O TRABALHO COMO MITO E COMO UTOPIA

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Es tudos deScciologia.Rcc do Prog de Pés- gtad uaçâ c cm Sociologia da UFPE. v. B . n. 1.2. p. 231-25 1 o TRABALHO COMO MITO E COMO UTOPIA Ana lía Sana Batista Resumo O p resen tea rtigo prete nde abordar , de modo critico ,a visão de Karl Marx so b re o t rabalho hu mano. Enfat iza qu e a "u topia do trabalho libe rtári o" , p resen te no pensamento d esseautor e q ue se 'encarna ' na histó ria d ando imp ul so as l ul as ope rárias duran tea modernidade capital ista, reflete um modo mítico d e co mpree nsão do trabalho a rtesana l, pr é-capit alista. O pensamento d a época modema não pod e ' acenar' com o mit o do " eterno retom o" , pois esse t ipo de procura socia lpelo passado co rrespo nd e, s egundo al guns d e se us p r óprios parâmetros analíticos, à soc iedade tradic i ona l. De modo q ue o mito d o trabalho artesa na l , co mo trabalh o l ibertário , haver á d e se r tr ansf ormado em utopia, qu eexi gira não apenas o lhar em dir ão ao futur o, mas l utar pela s ua concreção na história . Pal avra s-chave Tr abalho. A lienação. Mito. Uto pia. Sofrim ent o. WORK AS MYTlI AND AS UTOPIA Abstr act Thef o lJ ow ing anic le ai ms t o critica lJy ana lys e Kar l Marx ' s approach to hu rnan wo rk. I t sus tains that the ' utopi a of a liberati ng work ' . as it appears in hi s t hought , i. e., as the embod iment of th e impulse behind the p roletari an strugg le in capita list modemity. re flects a mythical under standing o fp re-capital i st , artisan work. Modem thought canno t o ff er this " eternal retum o fthe s arne" as a viab le possibilit y, as ii implies, accordi ng to SOme o f Ma rx's own parameters o f ana lysis , tradit i o nal socie ty . T he myth of a libertarian artisa n wo rk, therefore, is t urned imo ut opi a,which d emands not on ly look ing towards thefuture, b ut fighting f or it s mat e rializati o ninhis t o ry. 231

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Estudos de Scciologia.Rcc do Prog de Pés-gtaduaçâc cm Sociologia da UFPE. v. B. n. 1.2. p. 231-251

o TRABALHO COMO MITO E COMOUTOPIA

Analía Sana Batista

ResumoO presente artigo prete nde abordar, de modo critico , a visão de Karl Marxsobre o trabalho humano. Enfatiza que a "u topia do trabalho libertário" ,presente no pensamento desse autor e que se 'encarna' na história dandoimpulso as lulas operárias durante a modernidade capital ista, reflete ummodo mítico de compreensão do trabalho artesana l, pré-capitalista. Opensamento da época modema não pode ' acenar' com o mito do "eternoretomo", pois esse tipo de procura social pelo passado corresponde,segundo alguns de seus próprios parâmetros analíticos, à sociedadetradiciona l. De modo que o mito do trabalho artesanal, como trabalholibertário, haverá de ser transformado em utopia, que exigira não apenasolhar em direção ao futuro, mas lutar pela sua concreção na história .

Palavras-chaveTrabalho. Alienação. Mito. Utop ia. Sofrimento.

WORK AS MYTlI AND AS UTOPIA

AbstractThe folJowing anic le aims to criticalJy analyse Karl Marx ' s approach tohurnan work. It sustains that the ' utopia of a liberating work ' . as it appearsin his thought, i.e., as the embod iment of the impulse behind theproletarian strugg le in capitalist modemity. reflects a mythicalunderstanding of pre-capital ist, artisan work. Modem thought canno t offerthis "eternal retum of the sarne" as a viable possibility, as ii implies,according to SOme of Marx' s own parameters of analysis , traditionalsociety. The myth of a libertarian artisan work, therefore, is turned imoutopia, which demands not only looking towards the future, but fightingfor its materialization in history.

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BATJ5T.... , i\r1alia Sena

Keywo rdsWork. AJienation. Myth. Utopia. Suffering.

1 Int rodu çãoNa Europa, a constituição do modo de produção capitalista

'ac enou ' com a paulatina destruição do trabalho da maneira como erarealizado durante a época medieval, quando os mestres artesàos e oscamponeses, estes últimos denominados como "servos da gleba", eram osatores centrais da produção. Durante a expansão capitalista, a fumaçadaquelas fábricas que surgiam em conflito com as corporações de oficioteria substituído, paulatinamente, a parcimónia da oficina artesanal, aomesmo tempo em que desafiava as atividades tradicionalmente ritmadaspela natureza. O 'gesto' capitalista na produção foi interpretado como o"cúmulo da alienação", significando a expropriação dos meios deprodução, do controle do processo produtivo e o estranhamento dotrabalhador com relação à sua própria atividade.

A interpretação dessa época histórica estabeleceu uma linhadivisória entre o passado, observado como artesanal e agríco la, e opresente, considerado fabril c urbano. Mas, o passado acabou servindo debase para uma importante construção utópica. De fato, o trabalho dospobres nas fábricas, analisado e vivido pelos próprios trabalhadores comopropiciador de uma situação de alienação, foi contrastado com um passadoque, do ponto de vista da consideração da relação entre o homem c a suaatividadc de trabalho, teria sido bem melhor. Assim. a "utopia do trabalholibert ário", construída no bojo da modernidade, e que está presente nopensamento de K. Marx, afirma como emancipatórias algumas dascaracterísticas atribuídas ao trabalho durante a etapa pré- capitalista. sendopossível afirmar que o trabalho pré-capitalista ofereceu a moldura para aconstrução marxista dessa utopia.

