Teatro a utopia..

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Carlos Fragateiro Teatro a utopia da unidade do conhecimento ou Como o teatro pode ajudar a salvar a escola 2003

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Carlos Fragateiro

Teatro a utopia da unidade do conhecimento

ou

Como o teatro pode ajudar a salvar a

escola

2003

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“Num dos meus livros, Aquele que quer morrer, falava obsessivamente da palavra tudo. E acho que na Poesia, pelo menos na minha, também há uma angústia totalizante. É uma espécie de prática do tudo. Se calhar andamos todos inquietos em relação ao mesmo mistério, os físicos com os aceleradores de partículas e os poetas com os aceleradores da sensibilidade”.

Manuel António Pina 2001

Trabalhar no interior da contradição, uma frase que ouvimos ao

encenador/ animador Remy Hourcade numa entrevista que lhe fizemos em Évora

em 1979, é a frase-chave deste trabalho. Foi efectivamente no interior da

contradição que este trabalho se desenvolveu, num primeiro momento na

contradição entre a expressão dramática e o teatro, entre o espaço da formação

e da representação, e, nos momentos finais, entre a necessidade de apresentar

um trabalho onde fosse claramente perceptível uma efectiva distância do

investigador ao objecto analisado e a consciência de que o trabalho que

estávamos a desenvolver tinha um carácter predominantemente pessoal, onde o

afecto, a emoção e a intuição têm, na maior parte das vezes, uma importância

muito maior que a razão. Esta vivência permanente no interior da contradição fez

com que várias vezes ao longo deste trabalho tentasse cortar aquilo que no

discurso me aparecia duma forma mais afirmativa, mais directa, e até, por vezes,

panfletária, mas de cada vez que o tentei fazer confrontei-me com um texto

distante, sem alma, com algo de impessoal que não sentia como meu. Daí que,

para não me trair, nem trair tudo aquilo que, muitas vezes duma forma intuitiva,

fui descobrindo, tivesse optado por manter este estilo empenhado e pessoal, pois

também tomei consciência que na escrita não é possível estarmos a escrever e a

colocar toda a carga emotiva naquilo que escrevemos, e, ao mesmo tempo, a

criarmos distância e a esfriar o texto que vai tomando forma.

A razão porque a dimensão pessoal está tão presente explica-se pelo facto

de ter sido a partir dela que todo o processo de reflexão, desenvolvido ao longo

de anos, ganhou unidade, num período em que estive profundamente implicado

no terreno da acção, e, ao mesmo tempo, a tentar analisar e a reflectir sobre os

projectos e as práticas. Este estar fora e dentro, ser observador e observado,

levou a que em certos momentos me tivesse confrontado com tendências

contraditórias muito fortes, umas dizendo que devia optar por investir duma forma

mais efectiva no trabalho de investigação, enquanto outra me dizia que o

fundamental e estratégico para o desenvolvimento do projecto de integração das

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artes e do teatro na estrutura escolar passava pela criação de condições para

que as práticas se reforçassem no terreno da acção. Foi a opção pela prática que

veio a ser privilegiada em momentos chave deste percurso, opção essa que

permitiu levar a cabo um conjunto de iniciativas e projectos que considero

relevantes, dos quais me parece importante destacar: a concepção e organização

do 1º Encontro Mundial de Teatro e Educação que teve lugar no Porto em 1992,

encontro onde se reuniram participantes de 45 países e que foi o momento

fundador da Associação Internacional de Teatro e Educação, culminando o

trabalho realizado em Portugal com os 4 Encontros Internacionais de Expressão

Dramática na Educação; a organização do 3º Encontro Mundial de Sociologia do

Teatro, em Lisboa, Acarte, em 1992; a concepção, em 1992 e 1993, dos

programas das Oficinas de Expressão Dramática II e III que permitiram balizar as

novas modalidades de intervenção da expressão dramática e do teatro no Ensino

Secundário; a concepção e coordenação, entre 1993 e 1995, do Certificado de

Estudos Especializados em Teatro e Educação da Escola Superior de Teatro e

Cinema de Lisboa, diploma de formação especializada que permitiu a saída dos

primeiros especialistas capazes de leccionarem áreas e disciplinas de teatro

como as que foram abertas com o lançamento das Oficinas de Expressão

Dramática; a participação na Comissão Inter-ministerial da Cultura e da

Educação, comissão que, entre 1996 e 1997, juntou especialistas das áreas da

educação e da cultura para produzirem o primeiro documento estratégico para a

estruturação de um plano global de integração do ensino das artes no sistema

educativo português; a abertura, numa unidade de produção artística com o

prestígio e a tradição do Teatro da Trindade, de um projecto directamente

vocacionado para o universo escolar que tem como centro das suas actividades

uma vertente de criação e formação teatral que se debruça sobre a problemática

da Arte e da Ciência, Projecto de Teatro Científico, onde, para além das

actividades de formação e reflexão, se têm produzido um conjunto de

espectáculos de forte conteúdo científico, nomeadamente ao nível da matemática

e da astronomia.

Tendo consciência de que não se pode estar a navegar no rio e, ao

mesmo tempo, a vermo-nos da margem, optei, duma forma mais ou menos

consciente, por trabalhar prioritariamente nas práticas e nos projectos do terreno

e por responder às questões que, a cada momento, essa prática colocava. E fi-lo

sabendo que estava a atrasar a conclusão do meu projecto de investigação,

projecto este que me poderia ajudar a intervir duma forma muito mais articulada e

reflectida no terreno da prática, mas que, ao mesmo tempo, me obrigaria, por

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exemplo, a integrar nas recomendações finais, mais uma vez, a reafirmação da

necessidade da abertura de uma vertente de Formação de Professores em

Teatro na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, tal como tinha

acontecido repetidamente nas recomendações dos Encontros Internacionais de

Expressão Dramática na Educação e durante o Congresso Mundial de Teatro e

Educação. A verdade é que o facto de ter optado por intervir prioritariamente no

terreno da prática contribuiu para a transformação das recomendações em

realidades efectivas, tornando, entre outras medidas, o diploma de formação de

professores numa realidade, levando a que hoje, mais do que retomar e repetir as

recomendações, se exija uma análise rigorosa do que foi posto em prática e dos

seus resultados efectivos.

A contradição entre continuar uma intervenção mais efectiva na prática ou

o privilegiar da investigação foi a que se manteve durante mais tempo e foi a mais

forte e a mais intensa de todo este período, mas hoje estou consciente que o

facto de ter optado pela acção e de ter tido oportunidade de ser mais actor que

analista de todo este movimento me deu a oportunidade de vivenciar

experiências e projectos que, de outra forma, desconheceria. Permitiu-me ainda

construir todo um conjunto de materiais e de reflexões resultantes dessa imersão

de corpo inteiro na realidade social, materiais e reflexões que são o referencial

principal deste trabalho e que, estou consciente disso, têm hoje uma importância

estratégica para balizar o desenvolvimento de qualquer projecto de Arte e

Educação em Portugal.

Foi com este espírito de abertura e entrega que, durante todo este

processo, procurei optar por aquilo que me tocava e que a cada momento sentia

que tinha importância para mim, o que levou na prática a que, se não sentisse

qualquer relação afectiva ou emocional com um acontecimento, um livro ou uma

referência, se não os conseguisse integrar no meu discurso, os abandonasse,

pois essa falta de comunhão levava a que essas referências aparecessem no

interior do meu trabalho como uma prótese, como algo estranho, distante, que

não me dizia nada e que, ainda por cima, me incomodava. Esta dimensão

relacional foi de tal modo significativa que, no caso concreto das obras teóricas

de referência, a forma como as li e entendi esteve sempre em íntima articulação

com os percursos e os projectos que desenvolvia em cada momento, dado que

eram as preocupações e as necessidades resultantes desses projectos que

foram determinantes para criar uma ponte efectiva de comunicação e sintonia,

diria mesmo de comunhão, com as ideias de cada autor ou acontecimento. Havia

alturas em que não entendia partes de um livro que me soavam como algo

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estranho, distante, partes essas que mais tarde me apareciam como fulcrais, em

perfeita sintonia com o que necessitava naquele momento, tornando as leituras

também parte integrante de um processo progressivo e de sucessivas

revelações. Hoje posso dizer que tudo o que está neste trabalho me diz alguma

coisa, me pertence, ainda que por vezes a sua autoria seja de outros, porque de

alguma forma me ajudou e contribuiu para que eu hoje seja o que sou, para que

faça as coisas como faço.

Enquanto observador e analista de um processo de que também fui actor,

tenho consciência de que é extremamente difícil que esta participação não tenha

determinado e/ou condicione as leituras que me propus fazer e as análises

consequentes. Efectivamente, analisei, enquanto um dos intervenientes do

processo, acontecimentos muito próximos, o que implica que há que assumir que

a análise do percurso tem uma perspectiva e um olhar pessoal e que essa leitura

ou as opções dos acontecimentos e das referências escolhidas e analisadas só o

são porque na minha perspectiva pessoal implicaram ou provocaram uma

evolução na forma como eu, actor e observador, fui vendo as coisas, como o meu

conhecimento ou o meu questionamento se foi construindo.

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Teatro e Escola

Um projecto de dupla entrada

As relações entre o teatro e a escola caracterizaram-se, durante muito

tempo, mais do que por uma articulação efectiva entre os mundos do teatro e da

educação, pela predominância de um dos domínios, seja o do teatro ou o da

educação, dependendo essa relação de forças da proveniência do parceiro que,

em cada momento e em cada região, era o mais forte e/ou o mais dinâmico.

Raramente nos confrontámos com uma parceria efectiva onde cada projecto de

intervenção se propusesse, tanto ao nível dos pressupostos como dos objectivos

a atingir, servir de igual modo os dois parceiros. Na verdade, no interior da

educação falava-se e ainda se fala da relação do teatro com a escola na

perspectiva da abertura de espaços de jogo ou da introdução de novas

metodologias para ajudar as diferentes aprendizagens, enquanto que, do lado do

teatro, só se ultrapassa a desconfiança existente face a esta perspectiva quando,

também utilitariamente, se assume esta parceria com o objectivo da formação de

espectadores, da criação de um novo público e da organização de um circuito

alternativo de circulação de espectáculos. Maioritariamente, os sentidos da

articulação entre o teatro e a escola situam-se ainda hoje no interior desta

perspectiva interesseira, corporativa e fechada.

Reduziu-se deste modo, e durante muito tempo, a possibilidade de abertura

de espaços comuns de intervenção capazes de romper com uma realidade

redutora, onde é dominante uma perspectiva que, adaptando as categorias que

Scarpeta (1992) utiliza para o mundo da arte, caracterizaríamos assim: dotada de

uma tendência guerreira, pura e dura, que pensa a arte em termos de função

crítica e subversiva e que defende que o mundo do teatro não deverá ter

nenhuma ligação com a estrutura escolar; vocacionada para uma estética de

resignação ou de acordo com o modelo social dominante, fazendo a defesa da

integração plena das práticas teatrais no interior das estruturas escolares

existentes.

Mas será impossível criar efectivos espaços de circulação entre estes dois

mundos? Será que não existem alternativas entre uma atitude vanguardista que

recusa a integração do teatro, enquanto realidade pura numa escola impura, e

uma atitude de submissão total do teatro à estrutura escolar?

Encontrar as alternativas possíveis exige da nossa parte uma capacidade

de olhar tanto para o teatro como para a educação de uma outra óptica, com

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outra lógica e outro método de conhecimento e análise, o que nos permitirá

detectar os sinais que emergem do interior de ambos os mundos e as mudanças

profundas que eles anunciam ou enunciam. Sinais como o do forte movimento

conflitual que se vive no interior da estrutura escolar onde, por um lado, se

reconhece o papel que a escola jogou e joga na origem das delimitações

disciplinares, e, por outro, se procura utilizar essa escola, de acordo com Olga

Pombo 1993, como meio de promover o desenvolvimento de atitudes, hábitos e

formas de trabalho multidisciplinares, tornando-a capaz de responder aos

desafios da nossa contemporaneidade e do futuro, desafios esses que se deixam

antever nas profundas transformações disciplinares em curso, nomeadamente no

que respeita à organização curricular, às metodologias de trabalho escolar e às

questões organizativas.

Movimento conflitual que nos aparece com uma maior clareza quando

tomamos consciência de como a educação se confronta hoje, de acordo com

António Nóvoa 1992, com a urgência de uma mudança radical na forma de

organizar os espaços e os tempos escolares, rompendo definitivamente com uma

lógica curricular disciplinar.

É a constatação da necessidade desta mudança radical que nos permite

afirmar a existência de grandes pontos de contacto entre as linhas de força que

deverá ter a intervenção das práticas teatrais na escola e as urgências que estão

no seio das transformações (Nóvoa op.cit.) que, de uma forma explícita ou

latente, atravessam hoje os sistemas educativos: a necessidade de dar maior

protagonismo aos actores educativos e de uma maior criatividade nas práticas de

ensino; a urgência de uma mudança radical na forma de organizar os espaços e

os tempos escolares, rompendo definitivamente com uma lógica curricular

disciplinar; a importância de uma articulação com as comunidades, assumindo

que a acção educativa só tem sentido em comunidades onde a cultura e as

aprendizagens sejam valorizadas.

O teatro pode ser efectivamente um aliado preferencial deste sentido de

mudança, principalmente quando sabemos que, pela sua própria natureza, é um

espaço e um tempo:

- onde a pessoa, todas as pessoas, têm espaço para descobrir e

desenvolver todas as suas capacidades de expressão e de invenção, trazendo as

suas histórias, reais ou imaginárias, para o espaço de jogo que é a cena (cf.

pensamento de Augusto Boal);

- de convergência de saberes, temáticas e capacidades que rompem com

as fronteiras e lançam pontes entre os professores, entre as várias disciplinas e

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áreas do saber, entre o curricular e o extra-curricular e entre a escola e o meio, o

que é um factor de quebra do isolamento dos professores e pode levar à

abertura, no interior das estruturas escolares, de projectos capazes de responder

às urgências de programas, como, por exemplo, os da área de projecto que neste

momento são extremamente difíceis de concretizar (cf. pensamento de Gisèle

Barret);

- onde o trabalho de criação e produção de espectáculos implica a

existência de um espaço ou espaços com múltiplas valências, actualmente

inexistentes nas escolas não têm, mas a que uma nova arquitectura escolar vai

ter que dar resposta, e é incentivador de uma prática experimental ou laboratorial

que não se compadece com a actual organização curricular, levando a que a

escola não seja unicamente reprodutora dos saberes dominantes, mas se

assuma também como local de descoberta e invenção (cf. pensamento de Peter

Brook);

O teatro ganha também com a vinda para a escola

Se até agora falámos prioritariamente de como a vinda do teatro para a

escola é importante para esta, também o teatro ganha outras valias que se

traduzem no reforço da dimensão experimental das suas práticas, na criação de

espaços de liberdade, no privilegiar do processo e não do produto final, na

fruição do tempo disponível para a criação e a experimentação e num certo

sentido de gratuitidade que impede uma apropriação pedagógica e utilitária

destas práticas.

A ideia de que as práticas teatrais podem ter um espaço privilegiado de

experimentação quando integradas no domínio da formação é referida por todo

um conjunto de criadores que hoje sentem uma atracção pela escola, e a ela

retornam frequentemente pois aí encontram uma liberdade para experimentar

que não é possível ter no espaço das criações profissionais:

“Si l´école est (comme le théâtre, d´ailleurs), d´une part, un compromis avec ce qui existe, elle est, d´autre part, le lieu où les utopies se concrétisent, où les tensions qui sous-tendent l´acte théâtrale prennent forme et sont mises à l´épreuve à travers des situations. A une époque qui vit le théâtre possible dans le futur, le changement s´est trouvé institutionnalisé et en particulier les mutations intervenues dans les micro-sociétés de théâtre. On fonde toujours une école pour rénover le théâtre, pour donner consistance au théâtre du futur et pour ouvrir des perspectives à l´avenir du théâtre”(Cruciani 1988, p.104).

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Robert Wilson (1992) reforça esta ideia quando fala das experiências no

interior de processos de formação e afirma o como essas experiências foram

extremamente pertinentes no seu percurso de criador:

“L´époque où j´ai travaillé à l´université de New York et dans une école de Hambourg, quand j´ai fait le Hamlet-Machine de Muller, a été pour moi une époque passionnante. Ça a été trés gratifiant de travailler avec ces étudiantes et de monter ce spectacle. Les gosses étaient plus ouverts, moins fermés à ma façon de faire, et je me suis senti plus libre”(p.54).

É na escola que à criação teatral se abrem “des espaces de liberté, de

gratuité et de plaisir incomparables » (Adrien 1988, p.42), pois “la classe offre à

l´homme de théâtre un espace supérieur de liberté, trés liè à l´innocence, à

l´ingénuité des partenaires qui n´est seulement un état d´ignorance mais aussi un

état générateur de solutions” (Penciulescu 1988, p.82). É também na escola que

a criação teatral encontra um espaço de excelência onde pode privilegiar o

processo, pois na escola não se vive “avec l´obsession du produit fini, complet. À

l´école on étudie par morceaux, la synthèse s´effectue plus tard” (op.cit., p.81). Na

escola há, efectivamente, tempo para procurar e descobrir soluções, pois a

pedagogia “offre davantage de temps, elle oblige à chercher des instruments qui

font que la solution n´est pas programmée mais découverte” (op.cit., p.82).

Finalmente uma outra vertente, quanto a nós extremamente importante, diz

respeito ao sentido de gratuitidade que caracteriza aquilo que se ensina:

“L´enseignement, pour qu´il s´accomplisse, doit revêtir l´apparence de l´inutile. Sans cela, il échoue en addition de réponses concrètes livrées à des élèves qui craignent le chômage. Il éduque mais ne forme pas. Il rassure, mais il n´ouvre pas. L´enseignement du théâtre est préparation dans la mesure où il échappe aux contraintes que l´avenir ne saura que trop imposer” (Banu 1988,p.98).

Esta ideia de gratuitidade é crucial para a prática teatral nas escolas, pois o que

tem dado força ao privilegiar do produto em vez do processo tem sido a ideia do

aproveitamento utilitário do teatro para resolver múltiplos problemas pedagógicos.

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Este retorno ao teatro implica o fim da dualidade entre as dimensões

da formação e da criação

Este movimento de retorno às origens mostra que a ida do teatro para o

interior das escolas pode provocar a criação de espaços de liberdade e de

descoberta, o privilegiar do processo em detrimento do produto, a aparência de

gratuitidade que torna qualquer actividade num tempo onde temos todo o tempo

do mundo para fruir o prazer estético da liberdade, da descoberta e da

criação.

Viveu-se demasiado tempo com a ideia de que a expressão

dramática/drama e o teatro eram antagónicas; a expressão dramática/drama

seria o processo, a liberdade, enquanto o teatro seria o espaço da imposição,

onde se privilegiaria o produto e tudo estava dependente do autoritarismo do

encenador. Uma dualidade que perde o sentido e o fundamento em termos do

próprio mundo do teatro a partir do momento em que, na perspectiva da

formação, se analisam os movimentos teatrais deste século e nos apercebemos

que são as abordagens específicas no domínio da formação que lhes dão um

sentido inovador, como está bem explícito nos escritos e na prática de autores

como Appia, Craig, Stanislavski, Vakhtangov, Meyerhold, Copeau, Grotowski,

Barba, Brook e Boal, etc. Uma preocupação que, tendo como principal objectivo a

procura de um teatro diferente, encontrava na pedagogia o lugar necessário para

a sua actividade porque esta permitia

“la recherche d´une formation de l´homme nouveau dans un théâtre (société) différent et rénové, la recherche d´un acte théâtral toujours original dont les valeurs ne se mesurent pas en termes de spectacles réalisés, mais de tensions mises en oeuvre et de cultures élaborées à travers le théâtre”(Cruziani 1988, p.104).

Béatrice Pivon-Vallin (1988), num estudo dedicado aos encenadores/

pedagogos Stanislavski e Meyerhold, refere que a pedagogia para a cena é uma

pedagogia para a vida e que ambas se encontram intimamente ligadas no

trabalho dos autores analisados:

“Refuge, le Studio, comme l´Atelier, implique aussi l´absence de compromis, la lutte, le progrès vers la maîtrise intérieure ou physique. L´enseignement théâtral se double d´une formation morale et civique, il est éducation de l´homme complet. L´acteur doit être un homme idéal, note Stanislavski dès 1889” (p.p. 109-110).

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A tomada de consciência de que é possível ultrapassar as dualidades

redutoras dominantes nas relações entre os mundos da arte e da educação e de

que há todo um conjunto de interesses comuns que dão às zonas de interferência

uma importância muito maior que à defesa dos seus mundos específicos, abre-

nos todo um conjunto de novos espaços de trabalho. Novos espaços e novas

propostas que terão que ser perspectivados não em referência às realidades e

aos modelos actualmente dominantes, mas no interior das dinâmicas de

desenvolvimento e dos movimentos de mudança que atravessam tanto a arte

como a educação.

O que implica a procura de um novo quadro de referências

"L´être devient humain quand il invente le théâtre" Augusto Boal 1990

Hoje, quando abordamos a relação entre o teatro e a escola, confrontamo-

nos geralmente com dois tipos de atitude: a daqueles que pensam o teatro como

mais uma disciplina que deve lutar pela institucionalização, por um espaço no

interior da estrutura escolar; a de outros que sentem que a institucionalização a

todo o custo tem alguns perigos, como o do teatro seguir o mesmo caminho que

seguiram a expressão visual e a música, hoje disciplinas como as outras, sem

nada que as caracterize como práticas artísticas.

Interessa-nos reflectir sobre esta segunda atitude porque para nós só tem

sentido que as práticas artísticas intervenham no interior da estrutura escolar se

se assumirem enquanto espaço e tempo de experimentação e descoberta, onde

o homem como artista se descobre, descobre as suas potencialidades, interage

com os outros e, tendo o real como referência, inventa/ficciona possíveis

soluções/ desenvolvimentos para os problemas e situações com que esse real

nos confronta. Há assim que, mais do que nunca, procurar hoje perceber o

sentido mais profundo do teatro na escola, se é que a ligação entre o teatro e a

escola tem sentido, o que passa pela clarificação do que é que de novo pode o

teatro trazer à escola e em que medida as práticas teatrais se poderão afirmar

como pivots que provoquem a emergência de um movimento que suporte a

mudança dessa mesma escola.

O que é interessante verificar, numa primeira aproximação, é que há uma

semelhança muito grande entre os obstáculos que dificultam a integração plena

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do teatro na escola e as urgências que estão hoje no coração das transformações

que, de uma forma explícita ou latente, atravessam os sistemas educativos: a

necessidade de romper as fronteiras e criar pontes entre as várias disciplinas e

áreas do saber, entre o curricular e o extra-curricular e entre a escola e o meio; a

urgência de uma outra arquitectura escolar que permita e incentive o romper

dessas fronteiras; a abertura de espaços e tempos de experimentação e

investigação para que a escola não seja unicamente reprodutora dos saberes

dominantes, mas também um local de descoberta e invenção.

É com este tipo de questões, que começam a ser parte integrante da

reflexão actual em educação, que o teatro se confronta quando coloca a

possibilidade da sua integração plena no sistema escolar: o teatro é um espaço

de convergência de saberes, temáticas e capacidades que rompem com a

compartimentação disciplinar que suporta a actual organização escolar; o

trabalho de criação e produção de espectáculos implica a existência de um

espaço ou espaços com múltiplas valências que actualmente as escolas não têm

nem parecem capazes de acolher; a prática experimental ou laboratorial,

componente dominante da criação teatral, não se compadece com a actual

organização dos tempos lectivos.

Esta sintonia de questões e desafios que actualmente existe entre o teatro

e a educação coloca as práticas teatrais sob o desafio de serem capazes de

intervir num sistema onde as práticas artísticas têm pouco espaço de manobra e,

simultaneamente, de criar com essa intervenção condições para a emergência de

práticas que poderão vir a ser o suporte da construção de um outro modo de

pensar a escola.

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2 - Quadro Conceptual da Intervenção do Teatro no

Interior da Educação

“Nous devons absolument libérer les initiatives et les capacités d´innovation au lieu de les freiner pour mieux répartir la pénurie.”

Michel Crozier 1995

As sociedades contemporâneas confrontam-se, cada vez mais, com a

problemática da qualidade de vida em todos os níveis da sua intervenção.

Assistimos actualmente à emergência duma nova forma de entender a prática

social, os espaços que habitamos, o modo de vida que assumimos e as relações

que criamos connosco e com os outros. O que está em causa é a ideia de um

novo modo de vida, de um novo estilo de vida, onde cada vez é mais necessário

que o homem se reencontre consigo próprio e com os outros e que volte a ter

uma relação de prazer com o espaço que habita e o mundo físico que o rodeia.

Habitamos hoje uma época que está a passar por um acelerado e profundo

processo de transformação, um processo que nos confronta, em directo e ao

vivo, com situações cada vez mais complexas, com um verdadeiro choque do

futuro como refere Rosnay (1991). Assistimos à emergência de uma realidade

cujos pressupostos vão implicar uma profunda mudança ao nível do interior de

cada um, da sua estrutura mental e do seu quadro de referências, que nos torne

capazes de sermos intervenientes activos e criativos no interior de um modelo de

desenvolvimento que respeitará as diferentes componentes sociais e que será

baseado não somente na dimensão económica, mas também e

fundamentalmente nas dimensões cognitiva, emocional, cultural, social e política.

Uma realidade emergente consciente de que o mais decisivo não é um

relançamento da economia à escala do Estado, mas sim uma nova forma de

viver, o que vai necessariamente obrigar, como refere Ander-Egg (1989), a uma

mudança do paradigma que suporta a concepção actual de desenvolvimento e a

romper com “la lógica del hombre fáustico que domina el pensamiento

contemporáneo impregnado en los códigos culturales de la racionalidade

europeia, o si se quiere nordatlántica” (op.cit.,p.120), uma lógica que nos mantém

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prisioneiros e alienados na santa trindade do homem contemporâneo: dinheiro,

consumo e estatuto.

Vivemos hoje uma das épocas charneira, em que toda a ordem anterior das

representações e do saber oscila para dar lugar a imaginários, a modos de

conhecimento e a estilos de regulação social mal estabilizados, onde, a partir de

uma nova configuração técnica, ou seja, de uma nova relação com o cosmos,

como afirma Lévy (1990), se inventa um estilo de humanidade. Vivemos um

tempo de espaços cruzados, de espaços híbridos, um tempo da mestiçagem,

onde a integração dos projectos e das práticas artísticas no mundo da educação

implica a compreensão da importância que hoje têm estes espaços de

confluência e de interferência, "zonas de desafio", onde a invenção tem um lugar

privilegiado. A maior fertilidade criadora situa-se precisamente nas zonas de

intersecção ou de desafio, onde uma arte desafia a outra e a força a reinventar-

se, conforme refere Scarpetta (1992).

Este quadro obriga a que se assuma hoje uma outra perspectiva de

desenvolvimento, perspectiva esta que, no caso de Portugal, foi definida por

Petrella (1989) como a construção de um outro futuro, um cenário que não seria

prisioneiro de uma lógica económica e que se baseava no facto de Portugal estar

a pretender ser uma sociedade aberta, no seu interior e para o seu exterior, e que

essa abertura deveria ser sobretudo de natureza social, cultural e política, antes e

para além de ser uma abertura económica. A caminhada na direcção do outro

futuro tem implicações significativas ao nível da mudança de atitude de cada

indivíduo e da colectividade, na mudança de mentalidades. Um processo que

necessita de tempo e de todo um conjunto de abordagens e de projectos de

intervenção capazes de provocar, acompanhar e solidificar essa mudança, e que

obriga a que sejamos capazes de inventar uma forma de viver onde o respeito

pelo individual e pelo colectivo seja uma realidade, nas suas dimensões pública e

privada, onde se incentive a participação de cada um em todos os domínios da

sua própria vida, e onde a imaginação e a criatividade sejam consideradas como

capacidades fundamentais para o desenvolvimento integral do ser humano e para

a criação de uma outra sociedade.

Para a construção de um outro futuro, o autor fala, entre outras, de duas

medidas que nos parecem de extrema importância e que passam, por um lado,

pelo investimento no capital de beleza e, por outro, pelo reforço do papel da

escola. Ao nível do investimento no que chama o capital de beleza de Portugal,

Petrella aconselha que ele se faça nos espaços de vida das pessoas, como são

as cidades e as aldeias, as ruas, as igrejas, as praças, a natureza e os museus,

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mas também no design industrial e doméstico. O investimento da indústria da

beleza não deve ser qualquer coisa luxuosa reservada às sociedades ricas (como

o mostra a história, o desenvolvimento partiu muitas vezes da inovação na e pela

beleza). “E esse capital de beleza só os agentes do lugar podem e sabem

explorá-lo. Quando os raiders dos outros sítios chegam, já é tarde de

mais"(op.cit., p.69).

Em relação à escola é reafirmado o papel e a importância que ela pode e

deve assumir em toda esta estratégia, referindo-se que a ideia força de todos

para a escola deveria ser o mote do país, uma ideia que o autor reforça com a

afirmação de que a abertura de escolas em todos os domínios, (como a

familiarização com as novas tecnologias, a aprendizagem da restauração de

quadros ou de igrejas, os serviços às empresas, a protecção civil e o socorrismo,

cursos de higiene colectiva, de gestão do meio ambiente ou de línguas), deveria

vir a ter tanta importância social como a abertura de uma fábrica ou de um

supermercado. Este regresso à escola teria de comportar um trabalho importante

de reorganização e de inovação ao nível dos instrumentos, dos materiais de

informação e de documentação, da imprensa escrita e audiovisual, das

telecomunicações.

Neste projecto de transformação, que implica não somente a dimensão

exterior da vida, mas também o seu nível mais íntimo e pessoal, a cultura e a arte

assumem um papel fundamental na medida em que trabalham sobre os domínios

do individual e da subjectividade, provocando, em permanência, a abertura de

espaços de experimentação de novas formas e de novos modos de ver, de

habitar e de transformar o mundo. E quando falamos de arte já não falamos

unicamente da formação estética e do gosto, mas também do incentivar de

processos de descoberta individuais e de grupo onde o sentido do belo não

esteja somente dirigido para o consumo de obras de arte, mas seja motor dum

processo de tomada de consciência que leve cada um e o grupo a reivindicar o

belo em toda a dimensão da vida social.

