O Diabo Também Se Apaixona - VISIONVOX

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O Diabo

Também Se Apaixona

Eleanor Rigby

Premio Vergara 2018El Rincón de la Novela Romántica

Sinopse

Londres, 1882

A cada ano a gloriosa temporada reinventava-se, desta vez o protagonismodas festas de Londres vitoriana recaiu inteiramente sobre uma jovem lenda.Inglaterra inteira morre por um beijo da debutante Ariadna Swift, que emborafosse uma alma esquiva, conseguiu que seu nome não só fosse murmuradocom adoração, mas que também chegasse aos ouvidos do diabo da cidade... eeste ficou desejoso por conhecê-la.

Sebastian Talbot leva anos esperando um sinal para pôr em marcha o seuplano de vingança, mas não imaginava que o instrumento para o conseguir,teria todos os requisitos do mito da mulher inacessível. Ariadna é para ele apersonificação de sua própria insaciabilidade, e embora saiba que ela não estádisposta a conceder-lhe nada... ele não demorará para querer tudo.

Até onde chegará Sebastian para levar a término a obra mais ambiciosa desua vida? Estará preparado para que o amor e a loucura sejam uma paradaobrigatória no caminho?

1

Londres, 1882

Sebastian Talbot era, no mínimo, o homem mais calculista que Inglaterratinha visto forjar-se na última década. Iniciava a quarta temporada desde queconseguiu impor-se, com sua famosa brutalidade, sobre o grupo de engomadoscom ascendência que ainda hoje o olhavam receosos, e isso queria dizer que

levava muitos anos investindo em pombas mensageiras1. Essas que revoavamcom olhos atentos pelos salões das altas esferas, aos quais Sebastian não podiaaceder, intercetando os movimentos e comportamentos excecionais quepudessem deturpar-se e converter-se num escândalo.

Histórias várias, que iam desde um patético beijo roubado de umadebutante na escuridão de uma estufa aberta ao público, até à ruínaeconómica de quem foi um bom partido no beau monde, chegavam aos ouvidosdaquele que chamavam «diabo». Os fofoqueiros, ocultos estrategicamenteinclusive nos sapatos das damas, corriam mais tarde a comunicar aoproprietário do tridente a recém-descoberta. O empresário não só desejavamuito uma boa fofoca, assim como frequentemente, lhe interessava o pecadocometido, para fazer algo a respeito: apresentava-se com a tentação de umsuculento incentivo ante os caídos em desgraça, e geralmente se saía com asua.

Estas ofertas oscilavam entre investimentos em sua próspera empresanaval, que não deixava de ganhar sócios por minuto, ou numa noite em suacama, sempre e quando acreditasse que seriam rentáveis como investidores ou,como amantes.

Definitivamente, Sebastian Talbot tinha comprado os ouvidos de meiapopulação londrina para estar a par de tudo o que acontecia ao redor, e intervirdepois de estudar os lucros de uma possível proposta. Assim, tendo quem ofizesse por ele, não precisava preocupar-se com nenhuma questão que não

fosse relacionada com o deleite pessoal, o que levou a que se pudesse dedicar-se inteiramente às suas finanças, ao prazer carnal e à invenção de novasformas de fazer armadilhas no pôquer.

Entretanto, nos últimos dias, esteve-se falando de um assunto que lheconcernia, e do qual somente ele mesmo em pessoa poderia encarregar-se. Umassunto que, depois de estreitar mãos com o prestígio, decidiu deixar de ladotemporariamente enquanto chegava a outra parte da qual seria um acordoglorioso: que terminaria por lhe fazer popular e invejado.

Como era lógico, Sebastian não podia fazer ouvidos surdos aos falatórios,e menos ainda quando as vozes que se elevavam provinham de notóriospersonagens aos quais desejava ver afogando-se em seus comentários mal-intencionados.

Em poucas palavras, um anjo acabava de ser apresentado em sociedade.Lorde Aldridge dizia que a moça fazia tremer as pernas dos homens com a suasimples aparição; o marquês de Weston, aquele desgraçado de cara avinagrada,tinha sorrido num total de três vezes ao manter uma conversa com ela; einclusive o duque de Winchester acabava de proclamar entre seus familiares ―a quem não deveria ter feito se queria que continuasse a ser um segredo ― quepretendia pedir a sua mão em matrimônio porque lhe tinha roubado o coração.

Todos os temíveis crápulas de Londres suplicavam redenção nos braços damoça, cuja beleza comparavam com a da Virgem! Blasfêmias enchiam as bocasdos consagrados ao clero, enquanto os céticos asseguravam ter visto o céuaberto ao beijar seus nódulos enluvados.

Embora Sebastian acreditasse que aquilo fossem fofocas, teve deconfirmar se as dúvidas eram reais e averiguar se Londres enlouqueceu depoisda apresentação da jovem, porque esta ser uma maravilha de facto. Semdúvidas, aquela enormidade sobre os seus encantos tinha acabadodespertando a sua curiosidade, o que já era uma façanha em num indivíduo doestilo de Sebastian Talbot, a quem nada impressionava. E apesar de seimportar com a grandeza feminina se não para corrompê-la, Sebastian estavafervorosamente encantado de que existisse uma criatura capaz de pôr a seuspés toda aquela equipa de almofadinhas empoeirados. Porque isso significavaque tinha chegado a hora de casar-se, destruindo assim o coração de todohomem orgulhoso de se considerar inglês.

A instituição do matrimônio parecia-lhe antiquada e patética. Como se nãobastasse ter a cargo uma mulher uma mulher cujo comportamento bobo

poderia levar à ruína social, o noivado era o eufemismo de um pacto comSatanás. Os que em um tempo foram seus amigos, Dorian Blaydes e ThomasDoyle, tinham sucumbido à irrevogável demência depois de selar os laçoseternos com suas respetivas algemas. Atrás ficaram os dias de glória, em prolde noites intermináveis com senhoras de ventre volumoso que transformavamtodo seu encanto original numa sucessão de desejos insuportáveis que, emverdade, era o marido quem devia satisfazer.

Apesar de tudo isso, tinha que seguir o exemplo do cavalheiro comum,embora não pudesse considerar-se como tal. Sebastian recordava ter dado umsalto de trapezista quando um de seus informantes se apresentou em suaostentosa mansão em St. James para anunciar que a senhorita Ariadna Swiftacabava de tomar como reféns os corpos, mente e corações da totalidade decavalheiros em idade de amar.

Por fim ia ter o que lhe faltava para completar sua coleção...! A mulherperfeita. A noiva de Londres. A preferida das altas esferas. Definitivamente... Oque ele estava à espera desde que descobriu que devia comprometer-se.

Sebastian nunca teria se conformado com uma qualquer. Tal como nosnegócios, quis para a sua vida a maior e de melhor qualidade. Não podia sermenos, tratando-se de mulheres.

Desde que chegou à capital com intenções de conquistá-la, soube que seuplano de casamento incluiria a dama que mais propostas de matrimôniorecebeu na sua estreia. Bem: a espera tinha finalizado. E o melhor era que nãotinha tido que mover um só dedo, perdendo tempo em extenuantes buscas aolongo e largo mundo conhecido. Ela tinha chegado a ele e, para o cúmulo, como sobrenome da esposa de um de seus grandes amigos, o que esperava quefacilitasse as coisas.

Sebastian teve de deixar de regozijar-se silenciosamente e aquietar os seuspensamentos para prestar atenção ao intrometido conde de Standish. DorianBlaydes era um dos poucos aristocratas a quem respeitava, possivelmenteporque ele mesmo com muita dificuldade respeitava-se a si mesmo, e isso oconvertia num indivíduo interessante ou pelo menos, divertido em últimainstância.

― E o que pensa fazer se não for de seu agrado? ― perguntou, olhando-ocom a sobrancelha arqueada ―. Se casará com ela na mesma, embora aencontre repulsiva ou se pareça irritante?

― Duvido que seja repulsiva ou irritante se todos falam dela como um

modelo de virtudes. E em caso de que o seja... posso te assegurar que lhejogarei o laço de todos os modos. Essa mulher, seja quem for, vai ser minha ―opinou, apurando o uísque que balançava entre os dedos. ― E falando nela,onde está?

Sebastian jogou um dramático olhar a seu redor. Seria a morena dofundo...? Tinha um peito escultural e bons quadris, tal como ele as preferia;entretanto, foi abrir a boca e perdeu a magia. Jesus! Ou engoliu um perumutilado, ou nasceu com as narinas entupida. Tinha a risada mais horrorosaque teve o desprazer de ouvir, e não recordava que tivessem falado dasgargalhadas da senhorita Swift como o equivalente ao grasnido de uma avemigratória.

E seria então a loira que dançava com o visconde Grayson? Tinha umafigura bonita, um sorriso encantador... Mas uns olhos esbugalhados a ponto defugir de seu rosto, e o nariz como o pico de um jovem falcão. Havia, também, aruiva sardenta que paquerava descaradamente com.…? Diabos, não! Pelomenos, tampouco recordava que tivessem descrito a senhorita Swift como umajovem com péssimo gosto na hora de escolher o seu traje. Ele não tinha nadacontra as mulheres do Rubens; não tinha nada contra nenhuma, de fato.Nunca foi um homem requintado no gosto feminino, já que, desde jovem,incutiram-lhe a ideia de que era de má educação rechaçar qualqueroferecimento... Mas, Senhor! aquela mulher cairia pelos dois lados da cama.

― Meu Deus, estou ansioso! ― exclamou ―. De certeza que se encontraaqui? Porque não localizei ainda uma só moça que se pareça digna de todo oslouvores que há dias me perfuram os ouvidos.

― Esqueci que tem uns ouvidos muito sensíveis a tudo o que não sejamadulações para sua pessoa ― comentou maliciosamente Blaydes ― tranquilize-se... A senhorita Swift aparecerá com o resto de suas irmãs daqui a nada.Recorde-se que são o mais parecido a uma tribo sedentária, ou aos brotos decogumelos. Vem uma, e a seguem as demais.

― Certo! Só espero que seja tão formosa como suas próximas.― Era isso uma exigência?― Uma esperança. Procura não me interpretar mal. Não me importa nada

que seja a mais feia, ou que tenha o traseiro de um babuíno, Blaydes, mas medececionaria seriamente que, tendo uma irmã como Megara Doyle, nãocontasse nem com um só encanto. Conformar-me-ia se tivesse somente ametade sua formusura... Ou um terço do que é lady Ashton.

― Posso saber, que qualidades deveria ter a futura senhora Talbot? ―inquiriu com curiosidade ― Imagina que pudesse desenhá-la a seu desejo.

― Uma mulher é uma mulher, não acredito que exista mais do que aspetoformoso, mas aborrecida, ou divertida, mas assustadora. Se me ocorresse sairde ditos padrões, estaria cruzando a linha do sonhador, e eu não gosto deenvenenar a minha mente com estúpidas idealizações. Mesmo assim, e já queme pergunta isso, responderei que a senhorita Swift já é a mulher perfeita paramim.

«Inclusive sem tê-la conhecido ainda.»― Pelo fato de ser perfeita? ― burlou-se.

― Pelo fato de ser a minha Némesis2. Necessito que a menina dos olhos deLondres durma na minha cama para dar a estes infelizes um motivo real parame detestar. De todos os modos, se puder ser boa anfitriã e não se meter naminha forma de vida, seria o cúmulo do sublime.

― Quer uma mulher submissa?― OH, é obvio. E que sob nenhum conceito mendigue o meu amor; não

suportaria uma chorona pendente de cada um de meus passos. Preferiria quenão fosse faladora, ou que ao abrir a boca, soltasse uma estupidez que aenvergonhasse: assim se acostumaria a manter a boca fechada, sendo umfloreiro precioso e manejável ao qual eu não teria de prestar a mínima atenção.

Percebeu então que Dorian Blaydes o olhava com um de seus sorrisosperversos, que normalmente pressagiavam um terrível acontecimento futuro.

Não é que Blaydes tivesse sangue cigano lhe correndo pelas veias, nemtampouco lhe parecia de uma inteligência excecional. Entretanto, o desgraçadofrequentemente sabia o que acontecia no mundo antes de que o mundo empessoa pudesse suspeitar. Por isso lhe tinha pedido em inúmeras ocasiões ecom a esperança de que um suborno fosse suficiente incentivo, que seconvertesse num de seus passarinhos falantes.

Desgraçadamente, Blaydes era um desses homens aos quais gostavam dever o mundo arder desde sua poltrona brincalhona, sorrindo para si mesmopor ter acertado.

― Conhece-a, não é assim? ― atreveu-se a aventurar.― É obvio que a conheço. A todas as irmãs Swift... ― adicionou ― E de

todas elas, Ariadna é... A mais peculiar. Não sei se cobrirá seus requisitos, meuamigo. Espero que sim, para sua felicidade e sua sorte. ― Pôs-lhe uma mão no

ombro e lhe deu um tapinha casualmente ― Quão único posso te dizer é quevocê deve ter muito cuidado com o que deseja, porque poderia consegui-lo.

― Disparates. Deixe os seus misticismos para outro dia, pode ser Blaydes?E agora, faz o favor de me dizer onde diabos está minha esposa.

Sebastian voltou a dar uma volta ansiosa sobre si mesmo. Sentia-seencurralado entre aquelas quatro paredes, que por muito bem iluminadas queestivessem pelas românticas lamparinas de gás e vários lustres, pareciam-lheuma extensão do inferno. O ambiente carregado pelos pesados perfumes dasjovens e o fedor de orgulho que destilavam os cavalheiros com complexo desuperioridade, o faziam suar. E ele odiava com todas suas forças qualquerindício de falta de higiene.

O salão tinha sido decorado com esmero em cada canto, e não se podiaesperar menos de lady Ashton. Não ficava um só espaço desprovido de seutoque de carinho: das floreiras emanavam orquídeas e alhelíes, entre outrosbrotos frescos, enchendo de cor as esquinas esquecidas. A orquestra tocavacom supremo gosto, uma balada que um homem como ele nunca saberiaapreciar devidamente, enquanto o bulício das conversas e roce das saias comas botas de seus acompanhantes de dança, davam um ar jovial aoacontecimento.

Sebastian entendia que podia ser o centro de reunião sonhado por umadebutante, criada para rir como uma galinha poedeira diante do circo montadoem volta até que lhe ocorresse assinar seu cartão de baile. Mas para ele, aquelelugar era o habitat natural da hipocrisia, onde germinava cada vez mais longede seu vaso, poluindo o resto dos botões que pudessem colher uma cabeçacheia de originalidade.

Estava desejando partir, e não era precisamente conhecido por suapaciência. Acima de tudo, queria sentir prazer em si mesmo, e nada lhe fariamais feliz que sair pela porta grande, evidenciando seu desprezo para o eventogeneralizado. Não obstante, devia esperar, e esperar... Não muito mais de doisminutos, até que as irmãs Swift apareceram no primeiro degrau da soberanaescadaria que culminava no centro da estadia.

Talbot reconheceu, primeiro, a esposa de lorde Ashton. Penélope Ashtonera uma beleza morena de olhos ciganos que iam além de suas maneirasimpecáveis, a origem do seu encanto físico estava no modo que tinha de tirarconclusões a respeito de outros. Seguida dela, a senhora Doyle, que outrorafora somente Megara Swift, arejava sua formosura sem precedentes ao sorrir ao

seu marido entre a multidão, que se tinha formado em redemoinhos por pertopara ver descer a favorita. Aquela mulher era a plena definição da perfeiçãofísica, elevada até um ponto que quase era vergonhoso olhá-la diretamente.

Depois dela, Sebastian percebeu uma coroa quase branca. Estirou-se,cheio de curiosidade, conseguindo ver sua fina testa pálida e um par desobrancelhas que quase se confundiam com a tonalidade doentia de sua pele.

Megara não demorou para descer o último degrau e dirigiu-se a saudar osconvidados: a escada, pois, foi inteiramente para Ariadna Swift, que sob oponto de vista de Sebastian, não estava à altura das duas divindadesanteriores.

Não se parecia com nenhuma delas absolutamente, e não era porque adistância lhe impedisse de apreciar os detalhes. Se Sebastian tinha umavirtude notável, era a capacidade de apreciar qualquer particularidade aolonge, convertendo-o numa ave de rapina com olhos dotados de binóculos. Esua futura esposa não era, nem de perto, uma beleza sobrenatural.

Miúda decepção. Teve que descobrir, ao vê-la de frente, que teria gostadose fosse morena, ou pelo menos, não tão loira. Tão, tão loira...

Vestida de branco, quase sem sobrancelhas, com o cabelo sem brilho e apele a um passo de competir com a de um defunto, parecia que tinha nascidoantes da invenção natural do arco-íris. Isso era... Faltava-lhe naturalidade. Eratoda artificial. Sua maneira de caminhar, muito tranquila. Seu olhar, muitodireto. Sua forma de piscar, muito forçada. A Sebastian não pareceu um anjo,parecia mais uma boneca.

― Onde está Ariadna? ― perguntou, num arrebatamento de esperança. Oolhar que Blaydes lhe dirigiu, entre irritado e zombador, respondeu por todasas palavras do dicionário ― Meu Deus, esse duende de pó de arroz é o sonholondrino? Deve ser uma brincadeira ― resmungou ― Acredito que necessitouma taça..., ou um pouco de rapé. Vamos empoeirar o nariz?

Dorian Blaydes soltou uma potente gargalhada.― O grande Sebastian Talbot decidiu recuar? Nunca pensei que uma

mulher poderia contigo.― Eu tampouco pensei que minha esposa seria a maior decepção de

minha vida antes mesmo de falar com ela, mas não está em minhas mãos teceros fios do destino ― espetou, negando com a cabeça. Viu-a estender a mão aum par de cavalheiros, que a beijaram por turno ficando mais tempo do queestava socialmente aceito perto de seus nódulos ― Diabos, que diferença faz?

Vou apresentar-me antes de que ocorra a alguém fazer uma oferta melhor quea minha... ― Fez uma pausa, como se acabasse de escutar uma blasfêmia ―.Deus santo, que classe de oferta seria melhor que a minha? A não ser que arainha esteja interessada, temo que...

― Talbot, por Cristo! ― exclamou Blaydes, divertido.― OH, sim, delitos contra a Coroa... me desculpe.― Espera. ― Agarrou-o pelo braço ― O que pensa fazer? Vais pedir-lhe em

matrimônio diretamente, sem te apresentar, sem dar um passeio com ela, sem.…?

― Porquê? Deveria passar três meses ensinando-a a seduzir-me naintimidade de meu salão, tal e como você fez? ― brincou ― Este é o estilo

cockney3, Blaydes. Fecha sua enorme boca e observa como um verdadeirogaranhão, cativa a sua dama com uma só frase.

Dito aquilo, avançou sem cerimónia para a moça, que ficava a uns poucospassos de distância. Embora fosse poucas vezes consciente do que acontecia aoseu redor, nesse instante, Sebastian se deu conta de que estava chamando aatenção de todo o salão.

Bem. Gostava disso. Agora era de domínio público que a senhorita Swiftlhe interessava seriamente, o que faria que os tubarões desesperados por seuamor enlouquecessem definitivamente, e acabassem puxando os cabelos portê-la perdido para o seu maior inimigo: um homem mais próspero e com umgrande futuro por diante.

Megara Doyle o interceptou, a ele e às suas intenções, a um passo deplantar-se junto às costas da senhorita Swift. A matreira esposa de seu amigojá devia prever qual era seu propósito, e a julgar pela ruga em sua testa,imaginava que não estaria especialmente agradada de que, depois de anos debuscas exaustivas, tivesse posto o olho na sua irmã menor. Entretanto, asaparências sempre importaram à anfitriã, por isso não teve escolha a não sercontrolar seu temperamento, enfocado em encorajá-la a pular sobre outrapresa, e apresentá-los como correspondia.

― Ariadna, céu ― disse com suavidade ― Eu gostaria de te apresentar A...― Não há problema, senhora Doyle ― cortou ele imediatamente ― Posso

me apresentar eu mesmo.A protagonista da cena, que não parecia muito a par da situação, deu a

volta com uma lentidão exasperante. Teve de jogar a cabeça para trás, num

ângulo de grande desconforto, para poder olhar aos olhos de Sebastian. Isso,sem dúvida, era uma boa notícia entre tanto branco e aborrecimento que lhetransmitia. Ao menos, as mulheres de estatura patética nunca lutariam paraimpor-se... E se o fizessem, jamais seriam tomadas em conta.

Sebastian lhe devolveu o olhar.Ariadna tinha os olhos de uma tonalidade que nunca antes tinha visto. A

primeira piscada lhe pareceram cinzentos, mas na seguinte, bolinhas azuisapareceram para reluzir com brilhos lilás. Eram uns olhos grandes, de umbrilho assombroso, mas que não ficariam para a história no que se referiam avivacidade. Os olhos de Ariadna não eram os olhos de uma moça desejosa deexperimentar, nem de ser convidada a dançar, nem de estar a morrer porconhecer o homem que tinha à sua frente. Eram uns olhos que viviam noutrarealidade, e viam além do que propunha o mundo terrestre.

Face à adversidade, Sebastian escolheu minuciosamente um de seusmelhores sorrisos, e o esgrimiu como arma mortal. Tomou a sua mão enluvada,roçando com consciência os delicados nódulos, e levou a curvatura entre olábio inferior e o queixo, onde a deixou repousar um instante. Aspirou a

fragrância dos alelís4, que lhe pareceu um tanto simplório para uma jovem desua posição.

― Olá, Ariadna ― disse com voz aveludada ― Sou o seu futuro marido.A resposta física que Sebastian obteve por sua parte foi uma só piscada e

um assentimento.― Um nome que abunda nestes salões ― respondeu, com uma voz tão

suave que teve de afinar o ouvido para escutá-la ― Poderia me indicar o seunome, para não o confundir com outro de meus futuros maridos?

― Como diz? ― replicou, forçando o sorriso. E esse comentário?Apresentaram-se com essa mesma cantilena antes...? ― Já deveria saber quemsou. Meu nome é Sebastian Talbot.

― Não me recordo ― respondeu sinceramente, com uma inocência queconsiderou enlouquecedora. Não o conhecia?! Era o homem mais rico daInglaterra! e não o conhecia? ― De qualquer forma, é um prazer conhecê-lo.

Continuando, deu meia-volta e iniciou a conversa com a sua irmã, quenão era capaz de separar o olhar emocionado dele. Acabava de lhe dar ascostas? A ele, a Sebastian Talbot? Quando, além disso, apresentou-se comonada mais, nada menos que seu marido?

Pigarreou, esperando voltar a captar sua atenção. Sentiu-se extremamenteestúpido ao ficar como um idiota atrás dela.

― Senhorita Swift ― remarcou cada palavra ― Pergunto-me se dançariacomigo.

Ariadna deu a volta de novo e o olhou do mesmo modo: diretamente nosolhos, sem subterfúgios, sem medo, sem deslumbramento que valesse. E elequase estremeceu.

― É obvio, senhor Talbot.Senhor Talbot.Não soava como um insulto, pronunciado com um tom berrante que não

parava de expressar o desprezo da moça ao interlocutor, por ter sido ignoradodepois de um par de beijos perto de um arbusto, ou por ter-se atrevido a pedir-lhe uma dança, como estava acostumado a ser comum.

Senhor Talbot.Tampouco foi uma reclamação a tudo o que isso suportava: dinheiro,

atitude, um futuro digno.Pronunciou seu sobrenome, como se fosse uma pedra no caminho entre

outras tantas, não expressamente molesta, e não necessariamente maior.Unicamente foi Talbot, o homem entre qualquer milhão, exceto (ou embora)vazio, morto e abandonado. Somente ele mesmo: recordou seu nome como se jásoubesse de que cor era a sua alma.

Sebastian a olhou, consciente de que uma bruxa poderia habitar no seupequeno corpo. Não seroa por quatro palavras que iria retirar a sua propostada dança, mas estaria de olho. Sebastian prestava atenção a tolices depronúncia, expressões ou respostas, normalmente porque não lhe produzianenhum interesse escutar a pessoa com que falava: era pura descortesia. Sim,descortesia. Gostava de ser abertamente grosseiro, de modo que todossoubessem exatamente o que esperar dele.

Porém, pareceu-lhe que a aborrecida senhorita Swift poderia esconderuma língua viperina similar à de suas irmãs, só que oculta sob a aparência deuma menina perfeita.

― Me diga, senhorita Swift ― começou, quando a sustentou entre seusbraços. Demônios! Era diminuta! Ainda bem que não se importavaespecialmente fazer-lhe dano, ou temeria a noite de sua consumação ― Quandogostaria que celebrássemos as bodas?

Ela franziu o cenho tão brandamente que nem se notou.

― Sinto muito, senhor Talbot, mas se isso era uma piada, tem que saberque careço por completo de senso de humor.

― Quão último desejo é que tome como uma piada, Ariadna. ― por quenão a chamar por seu nome? Iria ser sua esposa, cedo ou tarde ― Desculpe,deveria ter feito a minha proposta antes. ― Sorriu com brio e encanto; umsorriso que deveria ter morrido ao não ser correspondido na mesma medida.Estaria fingindo desinteresse? Porque, nesse caso, era excecional no jogo dasaparências. Talvez por isso todos a adorassem ― Ofereço-te a minha mão emmatrimônio. Sou proprietário da empresa naval mais próspera da Inglaterra.Meus ganhos anuais são comparáveis, se não superarem, os de qualquercavalheiro que se interesse em te cortejar fielmente durante o resto datemporada. Careço de família, por isso não incluirei no pacote uma sogra quepossa nos desprestigiar em público ou te ofender por não levar um vestido aseu gosto. Vivo em Londres, embora se você gosta do campo, poderíamosnegociar a compra de uma dessas mansões ancestrais em perigo de extinçãopara que passasse ali os verões. Eu não gosto da sociedade nem da sua listainterminável de regras de bom comportamento: se quiser se liberar de bailes ourelações indesejáveis, o seu lugar será comigo. Se não, terá plena liberdadepara fazer vida social. Como vê, querida, casar-se com Sebastian Talbot é sólucro... Por isso retomarei a questão inicial. Quando contrairemos núpcias?

Ariadna guardou silêncio durante um segundo. Dois. Três segundos quepassavam enquanto Talbot se esforçava por demonstrar que, embora nãosoubesse dançar, podia seguir o ritmo, até cumprir com três minutos exatos.

― Ouviu-me? ― inquiriu com impaciência.― Claro, senhor Talbot. Só estava meditando a respeito de qual das

minhas respostas corporais pôde ter dado a entender que preciso de ummarido.

― Todas as mulheres do mundo precisam de um marido.― Todas as mulheres que o desejam ― particularizou ― Infelizmente, não

sou uma delas. Adula-me a sua proposta, senhor Talbot, mas me vejo no deverde rechaçá-la.

― E eu me vejo no dever de exigir que tire essa ideia da cabeça, senhoritaSwift. Era uma pergunta de mera cortesia ― assegurou ― Meu único objetivoagora mesmo é conseguir uma esposa, e você é a candidata perfeita, por issotemo que não vou aceitar um não como resposta.

― E um «nem o sonhe com isso»? ― inquiriu. Deu uma volta, seguindo os

passos corretamente, mas sem ser graciosa em excesso. Não sorria, mas nãoparecia zangada; tampouco lhe falava com desprezo, embora as suas palavras oempunhassem ― Que tal um «esqueça»?

― Muito ardilosa senhorita, mas as negativas em todas as suas variantesficam vetadas neste assunto. Vai se casar comigo, ou não me chamo SebastianTalbot, e mais te vale aceitá-lo.

― Dado que se apresentou como meu futuro marido, atrever-me-ia a dizerque não deveria jurar por seu nome.

Sebastian entreabriu os olhos. Primeiro, porque de algum modo tinha deafastá-la de seus olhos para não a estrangular, mesmo que parcialmente. Esegundo, porque começava a suspeitar que seriamente pretendia rejeitá-lo.

― Admito que não foi uma grande proposta, mas não sou um homemromântico, Ariadna. Não vou ajoelhar-me, nem vou mandar flores, nem pensote compor poemas, e que me parta um raio se aparecer em sua varanda paracantar uma serenata... Logo, terá que se conformar com este pedido.

― Não estou insatisfeita pelo seu modo de expor. Eu gosto das pessoasdiretas ― concluiu ― O problema de tudo isto...

― Deixe ver se adivinho ― interrompeu, enervado ― Minhas maneiras?Minha falta de ascendência? A horrível cicatriz que tenho na cara? Minhaevidente falta de destreza como bailarino...?

―... não tem a ver com você, Senhor Talbot. A ascendência é uma ilusãoda qual despertaremos cedo ou tarde, eu tampouco sou uma excelentebailarina, sua cicatriz não é de todo desagradável e ninguém se livra aqui decometer um engano de protocolo. O que intento lhe dizer é que só acredito nasuniões por amor, e como estou segura de que o amor não existe, sou impossívelpor esses dois lados. Nossa compatibilidade é nula.

― Compatibilidade nula? ― exagerou ― Eu tampouco acredito no amor.Isso nos converte em almas gêmeas, Ariadna.

― Como acrescentado, eu gostaria de conservar minha virtude intacta.Sebastian não sabia muito de etiqueta, mas não tinha ouvido uma só

mulher falar tão descaradamente sobre sua virgindade em público. Supunhaentão que essa falta de discrição era uma qualidade em sua futura esposa.Porque era no que se converteria, e não havia mais que falar.

― Querida, posso jurar com uma mão sobre minha caderneta de contasque não te tocarei. Só os pobres desejam a sua esposa, e dar a impressão demiserável é o último que desejo. Agora, deixa de lado a faceta de mulher fatal e

me diga quando, demônios, vamos nos casar.Em seguida, ocorreu algo insólito: um gesto do qual cada um dos

convidados percebeu e no que pareceram disfrutar até seu desaparecimento.Ariadna esboçou o mais parecido a um sorriso, mas sem o ser. Torceu ascomissuras dos lábios para cima, e copiou para fazer sua expressão da MonaLisa.

― Quando as margaridas brotem de cor negra.A valsa chegou ao fim nesse preciso momento, separando os seus

caminhos temporariamente. Sebastian teria reagido com destreza se tivesseassimilado a tempo esse curioso semblante. Já para não mencionar quantosofreu o seu ego, que esteve a uma palavra mais de ser enviado à tumba.

Sebastian viu partir sua grande inimiga com o cenho franzido. Resmungouuma maldição que ninguém teria gostado de ouvir, e quando estava a ponto decomeçar a persegui-la por toda a casa sem reparar nas consequências, umamão pousou em seu ombro.

― Terá que me ensinar isso do estilo cockney ― comentou Blaydes comironia ― Tenho um sócio muito molesto, o qual me viria bem espantar.

― Cale-se, pássaro de mau agouro ― espetou, olhando-o de soslaio ― Istoera só o aquecimento. Juro-te por meus antepassados que até amanhã esseduende de pó de arroz será minha prometida.

― Seu eu fosse você não jurava em vão, meu amigo. Dá má sorte. Emboravendo o que vi... ― Acrescentou, provocador ― não pode ficar ainda pior.

2

Se os negócios lhe tinham ensinado algo, além de deixar atrás todoescrúpulo em prol do benefício assegurado, era insistir uma e outra vez atéconseguir o que queria. Tendo em conta que o matrimônio entrava na categoriade acordo negociável, e que se caracterizava por ser o investimento maisingrato na vida de um homem, Sebastian estava seguro de que convencerAriadna só requereria uma melhor oferta. Ou, em última instância, aintervenção de aliados que pudessem coagi-la.

― De maneira nenhuma ― cortou Megara, cruzando os braços.Lástima que ditos aliados tivessem decidido lhe dar as costas quando mais

os necessitava.― Mas se ainda não acabei ― queixou-se Sebastian, adotando uma

postura similar de exagerado descontentamento ― Deixa que...― Não, Talbot. Sob nenhum conceito vou permitir que se case com minha

irmã, e menos ainda com «essa» irmã ― especificou ― Ariadna é uma pessoaextremamente sensível e especial. Casar-se contigo a converteria numadesgraçada, e não penso fazê-la passar por isso, nem me importo o quepropuser.

Sebastian se acomodou na poltrona do escritório de Doyle, como se nãoquisesse puxar os cabelos pelo desenrolar da conversa.

Pelo pouco que sabia da família Swift, eram muito unidas, e issosignificava que ter Megara do seu lado poderia simplificar as coisas, se nãoaplainar o caminho para sua presa. Não obstante, não contou com o pequenoinconveniente de que Megara era, provavelmente, a única mulher de Londresque conhecia muito bem até onde era capaz de chegar quando colocava algo nacabeça. Sua falta de humanidade e sua brutalidade a impressionaram nopassado, e Sebastian entendia que por causa de não o ter superado ainda,tivesse suas reticências.

Mas pensava esmagar esses ditosos receios com a sola de suas botas

hessianas. Ninguém – e esse «ninguém» incluía à própria Ariadna – ia interpor-se na sua intenção de desposar aquele inseto pálido.

― Além disso ― continuou a senhora da casa, olhando-o com desconfiança― Não se supõe que já lhe propôs matrimônio e ela o rechaçou?

Sebastian tentou não exteriorizar a profunda frustração que aquele avisolhe produzia. Não é que não lhe tivessem já dito nunca um não; Deus bemsabia que durante boa parte da sua vida, essa tinha sido a única resposta aqualquer pergunta que lhe tivesse ocorrido fazer. Entretanto, nos últimos anostinha-se acostumado a abrir caminho pronunciando seu nome e batendo emseu bolso. Estava seguro de que bastaria plantar-se diante da dama de suaescolha e pronunciar as palavras mágicas, para que esta caísse a seus pésirremediavelmente. Mas, ou subestimou o poder do efetivo, ou a mulher tinhamuitos pássaros na cabeça para assumir que era a melhor oferta que poderiamlhe fazer..., à margem de suas maneiras e o fato de que o odiasse todaInglaterra.

― Assim é, mas imagino que tem em alta consideração a opinião de suairmã, e se lhe comentasse os benefícios de nosso matrimônio, talvez ela...

― Acredita seriamente, que posso apresentar-me no quarto de Ariadna,falar maravilhas de ti, e que ela, de repente, dita que é o melhor que pôde lheacontecer? Talbot... ― Negou com a cabeça ― Suponho que veio a mim porqueacredita que sou capaz de algo. E, em efeito, sou. Mas ainda não posso fazermilagres, e asseguro-te que tentar colocar uma ideia na cabeça de AriadnaSwift é algo que nem o Todo-poderoso aspiraria.

― Confie em mim, senhora Doyle; sei perfeitamente, e de primeira mãopara cúmulo, que Ariadna é obstinada ― disse com suavidade, como se nofundo não estivesse maquinando a maneira de empurrá-la ao casamento ―Mas nada é impossível nesta vida. E menos ainda para um homem com tantodinheiro como eu. Assim.… se não for tentar pela magnífica amizade que nosune e para me agradar, por que não põe um preço?

Megara o olhou como se tivesse perdido o juízo.Pelo amor de Deus, essa reação era injustificada se olhasse por onde ele

olhava. Tinha sugerido coisas piores, e embora tudo apontasse a que estarialouco, ainda não tinha demonstrado do que era capaz.

― O que foi que te ofendeu, querida? É certo que falar de amizade quandorefiro a nossos rasteiros acordos passados é um tanto ofensivo; afinal decontas, não queremos trazer isso ao presente.

― Desculpe. Não me ofende, nem me arrependo de nada do que tenho feito― repôs com orgulho fingido ― O que me deixa estupefata é que pense, outenha pensado por um segundo ridículo, que porei preço à liberdade de minhairmã.

― Na realidade, sua irmã será tão livre como desejar, e em todos ossentidos ― expressou com lentidão ―. se souber ao que me refiro. Assim,tecnicamente só quero que me diga quanto tenho que pagar para trocar seuestado civil.

Megara permaneceu imóvel um instante. Demorou um segundo paranegar com a cabeça, perdida em sua própria incredulidade.

― Sebastian ― pronunciou ―. se minha irmã não te quiser, não vais tê-la.Tão singelo como isso. E não comece com tolices esnobes sobre suamaravilhosa e invejável fortuna, ou a grande oportunidade que perderia.Imagino que saberá que Ariadna não é nenhuma pobrezinha. Se as matronasnão se equivocarem, é, até à data, a mulher mais solicitada no mercadomatrimonial desde lady Lianna Ainsworth. Até o duque de Winchester apretende ― especificou. O orgulho se filtrou em seu discurso como umapunhalada de traição ― Assim se acredita que é o único que pode oferecer-lheum bom futuro, ou pensa que sua estratégia de entrar em sua vida pela forçasurtirá efeito quando há homens fazendo fila para lhe entregar um buquê deflores, vai esquecendo.

Sebastian só estava recebia informações que o atormentasse toda a noite.Se não se tornou louco de preocupação, pensando que pudessem adiantar-sefoi apenas porque ficou com a impressão de que Ariadna não morria pornenhum de seus pretendentes. De facto, era evidente que não morria porcasar-se, simplesmente. Algo que não parecia nada mal no que correspondia àsua competência, mas que fazia amarga sua intenção inicial de desposá-la.

― Sua popularidade entre os homens é algo que tenho muito presente,minha estimada senhora, Doyle... E que não compreendo absolutamente.Ariadna não é desagradável à vista e pode considerar-se cortês, mas que diabostem para ter posto aos seus pés metade de Londres? ― perguntou, sem poderconter-se. Essa era outra das dúvidas que o colocaram dando voltas ― Emminha humilde opinião (e acredite, deve haver extremamente poucas mulheresque me parecem feias), o único que salva Ariadna Swift de ser uma jovemcomum é o facto de ter o cabelo branco.

― E os olhos lilás ― acrescentou uma voz masculina. Sebastian elevou os

olhos, topando com o rosto pétreo de Thomas Doyle ― Quando a olhei pelaprimeira vez, fiquei enfeitiçado.

O senhor Doyle era, junto com Blaydes, o único desgraçado sobre a crostaterrestre que fazia de sua lamentável vida um processo mais suportável. Antesera um homem próspero e rico como ele; agora era sócio da empresa,encarregando-se dos assuntos concernentes a pagamentos de devedores.Thomas Doyle era um excelente valentão, e não só porque soubesse usar ospunhos - que procurava guardar para si enquanto não houvesse necessidade-..., mas porque a sua aura possuía uma desconcertante força inexorável queempurrava seu interlocutor a confessar até o último de seus segredos. Bastavaum olhar como o que lhe dirigia nesse preciso instante para converter o maisdiscreto num pirralho lacrimoso arrependido de seus pecados.

― Por fim se deixa ver, fantoche ― espetou Sebastian ― Posso concordarcom isso, sim; é uma criatura insólita, muito estranha..., mas isso não a faznecessariamente excecional. Nem muito menos bonita.

Sebastian apercebeu-se que Megara o olhava fixamente, presa entre aestupefação e a ofensa.

― Pode-se saber por que vieste a minha casa pedir a mão de minha irmã,quando nem sequer te parece atraente? ― Fez uma pausa dramática. Megarase levantou lentamente, sem afastar os olhos dele. Sua expressão se escureceu― A princípio suspeitava, mas agora confirmo. Seja o que for que te traga entremãos, não consentirei que envolva Ariadna...

― Senhora Doyle ― interrompeu num tom ferido ―. está insinuando que sópoderia me chamar a atenção uma mulher por seu aspecto? Há muitasvirtudes além da beleza exterior que...

― Sim, há ― cortou-o, arisca ― Entretanto, são aspetos de suapersonalidade que é impossível que conheça porque a viu ontem pela primeiravez, e só estiveram falando durante os três minutos que durou a valsa.

― Mas se ela tivesse deixado, os teria multiplicado até ser sua únicacompanhia durante o resto da noite. Por acaso não pode um homemapaixonar-se à primeira vista?

Megara elevou as sobrancelhas num gesto que poderia ter encontradoofensivo..., se seu significado não se confirmasse a repugnante realidade querepresentava Sebastian Talbot, e que em seguida foi confirmado.

― E apaixonou-se à primeira vista? ― burlou-se.― Não, por Deus. Mas mesmo assim, por que classe de pessoa amoral me

tomas?― Exatamente pela pessoa amoral que é ― respondeu Megara. Cruzou os

braços e voltou a sentar, desta vez muito perto de seu marido, que assistia àdiscussão com moderada diversão ― Ariadna tem qualidades de sobra paradeslumbrar um homem; não me teria surpreso que viesse pedir-me a sua mão,se não soubesse que você, de homem tem pouco. É o diabo, Sebastian, e nãoposso nem fazer uma ligeira ideia do que necessitaria para recuperar o coração.Seja o que for, é óbvio que minha irmã não o tem, e não o é, porque nemsequer captou seu interesse, por muito que tente fingir... E duvido que cheguea contar com ele alguma vez. Portanto, diga-me o que há na sua retorcidacabeça ― ordenou.

― Poderia tirar conclusões eu mesma, mas temo que nossa «amizade»ficaria ressentida depois de expor todas as loucuras que te vejo capaz de fazer.Por que quer te casar com ela?

Sebastian encolheu os ombros sem dar especial graciosidade aomovimento.

― Todos querem casar-se com ela. Todos a querem.― Você não a quer.― Evidentemente. Mas eu não sou «todos». Sou algo melhor que isso.― Não o está demonstrando indo atrás da generalidade como os burros ―

interveio Doyle, olhando-o com uma ameaça de sorriso ― Vamos, amigo, penseique teria mais personalidade do que demonstraste aqui e agora, decidindocasar com a mulher com a qual a Inglaterra sonha só por essa razão.

― E eu pensei que cedo ou tarde acabaria percebendo que as suasmeditações a respeito de minhas decisões me são indiferentes ― disseSebastian com brio. Golpeou com as unhas o punho de sua bengala ― É assimtão estranho o meu desejo de ser um bom marido? Todo homem respeitáveldeve ter uma mulher respeitável a seu lado. Que melhor que uma Swift, queconta com o amparo dos condes de Ashton, o conde de Standish, o marquês deLeverton e um longo etecetera?

― Posso fazer-te uma lista de todas as mulheres que são melhores queuma Swift ― replicou Megara, obstinada ― As Swift são escocesas, temos umforte temperamento e há tantos esqueletos em nossos armários que devemosguardar os vestidos sob a cama, junto com os monstros de nossa consciência.

― Nunca pensei que desprezaria sua casta abertamente, Meg; não éabsolutamente seu estilo. ― Rio Sebastian, encantado com a sua demonstração

de tristeza ― Embora aprecie a oferta, vou rechaçá-la. Conforme ouvi por aí, aslistas nunca trazem nada de bom... E não importa que consiga convencer aprópria rainha da Inglaterra a casar-se comigo. Seguirei preferindo a Ariadna.

― Apesar de não ser formosa ― particularizou a irmã maior com rancor.― Não é tão formosa como você ― corrigiu ―. mas não disse que não tinha

encanto. Deve ter algum se até o amargurado visconde a adora …Megara, que tinha ultrapassado o limite de sua paciência, afastou o olhar

visivelmente irritado e o cravou em seu marido, que a observava com atenção.― Não estamos nos concentrando no que é realmente importante aqui.

Você ouviu? ― perguntou, com um tom ofendido ― Quer casar-se com aAriadna porque todos querem casar com ela. É a maior loucura que já ouvi!

― Está falando com um louco ― respondeu Doyle com sua costumeiracalma ― Deveria tê-lo imaginado. Mesmo assim, vou ter de ficar do lado dele,Meg, é muito bom partido. Conheço Ariadna e sei que não seria feliz com umhomem apaixonado por ela: seus sentimentos a afligiriam, e ela se isolaria pornão o poder corresponder. Tampouco sonha com a grandeza de um título, epara cúmulo, é muito desligada para dirigir um condado, ou um marquesado...Um homem rico que lhe proporcione uma mansão no campo, onde dedicar-seàs paixões de sua vida, é tudo com o que poderia sonhar.

― Viver connosco é tudo com o que poderia sonhar ― corrigiu Megara,zangada ― Ariadna não quer um homem, Tommy. Quer sua família.

― Mas algum dia terá que casar-se. E acredite em mim, ninguém faladeste tema com maior pesar do que eu mesmo: imaginar a minha própria irmãcomo esposa, não me deixa dormir pelas noites... Mas é necessário. Nãopoderemos mantê-la para sempre, menos ainda quando nem sequer têm dote.

Sebastian elevou a cabeça como uma hiena ao cheirar a carne fresca.Nessa intervenção estava a linha por onde poderia rasgar o saco: não tinhadote, algo que só lhe traria vento fresco a um milionário em ascensão. Nãoobstante, a notícia deixou momentaneamente mudo.

― Não tem dote?― Não. Supõe-se que lorde Leverton, pela amizade que unia nossas

famílias, proporcionar-nos-ia o dote por certos negócios entre seu pai e eu. Masdepois dos problemas com o administrador, onde perdeu quase tudo, nãorestou conformar-nos com o que tínhamos: nada. Recentemente, lorde Ashtonse ofereceu para encarregar-se como ato de boa-fé ― prosseguiu Megara ―, masrecusei bruscamente porque eu não...

― Não aceita caridade ― concluíram Talbot e Doyle em simultâneo. FoiSebastian quem continuou: ― Como é evidente, não necessito nenhuma sólibra, assim por minha parte não haveria exigências de tipo econômico. Poroutro lado, entenderá que eu ache estranho. Pensava que os cavalheirosestavam à espreita porque o seu dote era substancioso. Esse é normalmente omotivo, quando a citada não é uma beleza, nem vem de uma famíliaextremamente influente, O... ― Megara o silenciou com um olhar hostil ―Diabos, querida, recebe as críticas tão mal.

― Pois não, não estão interessados no dinheiro. Por estranho que te possaparecer, ela os atrai por si mesmo. De facto, se Ariadna não fosse tão discreta,seus pássaros conspiradores já saberiam que recebe mais poemas e flores quepropostas de matrimônio. Os que a perseguem desejam seu amor, não lhetrocar o sobrenome.

― Então, quando se casar comigo, estaremos todos contentes. Eu trocandoseu sobrenome, e ela repartindo amor entre seus admiradores ― propôs comdesenvoltura ― Aqui vai minha oferta, senhor e senhora Doyle. Como suponhoque a Swift menor tampouco terá dote, ofereço-me a pagar uma quantidadeexorbitante para convertê-la na florzinha mais desejada do mercado; à parte,me ocorre dobrar esse efetivo pela mão de Ariadna. Estaríamos falando, porexemplo, de cinco mil libras...

O discurso de Sebastian foi interrompido por um ataque de tosse. Megaralevou a mão ao pescoço, de repente asfixiada, olhando-o como se acabasse deprovar a existência dos espíritos.

― Se não for suficiente... ― continuou, com fingida humildade.― Tornaste-te louco?! ― gritou Megara, rubra pelo esforço. Sebastian

escorreu no respaldo.― Se soubesse quantas vezes me hão dito isso ao longo de minha vida...― Alegro-me! Isso significaria que o estiveste sempre, e que minha irmã

não teve nada que ver com a tua doença! ― exclamou ― Sebastian, Por Deus!Com cinco mil libras posso comprar uma mansão e enchê-la de serventes.

― Não o repita muitas vezes; sabe que o dinheiro tem valor sentimentalpara mim e desprender-me dele dói-me mais do que me doeria extrair um rimcom palitos chineses. ―Rretirou o lenço do pescoço. Diabos, fazia muito calor ―Mas já vê que vou fazer o esforço pela Ariadna. Se isto não for amor, senhoraDoyle... ― começou, brincalhão.

― É um miserável ― espetou Megara ― Sabe que a situação econômica

desta família é péssima, e que ter recursos não nos viria nada mal... Eapresenta-se aqui, pondo seu traseiro de rico no meu envelhecido sofá,exigindo que te dê a mão de minha irmã ou do contrário seguiremos vivendoquase na indigência. É pior que o diabo! ― repetiu ― E não vou aceitar! Não vouentregar-te a minha irmã, nem que o suborno seja equivalente ao patrimônioda Coroa.

Sebastian procurou não refletir no seu semblante que essa não seria, nemde longe, a última palavra. Parecia que não sabia com quem estava falando.Quando uma ideia alagava sua mente, era impossível tirar-lha nem queusassem uma pistola para o dissuadir, seu desejo passaria ao estado líquido eesquivar-se-ia das balas.

Era um desgraçado tubarão que tinha dedicado a última década a pisarnoutros para ficar por cima. Não ostentou os empregos mais honrados, epossivelmente por isso agora ignorava os sentimentos alheios se estes seinterpunham em seus planos. Megara Swift era um obstáculo: teria que, oulutar com suas desavenças, o que parecia impossível, ou contorná-la. Mas sobnenhuma forma aceitaria a derrota, e menos ainda com desportivismo. Asgarras estavam para sair.

Conhecia algumas artimanhas para forçar um matrimônio. Desconheciase os meios eram fáceis ou não, já que jamais as tinha colocado em prática,mas entre estas figuravam o cortejo e a desonra. Para Sebastian, conquistaruma mulher não era tão bom quanto estragar sua virtude. O flerte formavaparte do conceito de sedução dos admiradores, mas ele separava ambas asideias: como um pretendente coquete era péssimo. Como sedutor, eraimbatível. Titânico.

Em última instância – e isso queria dizer que teria de tentar muitoscaminhos antes de considerar ilegalidade, – poderia comprometer Ariadna eobrigá-la a tomá-lo como marido. Uma violação seria extremamente eficaz, masSebastian nem sequer contemplava essa possibilidade por três motivos:primeiro, não precisava ser um gênio para chegar à conclusão de que issomachucaria a mulher em todos os sentidos, e por mais canalha que fosse,preferia reservar a categoria de bastardo para outra reencarnação. Em segundolugar, não suportaria viver com um ser humano com o qual tivesse prejudicadoirreversivelmente. Não tinha escrúpulos e era inimigo direto da delicadeza, masainda existiam frestas de consciência em harmonia com sua desastrosa falta demoralidade. Se podia pedir, pedia para não se converter ainda num criminoso,

ou, pior..., num condenado, porque sem dúvida o enterrariam assim que algumde seus muitos protetores decidissem cobrar a ofensa. Não teria nenhumaoportunidade de sobreviver após um duelo. Afinal de contas, tinha umapéssima pontaria.

O terceiro motivo estava focado no facto de que gostava das mulheresdispostas, e não encontraria nenhum prazer em danificar gratuitamente outracriatura em prol de sua desforra. Sobre tudo porque sua desforra seconverteria num pesadelo. Isso por não mencionar que Ariadna não pareciamuito interessada em sua pessoa para conseguir dar um passeio pelaescuridão frondosa de um aleatório jardim inglês. Contemplaria a alternativade beijá-la e assegurar-se de que alguém os pegasse bem a tempo, mas nemisso mesmo: não a imaginava mordendo o anzol.

Definitivamente, deveria seguir insistindo com o suborno. Megara o olhavaextremamente indignada, mas acabaria acalmando-se e, cedo ou tarde, saberiaescolher pelo bem de sua família. Ou então, teria que sequestrá-la.

Pois, sequestrá-la não soava nada mal. Durante os três dias que demoravaa viagem até Gretna Green, poderia fazê-la entrar em razão, ganhar seu perdãopelo susto e inclusive seduzi-la com prazer. Era um plano magnífico, ao qualnão encontrava nenhum defeito.

― Acredito, amigo, que deveria reconsiderar sua própria oferta. Inclusivemeditar a respeito de suas opções, e aprender a priorizar ― comentou Doyle ―É afrontoso que pretenda tratar Ariadna como um troféu que arrebatou aosseus vizinhos.

― Fato é que uma esposa é um troféu Doyle; ao menos no mundo real enão nessa realidade idílica que vive com a mulher que escolheu por amor ―respondeu bravamente ― Não vai me fazer sentir mal por comprar uma, sóporque tiveste a esperança de que me unisse ao clube de sonhadores junto aoBlaydes. Isto é o que todos fazem.

― Voltarei para o que mencionei antes. Supõe-se que você é melhor queisso.

― Não, não o sou. Esse só é você querendo pensar o melhor de mim. Masjá basta de sentimentalismos; estou orgulhoso de pertencer a esta índole demiseráveis...

Sebastian ficou pela metade assim que percebeu uma leve mudança noambiente, como se de repente o ar tivesse decidido empapar-se da humidadeexterna. Afastou os olhos, com uma espinhosa sensação de rigidez no corpo, e

neste momento se chocou com uma delicada figura de luz.Ariadna Swift não se deu conta de sua presença, desculpa a que se

aferrou para censurá-la com uma só olhada. Que classe de senhorita de bomberço, passeava por aí com o vestido manchado de terra e um chapéu de palhafurado na aba?

Ficou de pé em seguida, copiando o gesto de cortesia de Doyle. Agachou acabeça, sem lhe tirar o olho de cima, esperando que o olhasse diretamente.Quando o fez, dececionou-se por não vislumbrar nenhuma mudançasignificativa em sua expressão. Diabos, é que nem sequer lhe tentava umpouco a possibilidade de casar-se com ele? Não lhe produzia pavor, raiva ouprazer olhar a cara do homem que a queria como esposa...? Supunha-se que asmulheres gostavam de ter pretendentes, mas não; ela não se alegrava de o ver.Nem aos porcos importava tão pouco a instituição do matrimônio.

― Senhorita Swift ― saudou ― Está você esplêndida esta manhã. Nãorecordo ter visto alguém tão formosa.

― Eu sim vi muito mais originais com suas adulações ― disse com umasuavidade sensorial que lhe atravessou a carne ― Sinto interromper. Acabei detransplantar as dálias, e queria subir este vaso de barro à minha habitaçãopara ver como floresceriam no batente de minha janela.

― Posso ajudá-la com isso.― Não sabe onde está minha habitação. Perder-se-ia ― respondeu,

suspicaz ― Meg, agora vou sair com Penny até Hyde Park. Será minhaacompanhante entre lorde Winchester e eu. Irá me mostrar os miósotis emalmequeres que crescem à beira do Serpentine... ― Sorriu com uma alegriaque não lhe iluminou os olhos, o que causou espectativa nos varões, mas nãoem Megara, que estava acostumada à sua melancolia ― Chegarei para oalmoço.

― De acordo. Ponha o vestido azul. Fica-lhe uma maravilha.Antes que Sebastian pudesse dizer algo mais, Ariadna desapareceu escada

acima, meneando seu corpo com a contumaz rigidez das jovens debutantes. Ovestido se moveu com a mesma falta de graça; um tecido aborrecido demusselina desgastada que poderia tê-la favorecido se tivesse alguma tentadoracurva para ocultar.

Apenas o tinha olhado uma vez. E embora Sebastian sabia que algumasmulheres tendiam inicialmente à indiferença para despertar o competidor quehabitava dentro dele, seu desdém não era forçado; nem sequer tinha suas

bases no desprezo. Não o odiava. Não se fatigava tentando-o. Simples esinceramente, Sebastian Talbot era a suave chuva do outro lado da janelaenquanto ela dormia profundamente.

E nesse momento teve que reconhecer, que não tinha nenhuma malditaideia de como converter-se na tormenta feroz que a despertaria do sono.

― Acredita que lhe pedirá em matrimônio? ― perguntou Megara em vozbaixa. Seu tom captou a atenção de Sebastian, que a olhou de soslaio como seassim pudesse absorver melhor a informação ― Ele a tem levado a passeardurante todo o mês e dá-lhe presentes caros. É um duque e ela nem sequer éuma dama; entendo que não se declare logo de cara, diferente de uns e outros,mas parece estar muito envolvido...

― A verdade é que parece extremamente interessado. Mas por tratar-se deum duque refinado que deve guardar sempre as aparências. Todo mundo falade quão apaixonado parece estar por dela ― disse Doyle, olhando a Sebastian ―Estou seguro de que na próxima semana, no máximo, teremos uma propostaformal.

Megara sorriu satisfeita, embora o gesto não tenha durado muito.― Só teríamos que convencê-la de que é o melhor para ela... Algo

definitivamente muito mais complexo do que conseguir que um duque seinteresse. Ariadna vai em direção contrária ao resto do mundo ― suspirou. Aternura ficou evidente em suas palavras. ― Enfim... vou assegurar-me de quese vista adequadamente. Bom dia, senhor Talbot ― despediu-se com ironia ―aconselho-lhe que repense o que estava a ponto de fazer.

Sebastian mordeu a língua para não responder com uma de suas famosasironias. Em vez de desabafar, decidiu apelar à forçada educação e fez umaligeira reverência, que Thomas apreciou com uma sobrancelha arqueada.

― Assim que essa cara se declarar, faça-me saber ― disse assim queMegara abandonou a habitação. A expressão inquisitiva de Thomas se impôsnovamente quando a desventurada sobrancelha seguiu subindo ― MeuAmigo... levo anos esperando Ariadna Swift. Não penso perdê-la, nem sequer seo oponente seja o duque de quem se importa o quê.

― Imaginava que seu delicado ouvido somente escutaria o que lhe fossemelhor ― comentou seu parceiro com voz tranquila ― Talbot, Ariadna não émulher para ti. Sua sensibilidade sem precedentes poderia sair prejudicada aoentrar em contato com sua contumaz ferocidade, e ninguém nesta casa querisso. Ela é superprotegida das Swift durante vinte anos... preferem ser

pisoteadas antes de a entregar.Sebastian não só ignorou a cantilena, mas sim fez notório o aborrecimento

que lhe produzia, ficando em pé. Sacudiu a perna da calça com um par demovimentos e colocou o chapéu de feltro em seu lugar. Antes de olhar paraThomas com uma careta de superioridade, jogou um rápido olhar à escada pelaqual Ariadna tinha desaparecido; não sabia se para assegurar-se de queninguém o escutaria ou porque sentia curiosidade pelo que teria vestido parasua saída.

― Eu mesmo as pisotearei se não ma entregarem, Doyle. E não acreditoque venham a gostar; tenho um sapateiro particular porque meus pés sãomuito grandes para os modelos comuns. ― Rodeou o sofá, sendo conscientedas cócegas que fazia o sangue em suas veias ― Não se atreva a entregar a suamão e ocultar-me isso. Sabe que me inteiro de absolutamente tudo que ocorrenesta cidade do diabo, e não acredito que tenha que te recordar do que soucapaz de fazer se me desobedecem.

― Seria capaz de chegar tão longe por uma mulher que nem sequer teimporta?

― Não só seria capaz de chegar ― concluiu ele, estirando os lábios numsorriso cruel ― como seria capaz de voltar... não me subestime, Doyle, ou seráo primeiro a se inteirar do porquê de minha reputação.

3

Naquela manhã, o duque de Winchester e Ariadna deram um agradávelpasseio pelo Hyde Park, que a inícios da primavera e depois das primeiraschuvas de abril tinha florescido como o epítome da beleza natural.

A Ariadna maravilhava o verde excecional daqueles hectares tãofamiliares; conhecia cada pedra do caminho, e nunca se cansava de percorrerRotten Row tratando de adivinhar que novo exemplar arbóreo a esperaria àvolta da esquina. O gorjeio das cotovias aninhando ou voando longe das copasdas árvores, que ao filtrar o sol entre os galhos e ramagens recordavam às

persianas verdes da arte nazarí5, transladavam-na para um mundo novo eformoso ao qual só ela podia aceder e do que jamais desejaria privar-se: a suaimaginação.

Gostava de pensar que estava sozinha ao prestar atenção ao rumor daágua conforme a tarde morria, ou ao tomar emprestadas as malvas rosas paradissecá-las nos livros de sua irmã Penélope, adornar o cabelo de Megara, oudeixar sonhar Briseida com um «ama-me, não me ama» que repetiaincansavelmente, nas melhores flores para dita tarefa, e a não ansiar asinsônias de nenhum cavalheiro.

O duque a acompanhava com uma tranquila conversa a qual ela prestavaatenção, só quando tinha a intuição de que deveria responder. Sentia-seterrivelmente injusta ao ser incapaz de seguir o fio da conversa, quando odiálogo se prolongava por mais de alguns minutos, ou quando tomavacaminhos que não eram de seu interesse, mas carecia da vontade paraconcentrar-se ou fingir fascínio; menos ainda quando um jogo de cores vivas seestendia ante si, reclamando toda sua curiosidade e ridicularizando qualquercriação humana da qual desejasse discutir sua excelência.

Não gostava de pensar que, por sua tendência para distração, eraestúpida. Odiava, também, que seus conhecidos acreditassem que pretendiadar a impressão de sê-lo, como se assim fosse parecer mais interessante aos

homens, ou como se essa fosse sua maior preocupação. Só era muito avoadapara seu próprio bem, ou possivelmente um tanto quanto ingênua, acreditandoque os cavalheiros em seu redor, se comportariam como seria de esperar.

Claro que o duque não a tinha tratado mal... Pelo contrário, sabia que oseu interesse e desespero por fazê-la cúmplice de seus desejos, deveria deixá-laorgulhosa. Penélope não parava de repetir que sempre era adulador que umhomem com tantas possibilidades se fixasse nela, e Megara reafirmavafrequentemente, especialmente nos últimos dias, que era a moça maisafortunada da Inglaterra por estar a ser cortejada pelo proprietário de umducado. Não obstante, Ariadna não conseguia se encaixar com ele. Por issopôde observar – e sendo justa, Ariadna não era uma grande observadora, –tratava-se de um homem de aparência agradável e com uns dedos longos. Issocaptou a sua atenção irreversivelmente no princípio, em especial quando lheconfessou que passava longas horas tocando piano. Sem dúvida, a música osaproximava, mas, por desgraça, Ariadna continuava a sentir-se muito longedele.

Por este motivo não pôde aceitar seu abraço quando o pediu, embora,quando a forçou a recebê-lo de igual modo, não se retirou nem lhe reprovou ternão ter sua promessa. Ariadna não suportava o contato físico, era algo superioràs suas forças, que agarrava seu corpo e lhe doía na alma. Tinha aprendido asuportá-lo com o passar do tempo, mas não a devolvê-lo. Assim, não soubecomo abraçar o duque de volta, como desconhecia também a arte de fazer seusfamiliares saberem do amor que guardava para eles.

De todos os modos, e embora vivesse atormentada por aqueles defeitos aosquais na realidade só ela prestava atenção, não esteve pensando durante osmomentos posteriores ao jantar em sua pouca delicadeza com Winchester.Esteve pensando nela, em todas as propostas de matrimônio que estavarecebendo, e em quão vazia se sentia, estando rodeada de damas e cavalheirosque a elogiavam com qualquer desculpa.

Ariadna sentou-se frente à sua penteadeira e pegou a escova, na qualfaltavam algumas pedras de madrepérola. Sua irmã menor, Briseida, trabalhouem excesso durante a infância para arrancá-las e comê-las, uma lembrançaque a deixou tensa ao pensar nas consequências que poderia ter acontecido.Sem dúvida, convinha manter longe da caçula, qualquer utensílio com o qualpudesse fazer-se dano.

Desfez a trança que tinha, olhando-se no espelho. Viu-se levar uma mão a

uma mecha ao calhas, que acariciou com suavidade. Detestava o seu cabelo.Sempre o tinha detestado. Era a única diferente de suas irmãs, de cabeloscastanhos-escuros, castanhos-claros e cor chocolate, respetivamente. Todas decabelo abundante, cachos definidos ou ondas perfeitas, enquanto que somenteela tinha esse loiro opaco aborrecido. Depois, seus olhos. Uns olhos quetinham recebido elogios de quase todos aqueles que se referiram a ela em bonstérminos, mas que sabia teriam sido a sua perdição noutros tempos, quando sequeimava as mulheres por ter aspecto de bruxa.

Devia admitir que, às vezes, sentia-se assim. Como uma bruxa. Sabia quecaptava a atenção de homens e mulheres ao entrar no salão. Não importavaque não a vissem... Como se tivesse uma luz diferente, ou um perfumecativante, conseguiam localizá-la e, então, a festa parecia começar. Rodeavam-na, tratavam-na com atenção, convidavam-na a bailes, bebidas, passeios e auma vida cheia de companhia... E ela respondia, sem estar ali realmente. Suamente voava muito longe do salão, do mesmo modo que se perdeu agora dentrodo espelho, nessa segunda Ariadna apanhada depois do fino cristal.

Uns toques na porta a tiraram de suas reflexões. Voltou a cabeça a tempode ver entrar Megara, que a saudou com um sorriso encantador.

Era tão bela... Não; não era somente bela. Era imponente. Uma beleza queroubava fôlegos e se filtrava através dos sonhos para atormentar, inclusive nainconsciência, aos homens mais fortes. Sua formosura era demencial, inauditae tão injusta que Ariadna podia ver como os próprios observadores a proibiampara não morrer a seus pés.

― Eu gostaria de falar contigo a respeito de um assunto ― anunciou comvoz suave.

Ariadna se dava conta de como suas irmãs a tratavam. Não eram com elacomo eram umas com as outras. Penélope e Megara gritavam frequentemente,riam a gargalhadas que faziam tremer as paredes da saleta e, ao possuir omesmo humor absurdo e um similar sentido de dever, buscavam-semutuamente quando requeriam conselho. Briseida, por ser a menor e estarfora de toda complexidade feminina pelo temperamento extremamente volátilque trazia a adolescência e seu comportamento certamente masculino, tambémconseguia entender-se com elas sem esforço. Em troca, ela...

Ariadna não era tratada como se fosse um ser humano que pudessemapertar, empurrar e brincar. Ariadna era uma preciosa lágrima de porcelanaque ficava envolta em papel de seda, depois de ser admirada à distância.

Possivelmente porque não a compreendiam... Ou, talvez, porque não se deixavacompreender. Dependendo do momento, Ariadna culpava os outros por suasolidão interna outras a si mesmo. Em dias como aquele, entendia que era elao problema por não abrir seu coração.

― Vem.Obedeceu em silêncio, acompanhando-a à beira da cama que coroava a

estadia. Era uma habitação bonita e bem acolhedora, embora Meg se queixassepor ser incomparável em relação à que ocupava na mansão na qual uma vezacharam proteção quando seu pai ainda vivia.

― Se não me equivocar, faz somente um mês que foi apresentada emsociedade e já recebeste três propostas de matrimônio dignas de consideração,entre outras tantas. O visconde Grayson, Sebastian Talbot e o duque doWinchester.

Ariadna lamentou não saber qual era a reação que Meg esperava de suaparte. Só para compensar seus anos de silêncio e falta de expressão, teriagostado de agradá-la nesse sentido. Embora conseguisse fazer o esforço, nuncateria se saído bem. Ariadna desconhecia totalmente o fingimento.

― É um homem agradável. O visconde também ― acrescentou.― E.… o que há com o senhor Talbot?Ariadna tomou um instante para pensar. Sem dúvida, o visconde Grayson

era um cavalheiro da cabeça aos pés, com possivelmente, uma velhamelancolia gravada em seus movimentos. Doía-lhe estar, ser, encontrar-seonde se encontrasse, e isso produzia-lhe uma extenuante dor no peito. Estar aseu lado era respirar a tristeza, enquanto que o duque era um redemoinho deágua fresca que a salpicava, de vez em quando, com sua frescura. Quanto aosenhor Talbot...

«Olá, Ariadna. Sou seu futuro marido.»Não sabia com exatidão qual era sua cor de olhos, nem se seu cabelo era

negro ou castanho-escuro. Podia jurar que uma cicatriz sulcava seu rosto,embora só porque ele mesmo o mencionou, e tinha uma excelente memóriapara as conversas. Quanto à sua impressão, tinha sido... curiosa.

― Não me relacionei muito com o senhor Talbot ― reconheceu ― Semdúvida é um homem vaidoso e obstinado, embora precisaria conversar de novocom ele para determinar se suas qualidades poderiam considerar-se negativasou positivas.

― Normalmente, os homens vaidosos e obstinados são pouco

recomendáveis, e muito pouco queridos em seus círculos. ― Rio Meg ― A nãoser que tenham tanto dinheiro como o aludido, em cujo caso poderiam tolerar-se.

― Acredito que tenha mencionado algo sobre seu dinheiro. É para tanto?― É claro que sim. É o homem mais rico da Inglaterra.Ariadna se mostrou surpresa. Como poderia adivinhar, quando o primeiro

que lhe pareceu perceber nele foi a postura e gestos de um homem tosco e semuma grande formação, a quem pouco lhe importava a grandeza. Num ou outromomento, sim reconheceu uma fresta de orgulho ferido, mas não pelo desejo deser muito mais do que era, mas sim a ânsia profunda por defender seu ladoselvagem, como se tivesse que preservar seus defeitos da generalizada inépcia.

Além disso, ficou em seu nariz um aroma muito peculiar, graças ao qual opôde reconhecer essa manhã ao entrar no salão. Sebastian Talbot irradiavauma magnética potência varonil sem igual. A masculinidade era inerente à suaessência, que lhe recordava a última gota de orvalho que caía desinteressadasobre a terra, ainda húmida pela tormenta noturna. Assim era. Calma etempestade. Sebastian Talbot, pronunciando seu nome pelas costas,representou os quatro elementos em sua encarnação mais viva. Chuva furiosa,como agulhas geladas atravessando sua carne; fogo fátuo, azul da eternidade;a crosta crocante presa ao coração da terra, a um passo da lava... e o arenvolvendo-a em um suspiro de último fôlego. Ele era tudo isso,inexplicavelmente incompreensível. Tão longe de ser humano, e tão humano aomesmo tempo.

― Ariadna... pensa em aceitar algum? ― perguntou finalmente Megara comlentidão, temendo afastá-la com brutalidade de seus pensamentos ― É muitocedo, e não quero fazer-te escolher. Se estiver decidida a ficar connosco parasempre, não porei nenhum inconveniente. Sou feliz tendo você aqui. Mas jásabe que os nossos problemas econômicos apontam para não se resolverem poruma longa temporada, e não quero que passe penúrias podendo ser aproprietária de... de tudo, na realidade.

Assentiu com lentidão.― Não tenho medo do matrimônio ― anunciou com claridade ― Poderia

aceitar qualquer proposta e não tremeria ao subir ao altar... E suponho que ofarei, algum dia. Logo. Mas... ― fez uma pausa ― necessitarei a promessa deque não me tocará.

― Carinho... um duque e um visconde devem assegurar herdeiros. Não

pode se casar com um aristocrata e esperar que não deseje um filho. É a razãopela qual se desposa.

― Então aceitarei a mão de um homem de negócios.A sensação de que Megara sorria lhe chegou com indícios de ternura.― Se falas do senhor Talbot, muito temo que não poderia te assegurar,

nem eu nem ele (porque é um mentiroso), que não te tocaria. Não poderia tecontar todas as aventuras e desventuras amorosas do diabo numa única noite,acredite.

― O senhor Talbot não me acha bonita, e sabe tão bem como eu. Com elepoderia me sentir protegida nesse sentido. Mas o problema não é o candidato, anão ser o fato de me casar... ― acariciou distraidamente o braço, pelo qualcaíam uma série de babados ― Já sabe que me converter em esposa não mecustaria. É o fato do matrimônio que... ― Sua voz se apagou ― Eu gostaria denão fazer isso, Meg. Eu... ― Conteve o fôlego ― Não posso.

Era egoísta dizer que não podia quando na realidade não queria...Embora, de certo modo, estava a ser sincera. Pensar em casar-se produzia-lhetal sensação de perda que o corpo a impelia a esconder-se sob os lençóis, o quelhe impossibilitaria a tarefa de fazê-lo.

― Repito que não vou te obrigar a nada. Não quero que sofra... Mas pensase não deseja estar ao lado de um homem ao qual ame e que te corresponda.Se não quer ter filhos, algo que possa dizer que é realmente teu. O matrimôniose impõe, e pode ser uma prisão, mas também pode te dar de presente coisasmaravilhosas.

Ariadna se esforçou por compreender os motivos da vibrante emoção quelhe transmitia. Havia algo sob o carinho real que transpassava seu coraçãopara beijar o seu, e isso era... preocupação. Mas não focada nela, nem nomatrimônio, a não ser em algo um pouco mais complexo.

― O que ocorre? ― perguntou Ariadna ― Há algo que não me conta?Megara não falou durante uns segundos.― Não temos dinheiro para nos manter a todas aqui, Ari ― murmurou,

afetada ― Veja, eu... Não quero que tenham que pagar por minha negligência.Lamento cada dia não me arrepender de me ter casado com Thomas, porqueisso ao menos me castigaria por ter posto sobre seus ombros o peso de trazerdinheiro à família ... Mas não posso trocá-lo, e, realmente, não quero. Não ofaria. Mesmo assim, as circunstâncias são terríveis, E… pensei em procurar...― engoliu em seco ― Em buscar um amante. Um generoso, que dê presentes

que rendam bem na casa de penhores, lhes proporcionando assim um dote,um bom futuro se não quiserem se casar... ― Negou com a cabeça ― LordeAshton está continuamente oferecendo uma mão, mas sabe que não possoaceitá-lo, porque ficaria lhe devendo, e não poderia lhe pagar as dívidas maisadiante. Tal e como estamos, a casa é um poço sem fundo, como a fome de umleão. Cada xelim é devorado imediatamente. E embora essa seja a... alternativaque tenho em mente, não poderia. Não posso. ― Seus olhos se encheram delágrimas, e rompeu a chorar com desespero ―. Ele é minha vida inteira. Seriaincapaz de me entregar a outra pessoa. É injusto para o Tommy, e é injustopara mim, embora eu merecesse isso por vos obrigar a procurar uma solução.Eu...

Ariadna quis chorar com ela. Lamentou ter nascido sem o impulsohumano que levaria qualquer uma a rodeá-la com os braços. Queriareconfortá-la, e fazer-lhe ver que não era sua culpa ter se apaixonado por umhomem sem dinheiro... Mas não podia. Seu corpo não respondia. Estava rígido.

― Não quero que se sinta culpada. Nós desejamos ver-te feliz e aanimamos por se casar face às circunstâncias. Prometemos no dia de suasbodas que encontraríamos um modo de seguir adiante, e embora os Swifttenham fama de farsantes, eu jurei com o coração na mão. Por que não medisse isso antes que a situação fosse tão desesperada?

― Porque não queria pressionar-te.Ariadna conteve o fôlego.― Pode fazê-lo. Pode me pressionar. Não me vou romper, Meg.A irmã mais velha a olhou como se não pudesse levar-lhe a sério, e

Ariadna teve que calar, sabendo que, na realidade, sim podia chegar a quebrar-se. Megara terminou suspirando, libertando a tensão de seus ombros.

― O senhor Talbot ofereceu cinco mil libras em troca de sua mão ―confessou em voz baixa ― Com essa quantia... Poderíamos pagar as dívidas eviver tranquilas para sempre. Só pensei que deveria sabê-lo. Afinal de contas,seria você a noiva: o mínimo que deveria era conhecer todos os términos docontrato. Isso é tudo o que tinha para te contar ― terminou mais calma.Levantou-se como se lhe pesassem os ossos, e mesmo que apenas por ummomento pareceu querer reduzir a distância e abraçá-la, mas não o fez ― Façao que fizer, e diga o que disser... tudo ficará bem. Este foi só um momento dedebilidade. Amanhã dedicarei todo o dia a pensar no que faremos, e terei novassoluções. Vai ver.

Sorriu, parecendo incrivelmente forte apesar das circunstâncias. Ariadnaadmirava essa característica de sua personalidade: Megara desafiaria umgatilho pressionado e sairia vitoriosa. Sua força de vontade, sua inegávelvitalidade para amar e lutar por todos os que habitavam ao seu redor... Ossacrifícios aos quais se expôs por elas ainda lhe pareciam, mesmo depois dofinal feliz, de uma brutalidade devastadora. Teve de afastar-se do homem queamava pelo bem-estar de sua família, e agora seguia martirizando-se por nãoter conseguido deixá-lo ir uma segunda vez. O amor de Megara estava feitopara sobreviver à dolorosa vida e aos rasgos da morte, e mesmo assim, tambémse amoldava à situação, aflorando ou obscurecendo-se conforme devia fluir asobrevivência das Swift solteiras e a senhorita Doyle.

Viu-a sair com tranquilidade, como se não tivesse soluçado minutos atrás.Ariadna não entendia o sentimento da inveja ou do ciúme, mas a fascinação aasfixiava quando a via sair graciosa de qualquer extensão de dor que ocaminho sugerisse. Nada parecido com ela, que tinha estado doente de tantasvezes, que já não podia escapar da sua miséria. Basicamente porque lhe eraimpossível fugir de si mesma.

Como todas as noites, Ariadna avançou para a mesinha. Levou a mão aopescoço, onde uma diminuta chave pendurava numa fina corrente de pratafina que sempre ficava em seu decote, pegou entre os dedos para abrir apequena gaveta. Penetrou a tremente mão ali e tirou, com o coração apertado,uma série de pergaminhos tantas vezes desdobrados e comprimidos numpunho, que a qualquer momento, acabariam reduzidos a pó.

Ariadna esticou os lençóis afastando a colcha, e subiu neles com umgrande sentimento de culpa, além da conhecida emoção que a embargavaquando tinha suas cartas entre as mãos. Já não precisava lê-las. Só as ter ali,agarradas, proporcionava-lhe um prazer incomensurável, tão valioso que sentiaque a sua vida ganhava sentido.

Desgraçadamente, não pôde livrar-se do conhecimento que estava erradapor se apegar aquela lembrança, e menos ainda quando os lamentos de suairmã, ainda pairavam no ar. Ariadna fechou os olhos e pressionou a bochechacontra o travesseiro, esperando que a sua suavidade a protegesse das ideiasque martelavam sua cabeça.

Tinha que casar-se com Sebastian Talbot. Devia fazê-lo. Estava disposta afazê-lo... Mas malditos fosse esses pedaços de papel, essa tinta rabiscada, essacuidadosa caligrafia, e esse nome selado na margem inferior. Deus não podia

separá-la dele, tal como ela não podia livrar-se da sua arrepiante aflição.Mas não podia condenar a sua família ao despejo por um impossível,

embora o contrário fosse em troca a sua angústia eterna. Assim, restava-lhetomar o lugar de Megara e salvar as Swift.

Faria, entretanto, na manhã seguinte... quando o peso leve das cartas nãofosse uma carga tão pesada em seu peito nem um aviso do que deixaria paratrás.

Megara fechou a porta da habitação com cuidado para não emitir qualquerruído desnecessário. A sua irmã menor era muito sensível ao som e qualquerprecaução para evitar incomodá-la era pouco.

Enquanto percorria o corredor até chegar à habitação nupcial, assegurou-se de que não havia rastros de tristeza em seu rosto. Secou as lágrimas e sedeteve um instante, a um passo de cruzar a soleira, esperando que, pouco apouco, a ardência dos seus olhos passasse. Entretanto, já imaginava queThomas Doyle não passaria por cima de seu estado. Primeiro, porque era umhomem muito observador para o bem de seu interlocutor, inclusive para elepróprio. E, em segundo lugar, porque se tratava dela.

Thomas afastou o livro que lia, acomodado na poltrona, e levantou-se paraa receber. O seu caminhar, tranquilo e tão seguro de si mesmo que deixava deser reduzido para convertê-lo numa qualidade de sua personalidade, encheu acabeça de Megara de lembranças de quando só podia olhá-lo de longe. Naquelaépoca, a sua calma habitual, mesmo concentrada em diminuir seus instintosmais puros, tinha-a salvo de sucumbir à histeria.

― E? ― perguntou.Só ele sabia colocar um milhão de perguntas numa só palavra. Numa

triste letra. Com um simples som. Elevava uma sobrancelha e já estavaexigindo saber por que chorava, por que tremia, por que tinha demorado tanto,e por que não se encontrava nesse preciso instante nua entre seus braços.

Megara era a única pessoa que não intimidava, mas se acovardou-se aoolhá-lo nos olhos. Não queria que soubesse o que acabava de sugerir aAriadna, porque se dela dependesse, teria apagado de sua boca assim que opronunciou em voz alta. O teria apagado de seu próprio pensamento. Sentia-setão injusta... Para não falar da autossabotagem que estaria fazendo a si mesmase tomasse a alternativa do amante. Uma que, na realidade, não podiacontemplar. Imaginar-se com outro homem fazia uma dor aguda encolher oscantos de sua alma.

― Comentei com Ariadna a oferta de Talbot ― disse, passando ao seu lado.Tentou engolir o nó que tinha na garganta e colocar sua fria máscara deindiferença. Foi impossível. Se ele estava na habitação e impensável cruzavapela sua mente, era inevitável que sua voz soasse estrangulada ― Me pareceuentender que precisa pensar... Admiro-a por isso ― confessou. Levou a mão aobroche do espartilho e o girou para o tirar. Depois foi a saia interior e o vestido,ficando apenas com a regata ― Mas não quero que o faça. Oxalá se negue.Sebastian Talbot é o último homem na Inglaterra que poderia cuidar dela comoela merece. Só de a imaginar nas suas mãos... Meu Deus, é horrível. ― Negoucom a cabeça ― A destroçaria antes de lhe pôr um só dedo em cima.

Sentiu as mãos quentes de Thomas acoplar-se aos seus ombros, quedespiu com parcimônia. Os hábeis dedos masculinos riscaram uma linhaperfeita pelos braços, até que o vaporoso tecido cedeu à exploração e caiu aosseus pés.

― Atribui muito pouco mérito a Sebastian. Culpa dele, suponho, por ter-semostrado ante ti como o próprio diabo. Na realidade é um bom homem ― disseem voz baixa. Megara fechou os olhos e inspirou, respirando sua rouquidão ―Mas isso não me importa agora. Diga-me por que chorava.

Megara pendeu a cabeça para trás, apoiando-se em seu peito. Continuoucom os olhos fechados, como se o acesso ao destino fosse feito através dosquatro sentidos. Chegou ao destino em segundos, quando voltou-se lentamentee roçou com o nariz no seu pomo de Adão.

― Não quer saber ― murmurou. Rodeou o seu pescoço com os braços, equase imediatamente todas suas tristezas se evaporaram ― Me abrace.

Thomas beijou a sua testa. Devoto de seus desejos, aceitou a doceobrigação e a arrastou consigo num roce caloroso que instalou núcleos deprazer no estômago da jovem.

― Quero saber tudo o que há na sua mente. E posso fazer algo muito,muito melhor que te abraçar. Mas diga-me.

Assentiu muito devagar. Separou-se o suficiente para olhá-lo nos olhos, ecomo se seu coração não entendesse de tempos ou vivencias, sentiu que era aprimeira vez que perdia o fôlego em sua presença. Havia algo nele que aimpedia de respirar regularmente ante a sua presença e a promessa de seubeijo. O mundo inteiro de Megara estava ali, dançando livremente dentro dosseus olhos; escondido nas comissuras de sua boca.

― Estamos na ruína, Tommy ― ofegou, a ponto de romper a chorar ― Não

me ocorre o que podemos fazer. Talbot é um miserável com seu salário, e menego a que lhe mendigue mais. Quão único pensei que poderia fazer é... ―Mordeu o lábio ― Não poderia, mas...

Ninguém teria notado a sua ligeira mudança de expressão..., exceto ela. Opétreo rosto de Thomas sofreu uma lacerante alteração, obscurecendo-lhe osolhos.

― Nunca ― disse somente, com voz gutural. Agarrou-a pelos ombros e aobrigou a olhá-lo aos olhos para repetir: ― Nunca.

Thomas se equilibrou sobre ela e a beijou com a agressiva crueldade quenecessitava, para saber que não seria possível, nem sequer noutra encarnação.A sua alma se elevou ao máximo expoente ao ser estreitada entre seus braços,como se quisesse colocá-la dentro de seu corpo, protegê-la do próprio ar. A suaboca se moveu, escorregadia, arrebatando-lhe o sentido e proporcionando-lhe aperfeição destes ao mesmo tempo. Megara respondeu às suas ações com amesma desmesurada paixão que recebia.

Rompeu o contato de repente e a olhou com as linhas de expressãomarcadas.

― Tornaste-te louca? Por acaso quer me matar, mulher...? ― resmungoucom a voz entrecortada ― Me prometa que não o fará.

― Não poderia...― Não, eu sim que não poderia ― rugiu enfurecido ― Como te ocorre?Megara respirava com dificuldade ainda pela potência do beijo. Deslocou

os olhos para a boca de Thomas, avermelhada graças à sua vontade e levou osdedos à sua boca para notar que, em efeito, era agora um traço comum. Seuolhar impenetrável transmitiu-lhe a ardência de uma ferida que sempre estariaaberta. Era um homem muito ciumento e super protetor para seu bem, e nãoajudava que o guardasse para si.

― Sinto-o ― murmurou, engolindo saliva. Aproximou-se dele e apoiou aspalmas em seu peito, ao qual ele respondeu com pequenas carícias circulares― Sabe que não seria capaz. Só foi um pensamento estúpido... Não guarderancor.

Thomas separou o olhar de seus olhos, que sempre considerou o lugar derepouso, e lhe deu um lento olhar pelo corpo inteiro. Suas pupilas acariciaramo esguio pescoço feminino, os eretos mamilos e a estreita cintura. Circularampor suas longas pernas, enredaram-se em seus tornozelos... Quando voltoupara os cílios, Megara tremia, com o pelo arrepiado.

Avançou em todo seu esplendor masculino, robusto e perigoso, até rodear-lhe o quadril com um braço. Inclinou a cabeça, apoiando a testa na dela. Umamecha ondulada lhe acariciou a bochecha.

― Importa-te mais o dinheiro que o que eu te dou? ― perguntou, como se oassunto não fosse com ele. Megara abriu a boca para responder, mas ele asilenciou cobrindo um seio com a palma de sua mão ― Quer outro homem?

― Não. Quero a ti.Thomas estalou a língua e se afastou repentinamente, privando-a do calor

de seu corpo. Megara se queixou com um gemido nervoso.― Por que vai? ― exclamou, avançando para ele. Reteve-o pelo braço.― Porque eu preferiria morrer de fome a tocar outra mulher ― respondeu.

Seu tom era neutro, mas seu olhar queimava ― E sou muito egoísta para ficaraqui se não pensar ou sentir o mesmo.

― O quê? Aonde acredita que...? ― Endireitou os ombros para controlar asituação ― Thomas, nem te ocorra cruzar essa porta.

Ele arqueou uma sobrancelha, desafiando-a a insistir, sabendo quanto lhecustava dizer as coisas duas vezes se não ganhasse na primeira.

― Quero-te e sabe perfeitamente ― anunciou ela ― Mas também querominha família, e sabe que tive de fazer toda classe de aberrações para mantê-la. Você é o único que eu não arriscaria, Thomas. Somente... Estou tãoacostumada a qualquer perversão que a minha mente alcançou essapossibilidade antes de que meu coração pudesse ponderar se seria correto. Enão o seria, é obvio que não ― concluiu. Deixou cair os braços a cada lado docorpo, ignorando sua nudez, e o olhou com nervosismo ― Não vá. Não suportodormir sem ti.

