticas, fibromialgias, depressão e estresse, que há cinco anos, consequência das pressões constantes no ambiente de trabalho. Varias pes-quisas internacionais revelam que as perdas de produtividade por depressão e do-res sofridas pelos trabalhadores que não faltam ao trabalho já superam as perdas de produtividade derivadas do absenteísmo.

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PRESENTEÍSMO: SUAS CAUSAS, fORMAS E CONSEqUÊNCIAS NO MUNDO DO TRABALHO

Pesquisa realizada em doze países mostra que 38% dos trabalhadores entre-vistados tinham medo de tirar férias. E por quê? A maioria dos participantes desse “survey” afirmou ter medo que decisões importantes para suas carreiras pudes-sem ser tomadas durante seu período de descanso. Como se não bastasse, 3% evi-tava o merecido e sagrado repouso por medo que seus colegas não se lembrassem deles...

Não estamos nos referindo a um aspecto trivial, e até saudável, como, por exemplo, o trabalhador do setor administrativo que prolonga, voluntariamente, o seu dia para dedicar-se a outros afazeres que, muitas vezes, não possuem relação direta com o seu trabalho. Por exemplo: uma escapada para verificar seus e-mails, pesquisar algum tema na internet, telefonar para um amigo ou para a família. Às vezes, simplesmente, ler um jornal em um local que lhe dê conforto e lhe inspire confiança. Não nos referimos a isso.

Estamos sinalizando para um fenômeno que faz com que “aquele que vive do seu trabalho” prolongue a sua jornada laboral involuntariamente, não por gosto ou deleite, mas por temor ou medo difuso que o faz permanecer na empresa para além do estipulado, avançando na madrugada, sem dever legal ou moral- mesmo que doente ou prestes a se tornar. Como se diz coloquialmente: “com o atestado no bolso”. Trabalhadores que estão tomados pelo medo de uma transferência, de perder o seu posto, de ter esvaziado suas funções, de ser fritado ou colocado na geladeira!

Hoje, muitos trabalhadores têm seus e-mails controlados, têm chips em seus celulares, capazes de dizer se estão parados ou em movimento e até mesmo com potencial para localizar a sua posição dentro ou fora da empresa. Nestes tempos de crise e de incertezas, a presença de pessoas adoecidas trabalhando, é alarmante. No presenteísmo, os trabalhadores comparecem e estão firmes durante toda a jor-nada ou mais, constituindo o que se conhece como Síndrome da Cadeira Ocupada ou do Assento Quente.

O fator gerador do presenteísmo é uma organização que pune quando se tem mais de três faltas, quando se procura ao médico, quando se retorna da licença da previdência. Por trás do controle, há uma organização que exige; que pressiona por metas, que impõe múltiplas tarefas, que captura as emoções e subjetividades; que não reconhece o saber fazer dos trabalhadores. Igualmente há uma pessoa que trabalha por múltiplos outros, dá conta de varias tarefas que não é sua, que dedica seu tempo a empresa enquanto reduz sua presença em família, por medo de perder

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o emprego. Uma trabalhadora me disse entre lagrimas que seu chefe conseguia deixar o ambiente de trabalho pesado, pois não se podia falar, sorrir, argumentar, sugerir ou até mesmo ir ao banheiro.

Na Espanha, a Confederación Sindical de Comisiones Obreras (CCOO 2013)4 apresentou o resultado de uma ampla pesquisa realizada em de Sevilha e Anda-luzia. O universo pesquisado corresponde a 2.500 trabalhadores/as, visando esta-belecer o mapa de saúde dos trabalhadores que trabalham em medias e pequenas empresas. O resultado nos forneceu um universo repleto de insegurança e medo, pois, dos respondentes, 76,6% admitiu que a reforma trabalhista e o impacto da crise tem afetado a sua saúde e os demais relacionaram as condições concretas de trabalho à influencia negativa em seu corpo. A média de idade foi de 44 anos, mais de 75% eram homens e menos de 25% de mulheres. Quanto aos entrevistados, 44% afirmaram ter medo de perder seus empregos, enquanto 43,6% relataram que seus salários foram reduzidos em nome da crise. A pesquisa deixa evidente que é o temor à demissão ante um cenário de reestruturações, reformas e demissões, a causa fundamental do presenteísmo.

Anteriormente, entre 2008 e 2009, pesquisa realizada pela empresa holandesa de Recursos Humanos Randstad, com mais de 1.000 trabalhadores, revelou que 45% dos trabalhadores praticavam o presenteísmo, por medo do descarte. Essa empresa de recursos humanos, mostra que enquanto o absenteísmo diminuiu, acentuada-mente, o presenteísmo vem crescendo em toda a Comunidade europeia. ás causas, segundo a pesquisa, estão relacionadas à nova conjuntura econômica e financeira aliada ao crescente número de insolvências e às elevadas taxas do desemprego que afetaram mais intensamente a Grécia, 27% (mais que o dobro da media europeia); Espanha com 23,6%; Portugal, 17,7%; Itália, 9,3%; e Chipre, 9,7%. Outros países têm sido afetados, a exemplo da áustria, Holanda, Luxemburgo e Alemanha, sendo a juventude a mais prejudicada. Como o absenteísmo pode subsistir?

Em nosso país, nestes últimos dez anos, não tem sido diferente e assim, pas-samos do absenteísmo ao presenteísmo. Não porque as condições de trabalho melhoraram ou porque a empresa privilegia a prática da qualidade de vida de seus trabalhadores com enfoque na organização do trabalho. Ao contrário, o privilegio passou a ser a busca desenfreada pela produtividade, centrada na competitividade ante um mercado global e consumista. Enquanto isso, os programas qualidade de

4 La reforma laboral y la crisis en las empresas empeoran la salud de las personas trabajadoras

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vida (QVT), continuam enfocando o fumo, o consumo de álcool, o sedentarismo e aobesidade. Nenhuma palavra ou ação para modificar a organização do trabalho

Outro aspecto que as pesquisas na Europa nos apresentam, referem-se às re-formas laborais que, além de diminuir o emprego, tornou-o mais precarizado, na medida em que as terceirizações se multiplicaram, os trabalhadores foram rema-nejados ou demitidos, deixando os que ficaram, sobrecarregados, com menores salários e constantemente pressionados para “dar conta” daquilo que caberia a dois ou mais trabalhadores.

Vivemos em uma sociedade de trabalhadores “factotum”, isto é, que, com grande frequência, “faz tudo”. Não é sem sentido que são chamados de “cadeira quente” ou “Bombril” (possuem mil e uma utilidades). Essa situação favorece a degradação das condições de saúde do conjunto dos trabalhadores, sendo respon-sável pelo surgimento coletivo de ansiedade, angustia, insegurança, depressão e, até mesmo, suicídios. Recordemos que o “banco de horas” na década de noventa, instituiu a jornada flexível, porem mortificadora à saúde, com promessa de re-compensas e equilíbrio do tempo trabalhado.

Outro aspecto que não devemos esquecer: em tempos de crises, desemprego e reformas, pode ocorrer que somente um membro da família trabalhe ou que haja alguém adoecido nesta família, o que demanda maiores cuidados e consequente-mente, maiores gastos. Esta situação contribui para o presenteísmo secundário, por pavor de perder o mais importante: seu emprego. Aqui, mais uma vez, a insta-bilidade leva ao medo que nos faz trabalhar mais, na tentativa de garantir a nossa permanência.

Assim, perguntamos: como podemos ter saúde em um entorno que nada ga-rante, exceto insegurança e desconfiança, que impõe o medo, que administra por ameaças, que exerce cotidianamente o autoritarismo e abuso de poder? O sofri-mento é sempre e antes de tudo, um sofrimento do corpo, engajado no mundo e nas relações com os outros (Dejours). Para quem não assistiu, vale a pena ver o filme “O Corte” de Costa Gravas. Nesta clássica película, o protagonista vai ten-do o seu caráter corroído pelo medo de nada conseguir em termos de emprego e transforma-se, paulatinamente, em um assassino serial. Isto porque interpreta e “res-significa” seus concorrentes como inimigos que devem ser eliminados. “Ou eles, ou eu...”

Se o absenteísmo vem diminuindo, chegando a casos de 90% de redução, não é motivo para comemorarmos, na medida em que o presenteísmo vem se impondo.

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O quadro é assustador, se pensarmos que o trabalhador evita afastar-se do posto de trabalho por um medo oceânico de vir a perdê-lo. Deste modo, o presenteísmo aumenta na medida em que cresce a degradação das relações laborais, as reestru-turações e a flexibilização. Não nos esqueçamos que, até bem pouco tempo, uma grande corporação praticava aquilo que denominamos como sendo “gestão por injúria”, ou seja, administrava seus “colaboradores” aos gritos e sua politica de estímulo à produção era “agressiva e humilhante”, na medida em que o gerente dividia os trabalhadores em três categorias: o grupo dos “bam-bam-bam”, que produziam mais; o dos “meia-bocas” e o das “tartarugas”. Esta prática de exigir metas utópicas, causa danos à integridade emocional e à saúde dos trabalhadores além de disseminar o terror e constituir uma pratica ofensiva a todos os trabalha-dores. São formas desumanas e aéticas de administrar e de excluir o diferente, de tirar-lhes qualquer sonho de ascensão, pois não ultrapassou o estabelecido. Esses eventos rompem com a normalidade do espaço, o silencio dos órgãos e a tempo-ralidade ética da vida-que-se-vive no trabalho. Ressalto que ser ético, pressupõe aquele que sabe o que faz, que conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes no trabalho. Devemos nos perguntar: qual a atitude ética que existe em certos gestores?

Passemos à dimensão conceitual do que é saúde mental. Segundo a Organiza-ção Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a saúde mental é o estado de bem-estar no qual o trabalhador:

• Realiza as suas capacidades;• Pode fazer face ao estresse normal da sua vida;• Pode trabalhar de forma produtiva e frutífera e • Pode contribuir para a comunidade em que se insere

Sentir bem-estar é estar e ter harmonia no meio ambiente de trabalho, é ter autonomia e ser reconhecido, pois o bem-estar revela um estado dinâmico da mente com as necessidades e expectativas do trabalhador e seu meio ambiente. Todos nós estamos expostos a tensões e conflitos, o que vai demandar em sentidos e significados que contemplam tanto o corpo biológico como o histórico-social, o existencial, as relações de poder e hierarquias e a dimensão ético-afetivo. Por-tanto, ter saúde é uma maneira de abordar a existência com uma sensação não apenas de possuidor ou portador, mas também, se necessário, de criador de valor, de instaurador de normas vitais (Canguilhem, 1995). Quando se trabalha em um

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ambiente transverso por paixões tristes, em que prevalece o controle e a disciplina do corpo, a falta de reconhecimento, o autoritarismo e o abuso de poder, esse am-biente gera doenças e desordens no estado de ânimo e medo do devir. Certamente, causa sofrimento que, na maior parte das vezes, é invisível. Aqui, estamos diante de uma anomia, na medida em que as paixões tristes ou alegres são indicadores, em boa parte, da “vida-vivida” pelos trabalhadores em seu local de trabalho. Esses sentimentos anunciam falta de autonomia e esgarçamento dos laços de camara-dagem propiciando no sujeito uma sensação de vazio e inutilidade em um oceano de solidão. Nesse sentido, cabe perguntarmos: é possível que as novas mudanças do mundo do trabalho interfiram no presenteismo e consequentemente, na saúde mental dos trabalhadores?

Lembramos que o trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral (Marx, 2004). Expondo de outra forma: hoje, quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir. Quanto mais cria valores, mas sem valor e indigno ele se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu produto, mais deformado ele fica; quanto mais civilizado o seu objeto, maior a diferença de quem o produz; quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto mais rico de espirito o trabalho, mais pobre de espirito e servo da natureza se torna o trabalhador (Marx, 2004).

Do mesmo modo, o componente técnico organizacional coligado à precari-zação e intensificação do trabalho condiciona o aparecimento de vários distúr-bios relacionados ao trabalho, a exemplo das alterações musculoesqueléticas e dos transtornos psicológicos. Aqui, poderíamos afirmar que as reestruturações não somente geram desemprego e ideação suicida, mas são responsáveis por diversos transtornos que podem levar a morte de si, por suicídio.

Se por um lado, a crise global tem justificado as demissões massivas, por outro tem sido pretexto para o aumento das terceirizações, como forma de diminuir gastos e aumentar a produtividade e a lucratividade. Perante este panorama de mudanças e crises, a mundialização da economia, a dimensão global dos negócios e os avanços tecnológicos levaram, de forma direta, a profundas transformações na organização do trabalho e relações laborais. Isto significa que os processos de trabalho mudaram, a produtividade tornou-se onipresente e onipotente, refle-tindo o retrato contemporâneo das organizações. O processo de terceirizações e quarteirizações ampliou a fratura nos direitos dos trabalhadores o que significa

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a “transferência de atividades empresariais consideradas secundárias para outra empresa, que intermedeia a prestação de serviços em prol do tomador, a fim de permitir que os destinatários finais do labor prestado atenham-se à sua atividade principal” (Dutra, 2013). Estes trabalhadores externos à empresa, sugerem uma franja de insegurança no trabalho, revelando uma fotografia precarizante dos no-vos servos.

Sabemos que em uma “sociedade industrial, o papel integrador do trabalho se destaca entre os demais elementos fundantes de identidades coletivas, como, por exemplo, as formas de integração e reconhecimento estabelecidas em dife-rentes vizinhanças(...)” Por outro lado, no “contexto de uma sociedade salarial é por meio do lugar ocupado no mercado de trabalho que o indivíduo se inscreve e amplia redes de sociabilidade5 alcançando patamares razoáveis de integração social” (Dutra, 2013). Aqui, cabe perguntamos: com a heterogeneização, fragmen-tação e complexificação do processo de trabalho e da classe trabalhadora, quais as consequências que esse novo tecido traz a vida e à saúde dos trabalhadores? Desistir do emprego ou trabalhar adoecidos? Qual o sentido da vida, onde não há solidariedade e tempo para tecer amizades, ajudar o outro em dificuldades, criar e ter autonomia, ser reconhecido e respeitado naquilo que faz, enfim, construir uma identidade coletiva?

Quem sofre, necessita de apoio, ombro amigo, compreensão e ajuda. Do ponto de vista histórico, o avanço das politicas neoliberais, que demandam o recuo da intervenção estatal nas empresas, teve (e tem) contribuído para o abuso de poder, desmandos e aumento da violência laboral, o que significa violação sistemática dos direitos fundamentais dos trabalhadores e trabalhadoras.

Paradoxalmente, embora as empresas tenham usado e abusado de novas es-tratégias gerenciais, seu corpo de comando – alta gerencia e profissionais técnicos - não estão preparadas para compreender a “turbulência emocional” e problemas que têm causado a milhares de trabalhadores/as com suas novas formas de orga-nizar e administrar o trabalho. As pressões e constrangimentos constantes por metas utópicas, impostas de forma unilateral e associadas às avaliações subjetivas e individuais, tem gerado uma constelação de inquietudes, que levam a perda de prazer e interesse, sensação de vazio, apatia, isolamento, concentração rebaixada, indecisão, pessimismo, pensamento suicida e dores corporais variadas.

5 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. p 24.

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Sigmund Freud, criador da Psicanálise, há mais de um século, já nos ensinava que uma vida sem trabalho é incapaz de trazer qualquer espécie de conforto. Este pensador, de inegável grandeza, comenta no texto “O Mal-estar na civilização”, originalmente publicado em 1929, que:

“Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o individuo tão firmemente a realidade quanto à ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realida-de, na comunidade humana. A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto e, se, por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de im-pulsos instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como caminho para a felicidade, o trabalho não é altamente prezado pelos homens. Não se esforça em relação a ele como o fazem em reação a outras possibilidades de satisfação. A grande maioria das pessoas trabalha sob a pressão da necessidade, e essa natural aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis” (FREUD, 1929/1986 p. 99).

É difícil nos reconhecermos em um tecido de incertezas, perplexidades e frustações. Já escutamos de trabalhadores frases desse naipe: “Acabaram com minha vida. Sou vitima de um monopólio. Sofri duramente nas mãos de uma multinacional. Fui transferido de cidade e levei minha família. Quando retornei fui demitido. Motivos? Eu era maior que a empresa. E ela, não tinha como me pagar. Minha família se desestruturou. Minha vida ficou de cabeça pra baixo. Perdi tudo. Recomecei e tenho medo de perder o emprego e por isso trabalho sabendo que estou doente”. Talvez por situações como esta, muitos trabalhadores prefiram ignorar o estado real das sobrecargas e exigências desumanas, usan-do como estratégia a defesa de negação (“comigo não vai acontecer isso”; “aqui não vai passar”) e continuam trabalhando mesmo adoecidos. A negação serve de “amortecedor” para reduzir o estresse, a fadiga, o medo que todo ato de violência leva consigo. Como se diz popularmente: “Cabeça que não pensa... coração que não sente”.

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Antes de continuar, é preciso por em relevo alguns pressupostos.

Na esfera da saúde do trabalhador, o estudo das enfermidades ditas psicos-somáticas, procura compreender as formas particulares do adoecer em cada ca-tegoria profissional, considerando o processo de trabalho, as práticas gerenciais e a relação destas doenças com os novos riscos emergentes e o desenvolvimento tecnológico. Envolve alterações orgânicas nem sempre mensuráveis e quantifi-cáveis, mas que trazem consequências à saúde, na medida em que revelam novas patologias como os distúrbios de voz, as lesões da corda vocal, os distúrbios neu-róticos e as alterações psicoorgânicas (como gastrointestinais, miccionais, do ciclo menstrual e, também, os abortos relacionados às várias formas de humilhações e discriminações.

Aqui chegamos aos fatores psicossociais que são riscos não visíveis da organi-zação do trabalho. É consenso entre os organismos internacionais (OIT e OMS) que os fatores psicossociais são decisivos tanto em relação às causas como no que concerne à prevenção de doenças e promoção à saúde dos trabalhadores. Pato-logias que são ocasionadas em especial pelo processo de trabalho e suas novas formas de organizar o trabalho e administra-lo. Entre as mais frequentes, des-tacamos as fadigas, o estresse, os transtornos psíquicos (como esgotamento pro-fissional ou burnout); o estresse pós-traumático e, mesmo, o aumento do uso de fármacos lícitos e ilícitos para suportar as demandas laborais.

Quando falamos de riscos laborais pensamos sempre nos fatores físicos, (cor-tes. caídas, golpes…), assumindo um conceito de saúde muito simples e nos es-quecemos dos riscos psicossociais e, com isso, perdemos a dimensão psicológica e social que abarca a nossa saúde. Independente das características individuais das pessoas, existem condições objetivas e subjetivas derivadas da organização do trabalho. Existem estudos internacionais e nacionais que demostram que esses fatores psicossociais prejudicam a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras. Por-tanto, os fatores psicossociais tanto podem desencadear doenças e agravar uma patologia pré-existente, constituindo sua “com causa”, como podem contribuir para o tempo de uma reabilitação e promover a saúde dos trabalhadores, via novas praticas positivas e saudáveis.

Lembro que a alma e o corpo constituem uma só e mesma substancia que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da Extensão (Espinosa). Deste modo, os distúrbios psicofisiológicos, as doenças, os acidentes, a morte pre-

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coce, os suicídios têm elos fortes com os processos históricos de trabalho, a cultu-ra organizacional, o que significa que os danos orgânicos e psíquicos estão intima-mente entrelaçados (Seligmann-Siva, 2011). As defesas e estratégias desenvolvidas pelos trabalhadores como, por exemplo, a negação individual tem como causa a organização do trabalho, os modos e condições de trabalho nocivas; e como efeito, teremos o sofrimento psíquico, os distúrbios e os transtornos. Quando a rede de relações laborais em uma dada empresa é integrada, quando a coesão social é forte e as pessoas se consideram como parte vital desta empresa e não se sentem so-cialmente isoladas ou dominadas pela competitividade, individualismo e solidão, constatamos que este tipo de organização social constitui um obstáculo para as enfermidades e o suicídio (PitirimSorokin). Cabe uma pergunta: como vou preve-nir o presenteísmo e adoecimento, se não conheço o processo de trabalho?

Não é difícil perceber que o trabalho em que há abuso de poder, atos de violên-cia continuada e cotidiana, materializa-se como dor moral, sofrimento psíquico, isolamento, doenças, acidentes e até mesmo mortes. Como exemplo, citamos o que ocorreu no mês de fevereiro deste ano quando oito trabalhadores/as denunciaram ao Consulado Geral, no Itamaraty, o cônsul brasileiro em Sydney – Austrália e seu adjunto – por praticar assédio moral e sexual, homofobia, discriminação e abu-so de poder. Houve oito pedidos de demissões. Esse mal-estar generalizado dos trabalhadores estava relacionado ao modo de administrar aos gritos, palavrões e ameaças; assedio sexual e laboral, o que banaliza a violência, transformando o ambiente de trabalho no lugar de metabolização da barbárie.

Essas situações vividas e vivenciadas no trabalho levam a perturbações dos vínculos, das identidades, dos projetos pessoais e coletivos (Hornstein, 2008) ante uma cultura do sucesso e ação individual em que é necessário ser o primeiro para não ser o último. São os caminhos e descaminhos do adoecer: perde-se o sentido do saber-fazer na medida em que não se é reconhecido e sequer respeitado. O mal-estar instaurado apresenta três dimensões paradoxais e simultaneamente causais:

A) Qual a contradição que está oculta na politica do êxito, sucesso e partici-pação individual.

O trabalhador é cada vez mais convocado a realizar-se como individuo e con-tribuir com o sucesso e crescimento da empresa; cumprir com os desígnios de sua vida em consonância com a missão da empresa, ou seja, proporcionar um

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ambiente de trabalho favorável para gerar novos negócios e novas perspectivas de carreira. Paradoxalmente, o trabalhador encontra cada vez mais dificuldades para tal realização devido a difícil relação entre os três níveis: o perfil de profis-sional exigido, as estruturas de decisão das empresas e o nível de um ambiente de trabalho cada vez mais complexo, difuso e competitivo, o que torna quase impossível delimitar e ver sua própria contribuição e ascensão por meios éticos.

B) Podemos falar em valor próprio?

A empresa procura trabalhadores qualificados, excelentes, que não adoeçam, não faltem ao trabalho, tenham “elasticidade espiritual”. Exige do trabalhador co-nhecimento, habilidade e que sejam flexíveis no cumprimento das jornadas. En-fim, um verdadeiro guerreiro da produção. São os denominados “Millennials” que, segundo o empresariado, é a geração que está mudando o mundo dos negócios. Mudando ou já entram formatados ao novo modelo de gestão, sabedores que não durarão muito tempo na empresa? Na dinâmica do sistema  liberal, o trabalhador deve centrar-se na sua própria subjetividade, sua individualidade e assim orientar suas ações e sua vida para o melhoramento do seu Eu. Entretanto, como fortalecer esse Eu em um ambiente de competição e no qual predomina o esgarçamento dos laços afetivos com os pares? Como fortalecer esse Eu, quando constantemente ronda o medo de ser demitido? Sabemos que a individualidade humana é uma construção histórica. E cada individualidade humana conserva em si e para si uma historia de vida e história do trabalho. Todo ser humano caracteriza-se pela individualidade, subjetividade e alteridade. A subjetividade do homem que trabalha expressa seu modo de ser, fala dos modos de andar a vida. Mas, na medida em que não se realiza enquanto ser para si mesmo, torna-se ser-para-os-outros. E a alteridade expressa o ser com o outro, com os seus pares no ambiente de trabalho. Como ter reconhecido o seu valor em um ambiente competitivo, egoísta e individualista quando sabemos que o olhar do outro constitui uma dimensão importante da construção da identi-dade, da expressão da alteridade e subjetividade? Produzindo mais e mais e não se preocupando com aquele que está ao seu lado. A luta pela preservação do emprego degrada frequentemente aquele que vive do trabalho. Reduz os sonhos, sequestra a confiança no futuro, “manipula a subjetividade” (Heloani, 1991), desagrega as rela-ções laborais, dissemina e naturaliza o mal estar da consciência intranquila e ame-

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drontada. É um viver que esmaga, pois não se pode viver e trabalhar de qualquer forma, no susto e no absurdo das humilhações e medos!

C) Existe autonomia quando a subjetividade foi manipulada?

Ou seja, o trabalhador vive em corporações que estimula de forma direta a ultrapassagem diária das metas, não importa como. Está é a formula que garante a manutenção do emprego. Exemplo, o setor bancário que muitas vezes, pede à família ou amigos quem comprem produtos como forma de manter o emprego e cumprir a meta. Perguntamos: como ser um trabalhador que ganhe dinheiro rá-pido, faça sucesso, tenha autonomia e, ao mesmo tempo, se sinta cada vez mais vi-giado, controlado, atarefado, sobrecarregado, pressionado, solitário e impotente?

A pessoa se vê incapaz de realizar-se e menos reconhecida mas, também, é incapaz de reconhecer seus pares e reconhecer-se no coletivo. Sente-se menos au-tônoma e menos capaz de mudar as coisas, mediante a utilização de uma tecnolo-gia que a aliena e a escraviza. Às vezes, a rapidez na ascensão na carreira é direta-mente proporcional ao aceite de determinadas práticas que envolvem corrosão do caráter, corrupção e mentiras, aquilo que chamamos de sofrimento ético-político.