Paradoxalmente, munidos desse modo de compreensão do real, oshomens se lançarão a procurar. no futuro, e por meio das intrincadas lutassociais, algumas das condições que tinham sido observadas no trabalho dosmestres de oficina el ou dos trabalhadores do campo. Nos 'bastidores ' da"utopia do trabalho libertário" é passivei descobrir a inquietadora presençado desejo de retomar a um passado considerado como mais feliz, isto é, do"mito do eterno retomo" . O mito do trabalho artesanal e/ou agrícola como

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Ô traba lho como rmto c como utopia

trabalho libertário será transformado em utopia. que exigirá. dostrabalhadores, não apenas olhar em direçâo ao futuro, mas também lutarpela sua manifestação/repetição na história .

Com base nos antecedentes apresentados. o presente artigo sepropõe a desenvolve r uma análise crítica da interpretação de K. Marx sobreo trabalho dos homens.

2 O miro contra a dorO mito ' lembra' a ordem do simbólico. Considera-se que representa

o conteúdo ideac ional das sociedades pré-modernas. Trat a-se decomunidades portadoras de um universo simbólico semeado de umad',>ers\da.de de roodetos ou que, remetenoo a. uma. origemsagrada ou sobrenatura l. interpretam e ressignificam o comportamentosocial. Cada um dos atos realizados por esses conglomerados humanosevoca a repet ição de um gesto ' autorizado' pelos ancestrais, heróis/deusesque ganham o status do sobrenatural.

Corno afirma Eliade (1992, p.12), "para o homem das sociedadesarcaicas e tradicionais. os modelos para suas instituições e as normas parasuas várias categorias de comportamento lhe teriam sido ' revelados' nocomeço dos tempos, e conseqüentemente, os observa como tendo umaorigem sobre-humana e ' transcendental" ." Para esse homem, apenas osfatos sociais ' comandados' pelos modelos ou arquétipos constituem arealidade significativa. Essa realidade evocará sempre o passado.contribuindo dessa forma para a 'abolição' do tempo histórico, já queremete a um tempo mítico que será eternamente reapresentado eressignificado no espaço social do presente.

Isso também significa que esses homens 'pretéritos ' ficavamprisioneiros das confabulações da mente. espelhadas em liamesemaranhados de mitos e figuras oníricas que ' transmitiam' suas mensagensdivinas aos mortais, permitindo-lhes viver num tempo a-históricocaracterizado pela repetição fenoménica e numa dimensão simbólica queagiria como um amortecedor privilegiado da dor.

No livro O mal-estar 110 civilízoçào. Freud expõe a existência detr ês formas de sofr imento na vida dos individuas: o provocado porcatástrofes naturais. o produzido pela obsolescência do corpo e pela doençac o causado pelos "o utros" seres da species . Para Freud, as ilusões geradas

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BATlSTA. Analia SOfia

num espaço mental não submetido ao princípio de realidade agiriam comomecanismos de defesa contra o sofrimento que a historia é capaz deprovocar. Que seja o "mito do eterno retomo", caracterizado pela crençanuma origem feliz, às vezes, em alguma 'geografia' exótica, origem queserá constantemente evocada em face das experiências e vivênciasnegativas para o coletivo e que contribuirá para a construção de umapercepção do tempo em uma dimensão cíclica, pois deve permitir retomara um passado almejado , O mito remete a uma subjetividade do tempocalcada na circularidade e sustentada pela crença num passado que"sempre é melhor"que o presente e ao qual é preciso retornar.

Para Eliade (1992). o homem das sociedades tradicionais toma-seautônomo por meio da produção simbólica materia lizada na construçãomítica, que lhe permite libertar-se do impasse de uma historia vinculada aosofrimento. Essa autonomia é produto do significado sagrado e fundacionalque outorga a uma parte importante dos fatos da vida cotidiana. O mito, aoproduzir um significado sagrado para os falos da vida do colerivo e invocarum passado mais ou menos glorioso, comparece como um modo coletivode suportar o sofrimento que a historia é capaz de provocar , Dessa forma. aprodução simbólica operaria na economia dos sofrimentos humanos.

Em artigo denom inando '0 tema dos três escrinics", Freud relataque os mitos "foram projctados para os céus após terem surgido alhures,sob condições puramente humanas" , Para o autor. "o homem faz uso desua atividade imaginativa a fim de satisfazer os desejos que a realidade nãosatisfaz". Quando o desejo é confron tado com o princípio de realidade quefrustra sua realização, o homem distorce a realidade criando mitos. com ointuito de experimentar o sentimento de prazer que será liberado nomomento da satisfação do desejo .

Para Eliade. o homem toma-se autônomo com base na suacapacidade de produção simbólica mitológica, que lhe permite, por meioda ressignificação dos fatos. libertar-se do so frimento que a historiaprovoca . Assim, é possível pensar que a criação mito lógica representa arebel ião do homem contra o reconhecimento de uma realidade que operturba. ou que lhe impede a satisfação de um desejo, conduzindo-o aosofrimento.

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Ó 1TlIbalho corno mito e como ulop ia

3 A utopia cont ra a dorPara Freud, a autonomia do indivíduo está associada à con sciência.

A part ir de um esforço analítico mediado pelo psicanalista, que gerainterpretações sobre a trajetória biográfi ca do paciente, este se apropri a deforma autônoma desses modos de compreensào da própria vida , iniciando,assim, um caminho de libertação.

Também para K. Marx os trabalhadores das fábricas deviamtranscender sua condi ção de alienação sob o capitalismo, transformando-senum sujeito coletivo aut ônomo. Isso exigi ria um ato de consci entizaçãcassociad o à práxi s social, que , ao tirá-los do impasse de pertencer a umaclasse por mera classificação social, ou por ocupar um lugar objetivo noespaço da produção, os colocaria numa situação de assumir sua perten ça àclasse, inaugurando, com essa tomada de consciência, um gesto supremode auto-compreensão .

O sujeito de K. Marx se desfa z das ' cort inas de fumaça' daincomp reensão pela sua experiência de luta num conflito c1assista que oco loca perant e o impa sse de uma real idade que lhe ex ige agir. Oconhecimento do real, comandando pela compreensão do movimentohistórico como rumo de emancipação/libertação, molda e forta lece suaconvicção com relação a que a história dos homens deve ser comandadapelos homens e não "obstruída pelos deuses" .