Sendo a cultura e a arte instrumentos privilegiados para a construção do

"outro futuro", sê-lo-ão duplamente quando integradas no Sistema Educativo, pois

é na escola que se começará a formar toda uma nova geração capaz de assumir

a vida e o futuro duma forma diferente, que se começarão a desenvolver

projectos e programas de formação permanente capazes de responder à

necessidade de actualizar e de reciclar as pessoas que actualmente estão na

vida activa e que querem também estar em contacto permanente com a inovação

e as novas tecnologias. É importante não esquecer que, como afirma Nóvoa

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(1992), grande parte do potencial cultural (e mesmo técnico e científico) das

sociedades contemporâneas está hoje concentrado nas escolas.

Em Portugal há já muito tempo que se tenta introduzir uma dimensão

cultural e artística no Sistema Educativo que esteja presente não só nas escolas

especializadas, mas também em todas as dimensões da vida escolar. Neste

sentido têm sido experimentados nas escolas portuguesas vários projectos de

intervenção cultural e artística, mas dos quais não tem sido possível retirar nem

conclusões claras, nem resultados significativos, dado o seu carácter sectorial e

isolado. Hoje estamos conscientes de que a estruturação de um projecto para o

Ensino Artístico, se o nosso objectivo for recolocar as práticas artísticas na sua

dimensão de descoberta do novo, como o vimos prenunciando, e não na defesa e

manutenção de um espaço burocrático que se limite a reproduzir na escola todo

um conjunto de práticas artísticas socialmente dominantes, nos obriga a definir

um quadro teórico de referência que permita potenciar esta perspectiva de

transformação, quadro teórico onde se assuma a importância fundamental da

dimensão experimental para o trabalho das artes. Dimensão experimental que é,

para nós, a única forma de dimensionar a intervenção das artes enquanto

espaços e tempos de descoberta e criação do novo e de, nessa ordem de ideias,

tornar essa intervenção imprescindível para a formação das pessoas do século

XXI, homens e mulheres que vão ter que ter a capacidade de intervir activa e

criativamente num mundo em mutação constante.

Nesta perspectiva definimos três dimensões que julgamos deverem

enquadrar um projecto de intervenção artística no interior dos projectos de

formação.

Em primeiro lugar a dimensão da pessoa, uma pessoa capaz de produzir

e de incentivar a produção de pensamento, de compreender a complexidade da

realidade actual e com uma forte capacidade de invenção e sentido do belo.

Efectivamente, esta ideia de mudança deve ter a pessoa como seu actor principal

e sua finalidade central no interior de uma sociedade que deve construir-se e

desenvolver-se tendo por meta a felicidade dos indivíduos, uma ideia que muitas

vezes não esteve no centro das preocupações da sociedade pois “l´essor de

l´économie marchande et du capitalisme ont largement occulté cet humanisme”

(Dupuis 1995, p.37).

Em segundo lugar a dimensão da escola como estrutura privilegiada e

estratégica onde estas capacidades da pessoa se possam descobrir e afirmar

integralmente, possam produzir pensamento. Uma escola capaz de incentivar no

seu interior a emergência de projectos que sejam os espaços de ponte entre as

19

várias áreas artísticas, entre estas e as outras áreas do conhecimento e entre a

escola e o meio, assumindo-se na prática como um efectivo laboratório de

invenção e produção do novo. Isto implica tanto com a organização do tempo

como do espaço onde essa experimentação vai ser desenvolvida, obrigando

necessariamente a que se reflicta sobre o que é hoje a organização espacial das

escolas, a arquitectura escolar, e de como esta organização condiciona ou

incentiva o relacionamento entre os vários saberes e as práticas.

Em terceiro lugar há que ter a capacidade de introduzir uma forte dimensão

cultural no interior dos projectos de desenvolvimento de modo a obrigá-los a

centrar a sua actividade na procura de novos sistemas de valor e a afirmarem-se

como instrumentos de libertação e de afirmação da pessoa. Uma dimensão

cultural que não se pode limitar ao universo das obras de arte e das

humanidades, à acumulação de obras e conhecimentos que uma elite produz,

recolhe e conserva para os tornar acessíveis a todos, devendo ser também, e

antes de mais, aquisição de conhecimentos, exigência de um modo de vida,

necessidade de comunicação, pois hoje cada vez mais se entende a cultura

como algo que é inseparável da vida quotidiana.

Finalmente a organização de um quadro de referência sobre estas três

dimensões será completada pela apresentação de um referencial onde se

percepcione como é que o processo de criação teatral é uma das práticas

de excelência que cria condições para a emergência de respostas a este

conjunto de desafios e necessidades. O teatro, enquanto prática artística e

cultural, na medida em que trabalha sobre os domínios do pessoal e da

subjectividade e em que o seu próprio conteúdo é a vida, tem, pela sua própria

natureza, capacidade de provocar a abertura de espaços onde se experimentem

projectos que desafiem e cruzem diferentes áreas do saber e se desenvolvam

outras capacidades e outros modos de pensar, ver, habitar e, naturalmente,

transformar o mundo. Isto implica que se assuma, no interior da educação, não

como mais uma disciplina, mas como um espaço de interface, de cruzamento,

onde se abrem pontes de comunicação com os diferentes saberes e se desafiam

esses saberes a encontrarem-se no próprio processo de criação teatral de forma

a produzir, em conjunto, uma obra que tenha cada um dos participantes, as suas

angústias, desejos e necessidades, como centro do trabalho a realizar.

20

A pessoa no centro dos projectos

"Une vérité théâtrale est une vérité plurielle, faite de tous les éléments qui sont présents à un moment donné si une certaine combustion se produit."

Peter Brook 1992

Responder eficaz e criativamente a este tempo e a esta urgência de

mudança implica que cada pessoa tenha capacidade de ser actor de corpo inteiro

num processo que, para ter o homem como actor principal e como finalidade

primeira, implica que cada um tenha capacidade de produzir pensamento, ou,

como refere Morin (1993), a possibilidade e o direito de pensar. Este pensamento

ocorre no quadro de uma estrutura complexa que, tal como acontecia na

renascença, possibilita ao sujeito poder ser ao mesmo tempo letrado, humanista,

técnico e explorador de um novo modo de organização do saber e do intercâmbio

intelectual.

O problema da mudança é, como afirma Crozier (1995), primeiro que tudo,

um problema de raciocínio e a única falha evidente que é revelada por cada novo

problema da sociedade é a da fraqueza do raciocínio, sendo pois por aí que é

necessário lançar as reformas. Uma mudança desta dimensão não se possa

efectuar estritamente a nível do indivíduo, tendo sim que atravessar toda a

estrutura social, pois, como refere ainda o mesmo autor, muitas vezes é o

bloqueamento da inteligência das elites que bloqueia a sociedade, “et, dans ce

système, c´est l´intelligence qui est bloquée. C´est dans la mutation de

l´intelligence qu´il faut donc investir.” (op. cit., p.12). Há efectivamente uma

urgência e uma necessidade de descobrir novos instrumentos de observação e

análise, novos métodos de pensamento e novos itinerários, de forma a situar a

acção individual no coração de um processo de mudança de que somos ou

deveríamos ser actores principais.

Está aqui envolvido um conceito de pessoa que é motor e fim último do

desenvolvimento, uma pessoa que tem de estar preparada para responder aos

desafios de uma sociedade que já entrou na revolução da informação e da

comunicação, nomeadamente aos desafios das novas linguagens da

comunicação e da complexidade. Revolução que está a provocar um

“accroissement de la complexité de la société et des organisations, systèmes et

réseaux dont nous avons la charge” ( Rosnay 1995, p.27) e a desafiar os nossos

métodos tradicionais de análise e de acção, levando-nos a tomar consciência de

que o maior obstáculo a qualquer mudança é provocado pela organização

21

disciplinar do conhecimento científico e pelo encerramento da filosofia em si

própria.

Há pois que encontrar um método de análise que seja capaz de viver no

interior de uma contradição, ou complementaridade, dado que nenhum dos

métodos de análise, analítico ou sistémico, é capaz de responder à necessidade

e à urgência de fazer entender a realidade na sua globalidade e complexidade.

Isto, por um lado, porque se perdem no processo a qualidade das propriedades

emergentes se se decompõe, pela análise, a complexidade em elementos

simples, e, por outro, se se recompõe, pela síntese, o todo a partir das suas

partes não dispomos de provas experimentais com que confrontar as hipóteses.

É assim que uma das questões centrais que hoje se coloca tem a ver com a

criação de condições para desenvolver em cada pessoa a capacidade de pensar

o mundo ao mesmo tempo duma forma analítica e sistémica. Duma forma

analítica porque capaz de compreender um facto isolado em toda a sua

profundidade, e duma forma sistémica porque capaz de ligar esse facto com

outros factos e de o integrar em diferentes sistemas, compreendendo e podendo

assim descrever e agir com maior eficácia sobre a complexidade.

O método analítico corresponde, de acordo com Rosnay (1995), a um

arranha-céus que simboliza a pesquisa enciclopédica e que é construído, como

numa gigantesca biblioteca, para abrigar todo o conhecimento do mundo

organizado por disciplinas, onde a cada conhecimento novo corresponde uma

sala e a cada novo domínio um andar, com toda a dificuldade que há para nos

orientarmos e saber onde encontrar as informações pertinentes e em que andar

ou sala começar. O método sistémico, simbolizado por uma esfera, não tem no

seu interior nenhum compartimento, secção ou nível, pois todos os

conhecimentos vindos do exterior são permanentemente misturados (ideia de

trama) e colocados em perspectiva uns em relação aos outros. O conteúdo da

esfera enriquece-se assim globalmente, a parte contém o todo e o todo a parte,

tornando-se cada um significante para o outro. Tal como para o arranha-céus

enciclopédico, a expansão do volume dos conhecimentos é ilimitada, realizando-

se duma forma coerente e não por simples justaposição de saberes.

Na realidade, há uma profunda cegueira sobre a natureza do que deve ser

um conhecimento pertinente. Ora um mínimo de conhecimento do que é o

conhecimento, como refere Claude Bastian (1992, cit. Morin 1993, p.131), ensina-

nos que o mais importante é a contextualização e que a evolução cognitiva não

caminha para a instalação de conhecimentos cada vez mais abstractos, mas, ao

contrário, para a sua contextualização, pois é esta que determina as condições

22

da sua inserção e os limites da sua validade. Para Morin (op.cit.) o conhecimento

especializado é ele próprio uma forma particular de abstracção, pois extrai um

objecto dum campo determinado, rejeita as ligações e as intercomunicações com

o seu meio, inserindo-o num sector conceptual abstracto que é o da disciplina

compartimentada cujas fronteiras rompem arbitrariamente a sistematicidade (a

relação duma parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenómenos. Um

processo que conduz, por exemplo, à abstracção matemática, uma abstracção

que opera por si mesma uma cisão com o concreto, privilegiando, por um lado,

tudo o que é calculável e formalizável, e ignorando, por outro, o contexto

necessário à inteligibilidade dos seus objectos. É assim que Morin (op.cit.) dá

como exemplo a economia, a qual, sendo a ciência social matematicamente mais

avançada, é também a ciência social humanamente mais atrasada porque se

abstrai das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas e ecológicas que

são inseparáveis das actividades económicas. Essa a razão que faz com que os

especialistas económicos sejam cada vez mais incapazes de interpretar as

causas e as consequências das perturbações monetárias e bolsistas e de prever

e de predizer, mesmo a curto prazo, o curso económico.

O Papel da Inteligência

Estamos confrontados com a necessidade de uma reforma que deverá

passar necessariamente pela construção de novos instrumentos de análise, pela

emergência de um novo quadro de referência que possibilite a modificação

radical do processo de aprendizagem e da aquisição de conhecimentos e crie

condições para um trabalho em equipa. Um processo que passa, como refere

Crozier (1995), pelo reforço do papel da inteligência em todos os processos de

intervenção humana, pois não haverá mudança se ela não passar pela

transformação dos homens e os homens só mudam pela demonstração da

superioridade de um modelo intelectual. “Cela peut paraitre utopique mais, si l´on

considère l´évolution des affaires humaines, on s´aperçoit qu´en définitive, le

changement des pratiques a toujours été permis par l´apparition des

raisonnements nouveaux.” (op.cit., p.33)

Este privilegiar da inteligência só pode ser efectivo e desenvolver-se

integralmente se a esta estiverem associadas duas capacidades tão estruturantes

como são a invenção e o sentido estético. A invenção porque é um elemento

fundamental para a afirmação da pessoa como alguém capaz de conceber, em

23

cada momento, respostas para a complexidade das situações com que se

confronta no quotidiano, já que, como afirma Serres (1991), “é o único acto

intelectual verdadeiro, a única acção da inteligência. O resto? Cópia, batota,

reprodução, preguiça, convenção, rotina, sono. Único despertador: a descoberta.

Só a invenção prova que pensamos verdadeiramente a coisa, seja ela qual for.”

(p.95) O que conta é a descoberta de formas novas (e conteúdos inéditos)

precisamente na passagem de uma matéria a outra e na interacção que ela

possibilita. O sentido estético porque as combinações úteis são precisamente as

mais belas, aquelas que podem melhor fascinar o que Poincaré chamava de

sensibilidade especial. Se é fundamental ter um pensamento global e complexo

que nos permita compreender a realidade nas suas múltiplas dimensões, é

também fundamental que essa compreensão nos dê os dados que nos permitam

responder ao imprevisível, inventar outras realidades onde o conceito do belo

esteja presente duma forma significativa.

As Estratégias da Invenção

“Comment créez-vous, lui lançais-je en découvrant l´un des ses carnets d´aquarelles. Par petites touches d´irréalité, me répondit-il, avec ce sourire des yeux des vrais humoristes”

Jacques Séguéla 1993

Criar, é explorar para além do possível, é a cada novo projecto fazer o vazio

do «já visto», do «já dito», é destruir as ideias recebidas e as palavras usadas, o

conservadorismo e os atavismos, as hierarquias e os regulamentos. Criar, é

incendiar o extraordinário, nas palavras de Séguéla (1995).

A corrida à invenção é na prática uma constante desestabilização, um pacto

assinado com o ilogismo.

“Toutes les grandes révolutions de la pensée scientifique durent se faire non seulement contre les dogmes aristotéliciens, platoniciens ou chrétiens, mais aussi contre ce qui paraissait l´évidence et le bon sens: les règles informulées du code. Chaque fois il fallut battre en brèche l´orde établi de la pensée conceptuelle. Kepler renversa la doctrine «évidente» du mouvement circulaire uniforme; Galilée ruina la notion de bon sens que tout corps en mouvement doit avoir un «moteur» pour le tirer ou le pousser. Newton, non sans répugnance, dut contredire l´expérience et montrer qu´il y a action possible sans contact; Rutheford dut commettre une contradiction dans les

24

termes en affirmant que l´atome, dont le nom signifie «indivisible», est divisible. Einstein nous interdit de croire que les horloges tournent à la même vitesse en n´importe quel point de l´univers; la physique des quanta a escamoté le sens traditionnel de mots tels que matière, énergie, cause et effet.” (Kloester 1964, pp. 158-159)

Mas para que esta explosão de criatividade seja possível há que

desenvolver um outro olhar e uma outra atitude sobre as coisas, há que perceber

que a criação não nasce nos espaços da normalidade, mas sim nos espaços

intermédios ou de fronteira, há que combater a força do hábito e das convenções

que nos fecham no banal e numa realidade de que muitas vezes não nos

apercebemos, há que romper com as cadeias invisíveis e os constrangimentos

que funcionam para além do nível da consciência, pois frequentemente são as

normas colectivas, os códigos de conduta, que determinam as regras do jogo e

nos fazem avançar quase sempre nos carris do hábito, reduzindo-nos ao estado

de autómatos bem adestrados. Como escreve Koestler (op.cit.), “l´acte de la

découverte a un aspect disruptif et un aspect construptif. Il faut qu´il brise les

stuctures de l´organisation mentale afin d´agencer un synthèse nouvelle (p.88).

O processo de invenção pressupõe assim uma outra capacidade de olhar

que nos dê condições para procurar ao lado, como refere Paul Soriau na sua

teoria da invenção, ou de “prendre recul, de nous élever pour mieux voir, de relier

por mieux comprendre, de situer pour mieux agir” de acordo com as perspectivas

de Rosnay (1995, p.28). Uma necessidade e uma urgência desse outro olhar que

Italo Calvino (1990) defende quando, numa das suas “seis conferências para o

próximo milénio”, fala sobre a leveza e lança a ideia de que, numa altura em que

o reino do humano parece mais pesado, se deveria, tal como Perseu, voar para

outro lado. Considerando que não está a falar de fugas para o sonho ou para o

irracional, Calvino conclui que temos de mudar o nosso ponto de vista, temos de

observar o mundo a partir de outra óptica e de outros métodos de conhecimento

e análise. Só esse outro olhar, aliado a uma ideia de simplicidade e à

necessidade de que cada criativo reencontre, à sua maneira, a inocência da sua

infância, nos pode aproximar do mundo da invenção.

Efectivamente há que voltar às coisas simples, “à capacidade de formular

perguntas simples, perguntas que, como Einstein costumava dizer, só uma

criança pode fazer mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma nova

luz à nossa perplexidade" (Santos 1995, p.6). Na verdade foi esta simplicidade

que suportou muitas das invenções, invenções que partiram de atitudes e

processos extremamente simples como os de Marvin Minsky que inventou a

25

inteligência artificial analisando as crianças brincando com os cubos, ou de

Newton que compreendeu a gravidade concentrando-se numa maçã e Galileu a

Terra fixando as estrelas. A descoberta não é mais, como refere Séguéla (1995),

do que uma soma de deduções infantis e o génio é a capacidade de as ligar sem

medo do ridículo. Isto implica também o sermos capazes de desenvolver em cada

um a intuição, pois a aparição repentina de uma ideia nova é, efectivamente, um

acto de intuição, uma faísca/rasgo miraculoso, um curto-circuito da razão. A

procura do improvável exige longos e rudes esforços, mas o mediador é em

definitivo o inconsciente – com a sua souplesse e a sua liberdade, com a sua

libertinagem intelectual, a sua força visionária.

Está aqui em causa um processo de invenção que, para Serres (1991,

p.34), exige a passagem por um terceiro lugar, dado que é nesta franja fina, nesta

fronteira precisa entre a ordem perfeita e a anarquia total, neste estado de

transição instável e ao mesmo tempo estabilizado, que se situam os fenómenos

que constróem a vida, a sociedade, o ecosistema. A terra mais fértil é

aparentemente a da margem pantanosa, a região fronteira entre o sonho e o

acordar, onde as matrizes do pensamento disciplinado operam já sem ter tido

tempo de endurecer o bastante para perturbar a fluidez onírica da imaginação.

Nos sonhos acordados e na maior parte dos sonhos dos simples mortais, estas

actividades vão à deriva ou não servem senão para fins íntimos; nos momentos

inspirados do artista ou do sábio elas são empregues para fins criativos. Einstein

refere que teve a ideia da profunda generalização sobre o espaço e o tempo

quando estava na cama doente. Descartes, diz-se, fez as suas descobertas de

manhã na cama. Cannon e Poincaré escreveram que tiveram brilhantes ideias na

cama sem poder dormir – é a única coisa positiva das insónias. Conta-se também

que o grande engenheiro James Brindley, logo que se confrontava com um

problema difícil ficava deitado durante vários dias até que encontrava a solução.

Walter Scot escreveu a um amigo que a meia hora entre o acordar e o levantar foi

durante toda a sua vida um tempo propício às tarefas um pouco árduas, pois foi

sempre ao abrir dos olhos que via chegar em grande número as ideias que

desejava.

Se o pensamento disciplinado nos obriga a ficarmos presos a tal ou tal

sistema de referência, o acto criador, na medida em que depende de recursos

inconscientes, supõe um relaxamento dos controles e um retorno a formas de

criação de ideias que são indiferentes às contradições, aos dogmas e aos tabus

do que se chama senso comum.

26

“Au stade décisif de la découverte, les codes du raisonnement discipliné cessent de s´appliquer, de même que dans le rêve et la rêverie où le courant de l´idéation est libre de s´échaper pour vagabonder apparemment sans lois.” (Koestler 1964, p.160)

Uma vagabundagem que leva à descoberta do desconhecido, ao confronto com

coisas novas, com o imprevisto, numa perspectiva que deveria ser uma constante

em cada pessoa, em todos os seus tempos e actividades, pois é este sentido de

aventura que nos ajuda a crescer, a abrir-nos a outros mundos, num processo

como aquele de que Umberto Eco (1983) nos fala quando refere como é

importante cada um poder aventurar-se no interior de uma biblioteca:

"Um dos mal entendidos que dominam a noção de biblioteca é o facto de se pensar que se vai à biblioteca pedir um livro cujo título se conhece. Na verdade acontece muitas vezes ir-se à biblioteca porque se quer um livro que se conhece, mas a principal função da biblioteca, pelo menos a função da biblioteca da minha casa ou a de qualquer amigo que possamos visitar, é de descobrir livros de cuja existência não se suspeitava e que, todavia, se revelam extremamente importantes para nós. (...) Ou seja, a função ideal de uma biblioteca é de ser um pouco como a loja de um alfarrabista, algo onde se podem fazer verdadeiros achados, e esta função só pode ser permitida por meio do livre acesso aos corredores das estantes." (pp.28-29).

A Imprescindibilidade da Dimensão Estética

O desenvolvimento dos processos de invenção tem que estar suportado por

um forte sentido estético que dê a cada uma das coisas que se inventam uma

dimensão única e fascinante. Efectivamente, o sentido do belo é algo que

interessa a toda a actividade humana; o matemático, de acordo com Koelster

(1965), é incapaz de prever o sucesso das suas tentativas, mas há certo sentido

do belo que o guia e que é sem dúvida o mesmo que guiava os geómetras

gregos quando estudaram a elipse. Poincaré afirmava que, quando nos

admiramos ao ver invocar a sensibilidade estética a propósito das demonstrações

matemáticas que, parece, não podem senão interessar à inteligência, estamos a

esquecer o sentimento da beleza matemática, da harmonia dos números e das

fórmulas, da elegância geométrica. É um verdadeiro sentido estético que todos os

verdadeiros matemáticos conhecem. Para Poincaré, as combinações úteis são

precisamente as mais belas, aquelas que podem melhor fascinar o que chamava

27

chamava de sensibilidade especial. Para Max Planck, o pai da teoria dos quanta,

o sábio deve ter uma viva imaginação intuitiva para as ideias novas, uma

imaginação que não vem da dedução, mas sim da imaginação artisticamente

criadora. Mesmo os grandes actores da história da informática, como Alan Turing,

Douglas Engelbart ou Steve Jobs, não entenderam o computador como um

autómato funcional, apostaram na sua dimensão subjectiva, maravilhosa ou

profética, pois, como refere Pierre Levy (1990), há toda uma dimensão estética

ou artística da concepção das máquinas ou das aplicações. É esta dimensão

estética que provoca um envolvimento emocional e estimula o desejo de explorar

novos territórios existenciais ou cognitivos, ligando o computador a movimentos

culturais, a revoltas, a sonhos, apostando na sua dimensão subjectiva,

maravilhosa ou profética, aproximando os seus autores, enquanto criadores, dos

etnógrafos e dos artistas.

Como escreveu Serres (1992), “je n´ai jamais cessé de chercher la beauté.

Souvent le beau est l´éclat du vrai, presque son test. Le style est le sygne de

l´invention, du passage par un paysage neuf“ (p.43).

28

No Interior de uma prática capaz de transformar o quotidiano escolar

“A reforma do pensamento precisaria de uma reforma do ensino (primário, secundário, universitário) tal como este necessitaria de uma reforma do pensamento. É evidente que a democratização do direito de pensar precisaria de uma revolução paradigmática que permitisse a um pensamento complexo reorganizar o saber e ligar os conhecimentos hoje fechados nas disciplinas. “Isso implica uma revolução mental ainda mais considerável do que a revolução coperniciana. Nunca na história da humanidade as responsabilidades do pensamento foram tão esmagadoras”.

Edgar Morin 1993

A escola interessa-nos aqui enquanto espaço por excelência de

experimentação e de produção de pensamento, onde, pelo facto de aí existirem

especialistas das diferentes áreas do conhecimento, é natural que hajam espaços

de cruzamento, interferência e contaminação entre os vários saberes, haja

produção de um pensamento novo. Só nestas condições tem sentido a

integração no seu interior de uma oficina de teatro que deve ser, pela própria

natureza do fenómeno artístico, um tempo e um espaço privilegiado da multi e

transdisciplinaridade, um espaço onde convergem, porque necessários ao próprio

processo de criação, as preocupações, os problemas e as realizações de

diferentes áreas do saber. Uma realidade que poderia permitir que no interior das

escolas se tornasse possível o desenvolvimento de projectos experimentais que,

ao necessitarem de dados, informações e instrumentos interdisciplinares,

possibilitariam a descoberta, pelos seus diferentes intervenientes/ parceiros, que

os saberes não têm fronteiras e que cada vez há uma maior interdependência

entre as várias áreas do conhecimento. Criam-se, deste modo, condições para a

emergência da revolução paradigmática de que fala Morin (1993), que permita a

um pensamento complexo reorganizar o saber e ligar os conhecimentos hoje

fechados nas disciplinas. De notar que é na abertura deste espaço multi ou

transdisciplinar que se traduz um dos maiores desafios que o teatro traz à escola

actual e do qual podem emergir alguns dos sinais de mudança. Como escreve

Jean Pierre Ryngaert (1991):

"il me semble indispensable de chercher toutes les occasions de fondre des différentes disciplines dans le creuset de la théâtralité, de supprimer les barrières et d´indure dans la formation cette préoccupation pour une

29

activité dramatique que traversent réellement différents savoirs"(p.34).

Hoje tem-se consciência de que as escolas dedicam muito pouca atenção

ao trabalho de pensar o trabalho, isto é, às tarefas de concepção, análise,

inovação, controlo e adaptação, o que pode ser explicado pelo facto da lógica

burocrática do sistema de ensino implicar uma organização individual do trabalho

docente e uma redução do potencial dos professores e das escolas. E esta

questão é tão mais importante quanto também sabemos que as escolas poderão

ser um espaço privilegiado de produção de pensamento, de um pensamento

complexo capaz de cruzar diferentes áreas do saber, dado serem lugares onde

se concentra um dos mais numerosos grupos profissionais e também um dos

mais qualificados do ponto de vista académico (Nóvoa 1992), grupo esse que

está relativamente protegido dos confrontos políticos, das competições

comerciais e das tentações gestionárias. Com efeito, grande parte do potencial

cultural (e mesmo técnico e científico) das sociedades contemporâneas está

concentrado nas escolas, pelo que “não podemos continuar a desprezá-lo e a

menorizar as capacidades de desenvolvimento dos professores. O projecto de

uma autonomia profissional, exigente e responsável, pode recriar a profissão de

professor e preparar um novo ciclo das escolas e dos seus actores" (op.cit.,

p.29).

Poderá assim pertencer à escola um papel primordial na tarefa de pensar o

futuro e a grande questão que se coloca é saber como fazê-lo quando temos

consciência que a escola hoje é uma estrutura que, pela sua própria natureza e

modo de organização, tem tendência a partir e separar os conhecimentos em

disciplinas, tornando as ligações e as interdependências entre elas extremamente

difíceis, não só pelo modo como organiza os conteúdos e os tempos das

aprendizagens, mas também pela própria dimensão corporativa de organização

dos professores e das implicações que tal forma de se pensarem na profissão

docente tem no modo como concebem o processo de ensino – aprendizagem. Há

então que apostar decididamente nas escolas e nos projectos que potenciem

essa produção de pensamento, o que implica que decididamente se apoiem os

professores, pois, como considera Crozier (1995), as ideias não são nada sem

uma estratégia e uma estratégia não tem sentido se não dispõe do conhecimento

dos únicos recursos que contam a prazo: os recursos humanos. E isto é tão mais

importante quando sabemos como os estabelecimentos de ensino continuam a

30

ser vistos, essencialmente, como um agrupamento de salas de aula onde se

descura toda a vida escolar para além dos 50/90 minutos lectivos.

Sabemos também como se descura uma afectação de espaços onde os

professores possam trabalhar individualmente ou em grupo e como o espaço é

uma realidade que condiciona efectivamente a nossa maneira de pensarmos a

organização das nossas actividades. Daí que um projecto desta dimensão deva

também provocar a reflexão sobre o que tem sido a política e os princípios que

suportaram e enquadraram os modelos da arquitectura das escolas que hoje são

dominantes em Portugal e, possivelmente, chegar à conclusão que a pesquisa de

uma solução poderá passar pela implosão dos edifícios escolares actualmente

existentes. Uma reflexão que fosse capaz de provocar a emergência de

propostas como as que os americanos fizeram para as Escolas +, escolas do ano

2000 a que já aludimos anteriormente, instituições dotadas de uma arquitectura

capaz de ser espaço de desafio e de construção de um outro conceito de

aprendizagem, liberto de constrangimentos tais como o horário escolar, o

calendário lectivo, a divisão em disciplinas, o plano de estudos, o tamanho das

turmas, a distribuição do espaço, os ritmos da aprendizagem, as estratégias de

avaliação, o recrutamento dos professores, as estruturas de direcção e de

gestão, o papel dos alunos ou a natureza dos conteúdos.

A forma como se pensa ou deveria pensar a organização espacial dos

edifícios está sempre presente quando nos debruçamos sobre os projectos ou as

estruturas que implicam o confronto com ou a descoberta de novos

conhecimentos. Borges, citado por Eco (1983), fala de um universo, a que chama

biblioteca, constituído por um número indefinido e talvez infinito de galerias

hexagonais, com vários poços de ventilação ao meio e cercados por varandas

baixíssimas, de onde se vêem interminavelmente os pisos superiores e inferiores.

Umberto Eco, pela sua parte, completa a reflexão sobre o conceito de biblioteca

com algumas questões sobre a organização do espaço, partindo da estrutura da

biblioteca de Toronto onde toda a gente pode circular e retirar os livros do lugar:

“Este tipo de biblioteca foi feito à minha medida, posso decidir passar lá um dia inteiro em santa delícia : leio os jornais, desço até ao bar com alguns livros, depois vou à procura de outros, faço descobertas. Entrara ali para me ocupar, suponhamos, do empirismo inglês e em vez disso começo a seguir o rasto dos comentadores de Aristóteles, engano-me no andar, entro numa zona onde não suspeitava que pudesse vir a entrar, de medicina, mas de repente encontro algumas obras sobre Galeno, portanto com referências filosóficas. A biblioteca converte-se neste sentido, numa aventura.” (p.32)

31

A inexistência de espaços específicos no interior das escolas para as

práticas artísticas, se é por um lado limitadora do desenvolvimento integral das

mesmas, pode, por outro, ser extremamente motivadora do lançamento de todo

um processo/projecto de experimentação e criação de espaços que tenham como

referência não só as questões internas da criação artística, mas tudo aquilo que

estamos a afirmar no sentido da oficina de teatro como espaço de convergência

das várias áreas do saber.