Façamos uma rápida retrospectiva na Comunidade Europeia após o início da crise em 2008 e teremos um quadro assustador durante as reestruturações: na Espanha ocorrem mais de 8 suicídios ao dia, sendo a media de 6 homens. A intera-ção social no suicídio é maior no local de trabalho do que no entorno familiar. Na França, entre 2009 e 2010, vários suicídios ocorreram na empresa recém privati-zada, a “France Telecom” e em um ano e meio, em todo o país, 80 pessoas tiraram a própria vida em função do sofrimento laboral. Os bilhetes deixados, diziam:

“Suicido-me por causa de France Telecom. E a única causa de minha morte voluntaria. Não suporto mais com a pressão permanente. O trabalho excessivo, a ausência de formação, a desorganização total da empresa. Os gestores praticam uma gestão de terror. A maneira de tra-balhar e a exigência de produtividade desorganizou a minha vida. Essa forma de trabalhar me perturba. Me converti em um nada, uma ruina, um dejeto humano. Prefiro acabar. Por fim a minha vida”.

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Em fevereiro de 2012, um diretor dos serviços postais franceses, “La Poste”, de 28 anos de idade, saltou do quarto andar do Palácio do Comercio de Rennes, na presença de centenas de pessoas. Decidiu acabar com sua vida saltando de uma sala de reuniões do local onde trabalhava. Este jovem deixou uma carta explican-do as razões de seu gesto. Sua esposa a leu para a imprensa. Dias antes  em Vitrolle outro trabalhador da “La Poste”, de 56 anos, se suicidou deixando uma carta para sua esposa dizendo que seu ato estava relacionado com sua situação laboral.  Não suportava a reorganização da empresa que apresentava uma gestão direcionada para a produtividade e lucratividade da fábrica.

“Meu trabalho não parece ser valorizado, sou questionado de forma constante, nada que faço parece estar certo e isso vem ocasionando uma falta de confiança terrível em mim mesmo, o que gera uma ansie-dade crescente. Prefiro não viver em um ambiente opressivo como este. Tenho tudo para ser feliz, uma esposa que gosta de mim. Uma filha adorável, porem essa ansiedade profissional que me foi imposta, está acima de minha vida privada e de minha força”.

Sua esposa acrescenta: “Ele tinha sonhos, queria ter êxito, porém a sua hierar-quia o humilhava e menosprezava constantemente. Ele sentia que já não valia mais nada. Isso o que causou sua morte”.

Na China, várias dezenas de suicídios na Foxconn Technology , ceifam a vida de jovens trabalhadores. No Brasil, na época das fusões e reestruturações agressivas da rede bancária, ocorreram mais de 180 suicídios. Entre as causas dos suicídios e mal estar no trabalho a tese mais difundida e aceita internacionalmente é que há um mal-estar generalizado dos trabalhadores. Sofrimento que se deve ao modo atual de administrar e forma de organizar o trabalho. Uma “doutrina”, em nome da excelência, típica de uma ideologia gerencialista, que demanda atitudes contradi-tórias, como a de ser (individualmente) vencedor e (coletivamente) colaborador, ou, de produzir muito, mas com qualidade e com poucos recursos (GAULEJAC, 2007).

Ontem 21/05/2013 um trabalhador de Caxambu após cinco anos trabalhando em uma empresa de transporte de passageiros, adoeceu e se afastou, por alguns meses, em licença médica. Depois de passar por perícia e ser considerado apto pela Previdência Social, apresentou-se à empresa. Mas a empregadora não permitiu seu

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retorno ao seu posto de trabalho e sequer lhe passou qualquer trabalho. Ademais, não pagou seus salários, a partir da alta previdenciária. O comportamento do mé-dico do trabalho da empresa teve por base a lógica da proteção aos interesses da empresa, que não raro é o responsável por lamentáveis violações éticas. O traba-lhador permaneceu nessa situação por seis meses, sendo colocado à disposição da empregadora, na garagem da empresa, sem que lhe fosse atribuída qualquer função. Perguntamos: como não adoecer?

Poderíamos perguntar inspirados no médico gaúcho álvaro Melro, o que faz um trabalhador sofrer e adoecer? A resposta está no conflito permanente entre a qualidade do trabalho esperado e a quantidade a produzir; na densificação das atividades laborais (supressão de qualquer tempo que não seja utilizado direta-mente na produção); na frustração por não poder fazer um trabalho de qualidade e, também, nas discriminações e humilhações no trabalho.

Os trabalhadores não desejam sofrer acidentes, ficar transtornados, ficar afastados dos seus pares; ter alterado seus pensamentos, pensar em suicídio, se aposentar precocemente ou afastar-se do trabalho por doenças. Recentemente, um gestor contou-nos que seu trabalho se caracterizava por acúmulo de servi-ços, grande demanda e excessivo fluxo de clientes, falta de pessoal qualificado e grande quantia de dinheiro sob sua responsabilidade. Tudo isso o fazia ficar, constantemente, sob forte tensão e estresse que se tornaram uma constante no seu dia-a-dia, com reflexos em seu ambiente familiar, o que lhe causava sérios confli-tos conjugais. Após um tempo, já não conseguia dormir a noite, passando então a sofrer com crises maníaco-depressivas e síndrome do pânico, passando inclusive a ter visões e ouvir vozes. Foi diagnosticado como portador de Transtorno Afetivo Bipolar. Foi afastado do trabalho para tratamento de saúde e acabou aposentado, após a constatação que os seus distúrbios psíquicos haviam apresentado evolução e progressividade, restando um quadro clínico crônico irreversível. Resta duvida da causalidade de seu adoecer?

Reafirmamos: o presenteísmo leva o trabalhador a permanecer em seu posto de trabalho, mesmo desmotivado, sem condições psíquicas e ou físicas para tra-balhar, ultrapassando a sua jornada. Para ele, o trabalho torna-se tudo: não pelo prazer, mas pelo medo. Necessita que sua presença seja notada pelos colegas e em especial, a chefia. Em sua atitude, quer mostrar ao outro que não faz corpo mole, apesar de sobrecarregado, e que também produz. Que trabalha e dá duro, apesar de adoecido, e, muitas vezes, exaurido.

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Para a ABB (Asea Brown Boveri), a qualidade de vida, deve estar embasada em cinco pilares: respeito à vida, rejeição à violência, generosidade, ouvir para compreender e redescoberta da solidariedade. Pergunto: existe este ambiente? O que ainda vemos, são programas voltados para o controle de peso, do fumo, do se-dentarismo, da hipertensão etc. Mas, se o presenteísmo é essencialmente um pro-blema de organização do trabalho e gestão de pessoas, como esses programas irão de fato, resolver e eliminar as causas do presenteísmo? Sabemos que ao serviço médico compete a “promoção da saúde, assistência integral e eficaz, além de um registro prático e ético” (Souto, 1980). Ou seja, qualquer programa de prevenção, deve levar em consideração tanto as condições objetivas da organização do tra-balho quanto as condições subjetivas das relações hierárquicas e abuso de poder. A prevenção do presenteísmo diz respeito aos gestores, aos Recursos Humanos, à área de saúde e segurança do trabalho. Estes profissionais devem ter autono-mia para propor mudanças e que estas sejam acatadas e compreendidas pela alta gestão. Sabemos que ouvir e acolher o trabalhador, respeitosamente, é essencial. Contudo, não menos importante, é pensar conjuntamente as estratégias preven-tivas que controlem os riscos psicossociais e gerem bem-estar aos trabalhadores.

Uma sugestão necessária é refletir, honestamente, a respeito das jornadas pro-longadas, tarefas monótonas e repetitivas. Essas jornadas prolongadas e exaus-tivas, trazem prejuízos tanto para a empresa como trabalhadores, qual seja: a baixa produtividade. Impedir as reuniões pós- jornada de trabalho, ou seja, no-turnas, faz-se necessário, pois causam insônia ou sono insuficiente. Além disso, interferem na relação afetiva do casal e filhos que, muitas vezes, apresentam mal desempenho escolar devido a falta de convivência com os país. Uma logica voltada exclusivamente para custos, metas e lucratividade não combina com os sentimen-tos, desejos e olhar dos trabalhadores.

Todos que trabalham desejam ser respeitados e reconhecidos ao invés de serem submetidos a um largo processo de duvidas, interrogações, incoerências, ameaças, pressões que torturam e causam erosão das emoções. Nenhum de nós aspira à dor, mesmo quando sabemos que ela nos constitui. A chave da resistência é estabelecer um estilo de direção e governança que não seja autoritário e indi-ferente às necessidades elementares dos trabalhadores enquanto seres humanos.

Quase ao final, reafirmamos que a precarização, a pressão por metas impos-tas e nunca fixas, o excesso de trabalho e a extensão da jornada, pelo medo de perder o emprego ou mesmo a conduta sistemática de trabalhar com um atestado

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no bolso, evitando afastar-se pelo medo de um outro seja colocado em seu lu-gar, tem gerado consequências negativas para a saúde de todos os trabalhadores. Para a Organização Internacional do Trabalho, a falta de prevenção adequada das doenças ocupacionais tem ocasionado efeitos negativos profundos sobre os trabalhadores, suas famílias e também na sociedade em consequência do enorme custo que gera, em particular no que se refere à perda de produtividade e sobre-carga do sistema previdenciário.

Finalizamos com uma carta de um trabalhador grego que se suicidou em de-zembro de 2012, após reestruturações que culminaram com várias demissões:

Violência é trabalhar 40 anos por una miséria e não saber se algum dia, chegarás a se aposentar. Violência são os bônus do Estado, as pensões roubadas, a fraude da bolsa. Violência é estar obrigado a obter um em-préstimo hipotecário que finalmente pagas a preço de ouro. Violência é o direito do diretor de te despedir em qualquer momento. Violência é o desemprego, a precariedade, os 700 euros com ou sem seguro social. Violência são os «acidentes» laborais, porque os patrões limitam seus gastos às custas da segurança dos trabalhadores. Violência é tomar psicofármacos e vitaminas para fazer frente aos horários extenuantes. Violência é ser uma imigrante, viver com o medo de que em qualquer momento vão te jogar fora do país e experimentar constantemente a insegurança. Violência é ser ao mesmo tempo assalariada, dona de casa e mãe. Violência é o quanto te fodem o cu no trabalho e te dizem: “Sorria, tampouco é para tanto” (METOIKIDIS, 2012).

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o mAL-ESTAr E A SoCiEDADE DE GESTÃo

Jane Salvador de Bueno Gizzi1

Vivemos em uma sociedade de gestão. Essa afirmativa está inicialmente ancorada nas reflexões de BENDASSOLI

que, fazendo referência à obra de Wrigth Mills (White Collars – Galaxy Book, 1956), explica, em retrospecto, quais seriam as bases para a emergência desse mo-delo de sociedade.

Segundo o autor, foi ao longo do século XX, com o estabelecimento de uma nova classe média - os whitecollars – surgida a partir da derrocada dos pequenos proprietários de terras e de empresas que formavam o núcleo da economia ame-ricana do século XIX, que foram difundidos os fundamentos para a sociedade de gestão. Teria havido a mudança de um ideário pautado na independência e na liberdade, para um ideário de dependência quase completa para com a empresa (econômica, psíquica e social).

Ainda em referência a Mills, o autor afirma que esse novo modelo de socieda-de teria como elementos estruturantes “o conformismo, a passividade, a docilidade e o sonho de ‘conquistar o primeiro emprego’ ou de manter o atual”. Assim, a so-ciedade de gestão “nada mais é do que um sistema que tem, no centro, o universo econômico, social e cultural ditado pela empresa”. A sociedade de gestão teria sido forjada, portanto, a partir de uma massa dócil, assalariada e cooptada em todas as

1 Advogada trabalhista. Mestre em Direito pela PUC/PR. Professora licenciada de Direito do Traba-lho do Centro Universitário UNIBRASIL.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

suas principais dimensões e onde a empresa coloca-se como o centro, assim como a satisfação de suas necessidades como objetivo a ser atingido2.

Se por um lado a sociedade de gestão teve seu embrião nos fenômenos aborda-dos por BENBASSOLI, por outro, o seu efetivo estabelecimento se deu a partir das transformações ocorridas já no final do século XX, conforme explica GOULE-JAC, quais sejam, a crescente obsessão pela rentabilidade; a substituição da lógica de produção pela lógica financeira; a substituição da gestão do pessoal pela de recursos humanos; o surgimento da economia financeira em lugar da industrial; a impossibilidade de regulação do capital – controle e contenção dos seus efeitos - em razão de sua expansão mundial; e o estreitamento do tempo e do espaço, ins-taurando “a ditadura do ‘tempo real’ e a imediatidade das respostas às exigências dos mercados financeiros” 3.

A partir de então, a precarização das condições de trabalho acentuou-se. Tan-to é verdade que ALVES, ao tratar do tema, apresenta a maquinofatura (que seria o resultado da síntese das categorias sociais manufatura e grande indústria) e a “crise estrutural de valorização do valor” (capital financeiro + financerização da riqueza = força de trabalho como mercadoria), como os fenômenos do século XXI, responsáveis pelo surgimento de uma nova e mais nefasta categoria de precariza-ção: a precarização existêncial, e do próprio homem, portanto, transcendendo a mera precarização salarial4. Categoria social que “põe, como pressuposto efetivo, a ‘captura’ da subjetividade da pessoa humana por meio do espírito do toyotismo, im-plicando, de modo intensivo e extensivo, o processo de reprodução social do traba-lho vivo. Deste modo, com o surgimento da maquinofatura, alteraram-se os termos do estranhamento social, dado pela relação tempo de vida/tempo de trabalho e pela constituição de um novo modo de vida just-in-time” 5.

Esse novo modo de vida, pautado na gestão e na centralidade da empresa e de seus valores, é formado por indivíduos cada vez mais dependentes e em constante mal-estar, na medida em que “O desempenho e a rentabilidade são medidos em

2 BENDASSOLLI. Pedro F. Prefácio. In: GOULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideo-logia, poder gerencialista e fragmentação social, Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2007, pp. 9-11.

3 GOULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social, Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2007, p.41.

4 ALVES, Giovani. Trabalho e neodesenvolvimentismo: choque de capitalismo e nova degradação do trabalho no Brasil, Bauru: Canal 6, 2014, pp.11-18.

5 Ibidem, p.15

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O MAL-ESTAR E A SOCIEDADE DE gESTÃO

curto prazo, ‘em tempo real’, pondo o conjunto do sistema de produção em uma ten-são permanente: zero atraso, tempo exato, fluxos tensos, gerenciamento imediato, etc. Trata-se de fazer sempre mais, sempre melhor, sempre mais rapidamente, com os mesmos meios e até com menos efetivos” 6.

Os indivíduos trabalhadores, ainda docilizados, massificados e nivelados se-gundo as regras e a lógica da empresa, porém forçados a equilibrar competitivi-dade (que pressupõe um alto nível de individualismo) e cooperação (trabalhar em favor do grupo e, em consequência, em favor da empresa) são o centro de uma equação impossível de ser resolvida.

De um lado, espera-se que o trabalhador utilize todas as suas habilidades, desenvolva suas potencialidades e se supere a cada dia, sendo o único responsável por sua própria empregabilidade. De outro, e paradoxalmente, exige-se que não se sobreponha ao grupo e não o transcenda; como “colaborador” que é, torna-se tão responsável pelo sucesso do empreendimento – do ponto de vista, exclusivamente, da produção – quanto seu próprio empregador.

Em uma sociedade de gestão, afirma GOULEJAC, “compreender é medir” (só é aplicado aquilo que pode ser parametrizado, objetivado e calculado, eliminando-se tudo o que não pode ser medido, por impertinente e não confiável). A economia é uma mera equação matemática (racionalização em lugar da razão, eliminando-se o conhecimento acerca da história e das experiências do passado em favor da lógica e suas parametrizações: custos, vantagens, eficácia, curvas de vendas, etc); a organização é um dado (as condutas humanas são analisadas a partir da ótica da descoberta “dos mecanismos de adaptação e de desvio”); a expertise é usada como modelo de observação da atividade humana (“O ato de trabalho é decomposto em unidades de base, que permitam reconstituir a atitude ótima na execução das di-ferentes tarefas a realizar”. Busca-se aplicar métodos e técnicas científicas para medir a atividade humana, considerando-se o indivíduo trabalhador uma mera engrenagem do sistema e o seu trabalho, um mero indicador; o trabalho humano é valorado segundo a sua eficácia, ou seja, aquilo que é capaz de produzir 7.

Esses elementos criam um ambiente laboral em absoluto desequilíbrio, que exige que se sufoquem as próprias necessidades em favor dos postulados da em-

6 GOULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social, Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2007, p. 41.

7 Ibidem, p. 67-76.

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presa, que impede que se exerçam, amplamente, sua liberdade e independência, e que adota o desempenho como a principal medida de valor do trabalho. Para GOULEJAC, “a gestão gerencialista preocupa-se antes de tudo em ‘canalizar as necessidades dos clientes’ sobre os produtos da empresa e de transformar os tra-balhadores em agentes sociais de desempenho. O trabalhador é considerado se for rentável” 8.

Nesse cenário, de interesses opostos, o poder é exercido enquanto autoridade e “a autoridade ganha a forma de vigilância, coerção, direção, de poder privado, enfim, e não de mera coordenação técnica da produção”9.

Essa relação, de poder e de subordinação – que, a priori encontraria amparo normativo no elemento legal da subordinação jurídica, mas o subverte e o cor-rompe - se perpetua, como uma relação destrutiva de comando e dependência, e em que o ponto máximo de degradação do trabalhador se dá pela exploração do seu sofrimento, usado como mecanismo de aprimoramento do desempenho, de aumento da produtividade e de crescimento do lucro.

DEJOURS já chamava a atenção para essa técnica, usada em favor da empresa como importante instrumento de docilização dos corpos e da mente. No caso das tarefas repetitivas, que toma como exemplo, conclui que é pelo sofrimento mental infligido que o corpo se dociliza:

“Nas tarefas repetitivas, os comportamentos condicionados não são unicamente consequências da organização do trabalho. Mais do que isso, estruturam toda a vida externa ao trabalho, contribuindo, desde modo, para submeter os trabalhadores aos critérios da produtividade. A erosão da vida mental individual dos trabalhadores é útil para a im-plantação de um comportamento condicionado favorável à produção. O sofrimento mental aparece como intermediário necessário à sub-missão do corpo”10.

8 Ibidem, p. 50.9 MELHADO, Reginaldo, Poder e sujeição: os fundamentos da relação de poder entre capital e tra-

balho e o conceito de subordinação. São Paulo: LTr, 2003, pp. 13-1810 DEJOURS, Christophe, 1949, A loucura do trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho; tradu-

ção Ana Isabel Praguay e Lúcia Leal Ferreira, 5 ed. ampliada, São Paulo: Cortez – Oboré, 1992, p.96.

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O MAL-ESTAR E A SOCIEDADE DE gESTÃO

É importante que se diga que a exploração da frustração e do sofrimento é um fenômeno que se reproduz em diversas categorias de trabalhadores, não se resu-mindo àqueles que exercem atividades repetitivas. Aliás, é um mal sistêmico em que não há, também segundo DEJOURS, espaço para qualquer individualidade, em que o controle e a hierarquia centram-se na total sujeição, e que transcende e, portanto, corrompe a ideia de mera subordinação jurídica. Nas palavras do autor, “O eixo central dessa violência do poder baseia-se no estado permanente de poder ser controlado. Não se pode imaginar uma disciplina mais eficaz ou perfeita que a existente, pelo fato de se poder ser controlado a qualquer momento, sem mesmo saber em que momento esse controle é exercido”11.

E a exploração do sofrimento no contexto do exercício do poder hierárquico não se dá de outro modo senão por meio da manipulação do discurso, que pos-sibilita que aquele que detém os meios de produção possa mandar, comandar e dirigir o empreendimento segundo a sua lógica e seus interesses, e aquele que ven-de a sua força de trabalho resigne-se a obedecer mesmo em um ambiente em que suas necessidades são colocadas em segundo plano (ou sequer cogitadas); Já dizia CORREAS que para que seja possível a “determinação da conduta de outros” - se-gundo seus próprios e únicos propósitos - é imprescindível “(...) produzir discursos que, sendo entendidos pelos seus destinatários, induzam-nos a realizar as condutas requeridas pelo poderoso”12.

Não se trata, pois, de conduta voluntária. La Boétie já dizia que, “(...) é extrema infelicidade estar sujeito a um senhor, do qual jamais se sabe se pode assegurar se é bom, pois está sempre em seu poder ser mau, quando o quiser; e ter vários senho-res é ser tantas vezes extremamente infeliz.”13 E, ainda, que “com certeza, todos os homens, enquanto têm qualquer coisa de homem, antes de deixarem sujeitar, é preciso, de duas, uma: que sejam forçados ou enganados”14.

O discurso empresarial – auxiliado pelas profundas transformações ocorri-das no mundo do trabalho e que, como lembra ANTUNES, geraram desemprego

11 Ibidem, pp 101-102.12 CORREAS, Óscar. Introdução à sociologia jurídica. Trad.: Carlos Souza Coelho. Porto Alegre:

Crítica Jurídica, 1996, p.41.13 LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso sobre a servidão voluntária; tradução J. Cretella Jr e Agnes Cre-

tella, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p.25.14 Ibidem, pp33-34.

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estrutural, precarização das relações de trabalho e degradação do homem e do ambiente15 - introjeta a ideia de que a oferta de trabalho é escassa e a mão-de-obra abundante, de modo que subsistirão apenas os que se sobressaírem (os emprega-dos polivalentes, flexíveis, que “vestem a camisa”).

Se de um lado, os trabalhadores se tornam cada vez mais competitivos e indi-vidualistas, no afã de conquistar uma vaga ou na esperança de manter seu posto de trabalho, de outro, esses mesmos indivíduos tornam-se absolutamente resigna-dos em relação ao que a empresa lhes oferece em troca.

Cria-se um desequilíbrio ainda mais abissal na correlação de forças entre ca-pital e trabalho e a ideia de manter-se a salvo do sofrimento passa a ser o objetivo a ser alcançado. E esse sofrimento, é bom que se diga, pode ser de qualquer ordem (desemprego, marginalização, ausência de reconhecimento, etc.) a depender de qual é a dimensão da influência do trabalho na construção da imagem, da au-toimagem e da identidade de cada indivíduo e do seu grau de importância para a constituição do senso de pertencimento e de integração social.

Segundo Freud, as pressões que decorrem das inúmeras possibilidades de so-frimento humano (do corpo, em declínio; do mundo externo, com suas influên-cias sobre o indivíduo; e, de suas relações com os outros indivíduos) exerceriam uma espécie de contenção do desejo de ser feliz, cedendo lugar à necessidade de evitar o sofrimento, como imperativo primordial. Seria pelo medo do sofrimento que “os homens aprenderam a moderar suas reivindicações de felicidade – tal como, na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio da realidade -, que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao so-frimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano”16.

O assédio moral organizacional é um exemplo de violência que se produz a partir do discurso, enquanto manipulação da linguagem, ou seja, como meio de implementação das técnicas e dos métodos de gestão da empresa capitalista dos séculos XX e XXI, sem que haja efetiva resistência.

15 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho, 6ª edição, Biotempo Editorial: 2002, p. 15.

16 FREUD, Sigmund, O mal-estar na civilização, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997, p. 25.

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CERQUEIRA, ao abordar esse tipo de violência, o faz sob duas perspectivas: uma subjetiva e outra objetiva, e explica de forma bastante interessante como os trabalhadores (no caso, os bancários, tema do seu estudo) são sugados para o inte-rior da lógica capitalista, especialmente por meio do discurso.

No caso da primeira (subjetiva), o empregado é cooptado e iludido para que se sinta parte da empresa, comungando de seus propósitos; para tanto, usam-se técnicas de marketing a fim de convencê-lo de que sua fidelidade resultaria em sua valorização, realização pessoal, ascensão profissional e permanência. O que é referendado pelos rankings de “melhores empresas para se trabalhar”, publicados na grande mídia; pela divulgação das conquistas da categoria como se fossem be-nesses oferecidas, sem contrapartida, pela própria empresa (e não como resultado das lutas dos próprios trabalhadores organizados e seus sindicatos); pela falácia da qualidade total, como técnica de apropriação da subjetividade e do “controle ideológico” do empregado, levando-o a assimilar os interesses da empresa como se seus fossem, não se insurgindo à redução do quadro de pessoal e nem à intensifi-cação do seu trabalho; mas, ao contrário, sentindo-se responsáveis pela excelência do serviço e pelo bom funcionamento da engrenagem: nada de faltas, nada de atrasos, nada de doenças que comprometam o desempenho. Neste cenário, o erro não tem lugar; se ocorre, é por culpa exclusiva do empregado; se tudo é normati-zado, os problemas, em tese, já foram antevistos, não havendo razão para a falha, mesmo onde, sabidamente, os imprevistos são uma constante” 17.

No caso da segunda perspectiva (objetiva), CERQUEIRA afirma que “O coti-diano de um trabalhador bancário é de pressão total. Pressão pelo cumprimento de metas extenuantes, pressão para que preste um serviço de excelência, pressão pelo medo de ser dispensado, pressão para conseguir uma promoção na hierarquia do banco, pressão pelas exigências dos clientes”18.