Na modernidade pensa-se na possibil idade de uma soc iedadecaracterizada pela ausência do sofrimento. Não raro, nas análises, osofrimento aparece signi ficado na dominação e opressão dos homens peloshomens. A opressão/dominação imed iatamente anterior à expansão econsolidação do capitalismo comparece como servidão, c bem antes, comoescravidão. Os ' vencedores' da época moderna (burguesia) surgem com odiscurso da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Discurso esse queremete a uma concepção dos relacionamentos sociais caracte rizados pelaruptura das cadeias da servid ão. à const rução de um principio de iden tidadecomum para os homens enquanto cidadãos e, finalmente, à produção deuma sociedade que seria fraterna. Tenta-se, pois, discursivamente, sinalizaruma nova época na qual o sofrimento humano será abolido e não maisocultado/tolerado como o era no passado , com base na sua ressign ificaçãomitológica e/ou religiosa .

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A sociedade modema. que incentiva o desenvolvimento dopensamento cientifico. se organizará para atacar as três fontes dosofrimento humano apontadas por Freud (sofrimento provocado porcatástrofes naturais, pela obsolescência do corpo e pela doença e pelos"outros" seres da species ). Desse modo, a época modema pode sercons iderada como o momento histórico em que o sofrimento colctivodeixará de ser mitologizado. já que os homens decidirão enfrentá-lo.

No discurso dos liberais e dos socialistas. a luta contra o sofrimentose metamorfoseia na busca ativa da felicidade. Para os primeiros. afelicidade dos homens viria de uma organização do social baseada numavisão atômica dos individues, que procurarão seus próprios caminhos.impelidos pelo desejo de progresso. Para os outros, a felicidade doshomens fincaria numa sociedade onde a dominação e a opressão estariamausentes.

A modernidade conseg ue trazer à discussão a dor que os homenssão capazes de provocar nos próprios homens. As ciênc ias sociais iniciarãouma submersão nos relacionamentos sociais e na alma humana. Tudo seráanalisado nessa procura obsessiva das fontes do mal. Darwin. com suateoria da evolução das species, acabaria oferecendo uma justi ficativa para oexercício impiedoso da dominação. A ideologia do "darwinismo social"estabeleceu um nexo entre certos impulsos atribuídos à natureza humana euma dinâmica económica caracterizada pela brutal concorrência do capital.Se, de um lado. certos aspectos da natureza humana eram obse rvados comoalgo factível c desejável de ser submetido a controle. de outro, aquelesimpulsos identificados como propulsores da evolução foram analisadoscomo os motores do progresso. De modo que alguns conhecimentos. maisque constituir degraus na luta contra o sofrimento dos homens. vieram parajustificar essa dor intcrsubjetivamcnte infligida, enfatizando acientificidade das descobertas que, em parte, tomavam o 'mal'imprescindíve l para o desenvolvimento das sociedades .

Mas também a sociedade modema tentou enfrentar os três tipos desofrimento mencionados por Freud utilizando o arsenal cientifico àdisposição. Hoje, por exemplo. monitoram-se passiveis catástrofesnaturais. embora nâo possam ser sempre evitadas. A vida humana podeprolongar-se. A obsolescência do corpo é administrada: partes podem sertrocadas. as rugas podem ser eliminadas. os músculos malhados. enfim. épassivei a defesa (pelo menos por algum tempo) em face do sofrimento

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provocado pela deca dência fisica. Finalmente. talvez o homem tenhaconseguido menos sucesso em evitar o so frimento que os "outros"provocam.

O homem moderno poderá ser pensado como o suje ito que serebela cm face dos amort ecedores mitológicos do sofrimento humano. Namodernidade. pretende-se a destruição das velhas signi ficações,consideradas 'man tos ' destinados a ocultar uma realidade que precisa serconhecida cien tificamen te, para poder lançar as sociedades ao futuro .Trata-se nào apenas de analisar a história, mas de prometer construi-la deum outro modo. para poder superar o sofrimento.

Na moderni dade, impõe-se a necessidad e de expandir o espaçosoc ial do profano . que se tomará hegcrnônico numa sociedade ob rigada aoprogresso. Os traços mitológicos, presentes nas socialidades, devem serdestruidos. considerados ressaibos da tradiçào obscurantista que minou aEuropa antes do que se considera como "o destel ho orientador" da ciênc iae da indústria.

O homem da sociedade modema será lido como um ser autónomo,na medid a em que se des faz das cadeias do sagra do submetido a constanterepetição e deixa de abo lir o tempo histórico. A "negação da histó ria" setransformará na sua afirmação e o sofrimento provocado pelos "o utros"poderá ser talvez superado num cam inho de emancipação . A consciê ncia ea liberdade serão conside radas as dimensões fundamen tais desse indivíduomoderno. Elas também serão perseguidas nas lutas sociais e individuaispela obtenção do autoconhecimento e da autocompreensào.

Desse modo. a razão humana desencantadora do mundo emergecorno o mito que pretende inaugurar a busca de uma verdade que não serámais revelada ou mitológica. Essa verdade pretende ser o ' outro' do mito,porém. acaba se const ituindo a partir de um laço idcnti tário. Na mão dosracionalistas. a razão clama pela fé. A fé torna-se necessária quando aprópria razão. interpe lando o real. destrói a possibilidade da crença . A fê.que é prod uto da razão. é também lima necessidade para sua existência.