Distinguiu em sua postura o dilema entre a ofensa e o desejo depermanecer ali. Sustentaram o olhar, alheios ao que pudesse ocorrer em tornodeles, e ao final, Thomas relaxou os ombros.

― Tem sorte de que seja tão fraco contigo ― tropeçou rendido ― Já nemsequer albergo esperanças de deixar de ser o seu cão fiel.

― Ainda bem. Adoro os animais.Megara estendeu os seus braços para recebê-lo com um deslumbrante

sorriso que esquentou o coração de seu espectador. Ele se aproximou, seduzidopor seu gesto, e lhe elevou o queixo para acariciar os seus lábios comdelicadeza. Seu beijo foi tão complexo que pareceu singelo, tendo a respostadesejada no corpo da mulher.

― Não tem que preocupar-se pelo dinheiro ― sussurrou, olhando-a aosolhos ―. Esta manhã, o duque acompanhou Ariadna a casa. Solicitou umaaudiência comigo. Logo que chegamos ao escritório me suplicou, em nome desua honra, sua boa casta e seu amor por Ariadna, que lhe desse sua mão emmatrimônio.

― O quê? ― exclamou ela. Seu queixo quase roçou o chão ― Por que nãome disse? E.… o que lhe respondeu? Diabos, Tommy... Não terá aceite por ela,verdade? Não te ocorreu dizer que sim quando Ari nem sequer... Meu Deus,tem-no feito! Thomas! ― o repreendeu, levando uma mão ao peito, onde seucoração pulsava a toda velocidade ― Como se atreveu...?

― Esse homem a adora, Meg ― respondeu com uma suavidade quesilenciou a jovem ― Assegurou que lhe daria tudo o que possui e que teriaqualquer coisa que pedisse. Possivelmente inclusive, uma atribuição para suasirmãs ― particularizou ― Não há homem melhor que Winchester.

Megara relaxou visivelmente, embora não o suficiente para que pudesseconvencê-la de que era uma boa ideia.

― E como será com Talbot? ― perguntou com um toque de temor na voz ―Achei-o obcecado com a ideia de casar-se com ela... Não acredita que tomarárepresálias?

― Não acredito... ― particularizou. Abraçou-a para amortecer o golpe ―Estou seguro. Mas pensarei em algo para tirar a ideia da cabeça dele. Afinal decontas, manipular é minha especialidade.

Thomas soube que sua esposa percebeu que não lhe estava a contar tudo.Esquivando com mestria a uma possível discussão, tomou-a entre os seusbraços e a guiou até à cama. Aquela seria, muito possivelmente, a última noiteque estaria com ela numa longa temporada. Megara conhecia-o; sabia que nãodava ponto sem nó. Acabaria descobrindo, cedo ou tarde, descobriria queplaneava algo que estava longe de forçar um casamento entre Winchester eAriadna.

E nesse momento não teria desculpa que valesse. Assim, dispôs o melhorque tinha para que o eco de suas carícias pudesse comovê-la quando o odiasse.

4

O senhor e a senhora Doyle dormiam profundamente quando o rangido deumas botas no soalho alertou a Ariadna. A jovem sentou-se de repente, aindaagarrada às cartas como sua posse mais valiosa, deu uma olhada em seuredor. Piscou para tirar a sonolência nebulosa de seus olhos. Ia levantar-se einvestigar, na verdade, agradecida pela interrupção de seus pesadelos, quandose precaveu de uma presença na escuridão.

Ariadna inspirou e um inconfundível perfume de ébano invadiu as suasfossas nasais; uma essência quente que ocultava parcialmente a fragrância earoma do sândalo, fresco e encantadoramente sensual. A base de terra dacolônia corporal do homem fez reconhecê-lo no ato. A confirmação de suassuspeitas fez-se quando ele se deixou ver avançando alguns passos.

Por estranho que pudesse parecer, Sebastian Talbot era o único homemsobre a terra com o qual não tinha ficado desagradada por encontrar nesseinstante. Afinal de contas, a primeira coisa que tinha pensado fazer na manhãseguinte era reunir-se com ele para aceitar a sua proposta. Apesar de tudo,imaginava que tinha deixado a decência em casa e deveria ofender-se, inclusiveexpulsá-lo. Felizmente para o que quer que fosse, Ariadna estava ainda meioadormecida. Levantou-se da cama e aproximou-se dele com o cenho franzido. Aescuridão nublava parcialmente seu rosto, que ela soube identificar graças àcicatriz que as lamparinas deixavam vislumbrar.

― Senhor Talbot, a quem subornou para chegar até aqui? ― perguntou emvoz baixa e sonolenta.

Em seguida reparou que esse devia ser o menor de seus problemas. Haviaum homem em sua habitação, altas horas da noite; um homem que, emboramantinha uma relação que ia além dos negócios com Thomas, a quem semdúvida respeitava e em quem confiava cegamente, tinha a reputação de umpirata.

Ariadna engoliu em seco e levou uma mão ao coração, que ameaçava sair

correndo.― Sabe? ― sussurrou quase melancólico ― De todas as perguntas que

pensei que me faria ao me plantar em seu quarto, esta é talvez a última queesperava... De facto, nem a contemplei como opção. Parabéns, senhorita Swift,surpreendeu o diabo.

― Imagino que não terá vindo para ser surpreendido ― murmurou ela,ainda impressionada. Seu robusto corpo emitia ondas de calor que aempurravam instintivamente a retroceder.

― Como bom cristão, eu gosto mais de surpreender que ser surpreendido― respondeu com uma nota de riso na voz. Ariadna franziu o cenho; o que lhecausaria graça em toda aquela situação? ― Respondendo à pergunta... Nãotenho que subornar ninguém para entrar nesta casa. Sou convidado habitual.Mas, de todos os modos, sou um grande amante da física, e sentia curiosidadepor saber se, por acaso, a árvore que há junto a sua janela resistiria a meupeso.

Como qualquer outra mulher nessa circunstância, Ariadna se encontravaintensamente mortificada, mas não conseguia sentir medo. O senhor Talbot,além de ser um bom amigo da família, esbanjava bom humor, tal como quandose apresentou oficialmente. Tal como nas restantes das ocasiões nas quais otinha ouvido falar com terceiros. Vivia brincando, assim não poderiam ser tãomaus seus motivos. Apesar de tudo isso, Ariadna decidiu retroceder outropasso.

― E o que faz aqui?Pareceu-lhe que sorria.― Vim desonrar-te, Ariadna.Ela perdeu o fôlego.― Vai fazer-me dano? ― foi tudo o que perguntou.― Vou fazer-te minha esposa ― corrigiu ― ; acreditei que já o saberia

depois de o ter repetido tantas vezes.― Isso não é desonroso.― O matrimônio pode não ser. O matrimônio comigo, por outro lado... ―

fez uma pausa teatral ― poderá ser totalmente. Mas não podia permitir queescapasse de mim. Doyle decidiu aceitar por ti a proposta do duque, Ariadna ―anunciou ―. e não me ocorreu outra maneira de o impedir do que levar-tecomigo esta noite, antes do anúncio, para te comprometer.

Os olhos de Ariadna se arregalaram. Seria possível que tivessem escolhido

por ela...? Como podiam? Se ao menos a tivessem prometido com o senhorTalbot... Com ele, tinha certeza de que a situação de suas irmãs melhoraria, etambém que manteria sua pureza intacta. Com o duque, em troca... Eraevidente que manteriam uma relação em bons términos, mas era ainda maisóbvio que Winchester a adorava, e lhe parecia uma completa injustiça casar-secom um cavalheiro com o qual não poderia corresponder, sem importarquantos anos passassem. Não, não poderia viver com ele, e menos porimposição de terceiros.

― Me comprometer?― Sim, sei que a palavra é um tanto ambígua e pode dar lugar a confusão.

Isso poderíamos deixar por agora, no ar. Mas digamos que dependerá do seucomportamento. A princípio poderia nos comprometer a nível de parentesco. Sedecidir resistir, terei que encontrar outras vias...

Ariadna enrugou a testa. Não era a melhor decifrando duplo sentido nasfrases, mas entendeu que aquilo era uma ameaça com toda a certeza.

― E se me nego? ― perguntou um tanto dúbia e na defensiva ― Não sei sesabe senhor Talbot, que assaltar uma jovem em idade de casar-se, altas horasda noite poderia afugentar o principal objetivo de seu plano e fazê-la fugirapavorada. A lógica seria que começasse a chorar e alertasse com os meusgritos Meg, quem o jogaria... talvez pela janela.

― Essa foi uma magnífica análise da situação, senhorita Swift ― conveioTalbot, inclinando a cabeça ― Mas visto que não está assustada, poderíamos irà medula da questão. Não vou permitir que se case com outro homem ―esclareceu, sem pena nem glória. Soou tão decidido que Ariadna se perguntouse não foi capaz, com tão simples frase, arrancar a ideia do matrimônio de suacabeça ― Se aceitar, levá-la-ei a Gretna Green, adulado por sua obediência. Senão, levá-la-ei a Gretna Green... sob custódia.

― Agradeço que tenha a amabilidade de expor de antemão suasintenções...

―... Porém não quer se casar ― cortou impaciente ― lamento dizer-lhe quenasceu sem um objeto entre as pernas, e isso a obriga a tornar-se napropriedade, não necessariamente mais valiosa, de um homem. Assim...

― Ia dizer que estou disposta a ir com você, mas quero que me prometaalgo antes.

A hesitação de Sebastian Talbot, que poderia ter assumido uma formafísica se pudesse, voou para envolver Ariadna.

A jovem recebeu a mistura de suas emoções sem fazer nenhum esforçopara captá-las, impressionada com sua facilidade de expressão. A energiaferveu dentro dele como lava dentro de um vulcão, e ele a projetou antes quepudesse contê-la.

― Sim?― Não vai me amarrar ― enumerou ― Diremos a minha irmã.― A essa irmã que me abrirá a cabeça com uma frigideira assim que

descubra que estou aos pés de sua cama? Petição negada ― aduziu comrapidez ― E agora, vamos.

Não lhe deu oportunidade de lutar por sua liberdade. Num segundo,estava frente a ela, alto e rico em aromas naturais. Pegou-a pela cintura comuma facilidade que faria morrer de inveja os maciços heróis gregos,aparentemente sem se importar que fosse viajar de camisola.

― Senhor Talbot! ― exclamou horrorizada ― Deus M.…!Uma mão enorme e calosa pressionou seus lábios. Ariadna elevou o olhar,

tentando transmitir sua impressão com ela.― Já aceitou ser sequestrada, senhorita Swift; agora não pode gritar ou

resistir. Vou soltá-la no três. Se fizer algum movimento brusco, terei queempregar outras táticas para silenciá-la.

― Pensa me golpear?― Diabos, não. ― Respondeu veementemente ― Por que classe de homem

me toma?― Por um que entra no quarto de uma...― Bem, bem ― cortou sem perder esse ar divertido de canalhice que o

envolvia ―. vou ter de deixar de fazer essa pergunta. Sua resposta sempre trazconotações negativas para a minha pessoa... Mas não se queixe ― repôsanimado. Avançou para a cômoda e abriu uma gaveta ao calhas, de onde tirouum par de vestidos que quase poderia ter guardado no bolso ― Durante a IdadeMédia, virtualmente todos os highlanders, esses ferozes habitantes das TerrasAltas escocesas, sequestravam a suas esposas. Em alguns casos, as moças nãose arrependiam. Um matrimônio forçado está acostumado a ter consequênciaspositivas na noiva, se seu captor for de aparência agradável, ou rico...

― Como quais? ― Ariadna o olhou com desconfiança ― Senhor Talbot, vougrit...

― Senhora Talbot ― interrompeu com um desprezível tom brincalhão ―. secontinua a por à prova minha paciência, repito que me verei na obrigação de

silenciá-la à minha maneira.Ariadna admirou de soslaio a sua mão. Poderia lhe esmagar o crânio

comodamente, e o que era pior: seu sorriso prometia que não se arrependeriamais tarde.

― Com um golpe?Esse gesto tão dele, que na realidade não podia chamar de sorriso,

estirou-se até o raiar da maldade.― Com um beijo.Seu coração encolheu. Dentre todas as intimidações, essa era

indiscutivelmente a pior. Ariadna pensou fazer um malabarismo para livrar-sedele e correr até a habitação de sua irmã, mas acabou por pensar melhor.Havia a possibilidade de que estivesse brincando e esse beijo fosse umeufemismo de bofetada, mas não queria arriscar-se a obter uma amostracarinhosa unilateral. Ele deve tê-la sentido enrijecer em seus braços depois desua ameaça, porque bufou:

― Por Deus, mulher, tão terrível te parece a ideia de me beijar? Porquecedo ou tarde terá que fazê-lo.

Ariadna compreendeu com tão singelo comentário que Talbot pretendiareclamar seus direitos como marido na cama. Essa possibilidade a horrorizouaté um ponto que esqueceu seu desejo de sacrificar-se pelo bem de sua família,e começou a sacudir-se para que a soltasse. Não obstante, Sebastian Talbotera, como poucos, o homem mais musculoso da região, enquanto que ela nãopodia considerar-se nem alta nem tristemente saudável.

― Solte-me ― ofegou, cravando-lhe as unhas no pescoço. Sua voz não saíacom a raiva que na realidade queria expressar ― solte-me!

Talbot a sustentou com maior firmeza. Na determinação em sair-se com asua, explorou as áreas onde a estava segurando, transmitida pela potência deseus dedos ao segurá-la. Ariadna gemeu e tentou chorar para que suaslágrimas o comovessem, mas não obteve nenhum resultado. Se soubesse odiar,o teria odiado nesse preciso momento, e lhe teria indicado onde cavaria a suatumba quando tivesse a oportunidade de vingar-se. Porém, Ariadna nãoreconhecia o fogo do desprezo que corria por suas veias, e nem sequerexteriorizá-lo quando Talbot se encarapitou na janela. A queda era de um parde metros, possivelmente três: uma ninharia para um homem tão grande comoele.

― Não quero preocupar minhas irmãs ― gemeu Ariadna, incômoda pelo

aperto cerrado de suas mãos e com medo de onde aquilo a iria levar ― Deixe-me em paz, por favor... Você e eu não...

― No que se refere a suas irmãs, duende, assegurei-me que amanhãsaibam, à hora em que devem sabê-lo, onde estamos e o que vamos fazer. Ooutro assunto é um pouco mais complexo, já que não penso deixar-te em paznem por todas as guerras do mundo.

Ariadna engoliu em seco perante o seu tom decidido. Apesar de que tivesseconstruído a sua vida sobre certezas, nunca compreendeu uma tãoesmagadora como esta. Sebastian Talbot não iria deixá-la e na verdade nãodevia se preocupar, porque teria acabado em seus braços quaisquer quefossem as circunstâncias. Mas era tudo tão precipitado... Ariadna continuava ainalar o aroma de livro velho que desprendiam as cartas, quando assimilavaque iriam à fronteira da Escócia, a Gretna Green, casar-se como os fugitivos.Converter-se-ia em sua esposa. A mulher de um homem que tinha cometido odelito de infiltrar-se em sua habitação e persuadi-la para fugir com ele. Etudo... porquê?

― Precisa cobrar uma herança?― Herança? Por parte de quem? ― Soou tão cruelmente zombador que

Ariadna se encolheu ― De meu pai o estivador ou de minha mãe a puta doporto?

― Então... ― espremeu o cérebro, procurando alternativas ― Quer fazerciúmes a alguém?

― Poderia dizer isso ― respondeu misterioso ―. mas não.― Ameaçaram-lhe com a morte e só tirará o pé da tumba se amanhecer

casado?― Amanhecerei com o pé na tumba se não se meter na carruagem agora

mesmo ― a empurrou com os braços ―. e morrerei nas mãos de sua irmã.― Tem dívidas para saldar...? ― insistiu, desejando alargar os momentos

antes da viagem até o infinito.― São os outros quem tem que saldar dívidas comigo. Estou limpo,

senhorita Swift. A que se deve o prazer de ser interrogado?― A que não entendo que motivo desesperado poderia t ter levado a

comportar-se como um louco.Sebastian se posicionou no vão da porta. Tudo em seu corpo clamava que

taparia qualquer orifício de saída se fosse necessário para contê-la ali dentro.Quanto à energia que fluía em seu redor, Ariadna só pôde identificá-la com a

resignação, mas não uma resignação qualquer, porque entre o peso de ter tidoaté ali para cumprir seus objetivos, cheirava a grande vitória de sua vida.

― Não necessito nenhum motivo desesperado para me comportar comoum louco. Se fosse me liberaria de qualquer fingimento ou pretexto forçado.

Uma vez fora, Sebastian entrou na carruagem, enchendo-a até fazê-laparecer pequena em comparação com seu corpanzil. Acomodou-se frente a elae sorriu, estremecendo o miúdo corpo da moça. A evidência de que era suaúltima oportunidade de escapar açoitou com tal violência que só lhe ocorreulevantar-se e jogar-se sobre a portinhola. Não contou com que Talbot a teriabloqueado, nem com que cumpriria sua ameaça.

― Socorro...!O homem a agarrou pelo pulso e a puxou até tê-la sentada sobre suas

coxas. Ariadna, através da sua fina e desgastada camisola, sentiu a fibra deseu corpo apanhando-a inexplicavelmente. Assim que assimilou a proximidadee a estranha atmosfera que a enjoou ao olhá-lo diretamente aos olhos, o medomordeu-lhe o estômago, e foi crescendo até que chegou a um pontoinsuportável. Precisamente nesse momento Talbot a sustentava com intençõesde beijá-la, para selar a legitimidade de seu compromisso.

Sua boca nunca chegou. Talbot ficou olhando com o cenho franzido a umapequena distância de roçar seus lábios, recolhendo o assombro, a curiosidade epossivelmente um pequeno toque justo de irritação. Mas sobre tudo brilhava aconfusão, que conseguiu transmitir com uma exatidão que Ariadna conseguialer corretamente todas as emoções..., e não só isso, mas sendo contagiada porelas.

O cheiro acariciou-lhe o nariz quando ele abriu a boca para falar, e essefoi em parte o culpado por Ariadna não girar o rosto. As lamparinas de gás quependuravam do teto do carro de quatro portas mostravam os traços deSebastian num sentido muito mais visual que autêntico. Ariadna não podiaconfiar em nenhum rosto que não se encontrasse sob a luz do sol em pleno dia– nem de nenhuma de modo geral, – mas isso não queria dizer que não lheparecesse curiosamente atraente iluminado pelo artifício.

Quando o olhasse noutra ocasião, não reconheceria seu rosto, e nãosaberia quem era até que não associasse a chamativa cicatriz ao seu nome.Essa clara imperfeição desenhava uma linha irregular que nascia um poucomais acima do final do osso, e que culminava quase na beira da mandíbula,muito perto de seu queixo obstinado. Conferia-lhe um aspecto tão feroz que

sabia que se fosse uma menina ficaria assustada, correndo no sentidocontrário. Sobre tudo porque a cicatriz não era o único sinal de barbárie nele,senão mais uma se lhe dedicasse alguns segundos observando. Tinha o narizgrande e afiado. Poderia ter sido bonito noutra vida, mas não agora: notava-seque o tinham partido em mais de uma ocasião. Vislumbres de luz se escondiamdebaixo do desenho de sua mandíbula, que se assemelhava ao fio de umanavalha suíça. Sua pele parecia tão dura e tensa como a de um desses animaisselvagens que Ariadna tinha visto no zoológico em Bristol, e que lheasseguraram que não poderia rachar num primeiro intento.

Sem dúvida era um conjunto para recordar, especialmente quando suaproximidade lhe tinha causado esse impacto. Mas o que faria que Ariadnasoubesse quem era ao olhá-lo, além de seu defeito visual da cicatriz dabochecha, eram os seus olhos. Ariadna, sem ser amante das joias, recordava oanel que lorde Ashton ofereceu a Penélope Swift como uma das coisas maisbelas do mundo conhecido. Conforme lhe disseram, a pedra se definia como otopázio azul; gema que viajou dos longínquos Montes Urrais russos paraacabar no dedo de sua irmã, e agora, encravado nos olhos daquele homem tãoexasperante.

― Não vou gritar de novo ― assegurou ela em voz baixa ― Não é necessárioque cumpra sua ameaça.

― E o que faço com as promessas passadas? Já gritaste uma vez ― fez elenotar no mesmo tom. Suas pálpebras foram cedendo à indagação, até que asduas pedras preciosas apertaram em seus lábios. Houve uma pausa que lhepareceu necessária, mas que criou um nó em seu estômago ― E mais cedo oumais tarde terei que te beijar, duendezinho.

Negou com a cabeça antes de que terminasse de falar.― Imagino que você é rico porque também é ambicioso, mas não vou

permitir que projete seu afã de ter tudo comigo. ― Respondeu ela, mais calma― Me tem como esposa, mas não pense nem por um segundo que serei suaamante, nem mesmo por uma noite.

Talbot sorriu como se tudo o que tivesse dito fosse a maior das parvoíces.― Quem disse algo sobre noites? Como acredita que selaremos o enlace, a

não ser com um beijo? ― Elevou uma sobrancelha, mostrando todo seubriguento esplendor. Era a definição de fanfarrão ― Não a farei praticar antes,mas parece que requer uma preparação prévia. Eu não gostaria que meridicularizasse diante de um padre da Igreja.

― Senhor Talbot, você não necessita de ninguém para o fazer de ridículo ―declarou brandamente ― demonstrou ter aptidões de sobra para encarregar-sedisso sozinho.

Em vez de ofender-se, Sebastian Talbot soltou uma gargalhada. O ar queagasalhava sua língua a forrou de uma paradoxal combinação de amargura ealegria desafogada. E por estranho que pudesse parecer, sentiu-segenuinamente agradada.

Aceitando a derrota, Sebastian a separou de seu regaço e a sentou frente aele, sem afastar o seu olhar.

― Cada vez me intriga mais o amor que lhe professam os varões deLondres ― comentou, recostando-se para trás. Dando um par de toques naparede da carruagem, colocando-se em marcha. Ariadna não pôde dominar asensação de perda que a embargou, como se estivesse deixando a casa paratrás para sempre ― Você é excecional, mas não bonita, e possui uma línguasimilar a de suas bravas irmãs escocesas. Sua aparência de passarinhosacrificado valeu-lhe tantas propostas de matrimônio, ou você é uma bruxa?Pressinto que enfeitiçou a todos.

Ariadna não disse nada. Deu uma olhada pelo guichê, sendo de repenteapanhada por uma grande desolação. Na manhã seguinte, suas irmãs estariamtão preocupadas com ela que despertariam toda a rua Bow com seus gritos desocorro. E, sem dúvida, estava ante um espécime, que parecia um mais homemdas cavernas que um homem do século XIX. Um cavernícola que, emborativesse aceitado forçosamente, não deixava de ser seu captor.

Quanto às suas dúvidas... Que poderia responder a isso? Nem sequer elasabia por que chamava a atenção.

― A você não enfeiticei, aparentemente ― murmurou afinal ― Não podedizer que funciona com todos.

― Isso é porque sou um cão velho que conhece todos os truques deconquista... E porque não acredito na magia.

― Então por que quer casar-se comigo?― A pergunta deve ser porque: 《vais casar-te comigo》 ― corrigiu para

recalcar. Encolheu um ombro com ar pedante ― Talvez queira meninos loiros.Ariadna o olhou diretamente. Por sua expressão soube que brincava, mas

decidiu não dar pé a possíveis confusões esclarecendo suas intenções. Ou issofoi, ao menos, a princípio. Logo descobriu que não queria continuar a dar cordaa essa caixa de música, porque a melodia não era sua preferida e, na realidade,

tinha melhores coisas nas quais pensar.Deixando-o com a dúvida do que ia acrescentar, afastou os olhos e voltou

a dar uma olhada pela janela, imaginando que a escuridão da noite poderiacompreender melhor que ninguém a decisão que tinha tomado.

5

Ariadna Swift era a mulher mais aborrecida que tinha tido a fortuna ou adesgraça, posto que ainda estava por descobrir se devia agradecer ou começara chorar ― de conhecer.

Passaram os quase três dias de viagem a Escócia em completo silêncio, enão foi porque Sebastian não tivesse tentado propor interessantes temas deconversa. Certo era que não queria uma esposa para agradá-la ou iniciar umabela amizade eterna; só a queria para pavonear-se diante dos esnobes com osquais competia e ter um porto seguro onde atracar quando não quisessedeslocar-se até o bordel. Mas lhe parecia ridículo que não tivesse trocado meiadúzia de palavra desde que saíram de Londres.

Como grande parte dos que pudessem considerar-se homens, nãosuportava os intermináveis e molestos falatórios aos quais as mulheresestavam acostumadas a submeter-lhe; às vezes para lhe surripiar algumsegredo que valesse a pena divulgar, e outras simplesmente para contarbobagens a respeito de vestidos ou outra coisa que não lhes interessavam nempara arrancá-los. Seu lado racional, claro, agradecia que Ariadna não formasseparte do clube de periquitas incansáveis. Porém, como todo ser humano – eembora Sebastian em concreto fosse em menor medida como o resto – tambémtinha suas preferências irracionais, e gostaria que não o condenasse ao silênciodurante quase setenta e duas horas. Era uma absoluta tortura para ele, queprecisava vomitar o seu sarcasmo antes que apodrecesse dentro de seu corpo.

A essa altura, suas ironias, se pronunciadas, deveriam cheirar a cãomorto.

É obvio que não sentia falta de sua voz nem suas respostas. Incomodava-lhe a greve de palavras porque a considerava uma digna conversadora. Claroque não era rival para ele; mal conseguia seguir o ritmo de seus comentáriosdescarados, e muitas vezes parecia perder o fio... Mas quando conseguiaconcentrar-se em seu interlocutor e entender o que dizia, podia dar respostas

que contariam com sua aprovação. Sim, a sua conversa era um poucomedíocre, mas não podia pedir nada melhor para uma viagem de três dias.

Pôde, pelo menos, aproveitar para fixar-se um pouco mais nela, ereconhecer para si mesmo umas quantas premissas que acreditou seremfalsas. Sem dúvida, era bonita. O que a deixava feia era essa irritanteexpressão entre indolência e confusão, que não desaparecia nem com piadasnem com insultos, nem certamente sob nenhum tipo de coação. Parecia nãosentir nem sentir nada, para não falar que seus olhos que davam qualquerpista do que pudesse ter em sua cabeça.

Sebastian não iria partir a sua ou esforçar-se ao ponto de ficar com doresde cabeça para decifrá-la, mas precisava admitir que lhe causava certaespectativa, embora não lhe incomodasse o seu aspecto, porque não faria usode seu corpo a não ser que fosse estritamente necessário. Não deixava de darvoltas à mente de como podia haver tantos homens pretendentes dela. Ou nãopretendentes, pois isso eram palavras menores, eram mais «apaixonados».Loucos. Obcecados... O duque de Winchester, nem mais nem menos. Esse queera o homem mais capitalista da Inglaterra, só abaixo da rainha.

Ainda não sabia se lhe divertia a popularidade de sua futura esposa ou seo fazia sentir-se um imbecil: afinal de contas, que não lhe visse nenhumatrativo possivelmente significasse que estava mais cego ou era mais estúpidodo que tinha pensado. O único que tinha claro era que ela em si mesmo lheproduzia uma grande curiosidade ― nascida do tempo livre, certamente ―. eque devia descobrir o que era «isso» que a convertia num ser humano único. Enão podia dizer que partisse do zero; tinha suas suspeitas.

Quando, antes de começarem a marcha, a sentou sobre seu colo e ela oolhou como se fosse a primeira vez que o via, experimentou uma nova ecomplexa sensação que somente conseguiu distinguir como desconforto. Ficavaclaro que «esse» era o poder de Ariadna sobre ele. Não o punha nervoso, nem ofazia feliz, nem nenhuma dessas infundadas bobagens românticas que diziamas novelas. Só lhe provocava uma maior inquietação. E não unicamente seuolhar, pois aquilo foi o cúmulo, mas sua mera presença. Sebastian jamais diriaem voz alta, e menos ainda na presença de quem pudesse usá-lo contra ele,mas sem acreditar em nada que não fosse o dinheiro, tinha a sensação de queum corpo celeste lhe soprava na nuca cada vez que Ariadna entrava nahabitação, forçando-o a olhá-la e a não afastar os olhos dela até que partisse.

― Que bonito é esse rio ― foi a primeira coisa que disse depois de quase

três dias sem abrir a boca ― Sabe qual o seu nome?Sebastian a olhou perplexo. Devia ser uma brincadeira.― Sark ― respondeu de mau-humor ― Rio Sark. Pode-se dizer que já

estamos na Escócia.― Como sabe? Que se chama Sark. Aos homens que vão ficar ricos

também lhes ensinam geografia?― Os homens que vão ficar ricos, como você os chama, têm outra maneira

de aprender. Uma um pouco mais prática ― respondeu com um fundo deamargura ― Alegra-me que tenha demonstrado saber falar. Por um momentopensei que necessitava que lhe desse corda para fazê-lo e a tinha deixado achave em sua habitação.

Ariadna afastou os olhos do «belo rio» para lhe prestar atenção. Sebastianficou automaticamente em guarda. Olhava-o de um modo tão estranho... Comose não recordasse a sua cara e devesse fazer um percurso por todos seuspensamentos para conceber de uma vez a totalidade de sua pessoa.

― Por que pegaria uma chave, quando não pegou uma escova ou roupainterior? ― perguntou. Não soava lastimosa, só cansada; tão cansada quepiscava lentamente ― Não dormiu nada.

― Não preciso dormir ― admitiu ― Embora você tampouco o tenha feito.― Não consigo dormir se não for em minha cama. Ao menos, por vontade...Um bocejo gutural a interrompeu. Sebastian observou, divertido, como

enrugava o nariz antes de fechar a diminuta boca. Deu meio sorriso aoperceber seus olhos frágeis, mais claros que nunca.

― Procure não dormir agora, duendezinho. É quando deve estar acordada,para que não pensem que me caso com um cadáver. Vê aquela estalagem ali...?Na habitação do último piso, vive um sacerdote. Oficiaremos as bodas namesma casa, se quiser, e logo...

― Poderei dormir?Sebastian franziu o cenho. Eram as primeiras palavras que saíam de sua

boca com uma ligeira entonação, quase iludidas, e não como se fosse umacaixa de música quebrada que emite as últimas notas por mera coincidência.Não soube se ria ou se chorava porque a promessa de um cochilo fora o quetinha mais hipóteses de a fazer feliz.

― Poderá dormir na carruagem. Tendo a irmã que tem, querida, nãopodemos nos permitir estar um só dia a mais fora de casa. Embora se não teconvencer a fazer um novelo nesse lado do carro de quatro portas, pode usar as

minhas coxas.― Agradeço a proposta, mas vou declinar ― respondeu com essa suavidade

tão dela ― Que tenha aceito sua mão não significa que confie em você, senhorTalbot. Preferiria não cometer o engano de ficar adormecida estando a sós comvocê, e menos ainda em cima de você.

Não o dizia com ânimo de ofender, nem sequer soava assim... Mas mesmoassim o seu tom de voz, sua postura, sua expressão incomodou Sebastian. Eraa representação de algo que ele jamais tinha acreditado possível: a total eabsoluta indiferença. Não tinha nada que ver com a falsa indolência dosaristocratas, que sentia de longe. Era puro desinteresse por ele. Importava-lheum rabanete. E não devia lhe incomodar, pois estava a ponto de consagrá-lacomo sua esposa, que era a única coisa que desejava dela. Entretanto,incomodava. Não suportava ser um ninguém para alguém, entre outras coisasporque já foi durante muito tempo e prometeu a si mesmo que não voltaria aacontecer. Nunca deixaria que ninguém lhe fizesse questionar seu valor eAriadna fazia com que se perguntasse se não era suficientemente bom.

Acabou sorrindo sem vontade.― Isso não é que não confie em mim, senhorita Swift; simplesmente

significa que sabe como sou.A carruagem freou diante da estalagem, que tinha o aspecto de ter sido

edificada na zona de uma pedreira. Ou isso, ou alguém quis levantar umamuralha e ficou sem pedras, posto que agora, estas estavam pulverizadas pelaentrada e laterais. O vento transversal levantava uma fina capa de pó comlascas, da qual Sebastian teve que se proteger, cobrindo os olhos ao apear.

Recordou uma das poucas boas maneiras que conhecia para estender amão e ajudar Ariadna a descer, que durante o trajeto pôde colocar um singelovestido em cima da camisola. Não quis que se aproximasse para lhe fechar osbroches traseiros, e ao não conseguir ela mesma fechar todo o traje, este ficavafolgado.

Assim que Ariadna pôs um pé na escadinha, seus joelhos cederam eesteve a ponto de cair de bruços. Sebastian a agarrou muito antes de queperdesse o equilíbrio, sustentando-a contra seu peito.

― Deveria ter conhecimento de que é um tanto torpe?― Ou que estou sem mover as pernas há três dias ― sugeriu ela ― Posso

seguir sozinha. Me dê alguns minutos.Sebastian se separou com receio, fiscalizando que se mantinham em seu

eixo. Estando a alguns passos de distância, pôde comprovar como Ariadnamassageava as coxas com cuidado para pô-las em funcionamento. Reparoutambém que tinha um péssimo aspeto. Tinha o cabelo recolhido de qualquermaneira num singelo coque despenteado, do qual escapavam mechas por todaa parte. As olheiras eram bastante notórias em seu rosto, que ao ser tãoespecialmente pálido lhe davam a impressão de estar doente. Se a isso soma-sea sua magreza...

― Deve-se levar algo especial numa cerimônia em Gretna Green? ―perguntou assim que pôde dar dois passos seguidos sem cambalear. Quandochegou ao terceiro, ficou claro que não estava em condições de caminhar.Sebastian tomou medidas, aproximando-se e agarrando seus braços ―. SenhorTalbot...

― Por estranho que pareça, não pretendo incomodar... por agora. Só measseguro de que não me faço velho enquanto fazemos o percurso de doismetros à estalagem. E não, não terá que levar nada. Se pedirem anel, levo umpar comigo. Não há tempo para que troque o vestido, mas se quer colocar floresno cabelo, poderia pedir à mulher do hospedeiro que te traga uma dessas quese utilizam para os guisados.

― Refere-se ao tomilho? O malmequer? O tomilho é mais um ramalhetecheiroso que...

― Não sou nenhum perito em flores senhorita Swift, e francamente não meimporto se acaba ornando a cabeça com orégano ― cortou, sem tantaimpaciência como ironia ― Só propunha porque não temos tempo para nos pôra compilar violetas silvestres...

― Espere! ― exclamou com um fio de voz ― Olhe abaixo... São pequenasmargaridas?

Sebastian olhou, a contragosto, na direção que lhe indicava. Conteve umbufo ao ver que, em efeito, havia um pequeno broto de flores aos pés dobotequim. Suspeitando o que pediria, agachou-se sem deixar que pusesse umpé no chão e arrancou umas quantas ao calhas. Lançou várias no seu colo,precisamente na dobra que a saia fazia sobre as suas pernas, e sem intençõesde ser romântico, ― em vez disso comportando-se como um bárbaro ―arrancou uma mecha atrás da orelha para colocar ali uma margarida.

― Agora é a noiva perfeita ― resolveu, sem lhe dedicar outro olhar.Continuando, empurrou a porta de entrada com a perna.― Não necessita que me carregue, senhor Talbot...

― OH ― suspirou irônico ― não ouviste que dá má sorte não cruzar asoleira com a noiva nos braços?

― Ainda não estamos casados.― Você esteve casada comigo no momento desde que nasceu, Ariadna.Nenhum dos dois acrescentou nada mais, certamente porque não estavam

de todo interessados um no outro. Sebastian avançou a pernadas entre asmesas dispostas no piso de baixo. Numa delas, uma empregada, de generososquadris servia duas jarras de vinho, enquanto vários dos comensais lheassobiavam ou faziam comentários grosseiros. À parte, alguns poucos casais,protegidos de olhares curiosos por seus grossos capuzes provavam o jantar,encolhidos nos cantos mais ocultos do botequim. O proprietário desta nãodemorou para se aperceber da presença de um novo estrangeiro.

Porém, Sebastian não tinha tempo para dirigir-se ao taberneiro. Passourapidamente por ele antes que pudesse vomitar sua lista de ofertas, e se dirigiucom determinação ao padre que jantava tranquilamente numa mesa-redondaafastada. Este quase deu um coice quando a sombra descomunal doempresário se projetou sobre ele. Sebastian não deve ter lhe dado a impressãode ser o proprietário de um império, porque o vigário não se moveu. Só limpouas comissuras dos lábios com parcimônia, utilizando um lenço que nãodemorou para guardar novamente.

― Richard Cumberbatch, a seu servi...― Necessito que nos case ― anunciou ― Agora, pode ser.Uma sombra de indignação cruzou o rosto de Cumberbatch devido ao seu

tom exigente.― Lamento, senhor... ― Disse entre dentes ― Desgraçadamente, esta noite

estarei casando três casais que tiveram a sorte de chegar a tempo para fazersua reserva. Não tenho nem um segundo para outro mais.

Sebastian tratou de respirar fundo, ignorando de momento a possibilidadede pagar uma pequena fortuna para passar pelo vicariato em primeiro lugar. Jálevava cinco mil libras investidas na mulher que tinha entre seus braços; nãosoltaria nenhuma só mais.

― Olhe... Cumberbatch ― recalcou com acento escocês ― vim que Londres,sem fazer um só descanso, para me casar agora mesmo. Não vou daqui até queoficie minhas bodas, e asseguro-lhe que em caso de negar-se, poderia fazer deseu jantar um completo inferno.

O vigário franziu o cenho. Levantou-se do assento com um grande esforço.

Suas mãos tremiam violentamente, possivelmente pela irritação ou talvez porencontrar-se a alguns passos da velhice.

― Mas quem pensa que é? Como se atreve a vir com exigências?― Não estamos em Gretna Green, onde se cumprem os sonhos dos

amantes proibidos? ― espetou com os olhos entreabertos ― Faça o favor defazer o que tem de fazer; aqui mesmo, inclusive. Não necessito nenhum lugarmais refinado. Vamos, bom homem, ― insistiu ― acredito que em caso de serobrigatório recitar uma passagem da Bíblia, sabe já de cor. Diga suas frases,nos benza e irei antes de que possa recordar minhas maneiras.

― Por que classe de sacerdote me tomou?― Por um que se ofende com facilidade, pelo visto. Menos mal que você

não tem luvas, ou correria o risco de que me atirasse uma aos pés e amanhãestivesse morto em vez de casado ― repôs com ironia ― Se necessitar de umincentivo, pagar-lhe-ei quanto for necessário. Só quero partir o quanto antes.

― E eu ― murmurou Ariadna.― Ouviu-a? Ela também quer acabar rápido com isto. Não lhe convém

desobedecer o desejo de uma mulher. E menos ainda o desta... ― assegurou emvoz baixa ― É meio bruxa, sabe? Olhe seu cabelo. Se se atrevesse a despertar asua ira, poderia convertê-lo num camundongo de esgoto com só um estalar dededos.

― De que diabos você está falando? ― resmungou o vigário, apertando ocasaco ao peito. Olhou-o com clara desconfiança ― Senhor, saia do meucaminho.

A essas alturas, Sebastian estava pensando em utilizar a força para reter ocondenado ancião. Como se não fosse suficiente sua recusa e suasuperioridade moral para desprezá-lo, ainda apresentava um aspecto ridículo,sendo tão rechonchudo como um barril e ostentando um ridículo bigode que ofazia parecer mais um felino do que um homem.

Imaginando que teria que o perseguir durante toda a noite paraconvencer-lhe de que oficiasse as bodas, deixou Ariadna no banco da mesa quetinha estado ocupando. Ordenou-lhe que não se movesse, tarefa que esteveseguro de que seguiria com êxito, e pôs-se a andar atrás dele, dizendo «espere»,«volte» e inclusive «necessito-lhe», palavras que nunca pensou que chegaria apronunciar.

― Sei que começamos com pé errado... ― dizia. Agarrou-o pela manga,como se fosse um menino travesso que não queria perder-se ― Só me diga:

aceita subornos?Cumberbatch voltou-se, horrorizado. Com o olhar de cima abaixo que lhe

deu, Sebastian teria tido razões de sobra para dar-lhe um murro. Entretanto,preferia não provocar a sorte insultando a um servo de Deus. Embora nãofosse crente e sim um autêntico descrente, era melhor não ganhar a medalhade anticristo.

― É você um desavergonhado ― resmungou ― Não se pode comprar apiedade de Deus!

― Acaso não me escutou? Não devo suplicar a piedade de Deus ―pronunciou com um tom que fez estremecer o homem ― apenas o seu ofíciocomo membro da Igreja. Asseguro-lhe que se pudesse seguir adiante sem aaceitação dos olhos da igreja, não o estaria incomodando.

― Você fala no nome do Senhor como um autêntico blasfemo... me solteagora mesmo. Meus serviços não têm preço.

― Tudo nesta vida tem um preço ― replicou ― O que quer? Dou-lhe duaslibras. ― A resposta corporal do homem lhe fez trocar o peso de uma perna aoutra. Essa noite acabaria com dor no bolso ― O dobro. Quatro libras ―insistiu muito a seu pesar ―. Venha, seja bom samaritano. Com isso podecomprar tantas bíblias como desejar... ― O rosto do vigário adquiriu um tomavermelhado bastante cômico ― Não? E que tal as batinas?

Quando Cumberbatch lançou uma maldição baixinho, Sebastian soubeque acabava de perder definitivamente sua oportunidade. Embora lhe tenhadoído a garganta por ter que conter um comentário malicioso sobre a poucapiedade que teria Deus com ele por blasfemar, mais sofreu ao ver que seafastava pelo caminho do povoado, tão ofendido que Sebastian estavaconvencido de que, se esperasse a notícia de sua chegada e suas intenções seespalharem, no dia seguinte não haveria alma na cidade pronta para o casarcom Ariadna.

Em outra ordem de coisas, e não necessariamente da mais importante,perguntou-se com franqueza quanta má sorte trazia um clérigo amaldiçoandosua pessoa. Imaginava que estaria acima dos gatos pretos, dos espelhosquebrados e demais parvoíces que, evidentemente, importavam-lhe um nada.

― Senhor ― ouviu às suas costas. Sebastian se virou, topando com umhomenzinho de aspecto simpático e olhar ambicioso ― Sou... sou o senhorHedwick, o proprietário da estalagem. Não pude evitar ouvir sua discussão como pároco, e pensei que deveria saber que, em Gretna Green, não é necessário

um pastor para se casar. Aqui, as bodas são oficiadas pelo ferreiro.Sebastian deu inteiramente a volta e relaxou os ombros.― Onde posso o encontrar?― Né... Hoje... Esta noite... ― pigarreou ― veio em noite de feira, senhor

Talbot, e muito temo que o senhor Peterson, Gleann Peterson, não está em seumelhor momento. Até alguns minutos atrás estava bebendo no interior dacantina. E você já deve saber como são os escoceses quando há uísque nomeio...

― Está me dizendo que se quero me casar esta noite, terei que contratarum ferreiro bêbado? ― perguntou muito devagar. Hedwick assentiu,aparentemente temeroso de sua reação. Demonstrou não esperar sua tremendagargalhada dando uma estremecida ― Diabos, isto é pura justiça poética. Ummatrimônio de brincadeira como este somente poderia ser efetuado por umescocês bêbado sem meio para cobrar sentido... me diga como é e irei buscá-lo.

O senhor Hedwick, que não cabia em si mesmo de estupefação, descreveuas feições do ruivo que seria a salvação de Sebastian. Sem perder um segundo,a não ser para pagar meio soberano ao amável dono da cantina, protegeu-se dofrio no interior do estabelecimento. Não teve que procurar muito para oencontrar: um homem de cabelo alaranjado era inconfundível, e mais quandolhe faltava um terço da camisa, tinha as bochechas da mesma cor que o cabeloe enchia uma de suas duas botas por petição de outro bêbado, que o animavadando-lhe tapinhas nas costas.

Aproximou-se dele, quando se precaveu de que a atenção dos presentes sedeslocou a outro ponto do lugar. A alegria da mesa central seguia sendo visível,mas não um barulho ensurdecedor; agora, grande parte dos comensais ecuriosos se transladaram à esquina onde uma moça vestida de branco easpecto necessitado lutava por manter os olhos abertos.

Sebastian sentiu que lhe apunhalavam o coração ao ver Ariadna rodeadade homens. O instinto, a experiência e o triste conhecimento de causa fez quetemesse o pior. Avançou com passo ligeiro, preparando os punhos para matar atodo aquele que lhe pusesse um dedo em cima... E entretanto, teve queguardar a língua, quando chegou a sua altura. Os cinco tipos se distribuíam damelhor maneira para admirá-la, desde cada ângulo: havia dois ajoelhados,controlando-se para não aferrarem-se a suas pernas, um roçando seu ombrodireito, outro quase respirando sobre a lateral esquerda de seu pescoço, e umúltimo lhe cantando uma canção com um acento escocês tão marcado que mal

se entendia o que dizia.― Case-se comigo? ― balbuciava o robusto de todos eles, olhando-a

assanhado ― Não tenho muito, só uma pequena granja com alguns animaispara ganhar o pão e me permitir uns goles durante as feiras, mas se medeixasse...

Ariadna afastou os olhos do homem para centrá-los nele. Se lheenvergonhava a situação, sentia-se coibida pela atenção recebida ou por temersua ira, não conseguia notar e Sebastian teria convencionado com sua reaçãose esta tivesse sido a última. Ardeu pensando que, entre os cinco, poderiam tê-la levado voando para casar-se com ela por ordem de estatura. E ardeu aindamais pensando em que ela não teria devotado nenhuma maldita resistência.

Mas esqueceu quando ela, de um lugar ao qual ninguém tinha acesso,sorriu quase aliviada e estendeu os braços para que a elevasse. Sebastiannotou uma moléstia no nível do coração ao ver que se oferecia com os olhosfechados e uma doce expressão no rosto; moléstia que se converteu em purafrustração ao ter que dar uma cotovelada no nariz do camarada que tentoutomá-la nos braços. Rosnou na cara dos dois que se queixaram de que a festativesse terminado, e a sustentou contra seu corpo com firmeza. Assegurou-sede que se queixasse pelo apertão, numa espécie de vingança a favor de seuorgulho.

― Deixo-te sozinha cinco minutos e todos os homens do botequim tentamte levar com eles. Não quero nem imaginar o que ocorreria se se sentasse naTrafalgar Square com as mãos cheias de caramelos.

― Adoro caramelos ― murmurou ela, aconchegando-se ― Não durariammuito em minhas mãos...

Pronunciou com tanta segurança o que dizia, como se fosse real, queSebastian teve de conter-se para não soltar uma gargalhada. Possivelmentenão teria rido igualmente; doía-lhe todo o corpo, começava a estar tão cansadoquanto ela e necessitava urgentemente um longo banho. Talvez ocompartilhasse com sua esposa...

Sacudiu a cabeça e se concentrou em seu dever: encontrar o ditosoferreiro e suborná-lo para que fizesse o casamento inclusive em péssimascondições. Quando o enfrentou uns segundos depois, lamentou ter os braçosocupados e não poder empregá-los para sacudir o mencionado, o que lhecustou cinco minutos assumir o que lhe pedia.

Peterson soltou uma ensurdecedora e zombadora gargalhada que

Sebastian teve que silenciar com a promessa de uma boa remuneraçãoeconômica; uma que lhe servisse para vadiar durante o resto da feira semtemer pelo fundo de seu bolso. No final teve de agradecer o peso de Ariadna, jáque o fato de não ter as mãos livres, impediu-lhe dar um murro e o levado pelocolarinho da camisa... que já não a tinha posta, de todos os modos.

Sebastian seguiu o cambaleante Peterson até a choça que com muitadificuldade podia considerar um negócio digno. Que pese a tudo, o escocês nãodeixou de repetir, mesmo que devesse saber que seria impossível o entender,que aquilo era uma ferraria. E se o dizia, pensava Sebastian, devia ser certo.Pela conta que trazia para ambos, mais-valia.

― Mairin! ― gritou, arrastando os pés por ali ― Mairin, menina, vamos!Peterson prendeu um abajur de gás que iluminou a escassa estadia em

todos seus cantos. A chama de luz foi suficiente para que o ferreiro e Sebastianse precavessem da presença de um casal sobre um catre, um homematarracado e bigodudo com os olhos muito abertos, olhando em direção à luz,enquanto a mulher semidesnuda tratava de cobrir-se.

― Mairin! ― gritou Peterson, ao que a irritação lhe roubou a alegria festiva.Sebastian observou, não sem certo regozijo, como se aproximava dos amantescom a lamparina à cabeça ― Pode saber-se o que significa isto?!

― Pai, e-eu...― E com o filho do ferreiro da concorrência! Por acaso ficou louca? Você,

jovem... mais vale sair daqui antes de que eu te golpeie com o martelo vermelhovivo!

Sebastian assistia à cena absolutamente maravilhado quando ummovimento captou sua atenção. Afastou os olhos do casal seminu acontragosto para fixar-se em Ariadna, que fazia uma panela com as mãos ecobria os ouvidos para silenciar os gritos.

― O que é esse ruído? ― ofegou. Soava dolorida, como se fosse chorar ―Faça parar...

― Só é o deus Thor defendendo a honra de sua filha no grito de «usareimeu martelo» ... ― Calou-se ao ver que Ariadna se revolvia, incomodada pelosuivos do pai e da descendência ― O que te ocorre? ― Levantou a cabeça ededicou um frio olhar ao ferreiro, que estava tão ocupado sacudindo sua filhapelo cabelo que nem o notou ― Faça o favor de fechar o bico, vim casar-me, nãoque me tirem a vontade por causa de uma enxaqueca.

Soube o exato momento em que Peterson recordou que seu cliente tinha

pago uma interessante soma de dinheiro por seus serviços. Trocou osemblante, soltou o matagal que tinha feito da juba de sua filha, e dispôsoutros tantos abajures para iluminar a ferraria.

― Mairin, será a testemunha ― ordenou o pai. Logo se dirigiu a Sebastian― Têm anéis, senhor? ― Assentiu ― Bem, é tudo o que necessitarão...

― Como que tudo o que necessitarão? ― exclamou Mairin, afastando seupai com uma grosseria e aproximando-se de Ariadna com o cenho franzido ― Asenhora não tem bom aspecto, e não leva um vestido adequado para casar-se...

― Isso não é de sua incumbência, Mairin! Cale-se e faça o que te digo!― São suas bodas! O que custa deixá-la apresentável...? Além disso, nem

sequer parece consciente do que está ocorrendo! ― exclamou. Sebastiancomeçava a impacientar-se, já para não mencionar que a moça tinha uma vozextremamente desagradável ― Senhora, senhora...

A insistência de Mairin encheu a paciência de Peterson, que fazendoostentação de uma violência dilaceradora, agarrou a moça pelo pescoço epuxou-a fazendo-a retroceder alguns passos. Um nó se formou na garganta deSebastian, que ao não poder apertar os punhos, empurrou o corpo de Ariadnacontra o seu para conter a impressão. Dizia que deveria tranquilizar-se, masnão pôde: acabou depositando Ariadna sobre a banqueta de madeira eagarrando Peterson pelo ombro bruscamente. Quando este se voltou para olhá-lo, Sebastian reconheceu em seus olhos a emoção mais profunda que ele tinhaexperimentado: puro ódio. Quase estremeceu, e não de medo ou pelo impacto,mas sim porque seu próprio corpo se encheu de desprezo pelo tipo que teriaque selar o enlace. Soube então que, se não fosse por sua situaçãodesesperada, teria se encarregado pessoalmente de mandá-lo ao inferno.

― Sabe? Eu também sei usar o martelo.Peterson não encontrou maneira de ofender-se pela ameaça,

possivelmente porque Sebastian lhe dobrava em altura, largura e poder paralhe arrebatar todos seus pertences. Assim, o homem agachou a cabeça e sedeslocou para a bigorna, onde murmurou a explicação sobre o porquê dasbodas celebradas nas ferrarias.

Sebastian olhou a moça, que cobria o pescoço com o vestido para tamparas marcas que seu pai acabava de lhe deixar. Demonstrando uma fortalezainigualável, Mairin devolveu-lhe o olhar com tal firmeza que se sentiuimpressionado.

― Tenho pressa ― disse, sentindo a necessidade de defender-se ― Mas se

não fosse assim, ter-lhe-ia conseguido um vestido em condições.― O vestido é uma pequenez em comparação ― insistiu Mairin ― A

senhora parece doente. Deveria desfrutar de um banho e uma boa sesta... Nãoa vê? Parece que tem estado a viajar durante dias sem comer nem dormir.

Sebastian deu a volta para dar uma olhada em Ariadna. Escorreu pelaparede para terminar com a bochecha apoiada na banqueta, e o corpo todoretorcido numa postura que parecia dolorosa. Preocupado de que pudesse terdormido, Sebastian caminhou até colocar-se de joelhos frente a ela. Confirmousuas suspeitas ao lhe tocar o ombro e ver que não reagia.

― Vamos, duendezinho... Acorde. Só serão alguns minutos ― assegurou.Ao não obter resposta, sentiu-se um completo miserável. Por sua mente cruzoua possibilidade de deixar para outro momento e permitir-lhe descansar duranteo resto da noite, mas então seus planos viriam abaixo... E devia ser muitometiculoso com o tempo ― Ariadna, acorde.

Mairin se aproximou, curiosa. Levantou as saias para apoiar os joelhos nochão e tomou seu rosto entre as mãos. Sebastian observou o cuidado queempregou ao tocá-la, como se na realidade não o merecesse. Viu-a suspirar,entre comovida e cheia de ternura.

― É uma preciosidade.«Por Deus! ― esteve a ponto de exclamar ― Quantos mais vão se apaixonar

por ela esta noite?»Não era o melhor momento para pensar em parvoíces, mas que diabos

viam em Ariadna Swift? Reconhecia ser um autêntico bruto, um desgraçado,um diabo em construção... Mas por esse mesmo motivo deveria saber o que eraum anjo quando o via. Sebastian entendia que Ariadna era seu oposto pelossuspiros que levantava; sabia que eram as pessoas mais opostas do planeta...,mas ainda não conseguia ver por quê. Talvez, e como vinha suspeitando, eramuito estúpido para encontrar o que quer que fosse que deslumbrava ao restodo mundo.

― Senhor... ― Murmurou Mairin, voltando-se para olhar Sebastian com acara decomposta ― Acredito que a senhora desmaiou. Não responde ao contatoe respira muito fracamente.

― Como? ― rompeu ele. Em seguida afastou as hábeis mãos de Mairin,utilizando as suas para sacudir brandamente à moça. As pálpebras de Ariadnaficaram onde estavam, sem tremer um ápice ante a chamada ― Sabia que nãopodia ser tão obediente. Em algum momento devia dar-me problemas...

Acordada, Ariadna. Deixa de fingir.― Fingir? Senhor! Não a vê?Sim, possivelmente esse devia ser o problema... que não a via. Não se

tinha tomado a moléstia de olhá-la em profundidade, mas agora que Mairin aassinalava com os olhos exagerados, possivelmente temendo que houvesse umcadáver na ferraria de seu pai, não ficava mais solução que confrontar os fatos.Ariadna estava mais pálida inclusive do que quando a viu pela primeira vez,tinha os lábios cortados, o cabelo emaranhado, e estava encolhida sobre simesma. Parecia tão frágil, e estava tão extremamente magra, que lhe cortou ocoração.

― Irei procurar o médico do povoado ― anunciou a jovem, ficando de péprecipitadamente.

Sebastian assentiu, sem separar o olhar de Ariadna. Vê-la necessitadaimpediu que movesse um só músculo e ficasse ajoelhado frente ao bancodurante a saída de Mairin, sua viagem ao coração da vila e sua voltaacompanhada. Não poderia assegurar quanto tempo transcorreu: só soube queera sua culpa, por nem se ter apercebido que ela não precisaria comer oudormir, do mesmo modo que ele estava acostumado a que lhe faltasse de tudo.Estava à vista que era muito frágil para suportar uma viagem dessascaracterísticas.

Nem sequer lhe ocorreu quando a arrastava a uma vida com ele. Ariadnacomeçaria a depender inteiramente de seus cuidados, pelo que pudesse lheoferecer. Se falisse, ela também sofreria as consequências; algo que se podiaextrapolar a qualquer tipo de situação, inclusive uma que lhe parecesse serridícula, como a opinião popular ou dela mesma. Com toda probabilidade,deixariam de convidá-la a grandes festas e não poderia acotovelar-se comindivíduos como o duque de Winchester por causa de seu marido, um sujocockney sem maneiras.

Era esse o seu pensamento quando Ariadna abriu os olhos. Adesorientação estava escrita em sua expressão. Não tentou levantar-se. Pelocontrário, permaneceu ali, feita um novelo naquele banquinho que, se fosse umpouco mais, seria pequeno demais para ela.

Sebastian recebeu seu direto olhar como uma mão gelada no coração. Talcomo Thomas disse, não era só o cabelo branco o que a convertia numa peçade colecionador, mas também seus olhos com toques violetas. Foi difícilrecuperar-se perante a sensação que tomou conta dele com a magnitude de

uma onda de dez metros de altura, que foi junto com seus anteriorespensamentos a respeito. Era incapaz de sentir remorsos; deixou os escrúpulospara trás há muitos anos ... Mas olhar seu rosto o fez sentir-se tão miserávelque considerou uma loucura ainda maior que raptá-la.

― Já estamos casados? ― murmurou fracamente.― Não.Desta vez, não houve grande sarcasmo em seu tom. A consciência, essa

traiçoeira que habitava em algum lugar escondido de sua cabeça, assobiou emseu ouvido outra possível resposta: «está a tempo de se arrepender, Ariadna;dou-te a oportunidade de escolher, agora, embora pareça que é tarde».Entretanto, a ideia foi aniquilada logo que apareceu. Continuava a ser muitoegoísta para agradar a alguém que não fosse a si mesmo. Um duende de pó dearroz não trocaria isso, por muito extraordinário que fossem os seus olhos.Afinal de contas, o impressionante nunca poderia pertencer à mediocridade,por muito que esta se esforçasse por reluzir como o ouro.

Não... O mel não estava feito para a boca do asno.― Que acabe já este inferno... ― suspirou ela, voltando a fechar os olhos.Sebastian preferiu rir, orgulhoso de não a ter matado em seu descuido e

francamente divertido por sua veemência.― OH, pequena sereia... ― Acariciou sua bochecha com a gema do polegar,

retirando-a quase imediatamente ― Lamento ter de dizer, mas este inferno veiopara ficar.

6

Mairin e o pai moravam no sótão do edifício, como praticamente qualquermembro de uma localidade humilde. Umas escadas que ameaçavam cair sobresuas cabeças davam ao piso superior, na qual pai e filha deviam ajeitar-se paradormir, alimentar-se e fazer suas necessidades. A Sebastian não teriaimportado dormir ali se fosse ele quem o necessitasse ― na verdade,necessitava-o; ― embora vivesse entre luxos, a modéstia esteve muito presenteem sua vida durante décadas. Entretanto, deixar Ariadna enrolada numbeliche lhe pareceu como se estivesse a abandonar um diamante numa pocilga.É obvio, nem ela era uma gema preciosa, nem o lugar era tão desgraçado parareceber o nome pocilga, mas a jovem reluzia naquela sala como ouro entrecarvão.

Depois, Sebastian teve que abandonar a estadia para que o médico fizesseo exame. Dito doutor era um homem desproporcionalmente alto, desajeitado eque censurava seu interlocutor atrás de um pesado monóculo, e precisamentepor apresentar esse aspecto, pareceu-lhe de confiança.

Mairin permaneceu ao lado de Ariadna durante o exame e Sebastianmatou as horas que seguiram ao sono profundo da moça, bebendo com oferreiro. Conforme parecia, Peterson tinha uma resistência similar a ele emrelação ao álcool, o que longe de significar uma ponte de união, fê-los terminarprovocando-se por ver quem era capaz de embebedar-se mais.

A jovem apareceu a determinada altura para anunciar que Ariadna seencontrava bem; só precisava descansar algumas horas. Sebastian insistiu queera necessário formalizar o enlace de uma vez por todas, e a moça, queclaramente não entendia corretamente qual a sua posição ali, atreveu-se agrunhir-lhe na cara e assegurar que utilizaria as próprias mãos para retê-lo emcaso de obrigá-la. Assim, Sebastian teve de sentar-se e esperar no banquinho.

― Deve estar loucamente apaixonado se não pode esperar nem umsegundo mais para casar-se com ela ― assinalou Peterson, lançando-lhe um

olhar cúmplice ― Todos nós quando escolhemos ficamos assim, acredite emmim. Assim que vi minha Gretha, quis que o sacerdote nos benzesse para... Jásabe.

Sebastian exalou, forçando uma lastimosa gargalhada.― OH, sim... estou tão apaixonado por ela que me custa respirar ―

respondeu, apoiando a cabeça na parede ― Às vezes surpreende-me quantoamor cabe no meu coração.

― Não é para menos, senhor ― acrescentou Peterson, aparentementeincapaz de captar uma ironia ― A moça é bonita, e você não vai acreditar, maseu não sou daqueles que goste sem carne. Não, não, não... Para mim, umamulher tem que ter onde agarrar, tanto à frente como por detrás. Mas olhe quesua parente é bem chamativa. Em outros tempos, a teriam rifado.

Sebastian o ignorou. Parecia-lhe estúpido continuar conversando sobrealgo que não entendia, como nesse caso, o encanto visual da moça... E alémdisso, aquele fanfarrão estava recordando-lhe, repetindo em cada frase, comouma cantilena, esse irritante «você não vai acreditar». Que poderia esse tiposaber sobre o que acreditava ou deixava de acreditar... Ele já não acreditava emnada.

Nas seis horas que passou ali, Mairin só se deixou ver três vezes. Uma,para preparar um banho quente: rechaçou energicamente a ajuda de Sebastianquando se ofereceu para ajudá-la para subir as chaleiras. Outra, para pegaruma concha de sopa fumegante que acabara de cozinhar para servir à senhora,a qual Sebastian não pôde provar pelo excesso de álcool que levava no corpo. Aúltima só baixou para ir, conforme dizia, pedir emprestado um vestido a umaamiga sua do povoado. Parecia decidida a fazer das bodas um autênticoacontecimento, ou ao menos, algo agradável para Ariadna... Um fato queSebastian achava divertido. Porque basicamente com meia garrafa de uísqueno corpo tudo lhe parecia divertido.

― Uma mulher com força de vontade, essa sua filha...― Você pensa que não sei ― respondeu o ferreiro, acentuando seu mau

humor. Aquela frase se converteria em sua maldição ― Por isso preciso tratá-lacom mão pesada, para que não saia com a sua como a cigana de sua mãe. Aotentar fugir com o padeiro, ao cruzar o rio, caiu e abriu a cabeça. Não quero omesmo para ela, e parece que vai pelo mesmo caminho, querendo ser mais doque é ... você não vai acreditar, mas só me ajuda na ferraria quando casoamantes. Mairin diz que será a melhor doutora da região... Já! Como se isso

fosse possível.Sebastian assentiu muito devagar. Deu uma olhada ao interior de seu

copo, notando a cabeça mais pesada do que o habitual, e não porque seuspensamentos fossem dos que produzem peso na consciência.

― Quanto quer por ela? ― perguntou. Peterson o olhou com uma ruga natesta ― Pela moça. Quanto, em troca de deixar que a leve? Não me ponha essacara, que não vou tomá-la para que me esquente a cama. Procurarei nãoprocurar uma amante até que passe algumas semanas como casado. «Você nãovai acreditar», mas respeito a minha mulher ― ironizou, repetindo sua frase ―.por enquanto.

Peterson não se mostrou mortificado, mas sim assombrado ao descobrirque alguém poderia se interessar por seu maior fardo.

― Para que a quer?― Será que estou me acostumando a comprar mulheres, e quero chegar à

quantidade de três para lhes ensinar esgrima. Será que sua filha seráPorthos...? Só de pensar no quanto brigariam no Jackson’s por um pouco deação feminina desse tipo... ― Rio ao ver a expressão do homem ― Tranquilo,companheiro. Só necessito que alguém cuide da minha esposa durante aviagem de volta, já que é provável que eu a faça dormindo como um tronco. Adevolverei numa semana, vivinha e abanando o rabo.

Uns passos interromperam a conversa. Mairin baixou precipitadamente,encolhida para que sua cabeça não se chocasse com o teto. Observou os doishomens com o cenho franzido, desaprovando seu desalinho, e parou umsegundo para suspirar. Não parecia sozinha: segurava a mão pálida e diminutade Ariadna, que vinha vestida e preparado como devia... no caso de tratar-se deuma noiva do povoado, nervosa pela chegada do camponês, seu futuro marido.

Face à simplicidade do vestido branco que vestia, a grande habilidade como pente que Mairin tinha demonstrado possuir dava a Ariadna o ar eleganteque necessitava. É obvio, também por seu porte e seu caminhar, que emboradébil, pelo menos já não era doentio.

Um ato tão simples como focar os olhos, demorou minutos a Sebastian,que assim que reconheceu o robusto algodão do vestido e o urze branco queadornava o cabelo de Ariadna, sentiu-se muito sujo para compartilharhabitação com ela. É obvio, não era nada novo; Sebastian considerava-se a simesmo um infame ser humano, mas agora esse lixo interior aflorava àsuperfície, recordando-o que tinha um aspeto ridículo.

― Bom! ― O ferreiro bateu nas pernas ― Vejo que já estamos preparadospara o “cascamento”! Que digo... casamento! ― corrigiu com um soluço.Venham por aqui, por favor... Temos que fazer o juramento frente ao tronco...Ou seja, a bigorna!

Sebastian obedeceu sem afastar o olhar curioso de Ariadna. Devia serporque estava bêbado, ou porque fazia sete terríveis dias que não se deitavacom uma mulher, mas a achou bela. Não em extremo, e muito menosirresistível, mas poderia servir para lhe fazer um par de filhos e mais adiantedesentender-se.

― O anel, senhor. Deve colocá-lo no dedo da noiva.Deslocou o olhar às suas calças a contragosto. Colocou uma mão no

bolso, e ficou remexendo até encontrar o frio metal.― Nem sequer é de prata ― murmurou Mairin contrariada.É obvio que não era de prata. Já tinha gasto muito dinheiro na compra de

mulheres e subornos para ainda por cima investir numa joia irrelevante, queesse duende de pó de arroz nem se incomodaria em apreciar.

Podia lhe conceder isso, ao menos. Para ela era indiferente que gastassetrês soberanos ou um penique em presentes, o que sempre beneficiava suabolsa.

― Não há anel para ele? ― perguntou ela de repente.― Que gentileza, ― exclamou ele ― querendo um presente para mim

também.― Não é por isso. Supõe-se que levarei o anel no dedo como amostra de

que sou posse de meu marido. ― voltou-se para olhar Sebastian, aindasonolenta ― Você não será minha posse do mesmo modo, senhor Talbot?

Sebastian achou curiosa aquela sedutora pergunta, ao mesmo tempo queirrisória. Já deveria saber que os homens eram os irrevogáveis domadores, eela, nesse caso, um animalzinho ao qual ele deveria ensinar maneiras. Gostavaque assim fosse... Embora tenha desfrutado ao imaginar Ariadna, com roupasedutora, como ama e senhora de sua destruição. Não importava que não oatraísse; uma mulher era uma mulher, e suas fantasias bem valiam com todas.

― Não. E embora pudesse me converter num deles, senhorita Swift,continuaria a ser patrimônio da humanidade. Verá... ― inclinou-se sobre seuouvido, o que a desconcertou ― Temo a fúria feminina, e, sem dúvida, romperiao coração de todas as mulheres da Inglaterra se me entregasse a uma só, o quepoderia provocá-las. Não me importaria se caísse sobre outro tal fúria, mas

tratando-se de mim...― Pelo menos não deverei me preocupar em ser uma viúva jovem ―

decretou, aceitando que Sebastian deslizasse o anel por seu dedo com umsorriso divertido.

― Magnífico! Mairin, a fita... Traga a fita e envolva seus pulsos com ela.A jovem fez o que pediam a contragosto. Enrolou o tecido em torno dos

dois pulsos que lhe ofereciam, o que Sebastian decidiu juntar posando a palmasobre sua mão. Fê-lo com delicadeza, como se sua pele fosse feita de pó e nãoquisesse derramar uma só bolinha. Mairin os atou com a fita e se afastou, comos olhos castanhos postos sobre a união de seus dedos. Não parecia encantadapela eleição de noivo de Ariadna, e, ante isso, Sebastian não podia fazer nada anão ser lhe dar razão.

― Repita comigo, senhor: eu tomo como esposa, para te amar, te honrar ete respeitar...

― Sim, bom. A tomo como esposa ― cortou. Olhou Ariadna, que estudavasua expressão com olhos interessados, e o repetiu com a mesma brutalidade ―Tomo como esposa. E tudo o que suporta.

― Agora você, senhorita. Eu tomo como marido, para te amar, te honrar,te obedecer e te respeitar...

Ariadna piscou, confusa, e Sebastian não soube em que momento tinhaobtido o privilégio de adivinhar o que cruzava seu pensamento, posto quesoube em seguida quais eram seus reparos. Ou isso pensou, já que esteveseguro de que o problema teria sido a penúltima parte. Ficou de pedra paraouvi-la dizer, com voz suave:

― Posso honrá-lo, obedecer-lhe e respeitá-lo, mas não o vou amar.― Tenha cuidado, querida, não será uma grande perda para mim. Mas

pelo sim pelo não, repete-o; é apenas uma cantilena para terminarmos logocom esta tortura.

― Não acredito que seja correto mentir quando os olhos de Deus nosobservam.

― Deus é cego, por isso sempre se equivoca castigando os bons ― soltoucom impaciência ― E agora, poderia fazer o favor de repetir a frase?

Ariadna suspirou.― Tomo-o como marido ― anunciou com suavidade. Sebastian quis sorrir

vitorioso, mas só pôde engolir em seco ― Para o respeitar e obedecer-lhe.― Agora já não me honrará sequer? ― perguntou ele, sarcástico ― Tudo o

que não economizei na cerimónia, está-me a ser retirado durante os votos.― É que não entendo tudo que poderia suportar para o honrar. Se o bom

ferreiro fosse tão amável de me explicar...― Não há tempo para isso ― cortou Sebastian ― Aceito-te como noiva de

segunda e com descontos.Mairin cobriu a boca para não soltar uma gargalhada.― Então, e se tudo está correto, eu declaro a este homem e a esta mulher,

marido e ... mulher. Que Deus e minha filha sejam testemunhas de dita união.Amém!

― Amém! ― exclamou Sebastian visivelmente aliviado, quase benzido, porter chegado ao final ― Tire isto já, por favor.

― OH, não, não! ― interrompeu Mairin, agarrando-os pelos pulsos ― Tirara fita antes de consumar o matrimônio traz má sorte.

― Pior sorte terei eu não poder usar a mão direita durante os próximoscem anos ― ironizou Sebastian. Ante a expressão confusa da moça,acrescentou: ― Minha estimada esposa decidiu que dormir comigo seria umcastigo insuportável, e como a única maneira de fazer que trocasse de opiniãoseria fazendo-a dormir comigo, temo que estamos numa verdadeiraencruzilhada. Em ponto morto, se não.

― Senhor Talbot ― falou a noiva ―. espero que não fale de as suasintimidades e … as minhas em público com o mesmo desafogo que demonstraagora mesmo.

― As suas intimidades e as minhas... note-se com que sutileza recalcanossa separação. E não se preocupe; Mairin é a exceção porque será suaacompanhante durante a viagem, enquanto eu tento tirar um cochilo.

― Isso seria desnecessário. Não pretendo fugir, senhor Talbot.― A estas alturas acredito que deveria me chamar por meu nome.Mairin se aproximou para reclamar.― Que quer dizer com serei sua acompanhante? Contratou-me como

donzela?― Deus me livre de me encarregar de tarefas que concernem a minha

esposa... Limitei-me a pagar a seu pai por uma viagem no qual você seassegure de que a senhora coma e durma. Não queremos que fique às portasda morte de novo, verdade...?

― Porquê? Agora deseja que as cruzemos? ― propôs Ariadna sutilmente.Sebastian deu a volta, intrigado pela resposta, e por pouco não sai de seu

assombro quando se precaveu de que não havia sarcasmo nem interesse realpela resposta.

― Terá que me pagar por meus serviços, senhor Talbot ― disse Mairin,pondo os braços nos quadris ― E não aceitarei menos que três coroas.

Sebastian resmungou uma blasfêmia que fez as mulheres retrocederem.― Quanto mais pensa arranhar em meus bolsos, senhorita? ― perguntou a

Ariadna, sem ânimo para soar encantador ― Levo quase mais dinheiro gastoem ti que em meus navios, e até onde entendo, tu não me vais levar a nenhumlado.

― Dizem que as coisas têm o valor que alguém está disposto a pagar.― Tem de saber, pois, que estou te dando mais valor do que realmente tem

― comentou tranquilamente. Tirou do bolso as três coroas que pedia a moça, eas entregou com um grunhido ― Tenta não fazer que me arrependa de terganho o ódio generalizado dos Swift por sua mão.

― Isso não foi muito cavalheiresco, senhor Talbot.― Talvez seja porque não sou um cavalheiro, senhora Talbot.Ariadna se deu por satisfeita com sua resposta. Seguindo as indicações de

Mairin, que deveria lhe tirar o vestido emprestado para prepará-la para aviagem, desapareceu de novo escada acima. Sebastian reteve esse pensamentosem saber como sentir-se. A esposa de um empresário podre de rico casou-secom o vestido de noiva de uma mulher do povoado, numa ferraria, e com umhomem ao qual provavelmente detestava. Era...

«Glorioso.»― Ouvi bem? ― perguntou o ferreiro, aproximando-se dele sem saber onde

estava seu eixo de gravidade ― Não vai passar a noite com sua esposa...? ―Sebastian se voltou para olhá-lo com uma sobrancelha elevada. Esperasse ounão seu veredicto, teve-o ― Senhor, não pode permitir isso somente porque elao exija. Mal se casaram e já lhe concede todos seus caprichos... Como acreditaque acabará nos próximos anos? O dirigirá como a uma marionete. E vocêacredita que há alguma mulher que não resista à primeira noite? Todas tentamescapulir, por isso terá que ser firme.

Sebastian tomou com humor que um pseudo homem tentasse lhe ensinara empregar a força.

― Suspeito que minha esposa não é muito propensa às discussões, masnão quero pô-la a prova no dia mais feliz de sua vida ― ironizou ― De todos osmodos, não é um pouco ridículo forçar uma mulher podendo encontrar outra

disposta? Para não mencionar que estou tão cansado que nem me passou pelacabeça lamentar minha sorte.

― Mas, senhor, o matrimônio se não pode considerar oficial se não seconsumar...

― Sou plenamente consciente disso. A pergunta é, Peterson... Quem se vaiatrever a pôr em dúvidas de julgamento meu talento para desvirginarjovenzinhas, tendo uma ampla trajetória as minhas costas? Duvido que alguémse apresente em minha casa exigindo fazer um reconhecimento médico.

Peterson resmungou algo baixinho enquanto fazia um novelo com as fitas,jogando-as num balde próximo.

― Não sinta pena por mim, homem. Tal como você, as loiras sem carnenão me fazem especial graça.

― Nada pode fazer mais graça a um homem que uma mulher impossível,senhor ― anunciou sabiamente ― Você acredita que me casei com uma ciganaporque queria ganhar algumas maldições no processo?

«Se voltar a escutar mais uma vez essa ladainha, arrancarei o cabelo.»― Bom... tendo em conta que já não é uma mulher impossível, posto que é

minha esposa, não acredito que corra o risco de morrer por seus desejos.― Vai se arrepender ― repetia uma e outra vez ― Às mulheres ou se ensina

logo quem manda ou se rebelam e...― Peterson ― interrompeu, não tão molesto por sua insistência como por

não estar dormindo ― Ariadna sabe perfeitamente quem manda, e para minhadesgraça, você não é o sequestrador que vai receber uma surra assim queretorne a Londres. Dobre a surra, se eu seguir seu conselho sobre violá-la. ―Deu-lhe uma tapinha nas costas ― Apesar de tudo, obrigado pela ajuda. Digaàs moças que esperarei na carruagem.

Sebastian saiu antes de que continuasse com uma história que nãogostaria de escutar. Reuniu-se com o cocheiro à saída do botequim, tãocansado e relativamente bêbado que optou por permanecer em silêncio.Protegeu-se do frio no interior, e trabalhou em afastá-lo esfregando as pernas,os braços e os ombros doloridos pela má postura. Suspirou profundamente eolhou melancolicamente pelo guichê, desejando como nunca que Ariadnaaparecesse de uma vez.

Imaginava que as bodas não tinham sido como ela sonhava, embora eletambém não tivesse realizado as suas fantasias durante aquele amanhecer. Defacto, não podia conceber um matrimônio tão péssimo como o que augurava

sua opinião sobre a noiva. Ariadna tinha-lhe tirado mais de cinco mil libras dobolso, o que era surpreendente, dado o muito que lhe fascinava conter seudinheiro sob sete chaves..., e não só isso, mas também arrebatou-lhe algo quenunca pensou que lhe faltaria: o desejo de afundar-se no corpo de umamulher.

Embora em sua defesa diria que pelo menos acabava de lhe devolver osono.

7

― Vou te matar!Ariadna teve de tapar os ouvidos com as mãos para diminuir a potência do

grito de Megara, que como já vinha suspeitando, não tinha aceitado bem suafuga. Entretanto, os gritos não estavam dirigidos a ela, mas sim a Sebastian: osenhor Talbot teve de proteger seu corpo com os próprios braços para que ospunhos de Megara não cumprissem com seu objetivo, que não exagerava aodeclarar-se como instinto homicida.

― Como se atreveu? ― uivou Penélope, avançando para ele com aragressivo ― Ficou louco?

― Por Deus, cavalheiros... ― foi toda a defesa de seu marido, além deelevar os braços em sinal de rendição ―. Contenham as vossas esposas, porfavor?

― Conter a minha mulher requereria a intervenção de seis homens comoeu; seria inútil tentá-lo ― anunciou lorde Ashton, o marido de Penny ― Paranão acrescentar que estou com elas nisto. O que fez é imperdoável.

Penélope rompeu a chorar. Rodeou Sebastian, dando-lhe um golpe noombro, e ficou de joelhos diante de Ariadna. Os tremores que açoitavam seucorpo só podiam ser sinal de arrependimento, uma emoção que não entendiaabsolutamente. Estava segura de que suas irmãs estariam preocupadas, masnão que reagiriam de um modo tão extremista, indo com seus maridos embusca de vingança.

― Fez-te algum mal? Ariadna, me peça que lhe dê uma lição e o farei.Ela negou com a cabeça em seguida, saturada pela atenção que estava

recebendo. Tantos sentimentos se aglomeravam no salão de sua residência emLondres que mal podia respirar. Sua residência por pouco tempo, recordou. Seestava ali, não era porque Sebastian quisesse que saudasse seus familiares, – emuito menos porque pretendesse saudá-los ele mesmo – mas sim porque tinhaque recolher todos os seus pertences e os fazer chegar ao que seria seu novo

lar.― O senhor Talbot tratou-me bem. Foi muito amável.― É isso possível? ― inquiriu o conde de Standish, elevando uma

sobrancelha provocadora. Ariadna teve que o olhar com lamentávelcumplicidade, sabendo que essa, mais que uma mentira piedosa, era o germeda falsidade.

― Não sofri nenhum dano, nem tenho feito nada que não queria fazer. Écerto que foi o senhor Talbot quem subiu até minha janela, mas eu aceiteipartir com ele... por fim ― particularizou.

― Por fim? Por acaso forçou-te?Ariadna teve que fazer um grande esforço para reconhecer essa voz

melodiosa e pausada. Resultava-lhe confuso localizar-se no espaço entre tantaspessoas de uma só vez, para não dizer exaustivo. Reconhecia Megara com umsimples olhar; sua beleza e a pinta sobre seu lábio já eram qualidadeschamativas de sobra para que não pudesse esquecê-la. Sebastian era aindamais simples para decifrar. Mas aos outros custava-lhe. Sabia quem era suairmã Penélope graças à inércia de seus gestos, sempre ou crispados ouveementes. Tristane Ashton, seu marido, tinha uma voz calma e preciosa que atransportava ao verão. Dorian Blaydes apresentava um forte aroma detormenta marinha, e chuva. E aquela mulher, a que não recordava ter vistoantes, devia ser sua esposa.

― Ari! ― chiou com alegria alguém a quem conhecia muito bem. Ariadnalocalizou Briseida a descer as escadas apressadamente, enredada em suaspróprias saias. Era impossível não a reconhecer, tendo a emoção gravada davida em cada canto da alma. Briseida deixava um rastro de alegria por ondefosse, e era tão envolvente como a névoa ― Por fim retornaste! Estava tãopreocupada...! ― lançou-se a seus braços e a estreitou com força.

Briseida era a única pessoa no mundo que a fazia sentir-se bem com seucontato. Continuava sem o procurar, e preferiria que o reservasse, mas não lheincomodava que a abraçasse como costumava fazer. Briseida era uma moçaexcecionalmente amorosa: escapava-lhe a ilusão por cada poro, pelos olhos,através do sorriso, com a força de seus braços... E isso fascinava Ariadna.

― Como se atreve a sequestrar minha irmã? ― espetou, voltando-se paraSebastian. Foi divertido ver como uma moça de tão pequena estaturaenfrentava um homem enorme, e não só isso, mas sim saía vitoriosa,obrigando-o a retroceder ― Por acaso não sabe que as Swift têm muito boa

pontaria...? O que queria fazer com Ariadna?― Casou-se com ela ― suspirou Megara, tomando a liberdade de sentar-se

na poltrona, exausta. ― Nem sequer sei por que me surpreendo. Soa como algoque se atreveria a fazer sem importar as consequências legais, ou o efeito detoda uma família raivosa contra você. O que não sei é por que desse modo, epor que às escondidas... ― Ela mesma se calou ao dar com a solução. OlhouSebastian com uma expressão de pura deceção ― Você e Thomas organizaramem conjunto, não foi? Ele te pôs a par da proposta do duque, fazendo-o reagirdiretamente como um maldito criminoso.

― Não é muito gentil de sua parte se referir a meu matrimônio como umcrime, senhora Doyle ― comentou Sebastian, que não parecia intimidado pelostrês pares de olhos femininos que o censuravam ― Mas sim, assim foi. Comovê, a senhora Talbot se encontra em perfeitas condições. Não se assustem quenão mostre uma alegria desmedida... Já a conhecem o suficiente para saberque isso é impossível. Agora, por que não vão preparar suas coisas? Eugostaria de estar em minha própria casa em quinze minutos. Nossa casa ―corrigiu, mais para recordar aos presentes que Ariadna era sua, que pelainclusão de sua esposa nas suas propriedades.

Ariadna assentiu, obediente, e depois de saudar a todos que se reuniramali para iniciar sua busca, subiu acompanhada por Mairin. Ao chegar aoprimeiro patamar, fez uma pausa para ouvir o que diziam, como tinha seacostumado a fazer por causa da Briseida. Observou que o seu marido e assuas irmãs esperavam que o resto partisse da habitação para iniciar o queseria uma conversa séria.

― Pensei que tomaria pior, Meg.― Tomar as coisas pior não te produziria nenhum tipo de remorsos, assim

estou reservando minha fúria para alguém que a valorize ― vaiou levantou-se ese aproximou lentamente ― Mas tenha isto em mente. Se agora mesmo nãoestou sobre ti estrangulando-o, é porque ainda há a possibilidade de declararnulo seu matrimônio.

Ariadna apreciou inclusive ao longe a expressão sarcástica de seu marido.― Sim? E como é isso?― Sabe tão bem como eu, cão desgraçado. Acredita que sou idiota? A

tranquilidade de Ariadna ao assegurar que não a forçaste a nada, além de terlivrado de eu tenha aberto novamente essa cicatriz que tem, só pode dever-se auma coisa. Não consumastes o matrimônio ― deduziu em voz baixa ― E

conforme entendo, os trâmites de umas bodas podem ser anulados se chegar adar-se estas circunstâncias.

A gargalhada de Sebastian subiu pelas escadas como uma aranha feridanuma pata. Embora quase tenha controlado os nervos, escapou-lhe uma notade preocupação no final.

― E como está tão segura de que não cumpri com meu dever? Querida,parece que esqueceste com quem está falando. Não preciso forçar nenhumamulher para que deseje passar a noite comigo.

― O problema é que Ariadna não é como as mulheres com as quais estáacostumado a deitar-se, ou melhor dizendo, com as quais «estava acostumadoa» deitar-se, ― interrompeu Penélope ― já que não penso permitir que suje onome e a honra de minha irmã com suas escapadelas.

― Lady Ashton... ― interrompeu, divertido ― você fica especialmenteencantadora quando acredita que aceitarei suas ordens. Posso assegurar-lheque Ariadna é minha mulher em todos os sentidos, e duvido que tenha tãopouca solidariedade para querer submeter a sua doce irmã a um exame paraassegurar-se.

― Seu marido é um autêntico descarado ― insultou a jovem Mairin,bufando às suas costas ― Como tem a desfaçatez de falar assim com seusfamiliares, quando o que fez é imperdoável!

Ariadna deu a volta, deixando a conversa pela metade, e convidou adonzela a continuar subindo as escadas com ela. Mas agora, avançava comlentidão, meditando sobre o que se discutia a suas costas. Sabia que Megaraestava preocupada com seu bem-estar, mas uma vez assegurado que seriafeliz, ― embora o duvidasse ― era arriscar-se muito ameaçá-la cumprir aconsumação. Pensou que era afortunada por ter-se casado com um homemque não se arredava com nada e com ninguém, e que tampouco estavainteressado nela.

― Dá-me a impressão de que nada é imperdoável para o senhor Talbot. ―Disse por fim ― Ou possivelmente simplesmente não lhe importam ossentimentos alheios.