As técnicas de sedução e de manipulação, à evidência, são extremamente efi-cazes para não só envolver como submeter os trabalhadores, mesmo que estejam em constante sofrimento. Técnicas que são necessárias para que se suporte toda a sorte de políticas gerenciais (instituição e cobrança intensa de metas; controle da produtividade, avaliação de desempenho com base nos resultados, etc.) que levam

17 CERQUEIRA, Vinícius da Silva. Assédio moral organizacional nos bancos. São Paulo: LTr, 2015, pp. 130-134.

18 Ibidem, pp. 130-135.

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a “um quadro de cobranças, competição, rivalidade, viando manter a produtivi-dade dos seus empregados alta e causando-lhes uma série de transtornos morais, físicos e psíquicos”19.

É interessante observar que esse tipo de fenômeno atinge todas as estruturas e escalas hierárquicas da empresa, inclusive os empregados de cargos intermediários que possuem algum grau de ascensão. Não é por outro motivo que GOULEJAC bem observa que:

“o manager, mais que qualquer outra pessoa, interioriza fortemente a contradição capital/trabalho. De um lado ‘uma forte identificação com o ‘interesse da empresa’, uma interiorização da lógica do lucro, uma adesão às normas e aos valores do sistema capitalista; do outro, uma condição salarial submetida às imprevisibilidades da carreira, ao risco de dispensa, à pressão do trabalho e a uma competição feroz”20.

Seja como for, é preciso refletir sobre as consequências desse tipo de socie-dade, em especial sobre o sentimento de mal-estar que se prolifera no seio das empresas. Sentimento este, como bem lembra DUNKER, que nem sempre pode ser nomeado e reconhecido, intensificando ainda mais o sofrimento infligido ao indivíduo: “O pesadelo de não ter seu sofrimento reconhecido é proporcional à difi-culdade de nomeação do mal-estar”21.

Essa dificuldade, continua o autor, residiria no fato de que este tipo de sofri-mento não pode ser reduzido a “uma gramática normativa” e nem a uma “unifor-mização dos sintomas”22; um diagnóstico formal não abarcaria todas as possibi-lidades que esse tipo de mal engendra pois não se reduz a uma única dimensão do sofrimento; ao contrário, manifesta-se não apenas pelo mal-estar do corpo (sintoma), mas também pelo mal-estar moral (experiência do sofrimento, seja co-letiva ou individual); é angústia, mas também é “sentimento existencial de per-

19 Ibidem, pp. 136-137.20 GOULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação

social, Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2007, p 39.21 DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil

entre muros; 1ª edição- São Paulo: Boitempo 2015, p. 25.22 Ibidem, p. 35.

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O MAL-ESTAR E A SOCIEDADE DE gESTÃO

da de lugar”23. Daí a dificuldade para nomeá-lo e, muitas vezes, reconhecer suas causas: “Ou seja, o mal-estar não é a própria angústia, mas liga-se a um déficit de percepção da angústia que possui efeitos de inibição e se qualifica como torturante. O tormento, a angústia que se repete, que se remói, a angústia cuja causa, razão ou motivo não se discerne muito bem, pode ser então predicado como mal-estar”24.

Para Pedro F. Bendassoli, o mal-estar estaria intimamente relacionado a um processo de ruptura do pacto civilizacional – em que o indivíduo deve renunciar às suas pulsões em razão de pequenas compensações e pela ideia de sua dignificação por meio do trabalho; quando a contrapartida deixa de existir, surgiria o mal-estar25.

E a empresa lida com isso disseminando os discursos do prazer imediato (sucesso fácil, ganho imediato) e da promessa de compartilhamento do sucesso, que só seria possível pela coexistência entre competição (baseada na autonomia e no individualismo) e cooperação para com o grupo (em verdade, para com a empresa)26. Promessas que nunca se concretizam. Ao contrário. Os trabalhadores laboram sob intensa pressão, enredados em uma teia complexa na qual a própria forma em que o trabalho se organiza produz o mal-estar, o sofrimento e não raro o adoecimento mental.

Ao que parece, a sociedade de gestão é a sociedade do mal-estar em suas di-versas formas de manifestação. Se a gestão é, segundo GAULEJAC, uma “doen-ça social”, o mal-estar, a partir da apreensão das lições de DUNKER, é a sua manifestação em forma de angústia, inquietação e de dor; aquilo que nem sempre pode ser nomeado ou ter suas causas verdadeiramente percebidas, mas que sem-pre estará presente, como algo perfeitamente inerente ao sistema.

Em meio a isso, perde-se o sentido de transcendência do próprio ser - deixan-do para trás a sua marca e a sua obra - e o desejo de perpetuação do homem por meio de suas realizações, tão bem traduzidos na formulação de Hannah Arendt: “o trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam certa permanência e du-rabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano”27;

23 Ibidem, p. 196.24 Ibidem, p. 205.25 BENDASSOLLI. Pedro F. Prefácio. In: GOULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideo-

logia, poder gerencialista e fragmentação social, Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2007, p.13.26 Ibidem, pp. 14-17.27 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2004, p.16.

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ASSÉDio morAL E mEio AmBiENTE DE TrABALHo: PErCEPÇÕES DA

JuSTiÇA Do TrABALHo SoBrE A orGANizAÇÃo Do TrABALHo

BANCário Como VETor DE PoLuiÇÃo AmBiENTAL

João Gabriel Pimentel Lopes1

Denise Arantes Santos Vasconcelos2

1. introdução.

As caracterizações contemporâneas do trabalho, especialmente a partir da emergência de estratégias de governança corporativa ao longo do último quar-to do século, têm dedicado especial ênfase à influência dessas estratégias sobre a integridade da saúde física e – especialmente – mental dos trabalhadores. No âmbito da psicopatologia do trabalho, diversos têm sido os estudos que buscam identificar as causas e os efeitos do acentuado adoecimento ocupacional nos tra-balhadores submetidos aos mecanismos de gestão aplicados em empresas de todo o mundo.

Em estudo seminal sobre o tema, Christophe Dejours identifica na organi-zação do trabalho a principal fonte específica de nocividade mental para os tra-balhadores. Tal conceito é compreendido como o complexo que reúne “a divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa (na medida em que ele dela deriva), o sistema

1 Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Sócio Coordenador da Unidade São Paulo do escritório Roberto Caldas, Mauro Menezes & Advogados.

2 Graduada em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do UniCEUB. Sócia Subcoor-denadora da Unidade Federal e integrante do Grupo de Estudos sobre Trabalhadores Bancários do escritório Roberto Caldas, Mauro Menezes & Advogados.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões de responsabilidade”3. Referida organização tem, entre seus elementos constitutivos, a exposição de trabalhadores a situações conformadoras de verdadeiras lesões à subjetividade operária que têm sido identificadas sob o título de assédio moral.

O assédio moral é compreendido como “a exposição dos trabalhadores a situa-ções humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho, [que] passam a ser desestabilizadoras”4 e, de acordo com classifica-ções que buscam identificar suas distintas manifestações, pode ser dividido em três formas principais: o assédio perverso, motivado por perseguições de ordem predominantemente individual, o assédio estratégico, em que se busca manter o ci-clo de substituição laboral mediante o pedido de desligamento efetuado pelo pró-prio empregado, e o assédio organizacional, este mais próximo à caracterização de Dejours sobre a estruturação dos métodos empresariais de divisão, alocação e hierarquização do trabalho5.

Pesquisas recentes têm identificado que o setor bancário é um dos principais polos de disseminação das práticas abarcadas pelo manto do assédio moral orga-nizacional, implicando não apenas desajustes nas relações empregatícias, como também o adoecimento e até mesmo o óbito de trabalhadores6. Estudos recentes indicam a relação direta entre as transformações na dinâmica organizacional e o adoecimento físico e psíquico dos trabalhadores bancários, como sintetizam Re-gina Heloisa Maciel e outros:

3 DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 1992, p. 25.

4 HELOANI, José Roberto; CAPITãO, Cláudio Garcia. Saúde mental e psicologia do trabalho. São Paulo em perspectiva, n. 17, v. 2, 2003, p. 106.

5 COZERO, Paula Talita. “Assédio moral organizacional: como identificar e enfrentar a violência co-tidiana no ambiente de trabalho”. In: ALLAN, Nasser Ahmad; BEIRO, Nilo da Cunha. Direito do trabalho bancário: temas atuais na perspectiva da advocacia especializada. São Paulo: Projeto Editorial Práxis, 2016.

6 Ver, a esse respeito: SOARES, Lena Rodrigues; VILLELA, Wilza Vieira. O assédio moral na pers-pectiva de bancários. Revista brasileira de saúde ocupacional, São Paulo , v. 37, n. 126, p. 203-212, dez. 2012. E, ainda: ALLAN, Nasser Ahmad; GIZZI, Jane Salvador de Bueno; COZERO, Paula Talita. Assédio moral organizacional: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos . Curitiba: Projeto Editorial Práxis, 2015.

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ASSÉDIO MORAL E MEIO AMBIENTE DE TRABALHO: PERCEPÇÕES DA JUSTIÇA DO TRABALHO SOBRE A ORgANIzAÇÃO DO TRABALHO BANCÁRIO COMO VETOR DE POLUIÇÃO AMBIENTAL

O bancário vive uma transformação que o coloca frente a frente às no-vas formas de organização do trabalho e sofre as conseqüências disto: um maior número de afastamentos do trabalho por LER (Lesões por Esforços Repetitivos), estresse decorrente do trabalho e sofrimento mental7

Diante desse diagnóstico, já realizado pelos campos da sociologia, da medi-cina e da psicologia ocupacional, impõe-se aos agentes do direito uma reflexão sobre o modo como deve ser compreendida e enfrentada tal situação à luz das construções normativas disponíveis de proteção ao trabalhador. O objetivo deste ensaio é fornecer uma contribuição para tal fim, mediante a exposição de uma óti-ca específica de enfrentamento jurídico dos problemas amplamente disseminados no segmento bancário. A proposta é de que as situações de assédio moral sejam apreciadas à luz da dinâmica do direito ambiental do trabalho, ramo que tem se estabelecido como um novo horizonte de expansão da atuação do Judiciário Tra-balhista, especialmente após a integração da Emenda Constitucional nº 45/2004 ao corpo da carta de direitos de 1988.

2. do dirEito AmbiEntAl do trAbAlho à rEgulAção jurídicA do Assédio: umA PontE nEcEssáriA.

A tutela jurídica do meio ambiente traduz um horizonte particularmente ino-vador para o campo jurídico. No âmbito do direito brasileiro, a regulação norma-tiva ambiental somente se estruturou, de modo minimamente efetivo, a partir do estabelecimento da Política Nacional do Meio Ambiente, por meio da edição da Lei nº 6.938/1981, também responsável por enunciar os principais conceitos que orbitam em torno dessa regulação específica.

Assim é que, do art. 3º, I, daquela norma, extrai-se que a ideia de meio ambien-te, para fins jurídicos, deve abranger “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida

7 MACIEL, Regina Heloisa et al. Auto retrato de situações constrangedoras no trabalho e assédio moral nos bancários: uma fotografia. Psicologia & Sociedade, v. 19, n. 3, set.-dez. 2007.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

em todas as suas formas”. Em semelhante orientação, o inciso III daquele mesmo artigo define como poluição “a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: (a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; (b) criem condições adversas às atividades sociais e eco-nômicas; (c) afetem desfavoravelmente a biota; (d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; (e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos”.

Apenas desses dispositivos, já seria possível extrair que a proteção às inte-rações e à vida em todas as suas formas deve abranger as relações entre seres humanos desenvolvidas em um locus específico de sua atuação, que é o local de trabalho. De igual modo, a afetação inequívoca da saúde e do bem-estar ocasio-nada por ambientes de trabalho lesivos já poderia caracterizar uma modalidade específica de poluição conformada no interior do trabalho. No entanto, para não deixar margem a dúvidas sobre a aplicabilidade das normas ambientais ao mundo do trabalho, a Constituição de 1988 trouxe tal proteção para o cerne do ordena-mento jurídico.

Diversos dispositivos do texto constitucional deixam explícita a preocupação com a preservação de condições hígidas para exercício das atividades laborais. Já de entrada, ressalte-se a inserção, como direito fundamental dos trabalhadores, da “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art.7º, XXII) como um dos objetivos da tutela constitucional.

A inter-relação entre saúde, trabalho e meio ambiente é acentuada pelo art. 200, que impôs dever ao sistema público e universal de saúde de “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”. Tal dispositivo trouxe para o centro da política ambiental do país a ênfase à proteção da saúde e da segurança humanas, transformando a tutela ambiental em um instrumento para a obtenção da dignidade dos cidadãos, em todas as suas formas.

Ao lado da enunciação do objetivo de inclusão do meio ambiente laboral no cerne do espírito constitucional, observa-se o aprofundamento das tutelas especí-ficas já preconizadas pela Política Nacional do Meio Ambiente. Assim, tornaram--se constitucionais os principais princípios da regulação ambiental, concretizados nos ditames de responsabilização objetiva do poluidor (reflexo direto do princípio do poluidor-pagador, constante no art. 225, §3º, da Constituição e no art. 14, §1º, da Lei nº 6.938/1981), de redução e extinção dos riscos relacionados a insumos (reflexo do princípio da precaução, constante no art. 225, §1º, V, da Constituição) e

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de compulsória realização dos estudos de impacto ambiental (reflexo do princípio da prevenção, constante no art. 225, §1º, IV, da Constituição, e no art. 9º, III, da Lei nº 6.938/1981).

Diante da constatação de necessária inclusão desses ditames na perspectiva de proteção aos trabalhadores, impõe-se novo e acentuado dever aos emprega-dores, no que concerne à preservação de um meio ambiente de trabalho hígido, sob todos os aspectos. Eventuais lesões a tal premissa devem implicar, necessaria-mente, a responsabilização do empregador, não apenas sob a ótica civilista pre-conizada pelos arts. 186 e 927 do Código Civil, mas também do ponto de vista labor-ambiental.

A adoção dessa perspectiva permite especificar as circunstâncias em que o empregador se torna um poluidor ambiental. Nesse particular, mostra-se inevi-tável a conclusão de que “todo ambiente que promova um desgaste especial do trabalhador, ou seja, acima do razoável, é (...) poluído”8. Assim, atrai-se também para esse âmbito a aplicação dos enunciados de responsabilização ambiental, in-clusive o preceito de responsabilidade objetiva do empregador-poluidor. Não por acaso, a I Jornada de Direito do Trabalho promovida pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho e pelo Tribunal Superior do Trabalho concluiu pela necessidade de expedição do Enunciado nº 38 daquela cimeira, no sentido de que se deve entender como objetiva a responsabilidade do empregador em caso de adoecimento ocupacional decorrente de dano ao meio ambiente de trabalho, como decorrência da interpretação sistêmica dos dispositivos já mencionados.

Sob essa ótica, impõe-se refletir sobre o adoecimento psíquico e o desconforto ocupacional dos trabalhadores decorrente da adoção de estratégias de gestão e organização do trabalho assediadoras. Nas palavras de Luisa Anabuki:

A caracterização do assédio moral organizacional como dano ao meio ambiente do trabalho é interessante e enriquecedora para ambos os institutos. Para o conceito de meio ambiente do trabalho é uma for-ma de reafirmar categoricamente que o meio ambiente laboral não é formado apenas por elementos físicos e químicos. É preciso que se

8 ANABUKI, Luisa Nunes de Castro. Assédio moral organizacional: uma análise da gestão em-presarial como dano ao meio ambiente do trabalho. Monografia: Faculdade de Direito da Uni-versidade de Brasília, 2013.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

afirme que a ausência de higidez do meio ambiente do trabalho não se resume aos elementos que envolvem o trabalho perigoso ou insalubre. O aspecto psicossocial é integrante e indissociável do meio ambien-te, sendo responsável pela maior parte dos adoecimentos trabalhistas hodiernos9.

Tal constatação, aliada aos inegáveis prejuízos à saúde decorrentes das práti-cas de assédio, impõe aos operadores jurídicos e, em especial, à Justiça do Traba-lho, uma ampliada sensibilização à imperativa responsabilização do empregador pelos danos ambientais, sempre que se verifique que a prática de assédio tem con-tornos organizacionais.

Como antes referido, destaca-se, contemporaneamente, o adoecimento ocu-pacional e o desconforto ocupacional veiculado no trabalho bancário. Como aferição disso, a pesquisa Métodos de gestão e adoecimento dos trabalhadores: o caso do Itaú em Curitiba, de 2016, realizada pelo Instituto Defesa da Classe Tra-balhadora (Declatra) em parceria com o Sindicato dos Bancários de Curitiba e região, apresenta dados críticos acerca das práticas abusivas de gestão realizada pelo banco Itaú. A partir da análise das ações judiciais ajuizadas contra o referido banco entre 2011 e 2015, a pesquisa apurou que 42,1% das referidas demandas apresentavam pedidos de indenização por danos morais, baseados em métodos de gestão assediosos. Dentre as causas de assédio moral mais referidas pelos re-clamantes nos processos examinados10 na referida pesquisa, se destacam princi-palmente as jornadas de trabalho exaustivas (65,1%), as metas abusivas (47,4%) e as relações danosas com superiores e colegas de trabalho (46,1%). Por outro lado, verifica-se que, quando das homologações de rescisões de contratos individuais de trabalho, percebeu-se que, em determinados segmentos do banco, quase 25% dos trabalhadores reportavam situações de estresse e quase 15% relatavam episódios depressivos, para além dos transtornos de ordem física ocasionados por esforços repetitivos e pela busca de atingimento de metas abusivas estipuladas unilateral-mente pelo empregador.

9 ANABUKI, Luisa Nunes de Castro. Assédio moral organizacional como dano ao meio ambiente do trabalho e a atuação do MPT. Monografia: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2016.

10 Mais de uma causa pode ser citada em um processo.

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ASSÉDIO MORAL E MEIO AMBIENTE DE TRABALHO: PERCEPÇÕES DA JUSTIÇA DO TRABALHO SOBRE A ORgANIzAÇÃO DO TRABALHO BANCÁRIO COMO VETOR DE POLUIÇÃO AMBIENTAL

Esses dados indicam uma circunstância à qual deve permanecer atenta a Jus-tiça do Trabalho, porquanto comprovam que, além de circunstâncias individuais que possam justificar a responsabilização de empregadores, tem-se uma dissemi-nada prática organizacional do assédio como instrumento de gestão de popula-ções obreiras.

3. PrEcEdEntEs do tribunAl suPErior do trAbAlho sobrE o Assédio morAl orgAnizAcionAl PrAticAdo PElo bAnco itAú.

A alarmante circunstância evidenciada pelos dados anteriores inspira a inves-tigação, neste tópico, do atual posicionamento das Turmas do Tribunal Superior do Trabalho (TST) sobre os inúmeros casos de assédio moral ajuizados contra o banco Itaú que desaguam naquela corte. Da análise de julgados proferidos pelo TST entre os anos de 2013 e 2016, foi evidenciado o assédio moral organizacional praticado pelo banco Itaú, vinculado a práticas gerenciais abusivas, hostis, humi-lhantes e constrangedoras, que visavam aumentar a produtividade e a lucrativida-de da instituição financeira, em grave ofensa à saúde e aos direitos fundamentais dos trabalhadores.

É o caso de julgado proferido pela 2ª turma do TST11, em que houve a condena-ção do banco Itaú ao pagamento de indenização pelo reconhecimento de assédio moral em decorrência da exigência excessiva de metas de produtividade como ferramenta de gestão. A decisão consagrou o entendimento de que é “passível de reparação por dano moral a exigência excessiva de metas de produtividade, isso porque o sentimento de inutilidade e fracasso causado pela pressão psicológica extrema do empregador não gera apenas desconforto, é potencial desencadeador de psicopatologias, como a síndrome de burnout e a depressão, que representa

11 Processo TST-RR 959-33.2011.5.09.0026, Relator Ministro: José Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 29/04/2015, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 08/05/2015. No julgamento, a conde-nação do banco Itaú foi majorada, pelo TST, de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para 60.000,00 (sessen-ta mil reais). No mesmo sentido, precedentes da mesma Turma proferidos nos autos dos processos TST-RR 19448-74.2010.5.04.0000 (data de publicação: DEJT 22/11/2013) e do processo TST-RR 1149-98.2011.5.08.0001 (Relatora Desembargadora Convocada: Maria das Graças Silvany Dourado Laranjeira, Data de Julgamento: 20/02/2013, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 01/03/2013 .

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

prejuízo moral de difícil reversão ou até mesmo irreversível, mesmo com trata-mento psiquiátrico adequado.”

Na mesma linha, há também precedente da 3ª Turma do TST12 que, reconhe-cendo a violação ao princípio da dignidade da pessoa, condenou o banco Itaú ao pagamento de indenização por danos morais também em decorrência de assédio moral organizacional, por entender que “A conduta da empresa em cobrar metas de forma excessiva afronta o princípio da dignidade da pessoa, além do que viola a privacidade do empregado, expondo-o a situação vexatória. Concluiu o colegia-do que “Se a empresa busca a eficiência de suas atividades deve se valer de meios legítimos para tanto, já que assume os riscos do negócio, mas nunca desrespeitar a dignidade do trabalhador, com atitudes desumanas e constrangedoras.”

Em outro caso, julgado pela 1ª Turma do TST13, o banco Itaú também foi con-denado por assédio moral pela conduta abusiva de ameaça de dispensa pelo não cumprimento das metas de produtividade. Decidiu aquele colegiado que “o fato de a exigência das metas ser reforçada com a ameaça da perda do emprego reflete a abusividade da conduta do Banco e induz à conclusão de que configurado o as-sédio moral passível de indenização.” Concluiu-se, ainda, que o exercício abusivo do poder diretivo pelo empregador, “com a utilização de práticas degradantes de que é vítima o trabalhador, implica violação dos direitos de personalidade, consti-tucionalmente consagrados (art. 1º, III).”

Corroborando esse mesmo entendimento, a 7ª Turma do TST14 também con-denou o Itaú em danos morais, ao asseverar que “as modernas técnicas de incen-

12 Processo TST-RR 57700-76.2007.5.04.0025, Relator Ministro: Alexandre de Souza Agra Belmon-te, Data de Julgamento: 16/12/2015, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 18/12/2015. Outro pre-cedente da 3ª Turma, em que o Itaú foi condenado por assédio moral em decorrência de gestão desrespeitosa, foi proferido nos autos do processo RR 785-91.2010.5.02.0078 (Relator Ministro: Mauricio Godinho Delgado, Data de Julgamento: 02/03/2016, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 04/03/2016).

13 TST-RR 41800-73.2007.5.15.0081, Relator Ministro: Hugo Carlos Scheuermann, Data de Julga-mento: 09/12/2015, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 18/12/2015. Há também o precedente da 1ª Turma proferido nos autos do TST-RR 574-58.2011.5.10.0802 (Relator Ministro: Hugo Carlos Scheuermann, Data de Julgamento: 06/02/2013, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 22/02/2013), em que o Itaú foi condenado por assédio moral em decorrência de discriminação antissindical.

14 TST-RR 771-90.2012.5.03.0149, Relator Ministro: Cláudio Mascarenhas Brandão, Data de Julga-mento: 30/09/2015, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 09/10/2015 . Acerca do assédio moral pela

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ASSÉDIO MORAL E MEIO AMBIENTE DE TRABALHO: PERCEPÇÕES DA JUSTIÇA DO TRABALHO SOBRE A ORgANIzAÇÃO DO TRABALHO BANCÁRIO COMO VETOR DE POLUIÇÃO AMBIENTAL

tivo à produtividade não se superpõem nem se sobrepõem a dignidade humana. Tratar o empregado de forma vil e desrespeitosa não se inclui entre as prerroga-tivas atribuídas ao empregador, como decorrência do seu poder diretivo” e de-cidir que “o réu excedeu os limites do seu poder diretivo (cobrança excessiva e abusiva pelo cumprimento de metas) e, por isso, agiu ilicitamente.” Neste caso, ficou comprovado que “os critérios para atendimento das metas eram alterados no curso do mês de maneira a impedir que os empregados as atingissem.”

O tratamento desrespeitoso e humilhante ao trabalhador geralmente está atrelado à prática de cobrança abusiva de metas. É o que se percebe nos casos acima e também na situação evidenciada em processo julgado pela 6ª Turma do TST15, no qual os superiores hierárquicos do reclamante impuseram metas ex-cessivas de produtividade e lhe deram apelido pejorativo, acometendo o traba-lhador de grave doença psíquica – síndrome do pânico . Neste processo, também houve condenação do banco Itaú por danos morais.

Vale ressaltar que, nos casos examinados, embora haja a figura do superior hierárquico, que realiza a cobrança das metas e pratica diretamente o ato abusivo, não é possível olvidar de que ele o faz como preposto do Banco, atuando de acordo com os métodos de gestão institucionalizados, autorizados e exigidos pelo empre-gador – assédio moral organizacional –, conforme amplamente reconhecido nos precedentes examinados. É o que disse a 1ª Turma do TST16, ao condenar o Itaú em danos morais pela prática de assédio moral em decorrência de gestão desres-peitosa, com conduta discriminatória e humilhante – atrelar a baixa produtivida-

restrição do uso de banheiro, o Itaú foi condenado pela 7ª Turma ao pagamento de indenização por danos morais, nos autos do processo TST-RR - 1179-78.2012.5.02.0062 , Relator Ministro: Cláu-dio Mascarenhas Brandão, Data de Julgamento: 24/08/2016, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 26/08/2016 .