Mas esta ideia dos espaços e das áreas de convergência não se deve

limitar ao interior da escola como realidade isolada, tem sim de criar articulações

e pontes com as comunidades onde se insere. Como referiu Nóvoa (1992)

durante o 1º Encontro Mundial de Teatro e Educação, hoje, a necessidade de

uma interacção escola-comunidade está de novo na ribalta, devido a três

questões que encontram algumas respostas pertinentes na experiência das

actividades teatrais. Para o autor, a primeira dizia respeito à degradação de

muitas áreas populacionais, sobretudo nas grandes cidades, cujas realidades

sociais inviabilizam qualquer esforço educativo, o que implicava um investimento

com uma estratégia de dupla pista: não canalizando os recursos unicamente para

os espaços escolares stricto sensu, mas dirigindo-os também para a

consolidação de laços de interacção entre as escolas e as comunidades. A

segunda questão prendia-se com a necessidade de sair da escola e de romper

com um pensamento excessivamente escolarizado, como única maneira de

apreender a complexidade do real educativo. A terceira e última questão remetia

para uma nova visão das escolas, como espaços onde as comunidades têm

direito a intervir com capacidade de decisão, pois considerava o autor que às

comunidades locais competia uma parcela importante na identificação das

necessidades de aprendizagem e das áreas curriculares, bem como na

construção de redes de trabalho e de cooperação.

Para todas estas questões encontrava Nóvoa uma resposta no campo das

práticas artísticas e, em especial, no teatro. Em primeiro lugar, e como referiu,

sempre que a escola quis lançar pontes para o exterior, recorreu em primeira

linha às expressões artísticas, sobretudo ao teatro, nalguns casos com excessos

propagandísticos. Em segundo lugar, quem melhor do que a arte pode levar para

a escola as diversas realidades, os diversos olhares e sensibilidades que

atravessam a sociedade? Em educação é preciso trabalhar, simultaneamente,

numa perspectiva local e global porque, como escreveu Miguel Torga, "O

Universal é o local, menos os muros". São estes muros que, para Nóvoa (1992),

32

o teatro sempre ajudou a quebrar. Então a inteligência, no seu sentido original,

interligar, poderá desenvolver-se nas nossas escolas.

Quando se referiu à tradição de redes, o autor em foco considerou que ela

passa também pelo campo da animação cultural e artística, o que implicará

necessariamente a celebração de protocolos entre as escolas e as autarquias

e/ou as colectividades para a dinamização artística e cultural das regiões e para o

lançamento de centros artísticos. Aproximar a decisão dos actores é, sem dúvida,

uma condição essencial para que cresçam projectos integradores nas escolas,

projectos que permitam às comunidades participar nos processos culturais,

facilitando a alfabetização artística das sociedades actuais. A arte tem sido ao

longo dos tempos um dos espaços privilegiados de articulação entre o universo

escolar e a comunidade e é neste sentido que as novas perspectivas de

organização escolar não podem deixar de fazer um apelo a um esforço renovado

de criação artística no seio dos estabelecimentos de ensino, tanto na perspectiva

de domínio integrador por excelência, como na de despoletador de projectos

culturais e pedagógicos.

Esta ideia de cruzamento, de quebrar com o isolamento e de romper com

as fronteiras não pode naturalmente ficar limitada ao interior das escolas, tem

também necessidade e urgência de se articular com os parceiros e as estruturas

sociais da comunidade onde estas se inserem. As práticas de experimentação e

de criação não se podem afirmar no interior da escola se no exterior não houver

focos de desafio que rompam a sua estrutura compartimentada e façam emergir

uma dinâmica de circulação entre o interior e o exterior, tanto nas diferentes

disciplinas e áreas do conhecimento, como nas estruturas sociais implicadas nos

projectos de formação.

Esta ideia da necessidade de criar espaços de circulação não é uma

preocupação que exista somente no domínio das práticas artísticas,

atravessando neste momento tudo o que poderá ser percebido como actividade

experimental no interior das escolas, como é testemunhado de forma clara por

Gago (1988) quando perspectiva um museu vivo da ciência que defende não

dever ser um museu do património, mas sim um espaço onde os jovens se

sintam à vontade, onde possam entrar e sair, onde façam experiências, onde

comuniquem. Um museu que se afirme como um verdadeiro desafio para as

práticas e os projectos que se desenvolvem no interior das escolas, um local

“para onde, se nas escolas a ciência for mal ensinada, os jovens estudantes

fujam, faltem às aulas para ir a esse espaço”. (op.cit., p.51)

33

A cultura no interior de um projecto de desenvolvimento

A perspectiva de ligar a cultura ao desenvolvimento permite aclarar o

conceito de cultura e cria condições para a percepção de como o seu quadro de

acção vai muito para além do universo limitado das belas-artes e da educação

stricto sensu, alargando a sua intervenção a todas as dimensões da vida social e,

nomeadamente, à ciência, ciência que, de acordo com cientistas tão significativos

como Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, se deve reconhecer como parte

integrante da cultura no seio da qual se desenvolve. A cultura não é

efectivamente o que permite brilhar nos salões, nem o que resta quando

esquecemos tudo, é “une capacité à mettre en oeuvre des références, des

schèmas d´action et de communication. C´est un capital d´habitudes incorporées

qui structure les activités de ceux qui la possèdent.» (Warnier 1999, p.11). A

cultura é a bússola de uma sociedade, sem a qual, como considera ainda Warnier

(op.cit.), os seus membros não saberiam nem donde vêm, nem como lhes

convém comportarem-se. A cultura dá ao homem a capacidade se situar perante

o mundo, não o deixando desarmado face aos problemas que se lhe vão

colocando e tornando-o capaz de os contextualizar no seu tempo e na sua

história, capacidade de contextualização esta que é fundamental no mundo de

hoje pois, como afirma Morin (2000), “le vrai problème est de pouvoir faire la

navette entre des savoirs compartimentés et une volonté de les intégrer, de les

contextualiser ou de les globaliser” (p.8).

A cultura é aqui entendida como espaço de criação de um destino pessoal e

criativo que deve assumir o seu pleno significado e dimensão, tanto na

perspectiva de antídoto para as crises, como na de espaço privilegiado de

invenção de um mundo diferente, da prospectiva, onde o desenvolvimento

apareça como inseparável da realização de todo o homem e de todos os homens,

da sua liberdade e autonomia, da qualidade das relações que estabelecem e da

capacidade de se situarem no mundo e de participarem em tudo aquilo que lhes

diz respeito. Na sua dupla dimensão de elemento estável que reproduz e

perpetua a instituição social e de forum donde emergem os gestos criadores

imprevisíveis e indeterminados, a cultura pode ter um papel indispensável no

processo de invenção de um novo estilo de vida, de um novo quadro de

referências, desde que seja capaz de integrar em permanência as novas

representações e os novos códigos simbólicos que emergem no seu próprio seio

e que são resultantes dos próprios processos de mudança. Como afirma Moktar

(1985), se uma cultura « ne réussit pas à assumer ce défi qui l´institue, elle se

34

sclérose en des formes rigides, dégénérées, potentiellement auto-destructives,

comme celles que sous-tendent les sociétés totalitaires”(pp. 30-31).

Neste quadro, e de acordo com Gaudibert (1972), parece-nos importante

referir que o combate por um projecto cultural numa perspectiva de

desenvolvimento não se situará mais nos aparelhos culturais, passando sim por

todos os poros e interstícios da vida quotidiana, única forma de podermos ter

esperança que a cultura seja um elemento capaz de mudar, ao mesmo tempo, a

sociedade e a vida. Para Gaudibert (op.cit.), a arte deveria encontrar a rua e a

cultura deveria encontrar a vida quotidiana, uma perspectiva que põe em causa

os lugares e instituições culturais e, sobretudo, reafirma “le refus de la division

entre une minorité de spécialistes se réservant le monopole de la création

artistique et une masse de purs récepteurs de produits artistiques » (p.138).

Trata-se de recriar a ideia da criatividade generalizada e permanente de todos,

onde o único sentido da acção cultural seria o de ajudar a criatividade a encontrar

os seus meios de expressão. A arte e a cultura são assim repostas ao lado do

quotidiano e do existencial, uma ideia que é reforçada por Goldman (1971) ao

defender a cultura, ou mais precisamente qualquer obra cultural, como o ponto de

encontro ao nível mais elevado da vida do grupo e da vida individual, “residindo a

sua essência no facto de elevar a consciência colectiva a um grau de unidade

para o qual estava espontaneamente orientada mas que nunca teria atingido na

realidade empírica sem a intervenção da individualidade criadora” (p. 103).

Só com uma dimensão cultural enquanto realidade que atravessa todos os

domínios do social e que, ao fazê-lo, nos incentiva e obriga a ultrapassar as

visões localizadas e redutoras que ainda são dominantes na nossa sociedade,

estaremos em condições de inventar outras realidades. Como refere Dupuis, “il

s´agit de renverser la problématique du développement en reconnaissant à la

culture son pouvoir de structuration et sa dynamique, qui font qu´il ne peut y avoir

de développement sans un approche globale des problèmes.” (1995, p.26)

35

Presença permanente do teatro no interior deste processo

Neste processo de afirmação da cultura como bússola de uma sociedade,

como algo que dá ao homem a capacidade de se situar no mundo, de que forma

as práticas teatrais poderão ser um espaço e um tempo capazes de criar

condições para a descoberta e afirmação de cada um enquanto pessoa, capaz

de fazer pensar de uma forma complexa a sociedade em que vive, de inventar

respostas criativas para as situações imprevistas com que diariamente cada um

se confronta e de dar a essas respostas uma forte dimensão estética?

Enquanto prática artística que trabalha a partir de temáticas do nosso

quotidiano, das preocupações e dos anseios que em cada momento histórico o

atravessam, ao possibilitar no seu espaço de ficção a visualização de outros

mundos que muitas vezes são mais reais que a própria realidade, o lugar do

teatro é um dos espaços privilegiados onde é possível inventar futuros possíveis.

Por isso podemos afirmar que hoje a linguagem e a prática teatrais são um

instrumento indispensável a qualquer projecto que se queira de mudança, já que,

ao criarem ficção a partir da combinação das imagens da realidade, permitem a

libertação do actual para criar um possível.

A concretização da participação do teatro num projecto com estas

características implica que encontremos no interior das suas práticas teóricas um

quadro de referência que permita que ele intervenha, simultaneamente, como

área de projecto que desafia as várias áreas do saber a trabalharem em conjunto

e a cruzarem os seus saberes e como espaço de produção ficcional que dê corpo

e produza o pensamento resultante dessa interpenetração. Este quadro

encontramo-lo no interior das práticas e das reflexões de autores que, como

Peter Brook, Robert Wilson, Eugénio Barba, Ariane Mnouchkine, Robert Lepage,

etc., são hoje as referências contemporâneas mais significativas duma prática

teatral intercultural que tem como objectivo principal conceber e criar uma ideia

de cultura mundial que seja, ao mesmo tempo, capaz de respeitar a diversidade e

de encontrar e explorar os pontos de convergência entre as várias práticas, os

vários projectos e as múltiplas culturas.

Que princípios e que pressupostos dominantes que encontramos na obra

destes autores de referência que possam responder às necessidades, às

urgências e aos desafios do quadro que temos vindo a explicitar?

36

Em primeiro lugar, trazer a pessoa para o centro da realidade e das

preocupações de um processo de mudança é o objectivo prioritário destas

práticas teatrais que se afirmam como capazes de criar espaços de jogo onde

cada um possa descobrir e interpretar diferentes personagens e situações e, ao

fazê-lo, acordar em si capacidades desconhecidas ou adormecidas e desenvolver

todas as cordas sensíveis do seu ser. Personagens e situações desconhecidas

que quanto mais profundas e complexas forem mais rica tornam a dinâmica de

descoberta e de crescimento, num processo de procura do outro que é também o

eu. Como escreveu Artaud citado por Brook (1977), o teatro é “le seul endroit où

nous pouvions nous libérer des contraintes de nos vies quotidiennes. Cela faisait

du théâtre un lieu sacré où trouver une réalité plus profonde"(p.79).

Para Brook (1993), o actor é exaltado pelo acto de representar e quando

representa em boas condições e desenvolve uma verdadeira pesquisa é melhor

do que o que de facto é na vida. Quando cessa de o fazer e volta à vida

quotidiana também já não é o mesmo, pois a sua vida alimentou-se da sua

experiência no palco, num processo recíproco que nunca se confunde. A

verdadeira personagem existe pois escondida no próprio actor e ao subir à

superfície transforma-o, num percurso de transformação que se trabalha pela

sinceridade, pelas emoções e pelo jogo e que só acontece se acreditar no que

representa, no que é, no que incarna e no que o outro incarna. O trabalho teatral

põe a nu o ser e os seus possíveis e dá a ver o outro na sua diferença e nas suas

riquezas insuspeitas, "il nous fait pénétrer sur la scène du monde par cette

mécanique subtile de la relation des hommes entre eux. Ainsi nous convie-t-il

peut-être à entrevoir un bout du réel" (Bonnaud 1990,p.43).

Este processo de descoberta de cada um através do confronto e da

interpretação de personagens permite-nos ir mais longe quando no interior do

universo de uma peça podemos experimentar a diversidade de personalidades,

sensações e desejos, os diferentes pontos de vista que nos oferecem as

personagens existentes numa peça. É esta ideia de respeito e incentivo da

diversidade que dá ao teatro uma outra dimensão e o afirma ainda mais como um

instrumento privilegiado de afirmação da globalidade da pessoa, de leitura e

intervenção no mundo, na realidade. Ainda que consideremos que cada

personagem de uma peça contém todas as outras e que há um pouco de

« Prince dans Falstaff, un peu du père dans le fils, un peu de la fiancée dans le

fiancé, un peu de la fiancée dans la nourrice, un peu de la nourrice dans

Juliette..." (Brook 1992, p.13), esta possibilidade de cada um se confrontar e se

37

meter na pele de cada personagem dá uma outra dimensão ao processo,

permitindo que cada um se assuma como pivot de diferentes perspectivas. É

importante não esquecer que o elemento base de uma peça é o diálogo e que

este pressupõe uma tensão entre duas pessoas em desacordo, um conflito onde

a cada lado ou opinião deve ser dado igual grau de credibilidade: "Si l´auteur est

doué d´une générosité infinie, s´il n´est pas obsédé par ses propres convictions, il

donnera l´impression qu´il est en total osmose avec chacun. Tchekhov en est un

exemple" (Brook 1992, p.31).

É na procura duma cada vez maior complexidade na compreensão das

personagens e dos conflitos reais e latentes que emergem do interior das

histórias, que Peter Brook, durante o trabalho de montagem de um espectáculo,

faz com que os actores troquem de papéis durante os ensaios, o que permite a

cada um receber outras impressões da personagem que procuram interpretar e

estimular a sua compreensão. Esta troca permanente permitia que cada membro

do grupo pudesse acrescentar uma nova interpretação de cada papel, ajudando à

evolução global da peça. Foi o que aconteceu na Carmen com os cantores e, nos

espectáculos com textos de Shakespeare, com os actores que nunca tinham

representado este autor. Na Carmen, o actor Maurice Bénichou representava o

papel quando os cantores se mostravam incapazes de transformar a sua

representação normal em acções detalhadas e cheias de sentido, num processo

que permitiu que estes últimos adquirissem o gosto do que significa o jogo de

detalhe e tivessem podido procurar, duma maneira pessoal, os seus próprios

detalhes. Este processo ajudou igualmente os actores que nunca tinham

representado Shakespeare a desembaraçarem-se totalmente do que tinham

adquirido, pois ao terem oportunidade de experimentar uma cena a partir de um

modelo preciso criado por um actor mais experiente, libertavam-se da antiga

técnica e podiam lançar fora o modelo, como uma criança lança fora a bóia logo

que aprende a nadar.

Em segundo lugar, o que detectamos na obra destes criadores, e que nos

parece significativo para esta abordagem, tem a ver com a ideia de abertura aos

outros e ao novo, com a disponibilidade para reformular e adaptar

permanentemente aquilo que é feito, pois o teatro é, mais do que qualquer outra

prática artística, aquela que nos abre a via na direcção de uma outra apreensão

dum mundo em transformação. Capacidade de abertura, de reformulação e

adaptação permanente que é referida por Brook (1992) quando este considera,

38

como exemplo, que não há nada pior do que o que acontece aos pintores quando

começam a dar uma marca particular aos seus trabalhos e são por essa marca

reconhecidos. É que a partir daí o pintor « ne peut plus assimiler le travail de qui

que ce soit d´autres sans perdre la face. Cela n´a aucun sens au théâtre. Le

domaine où nous travaillons doit être celui du libre-échange"(p.37).

Na verdade hoje há uma efectiva atitude de abertura e disponibilidade que

poderemos encontrar, para além de Brook, nos processos de trabalho dos

criadores de referência como é Hélène Cixous, dramaturga do Théâtre du Soleil

de Ariane Mnouskhine, que para escrever uma peça fala da necessidade de se

atingir um estado de demoisation e de se estar disponível para que os outros nos

possam ocupar e invadir, o que lhe permite ser de repente invadida por todo um

povo e por personagens muito precisos que não conhecia e que se tornam seus

parentes para a eternidade. Um processo que a dramaturga constatou passar-se

da mesma forma com os verdadeiros actores que são pessoas que têm o eu

"assez réservé, assez humble pour que l´autre puisse l´envahir et l´occuper; il

donne lieu à l´autre d´une manière inouie" (Cixous 1988, p.86). Uma capacidade

para estar disponível que, em interacção com as energias suplementares

libertadas no teatro, na representação dos conflitos, no canto e na dança, no

entusiasmo e nos risos, cria condições para que, numa hora, coisas

surpreendentes se possam passar:

"Cet effet est particulièrement intense si le groupe d´acteurs comprend des gens d´origines diverses. Avec une troupe internationale, une profonde compréhension peut naître entre des gens qui semblent n´avoir rien en commun" (Brook 1992, pp151-152).

Um modo de estar que só o teatro é capaz de incentivar, mas que não se

pode satisfazer e limitar em exprimir um único ponto de vista, pois se o fizer está

claramente a empobrecer o todo.

Esta ideia de abertura inerente ao processo de criação teatral deve ter

como base, segundo os autores que temos vindo a referir, procedimentos e

métodos de abordagem que privilegiem a dimensão do sensível. A questão não

está na negação dos valores dos tempos modernos como a lógica, a

racionalidade e a linearidade, mas na abertura secreta de espaços ao ilógico, ao

irracional, ao cíclico. O teatro funciona na sua obra como experiência vivida

mobilizadora da totalidade das capacidades de ver e de escutar e como forma de

meditação que alarga o aparelho sensorial do homem, o que dá sentido ao facto

39

do autor basear o trabalho sobre qualquer coisa de aberto, sobre qualquer coisa

que não conhece.

A verdade é que hoje estamos confrontados, entre o inteligível e o sensível,

com dois modos de apreensão da realidade, um analítico e outro sistémico.

Modos esses que caracterizam as diferenças entre o teatro de pesquisa e o

teatro tradicional, partindo o primeiro de um conjunto de objectos e de relações

estabelecidas espontaneamente entre eles para chegar a uma estrutura,

enquanto o segundo se apoia numa estrutura (ideia, peça, etc.) que se explicita

por meio de objectos e de relações pré-estabelecidas:

"Si la saisie de l´environnement est guidée par la raison ou par la transparence du logos dans le théâtre traditionnel, la catalysation ou la cristallisation de la vision du monde passe d´abord par l´impression et bien souvent par le décalage dans le théâtre de recherche, qui donne à voir la pensée en mouvement. Dans ce dernier cas, le paradigme de la cognition ne tient pas avant tout dans le raisonnement, mais bien dans la perception, dans l´impression, dans la resensorialisation." (Herbert 1994, p.69).

O teatro de pesquisa cria na base de recursos sensíveis, no interior de

modelos de criação que estão regidos pela imaginação e pelas intuições do

colectivo de trabalho, num processo que se baseia na exploração livre, sem

limites e sem fins precisos: "Au lieu de formuler des discours sur les choses à

partir des idées (un théâtre du logos, du discours rationnel), nos artistes ont

repensé le langage théâtral en laissant parler les choses, en les explorant sans a

priori"(op.cit., p.68).

No fundo tudo é mutável, polimorfo e próximo do funcionamento da poesia

onde,

"un drap devient un linceul, un écran, une pure teinte, un voile...(...) l´organisation du sens dépend tout à la fois du maillage de noeuds hétérogènes, des accouplements chimériques qui en résultent, bref des multiples possibilités offertes par l´interaction, et du rapport dynamique, créatif qui s´en suit entre l´instance spectactrice et le fait scénique" (op. cit., p. 68-69).

Como diz Brook (1992), a sua ligação a uma peça começa a partir de um

pressentimento obscuro e profundo, semelhante a um odor, a uma cor ou a uma

sombra. Para o encenador, é esse obscuro pressentimento que lhe dá a

convicção de que essa peça deve ser montada hoje, convicção sem a qual nada

40

lhe seria possível: “Je pourrais mettre en place une sorte de synthèse technique

et quelques idées que mon expérience m´a apportées, mais ça ne donnerait rien

de bon » (p.15). Brook não dispõe pois de nenhum sistema para montar uma

peça, dado que é a partir desse sentimento sumário e informal que a começa a

preparar.

Em terceiro lugar, o teatro é portador de potencialidades

interdisciplinares e de percepção da complexidade, pois o processo de

criação de projectos efectivamente inovadores implica a mobilização e o apoio

das múltiplas áreas do saber levando os seus actores a descobrir que os saberes

não são disciplinares, mostrando-lhes que cada vez mais há uma

interdependência das várias áreas do conhecimento e que os muros e as

barreiras entre as pessoas e os saberes são produto de uma realidade

artificialmente imposta.

O afirmar do teatro enquanto prática que tem como terreno de acção a

própria vida, onde a pessoa é o centro de todas as preocupações, coloca-o num

lugar privilegiado da prática social, em geral, e da estrutura escolar, em particular.

Um lugar privilegiado de onde podem emergir algumas das respostas às

questões colocadas por aqueles que, nas diferentes áreas do saber, têm

consciência que a actual fragmentação e especialização do conhecimento

científico tem forçado o homem a abandonar o seu desejo de unidade do

conhecimento. Fragmentação e especialização do conhecimento que se tornam

cada vez mais pertença de especialistas, o que impede que o homem, porque

não lhe é devolvida uma imagem unitária do mundo em que ele vive, possua uma

teoria unificada no interior da qual possa encontrar pontos firmes de referência

para a compreensão da sua própria condição: "A humanidade do Homem, o seu

lugar de "espelho" do Universo, não pode consistir na mera acumulação de

saberes mas exige a sua integração num todo significativo que só pela ideia de

comunidade subjectivamente constituída pode ser perseguido e alcançado"

(Pombo 1993, p.177).

Porque os homens do teatro são uma espécie de caçadores furtivos que,

servindo-se do que têm à mão, procuram em todas as áreas o que pode ser útil e

operacionalizam no fazer saberes e métodos de todas as disciplinas (Nóvoa

1992), a função das práticas teatrais no interior da estrutura escolar será a de

descobrir relações ou ligações entre as áreas do saber, provocando encontros,

motivando projectos e inventando novas práticas que obriguem a sala a sair da

pedagogia encaixotada, a não se deixar fechar dentro do preparado para ensinar,

41

a arriscar afrontar o desequilíbrio, o imprevisto e a insegurança, trazendo para a

escola a paixão e o mistério, a capacidade e a fantasia, a prospectiva e a utopia.

Neste contexto o teatro tem todas as condições para ser um espaço

privilegiado de descoberta que permita e incentive a

“penser à côté et chercher une matrice auxiliaire qui débloquera la situation en accomplissant une tâche qu´on ne lui avait jamais demandée auparavant. La découvert consiste essentiellement à avoir l´idée de cette matrice, comme Guttemberg eut l´idée du pressoir et Keppler celle de la force solaire. Dans la pensée banale nous scrutons la périphérie crépusculaire du conscient, guidés par une montagne d´exploration plus ou moins automatique. Dans la pensée créatrice nous scrutons les profondeurs, apparemment sans guide. Il doit y avoir un guide cependant – à moins que toute invention ne soit due au hasard des touches qu´enfonce patiemment le singe dactylographe.” (Koestler 1964, p.145)

Sendo o teatro um lugar de descoberta e de produção de pensamento, é-o

também da complexidade, pois tem o potencial - que não existe em nenhuma

outra forma de arte - de substituir um ponto de vista único por uma multiplicidade

de outras perspectivas. O teatro pode efectivamente mostrar ao mesmo tempo

um mundo em várias dimensões, enquanto o cinema, ainda que procure desde

sempre o relevo, fica confinado a um único plano: "Le théâtre reprend des forces

et de l´intensité dès qu´il se consacre à créer cette merveille : un monde en relief"

(Brook 1992, p.30). Brook (op.cit.) refere um filósofo irlandês que falava da

théorie du point de vue changeant.

"Je me souviens d´un voyage à Dublin, à peu près au même moment. J´avais entendu parler d´un philosophe irlandais très à la mode dans les milieux universitaires. Je n´ai pas lu le livre qu´il a écrit, je ne l´ai jamais rencontré, mais je me souviens d´une phrase, citée par un inconnu dans un bar qui m´a frappé: il s´agissait de la théorie du <point de vue changeant>. Cela ne concernait pas un point de vue inconstant mais une exploration, comme avec certains types de rayons X, où le fait de changer de perspective donne l´illusin d´une densité. Je me souviens encore de l´impression que j´en ressentis" (Brook 1992,p.30).

Daí que Brook afirme que o processo de criação deve ajudar à emergência

de todas as correntes contrárias que estão na base de um texto. Os actores são

muitas vezes tentados a impor os seus próprios fantasmas, as suas próprias

teorias ou obsessões, daí que caiba ao encenador o papel de saber o que é

necessário encorajar e o que deve ser combatido, e o dever de "aider l´acteur à la

42

fois à être lui-même et à se dépasser pour qu´émerge une compréhension qui

dépasse les conceptions limitées de chacun" (Brook 1992, p.31). Depois de

algumas semanas de ensaios, tanto os actores como o encenador não são mais

os mesmos dado que o trabalho com os outros enriqueceu-os e abriu-lhes o

espírito. De facto, seja qual for o nível de compreensão a que cada um deles

chegou antes dos ensaios, estes ajudaram-nos a ver o texto de uma nova

maneira.

Nesta perspectiva, a intervenção do teatro poderá e deverá vir a ter um

papel privilegiado no reforço desses traços de união, no estímulo a todo o tipo de

trocas e de contaminação entre as áreas de conhecimento e na criação de

projectos de fronteira. É para nós claro que o espaço da criação teatral deve ser o

lugar onde, ao mesmo tempo que nos aventuramos no estudo e análise da

história do teatro, dos movimentos artísticos e da história das ideias e dos

movimentos sociais de que as artes são reflexo e produto, se confrontam os

resultados desse estudo com os da realidade actual, fazendo a ponte em

permanência entre o passado e o presente, entre a arte e as tecnologias, entre as

diferentes áreas do conhecimento.

Em quarto lugar há que afirmar o espaço da criação teatral como um

espaço de invenção por excelência onde é possível criar cenários, realidades

virtuais, futuros possíveis. Jacob (1985) afirma que se podem olhar determinadas

actividades humanas, as artes, a produção de mitos ou as ciências naturais,

como desenvolvimentos culturais numa mesma direcção, como actividades que

apelam para a imaginação humana e que operam pela reconstrução de

fragmentos da realidade a fim de criar estruturas novas, situações novas, ideias

novas. Hoje o homem pode inventar e cometer erros sem ter de esperar o

nascimento duma nova geração para julgar o resultado das suas criações, pois

graças à relação entre o mundo real e o mundo imaginário, pode construir

hipóteses, criar modelos, testar pelo raciocínio ou pela simulação – sem ter

necessariamente de traduzir imediatamente as suas criações em realidade.

Pode-se pensar por símbolos, analogias, metáforas, utilizar um modo indutivo de

reflexão e uma modificação na representação do mundo; pode-se mesmo

provocar modificações no mundo físico, como mostram os efeitos dos

desenvolvimentos tecnológicos. Como lembra Rosnay (1995), referindo-se à

divisa da sociedade de informação americana Xerox, “ la meilleure façon de

prédire ce que sera demain, c´est encore de l´inventer” (p.18).

43

O teatro assume-se hoje, de acordo com Banu (1991), cada vez mais como

um espaço de encontro onde os seres e as raças não estão em conflito, mas em

oposição, e é daí que vem a sua riqueza. O teatro é parecido com uma praça

pública onde elementos discordantes nos obrigam a sentir o que é em vias de se

desenvolver, é um espaço de encontro e de jogo onde as inquietações e as

problemáticas que atravessam o grupo, enquanto realidade individual e social,

emergem com toda a força, criando condições para responder a algumas das

perguntas que atravessam as reflexões dos homens da ciência sobre a sua

(im)possibilidade de conhecer a totalidade da realidade, pois, como afirma

Cazenave (1987), " se a ciência abandona a sua pretensão de tudo poder dizer

sobre o mundo, então surge o problema: como se descobre o que a ciência não

pode dizer".

Enquanto criadores e jogadores de ficção os homens de teatro são também

actores do desenvolvimento, inventores de múltiplas realidades virtuais que se

tornarão realidade na medida em que os actores do quotidiano as quiserem

integrar no seu real. Como afirma Augusto Boal (1990), o teatro ou a teatralidade

é esta capacidade ou esta propriedade humana que permite ao homem de se

observar em acção, em actividade: "L´autoconnaissance ainsi acquise lui permet

d´être sujet (celui qui observe) d´un autre sujet (celui qui agit): elle lui permet

d´imaginer des variantes de son action, d´étudier des alternatives" (p.21-22).

O que implica em quinto lugar uma nova metodologia de criação cuja

estruturação passa pela abertura de espaços onde cada pessoa tenha as

condições essenciais para ser actor de corpo inteiro do processo, para fazer parte

do processo de criação, para inventar. Para Brook (1992) há um mal entendido

no teatro de hoje ao se acreditar que o processo teatral passa por duas etapas -

fabricar e preparar e este mal entendido diz respeito tanto ao trabalho do autor

dramático, como ao do decorador ou do encenador. Brook fala então da imagem

da preparação de um foguetão para viajar para a lua: passam-se meses e meses

a preparar a descolagem , e depois um dia...Bang!