O indivíduo moderno. guiado pela bússola de uma razào c ientificainteressada em ocu ltar sua dimensão axiológica. e que se afirma como umapoderosa ferramenta orientada ao desencantamento do mundo, acabaressignificando e. sobretudo. universalizando o mito . que ' cont amina' aprópria razão cientifi ca. dest inaJa. paradoxalmente, a desmoralizá-lo e adestrui -lo. Mas, a modern idade, 1ll 11 11t\ ma is que destruir o mito. haverá de

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ressignifi cá-lo. Nessa ressignificação poderá ainda invocar com veemênciao passado, situando-o agora com base na percepção/concepção linear dotempo, num lugar denominado "futuro",

Na medida em que a sociedade abandona as crenças sobre suasorigens miticas/sagradas, e o 'manto' do profano a 'a rrasta' para aevolução histórica, poderá surgir uma utopia soc ial, que será perseguida domesmo modo que a satisfação do desejo c da ilusão.

Essa utopia necessitara "do combustível da fúri a e do ódio que osofrimento histórico dos homens e capaz de acumular em cada novageração" , mobili zando-os para buscar a diminuição desse sofrimento. Porisso, "a classe traba lhadora não devera ser a redentora das gerações futuras,pois nessa projeçâo a classe desaprende tanto o ódio quanto o espirito desacrificio. Pois ambos Se alimentam da imagem dos antepassadosoprimidos, não do ideal do anjo liberto" (BENJAMIN, 1991, p. 162).

Para Mariategui (1982, p. 412),

la razón ha extirpado dei alma de la civilizaciónburguesa los resid uos de sus antiguos mitos. EIhomb re occidental ha colocado, durante algúntiempo, en eI retablo de los dioses muertos, a laRazón y a la Ciencia. Pero ni la razón ni la cienciapueden satis facer toda la necesidad de infinito quehay cn eI homb re. La propia Razón se ha encargadode demostrar a los hombres que ella no basta. Queúnic amente el Mito posee la preciosa virtud dellenar su yo profundo. [...) el homb re es un animalmetafisico. No se vive fecund amente sin unaconcepción metafisica de la vida. EI mito mueve aihombre en la historia. Sin un mito la existencia deihombre no tiene ningún sentido histórico. Lahistoria la bacen los hombres poseidos eiluminados por una creencia superior, por unaesperanza super-humana.

A força do mito não pode ser eliminada do imaginário social daespécie. O Mito retoma ressignificando uma diversidade de situações ,permitindo que a infelicidade social encontre algum tipo de consolo. lsto

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significa que , apesar da prepotênci a desmistificadora da época modema, omito permanecerá. O mito. por ser uma pcsslvel defesa do coletivo em facedo so frimento histórico, reaparecerá ern conteúdos utópicos que agirãocomo poderosas forças capazes de outorgar impulso à mudança social. É acrença na possibilidade de mudar a soc iedade que agirá agora comoamortecedo r privilegiado da dor.

4 A época do capita lismo

K. Marx mostra que. a part ir do século XIV, o sistema feudalfenecia e a decadência de suas formas "puras" se alastrava pela Europa.Guerra s feudai s/tribais empobreciam a pobreza. Uma incipiente noção derentabilidade estava presente nos donos dos feudos, levando-os a empuxaros servo s da gleba além dos confms das terras, para substuui-los, cada vezmais. por "homens pastori s" dedicados à observância de rebanhos deabundante lã. Uma igreja atemori zada e atemorizante era destituida de seupapel de comando e submissão dos povos, e suas terras eram espalhadas narevenda, arrastando as famílias camponesas para a mendicância ou para aindigência .

Mas. de fonna paralela aos sinais que anunciavam o fim de umaépoca. erguiam-se novas procuras. Os oceanos desafiavam a "ansiedade defuturo" dos homens. A terra era um horizonte de sentido inexplorado.Ambição e abertura ao mundo haveriam de promover violentos encontrosculturais. Às vezes os mortais eram confundidos com deuses. O incrementodo comércio uhramarino perm itiu uma acumulação primitiva de capi tal,sustentada pela possib ilidade da escassez e da rapina. Do "a lém do mar"(política colonialista) chegou a força propulsora para a instauração de umnovo modo de produção que influenciaria na composição de umamistificada imagem sobre o trabalho.

As forças do novo impulso económico foram, cada vez mais,autorizando o desenvolvimento de formas diferentes de consciência social.Na modernidade, desa fiavam-se as prescrições estabelecidas pelosdominantes. A noção de verdade acordaria de um letargo medieval que afazia nascer "das entranhas dos discursos" dos seguidores (discí pulos) deuma "errática figura que pendia de um crucifixo". Essa verdade emergiacomo revelação que apenas um grupo de homens poderia possuir eespalhar. Escolhidos pelas "soezes circunstâncias" para a contemplação. o

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martírio e o celibato. o eram também para o exerctcto mais ou menosperverso do poder , Mas os "homens extraordinários" (ilumini stas) não seintimidavam com as limitações impostas aos homens pelos homens.Exploradores de cavernas platónicas esforçavam-se por abandonar omundo ideal e proclamavam a urgência da observação do real.

Inicialmente, de uma forma ou de outra, pagaram caro por isso.Mas eram. metaforicamente falando, os "anjos que anunciavam oapocalipse". De modo que esses homens treinados na "a rte dadesconfiança" propunham um novo status para a verdade, que a partir daíseria primo rdialmente cientifica.

A modernidade, que pode ser compreendida como instituidora deuma nova forma de consciência social, "corroía o cérebro dos homens",levando-os a uma pretensão de controle da natureza, inclusive da própria.Cada vez menos os homens pareciam destinados a aceitar seu 'destino' , Aconsciência sobre a posse de um instrumento denomi nado ' razão' haveriade tomá-los temerários e menos dispostos a aceitação. Procuraram auto-anali sar-se esquart ejando corpos e mentes,

4.1. O traba lho dos home ns

Numa bela passagem de sua obra. Benjamin (1991, P: 156)expressa que:

para o materialista histórico trata-se de fixar umaimagem do passado como ela inesperad amente seart icula para o sujeito histórico num instante de pen go.O perigo ameaça tanto os componentes da tradiçãoquanto os seus receptores. A cada época é precisosempre de novo ten tar o que foi transmitido docon formismo que ameaça subjugá-la. Por isso, Messiasnão vem apenas como o Sal vador; ele vem como ovencedor do anticristo. Captar no pretéri to a centelha daesperança só é dado ao historiador que es tiver convictodo seguinte: se o inimigo vencer, nem mesmo os monosestarão a salvo dele. E esse inimigo não parou devenl;er.