15 RR 308-77.2013.5.04.0023, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 31/08/2016, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 02/09/2016 . Na mesma linha, os precedentes pro-feridos nos autos dos processos TST-ARR 788-17.2012.5.09.0002, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 28/10/2015, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 03/11/2015 e TS-T-RR - 1096-91.2010.5.10.0003 , Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 26/08/2015, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 13/11/2015 .

16 Precedente proferido nos autos TST-RR 264300-72.2006.5.01.0341 , Relatora Desembargadora Convocada: Luíza Lomba, Data de Julgamento: 18/11/2015, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 20/11/2015

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

de à cor do cabelo da autora –, com o objetivo de “humilhá-la porque não alcançou a produtividade desejada pelo superior”. Veja-se:

Note-se que a conduta abusiva foi praticada por uma preposta da em-presa no exercício do seu poder hierárquico. A responsabilidade do empregador neste caso é objetiva consoante disposto no art. 932, III, do Código Civil.

Em caso paradigmático no TST17, em que foi comprovada a abusividade da conduta do Itaú de exigir metas extravagantes de produtividade e utilizar meios intimidativos de gestão, com ameaças veladas de despedimento, o Ministro José Roberto Freire Pimenta, em seu voto, exarou a seguinte lição, que vale a pena transcrever:

[...] A imposição de metas de produção, na constante busca pelo lucro, não pode ultrapassar os limites do razoável na finalidade de forçar o empregado ao alcance cada vez maior da produtividade. O dogma da Qualidade Total (total quality management) é identificado por Paula Cristina Hott Emerick como a nova fórmula de gerir a mão de obra no capitalismo. Visa à racionalização dos elementos do processo pro-dutivo, qual seja aumento da competitividade e da produtividade das empresas, em estratégia agressiva de impor aos empregados metas cada vez maiores, às vezes inatingíveis, em busca incessante (e em muitos casos frustrante) do empregado para alcançá-las. O empregado que não atinge as metas estabelecidas está malfadado a ser excluído e dis-criminado no seu ambiente de trabalho, pois a ele será imputada (tam-bém pelos próprios pares) a pesada responsabilidade pelo -fracasso- da equipe e, consequentemente, pelo insucesso da empresa na competiti-vidade própria do mercado de trabalho. Torna-se vítima de -campa-

17 Trecho da ementa do acórdão proferido nos autos do processo TST-AIRR 2060-20.2011.5.11.0004, Relator Ministro: José Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 23/04/2014, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 02/05/2014. No referido processo, o Itaú foi condenado ao pagamento de in-denização por danos morais, no valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), considerando-se, ao arbitrar o quantum indenizatório, a finalidade reparadora e pedagógica da indenização, bem como a capacidade econômica do Banco.

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nhas motivacionais-, que nada mais são do que a fórmula encontrada pelo empregador para humilhar e expor ao ridículo aqueles que não alcançam as metas estabelecidas, isso quando não é vítima de -casti-gos- físicos e alcunhas depreciativas. Cabe ao Judiciário repudiar atos patronais desse jaez e impedir lesão a direitos fundamentais dos traba-lhadores. Cada indivíduo é único, deve ser respeitado em sua singula-ridade, e não instrumentalizado. A capacidade de gerir fortes tensões emocionais em um ambiente de trabalho é personalíssima. Necessário que se garanta ao trabalhador o direito de não se subjugar a perma-nente estresse ambiental causado pela cobrança excessiva de metas. O artigo 225, caput, da Constituição Federal assegura a todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado, aí incluído o meio ambiente la-boral. Por sua vez, o inciso V do mesmo dispositivo constitucional atri-bui ao Poder Público o dever de controlar a produção, comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Um meio ambiente de trabalho seguro e saudável é essencial à qualidade de vida do traba-lhador, o que não se atinge com constrangimentos desmesurados e hu-milhações de ordem moral. O poder diretivo não é absoluto, encontra limites no princípio protetivo da dignidade da pessoa humana, assim como o direito de propriedade deve ser exercido respeitando os limi-tes de sua função social. Não se pode negligenciar direitos e garantias assegurados na Constituição Federal de 1988. O sentimento de inutili-dade e fracasso causado pela pressão psicológica extrema no exercício da atividade laboral não gera apenas desconforto; representa prejuízo moral incompatível com os fundamentos do Estado Democrático de Direito. Ameaças de desemprego e cobranças excessivas por meio de repetidas condutas assediadoras não mais podem ser toleradas como forma de compelir o empregado a atingir resultados lucrativos para a empresa. Os abalos psíquicos que surgem em decorrência de pressão desmesurada do empregador (abuso do poder diretivo) são de difícil reversão ou até mesmo irrecuperáveis, mesmo com tratamento psi-quiátrico adequado, podendo culminar, até mesmo, em incapacidade laboral. A síndrome de burnout e a depressão são citadas na literatura médica como as doenças ocupacionais mais frequentes desencadeadas

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pela tensão e estresse no ambiente de trabalho. A primeira, identificada como -estresse crônico associado ao trabalho-, é comumente desenca-deada por gestão inadequada do estresse laborativo, caso dos autos. Na valoração do potencial lesivo do ato causador do dano moral, o Regio-nal levou em consideração a política intimidadora do reclamado no cumprimento de metas e as investidas desarrazoadas dos superiores hierárquicos. Considerou-se, ainda, a gravidade do dano, a situação do lesante e a satisfação do ofendido. O arbitramento da indenização por dano moral deve, sobretudo, constituir uma pena, uma sanção ao ofensor como forma de obstar a reiteração de conduta (finalidade re-paradora e pedagógica).

Os vários precedentes acima mencionados corroboram a chancela, pelo TST, de que as práticas relatadas pelos ex-trabalhadores e trabalhadores do Itaú se con-cretizam na estrutura organizacional do referido banco e configuram assédio moral organizacional camuflado no poder diretivo supostamente legítimo do em-pregador, na medida em que as condutas assediosas estão inseridas nos métodos de gestão do banco.

Essa cultura institucional que promove a organização coletiva de trabalho de forma danosa não pode ser tolerada e o Poder Judiciário não tem se furtado de rechaçar tais condutas. Os métodos de gestão assediosos, que visam desmedido aumento do lucro, desencadeiam instabilidades emocionais e psicológicas nos tra-balhadores, afetando a saúde do ambiente de trabalho e minando, aos poucos, as relações entre os trabalhadores. Permitir o alastramento dessas condutas não só afronta direitos fundamentais do trabalhador individual que busca o Poder Judiciário, mas enfraquece um dos principais papéis do direito do trabalho: as-segurar um meio ambiente de trabalho saudável e propiciar a solidariedade entre trabalhadores e a organização coletiva18.

18 Sobre o tema, vide artigo: RAMOS FILHO, Wilson. Bem-estar nas empresas e mal-estar laboral: assédio moral empresarial como modo de gestão de recursos humanos. Disponível em: <http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/702>

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4. conclusão.

Do breve relato de alguns processos relevantes anteriormente mencionados, percebe-se que, embora seja certa a preocupação do TST com as circunstâncias de adoecimento ocupacional relatadas na pesquisa do Instituto Declatra sobre o Banco Itaú, ainda permanece ausente da análise a perspectiva de aplicação dos princípios ambientais às circunstâncias ocupacionais às quais são submetidos os trabalhadores, mesmo em um caso no qual sabidamente a prática de assédio com-põe uma estratégia de gestão.

É certo que a apreciação à luz dos dispositivos civilistas pode, por si só, gerar resultados importantes em termos de reparação aos trabalhadores individualmente, especialmente quando se trate de relações de poder de índole persecutória individual ou mesmo estratégica . O enfrentamento de tais práticas no mundo do trabalho não pode prescindir, contudo, do aprofundamento das relações entre direito ambiental e direito do trabalho, sob pena de onerar-se du-plamente o trabalhador: uma vez com a própria prática organizacional do assédio, e uma segunda vez com o ônus exclusivo e exaustivo de comprovar uma prática que muitas vezes somente pode ser percebida se analisado um contexto que trans-cende a relação individual entre empregado e empregador.

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PESquiSA ESTATÍSTiCA: oriGENS E SuA ADmiSSiBiLiDADE Em ProCESSoS

JuDiCiAiS

Julio Gnap1

APrEsEntAção

O objetivo deste artigo é apresentar o tema pesquisa estatística numa aborda-gem que contempla alguns aspectos do seu desenvolvimento histórico e do papel cada vez mais importante que as pesquisas têm cumprido ao longo de sua histó-ria, o que fez com que seu uso alcançasse diversas áreas do conhecimento e das atividades humanas, entre elas a área do Direito. Centrando o foco nas pesquisas sociais, de maneira sucinta serão mencionadas e discutidas algumas caracterís-ticas que, ao longo da história, as pesquisas foram apresentando, como que num processo evolutivo, qualificando-as cada vez mais como importantes instrumen-tos para o estudo da sociedade e do comportamento humano.

Numa era em que se vive a chamada sociedade da informação, as pesquisas podem ser consideradas como figuras emblemáticas desses novos tempos, uma vez que elas têm como insumo e produto final informações na forma de dados. E, nessa sociedade com grande demanda de informações, as pesquisas têm adquirido importância crescente, o que pode ser atestado pelo fato de elas já serem admitidas em processos judiciais como peças de evidência para constituição de elementos de prova e de formação do convencimento dos julgadores. Como consequência, o

1 Pesquisador. Estatístico. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

interesse pelas pesquisas tem acompanhado esse crescimento, vindo daí a necessi-dade de se conhecer melhor esse tema, o que justifica a análise a seguir.

o quE é PEsquisA

Palavra muito presente no cotidiano das pessoas, principalmente via meios de comunicação, pesquisa tem no senso comum seu sentido básico: reunir um conjunto de dados que informem sobre alguma característica de determinado ob-jeto, pessoa ou fenômeno. Segundo o dicionário Aurélio On line pesquisa significa informação, indagação, inquirição, busca2. Qualquer pessoa medianamente in-formada costuma fazer pesquisa de preços antes de comprar um produto de valor mais elevado. Os preços são os dados que a pessoa vai reunir e comparar para de-cidir o local onde fará a compra do objeto em questão (custo seria a característica do objeto). Dependendo de algumas condições (valor, urgência da compra, etc.), essa pesquisa pode envolver apenas a coleta de alguns preços em algumas poucas lojas da cidade, ou até se transformar numa pesquisa exaustiva, buscando todos os possíveis fornecedores do produto na cidade e até em outros municípios. E, nes-se caso, essa pesquisa já poderia agregar, além do preço, outras informações para o processo de decisão da compra, como tempo de entrega, valor do frete, condições de pagamento etc.

Verifica-se, assim, que o termo pesquisa pode ser usado tanto para se referir a um simples levantamento de preços, como, igualmente, a um processo mais com-plexo, que irá precisar de todo um planejamento, demandando também tempo e custos muito maiores. O que demonstra que o termo pesquisa tem sentido um tanto genérico, necessitando sempre um complemento nominal que lhe dê um sentido mais específico, como, por exemplo, pesquisa política, pesquisa de preços, pesquisa de mercado etc.

Conceitualmente falando, pesquisa é “um processo sistemático, com base em método científico, para construção de um determinado conhecimento” (GALLIA-NO, 1986). Método científico, por sua vez, é definido por Mirian Goldenberg como: “a observação sistemática dos fenômenos da realidade, com controle rigo-

2 De acordo com consulta à página https://dicionariodoaurelio.com.

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PESqUISA ESTATÍSTICA: ORIgENS E SUA ADMISSIBILIDADE EM PROCESSOS JUDICIAIS

roso das informações, através de uma sucessão de passos orientados por conheci-mentos teóricos, buscando explicar a causa desses fenômenos, suas correlações e aspectos não-revelados” (GOLDENBERG, 2004, p.105). Com a apresentação des-ses conceitos acredita-se já ser possível diferenciar bem o objeto desta análise, que é a Pesquisa Estatística e seu caráter científico.

PEsquisA EstAtísticA

A partir dos conceitos aqui apresentados é possível, à guisa de conceito, deri-var uma descrição do termo que agora se quer introduzir: a Pesquisa Estatística. Pesquisa estatística pode ser entendida como um processo científico que visa a produção de informações na forma de indicadores quantitativos (estatísticas), os quais permitirão tirar conclusões acerca de determinadas características de obje-tos, pessoas ou fenômenos. O que fica evidenciado pelos conceitos citados e pela descrição produzida é a necessidade de se ter base cientifica e rigor metodológico na realização das pesquisas estatísticas.

Mas há também um outro aspecto que começa a ficar evidente, e para o qual se quer chamar a atenção, pois toca no que o termo pesquisa estatística tem de específico, que é o fato de essas pesquisas sempre resultarem, ou melhor, sempre trazerem seus resultados na forma de dados estatísticos.

É característica intrínseca da pesquisa estatística ter por objetivo identificar quantitativamente a ocorrência de determinada característica ou atributo na po-pulação de interesse. Por exemplo, pesquisa eleitoral é uma pesquisa estatística uma vez que seu objetivo é mensurar os percentuais de voto (as estatísticas) que os candidatos deveriam obter se a eleição fosse realizada no dia da pesquisa, per-mitindo que se faça uma comparação do potencial eleitoral de cada um dos po-líticos avaliados na pesquisa. E, também importante é a capacidade das pesqui-sas estatísticas fornecerem parâmetros de confiabilidade e de variabilidade para as estatísticas produzidas. Isso significa que, usando procedimentos do cálculo estatístico, pode-se determinar as margens de erro da referida estatística (varia-bilidade) segundo níveis de confiança arbitrados (confiabilidade). Dito de outra maneira, admitido um nível de confiança, em percentuais, (que pode ser arbitrado em valores muito pequenos ou até em valores muito grandes) fica-se conhecendo

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os limites de variabilidade dentro dos quais estará o verdadeiro valor da estatística populacional.

Voltando ao exemplo citado da pesquisa como um simples levantamento de preços para decidir a compra de um produto, vale dizer que esta, por sua vez, não se caracterizaria como uma pesquisa estatística. Pois, nesse caso, o interesse é tão somente saber onde o produto pode ser encontrado pelo menor preço, não sendo necessário calcular qualquer estatística, nem mesmo a média dos preços coletados. Essa pesquisa poderia ser classificada como “pesquisa de informação”.

A pesquisa estatística propriamente dita constitui um ramo da Estatística Aplicada, tendo seu desenvolvimento iniciado a partir da necessidade de se fazer estudos populacionais com base apenas em uma amostra de unidades individuais de uma relativa população. Assim, e com o emprego de técnicas de coleta de dados e métodos para determinar o número da amostra e melhorar a precisão do con-junto das respostas obtidas, além de modelos probabilísticos e outras técnicas re-lacionadas, a pesquisa estatística permite fazer seguras e consistentes inferências a respeito de uma grande população analisando apenas uma parte dela.

Finalmente, convém fazer mais uma observação. Pelo que já foi exposto, po-de-se perceber que pesquisa e estatística são termos que andam muito próximos, indicando até uma certa dependência. De fato, a pesquisa depende da estatística para a interpretação correta de seus resultados. E vamos ver na sequência que o ter-mo Estatística também tem uma original relação de dependência com a pesquisa.

A origEm dA PAlAvrA EstAtísticA3

A origem da palavra Estatística está associada à palavra latina status (Estado). Há indícios de que 3.000 anos a.C. já se faziam censos na Babilônia, China e Egito e até mesmo o 4º Livro do Velho Testamento faz referência a uma instrução dada a Moisés, para que fizesse um levantamento dos homens de Israel que estivessem aptos para guerrear. Normalmente o interesse por estas informações era para a taxação de impostos ou para o alistamento militar.

3 http://www.ufscar.br/jcfogo/Estat_1/arquivos/Historia_da_Estatistica.pdf (acesso em 30/09/2016)

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As informações originadas por estes censos e levantamentos eram de inte-resse e diziam respeito unicamente a coisas do Estado. Então, em função disto essas informações passaram a ser chamadas de Estatísticas, sendo sempre obtidas através de pesquisas de interesse do Estado. E no século XVII a Estatística passa a ser considerada uma disciplina específica, desvinculada da matemática, e tendo como objetivo básico a descrição dos bens do Estado. Se evidencia, então, que a palavra Estatística, que depois também foi usada para dar nome a uma disciplina, originou-se como produto de e em função de pesquisas.

PEsquisAs EstAtísticAs nA históriA

Se até o século XVII as pesquisas e a Estatística existiam basicamente em fun-ção dos interesses do Estado, num futuro breve elas passam também a ser em-pregadas em trabalhos e estudos na área das ciências sociais. No século XIX dois sociólogos vão apresentar dois importantes estudos que foram desenvolvidos a partir de pesquisas estatísticas. Um destes estudos foi publicado pelo engenheiro e sociólogo francês Frédéric Le Play (1806-1882). E o outro, publicado por aquele que é considerado um dos pais da sociologia moderna, o também francês Émile Durkheim (1858-1917).

O estudo de Le Play tem por tema as condições de vida dos trabalhadores europeus e é considerado o primeiro estudo que utiliza a observação direta da rea-lidade. Por mais de 20 anos Le Play viajou por diversos países da Europa estudan-do as condições de vida das famílias dos trabalhadores. Em 1855 ele publica Les Ouvriers Européens (Os trabalhadores europeus), obra que reúne 36 monografias (CASEY, 1992). Para Le Play a família e o orçamento familiar eram fundamentais para estudar as condições sociais. E, já naquela época, concluía que a sociedade caminhava para um tipo de família “instável” como resultado da industrialização e da urbanização crescentes e da inserção das mulheres no mercado de trabalho.

Analisando o orçamento familiar das famílias pesquisadas, especialmente no que se refere aos hábitos de consumo, Le Play estuda a inserção social da família. Vivendo em plena revolução industrial, ele demonstrava consciência da degra-dação das condições de vida das camadas populares, que ocorreria, segundo ele, pela inexistência das solidariedades tradicionais em espaços urbanos (era grande

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a migração do campo para as cidades, onde o relacionamento humano era total-mente diferente).

Revelando preocupação social, este autor defende medidas para reforçar a ins-tituição família. Considerava que os empregadores também teriam obrigações de caráter social para a melhoria das condições de vida, e que esta obrigação não se resumia no pagamento do salário aos seus empregados.

O trabalho de Le Play também se destaca por ser um dos primeiros a analisar o social dentro de uma perspectiva científica. Da observação direta da realidade social, reunindo e sistematizando informações das famílias operárias nos diversos países em que realizou suas pesquisas, este autor consolidou uma obra original na sua época e inaugurou uma nova forma de se discutir as questões sociais pelo uso da pesquisa social empírica e com emprego de metodologia cientifica.

Alguns anos mais tarde, Durkheim, que juntamente com Karl Marx e Max Weber estabelece as bases e as principais vertentes do pensamento social moder-no, publica o livro O Suicídio. Era o ano de 1897, e nessa obra este sociólogo defen-de a ideia de que o fenômeno do suicídio tem componentes sociais, e que não deve ser analisado apenas na perspectiva do indivíduo.

Mesmo que corretamente se considere o suicídio como um ato do indivíduo, que afeta apenas o indivíduo, e que é pelo temperamento, pelo caráter e pelos acontecimentos da vida do indivíduo que normalmente se explica a decisão do suicídio, Durkheim sustenta que se pode enxergar nessa prática uma natureza eminentemente social. Na sua argumentação, ele também diz que se em vez de considerar os suicídios como acontecimentos particulares e isolados, considerar-mos o conjunto dos suicídios cometidos numa determinada sociedade durante um determinado tempo, os totais observados permitirão ver que não se tratam apenas de somas de unidades independentes, mas que constituem por si mesmos um fato novo e sui generis (DURKHEIM, 2000, p.17).

Para demonstrar que o que dizia correspondia à realidade, Durkheim pesqui-sou as taxas de suicídios registradas durante um certo período de tempo em diver-sos países da Europa. Dos resultados apresentados neste livro, os que demonstram mais cabalmente a correção das ideias defendidas por este autor são aqueles que ele obtém quando analisa, para 11 países europeus, as taxas anuais de suicídios por milhão de habitantes em 3 períodos de 5 anos cada. Abaixo está reproduzida a tabela constante na página 23 do referido livro.

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Analisando as estatísticas apresentadas, observa-se facilmente que, de manei-ra geral, as taxas diferem muito de um país para outro. E que, por outro lado, para cada país as variações registradas nos 3 períodos de tempo estão dentro de limites razoáveis de variabilidade. As exceções são a áustria e a Saxônia, que do segundo para o terceiro período apresentam grande variação nas suas taxas. Essa regula-ridade interna de cada país com a concomitante diferença entre as taxas desses países permitiu a Durkheim ordenar esse conjunto de países segundo as suas ta-xas de suicídio por milhão. As 3 colunas da direita da tabela mostram que a Itália apresenta sempre as menores taxas (na faixa dos 30 por milhão), vindo depois Bélgica, Inglaterra e Noruega com taxas parecidas entre esse países (na faixa dos 60 e 70 por milhão). E observa-se também que Dinamarca e Saxônia se destacam por apresentar as maiores taxas de suicídios por milhão de habitantes.

Assim, por meio desta pesquisa estatística, Durkheim demonstra dois aspec-tos importantes relacionados ao suicídio. O primeiro seria a constatação de que o suicídio não depende apenas de fatores individuais, pois, se assim fosse, era de se esperar que eles ocorressem em proporções parecidas em cada país, com dife-renças pouco significativas entre as taxas. O suicídio poderia ser pensado, então, como um fenômeno aleatório, e que, sendo em tese uma atitude ao arbítrio de

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qualquer pessoa, as suas taxas não deveriam ser muito diferentes. Mas, obvia-mente, não é isso que os dados da pesquisa mostram, o que autoriza argumentar que questões culturais podem também estar se fazendo presentes. E isso já coloca o segundo aspecto relacionado ao suicídio. É a tendência para o suicídio de que cada sociedade está coletivamente afetada expressa em medidas; as quais são qua-se uma exclusividade sua. Percebe-se que poucos países têm suas taxas de suicídio num mesmo patamar.

Enfim, através dos dados de sua pesquisa, Durkheim comprova que a taxa de suicídios efetivamente constitui uma ordem de fatos única e determinada. Ordem, ou regularidade, demonstrada ao mesmo tempo pela sua permanência e pela sua variabilidade. O que lhe permite concluir esta parte do seu estudo relacionado ao suicídio com a seguinte frase: “cada sociedade se predispõe a fornecer um deter-minado contingente de mortos voluntários” (DURKHEIM, 2000, p. 24).

Concluindo este breve apanhado histórico, deve-se destacar, ainda que em algumas poucas linhas, a grande evolução que ocorreu no campo das pesquisas sociais com o desenvolvimento das pesquisas enquanto métodos investigativos e da estatística como recurso matemático especializado. Evolução que se deu pelo avanço do conhecimento científico nas áreas sociais e do comportamento huma-no, bem como pelo desenvolvimento de robustas técnicas estatísticas aplicadas. O que conferiu às pesquisas maior precisão e confiabilidade nos seus resultados, co-locando as pesquisas estatísticas como instrumentos válidos para a demonstração e comprovação de postulados teóricos em diversas áreas, especialmente na que nos interessa aqui, que é a área do Direito.

A AdmissibilidAdE dE PEsquisAs EstAtísticAs Em ProcEssos judiciAis

A prática do uso de métodos estatísticos em Direito é verificada em vários paí-ses da Europa e também nos Estados Unidos, existindo já uma grande literatura a esse respeito, podendo-se aqui citar, só como exemplo, o livro Statistics and the Law4.

4 DeGrot, Fiemberg & Kadane (1994). “Statistics and the Law” Ed. Wiley-Interscience.

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De início já convém assinalar que, nas discussões feitas na área do Direito, via de regra, emprega-se o termo “métodos estatísticos” em vez de pesquisa ou pesquisa estatística. Mas se deve ter em mente que a pesquisa feita com o rigor dos métodos estatísticos, acaba por se constituir ela mesma num método estatístico. O vínculo metodológico que existe entre a pesquisa estatística e esta ciência, prin-cipalmente pelas técnicas de amostragem desenvolvidas na Estatística, permite o entendimento de que pesquisas também façam parte do rol dos métodos estatísti-cos aplicados. E essa constatação corrobora o que já foi observado no início deste texto, quando se apresentou a pesquisa estatística como um ramo da estatística aplicada.

Outra obra que merece citação é o Manual for Complex Litigation, Fourth5, que é uma publicação do Poder Judiciário norte-americano no qual são indicados os fatores que devem ser levados em consideração quando do uso de provas estatísticas para reforçar evidências. Segundo esse Manual “os métodos estatís-ticos podem frequentemente estimar, a um nível especificado de acurácia, as ca-racterísticas de uma ‘população’ ou ‘universo’ de eventos, transações, atitudes ou opiniões pela observação daquelas características em um segmento relativamente pequeno, ou amostra, da população”.

Convalidando o uso da pesquisa por amostragem e, por força de consequên-cia, das inferências e projeções estimadas para a população, esse Manual estabe-lece sete pontos para os quais se deve ter especial atenção para que a pesquisa seja válida.

1. Escolha da população alvo: se a população foi devidamente definida e escolhida.

2. Representatividade da amostra: se a amostra escolhida é representativa daquela população.

3. Obtenção dos dados: se os dados foram obtidos e registrados de forma correta.

4. Análise dos dados: se os dados foram analisados de acordo com princí-pios estatísticos aceitos.

5. Validade e fidedignidade: se as questões foram formuladas de forma clara e não distorcida.

5 Manual for Complex Litigation, Fourth, § 11.493, p. 102/103. https://public.resource.org/scribd/8763868.pdf, consultado em 04/08/2016.