"La route doit être balayée, rapidement ou lentement, ça dépende de son état. (...) Le vol est d´une nature bien différente. De la même manière, préparer un personnage est à l´opposé de la construction - il s´agit de démolir, de retirer brique après brique tout ce qui dans les muscles, les idées et dans les inhibitions de l´acteur se dresse entre lui et le rôle, jusqu´à ce qu´un jour, une grand bouffée d´air, le personnage envahisse chacun de ses pores."(Brook 1992, p. 21)

44

É no desporto que encontramos, segundo Brook, as melhores metáforas

para ilustrar a representação teatral. No desporto ninguém confundiria o treino

antes do jogo com o desenrolar do próprio jogo. Existem regras do jogo que,

tanto aí como no teatro, são apreendidas de maneira rigorosa e onde cada um

aprende o seu papel. Mas este cenário cheio de directivas não impede a

improvisação se há ocasião para isso. Logo que a representação começa, o actor

penetra na encenação: ele também se encontra completamente implicado,

improvisa segundo as directivas estabelecidas e, como o atleta, entra no domínio

do imprevisível. Assim tudo fica aberto e para o público o acontecimento

produziu-se nesse momento preciso: nem antes nem depois. A preparação

rigorosa não impede o desenvolvimento inesperado da matéria humana que é o

jogo em si. Sem preparação, o acontecimento seria fraco, um borrão sem

significado. Contudo, a preparação não é a forma estabelecida. A forma exacta

revela-se no momento mais quente, quando o jogo começa. É o único momento

da criação em que toda a reflexão é dirigida para o exterior: "J´ai découvert qui

l´intérêt veritable se trouve ailleurs, dans l´événement lui-même, à chaque

moment, inséparable de la réaction du public" (Brook 1992, p.28).

Como escreve Barret (1991, p. 46), a exploração consiste em apresentar o

problema ao mesmo grupo, sem ideias a priori, sem induzir as respostas, antes

multiplicando a forma das perguntas para obter o maior número de respostas

possíveis. O jogo das hipóteses que o pedagogo pode fazer permite prever as

respostas clássicas, mas também toda uma outra espécie de respostas,

compreendendo nestas últimas as inesperadas ou as que parecem responder a

outras perguntas.

Uma perspectiva de que Brook (1992) também fala e que exemplifica, para

mostrar que no seu método de trabalho não há nenhum segredo, a partir do seu

trabalho com a Tempestade de Shakespeare, cujo texto não chega a abrir,

apesar dos actores terem chegado com um exemplar debaixo do braço. Num

primeiro momento trabalharam o corpo e depois a voz, com um conjunto de

exercícios cujo único objectivo era o de desenvolver a sensibilidade , de partilhar

uma consciência que se perde muitas vezes,

"et qu´il faut constamment renouveler, et de rassembler des individus séparés afin qu´ils constituent une équipe vibrante et sensible. Le besoin et les règles sont les mêmes que ceux du sport, si ce n´est qu´une équipe d´acteurs doit aller plus loin: non seulement les corps, mais aussi les pensées

45

et les sentiments doivent tous entrer en jeu et rester en harmonie." (pp. 230-231).

Depois de alguns dias começaram a trabalhar palavras, palavras separadas,

depois cadeias de palavras, e, enfim, frases isoladas, para tentar que cada um

consiga entender a natureza particular da escrita de Shakespeare. A experiência

ensinou a Brook que os actores cometem sempre o erro de começarem o seu

trabalho por discussões intelectuais, quando para o encenador o espírito racional

não é um instrumento de descoberta tão poderoso como as mais secretas

faculdades intuitivas. O que é preciso evitar, como afirma na sequência deste

raciocínio, é que o encenador faça uma demonstração da forma como quereria

ver representar o papel, o que força o actor a assumir o peso desta construção

que lhe foi imposta e que lhe é estranha e a guardá-la fielmente, pois, na

perspectiva do encenador, o actor deve ser sempre estimulado de forma a que no

fim do processo tenha encontrado a sua própria via.

Para Mnouchkine (1989) o começo do trabalho inicia-se pelo jogo. Segundo

a encenadora, nunca há trabalho à mesa, lê-se a peça uma vez e no dia seguinte

já se está a trabalhar no tapete. Lê-se o texto para o ouvir integralmente e é tudo,

pois para a encenadora não é pela leitura duma cena ou pela sua análise

intelectual que podemos compreendê-la, mas antes pela exploração das paixões

dos personagens. No mesmo sentido se situa Brook (1992) que afirma que nos

ensaios se deve construir um clima que crie nos actores uma atitude de liberdade

para proporem tudo o que possam trazer à peça:

"C´est pour ça qu´au premier stade, tout est ouvert. Je n´impose absolument rien. En un sens, c´est diamétralement opposé a la technique qui veut que le premier jour, le metteur en scène expose le sujet de la pièce et quelle est son approche. Je procédais ainsi il y a des années. Par la suite je me suis rendu compte que c´était le pire des points de départ."(p.16).

Para Mnouchkine (1989), os actores podem experimentar todos os personagens

durante várias semanas ou meses sem distribuição estabelecida, onde cada um

se mascara e se maquilha, onde cada grupo se encontra e se prepara para partir

à aventura, para explorar: "On ne travaille la pièce dans l´ordre. Cela ne vient que

beaucoup plus tard." (Moscoso 1989, p. 27).

Bob Wilson trabalha por etapas. Trabalha em atelier durante alguns dias

para instalar um clima que caracterizará a encenação e ajudará a tomar

46

conhecimento com os Kids. Depois regressa para trabalhar um pouco mais de

tempo e, finalmente, voltando quatro meses depois para durante um mês

preparar as coisas finais e estrear a peça: "Donc, ils auront eu plusiers mois pour

laisser leus esprit méditer sur ce type de travail, réflechir, s´intégrer au processus

et vivre un peu ce que nous faisons au lieu de tout faire en un seul calendrier de

répetititions continu “ (Wilson 1994, p.13). Quando os primeiros elementos da

peça, os actores, estão reunidos, Bob Wilson começa por criar uma série de

movimentos muito precisos, ritmados por baquetas de percussão: observa os

actores a evoluir no espaço, desloca-os, cria para eles um gesto ou deixa-os

encontrá-lo, num processo muito instintivo. Wilson trabalha independentemente o

texto e as acções de forma a que não corram o risco de se ilustrarem

mutuamente e que não haja uma relação de dependência.

"Le texte ne suit pas toujours les actions pas plus que les actions ne vont suivre le texte. C´est pourquoi j´ai tendance à les travailler séparément pour qu´ils ne risquent pas de s´illustrer mutuellement, qu´ils ne soient pas en rapport de dépendance. L´un comme l´autre peut allors développer sa propre indépendance et sa propre force en tant qu´élément autonome." (Wilson 1994, p.13)

O desejo de Bob é que cada comediante atinja uma certa perfeição no gesto e no

texto, mas que deixe uma total liberdade de sentimentos: "Le point primordial du

théâtre de Bob, c´est l´égalité des droits entre tous les éléments: texte, lumière,

son, acessoires, acteurs."(Muller 1992, p.16). Isto leva muita gente a perguntar se

no teatro de Wilson não se deverá falar de um processo de fusão das artes ou da

perspectiva de arte total wagneriana. A esta questão responde Guy Scarpeta

(1992) afirmando que

"Wilson sait se situer - comme beaucoup de grands créateurs d´aujourd´hui - à l´endroit où les arts se confrontent. Dans les zones de intersection. Là ou chaque art pose des questions aux autres. Là ou chaque art est mise en demeure de répondre à la provocation, ou au défi, qu´un art lui lance. Cela n´a rien à voir avec l´<art total> wagnérien."(p.18)

A etapa essencial - fixar a forma da peça - deveria acontecer o mais tarde

possível, nunca antes do primeiro ensaio. Todos os encenadores conheceram

esta experiência: no último ensaio o espectáculo parece coerente, mas na

presença do público a coerência desfaz-se. Ou então, inversamente, durante a

sua estreia um bom trabalho pode encontrar a sua coerência. Mas quando a peça

47

tiver vencido a prova de fogo do público, ela não deixará de estar em perigo -

porque uma representação deve em cada dia encontrar a sua forma de novo.

Nesta abordagem, o encenador tem um papel primordial e frequentemente

enganamo-nos sobre a sua função pois pensamos que é um arquitecto de interior

que pode fazer alguma coisa a partir de qualquer peça desde que lhe dêem

suficiente dinheiro e objectos para pôr lá dentro. Na verdade, nada se passa

assim, dado que o seu trabalho "a consisté à repérer les indications, et les trames

cachées de la pièce. S´il n´y a rien au départ on ne peut pas le faire."(Brook 1992,

pp.17-18). O encenador tem necessidade de uma única ideia - que ele deve

encontrar na vida e não na arte -, fruto da sua interrogação sobre o que traz o

acto teatral ao mundo, a sua razão de ser. Evidentemente que isso não pode vir

de um acto intelectual:

"Trop souvent, le théâtre engagé s´est noyé dans le remous de la théorie. Il est possible que le metteur en scène passe sa vie à chercher une réponse, son travail nourrissant sa vie, sa vie nourrissant son travail. Mais le fait est que jouer est un acte, que cet acte est une action, que la place de cette action est la représentation, que la représentation est dans le monde, et que toutes les personnes présentes se trouvent sous l´influence de ce qui est représenté."(Brook 1992, p.19)

O encenador deve-se deixar guiar pelo que Brook (1992) chama um

obscuro pressentimento, quer dizer, uma certa intuição, poderosa mas vaga, que

indica a primeira silhueta, a fonte a partir da qual a peça lhe fala. O que o

encenador tem necessidade de mais desenvolver é um sentido de escuta. Dia

após dia, ao mesmo tempo que intervém, cometendo erros ou olhando o que se

passa à superfície, deve escutar o interior, escutar os movimentos secretos do

processo escondido:

"C´est au nom de cette écoute qu´il sera constamment insatisfait, qu´il continuera à accepter ou à rejeter jusqu´à ce que tout à coup son oreille intérieure entende le son qu´elle espérait, et que son oeil voie la forme qui attendait pour apparaître. Pourtant à la surface toutes les étapes doivent être concrètes, rationnelles - les questions de visibilité, de cadence, de clarté, d´énergie, de musicalité, de variété, de rythme, tout cela a besoin d´être observé d´une façon strictement pratique et professionnelle. Le travail est le travail d´un artisan, il n´y a pas de place pour la fausse mystification, pour les méthodes magiques contrefaites. Le théâtre est un métier artisanal. L´écoute est d´un autre ordre. Un metteur en scène travaille et écoute. Il aide les acteurs à travailler et à écouter."(Brook 1992, p.240)

48

O encenador provoca sem parar o actor, estimula-o, questiona-o e cria a

atmosfera para o ajudar a cavar, remexer e explorar: "Il parvient ainsi à lui seul

mais aussi avec l´aide des autres, à retourner l´édifice tout entier de la pièce. Ce

faisant, on peut voir émerger des formes qu´on commence à reconnaître". No

último estádio dos ensaios, o trabalho do actor "se charge d´une zone d´ombre,

qui est la vie souterraine de la pièce, et l´illumine; et pendant que l´acteur illumine

la vie souterraine de la pièce, le metteur en scène est à faire la distinction entre

les idées de l´acteur et la pièce elle-même."(Brook 1992, p.p. 16-17)

Daí que se defenda no teatro que a forma final das coisas deve ser definida

o mais tarde possível. Da mesma forma que os cenários, os fatos, as luzes

encontram naturalmente o seu lugar a partir do momento em que nos ensaios

algo de verdadeiro começa a existir, pois é somente nesse momento que

podemos dizer de que música, de que forma e de que cor temos necessidade. Se

se concebem estes elementos demasiado cedo, se o compositor ou o cenógrafo

desenvolverem as suas ideias antes dos ensaios, então estes tornam-se um

fardo para os actores e podem facilmente "étouffer leurs intuitions toujours si

fragiles lorsqu´ils font de recherches en profondeur”. (Brook 1992, p.329). Por

outro lado, os cenários, os fatos ou as luzes não podem fazer grande coisa

isioladamente, pois só o actor é capaz de reflectir as correntes subtis da vida

humana. É um processo circular, onde no princípio há uma realidade sem forma,

e no fim, quando o círculo se fecha, "la même réalité peut à nouveau apparaître

tout à coup - saisie, canalisée et digérée - à l´intérieur d´une assemblée de

participants qui communient, arbitrairement divisés en acteurs et spectateurs"

(Brook 1992, p.33). É então o momento em que a realidade se tornará concreta e

viva, o momento em que o verdadeiro sentido da peça aparecerá.

Este processo é perfeitamente compreensível quando percebemos como é

que o problema da construção de um espaço cénico se colocou para Peter Brook,

um criador que se começou, primeiro que tudo, a interessar pelos aspectos

visuais do teatro, que estava fascinado pelas luzes, os sons, as cores e os fatos,

e que adorava jogar com as maquetas e fabricar cenários. A cena era, para ele,

verdadeiramente um mundo em si, separado do resto, um mundo de ilusão no

qual o público penetrava e onde o trabalho do encenador consistia na criação de

imagens que permitissem ao espectador nele entrar. Quando um dia teve de

destruir um cenário, um objecto lindíssimo e extremamente complicado mas

totalmente inútil, começou a ver em que é que o teatro era um acontecimento e a

aperceber-se de que esse acontecimento não dependia duma imagem ou dum

49

contexto particular, mas sim da intensidade da presença do actor e da relação

que se criava com o público. A experiência que Brook então desenvolveu sobre a

intensidade da presença do actor em cena, colocando, durante quatro a cinco

minutos, um homem sentado na cena e de costas para o público, mostrou-lhe

que o mais importante do acto teatral é a matéria humana e que é a partir da

matéria humana que tudo se pode construir.

E em sexto lugar é fundamental a existência de uma nova organização

do espaço no interior do teatro. A criação teatral pode e tem condições para

incentivar uma reflexão profunda sobre a estruturação de uma organização

espacial, de um espaço/laboratório que seja um incentivo e um convite ao

trabalho de pesquisa, ao encontro e à realização de projectos conjuntos de

especialistas das diferentes áreas artísticas, projectos esses que sejam capazes

de, ao mesmo tempo, desafiar os especialistas das outras áreas do saber e de

tornar este espaço num centro de produção de pensamento. Há efectivamente

um grande desafio que hoje tem que ser colocado aos arquitectos, aos

urbanistas, aos decoradores/arquitectos de interiores, aos engenheiros de

materiais, entre outros, para que sejam capazes de construir edifícios que sirvam

a dimensão do humano, encontrando soluções para que o conceito de leveza,

que os tecnólogos da comunicação tão bem souberam concretizar, se possa

aplicar à estrutura dos edifícios e das cidades que hoje, em vez de serem

espaços de libertação das energias e capacidades dos seus habitantes, são

realidades extremamente pesadas e bloqueadoras de toda a actividade e

realização humanas.

O teatro pode ser, efectivamente, uma referência significativa para este

processo de reflexão sobre os espaços de vida e a sua organização de acordo

com e servindo a dimensão humana, pois o processo de criação obriga a uma

coerência dinâmica entre os vários intervenientes, implicando uma fusão entre a

dinâmica do espaço teatral e o movimento do corpo dos actores, bem como dos

seus impulsos e gestos. O espaço deve ser perspectivado e construído como

parte inteira e fundamental do espectáculo de teatro, como algo que está feito à

dimensão humana e que tem de servir e responder à globalidade do que se

passa em cena:

"Il faut alors travailler les valeurs spatiales comme le peintre travaille les couleurs. Réveiller le sens de chaque lieu. Eveiller à l´espace les sens. Suggérer et permettre les mouvements.

50

Aménager, transformer, c´est jouer: comme l´acteur joue son texte (l´interprète tout en le respectant), le scénographe joue l´espace du texte. Ainsi il offre au metteur en scène les instruments qui lui

permettent d´organiser ces jeux. (Luc Boucris 1992, p.9).

Fechado o ciclo das viagens permanentes e do cosmopolitismo, o que

acontece(u) em múltiplas áreas disciplinares com a emergência da necessidade

de se criarem redes internacionais, passado o período da abertura ao mundo e

ao outro, começa a sentir-se a necessidade, tal como aconteceu nos anos 60

com a abertura de laboratórios de experimentação teatral de que Grotowski é

uma referência (a ideia do laboratório está sempre presente nos grandes

investigadores de referência do teatro), de se instituírem espaços de

experimentação que sirvam de referência ao trabalho de um criador ou de um

conjunto de criadores. Depois destes terem representado em quase todo o

mundo, como refere Lepage em relação à sua experiência, de terem realizado

digressões com todos os espectáculos que quiseram e de terem levado ao limite

a vontade de ver outras experiências, de mostrar o seu trabalho, de trocar, é

chegado o momento de parar e procurar um espaço e um tempo de pesquisa e

“revenir avec toute cette somme de bagages, tout ce qu´on est allé faire ailleurs,

tout ce qu´on est allé prendre ailleurs, et essayer de structurer, de faire un travail

beaucoup moins éparpillé, beaucoup plus fouillé." (Borello 1994, p.86)

Em síntese, se nos anos sessenta havia um grande desconhecimento do

que se passava a nível internacional e pouca interpenetração das experiências, o

que poderia ter levado ao fecho e ao esgotamento dos projectos, hoje há um

movimento dos criadores de referência no sentido da abertura de centros de

experimentação que lhes permitam desenvolver duma forma mais continuada o

seu trabalho, permitindo-lhes fundar algo sólido. Como refere Lepage, na

consciência do perigo da tentação de fechar o trabalho de experimentação dentro

dos laboratórios, estes centros deverão estar sempre no interior de um

movimento que vive numa relação dinâmica entre o privado e o público, tendo

sempre a perspectiva de reflectir e pensar as coisas numa dimensão

internacional e mesmo mundial.

Mas o que serão estes centros e o que é que esses criadores querem que

eles sejam?

Para Bob Wilson (1992), o centro que fundou em Long Island, Nova Iorque,

deve ser um lugar de encontro onde criadores de todas as disciplinas (teatro,

dança, música, escultura, pintura, filme, vídeo, etc...) poderão trabalhar em

conjunto sobre projectos artísticos. Quando fala do Centro, afirma que aí

51

esperava poder trabalhar com estudantes, pessoas sem formação teatral ou que

não têm habitualmente a palavra no teatro, com gente vinda doutras disciplinas

como a antropologia ou a matemática. Projectava também "établir des liens avec

les universités et des lycées au niveau international"(Wilson 1992, p.54).

Para Lepage, a concepção é a mesma, no sentido em que quer que o seu

centro permita a pessoas de diferentes disciplinas trabalharem em conjunto,

referindo que "c´est un peu l´esprit de la Renaissance que j´essaie d´installer

avec ce lieu" (Borello 1994, p.82). Não se trata da apropriação de um lugar

tradicional de teatro, dependente dos constrangimentos da temporada teatral,

mas da criação de um espaço que, apesar de poder ser um lugar extraordinário

de produção, tenha como vocação primeira a pesquisa, e onde as produções

serão sempre resultado dessa mesma pesquisa.

Tanto para Lepage, como para Wilson, a construção do centro permitirá

estruturar duma forma mais continuada e sistemática as suas equipas

pluridisciplinares de criação, o que possibilitará o reagrupamento de um conjunto

de pessoas com quem já tinham trabalhado ao longo das suas produções. Para

Robert Wilson o seu interesse maior é trabalhar com jovens actores com quem foi

trabalhando ao longo destes anos, o que já acontecera numa criação de 1994

sobre "la femme douce" de Dostoiewski e que teve como primeiro espaço de

trabalho o centro de Long Island. A existência deste centro dar-lhe-á ainda a

oportunidade para "se remettre en question de l´autre côté dans la lumière, sur

scène, où il a beaucoup appris en jouant ses premières pièces. Une façon pour lui

de redevenir aux sources." (Chemin 1994, p.3) Quanto a Lepage e ao seu espaço

da caserna, ( o espaço era uma antiga caserna/quartel de bombeiros), a equipa

com a qual tem vindo a trabalhar é constituída pelos principais artesãos que o

acompanharam na maior parte das suas criações e respondem aos três eixos

principais que está a explorar: a música, com Robert Caux, que fez a música em

vários espectáculos de Lepage e que dirigirá um estúdio de som; a parte do

desenvolvimento visual será trabalhada por Jacques Colin com quem já

concebeu numerosas multi-images; o terceiro eixo está relacionada com a

entrada de Josée Campagnale, um especialista de marionettes que dirige um

projecto no Québec e faz uma pesquisa muito especial ao nível da construção e

do questionamento sobre o que são e qual o papel que hoje têm as marionettes.

Robert Lepage retoma aqui a ideia da Renascença quando fala da

complementaridade do espaço e de que as pessoas não são unicamente artistas

mas também artesãos, uma ideia que lhe é muito querida, dando como exemplo

52

Robert Caux que é tão bom engenheiro de som como músico e de Jacques Colin

que é tanto artista visual como técnico da imagem.

Ao nível da sua estrutura de organização nós vamos encontrar,

principalmente na definição do espaço/projecto do centro de Lepage, uma

estrutura flexível e modular com interpenetrações entre as várias áreas de

trabalho. Os três laboratórios, imagem, som e marionettes, são adjacentes e dão

para um quarto lugar que é a sala de representação e de ensaio, muito flexível e

modular. O estúdio de som, por exemplo tem dimensões onde se pode fazer uma

gravação, mas, se se quiser registar um coral, pode-se abrir a divisão que dá

para a grande sala que é sonorisada, de maneira a que se possa organizar um

mega-estúdio. O mesmo sistema pode ser aplicado em relação ao estúdio de

imagem. Quando se está a representar as funções invertem-se e os estúdios são

utilizados como lugares de régie.

Uma outra dimensão destes novos espaços de laboratório é a de se

afirmarem como espaços de cruzamento e de encontro pois, como afirma

Lepage,

"nous voulons faire de ce lieu un carrefour et il est important de créer des espaces de rencontre intéressants. <Como também no domínio da reflexão e do pensamento, de troca e confronto de ideias e aí também com as ideias de Lepage, que sonha> "faire de la tour <é a torre do edifício que servia aos bombeiros para vigiarem e observarem os incêndios> une sorte de centre de la connaissance, une bibliothèque de livres d´art... (...) <Na perspectiva de abertura aos novos criadores pensa-se este espaço como> un endroit où nous pouvons recevoir un artiste de l´extérieur qui voudrait venir travailler, lui donner tous les moyens et créer un événement autour de son passage."(op.cit. p.84)

O reconhecimento da necessidade de um discurso sobre o espaço faz-nos

colocar à escola a mesma questão que Luc Boucris (1992) levantava sobre a

cidade quando dizia : « A sa façon la ville ne désire-t-elle pas s´organiser, elle

aussi, comme un théâtre? » (p.9) E é ao colocarmos a questão de que à sua

maneira a escola não desejaria organizar-se como um teatro, que pensamos que

as práticas teatrais e a organização deste espaço de interface, criam as

condições ideias para ligar a escola à comunidade e aos vários parceiros sociais

que intervêm no exterior da escola.

53

Num processo que deve estar integrado, em sétimo lugar, no interior de

um projecto cultural, de contaminação das práticas e das culturas, pois todos

eles desenvolvem a sua prática para além das fronteiras, sejam elas das

pessoas, das artes e das tecnologias, ou dos países, e fazem-no numa

perspectiva intercultural, de intersecção e confluência de culturas, onde o limite

de país ou de região não existe. As diferentes tendências interculturais que se

podem observar actualmente no teatro mundial estão baseadas na ideia de que

uma cultura mundial pode emergir a pouco e pouco, uma cultura mundial onde

participarão as mais diferentes culturas e onde se conseguirá respeitar e dar valor

à especificidade de cada uma:

"La conception plutôt utopique d´une culture mondiale, vers laquelle semble se diriger le rapport productif du théâtre avec des éléments de cultures théâtrales étrangères, est considérée et imaginée comme la tâche commune des avant-gardes théâtrales des cultures les plus diverses" (Ficher-Litchte s.d.,p.p.24-35).

É para a sua realização que se direccionam as tendências interculturais do teatro

mundial.

Esta dimensão encontramo-la no trabalho de Peter Brook (1992), para

quem cada cultura exprime uma parte do nosso atlas interior e um ser humano

plenamente desenvolvido incluiria uma multiplicidade de culturas. Brook fala

desde o início do seu teatro internacional que tem como finalidade articular uma

arte universal que transcenda o nacionalismo estreito, numa tentativa de realizar

a essência humana. O facto de os actores de Mahabarata representarem

dezanove nações é muitas vezes referido como um sinal metafórico e físico da

voz internacional do teatro: "La vérité est globale, a déclaré Brook, et la scène est

un endroit qui invite à jouer au puzzle." (Carlson s. d., p.82). A este nível também

Wilson (1994), considerado um globe-trotter da criação contemporânea e

representante de uma prática teatral que se baseia cada vez mais numa

estratégia de descoberta de uma área de investigação de tipo novo, considera

que, depois de vinte e cinco anos de trabalho desenvolvidos nesta perspectiva

intercultural ou de confluência, o seu vocabulário actual e a sua prática são

produto de um conjunto de ideias que têm origem e pertencem às diferentes

culturas que contactou e onde trabalhou, e é isso que, na perspectiva do autor,

nos enriquece culturalmente.

54

"Et nous ne devons jamais tomber dans l´isolationnisme, jamais nous ne devrions polariser notre regard sur notre propre culture. Il faudrait que nous prenions conscience que...Le Théâtre est une forme qui unit idéalement toutes sortes de voix douées de parole, sans considération d´ordre économique, politique, social, culturel. C´est un creuset, un lieu de rencontres, et s´il y a une chose qui va résister à l´épreuve du temps, de l´Histoire, ça sera l´Art, non...?"(p.12)

Daí que a tudo isto esteja subjacente a ideia de projecto cultural que para

Brook(1992) passa pela defesa daquilo a que chama a "terceira cultura", a única

que nos permite atingir a verdade de que frequentemente fala. A cultura

entendida como um misterioso elemento que, despertando-nos por instantes,

permite abrir momentaneamente essa percepção que geralmente está confinada

no interior de invisíveis limites. Considerando que só os actos culturais podem

explorar e revelar as verdades vitais, Brook afirma a terceira cultura como uma

culture des liens que tem a força para contrabalançar a fragmentação dos nossos

dias e descobrir relações que foram submergidas ou perdidas entre o homem e a

sociedade, entre uma raça e a outra, entre a humanidade e a máquina, entre o

visível e o invisível, entre as categorias, as línguas e os géneros, elemento

misterioso que, nos momentos em que nos desperta e abre, possibilita o encontro

com essa verdade que nós de outro modo dificilmente poderíamos alcançar. Para

Brook, a escolha não se processa no interior da dualidade entre uma cultura

oficial que é suspeita, pois toda a grande colectividade tem necessidade de se

vender e todo o grande grupo tem também necessidade de se promover através

da sua cultura, e a cultura dos artistas individuais, fechados sobre si próprios e

com um sentido profundamente interiorizado para obrigar os outros a observar e

a respeitar as criações do seu próprio mundo interior. Uma e outra, porque

resultantes de visões parciais e expressão de interesses inacreditavelmente

poderosos, são incapazes de se exprimir como uma totalidade. Esta a razão

porque ele perspectiva o que chama a "terceira cultura", uma cultura que é

"sauvage, hors de portée, que l´on pourrait assimiler au Tiers-Monde - quelque chose qui pour le reste du monde, est dynamique, indiscipliné, qui doit sans cesse être adapté dans une relation qui ne peut jamais être permanent"( Brook 1992, p.72).

Uma terceira cultura que procura a verdade e que tem consciência que a partir do

momento em que se transforma em programa toda a política cultural perde o seu

poder, pois quando uma forma se fixa perde o seu poder e a vida escapa-lhe. De

55

facto, para Brook, as mais fortes expressões artísticas e culturais de hoje são o

contrário das apreciações amáveis que os políticos, os dogmáticos e os teóricos

dedicam à sua cultura.

Assumindo a prática teatral no quadro deste conjunto de pressupostos que

atravessam as obras actuais da produção teatral, pensamos estar a criar

condições e a ultrapassar o obstáculo da fragmentação do discurso sobre a

cultura e sobre a acção cultural, dando um sentido à cultura como algo que

integra tudo o que diz respeito ao indivíduo. “Même si le culturel envahit de plus

en plus le discours économique et politique, la moralisation demeure au niveau du

discours et reste étrangère à la pratique sociale.” (Chasle 1985, cit.in Dupuis

1991, p.14).

56

3 - Um outro Teatro para uma outra Escola

“Eu espero. Espero não sei quem, não sei o quê, não sei onde, não sei quando; eu espero o momento fortemente improvável onde uma centelha de beleza fará brilhar o meu papel. Acontecimento inventivo, a origem tem lugar e tempo no presente vivo”.

Michel Serres 1993

Ao concretizarmos o nosso conjunto de propostas que, esperamos, possa

ajudar a responder a algumas das questões centrais com que se confronta o

ensino do teatro e das artes em Portugal, parece-nos importante referir que este

é o resultado de várias influências e práticas, nomeadamente daquelas que estão

referenciadas no quadro histórico explicitado, assim como as questões teóricas e

as experiências de referência a nível internacional que tivemos oportunidade de

enunciar e que foram e são determinantes para o esboço das propostas que

apresentamos. Em termos genéricos as perspectivas que apresentamos para a

integração do teatro na escola constituem em grande medida um projecto que se

quer de continuidade com todo o processo de implantação de uma vertente de

Ensino Artístico no Sistema Educativo Português, sendo uma consequência

normal do percurso e das reflexões que aqui estão descritas, onde as roturas

assumidas, ainda que tenham que ter uma certa radicalidade, são aquelas que

resultam do trabalho desenvolvido e da necessidade urgente de dar um sentido

de eficácia àquilo que se faz.

Neste capítulo definiremos, em primeiro lugar, os sete princípios que

enquadram a integração do teatro no sistema educativo; num segundo

momento, debruçar-nos-emos sobre as próprias práticas; em terceiro lugar

referiremos um modelo possível para uma estrutura de criação que sirva de

referência ao trabalho que se desenvolve nas escolas; finalmente, num terceiro

momento, procurar-se-á definir de que forma o teatro se pode assumir como

agente do desenvolvimento regional e local e de enriquecimento da vida

quotidiana das pessoas, numa dimensão capaz de criar condições efectivas

para que haja um público cada vez mais consciente e participativo.