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o materialismo histórico e dialético é port ador de uma escolha nacompreensão do social. destinada a identificar o momento da emancipaçãona análise do acontecer histórico. Entre uma variedade de fenômenos,prima fade, caóticos. ' recorta' aquele deste lho de transformação.compreendendo a história como o desenrolar do conflito soc ial. Sob ocapital ismo. o momento de emancipação dos trabalhadores significa oabandono. com base na práxis, da alienação politi ca que está presente nomundo da produção . As lutas sociais conduzem à conscientização e àconst rução da identidade de classe. Esse processo recuperará os átomos-indivíduo s tidos pelos que mandam (e auto-indentiflcados ) como pobres emiseráveis. reun indo-os num grupo de pertença com interesses di ferente sdos outros grupos. O momento de produção da consciência implica oabandono de uma situação de heteronomia e a possib ilidade de autonomiado sujeito co letivo .

O traba lho human o começou a ser ressignificado no otimistacontexto da modernidade. Partindo da realidad e do trabalho, tal comoacon tecia sob o " impacto triturado r" da revolução industrial no sistema defábrica, c que fora denominado de "trabalho alienado", um proficuodescend ente da burguesia. chamado Karl Marx, 'contaminado ' pelafilosofi a iluminista que fora vitoriosa durante o século XVIII. estabeleceuum nexo quase indestrutível entre o trabalho, a consciência e a autonom iado sujeito. Buscava demonstrar tudo o que o trabalho alienado sob osistema de produção capitalista tinha expropriado ao homem, deixando-onum estado de natureza animal que contrastava com sua pertença à espéciehumana.

A utopia do trabalho libertário, presente no pensamento de K.Marx , funda-se numa concepção filosófica de homem derivada doIluminismo, que considera o homem moderno dotado de consciência e deliberdade. A consciência é entendida como auto-compreensão ecompreensào desmistificada do mundo, a liberdade. como a expre ssão daautonomia do sujeito. Para K. Marx (1983, p. 156), "a vida produt iva é avida do gênero. É a vida engendradora da vida. No tipo de atividade vitaljaz o caráter inteiro de uma specíes, o seu caráter genérico e a atividadeconsciente livre é o carárer genérico do homem". Ou. num outro trecho "Ohomem faz de sua atividade vital mesma um objeto de seu querer e de suaconsciência."

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BATISTA, Malia Sofia

Marx distinguirá entre a atividade de trabalho dirigida à satisfaçãode necessidades fisicas e a atividade de trabalho que se realiza livre dessasnecessidades, E. mais ainda, afirma que o homem só produz quando seliberta das necessidades tisicas. A produt ividade do homem aparece ass imcomo para "além da necessidade", pondo em evidência uma espécie de"pulsão por gerar", Para o autor. o trabalho realmente produtivo seráaquele finalmente liberto da necess idade de realizá-lo para a satisfação dasnecessidades de reprodução da vida humana. Ele afirma que é "claro que oanima l também produz [...l. só que produz apenas o que precisaimediatamente para si c o seu filhote; produz unilateralmente. produzapenas sob o dom ínio da necessidade tisica imedi ata, ao passo que ohomem produz mesmo livre da necessidade tisica c só produ z.verdadei ramente, sendo livre da mesma".

Isso significa que a verdadeira humanidade do homem se revela nomomento em que consegue libertar-se das necessidades que u equipa ram àsoutras species do reino animal. O homem só produz quando se liberta dasmisérias e necess idades de sua natureza animal; quando produz sem atirania dos inst intos vitais ou quando estes instintos foram finalmentesatisfeitos ou submetidos a um controle que os tomou incapazes dedirecionar o processo de produção para sua própria satis fação .

No pensamento de K. Marx, a próp ria atividadc de trabalho,concebida como unidade da concepção e da exec ução , foi objeto de umaanálise que a decompôs em suas partes significativas, partes que se"espalhadas ao vento" (divisão social do trabalho), tal como o fez osistema capitalista. haveriam de "puxar eternamente" para voltar a reunir-se. Cada parte necessariamente exp ressaria uma polaridad e nostálgica daoutra. Tem-se, assim, uma forma de compreensão do trabalho dos homenscomo atividade que se expressa num plano e numa ação. Em umadimensão intelectual e em uma outra manual. Momentos fartos deinterações e de movimentos pendulares, destinados à objctivação de ummundo enfaticamente humano, O controle sobre o processo de trabalho, aposse das ferramen tas e o orgulho pelo trabalho realizado completam ocenário de compreensão de uma atividade destinada a produzir. reproduzirc transformar homens e geografias.

Pode-se afirmar que " 0 manto sagrado da razão" caiu sobre otrabalho no mesmo instante em que o fez a "maldição" das mercadorias . Otrabalho sob o capitalismo viria a ser denunciado como um evento

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Ó lrabalho t omo mito e tomo ulopia

heter ônomo, devido às prescrições de homens decididos a submetê-lo aobjctivos, modos, ritmos e cadências interesseiras.

O trabalh o concebido como atividade que ocorre, no geral, em umcontexto de heteronomia. permitirá também a produção dos denominados"bens culturais", Bens que , segundo Benjamin (1991, p. 157), "semexceçãc (têm] uma origem que ele (o materialista histórico) não poderememorar sem horror", pois "devem sua existência não só aos esforços degrandes gênios que os produziram, mas também à anónima serv idão dosseus contemporâneos . Não há documento de cultura que não seja aomesmo tempo um documento da barbárie."

O trab alho sob o capitalismo, observado como atividadehetcrônoma. isto c, claudicante de consciência e de autonomia, terá queresponder pe la satisfação das necessidades do sistema capitalista (valor detroca) e pe la satis fação das necessidades tisicas dos trabalh adores (valor deuso) .