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6. Qualificação da equipe: se a pesquisa foi conduzida por pessoas qualificadas.

7. Coerência do processo com os objetivos: se o processo foi conduzido de forma a assegurar objetividade.

De modo complementar, uma argumentação muito interessante, posto que contempla todos os elementos pertinentes ao assunto, o que também a torna uma discussão extremamente qualificada, é a que faz Fredie Didier Júnior quando dis-corre sobre o uso de amostragem estatística em processos judiciais:

A prova por amostragem/estatística pode ser muito útil no processo. Técnicas aceitáveis de amostragem podem economizar tempo e redu-zir custos e, em alguns casos, promover a única forma viável de cole-tar e apresentar um dado relevante – diminui-se o objeto da prova: em vez da apresentação de volumosos dados de toda população, apre-sentam-se dados de apenas parte desta população [.....] Na prova por amostragem, os fatos provados são também fatos probandos – servem como indícios –, mas, por meio da sua prova pretende seja realizado juízo acerca da existência de todos os fatos pertencentes ao conjunto. A prova de fatos da “amostragem” autoriza a presunção acerca dos fatos que não compõem a “amostragem”. Nesse sentido, caso se realize a atividade da presunção, nenhum dos fatos que compõem o conjunto pode ser considerado não provado, pois seria ilógico . Todos os fa-tos pertencem ao conjunto justamente porque existe relação de forma constante ou ordinária entre eles. Por meio da prova de determinados elementos, surge a presunção acerca de todos eles, considerados em sua universalidade.

Sobre o que Didier argumenta na defesa da validade do uso de pesquisas por amostragem como elementos de prova em processos, cabe somente destacar al-guns aspectos chaves desta questão. A observação de que a amostragem estatís-tica é, em muitos casos, a única forma de apresentar dados relevantes, é assaz oportuna.

Veja-se o caso, por exemplo, da contaminação que uma determinada atividade industrial poderia estar causando na população de uma cidade. Para demonstrar

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que um determinado agente prejudicial à saúde estaria afetando aquela popula-ção, não seria necessário, por talvez nem ser viável, fazer exames médicos em toda a população. Podendo ser suficiente neste caso, fazer um levantamento estatístico nos registros de atendimento de saúde do município, como os feitos a partir de prontuários médicos de hospitais e postos de saúde. Um consistente estudo es-tatístico que aponte uma significativa prevalência de determinada enfermidade relacionada ao agente contaminante, comparativamente a outras localidades onde não há presença deste agente contaminante, determinaria assim uma evidência de nexo causal, o que já poderia ser suficiente para se condenar as indústrias que produzem o agente contaminante naquela localidade.

Outro aspecto chave que se deve destacar é quando este autor chama atenção que os fatos provados têm a propriedade de também serem fatos probandos. E aqui ele toca no ponto fundamental das pesquisas por amostragem que é a ques-tão da representatividade da amostra. É condição inescapável que a amostra seja efetivamente representativa do público-alvo da pesquisa (a população estudada), para assim se sustentar que os fatos provados (as determinadas características en-contradas na amostra) são também fatos probandos. Em outras palavras, o fato de se encontrarem determinadas características na amostra serve como prova de que tais características também se encontram na população.

Cabe por fim reforçar, a partir do enfoque dado à área do Direito, um aspec-to fundamental que se encerra no conceito delineado para a Pesquisa Estatísti-ca, qual seja, sua capacidade de produzir informações na forma de indicadores (dados) quantitativos. Seguramente, foi determinante para a admissibilidade de pesquisas em processos judiciais o fato de elas poderem introduzir dados obje-tivos, validados cientificamente, nas argumentações das partes. Pois estes dados objetivos funcionarão, não de forma matemática, como fatores de ponderação dos elementos subjetivos sempre presentes na avaliação dos julgadores, podendo, as-sim, serem decisivos para a sentença judicial.

rEfErÊnciAs

CASEY, J., A História da Família. São Paulo-SP. ática, 1992.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Editoral 137. Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/ editorial/edi-

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torial-137/>. Acesso: 29 out. 2014.

DURKHEIM, E. O suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

GALLIANO, A. Guilherme. O método científico: teoria e prática. São Paulo: Harbra, 1986.

GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. 8ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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SoBrE ASSÉDio E A ProfiSSÃo BANCAriA

Laerte Idal Sznelwar1

introdução

Este texto não será escrito como um trabalho acadêmico, a minha ideia é mais a de colocar questões e me posicionar frente a essas questões. A minha linha de pensamento está baseada em um trajetória onde procuro colocar em evidência a importância do trabalho para a vida das pessoas e para o desenvolvimento da cultura, sempre baseado nos conhecimentos produzido por colegas das áreas da psicodinâmica do trabalho e da ergonomia, entre outras.

Trabalhar, uma atividade fundamental para a construção da vida dos sujeitos e para a construção da cultura é algo que pertence a cada um de nós é que só pode existir se for em relação com os outros. Trata-se de uma relação social, mediada por leis, por regulações, por oportunidades, por tradições; mas também, por rup-turas, por conflitos, por exploração, pela invisibilidade. Quando pensamos em

1 Graduado em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas (1980), Mestre em DEA pelo Conservatoire National des Arts et Metiers (1984), Doutor em Ergonomia pelo Conservatoire Na-tional des Arts et Metiers (1992) e Pós-Doutor pelo Laboratoire de Psychologie du Travail et de l’Action du CNAM – Psychodynamique du Travail (dez. 2000 a fev. 2001). Livre-docente pelo De-partamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (2013), Membro da equipe do Laboratoire de Psychologie du Travail et de l’Action du CNAM (dez. 2008 a fev. 2009). Professor RDIDP do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

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trabalho, sempre colocamos em perspectiva a possibilidade de realização pessoal, de desenvolvimento dos coletivos, do enriquecimento das tradições profissionais e d construção da saúde. O trabalho é o locus mais privilegiado para que cada um e todos possam reforçar e enriquecer a sua subjetividade. Infelizmente, em muitas situações, encontramos o caminho da desolação, do isolamento, da doença, do acidente, da perda da capacidade de produzir algo que seja belo e útil. Em que lado nos posicionamos?

Quando se trata de uma visão sobre o trabalho calcada no desenvolvimento das pessoas, das profissões, das instituições, das empresas e da sociedade, fica evidente que buscamos algo que nem sempre (talvez em poucas situações) encon-tramos. Ao analisarmos as tendências para a adoção de escolhas organizacionais em alguns setores da economia, principalmente no que diz respeito aos serviços, em particular aqueles providos pelos bancos, ficamos frente àquilo que é contrário ao que estamos propondo.

Essas escolhas organizacionais tem como pressuposto fundamental uma ne-gação daquilo que seria fundamental para o sujeito que trabalha, isto é, o reconhe-cimento do trabalho em todo e qualquer atividade de produção. Ao nos defrontar-mos com expressões que reforçam a ideia da gestão, como se o trabalho fosse algo restrito ao cumprimento de procedimentos e ao cumprimento de metas, podemos nos dar conta do quão longe essas propostas estão com relação à perspectiva da construção de uma vida profissional significativa. Acredito mesmo que essas pro-postas são contraditórias, que caminham em direções opostas. Ao não reconhecer o significado do trabalho para os sujeitos e para as próprias instituições, aqueles que decidem sobre a organização do trabalho e sobre a gestão acabam por favore-cer o surgimento de cenários patogênicos, onde a emergência dos mais diferentes distúrbios físicos e psíquicos se torna a regra.

umA Profissão nA bErlindA

Qualquer pessoa que ingressa em uma profissão carrega consigo uma série de sonhos e ilusões. Ao buscar um lugar na sociedade, o emprego é uma chave fundamental para as pessoas possam reforçar a sua identidade, de construir no-vos referenciais pessoais e coletivos e, sobretudo, de ingressar numa trilha que

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SOBRE ASSÉDIO E A PROfISSÃO BANCARIA

será o seu caminho ao longo da sua existência profissional. O ideal seria que cada um pudesse encontrar caminhos em alguma profissão de sua escolha e, a partir de então enfrentar os desafios que encontrará no seu trabalho e que, com o passar do tempo, se sinta engrandecido, que tenha a sua subjetividade reforça-da. Qualquer jovem trabalhador busca se identificar com aquilo que faz e fará , qualquer trabalhador não tão jovem busca se identificar naquilo que fez, que faz e que fará. Aqueles que já estão no final de sua carreira, prestes a se aposentar, buscam se identificar sobretudo com o que já fizeram. A questão fundamental é a de saber se os modelos de organização e de gestão propiciam cenários para tan-to ou se, ao contrário, os destroem. Desmotivar as pessoas, tornando-as cínicas (defendidas) é muito mais o que se encontra nesses cenários. Propiciar condições para que as pessoas continuem e reforcem as suas motivações é exatamente o contrário, uma vez que para tal, não se pode impedir que cada um se desenvolva como profissional.

A questão é saber o que acontece em cada categoria, em especial na dos bancários. Em se tratando de modos de organização do trabalho onde uma das questões-chave está relacionada com a segurança operacional e, também com a segurança dos trabalhadores envolvidos nos processos de produção, a questão da confiabilidade é de suma importância, até porque há questões que envolvem não só a instituição, mas também os clientes e outros atores sociais, como o Estado. Em se tratando de questões ligadas às finanças há muitas coisas em jogo e uma das preocupações diz respeito exatamente à segurança. Segurança remete a mo-dos de controle que, apesar de legítimos, dependendo de como são construídos, implementados e gerenciados, cria-se uma atmosfera de desconfiança que não é inócua no que diz respeito às relações entre as pessoas e, à saúde mental também. Há uma tênue diferença entre o confiar e o desconfiar e a construção da confian-ça entre as pessoas é algo que precisa ser constantemente reforçada. Todavia se o ambiente é mais propício para a competição exacerbada entre pares a construção da confiança fica prejudicada. Quando é que alguém se torna confiável? Esta questão, de difícil resposta, indica a sutileza necessária para que, no ambiente de trabalho, as pessoas saibam que há sim controles, mas que estes servem para a se-gurança de todos. A confiança não se adquire como uma prescrição operacional, ela é fruto de uma vivência comum e que só pode ser fruto de como as pessoas agem em situação e como isto é reconhecido pelos pares e pela hierarquia. Cons-

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truir é um trajeto, um caminho mais ou menos longo; destruir a confiança é uma questão de segundos.

Nesta perspectiva da segurança, muitas vezes, se busca dar pouca margem para a ação dos trabalhadores, principalmente aqueles envolvidos em operações que exigem muita repetição ou, por incrível que pareça, aqueles envolvidos no contato direto com os clientes, como os caixas e atendentes de centrais de atendi-mento. Este paradoxo, aparente talvez, mostra como certas operações são consi-deradas a partir de um ponto de vista que herda as premissas do taylorismo e do fordismo, onde as operações consideradas como “de massa” seriam distribuídas de modo a garantir, sobretudo a velocidade. Fica evidente que bem atender não é, na grande maioria das vezes, cumprir procedimentos o mais rápido possível e passar para o cliente seguinte. Um atendimento de qualidade implica um aco-lhimento, diferente segundo o tipo de serviço, mas sempre necessário. De pouco adiante não escutar os anseios dos clientes, ou melhor, se isto ocorre, é porque a racionalidade imperante exige que sejam usados poucos meios para atingir os ob-jetivos operacionais da instituição. Note-se que, há situações em que a competição não se dá exatamente entre pares, mas sim, em níveis mais elevados da hierarquia. Desta maneira, o hierarquia pode pressionar os seus subordinados para que todos ajam para que sejam atingidos os objetivos fixados aos gerentes, por exemplo, as-sim todos vão agir com vistas às metas definidas para uma determinada agência, carteira de clientes, setor.

Entre cenários propícios para a constituição de práticas de assédio ou, pelo contrário, para propiciar condições para o desenvolvimento dos sujeitos e dos co-letivos a questão das metas e como são negociadas, definidas e cobradas, é central.

Essas questões precisam ser tratadas com cuidado, uma vez que a questão que está em jogo não é simplesmente a velocidade de um atendimento, mas sobretudo a sua qualidade e o significado para o trabalhador, para o cliente e para a pró-pria empresa. É possível haver um significado compartilhado entre os diferentes atores e que, de alguma maneira não entre em conflito direto com as intenções e desejos de cada um?

Qual significado poderia ser compartilhado por atores distintos em uma em-presa como um banco? Há algo em comum que possa ser considerado como va-lores comuns, isto é, que haja de fato um setor da economia, o dos bancos? Neste caso as questões axiológicas poderiam ser centrais na constituição dos diferentes produtos oferecidos aos clientes, na maneira como são remunerados e reconheci-

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SOBRE ASSÉDIO E A PROfISSÃO BANCARIA

dos os trabalhadores que atuam nessas instituições, no modo como são tratados os clientes, nas modalidades de obtenção de resultados por parte da empresa. Não há como negar a importância dos resultados para qualquer sistema de produção e para as pessoas que nele trabalham. A grande questão é saber como isto se dá nos bancos, como são definidos os produtos, as metas e as tarefas que servem como guia para o trabalho nessas instituições. Um dos grandes problemas dessas insti-tuições se constitui no fato de não haver um compartilhamento de valores. Fica a dúvida se isso é possível.

Um dos exemplos a serem trabalhados está justamente na venda de diferen-tes produtos dos bancos. Em princípio, não há qualquer questão ética com rela-ção à venda de produtos, afinal trata-se de relações comerciais entre os bancos e clientes. Todavia há que se considerar que, ao definir metas para as vendas, não fica claro se a postura das empresas está balizado por princípios éticos ou se, ao pressionar os seus assalariados para atingir e bates as metas, abre-se um flanco muito grande, onde o recado dado é, atingir as metas, sem necessariamente se importar com as reais necessidades dos clientes. O que seria louvável e respeitável no universo das vendas, isto é, de oferecer aos clientes produtos que eles queiram, que necessitam, ou que ainda não sabem se necessitam, pode se tornar uma cor-rida para vender de qualquer jeito, sem que esses valores constituam a base das operações dos bancos.

Ao meu ver, este ponto é chave, uma vez que, se não ficar claro que, em pri-meiro lugar, o papel de todos os profissionais dos bancos seria o de se pautar por valores compartilhados profissionalmente e balizados por princípios ético--morais, cria-se um cenário propício para todo tipo de pressão, de assédio, isto é, um cenário propício para a emergência de sofrimento patogênico e para o sur-gimento de diferentes distúrbios psíquicos. Isto porque o que está em jogo são exatamente os valores da profissão de bancário. Há que se colocar claramente o que baliza a profissão, o que é trabalhar no sistema financeiro e como isto está em fase com aquilo que os diferentes sujeitos acreditam e compartilham como pilares de uma profissão.

Sem este tipo de posicionamento, por parte das empresas, o que está em risco mesmo é a contribuição que elas poderiam e deveriam ter para o desenvolvimento profissional daqueles que nelas atuam e, ainda para a sua própria contribuição com vias ao desenvolvimento dos valores sociais e da cultura.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

Profissão bAncáriA

A principal defesa contra qualquer tipo de assédio se constitui no reforço das profissões e da possibilidade da construção de valores que sejam compartilhados e defendidos por aqueles que trabalham neste setor da economia. Isto não significa um fechamento em dentro de uma visão corporativista distanciada do mundo, ao contrário, uma profissão se constrói na relação com os outros e com a possibili-dade de contribuir para o desenvolvimento social e cultural. Apesar de já haver escrito isso anteriormente, a questão que se coloca aqui é a de reforçar os critérios que transformam uma “ocupação” em uma profissão.

No caso da profissão bancária, uma atividade de longa tradição, há que se questionar de que maneira as modalidades de organização e gerenciamento do trabalho servem para reforçar os ideais dos sujeitos e os valores que são os pilares que norteiam a ação dos sujeitos que trabalham como bancários. Esta discussão não pode ser feita por alguém que se diz conhecedor do que seria este trabalho, este trabalhar de milhares de cidadãos que se dedicam a este tipo de serviço. Os debates sobre as tradições, as normas, os tipos de serviço oferecidos aos clientes, a relação com a construção da cidadania devem ser desenvolvidos pelos que atuam nesta profissão. A participação de outros atores sociais, como representantes de outros setores, pesquisadores universitários, representantes patronais pode enri-quecer os debates; todavia o cerne da profissão, o conhecimento sobre o dia a dia, com suas mazelas e prazeres emerge das discussões que os próprios trabalhadores do setor desenvolvem sobre as suas vivências. A riqueza de poder se expressar livremente só é reconhecida por aqueles que, em algum momento, tiveram a opor-tunidade de participar de algum tipo de ação que propicia este tipo experiência.

Como já demonstrado por vários estudos em psicodinâmica do trabalho e em ergonomia da atividade, o trabalhar no caso da PDT e atividade, no caso da ergonomia, são desconhecidos. O que se conhece melhor são as tarefas, aquilo que as empresas e instituições definem como o que deve ser feito pelos diferentes trabalhadores. Todavia a maneira como dão conta daquilo que precisam fazer, como driblam as dificuldades encontradas, como desenvolvem estratégias para criar modos para fazer frente àquilo que não é previsto, como se relacionam com os clientes, como aprendem as novas funcionalidades dos sistemas operacionais, como resistem ou fraquejam frente às injustiças das avaliações de desempenham, tudo isso passa desapercebido e fica incrustrado nas mentes e nos corpos. O que

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SOBRE ASSÉDIO E A PROfISSÃO BANCARIA

isso tudo redunda, em mais saúde, em distúrbios e doenças, em desenvolvimento pessoal e profissional, na deterioração dos coletivos e da profissão, fica aí uma questão de fundo. Infelizmente, as constatações que temos, quando analisamos os cenários em termos de distúrbios à saúde e da falta de agregação entre os profis-sionais do setor é a necessidade premente de se inverter o sentido da flecha..

rElAção dE sErviço x PrEstAção – vAlorEs imAtEriAis

Uma outra questão que pode ajudar na reflexão diz respeito àquilo que se propõem os bancos no âmbito do relacionamento com os clientes. Muitos ainda falam que um serviço é prestado a alguém, a alguma população, ou até a algum “nicho de mercado”. A despersonalização da relação se dá justamente no momen-to em que se considera o serviço como uma mercadoria que o cliente busca e que o trabalhador lhe fornece; isto é, uma transação comercial que pode ser localizada no tempo e no espaço. O que é preconizado pelas empresas do setor bancário é a busca de relações no longo prazo, mesmo que, haja muitas operações no setor que se resumiriam ou que se destinariam a clientes “de passagem”, até porque os bancos precisam “prestar” serviços à população por força de lei. Este cenário é propício para grandes confusões, afinal trata-se de pessoas que devem ser trata-das como “clientes” ou como alguém a quem devo propiciar um serviço pontual e passageiro. Entre criar uma verdadeira relação de serviço, construída e man-tida ao longo do tempo e baseada numa escuta do que precisam os clientes e da oferta de serviços que lhe convenham e prestar um serviço que se resume a uma operação pontual, há uma vácuo que causa confusões. Como é que se avaliar o trabalho desses profissionais? Como é dividido o trabalho entre os diferentes tra-balhadores do banco? Será que, pelo fato de haver operações consideradas como de pouco valor agregado, como o trabalho de caixas, de atendentes por telefone, entre outras tarefas, cria-se cenários propícios para que se diminua o sentimento de pertencimento a uma profissão, de que se está construindo uma relação veraz e significativa com os clientes, que se está reforçando os valores da profissão, ou ao contrário? Os valores de uma profissão não são mensuráveis, não se trata de uma relação de produtividade e de ganho financeiro apenas, trata-se também da cons-tituição e do desenvolvimento de valores imateriais que se exprimem na qualidade

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do trabalho desenvolvido, na possibilidade de construir uma vida comum dentro das organizações e da contribuição que se dá a sociedade.

Em conclusão, reforçar e manter os valores profissionais, incluindo a tradição construída ao longo do tempo são fundamentais para se diminuir as possibilida-des para que os cenários de assédio e de desolação prevaleçam.

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DA PSiCoDiNÂmiCA Do TrABALHo Ao DirEiTo fuNDAmENTAL

Ao CoNTEÚDo Do PrÓPrio TrABALHo E Ao mEio AmBiENTE

orGANizACioNAL SAuDáVEL

Leonardo Vieira Wandelli1

1. dA cEntrAlidAdE AntroPológicA à cEntrAlidAdE jurídicA do trAbAlho

O projeto do direito para a realização do vínculo constitucional entre digni-dade, trabalho e saúde, implica em se levar a sério a afirmação jurídica de que a dignidade humana é o fundamento que justifica toda a ordem jurídica. Afirmar--se a dignidade da pessoa, tomada a partir da formulação kantiana de que seja a pessoa um fim último e não um mero meio para outros fins significa que qualquer das nossas instituições, inclusive o Estado, o Mercado ou o Direito só fazem sen-tido enquanto se legitimam como mediações a serviço da dignidade da pessoa,

1 Possui Doutorado em Direito, área de concentração em Direitos Humanos e Cidadania pela Uni-versidade Federal do Paraná (2009), Diploma de Estudios Avanzados en Derechos Humanos y De-sarrollo pela Universidad Pablo de Olavide de Sevilla (2006), mestrado em Direito das relações sociais pela Universidade Federal do Paraná (2003), graduação em Direito pela Universidade Fe-deral de Santa Catarina (1992). Atualmente é professor pesquisador III e coordenador de curso de especialização no Centro Universitário Autônomo do Brasil - UNIBRASIL, Líder do GP-Trabalho e Regulação no Estado Constitucional, instrutor colaborador - SEDH/Presidência da República, membro do conselho consultivo do Conselho Nacional das Escolas de Magistratura do Trabalho, Juiz do Trabalho Titular e membro da Comissão Permanente de Saúde - Tribunal Regional do Trabalho 9ª Região (PR). Membro fundador da Academia Paranaense de Direito do Trabalho. [email protected]

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jamais o contrário. Não são as instituições sociais que devem se servir da pessoa como sua mediação. A radicalidade do reconhecimento da dignidade e dos direi-tos humanos está em que o critério último de verdade não está nas instituições, ou mesmo nos valores, mas na realidade concreta das pessoas humanas.

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Isso não se altera pelo fato de que esse discurso normativo não seja confir-mado na realidade que, evidentemente, desmente todo o tempo essa afirmação do direito. Na Declaração de Filadélfia, de 1944, afirma-se que o trabalho não é uma mercadoria. Mas a realidade cotidiana é de instrumentalização das pessoas, como peças da valorização incessante do capital, no trabalho. Normas jurídicas, diferentemente das leis da física, não perdem validade ao não se confirmarem na realidade. Ao contrário, são manifestações da luta social que criam espaços de reivindicação pelo seu cumprimento. Ou seja, ainda que as normas jurídicas consagrem critérios de (in)justiça não observados na prática, agora essas violações podem ser ditas como injustas, apoiando a luta frente ao desrespeito.3

Pois bem. Levar a sério a relação entre trabalho e dignidade implica em esten-derem-se as fronteiras da disciplina jurídica para aprofundar o diálogo transdis-ciplinar com a antropologia do sujeito. É preciso discutir o que é concretamente relevante para a dignidade dessa pessoa que se pretende reconhecer, proteger e apoiar também por meio do direito. Theodor Adorno, em uma célebre conferência de 1931, sobre a atualidade da filosofia, disse que, após a crise da metafísica, a fi-losofia não tinha outra alternativa que não se aprofundar no ponto de vista inter-no das discussões das diversas ciências onde se debatiam problemas particulares concretos. De forma análoga, ao direito, após o reconhecimento radical da cen-tralidade da dignidade humana, não resta alternativa senão aprofundar o diálogo com as ciências que dizem sobre a pessoa em sentido concreto e sobre aquilo que se pode considerar concretamente essencial para essa dignidade. É esse o ponto em que avulta a inafastabilidade de tomar-se a sério o diálogo com as ciências que veiculam as necessidades humanas concretas, inclusive do ponto de alguma antropologia do sujeito, pois a noção constitucional de dignidade não prescinde

2 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. São Paulo, Vozes, 2002. HINKELAMMERT, Franz. El sujeto y la ley: el retorno del sujeto reprimido. Heredia, Euna, 2005.

3 WANDELLI, Leonardo. O direito humano e fundamental ao trabalho: fundamentação e exigibilida-de. São Paulo, LTr, 2012, p. 186-189.

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DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO AO DIREITO FUNDAMENTAL AO CONTEÚDO DO PRÓPRIO TRABALHO E AO MEIO AMBIENTE ORGANIZACIONAL SAUDÁVEL

do recurso a ciências e saberes pelos quais se possa dar inteligibilidade ao víncu-lo essencial, presente na Constituição, entre dignidade, autonomia e trabalho. O fato de que não se possa recorrer a uma verdade absoluta sobre os conteúdos das necessidades humanas não implica que se possa esvaziar o conteúdo das decisões políticas fundamentais tomadas na Constituição, ao relegar à condição de abstra-ções sem conteúdo normativo concreto o fundamento e os valores essenciais da ordem normativa.