57

Os Sete princípios enquadradores

"il n´est plus question de s´opposer pour savoir s´il faut commencer pour changer les structures pour changer l´homme ou pour changer l´homme pour que les structures changent. Il faut, si on croit au changement, changer ce que l´on peut, simultanément, et dans toutes les directions à la fois"

Gisèle Barret 1981

O desenvolvimento do trabalho, nomeadamente no aprofundamento da

análise dos projectos e das práticas existentes no terreno e da sua

contextualização ao nível temporal e histórico, permitiu-me, por um lado,

aprofundar e dar corpo a certos pressupostos que já vinham sendo enunciados

desde o princípio, e, por outro, abrir novas perspectivas de intervenção que o

aprofundamento do trabalho no terreno exigia. O cruzamento destes dados com

as referências que fomos integrando no nosso quadro teórico permitiu enquadrar

e reforçar as dimensões de intervenção já definidas, assim como justificar o

lançamento das novas perspectivas.

É assim que ao nível dos princípios foram ganhando cada vez mais

consistência as três dimensões que desde sempre foram entendidas como

estruturantes: a pessoa como centro de todo o processo; a escola como espaço

privilegiado onde tudo acontece e a que é urgente dar um outro sentido; a

cultura como ideia unificadora capaz de responder ao espartilhamento cada vez

maior do conhecimento. O mesmo aconteceu com a percepção que se tinha de

que todo este processo obrigaria a questionar a organização espacial das

escolas, a sua arquitectura, e a criar uma dinâmica de permanente articulação

entre o dentro e o fora da escola, entre as estruturas de criação artística e a

formação. Onde se deu a grande mudança foi ao nível do sentido último das

coisas, na definição da intervenção do teatro enquanto despoletador da

capacidade de pensar e de inventar de cada participante e na necessidade de

constituição de equipas multidisciplinares que dessem suporte a esse sentido,

equipas que não integrassem só as áreas artísticas, mas que introduzissem

também as ciências e a filosofia, tornando o processo de criação numa efectiva

aventura do conhecimento.

No interior deste quadro, e tendo em conta que nos confrontamos com uma

estrutura escolar bloqueada e sem capacidade de incentivar a emergência de

58

uma forma de pensamento complexa e de perspectivar um outro quadro de

referências onde a invenção e o sentido estético sejam capacidades centrais de

cada pessoa, é necessário e urgente clarificar que o teatro ao intervir na escola

só o deve fazer se se assumir claramente como um elemento de mudança. Uma

ideia de mudança que foi claramente explicitada na análise que Eduardo

Lourenço fez, em 1980, sobre o Plano Nacional de Educação Artística proposto

por Madalena Perdigão, onde defendeu que se a institucionalização de um

projecto de ensino artístico fosse levada às últimas consequências isso implicaria

uma revolução de todo o outro ensino. Também Nóvoa (1992) defende a ideia de

romper definitivamente com uma lógica curricular disciplinar como algo urgente e

radical que deve intervir ao nível da forma de organização dos espaços e dos

tempos escolares. Este mesmo sentido de mudança é também referido nos

pressupostos do programa da Oficina de Expressão Dramática II, 1992, onde se

afirma que o teatro se deve assumir como um espaço privilegiado para o

lançamento de práticas e de projectos capazes de ajudar a inventar uma outra

escola, de romper barreiras entre os vários saberes, de ligar a arte e a ciência e

de lutar pela abertura de espaços de experimentação no interior da estrutura

escolar.

Neste quadro é natural que se assuma que a estruturação de um projecto

de formação artística não possa, no nosso ponto de vista, limitar-se a integrar e a

adaptar-se a modelos de estruturas como as que actualmente existem nas

escolas, sabendo-se que estas já não correspondem às necessidades de

formação do nosso tempo, pondo em causa a própria natureza do acto artístico,

enquanto espaço de rotura, de criação do novo, de ficção do futuro. As artes,

enquanto actividade onde é potenciada e ganha forma a parte mais sensível da

sociedade, podem, devem e têm de agir como instrumentos privilegiados de

inquietação e mudança. Daí que, no contexto do nosso trabalho, tivéssemos

perguntado à partida de que forma as artes poderiam ser um instrumento que

ajudasse a romper com uma escola cada vez mais fechada e compartimentada,

uma escola que é cada vez mais um grande caixote onde se vão acrescentando

novas divisões disciplinares, de que forma as práticas teatrais poderiam ser um

instrumento privilegiado para a criação de pontes entre as pessoas, os espaços e

as diferentes áreas do conhecimento.

Com esta questão estávamos a reforçar a ideia que a intervenção das

artes nos projectos de formação deve corresponder a uma estratégia global, tal

como já o tínhamos afirmado em 1986 aquando do 3º Encontro Internacional de

Expressão Dramática, onde assumimos que cada vez mais, e a diferentes níveis

59

da prática social, as respostas e os projectos teriam de ser assumidos como

parte integrante de um projecto global, de um todo, um projecto capaz de romper

com as fronteiras entre a escola e a comunidade, entre as diferentes disciplinas e

áreas do saber. Uma ideia de projecto global que o próprio sistema sempre

combateu, como aconteceu, por exemplo, em finais dos anos 80, com o

lançamento quase simultâneo de projectos contraditórios, um que tinha uma

intervenção predominantemente centrada na escola (projecto A Escola Cultural),

outro, onde a intervenção dominante vinha do exterior da escola, dos artistas (A

Cultura Começa na Escola).

No fundo, o que propomos é um projecto de intervenção capaz de contribuir

para a emergência de um novo quadro de referências no interior da escola, o

que, na nossa perspectiva, implica e obriga a dotar a estrutura escolar de

condições que a potenciem enquanto realidade que está centrada no

desenvolvimento da pessoa e das suas estruturas do pensamento, a ter

uma matriz eminentemente cultural, onde as múltiplas potencialidades do

teatro, tornam o seu papel muito mais efectivo e determinante. O teatro surge

assim mais como espaço de interface do que como área disciplinar, numa

dinâmica de intervenção que será suportada pela constituição de equipas

multidisciplinares, num processo que, ao assumir intervir no interior da

contradição e num espaço cheio de fronteiras, com o objectivo de as romper e de

criar ligações entre as várias disciplinas e áreas do saber, vai obrigar à

emergência de uma nova organização da arquitectura escolar e a uma

articulação permanente entre a escola e a comunidade, entre os espaços de

criação e os espaços de formação.

Uma escola centrada na afirmação da pessoa

“A Pedagogia por Objectivos enquadra cada vez mais o desenvolvimento intelectual num laboratório artificial e abstracto que esquece (ou recusa?) tudo o que está vivo, ondulante e diverso. Daí que haja que fazer a apologia de uma pedagogia que defenda a vida na escola, onde os passageiros são considerados como seres humanos na sua globalidade e não como cabeças para encher e marcar. Uma pedagogia da vivência que se arrisca a responder às urgências do momento, sobretudo se são expressadas por estudantes implicados e motivados para manifestar-se sem medo à divergência e à diferença ".

Gisèle Barret 1991

60

Trazer a pessoa de novo para o centro da realidade e das nossas

preocupações é um dos grandes objectivos da proposta aqui em construção,

uma proposta onde cada pessoa pode libertar a subjectividade que faz parte da

sua história íntima, entrando, com a afirmação da interioridade e da

subjectividade, noutra dimensão da existência, onde o foco da realização se

dirige preferencialmente para a afirmação dos recursos íntimos do ser humano: a

paixão, a imaginação, a consciência.

No fundo, quando dizemos que as práticas artísticas e teatrais devem pôr

as pessoas no centro dos seus projectos, queremos dizer que no teatro se

devem desenvolver estratégias capazes de ajudar a formar pessoas abertas e

reflexivas, pessoas capazes de encontrar a simplicidade na complexidade e de

explicar as grandes questões a partir de coisas simples. Enquanto espaço

privilegiado do sensível, onde a pessoa tem tempo e lugar para se descobrir e

afirmar em toda a sua dimensão, a arte, ou, mais concretamente, o teatro, deve

dirigir e potenciar os seus focos de intervenção para as dimensões sociais que,

em cada momento, separam mais cada pessoa de si própria, alargam os fossos

sociais entre aqueles que pensam e decidem e os que executam, deve ser o

espaço do encontro e da troca, o espaço da solidariedade e da mestiçagem por

excelência.

Procuramos uma escola e um mundo onde o homem seja o actor central e

a sua finalidade primeira e onde cada um tenha a possibilidade e o direito de

pensar, pois é na mutação da inteligência que é preciso trabalhar, promovendo

em cada um novos métodos de análise e de acção que os torne capazes de

responder à cada vez maior complexidade das estruturas, das organizações, dos

sistemas e das redes. Não podemos esquecer que a interdependência é mais

importante que o isolamento, a complexidade que a exclusão, e que o maior

obstáculo a qualquer mudança é provocado pela organização disciplinar do

conhecimento.

Estamos naturalmente a falar de uma escola capaz de pôr a pessoa no

centro da cena e de criar condições efectivas para a reconciliação de cada um

consigo próprio, com os outros e com o mundo, o que sabemos acontecer no

trabalho teatral que põe a nu o Ser e os seus possíveis e dá a ver o Outro na sua

diferença e nas suas riquezas insuspeitas. Um trabalho que obriga a uma

enorme disponibilidade dos homens de teatro que, em interacção com as

energias suplementares libertadas na representação dos conflitos, no canto e na

dança, no entusiasmo e nos risos, cria condições para que, numa hora, coisas

surpreendentes se possam passar, sem as quais muitos desconhecidos que se

61

encontram durante um curto momento nunca se relacionariam.

É este processo que permite e incentiva a descoberta e a afirmação da

pessoa e da sua inteligência sensível, uma pessoa com capacidade de pensar e

de inventar respostas rápidas, profundas e criativas às situações imprevistas com

que cada vez mais nos confrontamos, uma pessoa capaz de entender e intervir

no mundo e de ser um verdadeiro atleta da inovação e do futuro. Uma

perspectiva que implica, de cada um, uma atitude de não acomodação com o

que acontece no interior da normalidade, uma grande capacidade de inquietação

que leva permanentemente à procura de novas coisas, à procura das melhores

ideias e soluções para inventar um futuro melhor, um futuro e uma sociedade

onde cada um tenha direito à felicidade e possa ser feliz.

Capaz de incentivar a produção de pensamento

"O que mais me chama a atenção é o contraste entre os alunos que pensam que o tempo é demasiado grande e os professores que crêem que é demasiado curto. Uns aborrecem-se, enquanto outros, tal como o Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas, correm sempre atrás do relógio com a obsessão de ‘terminar o programa´”.

Gisèle Barret 1991

Hoje começa a afirmar-se uma tomada de consciência de que o défice

principal com que nos confrontamos a nível social é o do pensamento, da

inteligência, da capacidade de invenção de outros modos de vida, de um mundo

onde valha a pena viver. Começa-se também a estar consciente de que é neste

domínio que se desenham as primeiras diferenças sociais, com alguns, os

eleitos, a serem motivados desde meninos a desenvolverem a sua capacidade de

pensar, e os outros, a grande maioria, a serem convencidos de que não vale a

pena pensar porque não são capazes, porque têm falta de inteligência. Uma

inteligência que, tal como a imaginação, é um músculo que se treina desde

sempre, ou, então, atrofia-se e perde as suas funções vitais. O grande drama

social é que podemos passar uma vida inteira sem tomarmos consciência desta

incapacidade porque, por um lado, não é visível à vista desarmada, e, por outro,

no quotidiano somos muito pouco incentivados a ter ideias, a utilizar os

mecanismos do pensamento.

A consciência de que é necessário agitar os neurónios e pôr o cérebro a

funcionar e de que o teatro é um instrumento de excelência para o fazer, é algo

que há muito preocupa os pedagogos, tal como podemos constatar na situação

62

descrita em 1912 por Adolfo Lima, onde se refere a experiência de um aluno que

fora escolhido para representar um pequeno papel numa récita e que desde esse

momento melhorou o rendimento em todas as matérias, concluindo o autor que

com essa participação o cérebro dessa criança tinha sido sacudido, num

processo que regrediu logo que essa participação terminou. No mesmo sentido

está o raciocínio de António Sérgio, que considerava que as boas técnicas

pedagógicas como o teatro permitiam abrir o espirito das crianças, fomentar-lhes

a curiosidade, treiná-las no manejo dos livros de consulta, dando-lhes o domínio

do método de investigação experimental e tornando-as aptas a adquirir por si

próprias todos os conhecimentos de que necessitarem. Para António Sérgio, o

verdadeiro objecto da educação era a formação do espírito, o domínio das suas

possibilidades intelectuais, a noção e o treino dos bons métodos de pensar, o

desenvolvimento da curiosidade, e não o conhecimento de tal ou tal facto, pois os

conhecimentos devem servir para o exercício da inteligência e não a inteligência

para a aquisição dos conhecimentos. Hoje é um neurologista com o renome de

Alexandre Castro Caldas (2001) refere, numa carta ao jornal Expresso em que se

debruça sobre os novos programas de Português, que:

“A informação disponível parece apoiar a necessidade de confrontar os alunos com problemas complexos de forma a estimular as redes neuronais de funcionamento em paralelo que constituem a base biológica das competências culturais. Para além disso, é necessário saber fazer pontes eficazes entre as disciplinas, o que é de certo mais difícil” (p.22).

Este défice é, em grande medida, provocado pela divisão que a nível da

formação se faz cada vez mais entre as várias disciplinas, entre as diferentes

áreas do conhecimento. Efectivamente, quando a tendência deveria ser de unir e

não de separar, assistimos hoje nas escolas a uma cada vez maior fragmentação

do conhecimento, fragmentação resultante de uma pressão social e corporativa

que leva a que, não reduzindo nada do que já se foi acumulando no espaço das

escolas, se introduzam cada vez mais matérias que pretendem, mais do que

tudo, responder às necessidades de certos grupos sociais que vêem a escola

como o primeiro e o mais fácil terreno social e institucional para se implantarem,

para ganharem influência e importância social. Esta tendência de colocar na

escola cada vez mais matérias está a provocar um processo de saturação,

processo que tem levado a que, em vez de ensinar melhor, a escola esteja

empanturrada, cheia de gorduras, com as digestões atrapalhadas, sem tempo

para repousar ou vagabundear à procura de outras coisas, numa palavra, sem

63

tempo para pensar.

Actualmente confrontamo-nos com a ideia socialmente dominante de que é

à escola que cabem todas as responsabilidades e todos os desafios da

formação, o que tem levado a que se deixe instalar uma crescente

desresponsabilização social ao nível da formação das pessoas. Isto quando

todos sabemos que hoje a formação se faz dominantemente pela aquisição de

conhecimentos em diferentes fontes e a partir de múltiplas experiências, da

televisão à rua, da internet aos jogos de grupo no bairro, devendo a

responsabilidade da escola ser a de fazer a síntese, de ligar os vários saberes,

de transformar ou de passar a cada um a ideia de que o conhecimento é uno e

complexo e que a sua descoberta pode ser uma grande e aliciante aventura. Um

trabalho que na prática passa por criar condições para a emergência de uma

outra perspectiva, de um outro quadro de referências, condição essencial para,

por exemplo, resolver alguns dos insucessos nacionais em certas áreas

disciplinares estratégicas, insucessos que, estamos conscientes, não se

resolvem no interior do mundo fechado de cada uma das disciplinas, mas sim

olhando-as de outras perspectivas, obrigando-as a romper as fronteiras em que

se fecharam e a construírem pontes com as outras áreas do conhecimento.

É fundamental ter um outro olhar sobre as coisas, uma outra perspectiva

em relação à realidade que nos permita alargar o nosso campo de visão e de

compreensão do mundo e uma outra atitude sobre as coisas e o mundo. Hoje

sabemos e estamos conscientes de que ao falar dos insucessos generalizados

estamos a falar de áreas que são estratégicas e estruturantes para o

desenvolvimento dos instrumentos e das capacidades que irão permitir a cada

um responder à imprevisivilidade do tempo em que vivemos e encontrar outras

soluções para os problemas e os desafios com que actualmente a sociedade se

confronta. Procuramos, por tudo isto, lançar um projecto capaz de agitar e de

mobilizar toda uma sociedade que, de uma ou de outra maneira, está ligada à

escola, uma escola que tem que ser reanimada num processo de respiração

boca a boca, uma escola que tem de ser contaminada com a ideia e o sentido da

experimentação e do rigor, da criação do novo, pois só assim conseguiremos que

as escolas sejam efectivamente um espaço privilegiado de referência ao nível da

produção de ideias e de projectos capazes de contaminarem a sociedade.

Queremos e procuramos uma escola que assuma e incentive o processo de

descoberta do conhecimento como uma aventura, uma aventura em que todos

deverão ter um enorme prazer de entrar, por um lado, porque têm necessidade

de pesquisar os conhecimentos necessários e fundamentais para a qualidade e

64

profundidade do trabalho que se está a produzir, e, por outro, porque cada um

está de corpo inteiro nesse projecto, nessa aventura fascinante, onde o mais

surpreendente que pode acontecer é que ao chegarmos às fontes dos

conhecimentos de que estamos à procura encontremos outras fontes e outros

conhecimentos que não sabíamos que existiam e que, pela surpresa e pelo

inesperado, acabam por ser mais úteis e por abrirem outros caminhos, outros

campos de pesquisa, transformando esta deriva do conhecimento numa aventura

interminável.

Um quadro de intervenção do teatro na escola que tenha uma matriz

predominantemente cultural

"O que mais me interessa no comportamento é a identificação da proxémica pessoal, da "dimensão oculta" como diz Hall, com quem nem sempre compartilho as generalizações "sociológicas". Conheço a minha necessidade de estar próxima que compartilho com bastantes pessoas (penso em Augusto Boal que não pode começar um encontro sem o convite a que se aproximem dele: "Vinde, vinde, vinde..."). Reconheço também, em geral, as proxémicas culturais ou individuais; porém aprendi que havia algo mais forte que a cultura e que a educação, que vinha da situação precisa do aqui e agora e da relação das pessoas implicadas” .

Gisèle Barret 1991

Ligar a cultura ao desenvolvimento e criar condições para que o seu quadro

de acção seja assumido muito para além do universo limitado das belas-artes e

da educação stricto sensu, é algo que aqui se assume, num projecto que tem de

ter uma forte dimensão cultural e que quer passar por todos os interstícios da

vida quotidiana, por todas as dimensões da vida social, não limitando a sua

intervenção aos aparelhos culturais. Só com esta dimensão alargada do conceito

de intervenção cultural poderemos ter esperança que a cultura seja um elemento

capaz de mudar, ao mesmo tempo, a sociedade e a vida. Numa sociedade cada

vez mais de plástico, asséptica, onde as pessoas desenvolvem a sua passividade

em frente aos televisores procurando esquecer as agruras sociais e viver as

alegrias e as riquezas dos outros, os artistas não podem continuar a ser os

produtores/comerciantes de produtos vendáveis com o único objectivo de alegrar

e dar cor a este quotidiano negro.

Só com uma dimensão cultural capaz de atravessar todos os domínios do

social e de nos obrigar a ultrapassar visões localizadas e redutoras que ainda

65

são dominantes na nossa sociedade, estaremos em condições de inventar outras

realidades, de assumir um outro quadro de referências, de ficarmos despertos

para encontrar a verdade e o sentido mais profundo da nossa existência, uma

verdade e um sentido que, de outro modo, dificilmente poderíamos alcançar. Daí

que Peter Brook defenda o conceito de terceira cultura referido acima, pois com

essa dimensão cultural poderemos trazer para o interior do nosso trabalho esse

elemento misterioso que tem força para intervir em dimensões que hoje temos

consciência serem fundamentais para contrabalançar a fragmentação dos

nossos dias e descobrir relações que foram submergidas ou perdidas entre o

homem e a sociedade, entre uma raça e a outra, entre a humanidade e a

máquina, entre o visível e o invisível, entre as categorias, as línguas e os

géneros.

Procuramos e queremos uma dimensão cultural que se assuma como

motor de transformação, como o território trans ou multidisciplinar, placa giratória,

ponto de encontro entre correntes mais universais que locais, mais abrangentes

do que particulares. É muitas vezes no lugar do afecto que o novo e o velho se

constróem, se preservam e servem de campo fértil ao diálogo entre o património

e a contemporaneidade, desenvolvendo a capacidade permanente de abertura a

novas áreas de intervenção. São hoje entendidas como uma realidade que deve

estar no coração de um projecto cultural a arquitectura, o urbanismo, a moda, o

design, a informática, etc., actividades por natureza transdisciplinares porque não

só globalizam diferentes disciplinas artísticas, como também diferentes campos

científicos. O urbanismo, por exemplo, conjuga em si as ciências humanas, a

arqueologia, a etnografia, a sociologia urbana, o ambiente, com as artes da

pintura e a própria arquitectura.

Onde o teatro não pode ser mais uma disciplina, mas sim um espaço

de interface

"Si on essayait de mettre en parallèle le contenant et le contenu, peut-être alors verrait-on que le problème n´est pas (ou n´est plus?) celui de la différence ou de l´opposition entre théâtre et expression dramatique, mais entre ce champ d´activité et son terrain, l´éducation, qui ne sont pas de même niveau. Avec l´expression dramatique, on est dans une vaste discipline ou dans la multidisciplinarité (ce qui déjà spécifie et différencie cette discipline des autres plus classiques; plus simples ou plus monovalentes".

66

Gisèle Barret 1991

Um atelier ou uma oficina de teatro é, pela própria natureza do fenómeno

teatral, um dos espaços possíveis de convergência das preocupações, dos

problemas e das realizações das diferentes áreas do saber, o que o transforma

num espaço privilegiado da multi e/ou transdisciplinaridade.

A tomada de consciência de que o sentido maior da oficina de teatro pode

tomar a dimensão de interface, espaço de encontro entre os vários projectos e as

diferentes áreas do saber que intervêm na realidade escolar, tornou visível a

contradição que tem atravessado todo o processo de institucionalização das

práticas teatrais nos diferentes sistemas educativos: a actual estrutura escolar,

pela forma compartimentada como organiza os tempos e os saberes, só permite

que essa institucionalização se faça em termos disciplinares, quando cada vez

mais temos ciente que, ao trazermos o teatro para a escola, não faz sentido

limitar a sua intervenção a uma área disciplinar, dado que a sua grande riqueza e

o seu interesse para a escola lhe advêm do facto de poder misturar/cruzar várias

áreas do saber e do seu tempo e espaço de criação não poderem ter por limites

os cinquenta minutos lectivos e as paredes de uma sala de aula.

A verdade é que tem sido extremamente difícil criar espaços de interface,

de projecto, onde a pesquisa e descoberta do conhecimento, enquanto algo

unitário e complexo, seja uma realidade e não um armazém onde se vão

acumulando os vários conhecimentos. Veja-se o que aconteceu com a área-

escola, cujos projectos não chegaram a ser analisados e avaliados, e a

dificuldade que há em definir com precisão o que é hoje a chamada área de

projecto. Contraditoriamente, ou não, é na escola que existe grande parte do

potencial técnico e científico das sociedades contemporâneas, um potencial que

a lógica burocrática dominante, ao implicar uma organização individual do

trabalho quando o fundamental para a mudança deveria estar centrado nos

recursos humanos e no trabalho em equipa, e ao olhar para as escolas como

agrupamentos de salas de aulas onde se descura a vida escolar para além dos

cinquenta ou noventa minutos lectivos, está a desperdiçar, tanto ao nível dos

professores, como das escolas.

Esta tomada de consciência de como se estão a desperdiçar as

inesgotáveis potencialidades da escola tem necessariamente de levar a uma

efectiva rotura com o estabelecido, rotura que, num primeiro momento, deve

passar por esta coisa tão simples como a definição do sentido de cada uma das

67

matérias que se leccionam, tornando-se clara a sua efectiva utilidade social, o

seu papel e a sua eficácia na formação das pessoas de hoje:

“ C´est la fragmentation du discours compartimanté qui, dominant sur la planète, ne voit à chaque fois que des coupes, et qui élimine tout ce qui est de la vie, de la passion, du sens, de l´humanité!” (Morin 2000, p.69).

É neste quadro que o processo de criação teatral que propomos tem que

pressupor, por um lado, o diálogo entre as disciplinas artísticas, onde todas sejam

parceiras por inteiro, e, por outro, a criação de condições para o aparecimento de

produtos e projectos de cruzamento entre as artes e as outras áreas do

conhecimento, num processo onde as interferências dos vários saberes sejam

uma realidade e a metodologia de criação se estruture na base de um processo

contínuo de transformações, in vivo et in situ, desde a sua concepção até ao fim

das representações. Estamos a referir um processo capaz de levar os alunos e

os professores a descobrirem que os saberes não são disciplinares, que há

interdependência entre as várias áreas do conhecimento e que a metodologia de

criação teatral implica a mobilização e o apoio de múltiplas informações e

saberes. Uma estratégia de intervenção que permite, ao mesmo tempo, mostrar

na prática que os muros e as barreiras entre as pessoas e os saberes são

produto de uma realidade artificialmente imposta, e responder a questões como

as que Morin (2000) refere, quando diz que estamos ainda longe de ter

compreendido a necessidade de religar, um religar que é o grande problema que

actualmente se coloca à educação.

Promovendo o trabalho em equipa e a constituição de equipas

multidisciplinares

“É difícil para o pedagogo que se deixa seduzir pelo grupo, não se vincular ao geral, ao colectivo, às tendências dominantes; deveria, pelo contrário, ter em conta o particular, as diferenças, as variações. A pedagogia da situação não deveria, parece-me, privilegiar o grupo como unidade permanente. Deveria identificar as dissidências, os desvios, as marginalidades e procurar uma solução dialéctica, globalizadora, onde cada expressão encontre o seu lugar, apresente a sua existência como indutor da situação de facto e de direito. A unidade ou a homogeneidade de um grupo não é mais do que uma verdade aparente, pontual, funcional ou estratégica, na qual o artificial salta em mil pedaços logo que alguém se aproxime e, renunciando à convergência, favorece a divergência, a multiplicidade, a pluralidade”.

Gisèle Barret 1991

68

O conhecimento descobre-se também, ou fundamentalmente, quando

desenvolvemos e nos implicamos em projectos que poderíamos caracterizar

como de banda larga, como aquele que Lepage refere quando fala do trabalho

que desenvolveu sobre a figura de Leonardo Da Vinci, um espectáculo de teatro

que cruzou as artes performativas com as tecnologias, que permitiu ao autor

descobrir como eram frágeis as fronteiras entre as diferentes áreas do

conhecimento, como era fluida, naquela época da renascença, a demarcação

entre um escultor, um pintor, um médico ou um arquitecto (cf. Chantal Herbert

1994). Um processo de construção de um espectáculo como o de Lepage, com

todas estas implicações, teve de ser suportado por um trabalho em equipa que

dispunha “de responsables d´origines diverses pour permettre la concertation de

points de vue et l´expérimentation” (Crozier 1995, p.32).

Este desafio à pluralidade da constituição de equipas para desenvolverem

as práticas artísticas na formação remete-nos para duas questões que foram das

mais significativas na história da expressão dramática e do teatro na educação

em Portugal: a diversidade de experiências e de autores de referência nas

práticas e nos discursos e a constante dinâmica entre o estar dentro e fora da

escola. Hoje, tal como aconteceu com o projecto de Lepage acima referido, não é

possível pensar e agir isoladamente, obrigando o trabalho, tal como o propomos,

à constituição de equipas que, num primeiro momento, integrariam especialistas

das disciplinas artísticas e das línguas, alargando-se progressivamente a

especialistas da organização dos espaços, a arquitectos, a urbanistas e a

especialistas dos domínios da filosofia e da ciência. Equipas que têm de ter

capacidade, por um lado, de entender os problemas e descobrir as respostas e

as soluções mais adequadas para eles, e, por outro, de ficcionar novas

perguntas e novos problemas com que possivelmente se poderão confrontar nos

futuros possíveis.

“La piège de la pensée serait de faire un galimatias théorique, une sorte de oecuménisme des genres. Ce n´est plus du tout cela! Il s´agit d´associer des gens de disciplines diverses, pour éclairer un même objet différemment. Chacun reste ce qu´il est, simplement il doit apprendre à parler avec un autre. Le biologiste reste biologiste, mais il peut tenter une passerelle et trouver la richesse d´un psychanalyste ou d´un sociologue” (Morin 2000, p.11)

Não nos podemos esquecer, como refere Nóvoa (1989), que os homens de

teatro são uma espécie de caçadores furtivos que, servindo-se do que têm mais

à mão, procuram em todas as áreas o que pode ser útil, sendo o teatro o espaço

69

e o tempo privilegiados de concretização dessa procura em toda a sua

globalidade. Um sentido que é reforçado por Gisèle Barret (1991) quando

defende que a função das práticas teatrais no interior da estrutura escolar é a de

descobrir relações ou ligações entre as áreas do saber, provocando encontros,

motivando projectos e inventando novas práticas que obriguem a sala a sair da

pedagogia encaixotada, a não se deixar fechar dentro do preparado para

ensinar, a arriscar e afrontar o desequilíbrio, o imprevisto e a insegurança,

trazendo para a escola a paixão, o mistério, a fantasia, a prospecção e a utopia.

Efectivamente, o teatro tem o potencial de substituir um ponto de vista único por

uma multiplicidade de outras perspectivas, dando-nos uma visão estereoscópica

da vida, mostrando-nos cada fenómeno de forma holográfica.

Pensar hoje a criação artística e teatral no interior de um projecto de

formação obriga-nos a criar condições para que as várias áreas artísticas sejam

obrigadas a largar a segurança em que vivem e que tem por base a defesa do

seu estatuto enquanto disciplina, sejam obrigadas a entrar em diálogo não só

com as outras práticas artísticas, mas também com as diferentes áreas do

conhecimento, sejam obrigadas por fim a perder-se nessas zonas difusas que

são as zonas de todos e de ninguém, as zonas de fronteira.

Reorganizando a estrutura espacial da escola

“Quando ensinava a uma turma de quarenta e dois adolescentes, havia tão pouco espaço que apenas nos podíamos deslocar. Todos os professores se queixavam. Contudo aquele espaço foi invertido, transformado por equipas que encontravam formas engenhosas - e pouco ortodoxas - de apresentar as suas investigações, as suas reflexões. Isto é talvez um dos precedentes da minha pedagogia actual”.

Gisèle Barret 1991

O quadro de intervenção que temos vindo a delinear obriga a estrutura

espacial da escola a criar condições efectivas para que os projectos se

desenvolvam, para que o diálogo com os outros seja possível e seja incentivado.