Entende-se que aqueles cenários de atividades de traba lho conti dasnas amuralhadas e aprazíveis eidades medievais e nos verdes vales doentorno foram corrompidos pelo dese nvolvimen to de um novo modo deprodução cujos interesses e desejos seriam puxados pela mercadoria, A' negação' do trabalho arte sanal e agrícola sob o capitalismo teria sido oprimeiro gesto que permitiu uma representação soc ial esse ncialista sob re otraba lho humano, baseada em algumas das caracterís ticas do trabalhoobserv adas nas sociedades pré-capitalistas. Em sua essência, o trabalho foirepresentado como "o outro" da alienação que o presente construía. isto é.o trabalho, considerado como a atividade própr ia dos homens da species,foi adquirindo, cada vez mais, o significado de liberdade. consc iência eautonomia.

O passado pré-capital ista, verdade ou ficção, ou uma mistura deambos , tomou-se uma referência para entender a mudança histórica. Oagr icult or e o artesão se metamorfosearão, devido ii. força dessa mudança.nos sujos e suados trabalhadores das fábricas . Foi a produção capi talista.com sua ambição de submeter a disciplinamento e controle a mente e ocorpo dos homens. que nos fez conhecer e recon hecer as bênçãos dotrabalho (liberdad e e autonomia) e a maldição do antitrabalho (alienaçãodo traba lho) , Nesse contexto, o trabalho do camponês ritmado pelanatureza e o cadenciado trabalho do mestre artesão colaborarão para aprodução de um profi cuo mito sobre o trabalh o humano.

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BA11S1A, Analia Seria

Nos Manuscritos económico-filosóficos. Marx afirma que otrabalho tem suas próprias necessidades. tanto é que ele preci sa de meiosde vida. de objetos sobre os quais possa se efetivar; a natureza é o meio devida do trabalho tanto quanto a natureza oferece os meios de subsistênciafisica do trabalhador. O homem sobrevive da natureza inorgânica. igualque o animal, mas o homem é mais universal que o animal na medida emque habita, como espécie, a terra toda. Por isso, o âmbito da naturezainorgânica da qual vive é o universo. Marx traça um paralelo entre anatureza inorgânica que é universal e o próprio homem. Para Marx. auniversalidade do homem se deve a que ele faz da natureza inteira(universal) seu corpo inorgânico. A natureza inorgânica é a matéria. oobjeto e o instrumento de sua atividade,

De modo que o homem possui dois corpos, um orgânico e outroinorgânico. este último é a natureza na medida em que ela nào é corpohumano. A vida tisica e mental do homem está interligada à natureza, istoé, consigo mesma , porque o homem também é parte da natureza. O homemé natureza mas tem um corpo orgânico que o distingue da natureza e umcorpo inorgânico que o identifica com a natureza (contrad ição eidentidade).

A seguir. três situações diferentes serão discutidas com o intuito desintetizar a visão de K. Marx sobre o trabalho humano : as "necessidades dosistema capitalista"; as "necessidades humanas" ligadas à subsistência. àsquais estamos submetidos assim como as outras espécies; e a produçãohumana não ligada à subsistência stricto sellSlI . ou seja. ao fisico/orgãnico.

E possível observar que, para Marx, o homem torna-se produtivoquando consegue abandonar o "reino da necessidade". Sob o capita lismo,essa possibilidade vê-se restringida devido ao objetivo que comanda aprodução e que permite a reprodução ampliada do sistema: a produção dosvalores de troca. Na luta "contra o capital" o homem precisa reconqui star oobjetivo da produção humana que é a capacidade de satisfazer asnecessidades de reprodu ção da spec íes, isto é. de produzir valores de uso.Seguindo Marx. esse seria o caminho para libertar o trabalho das amarrasdo capital.

Arendt mostra que. na antiguidade clássica, a atividade de trabalhoque permitia a mera reprodução da vida era considerada uma atividademenor , que devia ser realizada pelos escravos, ficando os homen s

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Ó trabalho como mito C! tomo utopia

considerados livres prontos para a reali zação de outras atividades maiselevadas. condizentes com sua pertença à species humana.

Na modernidade. o trabalho como atividade que possibilita asatisfação das necess idades dos homens, ou, como diz Marx, a produção devalores de uso. aparece primeiro com um valor positivo, na medida em quese contrapõe ao trabalho alienado direcionado pelos objetivos , tempos ecadências do sistema capitalista.

Inicialmente. o capitalismo limitou a possibilidade de satisfação dasnecessidades que permiti am a reprodução tisica da species . E necessáriolembrar. por exemplo. as epidemias de fome registradas durante arevolução industrial inglesa. O capitalismo acabou transformando o elãprodutivo humano num modo de produzir e reproduzir mercadoriasdestinadas a dinamizar a troca c a criar e recriar necessidades humanasconstantemente ampliadas. Esta necessidade imperiosa do sistemaeconômico acabo u tomando secundário o fim também premente dereprodução da vida da espécie. A satisfação das necessidades do sistema ea satisfação das necessidades humanas vitais nem sempre exigem osmesmos es forços e orientações. Não se perdoa que míngüe a vitalidade dosistema. A vitalidade dos homens pode ser sacrificada .

A análise marxista em parte atrelou a discussão sobre o trabalhohumano a um problema de esco lha teleológica. Trabalhar para produzirvalores de troca denunciaria a presença da alienação do trabalho. Já aprodução de valores de uso retrataria simplesmente uma atividade detrabalho destinada à satisfação das necessidades humanas. Mas. tanto emum caso como em outro, a atividade de trabalho não consegue abandona r oterritório das necessidades de reprodução (dos homen s e do sistema).

Para Marx, o trabalho humano é atividade comandada por um planoe que se expressa numa ação. E unidade de planejamento e de execução.que demanda autonomia e controle sobre o objetivo, os modos operató rios,os ritmos e cadências. A alienação do trabalho sob o capitalismo resulta naexpropriação dos cont roles exercidos pelo trabalhador e na sua recolocaçãonas mãos dos capitalistas, no marco de um processo de trabalho que serádefinido a partir da subsunção formal e real do trabalho no capital.