― E isso não lhe parece aberrante?Ariadna lançou um olhar cúmplice a Mairin.― Prometi respeitá-lo, recorda? Se continuar com os descontos, não ficará

nenhuma promessa nupcial.― De acordo, senhorita. ― Rio a jovem ― Nada de insultos ao senhor.

Assim que Ariadna chegou à sua habitação, que só tinha permanecidofechada durante pouco mais de uma semana, reconheceu seu próprio aroma.Ela mesma, temendo não ter um aroma próprio, encarregou-se de criar umperfume que a distinguisse de outros. Desde menina passava tanto tempoentre as plantas, que sua mãe, uma mulher intransigente e convencida de queo único que as Swift poderiam contribuir poe seu sobrenome seria um bommarido, obrigou-a procurar um outro hobby mais apropriado ou tirar proveitode dita paixão. Assim, Ariadna trabalhou incansavelmente para criarfragrâncias femininas e nunca se preocupou em ensinar ao mundo, e foi dandode presente a suas irmãs para assim poder distingui-las quando lhe falhasse aintuição.

O primeiro que meteu no baú foram os frascos com as distintas essências,e depois se dirigiu à gaveta onde tinha deixado as cartas. Enquanto, iaassinalando a Mairin onde poderia encontrar o necessário para sobreviver àvida de casada. Os vestidos, nas primeiras gavetas. A roupa íntima, ao fundoda última. Os livros de botânica, escondidos sob os xales e diferentes objetosde inverno... Só tinha um par de bolsas, mas não gostava de usá-las, já quetinha acabado copiando o costume de Briseida de guardar tudo entre as dobrasdas anáguas, no decote ou nos pequenos bolsos interiores que ela mesmacosturou para facilitar no desonroso trabalho da cleptomania.

Uma vez preparada, apresentou-se no salão, sentindo-se alheia à situaçãoda qual era protagonista. Os acontecimentos pareciam-lhe tão extravagantes –o fato de estar casada, de ter que abandonar sua casa, sua família – que malera consciente que estava a ponto de abandonar uma longa e bonita etapa desua vida.

A contragosto, as duas irmãs mais velhas a abraçaram à vez, recordandoem voz baixa que só teria que lhes fazer chegar uma mensagem para que seplantassem lá armadas até aos dentes. Quanto a Briseida, não se mostrou nemligeiramente entristecida por sua partida, posto que para ela não era umadespedida e sim uma aventura que duraria muito pouco.

Ariadna expressou seu agradecimento, embora no fundo só desejava quedeixassem de mimá-la e entrar na carruagem, onde poderia passar algunsminutos em silêncio, meditando a respeito do que faria com as cartas queescondia entre os seus pertences.

― Desfrute da vida de casal, senhor Talbot ― despediu-se Penélope,sorrindo com todo esse veneno que reservava para ocasiões especiais. ― E

aceite este conselho: o amor é uma planta que, se não se regar, murcha... Masque se se cuidar devidamente, pode dar frutos muito doces.

― Embora que no seu caso, pode que os frutos sejam oferecidos pelaserpente do Éden ― concluiu Megara. Briseida aproximou-se para abrir aporta, separando-se de qualquer jeito o ancião que esperava para cumprir comseu dever.

Sebastian fez uma reverência, desfrutando de sua vitória. Deveria saber –tal como Ariadna soube antes de poder evitá-lo – que as Swift não o deixariampartir sem executar uma pequena vingança; assim que Sebastian lhes deu ascostas para encaminhar-se à saída, Briseida colocou seu tornozelo à traição,fazendo-o tropeçar e quase cair de bruços. Para cúmulo, arrastando ao velhomordomo consigo.

Ariadna lançou um olhar de desaprovação a suas irmãs, que seencontravam agarradas com sorrisos maliciosos, só lhe recordaram o quantoestava longe de parecer-se com elas.

A casa de Sebastian Talbot era tal como imaginava, e não só isso: Ariadnalogo descobriu, fascinada, que não existia um só canto no qual não imperasseseu exuberante perfume natural. Aquilo inexplicavelmente a fez sentir-secômoda, possivelmente porque a mescla de essências do Sebastian davamlugar a nada mais e nada menos que a simplicidade da mãe natureza. Nãoobstante, não era precisamente a simplicidade o que havia naquela mansão.

No bairro de St. James, e na rua de mesmo nome, podia-se tantoencontrar-se empresários em início de atividade, como cruzar com um conderecém-saído de casa. Sebastian Talbot representava as duas caras da moeda,tendo adquirido uma casa estreita, encostada a uma de igual aspecto, como sequisesse parecer-se com seus honoráveis vizinhos. Notava-se que tinha feitoalgumas modificações na fachada, algo em que Ariadna não prestou especialatenção, já que ficou absurdamente fascinada por uma escultura querepresentava a figura de uma bela mulher, feita com mármore procedente dosAlpes Apuanos. Vestida como uma Patrícia romana, e oferecendo suas mãos amodo de terrina, apresentava-se aos observadores como uma fonte: era de seusdedos que emanava a água. Uma peça de arte sem igual, que a deslumbrou detal modo que não pôde perguntar a respeito.

O interior de seu novo lar, tampouco tinha nada que invejar a esculturadesconhecida dos jardins do alpendre. Conforme soube graças ao mordomo,que foi mostrando as áreas uma a uma, enquanto Sebastian tirava a imundície

de cima, a mansão contava com habitações de sobra para albergar três famíliascomo a sua: a fachada enganava, posto que Sebastian tinha comprado tambémas duas casas vizinhas, e agora acedia-se a elas através de uns corredoresacrescentados ao edifício original. Ariadna tinha tantas habitações paraescolher que acabou pedindo a Mairin que fosse ela quem desse a ordem dedeixar seus pertences num ou noutro.

A sua escolha não deixou nada a desejar. Chegou a um magnífico quartoonde uma cama imperial com o dobro de altura e coberta por um grosso dosselescarlate a incitava a sonhar antes de fechar os olhos. Era um lugar cheio deluz, repleto de janelas que davam às escassas franjas de erva que podiamcrescer com tão pouco espaço nas laterais da casa.

Ariadna continuava muito cansada pela viagem para ficar a inspecionar,assim aceitou a oferta de Mairin sobre dar-lhe um bom banho e, de seguido,protegê-la sob os lençóis de seu marido... Palavras da jovem, é obvio.

Não obstante, horas mais tarde, e estando pronta e perfumada da cabeçaaos pés, Sebastian se plantou frente a ela com não muito mais que uma camisade seda. A luz, que entrava em torrentes através das cortinas, iluminou o finotecido até lhe dar o aspecto de ser um raio de arco-íris. Sua suavidadesubjugou Ariadna, que teria se aproximado para acariciá-la se não tivessedescoberto a tempo que Sebastian «a tinha vestida».

Ariadna quase não o reconheceu. Não o teria feito se o barbeado nãotivesse mostrado sua cicatriz em todo seu grotesco esplendor, nem se os seusolhos não brilhassem como o fio de águas calmas. Era Sebastian Talbot, nãohavia dúvida... Um Sebastian melhorado, polido, ainda húmido. Ariadna nãopodia dizer que era belo, mas sim impactante, robusto e varonil: sabia o que ascoisas bonitas lhe produziam, e as curiosas cócegas que correram entre suascoxas ao descobrir que uns quantos cachos negros apareciam entre o decote dabata, não tinham nada que ver com as sensações conhecidas.

Sebastian mandou Mairin sair da habitação com um só olhar. Ao dirigir-sea Ariadna, adotou uma expressão um pouco mais risonha.

― Encontraste tudo de teu gosto?Ariadna inspirou profundamente, embriagando-se com o irresistível aroma

que o envolvia como uma velha magia cativante. Todos os detalhes do homemforam até ela, formando-se como as peças de um quebra-cabeças nodesalentador vazio de sua mente: suaves ondas de cabelo escuro; uma delasacariciando a cartilagem de sua orelha, e uma mecha, negando-se ao cativeiro,

deslizando sigilosamente pelo canto de sua testa. Não o tinha reconhecidocomo um homem tão moreno antes, mas ali estava sua pele dourada, curtidasob os sóis egípcios que não vira ainda. A cor magenta da bata, a escuridão desua gloriosa juba, a sombra da barba da qual jamais poderia escapar, nemsequer barbeando-se duas vezes ao dia... E seus olhos. Seus olhos celestes,gemas preciosas roubadas do véu protetor de segredos de uma bailarinaoriental.

Não era belo... Mas que formoso era, a seu modo. A seu modo, natural. Océu estava em seu olhar, o sol refletido em sua pele, o carvão e a terraesculpida em cada ponto que formava sua barba, as ondas do mar no cabelo.Era a perfeição da Terra num homem.

― Esta noite virei visitar-te ― anunciou.Quatro simples palavras desfizeram o feitiço no qual estava perto de

acostumar-se. O desassossego se instalou em seu estômago, deixando-apetrificada.

― O quê?― Virei ver-te... ― Repetiu, avançando. Ariadna percebeu em seus passos

uma promessa latente, um desejo de reivindicação: rebeldia pura... Perigo,quando parou diante dela e com um só dedo de suas grandes mãos, acariciou-lhe o contorno do rosto, fazendo uma trilha de fogo ― E saldaremos nossascontas pendentes.

― Mas, senhor Talbot... Eu não lhe prometi tal coisa, e você assegurou querespeitaria...

― E te respeito, meu pequeno duendezinho. O problema é queconcordamos em nos casar, você e eu... fizemos uma promessa. ― recordou-lhe― E o matrimônio inclui obrigatoriamente esse tipo de união.

― Não é necessário. Ninguém tem por que inteirar-se... Você disse. Quempoderá questionar a consumação?

― Disse? Vá, vá, é rápida para escutar conversas alheias. ― Sorriu ― Etemo que todos colocarão em dúvida se nunca chegarem a ver-te grávida. Serásó uma noite... Não é negociável, é obvio ― arrematou, apoiando o polegar emseu queixo. Ariadna quis afastar a cabeça, ofendida por sua falta de palavra,mas seus olhos a conectaram a algo muito mais capitalista que a vontade ―Honre seus votos e obedeça.

― Honre você os seus, senhor Talbot. E honre também sua palavra dehomem. Fez-me uma promessa.

O aviso de sua irmã Meg sobre o pouco que alguém devia confiar emTalbot a assaltou, retirando-lhe o equilíbrio de suas pobres pernas. Ele deve terconfundido aquela debilidade com um convite, porque se aproximou dela eposou os lábios no início da mandíbula. Um ponto simples, não precisamenteirresistível, que por desgraça teve um forte efeito sobre ela.

― Honrarei meus votos honrando-te. ― declarou ― Quanto à minhapalavra... Nunca confie num homem que vive de sua intuição, duendezinho. Oque me ditou o destino que me fez rico, quando prometi que não te tocaria, nãotem nada a ver com o que estou sugerindo agora.

Sebastian afastou-se, aparentemente satisfeito com o que tinha obtido, epartiu deixando flutuar a ameaça no ar, ao redor do pescoço de Ariadna,asfixiando-a...

― Senhora! ― exclamou Mairin, entrando precipitadamente ― Queaconteceu? Disse-lhe algo de mal?

Ariadna engoliu em seco e assentiu.― Mairin, tem de me ajudar ― murmurou impactada. sentou-se na beira

da cama ― Não posso... dormir com o senhor Talbot. Resultar-me-ia impossível,por razões que eu não gostaria de ter de explicar. E decidiu que virá esta noitereclamar seu... seu lugar como marido. Acredita que poderíamos fazer algo? ―perguntou com um fio de voz. Olhou-a esperançosa, ao que a jovem assentiucom determinação.

― É claro que sim, senhora.Ariadna jogou um rápido olhar à janela, quase lhe pedindo auxílio.Ainda não podia acreditar que Sebastian tivesse faltado à sua palavra. É

obvio, não permitiria que entrasse em sua habitação enquanto esses fossemseus planos com ela, por isso tecnicamente ainda não tinha cometido nenhumainfração. Entretanto, durante o jantar, Ariadna não pareceu que tivesse emmente voltar atrás... Nem muito menos. Sebastian tinha comido e bebido atécansar-se, aceitando que lhe enchessem a taça uma e outra vez. Quandochegou à quinta, e Ariadna devia dizer para sua desgraça que estava frescacomo uma rosa, negou-se a seguir levantando o cotovelo. Pelo olhar que lhedirigiu depois da recusa à oferta, soube que era porque pretendia estar bemlúcido.

Evidentemente, Ariadna recorreu à primeira estratégia de todas, uma quea sua irmã Penélope usou durante anos com o seu primeiro marido: ser elamesma a que pusesse o copo a transbordar, e não partir à habitação até que

não soubesse com toda a certeza que não conseguiria cruzar o corredor.Não obstante, deveria ter imaginado que Sebastian Talbot em nada se

parecia com qualquer outro homem. Assim o fez saber ele mesmo, quandoinsistiu em fazer um brinde só para vê-lo tragar outra grande quantidade devinho.

― Mas que bem, Ariadna... Não conhecia esse seu lado serviçal. Qualquerum diria que morre por me agradar. Qualquer ― comentou, estudando o fio dolíquido avermelhado ― Eu, em troca, tenho a ligeira suspeita de que pretendeme embebedar para que não possa subir para cumprir o prometido, não? ―Ariadna não pôde negá-lo; mentir estava muito longe das suas possibilidades.― Tem de saber, duendezinho, que quando não tinha nada para levar à boca,fiz um amigo escocês que se dedicava à destilação e produção de licores fortes.Tenho o estômago costurado a golpes, ao que iriam melhor duas garrafas deuísque de malte que uma comida abundante... Assim pode dar por fracassadoeste teu plano. Embebedar-me com vinho de baixo grau é simplesmenteimpossível, partindo da base de que nunca estou ébrio quando pretendo dormircom uma mulher.

Ariadna não moveu um ápice, e seguindo o costume de não se ruborizar,tampouco exteriorizou sua consternação, até porque o mordomo fora cúmpliceda desgraça. Depois, continuaram comendo em silêncio, Sebastian com umligeiro sorriso matreiro.

Partiu assim que pôde, refugiando-se em seu quarto com Mairin.― Não deu resultado?― O álcool não é uma debilidade para ele, a não ser uma vantagem. ―

Respondeu com amargura ― Teremos de bloquear a porta.― Falarei com a governanta para que me dê a desta habitação.Ariadna agradeceu nesse momento ter a seu lado alguém tão competente.

Mairin não só parecia ter chegado para ficar, ostentando o título oficial dedonzela e dama de companhia ao mesmo tempo, mas também em apenas umashoras ganhou a aprovação e o respeito de todos os que formavam parte doserviço. Não era de estranhar afinal era uma mulher de garra, decidida; e o fatode que não lhe tremesse a voz ao fazer uma petição e se mostrasse obcecadaem sair com a sua, fazia que ninguém duvidasse de sua responsabilidade eeficiência. Mesmo assim, Ariadna surpreendeu-se vê-la entrar apenas algunsminutos depois com a correspondente chave.

― Como o fez?

Mairin sorriu, misteriosa.― Minha mãe era cigana e meu avô um velho carismático. Herdei deles a

magia e o encanto, assim se não consigo o que quero de uma forma consigo deoutra. Encerrá-la-ei ― anunciou ―. mas se por acaso o senhor insistir em sair-se com a sua, poderá bloquear a porta, fechar todas as janelas... Ou podeescapar saltando pela varanda. São muitas as opções ― balançou a cabeça ―Tenha claro o seguinte, senhorita... E é que nestes casos, só se pode fugir, sede verdade quiser fazê-lo.

Dito aquilo, saiu da habitação e fechou com chave. Ariadna permaneceude pé frente à porta até que o eco de seus passos se extinguiu definitivamente.Então, voltou-se para o armário. Olhou-o durante alguns segundos, e a seguirse aproximou para começar a tirar o que possuía. Tinha seis vestidos, sobre acamisola que Mairin lhe tinha ajudado a colocar, começou a carregar um apóso outro. No caso de que conseguisse entrar, pensava, não lhe facilitaria a tarefade sair-se com a sua.

Quando acabou, caminhou, com certa dificuldade até sentar-se na beirada cama, com o coração pulsando desmedido. Inspirou e exalou várias vezes, edeslocou os olhos à gaveta onde guardava os restos de seu amor esquecido.Quis aproximar-se e tirar as cartas, só para recordar por que estava a ponto desofrer uma vertigem de preocupação... Mas acabou descartando-o. Seriaexcessivo. Seriam agulhas perfurando-a sem piedade, pois, afinal, já o estavaenganando ao ter desposado com outro homem.

Estava meditando a respeito dos enganos cometidos, quando a porta seabriu depois de um leve estalo. Ariadna levantou os olhos e os cravou nohomem que, sob a soleira, balançava a chave que lhe proporcionou a entradacom ar divertido. Não pôde ver sua expressão pela luz que o açoitava por trás,mas assim que cruzou, descobriu que dentro de seu desafogo frente à situação,encontrava-se surpreso.

― Não há nenhuma ervilha sob o colchão esperando para romper suascostas, princesa. Era totalmente desnecessário que se protegesse dele comtantas capas de roupa. ― Depois da referência ao conto de Andersen, fechou aporta e avançou com a tranquilidade de que sabe que é dono de tudo o que orodeia. Ariadna apreciou a curiosidade que despontava em seu sorriso ― Nuncapensei que teria que «desembrulhar» a noiva..., mas aceito a provocação.

― Não... não, por favor. Senhor Talbot, obedecerei todas suas ordens, masnão me faça isto ― suplicou, retrocedendo. Ele teve a amabilidade de ficar onde

estava, sem perturbar mais do que já fazia o seu intenso olhar ― suplico-lhe.Sebastian não disse nada durante alguns segundos. Só caminhou alguns

passos para ela, obrigando-a retroceder até que se chocou com a parede.Ariadna ia iniciar uma enxurrada de rogos, mas Sebastian se declarou inocenteelevando os braços. Ficou olhando um bom momento, como se houvesse ummistério indecifrável em seu rosto e, se de repente, conhecê-lo fosse de seuinteresse.

― É consciente... ― começou, ainda com as mãos para cima ― de que mepertence e de que agora mesmo poderia fazer o que quisesse contigo, verdade?E sabe também que qualquer um que se casasse contigo, estando no meulugar, teria exigido sua nudez e disposição; não é meu capricho.

― Você também o está exigindo.― Não te forcei, coisa que qualquer outro homem em meu lugar teria feito

assim que tivesse posto o anel em seu dedo.― O que pretende me fazer ver com essa explicação? Que é você um bom

homem, diferente de qualquer outro que pudesse ter eleito?― OH, não, Deus me livre de tentar me apresentar como um bom

samaritano. ― Sebastian riu, estirando o sorriso de um lado ― Só explico qual éseu lugar aqui, Ariadna. É minha, e tenho direitos sobre ti. Cedo ou tarde osexercerei. A não ser... ― Acrescentou, inclinando a cabeça ― que confesse porque não me permite tocá-la. Penso que é porque me encontra repulsivo, algoque entenderia perfeitamente... ― acariciou a cicatriz com a gema do dedo,distraído. Ariadna seguiu aquele corte com o coração apertado. ― Mas algo mediz que teria se negado com qualquer um. Também suspeitei em algummomento que possivelmente teria algum pacto com o Criador, mas nesse casode querer dedicar sua vida a Deus, agora estaria num convento e não perantemim.

― Estou ante você porque era uma carga econômica para minha família.― Num convento não teria sido nenhuma carga, e teria trazido glória e

plenitude ao sobrenome Swift. Já sabe que em toda prole nunca é de mais quehaja um clérigo... por que não uma monja?

― Nunca contemplei esta possibilidade. Mas, se soubesse, possivelmenteteria me entregado a Jesus.

Sebastian riu brandamente. Aproximou-se dela, apoiando o dedo numponto da carne que oferecia o decote. Dali, foi subindo, seguindo uma linhainvisível que culminou no queixo feminino. Ariadna cravou os olhos naquela

mão. Preferiu não pensar no que poderia fazer num só movimento.― Mentes horrivelmente mal. E não te ocorra replicar, porque posso

reconhecer uma mentira antes que saiam dos lábios. É uma das minhaspoucas qualidades, está entre outra que pretende recusar sem saber tudo oque te poderia dar... ― Prolongou sua carícia roçando a beira de seu lábioinferior. Dali continuou pela bochecha, detendo-se na maçã do rosto, onderiscou um círculo. ― Por que não fazemos um trato? Dar-te-ei somente umbeijo, e se não gostar, partirei e não voltarei a pedir-te um favor destascaracterísticas.

Ariadna vacilou um instante tão efêmero que sua resposta saiu quasesobre sua última palavra pronunciada.

― Não. Não quero um beijo, senhor Talbot.― É péssima negociante, Ariadna ― assinalou, entre brincadeira e

irritação. ― Veja: se você não gostar do que propõe seu sócio, mas mesmoassim se interessar alguma das cláusulas do contrato, está no dever de fazeruma contraproposta. Você não gosta de minha proposta... então como será?

― Não me toque e isso será tudo.Sebastian estalou a língua.― Esse acordo só beneficiaria a ti, e quanto a mim? ― perguntou em tom

lastimoso. ― O que ganho eu?― Ouvi-o dizer que não me considerava atraente, assim imagino que será

uma bênção para ambos renunciar a este tipo de... intimidade.― Touché ― respondeu, agachando a cabeça ― De todos os modos, já sabe

que as razões de minha insistência ditam muito mais que as bases na paixão.Suas irmãs invalidarão o matrimônio se não te comprometer, e comocompreenderá, não tomei as moléstias de pagar uma fortuna e fazer umaviagem extenuante para que tudo tenha sido em vão. Vamos, pequena sereia. Oque é um beijo comparado com tudo o que pode ganhar?

Ariadna afastou o olhar. O que era para ele um beijo, um homem ao qualsua reputação lhe precedia, e não precisamente para lhe jogar o tapetevermelho? Para Sebastian Talbot, um beijo devia ser o mesmo que umasaudação à distância, enquanto que para ela era tão especial como umdiamante. E mesmo assim, tinha razão. Dar um beijo em troca de largá-laparecia razoável. O problema era que não podia confiar nele: sua irmã a tinhaadvertido, e constava-lhe que Meg o conhecia bastante bem para não falar semconhecimento.

― De acordo ― disse Sebastian ― Me retirarei... Mas não sem, ao menos,um pequeno na bochecha. Só para saber que não me detesta, e que estáagradecida por tudo que estou renunciando.

― Soa como se estivesse renunciando a algo grandioso.― Agora mesmo, a probabilidade de que tenha dito não a um bom amante

é de cinquenta por cento. ― Concluiu ― Não sei ao certo, mas talvez você tenhatirado algo grandioso de mim.

Ariadna negou com a cabeça.― Uma mulher como eu, inexperiente, não poderia agradar a alguém como

você ― assegurou com humildade, olhando-o nos olhos. ― E não se preocupecom a consumação. Se houver alguma conversa com minhas irmãs, jogarão aofogo seus planos de sabotagem. Só estavam preocupadas comigo.

― Por quê? Quer dizer... ― Riu baixinho, divertido por sua própriapergunta ― qualquer um se preocuparia que um membro de sua família tivesseque passar o resto de sua vida comigo. Mas a Meg inquietava a mera ideia dever-te casada. Por quê? ― repetiu ― Há algo que deva saber...? É estéril?Porque não acredite que me importa; jamais quis ter filhos, e por isso sempretive claro que não os terei.

― Não sou estéril..., que eu saiba. É somente pareço-lhes muito delicadapara me entregar a qualquer tipo de pessoa que não me compreenda. Algo que,pessoalmente, encontro francamente divertido ― acrescentou, com um meiosorriso ― Nem sequer elas me entendem, só fingem que o fazem.

― Pode realmente alguém entender a seu próximo? Pode, de facto,entender a si mesmo? Porque no que a mim diz respeito, e somente posso falarde mim nestes casos, ainda hoje me surpreendem meus pensamentos... ―Confessou em voz baixa. Aproximou-se dela, preso numa conversa silenciosacom seus olhos, e afastou uma mecha branca para colocá-la diligentementeatrás de sua diminuta orelha. Ariadna o viu sorrir com contenção ao acariciar acartilagem, e esperou, de todo coração, que não notasse seu estremecimento ―Ou quão rápido parecem trocar meus desejos...

Ariadna engoliu em seco, sem entender exatamente por que o ar querespirava parecia mais denso. Inspirou fundo e tratou de relaxar. Ao menos játinha a promessa de que não lhe aconteceria fazer nada sem seuconsentimento.

― Terá de agachar-se para receber a sua recompensa ― murmurou,apoiando as mãos parcialmente em seu peito.

Não o tinha tocado antes, e a impressão ao sentir seu coração sob aspalmas foi espetacular. Além disso, era tão sólido e firme como um escarpado,o que lhe fez pensar por um instante que poderia sustentá-la durante séculossem cansar-se. Elevou os olhos só para conjeturar a respeito de seuspensamentos: ficou sem fôlego ao descobrir um tipo de sorriso que não tinhavisto antes.

Sebastian inclinou-se, oferecendo a bochecha, que Ariadna contemploucom fascínio único. Fechou os olhos um momento e respirou seu aroma.Relaxou os músculos, tranquila, e se perguntou se o seu instinto não cometiaum engano concebendo-o como presença grata.

Aproximou-se para beijá-lo, e logo obteve resposta à sua pergunta nãoenunciada. Em efeito, confiar nele tinha sido demais, porque virou o rosto noúltimo momento e tomou seus lábios sem qualquer delicadeza. Sem qualquersuavidade.

O seu coração comprimiu-se de puro desconhecimento.A princípio não se moveu. A suas mãos permaneceram agarradas ao peito

quente do homem, que, entretanto, não chegou a emitir nem um terço doprazeroso calor de sua boca. Ele poderia tê-la protegido de um invernosiberiano somente roçando seus lábios suavemente, percorrendo-os com osseus sem piedade alguma. Possivelmente foi isso o que fez que Ariadna abrissea boca, assombrada; que não havia condescendência nem medo na expressãode seu desejo. Poderia ter-se assustado... Poderia ter-se estremecido de medo.Mas em vez disso acolheu aquela ferocidade procurando algo mais entre seuslábios.

Não era um beijo, pensou. Não tinha nada a ver com um beijo, não com oque ela conhecia como tal, quando ele violava o lar de suas palavras servindo-se tão somente da escassa aceitação recebida. Ariadna teve que fechar ospunhos em torno de sua camisa para não tropeçar para trás enquantoSebastian a buscava, avançando e avançando, até pressioná-la contra a paredede um modo escandalosamente sexual. Todos os contornos de seu corpo apressionavam e estreitavam com doloroso erotismo, algo que ela desconhecia eque, entretanto, produziu-lhe retóricos prazeres. E isso não foi nada quandoele, depois de fartar-se da cobertura de seus lábios, roçou-lhe a língua com aprópria, incitando-a a pecar definitivamente.

Sebastian não perdeu tempo para a seduzir, explorou-a com perícia,deleitando-a em cada frenético roce. Ariadna não conseguia pensar ao

reconhecer aquela essência sua, amadurecida com a virilidade com que ele aabraçava pela cintura, entre o domínio de seu aperto.

Seu sabor a convidou a experimentar a poesia lírica de um homem e umamulher enredados na paixão... e depois, nada. Só ela, envolta em calafriosdelirantes que lhe arrebataram o sentido, a prudência e inclusive a moderação.

O beijo tomou um caminho perigoso para ambos, tornando-se lentamentetortuoso e, de repente, tão cruel que doía. Ariadna choramingou de purasatisfação ao sentir de novo o que era o sofrimento físico sob a pressão de seusdentes, e sua brava e bárbara boca sugando com a mesma inclemência quedemonstrava ao falar.

Beijou-a de tantas maneiras, todas elas profanando mil vezes as leis eimediações de sua alma, que quando a colocou de costas de um bruscomovimento e pôde respirar ar puro, sentiu-se gloriosamente suja. Essasensação foi crescendo conforme Sebastian selou seu pescoço com lambidasprofundas, e lhe perfurou a carne exposta só jogando seu fôlego em cadaexalação.

Ariadna apoiou as palmas na parede e pressionou a testa contra elatremendo por uma nova necessidade que não compreendia, mas que sentia queestava perto de satisfazer conforme ele a tirava brutalmente de suas fitas, deseus broches, de seus botões... Encolheu o estômago ao sentir as mãos deSebastian cada vez mais perto de sua pele, que a percorriam sem deixar um sóespaço livre de pecado.

― A parte que mais eu gosto de tudo isto... ― sussurrou ele, falando contraesse ponto que parecia o fascinar; aquele onde se uniam a mandíbula e aorelha ― é a espera antes de ver a moça nua. Tem-se medo da decepção, e logo,suspira-se de alívio porque nunca, jamais, pode-se defraudar um homem nessesentido. Você, com o seu joguinho de vestir todo o armário... ― Desceu-lhe deuma sacudida a penúltima das saias, e se incorporou a tempo para sossegá-lacom uma dentada no ombro ― Está me dando mais fome do que a que poderiasaciar em minhas fantasias.

Ariadna suspirou, sobressaltada pelo repentino efeito do ar frio sobre suacarne exibida. Não havia palavras para expressar como se sentia, nem comorepercutiu nela essa significativa confissão no tom dos bárbaros consumidospela paixão... Tampouco tinha experimentado antes esse medo a morrer àsmãos do calor que a atormentava em todos os pontos, pontos que nem elamesma tinha tido conhecimento algum dia. Entretanto, nunca imaginou ser

tão especial para atrair com sua simples excitação a quem deveria ser umhomem insaciável. A evidência do quanto se recreava com a promessa de suanudez estava ali, às suas costas, firme e abrasadora... A sua ereção atranspassava a ponto de queimá-la.

E queimou, quando Sebastian posou a testa no início de sua coluna,beijando-lhe as costas, mordendo o ombro e cravando-lhe as unhas nosquadris; puxando-a com força bruta para pegar o seu corpo.

― Sente-o? ― perguntou com a voz rouca que teria de passar as noitescom Ariadna quando não pudesse deixar de pensar nela. A pressão de suabochecha na própria e seus lábios querendo chegar a ela foi um prazer tãosuculento que fechou os olhos ― Sente o que renúncias, Ariadna?

Sim... Sentia-o... Pura bravura masculina, a ponto de amassá-la como aum pássaro ferido. Não importou nesse momento tudo aquilo que suas irmãstentaram protegê-la, porque para sua desgraça descobriu que as mãos calosasque a enlouqueciam eram o inimigo ao qual se entregaria sem duvidar. Foiuma premonição tão confusa, tão repentina e inexplicável que caiu sobre elacomo uma pesada laje, despertando-a do arrebatamento que a tinhaadormecido.

Tinha-a seduzido... Senhor, continuava fazendo-o, só esfregando-se tãodescaradamente com a curva de seu traseiro! Tinha que sair dali ser fiel àssuas crenças, às suas verdadeiras preferências. Mas como? Não tinha voz paralhe recordar que tinham uma promessa, nem sabia impor-se para gritar queera um mentiroso e um farsante. Como encontraria a solução entre a bruma deseu raciocínio?

― OH, sinto muito... ― arriscou-se, ainda delirando por suas carícias. Nãoteve de forçar a voz tremente, toda ela era uma folha balançada à mercê desuas apostas ― beije-me de novo, George...

Embora não tenha acreditado que uma singela palavra poderia libertá-lado luxurioso cárcere em que estavam encerrados, esta não só serviu para pôrfim à sedução, mas também para que Sebastian se separasse dela de repente.Ariadna pressionou as pálpebras, notando quase a nível espiritual a distânciaque acabava de impor... E agradecendo, no fundo, ter conseguido.

― Como disse? ― perguntou num tom incrédulo ― Chamaste-me deGeorge?

Ariadna deu a volta com grande dificuldade. Teve de agachar-se pararecolher alguma das numerosas saias que a retinham num só ladrilho, mas

quando o olhou nos olhos, não pôde prestar atenção a nada mais. Seu olharreluzia em todo seu formoso fulgor, soltando faíscas de fúria, desejo insatisfeitoe ainda paixão por ela. Ariadna com muita dificuldade sobreviveu à quebra deonda de intensidade que a esbofeteou com um singelo olhar. Todo ele gotejavavida... E nunca a tinham olhado assim, como se sua vida dependesse dela.

― Pensava noutro quando te tocava? ― inquiriu, embora se notava em suapronúncia que não esperava resposta. Sebastian a olhou um segundo mais,elevando a sobrancelha, e ela foi a única espectadora de como o brilho ia-seapagando lentamente ― É evidente que te subestimei.

Seus lábios se estiraram num sorriso que Ariadna não pôde entender. Nãogostou de ter sido cúmplice da decepção que encheu o ambiente e permaneceuali instalada inclusive quando partiu, mas precisava proteger-se. Tinha umapromessa, e não permitiria que a rompesse, embora nesse momento achassemuito atraente a ideia de atirar tudo pela janela.

Ariadna sentou-se na beira da cama, enjoada e dolorida em zonas que nãodeveriam ter essa liberdade. Tocou a testa temendo que tivesse ficado comfebre. Tomou ar várias vezes, e quando acreditou estar mais tranquila, fechou aporta e a trancou por dentro... O que, agora que o pensava, deveria ter feitodesde o começo, livrando-se assim da sua visita. Por que não tinha pensado efeito isto...?

Irremediavelmente, a voz de Mairin alagou seus pensamentos, deixando-aabsorta e acordada durante o que durou a noite.

«Nestes casos, só se pode fugir se de verdade quer fazê-lo.»

8

Sebastian fechou a portinhola da carruagem de quatro portas com umgolpe que fez cambalear o pobre condutor. Não parou para lhe pedir desculpas,pois, afinal de contas, pagava-lhe uma estimável quantidade de dinheiro paraque o suportasse em suas más horas, tal como ao resto do serviço. Tambéminvestia em seu silêncio, em seus «sim, senhor» e «não, senhor», e paraacrescentar diversão ao assunto, especificou na oferta de trabalho queesperava que cumprissem absolutamente qualquer loucura que lhe ocorresse.E não eram poucas...

Por isso não podia recorrer ao mordomo, ao lacaio ou ao ajudante decâmara para verter todo seu desprezo e encontrar conselho, já que nenhum lhedaria um ponto de vista distinto do que tinha nesse momento: Ariadna Swiftera uma árpia, e ele era vítima de suas perversidades.

Como todo homem que se apreciasse – e para ser justos, não é queSebastian estivesse se apreciando muito neste momento, – tinha umareputação a manter. Em seu caso, era uma reputação ferida, maltratada efurada, mas continuava a dever-lhe respeito; daí que não se plantasse na casade algum de seus amigos para exigir uma sugestão que o ajudasse a ressarcirda vergonha a que se expôs na noite anterior. Thomas Doyle preferia que elenão passasse pelo Grosvenor Square quando ainda estava a tentar ressarcir asua mulher por ter-se aliado com ele, e conhecendo Dorian Blaydes... OH, essemaldito diabo riria na sua cara, terminando de enterrar seu nome. Quase podiaouvir o eco de suas gargalhadas.

«O que aconteceu com a grandiosa sedução dos cockneys?»Realmente, a sedução dos cockneys não existia, e se existisse, não seria

mencionada com desafogo, como se na realidade fosse algo do qual se orgulhar.De facto, os cockneys eram piores que os cães, e isso Sebastian sabia muitobem. Mas num impulso de rebeldia falar da sedução cockney, ou do cortejocockney, ou do falar cockney, tentava levantar o status de seu bairro acima do

aristocrático... Em vão.Ninguém valorizava jamais um homem de sua categoria por pertencer à

categoria mencionada, e menos pelo que saísse de suas mãos, a não ser queisto fosse dinheiro – embora continuava igualmente havendo elitistas querechaçavam seus bilhetes «manchados de imoralidade». – Tantas vezes otinham reduzido, física e psiquicamente, que Sebastian decidiu nomear as suasorigens como escudo, sendo assim uma arma de duplo fio.

Pertencer ao East End era, no melhor dos casos, uma terrível casualidade,e no pior... um motivo enorme para o rechaçar para qualquer trabalho,excluindo o de fazer abono. Quando apareceu como empresário, e semesconder as suas origens, não lhe deram a oportunidade de defender-se; eembora quisesse apelar à conversa, não o teriam entendido, já que seu sotaqueaté converter-se em alguém era horrível, segundo algumas damas com as quaiscruzou.

Mesmo assim, East End tinha sido o seu lugar, e não se envergonhava.Um bairro cheio de perversão, maldito para alguns, e ao que, contudo, acediaaté o homem mais nobre em busca de uma rameira. OH... Eles souberamquando cruzou um salão pela primeira vez. Sebastian não esquecia uma cara,e sendo filho de uma famosa prostituta das docas que chegou a coroar-se noWhitechapel, tinha reconhecido sob a luz dos lustres a todos infiéis que logolhes deram as costas... Esquecendo que ele tinha consigo poder de sobra paraafundar a todos, algo contra o que não poderiam lutar: segredos.

Dali surgiria, talvez, seu desejo de ser conhecedor de tudo que ocorresseem seu redor. Era mais importante o que homens e mulheres se reservavam, oque ocultavam sob maquilhagem, sob a roupa, ou depois das portas de suasmagnânimas mansões, do que o que cuspiam suas bocas embusteiras. E aosabê-lo, Sebastian tão bem, fez cúmplices de sua supremacia aos que seacreditavam por cima de sua casta. Assim era, pois, como um marginalizado sesobrepunha aos que marginavam. Tudo devido ao desejo humano de serrespeitado como merecia.

Mas pouco valor tinham seus esforços se um duende de pó de arroz odesafiava dizendo um só nome. «George...» Maldita besta! Que a levassem osdemônios!

E quem diabos era George, para começar? Certamente o inventou para oincomodar.

Sebastian entrou no prostíbulo, cravando a ponta de sua adorada bengala

no caminho de mármore até reconhecer a figura feminina que requeria paraliberar seu mau humor. Só com o som que gerava o instrumento e o modo quetinha de reverberar entre as quatro paredes, a madame reconheceu ao recém-chegado. Deu a volta para descobrir esse sorriso de tártaro que sempre erabem recebido em que pese a seu alto grau de sarcasmo, e estendeu os braçospara saudá-lo.

― Parecem ter passado anos desde que te vi pela última vez! ― exclamoumadame D’Orleans ― Dizem por aí que te casaste com nada mais e nadamenos que Ariadna Swift, prometida do duque de Winchester. Não esperavamenos de ti ― pressagiou com uma ameaça de risada perversa ― no entanto,pelo que se conta sobre ela, não sei se eu poderia satisfazer a um homem comovocê.

Sem mediar palavras, Sebastian sentou-se sobre a mesinha de café ecruzou os tornozelos. Aquilo se tinha convertido quase numa tradição: chegar aSodoma e Gomorra, o nome que recebia o casino e bordel respetivamente,sentar-se junto a madame D’Orleans e escapar durante algumas horas dasconversas banais que não lhe importavam nada; essas às que só podia aspirarao reunir-se com seus sócios.

Como era evidente, esse dia não seria para menos: ela mesma não tinhaperdido um segundo mencionando o tempo, mas sim foi a jugular diretamente.Quanto a ele... Não acabava de decidir se estava ali pelo costume, porqueprecisava prorromper em gritos e maldições, porque ansiava um conselho, ouporque requeria de distração. Qualquer que tivesse sido sua intenção inicial,agora só podia pensar em Ariadna Swift e «o pouco que poderia satisfazer a umhomem como ele».

Tocou-lhe sorrir com tanta amargura contida que torceu a boca.― O que dizem dela, pode-se saber?― OH, que é um encanto... Um desses anjos de porcelana que só se pode

tirar uma vez para dançar em toda a noite, pode acontecer que se rompa com oesforço. Alguns asseguram que é um ser de luz; os mais mesquinhos por aqui,em troca, hão dito que poderia ter uma enfermidade que a faz parecer a vivapureza. Não pode ser tão branca, contam... Mas todos morrem por saber se o é.… em todas suas partes.

Já não sentia saudades da sua facilidade para falar com total desafogodessa classe de detalhes. Madame D’Orleans jamais teve filtro, e aos sessentaanos que jurava ter, ― outra coisa era os que em realidade tinha ― parecia

muito tarde, e possivelmente também excessivo, substituir sua língua viperinapela moderação das delícias do beau mode. Para não mencionar que lhe teriasido impossível, tendo vivido no ambiente das cortesãs menos afortunadas e asalcoviteiras desde sua juventude.

Apesar de tudo, irritou a Sebastian que se referisse a Ariadna com tãopouca delicadeza, para não mencionar a firme sensação de cólera que lheproduziu pensar em hordas de presumidos falando de seus encantos com totalnormalidade.

― Estaria exagerando se dissesse que eu também morro por o saber ―reproduziu ele, observando sua fortificação com desenvoltura ― mas sim quesinto curiosidade.

D’Orleans elevou as sobrancelhas, que na realidade tinha delineadas comum lápis-carvão escuro. Ater-se à verdade com uma mulher a que embora nãoqueria, ao menos apreciava, resultava-lhe difícil, pois eram poucas as pessoasque lhes oferecia amparo... Mas sendo justos, madame D’Orleans era umacriatura grotesca. Era toda pele enrugada grafite de carmim e perucas quereafirmavam sua devoção eterna a Maria Antonieta. Sebastian assinalou-lheem numerosas ocasiões que se queria parecer jovem, devia deixar para trás amoda francesa do século anterior. Entretanto, ela recusava, apesar de que istoa fizesse parecer como um centenário pior que Matusalém.

― O que ocorreu? Certamente estiveste desaparecido, mas não esperavaver-te até na sexta-feira, como temos por costume. Algo deve ter-te trazido aquifora de horas. Por fim decidiu conhecer alguma de minhas garotas?

Sebastian negou categoricamente.― Já sabe o que penso de suas garotas ― recordou, olhando-a com uma

exigência entre linhas. «Insistir não te dará frutos, a não ser péssimasconsequências» ― A crua verdade é que necessito um de seus conselhos.

― De verdade? Sebastian Talbot, o homem dos negócios implacáveis einvicto em todo jogo de cartas, conhecido por pisotear a seus inimigos...necessita de mim para o guiar para a corrupção. Interessante...

― Não desfrute muito. ― Cortou ― Estamos ante uma situação deurgência, numa matéria que desconheço. E dado que você é a única pessoa nomundo a quem admitiria uma debilidade, sinto que estou no lugar adequado.Agora... ― acomodou-se melhor no assento, e assegurou a descrição do assuntojogando uma olhada a seu redor. Não havia ninguém; vantagens por ser aprimeira desta manhã ― Este é o problema.

Sebastian relatou a grandes rasgos sua ineficácia na hora de submeteruma moça a qual dobrava, se não triplicava, em altura e largura. Procurousoar indiferente, sem nenhum êxito que valesse. Por desgraça para ele, aindaestava tão ressentido que acabou cuspindo as palavras.

― Qual é o problema, Sebas? ― inquiriu a madame ao final ― Ela nãosupõe ser uma tentação para ti, você não é interessante para ela: já estãocasados, têm o que esperavam um do outro, e não demorará para convencer asuas irmãs de que são marido e mulher em todos os aspetos. Assim, qual é adificuldade? O que te corrói? ― Fez uma pausa para lhe lançar um olharvalorizado ― Há mais algo por dizer?

É obvio que havia. Horas depois da briga, não sabia como diabos tirar dedentro sua verdadeira perceção dos fatos. Possivelmente porque consideravadesnecessário, já que o calor impossível de sufocar da noite anterior se instalouem seu corpo como viva lembrança do que seu orgulho o impedia de confirmar.O que podia dizer mais?

Que tinha enlouquecido.Beijou-a, tendo prometido que não o faria e sem esperar outra resposta

que não uma bofetada, mas ela respondeu...E ele se perdeu. Ainda seguia alienado pelo doce sabor de sua saliva, a

textura de sua língua e o fofo e tenro amparo de seus lábios.― Possivelmente não me expliquei bem. ― Voltou a falar, incômodo ― Não

lhe peço que me aconselhe sobre o tema da consumação, posto que me constaque poderia enganar Londres inteira com um só estalar dos dedos... estou-lhesuplicando ― confessou, molesto pelas palavras que devia escolher ― que meaconselhe a respeito das mulheres como ela. Isto não vai ficar assim, madame.

― O que está insinuando com isso?Insinuava que não descansaria até tê-la entre seus braços outra vez. Deus

sabia que levava horas tentando esquecer, tirar seu aroma de sua pele,arrancar a imagem de seu delicado corpo semidesnudo da cabeça... Tinhaatribuído esse patético delírio ao álcool ingerido, à necessidade de uma mulher,ao próprio impulso humano de enganar-se para desfrutar de uma situação queno fundo não desejava... Mas não podia mentir. Não ia mentir. Os suspiros egemidos de Ariadna perfurando-lhe os ouvidos não lhe permitiram fechar osolhos nem um segundo, e em mais de uma ocasião esteve a ponto de levantar-se, jogar sua porta abaixo e possuí-la de todas as maneiras que conhecia.Estava completamente fora de si, e não pensava conter-se.

― Por isso entendi, minha esposa não vai conceder-me nenhum capricho,e bem sabe que não me ocorreria forçar a uma mulher nesses casos.

― Forçou-a ― apontou ― deu-lhe um beijo quando não o queria... Emboralhe devolvesse isso mais tarde.

― Não usei a força. Se quisesse, poderia ter me afastado ― recordou,regozijando-se interiormente pela pequena vitória ― E isso significa que não lhesuou indiferente. Por isso deve me dizer o que tenho que fazer para que ceda. Éminha esposa, e, além disso, ofendeu-me. Não vou parar até que me dê o que émeu.

Os olhos de madame D’Orleans brilharam perversamente.― Parece disposto a fazer algo... ― Comentou, acariciando o queixo ―

Sabe? Suspeito que Ariadna Swift é, apesar da sua aparência e boas maneiras,um coração rebelde. Uma boa esposa não teria resistido, e parece que ela faráalgo para que se cumpra a sua vontade: viver durante o resto de seus diascomo uma pomba pura. ― Sebastian apercebeu-se que aquilo causava diversãoà mulher, ao mesmo tempo que a admirava profundamente ― Representa o quetodas as damas de boa família desejariam fazer, e se não me equívoco, o que asdamas de boa família querem ter, além disso, é o coração de seu marido.Portanto, acredito que deveria ganhar sua confiança. Apresentar-se como seuamigo, averiguar quais são seus gostos, o que têm em comum, o que não...Deve apagar a imagem que tem de ti agora mesmo, que é a de maridointransigente que tomará o que deseja quando e como o desejar.

Sebastian pensou que dito conselho requeria paciência, e ele não eraabsolutamente uma pessoa caracterizada por sua capacidade para esperar. Emenos ainda quando se tratava de um assunto que o trazia de cabeça, que otinha impedido de dormir e que o punha de mau humor. Ainda não tinha vistoAriadna, por isso guardava a esperança de que, ao voltar a encontrá-la, não lheassaltasse a fome feroz que o consumia ao recordá-la de costas para ele, a suapele de fogo... Mas em caso afirmativo, sabia que não poderia passar um só diasem tocá-la. Era um homem condicionado por seus instintos e desejos, sempretinha sido: a sua força de vontade se reduzia a nada, e menos ainda quandoseu competidor parecia imune a seus efeitos.

Mesmo assim, assentiu, agradeceu a D’Orleans o ridículo conselho evoltou por onde tinha vindo. Ainda contava com algumas horas até enfrentar-se a que apontava converter-se em seu pesadelo. Iria visitar a fábrica de naviospara distrai-lo da tortura. Custava-lhe acreditar que somente um beijo tivesse

bastado para perturbá-lo. Um beijo de um anjo de porcelana... De umadebutante! Era irrisório. Contudo, estava decidido a corrompê-la, mesmo quetivesse de começar pelo patético cortejo à antiga.

― Graham ― chamou, entrando como um vendaval na casa ― Onde está asenhora?

― Está no jardim traseiro, senhor.Sebastian voltou-se com ar zombador.― Isso de jardim não se parece muito, não lhe parece, Graham? ―

suspirou ― E se pode saber onde se encontra o «jardim» traseiro?― Não sei, senhor. Perguntou-me se por acaso não havia um jardim nesta

casa, eu disse-lhe que encontraria uma porção de terra seguindo o caminho depedregulhos... Agradeceu-me e partiu, senhor. Faz ao menos três horas, ouquatro, que não a vejo.

― Deus bendito ― resmungou Sebastian, negando com a cabeça. Saiu dacasa e seguiu o caminho que Graham tinha particularizado, ligeiramenteassombrado. Sem poder conter-se, comentou para si mesmo: ― Já sabia queera aborrecida, mas quem diabos consegue sobreviver a quatro horas numjardim sem roçar o tédio mortal?

A resposta chegou por si só assim que a localizou ajoelhada frente a ummonte de terra molhada. Ela: ela conseguiria sobreviver a quatro horas deaborrecimento, e a julgar pela mesura que suavizava as linhas de seu rosto,Sebastian se atreveria a dizer que investiria inclusive cinco ou seis. Ou sete,posto que estava tão distraída com seu trabalho que não deu por isso de que seaproximava. Teve que fazer soar a fortificação contra os paralelepípedos paraque levantasse a cabeça.

Sebastian fez uma careta. Não seria ele quem lhe daria a ideia de dilapidarseus lucros comprando vestidos dignos de sua posição, mas Por Deus que lhedeu vontade ao vê-la coberta de pó quase até as sobrancelhas. Tinha as mãos eo vestido manchado; só o seu rosto pálido se salvava de ser culpada de terestado chapinhando no barro. De qualquer modo, não foi isso o que oincomodou, mas sim que sua presença não lhe causasse nenhum impacto.

― O que está fazendo?Ariadna ficou de pé com cuidado. Endireitou as costas e jogou o pescoço

para trás para olhá-lo diretamente.― As minhas irmãs mandaram-me as sementes que ficaram por plantar no

jardim quando estive cuidando das dálias. Espero que não se importe, senhor

Talbot. Pensei que já que estava desatendido, poderia me fazer encarregada.― Se preocupa atender este esquecido jardim, e não atende os meus

desejos em minha cama? ― resmungou baixo.― Desculpe?Sebastian pigarreou.― Só dizia que pode dispor do jardim para seu uso e desfrute. Nunca teria

passado pela minha cabeça semear neste pequeno pedaço... ― franziu os lábios― abandonado. Parece que você gosta da jardinagem, equivoco-me?

Ali estava a primeira tentativa de aproximação.― OH, sim. ― Levou a mão suja ao pescoço. Ao arranhar-se escassas

partículas de terra ficaram ali, manchando a palidez perfeita de sua pele ―Adoro estar em contato com a natureza. Relaxa-me. É refrescante. Nãoacredita?

― Absolutamente. O clima da Inglaterra não favorece as excursões aocampo, nem tampouco me anima a tomar sol, que são as duas únicasatividades ao ar livre que me tentariam. Para não falar de que detesto a sujeira,e estar «em contato com a natureza» significa acabar cheio de lodo. Quanto àsflores, não consigo ver qual é seu encanto...

Soltou de uma só vez, sem ser muito consciente do que dizia. Tudo quepodia pensar era nessa molesta faísca escura que rompia o equilíbrio ideal dabrancura que ela era. Queria levantar a mão e limpá-la... «Precisava» levantar amão e limpá-la. Mas então, Ariadna, alheia a seus pensamentos, deu a voltacarregando com um canteiro que quase dobrava seu tamanho e largura.

― E o que gosta, então? ― perguntou.― De mulheres ― respondeu, seguindo-a com o olhar. Ela nem se alterou

com sua veemente resposta, e como se seu silêncio fosse a chamada mais forte,Sebastian a seguiu ― O jogo, a bebida, o dinheiro...

― De mulheres ou de pessoas?― De mulheres. Caladas, se puder ser. ― Provocou ― As pessoas em geral

parecem-me irritantes e condescendentes, além de que ter a obrigação de lutarcom eles já faz o processo de socializar bastante incômodo. Mas não estávamosfalando de mim ― particularizou, apoiando uma mão na parede para lhe cortaro passo. Ariadna elevou os olhos e o observou com atenção ― O que te faz feliz,além de suas plantas?

― O bom tempo. A chuva também... ― Esquivou-o para seguir compilandoos suportes de vasos e colocá-los na prateleira do abrigo ― A música. Gosta de

música, senhor Talbot?― Meus amigos dizem que não posso apreciá-la. Um deles é conde, assim

deve estar certo. ― Assinalou, altamente irônico ― Tenho dois pés esquerdos,por isso a dança está mais que descartada. E está acostumado a ir unida aoconceito de acontecimento social, o que traz consigo convidados, e meresultando estes desagradáveis, ao final do dia a música me pareceorquestrada pelo diabo.

― E o que lhe parece a pintura, ou a ópera?― A ópera é um ato insofrível. Tenho um camarote no teatro, ao qual vou

uma vez por ano para que não se esqueçam de que, se não for, é porquedesprezo dita atividade, não porque não possa. Não consigo encontrar baseintelectual neste hobby; ver uma superalimentada cacarejando em idiomas quenão conheço parece-me um castigo divino. Quanto à pintura... Poderia sermecenas de um artista se me desse dinheiro, mas não golpearia a ninguém porpendurar um quadro romântico em meu salão.

― Os livros? O que acha da poesia?Sebastian torceu a boca em uma careta.― Uma completa perda de tempo. Nunca cheguei a entender o que têm de

assombroso um par de rimas. A literatura só serve para separar o homem desuas tarefas e dar asas a sonhos que logo descobrirá irrealizáveis. Faz do serhumano um tolo que acredita que as coisas virão a ele sem mover um só dedo,ou pior: um trágico idealista. Se tiver lido Don Quixote, já saberá que os queacreditam serem visionários, terminam sendo escravos de sua ingenuidade.

Ariadna depositou tranquilamente o último vaso de barro sobre aprateleira, e deu a volta para olhá-lo.

― A literatura separa o homem de sua tarefas... E o álcool não?― O álcool serve para celebrar as tarefas que foram cumpridas com êxito.

É obvio, que se beber em quantidade e durante longos períodos, estaríamosfalando de um bêbado, não de um homem decente.

― Definiria os bêbados como «homens aficionados à bebida»? ― Sebastianassentiu ― Então você o é, já que me há dito faz um segundo que beber é deseu interesse quando tem tempo livre. Em minha opinião, a literatura éenriquecedora a nível cultural e intelectual, enquanto que o uísque e seusderivados esmagam qualquer produtividade, a curto e longo prazo. Jogar édivertido, suponho. Mas o risco de fazer-se dependente dele é maior, edefinitivamente pior, que converter-se num subordinado da arte. O dinheiro é

necessário, mas falar disso em público, e ser muito ambicioso, poderiaconduzir um homem à perdição. Para não falar de que é um bem que podeescassear em qualquer momento, o que o faz efêmero e vulgar.

Sebastian apoiou o cotovelo na parede e deixou repousar a cabeça na mãoum segundo, sorrindo como uma fantasia de diabo.

― É a primeira vez que diz tantas palavras seguidas.― Acreditava que gostasse das mulheres caladas, senhor Talbot.Ignorou aquela provocação, que saindo de seus lábios não soava

afrontosa, a não ser uma dócil indicação. Impulsionou-se do muro e caminhoupara ela. Sentiu verdadeira libertação ao limpar a mancha do pescoço com seuspróprios dedos; pele com pele, carne com carne. Notou, inclusive, o palpitar daveia central, e quase celebrou que estivesse tão viva, tão quente...

― Indo contra a racionalidade, as coisas efêmeras são as que o serhumano mais necessita. Começando pelo próprio ser. O que poderia amartanto como a sua família? Nada, na realidade, e esta algum dia desaparecerá.Além disso... Existem os abraços, os beijos, as carícias. Alguma vez desejasteque uma destas três amostras fossem eternas? pergunte-lhe isso em seu leitode morte e saberá. Pergunte-se o que é que repetiria, se a contemplação do solou estar apanhada nos braços de quem mais deseja.

―... E logo, irei a você e lhe direi que tinha razão; que estava equivocadaao supor que o fugaz só pode resultar prejudicial.

― OH, é prejudicial... É claro que sim. E é pecado ― esclareceu em vozbaixa, afundando os dedos no insosso recolhido; tão assim, que algumasmechas se desprenderam para lhe acariciar o dorso da mão. Não teve tempopara prestar atenção a isso, havendo uns lábios rosados ao alcance dos seus, euns olhos extraordinários pendentes de seus movimentos. ― Mas já queexpulsaram a humanidade do Paraíso faz muito muito tempo... por que refrear-se? Todos somos culpados e estamos amaldiçoados a esta altura; ser escravosde nossas paixões não será terrível.

― Nem todos estão orgulhosos disso ― murmurou Ariadna, dando umpasso para trás. Sebastian apertou a mandíbula, impotente ― É evidente quenão podemos ser mais diferentes, senhor Talbot. Nossa afinidade é nula, nãoimporta por onde olhe.

― Está segura disso? ― provocou-a, ficando no lugar ― E acreditaseriamente que seria importante, ser assim? Porque já encontrei umarachadura em sua carapaça e estou seguro de que poderia rompê-la toda

voltando a te demonstrar quão bem encaixamos... Como as peças de umquebra-cabeça.

Apesar de cheirar o que ocorreria a seguir. ― Ariadna escapuliu para nãocontinuar a escutar as suas paqueras ― Sebastian desfrutou ao vê-la paradafrente a ele, olhando-o como se tivesse que encontrar uma forma de o destruire não lhe ocorresse nenhuma melhor que o deixar vencer, para sua grandedesgraça. Assim a desejou: preocupada com não saber por onde escapar, e como característico nublado londrino fazendo molhar sua alvorada silhueta.

― O certo é que sempre fui a que deixava os quebra-cabeças inacabados ―repôs, sem alterar-se minimamente.

Não acrescentou mais. Partiu sem necessidade de apertar o passo, eSebastian não soube se era porque estava segura de que não a perseguiria, ouporque não se importava que o fizesse. Então teve de reconhecer internamenteque não tinha sido sua melhor atuação, e que devia concentrar-se em manteruma bonita amizade, não lhe recordar com frequência que ardia em desejos depenetrar em sua habitação.

Sebastian suspirou. Miúda tortura...Ariadna apresentou-se tão tarde na sala de jantar que Sebastian estava

seguro de que não apareceria. Alegrou-se de vê-la, em parte porque não teriagostado de perder os nervos tão cedo indo por ela, e menos ainda por causa doparadoxo de que ela não os perdia nunca.

Desgraçadamente, teve que perdê-los de todos os modos. Ariadnaapareceu com um vestido. ― Supunha que por isso devia dar o obrigado ― oque não queria dizer que fosse singelo ou aborrecido. Talvez não tivesse umgosto delicioso na hora de vestir-se, mas todos seus trajes estavam medidosmuito bem para que lhe sentassem como uma luva. O cetim, num suave tomverde, fez-lhe apertar os punhos sob a mesa.

Ariadna só deu boa noite, sentou-se e brincou com sua comida, comosempre num mundo alheio ao resto. A Sebastian não lhe dava bem conversarcom mulheres porque seus temas eram muito reduzidos, sendo em sua maioriapouco interessante para estas ou, em seu defeito, extremamente indecorosos.Tratando do epítome do saber estar inglês, ― como era sua esposa ― suaspossibilidades de iniciar uma conversa amena eram mínimas.

― Por que não come? ― perguntou, entre molesto e interessado. Mal haviamexido no prato.

― Porque não tenho fome, e não gosto da carne.

― À comida não importa isso. ― Particularizou ― Há gente que morre defome aí. É uma falta de consideração fazer retirar um prato porque não seja deseu gosto.

Os olhos de Ariadna vagaram pela habitação até posar-se nos seus.― Se pudesse, levaria este prato a um lugar onde fosse apreciado. Eu não

gosto da ideia de que a comida acabe no lixo, senhor Talbot, mas não possofazer como você. Comer muito ou quando não tenho apetite me faz mal.

― Pode-se saber a que se refere fazendo como 《eu》?― Você come e bebe como se fosse a última vez que fosse fazê-lo.Sebastian sorriu ladino.― Temo que essa é minha maneira de fazer as coisas, e não acredito que

seja um defeito, ou algo mau. Também jogo, ganho dinheiro e beijo minhasamantes como se fosse a última vez, ― provocou ― não faz isso maisinteressante? Por acaso não é bom viver intensamente?

― Mais que interessante, pode ser exaustivo. Ninguém vai lhe tirar o pratoda mesa, senhor Talbot, ― assinalou sua terrina vazia ― assim pode tomar otempo de saborear o que mete na boca.

«OH, se soubesse o que quero colocar na boca...»― Prefiro não o saborear, já que não terá o sabor que eu gostaria que

tivesse ― rebateu, olhando-a fixamente. Observou, com certo regozijo, que elase remexia no assento ― Sugere que eu pare e fixe-me nos detalhes formososque oferece a vida, não...? Temo que não será possível. Parar e observarsignifica dar indevidamente com os aspetos escuros da realidade.

― Negar-se a confrontar que o mundo não é somente cor não o convertenum idealista?

― Sou o perito do negro, duendezinho. ― Rio Sebastian, carente de humor― Não o procurar e preferir não o viver não significa que não saiba que existe,ou como se sente.

― Saber como se sente...? Você é o homem que tem tudo. A representaçãodo que o empresário médio ou a aristocracia deseja para si: ser mais rico queCreso, e uma reputação capaz de sulcar o oceano e voltar.

― Inclusive tenho a ti, a mulher mais desejada da Inglaterra. Que maispoderia querer? ― concluiu irônico ― Que agora tenha tudo não significa quenão me faltasse uma vez.

― Que mais poderia querer? ― repetiu Ariadna, ignorando sua afirmação ―Pergunto eu. Ou perguntaria, se soubesse que podia confiar em sua resposta.

O único que sei agora mesmo é que poderá conseguir tudo o que deseje muito,incluído um ser humano. O que tem de escuro por sua parte em todo isso? Dequalquer forma, escuro para o pobre que coincida com você? ― perguntou Nãosoava molesta, só curiosa ― Casou-se comigo porque era, supostamente, adama mais virtuosa.

― A mais desejada ― corrigiu.― Por ser a mais desejada fez-me sua esposa. Isso não soa a algo que um

homem que sabe o que é a dor faria. Soa a algo que faria um homemcaprichoso que sempre obteve o que quis.

― Ofender-me-ia seu modo esnobe se não me agradecesse, no fundo, quenão se interesse por mim o suficiente para perguntar pela verdade.

― Agora tem-me ― interrompeu sem expressão. Era tão neutra, inclusivevazia, em todas as suas intervenções, que parecia que estava a falar com ummonstro sem alma ― Sente-se completo? Satisfeito?

Como ia sentir-se satisfeito quando não o deixava tocá-la? Estava a negar-se indiretamente, a ele e a seus desejos, ao fazer essa pergunta. Sobre tudosabendo, ou ao menos suspeitando, qual era a resposta.

― Não.Ariadna relaxou os ombros, como se não soubesse até esse preciso

instante que tinha razão.― Caprichoso ― remarcou, ficando de pé. Olhou-o com uma sombra de

emoção, mas acabou sendo uma miragem ― Nem tendo se casado com dezmulheres poderia ter sido feliz. Nem tendo se casado com a rainha.

Sebastian levantou-se também, assegurando-se de que os pés da cadeirachiassem. Ela levou as mãos aos ouvidos, quase aterrada pelo som, mas elenão prestou atenção à sua reação.

― Serei feliz quando tiver o que mereço; quando me derem o que é meu. Oque me pertence por direito.

― E o que é isso? Eu? ― Fez uma pausa para engolir em seco ― Sou outrocapricho para você. Só me quer porque não pode me ter.

― É possível ― reconheceu num arrebatamento ― Unicamente saberemosquando a tiver.

― Coisa que não acontecerá nunca.Ariadna afastou a cadeira e abandonou o salão, empurrando ela mesma as

pesadas portas antes que o mordomo pudesse fazer as honras. Sebastianapertou os punhos e fechou os olhos um instante, tentando recordar-se que

falava guiada pelo rancor. Ela não sabia quem era; só ele se conhecia, e nãocompartilhava nenhuma só característica com o caprichoso meio.Simplesmente não suportava a ideia de retornar à época durante a qual lhenegaram até o pão. Assim, furioso pela conceção que Ariadna tinha sobre suapessoa e desgraçadamente excitado por ter arranhado uma ligeira emoção nela,saiu a passo ligeiro para alcançá-la.

Perseguiu-a por todo o corredor, procurando fazer soar sua fortificação.Ariadna não deu a volta para o olhar, mas foi evidente o momento em quedescobriu que não pensava deixar as coisas assim, porque quase pôs-se acorrer. Infelizmente, não foi bastante rápida para escapar da mão que lheenvolveu a cintura. Sebastian a protegeu da distância com suavidade pegando-a a seu corpo. Não foi ela quem perdeu o fôlego pelo impacto, mas ele. Pelaprimeira vez o olhava com algo que não era indiferença, e embora o ódio nãofosse um sentimento precisamente adulador, fascinou-o como fazia emergir omalva azulado de seus olhos.

― As damas virtuosas não deixam seus maridos falando sozinhos ―recordou-lhe, pressionando com os dedos na fina curva de suas costas ― Vouter que lhe dar uma lição de maneiras, senhorita Swift. E tal e como euentendo os castigos... ― Acrescentou em tom íntimo ― isso significa que lheestarei dando açoites até o amanhecer.

Estremeceu de puro prazer ao reconhecer um leve rubor nas suasbochechas. Fosse por raiva ou fosse porque o atraía a ideia de expor-se às suascarícias mais perversas, era uma reação gloriosa, e que intensificou seusdesejos até a um ponto insustentável.

Suas mãos subiram pelas costas feminina, ficando um instante parado nanuca, onde um par de cachos lhe fizeram cócegas nos dedos.

― Se eu for o caprichoso, você é o capricho... ― sussurrou, com os olhoscravados em seus lábios ― E nesse caso, não convém que consiga sempre o quequero, duendezinho. Mas chame-me como me quiser chamar, não fará distoirreal. Sendo caprichoso ou sendo Sebastian, vais ser minha.

― Já sou sua. Mas isso não significa que, meu coração ou meu corpo seja,seu. Comprou meu nome e trocou meu sobrenome, não as minhas conceções...E temo que isso não o fará nunca, por muito que se esforce.

Sebastian a agarrou pelo pulso antes que pudesse escapar, inflamado dedesejo. O que estava sentindo ao tê-la perto roçava o absurdo, o irrisório. Nãoimportava que estivesse clarificando que não toleraria uma aproximação; seu

corpo tinha outros planos.― Não quero seu coração, nem seu corpo. Só quero possuir-te... ―

abandonou-a contra a parede, apoiando as palmas a cada lado de sua cabeça― ter em minha cama uma só vez, nua, suada, ofegante... É pelo que assinei.Não penso me conformar com menos que me fazer com sua virgindade,Ariadna.

― E o que pensa fazer? Violar-me?― Não. Mas poderia fazer algo que doeria mais. Poderia reduzir-te

mentalmente com uma sedução lenta e cruel que te deixaria exausta empoucos dias ― assegurou em voz baixa. Acariciou com os dedos a zona dodecote, que deslizou para baixo até quase revelar o que escondia ― Souperseverante, forte e poderoso, e desejo ver-te nua; anseio descobrir o que hádebaixo desse vestido, a cor de seus mamilos, e se for tão doce em todas suaspartes como o são seus lábios... ― Sebastian sorriu de forma canalha ao verque ela emudecia e o olhava com os olhos exageradamente abertos. O ruborficou em suas bochechas, como um exemplo de como as senhoritas deviamreagir frente a essa classe de comentários. ― Sei que não te enojo... ―continuou atirando a cinta do decote ― Respondeu para mim com a paixão depoucas. É inexperiente e está muito rígida ― concluiu, desfrutando-se em seurubor agora mais marcado. Ela disse outro nome; era justo que ele arremetessecontra as suas inseguranças, se é que as tinha. ― Mas não é nada que nãopossa resolver. Ao final da noite estaria me montando como uma amazona,pedindo-me muito mais do que a sua fragilidade suportaria...

Ariadna afastou o olhar, visivelmente envergonhada. Sua delicada mão oagarrou pelo pulso, afastando-o do broche dianteiro do vestido. Fê-lo com umgesto que pretendia ser brusco e que, no entanto, o fazia a tremer denecessidade.

Quando o olhou, tinha os olhos acesos como carvões. Não contente com oassombro que desequilibrou Sebastian ao sustentar o seu olhar, empurrou-opelo peito para libertar-se.

― Se alguma vez me tivesse ocorrido entregar-me a você, acabo de declarara nulidade de dita possibilidade ― pronunciou com voz tremente. Abraçou opescoço com a mão, fraca. ― Não confiava nas suas palavras, e agora tampoucoconfio na sua contenção para reter uma mulher à força, o que só augurariameu sofrimento entre seus lençóis. Assim como não precisa de mim para nada.Há mulheres de sobra em Londres dispostas para cumprir suas elevadas

expectativas, e não penso me desculpar por não ser uma delas.Ariadna deu a volta apressadamente, chegando a correr pelas escadas

para refugiar-se na sua habitação. Sebastian deu vários passos, desejandoalcançá-la outra vez, mas as palavras faladas se repetiram em seus ouvidoscom um toque latente de... medo? preocupação? verdadeira desconfiança?

Sebastian apertou os punhos, frustrado. Não acreditava que lhe pudesseter saído pior a estratégia de conhecê-la, embora, pelo menos, agora sabia quetinha sangue nas veias. Mesmo que insuficiente para o esbofetear, como teriaprocedido por seu atrevimento... Mas sim bastante para açular a chama dodesejo, que fazer ferver o seu corpo durante toda a desgraçada noite quepassou a sós com seu desespero.

9

Ariadna não se atrevia a sair de sua habitação, e não era precisamente omedo que a retinha entre os lençóis, mas a comoção. Levava horas com osolhos cravados no teto, o corpo tenso e a garganta obstruída, irritações queseguiam sem fazer sentido ao seu estado mental. Ainda não assimilava o quetinha ocorrido na noite anterior, nem o que aconteceu na primeira, e fosse oque fosse que estava por vir, não lhe cabia a menor dúvida de que deveriapreparar-se psíquica e fisicamente para confrontá-lo.

Algo tão singelo como perder a calma a tinha esgotado até chegar àdebilidade corporal. Ariadna não recordava ter-se sentido assim nunca; assensações que a acossaram durante a briga verbal com Sebastian e que aperseguiram durante o resto da noite eram totalmente desconhecidas para ela.Se lhe tivessem perguntado, só existiam duas emoções, e essas eram amoderada emoção e a profunda tristeza. Nunca teve a necessidade ficar emespera para aprender sobre as demais, embora tampouco lhe tivessem dado emnenhum momento liberdade suficiente para experimentar ela sozinha.

Agora concordava com a imensa maioria que era terrível o excesso deintensidade. Discutindo na mesa se foi cozinhando a ira em seu estômago;fugindo de Sebastian se sentiu tão viva que não quis verificar, e quando ele aagarrou, invadindo-a ferozmente com suas indecências, simplesmente...

Ariadna pressionou as pálpebras com firmeza, esperando que fossesuficiente para escapar da lembrança. Entretanto, tinha-o tão presente queparecia que tivesse ocorrido minutos atrás.

«Desejo verte nua; anseio descobrir o que há debaixo desse vestido, a corde seus mamilos, e se for tão doce em todas suas partes como seus lábios. [...]No final da noite estaria me montando como uma amazona, me pedindo muitomais do que sua fragilidade suportaria. [...] Poderia te reduzir mentalmentecom uma sedução lenta e cruel que te deixaria exausta em poucas horas.»

Cada vez que as ardentes palavras se filtravam em seu pensamento,

Ariadna tinha que conter os formigamentos que corriam por suas pernasapertando as coxas. Essa era, quando muito, a ameaça mais grave que lhetinham feito, embora certamente não fosse especialista nessa matéria. Jamaislhe falaram assim, nem tampouco suas irmãs afirmaram que fosse possível queum homem pudesse chegar a ser tão... «sincero».

Ariadna sem dúvida valorizava a sua virtude. Entretanto, o nó que seaferrava ao seu estômago com intenções de ficar não a deixava apreciar comoera devido. Duvidava, pois, que fosse possível interpretá-lo como algo positivo,quando lhe avermelhava as bochechas e a deixava sem fôlego. Ele era umcompleto selvagem... Não sabia como tratar as mulheres, e não podia confiarem nada que saísse da sua boca, nem de suas carícias, porque tudo estavafocado a seus próprios desejos. Agora bem; ao começar a desvairar demadrugada, inflamada pelo que aquele par de frases fizeram com seu corpo,pensou que não havia paixão mais lícita e estremecedora do que a do homem...E que se por acaso obtinha seu encargo de reduzi-la com promessasluxuriosas, morreria pela alarmante impressão de seus efeitos nela.

Estava tão assustada, confusa e incômoda dentro de seu próprio corpoque Mairin teve que tentá-la com um dia ensolarado para tirá-la da cama.

― Você está com uma cara muito feia, senhora. ― Assinalou a jovem ― Nãopôde dormir bem?

― Não dormi nada ― confessou. Entregou-se por completo a seuscuidados, deixando que a despisse e embainhasse num vestido de veludo cinza,pescoço fechado e anquinhas.

― Gostaria de desabafar? Sou melhor ouvinte que donzela, asseguro...Ariadna negou. No momento, preferia reservar o dia para a meditação;

sim, faria isso, consagrá-lo ao silêncio. Não precisava dar mais motivos aMairin para que desconfiasse de Sebastian ― sobre o qual adoravadestrambelhar ― admitindo que lhe aterrava sua faceta de sedutor.

Tinha sido capaz de mandá-la longe de sua normal tranquilidade. Nãopodia permitir que acontecesse de novo, pois sabia que essa seria a greta queutilizaria para convencê-la de fazer sua vontade, e como acrescentado,detestava estar a mercê do que suas mãos poderiam fazer.

―... por isso pensei que não me precisa ― continuou Mairin ― Daí quetenha procurado pessoalmente uma moça que a mereça.

Aquilo chamou a atenção de Ariadna.― A que te refere, Mairin?

― O senhor Talbot contratou-me para a viagem, e embora claro queseguiria com você se o pedisse...

― Quer voltar para casa?― Por Deus, claro que não ― resmungou, negando com a cabeça. Em

seguida olhou Ariadna, com a determinação impressa na expressão ― Nãoquero voltar nunca para aquele lugar, senhora. Meu objetivo é encontrar umtrabalho em Londres de acordo com minhas ambições; possivelmente comoenfermeira ou voluntária num hospital. Não estou especializada num empregodeste tipo. Mal conheço a distribuição das anáguas; as mulheres como euconformamo-nos colocando uma, ou duas se for inverno... E você não requerde companhia. Assim, se me permitir... ― jogou-lhe uma rápida olhada nervosa― irei esta noite mesmo.

― Não sei, Mairin. O senhor Talbot prometeu a seu pai que a devolveria aEscócia assim que chegássemos de viagem, e já passaram três dias. Alémdisso, e se não encontrar esse trabalho que desejas?

― Eu trato disso. ― Encolheu um ombro. Ao ver que Ariadna seguiaduvidando, avançou para ela e se colocou a seus pés ― Senhora, se lhepreocupa que meu pai possa sentir a minha falta, asseguro-lhe desde estemesmo instante que se alegrará imensamente de me ter perdido de vista. ―Inspirou fundo ― Me atiça com seu cajado cada vez que falo em voz alta de meudesejo de me converter numa reputada médica. Ultimamente, de facto, fá-locada vez que abro a boca e não é para obedecer. Não posso voltar ali, ondemeus sonhos são golpeados a vara e para cúmulo acabarei casada com umhomem que promete ser tão intransigente com minhas aspirações como ele.Deixe-me ir, eu suplico.

Ariadna soube que não mentia ao olhá-la nos olhos. Se podia reconhecê-lanão era porque tivesse um rosto singular, mas sim pela aura de bruxaria quefazia de sua figura algo acima do resto. Algo distinto, e, sob seu ponto de vista,espetacular.

― Só se me prometer que ficará bem.Mairin soltou todo o ar retido numa poderosa exalação, e abraçou as suas

pernas com autêntica devoção. Murmurou uma enxurrada de agradecimentos,promessas e louvores que afligiram Ariadna, e que por sorte chegaram ao fimquando uma visita inesperada se apresentou ante a porta.

― Senhora Talbot, chegou um presente para você. ― Anunciou Graham ―O deixamos no saguão, à espera de que diga qual lugar ocupará. Também tem

uma visita. ― Acrescentou, agachando a cabeça ― O duque de Winchester foiconduzido a saleta.

― O duque de Winchester? ― repetiu Mairin, ficando em pé e sacudindo assaias ― Não é esse seu velho pretendente, senhora? Graham, perguntou-lhe oque desejava? ― O mordomo avermelhou, como se acabasse de questionar algobásico. Mairin captou a reação num piscar ― Compreendo... Os duques nãosão pessoas a quem se possa perguntar de qualquer jeito sobre o que querem.― Graham assentiu, agradado por não ter que explicar-se, ao que Mairin soltouuma gargalhada ― Sinto muito, senhor Graham... Os conhecimentos decortesia a cavalheiros de ascendência não são minha especialidade. Nunca vium em minha vida. De facto, até alguns momentos, acreditava que eram senãoum mito...

Ambos a desculparam, e, continuando, Graham se retirou. Ariadnaterminou de arrumar-se, curiosa pelo presente que a esperava e perguntando-se o que estaria pensando sua Excelência para aparecer ali. Em sua opinião,poucas conversas tinham pendente, a não ser que quisesse felicitá-la empessoa por suas recentes bodas. Não sentiria saudades: lorde Winchester eraum homem muito bem-educado.

Ariadna desceu as escadas com cuidado, olhando de um lado ao outro,temendo cruzar com aquele diabo. A situação pareceu-lhe muito grotesca detão absurda; preocupada se por acaso seu marido, um homem com quem narealidade devia compartilhar a cama, dirigia-lhe a palavra... Quando narealidade não era precisamente o cerne da erudição em relação à eloquência,era sim um grosseiro consagrado.

― OH! ― exclamou, ao dar de frente com um magnífico ramo de rosasvermelhas. Devia admitir que o cheirou antes de chegar ali, mas agoraintrigava-lhe a beleza do conjunto ― A que se deve isto? Foi lorde Winchesterquem o trouxe?

― Não, senhora. Há uma nota.Aproximou-se, seduzida pelo obséquio, e afastou brandamente as pétalas

das flores para encontrar o motivo de sua esplendidez.

Senhora Talbot,A risco de que encontre outro motivo mais para desconfiar de mim, já que

lhe disse que não lhe daria de presente flores sob nenhuma circunstância,

ofereço uma das razões de seu desejo de viver à espera de que desculpe meucomportamento.

Um bárbaro

― Bom, assinatura não deixa lugar a dúvidas de quem é o remetente. ―Riu Mairin, mostrando a cabeça por seu ombro ― Só um homem neste mundose apresentaria exatamente como o que é, coisa que no fundo é uma garantia.

Ariadna ficou olhando a cuidada caligrafia com verdadeira fascinação.Nunca imaginou que uns dedos tão toscos pudessem riscar linhas tão precisas,ou, que o proprietário desses dedos toscos tivesse decidido redimir-se. Teriasuposto que brincava ou inclusive ria abertamente dela, mas tal e como Mairinacabava de assinalar, Sebastian Talbot sempre se apresentava com o bom ecom o mal. Não imaginava fazendo algo que não queria fazer.

― De todos os modos... ― prosseguiu a jovem ― O que foi isso de tãoterrível que lhe fez que sentiu a necessidade de desculpar-se? Nunca penseique um homem assim chegaria a ajoelhar-se ante você.

― Com perdão pelo atrevimento... O senhor Talbot é um cavalheiro, ― omordomo pronunciou-se da porta ― no fundo. Possivelmente não tem boasmaneiras, mas sabe retificar quando se equivoca, e sua ideia do bem e o malpossui limites bem mais estreitos que os do resto dos homens que lhe rodeiam.

― Mandou-lhe dizer isso? ― Riu Mairin, olhando-o com ironia. Grahamafastou o olhar, o que fez que a moça risse ainda mais forte ― Não ponho emdúvida a sua bondade interna, senhor Graham; de fato, admiro que seja capazde fazer o bem sem necessidade de clamá-lo aos quatro ventos. Embora não odiga, e certamente o negue quando lhe perguntarem, sei que me fez vir com eleporque viu o que meu pai fazia comigo. Estar-lhe-ei sempre agradecida... O quenão significa que aprove seu trato para você. ― Particularizou, voltando-se paraa Ariadna ― Sem dúvida é benevolente e generoso, mas esteve a poucas horasde mandá-la com o Criador por sua falta de atenção para o próximo e é umporco exímio.

― Senhorita! ― arreganhou-a o mordomo.― Acaso não viu como olha a senhora? ― repôs, cruzando os braços ― Não

é nem preciso fixar-me na cor de sua aura para saber o que pensa ou quais sãosuas pretensões. Quão único deseja esse homem é...

― Senhorita Swift ― interrompeu uma voz masculina, declarando o

encerramento da conversa.Ariadna deu a volta, agradecendo que o mordomo tivesse tido a

amabilidade de anunciá-lo, ou do contrário teria sido incapaz de reconhecê-loao olhá-lo à cara. Tinha-o esquecido por completo, e isso a fez sentirencurralada.

― Excelência. ― Fez uma reverência, repentinamente incômoda ― Alegro-me de o ver.

Winchester não emitiu uma palavra, nem se moveu, até que Mairin e omordomo não abandonassem a estadia. Sentiu-se estranha por estar, pelaprimeira vez desde que se casou, completamente a sós com um homem. Emespecial tratando-se de um que foi seu pretendente.

― No que posso o ajudar?O duque avançou com tranquilidade, jogando uma olhada desinteressada

a seu redor. Ariadna não prestou muita atenção e se acomodou na poltrona,esperando que ele fizesse o mesmo. Não o fez. Por sua vez, seguiu andandopela estadia. A tensão de seu corpo revelava algo parecido entre repugnância edesconforto, emoções que a absorveram, como se as paredes tivessemencolhido até comprimi-la.

― Estava esperando o momento ideal para felicitá-la por seu recentematrimônio.

― Imaginava que esse seria o motivo de sua visita ― reconheceu Ariadna ―Agradeço, Excelência...

― Não é esse o motivo de minha visita. ― Corrigiu com suavidade. Logoesteve sentado frente a ela, atravessando-a com seus insondáveis olhos claros― Verá... albergo uma série de dúvidas desde que foi de meu conhecimento asprecipitadas bodas com o senhor Talbot. ― Pronunciou o nome com umdesdenho que não lhe passou despercebido ― Não sei se sabe que o senhorDoyle aceitou entregar-me sua mão apenas umas horas antes de quedesaparecesse de Londres.

Ariadna engoliu em seco. O tom do duque era o que seria de se esperar deum cavalheiro de sua talha: neutro, passivo... As palavras tinham sidoescolhidas meticulosamente. Porém, ela estava ciente que o tom agressivo dodiscurso que estava propondo estava muito longe de ser digno de suaExcelência. Ante isso, Ariadna só pôde concluir que o duque estava molesto, epossivelmente esse novo sentimento lhe tirava tanto do sério como a elamesma.

― Era consciente, Excelência ― assentiu.― Seria uma indiscrição de minha parte perguntar diretamente porque me

rechaçou? ― inquiriu ― Senhorita Swift, ― realçou, como se para ele seumatrimônio não tivesse validade ― acredito que não pensou o que poderiasupor para um homem como eu que fugisse a noite para Gretna Green paracasar-se com uma pessoa odiada por todos que conhecemos. Era de domíniopúblico que você e eu seríamos marido e mulher, e de repente, apareceu namão de... ― apertou os lábios, avisando de que estava a ponto de soltar umainsolência ― do senhor Talbot.

― Na realidade não pensei, Excelência. Lamento as consequências quemeus atos pudessem ter em você...

― Não desejo que lamente. ― Se adiantou ― Simplesmente... ― olhou asmãos, aparentemente arrasado ― eu gostaria que me desse uma explicação.Estive cortejando-a, dei-lhe presentes, prometi-lhe muito mais do que tinha... Ede um dia para outro, tudo se desvaneceu. Porquê, senhorita Swift? ―murmurou, quase sem voz ― Não eram meus sentimentos suficientes...? Acasoo senhor Talbot estava rondando-a enquanto cortejava comigo? ― supôs. Seurosto se escureceu ante a última possibilidade.

― Minha união com o senhor Talbot não tem nada que ver com o amor,Excelência. ― Jurou incômoda ― É obvio que nunca me rondou até casar-secomigo.

― Então? O que aconteceu? ― insistiu ― Ele a forçou, comprometeu-a oudesonrou? ― perguntou sem disfarces. Ariadna abriu muito os olhos ― Perdoe-me se me exceder, mas não posso pensar com claridade desde que todasminhas esperanças se desvaneceram no ar. Estou tão perdido sem você,senhorita Swift... Saiba que se esse canalha a desvirtuou, a teria amado apesarde tudo.

Ariadna engoliu em seco, não tão angustiada como turvada. Sabia doalcance dos sentimentos do duque, mas nunca teve o atrevimento de falar semdisfarces sobre o que lhe corroía a alma. Ariadna o agradecia, posto queconsiderava que mencionar as preferências do coração era pensar que ointerlocutor lhe correspondia na mesma medida, sobre tudo se esse eraduque... E ela nunca sentiu o mesmo.

Trocou de postura.― Temo que seja uma situação delicada e da qual preferiria não falar. ―

Confessou, esperando soar bastante cortante para que se retirasse ―

Excelência, saiba que você é um homem íntegro e admirável...― OH, meus pensamentos agora mesmo não são íntegros ou admiráveis

absolutamente ― cortou com certa inclinação à descortesia ― Acredita que nãosei bem que se conheceram somente alguns dias antes das bodas, e quechegou aos meus ouvidos que sua própria família falava da escapada como«sequestro»? Se a isso lhe acrescenta a péssima reputação desse cockneyrasteiro, conhecido por sua falta de decência, dá como resultado uma ideia deque eu não gosto. Para mim é evidente que a forçou a casar-se, e não vouperdoar que tenha arrebatado o que é «meu» ― vaiou, cravando os olhos najanela. Ariadna estremeceu pela férrea determinação de sua promessaimplícita. ― Só me diga o que quer que faça, e o farei.

Ariadna conteve um calafrio.― A que se refere, Excelência? Não pode fazer nada, meus votos... ―

Lançou um pequeno grito afogado quando ele se jogou em seus pés, agarrandosua saia. ― Excelência...