Uma reorganização que é uma das questões fulcrais para o sucesso ou

insucesso de um projecto deste tipo, que só se desenvolverá integralmente se

provocar a emergência de um espaço que permita e incentive a concretização

desta ideia de interface, que permita e incentive a contaminação e a troca de

ideias. No fundo, ao se pensarem as melhores formas de, em termos de

organização espacial, se criarem condições para que o teatro assuma esta

70

função alargada, queremos que se pense num espaço à dimensão do homem,

num espaço que liberte e leve os homens a descobrirem-se e a afirmarem-se na

sua globalidade, um espaço que provoque e incentive a experimentação, a troca

de ideias e a produção de conhecimento,

Efectivamente, e tal como é referido nos exemplos de referência que já

referimos, a organização do espaço assume um papel determinante, na medida

em que pode funcionar como um elemento facilitador ou castrador da circulação e

troca de ideias, do trabalho em conjunto, em suma, da aventura. E isto porque

imaginamos e entendemos a escola como um espaço onde a procura do

conhecimento seja efectivamente uma aventura, tal como a Biblioteca de Toronto

de que Umberto Eco fala e onde pode passar um dia inteiro em santa delícia, ou

o espaço de Robert Lepage que o encenador assume como um lugar onde

existem espaços de encontro, de cruzamento, onde é possível trabalhar ao nível

da reflexão e do pensamento, uma espécie de centro do conhecimento. Também

Robert Wilson assume o seu centro como um lugar de encontro entre criadores,

não só das artes mas de todas as disciplinas do conhecimento, referindo, como

exemplo, a antropologia e a matemática. Com esta mesma preocupação nasceu

o desafio lançado aos arquitectos pelo governo americano para conceberem as

escolas para o ano 2000, onde se propunha que se libertassem de todos os

preconceitos e de todos os constrangimentos existentes tanto ao nível da

organização das áreas disciplinares como da divisão dos tempos lectivos,

concebendo projectos que tivessem como objectivo principal provocar a

emergência de um outro conceito de aprendizagem e de uma outra relação com a

escola e com os processos de construção do conhecimento.

A realidade é que é praticamente inexistente, se não mesmo nula, a

reflexão que se faz entre nós sobre os modelos e os projectos de organização

dos espaços a que devem obedecer as escolas. Veja-se o que aconteceu com as

Escolas de Área Aberta P3, escolas construídas nos finais dos anos 70 em

Portugal e cujos espaços de circulação entre as salas, as turmas e as

aprendizagens foram fechados com armários, de modo a retomarem a sua

normalidade, tornando-se iguais a todos os outros. Da análise que fazemos sobre

esta situação é de realçar a ideia de que na altura não houve coragem política

nem visão estratégica para se avançar com a constituição de equipas de

professores saídos directamente das novas experiências de formação das

Escolas do Magistério, o que, a acontecer, teria obrigado a romper com a lógica

da colocação de professores, permitindo que tais equipas pudessem ter

aproveitado e potenciado integralmente essa organização aberta dos espaços,

71

esse desafio para um trabalho de interacção entre as turmas, os professores e os

projectos de aprendizagem.

Articulando a sua intervenção entre o interior e o exterior da escola

“A situação pedagógica só está completa quando se têm em conta as interferências explícitas ou implícitas do mundo exterior, que o grupo e o animador conduzem mais ou menos conscientemente, assim como os imprevistos que normalmente são expulsos da situação educativa clássica como intrusos e como obstáculos para a aprendizagem, a uma concepção viva e aberta do encontro não programado e como motor auxiliar precioso e poderoso da dinâmica”.

Gisèle Barret 1991

Como nos pudemos aperceber quando analisámos a história dos

movimentos de teatro e das artes no interior do Sistema Educativo Português, foi

a intervenção de diferentes parceiros, tanto no exterior como no interior da

realidade escolar, que impediu que estas práticas se burocratizassem e

perdessem a dimensão experimental que as deveria caracterizar. É esta ligação

ao exterior da escola, à criação artística profissional, que traz não só o sentido de

procura permanente que o teatro na escola deve ter, mas também as dinâmicas

que impedem a utilização utilitária do teatro pela instituição escolar. Na verdade,

as práticas de teatro no interior dos projectos de formação não podem sobreviver

em circuito fechado e sem uma ligação íntima com as estruturas de criação e de

produção. Recordo, a título de exemplo, a importância que tiveram para a

implantação e o desenvolvimento das práticas de teatro e expressão dramática

na educação, estruturas tão diversas como a Unidade Infância do Centro Cultural

de Évora, o Museu do Traje, o Centro de Arte Infantil da Fundação Calouste

Gulbenkian, a Comuna, o Centro- Português de Teatro para a Infância e a

Juventude e os Saltitões, entre outros.

Ao falarmos da importância que as práticas exteriores à escola têm para o

que se faz dentro da escola, é importante falarmos também de um movimento

que, saído da escola, acabará necessariamente por contaminar a actividade de

criação e produção artísticas do exterior. Com efeito, a partir do momento em que

se estrutura um quadro global de pensamento para a intervenção do teatro na

formação em íntima relação com as práticas exteriores, esse quadro, mais tarde

72

ou mais cedo, irá reflectir-se nas estruturas profissionais ligadas à criação

artística, sendo natural que estas sejam contaminados por algumas das ideias e

dos sentidos existentes nas escolas, levando os criadores a aprofundarem o seu

trabalho. Não nos esqueçamos que é na escola, no espaço e no tempo da

formação que muitos dos criadores consideram que têm um espaço privilegiado

de abertura e experimentação, que têm todo o tempo do mundo para descobrirem

e encontrarem novas soluções, em suma, para criarem.

73

Um Quadro de referência para a integração do teatro na escola

“Uma organização viva nunca se adapta ao princípio do comando rígido. Para manter o equilíbrio, o organismo não tem solução prévia já pronta. Nem sequer tem solução. Apenas possui um registo de funcionamentos que lhe permite fazer frente aos múltiplos problemas devidos às modificações permanentes do meio ambiente e às consequências induzidas pela evolução de um parâmetro à custa de outros. “(...) A organização viva aprende e transforma, continuamente, os seus processos para atingir os objectivos. A incerteza é igualmente tida em conta nos seus modos de decisão.”

André Giordan 1999

Quando a sociedade do espectáculo atinge a sua máxima expressão,

parece-nos importante afirmar, ainda que correndo o risco de o fazer em termos

redutores e panfletários, que a arte ou intervém, incomoda e questiona um

quotidiano onde o homem está cada vez mais ausente, ou então não é nada, não

tem nenhuma função social e é uma outra coisa que não uma manifestação

artística. Hoje é necessário e urgente ser radical, pegar as coisas pela raiz,

encontrar e desenvolver estratégias que ajudem a romper com os princípios e as

práticas que bloqueiam a sociedade, e, por maioria de razão, a escola, e definir o

que é essencial para a formação de pessoas que vivem e vão continuar a viver

numa sociedade cujas referências estão num processo constante de mudança.

Um processo que passa, na nossa perspectiva, por clarificar em primeiro

lugar as razões subjacentes às nossas propostas, ou, por outras palavras, de

que forma estas são necessárias a uma escola que já está atafulhada de

matérias e o que lhe podem trazer de novo ou de único. Para nós, as práticas

teatrais que propomos se venham a instituir no interior da escola deverão

desenvolver-se no sentido de ajudar a romper com a compartimentação dos

saberes e dos tempos lectivos, criando pontes, abrindo novos caminhos,

obrigando a uma nova organização do espaço físico, pois, mais do que uma área

fechada do conhecimento, queremos que esta intervenção seja capaz de viver no

interior da contradição que é o ser uma disciplina e, ao mesmo tempo, de se

assumir como um espaço de projecto, como um espaço de interface. Referimo-

nos aqui a práticas teatrais capazes de integrar os vários saberes, de levar cada

um e o grupo a descobri-los na prática e de acordo com as necessidades de cada

projecto, num processo que parte da abordagem do corpo e da sua

disponibilização, um corpo aberto ao conhecimento, com capacidade de inventar

74

novas ficções e de perspectivar a descoberta do conhecimento como uma

verdadeira aventura, entendendo-o, não como uma soma de conhecimentos

disciplinares que se vão amontoando, mas na sua globalidade. É a capacidade

de entender o conhecimento como uma globalidade que vai permitir a cada

participante conhecer e intervir mais e melhor no mundo em que vive, não numa

perspectiva passiva, mas enquanto actor social de corpo inteiro capaz de propor

novos cenários para esse mundo, de inventar outras realidades e outros futuros

possíveis e utópicos.

Em segundo lugar, há que responder a uma questão com que hoje nos

confrontamos e que é fulcral neste domínio do teatro na formação, questão que

tem a ver com o facto de nestes 26 anos de intervenção desta área no sistema de

ensino se ter assistido a um desvio do foco central de intervenção do 1º Ciclo,

antigo ensino primário, para o Ensino Secundário, desvio que é necessário

e urgente corrigir. Com efeito, quando desviamos o foco central da intervenção

para níveis de ensino onde a aprendizagem é mais espartilhada e especializada,

corre-se o risco de que os enfoques se dirijam mais para o produto do que para o

processo, mais para o espectáculo do que para a pessoa, mais para o teatro

enquanto objecto em si do que enquanto instrumento de descoberta e afirmação

da pessoa e do grupo, enquanto espaço de aventura do conhecimento. Este

desvio, que teve a sua manifestação mais visível no lançamento das Oficinas de

Expressão Dramática, pode levar a que se perca a dimensão de intervenção que

se ganhou devido às características do 1º Ciclo, espaço curricular que favorece

uma perspectiva integrada, já que nele o espartilhamento dos conhecimentos não

é tão visível, e onde é possível desenvolver projectos integrados de

aprendizagem. De notar que estão aqui em foco dimensões determinantes para

uma intervenção artística no domínio da formação que seja: mais centrada no

processo que no produto, onde a pessoa ocupa o lugar central, no quadro de

um projecto de descoberta do conhecimento como um todo, projecto esse

que é feito, não enquanto entidade autónoma, mas na exacta medida em que as

coisas se vão descobrindo e em que naturalmente as diferentes peças se vão

juntando.

No quadro que propomos temos assim que pensar a integração das

práticas de teatro no sistema geral de ensino, do pré-primário ao secundário,

obrigatoriamente como um projecto global, onde o espaço que nos últimos

tempos se ganhou no interior do Ensino Secundário seja enriquecido por todas as

dimensões que a intervenção no 1º Ciclo trouxe. Uma ideia que nos parece ser

75

possível e ter viabilidade prática, tal como se pode constatar na proposta que

fizemos para a organização das Oficinas de Expressão Dramática e para a

cadeira de Artes Performativas do projecto de curso de Artes do Espectáculo do

Ensino Secundário, propostas onde se sistematizam as diferentes aquisições e

descobertas que se foram fazendo ao longo destes vinte e seis anos da

integração das práticas de expressão dramática e teatro no interior do Sistema

Educativo Português. Note-se que esta afirmação da componente teatral nos

programas das oficinas de expressão dramática e no das artes performativas não

esquece a especificidade de intervir no meio escolar nas dimensões acima

consideradas como determinantes. Daí que se tenha perspectivado progressão

destes programas segundo duas direcções: uma para a descoberta do

fenómeno teatral enquanto prática artística e espectacular, e uma outra que

vai no sentido da animação e da reinvenção da estrutura escolar, tanto ao

nível da organização curricular e do seu espaço físico, como da sua articulação

com o meio envolvente.

Estamos assim em condições de pôr em prática um projecto que permita

manter e desenvolver os novos espaços de intervenção conquistados com a

introdução das práticas teatrais no secundário, sem perder a experiência levada

a cabo ao nível da educação de infância e do 1º ciclo, o que passa

necessariamente pela criação de pontes explícitas entre os níveis iniciais e

terminais do ensino não superior.

Em terceiro lugar temos que olhar para o teatro em Portugal a partir de

uma outra perspectiva, com um olhar que o pense não como repositório de

antiguidades que se devem preservar e ter sempre em repertório, nem como o

lugar de eleição onde um conjunto de criadores vão fazer as suas grandes

performances, mas sim como um espaço de referência e provocação social, um

espaço capaz de produzir acontecimentos artísticos que agitem os neurónios,

obriguem tanto actores como espectadores a pensar e a dar um outro sentido ao

quotidiano. Para que o teatro e a arte tenham hoje um efectivo sentido social, e é

isso que se exige de uma intervenção no interior da formação, têm de facto que

provocar as consciências, têm de tratar, divertindo e emocionando, dos

problemas, das questões e dos desafios centrais do nosso tempo, em suma, têm

de criar condições para a efectivação de um projecto de criação artística capaz

de articular a memória e a inovação e de ser, ao mesmo tempo, experimental e

popular. Um projecto que queremos seja ainda capaz de entusiasmar e mobilizar

tanto os actores como os espectadores, obrigando-o a trabalhar os mecanismos

76

da inteligência sensível e as emoções e transformando o teatro num laboratório

do pensamento, da sensibilidade e da invenção.

Interessa-nos hoje que os tempos de criação e fruição, os tempos de lazer

e gratuitidade de que falámos atrás, sejam não só um espaço-tempo de

respiração que liga dois tempos afogueados, mas também um espaço-tempo de

concepção de projectos que permitam e criem condições para o desenvolvimento

e a afirmação das capacidades criativas de cada indivíduo, onde se pode ter todo

o tempo do mundo para pensar, desenvolver projectos, experimentar soluções.

Efectivamente, procuramos configurar algo que possa potenciar ideias e

estratégias capazes de conduzirem à transformação do tempo chamado de

trabalho num tempo que estimule a participação e a criatividade de cada

indivíduo e que seja factor de desenvolvimento e de realização pessoal.

Procuramos no fundo romper as fronteiras entre os tempos chamados de trabalho

e de lazer, e isto porque temos consciência que a própria transformação interna

do mundo chamado do trabalho, que passará a exigir outras qualificações das

pessoas e uma redistribuição mais solidária, vai implicar não só um aumento dos

tempos livres, mas que estes tempos livres sejam não um tempo de fuga mas sim

um espaço de afirmação de novas qualificações e de novos desafios. A diferença

que passará a haver entre estes dois tempos traduzir-se-á, a nosso ver, no facto

de que no trabalho tudo se deverá centrar no produto e na planificação dos

tempos de criação-produção desse produto, enquanto que no lazer haverá uma

outra liberdade para experimentar os processos e para perder tempo a descobrir

outras soluções, para vagabundear tal como Umberto Eco quando se perdia nas

bibliotecas em busca do livro que desconhecia, ou melhor, em busca do

conhecimento.

Porque temos consciência que hoje o homem está cada vez mais longe de

si próprio e que o défice social dominante é o do pensamento, ou melhor, da

capacidade de invenção de um outro mundo, de uma outra realidade, e porque

pensamos e estamos convencidos que o teatro pode, de alguma forma, contribuir

para despertar as pessoas e ajudar a que elas se reencontrem consigo próprias

e sejam capazes de intervir e inventar um outro mundo, perspectivamos um

quadro programático que torne o teatro, cada teatro, num espaço social

privilegiado de afirmação e desenvolvimento da pessoa, do pensamento e da

prospectiva, capaz de:

- se assumir enquanto espaço do cerimonial e do ritual, da Pessoa,

contrariando o progressivo desaparecimento deste tipo de função nas

77

sociedades contemporâneas; perspectiva-se deste modo o teatro como um factor

singular para o reencontro do homem consigo próprio e com os outros, onde

cada um possa confrontar-se com e reflectir sobre si próprio e sobre o sentido da

sua existência, angústias, preocupações, desejos, sonhos e utopias;

- reflectir as grandes questões de hoje, assumindo-se como espaço

privilegiado de produção de Pensamento, pela forma como consegue abordar

conteúdos contemporâneos, ligando, nas suas temáticas, a arte, a ciência e a

filosofia, estabelecendo confluências entre os diferentes saberes, provocando a

emergência de novas ideias, tornando-se, na prática, num instrumento

privilegiado de desenvolvimento da inteligência sensível e num centro onde a

construção do conhecimento é assumida como uma aventura aliciante e onde

todos devem ter um enorme prazer de entrar;

- recuperar a ideia e o sentido da produção artística enquanto

instrumento de intervenção social e de invenção de novos cenários, de

Prospectiva. Procura-se esboçar um projecto de intervenção social que revele

os movimentos, as preocupações, os anseios e os desejos emergentes em cada

momento histórico, num processo que implica, a cada momento, ser capaz e ter

espaço para a redescoberta e o reavivar da memória social e para ficcionar

outras realidades, os mundos possíveis, o futuro.

Procuraremos nos items seguintes clarificar cada uma destas três

dimensões do quadro programático para a intervenção do teatro na escola.

78

Espaço de afirmação da pessoa, do cerimonial e do ritual

“Olha meu discípulo – disse Wang Fo com melancolia. - Estes desgraçados vão perecer, se acaso não pereceram já. Não supunha que houvesse água bastante no mar para afogar um imperador. Que faremos nós?” “Nada temas, Mestre – murmurou o discípulo. - Em breve se encontrarão em seco e nem sequer se recordarão que algumas vez se lhes molhou a manga. Só o Imperador há-de guardar no coração um resto de marinha amargura. Esta gente não foi feita para se perder no interior de uma pintura”.

Marguerite Yourcenar, A Fuga de Wang Foo

Nesta primeira unidade, cujo objecto central do trabalho é a pessoa

enquanto ser individual e como componente activo e interveniente de um grupo e

de uma comunidade, centraremos as nossas propostas de trabalho em três

níveis de actuação:

- em primeiro lugar, e tendo consciência de que cada pessoa é uma

totalidade que não é possível partir ou espartilhar, propomo-nos trabalhar ao

nível do desenvolvimento da capacidade de resposta do corpo aos

estímulos exteriores, da destreza corporal, do ritmo, do trabalho com os outros

e os objectos.

- em segundo lugar, visamos a construção de narrativas, para o que é

fundamental desenvolver as capacidades de imaginação e de invenção de

cada um, desenvolvimento esse que passa por alimentar a memória ouvindo

muitas histórias, cada vez mais histórias, e, a partir delas, conceber

personagens, construir situações múltiplas de cruzamento entre personagens,

inventar novas narrativas que se estruturem como verdadeiras aventuras

capazes de entusiasmar e de agarrar, em permanência, os futuros leitores e

espectadores;

- num terceiro momento, projectaremos a pessoa e as suas diferentes

personagens em diferentes espaços de representação, espaços não teatrais

e da vida quotidiana, o que vai obrigar a que as narrativas criadas sejam

transformadas em objectos de representação com a utilização e o suporte dos

instrumentos e das técnicas das artes tradicionais e da rua, pois são estes os

que mais fomentam e implicam um relacionamento mais directo com as pessoas,

a sua vida e os seus trajectos quotidianos.

79

Procuramos criar condições para a descoberta e a afirmação de uma

pessoa que se conheça e esteja bem consigo própria, que seja flexível e tenha

capacidade de resposta aos estímulos exteriores, uma pessoa que é capaz de se

confrontar directamente com os outros e de se adaptar a múltiplos espaços,

nomeadamente ao ar livre e à rua. Procuramos uma pessoa que seja capaz de

jogar com o grupo e de construir narrativas a partir das suas histórias e das

personagens do quotidiano, num trabalho que se propõe desenvolver as

estratégias de associação e de criação de metáforas, partindo de histórias

construídas a partir de estímulos exteriores para uma abordagem da

individualidade de cada um a partir do seu próprio corpo.

O teatro assume-se aqui como espaço de afirmação das capacidades

individuais e de grupo, como algo que está perto de cada um e que é produto e

produtor da emergência da multiplicidade de capacidades reais e potenciais aí

existentes. Uma prática teatral centrada na pessoa do aluno e do grupo, nas

problemáticas que são as suas e nos espaços que habitam, não recorrendo à

utilização de espaços ditos teatrais, mas sim animando os espaços do quotidiano,

mostrando como o trabalho teatral põe a nu o ser nas suas múltiplas dimensões e

capacidades e permite descobrir as respostas extraordinárias que cada um

possui dentro de si e que ignorava completamente.

Ao confrontar o sujeito com os seus diferentes espaços de vida, este

trabalho irá levá-lo a todos os recantos da escola, ajudando-o a perceber a forma

como estão ou não organizados para servir os grupos e a produção de ideias,

num processo que queremos seja o despoletador de toda uma reflexão sobre a

forma e o sentido da arquitectura escolar.

Como escreveu Augusto Boal, procuramos nesta unidade temática uma

prática teatral onde cada um tome consciência e represente o seu papel,

organizando e reorganizando a sua vida, analisando as suas próprias acções,

desenvolvendo formas e técnicas e mostrando caminhos através dos quais toda e

qualquer pessoa, independente do seu ofício, pode desenvolver a sua vocação

de fazer e de utilizar o teatro como forma de afirmação e de comunicação entre

os homens, como forma de luta contra o esquecimento de si próprio,

descobrindo, através do jogo lúdico individual e colectivo e da tomada de

consciência de uma linguagem dramática própria, toda uma série de formas e

instrumentos de libertação. As pessoas adquirem assim uma inteligência de jogo

e desenvolvem o seu imaginário, o que lhes permitirá inventar o seu próprio

teatro ou interpretar textos, se o desejarem, duma forma nova, fazendo assim o

teatro penetrar na cena do mundo por esta dinâmica subtil da relação dos

80

homens entre si, convidando-os a ir mais longe na descoberta do real e a

transbordar a realidade presente, a descobrir a realidade social e a inventar uma

outra sociedade.

A interpretação é o prolongamento de um acto criador.

Espaço privilegiado de produção de pensamento

“O tema da mente, em geral, e da consciência, em particular, permitem ao ser humano exercitar, até mesmo esgotar, o desejo de compreender e a sede de se maravilhar com a sua própria natureza, que Aristóteles reconheceu como inconfundivelmente humanos. Que poderia ser mais difícil de conhecer que conhecer como conhecemos? Que poderia ser mais desconcertante que apercebermo-nos de que é a consciência que torna possíveis e até inevitáveis as nossas perguntas sobre a consciência?”

António Damásio 2000

Esta unidade corresponde a um mergulhar em temáticas que, sendo

naturalmente resultado do cruzamento das diferentes narrativas individuais, têm

de corresponder a temas que, exteriores ao grupo, são reflexo das pesquisas e

dos desafios com que a escola e a sociedade se confrontam quando pretendem

construir estratégias e projectos capazes de provocar a emergência em cada

pessoa de uma estrutura de pensamento complexo. Propomo-nos operacionalizar

aqui um projecto teatral que aborde temáticas multidisciplinares a partir da

construção de produtos artísticos exemplares, incentivando na prática o diálogo

entre a arte e a ciência, pois hoje é fundamental a construção de um novo

conhecimento que contribua para a emergência de uma forma de pensar capaz

de responder à complexidade das questões que atravessam esta passagem do

século. O espaço de criação teatral assume-se, neste caso, como a ponte entre

diferentes áreas disciplinares, como o laboratório que tem necessidade, para a

construção e para dar forma a uma ficção dramática, que se rompam os caixotes

em que cada disciplina ou área do conhecimento se fechou e que se perceba

aquilo que é comum e o que é divergente, dando-se unidade ao conhecimento.

O homem do nosso tempo tem de ser cada vez mais artista e cientista, tem

cada vez mais de sentir as coisas, de as compreender, de estruturar o seu

raciocínio e inventar novas respostas para as situações imprevisíveis com que

está, consciente ou inconscientemente, em permanente confronto, pois os

pressupostos que presidem à capacidade de formular e desenvolver novas

respostas, tanto no campo da arte como no da ciência, são basicamente os

81

mesmos: uma curiosidade desperta, um grande sentido de observação e de

compreensão do mundo, uma enorme capacidade de reconstruir a realidade e de

a recombinar para dar origem a novas realidades. É fundamental, hoje, o

confronto com situações que estimulem esses mecanismos e o teatro, enquanto

realidade ficcional que muitas vezes é mais real que a realidade, é um

instrumento privilegiado neste domínio.

Esta segunda unidade é, assim, o tempo de potenciar a prática teatral

enquanto espaço de construção de problemas e enigmas capazes de desafiarem

os seus criadores e de mobilizarem especialistas das várias áreas do

conhecimento para participar na construção da ficção dramática e das

performances dela resultantes. Construção de performances que são uma

tentativa de corporizar a ciência como um organismo vivo, impregnado de

condição humana, com as suas forças e as suas fraquezas e subordinado às

grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e pela

libertação, pois é a precisão, o espírito matemático e experimental que,

juntamente com o espírito artístico, estão na base da nossa civilização - uma

civilização que usufrui do raro privilégio de ser capaz de se pôr em causa a si

própria e de arrancar novas forças de renovação da insatisfação que sente com o

que realizou. Lógica, meticulosidade, espírito crítico, liberdade, coragem,

imaginação ... não é isso a Ciência? E a Arte?

Se hoje se fala e se faz um enorme esforço para dotar as estruturas de

formação de espaços de experimentação, o que propomos é criar condições para

a emergência destes espaços através do lançamento de projectos que

possibilitem que formandos e formadores se confrontem com a construção de

realidades ficcionais onde a ciência é tratada duma forma lúdica, capaz de fazer

sonhar e de desafiar a curiosidade, capaz de fazer interessar cada um pela

realização prática de um trabalho experimental ou pelo o prazer do raciocínio

abstracto. Estas questões estão hoje extremamente presentes, dado que tanto os

especialistas da área da educação como da ciência falam da necessidade cada

vez maior de se introduzir uma dimensão experimental no ensino, o que só se

pode fazer de uma forma efectiva se se conseguir articular a arte e a ciência,

áreas experimentais por excelência, no interior de projectos específicos. Daí que

possamos afirmar que, ao nível da escola, estas dimensões serão provavelmente

aquelas que mais irão implicar com a sua estrutura de organização,

nomeadamente porque obrigam à abertura de espaços e de tempos de

colaboração e de interface entre várias áreas do conhecimento, e criam, na

prática, condições para a estruturação de um laboratório da multidisciplinaridade,

82

Deste confronto com outras práticas e outros conteúdos, seja tanto da parte

do teatro como da ciência, queremos que possa emergir uma terceira realidade

que não seja nem do teatro nem da ciência, mas sim resultante da interacção dos

diferentes parceiros que vão ser mobilizados e dos diferentes cruzamentos que

daí surgirão, optimizando o fluxo de energia que os atravessa. Desta forma, o

jogo teatral ajudará a esclarecer, refinar e organizar os pensamentos, melhorando

a interpretação na abordagem e na solução de problemas e desenvolvendo uma

melhor significação para a linguagem científica. No fundo queremos que a criação

teatral crie condições que permitam descobrir outros mundos e outras realidades

que, tal como estrelas no firmamento, estavam perdidas algures à espera de

serem descobertas pela nossa imaginação extra-sensorial que constitui talvez um

sexto sentido empregue para compreender verdades que sempre existiram.

No quadro do teatro enquanto espaço de produção de conhecimento,

propomo-nos desenvolver um projecto de teatro de forte conteúdo científico

que irá trabalhar sobre as dimensões que actualmente mais fascinam e desafiam

o homem e o fazem pesquisar: uma no seu interior, o cérebro e os mecanismos

de produção de pensamento, um domínio que é fundamental conhecermos

para tomarmos consciência de quantas potencialidades do ser humano não

estão a ser inteiramente utilizadas; uma outra onde queremos abordar as

questões relacionadas com a invenção, num processo onde nos propomos

procurar a razão e os pressupostos que levam à invenção, a forma como se

inventa e quais os factores que contribuem para que isso aconteça; finalmente

abordaremos, numa outra linha de trabalho, os instrumentos de navegação e a

cartografia, instrumentos que são fundamentais, tal como já o foram noutros

momentos em que se fizeram grandes descobertas, para nos orientarmos no

interior dos percursos e processos de descoberta que estamos a desenvolver,

seja no nosso interior ou no exterior, seja na Terra Pátria, no Universo ou no

nosso Cérebro.

O cérebro e os mecanismos de produção de pensamento

“As equações são como a poesia: estabelecem as verdades com uma precisão única, condensam vastas quantidades de informação em poucas palavras e muitas vezes são de difícil compreensão para o não iniciado, e, tal como a poesia convencional nos ajuda a encarar as nossas profundezas interiores, a poesia matemática ajuda-nos a olhar para além de nós –

83

se não até ao Céu, pelo menos até ao limite do universal visível.”

Michael Guillen 1998

Quando temos consciência que, como já referimos atrás, o maior défice

social é o da inteligência, o trabalho desenvolvido neste eixo ganha uma outra

dimensão e um significado estratégico e de prioridade nacional.

É neste contexto que propomos que se desenvolva, num primeiro

momento, um projecto de intervenção teatral onde a matemática e a língua

sejam o centro de todas as coisas, não as pensando meramente enquanto

disciplinas curriculares, mas sim enquanto áreas do conhecimento que são

fundamentais para o desenvolvimento de um pensamento global e

complexo, desenvolvimento que temos vindo a referir como uma das

necessidades estruturais no interior de todo um processo que tem como grande

objectivo a afirmação de cada pessoa em toda a sua globalidade. Queremos que

se trabalhe sobre as estruturas do pensamento matemático enquanto

instrumentos fundamentais para o desenvolvimento de certas áreas do nosso

cérebro, jogando sobre a sua dimensão lúdica, mágica e misteriosa, mostrando

na prática aquilo de que Fernando Pessoa falava quando dizia que o binómio de

Newton era tão belo como a Vénus de Milo, apesar de ninguém dar por isso.

A estratégia central é a de, no interior de diferentes situações problemáticas

criadas por textos dramáticos, desvendar o sentido das estruturas matemáticas a

que recorremos, perceber a razão da sua existência e a forma como nos podem

ajudar na resolução dos problemas, servindo a língua para concretizar as

narrativas dramáticas, para construir as histórias e dar forma escrita a todo uma

imensidade de aventuras possíveis, onde o avanço da trama e a sua progressão

só se conseguem através da resolução do conjunto de enigmas matemáticos

com que as personagens ficcionais se vão confrontando. Não nos podemos

esquecer que a matemática é talvez a linguagem global com mais sucesso de

sempre, pois uma mesma fórmula, número ou estrutura matemática têm

capacidade para descrever uma diversidade de fenómenos.