A heresia consagra-se como parte de um processo expropriador quetira das mãos do coletivo a atividade de trabalho para colocá-Ia nas mãosdos capitalistas privados. Esse movimento indica o rumo de uma atividadeeconômica dirigida à produção de valores de troca que irão tomando

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BATISTA, Allalia Seria

alienado o processo de produção de valores de uso destinados a satisfazeras necessidades humanas. Isto significa que Marx mostra preo cupação como fato dos homens terem sido alienados de sua capacidade de gerar va loresde uso, consagrando sua energia produt iva à geração de valores de trocaque sustentarão a vida do sistema económico.

Mas, no marco da produção capita lista, no mesmo momento em queo homem produz valores de troca, sob o comando e as prescrições dos' outros' , gera a possibilidade de sua própria sobrevivência. Isto se lhe épermiti do part icipar desse ' festim' como membro integrado da socied adeda produção e do consumo. Pois poderá acontece r de ele ficar fora daordem da economia e da possibilidade de exp loração, com o queexperimentará a frustração de não poder satisfazer suas nece ssidades vitais.

Para Marx, a soc ialização dos meios de produção e subsistência,quando da passagem do capitalismo para o soc ialismo, abriria apossibilidade de quebrar a alienação do traba lho, devolvendo o controle doprocesso prod utivo aos trabalhadores. O trabalho destinado à produção devalores de uso viria a tomar o lugar do trabalho destinado à produção dosvalores de troca. O homem ficaria ass im atrelado ao mundo dasnecessidades e o habitat do homem seria orientado pelo objet ivo dareprodução da species em seu mais alto grau de satis fação das necessidadesprementes dos homens.

A retomada do controle sobre o trabalho e o processo de trabalhopelos trabalhadores anuncia , para Marx, que eles definirão o objetivo daprodução, que comanda rão as formas de cooperação. que se reapropriarâcdo que lhes foi tirado pela história. Constituirá esta, pois, a ante-sa la para arealização de um trabalho libertado finalmente da satis fação dasnecessidades de reprodução?

Para Marx o homem produz para satisfazer suas necessidadestisicas, mas o homem que realmente produz e que consegue objetivar omundo humano é aquele que se libertou do reino da necessidade. Alibertação do reino da necessidade é preced ida pela subsunção do trabalhono capital, etapa necessária na construção de condições objetivas quepossibi litarão a construção de uma soc iedade que permitirá que os homensdediquem o mínimo do tempo de suas vidas à atividade de trabalhodest inada à geração de valores de uso, libertando-os para a realização deuma diversidade de atividades.

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Ó trabalho como mito e como ulOJIia

Nos Manuscritos económico-filos óficos Marx considera a atividadede trabalho de produção como superior à atividade de trabalho destinada àsatisfação das necessidades humanas. Mas na análise do capitalismo, comopor exemplo em .A chamada acumulação primiti va de capital' , reduz aanálise sobre o trabalho ao problema da produção de valores de uso e devalores de troca e, sobretudo, à problemática do cont role sobre o processode trabalho, o qual permitiria o comando obreiro da produção dos valoresde uso.

O redirccionamento dos objetivos da produção capitalista exigiriaevidentemente a expropriação dos meios de produção e subsis tência, com aretomada obreira do controle sobre todo o processo de trabalho. Mas ostrabalhadores historicamente têm lutado pela reapropriação do controle doprocesso produtivo em sociedades caracterizadas pela propriedade privadacapitalista. As lutas dos trabalhadores têm se encaminhado ou a conservaro comando da produção, como na etapa pré-taylorista nos Estados Unidos ,ou a brigar no espaço da produção pela retomada do controle sobre otrabalho ou para impedir o aprofundamento da alienação no marco doprocesso de subsunção do trabalho no capital.

Os objetivos da produção capitalista, que orientam a vida humana ,habitam como desejos a mente dos homens. Os homens lutam para selibertar das prescrições dos outros no momento de realização dasatividades destinadas à reprodução da existência e dos valores de troca.Tentam recuperar o controle sobre suas atividades, buscando superar, dessemodo. um nível de alienação.

A utopia do trabalho libertário, que tem sustentado suas lutas. acabaexercendo o papel do mito que constr ói inverdades que tornam tolerável osofrimento histórico. Evidentemente, maior controle sobre o processo detrabalho signi ficará apenas fugir das prescrições dos outros, mas a grandeprescrição, aquela que acabou afogando a modernidade caracterizada pelosvalores emancipatórios, no capitalismo, permanecerá assim mesmointocada .

O mito que se instaura sobre a crença de urna atividade concebidacomo libertadora e significadora denuncia a permanência da crença numtempo cíclico, num passadofatividade de trabalho que é invocado comoeterno retomo. Essa representação mítica/cíclica do tempo é a forçasubjetiva que impul sionará as lutas contra o antitrabalho. A crença napossibilidade de ' regressar' a uma situação de trabalho libertadora funda a

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BATISTA. Analia San a

origem mítica do trabalho. O traba lho artesa nal e o traba lho rural de umtrabalhador concebido como seu próprio palrão ficaram espelhando umaperda. A perda. a angús tia e a nostalgia pela perda contribuíram para aprodução de um mito sobre a atividade de trabalho.

Vê-se assim, como já notara Arendt, que a atívidade detrabalho/labor destinada a garanti r a sobrevivência humana com base naposse dos instrumentos de trabalho e do saber-fazer tinha para Marx umvalor positivo. O valor negativo da atividade de trabalho aparece em Marxno momento em que a atividade de trabalho/labor é tirada de seu letargo deservir para a reprodução da vida humana e colocada num outro nível, comoreprodutora e ampliadora da sociedade que produz mercadorias. O valor deuso da mercadoria irá cada vez mais a ser subsumido pela atividadedestinada à produção de valores de troca . A sociedade capitalista tomou asobrevivência humana cada vez mais complexa ao criar e recriar novasnecessidades, atrelando desse modo as possibilidades de sobrevivência àprodu ção de valores de troca.