― Não me diga isso ― murmurou, enterrando o rosto em seu regaço.Ariadna se arrepiou como um gato, mas ele pareceu não o notar, ou talvez nãose importava. ― A amo, senhorita Swift... Porque isso para mim você é: asenhorita Swift, e não a esposa de um ladrão e um... putero ― cuspiu,encolhido pela raiva. Todo esse ódio que enchia seus olhos ficou libertado aoolhar para ela. ― Não vou renunciar a você. Nada poderia fazer-me renunciar avocê, entende?

― Por favor, Excelência, levante-se... suplico ― A criadagem poderiainterpretar mal, e sem importar como queira me chamar, sigo sendo umamulher casada. Isto é de todo imoral, e não acredito que um homem de sualinhagem queira...

― Não me importa. Não me importa quando se trata de você ― vaiou,miserável pela paixão. Agarrou-a pelas mãos num impulso, e as beijoufervorosamente. A pressão de seus lábios foi suficiente para abrir sulcos na suapele sensível. ― Não posso viver sem vê-la frequentemente. Não posso viver semseus olhos, sem seu corpo, sem... ― Sua voz se quebrou ― Você é quem sempredesejei... Amei-a do preciso momento em que a vi. Sua elegância e belezacelestial se gravaram em minhas retinas. Não pude descansar em paz após,pois estive seguro de que me seria impossível recuperar a felicidade se nãofosse tendo-a. E agora as minhas esperanças se esfumaçaram por culpadesse... monstro. Fuja comigo ― propôs, olhando-a com adoração. Ariadna

deixou sair o ar de uma incrédula exalação. ― Sei que adora sua família, e queé recíproco...

― Excelência. ― Interrompeu sem voz ― Como se atreve...? Você é o duquede Winchester ― tentou, esperando que apelar à sua situação o dissuadisse, ―não poderia abandonar todas suas posses sem... E o que seria de suareputação?

― Não me importa. Não me importa nada. Somente você... ― Voltou abeijar suas mãos. ― Mas se não quiser partir, entenderei. Entretanto, seguireisem aceitar as suas negativas. Necessito-a, senhorita Swift... Converta-se naminha amante. Dar-lhe-ei tudo o que peça, absolutamente tudo.

Ariadna ficou em pé de repente, enojada pelo desespero que emitia ocavalheiro.

― Sou uma mulher casada. Devo fidelidade e respeito a meu marido ―explicou, tratando soar imparcial ― E você me deve respeito; a mim e àinstituição que selou esta união...

― Não o diga! ― exclamou encolerizado. Levantou-se com ela, e a agarroubruscamente pela cintura ― O que assegura um monte de papéis é-meindiferente. Sou o duque de Winchester: apelarei ao favor da rainha se fornecessário para separá-la dele...

― Excelência, não acredito que esteja entendendo o que tento...Excelência!

O duque a agarrou com dolorosa firmeza, pressionando-a contra seucorpo. Ariadna tentou soltar-se, mas ele a conteve estampando os lábios comos seus. Agarrou-a pela nuca, impedindo-a de escapar do movimento imprecisoda boca sobre a sua. Ariadna choramingou, sentindo que o coração lheescapava pela garganta; comprimiu os punhos, que utilizou para empurrá-lopelo peito, sem nenhum êxito. Apertou os lábios para lhe impedir a invasão,embora fosse inevitável sentir a desagradável humidade de sua língua.

Ver-se encurralada por ele, com nenhuma oportunidade para escapar, fezcrescer a ansiedade em seu estômago. Logo se encontrou dominada por ela,tanto assim ficou imobilizada pelo medo.

― Piramnyi! ― exclamou Mairin, precipitando-se sobre o casal. O duquenão necessitou pressão ou violência por sua parte para separar-se,retrocedendo até que suas costas quase se chocaram contra a parede ― Estávocê bem, senhora...?

Ariadna não reagiu às sacudidas de Mairin. Viu tudo impreciso, dominada

por um repentino enjoo; foi impossível compreender o que a donzela dizia, nemsequer quando o duque abandonou a estadia sem pronunciar uma só palavra,ou quando os ponteiros do relógio avançavam. Sentiu que perdia o equilíbrio,mas felizmente estava ali o senhor Graham, ajudando à moça a levá-la àpoltrona.

― Minha senhora... minha senhora ― insistia Mairin ― O que posso fazerpara que se sinta melhor? Deveria ir procurar o senhor?

Aquilo pareceu trazê-la de novo à realidade. Ariadna inspirou fundo e,mais por inércia que por vontade, recuperou a segurança sobre suas ações. Foinegar com a cabeça quando uma nova presença invadiu a estadia; soube antesde vê-lo. Benzia o ar com suas cores e sua alma irascível.

― Por Deus, tanta ilusão lhe têm feito as flores?Ariadna se voltou para ele, captando a tempo o ar desenvolto com o que

tirou a cartola e passou os dedos pelo cabelo, dando-lhe um aspetodesalinhado. Sua presença foi mais assustadora e impactante inclusive que obeijo do duque; ia vestido com um elegante casaco Chesterfield, um lenço depescoço que o fazia parecer mais alto do que já era, e seu tão prezado comotemível fortificação.

Pela expressão irônica que luzia, Ariadna imaginou que não teria cruzadocom o duque. Seguindo seu exemplo, Mairin e Graham recuperaram acompostura e atuaram como se nada tivesse acontecido.

― Foi um detalhe, senhor Talbot. ― Conseguiu articular, neutro.― Um detalhe teria sido uma rosa, não duas dezenas, mas estou de acordo

em que resista a me desculpar. Afinal de contas, não posso amarrar meusinstintos neandertais, por muito que assim o deseje... As dezanove floresrestantes pedem perdão com antecipação. ― Assinalou ― De fato, é tão provávelque volte a ser vítima de minhas negligências, que mandei trazer algumassementes novas para não ter que estar gastando em desculpas continuamente.Em suas mãos estará a fonte do perdão.

Ariadna quase sorriu por sua desenvoltura.― Hão-lhe dito alguma vez que tudo o que sai de sua boca soa a

brincadeira, senhor Talbot?― Procuro me rodear de gente que não me diz o que já sei, mas sim,

alguma outra vez me comentaram isso. Inclusive fui repreendido por isso ―concluiu. Rodeou a poltrona frente a dela e sentou-se, deixando a um lado afortificação. Escorregou as costas pelo respaldo, adotando uma postura de todo

inapropriada. Tamborilou os dedos sobre o braço da cadeira antes de voltar afalar; Ariadna teve a impressão de que estava nervoso, embora não tanto comoela pelo episódio recém vivido. ― Sua irmã veio ver-me na fábrica para meameaçar que se não aparecer esta noite no baile que leva meses organizando...Bom, duvido que seus sensíveis ouvidos suportem o que assegurou que fariacomigo.

― Esquece que vivi com ela durante dezanove anos, senhor Talbot ― repôs,deixando as mãos no regaço.

― Nem tampouco é nada que não desejasse ter feito comigo o dia deontem, não é assim? ― Elevou uma sobrancelha, aparentemente entretido. ―Como é... Tenho as mesmas intenções de ir a esse baile que de arder numapira funerária junto com todos meus pertences, além de que tenho outrosplanos. Por isso, irá sozinha. Com Mairin, se preferir... ― levantou-se ― Acarruagem estará preparada para ti à hora que quiser partir.

Ariadna se esticou mais do que já estava. A única irmã que poderia terorganizado uma festa era Penélope, e isso significava que se celebraria napropriedade de lorde Ashton... Um íntimo amigo do duque de Winchester, queiria sem dúvida.

Teve que reprimir o impulso de deter Sebastian com uma súplica. Nãoqueria voltar a vê-lo nesse dia; de fato, se dela dependesse, preferiria não voltara vê-lo jamais. Dava-lhe medo olhar as mãos, que tinha escondidas entre asdobras da saia, e comprovar que lhe tinha deixado as marcas de seus beijosviolentos.

― Preferiria ficar em casa ― articulou, buscando-o com o olhar. Sebastian,que já caminhava à saída, como se não suportasse estar ali, deu a volta com arum interrogante.

― A noiva de Londres renunciando a um acontecimento social?― Que Londres me escolhesse como noiva não significa que meu objetivo

fosse agradá-la, ou que queria sê-lo. A verdade é que nunca gostei dos bailes.― Acreditava que você gostasse de dançar..., e da música.― Eu gosto quando Briseida toca o piano e canto para ela, ou dançar com

minhas irmãs, Ou... quando ninguém me vê ― reconheceu. ― Mas detesto oruído, e há muito numa reunião.

Sebastian trocou o peso de uma perna a outra.― Sabe cantar?― Faço-o quase todo o tempo. ― Confessou ― Às vezes sem me dar conta.

― Terei de estar atento, então. Mas voltando para o tema da visita, não énegociável. São ordens da marquesa. Não desejo que me joguem no Tamisacom uma bigorna presa aos tornozelos, querida.

― Então venha comigo. ― Pediu, levantando-se ― O que pensarão se fizerminha primeira aparição em sociedade depois de me casar, completamentesozinha?

― Talvez pensem que nos demos como o cão e o gato e que me jogaste deseu leito antes de me deixar entrar sequer. ― Comentou Sebastian com umsorriso tão afiado que cortava. ― Afinal não estariam equivocados. ― Fez umapausa para escrutinar o seu rosto. ― Espero que não me faça me desculpar porisso.

― A honestidade não é um delito, e em seu caso, parece imperativo quevenha da mão da insensibilidade cada vez que se manifesta. Acompanhar-me-á, ou não?

― Pedir-te-ia que me suplicasse um pouco mais... Mas não estou segurode que nem desta vez vá obedecer seus desejos. Isto não é rancor, não meinterprete mal... Simplesmente tenho essa mania de tratar as pessoas tal ecomo as pessoas me tratam. ― Especificou, agarrando sua fortificação com asduas mãos um momento antes de voltar a apoiar todo o peso aí. Ariadnaadmirou um instante o acabamento, que recriava a cabeça de uma ave. ― Éobvio, estou aberto a sugestões.

― Acredito que não lhe convém contrariar a minha irmã, senhor Talbot. ―Repôs com suavidade ― E se ouvir que não apareci por sua culpa, poderia ir àsnuvens. Agora que está grávida, anda mais sensível do que de costume, e jásabe como é normalmente...

Sebastian a interrompeu com uma estrondosa gargalhada, momento noqual Ariadna soube que acabava de ceder. Sua companhia lhe rendeu umaincrível sensação de amparo, o qual era paradoxal quando muito. Por que teriaque sentir-se segura com um homem tão dominante e decidido a sair-se com asua como o duque...? Talvez fosse porque Sebastian nunca a pressionou osuficiente para esmagá-la; não além do que lhe intimidavam suas reações anteum singelo roce, ou a promessa do mesmo. Ou possivelmente porque fosse umbom homem, apesar de tudo...

― Boa chantagem... ― Assinalou ele, fazendo uma graciosa e exageradareverência. ― O que posso dizer? Todo o mal se contagia. ― Estirou os lábiosnum ligeiro sorriso. ― Nos veremos então.

Ariadna não era uma grande fanática da moda. Como qualquer uma,reconhecia quando levava objetos que a favoreciam, mas não investia muitotempo em escolher seus trajes, ao contrário de suas duas irmãs maiores. Nissopodia dizer que se parecia com Briseida: a ambas importava bem pouco vestir-se de um modo ou outro. A menor, porque para suas correrias a vestimenta erana realidade uma dificuldade. A ela, porque não acreditava de todo na belezafísica.

Mas sim acreditava do que esta podia produzir numa pessoa, e agoraAriadna estava sendo testemunha de ditos efeitos. Sebastian tinha searrumado para a ocasião, raspando os escassos, mas firmes fios de barba epenteando o cabelo para trás, o que permitia um melhor acesso à forma de seuatraente rosto. Ariadna nunca pensou que utilizaria essa palavra para referir-se a alguém; antes de conhecer sabia de beleza, mas não de encanto. Depois...Admitia que preferia a segunda qualidade à primeira como virtude, embora nãopara ser espectadora. Era tão atraente e cativante que mal podia lhe tirar oolhar de cima. Sorte que ele não se deu conta, parecia pensativo ao examinaratravés da janela.

Na realidade, estar a seu lado era uma grande contradição. Atraía-lhe seuaroma natural e a madeira da qual parecia ser, mas lhe causava rechaço seucomportamento. Também sentia curiosidade por sua personalidade faiscante eseu constante desdobramento de grosserias; Ariadna sabia que suas irmãs oachavam grosseiro, mas ela o defenderia alegando sua frescura e naturalidade.Por outro lado, sentia-se cômoda porque poderia reconhecê-lo ao olhá-lo, semvê-lo e só tocando-o... E também terrivelmente ameaçada por sua envergadurae seus potentes desejos. Em geral odiava que a tocassem, e que ele o tivessefeito e no fundo tivesse desfrutado fazia suas percepções com o sucedido umtanto quanto confuso: não podia confiar em Sebastian, mas tampouco em simesmo, porque lhe devolveu o beijo...

Ariadna nunca tinha conhecido alguém assim, que produzisse tantasemoções díspares e pudesse lhe pôr a pele arrepiada com um sorriso canalha.

Assim que a carruagem de quatro portas freou ante a maravilhosa mansãodo conde de Ashton, Sebastian saltou ao exterior, sem ajudá-la a descer nemfazer nenhum comentário sobre seu traje. Ariadna estava bem com isso; defato, alegrou-se de que não se ajoelhasse ante ela para que o usasse comodegrau, coisa que alguns extremistas se ofereceram para fazer. Ele não atratava como uma criatura etérea ou uma boneca quebrada a quem devia

evitar outros tantos descosturados... Tratava-a como a qualquer outra pessoa,possivelmente um amigo que sabia valer-se por si só. Não importava que fossedeliberadamente indiferente ou confiasse em sua fortaleza – afinal de contas,confiou tanto nela que quase morreu de cansaço durante a viagem a GretnaGreen: – o resultado era que Ariadna poderia chegar a considerar-se capaz deser e sentir sozinha.

De todos os modos, e como se de repente se desse conta de que havia umamulher com ele, Sebastian deu a volta e a olhou. Ariadna engoliu o nó dagarganta como pôde, e aceitou com um direto sorriso o braço que lhe estendeu.

― Sabe que já não é Ariadna Swift, mas Ariadna Talbot, e o que issosignifica..., verdade? ― inquiriu ele, caminhando para a entrada. ― Não vãoolhá-la como fizeram na última vez que os viu. Não se aproximarão de ti paraconversar, nem lhe pedirão que dance com eles, nem será, em definitivo, umapresença grata. Só tolerada ou nem isso.

Ariadna o olhou com um intento de pergunta implícita. Não sabia aondequeria chegar com isso; mas percebeu uma nota de amargura no fundo, comose lhe preocupasse que isso a pudesse afetar, mas não pensava que Sebastianfosse tão alheio a ela para acreditar que não lhe estava fazendo um favor. Talcomo ele, Ariadna queria fugir das pessoas.

Ia explicar com poucas palavras quando, tal e como imaginava queaconteceria, trocou um olhar com o duque de Winchester. Sua Excelência nãoprestou tanta atenção a ela como a Sebastian, que não apreciou sua fúria porestar a aguardar a sua expressão, mas mesmo assim ela estremeceu. Foi umareação maciça que despertou o interesse do empresário, que não demorou aseguir a trilha de seu olhar.

Seu rosto se escureceu ao reconhecer o duque.― Se não me tivesse trazido contigo, teria pensado que desejava assistir a

esta festa para se reunir com seu velho amante. ― Comentou com essadesumana desenvoltura a qual já estava perto de habituar-se. ― Seu George,não?

Ariadna franziu o cenho sem compreender até que entendeu. Que terrívelcoincidência! Estava certo... O duque de Winchester se chamava GeorgeSimmons.

Por um lado, desejou muito que Sebastian acreditasse que amava, ou aomenos desfrutava, um homem ao qual não desejava ver nem em pintura. Maspor outro, prendeu uma faísca de ilusão nela. Fazia mais acreditável seu

pretexto da outra noite, e se o desprezo que Sebastian sentia pela aristocraciaera só metade de verídico do que asseguravam as más-línguas... servir-lhe-iacomo desculpa para não a tocar jamais, o que era uma vitória.

Ou isso acreditou, até que Sebastian conseguiu associar sua expressãocorporal ao sentimento correto.

― O que ocorre? Por que reagiste assim ao vê-lo? ― inquiriu, olhando paraela. ― Ariadna, fiz-te uma pergunta.

― Como reagi?― Como se tivesse vindo matar-te. Desculpa, não sou um grande gênio no

que a efeitos do amor se refere; talvez isto é só o que tem em ti seu apaixonado.― Ironizou.

― Nada disso, senhor Talbot. Simplesmente... ― Engoliu em seco. Nãoacreditava que lhe fosse importar a proposta do duque, posto que ela lhe eraindiferente, mas foi difícil confessá-lo em voz alta. ― Me surpreendeu vê-lo aquiquando me disse que não acudiria. Esta manhã me fez uma visita para mefelicitar pelas bodas, e me disse que tinha uns assuntos para cuidar, por issodesgraçadamente não o veria...

― É tão péssima mentirosa como eu sou péssimo bailarino, e acredite, issoé no mínimo. ― Cortou ― Diga-me agora mesmo o que está ocorrendo. Sei queo duque te fez uma visita. Graham me confessou isso, não sem certaconfusão... por que acredita que decidi vir? A fúria de lady Ashton teria omesmo efeito em mim que o de uma velha ― soltou tão alegre. Ariadna o olhoucom os olhos muito abertos. ― Estou aqui para averiguar se teria que mepreocupar. Porque veio?

― Já o disse...― Querida, conheço o duque de Winchester muito melhor que você, e sou

brutalmente honesto quando digo que me consta que só viria a minha casa sesoubesse como incêndiá- la.

― Senhor Talbot, não deveria dizer isso em voz alta.― E você não deveria dizer mentiras. ― Contra-atacou, rodeando-a mais a

seu corpo.― E você não deveria pegar-se tanto a mim. Não é correto num salão

lotado de convidados.― Quer que continuar a jogar, duendezinha? Posso tocar vinte ou trinta

temas mais indecorosos que possa imaginar neste mesmo salão, e só meestaria referindo ao que não deveria fazer.

― Eu não faço nada indecoroso, senhor Talbot.― Sim que o faz. Em meu pensamento não tem outra ocupação. ―

Respondeu. Ariadna sentiu sua mão apertada contra o flanco. Um segundodepois, já não via suas irmãs nem a nenhum outro assistente; tudo ficavaoculto atrás de seu corpo e as ramagens de uma palmeira. ― Diga-me averdade, Ariadna.

Ariadna pensou que não seria mau ser sincera, mas era bem pior não tersegredos, e não precisava compartilhar esse com ninguém. Só confirmaria queestava casado com uma mulher fraca que não sabia defender-se, e embora nãolhe doeria se Sebastian tivesse uma má opinião dela, na realidade lheresultaria difícil aceitá-lo para si mesma.

― Não tem nenhuma importância, só me disse que lamentava que tivesseescapado. ― Disse, suspeitando que não a deixaria sair se não lhe desse algo.

― Que tivesse escapado «comigo», não é assim?― Que não tivesse escapado com ele, melhor dizendo.Aqueles topázios do mar Vermelho que a olhavam sem descanso se

obscureceram até quase imitar o negro do vazio.― Plantou-se em «minha casa» para agradar seus ouvidos e recordar que te

ama? ― perguntou. Ariadna pensou que seria inteligente não responder, e seequivocou por completo. ― Vá. Sua luz é tão pura que nem sequer casarcomigo conseguiu apagá-la. ― Brincou.

― Ou talvez você não é tão escuro como quer pensar.― Talvez seja mais. ― Replicou ― Evitaste a pergunta. O que te disse?― Ari, aqui está...! ― exclamou lady Ashton às suas costas.Ariadna observou que Sebastian fechava os olhos e movia os lábios,

certamente emulando uma imprecação.― Como sempre, aparece você no momento mais adequado. ― Chiou

Sebastian, ganhando um olhar desconfiado por parte de Penélope.― Acredite; asseguro-me de chegar quando tenho que fazê-lo. ― Logo se

voltou para ela ― Como está...?Penélope a agarrou pela mão e a levou a outra ponta do salão enquanto a

bombardeava de perguntas. Foram os minutos mais longos de sua vida:saudando, recebendo felicitações forçadas e sem dúvida falsas, e rechaçandosolenemente as valsas que lhe ofereciam. Custou-lhe responder às perguntasque Meg e Penny lhe fizeram sobre seu matrimônio, mas saiu graciosa, e assimque foi possível, abandonou o salão para encontrar-se com sua irmã menor.

Briseida, por não ter alcançado ainda a maioridade, devia passar todaaquela temporada encerrada em sua habitação. Isto realmente a frustrava: eraum torvelinho que necessitava de ação quase todo momento, louca pelasaventuras e permanentemente ansiosa por conhecer novos amigos quefizessem de cúmplices de seus desvarios. Ariadna não tinha que esforçar-semuito para saber que estaria morrendo de aborrecimento ali em cima, sentadaem sua cama com um livro nas mãos. Livro que era incapaz de acabar se nãoestava dando voltas de um lado a outro, ou se não contavam com uma grandecarga de ação.

Porém, um assobio proveniente de uma das salinhas do piso de baixo adistraiu. Ariadna seguiu o som, curiosa, chegando à porta entreaberta da qualsaía uma mão que conhecia muito bem.

― Bri? supõe-se que não deveria estar aqui. ― Disse em voz baixa ― Pennyte matará se descobrir que te deixaste ver...

― Sim, sei, sei. ― Cortou, aparentemente nervosa ― Subirei a minhahabitação assim que esteja seja seguro, mas necessito que me ajude com algo...― pigarreou ― Poderia ir a meus aposentos e resgatar um vestido, ou umacapa, possivelmente...? Sabe, tive um ligeiro problema com meu traje.

― A que te refere com «ligeiro problema»?Briseida engoliu em seco compulsivamente.― Prometa-me que não dirá a ninguém.― Já sabe que eu nunca dou na língua.― OH, sei muito bem, por isso é minha preferida... Mas isto é distinto,

porque poderíamos ter um problema as duas. Ari... ― mordeu-se o lábio ―Estou nua.

Ariadna abriu os olhos como pratos.― Como? por que...? O que fez agora, Bri?― Ah, como estou cansada dessa cantilena! O que fez agora por aqui, o

que fez agora por lá... E se um fora da lei tivesse entrado em meu quarto e metivesse arrancado a saia? E se tivessem tomado minha virtude à força...?

― Foi isso que passou? ― perguntou Ariadna, alarmada.― Pois claro que não. Ter-lhe-ia arrancado a cabeça antes, e teria tomado

suas virtudes em seguida! ― exclamou, tão veemente como de costume. ― Nãofaça perguntas agora, por favor. Simplesmente sobe à habitação e me traga umvestido. E tente que Penny não a veja; à Meg posso chantagear com suas velhasexcursões noturnas bem pobres de roupa, mas Penélope poderia me justiçar

usando somente uma tesoura.Pensando-o bem, era muito possível que depois de esclarecer tudo, lady

Ashton decidisse usar suas próprias mãos. Fosse qual fosse o motivo de suanudez – e as possibilidades eram tantas e surpreendente que tais aventuraspudessem sugerir – Ariadna tinha que resgatá-la. Encerrou-a na habitação, edepois de assegurar-se de que ninguém a via, subiu as escadas.

Ou o teria feito se uma voz não a tivesse retido.― Senhorita Swift.Ariadna freou em seco, apressada pelo tom imperativo com o que

Winchester pronunciou seu nome. Voltou-se muito lentamente, como sequisesse dar-lhe tempo para retroceder. Algo que não só não fez; tomandoliberdades das quais ninguém deixaria impune ao encontrar-se num corredordeserto, o duque quase a reteve subindo os degraus. Soube que era ele porquedesde essa manhã não poderia esquecê-lo: seu perfume corporal, que era agoraazedo e augurava más vibrações, assinalava-o como presença ingrata.

― Pensou no que lhe propus esta manhã?― Excelência, não deveria estar aqui ― sentenciou.― Recebi um convite.― Referia-se diante de mim, acossando-me de novo. ― Repôs. Deu uma

olhada para os lados; em caso de ter que esconder-se, não saberia onde fazê-lo.Desconhecia a distribuição da casa. ― Meu marido veio comigo...

― Seu marido está ocupado bebendo, como sempre. Ou bebendo, oucaindo com fulanas, ou a trapacear nas cartas... Que classe de homem é essepara você? ― perguntou, com a cabeça inclinada. Subiu alguns degraus,obrigando-a a tomar a direção oposta. ― Minha preciosa Ariadna Swift... Vocêmerece algo muito melhor. O demonstrei esta manhã ― recordou ― Ninguémvai amá-la nem a tratar melhor do que eu. Só venha comigo e eu lhe darei tudoque possa desejar...

― Excelência. ― Insistiu ela com voz tremente ― Dei-lhe minha respostaesta manhã. Sou fiel a meu marido, e não faria isto à minha família, além deque não correspondo aos seus sentimentos.

― Como? ― resmungou ele. Avançou um passo para segurar em suacintura e fazê-la chocar contra seu peito. Ariadna sentiu que a bílis lhe subiapela garganta ― Está apaixonada por Sebastian Talbot? Esse selvagem...?

― Solte-me. ― suplicou fracamente, empurrando-o pelo peito ― Não desejosua companhia nem suas promessas.

― E desejas as desse sujo cockney?― Pergunto-me quantas vezes terei de me lavar até que deixe de me

chamar assim. ― Comentou uma voz fria às suas costas. Ariadna observou queo duque nem se alterava: sinal de que não lhe importava a sua aparição. ―Olhe que hoje até me perfumei para a ocasião... Mas os de sua nobre casta sãoincapazes de valorizar algo assim. OH, Excelência, ― remarcou, tão irônico quesoou pior que o pior dos insultos ― o que tenho de fazer para ser do seuagrado?

O duque virou-se para ele, momento em que Ariadna pôde respirar comnormalidade. Não sabia chorar, nunca soube fazê-lo... Mas as sensações quevinham com o pranto sim lhe eram familiares, tal como demonstrava nessasituação. Teve que reunir uma quantidade enorme de saliva para mobilizar onó instalado na garganta.

Foi coisa feita quando Sebastian, decidindo a deixar a um lado aeducação, agarrou ao duque pelas lapelas da jaqueta e o jogou escada abaixo.O homem caiu como um boneco de trapo, aterrissando entre uivos no início daescada.

― Sebastian! ― exclamou Ariadna baixinho, absolutamente aterrorizada ―O que fez?

― Dir-te-ei o que «não» fiz: matá-lo. Isso merece uma quebra de onda deagradecimentos. ― Concluiu, defendendo-se atrás de uma máscara deindiferença ― E agora vamos daqui antes de dar outra razão a suas irmãs parame considerar o pior que te pude passar.

Sebastian desceu alguns degraus. Ao ver que Ariadna não o seguia,voltou-se e lançou-lhe um olhar de aviso, carregada de potencializada negativae outro sem-fim de sentimentos. Ariadna quis lhe agradecer por aparecer, masfoi impossível exteriorizar seu alívio. Odiou não encontrar a habilidaderequerida para abraçá-lo, para fugir do medo que tinha tido.

De algum modo, ele teve que entender essa reclamação, porque estendeu obraço com a palma para cima. Ariadna tomou a sua mão em seguida, epermitiu que a guiasse para a saída alguns segundos antes de que osconvidados formassem redemoinhos em torno do corpo cansado do machucadoduque.

Sebastian se encerrou com ela na carruagem de quatro portas dando umasonora portada. Ariadna se fixou em que movia a perna compulsivamente, tal ecomo sua irmã tinha engolido em seco, e recordou que devia lhe proporcionar

um vestido.― Espere. ― Pediu sem voz, antes de que Sebastian ordenasse que a

carruagem iniciasse a marcha ― Devo entrar de novo para...― Não. ― Cortou ele, aparentemente mais calmo ― Não vais entrar nessa

casa outra vez, porque se o fizesses, farias acompanhada, e se fosse contigo,estaria chutando a cabeça desse miserável até acabar com ele. Quer que façaisso?

Ariadna pensou que o melhor seria não brigar por esse vestido. Sua irmãera uma grande aventureira... Acabaria encontrando uma maneira de salvar-se.

Observou que Sebastian se inclinava para frente, apoiando os antebraçosnas coxas, e quase roçava seu nariz com a própria.

― Agora vais dizer a que diabos foi o duque de «me importa uma merda»fazer a minha casa.

Ariadna quase estremeceu pela amostra de vocabulário atroz. Sua irmãPenélope era uma grande aficionada a fortes expressões, mas poucas vezes assoltava em sua presença, e, de todos os modos, não tinham nem de longe tantodesprezo contido como o que ele acabava de usar.

Ao ficar em marcha a carruagem, Ariadna saiu ligeiramente impulsionadapara frente. Quase beijou nos lábios de Sebastian por equívoco, o que lheacelerou o coração e o esticou de maneira óbvia.

― Não é nada importante. ― Respondeu ela, sabendo que mentia ― Mepediu que fosse sincera e lhe confessasse os motivos de meu recentematrimônio.

― Duvido que se referisse a isso quando dizia algo sobre «ter demonstradoseu amor» ― assinalou com escarnio ― O que diabos ele fez?

― Agarrou minhas mãos e me beijou, e.… ― respondeu rapidamente. Nãopôde continuar. Sebastian a tirou dos braços e tirou-lhe as luvas de um puxão― O que há...?

Sebastian emitiu o mais parecido a um grunhido animal quando ficaram àvista as marcas dos beijos do duque. Tinha uma pele tão extremamentesensível que lhe tinha aberto sulcos arroxeados no dorso e nos pulsos.

― Pisar-lhe-ei no crânio. ― Acreditou entender com seu murmúrio.Ariadna teve que afinar o ouvido; acabava de surgir um fechado acento

cockney que resultava incompreensível. Tanto foi assim que não compreendeunada do que veio a seguir.

― E que mais? ― perguntou. Olhava-a com os olhos obscurecidos. Ariadnaesteve segura de que saltaria da carruagem em marcha se dissesse a verdade;por isso se alegrou de que freasse nesse instante ― Ariadna...

Estendeu a mão até agarrar a portinhola com firmeza. Engoliu em seco,assustada pelo que pudesse lhe fazer se averiguava que não pôde afastar oduque dela.

― Beijou-me.Abriu a porta e saiu precipitadamente antes de que Sebastian pudesse

assimilar sua confissão. Pôs-se a andar com rapidez, perguntando-se por queparecia fugir em todo momento de seu marido, e tocou à porta com desespero.Não passaram nem três segundos até que Sebastian chegou a ela,absolutamente enfurecido.

― Por que diabos não me disse isso assim que cheguei? ― bramou,fazendo-a diminuir.

― Não grite.Ariadna teve a certeza de que a beijaria nesse preciso instante. Olhava-a

com fome, como se não tivesse comido jamais e alguém acabasse de dar umadentada em sua única esperança de alimento; assim foi como se deu conta deduas coisas. A primeira, que ele a desejava muito mais do que aparentava. E asegunda, que odiava ao duque por ter mexido com o que lhe pertencia.

Ou isso pensou a princípio. Quando ficou claro que Sebastian se conteria,agarrou-a pela mão e passou como um vento diante do mordomo, a quem nempôde saudar. Ariadna se viu arrastada por sua rápida caminhada em direçãoao último piso da casa, aquele onde os serventes tinham suas dependências.

Um calafrio a percorreu dos pés a cabeça. O que estivesse passando pelamente daquele homem era um total mistério para ela, e isso a assustava,porque nada em seu corpo ou expressão revelava algo que não fosse frustração.E os homens só sabiam cometer enganos quando dita emoção era seu guia.

Por fim, Ariadna se viu sentada na humilde mesa de madeira em quecomiam os serventes. Surpreendeu-lhe que a cozinheira e seu ajudante, umpar de mulheres relativamente jovens, sorrissem com calidez a Sebastian. ― Enão só isso, mas sim o chamassem por seu nome. ― antes de retirar-se.

Ariadna quis perguntar o que se propunha, e temeu que pretendessedeitar-se com ela ali mesmo, aproveitando que não teria para onde fugir pornão conhecer aquela zona. Graham foi muito estrito ao estabelecer que elanunca devia ver as modestas estadias dos criados.

Por estranho que pudesse parecer, Sebastian ficou em silêncio e, em lugarde envenená-la com suas palavras ou olhares, tirou uma panela e a encheu deágua. Colocou-a ao fogo sem duvidar um segundo onde poderia encontrar osfósforos, no que estropia se encontravam os utensílios de cozinha ou qual dasduas latas cheias de água era a que continha a potável.

Ariadna piscou, sem poder acreditar em tudo o que estava vendo. Pareciacomo se tivesse passado meses ou inclusive anos movendo-se pela cozinha.Sua mão não titubeou ao tirar de uma gaveta um pano branco e rasgá-lo pelametade para improvisar uma compressa. Tampouco o pensou duas vezes aoverter um pouco dessa água numa bacia, acrescentar um par de folhas de cháe, com uma colherinha, remover o conteúdo até que aromatizou o ar.

Com a mesma brutalidade com a que fazia tudo, Sebastian se aproximouda mesa e deixou a taça diante de seu nariz. A fumaça que desprendiaacariciou o nariz de Ariadna, que estremeceu agradada ao tocar com os dedos asuperfície ardente.

― Bebe ― ordenou.Ele então empurrou a cadeira ao lado e virou aquela em ela estava

sentada para ajoelhar-se a seus pés. Tomou a sua mão direita e a sustentousobre sua palma calosa um instante, estudando-a em silêncio. Depois, verteu aágua quente na compressa e a pressionou contra o arroxeado mais visível.

Ariadna ficou petrificada.― O que...― A água quente, a clara de ovo e o vinagre de maçã aceleram o processo

de cura deste tipo de marcas. ― explicou, ainda tenso. Ariadna o olhou semcompreender, mas ele não se incomodou em separar os olhos da zona afetada.― Não há ovos, e o vinagre fará que suas mãos fiquem com cheiro ruim duranteuma semana, assim que esta é a melhor opção.

― Não é necessário. ― Apressou-se a dizer ― Tenho a pele muito sensível aqualquer roce, e este tipo de machucado aparece a qualquer momento. Somemcom a mesma rapidez...

Sebastian levantou o queixo. Uma mecha de cabelo ondulado enviesavasua testa, tal como a cicatriz que percorria visivelmente sua bochechaobscurecida. Ariadna sentiu-se injusta ao encontrá-lo arrebatador quando umaemoção tenebrosa se apoderava de seus olhos.

― Não quero que alguém pense que tenha sido eu a fazer isto.Jamais saberia porquê, mas a dececionou que aquele fosse o motivo de

seu alarme.― Ninguém os veria. Tenho luvas o tempo todo...― Excepto quando está em casa. ― Particularizou, olhando de novo o seu

delicado trabalho.Ariadna estava muito intrigada com seu estranho comportamento para

reconhecer que daquele par de mãos brutais emanava a suavidade da sedapersa.

― Teme que os serventes o achassem culpado?― Não. Eles nunca me acusariam de algo assim. Nem tampouco chegariam

a insinuá-lo ou pensá-lo.― Quem o preocupa, então? ― inquiriu. Sebastian deixou de pressionar

um segundo, e agachou a cabeça para olhar os joelhos. Algo tão singelo comoisso, uma postura derrotista, inspirou Ariadna. ― Eu? Tem medo de que euacredite que é capaz de me fazer isso?

Observou que relaxava os ombros.― Bom... ― começou recuperando parte de sua jovialidade. ― Já lhe tenho

feito isso não aparecendo a tempo, não? ― Olhou-a diretamente aos olhos ―Estou de acordo que me considere asqueroso. Já viu que não é primeira adescobrir essa novidade. Mas continuo a ser o seu marido, e jurei proteger-te.Se não me disser que alguém quer a ferir, não posso fazê-lo, entende?

― São apenas alguns negrões, Sebastian. ― Murmurou, sobressaltada porseu veemente arrebatamento ― Nem sequer quis me fazer mal de propósito. Sóme sustentou com muita força.

― Não importa quais fossem as suas intenções. ― Repôs bruscamente ― Eque o fizesse para te fazer cúmplice de seus sentimentos não lhe subtrai culpa.O amor se utiliza como desculpa para cometer os piores crimes que possachegar a imaginar. ― Disse com um pouco de amargura.

Como se não pudesse suportar estar ali um segundo mais, levantou-se ese aproximou do balde para empapar de novo a compressa. No meio doprocesso, tirou o capote, a jaqueta e o lenço, ficando em mangas de camisa.Desde aquele extremo da mesa, lançou um olhar enviesado de olhosentreabertos a Ariadna, como se soubesse que ia falar.

― Não vai perguntar por que não me afastei?― O duque é o dobro de seu tamanho. ― surpreendeu-a ― Não poderia se

afastar nem que quisesse.― Você também o é, e sustenta que nunca obrigou ninguém a nada. ―

Escapou-lhe.― Mas eu não sou duque. ― Repôs ― Eu não estou seguro de que vá se

cumprir a minha vontade; só «tento» me assegurar disso, o que é diferenteposto que parto de uma margem de engano. A determinação na hora de fazeralgo é uma variável que determina. ― Valha a redundância ― o êxito do que sepretende. Um homem como ele sempre sabe que é bem recebido, e por isso ésempre bem recebido. Eu não, e isso não me torna complexo, mas sim melimita. No momento em que tivesse percebido seu desconforto, ter-me-iaretirado. Um duque não sabe perceber isso, diretamente.

Quis perguntar por que estava tão familiarizado com essa questão, mas foiimpossível quando retornou a seus pés, desta vez para atender a outra mão. Otato áspero do pano e a temperatura a que a submetia a transportou a outromundo, no que permaneceu até que uma suave e rouca gargalhada deincredulidade a tirou de seus pensamentos. Era ele quem ria.

― Não vou poder te deixar sozinha nunca. ― Suspirou ― A esses tubarõesnão vale nada que agora seja minha... Seguir-te-ão assediando sem piedade,arranhando qualquer segundo contigo. Terei que te encerrar numa torre?

― Poderia ser feliz numa torre. ― Respondeu com honestidade ― Eu gostoda paisagem e das alturas, e passando a maior parte do tempo afastada darealidade... Uma torre certamente seria meu lar ideal.

― Sem dúvida, embora acabariam encontrando uma maneira de subir. ―Balançou a cabeça. Deu a volta à sua mão, e acariciou a palma com a gemados dedos centrais, lhe lançando um estremecimento a partir dali ― Por quetodo mundo te adora, duendezinho? Como os enfeitiçaste para que não possamdeixar-te viver...?

― Não sei.Sustentaram o olhar durante toda uma eternidade, momento em que

Ariadna aprendeu que seus olhos eram uma maravilha inegável a que só ostolos renunciavam. A raiva não se diluiu. Continuava dentro deles, daquelesdois globos de luz estelar que, apesar de tudo, não pretendiam enganar aninguém com mensagens de pureza. Sua beleza já era corrupta, e por issotransmitia vícios, maus costumes, brutalidade... Um mundo desconhecido eproibido que Ariadna achou exuberante.

Sebastian colocou repentinamente um dedo em seu pequeno nariz.Desceu da ponta, riscando um leve desenho ovalado sobre seus lábios, e alificou: pedindo-lhe em linguagem não verbal que não dissesse uma palavra.

Ariadna foi consciente da diferença entre a suavidade de sua boca e a durezade sua pele.

― Talvez eles tenham a culpa. ― Propôs num fingido tom conciliador,mantendo o contato. Seus olhos apontavam onde o dedo a acariciava, por issosupôs que se referia a eles ― Recentemente tenho descoberto que poderiamatar um homem com minhas próprias mãos se somente soprasse sobre seuslábios. Não necessito da promessa de teu beijo; basta-me a escassaeventualidade de obtê-lo para respirar com regularidade.

― Senhor Talbot...― Tenho de apagar o seu rastro de sua boca. ― Disse ― Ninguém deveria

ter o direito, mais que eu, de encontrar-se entre seus lábios.Cortou-lhe a respiração. Estava curvando-se e o ar desaparecia, deixando-

a a sós com um homem que se estirava para chegar a ela.― Senhor Talbot. ― Repetiu, não sabia se suplicando que a abraçasse ou

que se retirasse.Ele esmagou sua mão sob a própria com cuidado, entrelaçando os dedos.

Sua outra mão, a que antes roçava sua boca, acabou enredando-se nos finoscachos de sua nuca, e logo no decote traseiro do vestido. Ariadna estremeceu:estava gelada, e ele era puro fogo.

― Esta noite sonhei contigo. ― Sussurrou, a modo de confidência.Aproximou-se de sua bochecha, pois inclusive ajoelhado era tão alto como elasentada. Seu fôlego se chocou com a tenra debilidade do lóbulo, trazendoconsigo a rebelião de todos os fios de cabelo. ― Sonhei que vivia sob sua saia.Que puxava brandamente o laço de uma de suas ligas, e que baixava sua meiaaté que era um estorvo em seu tornozelo. Logo acariciava toda sua perna... ―beijou esse ponto que tanto gostava, onde a mandíbula acabava ― do ossinhojunto ao polegar do pé até seu umbigo. Estava tão louco por ti que não podiaparar de te tocar, e sua pele ficou tão vermelha comigo quando te tirava osobjetos a puxões, e as fazia pedacinhos para que nunca mais pudesse voltar avestir. E sonhei que me afundava em seu corpo. ― Inclinou a cabeça paraacalmar com seu fôlego o nó de sua garganta, lambendo o centro do pescoço efechando-se no queixo. ― Investia com dureza uma e outra vez, e nunca mesaciava de tudo. Tremia... Retorcia-te... Pedia clemência com lágrimas que eubebia... ― Ariadna soltou o ar de um suspiro, que ele tomou sujeitando-a pelanuca e aproximando-a de sua boca. ― Quer saber como acabava?

Nunca teve a intenção de achar resposta para aquela pergunta; só era o

prelúdio de um beijo destruidor que começou com a mesma raiva que Ariadnatinha visto estalar em seus olhos ao saber que outro a tocou. Seu grito afogado,que desgraçadamente tendia muito mais a quanto o esteve desejando que àindignação, foi sossegado com o impulso de uma língua de fogo. Sebastian aenredou e atou à sua com um jogo fora de série absolutamente devastador.Ariadna derreteu sobre aquela cadeira, e logo entre os seus braços, e no final,na mesa contra a qual a pressionou para lhe separar as pernas.

Tudo ocorreu tão rápido que não pôde ser consciente de nada que nãofosse a desesperada necessidade com a que a tocava. Ariadna se surpreendeucomovida pela respiração sufocada dele, como se estivesse morrendo e sóencontrasse o oxigênio necessário sujeito às fibras de seu corpo. Sebastianpregava o nariz ao centro de suas clavículas, e seguia descendo, pressionando-a com força, beijando cada canto, cada escasso lugar.

Desejava-a; desejava-a colérico, desesperançado, morto e desgraçado, epor isso pressentia que seria honorável morrer de amor por suas respostascorporais. A força de sua paixão a transpassou, fê-la arder, e a terminou depossuir. Ariadna não era de Sebastian Talbot, mas uma parte dela pertencia àfúria viva, poderosa e magnética de sua sobre-humana excitação.

― Sebastian, não o faça... ― ouviu-se dizer, enjoada. Agarrou-o pelocabelo, tremendo tanto que não se sentia proprietária de suas extremidades. ―Não...

Sebastian afundou a cabeça em seu estômago e negou. Suas grandesmãos monopolizavam a estreita cintura, que em comparação parecia ridícula.Logo estiveram em seus quadris, e quase sob seu vestido, apalpando seuspeitos como se procurasse algo desesperadamente...

― Senhor Talbot, por favor... Não continue.Ele fechou os punhos e, de pura impotência, golpeou os extremos da

mesa, fazendo-a retumbar. Ariadna não sentiu tanto medo pela reação comopela decepção que ameaçaria destruí-la se ele não cumprisse sua ordem.

― Maldita seja, Ariadna. ― Gemeu com voz quebrada ― Que diabos tenhoque fazer?

Ela engoliu em seco e lutou por afastar-se, mas ele pesava muito e nãopodia soltá-la; não podia separar-se de seu ventre, deixar de inspirar como umlouco...

― Tem de ser outro homem. ― Murmurou.Sebastian não respondeu. Lentamente, foi separando, como se estivesse

deixando o coração ali. Quando se olharam, ele estava despenteado,avermelhado, e uma lâmina de fervoroso desejo nublada seus olhos.

― Acredita que não o tentei? ― sussurrou somente.

10

― O duque de Winchester deverá ficar na cama durante algumas semanas.― Comentou Dorian Blaydes, abraçando o respaldo da poltrona com ardesenvolto. ― Pelo visto caiu pelas escadas na noite de ontem. Sabem algo arespeito?

― Não. ― Respondeu Sebastian. Roubou uma carta do montão e logoapontou-lhe com o dedo acusadoramente. ― Cale-se e se concentre no jogo.

― Sebastian, dá-te conta de que é o culpado de que as mulheres pensemque não sabemos fazer duas coisas de uma vez? ― inquiriu Thomas Doyle,aparecendo os olhos verdes por cima das cartas. ― E não sei eu se caiu.Briseida Swift tem outra versão do acontecido.

― Também tem pássaros na cabeça, se bem me lembro. ― CuspiuSebastian.

― E os olhos de um lince. ― Replicou Doyle.― Só para o que lhe convém.― Não acredito que lhe conviesse te pilhar atirando pelas escadas o duque

mais importante da Inglaterra. ― Interveio Blaydes com seu acostumadodesafogo. Fez uma pausa para olhar a seus amigos alternativamente. ― Ousim? Sabem se poderia interessar à senhorita Swift ter em seu poder ditainformação? Seria capaz de pedir um suborno em troca de seu silêncio?

― Seria capaz de subornar e converter-se no suborno. ― Concluiu Doyle.Tocou a ele roubar do monte. Foi impossível saber se agradecia ou amaldiçoavaa carta que acabava de receber. ― Você gostaria de dizer algo em sua defesa,Talbot?

― Não. ― Repetiu ― Cale-se e se concentre no jogo.Definitivamente não estava de humor para que aquele par de elementos o

aguilhoassem com seu sarcasmo habitual. Era a qualidade que o trio caveiracompartilhava: aos três sobrava cinismo pelos quatro lados, embora com suasmarcadas diferenças. Aí onde Dorian Blaydes era cruel de tão direto, só para

defender seus verdadeiros pensamentos, Thomas Doyle era extremamentereservado, achando excessivo falar de si mesmo ou manifestar sua opinião real.Blaydes era um hipócrita; sabia ser sem piedade grosseiro, mas perante opúblico comportava-se como seria de esperar dele, um cavalheiro deascendência. Doyle tinha aprendido há muito tempo que pela boca morria opeixe, e seu lema era que romper o silêncio só era válido se se fazia paramelhorá-lo. E logo estava ele, quem ostentava péssimas maneiras, posto queninguém lhe tinha ensinado a arte da mesura, e não sabia falar em nome deninguém que não fosse sua verdade.

Blaydes usava o cinismo para divertir-se, e Doyle como amparo. ParaSebastian, em troca, era a única forma de comunicação.

Supostamente não era necessário comunicar-se então, quando sedisputava a partida de continental a cem soberanos. Isso era justo o queSebastian tinha ido procurar no cassino de Sodoma e Gomorra: uma vitóriasilenciosa, obtida graças à concentração de não pensar em nada mais que nojogo. Mas pelo visto, ter golpeado um bufão engomado contra um corrimão erauma notícia muito suculenta para que a deixassem morrer. E logo se supunhaque era ele quem não podia resistir a uma fofoca!

Normalmente preferia reunir-se em casa do Doyle, no salão do Blaydes ouno seu próprio para disputar a fortuna. A nenhum dos três gostavam de incluirem suas partidas desconhecidos, ou pior, «desagradáveis conhecidos», algo quepodia ocorrer em qualquer momento; estando num cassino cheio e com oscorredores a transbordar de cavalheiros pendentes sobre mesa que mais lhesinteressasse, corriam o risco de que quisessem apostar contra eles ou de queouvissem a conversa. Por desgraça, essa probabilidade não tentou o Blaydes afechar o pico.

― Talbot, estamos falando de um assunto sério. O duque poderia terperecido no preciso momento em que aterrissou de cabeça. E se fosse assim, agente teria que tomar as moléstias de procurar o responsável.

― Não é meu problema que um homem não saiba manter o equilíbrio. Esou especialista em subornos. ― Concluiu, olhando Doyle de soslaio ― SeBriseida ou qualquer outro se plante em minha porta com uma ameaça,encher-lhe-ei a boca de bilhetes antes de que acabe de falar.

― É isso uma confissão?― Não se necessita confissão para o que é evidente, como tampouco é

requerido manter conversas estúpidas durante um jogo.

― E que tipo de conversa seria do gosto do senhor? ― burlou-se Blaydes.― Uma que possa me proporcionar saber o que procuro: como se pode

matar um homem sem ingressar no cárcere pelo delito? ― perguntou semseparar os olhos das cartas.

― O como é singelo. Pode matar um homem de numerosas maneiras, tudodepende de quanto deseje fazê-lo sofrer durante o processo. ― RespondeuDoyle com calma ― Fugir da justiça é algo mais complexo. Porquê? Há algummotivo em especial pelo que queira mudar ao ofício dos assassinatos? Cansou-te o mundo empresarial?

― OH, cansei-me que a fingida superioridade moral, e também de queminha esposa me trate como a um cão. ― Espetou à beira da explosão.Sebastian baixou o leque de cartas um segundo, só para assegurar-se comolhadas alternativas de que nenhum dos dois tomava como uma divertidagraça suas misérias. ― Acreditem, sei muito bem que sou um cão, mas nãopaguei cinco mil libras por ela, mais suplementos, para que se atreva a merecordar disso.

Blaydes soltou uma potente gargalhada.― Começo a pensar que o incidente «de voo» está relacionado com a

senhora Talbot. Você o que acha, Doyle?― Acredito que o senhor Talbot tinha uma vida muito aborrecida antes de

casar-se, e de repente parece de todo insatisfeito. Sob meu ponto de vista, éelementar quem parece lhe trazer problemas, Blaydes.

― São extremamente graciosos. ― Ironizou Sebastian, olhando-os comhostilidade ― Se requererem uma confirmação, direi que se não esmaguei acabeça desse galo pomposo foi porque preferi antepor minha reputação àbarbárie, e porque me ocorreu que estaria me comportando inapropriadamentediante de uma mulher que precisa tirar da cabeça a imagem que tem de mim.

Blaydes apoiou os cotovelos sobre a mesa e se inclinou para frente,fazendo manifesto seu interesse para a situação.

― Que imagem é essa?Sebastian reproduziu seu semblante mais lúgubre.― A de uma besta, suponho, coisa que evidentemente sou, antes de que

lhes ocorra insinuar que choro pelo que não tem conserto. Acreditem,senhores... não me importar-me-ia nada a indiferença de minha esposa se nãotivesse os olhos de Londres para persegui-la aonde vai. Todo o varão destacondenada cidade espreita em cada esquina, desejando abater-se sobre ela com

a boca aberta e as calças pelos tornozelos.― Você incluído. ― Assinalou Doyle, estirando o braço para alcançar a

copo de uísque.Sebastian não estava em situação de lhe proporcionar uma resposta

negativa ao homem que tudo sabia. Ao contrário de Blayes, que jurava nãomentir como princípio de suas inumeráveis mentiras, ele não sabia fazê-lodiretamente. E pôr Deus por testemunha de que não tinha passado os últimosdias dormindo numa cama de fogo pelo simples fato de não estar com ela,quando assim era, ficava muito longe de seu alcance.

― Se andarem em busca de sinceridade, devem saber que se nãoconseguir pôr a mão em cima em vinte e quatro horas, sendo em seguidarespondido com o mesmo ardor, vou acabar com a minha vida.

― Não exagere, homem de Deus. ― Disse Blaydes, recostando-se. Logoacrescentou, exagerando uma careta de pavor: ― O que seria de todo seudinheiro?

― Meu dinheiro... ― Soltou uma amarga gargalhada ― O que é essemontão de merda, se não pode me assegurar a mulher que quero nua emminha cama?

― Não a que quer, embora assegure qualquer outra. ― Atravessou Doyle ―Venha, Talbot. Você antes era foi assim.

― Antes podia chamar a mulher que tivesse vontade.― E agora também. ― Acrescentou ― consiga uma viúva, ou uma virgem

por tempo limitado das que tanto gosta, e sacia sua impotência.― Ao inferno as mulheres. Já nem sei mais o que gosto. ― Confessou com

amargura. ― Até que não me desforre com esse inseto de cabelo branco nãovou voltar a ser quem era, nem me vai interessar nada que não sejam osduendes de pó de arroz. Maldito o dia que me ocorreu me aproximar dela. ―Resmungou, fechando o punho.

Blaydes e Doyle intercambiaram um rápido olhar cúmplice. O primeironão parava de sorrir, enquanto o outro, com sua bem acostumada indolência,retomava o jogo anunciando a sua vez.

― Se esse «voltar a ser quem era» significa converter-te novamente numbastardo aproveitador, possivelmente deva mantê-lo em suspense por mais umtempo. ― Comentou Dorian ― Quem sabe... Talvez acaba sendo um homemnovo, esse cavalheiro virtuoso que partem das novelas de época.

Sebastian soltou as cartas. Agarrou a beira da mesa, impulsionando-se

para frente, e quase vaiou no nariz do provocador:― Não quero ser o maldito Robin Hood. Só quero me colocar entre suas

pernas.Viu Dorian elevando as sobrancelhas com uma ameaça de risada, mas foi

Doyle quem interveio:― Robin Hood não foi nenhum cavalheiro virtuoso. Pelo menos não

segundo o rei Artur, ou o Cid espanhol.― E quem era Hood então?― Um ladrão.― Nesse caso assenta-me perfeitamente. ― Sebastian se ajeitou de

maneira grosseira. ― Eu roubei a noiva de Londres. Só me falta montá-la.Blaydes entreabriu os olhos.― É esse o famoso vocabulário cockney do qual me falaste?― E este. ― Acrescentou, levantando a mão comprimida ― É o punho

cockney que estamparei em sua cara caso não se cale. ― Continuando, tomouassento como se não estivesse vermelho de frustração ― Se por acaso aindanão te inteiraste, não necessito que nenhuma mulher salve o pecador que levodentro. Essas breguices de amaneirados decidi deixar isso a vós faz anos.

― Eu não necessitava que salvassem o pecador. De facto, segue muitopresente. ― Comentou Doyle, trocando de lugar os naipes e estudando-os emprofundidade. ― Não é o único expulso do leito nupcial, amigo.

Sebastian elevou uma sobrancelha.― Como?― Megara segue molesta por ter tramado por suas costas. Está segura de

que te contei antes que a ela que Ariadna se casaria com o duque para queatuasse precipitadamente, e como é certo, não me ocorreu dizer nada emminha defesa. O resultado é.… um homem dormindo no tapete durante umasemana é o que me resta.

― Não parece muito aflito. ― Assinalou Blaydes. Doyle encolheu osombros.

― Dificilmente, quando não sou o único que passa mal. Amanhã meperdoará.

Dorian Blaydes lhe dirigiu um olhar malicioso.― E sabe também a hora exata, o.…?― Não sou um perito na arte da predição, mas eu diria que entrará em

razão de noite. O sétimo dia, Deus tomou um descanso, não?

Sebastian soltou uma tremenda gargalhada que acabou num uivo,captando a atenção dos jogadores das mesas próximas.

― É um cão, Tommy. ― Aplaudiu-lhe as costas ― Desejo-te toda a sorteque não tenho para mim.

― Vamos, Talbot... Não combina nada contigo o vitimismo. Não pensafazer nada? Pretende passar o resto de seus dias chorando por uma mulherque tecnicamente já é tua?

― Sonoramente não. ― Respondeu, olhando Blaydes como se acabasse decacarejar ― Tenho planos.

― Espero que não incluam uma aproximação forçosa. ― Concluiu Doyle ―Conheço-te o suficiente para saber que seria incapaz de fazer algo assim emcircunstâncias normais, mas visto que está noutra ordem agora...

Dorian assentiu.― Se for isso exatamente do jeito que está expondo, melhor seria que a

deixasse em paz. Não quer fazer isso, Talbot; nem tampouco quer morrer pelasmãos das Swift.

― Há forma mais doce que morrer do que nas mãos de um grupo demulheres bonitas...? ― provocou ― Sobre tudo duas casadas. Já sabem que ascomprometidas são minhas preferidas.

Blaydes, divertido pela insinuação, jogou uma olhada em Doyle.― O que se pode dizer a isso, né? Preocupado?― Absolutamente.― Pois ouvi por aí que sua mulher gosta das cicatrizes...― Gosta das minhas. ― Corrigiu. Continuando, mostrou seu leque de

cartas, declarando-se o ganhador irrebatível. Lançou um olhar a Talbot, semum pingo de humor. ― Cale-se e se concentre no jogo.

Sebastian fez uma careta. Fazia anos, e quem dizia anos facilmente podiaabranger décadas, que não perdia uma mão de cartas. Desde que aprendeu afazer armadilhas, suas vitórias no jogo se acumularam até lhe ser entregue otítulo de invicto. A triste derrota desse dia devia ter suas bases na conversa,que lhe tinha tirado suficientemente do juízo para esquecer-se das regras docontinental. Por fim, e depois de receber um olhar premente por parte dovencedor, teve que pagar o equivalente a contragosto. Ficou em pé para tirar acarteira do bolso, amaldiçoando a aparência tranquila de Thomas Doyle.

― Temo que não posso ficar para a desforra. Tenho um importanteassunto que atender...

― Alegra-me que te anime a cumprir por fim. ― Ironizou Blaydes, dandouns golpezinhos alegres na mesa. ― Depois conte se valeu a pena tantachoraminguice em grupo.

Sebastian o fulminou com o olhar. OH, podia ter uma coleção de tantassituações ridículas para o envergonhar que nem sequer lhe vinha uma concretaà cabeça; quando se tratava de Dorian Blaydes não tinha de parar para pensar.As sátiras lhe saíam pelas orelhas.

Entretanto, já chegava de entretenimento.― Graças ao sequestro agora é rico. ― Espetou ao Doyle, arrojando os

bilhetes sobre a mesa. ― Diga a sua mulher que não seja estúpida: graças aseu trambique comigo pode permitir-se todos os sapatos que desejar. E depassagem, diga-lhe que fale para a minha para seguir o seu exemplo.

Voltou a guardar a carteira e aproveitou para fulminar Blaydes com oolhar, que ajeitado sobre sua poltrona, era o reflexo da calma espiritual que elelevava sem provar desde que Ariadna apareceu em sua vida. Ou talvez tivesseque remontar-se a uns quantos anos atrás... Possivelmente ao dia de seunascimento. Na realidade, não lhe era desconhecida a sensação de estarcompletamente fora de controle. Foi o duende, que o apanhou com a guardabaixa quando tinha encontrado um ponto de equilíbrio relativamente plácidoentre seus escarcéus amorosos, bebedeiras e partidas.

― O quê? Por que me olha assim? ― queixou-se o sabichão, cruzando osbraços. ― Não briguem comigo por terem casado com mulheres de caráter.

― Quem tem de me pagar é você, senhor conde. ― Especificou Doyle,inclinando-se para guardar o recém ganho. ― Ah, e Sebastian...

― O quê? ― grunhiu a contragosto, girando-se para olhá-lo.Thomas Doyle lhe sustentou o olhar com seriedade.― Se voltar a falar nesses términos de Meg, você verá voar a tampa de

seus miolos. Quem tem que deixar de ser um estúpido é você.Possivelmente fosse porque era um autêntico selvagem e fazia anos que

suas fossas nasais se acostumaram ao aroma do breu para apreciar o quenteambiente dos bairros mais nobres, ou talvez fora porque desprezavadiretamente tudo o que representava aquele conjunto de blocos, mas Sebastianestava acostumado a fugir de Mayfair. O que resultava curioso pelo menos, jáque quando era um moço e devia cruzar a cidade a pé, passando pelas ruasimperiais de uma das zonas mais ricas, o único no que podia pensar era emquanto teria desejado nascer ali: dentro de alguma das mansões monumentais

que parodiavam os seus habitantes, os supostos londrinos mais prósperos erespeitáveis da grande cidade...

Frescuras. Para ele tudo eram só frescuras. Não lhe impressionavaporque, apesar de ter querido assim, Sebastian poderia ter comprado a casa dopróprio duque de Winchester, que para onde se dirigia por seu próprio pé.Aquele território de dândis, igual a grande parte do sul da rua Oxford ― eincluindo o bairro no qual vivia, que não ficava muito atrás em distinção, ―parecia-lhe mais uma armadilha mortal que um lugar de recreio que venerar.Muito menos agora que, caminhando sob a pesada chuva, passeava-se pelasamplas ruas que uma vez percorreu sem sapatos com o objetivo de cuspir umaameaça.

Sebastian subiu a escada que dava à porta de entrada sem fixar-se noesplendoroso portão clássico, nem na dupla coluna que franqueava o acesso,nem nos desenhos que riscava o metal do corrimão superior. Tampoucoprestou verdadeira atenção ao mordomo, um estirado que, por causa de suaspálpebras grossas, parecia olhá-lo com aborrecimento. Bem poderia ter ditoque o duque se encontrava no piso superior, ou que abandonasse a residênciade sua Excelência imediatamente, não se importou sequer com suasexclamações quando o separou de um empurrão e penetrou na humildemorada.

Sebastian sorriu sem vontade. Humilde... Não teve tempo nem estava dehumor para detalhar o valor das particularidades do salão, e com isso cabiareferir-se aos quadros, os tapetes, os detalhes áureos do friso, inclusive omaterial com o que tinha sido levantado. Entretanto, tudo aquilo tinha bempouco de modesto. E não se podia dizer que o invejasse, posto que ele contavacom posses de valor similar; a diferença era que ele as merecia por ter suado,sangrado e sofrido no processo para obtê-las. Sebastian tinha ganho cadapenique que agora podia gastar no que lhe agradasse, enquanto que aquelefantoche só teve a sorte de nascer com o sobrenome adequado. Não parariapara pensar porque, se o fizesse, seriam já muitas as vezes que retornava aomesmo assunto, um que carecia de solução. Simplesmente manteve em seupensamento o que lhe produzia o fundamento de sua fortuna. É obvio,Winchester tinha a mesma culpa de ser duque que ele tinha de ter sidoengendrado por dois marginalizados sociais, mas o fato de que se servisse desua posição para oprimir ainda mais aos discriminados como ele, punha-odoente. Claro estava que por esse motivo não teria irrompido em seus

aposentos, tirando do interior o médico e a seu par de criados: pouco podiafazer frente às injustiças, salvo simplesmente ser vítima delas... A razão de suavisita diferia muito de ter algo que ver com a riqueza ou o trabalho merecido.

Sebastian fechou a porta no nariz dos recém-saídos lacaios, e seaproximou da flamejante cama a passo ligeiro. Na realidade, ficaria toda umavida ali, observando como choramingava de dor sob um edredom que pesavamais que ele mesmo. Essa seria sua glória, pensava... fazê-lo consciente de quedesfrutava de sua debilidade, e que a ponta de sua fortificação poderia mandá-lo ao outro bairro.

Mas uma mulher o esperava em casa, e não ia se conquistar sozinha,assim procurou ser rápido. Não o saudou: deixou que fosse a águia da bengalaquem desse a boa noite, indo parar no centro do peito do duque. Este abriu osolhos com dificuldade, ressurgindo de um sonho reparador, e os cravou neledividido entre a surpresa e a irritação.

― O que faz aqui...? ― Então se deu conta da ameaça que constituía o bicoda ave onde pulsava seu coração e engoliu em seco. A ofensa perfilou a finalinha clara de seus olhos ― Como se atreve a vir a minha c-casa... e.…?

― Isso mesmo poderia lhe perguntar eu, já que foi exatamente o que fez háalgumas horas. ― Contra-atacou, sossegando-o a tempo. Deslizou os dedospela fina envergadura da bengala até fechar o punho no extremo maislongínquo. Empurrou o suficiente para lhe afundar o arremate brilhante noesterno. O duque soltou um gemido lastimoso. ― Não pretendo «roubar-lhe»muito tempo. Só passava para lhe dizer que uma queda pelas escadas é omelhor que pôde lhe acontecer de toda uma imensa lista de possíveisacidentes, e que deve estar agradecido porque a senhora Talbot estivessepresente, ou do contrário... Quem sabe, possivelmente não tivesse vivido paracontá-lo.

― Está-me ameaçando, acaso...?― Pode tomá-lo como quiser. Verá... ― Sebastian retirou a bengala e se

sentou na beira da cama. Cruzou as pernas, adotando uma postura sossegada,e olhou ao prostrado com um ligeiro sorriso. ― Acredito que tudo lhe resultarámais fácil se conto uma pequena história de quando era jovem. Quer ouvi-la...?― Ao ver que abria a boca para falar, inclinou-se sobre ele e lhe agarrou amandíbula com firmeza, sossegando-o. ― Isso mesmo pensava eu.

“Como saberá, minhas origens são bem humildes. No bairro onde fazia aminha vida, moviam-se a sua vez uma grande quantidade de meninos. Seguro

de que pode elaborar uma imagem mental de que moços me refiro; algum terátentado, ao menos uma vez, roubar-lhe a carteira ou proteger-se da chuva sobas rodas de sua magnífica carruagem de quatro portas. Está vendo? Euimagino à perfeição. Guris desnutridos, até as sobrancelhas de carvão e comproblemas respiratórios que na maioria dos casos revistam resolver com amorte entre os cinco e os onze anos. Bem... faça uma ideia do grau dedesespero que podia alcançar um desses jovenzinhos quando estava em jogo ojantar ou o lanche semanal. Ou possivelmente esteja pecando de néscio aosupor que poderia ficar no lugar de um pirralho que só come miolos molhadose batatas passadas do tempo três ou quatro vezes ao mês...”

“Sabe? A fome pode impulsionar ao ser humano a cometer um crime, enão necessariamente está no direito de acusar a essa criatura de injusta ourasteira por procurar sua sobrevivência. Quando um dos meninos chegava aobairro com uma fogaça do dia anterior, na maioria dos casos roubada...começava a luta pela vida. Sem ir mais longe, sua Excelência, vi como ummenino arrancava o dedo gordo do seu melhor amigo por um triste par demaçãs. Quanto a mim... ― Sorriu com autêntica frieza. ― Estive a ponto dematar um menino de seis anos por atrever-se a roubar-me a casca de umatangerina. A casca de uma tangerina, sua Excelência. ― Repetiu. Lentamentese abaixou, ficando muito perto de seu ouvido. ― Não lhe custará imaginar oque seria capaz de fazer se alguém tivesse a ousadia de pôr um dedo em cimada minha esposa, que evidentemente é um pouco mais valiosa que os restos deuma fruta.

Sebastian se levantou com total normalidade, e fazendo ostentação deuma segurança em si mesmo que não poderia ter correspondido com o moço desua história, ficou de pé. Novamente agarrou com firmeza a bengala, queapoiou entre os lençóis antes de decidir-se a pô-la na ponta na boca.

― A verdade... A esta altura, se quisesse matá-lo, não me veria nanecessidade de manchar as mãos. Tenho contatos de sobra para lhe recordarquem sou e o que posso fazer se alguém me desgosta. Mas os velhos costumessão os velhos costumes, né? ― Sorriu de orelha a orelha, dando-lhe golpezinhosna mandíbula com o instrumento. ― Faz anos que me ocupo de meus própriosassuntos, e seria interessante partir-lhe os ossos um a um usando esta mesmabengala. Asseguro-lhe que não verá outro igual em nenhuma parte do mundo,e que esta é a mais temível ao que poderia ter a má sorte de enfrentar. Temquebrado tantas costas e aberto tantos crânios que lhe surpreenderia do que é

capaz com um golpe certeiro.Vê-lo engolir em seco e estudar de soslaio o elemento da discórdia

produziu-lhe um incomensurável prazer que só seria equiparável ao queobteria nos braços de uma mulher. Porém, não era bastante crédulo paraengolir seu fingimento; continuava a ser um duque, e era tão consciente de quenão o mataria em sua própria casa como ele mesmo. Daí que não lhesurpreendesse que se levantasse com supremo cuidado e o desdenhasse com oolhar antes de pronunciar sua defesa.

― Com exceção disso agora mesmo de minha cara. Quem pensa ser paraentrar em minha casa com essa desfaçatez e enfrentar-me? Poderia o apagarda face da Terra só com um estalar dos dedos, Talbot; poderia fazer que ocondenassem à forca por traição à Coroa, ou mover uns fios para que acabasseno cárcere. Tem sorte de que vele pela integridade de Ariadna Swift e nãoqueira que saia prejudicada por culpa dos escândalos de seu captor...

― OH, sim, que grande sorte ― ironizou Sebastian, aparentementeacalmado. Em questão de um segundo, seu sorriso foi substituído por umacareta raivosa. Agachou-se para agarrá-lo pelo pescoço e separá-lo dotravesseiro. ― Escute bem, miserável bastardo. Importam-me um caralho osseus lucros, as suas relações com a Corte e o seu título passado de moda. Dobairro de onde vêm os sujos cockneys como eu não existem as classes, nem aordem, nem a lei, nem tudo isso que te ampara de que te coloque minhabengala pela traqueia. Está falando com um homem que não teme o cárcere,nem à pobreza, nem à morte, porque já foi prisioneiro da fome e viveu entrecadáveres durante anos. Sou feito de outra massa, uma bem mais dura que aque cobre suas nádegas patéticas de herói empoado.

― Acredita nisso? ― ofegou o duque, vermelho pela pressão que os dedosde Sebastian exerciam sobre seu pescoço. ― Acredita que não poderia lhe fazerdano nem que quisesse?

― Acredito que nem deveria perder tempo tentando.― Não sabe o quanto se equivoca ― sorriu com uma careta que deformava

sua cara. ― Já o fiz, senhor Talbot. Encontrar a maneira ou a pessoa adequadapara me vingar seria pão comido.

Sebastian cobriu-se com uma máscara de impassibilidade para proteger-se da reação do duque a sua surpresa. Escrutinou o desgraçado no rosto comos olhos entreabertos, procurando uma pista a respeito. Um batimento docoração selvagem oprimiu-lhe o coração; um ingênuo aviso de que se

aproximava a guerra.― O que insinua? De verdade acredita que tenho algo a perder? ― Estirou

os lábios, simulando um sorriso cruel. ― A fórmula da riqueza está na minhacabeça, não nas minhas posses: poderia me fazer de ouro novamente sópermanecendo cabal. Saiba que antes acabaria eu afundando a você que vocêtentando afundar a mim. Bastaria fazendo arder sua casa para que todo seupatrimônio fosse ao inferno, e então o repudiariam, por muito duque que fosse.Que não lhe engane as aparências; você não está acima de mim. Você, e todosos de sua classe, necessitam dos homens como eu para continuar a mover osseus pomposos traseiros de um lado para outro e não penhorando suas possespara sobreviver.

Sebastian o soltou. Ficou para admirar a obra de arte que era aqueleinflado figurino tossindo violentamente pelo excesso de seu aperto e parainspirar fundo.

― Se o voltar a ver perto da minha mulher, ou atrevendo-se a olhá-ladepois de a ter assustado como o tem feito, as consequências serão nefastas. Esugiro-lhe que não me ponha à prova. Nenhum dos que me ofenderam seatreveram a fazê-lo uma segunda vez, e eram bem mais resolvidos com seuscrimes que um bufão de alta linhagem.

Sacudiu a bengala ao cravá-la no chão. Dedicou-lhe um último olhar entreo desafiante e zombador, e desapareceu dali. Uma vez na rua, de novo sob achuva, deu uma olhada ao seu redor e se permitiu sorrir, descarnado, ao luxoque o rodeava. Teve um instante para sentir a nível espiritual a roupa pega àpele e o frio nos ossos, e recordar através do sentimento de raiva profunda quena realidade nunca tinha deixado de ser o menino que se emocionava quandopodia conseguir uma tangerina.

No segundo seguinte, ergueu os ombros e disse seu nome para si:Sebastian Talbot, proprietário da empresa naval mais fértil da Inglaterra, emarido da mulher que, a partir de então, não poderia respirar em sua presençasem suplicar por uma carícia de seus dedos. Ele mesmo se asseguraria, talcomo prometeu que não passaria fome, de que Ariadna não pudesse ir dormirsem rezar por ele.

No número quatro de Bradley Square, Thomas Doyle se deixava seduzirpelo ondulante movimento do fogo caseiro. Concentrou-se nas línguasenlaçadas umas com outras, soltando minúsculas faíscas avermelhadas queprovocavam um rítmico e familiar estalo. Sentado como estava frente à

chaminé, cujo calor logo que bastava para lhe esquentar os dedos dos pés, e decostas à porta de entrada do salão com todo o peso deixado sobre o respaldo,pôde estabelecer o segundo exato no qual uma visitante decidiu lhe fazercompanhia. Só teve que contar até cinco dessa vez. Um, e o crepitar daschamas se fez mais sonoro, como se quisesse saudá-la também. Dois, e a levechama alaranjada fez cintilar o líquido de sua taça de xerez. Três, e orecobrimento estilhaçado que estava acostumado rangeu sob o peso de unspassos sigilosos. Quatro, sua sombra projetando-se de um lado da poltrona.Cinco...

Thomas apartou os olhos com inapetência da chaminé. Lentamente, seusolhos subiram dos magros tornozelos femininos até seus olhos de ladra devontades, passando por um suave, liso e vaporoso tecido com transparênciasque sabia o que fazia ao não esconder um só contorno feminino de seu campode visão. Contenção, disse-se. E se conteve, sem emitir um só movimento ousom que pudesse delatar o estalo de desejos que corrompeu seu sistemaquando ela lambeu os lábios.

― Pensei que poderia dormir comigo esta noite.Interiormente, Thomas se deleitou nas oito palavras que orquestraram seu

invisível sorriso de satisfação. Um gesto óbvio, que só assinalava o que já sabia.Ele nunca se equivocava.

Assentiu com a cabeça, e com a extremidade do olho pôde perceber comtotal claridade que Megara baixava os ombros tensos.

― Obrigado pelo convite, mas acredito que declino.O ar escapou dos lábios da mulher com um toque ofendido.― Como?Thomas a olhou inexpressivo.― Faz algumas semanas pensava em buscar um protetor para manter esta

família, e quando mobilizo a meu contato mais fiel para nos tirar de problemaseconômicos, decide me jogar de sua cama. ― Enumerou. Ficou de pé, tranquilo,e deixou o copo sobre a mesinha sem apartar os olhos dela. Lamentou na almaque o fogo lhe tirasse brilhos avermelhados a sua juba castanha, livre desujeições, perfeita para que afundasse nela as mãos para acariciá-la. ― Nãoestou contente, Megara. Não o estou absolutamente.

― Mas... ― balbuciou ela. Ouviu-a pôr-se a andar atrás dele quandocaminhava para a porta. ― É Talbot! Talbot com a Ariadna...! Era uma loucura,não podia interpretá-lo como um favor, e...

Thomas se voltou para olhá-la com uma sobrancelha elevada. Conteve ofôlego como intento de sobrevivência a seu atraente aroma corporal.

― E?Quis atirar-se a seus pés quando ela sustentou seu olhar com

determinação, e, do mesmo modo, essa doce submissão que só ele podiaarrancar de seu coração dominante.

― Sinto sua falta. E você também a mim.Thomas não moveu um só músculo. Sua mente calculadora teria

ponderado os aspetos positivos e negativos de tomá-la entre seus braços, semrancores se ela não tivesse estado vestida dessa forma, de propósito, para lheimpedir de decidir ao contrário. Só para lhe demonstrar que podia contra doiscomo ela, abriu a porta.

― Segue fazendo-o até que o teste de subtração te dê positivo.

11

E embora as ondas não tenham me dado guerra, nem o vento, serei semprebanido. Tanta miséria e maldade se encerra em mim...

Heroidas, OVIDIO

Por razões tão simples quanto preferir tratar com seu marido o menospossível, Ariadna ainda não tinha feito pública a sua necessidade de uma novadonzela. Quando retornou à sua habitação depois do baile na residência dosmarqueses de Ashton, o rastro que encontrou de Mairin reduziu-se a uma sónota de despedida. Ariadna ficou várias horas com ela na mão, perguntando-seonde estaria, o que faria e se conseguiria chegar tão longe como desejava. Masnão foi a não ser nos dias seguintes que descobriu quanta falta lhe faria.Cuidar-se e preparar-se para o dia não era singelo quando se tinha só duasmãos, o que fazia com que demorasse matematicamente o dobro de tempo paravestir-se e, para sua desgraça, descer a tomar o café da manhã, estando já ochá frio.

Porém, essa manhã em particular apresentou um problema de índolediferente. Ao levantar-se e caminhar diretamente para o seu armário, descobriuque todos seus pertences se esfumaram. Fosse quem fosse o ladrão, queperfeitamente poderia ser a criada encarregada da lavandaria, não lhe ocorreuter a amabilidade de deixar ao menos uma muda para que pudesse apresentar-se decentemente no salão. O que sem dúvida a animou a passar o resto do diasentada no batente da janela, admirando a cidade ou relendo as cartas quecontinuava guardando com zelo sob o colchão.

Viver com o diabo era tão simples quanto devolver uma baleia encalhadaao mar usando somente as mãos. Mas Ariadna sabia que a complicaçãopoderia alcançar o seu ponto gélido se lhe ocorresse apresentar-se ante ele coma camisola, e mais com essa tão puída, curta e transparente por causa das

muitas lavagens. Tantas foram as brigas de travesseiros com Briseida quefileiras completas de botões tinham desaparecido. O que poderia tentar aquelerufião se visse uma porção de carne?

Desgraçadamente, morria de fome e necessitava uma explicação. Assim,depois de assegurar-se de que tampouco havia uma bata, e preferindo não dartrabalho de mais às criadas arrastando os lençóis por toda a casa, fez suaaparição na grande sala de jantar abraçada a si mesmo. Era uma mulherpequena, mas tinha as extremidades muito largas, ou isso pensava até queSebastian, sentado como um glorioso rei em seu trono no assento que presidiaa mesa, levantou o olhar do periódico e a perfurou. Então, faltaram-lhe mãospara cobrir-se.

― Ditosos os olhos que vos vejam, querida. Nos últimos dias estiveduvidando se tinha ou não uma esposa. Estiveste muito ocupada?

Na realidade, sim tinha estado... Fugindo dele na sua própria casa.Só tinham sido alguns dias, quatro quando muito, e podia dizer-se que a

distância tinha suposto o mesmo para Ariadna: recordar dificilmente queexistia um homem irresistível vivendo sob seu teto. Entretanto, vê-lo ali deu-lhe uma ideia – e bastante visual – de «quem» era e do que o inimigo podiaprovocar nela numa simples audiência.

Devia ser o dia de limpeza geral, porque Sebastian tampouco se vestiaapropriadamente. Tal como na primeira noite que não passaram juntos, –graças aquele nome pronunciado aleatoriamente – tinha uma bata suave naaparência, bem grande para cobrir as zonas mais importantes de seu corpo.Sebastian parecia cômodo com seu traje de dormir, reclinado sobre o respaldo,mostrando um triângulo de peito robusto e felpudo que podia entrar nacategoria de zona reservada para hipnose. Ariadna queria afastar o olhar, masera impossível. Dali, de seu coração e o centro de seu peito, emanava suaessência sem subterfúgios, e devia reconhecer que essa era justamente suadebilidade: o aroma de sua pele curtida, sempre ardendo.

Teve de fazer um esforço para olhá-lo nos olhos, para logo afastar os olhosdele, quando Sebastian lhe fez um gesto para que se aproximasse. Caminhouobedientemente até ficar distante o suficiente para evitar que a tocasse tãosomente esticando o braço.

― Perguntava-me se teria acontecido algo com meus vestidos. ―Conseguiu articular, olhando-o diretamente ― Esta manhã abri o armário evasculhei nas gavetas e não encontrei nada.

― Deve ser porque eu escondi. ― Respondeu facilmente. Ariadna franziulevemente o cenho. ― Não me olhe assim. O que vão pensar seus amigos osaristocratas se a virem reutilizando vestidos que já levava quando tinhadezoito? Disporá de um guarda-roupa novo.

― Mas poderia ter tido a amabilidade de deixar ao menos um para quepudesse me vestir.

― Em relação a isso...Sebastian estirou os lábios num sorriso que lhe deformou a cicatriz da

bochecha, um gesto que embora outros poderiam ter considerado grotesco, aela pareceu perturbadoramente sensual. Tal como quando levantou a bengala eapoiando-a com sutileza no início do decote, para depois descer revelando umainteressante fração de pele pálida.

Ariadna reagiu tarde, absorta como estava em seus gestos.― Senhor Talbot!― Não me interrompa quando falo, Ariadna; é de muito má criação. ―

Corrigiu-a. Ela fez menção de cobrir-se com os braços, mas lhe deu umgolpezinho na mão para que as retirasse. ― Já que não posso tocar, ao menosdeixa que admire o que Deus uniu a mim.

― Deixaria se isso servisse para conformá-lo...― Mas eu nunca me conformo, é certo. ― Terminou ele, balançando a

cabeça. Afastou a bengala, certamente sabendo o que faltava para romper osbabados para ver o que na realidade desejava. Em seu lugar, tocou o chão coma ponta, e logo enrolou essa mesma na beira da saia. ― Queria que tomasseisto dos armários vazios como um pequeno aviso do que está por vir. Não vourender-me, Ariadna. ― Anunciou. Sua tranquilidade ao expressá-lo foiexatamente o que fez que a comoção da moça valesse por duas emcomparação. ― Cheguei a esse ponto de minha vida no qual não aceito que medigam que não.

Ariadna lutou para que não se filtrassem os nervos em sua voz, e ganhou.― E isso o que significa?Nos olhos de Sebastian brilhou a aventura perigosa, e maldita fosse ela e

os cabelos que a traíam por perder o controle sobre o corpo com um gesto tãosimples.

― Significa... ― Murmurou, penetrando a bengala entre suas pernas nuas;deslizou a superfície fria pela parte interna da coxa, fazendo-a estremecer ―que vou te deixar louca... ― ele puxou a mão para levantar parte da saia,

revelando as magras coxas da moça. Ariadna não pôde mover-se; a sensaçãoque lhe começava a ser conhecida, delirante ardor, manteve-a quietasuspirando por ele. ― Ou morreremos os dois no processo.

Soou um tecido rasgado. Ariadna baixou o olhar e observou que uma filade botões voava até posar a seus pés.

― Ups... acho que medi mal a distância. ― Sebastian desculpou-se sem osentir absolutamente. Seu sorriso de canalha o delatava. ― É obvio, sinta-selivre para claudicar no momento que considere oportuno. Estarei esperandosua capitulação como ao último amanhecer.

― Conforme entendi, você não valoriza os amanheceres.― Se souber que é o último, o apreciarei mais que qualquer outra coisa.

Ou quase; há outras que se mantêm primeiro... ― Penetrou a bengalaverticalmente pela zona do ventre, e usou-a para se aproximar de Ariadna. Deum segundo ao outro, a jovem esteve a escassa distância de seus lábios. Noinstante seguinte, Sebastian tinha retirado a arma mortífera e utilizava as suasmãos para sentá-la sobre seu regaço. Sustentou-a com firmeza, roçando-lhe ascomissuras da boca com o polegar. ― Como seus lábios de sereia. E agora...

Ariadna perdeu o fôlego quando ele se aproximou dela, sem compreendero que era essa dura e implacável pressão na sua garganta, no seu estômago, noseu peito... O ar que brotava da boca masculina era quente, tão doceoriginariamente como amargurado pelo gosto a café; fez os seus pelos ficaremem pé. Fazia semanas que não o sentia tão compacto, viril e próximo a ela, masaí estavam suas musculosas coxas, comprimindo seu minúsculo corpo emcomparação, fazendo incômoda sua posição. Enrolou o braço em torno dacintura débil, que estremeceu somente com seu toque. Seus dedosatravessaram o fino tecido da camisola, afundando-se na carne de seusquadris.

Estava preparada para pecar de novo. Fechou, inclusive, os olhos,sentindo-se uma hipócrita por entregar-se daquela maneira tãoescandalosamente direta. Já não só seu corpo a traía, mas também a suaprópria mente. Antes de receber o beijo, esta se alagava gloriosamente comimagens imprecisas de Sebastian tocando-a.

―... agora, sente-se e come. ― Ordenou com voz suave. Ariadna piscou etopou com sua expressão de triunfo vitorioso. ― Estou de acordo em que nãofacilite ao escapar-se de mim, mas não falhe as refeições. Prefiro cozinhar-tequando estiver bem alimentada... ― Acrescentou em voz baixa. Ariadna perdeu

o domínio de si mesmo quando lhe mordeu o lóbulo da orelha. ― E só posso tepôr à prova se tiver energias. Acredite, duendezinho, farão falta para resistir atudo o que vou fazer assim que te agarre. Vais acreditar nesse Alá que pregamas civilizações orientais de tantas vezes que te farei ver os sete céus... Ouinclusive mais.

Ariadna tremeu de frustração. Isso significava que não a beijaria...― Ah, não, não. Isso você terá de me pedir. Se não, perde completamente a

graça. ― Respondeu, como se tivesse ouvido seu lamento. Deu-lhe um pequenotoque no nariz, e depois a separou dele. Não contente tendo-a desconcertado edeixado ardendo, deu-lhe um tapa no traseiro que ecoou na habitação. ―Amanhã estreia uma nova ópera italiana chamada Arianna in Giz por um talHändel. Famoso, suponho. Pareceu-me de todo apropriada, e suas irmãsestarão ali. A nossa presença não é negociável, já que como saberá, sigo nacorda frouxa com sua família e não quero lhes dar motivos para planear umassassinato conjunto. Quer dizer... «Mais» motivos.

Ariadna continuou olhando-o com os olhos espantados e um rubor tãofurioso que perdeu a noção de seu corpo.

Tinha-lhe dado... um tapa?― Senhor Talbot, ― interveio Graham, abrindo a porta da sala de jantar ―

lamento a interrupção. Chegaram os encargos que fez à costureira. E… né... asenhora Lamarck deixou uma mensagem para você.