No fundo queremos que as pessoas se confrontem naturalmente com os

problemas, compreendam o sentido último das estratégias e dos instrumentos

matemáticos utilizados e desenvolvam uma capacidade de raciocínio leve e

rápida que permita romper, criar roturas, abrir brechas na ideia social dominante

de que a linguagem matemática é algo de estranho e/ou exótico, onde é

extremamente difícil entrar, dada a sua natureza abstracta e simbólica. E isto

porque temos consciência que a matemática é uma linguagem fundamental e

84

estratégica para o desenvolvimento da inteligência, da capacidade de ler, de

compreender e de pensar o mundo, para a invenção de propostas cada vez mais

rápidas, profundas e criativas que respondam às situações imprevistas do

quotidiano.

O modo como estruturámos esta unidade parte da consciência que temos

de que, se a linguagem matemática é necessária para a estruturação e

desenvolvimento do pensamento, a sua recusa leva a que estas mesmas

capacidades não se desenvolvam e a que a capacidade de inventar fique

limitada, já que uma parte das suas potencialidades não foi estimulada. Na

verdade, as matemáticas nascem no nosso cérebro e não existem fora de nós,

elas exprimem, de maneira abstracta, a nossa capacidade de ver, sentir e

reconhecer o real e constituem um verdadeiro reservatório de conceitos para

enfrentar a tarefa da sobrevivência e do desenvolvimento. A actividade

matemática que se caracteriza, nomeadamente, pela procura das invariantes

(conceptuais), é a extensão duma actividade cognitiva essencial para a

adaptação à realidade e, consequentemente, para a sobrevivência:

“A matemática ensina o pensamento rápido. Embora escrevendo x possa dizer 1,2,3, o infinito, os racionais e transcendentes, os reais e os complexos e mesmo os quaterniões, temos aí uma economia do pensamento. (...) Uma demonstração salta os intermediários.”(Serres 1996, pp. 97-98)

Queremos também com esta abordagem que se compreenda como o

domínio de linguagens como a da matemática é importante para a nossa

actividade do dia a dia, como nos permite e facilita a realização de actividades

criativas e nos incentiva à invenção de respostas novas. Esta ideia aparece

expressa, duma forma muito simples, num depoimento de Mário Barreiros,

músico e produtor de discos, onde refere a forma como o trabalho de produção

musical e a relação com as máquinas beneficiou da sua facilidade inata em

compreender os insondáveis mistérios da matemática:

“As coisas aconteceram naturalmente. Sou uma pessoa com algum talento para a matemática. Tenho alguma facilidade em organizar as coisas, em perceber como é que as máquinas funcionam, como é que um compressor funciona, como é que um equalizador reage...E tiro imensas notas sobre as coisas. Esse jeito para a matemática sempre me ajudou”. In Pedro Gonçalves, “A produção e a matemática”, revista On de O Independente de 2000-02-06, p.25.

85

Esta reflexão sugere-nos a pertinência em não restringir a um público

escolar o projecto de intervenção teatral que temos vindo a explanar, dado o

valor estratégico que pode assumir numa educação permanente. Se nos países

em vias de desenvolvimento se utilizaram e utilizam os instrumentos e a

linguagem teatral para lançar campanhas de informação e de prevenção ao nível

dos temas primários, porque é que no interior dos chamados países

desenvolvidos não poderemos utilizar os mesmos instrumentos e a mesma

linguagem para lançar toda uma campanha de agitação e desafio nos domínios

da inteligência e da imaginação?

Procura-se assim, fazendo apelo aos recursos do teatro, criar um mundo

mágico e envolvente que ajude também, por si, a vencer barreiras e preconceitos

em relação à Matemática, explorando-a com as crianças e jovens de múltiplas

formas estimulantes e lúdicas. Neste projecto os actores não aprendem primeiro

a matemática para depois a aplicar à história, antes exploram ambas em

simultâneo. É evidente que a partir dos espectáculos se podem gerar, com

facilidade, situações que encorajem a compreensão e a familiarização com a

linguagem matemática, estabelecendo ligações cognitivas entre a linguagem

corrente, os conceitos da vida real e a linguagem matemática formal, dando

oportunidade a que se fale sobre o vocabulário matemático e desenvolvendo

noções, conceitos matemáticos e habilidades de formulação e resolução de

problemas.

Para a operacionalização destas ideias há que encontrar as dimensões e

os domínios onde é fundamental uma abordagem matemática e que definir as

capacidades que podem ser desenvolvidas através desta intervenção, num

processo que permitirá ainda evidenciar os elementos ou conceitos estruturantes

de um processo de leitura, compreensão e operacionalização das linguagens

matemáticas ao longo dos diferentes níveis etários e, a partir daí, criar diferentes

produtos teatrais que possibilitem intervenções diversificadas do pré-primário ao

universitário, do popular ao erudito.

A invenção e o cientista como paradigma do inventor/criador

Ao propormos introduzir esta dimensão no trabalho queremos, num

primeiro nível, que se possam desenvolver projectos que permitam e criem

condições para que cada pessoa compreenda como os inventores desenvolvem

os mecanismos de descoberta e quais as capacidades e as características da

personalidade que lhes permitiram fazer as descobertas que fizeram.

86

Neste sentido, propomos que se trabalhe sobre a vida e a obra dos

cientistas enquanto paradigmas do inventor, tentando perceber a forma como

desenvolveram as suas descobertas enquanto momentos essenciais no percurso

de alguém que assume o conhecimento como uma aventura, uma aventura que

inquieta e desafia a ir cada vez mais longe, num processo que desoculta a razão

e as circunstâncias do acto de inventar. Hoje é urgente conhecer o que é que

nos faz inquietar e nos impede de nos contentarmos com o que acontece no

interior da normalidade, o que é que nos leva a entrar nesta aventura

interminável que é a aventura do conhecimento, dimensões que é essencial

desenvolver no interior dos projectos de formação.

Para além destas abordagens ao processo individual de cada cientista de

referência, parece-nos importante desenvolver uma vertente de pesquisa que se

centre no "Eureka", esse momento mágico em que as novas coisas emergem,

em que as descobertas ganham forma, num projecto que queremos se centre na

inesgotável capacidade de sonhar, inventar e descobrir do Homem e no modo

como todas as descobertas fizeram avançar o mundo. Este projecto, que terá

como ideia central o trabalho sobre a grande aventura da descoberta e do espírito

de invenção do Homem, constituindo um balanço e um louvor à capacidade de

superar dificuldades e engendrar novos caminhos e soluções, mesmo em

situações muito desfavoráveis, deverá tomar a forma de uma história e de um

espectáculo onde as personagens centrais serão as figuras da ciência e a trama

ficcionará o papel que elas tiveram para o avanço do mundo e para o

desenvolvimento das civilizações. Por aqui deverão passar muitos dos nomes e

das ideias que fizeram, às vezes quase sem se dar por isso, muito do que somos

hoje, num projecto onde se deve inventar tudo até ao fim.

Com esta proposta quer-se, naturalmente, homenagear os inventores. Mas

pretende-se também e sobretudo desafiar cada homem, neste início de século, à

invenção de um outro quotidiano, de uma outra forma de viver.

Os instrumentos de navegação e a cartografia

Se na altura das descobertas a cartografia e os instrumentos de orientação

foram fundamentais para a navegação e as consequentes descobertas que se

fizeram, é fundamental que hoje se saiba quais os instrumentos e os mapas que

poderemos utilizar para cartografar os nossos trajectos, para nos orientarmos no

nosso processo de descoberta e de criação de novos mundos. Um trabalho que,

esperamos, nos dará um conhecimento profundo dos instrumentos e dos

87

conhecimentos que nos permitirão navegar nesta realidade cada vez mais

complexa e desafiante.

A este nível propomos que se desenvolvam projectos cuja temática central

seja a cartografia, onde, por exemplo, se possa recordar e homenagear uma

obra tão significativa como foi a do cientista português Pedro Nunes, certamente

o maior matemático e astrónomo português. Não nos podemos esquecer que em

2002 se comemoram quinhentos anos do seu nascimento e que o cientista ocupa

ao nível académico internacional uma posição de relevo e justa honra, como o

comprova e ilustra o facto de o seu nome ter sido atribuído a uma cratera da Lua.

Ao tratarmos a cartografia, fazêmo-lo porque pensamos que para intervir

no mundo e para inventar novos mundos é preciso conhecer algo sobre os

instrumentos e as cartas que nos permitam navegar no mundo de hoje, tal como

aconteceu com os descobridores da época de Pedro Nunes. Como astrónomo,

matemático, mestre universitário, criador de instrumentos para as técnicas de

navegação e em muitos outros domínios, Pedro Nunes foi o expoente máximo da

cultura e ciência portuguesas. Com este trabalho sobre uma das figuras de

referência do pensamento e da criação portuguesa, que gostaríamos que tivesse

como referência o Galileu Galilei do Brecht, propomo-nos alargar o universo dos

públicos para além das escolas e aproveitar a oportunidade para mostrar ao

maior número de pessoas, à sociedade portuguesa, um dos momentos mais

significativos e criativos da sua história, da nossa história: a grande saga dos

descobrimentos.

Esta ideia de exploração da cartografia deve ter uma ligação cada vez mais

íntima com a gestão do quotidiano social, com a necessidade de se inventarem e

produzirem instrumentos de pilotagem e de regulação dos sistemas complexos

que constituem a vida em sociedade, instrumentos que permitam uma

governação mais eficaz. Um quadro social que implica, como escreve Rosnay

(1995), que olhemos para as coisas com uma outra perspectiva e um outro

quadro de referências:

“Il faut donc prendre du recul, considérer le système monde dans son ensemble, s´inspirer de la description de la vie du cybionte pour retrouver les grands enjeux des actions politiques nécessaires pour favoriser l ´avènement de l´homme symbiotique. Enjeux d´une complexité qui échappe à la capacité de gestion des gouvernements des États dans leur structure et fonctionnement actuels“ (p.191).

88

A prática teatral como instrumento de intervenção social

Este será o espaço e o tempo de afirmação deste trabalho na sua dimensão

social, enquanto prática intimamente ligada e interveniente no seu mundo e no

seu tempo, trazendo a realidade social para o centro do trabalho de criação, pois

sendo o teatro o espaço de descoberta do mundo interior de cada pessoa e do

grupo, será também um espaço e um tempo de emergência e revelação das

realidades sociais mais profundas e, consequentemente, de simulação das novas

realidades que seremos capazes de perspectivar. Poderá e deverá ser assim um

espaço e um tempo de revelação dos movimentos e dinâmicas sociais

emergentes, num processo de vaivém que se desenvolve através das trocas com

o outro ou os outros e que é a base da visão estereoscópica que o teatro nos

pode trazer da vida.

Vamos assim criar condições para que cada um e o grupo sejam capazes

de pensar o mundo de hoje e de construir ficções que mostrem como o mundo

poderia ou deveria ser, ficções essas construídas a partir das temáticas centrais

que o atravessam a cada momento e das contribuições das histórias individuais

de cada um. O teatro assumir-se-á aqui como um espaço privilegiado de

invenção e ficção de outras realidades, da prospectiva, como espaço de criação

de grandes frescos sobre a sociedade contemporânea.

Este módulo funcionará como o espaço e o tempo de construção de pontes

com o exterior, com a estrutura social envolvente, permitindo, na perspectiva

artística, o contacto e o conhecimento dos projectos de todos aqueles que

trabalham a partir da criação de textos ou de narrativas que falam da sociedade

de hoje e dos seus futuros possíveis, ou da actualização dos textos clássicos,

baseando-se em termos teatrais em duas constatações:

- a importância que o texto volta a ter no teatro contemporâneo, o que se

traduz num certo retorno aos clássicos e num incentivo ao aparecimento de uma

dramaturgia contemporânea, dos novos clássicos;

- o papel cada vez maior que a organização do espaço tem tanto no teatro,

como na organização da vida das pessoas, permitindo estudar e compreender os

momentos de evolução do espaço teatral ao longo dos tempos e a que

movimentos sociais a que essa evolução correspondeu, o que abre a

possibilidade de discussão do que são hoje as questões do urbanismo e da

forma de organização do espaço de vida das pessoas.

Há pois que, a este nível, trabalhar sobre o nosso quotidiano e o mundo

89

em que vivemos, a sua qualidade de vida, num processo de defesa e

manutenção de um mundo ou da nossa Terra Pátria, como refere Morin (1993),

onde a felicidade seja possível. Ciam-se assim novos mundos, os mundos

possíveis, numa vertente capaz de simular soluções múltiplas de futuro, de

mostrar problemas e abrir caminhos, questionando o mundo de hoje, sem

esquecer o como é importante conhecer como no passado, na história, se

resolveram certos problemas, ou como certas soluções propostas, por vezes

como mágicas, já foram tentadas noutros tempos. Por outras palavras, é preciso

entender o futuro como algo que se constrói no presente e que está

extremamente dependente da memória, da história, uma história que tem que ser

assumida não como um espaço onde se armazenam velhas histórias, mas sim

como uma referência que é fundamental para a compreensão do papel do

homem no mundo.

Hoje podemos olhar determinadas actividades humanas, as artes, a

produção de mitos ou as ciências naturais, como desenvolvimentos culturais

numa mesma direcção, como actividades que apelam para a imaginação

humana e que operam através da reconstrução de fragmentos da realidade com

o objectivo de criar estruturas novas, situações novas, ideias novas. O papel das

artes ganha neste processo de invenção de outros mundos um papel fulcral.

Nesta medida não é por acaso que os peritos militares americanos, confrontados

com a crise de 11 de Setembro e a destruição das torres do World Trade Center

e do Pentágono, tenham recorrido a um grupo de criativos de Hollywood para

recriar e antecipar cenários de eventuais atentados terroristas aos Estados

Unidos da América (veja-se jornal Público de 11 de Outubro de 2001). Este apelo

demonstra a consciência que cenários de ficção aparentemente improváveis se

podem tornar reais e que a indústria do espectáculo pode contribuir, com a sua

experiência em contar histórias, em definir personagens, criar efeitos visuais ou

de produção, para a criação de campos de treino virtuais onde os soldados se

confrontam com várias dificuldades e dilemas e são obrigados a decidir sob

pressão em tempo real. Este projecto de simulação conta ainda com uma equipa

responsável pelo desenvolvimento do raciocínio para autómatos e de modelos de

emoções para seres humanos virtuais e uma outra que desenvolve a animação

dos corpos virtuais e das expressões faciais, enquanto na área áudio há

investigadores que criam um sistema de som e sincronizam a mistura de efeitos

e do som de fundo e outros que elaboram sistemas de discurso sintético.

90

“Terra Incógnita - Terra Prometida” enquanto projecto de referência

“Fechar fronteiras é entregar as chaves às mafias. (...) Se os países ricos e desenvolvidos não tiverem a inteligência e a necessária vontade para mobilizar recursos para tratar a questão dos emigrantes acabarão, também eles, com navios em insuportável deriva no seu interior”.

Sena Santos 2001

“Terra Incógnita – Terra Prometida” pode começar com a história real de um

barco carregado de refugiados que aguarda, à entrada de um porto algures na

Europa, em África ou na costa da Austrália, autorização para acostar, autorização

que acaba por não chegar. A Terra Incógnita inicia-se assim, neste barco ou

nestes barcos cheios de gente que acreditou que as fronteiras caíam com os

muros e que de repente tomou consciência que outros muros e outras fronteiras

emergiram duma forma extremamente violenta, só deixando o mar como espaço

da não fronteira para fugir. Só que esta fuga para o mar, para o espaço da não

fronteira, fecha definitivamente todas as fronteiras, pois quem se arrisca a ser

contaminado pela ideia da não fronteira dificilmente voltará à normalidade que a

existência dos espaços de fronteira exige, e é assim que aos passageiros destes

navios só lhes resta fazerem-se outra vez ao mar, assumirem-se definitivamente

como habitantes da não fronteira e inventar aí um novo mundo, a “Terra

Incógnita-Terra Prometida”.

A ideia deste projecto surge com o movimento que veio dar origem à queda

do muro de Berlim. Pensava-se então que, com o alargamento das brechas que

começavam a aparecer nas zonas fronteiriças, a comunicação passava a ser

mais fácil e o diálogo e a interacção entre as diferentes culturas europeias

passaria a ser uma realidade. Puro engano, pois tinha-se desvalorizado o facto

de que, quando os muros desabam as pedras, em vez de desaparecerem no ar

como por encanto, tombam para os dois lados e provocam alguma agitação. E na

realidade a agitação foi tão grande que levou a que, contrariamente à ideia de

uma Europa sem Fronteiras, tenham ressurgido novos muros até então

adormecidos e que se têm revelado muito mais violentos que os muros e as

fronteiras anteriores. A Europa vive hoje no interior de um processo conflitual

entre uma realidade que tem na antiga Jugoslávia uma zona de fronteira

extremamente violenta e as tentativas de alargamento da ideia de um espaço

europeu sem fronteiras, como acontece com o projecto da Comunidade Europeia.

E a realidade é tão contraditória que podemos dizer que hoje, na Europa, se

estão a fechar as pontes entre os espaços de fronteira e de não fronteira, com os

91

territórios que se querem afirmar como da não fronteira a construírem imensas

fortalezas para impedir a entrada de gente proveniente dos países e das

comunidades de fronteira, de tal forma que, por exemplo, à porta de Ceuta, a

parte de Espanha que tem de proteger a fronteira sul da Europa da pressão

magrebiana e centro-africana, foi já construída uma estrada de nove quilómetros

na qual se colocarão muros elevados, redes e câmaras de televisão para

“impermeabilizar” a fronteira.

Esta realidade, que à primeira vista nos parece longínqua, mas com a qual

nos confrontamos a cada momento, voltou a acontecer recentemente com o

navio Tampa que recolheu 438 náufragos, curiosamente saídos ou em fuga do

Afeganistão, e que foram obrigados a ficar, em muito más condições de saúde e

higiene, fundeados ao largo da Austrália. O governo australiano argumentou que

não podia permitir que a Austrália fosse vista no mundo como um país de destino

fácil, um argumento que não encontrou eco junto da opinião pública, pois a

Austrália foi construída por emigrantes que, por acaso ou não, eram brancos.

Como escreveu Sena Santos no Diário Económico de 7 de Setembro de 2001,

“o caso do Tampa é simbólico. É o nosso navio, é o nosso destino, representa o nosso tempo. Faltam na terra lideranças políticas voluntariosas, ao mesmo tempo visionárias, sensíveis e determinadas. A questão das migrações sejam genuínos refugiados políticos que procuram escapar a perseguições, sejam os que fogem da pobreza – é uma das mais sérias na agenda internacional de hoje.”(p.11)

Situações como esta acontecem diariamente com os cidadãos do leste que

entram em Portugal, ou com aqueles que sulcam o estreito de Gibraltar ou as

águas do Adriático, uma humanidade desesperada em barcos que tantas vezes

não resistem ao peso dos passageiros ou à agitação do mar, fazendo com que

não saibamos quantas cargas humanas terão sufocado dentro de um contentor

como aquele que foi descoberto no ano passado na doca de Dover.

O projecto “Terra Incógnita – Terra Prometida” propõe-se ficcionar múltiplas

hipóteses sobre o que será ou poderá vir a ser essa Terra Prometida, ou esse

novo mundo, num discurso e numa prática artística que se assumem como o

espaço privilegiado de revelação dos movimentos e dinâmicas sociais

emergentes e de invenção de uma outra realidade. Um processo artístico que nos

interessa porque não se fecha no discurso das artes, antes parte da realidade

para simular um mundo outro, uma “Terra Incógnita – Terra Prometida” onde o

homem é entendido na sua globalidade e a felicidade é possível.

92

Um modelo para uma estrutura de criação teatral de referência

Conforme fomos tomando consciência ao longo deste trabalho, não é

possível a sobrevivência de um projecto artístico e teatral no interior da educação

se no exterior não existirem projectos que lhe sirvam de referência e de desafio.

É para nós fundamental defender a existência de estruturas de produção e

criação artística e teatral que sejam parte integrante de um projecto global de arte

e educação e definir os pressupostos a que essas estruturas devem obedecer de

forma a possibilitar às práticas e aos projectos de formação das escolas, por um

lado, a fruição e o confronto com diferentes produtos, e, por outro, o

acompanhamento dos processos de produção e criação teatral.

É esta definição que agora nos propomos fazer, procurando cruzar os sete

pressupostos ou princípios das práticas teatrais de referência, com os

pressupostos, as necessidades e os desafios resultantes da definição das

perspectivas de intervenção para o interior do trabalho das escolas. O resultado

deste cruzamento será traduzido, em termos práticos, com a introdução de

propostas de abordagem de textos teatrais que, pensamos, podem responder

duma forma exemplar aos pressupostos que vamos definir, textos estes que

resultam do trabalho de pesquisa desenvolvido para encontrar uma base de

dados de textos dramáticos que nas suas temáticas centrais se debrucem sobre

as questões que ligam a arte e a ciência.

É na pesquisa de uma dramaturgia de referência que podemos encontrar as

questões centrais que atravessam a história do homem e da sociedade ao longo

destes últimos séculos, como podemos verificar em obras como, por exemplo, as

de Josef e Karel Capek e Georg Büchner. A obra dos irmãos Capek trata, em

grande parte, da ascensão das ditaduras e das terríveis consequências da guerra

e é escrita, em larga medida, durante o período em que Praga esteve ocupada

pelas tropas de Hitler. R.U.R. e The Insect Play, as peças de maior sucesso desta

dupla de autores, são sátiras ferozes aos horrores de um mundo técnico e um

aviso sério à humanidade caso falhe a sua luta contra a opressão, contra

qualquer tipo de opressão, sendo consideradas um profético aviso para toda a

humanidade. Quanto a Georg Büchner, que viveu entre 1813 e 1837 e escreveu

Woyzeck, esse magnífico texto onde se questiona o ser humano e a sua

manipulação, foi no seu tempo alguém com uma aptidão muito definida pela

ciência e um desejo de perceber como funcionam as coisas, tendo, para além

disso, formado com um largo grupo de revolucionários a Sociedade para os

93

Direitos Humanos, para a qual escreveu panfletos ilegais. Acabou por ficar tão

envolvido em actividades políticas revolucionárias que teve de fugir para a Suíça.

Complementarmente ao trabalho de relação com os textos dramáticos

existentes, pensamos que é necessário desenvolver todo um conjunto de

estratégias capazes de incentivarem e provocarem o aparecimento de novos

textos, textos estes que, nalguns casos, podem responder duma forma mais

eficaz às temáticas que achamos fundamentais que, num determinado momento,

sejam tratadas. Refiro, concretamente, os projectos “Eureka”, “Pedro Nunes” e

“Terra Incógnita - Terra Prometida”, já mencionados neste capítulo, pois

respondem a temáticas que para nós e para a estratégia que definimos é

fundamental abordar. Os respectivos textos vão ter que ser criados no interior de

uma oficina de dramaturgia que ligue a escrita à cena, pois na pesquisa que

desenvolvemos não encontrámos textos dramáticos que correspondessem às

necessidades temáticas dos projectos.

Hoje existe a percepção de que a ausência de uma dramaturgia

contemporânea portuguesa é difícil de colmatar unicamente no interior do mundo

da escrita, começando a emergir a consciência de que os dramaturgos têm de

deixar de trabalhar sozinhos e que devem ligar o seu trabalho ao dos

encenadores, compositores, e, muitas vezes, cenógrafos, que se juntam para, em

conjunto, desenvolverem os seus projectos e criarem os seus espectáculos. Esta

tendência para a constituição de equipas multidisciplinares, que começa também

a ganhar forma no nosso país, parece-me ser um caminho extremamente

estimulante. De forma a criar condições para que as temáticas se desenvolvam e

o inesperado aconteça, há que desenvolver toda uma estratégia que permita, em

cada momento, testar determinados fragmentos no confronto com a cena, fazer

leituras encenadas dos textos, confrontá-los com os públicos, testar a pertinência

das temáticas abordadas e a sua capacidade de atrair e interessar segmentos

significativos de público ou de públicos. Uma estratégia que permitirá testar a

pertinência dos textos antes da sua passagem para a cena e torná-los cada vez

mais eficazes.

É fundamental desenvolver a técnica da escrita das narrativas dramáticas,

sentir o seu respirar, o respirar dos diálogos na sua adaptação à cena, refazendo

tudo o que for necessário para que as falas ganhem verdade na voz dos

actores/personagens, sejam capazes de transportar emoção e intensidade para o

público. Só assim, pensamos, desenvolveremos a nossa imaginação e a nossa

capacidade de contar/escrever histórias para os outros, histórias que agarrem em

permanência as pessoas, que as surpreendam e em que se consigam ver como

94

personagens. Há efectivamente que mobilizar os dramaturgos para a ideia de que

é fundamental construir histórias que tornem o espaço de representação, de jogo,

de tal forma aliciante que consiga despertar a curiosidade para a história ou as

histórias que se estão a pôr em cena, de forma a que todos se sintam motivados

a participar, a colocar um pouco das suas histórias na história geral,

contaminando a sociedade com o prazer da escrita, fazendo com que tudo seja

pretexto para se escrever, tornando a escrita uma verdadeira aventura no interior

de cada pessoa. É bom não esquecer que a parte mais significativa dos textos

que ainda hoje perduram e estão cheios de actualidade foi escrita e rescrita no

confronto directo com a cena: Gil Vicente, Shakespeare, Lope de Veja, Molière,

entre tantos outros, são exemplos paradigmáticos de como a compreensão e o

sentir do respirar das palavras e das situações só se vai acertando quando se sai

do isolamento do papel e as palavras, os sons, as cores, ganham vida, invadem o

espaço de representação.

A escrita dramática é, muitas vezes, o espaço onde ganham forma e

emergem, ainda que através de ficção, os movimentos sociais que, em cada

momento histórico, ainda estão subterrâneos ou clandestinos e daí a sua

importância :

“A coroa de glória da linguagem vem da sua capacidade de traduzir, com rigor, os pensamentos em palavras e em frases, e as palavras e as frases em pensamentos; da sua capacidade de classificar o conhecimento, rápida e economicamente, sob a capa protectora de uma palavra; da capacidade para exprimir construções imaginárias ou abstracções remotas através de uma palavra simples e eficaz.” (Damásio 2000)

É fundamental que a prática teatral que queremos que seja posta em

prática tenha, primeiro que tudo, capacidade de abordar as temáticas que hoje

definimos como estratégicas para a afirmação de pessoas conscientes e criativas

e com uma grande capacidade de intervirem na realidade social de que são

cidadãos de corpo inteiro. Temos necessidade de um teatro e de uma prática

teatral que seja, primeiro que tudo, o espaço da pessoa, que, em segundo lugar,

trabalhe sobre as estruturas que suportam o pensamento e a invenção, e,

finalmente, que tenha uma dimensão de intervenção social, pois só a conjugação

destas três dimensões nos permitirá desenvolvera a nossa acção no sentido e

com o objectivo de formar pessoas com capacidade de pensar e inventar uma

sociedade outra, num processo que terá que ser necessariamente suportado por

um outro quadro de referências.

95

Um espaço da condição humana

Assumimos aqui a ideia de um teatro que produza espectáculos capazes de

motivar cada espectador a iniciar uma viagem ao interior de si próprio, uma

prática teatral capaz de tornar o teatro num efectivo espaço de comunhão e de

encontro de cada um consigo próprio e com os outros, espaços que a

sociedade do espectáculo e do consumo foi fazendo desaparecer e que temos

necessidade de reinventar. Procuramos criações teatrais que tenham força e

energia para despoletar todo um processo de reflexão sobre a nossa condição de

seres humanos que têm direito a existir para além do número e do papel que lhes

foi ou é atribuído na engrenagem de que é feita esta sociedade do consumo e do

espectáculo. Conforme já afirmámos, o teatro é “le seul endroit où nous pouvions

nous libérer des contraintes de nos vies quotidiennes. Cela faisait du théâtre un

lieu sacré où trouver une réalité plus profonde" (Artaud citado por Brook 1977,

p.79). Falamos naturalmente de uma prática teatral que traz a pessoa para o

centro dos processos de mudança e a confronta com personagens e situações

desconhecidas capazes de despertarem em cada um capacidades adormecidas

ou desconhecidas, num processo que nos leva à procura e ao encontro com o

outro que é também o eu e que, naturalmente, nos ajuda a crescer.

Estamos a falar de uma abordagem que, ao nível da criação teatral e da

produção de espectáculos, se estrutura no interior de dois movimentos: o primeiro

é o movimento das forças que entravam funções e atitudes essenciais da nossa

humanidade e que, quando aprisionam alguém, o reduzem em definitivo a uma

outra vida, forças que se constituem em obstáculos e limitações nascidas no

interior de cada um ou a nível social; o outro movimento é o irresistível desejo de

lutar pela condição humana que existe em cada ser pessoa. Efectivamente, o

espaço de comunhão de que falamos só se poderá desenvolver integralmente se

se tornarem visíveis e se se perceberem os constrangimentos e as tendências

negativas existentes na sociedade para aprisionar o homem e o impedir de se

afirmar integralmente, em suma, para condicionar o seu desenvolvimento. Da

mesma forma há que tornar visíveis as longas lutas que se travam para contrariar

essa tendência.

O teatro tem assim que dar visibilidade aos movimentos e às tendências

sociais que impedem que o homem se afirme em toda a sua plenitude,

funcionando neste caso como um espaço de denúncia e alerta para a sociedade,

e, ao mesmo tempo, como antídoto para essa tendência de oprimir e manipular

96

as pessoas ao abrir espaços aos projectos onde cada pessoa tenha as condições

essenciais para ser actor da sua própria história, para se afirmar integralmente.

Como exemplo da primeira tendência, onde o ser é aprisionado por forças

que entravam funções e atitudes essenciais do ser humano e é reduzido em

definitivo a uma outra vida, temos como referência as peças Je suis un

phénomène e L'Homme qui (The Man Who) de Peter de Brook e Marie-Hélène

Estienne. A primeira conta-nos a história de Solomon Veniaminóvitch

Shereshevsky, um homem que possuía uma memória prodigiosa e que, não

tendo conseguido triunfar na música nem no jornalismo, acabou por rentabilizar a

sua rara habilidade tornando-se numa figura célebre que percorreu os circos de

toda a Rússia, tendo o seu caso interessado ao neurologista russo Luria que lhe

dedicou um livro e muito do seu tempo. Peter Brook e Marie-Hélène Estienne

elaboraram uma história que narra a relação entre Solomon e Luria, onde ambos

estão vivos e se reencontram nos dias de hoje nos Estados Unidos, mostrando o

percurso do homem da memória prodigiosa, memória que todos os dias, e a cada

uma das horas, se estíola dolorosamente porque é incapaz de esquecer,

esgotando assim o poder e o impacto do homem fenómeno. Na segunda, onde

se transforma a mente humana em matéria poética, os autores narram o drama

de um talentoso professor de música incapaz de compreender a realidade

através de sensações que não sejam as auditivas, numa adaptação da obra do

neurologista e psicólogo anglo-americano Oliver Sacks, The Man Who Mistook

his Wife for a Hat. Desta obra de Oliver Sacks existe ainda uma ópera, The Man

Who Mistook his Wife for a Hat, de Michael Nyman e Christopher Rawlence.