Há, é certo, diferentes sujeitos que simultaneamente entram em questão, aí. O sujeito da psicanálise, o sujeito do inconsciente, não é o mesmo sujeito da socio-logia e das relações psicossociais. Isso não implica em uma separação dicotômica, mas sim que há toda uma série de interações complexas entre a subjetividade, construída socialmente, e o sujeito do inconsciente. Da mesma forma que não são o mesmo o sujeito da ação, o sujeito moral, que não é exatamente o mesmo que o sujeito jurídico, o sujeito consciente e juridicamente imputável. Mas a questão chave para o direito está em que ao mesmo tempo que o sujeito de direito deve guardar uma certa especificidade, ele deve subsumir, nessa especificidade esses outros sujeitos que o antecedem, pois é no fundo, a serviço da concretude humana que ele deve estar. E entre as mediações que antecedem o sujeito de direito está o sujeito natural, corporal, necessitado.

Natural, aqui, não como vida nua, ou meramente biológica, mas como pessoa concreta com dignidade. E fala-se, aqui, de uma corporalidade inteiramente atra-vessada pela Alteridade. Se não é para servir à dignidade desse sujeito natural, cor-poral, necessitado, não há sentido legítimo no sujeito de direito. Percebe-se, então, o lugar da importância da abordagem proposta pela Psicodinâmica do Trabalho para a compreensão do conteúdo dos direitos fundamentais relacionados ao trabalho, auxiliando a deduzir critérios normativos, consistentes com o direito vigente.

Isso tem toda relação com o contexto estrutural da sociedade atual. O grande conflito que caracteriza a modernidade é o conflito entre o capital - que não são os capitalistas, individualmente considerados, mas a totalidade sociometabólica em que vivemos - e os corpos humanos. Vivemos uma guerra sobre os corpos: a subsunção do trabalho vivo. Uma guerra que cuida de disciplinar os corpos e nor-malizá-los para governá-los segundo as necessidades do capital. O capital produz valor subsumindo o trabalho vivo, que nada mais é que a corporalidade humana criadora. Para isso, precisa submeter as populações aos seus próprios princípios de organização. Este é o conflito que estrutura as nossas relações sociais.

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É claro que esse processo produz sofrimento. Não é necessário ilustrar isso. Basta olhar para o lado ou para nós mesmos. A pergunta que cabe fazer e que atormenta os estrategistas da gestão do trabalho é: o que, então, mobiliza as pes-soas para o trabalho, enfrentando todas os riscos e dificuldades e sofrimento que daí advêm? É certo que sempre está presente, de algum modo, a compulsão para o trabalho pelo aguilhão da fome. Marx descreveu a história de violência que foi a separação dos produtores dos meios de produção, impondo às populações irem ao mercado vender a sua força de trabalho, sem poder descolá-la de seus próprios corpos. Mas só isso não basta para mobilizar os trabalhadores para a produção. É preciso necessariamente implicar subjetivamente os trabalhadores. Não basta também o salário, como Max Weber já demonstrou na Ética Protestante e o Espí-rito do Capitalismo. Não há nada de natural em aferrar-se aos ganhos econômicos pelo trabalho. Foi preciso construir uma determinada subjetividade ainda ine-xistente. Mas isso também mobiliza processos complexos de negociação em que estão envolvidos os sujeitos. Os sujeitos que se inserem em relações de poder, de dominação, onde são submetidos, mas não são nunca inteiramente anulados. Há uma certa irredutibilidade do trabalho vivo, que sempre resta presente, aí.

E isso é o próprio trabalho cotidiano que prova. Na visão da PDT, trabalhar é implicar o corpo – não só o corpo da biologia, mas também o corpo fenomeno-lógico, numa unidade que Michel Henry denomina “o corpo que eu sou” – para enfrentar a resistência do real e suplantar a deficiência intrínseca da prescrição. Sem atuação da subjetividade não há trabalho. O saber do trabalhador precisa ir muito além das prescrições do patrão ou dos manuais, agregar suas capacidades para inovar, complementar e mesmo subverter a ordem prescrita a fim de alcançar os objetivos de trabalho. Trabalhar, portanto, implica em persistir para suplantar a resistência do real do trabalho, o real objetivo, o real intersubjetivo e o real sub-jetivo. O real, nessas três dimensões, resiste à nossa tentativa de domínio e experi-mentamos essa resistência como fracasso. A racionalidade pática está presente no trabalho, assim como a racionalidade prático- moral e a estratégico-instrumental. Os deuses gregos, diferentemente dos deuses monoteístas, expõem o pathos. Eles sofrem, odeiam, desejam. O trabalho é experimentado pelo sujeito, antes, de tudo afetivamente, pela experiência da impotência, do fracasso, da frustração, frente à resistência do real.

O sofrimento no trabalho, pois, é ordinário, é inerente a toda experiência de trabalho. Importante notar que ele não é necessariamente um mal, algo negativo.

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O sofrimento também é uma oportunidade, um ponto de partida de transforma-ção da subjetividade. Suplantar o real implica conseguir um acordo de familia-rização afetiva do corpo com o real. Isso envolve persistência frente à resistência do real subjetivo, num verdadeiro trabalho sobre si. Um trabalho sobre a própria corporalidade que transcende o local e o tempo formais de trabalho e invade toda a vida até mesmo no trabalho do sonho – traumarbeit, diz Freud. Também não é por nada que, em cada profissão, fala-se muito sobre o trabalho.

À medida que se têm sucesso em suplantar a resistência do real, o sofrimento pode convolar-se em prazer e quando essa possibilidade se obstrui, o sofrimento, então torna-se patogênico. Este prazer não é, do ponto de vista da psicanálise, algo que se dá pelo mecanismo da realização do desejo. É um prazer que vem por meio dos mecanismos da sublimação. Dejours ressalta que há dois campos nos quais se operam principalmente a dinâmica da realização do eu e da construção da identi-dade: o primeiro é o amor, relativo à realização do eu no campo íntimo ou erótico; o segundo, a realização do eu no campo social, por meio dos mecanismos psíqui-cos da sublimação, passando necessariamente pelo trabalho, que se constituiria em “uma segunda chance para a construção da identidade e da saúde mental, de modo que, muitos de nós gozamos de melhor saúde quando trabalhamos que quando privados de trabalho”.

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É na atividade e na organização do trabalho que se encontram, em especial, as condições para que se mobilizem os recursos necessários à sublimação. Dejours fala em três níveis desublimação no Trabalho: pelo desenvolver da inteligência, da habilidade corporal, conquistando novos registros de sensibilidade como resul-tado de um trabalho sobre si bem sucedido; pelo reconhecimento do fazer pelo julgamento qualitativo da utilidade e beleza do trabalho, essencial à construção da identidade; pelo julgamento ético pelo qual o agir no trabalho pode ser visto como moralmente justo, em termos de “honrar a vida”, a cultura da cidade, pelo trabalho, aspecto essencial ao amor-próprio. Dentre esses três níveis da sublima-ção no trabalho, o primeiro deles diz mais respeito às condições da atividade e à esfera intrasubjetiva do trabalhador; os outros dois se apoiam diretamente nas

4 DEJOURS, Christophe. A psicodinâmica do trabalho na pós-modernidade. In: MENDES, Ana Magnólia et al. (orgs). Diálogos em psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, 2007, p. 20.

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condições da organização do trabalho, em que a avaliação do trabalho joga um papel central.5

Como reitera Dejours, o trabalho não só pode gerar o pior, em termos de degradação da saúde, de alienação, de reprodução de práticas sociais de violência, de degradação do ambiente, mas também pode gerar o melhor, como mediador privilegiado do desenvolvimento da personalidade, da construção da identidade, da conquista da saúde psíquica, do aprendizado ético e político. Mais que poder gerar o melhor, o trabalho é condição de possibilidade para que isso ocorra. Essa é a tese da centralidade antropológica do trabalho. O trabalho, como conjunto de atividades e relações, constitui-se em uma mediação essencial para autorrea-lização humana em temos de autonomia, saúde, ética e política. Retomando-se, assim, os passos iniciais desta exposição, percebe-se que, à luz da noção jurídica de dignidade humana, a essa centralidade antropológica deve corresponder uma centralidade jurídica do trabalho.

Ou seja, não se trata só de tutelar a doença, evitar o adoecimento, nem a saú-de, como completo bem estar, mas também esse sentido antropológico e político da possibilidade do cidadão trabalhador de autorrealizar-se pelo trabalho. Assim, não basta proteger as pessoas dos possíveis efeitos deletérios do trabalho. É pre-ciso assegurar as condições concretas pelas quais o trabalho pode desempenhar seu papel constitutivo para o sujeito. São as condições de possibilidade para essa realização que são objeto de tensionamento normativo pelo direito.

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A centralidade do trabalho para as pessoas concretas passa repercutir no in-terior do discurso do direito, em termos de centralidade jurídica, na forma de direitos fundamentais que tutelam o trabalho como mediador essencial para a pessoa. No centro desse discurso jurídico esta o direito fundamental ao trabalho.

Na verdade, o direito do trabalho do século XX fechou os olhos para essa questão, que hoje se trata de desvelar. A grande conquista que foi a percepção de que o trabalho é uma relação social de dominação e que, portanto, transcende a relação concreta de trabalho, veio com o preço de esquecermos que o trabalho não é só, mas também é essa relação concreta. O direito do trabalho que conhecemos versa pouco sobre o trabalho em si, atendo-se mais às condições de trabalho ex-

5 DEJOURS, Christophe (2013). Sublimação entre sofrimento e prazer no trabalho. Revista Portugue-sa de Psicanálise, n. 33 (2), p. 9-28

6 WANDELLI, Leonardo. Op. Cit. p 64.

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ternas ao próprio trabalhar, as condições de compra e venda da força de trabalho. As próprias convenções e acordos coletivos também dizem muito pouco sobre as condições da atividade e da organização do trabalho. A atividade de trabalho propriamente dita é quase que inteiramente deixada à mercê do poder de direção do tomador de serviço, como se o trabalhador não tivesse, também, interesses absolutamente relevantes, do ponto de vista constitucional, no conteúdo do pró-prio trabalho e nas relações coletivas que se passam no interior da organização de trabalho. Daí que as questões cruciais do desenvolvimento da subjetividade pelo trabalho, que em grande parte condicionam as possibilidades de uma vida digna, autônoma e saudável, passam ao largo do direito do trabalho. É esse o déficit que se cuida resgatar.

2. As condiçõEs orgAnizAcionAis do trAbAlho como mEdiAção PArA o sujEito: PráticA dEônticA E rEconhEcimEnto

Trabalhar é sempre trabalhar sobre si, sobre os meios materiais e com os ou-tros. Aí entra em cheio a temática do reconhecimento que diz respeito ao segundo mecanismo de sublimação de que fala Dejours. Dependemos do olhar do outro para construirmos a nossa identidade, autoconfiança, autoestima, autorrespeito. Se nós nos empenhamos em persistir frente ao sofrimento no trabalho e em assu-mir graves riscos em relação à própria saúde e autonomia, com custos para outras relações pessoais a fim de fazer um bom trabalho, isso se dá na expectativa de uma gratificação subjetiva em termos de fortalecimento da identidade por meio do re-conhecimento de nosso fazer no trabalho. Por isso, avaliar o trabalho é essencial. Mas não é possível medir quantitativamente o trabalho. A avaliação possível do trabalho assenta-se sobre as bases do julgamento e não da medição. Enquanto o julgamento consiste em uma apreciação sobre o resultado de um trabalho, medir é valorar grandezas comparando-as a uma grandeza constante da mesma espécie, o que contraria o caráter intrinsecamente variável e singular do trabalho. O que se mede, ainda fazendo tábula rasa da variabilidade das condições, é o resultado do trabalho. É necessário, pois, conhecer o trabalho para julgá-lo qualitativamente. Mas isso apresenta dificuldades maiores, já que o essencial do trabalho é pouco

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transparente e, por isso, são necessárias condições exigentes sobre a organização do trabalho.7

Para que haja o reconhecimento, é preciso que haja condições necessárias, ainda que não suficientes, que incidem sobre a atividade e a organização do tra-balho. Essas condições envolvem pelo menos dois aspectos. De uma parte, a pos-sibilidade de uma contribuição efetiva pelo trabalho, um trabalho com sentido e utilidade. De outra parte, as condições para que haja a cooperação entre os trabalhadores, as práticas informais e formais de reconhecimento e práticas de-liberativas sobre as regras técnicas e éticas – formais, informais e mesmo tácitas – que estruturam as relações de trabalho e solucionam conflitos concretos e que Dejours chama de atividade deôntica do fazer. Não é possível aprofundar, aqui, isto, mas essas condições envolvem, sobretudo requisitos de visibilidade dos di-ferentes modos operatórios, lealdade, confiança e de espaços e tempos para que se possa falar e ouvir.

Essas condições dizem respeito à organização do trabalho e sobre elas deve incidir a força normativa de um direito fundamental ao meio ambiente do traba-lho saudável, cujo âmbito de proteção está inteiramente imbrincado com aquele do direito fundamental ao trabalho. Não que os constrangimentos advindos da organização do trabalho sejam todo-poderosos capazes de eliminar integral-mente a capacidade de reação, de adaptação singular e coletiva e as estratégias de defesa dos trabalhadores, transformando-os em fantoches.8 Ao revés, eles pressu-põem essa capacidade de adaptação, de ponderar e articular compromissos entre as diversas prescrições contraditórias (quantidades, qualidades, segurança, ren-tabilidade, conflitos internos, limitações pessoais, variabilidades, etc) e mesmo de subvertê-las, cooperando coletivamente para alcançar os fins da organização. De fato, as relações entre as constrições advindas das condições de trabalho e a saúde das pessoas não pode ser compreendida à luz de um modelo mecânico de causalidade, pois sempre se interpõem, aí, a reação singular da corporeidade, as estratégias individuais e coletivas de defesa, que se colocam como força ativa frente às constrições, muitas vezes causando, com isso, problemas maiores. Não

7 DEJOURS, Christophe. A avaliação do trabalho submetida à prova do real. Cadernos de TTO, 2 - Org: Laerte Idal Sznelwar e Fausto Leopoldo Mascia. São Paulo: Blucher, 2008.

8 MOLINIER, Pascale. O trabalho e a psique: uma introdução à psicodinâmica do trabalho. Brasília, Paralelo 15, 2013, p. 86.

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podemos prever exatamente de que forma as singularidades reagirão às pres-sões da organização do trabalho, em termos de estratégias individuais e coletivas de defesa ou mesmo em termos de sintomas psíquicos ou somáticos. No entan-to, o essencial é que se podem antever quais as contingências organizativas que aumentam os riscos, em termos de saúde e autonomia, para os trabalhadores. No que se refere à saúde psíquica, são especialmente aquelas que obliteram a dinâmica contribuição-reconhecimento e as práticas deliberativas da deôntica do fazer. É importante perceber que as condições pertinentes à ordem prescrita do trabalho, sobre as quais se apoiará a cooperação, não derivam da ordem na-tural das coisas. Elas são o resultado de escolhas organizacionais prévias que são constitutivas da organização do trabalho e, portanto, podem ser modificadas.9 Se sobre essas condições de risco se pode agir, à luz dos comandos constitucionais de proteção do trabalho, da saúde e da redução dos riscos inerentes ao trabalho, se deve, juridicamente falando, agir.

Compreende-se a organização do trabalho sob um duplo viés: da divisão de trabalho, do ponto de vista técnico e da divisão de homens, do ponto de vista das relações sociais e de poder. A divisão técnica de trabalho envolve a atribuição de tarefas entre os operadores, repartição, cadência, os procedimentos de tra-balho, instrumentos e ferramentas, o modo operatório prescrito. Já a divisão de homens envolve o comando e a coordenação, a repartição das responsabilidades e autonomia, hierarquia, controle e especialmente a avaliação do trabalho, mo-bilizando os investimentos afetivos, o amor e o ódio, a amizade, a solidariedade, a confiança etc. 10

Do ponto de vista normativo, o ordenamento brasileiro abriga, na NR-17, uma conceitualização bastante satisfatória de organização do trabalho, constitu-ída por regras, práticas e processos, a partir da qual são reaglutinadas as clássicas condições químicas, físicas e biológicas de trabalho às condições organizacionais do meio ambiente de trabalho, como explicitado no item 1.1. da NR-1711: “As con-

9 TERSAC, Gilbert E MAGGI, Bruno. O trabalho e a abordagem ergonômica. In: DANIELLOU, François (Coord.). A ergonomia em busca dos seus princípios: debates epistemológicos. São Paulo, Blucher, 2004, p. 100.

10 DEJOURS, Christophe. ABDOUCHELI, Elizabeth. Psicodinâmica do trabalho: contribuição da Es-cola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. DEJOURS, Christophe et al. São Paulo: Atlas, 1994. p. 125-126. MOLINIER, loc. Cit.

11 Redação introduzida pela Portaria MTE 3.751, de 23.11.1990.

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dições de trabalho incluem aspectos relacionados ao levantamento, transporte e descarga de materiais, ao mobiliário, aos equipamentos e às condições ambien-tais do posto de trabalho e à própria organização do trabalho.” Segundo a NR- 17, ítem 6.2., a organização do trabalho compreende, no mínimo:

a) as normas de produção (que podem ser formais ou informais, explícitas ou tácitas e envolver tanto aspectos técnicos quanto éticos de trabalho, em especial os métodos de deliberação, de arbitragem de conflitos e de avaliação e remunera-ção do trabalho); b) o modo operatório (que tem sempre uma dimensão prescrita e uma dimensão real, necessariamente distinta); c) a exigência de tempo (que in-clui a velocidade, a cadencia e o ritmo); d) a determinação do conteúdo do tempo (o conjunto de diversificação das tarefas a serem realizadas e atividades efetiva-mente desempenhadas em função do tempo); e) o ritmo (o aspecto qualitativo da adaptação da atividade dos sujeitos à velocidade e cadência); f) o conteúdo das tarefas (o sentido para os trabalhadores, do próprio trabalho).

Ao compreenderem-se os elos que ligam subjetividade, saúde psíquica, traba-lho e práticas organizacionais, aparece mais claramente o potencial de risco das transformações em curso nas práticas de gestão, desde a virada gestionária ne-oliberal das últimas décadas. Práticas aparentemente inofensivas, como adoção de parâmetros objetivos de qualidade total, mecanismos de avaliação individu-alizada de desempenho ou terceirização, destroem as condições para a dinâmi-ca contribuição-reconhecimento e para as práticas deliberativas. Trabalhadores vêem-se na contingência de sustentar uma identidade fragilizada e uma estabili-dade psíquica colocada em risco, enfrentando condições relativas à organização do trabalho que deterioram as possibilidades do trabalho atuar como mediador para “o melhor” e potencializam os aspectos deletérios.

O que se viu, nas últimas décadas foi a escalada incessante dos adoecimen-tos psíquicos no trabalho. Os estudos em psicodinâmica do trabalho têm de-monstrado que essa linha ascendente de adoecimentos psíquicos está associada à adoção generalizada da ideologia gestionária, que pretende sustentar que os resultados da organização não são um produto do trabalho, mas da gestão. Essa ideologia é desenvolvida, primeiro, pelas grandes corporações, adaptando méto-dos praticados nos exércitos. Depois, ela vai sendo absorvida pelas organizações estatais e se generaliza como estratégia discursiva fundamental das empresas. Entre outras coisas, se desenvolvem técnicas de gestão baseadas no resultado do trabalho, mas que desconsideram o próprio trabalhar dos sujeitos. Sobretudo, a

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larga utilização da avaliação individualizada de performance que essencialmente promove a competição entre iguais, denega o reconhecimento pelo trabalho e os sistemas de qualidade total, que promovem uma noção de produtividade que gera a desconexão com o sentido do trabalho bem feito e a terceirização, que des-trói as condições de pertencimento a um coletivo de trabalho em condições de igualdade e o sentido de um projeto de vida profissional.

Chega a ser surpreendente perceber que uma parcela significativa das neces-sidades humanas ligadas ao trabalho a serem protegidas pelo direito diz respeito às condições para se poder fazer bem o seu trabalho e ser reconhecido por isso. Embora se possa achar que “isso é justamente o que a empresa também quer”, o que se têm visto é a implementação de um modelo gestionário destinado a erra-dicar os valores e sabers do trabalho, com o fim de submetê- lo ainda mais, a fim de aumentar a rentabilidade, mesmo que degradando qualidade do trabalhar e no mais das vezes, do próprio produto ou serviço.

Eleva-se, aí, a advertência de Dejours sobre os limites da dinâmica contribui-ção- reconhecimento e a importância de “honrar a vida” pelo trabalho, que con-sidera o terceiro nível sublimatório. É que há certa ambiguidade em relação ao reconhecimento que, por si só, não garante incrementos à constituição da identi-dade, e não deve ser algo a ser perseguido como um fim em si mesmo, podendo constituir-se, em certos casos, em uma armadilha:

É o caso de quando, por uma identidade muito frágil, um trabalhador torna-se cativo dos julgamentos de reconhecimento pelo outro. Tudo se passa então como se os benefícios do reconhecimento não pudes-sem ser convenientemente apropriados pelo sujeito. Graças a seu tra-balho, ele obtém gratificações materiais e narcísicas que lhe conferem robustez psíquica face aos conflitos. Mas, sob esse manto aparente, ele torna-se dependente desse reconhecimento, o qual ele não pode mais dispensar tendo em vista assegurar a sua continuidade identitária [...] Alguns trabalhadores, se se deixam tomar pela dependência de reco-nhecimento, acabam por colocar o seu zelo ao serviço de objetivos que seu senso moral reprova (Dejours, 2012, p. 368).

O grau dessa dependência em relação ao reconhecimento pode influenciar o julgamento que o sujeito faz de si mesmo, considerando que, além de julgar a

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qualidade de sua contribuição no sentido do que produz a partir do seu trabalho, para a organização, o sujeito estende esse julgamento ao valor ético dessa contri-buição, em termos de “honrar a vida” e a cultura pelo trabalho, o que exige re-nunciar em parte do interesse pessoal em nome da participação na construção de uma obra comum. O resultado desse julgamento é decisivo para o amor-próprio. Quando as injunções da organização pretendem se impor ao custo da sujeição pela manipulação do medo ou da ameaça, fabrica-se a banalização de práticas eticamente reprováveis. Quaisquer que sejam os meios utilizados, as infrações, os prejuízos a terceiros, tudo será relevado para se atingirem os resultados proje-tados. Mentiras e manipulações aos subordinados ou clientes são por vezes dire-tamente prescritas ou, pelo menos, consentidas em todos os níveis hierárquicos. Aqui, abre-se espaço para o surgimento do que é considerado pelo autor como o sofrimento ético, aquele relacionado à experiência de traição de si, dos valores cultivados, das regras do ofício e do ethos professional, trabalhando mal, infli-gindo injustiça a colegas ou a clientes, participando de atos que se reprova.

Há, de fato, muitas organizações lícitas ou ilícitas em que há um forte com-ponente identitário reforçado pela organização, nos dois primeiros níveis, acima referidos, mas a serviço do pior, em termos éticos. O grande problema, aí, do ponto de vista psicopatológico, é que o terceiro nível da sublimação, é anula-do, com isso. Ao aceitar colocar seu zelo a serviço de práticas que desonram os valores da civilidade que ele próprio compartilha, o trabalhador fragiliza ainda mais as bases intrasubjetivas da identidade, abalando seu amor próprio. Com isso, torna-se, ciclicamente, ainda mais dependente do reconhecimento, sob essas mesmas condições organizacionais, fechando-se a armadilha.12

Talvez com o mesmo espanto com que se descreveram os primeiros casos de pneumoconiose, percebe-se que formas de organização do trabalho aparente-mente normais, modernas e até, para alguns, com um certo charme, podem ser, além de ética e politicamente reprováveis, tão patogênicos quanto uma mina de carvão inglesa do século XIX.

12 DEJOURS (2013), p. 23-27.

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DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO AO DIREITO FUNDAMENTAL AO CONTEÚDO DO PRÓPRIO TRABALHO E AO MEIO AMBIENTE ORGANIZACIONAL SAUDÁVEL

3. o dirEito fundAmEntAl Ao contEúdo do PróPrio trAbAlho

Quem trabalha não está só cumprindo uma obrigação de prestação que in-teressa ao credor dessa prestação, que seria o empregador. De fato, o trabalhador em parte está adimplindo a obrigação contraída, sendo credor da contraprestação salarial, ao passo que o empregador, que detém o poder de dirigir a prestação de serviços, é credor de trabalho e devedor das contraprestações. Mas, além disso, ao mesmo tempo, quem trabalha também está, nesse mesmo ato, exercendo um di-reito fundamental absolutamente central para a sua dignidade, para o desenvolvi-mento da sua personalidade, formação de vínculos de solidariedade, aprendizado ético e para a vida cívica, e que contra-arresta, tensiona, o poder de direção do to-mador dos serviços. Trata-se de algo comum no direito, dois comandos jurídicos concorrentes em apontar sentidos opostos em uma mesma situação problemática. O fato, porém, é que até aqui vínhamos anulando um dos pólos dessa tensão, ao considerar que ao trabalhador não interessaria o conteúdo do próprio trabalho. Quem trabalha não só trabalha para outrem, mas também trabalha para si mes-mo, consigo mesmo e com outrem, mediado pelos objetos e meios de trabalho. Daí nasce o primeiro grande ganho da reconstrução da fundamentação do direito ao trabalho à luz das teorias das necessidades e do reconhecimento: a compreensão de que o direito ao trabalho inclui como sua dimensão central, o direito ao conte-údo do próprio trabalho: a) à tarefa/atividade e b) às condições da organização do trabalho no duplo sentido da coordenação e cooperação.