Sebastian fez um gesto de obrigação.― E? O que disse?― Disse... ― clareou a garganta ―. «Sabia que algum dia encontraria algo

mais que para rir que de seus amigos», senhor.― Oh, diga-lhe que nesse caso ri de mim mesmo. ― Riu ele entre dentes.

Ficou de pé, alisou as rugas visíveis da bata e agarrou a sua bengala. OlhouAriadna. ― Bom dia, querida.

Dentro de sua estupefação e o despeito pela atitude do empresário,Ariadna se perguntou vagamente por que levava aquele ostentoso apoio portodo lado. Pois, pelo que pode observar, Sebastian não tinha nenhum problemapara caminhar; de fato, sempre ia de um lado a outro bastante apressado,como se a morte andasse lhe pisando os calcanhares, e isso demonstravadesenvoltura. Não tinha detetado nenhum indício ou tendência à claudicação.Seria uma relíquia familiar, um pouco de valor pessoal, ou só queriaacrescentar um ar elegante do que é obvio carecia, coisa que reafirmava cada

vez que separava os lábios?Ariadna endireitou os ombros, abandonando lenta, mas inexoravelmente o

arrebatamento pelas palavras pronunciadas.― Senhor Talbot, eu gostaria de saber onde estão meus velhos vestidos. ―

Perguntou, fazendo que parasse precisamente antes de sair do salão. Viu-ovoltar-se com uma sobrancelha elevada. ― Porque se pensa tomar minhaaceitação de seu presente como um convite direto a minha habitação, nessecaso deveria seguir com meu enxoval de solteira. Não vai ganhar minhaavaliação ou meus favores me subornando. Consta-me que qualquer uma lheseguiria o jogo em troca de umas moedas, mas eu não entro no coletivo.

― É obvio... Ariadna Swift, a noiva de Londres, tem uma moralincorruptível, não é assim? ― burlou-se ― Acredite-me, querida. Subornar-te-iacom a luz das estrelas e todas essas patacoadas naturais que parecem te fazerfeliz, mas até eu sei que há coisas que não posso obter.

― Nem que me conseguisse o céu daria meu braço a torcer. Não vou pôrseus vestidos, senhor Talbot, nem penso aceitar qualquer presente quepretenda me dar.

― Não? Pensa rechaçar minha generosidade?― No momento em que faz algo esperando um favor em troca, deixa de ser

generosidade para não falar de conveniência. Pode devolvê-los, ou dá-los àcaridade. Sigo preferindo minhas velhas vestimentas...

― Não vai por aí com tecidos de má qualidade tendo meu sobrenome. ―Cortou visivelmente ofuscado ― E o que pensa? Que estou acostumado a darpresentes às mulheres para conseguir sua atenção? Nunca gastei uma só libranuma amante. Você é a exceção.

― Obrigada. ― Disse neutra. Sebastian torceu o gesto. ― Eu não lhe pedique o faça por mim, nem que me ajude a vestir-me.

― E eu não te pedi que me impeça de dormir, mas olhe- me. ― Estendeuos longos braços. Ariadna acreditou que seus dedos chegariam a tocar asparedes, e não pôde escapar do doce e tormentoso pressentimento de que aafogaria num abraço. ― Todos temos que fazer coisas que não gostamos nomatrimônio, é uma lição que aprendi graças a meus bons amigos. Assim vista-se corretamente e não há mais que falar. ― Deu a volta um segundo, mas foievidente que não tinha terminado de falar. Ariadna era o alvo de seu olhar aovirar a cabeça. ― E se você não gostar, manda fazer os acertos que considerenecessários, ou peça à senhora Lamarck que se encarregue de uma nova linha.

― Não quero um guarda-roupa.― Certo, ― exclamou com veemência ― queria que fosse outro homem. E é

lícito. Mas para já, isso não se pode comprar, assim terá de se conformar comesta nova versão de mim mesmo.

― É o vestido mais bonito que vi. ― Exclamou Meg, com a mão no peito, aovê-la aparecer. Soou angustiada, quase retendo as lágrimas, ao aproximar-sedela para acariciar a seda que caía em capas por sua saia de cauda. ― Deveriater me casado com Talbot.

Disse suficientemente alto para que o citado e seu próprio marido aoescutassem. O primeiro, que apurava o charuto que tinha estado a fumar pelocaminho até Royal Opera House, voltou-se primeiro para seu amigo, contendoum sorriso de regozijo. O outro, que deveria reagir ao menos ligeiramenteofendido pelo aberto comentário, nem se alterou.

― Para isso teria de ter recebido primeiro uma proposta, não crê, minhaquerida senhora, Doyle?

― E não a recebi, por acaso? ― contra-atacou, olhando-o com umasobrancelha elevada.

Ariadna conhecia essa história, ou pelo menos julgava ter escutado assuas irmãs debatendo a respeito um ano atrás. Estando Megara emnecessidade de um marido rico devido à escassez do patrimônio da famíliaSwift ― um problema que se agravou depois da promessa de matrimônio deLeverton, seu antigo prometido, com Jezabel Ashton ― e a volta de Penélope daAmérica com as mãos vazias, ― outra boca para alimentar ― esteve a ponto decasar-se com Sebastian Talbot. Ariadna desconhecia os detalhes, pois até omomento nem sequer tinha associado a figura de seu marido com o quepoderia ser agora marido de sua irmã, mas suspeitava que só foi outro dosmuitos ardis que Meg levou a cabo para animar Doyle a dar um passo à frente.

― Não pode chamar aquilo de «proposta de matrimônio».― Certo é... Só um sequestro poderia ter legitimado seu interesse por mim

― ironizou Megara, passando a seu lado com o leque aberto. Fechou-o e deuum golpezinho no ombro nu. ― Seria melhor que fôssemos tomando assento.Está a ponto de começar o primeiro ato.

Ariadna não soube se alegrava-se ou temia o momento de assistir àrepresentação. Por um lado, adorava a música em todas as suas manifestaçõese estava desejando que se apresentasse a oportunidade de ir a Royal OperaHouse, um lugar no qual nunca tinha estado. E por outro, afetava-lhe que

fosse essa história precisamente a que fora a reproduzir-se ante seus olhos. Oabandono de Ariadna...

Conhecia muito poucas histórias mitológicas, posto que não eram suamatéria de leitura preferida: só as que faziam referência às esposas depersonagens míticos como Hércules, Ulisses e Aquiles por lhe ter sido contadasem inumeráveis ocasiões durante sua infância. Mas aquela em concreto, a doherói Teseo e suas duas esposas, chegava-lhe à alma de um modoestremecedor. E não sabia ainda como poderia confrontar algumas horas detortura presenciando o desenvolvimento da história de sua própria vida.

Ariadna seguiu Sebastian, ora cravando os olhos no chão e oraobservando em seu redor para absorver a elegância do lugar. Certo era queprovinha de uma muito nobre estirpe de homens galardoados por suaparticipação em conflitos de Estado, e que enquanto seu pai viveu, esteveacotovelando-se com a flor e nata da sociedade por toda classe de ambientesrefinados. Entretanto, tinham passado anos, e Ariadna esqueceu, como muitasoutras coisas, o que se sentia ao estar num lugar onde imperava a finura. Dosassistentes, que riam, tomavam as mãos ou davam tapinhas amistosos dentrode seus trajes, luzindo joias únicas de valor, até o teatro em si. A Royal OperaHouse era um espaço dedicado exclusivamente a magnificar o luxo aristocrata,e tudo ali estava colocado com extrema meticulosidade. Os impolutos assentosdos camarotes combinavam com as pesadas cortinas que os emolduravam, ecom as flores das grinaldas que separavam os níveis. A falsa abóbada do tetotinha belas telas em caixotes separados por um friso com relevos em série,iluminados pelos brilhos do grandioso lustre em forma de incensário.

Apesar de que à vista tinha tudo para enganá-la e maravilhar-se pelasobras de arte do ser humano, continuava a preferir a natureza, a essência reale profana das coisas. E não existia nada que encarnasse melhor o ordinário eespontâneo que o homem que a observava do camarote que teriam de ocupar,percorrendo com seus olhos de topázio cada dobra da saia. Ariadna quis fingirque não lhe importava o seu intenso escrutínio, ou que não a afetavaabsolutamente, mas a curiosidade e o desejo de estar em seus pensamentossempre terminava vencendo-a. Tal como na alma de Sebastian Talbot estava apaixão, na sua permanecia intacta o desejo de compreender as singularidadesde um caráter. Agora, «o seu».

Foi ele quem, num arrebatamento de generosidade – ou talvez lecionadoporque era o que faziam todos os homens da sala que foram acompanhados

por uma mulher. – Afastou a cadeira para que pudesse sentar-se.― Preciosa. ― Escutara lorde Ashton dizer a suas costas. Ariadna o pôde

reconhecer só pela suave modulação de sua voz, tal como captou o som dosuave beijo que depositou nos nódulos de sua esposa.

Apreciou que Sebastian lhe dirigia um olhar interessado, como se quisesseaveriguar se esperava algo similar por sua parte. Obviamente não o fazia, poisalém de que não desejava adulações de nenhuma classe, seria uma autênticaestupidez esperá-los de um homem como ele.

― Pode baixar a guarda, duendezinho. ― Disse de seu lugar, acomodando-se na poltrona. ― Não vou tomar como uma provocação que tenha decidido pôresse vestido... embora preferiria não me reservar quão acertado foi para me dara entender que gostou do presente.

― Valorizo o presente, senhor Talbot, mas me daria igual luzir sedas ounão as vestir.

― Se for para escolher, eu preferia que não as levasse. ― ParticularizouSebastian, que aparentemente não perdia a oportunidade de luzir-se. Ariadnaoptou por não o olhar. ― É um vestido muito bonito, mesmo assim... Não penseque o escolhi eu, ou que desperdicei o meu tempo escolhendo os tecidos. Tudoficou nas mãos de Lamarck, e pelo que vejo, investiu seus dotes de costureiraem algo decente. Posso tocá-lo?

Ariadna se virou, francamente intrigada.― Está a «pedir» para tocar o vestido?― Não me interprete mal... Se estivéssemos no meu salão, teria arriscado

tudo o que tenho para lhe tirar isso, mas estando frente a uma centena deintrometidos pensei que seria prudente perguntar antes. Não me torneinenhum cavalheiro de repente, pode te dececionar abertamente agora que oesclareci.

― Por curiosidade, senhor Talbot, ― começou. Esperou que tomasse comouma pergunta honesta e não como um convite à discussão. ― Alguma vezpensa em algo que não seja... indecente?

― É óbvio que sim. O problema é que os pensamentos indecentes sãomeus preferidos, por isso procuro retê-los em minha mente o maior tempopossível.

― Pode escolher que classe de pensamentos tem, e quando? ― inquiriuestupefata.

― Evidentemente não, isso é impossível. Mas o truque da distração surte

efeito na maioria dos casos, e talvez por isso o sexo seja o único que parece demeu interesse... tornei a dizer uma palavra grosseira, verdade? ― Ele mesmo sedesculpou, encolhendo um ombro e escancarando-se na cadeira. O caso é queo erotismo é das poucas coisas que sempre lhe ajudam a esquecer. O que meleva a perguntar... há algo que você gostaria de esquecer, pequena sereia?

― E você? O que gostaria de esquecer?Ariadna viu frustrado seu intento de aproximação amistosa: nesse preciso

momento, a soprano entrou com uma nota extremamente aguda em cena,acompanhada de nada mais que seu vestido feito de farrapos. Ela franziu ocenho e esfregou uma das orelhas. Os sons fortes não eram de seu agrado, emuito menos os que se mantinham durante segundos, como era o caso dessedó maior. E, entretanto, a canção não era o pior, mas sim o que a atrizexpressava já estendida numa das rochas que formavam a cenografia: tristeza,lamento, socorro... Era uma Ariadna recém abandonada, chorando porque seuamor se afastava para sempre.

― O que vai dar tudo isto? ― ouviu que perguntava Sebastian, voltando-separa olhar a lorde Ashton e o senhor Doyle. ― Repartiram algum tipo deprograma para que possa me fazer uma ideia de porque que a boa mulher estáesfregando o chão? Onde anda lady Leverton quando a gente precisa consultarsua sabedoria?

A cálida gargalhada de lorde Ashton atravessou Ariadna como um dardode morfina, tranquilizando seus nervos. Respondia pelo nome de TristaneAshton, e junto com lady Leverton, que passou de Jezabel Ashton a JezabelGalbraith depois de contrair núpcias com o marquês, formavam o casal deeruditos de Londres. Cada um especializado num âmbito do saber, juntos eramuma enciclopédia que causava tanto admiração como aborrecimento.

― Acredito que poderia lhe dar uma ideia, senhor Talbot. Conhece ahistória mitológica de Ariadna e Teseo?

― Não tenho o prazer, milord. ― Ironizou ― Nem tampouco o tempo paraperdê-lo em livros de histórias fantásticas.

― Pois pessoalmente recomendo-lhe que lhes dê uma olhada. O nome desua esposa, além disso o da minha e a senhora Doyle, e da quarta Swift nãopresente, provêm de mitos gregos. Ariadna em concreto foi esposa do Teseo, oherói que venceu a besta de Giz durante o reinado do Minos, o minotauro. Ominotauro era um monstro com cabeça de touro e corpo de homem que sededicava a aterrorizar a cidade. Diz-se que o rei, então, oferecia cada certo

tempo um número de donzelas e jovens para saciar sua fome, já que sealimentava de carne humana. Acredito recordar que o número oscilava entresete...

Sebastian bufou divertido.― O que dizia que terei de fazer exatamente para que um rei te entregasse

sete jovenzinhas?Se Ariadna não suspirou de puro cansaço foi porque nem sequer se deu

conta de que, com aquele comentário, estava-a menosprezando indiretamente.Ele tampouco reparou nisso, apenas o fizeram os suscetíveis àquela classe deafrontas, como suas irmãs. Megara e Penélope o censuraram com o olhar,reação que Sebastian não notou.

― Siga, por favor, não o queria interromper.― A história é bem singela. A cidade não queria entregar sucessivamente

as moças e moços, porque, quem sabia quando seria a vez de seus filhos? Erainconcebível, mas o rei de Minos não podia fazer outra coisa, ou isso acreditouaté que apareceu o herói Teseo, que aceitou a provocação de matar ominotauro. Em troca, obteria a mão da Ariadna, que se tinha apaixonado porele à primeira vista... Ou essa é uma das versões; há outras tantas nas que seacredita que Ariadna foi a que insistiu em consertar o enlace. Em qualquer doscasos, o resultado foi a vitória do Teseo, que conseguiu invadir o labirinto queencerrava a besta sendo ajudado pela própria Ariadna. Esta se assegurou deque não se perderia utilizando um novelo de lã para guiá-lo à saída quandoquisesse voltar.

― Isso soa a um final excelente. ― Interrompeu Sebastian ― Por que está aartista está choramingando?

― Porque Teseo a abandonou. O herói casa-se com a Ariadna, masaproveitou quando ficou adormecida para deixá-la na ilha do Naxos e voltarpara seu lar, supostamente com seu amante Egle. Sobre isto há numerosasversões. Teseo a abandona pelo Egle, porque não queria cumprir sua promessade matrimônio, ou se vê obrigado a partir, ou Dioniso a rapta...

― Esse nome já me resulta algo mais familiar ― interveio Sebastian ―Haverá uns que se atrevem a chamar-me assim quando acreditam que não medou conta.

― O deus da videira, do êxtase e dos bacanais.Sebastian soltou uma gargalhada que por um momento captou todos os

olhares.

― Agora tudo tem sua explicação lógica. Diga-me, Ashton... Como é queDioniso a rapta?

― Isso é nas versões menos estendidas. Na realidade, e segundo Nonoconta do Panópolis nas Dionisíacas, dá a casualidade de que Dioniso passa porali e gosta muito dela apenas ao vê-la. Decide tomá-la por esposa ao vê-lanecessitada, desfeita em lágrimas pelo abandono de seu marido... E ela aceita,é obvio. Ariadna e Dioniso, ou mais usualmente Ariadna e Baco, são um tópicorecorrente na história da arte, frequentemente utilizados como símbolo detriunfo, fertilidade ou amor. Por isso me atreveria a dizer que o segundo maridoa fez mais feliz ― apontou com um ligeiro sorriso.

― Aí acaba a história? ― inquiriu Thomas Doyle, pendente da soprano queainda cacarejava no cenário. ― Tenho entendido que os mitos clássicos, sobretudo os que protagonizam os heróis, acabam de forma péssima.

― Que o digam de Megara. ― Interveio a que recebia o mesmo nome ―Assassinada por seu próprio marido num arrebatamento de loucura.

― OH, não, este mito não acaba mal, por estranho que pudesse parecer ―repôs Ashton de bom humor. ― É certo que Perseo mata Ariadna comovingança por uma rixa com Dioniso, utilizando a cabeça da górgona Medusapara petrificá-la..., mas Dioniso desce ao Hades para resgatá-la de entre osmortos e obtêm o segundo final feliz. Tanto é assim que têm vários filhos, entreeles Enopión, o legendário rei do Quíos.

― Não lhe dói a cabeça sustentar esse cérebro enorme, lorde Ashton? ―perguntou Sebastian, olhando para ele entre a brincadeira e a resignadafascinação.

― O certo é que me afligem continuamente os males da enxaqueca ―brincou o citado.

― Por acaso não saberá, além disso, o que é o que está dizendo a soprano.Não sei nem pronunciar em inglês; o italiano fica bastante longe de meualcance.

― Sempre me surpreende sua capacidade para mostrar seus defeitos semmortificar-se absolutamente. Admiro-o, senhor Talbot ― confessou, assentindo― E sim, acredito que poderia traduzir, mais ou menos, a breve história dasoprano. Só teriam de me dar uns minutos.

IL cor d’Arianna amante

che t’adora lhe custe,stringi com tumor più tenace

e più bela a facesplenda do nostro amor.

Soffrir non possod’esser dá te diviso um sol momento.

Ah! dava vederti, ou caro,già meu stringe IL desejo.

Ti sospira IL mijo cuor.Vieni! Vieni, idol mijo.

― «O coração amoroso de Ariadna que te adora fielmente, liga com fortesnós, e a mais bela chama iluminará nosso amor» ― interrompeu uma afetadavoz feminina sensual. ― «Não posso estar separada de ti um só momento semsofrer. Ah, de verte, meu amor, já me oprime o desejo! Por ti sussurra meucoração. Vem, OH, vem, meu ídolo...!» ― Pôs os olhos em branco. ―Romantismo barato, não acredita?

― Ditosos os olhos ― comentou lorde Ashton, sorrindo de orelha a orelhapara a recém-chegada, que apareceu acompanhada de um alto e elegantecavalheiro que Ariadna não conseguiu reconhecer. ― Lady Saint-John, senti asua falta.

Ariadna se sentiu automaticamente fascinada pela mulher que saudava oconde. Pensou que, na realidade, nunca uma palavra fez tanta justiça a umacriatura. Ela era a definição do que se supõe que podia definir a todo umgênero: era a mulher, tal e como Deus a concebeu. Tudo em sua postura, emseus gestos ao traduzir a ópera, ao sorrir com sensual encanto aos comensais,apontava a ser irresistivelmente natural. Não havia um só artifício em seumodo de mover-se. Era feminilidade pura, no sentido sexual, avassaladora.Lady Saint-John era tão mulher que não precisava ser delicada para fazer-sever como o troféu que todo homem podia desejar, e o cavalheiro quepermanecia a seu lado, detalhando seus movimentos, fazia justiça ao quetransmitia com sua maneira de olhá-la.

― Só passei para saudá-los. ― Expressou ― Estava me dirigindo por aquiquando se abriu o pano de fundo, e tive que voltar e sentar-me. Danação,pensei que nunca chegaria; sempre havia algum conhecido no caminho,

obrigando-me a parar e a ter uma conversa fútil.Ariadna acreditou que se sentiria intimidada ao ser apresentada à

duquesa, mas foi próxima e amável com ela, inclusive muito direta, como se jáfossem amigas. Pareceu-lhe uma mulher magnífica, e embora o duque fossefrio e algo condescendente, fez-se uma ideia favorável de sua personalidade.Agradeceu sobre tudo a interrupção porque a liberavam de ter de continuar aprestar atenção à representação, que não podia ter sido menos acertada.

Adorando a solidão como o fazia e sendo tão despistada, Ariadna tinhatempo de sobra para pensar, e uma das matérias que roubavamfrequentemente suas horas de sono eram os acertos de sua mãe. Não é quelady Swift tivesse sido uma bruxa, ou tivesse dotes de adivinhação; pelocontrário, tratava-se de uma mulher racional e extremamente apegada àtradição e aos valores conservadores. Isto podia ficar em dúvida por sua eleiçãode nomes, que frequentemente fazia que seus vizinhos perguntassem se foiuma apaixonada por mitologia. Possivelmente teria sido: Ariadna não tratoucom ela o suficiente para jurar com uma mão no peito quais eram suasafeições. Mas se encarregou de enfatizar que se tinham o nome da esposa deum herói grego era porque seu único objetivo na vida seria casar-se com umhomem igualmente importante, como assim eram Ulises, Aquiles, Hércules... eTeseo.

O curioso foi que, sem querer, lady Swift obrigou suas filhas a viver osmitos. Penélope teve de esperar virtualmente uma década para, por fim, serfeliz com seu marido; tal e como o fez a matriarca de Ítaca. Megara não morreuassassinada como clamava a história de Hércules, mas sim que houve dozetrabalhos obrigados para redimir os pecados de ambos, e certamente tinhasuas equivalências. Quanto à sua história com o Teseo... havia numerosassemelhanças entre a realidade e a ficção, mais ainda agora se Sebastian podiafazer-se chamar Dioniso.

Mas com o que nem sua mãe nem as lendas da Antiga Grécia poderiam tercontado era com que Ariadna não poderia aceitar a mão de Dioniso com tantafacilidade, quando o navio de seu amado Teseo ainda se via no horizonte. Outalvez não o visse, possivelmente já não estivesse à sua vista: ao melhor faziamuito tempo após... Mas os ventos que fizeram vibrar suas velas continuavamsacudindo o seu coração. Estava muito fria, muito doída e quebrada paracontemplar a Dioniso como símbolo de triunfo ou amor.

Ariadna cravou os olhos em seu coração, que ainda lamentava o

desaparecimento de Teseo. Ela, que tanto o tinha amado. Ela, que tudo deu porele, abandonando Giz, seu pai, e seu brilhante futuro... Ela, que escapou domundo para inundar-se no de seu amante e marido. Ela, que sulcou o mar e seentregou de todo coração... Foi cruelmente abandonada na ilha de Naxos,quando dormia, para não a deixar sequer despedir-se. Esse Teseo eradesumano, um ser desalmado pelo que pouco lhe importou se Ariadnaprecisava desafogar seu amor agora impossível.

Engoliu em seco e afastou o olhar, incapaz de suportar o pranto amargoda cantora. Tinha um nó na garganta e outro no estômago, e embora nuncativesse levantado a voz, desejou poder fazê-lo para liberar um grito similar aoque ela enunciava.

Dove sei, mijo bel tesouro?Chi t’invola a questo cor?

Se non vieni, io già meu mouro,nè resisto ao mijo dor...6

― Se quiser, pode tocar o vestido. ― Murmurou num arranque, suplicandoum pouco dessa distração requerida. Sebastian se voltou para ela intrigado.Pôde sentir a iminente pressão de seus olhos na bochecha, percorrendo-lhe operfil para averiguar se lhe estava estendendo uma armadilha.

Sebastian estendeu a mão e tomou uma tira de babados que caíam sobreseu joelho. Utilizou os dedos indicadores e o médio para sujeitá-lo e acariciarlateralmente o tecido. Sua mão se moveu com lentidão, embora com isso nãoqueria dizer com suavidade, até contê-la entre as duas coxas de Ariadna.

― Na realidade... ― sussurrou; sua voz se acoplou à perfeição sob asconversas dos outros, que agora pareciam estar noutra realidade. ― Aqui hámuito mais tecido do que considero adequado.

Ariadna virou a cabeça o suficiente para quase se chocar com seu nariz.― Considerar adequado... para quê?Ele sorriu interiormente.― Para o verão, é obvio. ― Ariadna expulsou o ar de uma repentina

exalação; ele procurava os babados da fila superior, agora arranhando-os comas unhas. ― Ultimamente as temperaturas são muito elevadas para vestir umobjeto tão grosso. E com um só golpe de calor, poderia cair deprimida. Por

acaso quer ficar a deprimir, duendezinho...? Quer que o calor te consuma?Que a levassem os demônios por estar tão concentrada na forçada

respiração dele, a quem parecia lhe bastar uma pequena insinuação paramorrer de necessidade por ela. Ariadna não era uma mulher empática, longedisso, mas admitia que o que Sebastian sentia a contagiava irremediavelmente,e não só isso, mas também as suas emoções se reproduziam nela com maiorsensibilidade.

― Inglaterra é fria, senhor Talbot. Nunca fará suficiente calor para queprocure um vestido mais fino.

― Eu não vejo nada frio por aqui. ― Replicou. Ariadna o ouviu tão pertoque não soube em que momento teria se inclinado sobre ela. Mas estavam emcontato. Podia senti-lo, porque sua pele não era propriedade sua quando atocava. ― E embora o fosse, havia milhares de maneiras de proteger-se dele,mais dinâmicas que um capote ou uma anágua de sobra... Como os velhos

homens de cro-magnon7 que faziam fogo, esfregando um par de lascas... ― Osdedos largos de Sebastian terminaram de subir, desta vez fingindo ser pernascaminhando por seu regaço, para ao final descansar no triângulo entre suascoxas. Ariadna procurou seus olhos, curvada. ― De um simples estalo, eupoderia te fazer arder.

Ariadna estava convencida de que assim era. Carecia de sentido negá-lo, edesta vez era culpa dela que voltasse a encontrar-se nesse estado degenerativo.Se somente deixasse de ser tão extremamente irresistível... Sua proximidadedoía a nível físico, sufocava-a e enlouquecia com tanta violência que logoacabava rendida, inclusive doente. Tinha uma mão sobre seu regaço, sobrecapas de roupa, e ela o sentia profundamente instalado em seu corpo, pele compele... Era tão intenso e varonil que com um olhar corrompia todos seusbenditos pensamentos.

― Não se pode estender-lhe a mão, senhor Talbo.t ― ofegou, agarrando-opelo pulso para acautelar uma possível investigação a fundo. ― Você é dos queacabam agarrando o cotovelo.

― Agarro o cotovelo, e agarro o ombro... ― assentiu, encostando o nariz àsua bochecha. Para esconder suas palavras dos observadores dos fundos,escondeu logo o queixo no oco de sua clavícula. ― E te dou a volta para tepegar a mim, e te sustento para que não caia quando te beijar das costas atéaos calcanhares ... E se tivesse que te agarrar só o cotovelo, sem mais, atiraria

de ti para te costurar a meu peito e te beijar como se fosse meu maior bem. E ofaria aqui ― confessou. ― Escandalizaria a todos esses mentecaptos televantando a saia, te arrancando o que seja que uma dama como você levedebaixo desta seda, e te possuiria até que alcançasse uma nota superior queessa Ariadna de mentira.

Ariadna não podia respirar. Suas palavras a envolveram, primeiro comobruma que a impedia de ver, depois como cordas que não a deixavam engolir, epor fim como fogo que a condenou ao capitalista e inegável desejo de fundir-secom suas cinzas. Quem era esse homem, e onde tinha aprendido a falar assim,como se cada letra fosse um beijo numa zona que nem ela mesma teriaacariciado jamais? O diabo em pessoa lhe ensinou, estava convencida. UmaAriadna morta, às portas do inferno e do céu, renunciaria ao descanso eternose Sebastian a olhasse do outro lado. E quão terrível era, quão estranho edelirante...

― Senhor Talbot, não me fale desse modo...― Você não gosta das pessoas diretas? Estou a tentar não andar com

rodeios, Ariadna. Quantas mais voltas me vais fazer dar?

Già più non reggo, IL piè vacillae in così amaro lhe estejam

sento mancarmi in são l’alma tremante.8

Com esses versos a soprano fechou o primeiro ato, devolvendo o ar aAriadna. Ficou em pé muito devagar, disposta a sair com as suas irmãs eestirar as pernas e afastar-se daquela carne delirante que Sebastian punha aoseu alcance. Preferia suportar turno atrás de turno de aristocratas, mantendoconversas banais com eles, do que ser vítima do assédio sem trégua de seumarido. Assim, livrou-se de sua mão sonhadora e partiu ao corredor que faziade ponto de reunião.

Em relação aos cavalheiros e sua relação com os mesmos, estevepensando muito tempo no que Sebastian tinha mencionado: ser sua esposafaria que sua popularidade despencasse. Não tinha acontecido, nem porindício. Teria gostado que assim fosse, mas, pelo contrário, os citados seaproximavam dela com curiosidade, possivelmente desejando saber por que foiessa sua eleição marital e verificar o rumor do casamento em Gretna Green.

Como era evidente, retornavam a suas casas sem obter uma só resposta deAriadna que não fosse ambígua. Se algo tinha aprendido de sua mãe era a nãodar às pessoas o que queriam, ou poderiam usar contra você. Uma lição queaprendeu magnificamente.

Foi uma Ariadna alterada e doída em todos os sentidos em que se podiaestar que se entreteve saudando o trio de nobres que a pretendeu no passado:os viscondes Weston e Grayson e lorde Aldridge. Alegrou-se de que faltasse oduque de Winchester, que - embora tenha recordado a «queda» - não lheproduziu nenhum sentimento. E se tivesse sentido, distava muito dacompaixão ou preocupação, por isso talvez a crueldade de seu marido tivessecontagiado algo.

Não soube quanto tempo permaneceu entre os três homens gentisprocurando conter o sufoco. Foram tão amáveis e generosos com ela como decostume, convidando-a a tomar assento a seu lado para o segundo ato. Parafalar a verdade, nem sequer estava prestando real atenção ao que comentavam;só assentia, sorria e fazia algum comentário que os fazia interromper emgargalhadas enquanto pensava no ardor que a estava corroendo. Foi uma mãoenrolando-se em seu braço o que a separou do grupo e a levou para o ladooposto do corredor.

Sebastian não a deixou despedir-se nem ofereceu nenhuma desculpa.Tirou-a do grupo precipitadamente, levando um bom número de olhares pelocaminho, e a conduziu ao final do corredor até estar justo à entrada dopalacete. Ariadna procurou seus olhos para discernir o que estaria passandopor sua cabeça, mas antes de que pudesse olhá-lo, ele a agarrou pelos cachosda nuca e a atraiu para si para devorá-la. O gemido gutural que rasgou suagarganta ao reconhecer seu sabor foi muito significativo, sendo respondidoimediatamente pela contínua e dolorosa dominação de seus lábios.

― Se... senhor Talbot... ― ofegou, tentando separar-se para olhá-lo aosolhos. ― Por-por que...?

Deu um gritinho quando ele a esmagou contra a parede. Ariadna abriu aboca ao notar a dureza que estava a ponto de lhe atravessar as calças. Ocurioso nela morreu, sendo substituída por uma mulher lasciva que nãopoderia se conter por muito mais tempo.

Ele se agachou o suficiente para colocar as mãos sob a saia. Afastou asmarés de babados com ansiedade, dando a impressão de que saíam de todaspartes e de nenhuma. Ariadna notou seus dedos nas coxas, pressionando-os

afogados de necessidade. As pernas lhe tremeram ao saber-se invadida pelasquentes palmas. Sebastian as percorreu de forma imprecisa, como estava ébriode paixão. Beijou-a outra vez, e outra, e novamente com profundidade,colérico... Ariadna não podia responder sequer, só deixar-se balançar por esseoceano furioso, permitir que a investisse com suas formas, e desejar que aconsciência nunca retornasse a ela para desfrutá-lo sempre. Desfrutar sempredessa paixão desmedida e incomparável que sentia por seu prazer.

― Porque odeio a todos. ― Ofegou, arranhando a parede a seu lado.Escondeu a cara no ombro. ― E ver como lhe olharam quando te apresentastetão ruborizada ante eles... De certeza que pensaram que era por sua graça. Nãotêm direito de ver em seus olhos o que lhe fazem minhas palavras. Isso mepertence. Você pode não me pertencer, mas isso é «meu»... Seu rubor e suaexcitação...

Voltou a atacar seus lábios com os dentes, a empurrá-la e manuseá-laentre as anáguas, sob as calças de algodão. Ariadna sentia sua própriaexcitação, bombeando nessa zona proibida. Lançava pequenas sacudidas aseus membros trementes. Estava anulada por completo. Era cativa de sua bocaferoz, suas grosserias, e por Deus que amava como o corpo violento deSebastian vibrava a seu som.

― S...― Não te atrevas a chamar-me «senhor Talbot» uma só vez mais. Sou seu

marido. ― Recordou-lhe entre dentes, penetrando as mãos entre os finoscolchetes. ― Tudo o que há aqui é para mim, foi feito para mim... E minhasmãos foram criadas para te agradar.

― Não... Não sou sua propriedade. M-meu corpo não lhe pertence, e mi...― Maldita seja, Ariadna. ― Cortou, indagando ainda entre as dobras das

anáguas. ― Vou estar entrando e saindo de seu corpo até que haja mais demim que de ti. E então já veremos a quem diabos pertence.

Ariadna mordeu o lábio de pura frustração. Sabia que a debilidade adefraudaria, mas empurrou-o no peito para afastá-lo. Sebastian a soltou eretrocedeu.

― Estou cansada de que todos se proclamem meus donos. ― Ofegouzangada ― Não sou dele, nem do duque, nem de meu pai, nem de nenhumpretendente que só me deseje para saciar-se. Basta ― repetiu necessitada.

Sebastian voltou a aproximar-se dela e a agarrou pelos pulsos. Colocouum a cada lado de sua cabeça, obrigando-a a olhá-lo à cara. Ariadna sentiu

que lhe absorvia até a última fresta da alma ao sustentar seu olhar com aclasse de potência passional que poderia fazê-la desvanecer.

― Acumulei suficiente desejo por ti para não me saciar nem vivendo dezvezes mais. Tenha claro isto... Essas dez vezes te buscaria por toda a Terra,embora não te conhecesse, embora não soubesse onde está... e essas dez vezeste repetiria que é minha, porque esta loucura que me açoita quando te tocosozinho tem uma maldita explicação... E é que há algo meu dentro de ti. Algoque me tiveram que arrebatar e esconder em seu peito para que eu o necessite.Isso ― recalcou ― ata-a a meu corpo, mescla-te com minha alma, se é quealguma vez a tive ou cheguei ou pensei ser o que era...

Ariadna ficou liberta do agarre de repente. Viu-o retroceder, com ospunhos apertados, avermelhado de impotência. Quis lhe dizer que já podiadescansar em paz, que o acolheria entre seus braços ali mesmo... Mas ele foimuito veloz na hora de acalmar-se e encontrar uma última palavra que dizerque, entretanto, não pronunciou.

O detalhe do novo guarda-roupa não foi a única atenção que Sebastianteve com ela. Ariadna teve a impressão de que alguém lhe tinha confessado naintimidade que tudo o que ela esperava do matrimônio eram presentescustosos, e ele, fiel aos seus objetivos, esmerava-se em surpreendê-la com todaclasse de presentes desnecessários. A princípio, a tratou como a uma moçaqualquer, apelando à feminilidade em si mesmo: vestidos e acessórios, joias,cintas, sapatos... teve inclusive o atrevimento de acrescentar roupa íntima nopacote. Depois, ao descobrir que a aparência era algo de escassa importânciapara ela, enterrou-a em novelas e jogos intelectuais. Ao final, Sebastian chegouà conclusão, em apoio ao rechaço contínuo de sua parte, de que a estratégianão surtiria efeito. E assim foi como, num instante de lucidez, lhe ocorreusurpreender Ariadna em seu pequeno remanso de paz. Quando uma manhã seapresentou no jardim traseiro, descobriu que um broto de margaridas depétalas negras tinha sido colocado numa das estropia do abrigo.

― Disse que seria minha quando as margaridas surgissem de cor negra ―foi toda a explicação que Sebastian concedeu.

― E você disse que não me daria de presente flores, nem poemas...― Não te dei de presente poemas.― Mas me deu de presente um livro de poesias. ― Concluiu Ariadna.Aquilo pareceu modificar um tanto as convicções do empresário, que

nesse dia partiu murmurando baixinho e um mau humor que se refletiu em

sua retirada da mesa durante o jantar. Ariadna tentava compreendê-lo de umponto de vista que não se inclui condicionantes negativos: não queria pensarque só desejava deitar-se com ela por pura curiosidade, mas sim insistia e seobcecava por algum motivo maior. Entretanto, ele não dava motivos parapensar em outra coisa, e ela não podia entender que um desejo fosse tãodesproporcionado para empurrar um homem à loucura. E Sebastian estava.Tornou-se louco, embora por sorte, isso não lhe afetava além de ir aumentandoseu patrimônio pessoal diariamente.

― Tommy diz que está desesperado para te tocar. ― Comentou Megdurante uma de suas saídas. Não lhe escapou o sorriso perverso de sua irmã aAriadna. ― É certo?

Ariadna conteve um suspiro. Teria preferido desfrutar do passeio de barcoem completo silêncio. O respingo constante que submetia ao fluido caudal doTâmisa era uma glória natural que gostaria de apreciar com os cinco sentidos;por isso, de tempo em tempo, esticava o braço e roçava a superfície com osdedos, maravilhando-se com sua frescura. A água era esse elemento naturalque ela admirava tanto como lhe aterrorizava. Durante anos não se atreveu acolocar um só dedo na corrente, ou a molhar os pés no oceano, mas depois delongas discussões consigo mesma, decidiu que era uma estupidez perder bonsmomentos em contato com a natureza por um temor passado. O que é obvionão queria dizer que, se quisesse, teria sido possível mergulhar no rio.

― Não imagino Thomas te falando de algo assim. ― Interveio Penélope,recostada no barco com um guarda-sol apoiado no ombro. ― Parece bem maisdiscreto que isso.

― Evidentemente não usou essas palavras, mas esse era o significado. Ebem? ― insistiu, olhando a Ariadna ― É verdade que está a ensinar a Talbotpara converter-se num homem decente?

― Sebastian é um homem decente, só que às vezes pode ser terrivelmenteindecente, como todos. ― Respondeu sem prestar muita atenção a suas irmãs.Rodeou os joelhos com um braço, e com o outro continuou desenhandopequenos círculos na água ― Tampouco pretendo lhe ensinar, somente...proteger-me.

― Proteger-te? ― Penélope levantou-se ― Fez-te mal?Tinha-lhe feito mal.…?Ariadna não respondeu. Ficou admirando seu reflexo na água, distorcido

pelas distintas correntes que se formavam ao redor da canoa. A cor de seu

cabelo, recolhido de maneira improvisada pela donzela recentementecontratada, esclarecia a tonalidade cristalina das ondas que balançavam obarco ritmicamente.

Não lhe tinha feito mal, mas, por um lado, arrebatou-lhe a esperança. Eracerto que não foi um sequestro propriamente dito, já que ela terminouaceitando, mas sentia que entre todos a tinham exposto a um desgraçadofuturo que não teria doído tanto se pudesse explorar todas as possibilidades.Embora, como poderiam aqueles próximos a ela saber o que havia em seupensamento? Suas irmãs desconheciam seus sentimentos para com oremetente das cartas; nem sequer chegaram a saber de sua existência. Talvez,se pudesse falar em voz alta de sua dor ou do amor que lhe deu, tudo tivessesido diferente. Não a teriam animado a casar-se, ou possivelmente tivesseocorrido justamente o contrário...

Já não servia de nada lamentar-se ou sentir falta. Não odiava a nenhumdos que, por uns meios ou outros, tinham-na pressionado para converter-se nasenhora Talbot. Não era a primeira nem seria a última mulher no mundo quese casava com o coração quebrado. Em todo o caso, odiava-se a si mesmaporque, não contente traindo o briguento dono de sua alma entregando a suavida a outro quando possivelmente devesse chorar para sempre, os instintosselvagens que Sebastian projetava sobre ela eram respondidos silenciosamentena mesma medida. Não, não a tratava mal... Mas a tinha transformado nummonstro ofegante, e pelas noites sofria. Não deixava de suplicar antes de fecharos olhos que deixasse de ser um animal sensual e provocador passeando porseu corredor, fazendo encolher seu estômago pela culpa de desejar, muito nofundo, abrir a porta e guiá-lo ao leito.

Era inaudito e inexplicável, e, ao mesmo tempo, não poderia ter tido outrosentido. Parecia lógico que o mais parecido a um deus bêbado e farristainspirasse sentimentos igualmente profanos nela. Com o outro nunca ansioubanhar-se na impureza, nem desfrutou internamente de uma seduçãodilaceradora a que tentava ser indiferente... Contra as direções que a vida daAriadna sempre tinha tomado, Sebastian a empurrava a tomar caminhosinexpugnáveis, secretos e proibidos que só poderiam conduzir à perdição... Etambém à enganação dos sentidos, algo que embora não devia querer explorar,causava-lhe a mesma curiosidade que tudo relacionado com o natural.

O que havia mais natural que ele...?Afastou os olhos da água e olhou para frente. Na regata que os adiantava,

Sebastian acabava de ficar de pé, remo em mão e cambaleava pulando osobstáculos que eram o conde de Standish, ― Dorian Blaydes ― Thomas Doyle elorde Ashton ― Tristane Ashton ― Este último ria por um comentário doprimeiro, enquanto que o segundo, certamente preocupado pela integridadefísica do empresário, agarrava-o pela perna. Ele o ignorava, jubiloso comoparecia, para assumir a liderança e comentar algo que fez gargalhar a todosoutros.

― Ariadna? ― chamou Penny ― Ouviste-me, ou devo começar a mepreocupar...?

― E esses o que estão tramando? ― perguntou Meg, olhando com os olhosentreabertos à canoa dos homens. ― Estão muito risonhos para ser uma turmade amargurados...

― Na realidade o teu é o único amargurado. ― Particularizou Penny,esboçando um sorriso que reservava para aqueles em quem confiava. ― Seguete ignorando? ― Assim que obteve seu assentimento a contragosto, suspirou. ―O que quer que faça? Que ponha de joelhos e suplique seu perdão? Foi elequem começou com as intrigas pelas costas. De facto, sempre foi ele quemintrigava por detrás, e como sempre me refiro do começo... é um embusteiro, ese molesta porque você se incomoda? ― Soltou um bufido indignado. Seja forte,Meg. Não volte a te insinuar... Faz para que chore por ti.

Megara e Ariadna deixaram o que estavam fazendo. ― Brincar com obordado do vestido e estudar as ondas da água, respetivamente ― para olhar àirmã mais velha. A primeira sorriu com humor, e a segunda sustentou seuolhar com curiosidade.

― Por que você gosta de fazer chorar aos homens, Penny? ― perguntouAriadna num arrebatamento de inocência.

― Eu não gosto de fazer chorar os homens... Eu gosto que os que omerecem chorem. E esse presunçoso do Doyle me está inflando o nariz. ―Espetou, como sempre que se zangava, recorrendo à grosseria. Afastou oguarda-sol e o fechou num movimento irado. Com ele, apontou a Megara. ―Procura que te veja paquerando com alguém na noite de amanhã. Já verá osresultados. Não há nada mais efetivo que o ciúmes.

― É uma completa descarada. ― Riu Meg, proporcionando-lhe um chutenas pernas. ― Mas visto que é ou tomar seu conselho ou seguir assim porquem sabe quanto tempo, terei de atuar...

― Por que ficaria ciumento? ― inquiriu Ariadna ― Meg é sua esposa, e o

quer... Não tem nada que perder. É ridículo, em minha opinião.― É... Mas Tommy com certeza sempre foi ciumento até do ar. ―

Especificou ― Se posso usá-lo contra ele quando ele me faz mal com suaindiferença...

― O senhor Doyle é indiferente todo o tempo. Tampouco deve ser tãoterrível para lhe fazer dano de forma deliberada...

Um exagerado respingo fez que as moças dessem uma estremecia. Ariadnasaiu de seu pensamento e abandonou a conversa para captar como a cabeçaescura de Sebastian emergia das águas com uma sacudida, declarando suasobrevivência à queda..., que, pelos comentários de seus amigos, na realidadeparecia ser premeditada.

Elevou as sobrancelhas assim que seus olhares se encontraram nadistância. A princípio, Ariadna não se preocupou que nadasse para ela. Acorrente ia contra ele e era inescapável... Mas o subestimou, porque apenasnum par de braçadas chegou à sua altura. Agarrou com os dedos empapados abeira da canoa, deslocando-a ligeiramente na sua direção e levando astemerosas reprimendas de suas irmãs.

― Vá, mas é alguma uma sereia. ― Ironizou Penélope ― Pergunto-me senos deleitará com esse canto que induz aos marinheiros a cometer atosimprudentes...

― Na realidade posso cantar alguma canção de botequim. Conheço umabalada sobre a trágica história de amor entre uma dama e seu servente, queremonta ao século XVII, se não recordar mal... Embora esta sereia não saibacantar, ― apontou ― veio diretamente para levar o marinheiro às profundidadesdo mar.

― Que insinua...?Ariadna soube antes de que o dissesse; antes de que desse um só passo

em falso. Os olhos de Sebastian a caçaram no meio de um intenso escrutínioque lhe serviu para comprovar quão atraente poderia ser um homem quandosorria genuinamente... Se é que aquele em concreto podia fazê-lo, coisa queduvidava. Embora tentasse aparentar um sentimento real e quente, a cicatrizse estirando imperfeitamente o impediria de se livrar do ar matreiro. E Ariadnao preferia assim, porque desse modo podia o reconhecer sem problemas.

Sebastian a agarrou pela cintura, empapando-lhe a saia no processo, e atirou num brusco puxão da regata. Ariadna foi parar na água com um grito queele amorteceu estreitando-a contra seu peito, o que converteu a queixa num

fraco gemido.― Senhor Talbot! ― exclamou com o coração a ponto de sair pela boca. ―

Senhor Talbot, o que está fazendo?― Não é óbvio? Sequestrando-te... ― Fez uma pausa sorrindo divertido ―

Outra vez.― Isto não é absolutamente nada divertido ― murmurou, olhando ao seu

redor com nervosismo. Ouviu que suas irmãs, das quais se afastava nos braçosdo captor, chamavam-na aos gritos. ― Senhor Talbot, por favor, me devolva àborda... Eu não gosto da água...

― Então estamos frente a um excelente simbolismo do inferno no qual vivograças a ti. Tampouco eu gosto de suas evasivas, duendezinho.

Ariadna estremeceu de pavor. Fechou os olhos um segundo, num débilintento por controlar as emoções que a inundavam a preocupação. Imagensdíspares de uma situação quase no mesmo cenário a bombardearam, e teve devoltar a abri-los de repente para olhar ao seu redor, para assegurar-se de quejá não estava ali. Mesmo assim, o medo insistiu em amedrontá-la com seusaguilhões de frio metal. Aferrou-se a Sebastian com força, e se impulsionoupara cima, como se assim pudesse fugir da água.

― Senhor Talbot, suplico-lhe...― Não seja ridícula. ― Insistiu, ignorando que a moça mordia os lábios

para não gritar ― Um pouco de água não vai matar.Ariadna assentiu, agradecendo ao céu que fosse devolvê-la à borda.

Porém, isso não ocorreu. Sebastian obedeceu sendo fiel à literalidade dasúplica, soltando-a ali mesmo, no meio da corrente. Ariadna abriu os olhoscomo pratos. O encolhimento muscular que a sobressaltou, abraçando-a aoataque de pânico, foi tão brutal que gemeu de dor. Seu vestido começou apesar, e seus membros intumescidos pela fria temperatura da água malpuderam mover-se para resgatá-la do afogamento.

Ariadna soltou um grito dilacerador que perfeitamente pôde ter alertado atodos os habitantes de Londres. Lutou por sobreviver à imersão, sacudindo osbraços e chutando os tecidos que se enrolavam em suas pernas, mas não foipossível. Se conseguiu ver a luz através do cegamento que sofreram seus olhos,foi porque um braço grande a salvou do naufrágio definitivo. Ariadna seagarrou à camisa e procurou o rosto de quem quer que fosse o protetor,totalmente fora de si. Aferrou-se a seu pescoço com força e pressionou abochecha contra a dele, com a cara decomposta pelo horror.

Sebastian saiu da água sem nenhuma dificuldade aparente. Caminhou atéà sombra da arvoredo mais próxima, sustentando-a com firmeza. Esmerou-seprocurando uma franja de luz solar onde acomodá-la.

― Tornou-se louco? ― gritou uma voz feminina. Ariadna não se recuperoua tempo para ver como sua irmã Penélope agarrava Sebastian colarinho docapote. ― O que pretendia fazer, desgraçado? Acredita que isso é divertido, poracaso? Não sabe nadar, e a água a aterroriza! ― chiou ― Não pensa antes defazer as coisas...? OH, está claro que não! Acima de tudo, seus estúpidoscaprichos!

― Ariadna! ― chamou Megara, correndo para elas. Virtualmente atirou-sea seu lado para lhe cobrir os ombros com os braços. ― Se encontra bem? Deus,está gelada... ― Murmurou. Tirou o capote a tapas para tampá-la com doçura.Perdendo por completo a suavidade, voltou a cabeça e fulminou com o olhar aSebastian. ― Como diabos você pode pensar nisso, Talbot?

― E como não poderia pensar nisso? Se é um animal! ― gritou Penélope,sacudindo-o.

Sebastian não reagiu às numerosas críticas; nem sequer pareceu dar-seconta de estar as recebendo. Só tinha olhos para Ariadna, que não conseguiafocar os olhos nem mostrava indícios de abandonar esse estado de comoção.Ela abraçou os joelhos. Se não escondeu o rosto entre as mesmas foi porquenão queria lhe dar a satisfação de vê-la afetada por algo que tinha feito.Supunha que nesses casos, tal e como Penélope lhe tinha ensinado, o melhorera a indiferença... Mas não podia acalmar-se, porque todas as máslembranças continuavam pulsando na sua memória, derrubando qualquer afãque pudesse ter tido de retê-las. O impacto das ondas, seguia açoitando-a, e aarrastava mar adentro para não a cuspir nunca mais...

Ariadna estremecia quando Megara a ajudou a levantar-se e Penélopeesfregava-lhe os ombros, os braços e as costas ao caminhar. Seus ouvidos nãointercetaram nenhum detalhe da conversa a viva-voz, que se prolongou até ofinal. Um molesto zumbido os tapava. Cobriu-se entre os braços de sua irmã,que a sustentou tentando lhe transmitir tranquilidade, como se de algum jeitopudesse saber o que em realidade lhe estava fazendo mal. E não se moveu daliaté que a quiseram levar de volta para casa, onde se refugiou de tudo e todos,exceto de suas lembranças.

12

...eu te farei uma coroa constelada para que seja chamada a reluzenteamante de Dioniso, que adora as coroas.

As Dionisíacas, NONO DE PANÓPOLIS

― Pela primeira vez eu iria amordaçar minha certeira honestidade, masvisto que renunciei a uma velada encantadora com minha mulher paracelebrar o silêncio violento em companhia de dois mortos vivos, acredito que ojusto é apresentar uma queixa formal.

Sebastian fulminou com o olhar o conde de Standish, uma reação queunicamente teve sua base no mau humor que o acompanhava já fazia algunsdias, pois no fundo agradecia que o tivesse libertado momentaneamente desuas torturas internas. Em efeito, Blaydes poderia ter ficado acompanhandosua esposa durante o baile organizado para seus amigos mais próximos, postoque de seus dois competidores não ia tirar muito mais que um mugidodesagradável. Doyle andava mais circunspeto do que de costume ― e issosignificava que levava longas horas sem emitir palavra, ― e no que a elerespeitava... preferia não se atrever a propor uma conversa ou Blaydesdesviaria sua iniciativa diretamente para tratar o tema que lhe interessava.

― Muito bem... ― suspirou o único que tinha ânimo de festa. Reclinou-separa trás e colocou a mão no bolso interior da jaqueta. Tirou a carteira. ―Parece que tenho de subir a aposta para não morrer de aborrecimento. Quantoquerem? Eu hoje não peço dinheiro, conformo-me com uma confissãodetalhada sobre as misérias que açoitam suas vidas. Ou melhor das queaçoitam as tuas, Doyle... Posso imaginar o que acontece com Talbot. Nada peloque terei de pôr o grito no céu, em realidade, dado que leva lhe acontecendodesde que nasceu ― acrescentou, alargando o braço para lhe pôr uma mãoamável no ombro. Olhou-o com os olhos reluzentes de sarcasmo. ― Não há

nada de mal em ser imbecil amigo, não teve culpa...Sebastian nem sequer tentou defender-se. Lançou-lhe um olhar hostil,

que podia significar «segue assim e te jogarei de minha casa» ou «preferiria quenão o recordasse com esse desafogo», e voltou a concentrar-se nas cartas. Eraevidente que a sorte na partida ia jogar com a sorte generalizada que invadirasua vida: um claro exemplo era a péssima mão que tinha tirado, e o quão mal aestava administrando. Antes ninguém podia o derrotar, e agora estava tãoestagnado que não conseguia tirar um miserável casal.

― Ela ficou doente. ― Resmungou sem levantar o olhar da mesa. ― Acausa do episódio do lago... passou os últimos dias prostrada na cama.

― Ninguém duvida de que faça as coisas muito bem. ― Mofou Blaydes. Seas olhadas tivessem poder de matar, o pequeno jovem Blaydes teria herdado ocondado nesse preciso instante. ― Pelo amor de Deus, Talbot, não tem de semortificar desse modo. Só foi uma pequena brincadeira... Não é como se fossesarder no fogo eterno por atirar uma moça ao rio; o fará, não me cabe a menordúvida, mas esse não será o motivo.

Sebastian jogou uma rápida olhada aquele desavergonhado.Desde o momento em que o conheceu, pareceu-lhe um tipo do mais

singular. Em Dorian Blaydes conjugava a elegância do cavalheiro e o bebedorde bar que observava as brigas de botequim com um sorriso malicioso. Semdúvida lhe atraiu que tivesse a mesma pouca-vergonha que ele na hora deexpressar seus desejos e desprezar o que não era de seu agrado... Mas acimade tudo isso, em determinado momento acreditou reconhecer uma tendência àamargura protegida sob capas de ódio e condescendência, quesurpreendentemente correspondia com à sua. Foi isso, na realidade, o que fezque combinassem... E agora não ficava nada dessa displicência ao mundointeiro no Blaydes. Menos esse dia em concreto, no que aparecia exultante defelicidade.

― Pode-se saber por que parece eufórico? ― espetou Sebastian ― Quetramas, fantoche?

O sorriso ladino de Blaydes se alargou, gerando um tão amplo e sinceroque Sebastian esteve a ponto de soltar uma blasfêmia. Aquele tipo era adefinição do descaramento, atrevendo-se a aparecer em sua casa para esbanjaralegria quando pouco faltava a ele para instaurar o luto.

― Minha senhora está grávida de novo. ― Anunciou com mais que óbvioorgulho ― E suspeito que desta vez será uma menina.

Sebastian não conteve a irreverência dessa vez e soltou uma de suasgrosserias através da que se filtrou a surpresa.

― Parabéns, Blaydes ― assentiu Doyle, que por sorte sim sabia guardar acompostura. Estirou o braço e lhe estreitou a mão ao citado. ― Espero ver logoa condessa para lhe desejar o melhor durante o embaraço.

O conde pôs os olhos em branco.― E a ti o que te passa...? Maldição! ― exclamou de repente. ― Agora

entendo tudo... Acabou o uísque. Graham! ― chamou. O mordomo nãodemorou para aparecer ― Seria tão amável de ir à adega e trazer um par degarrafas? Uma para cada um de meus amigos... Estamos ante uma situação deemergência.

― O álcool não resolve os problemas, Blaydes. ― Aduziu Doyle, cruzandoas pernas. Seguiu uma pausa em que pareceu meditar, antes de acrescentar: ―Embora seja certo que parecem muito melhor... Que não falte do Kilbegganirlandês, Graham.

O criado desapareceu velozmente, e apareceu apenas uns minutos depoiscarregado com a «artilharia pesada». Logo, Sebastian tinha a impressão de quepassaria a noite vendo dois Doyle e dois Blaydes, como se não fosse suficientecom o sarcasmo de um e a silenciosa condescendência do outro.

De todos os modos, não seria ele quem iria rechaçar a oferta, já que lhedesejava muito melhor que seguir flagelando-se pelo que expôs como um jogo enada mais.

Com as primeiras taças, Sebastian se sentiu francamente melhor. Quandolevava mais de quatro, começou a vê-lo desde outro ponto de vista, e isso quepensou que não poderia imaginar outras vertentes referente à situação. Nãoacreditava que Ariadna fizesse uma montanha de um grão de areia: os ataquesde pânico, o medo, era a única emoção que, a seu parecer, era impossível defingir a esse nível. Tinha-a assustado, tanto que não pôde olhá-lo durante otrajeto de volta, e isso só significava que não o perdoaria facilmente... Se é quechegasse a fazê-lo. Mas agora pensava que ela deveria saber que não o fez portraição.

― Vamos, Talbot, anime-se. Uma festa não é uma festa sem seuspronunciamentos vulgares. ― Interveio Blaydes, que parecia desfrutar daembriaguez de seus amigos. ― Não foi para tanto. Mal passou uns minutos naágua.

― Está insinuando que minha esposa é uma exagerada? ― espetou,

olhando-o de soslaio. ― Não a conhece... é impossível tirar uma maldita emoçãodessa mulher. Esculpiram-na em granito. Juro-te que nunca me ocorreupensar que poderia reagir assim, ou reagir a secas. Nem sequer enfrentando aforca ou qualquer desastre natural. Passaram três dias e não se incomodou emsair da habitação, por isso está mais que claro que está tudo perdido. E não meimporta... ― assegurou. Sua voz reverberou no interior do copo. ― Já a forcei osuficiente. Chegamos ao ponto de não retorno; ela se quebrou, assim...

― Possivelmente devesse expô-lo de outro modo. ― Sugeriu Thomas,arrastando os esses. ― Não tente chamar sua atenção incomodando-a nem acobrindo de presentes que não lhe interessam, a não ser sendo seu amigo.

― Não pode ser amigo de uma mulher que levaria nua em seu regaço comoacessório. ― Interrompeu ele com o cenho franzido ― Acabou-se. Estou-meconvertendo na classe de porco nauseabundo que detestei durante toda minhavida, perseguindo uma mulher que não me deseja só para me deitar com ela.Deus santo... ― Deixou cair a cabeça sobre a palma ― Não aprendi nada?

Houve um breve silêncio no salão.― Nunca poderia se parecer com ele ― replicou Blaydes com suavidade ―

É grosseiramente ordinário e bárbaro como você só e seu extraordinárioegoísmo é digno de menção, mas não é um canalha, nem há um pingo demesquinharia em seu corpo.

― Sei que não chegaria ao que ele fez, ― acrescentou Doyle ― e osustentarei até o final; caso contrário, não teria se casado com ela, porque eumesmo o teria impedido.

Sebastian apertou a mandíbula e conteve entre os dedos o copo, quepoderia ter arrebentado pela pressão.

― Não queria feri-la ― resmungou ― Não... Não entrava em meus planos,nem me ocorreu que teria esse efeito. Que me levem os demônios se alguma vezcruzou a minha mente a ideia de lhe causar o mínimo dano.

― Sabemos. ― Assentiu Blaydes.― Não sou um monstro. ― Insistiu Sebastian.― Não o é. ― apontou Doyle.― É só que... Não sei o que me acontece. Não a conheço, nem sequer me

parece bonita, nem compartilha uma só de minhas afeições. É ridículo que a.…necessite. ― Procurou os olhos de seus amigos. ― O é, verdade? Não ireis dizerme agora que isto é normal.

― Senhor Talbot, ― interrompeu Graham, aparecendo sob a porta ― A

senhora Talbot.A cabeça de Sebastian emergiu de seus ombros como se acabassem de lhe

dizer que a casa estava ardendo. Foi curioso que, tendo supostamente ossentidos amortecidos, pudesse dizer com exatidão onde estava cada detalhe deseu corpo. Levava um singelo vestido de algodão sem apliques de nenhum tipo,tais como anquinhas ou espartilho, o que a fazia parecer mais magra que decostume. Mesmo assim, não foi seu corpo o que captou a atenção, a não sersua expressão serena.

― Senhora Talbot, que alegria a ver. ― saudou Doyle, ficando de pé parabeijar seus nódulos, um gesto que Dorian repetiu. Sebastian sentiu umainexplicável quebra de onda de ciúmes, mesmo que o tecido da luva tivesseamortecido a pressão de seus lábios. ― A que devemos esta agradávelsurpresa?

― Sentia curiosidade pelo que estariam fazendo. ― Respondeu. O merosom de sua voz relaxou Sebastian até tal ponto que pôde respirar de novo. ―.Apercebi-me que as cartas apaixonam o meu marido, e me perguntava se nãopoderia observar como o fazem... e aprender ― acrescentou dúbia. Lançou-lheum olhar entre inquisitiva e insegura a Sebastian. ― Não incomodarei.

De todos os reencontros que imaginou, Sebastian não ocorreu contemplaraquele no qual ela simplesmente desceria as escadas e apelaria suacompanhia. Era difícil o surpreender, mas Ariadna acabava de o fazer. Outravez. E não estava seguro de querer que assim fosse. Afinal de contas,proporcionou-lhe um resfriado preocupando-o e por sua culpa levou um sustomortal. Na verdade, deveria ter sido ele quem aparecesse em sua habitaçãocom uma desculpa nos lábios... Coisa que não fez por medo de colocar a patauma vez mais na poça. Era muito suscetível ao engano quando se tratava dela,e não podia permitir-se outra falha. Possivelmente por isso tinha optado porabandonar seu estúpido cortejo obsessivo. Ariadna não pôde ser mais explícitaexpressando indiretamente que não desejava sua companhia, nem seus beijos.

Muito tenso ao contrário do que costumava ser, Sebastian fez um gestopara que tomasse assento a seu lado. Preferiu culpar o álcool por sua fixaçãopor seguir cada um dos movimentos da moça até que se acomodou; como asaia ondulou a seu redor e gerou rugas no regaço quando esteve no lugar, e amaneira de posar as mãos na mesa e estudar o que se dispunha sobre ela,como se nunca tivesse visto nada igual.

― Deveríamos conversar como se não houvesse uma mulher diante, para

que saiba mais ou menos do que se fala quando estamos bêbados e apostamosaté as escrituras da casa? ― brincou Blaydes, apoiando os cotovelos sobre amesa. ― Fixe-se, senhora Talbot, até me jogo sobre a mesa como se nunca metivessem ensinado maneiras. Uma postura muito comum nestas lareiras.

Ariadna sorriu como a Mona Lisa, e Sebastian não pôde a não serperguntar-se se alguma vez o teria feito de verdade. Sorrir. Certo era que porcausa das circunstâncias de seu matrimônio, poucos motivos, tinha paramostrar-se agradecida ou satisfeita, mas começava a sentir nostalgia por nãoconseguir que nada a fizesse sorrir. Mesmo que falsamente.

― Terão de conversar sozinhos, pois ― interveio Thomas, que não sesentou desde que Ariadna entrou na habitação. ― Está muito tarde... foi umaboa noite.

― A melhor noite da minha vida. ― Ironizou Blaydes.― Ignora-o. ― Disse Sebastian a Ariadna, que lhe devolveu em seguida o

olhar com algo muito parecido à mortificação. ― Acaba de descobrir que vai serpai e tudo o que se compara com um futuro moleque mucoso sabe a pouco.

― De fato, acabo de me lembrar que já tenho um, e no mínimo lhe devominha atenção. ― Particularizou. Levantou-se depois de tamborilar a mesa comos dedos, e sorriu com alegria. ― Partirei. Senhor Talbot, espero que ensine àsua esposa como se faz uma boa jogada.

«Se só me deixasse», quis dizer, mudando o significado de suas palavras.Em seguida rechaçou aquele pensamento vitimista. Acabava de acordarconsigo mesmo que esqueceria da patética sedução que não tinha dadoresultados; tinha de suprimir como pudesse o instinto de abater-se sobre ela. Enão seria fácil. Menos ainda estando bêbado...

Blaydes e Doyle partiram por onde tinham vindo, tendo a falta devergonha de fechar a porta atrás de si, como se ali dentro fosse acontecer umfestim de todo inadequado. Sebastian esteve a ponto de levantar-se e ir cruzara cara ao descarado do conde, que lhe piscou os olhos justo antes dedesaparecer de sua vista, como se fosse um moço diante da donzela que porfim lhe tinha dado uma oportunidade.

― Posto a correria desses traidores, terá de jogar comigo. ― DisseSebastian, pouco convencido ao ver-se asfixiado pelo silêncio que ela arrastava.Pigarreou e agarrou o baralho. ―. Tranquilo, não é difícil.

― Não para você, que é famoso por fazer armadilhas. ― Particularizou elasem maldade. ― Vai ensinar-me seus truques?

― É obvio que não. ― Espetou terminante ― Como te ocorre? É o segredode minhas vitórias, logo, de boa parte de minha riqueza. Não posso irdispersando essa informação por aí... arrisco-me a que cacem. ― Repartiu onúmero exato de naipes, e assinalou como tinha de agarrá-los. ― Será maisfácil se tirar as luvas, ou as cartas cairão. São de um material escorregadio...De facto, é bom que lhe suem as mãos, assim não corre o risco de que caiam emostrem ao competidor o que esconde.

Ariadna vacilou um segundo, mas obedeceu sem mediar palavra.Sebastian fingiu concentrar-se a comprovar de sua boa fortuna, quando com aextremidade do olho não perdia detalhe de como atirava das pontas dos dedos.Depois de fazer alarde da elegância prodigiosa que certamente lhe tinha validoseu apelido nas altas esferas, mostrou a palidez de sua pele.

Sebastian não soube o que dizer por um momento: a sensação o afligiuque esteve a ponto de o pôr a tremer.

― Eu te fiz isso? ― perguntou em voz baixa, horrorizado. Seus olhosapontavam diretamente aos dois cercos azulados que se advertiam em seusfinos pulsos. ― Quando te agarrei na ópera...? ― O silêncio de Ariadna foibastante eloquente para que soltasse uma imprecação. ― Deus santo, eaconteceu há uma semana... Sou mesmo o animal que todos acreditam.

― Não doeu. ― Ela o defendeu ― Já sabe que tenho a pele muito sensível.Se me arranhasse ou roçasse sem querer, poderia me abrir uma ferida.

― Odeio que seja assim.Ela estremeceu.― O.… sinto. Não escolhi ser assim.«Maldito seja, Sebastian.»― Não queria dizer isso. É só que... ― Conteve o fôlego um instante. ― No

momento não me dou conta do que faço, nem da força que imprimo a meusmovimentos, mas vê-lo agora... faz-me sentir um autêntico monstro. Lamentoter feito isso. ― Disse de coração ― Quando me zango faço todo o tipo deestupidez.

― Não peça perdão. ― Interrompeu ela com suavidade ― Eu gosto que vocêseja assim, e que... faça parvoíces. Levaram-me entre algodões toda minha vidapara não me fazer um só arranhão. É um alívio que ao menos haja uma pessoaneste mundo disposta a me tratar como a uma pessoa, e não como a umaboneca de porcelana.

― Mas fiz-te mal. Duas vezes. ― atreveu-se a acrescentar. Arrependeu-se

assim que ela se esticou, embora a rigidez de seus ombros durasse o mesmoque uma exalação.

― Não poderia saber que reagiria assim. Estava brincando e só era água,não? ― murmurou, olhando as mãos ― É certo que pude... zangar-me aprincípio, mas não foi culpa sua... deveria ser honesta e esclarecer o que eugosto e o que não, antes de que tenha que averiguá-lo através de táticas poucodisciplinadoras. Chegamos a um ponto em que assumindo, nós estamos nos...fazendo mal. E acredito que deveríamos encontrar um equilíbrio cômodo paraos dois.

Equilíbrio cômodo? Sebastian não podia conceber uma convivência gratacom a mulher que tinha adiante. Só estava falando, olhando para ele, e via-sena necessidade de recordar todas as injustiças e atrocidades das que foicúmplice no passado para não rodear a mesa e lhe soltar o cabelo a base depuxões, estendê-la no chão e afundar-se nela. Se Ariadna queria cercar umabonita relação de amizade com ele, deitar-se-ia todas as noites clamando aocéu pelo doce abraço da morte. Com muita dificuldade sobrevivia aos cafés damanhã, almoços e jantares; como poderia encaixar sua companhia enquantojogasse às cartas ou descansasse na retirada habitação do sótão? Eraimpossível...

Entretanto, tinha-lhe feito mal. Sebastian não era dos que endividavamsua honra, basicamente porque não possuía dita virtude: movia-se na infâmiae ferimento, estava tão acostumado que, mais que um comportamento, era umdefeito. Mas não por isso, nem por ser um desgraçado nem tampouco porapresentar-se agora como um ditador da moral, continuaria forçando-a a umtrato que não a convencia. Ele estava se distanciando muito do queconsiderava correto; não permitiria a si mesmo converter-se numamonstruosidade que, antes de aceitar um não, destroçava o objeto de seusdesejos.

Afinal esboçou um sorriso que raiava a amargura.― Não é que desfrute te contradizer ou te recordar que nunca estará a

salvo de mim, mas estaria me reservando informação crucial se assentisse semmais, negando-te a evidência de que não estarei cômodo enquanto esteja namesma habitação que eu. ― Repôs, trocando lentamente de postura. ― Mesmoassim, pode interessar-te saber que vou deixar você em paz. Não está obrigadaa te acotovelar comigo. A impressão de ter estado a ponto de te matar de sustoainda me dói, o que significa que compreenderei perfeitamente que te afaste...

― Não reagi assim porque me assustei com o jogo, nem por você. ― Repôs,olhando-o aos olhos ― Só recordei algo que se passou faz alguns anos e quedesencadeou que agora... seja deste modo.

Aquilo capturou o interesse de Sebastian.― A que te refere com «deste modo»?― A.… frágil, distraída, sensível... Não é que não o fosse antes. ― Explicou.

Apoiou as palmas na mesa com cuidado, como se em vez de madeira fosse fogo.― Mas se forçou fortemente à posteriori. A água me fez adoecer e me traz máslembranças, além de que não sei nadar. Algo que não sabia, porque nunca odisse, ― particularizou ― por isso não o culpo por nada.

― O que se supõe que se passou?Ariadna mordeu o lábio inferior.― Quando tinha dezasseis anos estive a ponto de me afogar numa baía

que fazia de porto. Havia tanta corrente que bastou uma onda para me engolir.Se não tivesse aparecido o senhor Doyle a tempo, agora estaria morta.

Sebastian teve de fazer provisão de todo seu autocontrole para nãoestremecer.

― E o que estava fazendo para que uma onda decidisse te arrastar maradentro?

Ela vacilou.― Estava tentando nadar.― Decidiu aprender a nadar estando em mar aberto? ― Arqueou uma

sobrancelha. ― Como diabos lhe permitiram isso os cavaleiros do Apocalipseque tem como irmãs?

― Elas não sabiam que estava ali. Fui sozinha... E não queria aprender anadar, só esperava chamar a atenção de um navio. Quis chegar até ele, e.…fracassei ― murmurou, afastando os olhos. Sebastian deu-lhe um segundoantes de perguntar de novo.

― E mesmo assim, Doyle te encontrou...? Esse bastardo e seu complexo deherói me tiram do sério. ― Resmungou, negando com a cabeça ― Ele sabia quetinha ido ao porto...? por que foi ao porto? O que carregava esse navio para queentrasse na água sem saber nadar? As joias da Coroa? O segredo daimortalidade?

Assim que observou que Ariadna baixava os olhos, sentiu-se injusto. Nãoestava envergonhada; por curioso que pudesse parecer – e é que as mulherescomo ela, de sensibilidade inaudita, estavam acostumadas a tender ao rubor e

o acanhamento, – essa era uma qualidade que lhe faltava. Mas não significavaque pudesse desdenhar seus motivos sem que se ofendesse. Coisa quetampouco fez.

― Carregava o homem que amo. ― Confessou. Os olhos violetas nãoousaram mover-se dos seus quando seu estômago decidiu emular a vertigemde uma queda livre. ― Senhor Talbot... Você já foi sincero. Toca-me lhecorresponder na mesma medida. Tem de saber que não deixo que me toqueporque... eu gostaria de permanecer fiel a ele de algum modo. E não desejoenganar a você tampouco. Se lhe desse o que espera de mim, não o faria agosto e ou poderia não relacionar suas mãos com o proprietário. Não quero issopara você.

― Vá ― lhe ocorreu dizer, poluído pelo sarcasmo. ― Quanta consideração.Que demônios se supunha que devia responder a isso? Seguia emocionado

por sua aparição, e agora não só tinha obtido seu perdão, assim como averdade a respeito de uma pergunta que tinha feito um mês atrás e cujaresposta não lhe ocorreu esperar. Além disso, estava bêbado... E para piorar asituação, ela continuava sendo um bocado apetecível. A tentação de levantar-see partir foi tão sedutora quanto aproveitar a oportunidade e pular sobre ela,culpando mais tarde ao álcool por seu comportamento.

Felizmente se reteve a tempo.«Não é assim, Sebastian.»― Bom... ― Pigarreou incômodo ― Continua interessada em aprender a

jogar às cartas? ― Esperou com o coração acelerado que assentisse, e só entãoparte da tensão se desfez. Preferiu concentrar-se em seu trabalho comoprofessor e não no que acabava de confessar, suspeitando que poderia tomar-lhe mal chegar a assimilá-lo. ― De acordo... primeiro deve saber que há doistipos de jogador. Os que fecham assim que têm a mão, embora não façam omenos dez, e os que ambicionam a pontuação mais baixa embora devam correro risco de que os adiante o competidor... ― Franziu o cenho muito devagar.Levantou os olhos das cartas, com ar desorientado, e o cravou em Ariadna, queo observava por sua vez. ― Está apaixonada por outro homem?

Ela só assentiu com a cabeça.― Como? Quando...? Porquê? ― Sacudiu a cabeça ― Vais ter que me

perdoar, pequena sereia, mas não estou em meus cabais neste precisomomento. Esvaziei essa garrafa, e demoro para processar a informação, sobretudo se for esse tipo de notícia... Terá que ser benevolente comigo. ― Fez uma

pausa ― Quem é?― Era um forasteiro que conheci por acaso quando passeava com minha

irmã pelos arredores de Glasgow. Tivemos um percalço com uma raposavermelha. Supõe-se que são animais que não desejam incomodar os viajantes,mas este em concreto nos seguiu muito de perto, e Briseida era ainda muitopequena, assim assustou-se. Logo apareceu ele e nos libertou do animal. Eracaçador. Chamava-se Corban. Vinha de uma das ilhas gregas... E iria me levarpara as suas ilhas gregas ― acrescentou, forçando o tom neutro ― Masempreendeu a marcha sem mim. Vi-o levantar âncoras do porto, e por isso memeti na água.

― Ia sem ti e mesmo assim foi buscá-lo.…?Sebastian silenciou-se a si mesmo. Quem era ele para julgá-la, quando ele

sempre tinha sido a classe de pessoa que se esforçava por agradar e seencaixar num determinado grupo? Possivelmente a sua vida dependia deCorban, talvez não podia imaginar sua existência sem estar a seu lado...Sebastian jamais se apaixonou, e o que era mais, nunca havia sentido nadapor uma mulher salvo desejo. E nesses casos, podia reprimir a paixão,controlar seus instintos e esquecer em algumas horas se obtinha umanegativa. Não sabia o que era o amor para decidir que era uma pobre desculpapara correr atrás de quem já deu as costas. O único de que estava seguro, emais agora que contava com outro exemplo, era de que o amor só servia paraenvergonhar a quem o sentia.

Pigarreou, apelando à maturidade que devia demonstrar de vez emquando.

― E o que passou depois?― Depois... fiquei de cama durante meses. Estive inconsciente algumas

horas depois do acidente, e quando despertei não me lembrava de ninguém. Foiquando se manifestou a enfermidade.

― Que enfermidade?Ariadna ficou em silêncio alguns segundos.― Perdi a memória, embora de uma forma... incomum. Não esqueci quem

era, nem de onde vinha. Simplesmente não reconhecia os rostos das pessoasque estavam a meu redor. Era impossível para mim associar os meus seresqueridos. Foi duro para todos, em especial para eles, porque embora tenhaaceitado relativamente rápido a quem pertencia cada voz, todos sabiam quecada vez que cruzavam a porta, teriam que dizer seu nome para que eu

soubesse de quem se tratava. Não recordo os rostos das pessoas que conheço,senhor Talbot. ― Resumiu ― Tive que me fixar em detalhes concretos de cadadama ou cavalheiro e memorizar seus nomes para não os ofender por não osreconhecer num grande salão.

― Espera, espera, espera... deixa ver se compreendi ― interveio ele com ocenho franzido. ― Supõe-se que não pode ver a cara de quem a rodeia?

― Posso vê-la, e valorar se me parece atraente no momento. Mas quandopassam algumas horas, ou alguns dias, volto a me encontrar com os citados enão saberia dizer que nome recebem. É como se os conhecesse de novo todosos dias.

― Santo Deus, isso deve ser terrível. Há personagens que eu não gostariaque me apresentassem mais de uma vez. ― Ironizou, olhando-a fixamente ― Ecomo devo interpretar isto? Não me reconheceria se fosse por alguns dias?

― O reconheceria em qualquer parte por seu nome completo, ― respondeuela, sustentando seu olhar ― há determinados homens e mulheres que possolocalizar em minha memória e no passado porque têm algum traço distintivo...

― Entendo ― cortou duramente ― A cicatriz, verdade? Ninguém tem umacomo eu.

― E seus olhos. ― Acrescentou. Inclinou a cabeça num gesto decuriosidade infantil que arrepiou o cabelo de Sebastian ― Os seus olhos são dacor do topázio que a minha irmã Penélope tem em seu dedo. Esse anel meobcecou durante meses pela história que lorde Ashton contou sobre ela... Evocê os tem no olhar. Embora a cicatriz tenha ajudado, tal como o seu narizirregular e a cor de sua pele. Ninguém é tão moreno.

Curiosamente, aquela explicação fez com que Sebastian se sentisserealizado, orgulhoso e inclusive adulado. Teria pensado que mentia se nãosoubesse que lhe importava o mínimo o agradar, ou se Ariadna Swift fora capazde emitir uma só palavra que não fosse certa, embora fosse somente em seumundo inacessível. Sabia que era certo, e que isso era algo que não podiacontrolar, algo que Ariadna nunca escolheu, ― saber que era ele, justo ele ―esteve tentado a agradecer-lhe. Para o bem ou para o mal, era sua exceção.

― E, além de mim... a quem poderia reconhecer à simples vista?― Só Meg, pela pinta no lábio. Aos outros reconheço também, embora me

tenha de fixar em outras coisas. Em sua maneira de gesticular, em seu tom devoz ou a voz em si mesmo, em seu aroma corporal... este último é o que maisme ajuda, porque cada pessoa tem um cheiro. As vozes, depois de uma noite

ouvindo conversa atrás de conversa, acabam soando iguais, e posso diferenciaros gestos de minhas irmãs, mas num baile é impossível... Todas têm asmesmas maneiras.

Sebastian estudou a sua expressão, repentinamente preocupado se poracaso aquilo lhe produzia algum tipo de desgosto. No lugar do diabo ondeviviam, ser distinto era motivo de sobra para sentir rechaço, e por uma razãoque ainda não estava em condições de ponderar, a simples ideia de que aAriadna incomodasse esse obstáculo social.

― E diz que isto aconteceu por causa um golpe na cabeça? ― inquiriu ―Foi um processo gradual? Por isso passou tanto tempo de cama?

A porta abriu-se, e Ariadna desconectou o olhar dele para atender ao novovisitante. Elsie, uma das criadas da casa, apareceu com seu clássico sorrisodeslumbrante. Aproximou-se do casal o suficiente para que Sebastian pudessever o brilho em seus olhos claros.

― Vim me despedir. Amanhã começa a feira de meu povo, e pensei quedevia te recordar que não estarei durante a semana que vem.

― Claro, claro. ― Assentiu ele, molesto pela interrupção ― Desfruta-a. Enão se esqueça de ir à tenda do velho Robb, mesmo que seja somente para lhedar lembranças de minha parte.

― Por que não vem connosco? ― propôs ― Todos se alegrariam muitíssimode ver-te.

― Tenho muitas coisas por fazer, receio. Mas se surgir a mínimaoportunidade de fuga, vou aproveitá-la e me apresentarei ali logo que possa.Espero que o desfrute, Elsie. ― E sorriu.

― Obrigado, Sebas. Boa noite... Boa noite, senhora Talbot ― acrescentouantes de desaparecer. Ariadna assentiu e, paulatinamente, foi girando paraenfrentar de novo a seu marido. Sebastian acreditou que morreria por agradarao perceber uma ligeira inclinação à curiosidade em seus olhos.

― É uma amiga de infância.― OH ― disse ela ― E como é que tem uma amiga trabalhando para você?― Acredite, duendezinho, ela não se queixa. ― Replicou molesto pela

pergunta. Que diabos insinuava? ― Era ser governanta ou prostituta. Pareceu-me que este trabalho seria mais digno, e pelo menos lhe proporcionaria um lardecente.

― É obvio, só me surpreendeu... Os membros do serviço o tratam comproximidade.

Sebastian trocou de postura, pensando em como fazer para devolver aconversa ao ponto que estavam tocando antes da interrupção. Detestava falarsobre si mesmo ou, pelo menos, desse si mesmo que podia fazer obras decaridade e investir em causas nobres sem contrair uma enfermidade mortalpelo caminho.

― Conhecia todos eles antes de me converter em Sebastian Talbot ―respondeu com simplicidade. Ficou de pé, delimitando o fim da conversa antesde que fizesse outra pergunta. ― Acredito que está na hora de que nosretiremos. Está tarde.

Viu-a levantar-se muito devagar, fiel à sua condição imposta de boneca decristal. Como não iriam tratá-la como tal, se era exatamente o que parecia...?Era lógico que suas irmãs apelassem a seu aspeto e sua história para protegê-la. O ilógico era que ele, até sabendo pelo que tinha passado e sendoigualmente quebradiça a seus olhos, desejasse deixar-lhe a marca de suasunhas em lugares que ninguém teria acesso nunca. Nem sequer o desgraçadoque a abandonou.

Acompanhou-a até ao pé da escada mantendo aquilo em mente. Entendiaque a um ser humano comum custasse desprender-se de um ser querido,inclusive no caso de que este partiu por vontade... Agora bem: ela não o era.Ela era especial em todos os sentidos. A logica se perdia assim que entrava emjogo uma criatura tão pura como Ariadna Swift. Era tão neutra, objetiva ecalma que lhe inquietava sua reação ante o abandono. Ele deve ter sidorealmente importante para ela se conseguiu tirá-la de sua masmorra habitual.A não ser que tivesse sido esse desprezível do Corban que a converteu no queera hoje em dia.

Ariadna se voltou nesse preciso momento, precisamente quando a suamão acariciava o corrimão e tinha o pé no segundo degrau. Olhou-o desde asua altura, encontrando-se com os olhos de Sebastian, que por fim souberamapreciar a maravilha das fantasias nos olhos de sua esposa. Descobriu entãoque não eram somente de uma tonalidade bonita, que Ariadna não erainexpressiva, mas sim teria de tocar o ponto adequado para que aparecesse ador, ou a curiosidade, ou todas essas emoções humanas que descartavam apossibilidade de que pertencesse a outra raça.

― Boa noite, senhor Talbot.Sebastian inspirou fundo. Seu tom de voz não foi o de sempre,

dolorosamente imparcial e morto, continha uma nota de agradecimento,

quietude e sincera estima. A mudança deixou o coração do empresáriosuspenso no ar, durando alguns segundos em estado crítico. Teve saudades deum sorriso na forma de seus lábios, e também se aliviou que ainda nãoestivesse preparada para deixar sua alma nua. Ainda bêbado, era consciente deque um só passo para frente por parte daquela mulher poderia enlouquecê-lo.Talvez seu sorriso acabasse decidindo por ele que o melhor sempre seriainsistir, até que lhe desse a paixão que necessitava para poder considerar-serico de verdade.

E então ocorreu algo insólito. Ela se inclinou para baixo, girou o pescoço ebeijou sua bochecha. Foi apenas o roce de lábios ligeiramente entreabertos;mais lhe acariciou o seu fôlego que a sua boca, mas teve o efeito da corrente dooceano bramador. As ondas de uma quebra de onda brutal de sentimentos osacudiram até os tornozelos, e apagaram de um sopro toda resistência àadoração que sentia para todo seu ser.

Sebastian a agarrou pela mão assim que fez o gesto de se voltar, e aconteve com força. Não separou os olhos do chão, assustado pelo que a mesclade álcool e ânsias de amor sugeriam, e pelo que um só beijo tinha feito com ele.Manteve ali os olhos, cravados em seus sapatos, na bainha de seu vestido dealgodão, nos detalhes do degrau... sabendo que não poderia resistir se aolhasse aos olhos.

Era hora de soltá-la, mas não queria que partisse. O matagal em seuestômago e a dor insistente em seu peito lhe suplicavam que se atirasse a ela, orisco de como pudesse reagir, e a beijasse até lhe apagar o sentido, lhe roubara prudência, selá-la como dele e não como dependente de um fantasma quenunca pôde apreciá-la. O ódio para aquele estranho lhe sobreveio junto com afatalidade de não poder tolerar seu aroma se não podia aspirá-lo até odesmaio... E por um instante, por um só instante agonizante, pensou quemorreria por ela.

Felizmente, recuperou o equilíbrio de seus sentidos assim que recordousua expressão ao ser jogada nas águas. Separou-se com estupidez, refletindocom cada um de seus movimentos que lhe ardia a alma.