Esta tendência aparece também, ainda que na dimensão mais do social, no

Woyzeck de Georg Büchner que nos conta a história do soldado Woyzeck, criado

para todo o serviço de um Capitão prussiano que o considera amoral e estúpido,

principalmente porque é pobre, e é exactamente porque é pobre que tenta

arranjar mais algum dinheiro deixando que o Médico do regimento o utilize para

fazer experiências, obrigando-o a não comer nada a não ser ervilhas de forma a

provar uma qualquer obscura afirmação cientifica. Woyzeck acaba por ser traído

pela namorada, a quem corta a garganta, e finalmente, perdido de bêbedo e

desconfiado das pessoas, afoga-se.

A força do irresistível desejo de humanidade que vive em cada ser

humano e a forma como nalguns casos a perda de humanidade e a luta

para a reaver parece traçar um percurso humano exemplar, vamos

encontrá-las em Philip and Rowena : a play, de Gillian Plowman, uma peça que

97

é uma celebração do poder incomparável da vida. A acção passa-se num

Hospício algures, um local estranho onde se abrigam os doentes terminais

ritualizando a inevitabilidade da morte próxima. Philip e Rowena, dois doentes

internos do hospício, ele com 70 anos e à espera do divórcio da sua amarga

mulher e ela com 65 e a sonhar poder trazer unidade à sua família, descobrem-se

mutuamente por entre a surpresa e a ternura, revelando uma espantosa

capacidade para rir e imaginar. Este encontro dá-lhes a possibilidade de planear

uma viagem imaginária a Itália e de criar um mundo de fantasia, de jogo, dança,

banquetes e até corridas de moto, antes de decidirem casar.

Este mesmo sentido encontramo-lo também, mas aqui com uma

perspectiva e dimensão social, na peça R.U.R (Rossum's Universal Robots), de

Josef e Karel Capek, que nos conta a história da jovem idealista Helena Glory

que chega a uma ilha remota que abriga a fábrica Rossum's Universal Robots

onde contacta com os fundadores da fábrica, o inventor louco Velho Rossum que

sonha para si o papel de Deus e o Jovem Rossum, um industrial pragmático que

sonha com uma versão barata de exércitos de operários. Rejeitando a teoria

defendida por Helena de que os Robots têm alma, o psicólogo da fábrica,

Hallemeier, admite que às vezes eles fazem coisas pouco previsíveis, o que

interpreta como defeito de fabrico, ao invés de Helena, que vê nisso uma alma

emergente. Gradualmente os Robots planeiam conquistar o mundo e descobrir o

segredo da vida e é a vida que emerge triunfante quando Helena Robot e Primus

Robot se apaixonam. Alquist abençoa os noivos, dá-lhes os nomes de Adão e

Eva e manda-os embora da R.U.R. para que evitem cair nos erros dos seus

predecessores.

O espaço do pensamento e da invenção

Em segundo lugar queremos uma prática teatral que conte histórias

fantásticas onde o único limite seja o céu, histórias com capacidade de despertar

e alimentar o imaginário de cada espectador e de o motivar a desenvolver as

suas capacidades de associação e de descoberta de relações inesperadas, a

resolver enigmas e a responder a problemas a que é necessário dar resposta

para que as histórias avancem e os conflitos se resolvam. Uma prática teatral que

seja ainda capaz de nos confrontar com percursos de personagens ou de obras

de excelência que tenham a capacidade de invenção como objecto central pelo

qual lutam, percursos e histórias que mostrem como essa capacidade de

invenção é fundamental para o desenvolvimento do ser humano, de todos os

98

seres humanos. No fundo, queremos uma prática teatral capaz de produzir

espectáculos que estimulem a inteligência, que contem histórias e coloquem

problemas e questões que provoquem o funcionamento dos neurónios e

incentivem a produção de pensamento.

A dimensão que procuramos neste ponto vamos encontrá-la, em primeiro

lugar, num musical que é simultaneamente uma alegre intromissão na História e

o desfilar de um confronto pessoal com o destino, numa trama que começa

quando, em 1993, Andrew Wiles espanta o mundo ao anunciar a solução para o

Teorema de Fermat, o famoso problema matemático colocado por Pierre de

Fermat em 1637. No musical Fermat's Last Tango, a personagem Daniel Keane

ganha de um momento para o outro aclamação unânime quando apresenta as

suas descobertas. No entanto, a festa rapidamente dá lugar à dúvida quando um

reincarnado Fermat descobre uma falha na prova apresentada por Keane. O

combate singular de Keane para corrigir os resultados acaba num singular

triângulo amoroso que o envolve a si, a sua mulher, Anne, e a matemática trazida

à vida por Fermat e os seus amigos imortais: Pitágoras, Euclides, Newton e

Gauss. Fermat's Last Tango, de Joanne Sydney Lessner e Joshua Rosenblum, é

um musical que, combinando opereta, blues, pop e, evidentemente, tango, acaba

também por ser um testemunho do extraordinário poder de excitação da

matemática e da sua beleza sem paralelo. Ainda nesta dimensão, The Five

Hysterical Girls Theorem de Rinne Groff, cuja acção se desenrola no Inverno de

1911 numa estância de veraneio britânica durante um congresso de matemática,

traz-nos uma comédia sobre amor e a matemática, onde desfilam, como numa

passerelle, uma longa fila de matemáticos excêntricos, novos e velhos, homens e

mulheres que se juntam para discutir uma teoria, aguçar rivalidades, trocar

mentiras e amores.

Ao nível das histórias de personagens que têm a invenção no centro da sua

existência, pois ela dá-lhes instrumentos como nenhuma outra para a procura da

verdade e do sentido das coisas, escolhemos três textos exemplares que, com

diferentes conteúdos, abordam esta questão. O primeiro, Proof, de David

Auburn, conta-nos a história de uma jovem enigmática, Catherine, da sua irmã

manipuladora, do seu brilhante pai e de um inesperado visitante, na busca da

verdade existente por detrás de uma misteriosa prova matemática. Uma

descoberta que finalmente vamos perceber como surgiu quando Hal descobre,

num velho bloco de notas, que a sua autora tinha sido Catherine, a personagem

mais frágil de toda a história, que de uma forma silenciosa e determinada acabou

99

por dar forma às questões que o seu pai colocava cada vez mais

fragmentariamente.

Os dois outros textos seleccionados trazem-nos uma outra perspectiva, pois

contam-nos histórias de personagens reais como foram Einstein e Richard

Feynman. Moving Bodies, de Arthur Giron, conta-nos a história da vida fantástica

de Richard Feynman, desde que, em criança, é capultado de uma cidadezinha de

província à beira-mar para o MIT e daí imediatamente para Princeton, lado a lado

com Einstein, até ser recrutado por Oppenheimer para o Manhattan Project em

Los Alamos (a construção da Bomba Atómica). Já Einstein, de Ron Elisha,

explora o génio e a consciência de Einstein que se debate com o seu eu de meia

idade e o seu eu jovem, enquanto se afunda no leito de morte. Einstein acredita

que o seu trabalho, que levou ao desenvolvimento da bomba atómica, lhe negará

o perdão de Deus e a salvação.

No domínio das ideias e da sua invenção, escolhemos um texto de Richard

Foreman que aborda uma figura tão significativa como a de Nietzsche,

debruçando-se sobre a sua loucura na medida em que foi essa "loucura" que

acendeu o fogo da filosofia. Nietzsche estilhaçou a sua época e tinha essa

faculdade produtiva de virar as coisas do avesso, como se estivesse nos

antípodas, do outro lado. Em Bad boy Nietzsche acaba por se afirmar que seria

uma delícia se pudéssemos todos ter acesso à loucura que se esconde dentro de

cada um de nós.

Estes exemplos mostram-nos como é importante a abertura aos outros e

ao novo, como é importante ter disponibilidade mental e corporal para reformular

e adaptar permanentemente aquilo que é feito, evidenciando também como o

teatro é, mais do que qualquer outra prática artística, aquela que nos abre a via

na direcção de uma outra apreensão dum mundo em transformação. Capacidade

de abertura, de reformulação e adaptação que, como já explicitámos, é referida

por Brook (1992) quando salienta, como exemplo, que não há nada pior do que o

que acontece aos pintores quando começam a dar uma marca particular aos

seus trabalhos e é por essa marca particular que são conhecidos. É que a partir

daí o pintor « ne peut plus assimiler le travail de qui que ce soit d´autres sans

perdre la face. Cela n´a aucun sens au théâtre. Le domaine où nous travaillons

doit être celui du libre-échange"(p.37).

A dimensão do imaginário, onde efectivamente o único limite é o céu,

vamos encontrá-la num texto de Jules Verne e num espectáculo dos Els

Comediants. Voyage à travers l'impossible de Jules Verne é efectivamente uma

história fantástica que conta uma viagem de comboio que se transforma numa

100

viagem alucinante, pois o comboio transforma-se numa nave espacial e os seus

ocupantes em cosmonautas, misturando nesta trama elementos e personagens

de várias das suas histórias, como Voyages et aventures du capitaine Hatters;

Voyage au centre de la terre; De la terre à la lune; Vingt mille lieues sous les

mers; L'École des Robinsons; Maître Zacharius; Une Fantaisie du Docteur Ox.

Este mesmo sentido do imaginário vamos encontrá-lo no espectáculo Sol solet

(Soleil, soleil) dos Els Comediants que nos mostra uma viagem fantástica de uma

companhia de comediantes em busca da Utopia, representada pelo Pai Sol. Num

percurso guiado pela música e pelas canções populares, Sol Solet permite-nos

assistir a um flirt entre o Sol e a Lua, a um combate do primeiro com as nuvens e

ao estabelecimento do ciclo das estações do ano. Sol solet é uma viagem à luz

do mundo, à natureza, às alegrias da vida e às coisas mais simples. Esta

perspectiva podemos também encontrá-la nos espectáculos do Cirque du Soleil

que são verdadeiros hinos ao espectáculo total, como se pode ver nas produções

Quidam e Dralion, onde há um efectivo cruzamento das diferentes disciplinas

artísticas e a transformação do espaço ou dos espaços é permanente.

Tal como afirmámos nos 7 princípios para um teatro de referência, estas

abordagens permitem-nos demonstrar na prática como o processo de criação

teatral abre novas perspectivas à transformação da estrutura espacial das

estruturas onde se desenrolam projectos e como o teatro é portador de

potencialidades interdisciplinares e de percepção da complexidade, pois o

processo de criação dos projectos efectivamente inovadores implica a

mobilização e o apoio das múltiplas áreas do saber.

O espaço da intervenção social

A terceira dimensão é necessariamente uma dimensão social, onde a

criação teatral é o espaço por excelência de análise e reencontro com a história e

com os movimentos sociais que determinaram a sua evolução. Espaço onde se

cruzam as histórias da história com as preocupações, os anseios e os desafios

que a cada momento atravessam as sociedades, cruzamento esse que permite

trabalhar ao nível prospectivo, ficcionar os mundos possíveis, o futuro. Um

processo que deve estar integrado no interior de um projecto cultural ou de

contaminação das práticas e das culturas, num processo que desenvolve a sua

prática para além das fronteiras, sejam elas das pessoas, das artes e das

tecnologias, ou dos países, e que o faz numa perspectiva intercultural, de

intersecção e confluência de culturas, onde o limite de país ou de região não

101

existe. As diferentes tendências interculturais que se podem observar

actualmente no teatro mundial estão baseadas na ideia de que uma cultura

mundial pode emergir a pouco e pouco, uma cultura mundial onde participarão as

mais diferentes culturas e onde se conseguirá respeitar e dar valor à

especificidade de cada uma: "La conception plutôt utopique d´une culture

mondiale, vers laquelle semble se diriger le rapport productif du théâtre avec des

éléments de cultures théâtrales étrangères, est considérée et imaginée comme la

tâche commune des avant-gardes théâtrales des cultures les plus diverses"

(Ficher-Litchte s.d.,p.p.24-35).

No domínio dos textos de referência encontrámos três categorias de obras

que nos parecem determinantes para o desenvolvimento desta perspectiva: uma

primeira onde se reflecte sobre as questões de ética que devem enquadrar todo o

trabalho de pesquisa e de invenção de outras realidades, como poderemos ver

nos textos Copenhagen de Michael Frayn e Hitlers Dr. Faust do autor alemão

Rolf Hochhuth; uma segunda que nos mostra as dificuldades com que muitas

vezes se confrontam aqueles que descobrem novas ideias que põem em causa o

estabelecido e obrigam a um outro olhar sobre a sociedade, o que de uma forma

extremamente clara podemos ver na Vida de Galileu de Berthold Brecht e no

texto de David Mamet The Water Engine; finalmente a consciência de como a

invenção, seja nos domínios da arte ou da ciência, ajuda o mundo a avançar,

como se percebe na peça de Steve Martin Picasso at The Lapin Agile que nos

permite afirmar o espaço da criação teatral como um espaço de invenção por

excelência onde é possível criar cenários, realidades virtuais, futuros possíveis.

A consciência social e a dimensão política de todos os actos da pessoa, o

sentido da ética, da razão e implicações da acção humana vamos encontrá-los

em Copenhagen de Michael Frayn, que põe em diálogo os cientistas Niels Bohr

(1885-1962), judeu-dinamarquês, e Werner Heisenberg (1901-1972), alemão. Em

plena Segunda Guerra Mundial, em 1941, Bohr e Heisenberg teriam tido um

suposto encontro onde se especula que estabeleceram caminhos para chegar à

bomba atómica, um encontro que ainda hoje intriga a comunidade científica. À luz

da história, ninguém sabe de facto o que se passou nesse encontro de dois

cientistas que, antes da eclosão do conflito, tinham escrito em conjunto as

primeiras linhas da física quântica, mas que a guerra acaba por colocar em

campos adversários (Heisenberg trabalha para os nazis e Bohr para os norte-

americanos). Copenhagen reinventa as razões que terão levado Heisenberg a

deslocar-se à Dinamarca ocupada e sobre o que é que os dois homens, tão

diferentes politicamente e no carácter, terão dito um ao outro.

102

Com a mesma ordem de preocupações, Rolf Hochhuth escreveu Hitlers Dr.

Faust, a partir de duas questões centrais: Será legítimo à ciência servir-se de

todos os meios para alcançar os seus fins? Significa isto que o Dr. Fausto cedeu

a soberania do Mundo ao Diabo? Uma história que coloca no centro do conflito

Hermann Oberth, um homem que na sua juventude sonhou com o voo de

foguetões para outros planetas, e que, conjuntamente com o seu discípulo

Wernher von Braun, construiu de facto foguetões, mas não para benefício da

Humanidade. Felizmente a prioridade ao estudo das bombas voadoras só foi

dada por Hitler na fase final da guerra, mas depois de ter morto, expulso ou

provocado a saída da esmagadora maioria dos físicos que seriam capazes de ter

construído as ogivas nucleares.

Ao segundo nível, o da percepção e tomada de consciência das imensas

dificuldades e resistências que, em certas épocas, se revelaram duma violência

enorme, escolhemos dois textos que, de diferentes maneiras, o mostram de uma

forma exemplar. Referimo-nos, em primeiro lugar, à Vida de Galileu, onde

Bertolt Brecht, nos conta, em traços bem marcados, a vida do cientista Galileu em

três momentos centrais da sua vida: a partida de Florença, a instalação em Roma

e o seu julgamento pelo tribunal da Inquisição, mostrando como a afirmação das

descobertas que mudam o mundo e que, naturalmente, rompem com o

estabelecido, se confrontam com enormes obstáculos para se afirmarem.

Obstáculos que levam à possibilidade de se perder a própria vida, tal como nos é

mostrado na história de David Mamet, The Water Engine, onde se conta a vida de

um inventor, Charles Lang, desde o momento em que procura protecção para si e

para o seu invento, um motor que trabalha a água, até ao seu inevitável

assassinato.

O texto de Steve Martin, Picasso at The Lapin Agile, conta-nos a história de

um encontro num bistrot parisiense de Montmartre, o Lapin Agile, entre Albert

Einstein e Pablo Picasso num dia qualquer de 1904, um encontro que nunca

ocorreu de facto, mas que nos mostra como a invenção ajuda o mundo a

avançar, seja nos domínios da arte ou da ciência. Tanto Picasso como Einstein

são portadores do impulso e da energia que hão-de transformar os séculos

vindouros, tendo Einstein publicado a Teoria da Relatividade, um ano depois do

encontro que é ficcionado nesta peça, e Picasso pintado, em 1907, Les

Demoiselles D´Avignon. O que se discute é o futuro: "Nunca pensei que o século

XX me chegasse de uma forma tão casual", diz Einstein quando vê pela primeira

vez um desenho de Picasso. Einstein tem uma teoria nova que permite formular

103

de novo o universo e Picasso formula de novo o universo e isso permite gerar

uma teoria nova.

104

O Teatro como agente do desenvolvimento regional e local e de

enriquecimento da vida quotidiana das pessoas

Nesta dimensão estratégica é fundamental criar condições para que a

criação ao nível das artes do espectáculo chegue cada vez a mais pessoas e

mais localidades e espaços, possibilitando a existência de um público consciente

e participativo. Isto consegue-se se estruturarmos uma rede nacional permanente

de circulação de produtos artísticos de grande dimensão e qualidade e um

projecto articulado de captação, formação e fixação de públicos, aumentando a

oferta cultural em todo o país, acção que entendemos como factor de

desenvolvimento regional e local. Não podemos esquecer que a oferta cultural é

determinante para a fixação de quadros e para a consequente melhoria da

qualidade de vida numa determinada região ou localidade.

Organizar uma estrutura de produção

A operacionalização de um projecto cultural de e para o lazer implica a

existência de uma forte oferta cultural que incentive e responda às necessidades

de fruição cultural de um cada vez maior número de pessoas e localidades.

Oferta cultural que é hoje considerada peça fundamental na afirmação de uma

região, pois, como se considera actualmente no discurso de gestão, uma forte

infra-estrutura cultural é tão importante para uma região como são as estradas ou

as telecomunicações. O sucesso das regiões a médio prazo dependerá dos

serviços e da qualidade de vida que oferecerem, e as artes, a cultura em geral,

desempenham aqui um papel vital ao contribuírem para a promoção de uma terra

como civilizada e interessante, um lugar onde apeteça viver e instalar negócios.

Conscientes da importância que hoje assume a existência de uma forte

oferta cultural e da sua íntima relação com o desenvolvimento local e regional,

este projecto assume como um dos seus vectores prioritários, aumentar e

diversificar a oferta cultural no maior número de localidades e estruturas do país,

nomeadamente aquelas que integram a Rede Nacional dos Espaços Culturais.

Estruturar um projecto de Captação, Formação e Fixação de Públicos

A programação e gestão de espaços culturais impõe uma atenção cada vez

mais precisa sobre os públicos, suas motivações, seus hábitos, objectivos e

expectativas. Um projecto cultural terá assim que ter sempre em consideração as

105

pessoas/espectadores como centro e razão do seu trabalho, resultado da tomada

de consciência de que a intervenção cultural é um dos elementos estruturantes

de um processo de mudança e de renovação pessoal e social. Assim é da

responsabilidade dos programadores, dos gestores de espaços culturais e de

todos aqueles que desenvolvem uma actividade artística encontrar mecanismos e

estratégias que possibilitem um diálogo e interacção permanentes entre os

fazedores da cultura e os seus consumidores. Um processo egoísta de

programação, agarrado somente a crenças pessoais, apartado do espectador, do

público, transforma-se num fosso, num abismo enorme, entre os chamados

homens da cultura e os consumidores daquilo que estes produzem. É preciso não

esquecer que a obra de arte só ganha significado quando observada, discutida,

questionada, amada e odiada, logo, a sua existência depende de um público, de

espectadores que se querem cada vez mais esclarecidos, informados, com um

sentido crítico apurado e o músculo da imaginação e da criatividade devidamente

exercitado. Não pode o espectador ser mais entendido como elemento passivo,

elemento que tem no acto de ver, por norma silencioso, o seu único espaço e

tempo de participação.

Efectivamente, os espectadores devem ser a primeira preocupação de uma

estrutura de produção e criação teatral, espectadores que se querem cada vez

mais conscientes e críticos, com os sentidos activos, com capacidade de captar

os movimentos que atravessam em cada momento a realidade social e de ler e

intervir no mundo em todas as suas dimensões, num processo que tem de ser

despoletado através da fruição de um objecto artístico com um forte sentido

estético e uma grande capacidade de provocar emoções, dependendo a

intensidade e a eficácia do movimento provocado da força e intensidade do

produto artístico e do trajecto e das características próprias de cada uma das

pessoas que com ele se confrontam.

O trabalho neste domínio tem que ser desenvolvido em três dimensões:

formação/reflexão, fruição e informação.

Ao nível da formação/reflexão há que realizar um projecto que integre e dê

continuidade a algumas das actividades que pensamos estratégicas a este nível

e que temos vindo a estruturar no Teatro da Trindade, nomeadamente os

Encontros de Teatro, Formação e Lazer e o ciclo de seminários “Olhares

sobre o Espectáculo”, prolongando a sua duração ao longo do ano e integrando

as várias disciplinas das “Artes do Espectáculo” através da organização de um

106

“Círculo de Estudos”.

Tomamos diariamente consciência da necessidade de dotar as pessoas de

instrumentos das mais variadas disciplinas que contribuam para a criação

artística, bem como que estimulem uma melhor e mais crítica relação com as

artes e uma capacidade crescente de criação /produção próprias. Por isso, mais

do que um conjunto de ateliers de encenação, cenografia, interpretação,

marionetas, movimento, escrita para teatro, produção, ou outras quaisquer áreas

de formação onde as artes do espectáculo sejam trabalhadas e discutidas, os

Encontros de Teatro, Formação e Lazer tornam-se um espaço de reunião, de

encontro de ideais, experiências e de sensibilidades.

Com “Os Olhares sobre o Espectáculo” quer-se potenciar a criação de

pontes e interfaces que possibilitem um diálogo urgente e necessário entre os

criadores, os programadores e os espectadores, desenvolvendo acções de

formação e sensibilização para as diferentes áreas do espectáculo e criando

espaços e tempos para uma participação mais activa e criativa dos potenciais

consumidores dos produtos culturais. Saber mais, para poder escolher melhor.

Ver mais para poder ver melhor. Fazer mais para poder avaliar melhor, sabendo

que a Arte é um espaço em que o sentir é tudo e acreditando que também o

sentir se pode estimular, ensinar e aprender. Querem-se espectadores

conscientes, com capacidade de escolha e que sejam participantes activos dos

projectos culturais. Este Ciclo de Seminários aparece, assim, como resposta à

necessidade de articular os espaços de formação com o espaço de discussão e

reflexão, onde se poderão e deverão abordar temáticas como a análise de

públicos e de projectos de criação artística pontuais, desenvolvidos pelas mais

diversas motivações e instituições ou a forma como estes se poderão relacionar

com projectos de programação artística já devidamente implementados. Outras

actividades possíveis a realizar nos Ciclos poderão ser, por exemplo, a partilha

de experiências com directores, técnicos, encenadores, dramaturgos.

Ainda no domínio da reflexão, pensamos que é importante criar um espaço

de encontro entre os professores e os criadores com a característica de Círculo

de Estudos, um modelo de estrutura que permitiria, não só, aprofundar e

solidificar a relação criada com os professores e as escolas, mas também

analisar, reflectir e apoiar as práticas nas escolas e fazer a ponte com os

projectos que nos domínios artísticos aí se desenvolvem. Esta modalidade

enquadra-se nos modelos e métodos sociais de formação exigindo, por um lado,

uma relação estreita entre o professor em processo de formação e a sua

realidade experimental, e, por outro, a partilha e a capacidade de interrogação

107

sobre a cultura do grupo no qual o professor se integra, procurando, perante o

emergir de questões problemáticas, desencadear a procura colectiva de soluções

e respostas possíveis, favorecendo o conhecimento da complexidade de acção

nas situações educativas. O Círculo de Estudos deve ter como ponto de partida

uma análise de necessidades e de problemas que sejam comuns ao espaço de

intervenção profissional dos professores em formação, na definição e encontro de

estratégias partilhadas que possam criar condições para se ultrapassarem as

dificuldades específicas com que cada projecto se confronta.

Quanto à fruição, há que estruturar toda uma estratégia que permita a um

número cada vez maior de pessoas ter acesso a espectáculos e manifestações

artísticas, tanto nacionais como internacionais, o que se consegue pelo

lançamento e estruturação de um programa de turismo cultural que seja capaz

de trazer tanto as pessoas a Lisboa, como levar as pessoas de Lisboa a outro

ponto do país, complementando esta oferta com a organização de produtos

internacionais, como a visita a um museu de referência, a ida a uma estreia, um

fim-de-semana cultural em Londres, Nova Iorque ou Paris. Como suporte a todo

este projecto, há que organizar grupos nas várias regiões do país que, à volta de

estruturas associativas, congreguem os reais e potenciais interessados no teatro.

Referimo-nos a Clubes dos Espectadores (Excursionistas) de Teatro, estruturas e

pessoas que podem estar ligadas a grupos de Teatro Amador (o que implica que

se desenvolva uma estratégia articulada com as estruturas amadoras, tanto ao

nível da formação, como dos apoios e da informação/documentação), ou a outras

estruturas regionais e locais de acção cultural. Isto poderia, em articulação com o

lançamento de um projecto de Turismo Cultural, operacionalizar um programa

que integrasse múltiplas Instituições Culturais ou Científicas.

Conscientes de que os hábitos se aprendem e que é de pequenino que se

fazem nascer vontades, gostos, ambições, de que é em pequenino que mais

facilmente se têm sonhos nos quais se acredita totalmente, de que é em

pequenino que se deve ter acesso à maior quantidade de informação possível

para que se possa crescer informado e esclarecido, não podemos deixar de

considerar estas idades como idades de intervenção prioritária. Nesta medida, o

projecto Visitas ao Teatro visa uma aproximação aos alunos, em especial do

1ºCiclo e dos Jardins de Infância, e também aos seus professores, entendendo

estes como aqueles que serão os continuadores do momento artístico, por

natureza efémero, que o teatro oferece. Tirando partido da beleza e do encanto

dos espaços teatrais, sejam tradicionais ou contemporâneos, e do envolvimento

108

fantástico provocado, não só pelo facto de se tratar de casas onde reina a magia

do teatro, mas também, e no caso dos espaços tradicionais, pelos seus lustres e

escadarias que puxam pela imaginação e conduzem a um mundo fantástico, ou

pelas novas tecnologias, no caso dos novos espaços teatrais, pode-se

desenvolver toda uma diversidade de percursos e aventuras ao mundo do teatro,

ao espaço das ficções.

Ao nível da informação este projecto deverá ser enquadrado pela criação

de um Centro de Documentação, Informação e Investigação das Artes do

Espectáculo. Num primeiro momento, isto implica que se organize uma forte

componente de divulgação das actividades e dos projectos através da feitura de

um Jornal dos Teatros. De forma a incentivar a reflexão, deverão ainda ser

organizados Cadernos de Teatro concebidos como o espaço por excelência de

reflexão das questões centrais que hoje atravessam estas áreas artísticas.

O centro de documentação poderá ainda lançar todo um projecto de

criação de materiais de apoio pedagógico, como a publicação de textos, a edição

de vídeos, a produção de Kits de apoio aos professores (maletas pedagógicas de

teatro com uma cena, figuras articuladas, textos e CDs, e ainda uma pequena

publicação com sugestões de actividades a desenvolver, etc). Este trabalho será

acompanhado pela organização de uma feira permanente de publicações no

domínio das artes do espectáculo, onde se colocarão à disposição dos

participantes das diferentes iniciativas e projectos um conjunto de materiais de

referência, tanto nacionais como internacionais, superando uma lacuna

fortemente sentida neste domínios. Sugere-se ainda a recolha, organização e

disponibilização, em espaço aberto à consulta e sobre vários suportes, incluindo

o impresso e o audiovisual, de outros materiais que não estejam disponíveis para

venda. Paralelamente trabalhar-se-á na concepção de um site de teatro que

permita o acesso a outros sites de referência, para além do acesso directo às

bases de dados que é fundamental desenvolver ao nível do material existente no

domínio da “Arte e Ciência” e do material fornecido pelas companhias e artistas

participantes na Feira de Projectos Artísticos e Culturais Vocacionados para

o Público Escolar.

Esta feira deve ser um ponto de encontro e de troca entre os produtores

culturais, as escolas, os programadores regionais e locais e as entidades que,

nas diferentes regiões e localidades, apoiam e dinamizam este tipo de

actividades. Procura-se desta forma fazer chegar, de forma directa, informações

e exemplos significativos dos trabalhos produzidos, sejam espectáculos ou

projectos de formação e animação, de forma a que as escolas e os

109

programadores possam saber dos produtos disponíveis, das suas características,

e assim poder construir a sua programação duma forma coerente e com tempo.

Permitirá também aos produtores o contacto com e a tomada de consciência das

necessidades e dos desejos que aqueles que programam no terreno têm.

Procura-se com esta iniciativa, em primeiro lugar, satisfazer uma procura

crescente por parte das escolas de produtos culturais e artísticos de qualidade e

dirigidos ao seu público potencial. Em segundo lugar, quer-se, com esta feira,

permitir às escolas um planeamento mais cuidado destes produtos, possibilitando

assim uma exploração mais cuidada e constante e uma maior apropriação

pedagógica. Pretende-se ainda ajudar a colmatar a dificuldade que, por vezes, os

produtores culturais têm em fazer chegar a sua programação às escolas.

Finalmente quer-se também obrigar os produtores a organizarem

atempadamente e de forma acessível as suas programações.

A estrutura da Feira integrará espaços de mostra efectiva de espectáculos,

espaços de realização de ateliers, espaços de debate e um núcleo permanente

de stands representativos das diferentes estruturas, que esperamos integre as

várias disciplinas e manifestações artísticas, nomeadamente a dança, as

marionetas, as artes plásticas, a música, a escrita, o teatro de rua, a

performance, a poesia, o vídeo e os contos populares. Este espaço de Feira deve

existir anualmente para permitir que professores e alunos o possam visitar,

tomando contacto directo com as mais diversas realidades ao nível da produção

cultural nacional.