O direito fundamental ao trabalho é um megadireito multidimensional, que envolve vários aspectos, como é da tradição da doutrina jurídica reconhecer13, como a proteção contra a despedida injustificada, o direito a um padrão juridi-camente protegido de trabalho, a proteção da liberdade de profissão, promoção e proteção da igualdade no acesso às oportunidades de trabalho, tutela da profissio-nalidade, limites jurídicos às políticas de pleno emprego, além de outros. Mas esta dimensão que aqui se quer ressaltar, do direito ao conteúdo do próprio trabalho, é a sua dimensão central, cuja compreensão afeta todas as demais, mas que estava

13 Ver, a respeito, a Observação Geral n. 18, de 2005, do Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais da ONU.

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velada pela incompreensão das relações concretas entre os sujeitos e o objeto desse direito fundamental, o trabalho.

Essa percepção é radical, uma verdadeira Revolução Copernicana do Direi-to do Trabalho – tomando-se emprestado a expressão de Luiz Edson Fachin -, porque obriga juridicamente a abrir-se a casamata da empresa, dos métodos de gestão, da organização do trabalho e da atividade individual e coletiva de traba-lho, como lugar da soberania absoluta do empregador. Se a atividade de trabalho e a organização de trabalho realizam, a par do interesse do empregador, também necessidades fundamentais de desenvolvimento da corporalidade, protegidas pelo direito fundamental ao trabalho, isto impõe recuperar-se o espaço da organização do trabalho como espaço de cidadania e não só como espaço privado sob o domí-nio do empreendedor.

Esse direito ao conteúdo do próprio trabalho é muito mais amplo e profun-do que o direito à ocupação efetiva, consagrado no art. 4.2, a, do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha, no sentido de dar trabalho e permitir sua execução normal. Trata-se de uma ocupação qualificada, de modo que o trabalho seja capaz de permitir o desenvolver das capacidades humanas, em termos de conteúdo sig-nficativo, potencialidade para o desenvolvimento das próprias capacidades e dons (art. 1º da Convenção n. 122 da OIT)14 e que diz respeito ao conteúdo da atividade de trabalho, bem como as condições organizacionais para que seja possível reco-nhecer-se e ser reconhecido pelo trabalho bem feito, cooperaração e participação deliberativa, o que se sintetiza em uma “ocupação plena e produtiva, em condições que garantam as liberdades políticas e econômicas fundamentais da pessoa hu-mana”, conforme positivado no art. 6º do PIDESC.

Deve ser garantido ao cidadão trabalhador um direito à atividade e à organi-zação saudável do trabalho, corolário do direito ao trabalho, traduzido em práticas de gerenciamento e direção da organização do trabalho na empresa, instituição ou organização, que observem parâmetros positivos e negativos de adequação à

14 Dispositivo da Convenção 122 que dispõe sobre a política de emprego, a qual deverá procurar garantir:

“a) que haja trabalho para todas as pessoas disponíveis e em busca de trabalho; b) que este trabalho seja o mais produtivo possível; c) que haja livre escolha de emprego e que cada trabalhador tenha todas as possibilidades de adquirir e de utilizar, neste emprego, suas qualificações, assim como seus dons, qualquer que seja sua raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou ori-gem social”

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preservação das condições de saúde e autonomia dos trabalhadores, incluindo es-tratégias de mobilização subjetiva do zelo e da colaboração, os modelos de gestão, controle e avaliação do trabalho e as condições para que haja formas adequadas de cooperação e deliberação de normas de trabalho e permitam os mecanismos de reconhecimento da contribuição efetiva dos trabalhadores e o conteúdo ético das práticas de trabalho.

Esse direito, assim, implica não só limites negativos, mas também conteúdos obrigatórios da atividade e da organização do trabalho, extraídos dos elementos coligidos sobretudo a partir do campo da Ergonomia da Atividade e da Psico-dinâmica do Trabalho. Eles não esgotam as exigências advindas do âmbito de proteção de outros direitos e deveres correlatos. É certo, também, que cada um desses aspectos demanda inúmeros esclarecimentos e desenvolvimento dogmá-tico. A especificação legislativa é também sempre bem vinda, mas sua ausência não pode obstruir inteiramente a normatividade desse direito fundamental tão essencial, da mesma forma que não se há de recusar, por falta de lei especificadora, conteúdos essenciais de direitos fundamentais como à saúde, à autodeterminação, ao desenvolvimento da personalidade, ou à educação. O seu núcleo essencial po-deria ser descrito, em linhas gerais, a partir dos seguintes conteúdos proibidos e obrigatórios:

A) CONTEÚDOS PROIBIDOS - LIMITES NEGATIVOS• Podemos falar de vedação de um conteúdo do trabalho com esvaziamen-

to significativo, seja por ausência de tarefas, de utilidade das tarefas ou de total falta de controle sobre a atividade.

• Limites quanto à invariabilidade excessiva, ou excesso de fragmentação, sobrecarga ou extensão excessiva da jornada ou métodos de remuneração que induzam à autointensificação.

• Limites aos métodos de gestão e organização do trabalho que bloqueiem a cooperação entre os trabalhadores e as práticas deliberativas e inviabili-zem a dinâmica entre contribuição e reconhecimento.

B) Podemos também falar de CONTEÚDOS OBRIGATÓRIOS• mecanismos, espaços e tempos para que haja participação deliberativa na

atividade deôntica de regulação do trabalho.

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• mecanismos adequados de reconhecimento material e simbólico da con-tribuição singular;

• certo grau de autonomia e flexibilidade dos procedimentos laborativos;• conteúdo significativo e moral da atividade a realizar e das práticas

organizacionais;• perspectivas de desenvolvimento profissional;• condições de continuidade e integração em condições igualitárias com o

coletivo de trabalho.Esses elementos somente aparecem como mediações essenciais para as neces-

sidades das pessoas a partir da compreensão da própria função psíquica, moral e política do trabalho e dos mecanismos que são necessários para essa função.

4. mEio AmbiEntE orgAnizAcionAl do trAbAlho E PrincíPios dE PrEvEnção E PrEcAução

Avança-se, agora, na demonstração de um dos desdobramentos do sustentado no tópico anterior. A percepção de que o direito fundamental ao trabalho envolve um direito ao conteúdo do próprio trabalho, compreendendo a atividade e a orga-nização do trabalho, logo se conecta a outro direito fundamental, que tem como conteúdo o meio ambiente do trabalho saudável e também com o direito funda-mental à saúde. É importante, porém, a par da evidente sinergia desses comandos normativos, havendo mesmo um certo grau de sobreposição, perceber-se a sua autonomia normativa. Não se trata de dissolver o direito ao trabalho no direito ao meio ambiente de trabalho ou à saúde. Ao revés, é o holofote do direito ao tra-balho que ilumina um aspecto do ambiente laboral que estava na penumbra, do meio ambiente organizacional. O direito ao conteúdo do próprio trabalho engloba parcialmente o direito ao meio ambiente do trabalho saudável, a sua dimensão organizacional, a par da atividade individual. De outra parte, o meio ambiente or-ganizacional é uma parcela – talvez a mais relevante – do meio ambiente do traba-lho. Já a saúde é um bem distinto, que tem como condições necessárias o conteúdo do próprio trabalho e o meio ambiente do trabalho. Ou seja, do ponto de vista da tutela do meio ambiente do trabalho (objeto imediato), a saúde dos trabalhadores é objeto mediato da tutela. Do ponto de vista dos sujeitos, o ambiente organizacio-

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nal é uma mediação necessária. Mas não se trata só de evitar adoecimentos e sim de assegurar as condições de possibilidade para que o trabalho possa permitir a autorrealização pelo trabalho – ainda que isso seja limitado e contingente, sob as condições do capitalismo.

A compreensão do conceito de meio ambiente organizacional do trabalho traz repercussões jurídicas de monta para a tutela do trabalho, à medida que atrai o ar-cabouço jurídico de tutela do meio ambiente que, sintomaticamente, é mais inten-so que aquele de tutela do trabalho. E não se poderia admitir que o meio ambiente seja menos protegido na parcela em que ele mais se aproxima da vida humana cotidiana. Por isso cabe situar o direito a uma organização do trabalho saudável em relação aos conceitos do Direito Ambiental.

A doutrina ambientalista nacional assentou, didaticamente, que o conceito constitucional de meio ambiente abriga o meio ambiente natural (físico), o meio ambiente artificial, cultural e do trabalho.15 Para Fiorillo, o meio ambiente do tra-balho é

o local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais, se-jam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumida-de físico-psíquica dos trabalhadores, independente da condição que ostentem16

José Afonso da Silva também desenvolve importante esforço de conceitualização:

Merece referência em separado o meio ambiente do trabalho, como o local em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qua-lidade de vida está, por isso, em íntima dependência da qualidade da-quele ambiente. É um meio ambiente que se insere no artificial, mas digno de tratamento especial, tanto que a Constituição o menciona

15 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 22-23. MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalha-dor. 5. ed. São Paulo: LTr, 2013. P. 28.

16 FIORILLO, loc. Cit.

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explicitamente no art. 200, VIII, ao estabelecer que uma das atribui-ções do Sistema Único de Saúde consiste em colaborar na proteção do ambiente, nele compreendido o do trabalho. O ambiente do trabalho é protegido por uma série de normas constitucionais e legais destinadas a garantir-lhe condições de salubridade e de segurança. O ambiente do trabalho é um complexo de bens imóveis e móveis de uma empresa e de uma sociedade, objeto de direitos subjetivos privados e de direitos invioláveis da saúde e da integridade física dos trabalhadores que o frequentam.17

Em que pese a relevância dessas conceituações do ambiente de trabalho, con-sidera-se que deixam de destacar o elemento central pelo qual cabe diferenciar um meio ambiente do trabalho do meio ambiente em geral, fazendo jus à enfática dicção constitucional de uma previsão especial para o meio ambiente do trabalho, no art. 200, VIII. Compreendido apenas como as características físicas, químicas e biológicas do local de trabalho, não há qualquer especialidade do meio ambiente do trabalho em relação ao meio ambiente em geral. Seria o mesmo que falar de um meio ambiente da educação, do esporte ou de qualquer outra atividade hu-mana que se realiza no entorno de algum espaço geográfico. Compreender meio ambiente como a res extensa, na qual atua o homem seria negar totalmente a im-portância do conceito. Ambiente, aí, deve ser pensado sempre como relações de interdependência com um meio complexo e que condicionam a vida, inclusive porque mulheres e homens e o seu meio produzem-se reciprocamente. A ideia de ambiente de trabalho apenas como local de trabalho é tributária de uma com-preensão do sujeito autossuficiente, um sujeito que não depende de condições de possibilidade, uma visão tipicamente liberal. É a organização do trabalho que pro-picia grande parte das condições de possibilidade para que o trabalho possa gerar o melhor e não o pior, sobretudo em termos de saúde psíquica.

A Convenção 155 da OIT, no art. 3, “e” sustenta esse ideia: “o termo saúde, em relação ao trabalho, abarca não somente a ausência de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetem à saúde e estão diretamente relacio-nados com a saúde e segurança do trabalho.” Da mesma forma, o art. 3º da Lei

17 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 3 ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 23.

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8.080/1990 estabelece que são determinantes e condicionantes para a saúde, den-tre outros, o meio ambiente, o trabalho e a renda.

A interdependência entre os diversos elementos do ambiente está expressa no art. 4º da Lei 9.795/99, que estatui os princípios básicos da educação ambiental, afastando uma concepção meramente física de meio ambiente e consagrando:

I - o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo;

II - a concepção do meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência entre o meio natural, o sócio-econômico e o cultural, sob o enfoque da sustentabilidade18

Nesse sentido, não faria nenhum sentido apartar-se, justamente do conceito de meio ambiente do trabalho, parcela significativa das interações homem-meio, centradas na organização do trabalho, forte na compreensão de que há co-pro-dução recursiva entre trabalhadores e organização do trabalho. O que justifica a especialidade de um conceito constitucional de meio ambiente do trabalho, a par do meio ambiente natural, artificial e cultural, é a presença da organização cole-tiva do trabalho como elemento central dessa esfera ambiental. Assim, pode-se dizer que, além daqueles elementos clássicos ligados ao local de trabalho, o direito ao ambiente de trabalho deve incluir os elementos que determinam as condições para a sociabilidade humana no âmbito da organização do trabalho e que consti-tuem a dimensão mais essencial do ambiente de trabalho. Assim como está o rio

18 Aquilo que a lei denomina como enfoque humanista e holístico pode ser melhor compreendido pela noção de complexidade das interações ambientais, notabilizada na obra de Edgar Morin. O pensamento complexo constitui inteligibilidades possíveis, ainda que incompletas, sobre o tecido conjunto (complexus) de elementos altamente inter-relacionados dos fenômenos e seus contex-tos, baseando-se em três princípios que atuam como operadores de inteligibilidade: a) dialógi-co, segundo o qual princípios ou noções que deveriam se repelir reciprocamente, como ordem e desordem, tornam-se simultaneamente indispensáveis na compreensão de uma realidade, sem se reconduzirem a uma síntese homogenizadora; b) recursivo, segundo o qual os produtos de algo são também produtores daquilo que os produz; c) hologramático: não só a parte está no todo, mas o todo está em cada uma das partes, de um modo que o todo é mais que a soma das partes, alcan-çando qualidades distintas, e ao mesmo tempo menos, pois a organização introduz constrições que inibem qualidades das partes. MORIN, Edgar. Epistemologia da complexidade In.: Schnitman Dora F. (org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p.274-289.

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para os peixes, está o habitat principal das “pessoas que vivem do trabalho”, que se chama organização do trabalho.

Raimundo Simão de Melo apanha com precisão essa dimensão, ao definir o ambiente de trabalho para além do local de trabalho:

Abrange o local de trabalho, os instrumentos de trabalho, o modo da execução das tarefas e a maneira como o trabalhador é tratado pelo empregador ou tomador de serviço e pelos próprios colegas de tra-balho. Por exemplo, quando falamos em assédio moral no trabalho, nós estamos nos referindo ao meio ambiente do trabalho, pois em um ambiente onde os trabalhadores são maltratados, humilhados, perse-guidos, ridicularizados, submetidos a exigências de tarefas abaixo ou acima da sua qualificação profissional, de tarefas inúteis ou ao cumpri-mento de metas impossíveis de atingimento, naturalmente haverá uma deterioração das condições de trabalho, com adoecimento do ambiente e dos trabalhadores, com extensão até para o ambiente familiar.19

Nesse contexto, embora o ambiente de trabalho tenha uma evidente função instrumental em relação à vida, saúde, integridade física e psíquica dos trabalha-dores, ele consiste em um bem jurídico autônomo, que enseja, por si, proteção jurídica. Vale dizer, o direito a um ambiente de trabalho saudável, a par de estar a serviço de outros direitos, é um direito do qual decorrem exigências que não de-pendem da direta violação daqueles outros bens e direitos em termos de impacto sobre a saúde dos indivíduos.

A degradação da qualidade do meio ambiente do trabalho, mediante a majo-ração dos riscos organizacionais que podem ser evitados constitui, portanto, um dano a esse bem que independe do eventual dano à saúde das pessoas que traba-lham. Nesse sentido, pode-se falar de poluição do ambiente organizacional, nos termos do artigo 3º, III, ‘a’, da Lei n. 6.938/81:

Art. 3º: Para os fins previstos nesta lei, entende-se por: (...)

III: poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de ativi-dades que diretamente ou indiretamente:

19 MELO, 2013, p. 29.

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a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; (...)”

Segundo Ebert, a poluição labor-ambiental é toda a atividade que gere dese-quilíbrio nos locais de trabalho, afetando as condições de risco às integridades psí-quicas e físicas inerentes aos locais de trabalho a que são submetidos os obreiros:

pode ser caracterizada como poluição labor-ambiental tanto a subsis-tência de um maquinário carente de manutenção adequada que põe em risco a segurança e a integridade física dos trabalhadores, quanto o não fornecimento de equipamentos de proteção individual/coletiva ou mesmo a institucionalização, por parte das empresas, de pressões ex-cessivas sob seus funcionários com vistas ao aumento de produtividade ou no fito de obter sua adesão a programa de demissão voluntária.20

Se, como visto, a organização saudável do trabalho constitui um corolário do direito ao trabalho, em sua dimensão objetiva, e do próprio direito ao meio am-biente do trabalho saudável e à saúde, os riscos à saúde e à autonomia dos traba-lhadores, decorrentes de uma instituição ou empresa que não assegure condições organizacionais para o direito ao conteúdo do trabalho, implicam na responsabi-lidade jurídica do empregador, apreciada à luz dos princípios normativos de tutela do meio ambiente.

Considerados pela generalidade dos autores como princípios normativos nu-cleares do direito ambiental, juntamente com outros princípios como de desenvol-vimento sustentável, de participação, usuário e poluidor-pagador21, os princípios de prevenção e precaução se sobrepõem como círculos concêntricos, sendo mais ampla a ideia de precaução que a de prevenção. Como explicita Marcelo Abelha Rodrigues, a precaução antecede a prevenção, pois, enquanto esta pretende evitar

20 EBERT, Paulo Roberto Lemgruber. O meio ambiente do trabalho. Conceito, responsabilidade civil e tutela. Jus Navigandi. Teresina, ano 17 (/revista/edições/2012), n.3377 (/revista/edições/2012/9) 2012 (/revista/edições/2012). Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/22694. Acesso em: 15/03/2015.

21 Não há uniformidade, entre os autores nacionais do Direito Ambiental, sobre o elenco e a taxiono-mia desses princípios, sendo esses os que figuram na grande maioria das obras.

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o dano diante do risco conhecido, aquela pretende evitar o próprio risco ao am-biente, quando há incerteza científica sobre ele.

Nesse sentido, a síntese de Paulo Affonso Leme Machado:

Em caso de certeza do dano ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da prevenção. Em caso de dúvida ou de incer-teza, também se deve agir prevenindo. Essa é a grande inovação do princípio da precaução.22

Em caso de dúvida séria, “a precaução justificará a necessidade de exclusão de todo e qualquer risco potencial à saúde dos trabalhadores.”23.

É indispensável a tutela do meio ambiente organizacional do trabalho à luz dos princípios de prevenção e precaução, fronte à expressa determinação do art. 7º, XXII da Constituição de redução dos riscos inerentes ao trabalho. A relação entre organização do trabalho e a saúde e autonomia dos trabalhadores envolve o risco de agravo. Embora jamais se possa prever com certeza qual será a respos-ta da corporalidade singular de cada pessoa aos fatores organizacionais, sendo diferentes os recursos de resistência de cada pessoa, é possível traçar, de forma demonstrável, a acentuação do risco da formação de nexo etiológico entre as já referidas práticas gerenciais e os agravos à saúde e autonomia dos trabalhadores. São práticas gerenciais que aumentam os riscos de tais danos ao violarem as con-dições e determinantes do trabalho para a saúde e a autonomia. É mesmo provável que já se possa falar, aí, de risco conhecido e, portanto, dever de prevenção do perigo iminente e cientificamente constatável, impondo-se, nos casos mais graves, a interdição do estabelecimento, como determina o art. 161 da CLT.24 No entanto,

22 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 10ª ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 62.

23 CESáRIO, João Humberto. Técnica processual e tutela coletiva de interesses ambientais trabalhis-tas. São Paulo, LTr, 2012, p. 80.

24 Art. 161 - O Delegado Regional do Trabalho, à vista do laudo técnico do serviço competente que demonstre grave e iminente risco para o trabalhador, poderá interditar estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, ou embargar obra, indicando na decisão, tomada com a brevi-dade que a ocorrência exigir, as providências que deverão ser adotadas para prevenção de infortú-nios de trabalho. (Redação dada pela Lei nº 6.514, de 22.12.1977). Evidentemente que, na omissão da autoridade administrativa, poderá o juiz determinar que o faça.

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ainda que se possam levantar dúvidas sobre a efetiva relação de causalidade, a hipótese é cientificamente consistente o suficiente para que, diante do dever de precaução, o risco deva ser eliminado em sua origem. Sobretudo, considerando--se que se trata de riscos que, pela natureza das práticas organizacionais, uma vez presente, não são possíveis medidas de isolamento da exposição do trabalhador.25

Por outro lado, pela natureza dos bens de personalidade atingidos, os danos que se concretizem são irreversíveis ou de difícil reversão.

Dentro do amplo conjunto normativo da OIT voltado à proteção e promo-ção à saúde no trabalho, merece destaque o disposto nos artigos 5, alínea e, e 13, da Convenção 155, que asseguram o direito de resistência baseado na precaução, estipulando que nenhum trabalhador poderá ser afetado por consequências in-justificadas em virtude de agir de acordo com as políticas de saúde, inclusive de interromper, se necessário, uma situação de trabalho que julgue, com motivos razoáveis, envolver um perigo iminente e grave para sua vida ou saúde.26

À luz dos arts. 5º, XXXV, 7º, XXII, 225 e 200, VIII, da Constituição, a priori-dade, aí, é a tutela de remoção do ilícito pelo dano imediato ao ambiente organi-zacional e prevenção do dano mediato à saúde psíquica das pessoas. O principal objeto de tutela não é a indenização do dano, mas a transformação da organização do trabalho, para remover o dano atual sobre o ambiente de trabalho e evitar o dano provável sobre a saúde psíquica.

Contudo, em matéria de responsabilidade civil, a consideração do meio am-biente organizacional à luz do direito ambiental introduz também, como corolá-rio do princípio poluidor pagador, uma regra geral de responsabilidade objetiva do empregador, na forma do art. 225, § 3º, da Constituição e art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81. Bem assim, os princípios de prevenção e precaução introduzem uma

25 Nesse sentido, o art. 166 da CLT bem como o item 12, b, da NR-4 introduzida pela Portaria MTb 3.214;78, estabelecem a prioridade da eliminação do risco na fonte sobre o isolamento da exposição e a proteção individual.

26 Invocando o princípio de precaução, embora sem fazer referência ao dispositivo da Convenção 155 da OIT, Seção de Dissídios Coletivos do TST manteve, em agravo regimental, decisão do Pre-sidente da Corte, Min. João Oreste Dalazen, que negou a suspensão de sentença normativa do TRT da 2ª Região que havia assegurado o pagamento dos dias de paralização em caso de greve voltada à adoção de medidas de segurança no trabalho de petroleiros. Processo: AgR-ES - 4253-26.2011.5.00.0000 Data de Julgamento: 13/02/2012, Relator Ministro: João Oreste Dalazen, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 02/03/2012.

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presunção de nexo de causalidade entre o risco e o dano mediato sobre a saúde das pessoas quando ela ocorre. Constata-se, aí, contudo, uma aparente antinomia entre essa disciplina e aquela que decorre da interpretação do art. 7º, XXVIII da Constituição, que, em princípio, estabelece a responsabilidade por acidentes de trabalho baseada nos critérios subjetivos de dolo e culpa e não prescinde da prova, pelo autor, do nexo causal. Ainda que se reconheça que o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, que estabelece a responsabilidade objetiva em caso de atividade de risco especial, seja aplicável aos acidentes de trabalho em situação de risco, como vem entendendo a jurisprudência predominante, o que se tem aí é um sis-tema dual: regra geral de responsabilidade subjetiva, com uma abrangente regra especial de responsabilidade objetiva nos casos de risco especial inerente à ativi-dade. Assegura, portanto, uma proteção menos intensa que aquela assegurada à tutela do ambiente no art. 225 da Constituição. Qual, então, a disciplina aplicável nos casos de doenças do trabalho decorrentes da degradação ambiental, inclusive organizacional?

Considera-se que a resposta, em termos de concordância prática e à luz da efi-cácia ótima dos direitos fundamentais envolvidos, não pode ser outra que não a de afirmar que a disciplina ambiental (responsabilidade objetiva, presunçao de nexo causal e demais commandos decorrentes do subsistema normative ambiental) en-volve todos os casos de poluição do ambiente de trabalho, inclusive o organiza-cional, mediante a criação ou introdução de riscos evitáveis, desequilibrando o ambiente de trabalho e se estende aos eventuais agravos à saúde dos trabalhadores daí decorrentes.27 Reserva-se, assim, a disciplina dual de responsabilidade subjeti-va mitigada pela responsabilidade objetiva em caso de risco especial inerente à ati-vidade, para os casos de acidentes típicos que não sejam decorrentes da poluição ambiental. Destes, se houver risco especial da atividade, do qual decorra o agravo, a responsabilidade é objetiva, na forma do art. 927, parágrafo único do Código Civil. Não havendo qualquer fundamento para a imputação do nexo de imputa-ção objetiva, como no caso de acidentes típicos com causalidade circunstancial

27 Nesse sentido, o enunciado 38 aprovado na1a Jornada de Direito Material e Processual da Justi-ça do Trabalho, realizado no TST em 23/11/2007: 38. RESPONSABILIDADE CIVIL. DOENÇAS OCUPACIONAIS DECORRENTES DOS DANOS AO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. Nas doenças ocupacionais decorrentes dos danos ao meio ambiente do trabalho, a responsabilidade do empregador é objetiva. Interpretação sistemática dos artigos 7º, XXVIII, 200, VIII, 225, §3º, da Constituição Federal e do art. 14, §1º, da Lei 6.938/81.