― Boa noite. ― Murmurou afinal. Convenceu-se de que não acontecerianada se a olhasse, e quando o fez, foi para saber que passava justamente ocontrário... Porque passava «tudo». Mas pensou em sua fortaleza, em que deviaestar à sua altura, e a olhou aos olhos para acrescentar: ― Não sonhe estanoite... Não sonhe nenhuma noite, se é que em seus sonhos vem alguém te

visitar.Thomas Doyle cruzou o corredor às escuras, procurando não emitir um só

som. Era o perito do sigilo, e mais ainda quando não lhe convinha despertarnenhum habitante da casa. O relógio de pêndulo da salinha marcava três damadrugada. Fazia tempo que não chegava tão tarde em casa, e menos emsemelhante estado de embriaguez. Felizmente, fingir-lhe era tão simples comomedir o espaço sombrio que era agora o corredor até à habitação. Esforçou-separa manter o equilíbrio durante a caminhada, a cabeça alta e a expressãoimpassível, embora tudo o que gostaria de fazer era gritar.

Entrou no seu quarto bastante enjoado, com o julgamento nublado pelasideias que lhe aguilhoavam as têmporas. Por isso entendia, o álcool tinha umefeito ou outro no bebedor dependendo de diversos fatores. Seu amigo o conde,Blaydes, tendia a dizer estupidez das que logo se arrependia, por isso forçavasua veia cruel. Talbot, por outro lado, era um homem fora de série: às vezes, osexcessos acentuavam seu lado selvagem, convertendo-o num animal ruidoso egrotesco ao falar... Embora também o tenha visto sendo carinhoso eextremamente cavalheiresco pelos mesmos motivos. Quanto a ele... O álcool eraum terrível incentivo para lhe liberar da contenção, o que ao final do dia lhetrocava até parecer irreconhecível. Tudo o que Thomas esteve retendo,silenciando e sossegando bruscamente em pró de seu orgulho estava a pontode sair a fervuras.

Encontrou Megara adormecida no meio da cama, como costumava, esorriu levemente. Gostava de sentir o frio na pele nua, e por isso dormia comuma larga regata, sem cobrir-se com as mantas que Thomas, ainda gelado,desdenhava só por desfrutar de sua seminudez.

Equivocou-se ao supor que descansava com Morfeo, porque ela se sentoudevagar, com o cenho franzido, e não demorou para levantar-se parainspecioná-lo. Thomas esperou impaciente que Megara o agarrasse namandíbula, desse uma volta ao seu redor e decidisse se merecia um lugar emsua cama aquela noite. Desfrutou como um menino, sempre em segredo, doroce de seus dedos, a presença de seu precioso corpo feminino...

― Acredita que me terá quando e como você queira? ― espetou em vozbaixa, olhando-o com rancor. ― Volta para o salão.

Thomas elevou uma sobrancelha.― Está segura? ― aguilhoou. Para fazer mais tentadora a oferta entre

linhas, rodeou sua cintura com o braço e a atraiu para si. Esteve a ponto de

fechar os olhos para sentir como seu quadril o roçava. Tudo nela era tãosensual que lhe custava manter a calma. ― Seriamente quer voltar para o cabode guerra? Merece a pena ser tão orgulhosa...?

Ela vacilou um segundo, e Thomas decidiu que sem importar qual fossesua decisão, ele já tinha obtido sua vitória... Abrir uma greta em sua couraça.

― Esquece que vivi sem ti durantes anos por orgulho. ― Repôs ao final,lentamente ― Poderia fazê-lo outra vez.

― Inclusive sabendo o bem que sente ao estar comigo? ― De novo essahesitação, que desta vez o fez sorrir. ― Se insistir, partirei. Mas a próxima a virserá você... E eu não cederei. Nós dois sabemos quem é o mais forte dos doisquando se trata de resistir à adversidade, kitten.

Megara soltou um gemido afogado.― Parece-me muito bem que resista, mas não jogue sujo me falando em

irlandês ― se queixou, apontando-o com o dedo. ― Nem tudo vale na guerra,Thomas Doyle.

― Mas no amor sim, sobre tudo quando o faço. ― Rebateu, aproximando-se para lhe roçar os lábios com os próprios. Megara compôs uma careta de dore se impulsionou para diante para beijá-lo, mas ele retrocedeu. ― Ah, não...perdeste a tua oportunidade.

― Deixa de brincar comigo! ― espetou desesperada ― Te odeio tanto que...que... ― Gemeu ruidosamente, apertando os punhos. ― Seja Deus testemunhade minha ameaça: vou fazer te sofrer como um desgraçado, Thomas... vaisacabar me suplicando.

― Isso já o veremos...

13

E como visse Dioniso adormecido Ariadna abandonada, mesclaram-se neleo amor e a admiração...

As Dionisíacas, NONO DE PANÓPOLIS

― Necessito seus contatos e sua mão de bruxa para um assunto.Madame D’Orleans se voltou lentamente, arejando todo seu adquirido

dramatismo só para alterar ao citado. Olhou Sebastian elevando essa ameaçade sobrancelhas que faziam de sua cara um bebê, perguntando em linguagemnão verbal quem pensava que era para exigir.

― Bom dia, Mariette. Como te encontra hoje? Como foi ontem à noite namascarada? Divertiu-te ou houve muito trabalho...? ― ironizou.

Deu a volta completamente para enfrentá-lo, com o cotovelo ainda apoiadono balcão.

― Deve ser uma importante empreitada que está lidando se te fez perderas maneiras.

― Refere a essas maneiras que jamais tive? ― provocou, igualmente afiado.Os olhos da casamenteira brilharam.

― Essas maneiras que sua mãe e eu conseguimos improvisar para que nãofosse um selvagem, e pelo menos soubesse pedir as coisas por favor, como bemmanda o Senhor.

― Deve saber que a natureza sempre acaba se impondo. ― Finalizou,fatalista. Tomou assento frente a ela, sem esperar um sinal, e a arrastouruidosamente para aproximar-se. ― Lamento se te ofendi, mas tenho pressa.Quero visitar a fábrica hoje e me assegurar de que minha esposa ainda nãofugiu. Tenho exatamente cinco minutos para ti.

― E por que ia ter eu esses cinco minutos para te escutar? ― rebateu,substituindo a expressão zombadora por uma de ligeira ofensa. ― Esquece com

quem está falando, moço.Com aquela frase, um viajante teria pensado que se referia à sua fama e

fortuna, que lhe devia respeito por ter um nome que soava por todos os cantosde Londres. Não precisamente no bom sentido, já que gerenciava um bordel,mas rica e procurada ela era.

Entretanto, Sebastian sabia que estava deixando de lado seu personagem.Esse «moço» era revelador. Não tinha esquecido que estava falando com agrande madame D’Orleans, protetora das prostitutas e descarnada matrona domundo da perversão desde tempos imemoriais... Tinha esquecido, em troca,que se referia à viúva Mariette Larue, que o acolheu em sua casa quandoperdeu tudo, que o formou na medida do possível como um homem de proveito,e que o animou a converter-se no que era. E, francamente, tanto sob o pontode vista da citada como do seu próprio, esta segunda senhora merecia um tratomuito mais digno.

Ao final, D’Orleans suspirou.― O que passa contigo, Sebas?Sentiu-se como quando era um menino e fazia algo terrivelmente mau.

Dececionado e triste, porque a tinha dececionado e entristecido. Quisdesculpar-se então, como quando ainda tinha a estatura necessária paraesconder-se entre as dobras de sua saia, mas não o fez. Tampouco esqueceriaquem era ele agora.

― Eu gostaria que encontrasse um caçador grego chamado Corban. Nãotenho mais informação sobre ele, salvo que foi residente na Escócia, talvezGlasgow, há alguns anos. Não mais que três, imagino.

― É informação suficiente para que saiba onde está. ― Concluiu madame,olhando-o por um momento... Porquê? Pode saber-se para que quer encontrara um caçador? Olhe que nem com flechas ou conselhos de um homem quepode tombar várias fêmeas de um disparo vais conseguir conquistar a suaflorzinha.

― Não te preocupe. Os planos de conquista foram anulados faz tempo. ―Esperar que Mariette não indagasse era arriscar-se muito, assim prosseguiuantes de que empregasse seus próprios métodos para lhe surripiar informação.― Fiz-lhe mal e preferi me dar por vencido. Nenhum dano irreparável, antesque pergunte... Digamos que simplesmente passei muito tempo jogando aoposso ter tudo, e por fim me dei conta de que nunca serei esse homem. Nãonasci com o direito, nem me inculcou esse desejo, na realidade. Estava a ponto

de me converter nesse.… cão ― cuspiu. ― Lamentável.Madame D’Orleans negou com a cabeça.― Em nada se parece com «esse cão», como você o chama. Mas me alegra

que tenha freado a tempo. De nada te serve fazer o bem por um lado se logo éincapaz de fazê-lo por outro. Mas, me diga... quem é Corban?

O ar se condensou de tal modo que Sebastian não encontrou via pela qualrespirar durante alguns segundos.

― O homem por quem está apaixonada.Madame D’Orleans teve a prudência de não jurar ou anexar algum de

seus comentários desagradáveis.― E por que quer saber onde está?― Não só quero saber onde está. Quero saber como é, por que a

abandonou... preciso ter uma ideia do que enfrentaria em caso de que voltassepor ela.

― Retê-la-ia contra sua vontade se aparecesse?― Não sei. É minha esposa... Mas tampouco o é. Se descobrisse que não

consumamos o matrimônio, perderia sua validade, e ela seria livre para ir comCorban, ou com quem quisesse. Já sabe como é sua família, não lheimpediriam de voar às malditas estepes russas se isso a fizesse feliz. E acreditoque eu tampouco. ― Acrescentou, apertando a mandíbula. ― Digamos quesimplesmente sinto curiosidade.

― Poderia estar morto. ― Apontou madame ― E se o estivesse, seria umainformação magnífica que oferecer a sua esposa. As mulheres, e as pessoas emgeral, guardam esperanças até o último segundo. É muito provável que seuamor desaparecesse assim que descobrisse que faleceu. ― Lançou-lhe um olhareloquente que ele captou rapidamente ― Poderia falsificar um certificado defalecimento... inclusive arranjar forma de erigir sua tumba. Sabe que tenhoamigos em todos os grêmios.

A proposta tentou Sebastian um instante. Se havia uma só possibilidade,embora fosse virtualmente exígua, de ter Ariadna entre seus braços, querê-la-ia. Faria algo por ela. Mas aquilo...

― De maneira nenhuma. ― Decidiu ― O ama. Seria doloroso para elainteirar-se de repente de algo assim, e se por acaso chegasse a descobrir oengano... ― Deixou a frase no ar ― Não. Se se esquecer dele, que seja porcausas naturais, e não porque eu tenha intervindo.

A mulher esboçou um desses sorrisos dela que auguravam presságios

daqueles que ninguém estava preparado.― Chegaste a esse ponto no qual quer que ela seja a que te deseje, e não

você quem suplica.― E? É assim tão estranho que queira me comportar como um homem

decente? ― inquiriu, entreabrindo os olhos ― Faz o que te peço, e nada mais. Oque souber, envia-o a minha casa. E procura que esteja bem discreto, nãoqueremos que caia em mãos da senhora Talbot...

― O que é que pretende esconder de minha irmã?Talbot nem sequer se voltou para se assegurar de que a voz crispada

pertencia a Megara Doyle. Esperou que ela o rodeasse, tirasse o capuz com aque tinha oculto seu singelo coque e o enfrentasse com o cenho franzido.

― Bom dia, Sebastian ― ironizou ― Que tal te encontra hoje? Como vão osnegócios? E seu matrimônio? É o que esperava...?

Ao ver que a mulher ia prosseguir, elevou uma mão:― Espera, espera, espera... antes que me peça uma explicação, acredito

que seria lícito que oferecesse você uma. O que faz uma mulher respeitávelvisitando Sodoma e Gomorra? Não se supõe que seus dias de farra tinhamacabado?

Megara teve a integridade de sobreviver ao rubor.― Não é de sua incumbência. Vinha exclusivamente pedir conselho a

madame D’Orleans. Vai ser uma visita rápida. Irei antes de que possa voltar ate dirigir a mim com essa tua insolência.

― Meu queixo não é o que aponta ao firmamento, querida senhora Doyle...E que classe de conselho poderia pedir a madame D’Orleans, quando éprecisamente você quem nos deu lições a todos em tempos?

― Vá-se ao inferno, Talbot.― E de novo voltamos para trato cortês...! Diabos, quanto o detesto. Mas

senhora Doyle, não se vá zangada ― continuou vendo que o ignorava. ― Você eeu nos merecemos um ao outro. Somos pobres demônios dispostos a tudo. Epara cúmulo, somos também as únicas duas pessoas no mundo que Ariadnapode reconhecer sem nos ver. Não é isso ponto de união demasiado para quenos levemos bem?

Megara abriu os olhos de repente.― Você sabe? ― exalou sem voz. Caminhou para ele precipitadamente. ―

Ela contou-lhe?― Senhora Doyle, deveria decidir de uma vez se for me tratar de você ou

pensa utilizar meu nome. Sou um tipo do mais básico, confunde-me qualquermudança de trato. E sim, contou-me isso... Tal como a história do mergulho decabeça.

― Qual? Que você provocou? ― espetou com rancor.― OH, não, não sou tão importante para ela para causar uma impressão

indefinida. Refiro-me ao anterior, claro.Megara relaxou os ombros, embora não tenha baixado a guarda.― Suponho que se abriu para ti... Ou foram esses papagaios que tem

custodiando a cidade que lhe deduraram sua enfermidade?― Meus papagaios sabem bem que não é recomendável assediar às Swift,

que certamente são as únicas conhecem o segredo. Abriu-se para mim, sim.«Embora não da maneira que quero.»― Bom... Então espero que a trate como merece, que a cuide e vele por seu

bem-estar, tanto físico como emocional. Quando o disse estava muito ocupadoinsistindo em te casar com ela, e por isso lhe repito isso: é uma pessoa desensibilidade extraordinária, que capta e sente tudo. É difícil lhe fazer dano,mas se o faz, não há volta. Não tem desculpa a partir de agora paracomportares-te como um selvagem, Sebastian. ― Recalcou ― Duvido quesobrevivesse a outra época como essa.

Sebastian teve a impressão de que perdeu algo.― A que diabos te refere?― Como que a que me refiro? Ariadna esteve prostrada na cama durante

meses, a ponto de morrer pela desolação que se apoderou dela. Se tiver ouvidopor aí que morrer de pena não é possível, enganaram-lhe. Ariadna quase o fez.Ainda não sei porquê... Não posso nem nunca pude imaginar o quedesencadeou seu estado, mas estou segura de que não vou permitir que volte apassar por isso. Assim me ouça bem: se lhe fizer mal, ou se só o tente... lhedevolverei em triplicado isso. A tristeza de Ariadna é algo ao que nem um deuspoderia resistir a curar.

― Agora picou-me a curiosidade ― atravessou madame, olhando-osalternativamente. ―. Tão adorável é a moça...? ― Ao comprovar que Sebastianpermanecia pensativo e a mulher tinha pressa, decidiu correr um denso véu. ―Enfim, querida. O que necessita?

Sebastian retornou a casa com pressa, desdenhando a calidez e confortoda carruagem. Gostava de relembrar os benefícios de tempos passados, quandoo exercício o ajudava a deixar de pensar, e não só isso, mas também desfrutava

admirando a paisagem. Não vivia só em Londres por não ter dinheiro parapermitir uma casa no campo, ou por não ter recebido uma de herança; narealidade, podia custearia uma sem problema. Era mais porque a capital omaravilhava. Gostava da concentração durante a temporada, o movimento edinamismo de seus trabalhadores e viajantes... Pensava no isolamento de umlugar tão longínquo como outro condado, onde a casa estaria a umas quantasmilhas do povoado mais próximo, e não se sentia nem remotamente tentado.Preferia ter tudo ao alcance, incluído a fábrica, seus sócios e aos molestosinvestidores.

Chegou a St. James com a cabeça cheia de pensamentos, embora poucostinham a ver com a paixão por sua cidade natal, eram todos sobre as ameaçasde Megara. Tanto lhe tinha despertado a curiosidade com o breve relato quedecidiu adiar a visita ao seu sócio maior para ver Ariadna. Não pensava noestranho de querer encontrar-se com ela apesar de a ter visto na noite anterior,embora sem dúvida lhe teria sido conveniente, se podia pensar assim, como severia uma Ariadna Swift ― ou agora Talbot ― desfeita em lágrimas, sem forçaspara mover-se.

Talvez foi ter em mente uma imagem pouco amável da Ariadna pelo queSebastian parar em seco ao encontrá-la no jardim, de uma figura tão distintaao que imaginava. A moça levava um dos vestidos novos, um lilás de gaze quelhe permitiria mover-se de um lado a outro com soltura. Embora não semovesse. Em vez disso, estava ajoelhada diante de um dos canteiros quecontinham a incompreensível beleza de suas adoradas dálias que, sendovermelhas como o sangue, faziam com suas mãos um contraste ensurdecedor.Mas a reação de Talbot não teve de ver o jogo de cores, ficou repentinamenteparalisado ante a cena que se desenvolvia. Foi uma combinação do solpenetrando entre suas mechas soltas, a fina e fantástica juba branca queondulava até seus quadris, a suave expressão que relaxava suas doces feiçõese, sobre tudo, a canção que entoava com a voz de um anjo, o que enterrouSebastian de maneira definitiva.

I gave her cakes, and I gave her aleand I gave her sack, and cherry

I kissed her onze, and I kissed her twiceand we were wondrous merry...

“Dei-lhe bolos, dei-lhe cerveja,dei-lhe saco e xerez;

Eu beijei-a uma vez, e beijei duas vezes,e ficamos maravilhosamente felizes!

Com a graça de um elfo, ela se levantou, e assim que descobriu que osolhos de seus sonhados topázios a tinham capturado roubando algo que nuncadeveria ter caído em mãos alheias, a cor banhou suas bochechas. Um sorrisotão frágil como seu espectador, um homem caído em combate e sem crenças denenhum tipo, foi suficiente para conseguir o nunca imaginado. Esse gesto jáera uma impossibilidade em si mesmo... O sorriso que ele pensou que poderiaver sem consequências.

Sem sombra de dúvida, como curiosamente nesse momento tudo o queSebastian Talbot era. ― Cínico, arrogante, cético, mulherengo e grosseiro ―decidiu ficar aos pés da mulher que acariciava as pétalas de suas dálias.Apaixonou-se total, completa e perdidamente por ela, e foi dolorosamenteconsciente de como acontecia, porque a entristecedora necessidade de posselhe rompeu os ossos um a um... E Por Deus quis ficar de joelhos.

― Senhor Talbot, ― disse ela ― o que faz por aqui? Pensava que não seinteressava por jardinagem.

Ainda sem saber como recuperar-se do choque, Sebastian murmurou:― Também eu pensava isso.Ariadna não poderia ter compreendido o desejo estalando em seus olhos

como fogos de artifício. Só assentiu, aceitando a sua companhia indiretamente,e se inclinou para agarrar o regador. Como se ele não estivesse ali, continuouseu trabalho, banhando a terra seca dos jardins. Sebastian se conformou comseu silêncio pela primeira vez, e só se sentou a observar, apoiando as costas nomuro que oferecia as vistas de seu cabelo de neve dançando em torno dascostas.

Não ousou mover um só músculo durante os seguintes quinze minutos,imerso como estava no oceano no qual se afundava sem solução e na beleza deseus gestos. Viu-a convencer-se de que voltava a estar sozinha, passando longomomento só examinando os caules das flores e retomando a canção por onde atinha deixado.

I gave her beads and bracelets fine,And I gave her gold, down derry.

I thought she was afear’d till she stroked my beardAnd we were wondrous merry...

“Dei-lhe miçangas e pulseiras finas,Dei-lhe ouro com derry.

Achei que ela estava com medo até acariciar minha barbaE ficamos maravilhosamente felizes!”

Reagiu quando viu que lhe custava levantar um dos vasos de barro para opor ao sol de novo. Levantou-se, pouco cambaleante, e se aproximou emsilêncio para ajudá-la com o peso. Roçou com os dedos a suavidade do braçofeminino, e um calafrio quase o pôs a estremecer.

― Não sabia que você gostava das canções de botequim. ― Conseguiuarticular. Ela levantou o queixo para olhá-lo nos olhos.

― É uma canção de botequim?― Sim. Cakes and Ale. É uma das mais famosas do... gênero, se pode

chamar-se assim. Não sou nenhum especialista em música, nem sequer mepode considerar aficionado, mas essa em concreto a escutava quase todas asnoites quando era menino.

― Vivia em um botequim?Sebastian sorriu sedutoramente, embora resquícios de amargura se

filtraram em seu semblante.― Algo assim. ― A olhou de esguelha ― Por que pergunta? É possível que

seja a única pessoa no mundo que não saiba de onde procedo?Uma ruga adorável apareceu no seu cenho, como se quisesse recordar

algo importante.― Possivelmente alguém me disse algo a respeito, ouvi algo... Mas raras

vezes presto atenção a essas coisas. Refiro-me aos falatórios ou históriassórdidas, Deveria me lembrar?

― Isso depende. ― Repôs com humor. Não se moveu de seu lugar,olhando-a diretamente. ― Há algo que alguma vez me perdoaria? Como, porexemplo... pertencer a um estrato social bastante inferior ao teu.

― Por que teria de lhe perdoar disso, se não teria sido culpa sua?

― A grande pergunta... muitos tem feito isso antes que você ― disse,dando uma olhada ao céu ― Minha mãe cantava muito bem, mas eraanalfabeta e tinha de aprender as canções escutando. Tinha tanto trabalho quenão podia escapar dos botequins ou lugares de reunião em qualidade deaprendiz... Assim só podia assobiar, cantarolar ou cantar Cakes and Ale. Era aúnica que sabia, e a única que entoava quando algum dos clientes pedia umademonstração de seu talento. Onde quer que deixe isto?

Ariadna pareceu voltar para a realidade com a pergunta. Piscou váriasvezes, desorientada, e assinalou um cantinho iluminado aos pés da escadariaexterior. Sebastian soube que o seguia quando inspirou fundo ao deter-sefrente às prateleiras e as flores da parede lhe envolveram num abraçoadocicado.

― Onde ela está agora?― Morta. ― Respondeu sem tom. Ficou olhando o sutil baile dos brotos,

apressados pela brisa. ― Alguém a matou.― O quê?Sebastian a olhou por cima do ombro. Seu coração agradeceu a postura e

também se queixou por não poder apreciá-la devidamente.― Por que te surpreende? Acredita que teria chegado a seus ouvidos? As

putas não importam a ninguém, duendezinho. Os homens só se preocupariamcom elas se desaparecessem massivamente de um dia para outro, e seria peloegoísmo de não poder deitar-se com elas. É verdade que minha mãe eraespecial... ― continuou. Deu um par de toquezinhos à flor mais exuberante,fazendo-a tremer. ― Mas mesmo assim, a ninguém importou, só a seus entesqueridos. A polícia não ia empreender a busca do assassino quando haviasinais evidentes de que se tratava de um cavalheiro importante, e menos aoentender, a partir da cena do crime, que era um caso de asfixia sexual... Comose fosse um livro sangrento do marquês de Sade. ― Fez uma pausa,concedendo o silêncio respeitoso à memória esquecida de sua mãe... E logodevolveu todo o seu interesse a Ariadna, que o olhava pensativa. ― Necessitaajuda com algo?

Sem importar qual fosse sua resposta, ele, por sua parte, podia responderafirmativamente. Necessitava-a... Necessitava de ajuda, inclusive apesar dagravidade da conversa, para não afundar as mãos em seu cabelo e proteger domedo à distância fundindo-se com ela num beijo. Sebastian não estava tãoatormentado para dizer que Ariadna o salvaria da angústia. Tampouco se

sentia livre e tranquilo quando a tocava... Mas o ardor com que a desejava erasuficientemente intenso para eliminar qualquer dúvida ou temor, qualquerpensamento que lhe arrebatasse o ânimo. Quando ela estava ali, intoxicando oar com seu perfume, com essa mancha de brancura que era Ariadna Swift, nãopodia nem queria pensar em nada mais.

― Então deve ter tido uma infância difícil. ― Pensou ela. Sebastian repetiua frase para seu interior para assegurar-se de que não o compadecia. ― Nuncateria imaginado.

― Por que não? ― inquiriu, apoiando o cotovelo num dos vãos do muro. ―Como pensa que fiz esta cicatriz? Não foi com a borda da taça de chá duranteminha visita ao palácio de Buckingham.

― E como a fez?Sebastian sorriu.― Com minha bengala.― Com sua bengala ...? Tem-na sempre consigo?― Não exatamente. ― Respondeu com brio ― Mas sim esteve sempre

comigo.― Na aparência, não parece que tenha nenhum problema para caminhar.

― Apontou Ariadna. Fez uma pausa para percorrer seu corpo com o olhar, umainspeção totalmente inocente que, entretanto, pôs Sebastian rígido. ― Até ondeentendo, somente os coxos ou os homens com feridas de guerra nas pernas alevam.

― Certamente. A maioria das pessoas pensam que a levo para alardear,uma desculpa que poderia ser acreditável, já que o acabamento foi fundido comouro entre outros metais. ― Estirou o braço para pegar a bengala, que tinhaapoiado na parede para ajudá-la. A ofereceu pelo lado que exibia a cabeça deáguia. ― É o que deixo acreditarem, entre outras muitas coisas.

Ariadna não separou os olhos dele.― E qual é a verdade?― A verdade é que... ― Começou medindo o peso do objeto dando um par

de voltas na mão, ― não foi sempre uma bengala. Tampouco foi minha desdeseu nascimento. Antes disso era uma longa e grossa vara de ferro com funçõesque feririam sua sensibilidade. ― Fechou a mão em torno dela, sujeitando-acom força. ― Essa vara me rompeu mais de cinco ossos, deixou-me coxotemporariamente e surdo de um ouvido outro longo tempo, além dasimprescindíveis e coloridas marcas que me tatuou em qualquer parte do corpo

que possa imaginar. Quando o seu dono morreu, decidi que tínhamos vividotantas coisas juntos que lhe devia o poético de custodiá-la até ao final. Afinalde contas, era a que melhor me conhecia.

Mandei-a à fundição e pedi que a recobrissem de um metal mais caro atéque tivesse uma forma regular. Não podia ir por aí carregando uma vara, assimocorreu-me que convertê-la numa bengala seria mais apropriado. Quando medevolveram-na, tinha perdido seu ar mortífero. Agora sua superfície era suave,agradável ao tato, e eu não gostei da sensação... Não se correspondia com oque era. Por isso pedi que a acabassem com a cabeça de uma águia. É uma dasmaiores aves predadoras existentes, além de que possuem uma grandeadaptação ao meio, e são símbolo de liberdade e poder.

Seguiu um silêncio que poderia ter aterrorizado Sebastian se não tivessehorrorizado o suficiente a si mesmo por falar em voz alta daquilo. Não pelacumplicidade que suportava mencioná-lo, mas sim por quão sórdido soava algocom o que viveu tranquilamente durante anos. Nem pensou que Ariadnapudesse sentir medo ou desprezo dele por manifestar sua verdade. E apesar deque não a julgaria se o fizesse, já que nunca poderia saber o que a bengalasignificava para ele, tampouco a perdoaria por isso. Sebastian era isso,justamente isso. Não esconderia a miséria de sua vida para agradar a outros.

Esteve tão convencido de que fugiria apavorada, que quase sentiu umestremecimento ao vê-la estender a mão, sem hesitações ou tremores quevalessem, e acariciar o bico da ave com os dedos. Fez com ternura contida, ecom tanta aceitação que Sebastian acreditou que estava acariciando-o a elediretamente.

― Assim... ― Murmurou ela. Levantou o olhar ― Gosta de animais, senhorTalbot.

― Sim, eu gosto... ― Respondeu no mesmo tom, sem atrever-se a respirar.Deus santo, morria por tomá-la entre seus braços, por tomá-la simplesmente...― Sobre tudo as aves. O Jay e o falcão peregrino.

Ela quase sorriu seriamente.― Então parece que por fim temos algo em comum. Eu adoro os cisnes e

os rouxinóis.― Vá, nunca teria imaginado.― Sim... ― Olhou para um lado, enquanto alisava as rugas da saia

pressionando as palmas contra as coxas. ― Hoje plantei as sementes que medeu de presente, senhor Talbot. Acredito que não lhe agradeci...

― Chame-me Sebastian.― Sebastian... obrigado pelo presente. ― Disse com sinceridade. Olhou-o,

sorrindo tão sutilmente que não parecia. ― agradou-me, só que no momentonão fui capaz de apreciá-lo.

― Nem sempre se sabe valorizar as coisas à primeira vista ― repôs,olhando-a intensamente. ― Às vezes faz falta um segundo, uma terceira e atéuma quarta olhada para ver quão valiosas podem chegar a ser.

Ariadna assentiu, sem saber que estava assinando por ela mesma.Esticou-se tudo o que pôde para chegar a sua altura, apoiando as palmas emseus ombros sem muita segurança, e voltou a cabeça para agradecernovamente o gesto com um beijo na bochecha. Entretanto, o repentinomovimento alterou Sebastian, que ao não saber o que se propunha, inclinou opescoço para a esquerda. O tenro beijo converteu-se, pois, num inocente rocede bocas entreabertas.

― OH ― murmurou Ariadna, separando-se com os olhos muito abertos. ―Sinto, não pretendia...

Sebastian grunhiu para calá-la. Foi muito para ele o aroma que flutuouem seu redor, e a lembrança física dos lábios do pecado tão perto dos seus. Tãosimples que bastou para apagar todo ápice de sentido comum e empurrá-lo atomá-la entre seus braços, tirá-la da vala e sentá-la sobre o amplo vaso queestava a suas costas. Sebastian não atendeu à razão, nem pôde recordar oporquê de seu breve período de abstinência, ao encontrar-se com sua bocaaberta pela impressão. Voltou a beijá-la como sabia, embora desta vezderramando por cada flanco a dolorosa verdade a respeito de quanto podiadoer um segundo sem seu fôlego. Rodeou a estreita cintura com um braço,enquanto a mão livre se deleitava com a longitude e suavidade de sua jubapálida. Não podia pensar quando ela se rendia e relaxava completamente,aceitando a viagem que expunha, inclusive respondendo com seu habitualacanhamento cheia de valentia.

― Diga-me que pare. ― Ofegou, contendo-a contra seu peito. Pressionou oslábios contra o pescoço de neve ao qual ela lhe deixava aceder inclinando acabeça na direção contrária, pensando mesquinhamente em quanto desejariaque amanhecesse ao dia seguinte com a marca de suas ânsias. Ânsias queestavam a ponto de o destruir. ― Diga-me que pare agora, porque não podereifazê-lo se o disser mais adiante... Não tenho vontade quando se trata de ti. Nãosou um homem quando se trata de ti, a não ser um monstro sanguinário.

Voltou a encontrar-se com sua boca. Saqueou-a sem a cobiça de sempre,mas com a necessidade de pertencer e posse que o fazia invejar o ar que sefiltrava entre seus dentes. Seu estômago estalou de puro alívio e regozijomasculino quando ela, longe de empurrá-lo, beijou-o de volta, imprimindo umnovo matiz entusiasta. Sebastian a espremeu com ambos os braços,pressionando-a pelas costas, e acariciou-lhe a nuca com as mãos. Elaconseguiu libertar as suas extremidades, a tempo para lhe devolver ademonstração carinhosa com estupidez, como se jamais tivesse abraçadoalguém. Ele não pôde suportar o tombo que lhe deu o coração ao sentir seusfinos dedos muito perto do pescoço, e se derrubou sobre ela, puxando-a para oseu peito mais ainda se fosse possível.

― Estou tão louco por ti... ― grunhiu. Separou-se o suficiente para deslizara manga por seu ombro. Repetiu a operação com a outra, embora se tenharasgado pelo processo, fazendo que o decote do tecido caísse para diante,revelando uma pequena porção do peito. ― Converteste meus dias num infernopor não poder tocar-te a toda a hora. Cada minuto sem ti é uma maldição...

Beijou a clavícula, a curva do ombro, um ponto do braço aleatório ... Esubiu, aceso pelo arranque doentio; desejoso de abranger o máximo no menortempo possível, se por acaso ela, no último momento, negava-se a lhe dar cordapara viver uns dias mais. Odiava e amava essa sensação de estar jogando tudoao estar a seu lado, ao beber seu fôlego e aspirá-la tão de perto. Sentia que omundo se desvaneceria a seus pés se voltava a separar-se dele, até sabendoque não mereceria nunca uma beleza como aquela. Era doloroso e terrível, masnão podia evitar voltar a tentar, uma e outra vez... queria-a tanto, e de tantasmaneiras, que lhe custava cumprir com suas funções vitais.

Sebastian baixou-lhe a parte superior do vestido de um impulso quasesuicida, pois ao admirar a pele mais suave de seu corpo, soube que nãosobreviveria se o detivesse... E seria culpa dela, porque se deteria se essa fossea sua ordem, enunciada por seus lábios cheios de tesouros que queria saquear.Beijou-a novamente, ansioso, como um moço em sua primeira noite, e como ohomem experiente que por fim tinha encontrado a quem queria deslumbrar... Aquem desejava que ficasse, noite após noite.

Agachou a cabeça, ofegante, e apoiou a testa entre seus seios só paradeleitar-se com o fato de que ela reagia do mesmo modo. Ariadna respirava comdificuldade, e se agarrava às suas costas com os braços trementes. Pensou quepossivelmente tivesse medo, que estaria se sentindo uma traidora, e longe de

falar porque poderia recordar o seu caçador, quis que compreendesse queninguém poderia suspirar por sua nudez tanto como ele. Fez um caminho debeijos entre sua clavícula até quase o umbigo, para subir de novo e respirarsobre os mamilos endurecidos. Acariciou um com a língua, recreando-se emseu doce sabor, na comparação de texturas, e logo nos ofegos entrecortadosque escaparam de sua garganta. Sebastian lamentou não ter cem mãos, nembocas suficientes para percorrê-la como ansiava, e acima de tudo, odiou terperdido trinta anos de sua vida sem aquele corpo tremente. Nem vivendo dezvezes disporia do tempo que necessitava para saciar-se da seiva e perfume daque parecia.

Teve de conter um uivo quebrado de genuína exaltação ao senti-la vibrarsob o certeiro toque de sua língua sagaz, curtida em batalhas amorosas quenão tinham comparação com a que se desenvolvia nesse momento. Ariadnaentregando-se a ele sem querer, ou talvez querendo, podia ser perfeitamenteuma das melhores coisas que lhe tinha acontecido na vida. Empregou-se afundo na hora de absorvê-la, chupá-la e sugá-la como a mais deliciosa dassubstâncias, até que lhe cravou as unhas na nuca. Tão leve amostra de gozo ocatapultou ao limbo, despojando-o de qualquer barreira que pudesse ter-seimposto. Em questão de segundos, esteve decidido a apagar todo rastro deinocência de seu corpo, arregaçando a saia e penetrando-a sem contemplações.A ideia o seduziu, esticando o seu corpo rigidamente... Mas assim que seseparou para agarrar a beira do vestido, e pôde observar o estado de alienaçãono qual ela se encontrava, arrependeu-se de o ter pensado. Sendo prisioneirado desejo não poderia pensar com clareza, e a essa altura, com os olhosfechados e os lábios mordidos, não encontraria a integridade para suplicar porum pouco de decência. Quem sabia se o perdoaria no dia seguinte que, atétinha prometido cessar em seus empenhos, ainda assim aproveitava-se assimde sua debilidade pelo amor.

Assim, com toda a dor no coração que teve e teria, e de todos os coraçõesque tinha visto deixar de pulsar, recolocou o vestido como foi possível apesardo tremor das mãos. Apertava a mandíbula, odiando-se por suavulnerabilidade pela aquela criatura etérea, quando ela abriu os olhos e oolhou interrogante. Esteve de novo tentado a esquecer-se de sua pequenainclinação ao respeito e separar-lhe as pernas assim que apreciou o tom malvade seus maravilhosos olhos.

― Educaste-me bem. ― Expressou com voz rouca ― Não posso começar a

tocar-te se souber que terei de parar, porque cada vez que me para, estou umpasso mais perto do delírio. Não creia que não ficaria louco por ti se me pedisseisso... ― assegurou, baixando o tom e a cabeça, para deixá-la repousar em seuombro de veludo. Beijou-a ali, ferido em todas as partes que podia estar um serhumano ao que lhe negava o prazer. ― Estou precisamente tentando esperarque tome a iniciativa para perder a cabeça de tudo.

Ajudou-a a descer da altura do grande suporte de vasos, e lamentou emseu interior ter sujado a sua saia por detrás. Ela não deixava de olhá-lo, e elepreferia fugir de seus olhos para manter-se em seus treze anos. Não obstante,não pôde resistir a dar-lhe um último beijo, sentindo a ansiedade cravando-seem seu corpo como o pau vil. Quando se separou, soube que lhe devolvia oolhar demolidor.

― Cantará para mim alguma vez?Ariadna necessitou de um segundo para processar o seu pedido. Quando o

fez, assentiu muito devagar.Sebastian se deu por satisfeito, e antes de que ela o persuadisse fazendo

qualquer coisa, partiu num ritmo acelerado. Foi uma sorte que não soubessesobre histórias de mitologia, ou teria sabido que nesse momento foi o perfeitoOrfeo saindo de Hades, sem voltar uma só vez para contemplar a Eurídice queperderia se não resistisse.

14

E ao ver Dioniso, verdadeiramente belo, e Ariadna, tão encantadora,beijavam-se na boca muito seriamente e não fingindo [...]. Acreditavam ouvirDioniso perguntar a ela se o queria, e a ela jurando de maneira tão apaixonadaque não só Dioniso, a não ser todos os presentes teriam sido capazes de jurarque o moço e a moça se queriam mutuamente.

JENOFONTE, Banquete, IX,

Devido a escassez que passaram nos últimos anos, as Swift seacostumaram a ir elas mesmas às compras. Tanto assim que acabaram porpegar o gosto, e não só iam ao mercado de Covent Garden para escolherem asmelhores ofertas, mas também para saudar os lojistas que já as conheciam. Oambiente ocupado da zona dificultava os passeios em silêncio, basicamenteporque era impossível passar por ali sem que ao menos um dos clientes oudono das lojas dissesse os seus nomes e as entretivessem com conversasamenas. Assim, Ariadna afeiçoou-se a acompanhar Penny e à cozinheiraquando saíam atrás de ingredientes para o bolo de melaço, e hoje em diacustava-lhe resistir à proposta de sair. Sobre tudo sendo sexta-feira, o dia emque a maioria da população fazia suas compras e os ricos aromas semesclavam no ar.

Ao contrário do que tinha por costume, Ariadna não saiu com Penélope,mas sim com Briseida. Era ela quem aparentemente levava uns dias ofuscadaporque não encontrava um misterioso elemento. Coisa que é obvio não eranada novo; o que noutro tempo teria sido o grande segredo que mantinha afamília nervosa, agora era um enigma pelo que não convinha perguntar.Ninguém era suficientemente forte para estar na cabeça de Briseida, ou jápostos, entender as razões pelas que quereria comprar cordas.

Apesar das suas raridades, Ariadna queria muitíssimo à irmã menor, e a

acompanharia lá onde fosse se o pedisse. Nesse momento agradecia que fosseela a que solicitasse sua companhia, já que devia desculpar-se por não tercumprido com o que lhe pediu alguns dias atrás.

― Não se preocupe... Já sabe que adoro emoções fortes, e estranha vez mehei sentido tão viva e travessa como quando subi as escadas correndocompletamente nua. ― Riu, regozijando-o melhor é que nem Penny nem Meg seinteiraram, assim não houve castigo.

― Isso é um alívio. ― Balançou a cabeça ― Mas em todo o caso, acreditoque não deveria voltar a fazê-lo.

― Fazer o quê? ― perguntou com inocência. Adiantou-a um pouco,meneando os ombros coquetamente, e lançou um olhar divertido por cima doombro. ― Refere-se a permitir que um homem me dispa...? OH, acredite, o fariauma e outra vez. E mais tratando-se dele!

Ariadna deixou de caminhar e ficou olhando sua irmã. Não lhesurpreendia a notícia: somente Briseida Swift seria capaz de fazer algo assim.Tampouco sentia saudades que o contasse com a serenidade de quem nãodiferencia entre o que está bem do que está mal... Nem sequer que tivesse apouca-vergonha de soltá-lo assim, de modo que as mulheres que passeavampelos canais entre os postos pudessem inteirar-se. Unicamente lhe chamou aatenção essa última exclamação.

― Quem é «ele»? Lester está em Londres?Briseida franziu o cenho.― Por que Lester estaria em Londres? Não abandonaria Escócia nem que

os dragões, ou os dinossauros a invadissem... ― suspirou ― Estou falando deoutro homem.

Foi a vez de Ariadna franzir o cenho. Maverick Lester era o melhor amigode Briseida praticamente desde o berço. Seus respetivos pais tinham negóciosem comum, que pensaram em transladar aos seus descendentes unificando ossobrenomes através de um matrimônio de conveniência. Algo que não pôde serpossível quando Lester se impôs, rechaçando Briseida como algo a mais queapenas sua amiga. Sem dúvida, seu pai, sir Gregor, teve muito má sorte nahora de casar suas filhas com quem quis. Porém, era bem sabido por toda afamília Swift que Briseida estava apaixonada por Lester. E Ariadnacompreendia: os dois compartilhavam o espírito vivaz, o amor pela vida e o afãde aventuras, e tinham quase a mesma idade, por isso cresceram ao mesmotempo, maturando juntos.

― Isso quer dizer que Lester...― Lester é história. De facto, nem sequer estou segura de que tenha

amado algum dia. Era o único homem ao meu redor, e dava a casualidade deque se tratava de um adolescente atraente. Como não ia acreditar que estavaapaixonada por ele? Agora, vendo-o desde outra perspetiva... ― Suspirou.Apoiou a mão na mesinha coberta do fruteiro. ― Não é comparável, Ari.

― A que te refere?― Este homem... ― Negou com a cabeça ― OH, Ariadna, não saberia

explicar como me sinto. Deixa-me de cabeça para baixo! Não sei se é porque emnada se parece com Lester ou a qualquer outro homem ou mulher que tenhaconhecido antes... Mas enlouquece-me. Cada vez que se aproxima de mim,perco o fôlego. Pode ser que com Lester tivesse mais em comum, e é que a elenão poderia me aproximar falando de meus interesses... Entretanto, prefiro-o.É verdade que faria algo que suportasse um pouco de risco porque desfruto.Poderia ter deixado que Lester me tirasse o vestido nas mesmascircunstâncias... Mas me teria dado conta do que fazia, enquanto com este,estava tão inundada na necessidade de senti-lo que nem sequer notei o ar friona pele.

Se Ariadna não tivesse tido muito presente essa classe de sensação,possivelmente teria deixado passar sem entender a explicação de sua irmã.Porém, levava dias pensando em Sebastian, em como teve de ser ele quem seseparasse dela... Dias inteiros com a cabeça pesada pelas numerosasadivinhações sobre o assunto. O que podia significar que tivesse escolhido oprazer acima da lembrança de Corban? Realmente estava no direito de dizerque foi decisão dela, que o escolheu, e não que se deixou levar, que as mãos, aboca e as palavras de Sebastian não a seduziram por completo?

― Cada vez que se aproxima de ti?... ― Repetiu, concentrando-se emBriseida ― Por acaso se viram mais vezes? Bri, ainda não a apresentaram, nãodeveria conhecer ninguém, muito menos para...

― Coincidimos casualmente três vezes. ― Repôs, como sempreinterrompendo. ― Não é minha culpa que o destino queira me favorecer. MeuDeus, preciso vê-lo de novo! E é uma loucura, eu sei. Não só porque devapermanecer encerrada na minha habitação mais alguns meses, mas simporque ele é um homem muito sério, amargurado, e... Se não tivesse estadobêbado, jamais teria se fixado em mim.

― O quê? ― exclamou alarmada ― Estava bêbado quando...? Briseida,

escuta. Não sou contra que saia para conhecer gente, mas tem de evitar oshomens. Especialmente os bêbados. Poderiam ser uma grande ameaça, e... ―Sua voz se extinguiu conforme uma ideia foi se formando em sua cabeça. ―Diga-me que não fez nada. Diga-me que não lhe...

― Não, claro que não. Mas que conste que não foi porque eu não quisesse,mas sim porque ele mencionou uma estupidez sobre o decoro. Os cavalheirossão cavalheiros mesmo bêbados. ― Determinou ― E que meus sonhos sobrepiratas me perdoem, mas cada vez mais prefiro agora a esses senhores...!

Ariadna ia perguntar quem era o afortunado por quem parecia ter-seapaixonado, mas recuou, pensando que seria uma estupidez dado que nãosaberia reconhecê-lo. Assim, continuou em completo silêncio seguindoBriseida, que continuava procurando como uma possessa essas cordas de quenecessitava.

Não era nem um pouco uma pessoa invejosa, mas admitia que teriagostado de ter o coração de sua irmã menor: um coração fácil, que logo queacrescenta, elimina. Um coração sem filtros, grande e cheio de carinho,emoção... Quem quer que fosse o homem que conseguisse levá-ladefinitivamente, alcançaria a felicidade eterna, e deveria considerar-se emextremo afortunado por ser somente ele quem a tivesse. Ariadna sabia que opeito de Briseida podia acolher a mais de uma pessoa, e que longe dedesdenhar essas ânsias por abranger e amar a todos, alegrava-se de suacapacidade. Custava-lhe imaginar que pudesse conformar-se fazendo feliz a umsó cavalheiro. E ela mesma, pelo contrário, mal podia partir uma parte de seucoração para ceder a quem poderia valorizá-lo. Entregou-o inteiro ao homemque não devia, e que apesar de tudo esperava ver retornar, e agora não tinhanada para ninguém mais.

Embora, de todos os modos, as palavras de Briseida a deixaram pensandodurante todo o caminho à loja as guloseimas, uma à qual a caçula não podiaresistir. Lester tinha sido o único para ela porque era exatamente isso: o únicohomem em seu redor. Fascinava-lhe por não ter outro. Mas assim que houveoutro, e falava do misterioso e sério bêbado, suas preferências trocaram. AgoraBriseida assegurava não ter amado nunca ao Lester, porque em comparação,seus sentimentos pelo novo eram muito mais intensos... Poderia passar-se algosimilar com ela? Em sua cabeça não cabia a possibilidade de querer alguémque não fosse Corban, mas se dissesse que Sebastian não inspirava nela umapaixão dilaceradora sem precedentes, estaria mentindo descaradamente. Amor

e desejo eram muito distintos, dizia-se por aí... eles também andavam de mãosdadas. Possivelmente seu amor por Corban foi mais puro, e Sebastian somentesabia lhe prometer a chave das proibições que desejava muito encantadarecebê-las de sua mão. Em qualquer dos casos, que tivesse agradecido eadorado os beijos de seu marido por cima de suas predileções sentimentais erauma pista a mais para resolver um quebra-cabeças que não entendia. Tudorelacionado com Sebastian a frustrava, punha-a nervosa, e também a comoviaenormemente... Se Ariadna foi em algum momento um ser humano passivo ede alma tranquila, ele a estava convertendo pouco a pouco numa chamadependente da brisa de seu fôlego, para ser avivada ou apagada. E não sabia seisso a agradava, só que tremia se pensava na dor secreta de Sebastian aomencionar sua mãe, e mais se recordava as violentas sacudidas de seu robustocorpo ao sustentá-la entre seus braços.

― Sei que está aqui... Não a viu? ― pensou ouvir à sua direita, do outrolado de uma cortina de separação. ― É difícil não a reconhecer, sendo tão loira.

― Muito, não? Acredita que será esse o motivo pelo qual Sebastian Talbotse casou com ela? Queria uma mulher... especial?

Ariadna piscou uma vez em direção à fina capa, de onde lhe chegavam asduas vozes femininas. Em geral, não lhe importavam os falatórios, inclusive seera ela a protagonista da história. Mas Briseida por fim tinha encontrado o quenecessitava, e deviam ficar ali fazendo fila até serem atendidas.

― Duvido. Conforme dizem, Ariadna Swift é uma delícia. Maneirasimpecáveis, entre outras coisas... Escolhê-la-ia por seu status e seusprotetores. Enfim... Sentia curiosidade para saber qual o peixe gordo que ateria levado, e já vejo que não é para tanto... Não se pode queixar, não crê?

― Já te digo que sim. O duque de Winchester a queria tomar como esposa.Note a mudança de uma proposta a outra... De ser a proprietária de umducado, cujo dono está apaixonado por ti, à cornuda da Inglaterra... Eu diriaque desperdiçou uma oportunidade inigualável por nada. Por nada.

― Cornuda, diz?― É obvio. Não sabia? Diz-se por aqui que Sebastian Talbot acode todas as

sextas-feiras pela manhã, sem exceção, a Sodoma e Gomorra. E já sabe o quese faz por ali, Flora... sai apenas uma hora depois, fresco como uma rosa.Certamente tem uma amante fixa.

― Mas não é de todo estranho. Os homens como ele, ambiciosos epoderosos não se conformam com uma só mulher. E os pobres tampouco... ―

suspirou ― Acredita que meu Paul não teve seus escarcéus?― É evidente que a semente da infidelidade está no corpo do homem,

querida, mas não preferiria estar casada com um duque infiel do que com umempresário adúltero? Imagina o luxo que teria gozado... Além disso, sabe-seque Sebastian Talbot visita o prostíbulo há anos. Possivelmente estejamosfalando de uma querida especial. Não seria o primeiro homem que se apaixonapor uma cortesã...

Ariadna captou em seguida que Briseida dava a volta para olhá-la com osenormes olhos espantados. Certamente tinha ouvido o mesmo que ela e queriaconhecer a sua reação... Mas não se moveu. Não afastou os olhos da capa,concentrada como estava na conversa que não se prolongou muito mais.

― Ari? Está bem?Assentiu com a cabeça, e deixou que sua irmã a agarrasse pela mão e

puxasse-a para avançar na fila. Seus olhos continuaram cravados na cortina,sem nenhum interesse real por descobrir a identidade das mulheres.

― Ari... ― falou de novo ― Não lhes faça nenhum caso. Há mulheres quevivem para ferir as demais. Seguro de que é porque a invejam.

Ariadna não podia concordar com ela, porque tampouco podia tirarnenhuma conclusão sobre o que ouviu. A sua cabeça era agora uma maré derepetições, e seu estômago procurava espaço para acomodar um nó detamanho desproporcional. Não entendia por que se sentia mal, quando não searrependia de ter trocado o duque por Sebastian, nem devia lhe surpreender asespecificações de suas visitas ao bordel quando sua fama de mulherengochegava à outra margem... Mas era inegável que de repente muitas coisas queela tinha dado por feito perdiam sentido. Como o fervente desejo com o que aafligia constantemente.

Supunha-se que os homens ficavam satisfeitos depois de suas visitas acentros de pecado, ou disso a informou sua irmã maior. Então de onde saíaessa exagerada tensão? Acaso se esforçava por convencê-la de que desejavapassar a noite com ela só por aborrecimento...?

Deveria ter imaginado. Afinal de contas, nunca lhe pareceu bonita paraele, e ela tentava, cada vez que teve oportunidade. Além disso, e se a memórianão lhe falhava, considerava pobre desejar a mulher oficial. Justo o que elaera. As pistas estiveram ali... só que possivelmente não quis ver.

A fila foi avançando até que Briseida pôde comprar o que necessitava, eentão Ariadna decidiu que não tinha direito a repreender nada. Ela esclareceu

em seu momento que nunca a teria, e deveria ter suposto que Sebastian nãomanteria o celibato eterno só para lhe guardar fidelidade. No fundo, tinhasentido, e podia compreendê-lo. Ariadna respeitava Corban, Sebastianrespeitava seus impulsos carnais... Era até lógico. Mas, então, por que sesentia mal?

Esteve pensando durante a viagem de volta, perdida numa estranhasensação de perda que fazia muito tempo que não experimentava. Teriagostado de ser extrovertida para contar a Briseida, ou a qualquer de suasirmãs, que certamente lhe daria um conselho magnífico... Mas estavacondenada a morrer com seus segredos.

― Minha senhora. ― Saudou Graham, agachando a cabeça ao passar pelosaguão. ― Tem uma visita e uma nota. Esta segunda foi assinada pelo MairinBain.

Aquilo animou um tanto Ariadna, que deu a volta no ato para tomar opequeno envelope que continha as recentes notícias. Agradeceu a Graham quea tivesse informado e separou cuidadosamente o envelope triangular para tiraro papel.

Minha senhora Talbot,Prometi-me que não lhe escreveria até que não pudesse lhe oferecer boas

novas... E tem-me aqui, orgulhosa de dizer que, embora não tenha encontradotrabalho como enfermeira, exerço o papel de donzela de uma mulher grávida. Odoutor a visita semanalmente para revisar que tudo esteja em ordem, e quanto amim, consegui cercar uma agradável amizade com ele. Tanto é assim que logome levará com ele em horários livres para me ensinar algumas noções demedicina. Não posso estar mais feliz. A senhora da casa não é precisamenteencantadora, e o senhor deixa muito que desejar como tal, mas ao menos não mejogaram ao descobrir que provenho de uma longa estirpe cigana.

Espero que você se encontre bem e que possa me escrever à direção doreverso o antes possível. Ainda me sinto culpada por tê-la deixado atrás;agradar-me-ia saber que tudo melhorou desde que parti.

Todos meus melhores desejos,MAIRIN

Ariadna guardou a carta com cuidado, emulando um ligeiro sorriso que

ninguém poderia ter percebido. Ao levantar o olhar descobriu que Grahamestava inclinado sobre o papel para ler as linhas, e, comovida pelo interesse doancião, ofereceu-lhe um breve relato para que pudesse ficar tranquilo.Continuando, Graham a conduziu ao salão, onde esperava uma visita a quemteria preferido não enfrentar.

― Excelência. ― Saudou, imóvel ao pé da porta ― O que faz aqui?Odiou reconhecê-lo através do medo que lhe inspirava compartilhar o ar

com ele. Não sabia que era o duque de Winchester porque o tivessemanunciado, ou porque tivesse um perfume específico, mas sim porque depoisdo beijo forçado, desenvolveu um vínculo negativo com sua figura. E estaclasse de perceções eram mais intensas que as positivas, pois bastou que desseum par de passos em sua direção para que reagisse retrocedendo, com ocoração apertado.

Ariadna recordou que Sebastian, depois de lhe ter contado sobre suasúltimas topadas com ele, especificou ao serviço que não o deixassem passarsob nenhum pretexto. E embora na realidade lhe surpreendia que Graham,sendo tão leal, tivesse desobedecido o proprietário da casa, entendeu que não otivesse enfrentado. Uma guerra entre Sebastian e George nunca seria favorávelpara os que se proclamassem aliados do primeiro.

Ia perguntar novamente o que o trazia para seu salão, mas um homem dealtura exagerada a empurrou com suavidade ao passar do seu lado. Ariadnareconheceu imediatamente o calor do fogo crepitante e o aroma de terramolhada, e apesar da informação que lhe correspondia recentementedescoberta, relaxou e se alegrou de que estivesse ali. O que a alterou foi queSebastian, em vez de o tirar dali com um par de certeiras frases, afugentasse-oestampando-lhe um murro no nariz. Ariadna afogou um grito de horror ao verque o duque cambaleava e retrocedia para se chocar com a parede,choramingando de dor.

― No meu bairro tínhamos muito claro que as palavras ficam curtas nestetipo de assuntos, mas quis apelar à boa educação, já que estamos numambiente elitista e é você um tipo importante... Mas visto que prefere saltar asminhas regras, terá de acostumar-se a que opte pela eficácia dos ultimatosfísicos.

Sebastian agarrou-o pela camisa e o sacudiu uma vez antes de pegar onariz ao seu. O do duque sangrava e, aparentemente, ao empresário não lheimportava manchar a camisa com o líquido.

― Disse-lhe que não voltasse a aproximar-se dela, e não só o tem feito,assim como apresentou-se em minha casa. ― Avançou para a porta com ocavalheiro agarrado pelo cangote, que só encontrava forças para gemer. ―Faça-o uma terceira vez... uma maldita terceira vez... e será um homem morto.

Ariadna saiu da habitação para ver como Sebastian, fazendo uso de suaforça desmedida, abria a porta de entrada de uma patada e o expulsava à basede empurrões. Fechou em seu nariz, silenciando qualquer tentativa deconversa, e não desperdiçou um segundo ficando parado no meio do corredor.Refez seus passos, caminhando irritado, e voltou a entrar no salão. Ariadnaseguiu-o, assombrada por sua reação e preocupada tanto pelo que estavaacontecendo como pelo que gerava: viu-o dar voltas por ali, respirandoprofundamente, tirando a jaqueta e desabotoando a camisa com movimentosbruscos para tirar o sangue de cima.

Continuando, e aparentemente sem precaver-se de sua presença, deixou-se cair na poltrona. Nu da cintura para cima, esticou o braço para a licoreira ese serviu um par de dedos de conhaque. Apurou o copo de um gole. Voltou aenchê-lo, e repetiu o processo. O terceiro o utilizou para empapar um lenço queguardava nos bolsos da jaqueta, que logo atirou ao chão. Esfregou o tecido, queluzia suas iniciais bordadas, e a guiou a um ponto do braço direito, ondeAriadna encontrou uma greta aberta e sangrando.

Isso a tirou de seu encantamento.― O que passou? ― perguntou, aproximando-se. E de repente, como se

acabasse de dar-se conta de que era a primeira vez que o via sem camisa, ficoucravada no meio da habitação, sem saber aonde ir ou o que fazer.

Ariadna engoliu em seco, entre incômoda e seduzida pela vista. Nuncatinha visto um homem sem seu traje habitual, mas mesmo tendo em conta aexcecionalidade do momento, soube que não haveria outro igual. A pele deSebastian era mais morena que a de qualquer outro que tivesse conhecido,inclusive nessa zona oculta do sol, e o pelo que luzia no torso era tão negrocomo seu cabelo. Ninguém tinha essa tonalidade capilar, só ele. Além disso, aoapoiar os cotovelos nas coxas e mover-se para alcançar o copo servido, umasérie de músculos se moveram de baixo daquele torso veludo dourado, que lheinspirou todas essas vontades de tocar num indivíduo que nunca tinhaexperimentado.

Sebastian levantou os olhos e os cravou nela. Um estremecimento deprazer a percorreu assim que seus olhos descenderam ao pescoço, como se

quisesse se assegurar que estava bem. Atraída por seu aspeto e as emoçõesque disparava contra ela, aproximou-se. E ele, sem conter o animal que nãoterminava de desprezar e que Ariadna encontrava fascinante, agarrou-a pelamão e puxou seu braço para sentá-la sobre seu regaço. Sebastian sustentouseu rosto entre as mãos uns instantes, curiosamente sem dizer uma sópalavra; só olhando-a, extasiado e também cheio de angústia. Acariciou com osdedos o fino queixo feminino, trazendo-a para si. Só fechou os olhos quandoseus fôlegos se mesclaram num beijo onde os lábios não faziam nada,unicamente sentir a proximidade e amar a possibilidade de encontrar-se denovo.

Ariadna apoiou as mãos em seu peito. A sua calidez transpassou aamaciada capa de pele chegando a queimá-la, sendo a personificação do fogo.Pensou, embora sem dar muitas voltas, que Sebastian devia ter a alma emchamas se assim podia preencher seus frios vazios.

― Não deveria o ter golpeado.― Não deveria ter feito muitas coisas, mas, entretanto, fi-las. Abrir o

crânio de um homem que tenta te fazer dano não é o pior que poderia ocorrer.Falou com tal veemência que capturou todo seu interesse.― O que fez?Sebastian acariciou sua bochecha com lentidão. Pareceu respirar mais

forte e menos profundo ao apoiar a gema do polegar em seu lábio inferior, queseparou com admiração e desejo visível nas pupilas.

― Muitas coisas. Todas elas horríveis. Tenho feito mal a pessoas que nãomereciam... por que não ia fazer aos que merecem? ― Fez uma pausa paraescrutinar sua expressão. ― Estou te assustando?

― Não.― Temia isso. Existe algo que possa te fazer temer-me? Porque já se viu

que nem os sequestros, nem as ameaças, nem minhas demonstrações deviolência, nem minhas insinuações, podem te arrancar uma ameaça depreocupação por sua integridade. Será que está a começar a confiar em mim...?Deus, diga-me que sim. ― Pediu em voz baixa ― Não suportaria estar a conter-me para que continue a achar-me um miserável.

Ariadna abaixou o olhar, cravando-o nas rugas de seu vestido. Logo voltoua olhá-lo no rosto.

― Confio em que sabe parar, mas não em sua contenção.― Certamente. ― Suspirou ― Sou incapaz de não me jogar sobre ti.

― Em geral. ― Corrigiu Ariadna, neutra. Ele elevou uma sobrancelhainquisitiva. ― É incapaz de conter seus impulsos... sexuais, em geral.

Sebastian entreabriu os olhos.― O que quer dizer com isso? É pelo que se diz por aí?― Sim, suponho que sim. ― Respondeu ― Viram-no entrando num bordel

chamado Sodoma e Gomorra quando quase não há clientes para que não...descubram as suas inclinações.

Ariadna o olhou para comprovar a partir de sua reação que tinha acertadoem cheio. Ele não disse nada por um momento. Somente a olhou, muito sério.Esperava que negasse, ou que fingisse achar-se consternado ou ofendido, ou, oque era mais próprio nele: que o admitisse sem disfarces nem vergonha.

― Nunca me deitei com uma puta.Se não se pronunciasse desse modo tão cortante, talvez teria duvidado.

Não se tratava somente de uma conversa pontual ouvida por casualidade, massim de sua fama, da lenda em que se converteu como resultado de suasmúltiplas conquistas.

― Sodoma e Gomorra não é um bordel. Sodoma é o prostíbulo e Gomorra éo cassino. Mas é certo que visito assiduamente ambos os negócios; não pelosmotivos que possa pensar. Nunca me deitaria com uma cortesã, nemrequereria seus serviços para nada. ― Repetiu ― pelo menos não, estandoconsciente.

- Desde menino vi maus-tratos e ouvi prantos suficientes por parte dasmulheres do ofício para me fazer a promessa de que sob nenhum conceitocontribuiria para esse negócio da carne. A minha mãe foi morta por um amanteciumento, à minha tia queimaram as costas com cera ardente, e Mariette,embora agora seja a madame que gerencia Sodoma, também foi vítima depedidos mórbidos por parte de seus clientes. Se me viu entrar ali, é porque eugosto de passar um tempo com as velhas amigas da minha mãe, que são asúnicas pessoas no mundo que me quiseram quando era pobre e miserável.Assim, lamento o que se possa dizer e que tudo o que eu faça se repercutesobre ti. Posso ver madame D’Orleans em qualquer outro estabelecimento, oume encontrar com ela aqui para diminuir os rumores e fazer com que não aafetem... Mas não deixarei de vê-la. ― Concretizou, sustentando seu olhar semvergonha ― Mariette é o mais parecido que tenho de uma família, por muitopouco decente que pareça, e uns desbocados ofendidos não me vão arrebatarisso.

― OH. ― Foi tudo o que pôde dizer ― Quer dizer isso que é ...?― Virgem? ― acabou, enquanto elevava as sobrancelhas. Sebastian soltou

uma potente gargalhada, e a estreitou contra seu ombro, comovido por suainocência. ― Há muitas mulheres dispostas a que lhes deem prazer além dasputas, pequena sereia. De facto, acredito que seria mais correto dizer que hámulheres dispostas a que lhes deem prazer, não como as cortesãs, que devemfazê-lo para sobreviver. Possivelmente pude te dar a impressão de que me atraiforçar as moças, só pelo que me esforço em te convencer de que posso te fazerdesfrutar... Mas não suportaria me deitar com alguém que não me desejasse namesma medida, e que é obvio não necessitasse dinheiro para me tolerar.

― Então... não dormiste nenhuma vez com uma prostituta? Jamais? Nemsequer... recentemente?

― Só dormi com uma, e ela não estava em horário de trabalho, nem mepediu pagamento. Foi uma consequência da atração, não um negócio. E fazanos. Recentemente teria sido impossível. ― Acrescentou, olhando-aapaixonado pelo que via. ― Eu não gostaria de tocar numa mulher pensandonoutra. Eu não gostaria de tocar a outra mulher... a secas.

Foi extremamente revelador o alívio que a alagou ao confiar às cegas noque dizia. Ariadna não era uma pessoa desconfiada por natureza, mas nunca aembargou a certeza dessa maneira, como se não pudesse existir outrapossibilidade.

― Suponho que sou livre para não acreditar no que se diz por aí. ―Murmurou, recostando-se em seu ombro com cuidado. ― Embora seja um doshomens que tem a sua reputação mais bem definida.

― Isso é porque neste mundo sempre se pode descer, mas dificilmentesobe. A má propaganda vende-se melhor que os relatos heroicos. E a verdade éque nunca quis me fazer ver como um super-homem, entre outras coisasporque, ao contrário do que faz a imensa maioria, eu não gosto de mentir paraagradar. Só sou um pobre desgraçado, cheio de defeitos e com um par devirtudes que mesmo assim triunfou, e longe de me conformar com o dinheiro eo êxito, desfruto-me nisso. Sim, sou tão soberbo como dizem. Sim, sou umamante das mulheres, tal qual se conta. Sim, sou trapaceiro e miserável, e eugosto de apostar tudo às cartas pelo gosto de lhes fazer pensar que poderiaperdê-lo. Mas minha presunção está aí por um motivo, e é que ganhei tudo oque tenho, e nunca me cansarei de recordar a todos os que sublinham suasuperioridade quando jamais tiveram de lutar pelo pão. Evidentemente eu

gosto de sexo, e de boas mulheres, mas não abusar delas nem lhes fazer dano.E eu não inventei os truques que utilizo para sair vitorioso atrás de qualquermão de cartas. Sou um homem muito seguro de suas imperfeições ao que nãolhe importa ter-se convertido numa marca social, e isso assusta tanto àgeneralidade, essa que vive de ameaças com o ostracismo, que já não sabem oque inventar para me deixar em pior lugar. Curioso... ― Sorriu, ladino ― Muitocurioso, quando eu sou o primeiro que se dá má fama sem remorsos. Como senecessitasse ajuda para que minhas relações com as altas esferasfracassassem.

― Por isso você anda ombro a ombro com gente humilde, como madameD’Orleans? Porque suas relações com a aristocracia fracassaram?

― Na verdade não me levo do todo mal com certos indivíduos de ditoestrato. O marquês de Leverton, Ashton e Standish estão a meus pés,esperando que os anime a depositar seu dinheiro num lugar ou outro, e issome converte num tipo duplamente poderoso. Se preferir as pessoas humildespara matar as horas, é porque sei onde está o carinho verdadeiro, e não otrocaria por um salão lotado de presumidos embora estes pudessem meassegurar uma vida melhor. Como já disse, Mariette acolheu-me sendo ummenino à beira da inanição, imundo e violento, e o fez porque tinha valores,além de que amava a minha mãe. Esses valores não são compartilhados naclasse alta, pelo menos na maioria. Quão ingrato seria se trocasse meus anoscom Mariette pela hipócrita amizade de um nobre? Não me importaria terambos, especialmente porque cercar uma relação interessada com um homempoderoso poderia me ajudar a subir a toda essa gente que está sofrendo aífora... Mas uma possibilidade anula a outra. Não posso clamar que sou filho deuma puta e amigo de um duque ao mesmo tempo, e não vou mentir sobreminhas origens, porque não me envergonham.

Ariadna apoiou a cabeça na curva de seu pescoço e ombro. Apreciou osarrepios em sua pele enquanto roçava a curvatura com o nariz, escapando umsorriso curioso.

― Por isso leva a bengala contigo e vê Mariette frequentemente? Querrecordar essa época...? Não seria duro para ti ter há tanto tempo tão presentealgo que te faz mal?

― Não sei. ― Respondeu, virando a cabeça para ela. Inclinou-se para trás osuficiente para olhá-la aos olhos. ― Diga-me isso você.

Ela nem sequer piscou, mas entendeu o que queria dizer.

― Eu também levo comigo um rastro passado. ― Confessou, voltando aacomodar-se sobre ele. Não lhe passou por cima que ficou rígido, enquanto elarelaxava ao estar em contato com seu calor corporal. ― Custa-me dormir senão me asseguro de que as cartas que Corban me escreveu não estão namesinha de noite. É estúpido, mas não posso me desprender delas. Emboraseja algo diferente. Eu me aferro aos únicos instantes de minha vida nos quaisfui feliz. Você não pode soltar o que te fez miserável.

― Fez-me miserável, mas por isso estou agora aqui, no salão de minhamansão em St. James e com a noiva de Londres sobre meus joelhos. ― Repôs,deixando-a sem argumentos ― Se não me tivessem quebrado as costas dezenasde vezes, não me teria alimentado do ódio que necessitava para ambicionaralgo melhor. Acredite ou não, estava acostumado a ser um moço conformista.Foram as injustiças que me transformaram no que sou hoje em dia, e não sepode dizer que não se empenhassem a fundo comigo: as minhas aspiraçõesultrapassam o que é fisicamente possível. Enlouquece-me pensar que hajaalgo, que exista uma só coisa neste mundo, que não possa ter... Pelo simplesfato de que já me faltou de tudo, e não poderia suportar que acontecesse denovo.

Ariadna se estirou para olhá-lo, obtendo uma vista explícita de suamandíbula proeminente e obscurecida pelos inícios da barba.

― Pensava que era desses homens que não se davam conta de que seucomportamento era extremo e seus objetivos, inalcançáveis..., e que o dia emque alguém se atrevesse a lhe assinalar isso voltar-te-ia louco, ou arremeteriacontra ele.

― Posso ser exatamente isso: um louco sem remédio. Um ambiciosoinsaciável. Um egoísta, entre outros tantos defeitos... Mas não sou néscio emabsoluto. E só os néscios são incapazes de prever as consequências de seusatos. Acredita que seu sequestro foi causa da alienação, ou uma ação movidapela estupidez? Equivoca-te. Tudo em minha vida está medido, calculado. Nãoposso prever o futuro como parece que Doyle é capaz de fazer, mas tampoucosei enganar a mim mesmo como Blaydes, e isso significa que se fizer algo éporque estou seguro de que vou conseguir. Não há uma só gota idealista emminha personalidade, duendezinho. Por isso deixei de insistir contigo. Jamaisme daria golpes contra a parede. A linha que separa a obstinação danecessidade é muito fina, mas eu nunca a cruzei. Vivo acampando no limite.

Não ocultou sua surpresa, nem seu deslumbramento ante a nova faceta

que estava mostrando.― Se é um homem inteligente e precavido, por que te mostra justamente o

contrário?― Porque nem todo mundo merece a verdade, e prefiro que quem não a

mereça, fique com a ideia que formaram por si mesmos. E porque somente osparvos recalcam evidências sem nenhuma pretensão por meio. Já viram quetenho feito uma fortuna incomparável em apenas oito anos, e que nunca falhaquando recomendo umas ações ou outras... Se não chegaram à conclusão deque sou preparado e ardiloso apoiando-se na realidade, para que tentarraciocinar? Para me dar glória? Não acredito.

― Casou-te comigo justamente para isso; para te dar glória. Não é assim?Sebastian ficou em silêncio um segundo.― Ficam muitas coisas para demonstrar a mim mesmo, e esse ódio que

sinto pelo mundo no qual me movo segue me aguilhoando de vez em quando.Não me importa o amor. O amor só me trouxe ruína, dor, decepção... Só vi meupai uma vez, e nem sequer teve a decência de me olhar na cara. A minha mãe amataram, e como resultado disso tive de passar meses ameaçando de morte aguris menores que eu para não morrer de fome. Querer a alguém, e o que épior, ter a esperança de querer a alguém, nunca me serviu para nada. Assimsoube que se me casasse, seria com a mulher perfeita, quer eu gostasse ounão. É o que fazem os nobres... Desposar uma moça de boas maneiras, bonitae complacente.

- Ouvi falar que faz umas décadas uma jovem chegou a receber dezpropostas de matrimônio em dois meses apenas. Obcequei-me com a citada:Lianna Ainsworth, era com se chamava. Aparecia em minha mente como umabeldade sem comparação, e quando vi seu retrato... Não direi que medececionou, porque era bonita, mas tive claro que grande parte de suasvirtudes residiam em seu encanto pessoal. Não havia mais que ver o brilho deseus olhos... Dizem que o homem que a retratou estava perdidamenteapaixonado por ela, e talvez por esse motivo teria um ar tão espetacular, mas ocaso é que quis algo assim para mim. Uma mulher com vida no olhar, que eviteque apaguem os cinzas de seus próximos com inumeráveis normas e regras deprotocolo, e com a qual demonstra que o jogo também funciona à inversa. Essacorja de inúteis pode foder com todas as putas que lhes tenham vontade, não éassim? Inclusive podem matá-las sem que haja represálias... Pois eu, o filho deuma, posso me casar com a amada de um duque e posso jogá-lo de minha casa

com um maldito murro.― Eles continuam a ser mais poderosos que você, Sebastian. ― Sussurrou,

pondo-lhe a mão no peito. Sentiu seu coração pulsando desmedido sob apalma. ― Não deveria brincar com fogo...

― O que poderiam tirar de mim? O que poderiam me fazer, pequenasereia? ― inquiriu, esboçando um sorriso entre zombador e amargo. Pegoupelos quadris e a elevou para sentá-la aberta de pernas sobre seu regaço.Ariadna não soube se havia mais fogo em seus olhos, em sua carne ou naconexão de seus centros. ― Arrancaram-me o coração, tiraram-me a minhafamília, eles me levaram a morrer como um cão a cada golpe... E sobrevivi.Tudo que me deixaram foram coragem e o rancor audaz que se necessita parafazer que o mundo gire. Possivelmente doesse ter o seu amor tirado de mim... ―sugeriu. Seus olhos cintilaram, tão perigosos como um gatilho; mas foi muitomais arriscada sua prudência ao ser exposta ao delírio com uma caríciaatrevida sob a saia. Ariadna tremeu duplamente quando Sebastian apoiou aboca em seu queixo e acrescentou: ― Mas isso é algo que fica somente entrevocê e eu, não acha? E tampouco poderiam me tirar o que não me pertence.Como vê... ― continuou em voz baixa. Inclinou a cabeça para beijar esse pontoque adorava, que unia a mandíbula e a orelha. ― Aprendi a deixar de me elevarcomo o dono de sua vida e seu corpo. Agora só aspiro a que me entregue issopor vontade.

Ariadna pensou que poderia fazê-lo, e mais quando a roçava dessamaneira, pondo-a indiretamente a seus pés. Quem quer que fosse que ensinoutantos usos à boca de Sebastian Talbot, teria de comparecer quando o coraçãolhe escapasse do peito durante um desses interlúdios. Aí ia ela outra vez,preparada para adorar cada beijo que decidisse lhe dar de presente. Porqueisso eram... presentes. Presentes doces por parte de um homem amargo e duro.Quanto gostou de pensar que era a única a quem os concedia, por muitoinjusto e egoísta que fosse dito pensamento.

Suspirou quando ele chegou a infiltrar-se entre os tecidos que teria desuperar para tocá-la em sua sensibilidade. Seus longos e ásperos dedos aroçaram naquele lugar proibido, que ardia e também chorava desejando o queparecia a ponto de lhe oferecer. Compreendeu que andava querendo-o ali maistempo do que acreditava, e se impulsionou para frente, apoiando as mãos emseus ombros para oferecer-se definitivamente.

Conectou com seus olhos ao afastar o olhar do peito.

― Tem cicatrizes aqui também. ― Ofegou tremente.― E nas costas. E nos braços. E nas pernas... E precisamente onde está

tocando, só que muito abaixo, onde não as pode ver. ― Respondeu, igualmenteafetado. Seus olhos estavam nublados de desejo, e sua mão seguia afundandoem sua intimidade, separando e acariciando uma zona tensa que ela nãopensou que tinha. ― Mas quando te toco sou incapaz de sentir. É a vacina doamor... Erradica tudo o que pode me fazer dano, só para me ferir de outramaneira. Embora a tortura que exerce contra mim é mil vezes mais satisfatória,mais doce e deliciosa. ― Agarrou sua mão e a guiou até o início da calça, logoabaixo do umbigo, onde uma protuberância se advertia debaixo do tecido.Ariadna inspirou bruscamente ao senti-lo quente e duro. ― Queria estar dentrode ti... Sabe. Depois o necessitei... E também sabe. Agora estou no malditodelírio, cruzando os infernos cada vez que está perto e não posso te sentir.Desejo-te de um modo que me afoga, porque te ter significaria que me desejariado mesmo modo, e nunca quis tanto algo, ou a alguém, como a ti. Jamais.

Ariadna apoiou a testa na sua, enjoada e à beira da asfixia por tudo o quepronunciava como se fossem suas últimas palavras. Manteve o equilíbrioenvolvendo-o com os braços, mas perdeu a estabilidade mental quando ele apenetrou com um só dedo. Sentiu que sua carne se fechava em torno dointruso, acolhendo-o com o mesmo entusiasmo que ele manifestava ao lamberseu pescoço. Ariadna inclinou a cabeça para lhe facilitar a tarefa, com o cabeloda nuca arrepiado, o corpo prisioneiro pelas convulsões que Sebastianprovocava ao beijá-la.

― Cheira tão bem. ― Grunhiu, enterrando o nariz na linha do ombro.Mordeu-a ali, ao tempo que rodava o dedo em seu interior. Ariadna suspirousobre a boca masculina, que apanhou o ar lhe dando um beijo com sabor atragédia. ― Minha preciosa criatura celestial...

― Não minta. ― ouviu-se dizer. Fechou os olhos e deixou cair a cabeçapara trás, mordendo os lábios para conter as contrações que sua virilhamandava ao resto do corpo. ― Não... Não te pareço bonita.

Ele abafou uma gargalhada pressionando a boca entreaberta contra seupeito.

― Diabos que não. ― Resmungou, continuando com a tortura maisencantadora que tinha tido o prazer de sofrer. ― Já não gosto das mulheres porsua culpa. Para mim é irresistível e fascinante, proprietária da magia que nãosei se relaciono com as feiticeiras ou as fadas. Pelo que estou seguro... ―

prosseguiu, dando uma pequena mordida à carne sensível do pescoço. ― é quesou vítima de todos seus truques, seja qual seja a finalidade.

Ariadna tentou dominar-se a si mesma elevando os quadris e agarrando-opelos ombros, mas foi impossível que o autocontrole a salvasse de cair numaespiral sem fim. Todo seu corpo, desde suas pernas trementes até seu fôlegoconvulsionaram, foram possuídos por um estremecimento nascido da paixãoque a deixou sem fala e sem respiração durante alguns segundos. Ariadnaemitiu um som com a garganta que Sebastian agradeceu beijando o pontoexato onde se produziu, e para a ter completamente a seu encargo, continuoupenetrando-a com o dedo do meio até que a extenuação a fez perder oequilíbrio.

― O que foi isso? ― murmurou. Sebastian apertou os lábios, escondendoum sorriso, e roubou-lhe um beijo dos lábios que se prolongou muito mais doque estava programado. A língua deslizou na cavidade como uma serpente,injetando novamente o veneno da paixão em seu corpo, que se agitou aocontato de sua enorme mão perto do seu traseiro.

― Isso foi o começo.Um dia, não muito tempo depois, enquanto acariciava distraidamente as

diminutas aberturas do regador, Ariadna descobriu que as flores a aborreciamse Sebastian não passeava entre os suportes de vasos.

Não tinha nenhum sentido, já que as dálias estavam florescendo demaneira espetacular e se comparavam em beleza com seu marido, era estequem saía perdendo. Pensava que podia ser pelo perfume; o seu seguia sendobem mais cativante que nenhum outro aroma conhecido, mesclando suasessências preferidas. E embora não fosse de todo terrível apreciar algo mais emseu redor além da jardinagem, que era o epítome do fascinante para ela,assustou-lhe perder o interesse pelo que sempre foi o motor de sua vida.Assim, e num fútil intento por igualar os efeitos que tinham as esporádicasvisitas de seu marido com sua velha paixão, propôs elaborar novos perfumes.Era um mistério a quem os entregaria, e definitivamente não os ia usar em simesmo, mas um pouco de entretenimento não fazia mal.

Mas Ariadna tinha um dom, era tão fácil para si criar novas e ricasfragrâncias que isto acabou sendo, como distração, outro aborrecimento.Cansou-se antes do previsto e terminou, uns dias depois, sentada entre oscanteiros com uma careta desiludida. Antes passava horas ali, entre cores,gorjeios e pequenos insetos, e não se dava nem conta do correr das horas. Do

último beijo de Sebastian, em troca, parecia-lhe que os minutos se estiravamperversamente para converter-se em dias, e ao final, quando cruzava com ohomem pelo corredor ou coincidia com ele no jantar, estava convencida de quelevava meses sem vê-lo, o que por outro lado criava tanta ilusão que ficava sempalavras e não podia lhe dizer como se sentia.

Sebastian não ocultava sua emoção por coincidir com ela, mas erabastante conciso, talvez por temor de assustá-la com seu entusiasmofrequentemente inconveniente; seus meio sorrisos eram agradáveis, e vinhamavisando do pecado a qualquer momento, mas já não eram como antes.Ariadna tentava conformar-se com sua cálida distância e seus esforços porconversar sobre temas apropriados... Sem êxito. De algum modo, parte de suavida estava começando a girar em torno dele; os momentos em que coincidiam,os momentos em que pensava no que estaria fazendo, os momentos em querecordava com a respiração contida todas essas palavras bonitas que lhe dizia.Ou possivelmente não entrassem no conceito de bonitas, pois não eramlisonjas propriamente ditas e procuravam um rubor muito mais profundo aoserem entoadas, mas de algum modo se sentia adulada. E nunca a tinham feitosentir assim.

Não entendia o que se estava passando.Às vezes, ela se encontrava enrolada no jardim, preocupada em não caber

na caixa invisível que a envolvia pensando que Sebastian poderia nunca maisbeijá-la. Outras, sentada na beira da cama e olhando a porta com amargura,custava-lhe conter as lágrimas de impotência. Levantou-se muitas vezes e quisempurrar a porta para ir buscá-lo, para lhe pedir que a abraçasse como se suavida dependesse disso... porque a sua estava a ponto de depender. Ou só parasuplicar que estivesse a seu lado, não importava como ou o que fizesse.Maravilhava-lhe algo que saísse de suas mãos. Quando se reunia com seusamigos, ficava absorta vendo-o baralhar as cartas, ou fazer grandesdramalhões, ou inclusive derramar o conteúdo do copo por um maumovimento. Ouvia-o rir do piso de cima, a gargalhada limpa, e lhe faziamcócegas os lábios; não sabia se porque queria rir com ele ou porque aquilo eraindiretamente um beijo em seu coração.

Uma das noites fez muito frio e teve que acender a lareira. O pedidosurpreendeu a donzela, pois estavam a ponto de entrar no verão, mas Ariadnaprecisava estar perto do fogo para sentir o corpo. Era a única maneira, além derecordando as mãos de Sebastian. «Isso foi o começo», havia dito. Mas não

continuou. E isso lhe doía tanto que nada podia tranquilizá-la. Nem sequerreler as cartas de seu punho e letra. Essa dor que plasmou era muito diferente,longínquo e estúpida. Um sem sentido. Tanto foi assim, que numarrebatamento de fúria necessitada, arrojou grande parte da coleção ao fogo.Viu-as arder com uma careta, e pela primeira vez em sua vida sentiu que tinhafeito algo por ela mesma. Iniciou em seguida a missão de seguir sendoproprietária do poder e se levantou, abraçada aos ombros. Duvidou mais deuma vez ao dirigir-se à porta e abri-la. Duvidou mais ainda ao deslizar pelocorredor. E quando esteve diante da habitação de Sebastian, a garganta secoue os pés esfriaram. Não pôde entrar.

Tampouco na noite seguinte. Nem a que seguiu a seguir. Mas a quartanoite voltou a fazer frio, e ela se atreveu, novamente, a fazer esse percurso quese sabia de cor, mas que nunca a levava a seu destino, e bateu.

― Graham, faça o favor de ir dormir. ― Espetou Sebastian carrancudo. ―Disse-lhe que me encontro perfeitamente. Não necessito sua ajuda.

O tom agressivo de sua voz a fez retroceder. Sabia que não estava sedirigindo a ela, mas inexplicavelmente lhe doeu. Estava doente, oupossivelmente tinha alguma moléstia, e Ariadna nem sequer sabia. Sentiu-seculpada, injusta e covarde, e voltou a esconder o queixo no decote. Mas algunsminutos depois a porta se abriu, e ele saiu quase nu, com somente um lençol ocobrindo. O agarrava com uma mão, e com os dedos da outra mão esfregava osolhos. Pela maneira que teve de abri-los, pareceu que lhe acabassem decomunicar que tinha estalado uma guerra.

― Não sei por que tinha o pressentimento de que seria você. O queacontece, pequena sereia? ― Esboçou um sorriso sonolento, mas ainda comvontades de jogar. Ariadna agarrou a bata com força. ― Se perdeu? Olhe que dopalácio das maravilhas à cova do lobo há um longo caminho.

Ariadna mordeu o lábio e não disse nada. Ficou em branco,completamente. Às vezes acontecia-lhe isso; queria falar e não podia, queriaabraçar e os braços não a deixavam. E ele entendeu, porque saiu em sua buscadando um passo à frente, avançando um pouco mais entre as trevas que nemsequer ela sabia dirigir.

― Me diga. ― Disse com voz paciente ― Tem fome? Sede? Frio? Calor?Sonho? Sonhos, em plural? Posso cumprir algum? ― brincou ― O que tem?Está doente?

Ariadna encontrou o mais parecido à eloquência entre tanta névoa, e o

olhou com os olhos cheios de lágrimas. O sorriso dele se esfumou.― Quero... te pedir... algo que não sei o que é. Não entendo... ― Fez

beicinho e apertou o punho contra o esterno. Não chegou a derramar umalágrima, mas lhe ardiam as pálpebras ― Não entendo o que passa comigo ...Sinto-o muito. ― Ofegou. ― Às vezes não... não sei como dizer o que... o quepenso porque... minha mente fica... Não posso me expressar.

Cravou os olhos no chão e se comprimiu com os braços, apertando-lhecontra o peito. Ouviu o rangido desigual de um par de ossos, e sentiu em todoo corpo o roce de uns dedos em seu queixo. Sebastian a olhou de baixo,agachado diante dela com uma expressão de serenidade que quase a impediude reconhecê-lo.