Na aná lise sobre o traba lho dos homens, Arendt (1997) apresentadois tipos de atividade : o labor e o trabalho. O labor é a atividadeorientada pela necessidade e futilidade do processo bio lógico, do qualderiva e que o impel e. É a atividade que os homens compartilham com osanimais e que espelha a necessidade de uma vida que se reproduz a simesma. O trabalho, ao contrário do labor, não está necessariamentecontido no ciclo vita l da species. Através do traba lho o homem produz o"artificio humano" . Esse mundo humano, com todos os artefatos que oconstituem, serve para outorgar estabilidade à vida dos homens.

Afirma Arendt (1997, p. 152) que o homem "só pode construir ummundo humano após destrui r parte da natureza criada por Deus" . Para aautora, "a sensação desta violência é a mais elementar sensação da forçahumana e, portanto, o exato oposto do esforço doloroso e exaustivoexperimentado no simples labor" (1997, p. 153). O trabalho pode

produzir no homem a satisfação e a segurança desi mesmo, e até mesmo enchê-lo de confiançadurante toda a vida - coisas estas todas elas bemdiferentes da bem-aventurança que pode advir deuma existência dedicada ao labor e às lides davida, ou do próprio prazer de laborar, que é

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Ó trabalho como milOe COIl1Q utopia

passageiro mas intenso, e que resulta quando oesforço é coordenado e rítmico, essencialmenteequivalente ao prazer provocado por outrosmovimentos ritmicos do corpo. Quase todas asdescrições da 'alegria de trabalhar' - quando nãosão tardios reflexos do conte ntamento com a vidae a morte descrito na Bíblia, nem apenasconfundem o orgulho de haver cumprido umatarefa com a alegria de realiza-la - têm a ver coma exultação sentida no exe rcício violento de umaforça com a qual o homem se mede cont ra asforças devastadoras da natureza e que, através daastúcia com que inventou as ferramentas, sabemultiplicar muito além de sua medida natural. Asolidez do mundo resulta desta força, e não doprazer ou da exaustão que o homem sente quandoprovê o pr óprio sustento "com o suor de seu rosto(ARENDT , 1997, p. 153).

Prazer e exaus tão estariam para a autora associados ao labor ederivariam de um certo conte údo moral 'aderido' ao esforço do homem naprocura do próprio sustento, como consagração do mandato divinoenunciado como expiação. O orgulho, a exultação e a con fiança em simesmo são sentimentos associados ao trabalho, e traduzem o momento emque o homem mede suas forças com as da natureza. uti lizando suainteligência a fim de mostrar sua superioridade.

Palavras finais

o que veio primeiro, o trabalho ou o antitrabalho? Há o costume decontrapor essa atividade c sua negação. Desde essa ribeira. considera-seque primeiro foi o trabalho, isto é, a produção histórica de uma atividadecaracterizada pela ausênc ia da alienação; logo. veio o trabalho alienado, aantítese de uma primeira afi rmação. A negação da negação inaugurara umaépoca destinada a libertar os homens tanto da produção dos valores detroca quanto do reino da necessidade.

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Nessa visão. gerada por subjetividades afcta das por uma concepçãodo tempo caudatária, simultaneamen te. da ciclicidadc tradicional e doutopismo prog ress ista modema. autoriza-se tanto o nascimento de um mitofundacional sobre a atividade de trabalho humana. quan to de uma utopia.O traba lho libertário, associado ao trabalho pr é-capitalista. pode sertambém um vir a ser. um desejo local izado agora no futuro, construido pelamodernidade.

O processo que levou ao desenvolvimento do modo de produçãocapitalista haveria de gerar. nas confusas mentes dos contemporâneos damudança. uma representação radical sobre o passado e o devi r: a tradiç ão ea modern idade. Ao passado ident ificado com a tradiç ão, contrapõe-se ofuturo comandado pela modernidade .

A percepção sob re a inevitabilidade da mudança histórica e aurgência, então, de abandonar o passado. corrompia a possibilidade deadmitir as continuidades entre as duas épocas. Foram criad os termos parafalar da nova época e assim foí construída a utopia do trabal ho livre,concebida como uma espécie de sonho localizado num lugar mencionadocomo futuro. Mas, o mito do trabalho livre e a utopia do trabalho livreterão suas intimidades, porque o passado e o futuro virão finalmente a seespelhar nas mentes e práticas dos homens. A força do mito do trabal holivre perdido comandará as lutas dos homens pela redenção final dotrabalho como utop ia. num tempo histórico caracteri zado pela idéia deprogresso.

Significados pela força do mito c pelo imà da utopia. ficaram otrabalho e sua negaç ão entrelaçados numa dial ética histórica e cotidiana.Ele não é uma posse, antes bem é nostalgia e desejo. mito e utopia .atividade que se most ra e esconde o tempo todo. O trabalh o se compreendequando está ausente. Ele é o outro da alienação. Na açãc que se expressana atividade de trabalh o, homens e mulheres geram tanto quanto negam adominação e a opressão. O trabalho é. pois. essa simultane idadecontraditór ia. Dupl amente mistificado. aparece como mito do eternoretorno ou como utopia futurista. No processo histórico fixa-se a tensãodial ética de um trabalho que se alinna e se nega, que exalta e degrada, queoprime e liberta.

Um mito capaz de produzir a consciência do sofrimento e a forçapara ir muito além do sofrimento . Há o mito, hã a utop ia e há a dia lética. Otrabalho humano é, assim, num mesmo movimento, trabalho e antitrabalho,

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6 lnIN; ltwJcomo muo e corno utopia

expressos num trânsito histórico estilttaçado por esforços de produçãodirigidos às mercadorias. que impulsionam a prescrição ou cont role dotrabalho dos trabalhadores, c por esforços de con tribuiçã o que se colampelos intersticios das prescrições.

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