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e localizada, aí sim se pode cogitar de responsabilidade subjetiva, de que trata o art. 7º, XXVIII, podendo-se utilizar a técnica de inversão do ônus probatório com culpabilidade presumida.

conclusão

Compreendido como expressão central da dignidade, o trabalho manifesta uma necessidade radical no sentido atribuído por Agnes Heller.28 A sua realiza-ção plena somente se viabiliza com a transformação da institucionalidade vigente, que, por ora, consagra e generaliza a alienação do trabalho humano, causando, no dizer de Sanchez Rubio, o “empobrecimento que a ação humana, representada pelo trabalho, está sofrendo, como principal meio gerador de múltiplas opções da vida”.29 Mas a melhor resposta a essa negação da dignidade não é o abandono do trabalho e a intensificação de seu esvaziamento significativo. O trabalho jamais é neutro para a vida das pessoas, seja como presença, seja como ausência. A reação apropriada é a reafirmação e a luta pela construção do trabalho como primeiro direito humano e fundamental.

Para isso, a Psicodinãmica do Trabalho e a Ergonomia da Atividade condu-zem os elementos de inteligibilidade essenciais para se dar sentido concreto ao vínculo indissociável entre dignidade, subjetividade e trabalho, permitindo o pas-so decisivo na reconstrução normativa do “direito social por antonomásia” tendo como centro a compreensão de um direito fundamental ao conteúdo do próprio trabalho do qual decorre um direito fundamental à organização do trabalho sau-dável, como sua expressão parcelar.

Sob essa compreensão, impõe-se a normatividade de tutela do meio ambiente ao ambiente organizacional do trabalho. A partir disso, diante do princípio da precaução, as evidências científicas sobre o caráter deletério à saúde e à autono-mia decorrente dos métodos de gestão baseados na avaliação individualizada de desempenho objetivo, na adoção de sistemas de qualidade total e em diversas for-

28 HELLER, Agnes. Teoria de las necesidades em Marx, Barcelona, Península, 1978, p. 87-113.29 SáNCHEZ RUBIO, David. Direitos humanos, ética da vida humana e trabalho vivo, In WOLK-

MER, Antonio Carlos (org). Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina. Rio de Janei-ro, Lumen Júris, 2004, p. 140.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

mas de tercirização, bem como as estratégias de mobilização subjetiva baseadas na manipulação do medo, são suficientes para impor um dever de eliminação do risco que tais métodos implicam para as pessoas. Não se trata só de impedir prá-ticas caracterizadas pelo danos efetivamente alcançados, de modo pós-violatório, mas de eliminar práticas que pelo risco sério de dano são já antijurídicas. É o risco certo ou mesmo incerto de dano, causado por práticas cuja substituição não se mostra economica ou tecnicamente inviável, que invalida juridicamente a sua adoção. A eliminação do risco, neste caso, mediante a não adoção dessas práticas de gestão é a medida prioritária. Nesse sentido, ressalta Maurício Godinho Del-gado ser função do direito do trabalho “incrementar, direta ou indiretamente, a adoção de fórmulas mais eficientes e respeitosas de gestão trabalhistas, eclipsando modalidades obscurantistas de gerência e gestão empresarial”30. De outra parte, sujeitam-se a responsabilidade civil objetiva os agravos à saúde psíquica e física dos trabalhadores acaso advindos dessas práticas, com presunção relativa de nexo de causalidade, admitindo-se prova em contrário a cargo do tomador de serviços.

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219

NoTAS SoBrE o ASSÉDio orGANizACioNAL E SEuS EfEiToS

DELETÉrioS PELo oLHAr DA “CLÍNiCA” Do TrABALHo

Milca Micheli Cerqueira Leite1

1. introdução

O assédio moral organizacional é caracterizado pelo emprego de condu-tas abusivas, de qualquer natureza, é também exercido sistematicamente numa relação laboral. O assédio é uma via contrária à liberdade e autonomia.

O conteúdo do assédio organizacional é um ato atentatório à dignidade do sujeito trabalhador, bem como aos seus valores morais. A bem da verdade, a frase célebre e conhecida de Maquiavel resumida em “os fins justificam os meios”, nunca foi tão levada a sério pelas empresas, que em prol do lucro, tem protagonizado efeitos deletérios na saúde dos trabalhadores.

A questão é como avaliar constrangimento e liberdade numa organização? Muito complexo é mensurar a liberdade, no sentido de julgamento, valor,

mesmo que não fosse, é difícil avaliá-la.Porém, com tranquilidade é possível afirmar que a liberdade a autonomia ca-

minham em via distante do assédio.

1 Advogada, especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, mestranda em Direitos Fundamentais e Democracia pela UniBrasil, Douto-randa em Ciências Jurídicas pela Universidade Católica Argentina (UCA). Email: [email protected]

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

2. Assédio morAl E dignidAdE

O assédio moral atenta contra a dignidade psíquica, de forma frequente, pro-longada, capazes de constranger e causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica.2

A Constituição, rechaça o assédio moral e tutela o trabalhador no artigo 1º, prelecionando sobre os princípios fundamentais da dignidade a pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Os atos discriminatórios também podem estar presentes no ambiente de trabalho ferindo a dignidade do trabalhador.

Também conhecido como “terror psicológico” ou mobbing, ocorre quando o individuo passa a ser alvo, marcado para ser excluído, agredido ou perseguido sem cessar por um indivíduo ou um grupo no ambiente de trabalho.

A dignidade está intimamente ligada ao trabalho, ela não existe quando não se tem condições mínimas dadas ao trabalhador. O assédio organizacional tem ligação direta com direitos da personalidade, com autonomia e com liberdade, pois ao ser praticado, fere de morte tais direitos.

O princípio da dignidade humana identifica um espaço de integrida-de moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independentemente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência.

A dignidade humana faz parte da natureza do contrato de trabalho, e sempre está em vias de ser afetada, em razão do desequilíbrio econômico e social entre as partes. Leciona Alice Monteiro:

2 ALKIMIN, Maria Aparecida. Assédio Moral as Relação de Trabalho. 2ª Edição. Curitiba: Ju-ruá, 2008: O assédio moral, também conhecido como terrorismo psicológico ou psicoterror, é uma forma de violência psíquica praticada no local de trabalho, e que consiste na prática de atos, gestos, palavras e comportamento vexatórios, humilhantes, degradantes e constrangedores, de forma sis-temática e prolongada...

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NOTAS SOBRE O ASSÉDIO ORgANIzACIONAL E SEUS EfEITOS DELETÉRIOS PELO OLHAR DA “CLÍNICA” DO TRABALHO

(...) sob o pretexto de dirigir a empresa e, em conseqüência, impor san-ções ao trabalhador, o empregador não poderá desconhecer direitos básicos do empregado previstos na legislação trabalhista e previdenci-ária, nas normas coletivas, no regulamento interno das empresas, no contrato individual e principalmente, na Constituição, onde estão in-seridos os direitos fundamentais, cerne do ordenamento jurídico e cuja existência está calcada na dignidade humana.3

O terror psicológico é marcado por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos agressivos vexatórios.

Em um ambiente institucional os empregadores a prática dos atos de assédio são inúmeras e vão desde a retirada de autonomia do trabalhador, a contestação sistemática de todas as suas decisões, a crítica ao seu trabalho de forma injusta ou exagerada, a privação dos seus instrumentos de trabalho, a permanentemente e novas tarefas ou tarefas inferiores ou superiores às suas competências, e por vezes até perigosas.

Sobre o tema é o pensamento de André Luiz Souza Aguiar:

A proliferação do assédio moral, nos últimos tempos, não deixa de es-tar diretamente relacionada com as imposições das novas técnicas de gerir as organizações, dentro do modelo ditado pela globalização na sua constante busca de mercados e rentabilidade, sendo exigida cada vez mais do trabalhador uma produtividade acima da sua capacidade, independentemente da sua condição física e mental, ainda segundo o autor, as organizações exigem cada vez mais que o trabalhador seja “perfeito, polivalente, f lexível.4

O assédio moral está presente desde muito tempo na história da humanidade e do surgimento do trabalho, e desde então faz parte dessa relação de trabalho. Ele já existia nos ofícios dos antigos artesãos; na escravidão, nas indústrias e perdura ainda e até hoje.

3 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005. p. 579.4 AGUIAR, André Luiz Souza. Assédio Moral: o direito à indenização pelos maus-tratos e humilha-

ções sofridos no ambiente de Trabalho. São Paulo: LTr, 2005. p. 71.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

Estudos importantes sobre o tema começaram a ser feitos a partir da década de 80 na Suécia, pelo professor Heinz Leymann, que investigava psicologia do trabalho.5

Posteriormente, quase ao final da década de 90, Marie-France Hirigoyen, uma psicanalista francesa, dedicou seus estudos a escrever um livro sobre assédio mo-ral no ambiente de trabalho, no livro ela revelava casos verídicos e destacava os seus danos à saúde do trabalhador e também pela ótica socioeconômica. Marie France empregou a expressão harcélement moral para conceitua-lo. 6

Foi a partir dessa obra que tema ganhou relevância internacional, e gerou re-percussões na esfera jurídica. 7

Muitas vezes, a finalidade do agressor é fazer com que o trabalhador peça sua demissão, evitando maiores custos por uma demissão por parte do empregador, mas o assédio também pode ocorrer por políticas da empresa, que se valem de prá-ticas de assédio moral como forma de gestão para obter os resultados esperados.8

Para Hirigoyen as consequências do assédio moral que provém do superior hierárquico trazem maior prejuízo à saúde da vítima, pois ela se sente isolada, não

5 GUEDES, Márcia Novaes. Terror Psicológico no Trabalho. São Paulo: LTr, 2003, p. 27. no começo de 1984 Heinz Leymann publica, num pequeno ensaio científico contendo uma longa pesquisa feita pelo National Board of Occupational Safety and Health in Stokolm, no qual demonstra as conseqüências do mobbing, sobretudo na esfera neuropsíquica, sobre a pessoa que é exposta a um comportamento humilhante no trabalho durante certo lapso de tempo, seja por parte dos superio-res, seja por parte dos colegas

6 HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-Estar no Trabalho – Redefinindo o Assédio Moral. Rio de Janei-ro: Bertrand Brasil, 2010. p. 16: O fato de o conceito de assédio moral ter sido tão significativo para um número tão grande de pessoas em minha obra anterior está provavelmente ligado à escolha do termo moral. Este conceito, qualificado de psicológico, significaria que se tratava unicamente de um estudo sobre mecanismos psicológicos, ou seja, especialistas. A escolha do termo moral impli-cou uma tomada de posição.

7 Países como França, Italia, Suécia, Noruega e Austrália passaram a criar leis que proibiam a prática de assédio moral no trabalho.

8 O assédio moral vertical descendente é a espécie mais comum, e ocorre quando o empregado é assediado pelo empregador ou aquele que está investido na posição de chefia e o assédio moral. O assédio moral horizontal ocorre quando as agressões partem dos colegas de trabalho ou grupo do mesmo patamar hierárquico. Ela pode iniciar-se devido à disputa de funcionários por uma promo-ção ou um cargo novo.

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NOTAS SOBRE O ASSÉDIO ORgANIzACIONAL E SEUS EfEITOS DELETÉRIOS PELO OLHAR DA “CLÍNICA” DO TRABALHO

tendo a quem recorrer, se o agressor é seu superior há uma maior dificuldade em buscar uma solução para o problema9.

Foi com o professor doutor Christophe Dejours, psiquiatra, psicanalista e er-gonomista com inúmeros estudos sobre trabalho, que nasceu a psicodinâmica do trabalho nos anos 1990 na França. As investidas do mesmo, tratavam de identi-ficar síndromes e doenças mentais, demonstrando que as instabilidades dos tra-balhadores provocavam distúrbios psicopatológicos.10 A psicodinâmica objeto de estudo do médico, é uma teoria que fundamenta o trabalho.

Mesmo com o papel central na vida do homem, ele se submete às piores situa-ções para mantê-lo. O trabalho ainda é um ponto central da fragilidade constitu-tiva do ser humano, nas palavras de Dejours, ele é posto à serviço da emancipação e das solidariedades.11

Infelizmente se existem novas formas de organização prejudiciais, é porque ainda são toleradas, são consentidas. Porém, o inverso deve ser de fato verdadeiro, se o trabalho pode fazer o pior, pode fazer o melhor.

É pelo controle que possui sob o empregado e pela busca do lucro, produção e organização, que o empregador acaba por abusar de seus poderes, fazendo com que o trabalhador labore sob pressão, sob estress, muitas vezes doente. Acerca do assunto, leciona Maria Aparecida Alkimin:

Notadamente o superior hierárquico, que se vale de uma relação de domínio, cobranças e autoritarismo por insegurança e medo de per-der a posição de poder, desestabilizando o ambiente de trabalho pela intimidação, insegurança e medo generalizado, afetando o psiquismo do empregado, e consequentemente sua saúde mental e física, além de

9 HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-Estar no Trabalho – Redefinindo o Assédio Moral. Rio de Janei-ro: Bertrand Brasil, 2010. p. 112.

10 MARTINS, Márcio. Psico do Reconhecimento no Trabalho de Informática de Terceirizados e Con-cursados de uma Instituição Pública, Universidade de Brasília - UnB Instituto de Psicologia De-partamento de Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações. Disponível em: file:///C:/Users/Micheli/Downloads/psicodinamica_reconhecimetno_martins.pdf acessado em 19-05.2016.

11 DEJOURS, Christophe, Trabalho vivo 2: trabalho e emancipação. São Paulo, Paralelo 15, 2012. Tomo I., p. 211.

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Assédio morAl orgAnizAcionAl: as vítimas dos métodos de gestão nos bancos

prejudicar a produtividade com a queda no rendimento do empregado afetado pela situação assediante ou pelo absenteísmo12.

Nas palavras de Wilson Ramos Filho, o papel antiemancipatório do modo de relação capital e trabalho faz parecer que ele não se subordina ao capital, criando a falsa impressão de um trabalhador independente, o capital se concentrou, mas a classe trabalhadora não o acompanhou, mascarando a exploração, inviabilizando a luta de classes.13

Inclusive porque, em um ambiente organizacional, o reconhecimento é in-compatível com a sociedade capitalista, assim como a classe trabalhadora também não tem como deixar se explorada, e por ocupar um lugar na sociedade, o reco-nhecimento fica restrito nesse divisão do trabalho. 14

Alguns dos dados obtidos sobre o assédio moral indicam o esgotamento emo-cional dos trabalhadores e refletem vivências subjetivas relacionadas ao trabalho, como inutilidade, insegurança e frustração. Não são detectados sinais de vivên-cias de gratificação com o trabalho nem de realização com ele. Não há liberdade para pensar sobre o trabalho nem para falar sobre ele. 15

Principalmente do ponto de vista da Psicodinâmica do Trabalho, não existe o reconhecimento (nem pelos pares, nem pela hierarquia), o que é essencial para tolerar o sofrimento e alcançar alguma satisfação com o trabalho. A falta de re-conhecimento gera as vivências de indignação e desvalorização, comprometendo a identidade no trabalho, em conformidade com a Psicodinâmica do Trabalho.

Os trabalhadores pagam pela instabilidade, precarização e crises no mercado; o preço das rentabilidades também é pago pelos trabalhadores, com seu corpo físico e mental, “a própria desigualdade é desigual.” Vive-se um “drama” ou para

12 ALKIMIN, Maria Aparecida. Assédio Moral as Relação de Trabalho. 2ª Edição. Curitiba: Ju-ruá, 2008. p. 45.

13 FILHO, Wilson Ramos. p. 100.14 Dejours foi estimulado em sua pesquisa sobre o poder emancipatório do trabalho por Axel Hon-

neth, que estudou o conceito crítico do trabalho, mas não o concluiu, porém, foi Honneth que conseguiu na teoria do reconhecimento um lugar para o trabalho.

15 BOUYER, Gilberto C. Contribuição da Psicodinâmica do Trabalho para o debate: “o mundo con-temporâneo do trabalho e a saúde mental do trabalhador. Revista Brasileira de Saúde Ocupacio-nal, vol. 35, nº 22, São Paulo, julho/ Dezembro, 2010. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0303-76572010000200007. Acesso em 15.08.2016.

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NOTAS SOBRE O ASSÉDIO ORgANIzACIONAL E SEUS EfEITOS DELETÉRIOS PELO OLHAR DA “CLÍNICA” DO TRABALHO

o aumento do desemprego com todos os seus efeitos ou para a retomada do cres-cimento de bens, e para o consumo desenfreado e supérfluo.16

Ao falar sobre uma política do trabalho, Dejours ressalta que seria importante pensar em uma política integral que elevasse o trabalhar, que pensasse sobre os princípios, métodos e a responsabilidade, de forma a refletir nas relações sociais. Essa política implicaria em pesquisadores, engenheiros, administradores, ofere-cendo ao trabalho o lugar que deveriam ocupar.

Sem remanejamento político porém, a decadência da sociedade se instala, ele diz: contentemo-nos em fazer refletir, não busquemos convencer. 17

3. o trAbAlho PElo olhAr dA “clínicA”

Mas afinal o que é o trabalho? Ele é um canal de dominação ou de aperfeiço-amento da personalidade?

Para Dejours, num olhar clínico, o trabalho é numa perspectiva humana o fato de trabalhar, os gestos, os saber-fazer, o engajamento do corpo, a capacidade de pensar, etc.

Para ele, o trabalho não é em primeira instância a relação salarial, é o traba-lhar, ou seja, um modo específico de engajamento da personalidade para enfren-tar uma tarefa definida por constrangimentos (materiais e sociais).18

A subjetividade faz parte da psicodinâmica do trabalho, mostra como e quan-to a s subjetividade é maltratada pelas organizações do trabalho e pelas relações de dominação. A real avaliação das patologias mentais, só surgiu em 1985-1990. A subjetividade ainda é preterida.

Para Dejours, o sofrimento, está longe de ser a consequência apenas, ele é a chegada do real para a subjetividade. Esse sofrimento se converte em exigência de superação, de trabalho para o sujeito, no ponto de partida da inteligência.

As situações do trabalho são impactadas por acontecimentos inesperados, imprevistos, etc., uma vez que sempre haverá uma brecha entre o prescrito e rea-

16 WANDELLI, Leonardo V. O direito humano e fundamental ao trabalho – Fundamentação e exi-gibilidade, LTR, São Paulo, 2012, p. 184..

17 DEJOURS, Christophe, Op. Cit. p. 206.18 DEJOURS, Christophe, Op. Cit. p. 24.

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lidade. Trabalhar é vencer, preencher o hiato entre o prescrito e o efetivo. 19 Então, para a clínica, o trabalho é o que se acrescenta às prescrições para se chegar aos objetivos, ou o que o trabalhador deve acrescentar para fazer frente ao que não dá certo.

A psicodinâmica questiona como esse hiato é conhecido pelo sujeito, e a res-posta está no fato de que isso é sempre conhecido sobre a forma de fracasso, já que o real se conhece pela resistência do sujeito aos procedimentos, ao saber-fazer, à técnica. Nessa relação de sofrimento no trabalho é que o corpo realiza a experiên-cia do mundo e de si mesmo.20

O sofrimento, segundo o professor, não é uma consequência última da relação com o real, ele protege a subjetividade em busca de formas de agir sobre o mundo.

Inclusive, para Dejours, quando a subjetividade se afasta, surge a doença men-tal (dissociação psicótica). O trabalho não está, como muitas vezes se lhe atribui, limitado ao tempo físico efetivo passado na fábrica ou no escritório. O trabalho transpõe qualquer limite atribuído ao tempo de trabalhom ele mobiliza a perso-nalidade por inteiro.21

Infelizmente, a evolução sacrificou, em nome da rentabilidade, a subjetividade do trabalho, o que numa avaliação objetiva e quantitativa, levaria a observamos a individualização do sujeito, a concorrência desenfreada das pessoas, (metas, de-sempenhos, concorrência), práticas que levam a condutas desleais, e, que, segundo o autor, levam “à ruína das realizações solidárias.” 22 Isso, causa desolação, como nomina Hannah Arendt em As origens do totalitarismo.

Ou seja, remos a produtividade de um lado, mas a erosão do lugar relativo a subjetividade e a vida no trabalho, o que causa doenças mentais, suicídios, etc.

Mas não teria que ser sempre assim, pois o trabalho pode gerar não só o pior, mas o melhor, a depender da capacidade de pensar, de renovar os conceitos e das relações entre subjetividade, trabalho e ação.

Para um conceito crítico do trabalho, a idéia de que o trabalho pode ser um emancipador é controvertido. Marx pensa inversamente, para ele é um móvel de

19 DEJOURS, Christiphe. Op. Cit. p. 25.20 DEJOURS, Christiphe. Op. Cit. p. 25.21 DEJOURS, Christiphe. Op. Cit. p. 31. 22 DEJOURS, Christiphe. Op. Cit. p. 43.

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alienação. O trabalho seria uma condição imanente de todo conhecimento do mundo.23

Na visão dejouriana, se a sexualidade é uma das formas de emancipar o ser humano, ela também é responsável por trazer o ser humano à embriaguez de re-petir o que tem de pior, de, conjurar a guerra.

Ele que olha atentamente para a trajetória de Freud, comenta da teoria que o mesmo trouxe sobre as relações entre os seres humanos e o viver junto, acredi-tando que as teorias sobre o sujeito deveriam poder explicar as teorias sociais, e introduzir a sexualidade dentro das produções humanas, da cultura.

Freud estendeu sua pesquisa para os limites das instituições, para além das massas organizadas, em que o espírito individual se vai em prol do coletivo, ainda que se preservem suas qualidades intelectuais e morais. 24

Quando os sujeitos se integram em massa, ocorrem mudanças no funciona-mento psíquico de cada um, dentre as quais se destacam a eliminação da vida do espírito, o sentimento de potência, a queda nos níveis de civilização, a queda do rendimento intelectual, o exagero dos sentimentos. Isso leva a conclusão de que as massas são capazes de causar demonstrações de renúncia, de angústia social, causada pela sociedade.

O trabalho expõe o sujeito a vários tipos de risco, como doenças no caso de uma enfermeira, surdez no caso do operário de máquinas e por ai vai; essas si-tuações apresentam ligação direta com o funcionamento psíquico do indivíduo, que mesmo sentidas, demandariam estratégias de defesa que nem sempre são implementadas.

Isso infelizmente, nos leva a crer que não apenas se trabalha, mas se protege do que o trabalho pode fazer.

Assim, como, infelizmente, os instrumentos de defesa coletiva, para Dejours, parecem proteger a saúde mental, mas são poderosos condutores para a servidão voluntária e reprodução da dominação.25

Pressionados pelo medo, trabalhadores são capazes de realizar proezas para não perder o emprego, o que se chama de gestão do medo, em que se emprega duas

23 DEJOURS, Christophe. Op. Cit. p. 75.24 Dejours vai mais além e diz que o que impede as ligações da associação de se romperem é a ligação

libidinal relativa ao líder.25 DEJOURS, Christophe. Op. Cit. p. 66.

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fontes: a exploração do saber-fazer e a cooperação em busca da compatibilidade, que decorre do trabalho vivo.

Muitos mecanismos informatizados fazem com que os colegas façam questio-namentos via e-mail, fazendo com que cada vez mais se busque compatibilizar as formas de comunicação e de cooperação, se protegendo da punição.

Isso tudo faz aumentar a carga de trabalho, pois se dispersa da atividade prin-cipal para conhecer tudo que foi recebido eletronicamente, ainda mais quando as mensagens são prioritárias, isso leva às patologias de sobrecarga, medo, e levam inclusive trabalhadores a fazerem uso de remédios controlados, porém, os mes-mos continuam na mesma rotina impossível.

Com isso, surge a patologia da solidão, da desolação, já que esse sujeito não tem mais com quem contar. O trabalhador, parece estar sempre irritado em razão da sobrecarga crônica, se desentende com a família, reclama da sua impotência, experimenta a solidão. Essa cooperação maquínica destrói a convivência. 26

O contido na Declaração Universal dos Direitos do Homem, do ponto de vista da clinica do trabalho, não é real, pois o homem nasce dependente e alienado, eles nascem desiguais física e socialmente. A autoridade não resolve o escândalo da desigualdade, apenas atenua as incidências deletérias no mundo humano e no mundo social. 27

considErAçõEs

As consequências decorrentes do assédio moral para o trabalhador e relacio-nadas à sua integridade física e psíquica, não deixam dúvidas de que o assédio moral promovido pelas organizações marcam a dignidade e a personalidade do trabalhador.

A violência praticada no ambiente de trabalho, reconhecida como assédio moral, engloba o abuso de poder e a manipulação perversa que ocorre de forma pérfida e traz enormes prejuízos às vitimas.

26 DEJOURS, Christophe. Op. Cit. p. 92. 27 DEJOURS, Christophe. Op. Cit. p. 135.

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NOTAS SOBRE O ASSÉDIO ORgANIzACIONAL E SEUS EfEITOS DELETÉRIOS PELO OLHAR DA “CLÍNICA” DO TRABALHO

Tomando as lições da clinica do trabalho, entendemos que o conteúdo do tra-balho está ligado com autonomia e liberdade, e que contribui para o desenvolvi-mento da personalidade do trabalhador, pois quem trabalha não trabalha o faz para os outros mas para si.

Dessa forma, se o assédio moral das organizações é gerado com o trabalhar e tem capacidade de liquidar com o desenvolvimento da autonomia do indíviduo, muitas vezes adoecendo o trabalhador, então, ele é capaz de criar um abismo ina-tingível na personalidade do indivíduo.

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