― Quer que te leve a sua habitação?Ariadna negou, primeiro dúbia. Seguiu negando por inércia, e ao final

negou de maneira cortante.― Me abrace. ― Pediu.Os olhos de Sebastian aumentaram um segundo só antes de piscar uma

vez, tão devagar que Ariadna não soube se foi em realidade um piscar ou umagradecimento a si mesmo Apesar de receber um apelo direto, ele demorou asentar e pegá-la. Ariadna esvaziou toda a tensão acumulada apenas entrandoem contato com sua pele, mais quente do que qualquer fogo. Perguntou-se comtristeza se ela não seria muito fria para ele, e ao descobrir que a resposta seriacertamente afirmativa, encolheu-se sobre si mesma. Quando Sebastian adeixou sobre a cama, sua cama, cama que cheirava a ele, estava tão tensa quepensou que se romperia. Esteve a ponto de concluir que foi uma má ideia, masSebastian se estendeu frente a ela, a uma distância prudencial, e com uma sócarícia do ombro ao cotovelo fez com que se derretesse por completo.

Ariadna quase rompeu a chorar pelo espaço entre os dois. Não sabia se opunha por respeitá-la ou porque não a queria para nada, e não lhe ocorria amaneira de perguntá-lo. Arriscando-se a que a rechaçasse, a descobrir queestava certo e não lhe interessava mais, aproximou-se em silêncio até que tevea testa apoiada sobre seu coração. Ouviu-o respirar abruptamente, e tampoucosoube como interpretá-lo.

― Já não me quer? ― perguntou Ariadna num sussurro. Encolheu osbraços entre os dois.

Sebastian deixou um segundo no ar; aquele que veio a seguir o encheucom um tremor no peito que significava... Risada. Estava rindo, mas não sedivertia. Podia-o sentir na maneira em que sua pele se afundava, e o ar queexalava lhe chegava entrecortado.

― Santo Deus, criatura. O que quer de mim? ― suspirou no mesmo tom.Ariadna não entendeu que fosse uma pergunta retórica.

― Nunca vem para ver-me. ― se defendeu, sem saber a que se referia ― Jánunca te vejo.

Ao toque de seus dedos na bochecha, Ariadna fechou os olhos. Teriaadormecido se não tivesse o coração aberto, esperando uma resposta.

― Estava preocupado se por acaso te assustei da última vez. ― Confessouem voz baixa ― Tem que entender que por muito que queira, não vou arriscar-me a fazer algo que te incomode. Se te perdesse... ― Deixou a frase no ar ― Nãosei. Não sei o que aconteceria. Não posso imaginá-lo.

― Se nunca me vê é como se me tivesse perdido.― Claro que não. ― Repôs. Por fim a rodeou com o braço, firme, poderoso e

seguro do que fazia... tal e como era ele. ― Seu aroma está por toda a casa.Suas flores estão em meu jardim. E agora... Seu corpo esteve em minha cama.Não pode fazer uma ligeira ideia do que esses detalhes trocaram minha vida.

- Mas se quiser que vá ver-te, o farei. Só estou esperando o momento emque me peça isso. Em que me diga o que te faz feliz. Posso dilapidar minhafortuna improvisando presentes eternamente, mas parece que não nossentiríamos satisfeitos nenhum dos dois até que não acertasse. Assim tenta medizer o que é. E se não conseguir... Só vem, e te abraçarei.

Ariadna se encolheu um pouco mais.― Eu gostei das flores e a nota que escreveu. Tem uma letra muito bonita.Teve o pressentimento que sorria na escuridão.― Não a escrevi. ― Silêncio ― Não sei escrever.― Como?― Sei fazer símbolos e conheço os números, e as operações as faço

mentalmente, mas as letras e eu nos levamos mal. Sei rabiscar meu nome ecopiar documentos, embora logo parecem obra de um pirralho com muitotempo livre. E tampouco leio bem. Tomo horas para decifrar um documento. Anota quem escreveu foi Doyle, como todas as notas seladas em meu nomedesde que o conheço. Embora seja eu que as dite. Por isso odeio a literatura. ―esclareceu. Acompanhou a confissão com uma carícia pelas costas. ― A últimavez que tentei ler um livro não pude chegar nem à terceira página. Sou muitoimpaciente, frustro-me com facilidade e os bons livros estão escritos emlinguagem culta. Logo mal-entendo a metade das palavras.

― E como é que pode permitir isso sendo um homem tão importante? Se

alguém quiser te enganar...― Doyle repassa todos os meus contratos e faturas, e o meu geralmente é

sobre números, não versos. Ninguém me enganou até agora. ― Estreitou-a umpouco mais. Ariadna sentiu borbulhar seu peito. ― É por isso que não teescrevo um poema. Se não, dá por feito que te teria enterrado em trovas.

Ariadna ficou em silêncio, tão cômoda se sentia que ia ficandoadormecida.

― Você não gostaria de aprender a ler bem?― Acredito que é muito tarde para mim. E também é tarde para ti; já

quase vai amanhecer. ― Acrescentou. Ele colocou os lábios sobre o topo da suacabeça, que acariciou balançando-a. ― Dorme.

Ariadna pensou que seria boa ideia arrumar-se por uma vez. Tinhapassado os últimos anos vestindo luto pelas sucessivas mortes de seu tio, mãee avó, e quando chegou seu momento de brilhar, estava tão acostumada a nãose preocupar com o que tinha que não lhe prestava atenção aos objetos. Teriaseguido sendo assim eternamente se não tivesse tido ao alcance de sua mãoum guarda-roupa que sua irmã Megara invejaria. Parecia-lhe um desperdícionão colocar as sedas que Sebastian tinha pago para ela, e menos ainda quandosabia que estava animado para vê-las. Assim, achou oportuno usar umexemplo de vestido de cauda vermelho brilhante com pequenos brocadoschapeados, e perguntar a Graham como chegar ao estaleiro.

Não estava totalmente satisfeita com a resposta de Sebastian, assimprocurou outras pessoas diferentes perguntando aos empregados. Estes lhedisseram que nos últimos dias tinha estado muito ocupado em seu projeto, umque lhe emocionava especialmente e lhe tinha distraído por longos períodos detempo no porto. Era ali aonde devia dirigir-se se queria demonstrar que lheimportava tomar a iniciativa.

Até o momento não o tinha exposto, em parte porque não se deu conta deque sentia curiosidade pelo homem com o qual vivia fazia pouco tempo, masreconhecia a curiosidade por sua dedicação aos navios. Ele não se parecia nemcom lorde Ashton ou lorde Standish, a quem também interessava os negócios.Estes dois dedicavam determinadas horas do dia a discutir a respeito,enquanto, que pelo que tinha podido apreciar, Sebastian passaria a jornadainteira falando do mesmo. Não de dinheiro, pois não lhe custava ganhá-lo. ― outirar de seus amigos, mas sim de suas propriedades temporárias como o eramos navios.

Sentiu-se intimidada ao cruzar a entrada do estaleiro. Era um lugarimenso, embora não parecesse desproporcional porque albergava um casco denavio semiconstruído em seu interior. Ariadna pensou que se asfixiariaenquanto cruzava uma das passarelas que dividiam o espaço. Respirava-sevida ali dentro, e não vidas artificiais, pó de arroz e pompons como num salãode baile. Cheirava a suor e se notava o esforço, o companheirismo e osconstantes ânimos que se davam os trabalhadores. Tapinhas nas costas,gargalhadas potentes, assobios divertidos... Alguns conversavam enquantopuxavam das cordas ou envernizavam as comportas, e outros aplaudiam assimque a polia fazia seu trabalho graças à intervenção do professor, um homemcom boina que dirigia a maquinaria pesada.

Foi interessante vê-los trabalhar, e muito bonito enquanto durou... Não ofez por muito tempo. Assim que os empregados aos pés do navio se precaveramde seu passeio, deixaram suas ferramentas no chão e pararam a contemplá-la.A primeira cotovelada iniciou uma reação em cadeia que chegou até o tipo quese pendurava do último degrau da escada, e embora não pudessem fazersilêncio quando trabalhavam no outro extremo, sim que houve uma repentinamudança de atmosfera. Ariadna logo notou que isto acontecia, e seguiuvarrendo o lugar com o olhar, procurando o único homem que entesourava emsua memória.

Custou-lhe reconhecê-lo à primeira vista; necessitou um par de olhadasmais, em parte porque ele não se deu conta de que estava ali e seguia ajudandoa puxar uma das cordas. Sebastian e um grupo de homens tão ou maisrobustos se esmeravam em dirigir uma placa de grande tamanho à construção,da que mais tarde se faria cargo o soldador. Na realidade, Ariadna não seinteressou pelo casco de navio nem pelo trabalho em equipe. Antes ficouabsorta com o aspeto de Sebastian, que tinha arregaçado e aberto a camisapara evitar o calor. Não teve nenhum êxito, porque inclusive na distânciaAriadna apreciou um fio de suor correndo por sua têmpora, igual a seu sorrisode vitória. Quão último viu antes de que ele desse a volta e a olhasse foi comocelebrava o avanço dando uns tapinhas nas costas de um par de moços.

Depois o navio, as pessoas e qualquer detalhe aparentemente relevantedesapareceram. Sebastian a descobriu, e pela fome com o que a olhou,temperada com um pouco de receio, não soube se se arrependia por suaescolha de vestuário ou aplaudia.

― O que faz aqui? ― perguntou, aproximando-se dela apressadamente. ―

Quer provocar um tumulto?Ariadna piscou sem entender.― Este não é um lugar para ti. ― Insistiu. Foi agarrar sua mão, mas ao

final pensou melhor. ― Vem, vamos.― Porquê?― Porque é um lugar perigoso. Poderia cair algo em cima ... ― A olhou de

esguelha ― Ou simplesmente poderia te manchar. Um estaleiro não é o melhorlugar para uma mulher, mas para ti em concreto é muito sujo e deplorável.

― Porquê? ― repetiu. Deixou de caminhar, ficando no meio da passarela.Sebastian a olhou impaciente. ― Se te incomodei, sinto muito...

― Não seja ridícula. Não poderia me incomodar nem que te esforçasse. Étal como hei dito. Obviamente não me envergonho de meu trabalho e estouorgulhoso de meus homens, mas é o lugar menos encantador de Londres e setropeça poderia abrir o pescoço. Quer abrir o pescoço?

Ariadna negou, guiada por seu tom de voz, quando na realidade nãoestava prestando muita atenção.

― E por que você pode estar orgulhoso e eu não? ― teimou. Aproximou-see tomou a mão que ele comprimia e estirava ansiosamente. Embora estivessemanchado, não fez nenhuma careta nem demonstrou a enojar. Entrelaçou osdedos com os seus, e levantou o queixo para olhá-lo com um minúsculosorriso. ― Seguro que me sujo mais que você estando todo o dia na terra.

Sebastian ficou olhando com milhares de emoções sulcando esses maresturbulentos que tinha por olhos. Ariadna não esperava nenhuma resposta;gostou do apertão que deu à sua mão, e mais ainda o sorriso que torceu paracima para desaparecer em seguida, como uma estrela fugaz. Mas o que maisgostou, o que a apaixonou e fez que seu coração saltasse do peito, foi que ele seaproximasse muito devagar e agachasse a cabeça, lhe acariciando a testa coma ponta do nariz. A Ariadna, ele lhe pareceu a criatura mais incrível eabsurdamente formosa entre milhões de espécies, estando assim manchado,suarento, cansado e.… humano. Sobre tudo humano, à mercê dos mesmossentimentos que a sacudiam.

― Bom raciocínio. Daria um beijo a este pobre, desgraçado e imundoOliver Twist? ― entoou dramaticamente.

― Você não é nada pobre, senhor Talbot. ― Respondeu com sua lógicaesmagadora.

― Que seja somente imundo, então.

― Já não é desgraçado? O que tem feito que deixe de ser o de um segundoa outro?

― A eventualidade de te beijar.Ariadna tentou não rir, embora não soube por que se reprimia. Ficou nas

pontas dos pés e, tal como tinha visto fazer sua irmã Penny centenas de vezes,ficou às portas de suas ironias para lhe sorrir um pouco mais.

― Tampouco é um imundo. Para mim é o homem mais bonito do mundo.Sebastian levantou as sobrancelhas e se retirou para olhá-la com marcada

incredulidade. Soltou uma gargalhada que soou exatamente a isso, a «oxaláfosse verdade, mas acredito», e como se não pudesse privar o mundo do que lhefez sorrir seriamente, levantou seu braço e puxou ela com cuidado para pô-lade cara aos trabalhadores.

― Ouçam todos! ― gritou. Parte da produção diminuiu o ritmo paraescutá-lo. ― Ouça bem, porque esta mulher daqui... ― fê-la girar sobre simesmo muito devagar, ― esta preciosa criatura... acaba de dizer que sou ohomem mais bonito do mundo! Veja como passa por essa, Henry Payton!

O tal senhor Payton, um homem bastante atraente, reproduziu um gestoobsceno com as mãos que fez interromper em gargalhadas Sebastian de novo.Voltou-se para ela, com os olhos brilhantes, e Ariadna só pôde pensar em quãoditosa se sentiria se pudesse pôr essa expressão em seu rosto todos os dias, aomenos uma vez.

― O que fazemos contigo agora? ― perguntou sem perder o tom alegre.― Poderia me mostrar do que vai tudo isto. ― Olhou ao redor, sem ocultar

sua grande impressão. ― Porquê navios?Quando voltou a olhá-lo, Sebastian esgrimia um de seus sorrisos de

trapaceiro e arrogante, mas muitas outras virtudes escapavam de seus lábiosao fazê-lo. Honestidade, doçura, carinho.

― Para fugir para muito longe. ― Estendeu a mão com a palma apontandoao teto. ― Fugiria comigo?

Ariadna aceitou o oferecimento timidamente.― Eu não gosto dos navios nem da água, mas por agora deixarei que me

ensine tudo o que é teu. ― Acedeu com humildade.― OH, querida, aqui não há nada só meu. ― Disse, puxando ela em sua

direção. Ariadna chocou-se contra seu peito brandamente. ― Em todo o caso,nosso.

― Temo que não poderei apreciá-lo. Nunca subiria em um navio.

― Nem sequer a um navio em construção?Ariadna deu uma olhada inquieta ao casco do navio. Não sabia muito de

arquitetura naval, mas parecia que ficava pouco para levar âncoras e tornar-seao mar.

― O que foi isso de... me abrir o pescoço?― Seu pescoço não corre perigo enquanto fique a meu lado. ― Seu sorriso

adquiriu um tom secreto ao admirar sua garganta lentamente. ― Minto. Simque o faz. Mas sua vida estaria a salvo. Vem comigo. ― Insistiu. Deu-lhe outroapertão na mão. Seus olhos brilharam como os de um menino travesso,desejoso de mostrar ao mundo o que sua mente tinha dado lugar. Ariadna nãopôde resistir, tendo a plena certeza de que teria feito algo por seu contagiosoentusiasmo.

Sebastian confiou em seu equilíbrio ao agarrá-la nos braços e subir aimprovisada escada até, de um salto, plantar-se entre as tábuas de proa.Deixou-a no chão com a mesma delicadeza com a que a elevou, e girou sobreseus calcanhares para admirar sua própria obra. Ariadna não se interessoutanto pelo navio como por sua reação ao estar ali, ao acariciar o corrimão doconvés com dedos cheios de ternura. Notando um sorriso dócil em seus lábios,novamente infantil; a que um moço com ânsias de crescer só teria deixadodescoberto na escuridão. Depois de comprovar que tudo estava em seu lugar,aproximou-se dela com o corpo a transbordar de loucura e emoção, e tal foi ainfluência de ambas em seus músculos que quase tremeu ao ajoelhar-se, pôruma mão no chão e olhá-la aos olhos.

― Este é o único navio que tenho feito para mim. ― Deslizou os dedos pelasuperfície, mantendo um silêncio tão cerimonioso que Ariadna soube que tinhamais respeito ao casco do navio que a si mesmo. ― Se chama Cynthia, comominha mãe. Lamento não ter posto o teu, mas chegou quando a produçãoquase acabava e não me ocorreria batizar como Ariadna um navio que pisariamcaipiras incapazes de te merecer.

― E merecem a sua mãe?― Não, mas sempre sentiu paixão pelos navios. De menino lhe prometi que

uma vez iríamos a um desses cruzeiros tão famosos por causa da viagem pelasilhas Feroe.

Ariadna se aproximou dele e se agachou, sentando-se de joelhos frente aele.

― Por isso dedicou-se a isto? Por sua mãe?

― E porque queria ser rico. E porque quem domina o mar, domina a terra.― Acrescentou ― O comércio é extremamente necessário; se cortassem ascomunicações entre reinos, estes sofreriam qualquer escassez que possaimaginar. Mantimentos, tecidos, paliativos... inclusive droga. ― Concluiu ―Tivemos de esmagar os chineses para continuar trazendo ópio para Inglaterra.Me teria feito de ouro mais rápido se por essa época tivesse começado meunegócio; foram muitos os navios em batalha contra China. De todos os modosnunca sobram os navios de guerra. É o que estive construindo até agora. Esteirá ver o mundo, e eu irei com ele. ― declarou, dando uma olhada ao teto. Seusolhos clarearam pela filtração solar.

Ariadna não se mostrou contrária à ideia até sabendo que nunca poderiaacompanhá-lo. O pânico à água acabaria se impondo se pusesse um pé numnavio com destino aos limites do globo. Mas não lhe arrebataria a emoção defazer planos, menos quando suas bochechas ruborizavam pela excitação quelhe supunha.

― Mariette virá comigo. ― Continuou ― E Graham, e Elsie, e Chastity, eArnold... sinto que conhecemos muito bem Londres, e não nos tratou com abenevolência que necessitávamos para nos conformar com suas luzes esombras. Muitos deles querem certificar-se de que o mundo não é sempreescuro e desagradável, e que poderiam não ser tratados como cães em outroscantos do planeta. Mariette é poderosa, e Elsie conseguiu casar-se apesar deter tido uma vida muito dura... Mas até agora, nunca houve piedade para elas,nem para o resto. Sinto-me no dever de demonstrar que há lugares formosos,gente bondosa e linhas no horizonte onde não chegam as lembranças.

― Você incluído? ― perguntou docemente ― Quer demonstrar isso a timesmo?

Sebastian apartou os olhos do teto e a olhou como se lhe divertisse suacuriosidade. Tomou sua mão enluvada e lhe acariciou o dorso com o polegarantes de levar-lhe aos lábios.

― Para o pérfido que fui, a vida está me tratando com grande generosidadeultimamente. ― Disse com um sorriso humilde.

- Fui um monstro durante muito tempo. Entendo que existem forçassuperiores que se encarregam de devolver o mal causado, e eu sozinho recolhio semeado. Tudo o que sofreram meninos menores que eu por minha culpa,todos esses aos que deixei sem comer pelo egoísmo de me antepor a suasnecessidades, devolveram-me isso com patadas e golpes de um amo tão tirano

como eu fui. Embora me tenha salvado ― apontou ― Lembrança ter querido sertão cruel como o desconhecido que matou a minha mãe por prazer, ou como odono do estaleiro no qual trabalhei; esse que encontrava extremamentedivertido nos fazer marcar com seus ferros. Mas pensei em que maneiraencontraria Deus, ou quem quer que haja ali acima, de me arruinar emcontraposição por meus pecados, e temi. Decidi economizar cada centavo, mevoluntariar aos trabalhos mais arriscados e mais bem pagos, aprender a artedo engano e.… pode que talvez passasse um tempo atracando a senhores debem no Camden Town. ― Acrescentou com uma careta descarnada ― Entreumas e outras me surpreendi com suficiente dinheiro para financiar minhaprimeira ameaça de navio. Com o passar dos anos foram dois, e três, e quatro,e assim sucessivamente, sulcando salões com jaquetas remendadas paraencontrar quem me confiasse seu dinheiro para obras maiores, até chegar ondeestou.

- Embora não tenha esquecido nada. ― Acrescentou. Seus olhosadquiriram um brilho profundo e problemático. ― Não quis me converter nessedesgraçado e assassino porque sabia que desse modo acabaria como eleacabará quando o encontrar. Este navio, esta fonte de riqueza, os lençóis que oenvolvem quando dorme... Tudo tem como motor produtor o corpo frio deminha mãe. É uma desculpa para encontrar esse homem. Porque só poderiaencontrá-lo me infiltrando em seu mundo.

― Sei que não é o melhor que puderam te oferecer... Um cínico de coraçãovingativo e raiva infinita. Mas pelo menos posso dizer que nunca teabandonaria.

Ariadna olhou os joelhos. Não sabia se terminava por gostar da ideia devê-lo partir à beira do porto, mas nunca lhe ocorreria impedi-lo.

― Vem comigo. ― levantou-se com esse sorriso juvenil lhe fazendo parecermais jovem. ― Te ensinarei algo...

15

Donzela, por que você está sofrendo por causa do trapaceiro ateniense?Desista de sua memória. Você tem Dioniso como seu amante, um marido eternoem vez de outro que irá desaparecer.

As Dionisíacas, NONO DE PANÓPOLIS

Ariadna levava toda a manhã pensando no prazer que lhe produziucoincidir com Sebastian no corredor alguns minutos antes que partisse.

Certo era que tinha uma grande família, três irmãs que a adoravam enobres importantes que a protegeriam de qualquer ameaça. Queria-os, à suamaneira, e o expressava... também à sua maneira. Não sentia a imperiosanecessidade de abraçá-los, e embora sem dúvida agradecia os sorrisos que lhededicavam, não lhe supunham nenhuma impressão abismal. Em resumo,Ariadna não sentia que existisse uma conexão importante entre seus próximose ela. Nem sequer pensou que a cumplicidade fora real até que Sebastianpassou a seu lado justo quando descia a tomar o café da manhã, e com só umolhar e um ligeiro sorriso, semeou uma semente de esperança que a manteria oresto do dia.

Podia não compreender tudo o que acontecia a seu corpo ao estar elepresente, mas se fazia cada vez mais óbvio que não remeteria o sofrimentoluxurioso com o que a tinha enfeitiçado. Esse homem, com suas grosserias esua crueldade, com suas manias paranoicas e suas feridas, sobre tudoinvisíveis, tinha um lugar extremamente importante em sua vida. Não serviriade nada negá-lo, e embora o tentasse, suas ações passadas desentupiriam averdade. Desejava-o, e o desejava tanto que se enjoava de pensar no momentoem que voltaria para casa. Pensava nisso como uma aventura. O que lhe diriadessa vez? Estava segura de que tinha gasto todos os galanteios e insinuaçõesexistentes... Foi, antes que ele se reinventasse para fazê-la tremer. Sebastian

não lhe dava de presente poemas, não sabia dançar direito e suas adulaçõesdeixavam muito que desejar, mas quando lhe falava com essa apaixonadafirmeza, admitindo que tinha poder sobre ela, sentia o peso da realidade sobreseus ombros. Não havia nada mais certo de que isso. E por ser tão certo,imaginava que não a abandonaria.

― Senhora Talbot.Ariadna se voltou para atender Graham, que apareceu com uma pequena

bandeja na mão direita. Deteve-se diante dela e destampou o conteúdo, lheoferecendo o interior com um elegante floreio. Aquele gesto captou a atenção dajovem, que embora não era curiosa, respondeu a um impulso perguntando:

― Senhor Graham... ― começou. Estendeu a mão e tomou a nota que alirepousava, atendendo, em seu lugar, ao mordomo. ― De onde você é?

― De um dos bairros periféricos, minha senhora. Camden Town.Ariadna assentiu.― É certo que todos os membros do serviço são de origem humilde? ― O

mordomo assentiu sem vergonha. ― Nunca o teria notado. Acredito que aelegância não depende tanto da educação como do que corre pelas veias de um,mas o ambiente certamente influencia..., e você, senhor Graham, é um doshomens mais distintos que conheço.

Apesar de não o ter pronunciado com especial entonação, a não ser comsua acostumada neutralidade, o criado se ruborizou de regozijo.

― Nunca me vi desse modo, minha senhora, mas se essa é sua opinião,começarei a ter presente. Se lhe interessasse saber de onde vem cada um denós, não duvide em perguntar. Nesta casa ninguém se envergonha de seuberço, nem do que teve que fazer para sobreviver. A maioria são do bairro Hugonote, do velho Covent Garden e do Southwack.

― Foram amigos de infância do senhor Talbot?― O senhor Talbot não teve amigos durante sua infância, minha senhora.

Até os dez anos viveu de bordel em bordel e dormindo em cofres de marinheiroslá nas docas; sua mãe tinha uma vida nômade, mas pelo menos se encarregoudele e o cuidou a sua maneira. Depois de sua morte... ― torceu a boca ―sobreviveu a base de brigas de bairro. Não foi até que madame D’Orleans oacolheu que começou a relacionar-se, em parte porque, minha senhora,resgatou vários meninos além do senhor. Entre eles esta Elsie, a ajudante decozinha, as donzelas Chastity e Laureie, e o ajudante de câmara, Arnold. Todosse conheceram ali.

― E como conheceu você?― OH... ― Pigarreou ― Eu sou um empregado recente. O senhor Talbot

tinha alguns negócios no Camden Town. Conforme entendi, queria estudar oscanais para ampliar a fila de mercado de seus navios, e investir também nasbarcaças do Regent’s Canal. Eu estava ali trabalhando para um homem. Osenhor Talbot não gostou do trato que me dava.

― Maltratava-lhe?Graham desviou os olhos um segundo.― Eu não gostaria de difamar o bom nome de meu antigo patrão, mas é

verdade que o senhor Talbot sempre me tratou com maior dignidade. Até então,eu era estivador. Não aspirava a nada mais. Lembro que o senhor se sentou emuma das caixas e esteve me observando trabalhar durante horas, até que selevantou com decisão e se aproximou para me dizer que seria seu mordomo.Conforme percebeu, era ágil, tinha porte de homem da nobreza e aprendiarápido. Estive três meses sendo adestrado como tal, para caminhar, pronunciare servir como era esperado, e aqui estou. ― Fez uma pausa ― Com suapermissão, e espero que me perdoe pelo atrevimento... direi que o senhorTalbot é um homem bom e generoso. Nunca compreendi essa fama que lhedeu.

Ariadna assentiu, lhe dando involuntariamente a razão. Ela simcompreendia a origem dos falatórios: pouco tinha que ver com os motivos que opróprio Sebastian assinalava, a não ser com a inveja, o desejo de superioridadeque às vezes nublava a moral do indivíduo. Só havia duas maneiras de sesobressair. Uma era por si mesmo, pelas boas ações, e outra, enterrando aosque o faziam para que não houvesse desnível. Todo mundo tinha se unido paradar péssima reputação a Sebastian, além de que ele não estava interessado emdesmentir as loucuras que se diziam.

O mordomo se retirou e Ariadna ficou a sós com a mensagem na mão.Permaneceu sentada, com os olhos cravados num ponto perdido da habitação,até que recordou que tinha recebido uma missiva. Desdobrou o papel e, nadamais ver o remetente, elevou as sobrancelhas.

Tal e como me pediu, heis aqui a direção de Corban Areleous. Foi costurar ecantar. Tinha numerosos conhecidos pelos subúrbios da Inglaterra, e conformeme contaram, era um enganador; passei por quatro jovens grávidas do semental,

e é óbvio abandonadas, antes de chegar a ele... Que depois de seus anos deestelionatário decidiu sentar cabeça. Faz sete meses que desposou à filha de umempresário galés e goza da vida retirada no campo. No reverso encontraráexatamente onde, embora duvide que queira ir saudá-lo. Por isso me contaramminhas fontes sobre ele, redimiu-se como pecador e espera um filho. Não voltaráa incomodar a sua encantadora esposa.

MARIETTE

Ariadna apartou lentamente a nota. Com um movimento mecânico,deixou-a sobre a mesinha de café. Em vez de acomodar-se de novo na poltrona,ficou assim, com o braço estendido e o corpo rígido. Sua mente deixou de voarpara posar nas pontas de seus dedos, que ainda roçavam a notícia escrita. Epensou. Pensou-o um só momento... Pensou nas letras, no remetente e emCorban, e trouxe para sua memória a lembrança de seu desespero aomergulhar na água para ir buscá-lo. Toda essa soma de pensamentos seconcentrou em suas têmporas, martelando duramente. A dor cessou algunsminutos depois, e quando o fez, Ariadna se desinflou. Seus músculos o fizeram.Sua alma o fez.

Levantou-se muito devagar, emudecida, e deixou a nota ali para subir àhabitação. Não lhe pareceu tão estranha e diferente a um lar quandoreconheceu seu próprio aroma ali, enquanto que sim lhe pareceram muitoestranhas ao tato as cartas que encontrou ao abrir a gaveta. Todas elasescritas de seu punho e letra; do punho e com a letra de uma Ariadna que lhepareceu desconhecida. Desconhecida e miserável. Só uma lembrança tinhadele, de umas palavras que lhe dedicou dias antes de partir. «Eu te juro pelosperigos fortes e excessivos que me ameaçam no futuro, que em tanto que osdois formos vivos tem que ser minha, e queimarei em sua chama meuspensamentos célebres e altivos.»

― Ariadna...Todas as lembranças se desvaneceram como pó ante a conjunção dessas

sete letras. Deu a volta, sobressaltada pelo singelo que lhe resultava devolvê-laao mundo aquele homem... E o coração parou ao vê-lo avançando para ela,mancando, com a cara arroxeada e uma marcada claudicação. Ariadna foi parao enfraquecido Sebastian sem pensar em nada mais. Ele balbuciavaincoerências quando desabou no chão, justo diante da moça, que o sustentou

pelos ombros a tempo.― Sebastian! ― chamou, agachando-se para examinar seu desafortunado

rosto. A visão de numerosos arroxeados e uma ferida aberta lhe acelerou opulso. ― Sebas... O que passou? Por que está assim?

Sebastian não falou. O ataque o deixou sem forças para nada que nãofosse abraçar a suas pernas para manter o equilíbrio e jogar a cabeça parafrente, apoiando a testa em seu estômago. Ariadna mordeu o lábio,sobressaltada pelos balbucios que não conseguia a decifrar.

― Quem te fez isto? Como chegaste até aqui...? Sebastian, me fale, porfavor.

― Graças a Deus, aqui está. ― exclamou Graham, entrandoprecipitadamente. ― Chastity o viu entrar pela porta traseira em seu estado e...OH, minha senhora. Deveríamos chamar o doutor.

Ariadna assentiu energicamente enquanto manobrava para colocar-se aospés de seu marido. Se já era pesado em condições normais, agora que nãopodia com seu próprio peso, estava a ponto de esmagá-la. Graham interveiobem a tempo, separando-o dela e tentado levá-lo a cama. Ariadna não seseparou dele, embora tenha duvidado sobre se tocá-lo por vontade,compreendeu que queria agarrá-lo pela mão. Sebastian perdeu a consciênciaassim que suas costas tocaram o colchão, mas uns segundos antes, a jovemacreditou ver que abria os olhos e a olhava diretamente.

― Graham... ― Murmurou, rodeando a cama para sentar-se a seu lado.Agarrou os almofadões e os pôs sob sua cabeça. Entre os muitos pensamentosque a assaltaram, deu-se conta de que aquela noite dormiria em sua cama, eque o aroma do homem empaparia seus lençóis até que as trocassem, semanasdepois... ― O que você acha que foi capaz de fazer? Isto acontecefrequentemente?

― O senhor Talbot tem muitos inimigos, minha senhora. ― Respondeu,olhando para a situação. ― Embora não seja comum. Em geral, são poucos osque enfrentam ao senhor; por muito que se insista em que não lhe devenenhum respeito, temem sua figura como a que mais... irei procurar aomédico.

Milhares de agulhas lhe atravessavam as têmporas, a testa, a nuca...notava o sabor resistente do sangue sob o paladar, possivelmente pela feridaque emanava aquele líquido que lhe custava engolir. Todo seu corpo pesava,mais que de costume, salvo em zonas concretas nas que palpitava.

Sebastian se levantou tossindo violentamente. Levou uma mão ao ventre,que tinha enfaixado, e com a outra cobriu a boca. Quando por fim pôde abriros olhos, face à resistência que opuseram as pálpebras feridas, examinou quenão tivesse manchado os lençóis. Entre a brancura das mesmas, apreciou umafina e delicada mão feminina, muito perto de seu corpo.

Levantou o olhar; ainda sem poder focar bem. Por isso sabia, devia teralguma costela quebrada, machucados por todo o corpo e um olho inchado. Foiesse maldito o que não pôde detalhar tanto como gostaria a figura feminina queesperava sua consciência.

Nunca se alegrou tanto de estar morto como quando abriu os olhos comopôde e a viu ali. Não sentiu falta da mínima expressão em seu rosto: agradeceuque fosse tranquilidade, segurança frente a sua recuperação. Esticou a mão,tirando-a do lençol que mais que envolvê-la, continha-a, e acariciou umamecha rebelde. Enrolou o grosso fio branco em seu dedo indicador e puxou-obrandamente para aproximá-la a seu rosto.

Quanta beleza acumulava essa mulher em seu corpo, em seu rosto, emseus escorregadios pensamentos. A Sebastian não lhe ocorria modo mais belode despertar que tendo sua palidez e seus olhos ao alcance. Nunca foisuficientemente sensível para apreciar sem tocar, mas admitia que embora suapromessa lhe doía por não poder fazer com ela tudo que desejava, só olhá-la osatisfazia.

― Agora sim que sou feio, não? ― disse em tom brincalhão. Sua voz soourouca pela garganta seca e o prazer que lhe produzia sua proximidade.

A negação de Ariadna, tão doce e singela, suavizou a tensão de suasferidas.

― OH, minha esposa obediente e respeitosa... ― ironizou. ― Não énecessário que minta para me fazer sentir melhor. Agora mesmo, só nascer denovo poderia consegui-lo. Embora não seja nada que não saiba muito bem,sabe? ― Piscou um olho e se levantou, contendo o desejo de uivar ―Necessitarei um pouco de água quente... Ou um banho de água quente. Umséculo de sangrenta água quente... Onde está Graham?

― Saiu faz uns minutos para escoltar ao doutor à saída. Arnold foi atrásdos remédios que receitou. ― Um silêncio ― Sebastian... O que ocorreu?

Sebastian ficou em branco um momento. O que tinha passado...?Recordava ter recebido uma nota por parte de um de seus sócios menores,

requerendo sua presença na fábrica o quanto antes. Para chegar rápido, e

temendo que houvesse um problema de dimensão maior, efetuou o percursofrequente das ruelas para recortar. Foi numa delas, povoada de valentões eladrões onde alguém lhe atingiu pelas costas com um objeto contundente. Nãoconseguiu tombá-lo, embora sim fazer que cambaleasse e que, ao dar a voltapara enfrentar a seu agressor, visse muito impreciso para reconhecer seuatacante. «Seus» atacantes, agora que pensava melhor... Doía-lhe a cabeça enão podia confiar em seus pensamentos em dita situação, mas acreditava tercontado quatro. Alguém o agarrou por atrás, lhe agarrando os braços e fazendoque lhe rangesse um deles. ― Não com fatais resultados, felizmente ―. dois ocontiveram por cada um dos ombros, e o quarto... O quarto foi o que lhe atirouum murro atrás de outro até que esteve praticamente inconsciente. Sebastianrecordava com total claridade o impacto de seu corpo contra osparalelepípedos, o sabor do sangue ao cuspir um molar e a aguda dor que lheesmagou os ossos, lhe impedindo de levantar-se.

Ia responder que não estava de todo seguro, quando uma série de ideiasse conectaram entre elas, lhe fazendo dar com uma fácil conclusão: a ameaçado duque... quase a tinha esquecido. Deve ter sido ele. Esperou um par desemanas a que o assunto perdesse importância, e então mandou a uma sériede vagabundos para lhe dar um castigo. Mas não podia enganá-lo. Não a ele.Só um homem na Inglaterra de todos os que o odiavam se sentiria satisfeitoenviando a outros em seu lugar. Sebastian admitia ter adversários fiéis,viscerais e honoráveis até certo ponto: se não eram eles os que tomavam ajustiça por sua mão, se não usavam seu próprio corpo para fazê-lo, não ofariam. Nada que ver com as delícias de um nobre, que tal e como ele mesmoexpressou, não mancharia as mãos. Em todo o caso, as lavaria.

Porém, não tinha nenhuma garantia de que fosse o duque, salvo suassuspeitas. Estas serviam para convencer a si mesmo e, certamente, bastavam-lhe para vingar-se. Mas em caso de informar a Doyle, como seu sócio...

Abria a boca para responder qualquer minúcia para tranquilizar à calmaAriadna no momento em que cruzou uma lembrança abstrata das horaspassadas. Era o homem que o golpeou, o agarrando pela jaqueta para levantá-lo do chão e sorrir muito perto de sua cara.

«Tome cuidado com o que faz... Estou seguro de que não quererá acabartambém estrangulado.»

Sebastian agarrou uma baforada de ar bruscamente. Primeiro, aliviadopor recordar o rosto de seu atacante e suas palavras, que serviam como pista.

E logo, em segundo lugar, vinha o reconhecimento, a assimilação e corretainterpretação do dito, que trouxe consigo um golpe de cólera que lheimpulsionou a levantar-se de um salto, ignorando o ressentimento de seusossos.

― O que está fazendo? ― ouviu Ariadna perguntar, rodeando a cama paraaproximar-se dele. ― Sebastian, está muito fraco e poderia te fazer dano sefosse a alguma parte. Se necessitar que te traga algo, somente peça isso a mimou ao Graham, ou a Elsie, e...

Um estremecimento doloroso lhe girou o pescoço para cravar seus olhosinjetados de sangue nos de Ariadna. Ele mesmo sentia a raiva flutuando pelaessência de sua vida, a origem de todas as coisas, e dando sentido ao ódio quelevava anos balançando-o; não teria sentido estranheza que Ariadna seencolhesse e tivesse retrocedido ante a potência de seus sentimentos. Mas nãoo fez. Ela se manteve firme, de pé a seu lado, só tremendo porque, de algummodo, recebia o que cozia em seu estômago.

― Foi Winchester. ― Disse, apertando os punhos a cada lado do corpo.Vacilou, temendo que, ao repeti-lo, o mundo tal e como o conhecia sederrubasse sobre ele e não pudesse levantar-se. ― Tinha esse pressentimento,mas agora o confirmo... Winchester foi quem a matou.

Ariadna não necessitou maior explicação que a tensão de seus músculos.― Como pode estar tão seguro?― Como já te hei dito, faz anos que o pressinto... estava em minha lista de

suspeitos, junto a outros quantos nobres: muitos deles interessados em ti. ―Especificou, dando a volta e caminhando até a saída, não muito crédulo nafortaleza de suas pernas. ― Era um dos amantes de minha mãe. Vi-o entrandoe saindo quando ainda era menino... E a matou um dos muitos que mantinhaao mesmo tempo. Agora sei que é ele. Disse-me isso o homem que mandoupara me matar.

― O quê? Te matar...? ― Ouviu sua voz muito perto. Voltou-se para vercomo Ariadna esticava a mão, insegura, como se quisesse lhe oferecer consolocom uma carícia e não se atrevesse de tudo. Ao final a viu deixá-la cair. ― Foi oduque quem te fez isso?

Sebastian assentiu com a mandíbula apertada, concentrando-se em seusextraordinários olhos lilás para não jogar a porta abaixo de uma patada, fazer-se com um fuzil e matar aquele desgraçado.

― Disse-o. ― Repetiu ― Admitiu-o... «Estou seguro de que não quererá

acabar também estrangulado.» Minha mãe morreu asfixiada. Eu mesmo vi asmarcas dos dedos humanos em seu pescoço. Vi-as. ― Insistiu. Fechou os olhosum segundo, tremendo de impotência. Arrebatado pela raiva, golpeou a porta,fazendo tremer toda a habitação. ― Vou matar esse bastardo... Agora mesmo.Por fim tenho a garantia e as provas para fazê-lo. ― vaiou, lutando com afechadura. Ao ver que não cedia, golpeou-a outra vez, e assim, com sucessivoschutes, foi como conseguiu liberar. ―. Vou matá-lo... Assassino filho de puta...

― Não.Ariadna conseguiu esquivar seu próprio corpo e plantar-se justo sob a

soleira. Não precisou estender os braços, nem sequer fulminá-lo com o olhar.Só permaneceu ali de pé, com sua expressão de tranquilidade habitual, só quecheia da calma determinação que estava acostumado a ganhar todas asbatalhas pela segurança que oferecia. A angústia, ira e ideias agressivas nãoremeteram nem desapareceram da mente de Sebastian, mas pôde vacilar aoafirmar a presença do anjo antes de terminar de consagrar-se como demôniomaldito.

― Se afaste daí. ― Não houve resposta ― Se não te afastar, pequena sereia,afastar-te-ei eu... E agora mesmo não estou sendo muito racional. Poderia tefazer muitíssimo dano.

― Não me faria mal de propósito.Isso era certo, mas eram tão poucos os que sabiam, que o fato de que ela

estivesse tão segura apaziguou um tanto esses pesares da alma que queriamarrastá-lo a fazer o mal.

― Ele a matou. ― Repetiu, como se não conseguisse compreender agravidade da situação. ― Levo anos... décadas... esperando este momento. Omomento em que alguém se proclamaria, direta ou indiretamente, assassino deminha mãe. Fiz fortuna para me infiltrar nesse mundo que detesto só paraaumentar a possibilidade de encontrá-lo e me vingar. ― Continuou falandomuito devagar para poder mastigar e digerir a ânsia de destruição. ― Acreditequando te digo que não me importará passar por cima de ti se isso meassegurar a vingança.

― Então faça-o. Passa por cima de mim. Mas sabe que se cruzar estaporta, não voltará. ― Assegurou ― Está tão ferido que não pode andar, o ódio ocega e o duque segue sendo, e sempre será, muito mais poderoso do que vocêpoderia chegar a aspirar. Assim que pusesse um pé em seu salão com aintenção manifesta de lhe fazer dano, seria aniquilado, e então... Quem

vingaria sua mãe? Com todas suas lesões, inclusive o mordomo poderia tecausar danos irreparáveis. Mas se estiver seguro de que é o que quer... ―Acrescentou, cravando os olhos nos seus. ―. Adiante. Passa por cima de mim.

Sebastian negou com a cabeça e cravou os olhos em um ponto sobre suacabeça. Se não golpeava algo, ou a alguém, toda essa frustração iria a seucoração e o enegreceria até arrastá-lo à tumba. Tal era o rancor que o envolvia,a força da aversão que lhe apodrecia o espinho de esperança, que sentia quemorreria nesse preciso momento se não a afastava e se tomava a justiça porsua mão. Mas tinha razão. E embora nunca tivesse valorizado sua vida osuficiente para temer perdê-la no processo de desforrar-se, agora seu coraçãopulsava por outro, e se não retornava...

― Deixa que vá. ― Suplicou em tom ferido.― Pode ir. ― Replicou ela ― É maior e muito mais forte que eu. Nem sequer

teria que me fazer dano para me afastar de seu caminho. Com somente meempurrar um pouco, retrocederia vários passos, e teria via livre. Quão únicoestou fazendo... é te pedir que fique.

Sebastian a olhou com os olhos ardendo.― E acredita que isso é fazer justiça? Precisamente que me peça isso, e

que tenha razão, é o que poderia fazer que me replaneasse... E não dediqueiminha vida a esta operação para que agora te interponha. Não seja egoísta, ―rogou com os olhos perdidos. ― E deixa que me sacie.

― Não precisa te vingar, só precisa te sobrepor ― sussurrou Ariadna,dando um passo para ele. Custou-lhe tomar a iniciativa de roçar sua bochechacom os dedos, lhe virando o rosto para que voltasse a olhá-la. ― Se começasseuma guerra pela justiça, Sebastian... nunca poderia ganhá-la. E menos aindasozinho.

Sebastian cravou os olhos nela. Franziu a testa e fez uma careta enquantonegava com a cabeça, uma e outra vez, rechaçando a verdade... Até que se fezmuito grande e evidente, e só pôde exalar antes de que uma lágrima rodassepor sua bochecha.

― Mas tiraram-me isso. Ele tirou-me. ― Recordou isso com amargura. ―Não posso permitir que o mundo siga girando depois disso, que ninguém pare apôr ordem... Nunca pude deixá-lo passar.

― Seguro de que haverá outra maneira de vingá-la. ― Prometeu. ― Emoutro momento... Quando tudo esteja melhor. Mairin dizia que alguém recolheo que semeia; que o que passa a vida penando, morre sendo feliz, e quem é feliz

fazendo maldades, tem o que lhe espera se não antes de morrer, no infernomesmo. Alguém se encarregará de castigá-lo... Não faz falta que seja você.

― E quem, se não eu, se eu era o único que a queria e que pode enfrentá-lo? ― replicou. Aproximou-se, envolto em ameaças que nunca jogaria sobre ela,envernizado de rancores que jamais separariam de sua pele. ― Ariadna...

De repente, ela se aproximou dele, como uma fada curiosa, e sem saberrealmente como fazia, vestiu-o com a excecional seda de seus braços. Umabraço com o poder de estancar seus maus pensamentos, lhe fechar a gargantae elevar sua alma a paraísos nos quais nunca acreditou; isso foi.

― Que prazer poderia te produzir lhe fazer dano? Estaria te pondo a seunível, e ela não vai voltar porque você vingou o ocorrido. ― Falou contra seupeito, justo onde o coração pulsava. ― Deixe-o ser um monstro e não teconverta num por querer assinalar sua crueldade.

Sebastian apoiou a bochecha sobre o topo da sua cabeça, e a prensou aoseu corpo num intento por transmitir a bondade que necessitava. Se alguémpodia calar ao feto de sua consciência, essa era ela... Ela e sua indiscutívelsuperioridade frente ao resto, que como criatura especial pôde lhe convencerdurante um instante de que não merecia a pena pensar nisso.

― Não poderia ser um monstro enquanto te tiver em meus braços. Écurioso, e às vezes doloroso para minha besta interior, que sempre exerça comoo coração que já não tenho. Assim não posso me sentir orgulhoso de nada doque tenho ou quero ter, exceto, de não te fazer desventurada em excesso.

― Claro que tem coração. ― Teve que acreditar nela quando este acelerouseu ritmo ante a carícia de sua bochecha contra o peito. ― Todo aquele quesofre o possui.

― Então o que passaria se te entregasse o meu? ― sussurrou. ― Seriaegoísta por minha parte, por querer que te fizesse cargo de minha dor, ou umato de generosidade, por te dar outra arca onde esconder suas misérias?

Ela ficou em silêncio um momento.― Seria um ato de caridade, já que no dia de hoje não tenho nem sequer o

que me veio de fábrica. ― Respondeu no mesmo tom. ― Vem... precisadescansar.

Outra espetada de ira tomou conta de Sebastian, desta vez dirigido aqueleenganador que só soube desprezar um dos mais belos dons que Deus pôde teroutorgado aos humanos. Obedeceu-lhe somente pela dor que velou seus olhosum instante, e caminhou até à cama reservando-lhe sugestão de lhe fazer

esquecer seus desenganos com beijos e carícias de norte a sul. Ali retomou averdade sobre a condição imaculada de sua esposa, e soube que emboraninguém salvo ela poderia o ter freado nesse instante, a próxima vez nãoimportaria quantas vezes suplicasse... Desgraçadamente para o anjo que oprotegia, não era tão bom para merecer um guardião, nem tão fraco para queas cores de lilás de uns olhos pudessem silenciar os clamores de seu peitovingativo.

16

E nas câmaras matrimoniais, consumando seu matrimônio o marido,nascido do dourado Pai, semeou uma descendência numerosa.

As Dionisíacas, NONO DO PANÓPOLIS

Ariadna era consciente de que não tinha conseguido dissuadir Sebastiandos planos que tinha para com o duque, e suspeitava que ele também sabia...Mas ambos viveram os seguintes dias sem prestar atenção aquele segredo avozes. Ariadna via em seus olhos, entretanto, que adiar o inevitável não serviriapara nada. E mesmo assim, ela se esforçava por entretê-lo com qualquer toliceque lhe ocorresse. Ele não era estúpido. Certamente estava a par de suasintenções. Mas não podia dizer que não as desfrutassem... Nem Sebastian nema própria Ariadna, que durante sua lenta recuperação, que não passou decama porque não suportava estar quieto, esteve a seus pés cantando ascanções que lhe pedia.

Era algo que a maravilhava e entristecia em partes iguais. Para ser umhomem que recusava apreciar qualquer manifestação de arte, o canto a capelade uma mulher o comovia, deixava-o entorpecido, pendente entre dois mundos.Ariadna podia sentir a incrível paz que dominava seu corpo quando a ouviacantar; como seus músculos foram relaxando lentamente. E lhe doía, porqueisso significava que a pessoa que lhe ensinou essa vertente da músicasignificava a vida para ele. Sua mãe.

Essa mãe que lhe tinham arrebatado e cuja vingança temia mais quenada. Ariadna se levantava todos os dias pensando em uma nova maneira decontê-lo, especialmente assim que pôde caminhar sem sentir dor... Tanto foiassim que chegou a aprender a jogar às cartas quase como uma profissionalpara distrai-lo.

Por outro lado, Ariadna não estava acostumada a tanta atenção: nem a

dedicá-la e focá-la durante muito tempo na mesma pessoa, nem a recebê-la namesma medida. Era certo que nas jornadas sociais, muitos eram os queintervinham com ela e a enchiam de adulações, mas era diferente comSebastian. Ele não era nem sutil nem encantador; às vezes bastava um ardenteolhar de pirata para lhe fazer saber que gostava do vestido, ou que cravasse osolhos em seus lábios para recordar que era formosa a seu parecer. Ariadnanunca terminava de acostumar-se a sua ferocidade, à honestidade com a quetrabalhava. Não havia lisonjas vazias nele, nem tampouco as fazia esperandoalgo em troca. Tempo passou desde que era empresário em todos os âmbitos desua vida; agora, com ela, comportava-se como uma alma cheia de paixões que,em vista de não as cumprir, encontrava prazer no singelo do expressar em vozalta.

Agradecia que tivesse sido assim durante as últimas duas semanas, postoque ela também necessitava distração, e ele, sendo todo um centro de poder eforça inesgotável inclusive em estado lamentável, requeria a totalidade de suaatenção e ânimo. Quando estava a seu lado, desfrutando de sua companhia,não pensava em nada mais que não fossem suas brincadeiras, ou aonde foramparar suas mãos. Tinha aprendido a decifrar seus gestos. Já sabia que trocavaa postura com desconforto quando ela mordia o lábio inferior, e que apertavaos punhos ao ver que lhe escapava uma mecha de cabelo, e que esfregava ascoxas ou apartava os olhos nos escassos momentos nos que lhe dava umsegundo sentido a sua frase sem querer. Ariadna não podia desfrutar em suasreações porque sabia que sofria, e não queria isso para ele, mas observá-lo econhecer tão bem seus movimentos lhe produzia uma profunda satisfação... Eum grande alívio, porque isso significava que não estava sozinha em seussentimentos. Sentimentos que cresciam conforme passavam os dias,asfixiando-a.

Depois de descobrir que Corban não era quem acreditou e perder toda aesperança de que retornasse, ou de que tivesse chegado a amá-la alguma vez,seguiram outra série de surpresas que não lhe desagradaram de tudo. Não lhedoeu. Estava tão obcecada com a felicidade passada que confundiu a épocamais gloriosa de sua vida com o amor para um homem cujo rosto, aroma ouvoz lhe eram desconhecidos. Era, sem dúvida, um descobrimento lherevitalizando... O problema era que isto desentupiu finalmente o que Ariadnaguardava com zelo: a desmesurada paixão que sentia pelo homem que viviacom ela. Cada manhã se levantava pensando em quão singelo seria despir-se

ante ele e lhe pedir que cumprisse sua fantasia, uma que provavelmente aprópria Ariadna já teria tido com antecedência, pois tinha infestado sua mentecom toda classe de perversões. Entretanto... não podia arriscar-se.

Acima de tudo, queria conhecer, saber, ter a exata certeza, de queSebastian Talbot a desejava de verdade e não a abandonaria. Tecnicamentenão lhe seria possível, já que estavam unidos por algo maior que a luxúria, masAriadna pensava chorando de melancolia que ele pudesse perder o interessenela. Afinal de contas, se tanto chegou a querê-la, foi porque lhe negavaconstantemente um roce de seu corpo. Se se tivesse devotado desde o começo,ou se o fazia então, uma vez satisfeito, abandonaria sua cama... E então, oquê? O que faria ela? Não era tão forte para sobreviver a seu desprezo ouignorância; não vivendo em uma casa que cheirava a olíbano, que tinha suaessência gravada em cada esquina, cada estadia, cada parede...

Estava assustada por avançar, e temia também retroceder... Mas, sobretudo, dava-lhe medo o efeito que tinha nela. Corban era quão único podiaconter seus afetos, a barreira que os separava. Agora que não estava e sóexistiam seus reparos, admitia ter enlouquecido de amor. Cada vez quepassava a seu lado lhe dedicando só um olhar e um sorriso, lhe apagava ocoração de pura agonia. Seu corpo ficava esperando mais, muito mais. Não umbeijo, não dois beijos... Ariadna sonhava com que a amasse para sempre e acosturasse a seu flanco cada vez que pudessem coincidir, e assim não separar-se dele nunca. O tempo que antigamente desfrutou a sós, tranquila consigomesma, em contato com a natureza... era todo um despropósito. Olhava aporta em descuidos, querendo e, sem sabê-lo, esperando que seu robusto corpolhe ocultasse a luz do sol; que sua voz rouca pronunciasse essa «pequenasereia» que continha todas as belezas do mundo ― assim a fazia sentir ―...Inclusive pelas noites se metia na cama, tremendo de frio, de calor... Calor efrio, e tormentosa necessidade de seus braços. Era viciada num homem que jánão a beijava mais até que a morte ameaçava levá-lo se ele se contivesse... Emaldita fosse ela e sua difícil personalidade por não saber como lhe pedir quetomasse e não a soltasse jamais.

― Normalmente me parecem desagradáveis seus silêncios. São inclusiveviolentos. ― Disse Sebastian, liberando- a de seus pensamentos. ― Mas aprendia apreciá-los e agora me incomodam por não saber o que há em sua cabeça.Nada mais. Ou é esse um truque de mulheres para fingir que há algointeressante quando em realidade só pensam em bobagens?

― Pensava em ti. É isso uma bobagem?― A maior de todas. ― Encolheu um ombro e se acomodou na cadeira,

arrumando as cartas distraidamente. ― E bem? O que vamos apostar destavez, duendezinho? Está disposta a jogar sua magia negra...? Porque essa é aúnica posse tua que não me pertence, além de sua alma. E não acredito quequeira vender sua alma ao diabo.

― Não acredito que o diabo queira minha alma em primeiro lugar.― Como pode estar tão segura? ― inquiriu com voz íntima.Ariadna apertou as coxas sob a mesa. Ele tinha esse talento de converter

qualquer oração em um beijo direto a sua intimidade. Sempre soava cheio depossibilidades, a transbordar de força masculina, como se estivesse semprepreparado para agarrá-la em babados e lhe fazer todas essas maldades que lhetinha prometido ao ouvido em infinidade de ocasiões.

― Possivelmente me tenha precipitado. Sempre quer tudo, não, senhorTalbot?

― Me chame Sebastian, por Deus. Eu não gostaria de retroceder e voltarpara quando me odiava... E meu nome deixa de soar a sujo Cockney paraparecer inclusive elegante quando o pronuncia. Sobre querer tudo, minha belacriatura, eu diria que uma alma nunca está de sobra. Porquê? Pensa apostá-la?

― É o único que não apostei, acredito.― Até agora estiveste apostando minhas propriedades. Meu dinheiro,

minhas habitações, as joias que te dei... Na realidade é como jogar contra mimmesmo, o que não significa que não seja excitante, já que jogar com mulheres éentretido sempre. Mas não acha que já é hora de fazer algo realmente tentador?― Seus olhos brilharam ― Ou isso, ou trocar de jogo.

― As cartas estão bem. ― Repôs Ariadna ― Até onde sei, é o único jogoonde se aposta... E quero que me deva tanto dinheiro que não possa fugir demim jamais.

Sebastian estirou os lábios em uma careta entre cruel e comovida.― Para isso, primeiro teria que ganhar várias vezes seguidas. Em segundo

lugar, e falando do tema da fuga, deveria deixar de ser minha esposa para quepudesse expô-lo. Por não mencionar que teriam que me amordaçar, me atirarao mar e me apagar a memória à pauladas para que, embora fosse por umsegundo condenado, afastasse-me de ti sem planear voltar para seu lado.

Isso era algo que amava nele. Sua deliciosa transparência. Sebastian não

falava: clamava com fulgor, veementemente, verdades a qualquer hora. Assimlhe custava tão pouco confiar em suas palavras que o trabalho de seduçãodemorava uma certeira oração. Ariadna esteve tão segura do que dizia, de quenunca a deixaria, que se esticou em exagerado regozijo.

― Subamos a aposta, então. ― Enunciou brandamente ― O que quer demim?

Ariadna sentiu a inexorável força de seus desejos atravessando-a comouma adaga. Ele emitia tudo isso... Era uma injeção de desejo constante, e asaturou com um simples olhar, fazendo-a cúmplice de suas perversõessecretas.

― Acabaríamos antes falando do que não quero de ti.― Então me diga algo que queira e não tenha.― Acabaríamos antes falando do que quero e me falta de ti. ― Repetiu

lentamente, sem apartar os olhos dela. Ariadna lhe sustentou o olhar commaior firmeza e valentia do que a que tinha experimentado em seus vinte anosde vida. Ignorou que somente sentia o coração lhe pulsando nos ouvidos, e seestirou.

― Então começaremos pelo que quero eu. Se ganho, ― começou, tãonervosa que não sentia os pés ― esta noite me levará a sua habitação e me faráamor.

O estômago lhe reduziu ao tamanho de uma ervilha quando eleexteriorizou todo o assombro que poderia albergar um corpo humano. A este seuniu o estrangulador arrebato passional da expectativa, que lhe esticou osmúsculos um a um. Ariadna esteve segura de que se levantaria e a tiraria dali,sem mais demora.

― Muito bem. ― Disse num murmúrio sexual que lhe arrepiou a pele danuca. Ariadna nunca viu algo tão grosseiramente formoso como seus olhos detopázio entreabertos, estudando-a deleitados. ― Se eu ganhar... levar-te-ei aminha habitação e te farei o amor durante todas as noites que nos restam,desde hoje até o final de nossos dias.

Sebastian sorriu muito devagar, como se acabasse de escutar-se no ecosilencioso que seguiu.

― Visto assim... Parece que quero tudo, tal e como o há dito.― Ainda não pediste minha alma. ― Particularizou quase tremendo.― Não ousaria. Embora essa classe de coisas são as que vale a pena

ganhar por outras vias. Nós temos um acordo?

O que ele propunha era um abuso. Ariadna não podia estar segura de quequeria dormir com ele cada noite durante o resto de sua vida, mas, por outrolado, se confiava no grau de seus atuais desejos, ― desfazer-se com ele dentrode seu corpo ― não concebia melhor modo de ver nascer o amanhecer cada dia.De algum modo sentia que precisava recuperar essa completa jornada queesteve separada de Sebastian, e não haveria outra maneira de desforrar-se quedeixando-o ganhar.

Ao final assentiu. Viu-o reclinando-se para trás, com a respiração contida,como se tivesse que ficar a prova para assegurar-se de que não estavasonhando. Ariadna percebeu entre ambos a névoa da dúvida por sua parte. Eraevidente que queriam o mesmo... Por fim o queriam. Que sentido tinha atrasaro inevitável? Quem quer que fosse o ganhador, essa noite ele a teria, e ela oteria.

Porém, Sebastian pediu pela responsabilidade e baralhou as cartas comotantas outras vezes. Ariadna ficou apaixonada por sua facilidade, igual a desua fingida expressão de calma e a tensão acumulada em seu corpo;possivelmente era pelo que estava por vir, ou por causa dos vislumbres rápidose ardentes olhares que lhe jogava com os olhos entreabertos, mas lhe pareceumais atraente que nunca. Esse animal sensual a desejava tanto que prometiaentre linhas não voltar a estar com outra mulher, para deitar-se com ela cadadia... Nada poderia havê-la agradado tanto.

― É sua vez. ― Disse Sebastian com voz profunda.Inclinou-se para frente, arrastando a mão pela mesa, até deixar diante

dela um par de cartas. Ariadna olhou seus dedos com o estômago encolhido elevou os seus ali, aceitando-o. Ele não moveu a mão. Pelo contrário, aproveitoupara agarrá-la entre os seus e trazê-la a seus lábios. Sebastian a olhava aosolhos quando beijava com os lábios entreabertos a parte interna de seu pulso,a base da palma e a gema do dedo indicador. Ariadna estremeceu brutalmente.

― Sebastian... ― escapou de sua garganta. Ele elevou o olhar com o rostotingido de sombras. ― É a carta que quero.

O homem assentiu, nada desiludido. Ao contrário, o desejo se derramouem seus olhos, fazendo-os brilhar de pura perversão. Estudaram-se e beberamum do outro, trementes pelos efeitos do delírio. Sebastian soltou sua mão e adeixou retornar ao regaço, onde Ariadna a ocultou junto à outra para poderretorcê-las sem que soubesse. Mas ele sabia, como era consciente do queacontecia ao potencializar sua excitante influência física contra ela. Ariadna

inspirou profundamente, tratando de silenciar a lembrança de suas luxuriosaspromessas e todos os beijos que lhe deu antes do que morria por receber, atéentão.

― Retiro-me. ― Anunciou Sebastian, levantando-se de repente.Ariadna elevou os olhos em seguida, chocando-se com um rosto

determinado, selvagem e dolorosamente sensual que a fez entrar em estadolíquido. Viu-o rodear a mesa como o perigo encarnado, a ponto de chorarporque não caminhava mais rápido, e apartar a cadeira em que estava sentadacom um brusco movimento. Agachou-se para agarrá-la pelos braços, e assimque esses dedos ansiosos de mãos enormes entraram em contato com sua pele,Ariadna teve certeza de que passou a vida odiando toda carícia humana parapoder amar a de seu homem.

Sebastian apoiou a testa na sua.― Se não for isto o que quer, diga-me isso. ― Murmurou com voz gutural ―

Mas me diga isso agora. Morrer por ti não é o pior que me ocorre; fazê-loporque não me queira depois, em troca... seria a pior tortura.

― Não há nada que deseje mais que isto. ― Respondeu no mesmo tom,inclinando a cabeça para encontrar seus lábios. Seu corpo se desfazia de dorpor não poder beijá-lo já. ― Te necessito...

Sebastian a olhava com a mesma tensão e sofrimento que ela arrastava.― Agora poderia me negar. ― Disse laconicamente ― Poderia te deixar aqui

sentada e partir, em vingança ou como justiça por todas as vezes que me senticomo você, à beira da agonia... Entende a tortura a que me arrojava, meuamor? ― sussurrou, roçando o nariz com a dela. ― Entende o dano que me temfeito...?

― Vais deixar-me aqui? ― balbuciou.― Não poderia. É a única pessoa neste mundo que permitiria que me

ferisse com gravidade, com as mãos ou sem elas.Ariadna ofegou e jogou os braços no seu pescoço, apertando-se contra ele.

Sebastian aceitou essa iniciativa com o corpo quebrado e vibrante pela emoçãoe a miséria, e caminhou até sair do salão com um objetivo em mente. Quandoele deu o primeiro passo, Ariadna entrou numa espiral sem fundo. O desejo aenjoou de tal modo que não pôde ver nada a seu redor, nem sequer os degrausque subiu sem lhe tirar olho de cima. Só era consciente das milharessensações que a asfixiavam como nunca antes. Se alguma vez teve dúvidas arespeito da vida, agora compreendia que formava parte dela, e não como um

coração fraturado, mas sim como uma alma jubilosa.Sebastian entrou em sua habitação, essa que Ariadna não tinha tido

oportunidade de ver ainda, e a levou até a cama sem deter-se para apresentá-la. O mundo acabava de desaparecer, e só estavam eles, sumidos numa paixãoque tinha cruzado a linha do dilacerador para ser incrivelmente terna. Assimfoi como ele a deixou sobre o colchão: com ternura, delicadeza e primor, essaclasse de trato que Ariadna detestava por parte de qualquer um, mas não doSebastian. Em seus gestos entendia perfeitamente a contenção, quando emrealidade estava desejando lhe fazer dano com seus dentes e suas mãos.

Colocou-se a seus pés para lhe tirar os sapatos. Ariadna só podia escutara respiração do homem, tão profunda e agitada que lhe parecia ouvir o marrugindo, e sentir suas gemas como brasas sob a saia. Ficou sem fôlego quandolevantou o vestido, dobrando-o quase sobre seu regaço, e lhe tirou as meiascom uma calculada precisão nunca antes vista nele. Jurou ver muito mais queo firmamento ao sentir seus lábios e o sopro de sua respiração na perna, essaque percorria com os olhos fechados, extasiado por sua suavidade e finura.

― Nunca poderá chegar a imaginar quanto te desejo. ― Sussurrou,beijando-lhe o tornozelo e a curva do joelho. Não a olhou, mas isso,curiosamente, fez mais real. ― É minha maior tortura e a mais docecondenação. Valeu a pena passar por toda miséria e ser um homem terrível sópara chegar aqui, a seus pés.

Levantou o queixo e a olhou, com aqueles dois olhos de deus que já não sóprojetavam a depravação de seus pensamentos, a não ser um sentimento quede tão puro parecia mitológico. Ariadna tremia ao inclinar-se para baixo, tomarseu rosto entre as mãos, e sem duvidar de absolutamente nada à exceção deque tanto júbilo pudesse ser certo, beijou-o. Beijou-o e lhe respondeu namesma medida, sem tomar o controle, sem exagerar suas ânsias ou prolongaro fogo. Sebastian subiu as mãos por suas pernas, até enredar os dedos naroupa interior, da qual se desfez enquanto durava a doce pressão da bocafeminina sobre ele.

Ariadna o soltou com a entristecedora certeza que não era suficiente, enunca o seria. Não estava sendo ao ser despida devagar, botão a botão,colchete a colchete, cinta a cinta... Queria algo dele que não se podia tocar, quesomente poderia obter falando de espiritualidade, mas que sem dúvida poderiapossuir. Posse. Isso que tanto detestava e detestou, era uma constante agoraque Sebastian a estendia sobre suas costas, gloriosamente nua.

Não teve medo nem duvidou do que pudesse pensar ao vê-la. Estava emseus olhos que não poderia dececioná-lo e, mesmo assim, foi espetacular amudança que sofreu seu rosto ao contemplá-la. Sebastian adorou e mimoucada zona de sua anatomia, beijando seus ombros, cavando seu quadril e lheacariciando o ventre, que se encolhia por cada roce pedindo um pouco mais.

Ariadna esticou as mãos e lhe tirou a jaqueta. Antes que pudesse entendersua iniciativa, soube que queria vê-lo tal e como ele a via. Queria tocá-lo, senti-lo, saboreá-lo... E Sebastian o facilitou desenredando o lenço, abrindo acamisa, tudo sem deixar de olhá-la um só instante, o que só jogava lenha aofogo. Ariadna percorreu seu torso ao ar com avidez, recreando-se em cadaponto. Tão moreno e maciço, absolutamente escultural, e ao mesmo tempoimperfeito... Eram muitas as cicatrizes que sulcavam seu estômago, seusquadris, seu peito. Estava quase talhado por feridas, e sabia à perfeição como afazia sentir aquilo, a diferença dele.

― Uma mulher chorou ao vê-las. ― Disse baixinho ― As outras logoconseguiram esquecer. Houve quem se virasse para tentar não desviar o olhare ver algo tão espantoso. Eu mesmo as odeio. São sinal de minha debilidade.

Ela as acariciou com cuidado, sentindo o relevo das marcas, umasmelhores que outras, sob os dedos. Negou brandamente. Nesse instante sesobrepôs a admiração, junto com a verdadeira adoração por ele, ao desejo, queesteve mesmo assim presente quando o abraçou com estupidez pela cinturapara levantar-se e beijar uma das cicatrizes.

― Eu gosto. ― Murmurou contra sua pele ardente ― São sinal de quesobreviveu e pôde chegar a mim.

Um som desconhecido reverberou na garganta de Sebastian, que a rodeoua seu corpo com tanta força que Ariadna pensou que morreria ali..., e nãoqueria outra coisa. Isso pensou até que ele a beijou com renovada energia,introduzindo sua quente língua na boca e rodando-a muito perto da sua. Suadecisão e profundidade a excitou, incitando-a a lhe envolver a cintura com aspernas. Sebastian acendia fogos lá onde tocava. Suas mãos lhe envolveram osbraços, a cintura, as pernas e o pescoço, e logo se aferraram ao interior dascoxas, para tocar esse ponto que pertencia mais a ele que a ela mesma.

― Deus bendito... ― Resmungou, agachando a cabeça e logo levantando-apara cravar os olhos no teto. ― Ninguém sabe quantas vezes sonhei contigo tepondo assim para mim.

― Há... sonhado com isto?

― Cada noite, e cada dia; a cada hora. É uma constante em meupensamento. Corrompe-o com o quer que faça. E me enlouquece... ― colocou amão em forma de concha para que tocasse o sexo de Ariadna, que se moveusurpreendida pelo calor que a atravessava. Sentia seus dedos ali, travessos eseguros, embora também erráticos, como se quisessem convencê-la de queestavam indo na direção oposta à real. ― Você transformou uma lição queaprendi muito bem em um momento insólito e excecional. Acredito queinclusive estou nervoso.

Ariadna pensou nisso e achou aquilo tão engraçado por ser a grandeironia, que soltou uma gargalhada. Foram somente um par de notas jogadas noar, entoadas com a mesma doçura que tinha ao falar, mas ele as captou e seseparou o suficiente para olhá-la. Ariadna não pôde suportar que seus olhosvoltassem sobre ela, e decidiu nesse instante que o amor era incontrolável... Ejá não podia seguir ocultando-o, não quando se apaixonava por seu olharfascinado.

― Faz esse som outra vez.Não o fez porque o pedisse, mas sim porque achou divertido que o

ordenasse, como se fosse possível controlar algo assim. Sebastian esteve emseus lábios quando as gargalhadas emanaram de sua boca, e as engoliubeijando-a com paciência, porque sabia que teria muito tempo para ser tãobriguento como lhe pedia o corpo.

― Vou lamentar te machucar com toda minha alma. ― Sussurrou,afundando os dedos em sua húmida cavidade. Ariadna separou os lábios earqueou as costas, de modo que seus peitos se chocaram. Mas sentiu não teros olhos abertos enquanto ele iniciava uma lenta e intensa exploração,perdendo a expressão de amor que era o homem entre seus braços.

Temendo deixar de lado essa conexão, e removendo-se para conter suamão entre as coxas, murmurou:

― Não se supõe que não tinha alma?― Não a tenho..., mas a tua é tão imensa e preciosa que poderia caber eu

também, se me deixasse viver nela.Ariadna mordeu o lábio e forçou as pálpebras para olhá-lo. Nunca, jamais

se acostumaria a ele. Era a única pessoa, o único homem sobre a Terra ao qualrecordava se fechasse os olhos, e mesmo assim, a impressão ao tê-lo ante sicada vez era maior. Estirou os braços e acariciou as linhas de seus ombrosfortes e amplos, eram o dobro dela... Continuou pelos músculos que se

flexionavam e inchavam ao ter o peso sobre eles, terminando nas finas veiasdos antebraços que desenhavam relevos sobre a pele. Roçou também,extasiada e gemendo pelo calor que transladava a masturbação a todo lugarrecôndito, o umbigo dele; decidir que caminho tomar foi uma das escolhasmais difíceis de sua vida. Subir até seu peito e sentir seu coração agitado sob apalma, ou comprovar com suas próprias mãos o que produzia nela, descendopela linha de pelo escuro. Ao baixar o olhar, encontrou-se com o grosso einchado membro, e pensou em quão doloroso devia ser para ele. Pensou emtodas as vezes que teve que lhe doer, sofreu mais inclusive do que ela.

― Suas fantasias... Como queria me tocar quando eu fugia? No quepensava? ― perguntou sem deixar de acariciar sua dura pele, suas cicatrizes,suas feridas... Ele a olhou com honestidade. Não a cruel, não a cínica, a nãoser a mais doce e requerida de todas. ― O que quer fazer comigo?

Ariadna sufocou um gemido, quando ele retorceu os dedos dentro dela.Sentiu que seu corpo se flexionava e dilatava para abraçá-lo sem dor, umasensação desconhecida e que, face ao bem que falaram dela, lhe expôs comoalgo melhor ainda.

― A estas alturas quão único quero é te fazer feliz.Seu coração se acelerou ao mesmo ritmo que as apostas de seus dedos.

Não soube o que responder e, em seu lugar, agarrou-se aos seus braços epuxou para que a esmagasse, para que se estendesse sobre ela e lhe cortasse arespiração. Nenhuma morte ou asfixia poderia ser pior que a que lhe obstruía agarganta quando não estava perto dela.

― Far-me-á feliz que cumpra seus desejos, agora... Quero conhecer esseSebastian de que ouvi falar.

― Nunca te trataria como elas.― Por que não?― Porque poderia te fazer dano... ― Apoiou a testa em seu peito e a beijou

ali, entre os seios. ― E não quero que pare. Pretendo que dure para sempre.Que chore minha morte, se é que isso é possível.

― Mas quero que você me machuque. É a única pessoa que me trata comoa um ser humano... Faz em tudo, para tudo. Pode magoar-me. ― Disse,apertando-o com os dedos, empurrando-o para ela. Ariadna desprendeu opescoço para suportar a ondulação de sua mão ali onde ainda era virgem. ― Memorda, me quebre...

Soltou um gritinho ao notar a pressão de seus dentes em torno do sensível

mamilo. A dentada foi dolorosa, mas foi uma dor prazerosa que trouxe consigoa dominação dos sentidos. Ariadna só via o olhar decidido de Sebastian,cheirava seu perfume, acariciava sua pele... Queria um beijo, outro mais: beijosaté perder os lábios. E lhe concedeu esse desejo silencioso, tomando-a com amesma demanda que as outras vezes, sem suavidade alguma. Ariadna se abriupara ele, separando as pernas, ofegando desesperadamente contra sua boca.

Um segundo esteve ali, de barriga para cima, com um homemesplendorosamente nu apertando-se entre suas coxas. Ao outro, estava voandonos braços de Sebastian, enquanto ele avançava para deixá-la no meio dacama. Por fim, caiu sobre o colchão de novo, desta vez sentada sobre seusjoelhos. Sebastian lhe levantou o queixo com um dedo e a olhou com essesorriso malvado que lhe tirava o sonho.

― Nunca vi seus rostos, e de ti não quero perder nem um só suspiro. ―Rodeou sua nuca com a mão e a puxou para aproximá-la a seus lábios.Ariadna gemeu lastimosamente quando ele jogou com seus sentimentos, lhenegando um beijo e substituindo-o por uma longa e preguiçosa lambida pelalinha da mandíbula. ― Mas pode estar segura de que vou procurar que nãoesqueça disto jamais.

Levantou-a pelos quadris com uma facilidade que fez ruborizar Ariadna, ea entreteve com beijos nos ombros e no rosto, enquanto introduzia toda suamasculinidade nela. Ariadna se desafogou soltando todo o ar de repente.Sebastian a encheu com um beijo tão ou mais indecente que o fato de estarsendo penetrada, criando dois pontos de desejo em seu sistema: focos de fogoque não pôde apagar nem sequer quando uma espetada dolorosa a rompeu aoinstalar-se de uma investida.

Ariadna gritou e jogou o pescoço para trás. Sentia como palpitava dentrodela, como suas carnes se abriam para encaixar à perfeição. Doía, mas a dor sedistribuía e ia diminuindo conforme Sebastian arranhava seu pescoço com osdentes e a acariciava por toda a parte, como se começasse a descobrir àmulher. Mais rápido do que imaginava, seu corpo se acostumou à penetração,e uma quebra de onda desmesurada de prazer a pôs a vibrar.

― É maravilhosa. ― Disse ele, olhando-a com orgulho. Deslocou os lábiospor seu torso, por seus ombros, e deixou a marca de seus dentes ali onde pôde.― Olhe como encaixa bem comigo, meu amor. Sinto que poderia ficar aqui todaa vida... É o único lugar de meu mundo onde não chega a dor.

Estendeu-a sobre suas costas com cuidado e lhe separou as pernas por

debaixo dos joelhos. Tremiam. Toda ela tremia, convulsionava; as sensações aagitavam, suas palavras a comoviam, e seus sentimentos só faziam domomento algo para o qual nunca esteve preparada. Ele sossegou qualquerpensamento se separando um pouco e voltando a enchê-la, com um movimentobrusco e certeiro que enviou milhares de dardos de prazer a sua virilha perna.

― Me diga o que sente.― Sinto... ― Voltou a investi-la. Ariadna o agarrou pelos antebraços. ―

Sinto que está sendo benevolente contigo.― Estou sendo... ― admitiu com a respiração entrecortada. Invadiu-a de

novo, e assim tantas vezes como pôde, até que em uma de suas retiradasAriadna sentiu que um líquido quente umedecia suas coxas. ― Mas está muitomais que preparada para receber ao diabo. Quer, Ariadna?

― Você não é o diabo... ― Esticou uma mão tremente, bêbada e cheia deprazer e milhares de ideias escandalosas no pensamento, e acariciou os iníciosde sua barba com os dedos. ― É um anjo cansado. E embora fosse, continuar-te-ia querendo aqui comigo... Agora...

Não pôde falar porque uma investida brutal a sacudiu, a ela e à cama. Odesejo singelo que sentia por ele, ancestral e puro, derrubou-se de tudo. Outroataque como esse, e Ariadna desejou algo ainda mais duro, mais doloroso, algoque ficasse em seu corpo durante o tempo que lhe faltasse.

― Cada palavra que diz é um motivo mais para te prender à minha cama enão deixar ir jamais. ― grunhiu perto da sua bochecha. Ariadna sentiu o toquede seus lábios húmidos, doces e suaves, e se acendeu. ― Estou louco,completamente louco por ti. ― Arremeteu-a violentamente, e ela teve queagarrar-se a ele para que a vibração da cama não a movesse do lugar. ― Porseu corpo, ― repetiu ― pelo que você diz..., por seus medos, por sua dor... Fazpossível o impossível, me devolve todas as coisas que me tiraram e meimpressiona com a extraordinária beleza que guarda dentro de ti. Continuosendo um egoísta e a quero para mim, pequena sereia... Antes foi meu troféu,mas agora sei o que vale; antes foi minha mulher cativa, e agora eu sou seuescravo permanente. Nunca... Jamais... ― beijou fervorosamente a comissurade seus lábios, até que ela abriu a boca e pôde encontrar sua língua em umacarícia lenta e licenciosa. ― Jamais vou sair de seu lado. Nunca, jamais, trocar-te-ei por outra. Nunca, jamais, deixarei de te pertencer.

― Sebastian...Ariadna cravou as unhas na carne. Foi viajando a outra terra, mas tinha

escutado perfeitamente as palavras que teria de gravar em seu coração: asúnicas e certeiras que podiam curá-la da tristeza que a afetou até esse dia emque ele a salvou. Precisamente ele, que parecia muito arruinado para amar aalguém.

― Grita, xinga, faça todo o barulho que queira. ― Mordeu sua orelha e,pelo tom que empregou, soube que estava sorrindo como um canalha. ―Sempre fui muito escandaloso... E posso te prometer que o serei, quando televantar a saia no canto de um salão de baile.

― OH, Meu Deus... ― mordeu o lábio com força, retendo o dragão quequeria sair dela. Ele ficou chocado com tudo que parecia emanar de seucorpo...

― Ir a outro baile? Tem razão. Encerrar-te-ei nessa torre que disse, mascomigo. E não levará uma só peça de roupa. Estarei te tocando, te possuindo ete admirando até que me vença o sono... Como agora, meu amor. ― Escondeu orosto no canto de seu pescoço e seu ombro. O sussurro que efetuou em seuouvido foi tão comovente e sensual que Ariadna se rompeu. ― Agarra, é todoteu... E diga meu nome, só meu nome.

Ariadna estremeceu de prazer e de dor quando o ardor arrasou seu corpoimpiamente. Aferrou-se à cintura de Sebastian, que seguia afundando entresuas pernas, roçando seus seios e levantando seus quadris para afundar-semais e mais profundo. Ariadna perdeu o ar, perdeu as forças, perdeu ohorizonte e perdeu a cabeça, e todo seu corpo reagiu contraindo-se. Teve medopela intensidade com a que o impulso do amor definitivo provocou seuabandono. Ouviu-se gritar o nome de Sebastian, que sorria lhe esquentando ocoração, formoso como só um homem de verdade podia sê-lo... Como o

primeiro homem... Como o deus do êxtase...9

As pálpebras lhe pesaram tanto que não pôde aguentar acordada um sóminuto, mas notou que ele também tremia sobre ela, pele com pele e suor comsuor. Foi vagamente consciente de que dava a volta com ela em cima, ficandoSebastian em baixo dela e ela estendida justamente sobre as nuvens. Apoiou abochecha em seu peito, sentindo-o grande e poderoso dentro dela, perfeito parasi em sua totalidade... Os lábios masculinos depositaram um beijo volátil emsua cabeça e, depois, tudo se tornou negro.

17

Ela estava ainda mais resplandecente em meio a sua dor, e a tortura aembelezava entre suas lágrimas. A sorridente Afrodite, encantada com suarisada, era vencida se comparada com a enferma Ariadna, e também eramsuperados os olhos de Persuasão, do Obrigado e do Amor ante as lágrimas damoça.

As Dionisíacas, NONO DO PANÓPOLIS

Um ingrato. Assim se sentia Sebastian ao contemplar a maior emaravilhosa obra de Deus enquanto pensava em abandoná-la.

Em algum momento tinha que deixar a cama, disse para consolar-se; nãopoderiam viver ali eternamente, derrubando-se entre os lençóis. Não importariaquanto se esforçasse, jamais poderia definir com palavras e por isso era umaperda de tempo que seguisse olhando-a em busca desse adjetivo inexistente.Simplesmente era... Sua glória, a ambrósia, o prazer entre os prazeres, o amor.Ariadna era amor adormecida a seu lado, com o cabelo descansando em todoseu esplendor mágico ao redor. Tranquila... sua alma era tranquila, calma epreciosa.

E ele talvez acabasse com isso, mas tinha que fazê-lo.Sebastian raramente duvidava. Os negócios requeriam cálculo, e pensava

muito antes de atuar, mas o duque de Winchester não era um pensamento,nenhuma variável, nenhuma possibilidade. O duque de Winchester sempre foiseu grande objetivo. Nunca deu um passo para diante ou se moveu pelo mundose não em sua direção. Até sem saber quem era exatamente, buscava-o.Passava noites recordando aquele dia em que foi procurar Cynthia nahabitação onde desempenhava seu trabalho, e um homem muito alto para verseu rosto correu pela soleira apressadamente antes de lhe oferecer um olhar deseus olhos selvagens. Mortos. «Morta.»

Passava os dias inteiros trabalhando com ímpeto e ilusão porque cadalibra lhe aproximava mais a seu plano, e já estava ali. Já o tinha. Tal e comosempre tinha sonhado, e como soube que chegaria se se casava com AriadnaSwift.

Tinha repassado cuidadosamente os nomes de todos os homens que viramsua mãe, tentando não pensar na eventualidade de que tivesse sido umpersonagem alheio a suas relações. Desde plebeus até duques desfilaram pelacama de Cynthia, praticamente todos eles, ou ao menos uma quantidadeapreciável, gostaram muito de Ariadna Swift só ao vê-la. Logo deduziu que elaera o caminho, a que produziria a aproximação. Homens como o viscondeGrayson ou como o duque de Winchester, muito elitistas para mesclar-se comum homem comum por mais dinheiro que caísse em suas mãos, não estariama seu alcance a não ser que lhes tirasse algo que acreditassem ser dele.Ariadna era esse algo. E se supunha que não deveria ter sido mais, mas agoraentorpecia seus planos.

O duque tinha que morrer. Não concebia outro final. Não suportaria viverna mesma cidade que aquele assassino sabendo qual era seu rosto ecoincidindo com ele na maioria dos eventos públicos. Não poderia dormir pelasnoites conhecendo seu histórico. Sua própria mãe o visitava em sonhos,suplicando que fizesse justiça. E não só por ela, mas sim por Ariadna; quedano não poderia causar a sua mulher, se por muito que a amasse erasuperior seu desprezo para com ele?

Na realidade, Sebastian nunca teve medo da morte. Reconhecia que suavida foi sempre um processo até o inevitável, e a seu parecer, muito dolorosopara valer a pena. Mas agora valorizava tudo o que era belo e tudo o que doía.Ela o disse: amava suas cicatrizes porque graças a estas chegou a ela... E PorDeus que acreditava, que bastava aquilo para purificá-lo, que ficaria nessacama só para recordar que era obrigatório viver porque seu passeio pelo infernoseria duplamente triste sem ela... E porque lhe prometeu que não aabandonaria.

Entretanto, sua cabeça seguia programada para uma só missão, e sua vozfoi mais disposta mandando escrever uma nota que suas mãos despindo aoanjo. Antes que Ariadna conseguisse propor outra partida de cartas, ele játinha mandado uma mensagem urgente a Mayfair para encontrar-se com oduque. E a hora estava se aproximando.

Olhou Ariadna uma última vez, compungido. Amaldiçoou-a interiormente

por interpor-se entre tudo o que estava mal e ele; por afastá-lo da vingança, dotemor, do ódio... Porque estava convencido de que só poderia superar tudoaquilo agarrando uma arma. E a amou tanto... Nua e estendida ali como umsonho que ainda não estava seguro de poder tocar. Suas mãos estavam limpas,não havia restos de carvão nem manchas de nenhuma classe, mas não seatrevia a tocá-la às vezes. Isso devia bastar para afastar-se. Se por capricho dodestino perecia essa noite às mãos do duque, talvez ela achasse o amor emoutro homem.

Só de pensá-lo ficou doente e teve que enrolar uma mecha de cabelo nodedo para descarregar sua frustração. A singela ação de roçá-lainvoluntariamente lhe abrandava o coração. Sentiu-o romper-se ao abrir umabrecha de separação e afastar-se, pegar seus trajes e vestir-se sem deixar deolhá-la nem sequer para piscar. Tinha que voltar. Tinha que voltar para ela,tinha que se estender a seu lado antes que despertasse. Não poderia viver coma culpa de havê-la feito sentir-se abandonada, embora fosse um segundosomente.

Assim, prometeu a si mesmo que acabaria com tudo o quanto antespossível, e que viveria sempre com ela, até que o amor o matasse. Terminou decalçar os sapatos e antes de sair se arriscou a deixar um beijo em alguma partede sua juba. Aspirou, e seu corpo encontrou forças ao envolver-se com seuaroma. E depois partiu.

Tinha que fazer uma só parada antes de dirigir-se às portas do estaleiro;saiu de St. James sem colocar um casaco que não necessitaria, e pôs rumo aolar de seu sempre cúmplice.

A cada passo que dava se sentia mais longe de si mesmo, mais frio, maiscapaz de algo... E não queria voltar-se para apreciar a tênue luz que tinhadeixado presa em sua habitação, como se isso fosse protegê-la. Não anecessitava para saber onde ficava sua essência.

Bateu à porta só três vezes. A essas horas, o serviço estaria descansando,enquanto o senhor da casa andaria olhando o fogo, bebendo ou tramandomaneiras de conquistar uma mulher já conquistada. Não se equivocou aosupor que o próprio Thomas Doyle em pessoa abriria, e nada mais além deolhá-lo aos olhos, saberia. Saberia porque ele sempre esteve à par de seusdevaneios.

― Um duelo não funcionará. ― Disse com voz calma, retirando-se para quepudesse passar ao saguão. ― É um duque. Sua posição lhe permitirá rechaçar

qualquer proposta de sua parte, especialmente um combate.― Não sei se planejo estar em pé de igualdade quando nos encontrarmos.

― Replicou ― Minha mãe não o esperava, e isto é por ela. Fui muitobenevolente avisando-o que vou incrustar-lhe uma bala no crânio em vez desimplesmente me plantar em sua sala de estar e sacar.

― Para sacar teria tido que passar por aqui, e não me teria ocorridopermitir se me tivesse expressado seus objetivos.

― Sabe qual é meu objetivo desde que nos conhecemos, Doyle.― Sim, mas quando nos conhecemos não tinha nada para perder. ― Repôs

com elegância ― Vais apostar tudo por um disparo?― Algo muito menos rápido e piedoso que um disparo me tirou isso tudo.

Não me importa que repita a história se desta vez for o vilão quem perde.Doyle sustentou-lhe o olhar sem pestanejar. Sebastian nunca saberia que

diabos rondava naquela cabeça. Normalmente não lhe surpreendia mais, masporque ele não tinha vontade. Dessa vez quis fazê-lo, enfrentando-o comorgulho e uma só verdade.

― Não quero ver-te morrer, Sebastian.― Então deveria ir pelo Blaydes. Seguro de que ele desfrutaria do

espetáculo. ― deu-se a volta, entre irritado e assustado pelas dúvidas. ―Diabos, Doyle. Não escolhi a ti como padrinho faz anos para que agora mefaças isto. E escolhi-te por ser duro. Para onde foi seu maldito espíritotemerário?

― Eu posso arriscar minha vida. A tua, não.Sebastian passou a mão pelo rosto, frustrado.― Basta de maneiras cafonas. ― Espetou. Estendeu a mão. ― Me dê a

maldita pistola.― Não conseguirei te dissuadir, verdade?― Se uma criatura muito mais doce e pequena que você não me dissuadiu,

lamento te dizer que não, não o faria nem insistindo durante cem anos. E agorame entregue isso.

Doyle levava anos querendo desfazer-se daquele objeto, que recordavatempos turbulentos nos quais teve que escondê-la em seus bolsos cada vez quesaía à rua e talvez usá-la para salvar sua vida. Combinou com Sebastian que aguardaria para pôr ordem uma só vez, nesse dia... pois aquela pistola tinhadisparado muitas vezes. Agora ia fazer o com um sentido real, com muitosprincípios por trás e, de ao mesmo tempo, nenhum.

Viu-o dirigir-se à escrivaninha sigilosamente, puxar uma das gavetas etirar o revólver. Nem sequer estava embainhado, apenas escondido e talvezempoeirado entre papéis, plumas e utensílios que poderiam cair em mãos dequalquer.

Doyle sustentou a arma, sem surpreender-se por sua leveza, olhando-asem nenhuma apreensão, mas também sem nenhuma familiaridade.

― Se não sobreviver não penso perdoá-lo. ― Disse olhando-o aos olhos.― Então irá ao inferno por não ter completado os mandamentos. Setenta

vezes sete, Dou...― O que está acontecendo aqui?Sebastian se virou para olhar uma mulher que nunca teria olhos para ele.

Megara tinha os olhos posta na arma que seu marido sustentava, tensa eencolhida sob a soleira da porta, agarrada a sua bata. Pôde sair do transe sópara abrir a boca e tentar repetir a pergunta, desta vez olhando para ThomasDoyle.

― O que faz com isso? ― Avançou com os ombros rígidos, e se plantou dooutro lado do escritório. ― Solta-o...

― Não é para ele. ― Saiu em sua defesa. ― É para mim.Sebastian pensou sem muita vontade de rir no muito que lhe custaria

ganhar confiança de Megara depois daquilo, e que não fazia a não ser perderpontos com a família de sua esposa. Ao menos já tinha a aprovação da citadaque era o único que precisava saber antes de arriscar sua vida.

― E isso deveria me tranquilizar? Que diabos significa isto? ― exclamoubaixo. Apoiou as mãos em cima da mesa e se impulsionou para frente. ― Pode-se saber que classe de missão secreta reúne dois homens de madrugada comuma pistola no meio?

― É somente um duelo, Megara. ― explicou Doyle ― Um homem ofendeuao senhor Talbot e chegou a hora de limpar o nome da prejudicada.

Megara abriu os olhos.― Prejudicada? Estamos falando de Ariadna?― Não, estamos falando de minha mãe. ― Resumiu Sebastian ― E não

minta, Doyle. Não parece que isto vai ser um duelo. ― Aproveitando que os doisestavam imersos um no outro, interrogando-se em silêncio, agarrou o punhoda pistola e fez a ameaça de guardá-la. Doyle o impediu, e ele, para apressá-lo,insistiu: ― Já chegarei tarde ao encontro.

Megara negou com a cabeça.

― Pensa arriscar sua vida? E o que seria de Ariadna...? Sebastian,tornaste-te louco?

Ele a olhou sem paixão alguma, embora com uma careta zombadora.Sentiu a presença de Doyle a suas costas, lhe dizendo sem palavras que oseguiria.

― Isso não seria uma vitória para ti? Porque não é como se alguma vez mequisesse para ela. De fato esse é o motivo pelo que não o perdoa. ― AssinalouDoyle com a cabeça, movendo-a para trás. ― Não pode suportar que seja seumarido... possivelmente esta noite possamos acertar isso.

Megara os olhou com o horror gravado nos olhos. Estes se umedeceram auma velocidade alarmante. Lágrimas correram por suas bochechas com tantarapidez que não poderia tê-las secado, mas Sebastian não parou. Nuncasaberiam se Doyle o teria feito, porque ela se interpôs em seu caminho.

― Não, não... você não vai a nenhuma parte. ― Balbuciou. Sebastian deuuma olhada por cima do ombro, e observou que Megara o abraçava pelacintura e o apertava contra si, tentando retê-lo no espaço. Uma tolice que nãosurtiria efeito se ele decidisse partir. ― Thomas, não pode... Não pode fazer isto.Ainda não sei exatamente do que vai seu acordo sinistro, mas não vá. Porfavor, por favor...

― Meg, não corro nenhum perigo. ― Disse.― Sim que corre! Vai de noite com um revólver e um homem que planeja

usá-lo! ― exclamou, abraçando-o com mais força. ― Não me deixe, Tommy.Estou te suplicando... sinto muito, está bem? Sinto muito. Quero-te. E queroque Talbot seja o marido da Ariadna. Não vão a nenhuma parte, não...

Sebastian soube que seu marido a abraçaria assim que fechou os olhos.Doyle a envolveu com os braços e a sustentou uns segundos, transmitindolassidão ao corpo feminino.

― Calma. Não passará nada... A não ser que eu não vá, nesse caso esteidiota aqui não verá o amanhecer. ― Particularizou ― Confia em mim. Faça-o.Sabe que quando aposta por mim nunca perde.

Aquilo a acalmou, e não foi a única a relaxar. Sebastian reconhecia otalento de fazer que tudo fluísse como devia ser. O que o preocupava era que ascoisas, ao ser como deviam, não fossem em seu benefício. E havia uma grandeprobabilidade de que assim fosse.

Ouviu um sussurro, um ofego nervoso, um soluço quebrado... Umpequeno silêncio, outro murmúrio. E por fim Doyle respondendo em tom

íntimo: «Não lhe dou isso para que tenha a certeza de que voltarei para não tedeixar sem ele e assim me dar motivos para não fazer nada perigoso».Sebastian imaginou que se referiria a um beijo. Faria um comentáriodepreciativo a respeito no trajeto que fizeram até a saída, mas tinha o corpotalhado e muita raiva flutuando em suas zonas líquidas. Acabou simplesmenteagradecendo em silêncio que Doyle o acompanhasse.

― Deveria ter ficado. ― Disse Talbot sem olhá-lo, descendo os degrausapressadamente.

― Não, amigo. «Você» deveria ter ficado com ela. ― Acrescentou comsabedoria. Aproximou-se, situando-se a seu lado. ― Mas a ti e a mim sempretem feito falta provar a desgraça para valorizar a felicidade, verdade?

― Asseguro-te que eu não voltaria a procurar a desgraça se não fossenecessário. Se vivo para contá-lo, nem me ocorrerá. ― Resmungou.

― OH, vais viver. ― E soou a certeza, como tudo o que dizia. ― As máservas nunca morrem.

― De todo. ― Particularizou ― Nunca morrem de verdade ... Mas o fazem.De todos os modos, não haverá noite mais poética que esta para entregar-se à

Grim Reaper 10. Poderei dizer que fui o único homem no mundo que no mesmodia esteve com Deus, com o anjo e com o diabo.

A jornada começava às cinco da manhã; antes do amanhecer, dificilmentese ouvia algo mais nos Docklands além do rumor das águas. A respiração deDoyle. Os passos de ambos. Seu coração pulsando. A voz de Ariadna,encerrada em seus pensamentos, falando com a única calma que era realmentecontagiosa. A canção de ninar preferida de sua mãe.

A maioria dos sons provinham de seu interior, pelo que gostava de chamar«seus segredos», embora nunca tivesse sido um mistério que seriamente quis àmulher que o iluminou. Eram seus segredos porque sempre pertenceriam a eleexclusivamente, porque embora puderam levá-la de forma rasteira imaginável,Sebastian honrava sua memória com pensamentos que não deixaria queninguém manchasse.

Além da ausência de ruído, via-se talvez um pouco menos. Logoamanheceria, e só uma fresta de luz se percebia ao longe. O resto estavasubmerso nas sombras, na bruma que precedia ao novo dia. A porta doestaleiro estava vazia; apenas alguns homens passavam a noite ali, adiantandoseu trabalho ou utilizando sua coberta e chaminé como proteção. Sebastian

cruzou a soleira em completo silêncio; observou pela extremidade do olho quequase tudo estava às escuras. Possivelmente Henry Payton andasse pela zonacomo recentemente renomado supervisor e mão direita.

Parou assim que reconheceu uma presença. O anel ducal que Winchesterlevava no dedo cintilou, captando sua atenção; pensou que lhe soava familiar, eentre toda essa familiaridade se interpôs o pré-fabricado sentimento de raivaque durante anos foi seu salva-vidas.

Sebastian não se deteve a distância dele, como se realmente fossemformalizar um duelo. Avançou pela passarela sem deter-se, deixando atrásDoyle. A penumbra recortava sinistramente a silhueta do duque, que facilitouseu percurso dando os últimos passos.

Memorizou sua cara para não a esquecer jamais. As palmas lhe suaram,não por estar nervoso, mas por senti-las vazias. Uma arma deveria estar emseu lugar. Apertou o punho amaldiçoando que Doyle a tivesse agenciado pelocaminho.

― Por que aceitou vir? ― perguntou sem entonação ― Há algum motivopelo que verdadeiramente deseje acabar comigo, além de o ter ameaçado, ou sóapareceu pela curiosidade de como arrumaria para matá-lo?

― Tenho meus próprios planos. ― Respondeu ― Você morre, e meushomens atuam para que pareça um acidente. Não será difícil. Uma pistola emsua mão, um tiro na cabeça, uma nota de suicídio... E um par de cavalheirosque falem a favor de sua grave depressão. Depois, eu me caso com a viúva.

Sebastian se conteve para não o agarrar pelo colarinho. Em seu lugarpensou, desejando distrair-se de seu grotesco sorriso, em como reagiriaAriadna ao ler uma nota de suicídio aparentemente escrita por ele. Perguntou-se o que diria então, e não ficou surpreso ao visualizar perfeitamente,levantando o rosto, com os olhos da honestidade e negando com um singelo:«ele não sabia escrever». Que poucas considerações teriam com sua imagem seisso fosse descoberto... E o que pouco lhe importava.

― E se ela resistisse? Porque isso foi o que fez minha mãe, verdade?Resistir. O único motivo pelo qual está morta.

― Teria morrido de todos os modos. As putas poucas vezes chegam aostrinta. Porque sua mãe, Talbot... Sua mãe era uma puta por definição.Prisioneira exclusivamente de seu trabalho. ― Deu um passo à frente ― E eunão gosto que outros toquem o que é meu, assim se não for minhapropriedade... Não vai ser de ninguém. Expliquei-me bem?

― Crime passional. Tal como imaginava. ― Deduziu, tentando soar frio. ―Tenho que supor que sua raiva pelo meu sobrenome provém dela?

― Não perderia meu tempo odiando o filho de uma puta. O único quequero de você é sua esposa. ― Sorriu e se separou o suficiente para esticar obraço. O som de uma pistola carregada assobiou muito perto de seu ouvido, elogo teve o canhão da arma na testa. ― Estou impaciente.

Sebastian sustentou o olhar daquele louco. Porque só podia definir-se deum modo: loucura. Estava doente de poder, não diferenciava entre o bem e omal, e por causa de seu egoísmo podia chegar a cruzar as linhas do correto.Era uma bonita maneira de expressá-lo, quando Sebastian só pensava emmatá-lo ou morrer. Não poderia viver sabendo que esse homem continuavarespirando.

― Vejo que veio sozinho.― Queria demonstrar que posso me encarregar de meus próprios

assuntos, tal como você. E nada me produziria mais agradado que vê-lo morrerem minhas mãos. Minhas e de ninguém mais...

O som de um objeto deslizando pelo chão distraiu ambos. Sebastian olhoude esguelha e observou que o revólver acabava de golpear seu pé, impulsionadopela força do braço de Doyle. Depois se fixou no duque, que demorou umsegundo só a mais a reparar no presente inesperado. Aproveitou esse efêmeroinstante para golpear a arma com o antebraço, afastando-a de sua cabeça.Esta disparou, provocando um som de cristais quebrados.

O movimento violento do golpe arrancou um gemido de dor ao duque, quedeixou cair a pistola justo para que Sebastian pudesse apanhá-la antes quecaísse ao chão. Agarrou Winchester pelo pescoço e pegou suas costas ao peito,pressionando o canhão da arma contra sua têmpora.

«Que prazer poderia te dar lhe fazer dano? Estaria te pondo a seu nível, eela não vai voltar porque você a vingou ... deixe-o ser um monstro e não teconverta num por querer assinalar sua crueldade.

«Não precisa te vingar, só precisa te sobrepor... Alguém se encarregará decastigá-lo. Não faz falta que seja você.»

Sebastian fechou os olhos um instante. Quis golpear-se para tirar aquelamolesta voz de sua cabeça, para que as sombras o deixassem terminar decondenar-se. Estava convencido de que ir ao cárcere seria o menor de seusproblemas se conseguisse acabar com o assassino de Cynthia. Mas agora...

Sebastian não reagiu. Perdeu-se em seu próprio assombro, ao descobrir de

que não queria nem devia matá-lo, de que agora havia coisas acima davingança. Ao olhar ao redor ficou nervoso, conscientemente desorientado.

Não lhe deu tempo a decidir, embora já estivesse baixando a arma: aexclamação afogada de um homem às suas costas e o repentino conhecimentode que lhe custava respirar lhe fizeram soltar o duque, pisar na pistola quepertencia ao Doyle e olhar para a entrada.

Observou, com a cara decomposta e a ponto de cuspir o coração, que seuamigo se aproximava rapidamente ao abajur quebrado que tinha ateado fogo aseu redor. Este tinha caído sobre um montão de tábuas de madeira, vítima dodisparo aleatório.

O duque aproveitou esse instante para o golpear com o cotovelo e o fazerretroceder. Sebastian tropeçou e teve que agarrar-se à gravata-borboleta dohomem para arrastá-lo consigo. Soltou a pistola e a jogou tão longe comopermitiu a força do braço, limitando a briga às mãos.

Seu competidor iniciou primeiro, golpeando-o na bochecha com umtremente e inexperiente punho fechado; Sebastian o devolveu no estômago.Beneficiou-se de seu encolhimento para rodar com ele e ficar por cima.Queimava-lhe a cara justo à altura do próximo sinal de violência, mas oignorou levado por um sentimento de perigo que fazia anos que não sentia.Concentrou-se com muita dificuldade no corpo do inimigo e não no fogo, e fez aameaça de levantar-se para pôr a ambos de pé. Mas o duque demonstrou teroutros planos esticando o braço, roçando com os dedos o punho do revólver.

Sebastian lhe pisou no dorso com a grossa sola da bota, e embora pudessepegar a arma e terminar de uma vez por todas, decidiu que não era merecido.Só um segundo. Um segundo bastou para que tomasse esse caminho.

Levantou-o sozinho agarrando-o pela jaqueta e o sacudiu. Não se expôsgolpeá-lo; tudo que lhe rodeava era dele e não pensava jogá-lo a perder para lhever gemer de dor. Sua mente estava no fogo, esse fogo que crescia e sepropagava graças às cobertas de madeira, aos restos de tecidos, aos metais...

― Vou acabar contigo, e contigo morrerá tudo o que construíste. ― VaiouWinchester.

Sebastian se dirigiu a ele com as fossas nasais dilatadas. Recebeu emseguida um golpe no peito que o deixou sem respiração, e que serviu para quesoltasse o duque com um gemido doloroso. Este caiu de costas, rodou, e assimconseguiu pegar o revólver de Doyle.

De uma piscada a outra, estava carregada e de novo esperando ordens

para matar. Sebastian voltava a estar à mercê do homem poderoso, e soubeque morreria quando sorriu e se levantou com fingida tranquilidade. A decisãode Winchester era tal ao empunhar a arma que inclusive tremia de satisfação,e o arquear das chamas atrás dele somente alimentava a teoria de Sebastian deque era, na realidade, um demônio.

― Pensava que poderia contra mim? ― perguntou, inclinando a cabeça.Sebastian retrocedia a cada passo que dava, impotente, olhando por todoslados; a salvação tinha que estar em alguma parte. ― Pensava que poderia tirara minha mulher sem que houvesse consequências...? Ou possivelmentedevêssemos nos remontar a uns quantos anos antes. De verdade acreditavaque conseguiria ser alguém, e que a fama duraria para sempre? Que ninguémte poria em seu lugar por atrevimento, cedo ou tarde...? É um cão de ruas, umcão pulguento, um analfabeto desgraçado. Mais um bastardo... E voltará parao lugar de que saiu. Assegurar-me-ei de que seu corpo acabe numa fossacomum. Porque os cães como você, Sebastian Talbot, somente podem morrercomo cães.

Acionou o gatilho do revólver, e tudo que Sebastian viu antes de quedisparasse foi o rosto de Thomas Doyle assistindo à cena com sentimento dealívio que era contagioso. Por um segundo pensou que se alegrava de vê-lomorto, que estava de acordo com cada palavra pronunciada... Mas então a balasaiu disparada e apagou de seu pensamento tudo o que não fosse um rostofeminino pálido. Para que esse tudo acabasse fazendo sentido.

Ariadna estava sonhando com homens sem rosto que a balançavam entreseus braços quando uns gritos provenientes do piso inferior a sobressaltaram.Despertou repentinamente, e esteve esfregando os olhos por alguns segundosde propósito, temendo olhar a seu lado e não ver ninguém. Pareceu que seuinstinto soube antes que ela, porque ao deslocar os olhos nem sequer pôdeaferrar-se ao sentimento de traição ou ao desengano. Sabia que acabariaocorrendo. Sabia que era inevitável..., e que não seria ela precisamente quemteria a oportunidade de resgatá-lo das garras da vingança.

O que não imaginava, entretanto, era que Mairin apareceria empurrando aporta de sua habitação com essa energia vibrante que a caracterizava. Ariadnaentendeu sua expressão inclusive sem vê-la: só a tensão de seus braços, desuas pernas, de seu tom ao pronunciar o nome do que foi seu amante... Tudoaquilo foram indícios sobrados para reconhecer o problema, que não suasolução.

― Minha senhora... O estaleiro está queimando ― disse sem rodeios.Aproximou-se nervosamente até os pés da cama e a ajudou a retirar os lençóisque a prendiam. Se lhe surpreendeu sua nudez não o demonstrou, e seAriadna esteve nua, tampouco o percebeu entre os calafrios que a atarraxaramao colchão. ― Se vê da casa de meu senhor. Uma massa de fumaça negrasaindo do bairro dos Docklands. Fui vê-lo com meus próprios olhos porque vivoperto do porto, e é fogo. Fogo! Tinha que vir para me assegurar de que o senhorTalbot estava a salvo, mas Graham me informou que saiu faz algumas horas.Não sabemos em que direção, embora...

Ariadna deixou de escutar. Mairin seguia falando, fazendo dramalhões,ajudando-a. ― ou tentando ― a sair do transe, e ela acabava de perder todas aslembranças para repetir uma só palavra. Fogo. Fogo. O estaleiro queimando. ESebastian... sem paradeiro conhecido.

Não. Ele nunca estaria em outro lugar que não fosse sua adorada fábricade navios, e menos se toda Londres sabia que já que caía em pedaços. Somenteo encontraria ali, procurando apagar as chamas, resgatar seus empregados, oupossivelmente...

Ariadna esteve a ponto de desvanecer, mas foi curioso como o medo que ainvadiu não guardava relação com outro previamente experiente. Não era seupânico à água, nem o temor à decepção ou a perda; era um horror impotentecom ainda esperança que dava mobilidade a seu corpo em lugar de arrebatar-lhe. Felizmente, Mairin estava ali para sustentá-la quando seus tornozeloscederam, a soltou assim que esteve agasalhada pela camisola e a bata.

― Aonde vai? Senhora...? Senhora, não estará pensando em ir ali,verdade? É perigoso, e...

Ariadna a ignorou e calçou as sapatilhas. Não recordava ter caminhadotão depressa em seus vinte anos de vida. Pareceu-lhe estranho forçar suaspernas trementes a fazer o trajeto até as escadas, e logo agarrar-se ao corrimãopara saltar uns quantos degraus. Ao fundo Graham a recebia, quepronunciaria algumas poucas frases em tom preocupado. Tampouco asescutou, e se desfez com a mesma presteza da mão amável com a qual omordomo tentou detê-la.

Na rua, fechou os olhos um segundo e tentou recordar qual era o caminhopara o estaleiro. A primeira vez foi de carruagem, mas Deus sabia onde estavao chofer a essas horas da noite. Só sabia que a pé demoraria horas, e cadasegundo contava. Assim, afinal rodeou a casa e foi pelos cavalos.

Aprendeu a montar muito jovem por insistência de Briseida e Penélope,que eram apaixonadas pelos animais. Levava anos sem picar em esporas, maspensou que não era algo que pudesse esquecer e, se não, estava disposta aimprovisar.

Montou ao equino escarranchada, sentindo-se estranha e dolorida, nãomuito proprietária de seu corpo. Animou-o a trotar fora do recinto, temendoque fosse uma égua rebelde, e relaxou quando o animal obedeceu suas trêsprimeiras ordens. Logo esteve cavalgando pelas calçadas de Londres, não tãoconsciente do que aquilo produziria em outros como do medo que lhe impediade relaxar sobre os arreios.

Soube que tinha tomado o caminho correto antes de pensar. Algumasruas antes de chegar ao porto, teve que segurar a respiração para não inalar afumaça que alagava os blocos finais até chegar à edificação. Ariadna elevou osolhos, cobrindo a boca com uma mão, e os olhos lhe picaram ao advertir queMairin não tinha exagerado um ápice. O que apenas umas semanas antesconheceu como um centro de trabalho enérgico e vibrante, agora ficava ocultopelo vermelho brilhante das chamas, e conforme mais se aproximava, melhorcompreendia qual era a solução para aquela desgraça... Nenhuma.

Sentindo que o cavalo dava coices cada vez que as faíscas que flutuavampelo ar lhe roçavam, decidiu desmontar e atá-lo onde não respirasse ar poluído.Não afastou os olhos dos arredores, onde uma série de homens visivelmentehumildes entravam e saíam sozinhos ou acompanhados, manchados outambém capengantes, dando ordens ou as recebendo com apreensão. Ariadnaprocurou desesperadamente entre os rostos um que lhe parecesse conhecido,uma compleição inigualável, umas pernas longas e uns gestos bruscos, masnão encontrou nada mais que medo e desesperançada obstinação entre osformados redemoinhos na entrada.

Dirigiu-se ali tossindo, e tocou o ombro chamuscado do primeiro homemque pensou estar informado.

― Pelo visto caíram um par de abajures e pegou fogo à madeira dasuperfície... ― Expressou o homem ― Não havia muitos homens dentro: unscinco ou seis, chegamos a contar. O senhor Doyle era um deles. Está vivo eajudando a tirar um afetado que ficou apanhado... Outro é o senhor HenryPayton. Caiu-lhe uma das vigas em cima. Segue vivo, mas não por muitotempo, temo.

― E o senhor Talbot? ― perguntou sem fôlego. O homem ficou pálido.

― Não sei. Estava dentro quando chegamos, e acredito que ainda não saiu.Ariadna desviou os olhos ao que ficava da porta. De sua posição podia

perceber uma passarela livre, mas a julgar pela tensão que se sentia noambiente, as possibilidades de que o teto caísse sobre suas cabeças em caso decruzá-la eram muito altas. Ninguém em seu são julgamento ocorreria entrar...a não ser que estivesse perdendo algo importante.

Encheu-se de coragem com uma inspiração e, embora não estivessesegura de que com seus braços débeis pudesse salvar Sebastian se oencontrasse ferido, disse que tinha que tentá-lo. Piscou para ver mais à frenteda fumaça, e aproveitou um dos grossos babados da manga para cobrir a boca.Sem dar explicações, correu torpemente para o fogo e entrou no que ficava doestaleiro. Assim que esteve de pé ante o que horas atrás tinha sido ummagnífico casco de navio, sentiu que as forças a deixavam. Estava queimando;Cynthia ardia, murchava com as chicotadas das chamas, cada vez mais altas eperigosas.

Ariadna pensou que aquilo entristeceria a Sebastian, e, por algum motivo,imaginar a tristeza no rosto de seu marido lhe rompeu o coração. Tinha queencontrá-lo para saber que estava bem e para abraçá-lo. Seguro de que achariaforça e coragem para fazê-lo; seguro de que não ficaria mais nos portões...

― Sebastian? ― chamou com voz tremente, apertando as pálpebras paraver melhor. ― Sebastian, me.… ouve?

Sentiu-se ridícula e imprestável, e extremamente ingênua: seus olhos nãoeram os melhores para esse tipo de tarefas. Seus olhos eram defeituosos.Poderia confundi-lo, não vê-lo, e lhe doía tanto abri-los pela fumaça queacabaria enjoando. Já estava, embora isto não a impedisse de continuaravançando, tomando cuidado de medir muito bem seus passos e esquivar osobstáculos, os focos de fogo.

― Senhora! ― gritava alguém da entrada. Várias vozes se elevaram a seusom. ― Senhora, volte aqui! É perigoso!

Ariadna engoliu em seco copiosamente e negou, como se pudessem vê-la.Inspirou uma nuvem de fumaça negra e começou a tossir com violência, masisso tampouco a parou. Seus olhos se detiveram em cada canto, inclusivetentaram ver além das chamas. Ficou rígida ao reconhecer um corpo estendidoentre as tábuas. O fogo lhe subia pelas pernas. Não sabia se estava morto ouinconsciente, e em que pese que o instinto lhe disse que não era ele,aproximou-se de qualquer forma para comprovar que estava certa.

Não pôde fazê-lo: reconhecer o rosto chamuscado e ensanguentado de umser humano teria sido tarefa suprema para qualquer um, mas ainda assimsofreu uma grande impressão. Ariadna retrocedeu, horrorizada pelo queacabava de ver. Tropeçou sem querer com uma das obstruções da passarela, egolpeou a cabeça com um material duro e quente. Assustada, agarrou-se aoprimeiro que encontrou para levantar-se. Não separou do pensamento aimagem de Sebastian em estado similar aquele homem, o que a ajudou a nãodesistir e cruzar ao outro extremo. Soube que era um milagre que não lhetivesse ocorrido nada, e que não poderia ter pior sorte que sobrevivendo paranão o encontrar.

― Sebastian, onde está? ― perguntou a beira do desespero, mais para simesma.

Pensou durante um instante em sentar-se ali e esperar que o céu lhecaísse em cima, ou que por obra divina ele aparecesse de repente, do fogo doque sempre acreditou que tinha nascido, ou das águas... Olhou à suaesquerda, e observou que eram o porto e o mar os que ficavam muito perto deseus pés.

Instintivamente se recolheu, emudecida pelo efeito que a água tinha sobreela. Sua dimensão era maior, sua periculosidade também... E um exemplo eraa figura semi- nua de um homem. Um homem grande, vestido de acordo comsua importância, flutuava na superfície com os olhos fechados e as bochechasenegrecidas pelo carvão.

Até temendo sua posição, Ariadna se aproximou da beira da edificação eseu coração parou ao reconhecê-lo com clareza.

Saiu a alma do corpo com um grito ansioso e cheio de sofrimento, e nãodemorou para balançar-se para frente, em sentar-se com as pernaspendurando sobre a água e arrastar-se para tentar alcançá-lo...

Mas não pôde.As luzes do amanhecer se projetavam sobre a água, e por muito que a

fizessem brilhar, a Ariadna inchou o peito de terror. Começou a tremerdescontroladamente, esticando os braços para Sebastian, e ao perder oequilíbrio, escondendo-os de novo às costas. Um tremor nos lábios quebrou apaz de seu queixo, mas não derramou nenhuma lágrima, e seguiu tentandochamá-lo, trazê-lo para ela desenhando correntes sob seus pés... Até quecompreendeu que assim nunca conseguiria, que seu corpo poderia afundar eela ficaria ali para vê-lo.

Tremendo violentamente, conseguiu encontrar seu próprio eixo e ficar depé. Sentiu que vomitaria, que se deprimiria antes, que não chegaria viva paratocar a água... Mas pensou que tampouco o faria se retornava para casa semele, e parte do medo, uma minúscula e inapreciável parte, foi substituída poruma gota de valentia. Assim, Ariadna agarrou ar várias vezes, balançando ocorpo nervosamente, e se jogou na água com um uivo de pânico que lheinstalou o frio na coluna.

Caiu tão perto de Sebastian que não teve que utilizar as mãos, mas o afãde sobrevivência a animou a chutar nas profundidades com força ansiosa.Hiper ventilada e muito perto de chorar ao pôr suas mãos sobre o peitoempapado de Sebastian, que com os olhos fechados, a pele pálida e a bochechainflamada, era o retrato da morte.

― Estou aqui. ― Ofegou entrecortadamente. Colocou uma das mãos atrásde suas costas e empurrou-o para cima, como querendo que a água não lheroçasse. ― Vou... Vou... vou tirar-te. N-não sei como, mas... Mas... o farei e.… eficará b-bem...

Não acreditava que fosse conseguir, e possivelmente isso resultassedeterminante na hora da verdade. O medo, a preocupação e as pontas da batase enredaram nos pés de Ariadna, o que lhe custou seguir esperneando algunssegundos depois. Disse o nome de Sebastian várias vezes. Tentou que voltassecom ela, e ele não despertava. Pensou se estava morto, se tinha ido a seu ladopara morrer ali... E por um segundo só não temeu as consequências.Consequências que nunca chegaram a efetuar-se, porque um homempronunciou seu nome do estaleiro e mergulhou nas águas.

Ariadna não viu bem seu salvador, mas reconheceu seu aroma corporalpor ter vivido com ele por muito tempo; com seu perfume se mesclava o de suairmã Meg, mas como, unido às firmes e eficientes, mas sempre distantes mãosque a elevaram facilmente à superfície lisa da passarela do porto, foi suficientepara reconhecer a Thomas Doyle.

Ariadna abraçou a si mesmo com os olhos fora de órbita. Seguia tãoassustada que não podia falar nem mover-se corretamente, e o frio tampoucofacilitava seus intentos. Tentou seguir lúcida para abraçar Sebastian quandoDoyle o tirasse dali; queria comprovar ela mesma que respirava, que não lhetinham feito mal... Mas a impressão de ter estado na água convencida de quefossem morrer os dois a ultrapassou. Porém, antes de ceder ao ataque depânico e ao desfalecimento, qualquer que fosse a força que os dirigia de cima

lhe permitiu manter-se acordada até que Sebastian esteve a salvo. Depois foivencida, mas com a certeza de que enquanto ele estivesse bem, ela estariatambém.

Ariadna despertou sem estar muito segura de onde se encontrava. Adesorientação durou o mesmo que trocar a postura: assim que tomou ar edeslizou os dedos pelo vazio espaço a sua direita, ausente de aromasmasculinos, soube que estava em sua cama. Em sua habitação. Viva...

― Que susto me deu, senhora Talbot. ― Expressou o mordomo,suspirando entrecortadamente. Ariadna forçou os olhos para olhar Graham norosto, que estava ajoelhado junto a sua cama; um trabalho não muito nobrepara um trabalhador de sua categoria. ― Desapareceu tão rápido que nemsequer pudemos seguir seu rastro...

― Não a censure como se a tivesse pego roubando biscoitinhos, Graham. ―Repreendeu uma voz feminina. Ariadna deslocou os olhos até Mairin, queapertava os lábios. ― O que fez foi uma insensatez, e uma loucura. Poderia teracontecido algo terrível, minha senhora...

Ela sacudiu a cabeça, como querendo livrar-se da enxaqueca que aatormentava, e da incisiva reprimenda da donzela. Alegrava-se sinceramente devê-la, e também sentia curiosidade por sua presença ali, já que teria outrasobrigações que atender... Mas nada disso era tão importante como assimbólicas pedras sobre seu peito. Ainda sentia um grande desconforto dentrodo corpo, maus pressentimentos, sofrimentos compartilhados. E, agora, adecepção ao ver que Sebastian não estava a seu lado.

― O senhor Talbot se viu obrigado a sair, minha senhora ― expressouGraham, lhe oferecendo o consolo que esperava e não teria sabido pedir. ―Solicitou expressamente que ficássemos velando-a e fôssemos lhe buscar emcaso de que adoecesse.

― Como se não o tivéssemos feito igual, tivesse ele pedido ou não. ―exclamou Mairin. O mordomo avermelhou, como sempre que ela semanifestava sem muita diplomacia.

Ariadna assentiu e se levantou lentamente. Ainda notava o frio nasextremidades, na coluna, aderido ao crânio e dentro do umbigo. Moveu-se maise mais devagar, mas sem parar em nenhum momento, até que teve os pés nochão. Estremeceu, demorando para assimilar que era terra firme.

― Aonde foi? ― perguntou com voz débil.― Ao estaleiro, minha senhora.

Quis perguntar em qual estado tinha ficado. Pelo que apreciava através dajanela, estava entardecendo, o que significava que tinha passado quase todo odia inconsciente. Entretanto, não encontrou coragem para ouvir de seus lábioso que ela imaginava como a verdade.

― Ajude-me a vestir, Mairin. ― Pediu.― A vestir-se? Pretende ir agora ao Docklands? Minha senhora, lamento se

minha sinceridade a ofende, mas só daria problemas ali. Estiveram toda amanhã transladando feridos e cadáveres, e tentando salvar algumas peças. Setudo seguir igual, obstruirá a passagem e...

― Sou muito pequena para obstruir a passagem, e se o faço, ficarei delado.

― Muito pequena para que a visse um carrinho de mão em movimento. ―Particularizou Mairin.

― Então colocarei um vestido chamativo. ― Concluiu.Não fez falta que elevasse a voz ou endurecesse o tom. Sua decisão

sossegou qualquer que fosse o protesto de Mairin e ganhou o respeitosilencioso de Graham, que abandonou a habitação para que pudessemcomeçar a trabalhar.

Apenas meia hora depois, Ariadna se dirigia com a carruagem à zona dodesastre. Passava das sete da noite, e embora em teoria o acontecido deveriater jogado às pessoas às ruas, Ariadna não viu muito alvoroço. Pensou queLondres estaria de luto pelas vítimas, e naquele famoso dito que dizia quedepois da tormenta sempre aparecia a calma.

Mas essa calma era violenta. Silenciosa, sim... E também extremamenteagressiva, e enferma, e melancólica. Algo acabava de romper-se, algo grande eonipotente, e a cidade inteira dormia porque sabia, que nem mesmo todosjuntos poderiam reconstruir o poder ou as vidas que o fogo tinha consumido.Assim que pôs um pé nas arcaicas tábuas do píer e elevou os olhos, viu-o. Nãohavia ninguém ali, com exceção de um par de homens longe varrendo o pó queentrava em suas casas. Ariadna sentiu saudades da ausência de ruído numlugar que sempre deve ter ocupado, e também que não houvesse uma almaacompanhando o dono dos escombros. Porque isso era o estaleiro: escombros.Cordas, tábuas, ganchos, restos de metais e outros materiais chamuscadosempilhados desordenadamente, e cobertos pela grossa capa de pó que a partirde então formaria parte deles. Sebastian estava diante das ruínas, perto deonde voavam faíscas de fogo; ali onde o ar era mais denso e escuro.

Ariadna se aproximou com o coração encolhido. Reconhecia suas costas,mas não teria associado a derrota de seus ombros e sua postura com o nomede Sebastian Talbot. Tal e como estava, parecia um moço pendente do milagrede todos os dias: a água engolindo a enorme bola de fogo que era o sol, de umatonalidade ambarina tão romântica que quase teria parecido uma imagem definal feliz. Quase, porque se Ariadna soube que era ele sem contemplar seurosto, foi pela distensão de seus músculos que significava deplorávelassimilação. Ela foi consciente de quando Sebastian Talbot baixou as armas,deixando de ser seu inimigo e forçado cúmplice sexual, para converter-se emum homem rendido à evidência: esse sentimento que o relaxou então, oconhecimento de ter visto cair uma lenda, coloria-o então. E sua resignação eramuito mais triste que qualquer outra coisa que Ariadna tivesse conhecido.

Quando chegou a sua altura não soube muito bem o que dizer. Sebastianabraçava os joelhos e olhava o horizonte piscando muito lentamente, como sese obrigasse a recordar que era humano e devia fazê-lo. Estava machucado,sujo; tinha as mangas da camisa rasgada, com os punhos praticamente negros,e havia um hematoma na bochecha.

― Por que está sozinho? ― lhe ocorreu perguntar, em voz tão baixa quejuraria que a natureza e a cidade calaram para ouvi-la.

― Pedi a todos que partissem faz algumas horas. ― Murmurou com a bocapastosa. Umedeceu os lábios cortados, e não apartou os olhos da água. ― Àsvezes não é ruim ficar sozinho.

Ariadna tentou que não lhe tremesse o queixo dando uma mordidaapertada, mas não conseguiu. Ardeu-lhe a garganta ao balbuciar:

― Se quiser, vou... Não pretendo te incomodar.Ele virou a cabeça quando ela já se preparava para dar a volta, convencida

de que sua presença não trazia nada bom. Mas seu olhar a paralisou ao chão edesfez o nó que levava em seu estômago desde o dia anterior. Seus olhosestavam vermelhos, e mesmo assim demonstrava tal fortaleza que Ariadnasentiu romper-se por ele.

― Sinto-o. ― Murmurou, tremendo ― S-se não tivesse casado comigo nadadisto teria acontecido.

Sebastian a olhou diretamente, confuso.― Só trouxe desgraça à sua vida. ― Desafogou ― E por isso... quero que

saiba que estou muito arrependida e que se... se desejas que parta, se nãoquiser voltar para ver-me... Cumpri-lo-ei. Farei-o. ― Assentiu com convicção,

sem sentir como as lágrimas rolavam por suas bochechas. ― Prometo.Sebastian franziu o cenho tão devagar que ela compreendeu em seguida

por que, e quais eram as emoções que turvavam sua expressão. Levantou-serapidamente com a única pretensão de atemorizá-la, e o conseguiu: intimidou-a ao estirar-se quão alto era e aproximar-se como um carnívoro no centro dacaça.

― Repete o que disse.Ariadna não abaixou o olhar.― O duque fez tudo isto. ― Balbuciou ― Sei que você o procurou, mas se

não... Se não nos tivéssemos casado, nunca teria sabido que foi ele, e jamaisteria perdido nada...

― E não perdi nada. ― Cortou em tom sério. Sua mandíbula apertadafalava de raiva contida e dilaceradora paixão ao seguir falando. ― Não perdinada porque está você aqui, comigo, e é o único de valor que tive em todaminha vida.

― Mas o ...Sebastian a interrompeu agarrando-a pelos ombros.― Não me escuta quando falo? Tudo o que Sebastian Talbot foi até o dia de

hoje, e o que seguirá sendo porque não penso deixar a todos esses homens quetrabalhavam para mim sem comer, era um caminho, sem a meta. Não queriaser Sebastian Talbot, o proprietário de dois terços dos navios ingleses. Queriaser a vingança de minha mãe, entende? Entende? ― repetiu, sacudindo-abrandamente. ― Estes escombros sob meus pés só significam que ganhei,embora para isso devesse perder... significam que tudo acabou, quedesapareceu o que me tinha unido a esse sentimento de desespero. Sou livre,Ariadna, por fim sou... ― frisou ― Se devesse te desculpar por algo, seria porme acorrentar de novo me fazendo te amar por cima de qualquer ódio passado.Precisamente o que faço. Assim se te ocorre insinuar que quero que vá, ou quesimplesmente existe a possibilidade de que me deixe... Desafio-te a que o tente.― Soltou-a e retrocedeu um passo para olhá-la com o perigoso desafio gravadonos olhos. ― Só tem que tentar fugir de mim para que te dê conta de que éimpossível. Iria ao inferno e voltaria, com isto mesmo que tenho posto; aofundo do mar, aos limites da terra, ao limite do céu, e te juro por Deus e porminha vida que te traria em braços ou morreria tentando.

Fez uma pausa para agarrar ar ruidosamente. Desinflou-se tão rápidocomo se inchou ao vê-la tratando de afastar as lágrimas.

― Por que sofre? ― perguntou em voz baixa. Aproximou-se já sem atitudedesafiante, só como um homem ante um espelho, olhando a seu reflexo pelaprimeira vez. Tomou seu rosto entre as mãos, e Ariadna estremeceu com acarícia dessas gemas sobre sua pele. ― Se temer que tenhamos perdido tudo,não precisa. Há dezenas de navios em meu nome sulcando os oceanos maislongínquos do globo; navios que voltarão e me trarão riquezas comopagamento. Tudo seguirá como antes, duendezinho. Nunca deixaria quevivesse na miséria... Por Deus, não chore. ― Suplicou ― Me dói mais ver-tefazê-lo do que estar pisando nos restos do que fui.

― Não choro pelo dinheiro. ― Ofegou. Rodeou-o pela cintura com osbraços, manchando-se com o carvão que lhe envolvia. ― O que foi que você...seu sonho de navegar? E a Cynthia?

Sentiu o peito de Sebastian vibrando dolorosamente contra o seu.― Haverá mais navios. ― Prometeu em voz baixa. Apoiou a bochecha sobre

sua cabeça, exausto, dolorido e muito mais triste do que alguém poderiaapreciar. ― Mais oportunidades de percorrer o mundo e fazer feliz a meus seresqueridos. Haverá, estou seguro... E se não houver, não me importa.Conseguiria cruzeiros para Elsie, Graham e outros, e eu ficaria contigo a vermorrer os dias. O importante é que sigo são, com a cabeça sobre meus ombros,e isso é tudo o que necessitava para que minha riqueza não morresse nunca. Ese continuo aqui... é porque te atiraste na água. E se não o tivesse feito, estariaaqui porque enquanto estivesse no mundo, eu viveria de algum jeito. O teriaestado inclusive se tivesse desaparecido; estaria vivo no desenho de seusrastros, ou no perfume de seus vestidos, em suas flores.

Abraçou-a com força, quase lhe levantando os pés do chão. Ariadna sentiuque o corpo masculino se debilitava, e parava de pressioná-la para só sustentá-la como um objeto precioso. Sebastian se deixou cair sobre as tábuasempilhadas, ficando à altura do nariz de Ariadna. Acalmou-a envolvendo osbraços ao redor de suas coxas, uma carícia apreciativa e incrivelmenteexpressiva que a protegeria de todos os males.

― Fez de meu mundo um lugar agradável com sentido, e agora diz que sótrouxeste desgraça a minha vida... quanto se equivoca? ― ofegou, pegando oslábios ao vestido. Pressionou o nariz contra seu ventre, e negou. Ariadnaapreciou com a alma em velo a rigidez de seus membros, e também ovulnerável tremor que o sacudia. ― Você precisamente, que lançou luz sobreesta sombra de homem.

Ariadna negou embora não a estivesse olhando. Abraçou-o pelas costascarinhosamente, tratando de lhe imprimir esse amor desmedido que ele sempreprojetava sobre ela. Inclinou-se para beijar a sua cabeça.

Sebastian a manteve ali, encerrada e apertada contra o peito, sem dizernada nem mover-se. Ela teve que entreabrir os olhos para que a luz doentardecer não a incomodasse, e por isso demorou para dar-se conta de queSebastian tremia. Logo manifestou o desejo de sentá-la sobre seus joelhos. Anenhum dos dois importou a sujeira. Ariadna se acomodou no regaço como seali tivesse pertencido sempre, e acariciou suas bochechas sujas até queapareceu a pele dourada debaixo. Lhe ocorreu tirar um pequeno lenço paralimpá-lo. Deslocou o tecido por sua testa, seu nariz irregular, sobrancelhasgrossas e negras, o queixo insolente e masculino, as linhas de expressão,inclusive. Estava acabando, e ele com os olhos fechados, manso como ummenino adormecido... Ariadna nunca viu nada tão bonito, e seduzida pelavulnerabilidade de suas feições, ― embora feroz ao não possuir a atenuante deseus topázios. ― arriscou-se a beijá-lo nos lábios brandamente.

Não poderia ter-se separado nem que quisesse. Sebastian não separou oscílios, mas a apanhou pela nuca. Não exerceu nenhuma pressão, só protegeuaquela parte tão sensível com a palma, e ela foi obediente aceitando seu desejo.Respiraram-se em silêncio; um silêncio atrás de outro, corrompido sutilmentepelo sorriso rendido de Sebastian.

― E aqui é quando redescubro que te amo. ― Soletrou. Fez que cada umade suas palavras soasse em segredo. ― E que ficaram coisas por fazer enquantoseu coração esquivo possa me dar uma oportunidade. Dar-me-á isso?

Ariadna sorriu brandamente e assentiu.― Então não há nada perdido.

18

Dioniso brilhou ante a moça em sua imagem de deus e, então, o impetuoso eerrante Eros fustigou à moça para outro amor mais elevado.

As Dionisíacas, NONO DO PANÓPOLIS

Sebastian arrumava a gola da jaqueta quando o mordomo da família Doyleo convidou a passar. Teve que soltar a mão de Ariadna para passar antes aosaguão, onde descansou um segundo antes de voltar-se para ela. Sua esposalhe sustentou o olhar espectador.

― O que acha que usará sua irmã para me matar? ― perguntou comfingida docilidade. ― O revólver se perdeu, mas quem sabe se tiver encontradooutro entre os pertences de seu marido... E se não, aposto que tem umacozinha muito bem provida de facas de diferentes pontas.

Apenas um dia e meio depois do desastre, quando Sebastian já tinhanotificado às autoridades junto com outro bom número de testemunhas oacidente do incêndio, decidiu que era boa ideia visitar seu amigo para pô-lo àordem do dia. Pelo caminho teria que ficar cara a cara com Megara, mas não sepreocupava. De fato, admitia ter sido consequente com as poucaspossibilidades de sair dali com vida, incluindo Ariadna na expedição para queaplainasse o caminho. Certamente teria chegado a seus ouvidos que ela esteveno edifício quando o teto caía, e esperava que vê-la viva e tão bonita comosempre servisse para aplacá-la.

Foi pedir muito.― Só não lhe mato por falta de meios, isso tenha certeza. ― Espetou a

proprietária da casa, ao pé da escada. Levava um singelo vestido, perfeito parareceber visitas indesejadas, o que significava que teria amplitude de movimentoem caso de utilizar mãos e pernas para reduzi-lo. ― Com quem diabos acreditaque estava jogando, Talbot? Não estava levando um homem solteiro a farra:

tem uma maldita família! O que teríamos feito se não tivesse retornado?― É isso o que te preocupava... Não conseguir sem ele. Não imaginava que

era uma interesseira, minha querida... ― calou-se ao apreciar o rostoescurecido da mulher. ― OH, venha... Sabe tão bem como eu que Doyle nãopode morrer. ― Repôs com humor. Deixou sua cartola nas mãos do mordomo,assim como sua jaqueta e as finas luvas. ― E no caso de ter se colocado orisco... Não vou dizer que teria me colocado entre a bala e ele, mas teria feitotodo o possível para evitar que sangrasse. Espero que isto seja suficiente parame deixar subir a vê-lo.

― Está descansando. ― Ladrou.― OH, vamos, os heróis nunca descansam porque o mal nunca dorme. E

só fez uma pequena queimadura no braço, nada que temer. Agora pense emBlaydes e eu. O conde as pernas, eu parte das costas e ele seus poderosos ehercúleo bíceps. Pode chamar de ruína conjunta, se soa melhor... ― Observouque Megara não se movia. Lhe ocorreu que era um bom momento para recorrerà chave que abria todas as portas. ― Trouxe para sua irmã.

Sem dúvida foi suficiente. Ariadna apareceu por detrás de seu ombro,como combinaram previamente e tantas vezes ensaiaram. Megara não demoroupara ignorar Sebastian e ondular de pura alegria para abraçar a jovem.Aproveitou esse instante para escapulir escada acima, não sem antes dar umaolhada a sua esposa e piscar um olho cúmplice. Ela não respondeu comnenhuma expressão concreta, mas de algum jeito soube que estavadevolvendo-lhe.

Sebastian deslizou até a habitação no fundo do corredor. Alegrou-se aoencontrar Thomas sentado na poltrona junto à cama, lendo o Time com o peitoexposto, o braço enfaixado e um cigarro nos lábios.

― Uma vida de rei. ― Trovejou Sebastian. Imitou o ligeiro rebolado de umbêbado ao deslizar para ele. ― Tenho que interpretar com tudo isto que asenhora te permitiu recuperar seu lugar como marido?

Doyle afastou o periódico. Sebastian já sabia que o dobraria commeticulosidade em três partes, com cada canto com seu igual,milimetricamente medido. Retirou o charuto dos lábios e o deixou repousar emum cinzeiro de cristal. Depois o olhou.

― E bem?Sebastian suspirou e se acomodou a seu lado, cruzando as pernas como

um cavalheiro cansado.

― Sua frase preferida... Leva anos acreditando que só pronunciando essasduas palavras todos os segredos lhe serão revelados. E, sabe o que é omelhor... ou o pior, conforme se olhe?

― Que, em efeito, os segredos me são revelados.― Assim é. ― Sebastian balançou a cabeça sem muita vontade. Acomodou-

se, pondo o tornozelo sobre o joelho, e sustentou seu olhar em silêncio. ― Paracomeçar: sabia que a pistola dispararia pela culatra quando me deu?

― Sim. Por isso a lancei no ângulo perfeito para que ele a agarrassequando aproveitasse para distrai-lo. Eu fui seu professor, quem te ensinou abrigar com elegância. ― Recordou-lhe. ― Ele não esquece os movimentos queexecuta seu aluno. Sabia em que golpes te equivocaria para que ele acabasseagarrando a arma.

― E o revólver? Você preparou?― Sim.― Quando?― Faz um tempo. Concretamente quando te fiz saber que nunca mais a

usaria e me pediu que a reservasse para esse dia.Sebastian apoiou os cotovelos nas coxas, entre intrigado e incrédulo.― A preparou especialmente para este dia? Como estava tão seguro de que

eu não apertaria o gatilho?― Como não estar? ― contra-atacou ― Sebastian, se tivesse concebido

como o tipo de homem capaz de disparar a outro a queima-roupa, nem meunome figuraria em sua lista de sócios, nem seu conhaque preferido estaria emminha licoreira, nem seu traseiro sobre a chaise-longue de minha habitação.

― Agora o chamam chaise-longue. ― Ocorreu-lhe concluir. ― Muito bem, éum tipo clarividente. Mas poderia ter saído mal.

― Não, não o teria feito. ― Corrigiu, tão seguro como estava de todas ascoisas. Sebastian balançou para frente e o apontou com o dedoacusadoramente.

― Sim, senhor Doyle, sim. Não finja ser um gênio da feitiçaria, que o jogodo azar não se subordinaria nem sequer a você. Sabe que havia umaoportunidade de que morresse.

― Não havia.― Sim. ― Teimou Sebastian, entreabrindo os olhos. Nada na postura de

Doyle parecia indicar que fosse dar seu braço a torcer. ― Havia. Poderia terapertado o gatilho.

― Não o teria feito.― Diabos que sim, Doyle.― Não. ― encostou-se para trás. ― Não é nada imprevisível, amigo.― E você não é o maldito Deus, não pode predizer o futuro.― Não posso, não. E tampouco sou Deus. Mas sou seu amigo e te conheço.

Antes teria disparado em ti mesmo. E agora, seria tão amável de resolverminhas dúvidas?

― Que dúvidas? Acreditei que seria capaz de perguntar com todas asletras e não se limitar a esse «e bem» que nos tira a alma do corpo a todos quevivem ou passeiam abaixo deste teto?

Uma estrela escura brilhou nos olhos de Doyle.― Queimei o braço por sua glória. ― Assinalou ― Não me provoque e

desembucha.― Aleluia! Por fim Thomas Doyle está de mau humor! ― exclamou,

elevando os braços. ― E a que se deve?― A que me está tirando tempo de estar na cama com minha mulher. ―

Espetou ― Me diga que diabos ocorreu, o que disse a polícia, faz as pazes comMeg e, pelo amor de Deus, saia de minha casa e não volte em três dias.

Sebastian soltou uma gargalhada que ressonou por toda a habitação.Pigarreou e esteve desfrutando alguns segundos nesse momento, até quecansou de o fazer sofrer e simplesmente falou.

― Havia quatro homens no estaleiro quando cheguei. Três deles morreram.― Expressou, trocando de expressão. Cravou o olhar em sua bengala,apertando a mandíbula. ― Entre eles... o senhor Payton, meu encarregado. Maso que sobreviveu estava lúcido quando a polícia se apresentou para investigar,e assegurou que tinha sido um acidente. Não estou seguro de que tenha soadoacreditável ou não, mas convenci os agentes de que o duque e eu estávamospensando em empreender um negócio quando tudo ocorreu. Já sabe quequando há nobres no meio, os casos se fecham antes: Ashton, Saint-John,Blaydes e Leverton corroboraram minha história, pondo em comum umsuposto no qual Winchester comunicou a público seus desejos de trabalharcomigo no navio.

― E o navio?Uma sombra cruzou o rosto do Sebastian.― Irrecuperável, mas isso já sabe. Terei que construir um novo.― Reconheceram o corpo de Winchester?

― Graças ao anel ducal. Seu corpo estava completamente carbonizado,nem sequer perceberam que meteu uma bala na cara, e entre você e eu... Oherdeiro do ducado tampouco está muito interessado em investigar. Deu porresolvido o caso, organizou rapidamente o enterro e...

― E?― E se apresentou em minha casa com o velho notário de Winchester para

pôr em ordem alguns assuntos econômicos. Aparentemente decidiu deixar umaatribuição arrecadada por sua conta a Ariadna.

Doyle elevou as sobrancelhas.― Brinca?― Absolutamente. E isso não é tudo, porque o novo Winchester suplicou

que vá ao funeral, dado que era a pessoa mais importante de sua vida.― E o fará? Irá? ― inquiriu Doyle. Sebastian encolheu os ombros. ― O

dinheiro... De quanto estaríamos falando? Porque não lhe terá ocorridorechaçá-lo, verdade? Daria lugar a suspeitas.

― Em seu caso disse que não o queria porque lhe consta que feriu odefunto com seu rechaço e certamente escreveu aquelas vontades quandoainda tinha a esperança de que se casasse com ele. Depois de uma conversalonga e estúpida a respeito, o herdeiro demonstrou ter muito pouco apreço aoúltimo desejo de seu tio e resolveu o assunto retirando-se com a quantia,qualquer que fosse.

― Esse dinheiro não teria vindo mal para reconstruir a fábrica. ― DisseDoyle sabiamente ― Mas é obvio que entendo que não o aceitasse.

― Não fui eu quem não o aceitou, embora de todos os modos nem me teriaocorrido tal coisa; era dela, seu dinheiro... O dinheiro de Ariadna. E nãopensou duas vezes na hora de negar. Disse-me que lhe parecia uma traiçãopara mim. ― Expressou com voz suave, envolto no quente orgulho. ― E queenquanto não morressemos de fome, seria dispensável.

― E o que pensa fazer agora? Viver das rendas dos navios que jánavegam? O que será dos trabalhadores que estavam a seu cargo?

― Ainda tenho dinheiro e propriedades. Se vendesse algumas arrecadariao que necessito para levantar um estaleiro ainda melhor, conseguir osmateriais e pagar a mão de obra. Na realidade a fábrica era um investimento,um buraco negro. Não me produzia nenhum lucro até que o navio em questãonão ficava em aluguel ou vendia à marinha... Mas é evidente que não voudeixar na rua a todos esses homens. Arrumarei isso para ser rápido e efetivo.

Doyle assentiu, acedendo involuntariamente a que se instalasse umcômodo silêncio entre os dois. Não se olharam. Cada um tinha os olhos postosnum desenho da parede. Passaram alguns quantos minutos calados.

― O que sentiu? ― perguntou Doyle afinal. Não precisava especificar.Tinha essa maneira de expressar que lhe outorgava a licença de cortar oraçõessem perder significado.

― Nada. ― Respondeu, ainda imerso no friso superior. ― Não sentiabsolutamente nada.

― E o que esperava sentir?― Não sei. Alívio, imagino, por saber que não voltaria a me atormentar.

Alegria. Mas só senti... calma e espaço.» É como se tivesse passado toda a vida caminhando pelos becos mais

estreitos e repletos de viajantes; meus ombros se chocando com todos, dessasvezes nas que durante alguns incômodos segundos só ouve o barulhogeneralizado te enchendo os ouvidos. Assim estive vivendo. E ao disparo dapistola..., cheguei ao final dessa rua e me liberei do ruído, da pressão, dainquietação, do sentimento de sufoco. E justo do outro lado ela estavaesperando para me dizer adeus finalmente.

Sebastian ficou um segundo mais, mantendo em sua memória aquelaimagem que conseguiu capturar das lembranças. Cynthia esteve nessa praçauma vez, e ele, um menino de menos de dez anos, afogava-se entre ostranseuntes próximos à feira até que encontrou a saída da rua. Então pôdeagarrar a mão de sua mãe e acompanhá-la a fazer seus recados. Se fechava osolhos, ainda podia sentir como era o tato de seus dedos entrelaçados.Recordava perfeitamente a cor de sua pele, e como nesse dia o sol iluminou seusorriso, seus olhos...

― Sempre me pergunto o que teria sido de mim se ela tivesse seguidocomigo. ― Confessou ― Se teria chegado aonde estou... Se teria vivido para vê-lo, ou o destino teria organizado da melhor maneira para me arrebatar isso sóalguns meses ou alguns anos depois.

― Já não tem sentido que sonhe com isso, não crê?Sebastian olhou seu amigo sem nenhuma expressão concreta. Não ia dizer

nada, mas igualmente lhe irritou que Megara aproveitasse esse momento deintimidade para entrar na habitação seguida de Ariadna.

― Tenho que trocar a bandagem. ― Anunciou ela em voz baixa.Sebastian soube que a conversa tinha terminado quando, numa tentativa

de se conectar com os olhos de Doyle, perdeu-o irremediavelmente. Sorriu parasi mesmo e se levantou, preparado para lhes dar a intimidade que requeriam.

Megara esperou com impaciência mal dissimulada que Ariadna eSebastian desaparecessem da habitação. Só um momento antes de que ofizessem, lhe ocorreu voltar-se para o marido de sua irmã e clarear a garganta.Este lhe prestou atenção com uma sobrancelha arrogante lhe selando a testa.Tentou não se alterar e soar relativamente tranquila ao expressar:

― Não aprovo o modo que tem de atuar, mas Deus sabe que não sou amais apropriada para te ensinar a ter outro tipo de comportamento.

Poderia ter acrescentado algo mais. «Aceito as desculpas que não mepediste», ou «no fundo, valorizo que seja assim». Estava implícito em suaoração, e isso ele soube. Ela o entendeu ao reconhecer o brilho fugaz em seusolhos e o assentimento de cabeça que indicava a paz.

Não muito depois, a casa ficou absolutamente silenciosa. Briseida estavacom Penélope enquanto Doyle se recuperava, e era a hora do almoço dosserventes, por isso todos estariam fazendo ruído na cozinha. Ruído que nãochegava aquele piso.

Megara fechou a porta da habitação. Engoliu em seco, tensa, e apoiou amão sobre a superfície. Já o ar se respirava diferente num lugar onde Thomasera a única pessoa presente. Fechou os olhos e se empapou da sensação devulnerabilidade e deste modo poder que ele outorgava sozinho cravando osolhos a suas costas. Parecia como se nunca tivesse estado a sós com seumarido. Como se não o fosse, em realidade. Como se acabasse de conhecê-lo.

Deu a volta muito lentamente. O coração batia as asas furioso no peito, emal cabia em seu corpo de emoção. Mas sabia que ele a surpreenderia dealgum modo, e assim foi.

Thomas não estava sentado na poltrona: em algum momento se deslocousigilosamente, roçando suas costas com o peito. Ao dar a volta, foi seu peitoralo único que viu. Seus olhos subiram pelo fino tufo de pelo escuro, pelopescoço, pelo queixo... E permaneceram definitivamente nos olhos perigosos deum predador. Um segundo esteve empapando-se da energia escura de suapaixão, e no outro encurralada na mesma porta por seus dois braços, sendoatingida por seus quadris.

Megara sentiu a garganta seca só ao cravar os olhos em seus pontosconectados. Isto não agradou Thomas, que levantou seu queixo e a fez olhá-lo.Disseram tudo assim, só batalhando umas pupilas com as outras. Passou as

mãos por seu peito, sentindo a pele arrepiar-se a seu contato, e as deixou nanuca, ali onde o cabelo crescia em forma de v. Ofegou, com os olhosentreabertos, ao sentir sua virilidade diretamente no estômago.

― Continua ferido. ― Murmurou, pressionando o nariz ao seu.― Sem dúvida. Estou muito ferido. ― Apoiou a bochecha no ombro

feminino e deslizou com essa sinuosidade felina sua até o descarado decote.Megara perdeu o equilíbrio físico e mental ao roce da língua ardente no relevode um de seus seios. ― Não poderia imaginar quanto..., ou como..., e em queforma me feriste...

De repente ele se agachou e lhe levantou a saia, colocando as mãosdebaixo das femininas coxas. Megara soltou um grito afogado, mascorrespondeu aos seus desejos rodeando-lhe a cintura com as pernas.

― Então terei que te curar. ― Murmurou ela, olhando-o através dosespessos cílios.

Só o sorriso de lado que Thomas esboçou, tão sensual que resultouagressiva, bastou para que se rendesse a tudo o que viesse a seguir. Entre isso,a lenta caminhada do homem até a cama, onde a soltou sem contemplações.

Thomas moveu o pescoço da esquerda a direita antes de ignorar a dor, asataduras e qualquer fogo que não estivesse florescendo nesse momento, edeitou sobre ela.

― Pois vais ter que te empenhar a fundo durante toda a noite, gatinha...Porque faz meses que não posso nem dormir por culpa da dor.

Sebastian se recreou em cada movimento que Ariadna fez para acomodar-se na carruagem. Não a imaginava suficientemente vaidosa ou retorcida parasaber que devia fomentar a ideia em Megara de que vivia muito melhor do queimaginava, mas quase teria ponderado essa opção ao vê-la aparecer com umvestido de veludo cinza. Parecia um anjo envolto em prata, o tipo de criaturaque imaginava habitando a lua, e seus movimentos não desmentiam suaimagem de criatura celestial.

Não estava muito seguro de que devesse estar ofendido por não terrecebido uma bajulação de volta no dia que lhe confessou seus sentimentos.Embora em algumas situações pudesse comportar-se como tal, Sebastian nãoera um pirralho e tampouco usava a memória seletiva em seu benefício. Sabiaque teria que lutar duro para ganhar suas avaliações, essas que certamenteseguiam apontando em direção a Corban. Pensava, admitindo a raiva para simesmo, que Mariette estava acostumada a ser bem mais veloz quando fazia um

encargo desse tipo: já deveria ter recebido notícias de onde estava Corban. Setinha que enfrentar ao adversário de sua vida sem informação sobre ele, nãoreagiria de forma conveniente. Sentia que deveria praticar no espelho muitasvezes antes de encarar Corban sem utilizar os punhos durante o processo.

Mas compreender que Corban se tinha adiantado e saber que seusdesprezos das primeiras semanas não se esqueciam facilmente, por muitoternas que fossem suas carícias, não significava que não ardesse em desejos deser o único para ela. Tampouco esquecia que, por muito pormenor que tivessesido, não foi precisamente uma amostra de amor deixá-la só na cama paraarriscar-se a morrer.

Infelizmente, Sebastian tinha aprendido a querer tudo, a não se deter atéchegar ao último degrau... E não se conformaria com a avaliação de Ariadna.Queria muito mais que isso. Ansiava que o amasse com loucura, e que essamesma loucura não tivesse retorno, igual à sua. Pedia ao céu que anecessidade que ele tinha de esticar os braços e acariciá-la fosse mútua...

― Megara e eu estávamos escutando atrás da porta a conversa que tinhacom o senhor Doyle. ― Pronunciou ela, olhando-o com essas duas honestasvirtudes malvas que nunca deixariam de apresentar-se em sonhos. Sebastianmal prestou atenção ao que dizia, e quis sentir-se miserável por isso, mas nãopôde quando estava deslumbrante. ― Pensei em que seria injusto que oshomens que trabalhavam para ti ficassem sem emprego de repente, e quedevemos fazer algo.

Sebastian baixou os olhos a seu decote sem dissimulação.― Devo fazer algo com isso, sem dúvida. ― assentiu. Viu-a abrir a boca,

mas não emitiu som algum. Sebastian capturou sua mão e puxou ela parasentá-la a seu lado. Entreteve-se com o laço que fechava o espartilho exterior.― Continua, por favor.

Ela não disse nada. Só o olhou, relaxada, tranquila e tãosobrenaturalmente preciosa que cedo ou tarde lhe assaltaria a dúvida se emrealidade existia.

― Acredito que sei como poderíamos ganhar dinheiro. ― Confessou.― Eu também sei como. Conheço uma maneira rápida e eficaz. Consiste

em te pôr este bonito vestido, ou esse lilás que levou uma vez, ou o vermelho,ou inclusive um saco de batatas, te pôr sobre um altar em Trafalgar Square.Faríamos todos, que quisessem parar para te contemplar, pagarem. Estouseguro de que em apenas dois dias dobraria o dinheiro perdido.

― Mas eu não quero estar de pé num altar.― Poderia te sentar, ou te deitar... ― meditou. Afinal decidiu puxar um dos

extremos do coquete lacinho, desbaratando um tanto a sujeição. Isso de tedeitar sim que seria todo um atrevimento... Uma provocação.

― Você é um provocador.― E você também, só que o faz sem querer e a ninguém lhe ocorreria te

culpar. ― Jogou uma rápida olhada pelo guichê. ― Já chegamos. Umaautêntica estupidez incomodar ao cocheiro para uma viagem de apenas dezminutos, não crê? Mas isto é o que faz pessoas ricas. Terá que adaptar-se...

― Sebastian. ― Insistiu ela assim que a ajudou a descer da carruagem.Negou o oferecimento de sua mão e a agarrou nos braços para depositá-la nochão. ― Sei como recuperar o dinheiro.

― Muito bem. ― Exalou ― Diga, sou todo ouvidos.Em lugar de deter-se com uma longa explicação, Ariadna o agarrou pela

mão e o conduziu ao interior da casa. Aquele simples roce desinteressado, demenina travessa e pura inocência, roubou-lhe um sorriso de desconcertanteregozijo. Se lhe tivessem dito meses atrás que perderia o fôlego pela iniciativade uma terna debutante, não teria acreditado, e o que era mais: rindo eachando lindo.

Ariadna deteve seu estranho percurso pela casa na habitação. Ali o soltou.Enquanto Sebastian sentia falta de seu toque quase etéreo, ela abria um

baú e começava a tirar pequenos frascos de diferentes tonalidades. Embora aimagem de Ariadna ajoelhada com o vestido formando um círculo ao seu redorfosse suficientemente encantadora para não atender a nada mais, Sebastiandeixou que os numerosos recipientes de forma cilíndrica o distraíssem. Todoseram de cristal, transparentes, e pelo que pôde apreciar, estavam etiquetados.

Sebastian se aproximou quando terminou de colocá-los na mesa. No totalhavia mais de vinte; não soube o número exato porque Ariadna se voltou paraele, exultante.

― São perfumes. Comecei a fazer quando perdi a memória, para poderdiferenciar minhas irmãs apenas entrando na habitação, antes de aprender areconhecer seus passos. Converteu-se num hábito, e agora... Cada vez queestou aborrecida, ou inquieta, ou não tenho nada com o que me entreter,acredito. Não sou uma profissional... Mal disponho do material de umperfumista. Só improviso, mas cheiram bem, e sempre elogiam minhas irmãspor isso, assim pensei que poderia...

― Vendê-los. ― Culminou Sebastian, examinando de perto um dosfrasquinhos. Desentupiu um aleatoriamente e o levou ao nariz. ― Qual é este?Como o fez...? Não me diga, ― acrescentou isso apressadamente ― acredito queuma mulher deve ter seus segredos. E o importante não são os ingredientes, anão ser o resultado.

― Você gosta?― Cheira maravilhoso. Acredito que não poderia resistir a uma mulher que

levasse este perfume.Ariadna piscou várias vezes seguidas. Sebastian decifrou em seguida a

desorientação em seu rosto.― Não poderia? ― perguntou, perdida. Esticou a mão, para lhe tirar o

tubo. ― Então melhor... melhor, não seria boa ideia que os vendesse. Outrasmulheres o poriam e...

Ele entendeu seu ponto de vista, e não se incomodou em ocultar o prazerque lhe produzia sua insignificante manifestação de ciúmes. Sabia que ela nãoo reconheceria como tal, como não reconheceria nunca o amor,possivelmente... Mas se alegrou ter aprendido seus gestos o suficiente parainterpretá-lo por si mesmo. Ficava a pergunta se lhe bastaria, entendendo seussentimentos através dos olhares, se suportaria não o escutar nunca.

― Talvez a algumas mulheres não ficará bem. Sabe...? Não sei muito deperfumes, mas sim tenho certeza de que há essências que não combinam comcertas peles. Para nos assegurar deveríamos fazer uma pequena demonstração.

Apartou-se tranquilamente para farejar entre os perfumes e tomou um aoacaso. Depois olhou à curiosa Ariadna, e sob seu atento olhar, mediu quefossem um par de gotas o que esvaziava do interior. Lubrificou as duaslágrimas que caíram na gema do índice as unindo com o polegar, e seaproximou dela em silêncio. Ele a pegou pelo pescoço, lhe inclinando a cabeçapara trás, e riscou uma fina linha debaixo do lóbulo da orelha até metade dagarganta. Sua pele brilhava ligeiramente húmida e arrepiada pelo aroma frescoquando se inclinou e roçou com o nariz esse mesmo risco. Inalouprofundamente, subindo muito devagar, enganando-a com o som de suarespiração enquanto suas mãos acudiam velozes aos quadris femininos.Deteve-se o chegar ao ouvido.

― Acredito que este não te favorece. ― Sussurrou em tom íntimo.Aproveitou para morder com cuidado a tenra carne da orelha e sugá-la. ―Provemos outro.

Repetiu o procedimento tomando outro frasco ao acaso, mas antes alevantou e a sentou sobre a mesinha, com cuidado de não derrubar ascolônias. Nessa ocasião perfumou um de seus pulsos, desenhando um círculocom as gotas. Levou a mão aos lábios, e beijou a base da palma, aí onde asveias atravessavam sua pele pálida. Desceu até a flexão do braço, e o estiroupara acabar a beira da curta manga, havendo deixando um rastro de beijos.

Olhou-a com os olhos entreabertos, profundamente extasiado, e seudesejo alcançou limites desumanos ao ser cúmplice de seu nervoso delírio.

― Este tampouco me convence. ― esclareceu com voz rouca ―Possivelmente por aqui...

Levou uma mão ao decote, e terminou de desfazer o nó que tinhacomeçado a desatar na carruagem de quatro portas. O espartilho cedeu comfacilidade, e a blusa e o resto daquela infernal parafernália foram história logoque Sebastian perdeu as maneiras.

Exalou de maneira brusca e cresceu de uma vez assim que esteveseminua ante ele, com as pernas abertas sobre a mesa. Uma mão veloz colocoucontrole no seu joelho, agradando-se com a magnífica visão de Ariadnamostrando as meias e os seios. Uma parte dele, a racional, teria recordadooutros mais cheios e umas pernas mais torneadas... Sem dúvida tinha vistotudo, mas ela não necessitava exuberância para estar fora do comum.

Elevou outro dos tubos e o liberou sem desprotegê-la de seu olhar. Sefosse possível amá-la só a estudando, a profundidade com que o fazia teriaderrubado suas muralhas faz muito tempo. Mas Sebastian nunca seconformaria olhando-a... Já não. Deus lhe tinha dado mãos para usar, e usouuma delas para derramar parte do conteúdo do frasco na linha invisível queseparava seus seios. Ariadna encolheu o ventre involuntariamente e ofegou, eesse ofego, esse ar que limpou o ar sujo de humanidade, foi motivo de glória ecelebração. Sebastian se ajoelhou para não perder detalhe do caminho quefazia a gota travessa até seu umbigo. Seguiu-o com a gema do dedo,enroscando-se ali finalmente. Inspirou e exaltou várias vezes, entre cada beijodepositado no caminho de impercetível pelo loiro.

― Este eu gosto um pouco mais, mas não é suficiente. ― Expressou,separando as anáguas. Rasgou as rendas do interior usando só uma mão, eseguidamente as meias caíram a seus pés. Sebastian lhe acariciou as pernasdo tornozelo. Recreou-se no tremor de seu corpo, na agressividade de seusarrepios e sorriu, a seus pés, como um vilão. ― Tome cuidado, duende de pó de

arroz. Se te mover muito, todas suas obras irão ao inferno. E não queremosisso, verdade...? ― inquiriu, agarrando o que seria seu último vidro de prova.

Desarrolhou-o com um floreio e, continuando, banhou sua própria mãopara pegar a palma em seguida ao interior da coxa. Ariadna vibrou sem podercontrolar-se, mas os frascos apenas se alteraram. Sim o fizeram, em troca, aoprimeiro contato de Sebastian contra a fria essência. Ele inalou a mescla dearomas com um sorriso nos lábios, e estes lábios apertados muito perto de seusexo...

― Acabo de decidi-lo. ― declarou com um murmúrio gutural. Ariadna seencolheu acompanhada de um gemido assim que Sebastian pôs um dedo sobresua zona íntima. ― Há mulheres... mulheres como você... que não precisamperfumar-se. Em seu caso... qualquer aroma que não seja o que vem contigo,posto sobre ti, é uma aberração. E entre todos os aromas que existam e os queainda existiram, eu fico com a essência da Ariadna.

Enviou seu fôlego soprando entre suas pernas, de novo lhe arrancandoum vulnerável gemido.

Beijou-a ali, obedecendo a licenciosa súplica que quebrou sua garganta.Sebastian percorreu com a língua a origem de seu corpo e o ocultou do roce dovento seduzindo-o com lentas e escandalosamente sensuais lambidas. Ela seretorcia sobre a mesinha, agarrando-se a beira; sentia-a tensa pelo dever denão derramar uma gota, e também aliviada, poderosa como a natureza.Chupou delicadamente, arranhou sua pele sensível e se empenhou de tal formaem lhe produzir prazeres indescritíveis que o obteve, e Ariadna se entregou emsua boca com um sonoro suspiro de sereia.

Viu-a agachar o queixo para olhá-lo, com as bochechas coradas e os olhosbrilhantes. Pensou que faria algo para manter aquilo, e a fez conhecedora dedita verdade elevando-a nos braços e levando-a à cama, onde a despiu porcompleto. Os objetos voaram também longe, a um lado e a outro do colchão.Sebastian apreciou seu corpo pelo olhar que lhe deu de presente, e por essasmãos pequenas, inexperientes, mas jamais torpes ou ridículas que o limpavamao fazer desenhos sobre sua pele.

Depositou um beijo em seu ombro, tão excitado que nem sequer podia vê-la bem. Outro sobre seu peito, perto das costelas salientes, no queixo... Sentiuque o coração lhe sairia pela boca ao encontrar seus olhos por acaso.

― Santo Deus... me diga que me quer. ― Pediu ele, abraçandodesesperadamente seus quadris. Rodou com ela em cima, deixando-a sentada

sobre seu estômago. ― Me diga isso embora seja mentira... ou só me pisque umolho e eu o interpretarei como você quiser.

Sebastian sentiu medo seriamente de que ela não reagisse. E não o fez poralguns momentos. Só se estendeu sobre seu peito, como uma gata curiosa, ecom uma mão sobre seu coração sem simbolismo que valesse, somente purarealidade, olhou-o no rosto com toda sua inocência.

― Não sei piscar um olho.Aquilo serviu para encher seu último e grande vazio; ao menos em teoria.

Sebastian riu, e, surpreendentemente, ela o calou com um lento beijo noslábios que o deixou física e mentalmente exausto de tanto que quis lhemostrar, o quanto gostou.

Sebastian brincou com ela um pouco mais, só um pouco mais, até que oardoroso desejo o venceu e teve que possui-la para saciar a sede de décadas.Somente dentro dela se sentiu verdadeiramente a salvo do mundo, poderoso eperfeito; nesse encaixe entendeu que embora não seria um homem ideal,Ariadna cedia sua magia ao ofegar perto de seu ouvido, agradada pelo que seuscorpos criavam ao estar juntos. E ele estava muito mais que satisfeito com essefato, embora sentisse falta de um «Eu te amo» ao alcançar o último nível deprazer agarrado em seus cabelos.

― É muito considerado me permitindo pôr um pé em sua esplendorosamansão. ― Comentou madame D’Orleans, arrumando a gola de seu casado.Examinou o salão sem muita curiosidade. Sentada como estava, com ostornozelos cruzados e a acostumada expressão soberba, mais que umaconvidada parecia a proprietária da casa. Quando se cansou de estudar adecoração, olhou a Sebastian. ― Tenho que dizer que me surpreendeu quechegasse um mensageiro às portas de Sodoma com um presente tão custoso,mas as jovens o agradecem. E eu também. Embora não sei se será convenientepara o negócio de sua esposa, nem se sua esposa deveria empreendê-lo.

― Ela não tem nada que ver com negócios. Simplesmente fabricaessências, e eu as entrego aos perfumistas.

― E às putas. ― Acrescentou.Sebastian balançou a cabeça. Certamente, Ariadna tinha um dom com as

essências e isso se mostrava ao criar perfumes a partir destas. Demonstrou-odepois tudo que precisava para trabalhar. Apenas alguns dias depois doabastecimento, apresentou-se com novos frascos e numerosas ideias paraquem poderia desfrutar de seus benefícios. Quis enviar uma das amostras a

Mariette e a suas mulheres como presente. Sebastian não se atreveu acontradizê-la, em parte porque gostava da ideia de que sua esposa seinteressasse por quem ele considerava família.

― Ariadna queria que elas também tivessem um aroma especial. ―Respondeu ― Somente sigo ordens, Mariette.

― Quer dizer com isso que está de acordo com que sua esposa trabalhe?― Por que não? ― replicou com espanto ― Minha mãe também trabalhava.― Não seja estúpido. ― Bufou Mariette ― Há mulheres que, se não

trabalharem, morrem de fome... E outras que, se o fizerem, são duramentecriticadas.

― Não lhe interessa apresentar-se como perfumista. Não quer louvores,nem aplausos, nem que reconheçam seu trabalho. Seu único objetivo eraaproveitar sua habilidade para me ajudar, e de passagem, entreter-se umpouco. É algo que faz por afeição. E como empresário, reconheço que a paixãopara um passatempo é uma base excelente para se levantar um negócio... ―Ouviu que a porta se abria lentamente. Não teve que voltar-se para confirmarde quem se tratava. ― Embora se tiver alguma outra dúvida, pode perguntar aela em pessoa.

Sebastian preferiu fixar-se na expressão de madame que no traje de suaesposa. Mariette se levantou, com os olhos postos na figura feminina a suascostas. Sabia que não lhe daria uma olhada rápida e grosseira comoacostumava fazer com suas jovens promessas do mercado da carne: Marietteera quem era por ter maneiras impecáveis. Mas igualmente lhe surpreendeuque reagisse agachando a cabeça, fazendo essa reverência que não lhecorrespondia por não ser mulher de nobre.

― As lendas não regulavam em detalhes ao referir-se a você, mas mesmosendo assim a subestimaram. É você magnífica, senhora Talbot.

Sebastian se voltou para Ariadna. Esta não assentiu aceitando suaadulação, mas sim se aproximou da velha prostituta e cobriu sua mãoenluvada com a própria, tão nua, branca e pequena que pareceu uma bolinhade pó sobre o tecido.

― Estou muito feliz de conhecê-la por fim. ― Admitiu brandamente ― Éuma honra que tenha decidido vir.

Mariette ficou olhando sem ação, e Sebastian soube por que: debatia-seentre a incredulidade e a irritação porque poderia estar brincando com ela.Felizmente para todos, Ariadna hasteava a honestidade de modo que não

coubesse a menor dúvida. Assim, Mariette acabou soltando uma gargalhada.― Poderia me acostumar a que me tratassem como se fosse a rainha. ―

Comentou, olhando Sebastian. Em seguida voltou para Ariadna. ― Obrigadopelos perfumes. Posso-lhe assegurar que estão desfrutando. Não ousariamcolocá-la para trabalhar, é obvio...

― Podem usar para o que desejem. Só eram umas provas... ― Seus olhoslilás voaram até Sebastian, com o qual compartilhou um olhar decumplicidade. Ele trocou o peso de uma perna a outra e clareou a garganta.

― O certo é que temos um evento ao qual assistir, e já chegaremos tarde,assim se não for muito pedir prorrogar esta bonita reunião...

― É obvio. Também me esperam. ― Deu-lhe um tapinha na mão deAriadna e sorriu. ― Sendo sincera, tinha sentimentos mistos sobre isso sobre aesposa do Sebastian. Sabia com que mulher queria casar-se e para que, enunca pensei que pudessem dissuadi-lo. Obviamente não foi possível, mastemia que nunca chegasse a superar suas tristezas. Por isso digo que é umagrata surpresa, e me produz um incomensurável prazer que fosse você quemchegasse a sua vida. Estou-lhe muito agradecida.

Ariadna não disse nada. Devolveu-lhe o gesto e fez uma pequenainclinação de cabeça, como se agora fosse ela a iminência. Sebastianacompanhou à veterana ao saguão, onde Graham a saudou com outrareverência. Não esperava que Mariette se voltasse no último momento paradirigir-se a ele com seriedade.

― Nota-se que é especial. ― Demarcou ― Não só para ti... É uma dessasmulheres que se convertem na obsessão de todas as pessoas em seu entornosem exceção; uma das poucas cuja beleza não depende dos olhos de quem aolhe, mas sim reside nela, em seu interior, e é tão potente que o mundo inteiropode vê-lo. Para cúmulo, tem a sorte de que te ame o suficiente para permitirque esta velha fulana de má reputação ponha um pé na mesma habitação queela.

― Você não é nenhuma fulana de má reputação. ― Repôs em seguida ―Velha talvez... ― aguilhoou, olhando-a com a extremidade do olho. Mariette oolhou com a sobrancelha arqueada, o desafiando a repeti-lo. ― Não tem nadaque ver com o amor que te trate bem, Mar. Ela não julga ninguém.

― Pode ser. Mas ouvi falar de Ariadna Swift o bastante para me fazer umaideia mental, e a mulher que acabo de conhecer não se parece em nada a essaboneca sem expressão que enlouquecia Londres. Mudou. ― Resumiu, voltando-

se ― E as mulheres, tal como os homens, só mudam por dois motivos: amor outraição. Felizmente para ti, lhe serviram uma taça de cada.

Sebastian levantou uma sobrancelha.― A que te refere?― À carta que enviei com as últimas notícias de seu caçador grego. Não a

leu? ― perguntou, fingindo assombro. Tirou o leque acoplado entre os peitos eo abriu de um movimento. ― Deve ter caído nas mãos da senhora Talbot,então...

― Como? E se pode saber que diabos escreveu?― Só a verdade, querido. Que Corban está casado, tem um filho e é

conhecido em toda a Inglaterra por seus numerosos casos com jovenzinhas.Não comentou isso?

Sebastian apertou um punho.― Quando fez chegar a nota?― OH, faz já bastante tempo... A que vem essa cara, Sebas? Não é justo o

que esperava? OH, já vejo... Acredita que a moça começou a te tolerar porquenão fica outro remédio agora que sabe que seu amor não voltará. Deixa que tediga algo com respeito a isso. ― Fechou o leque e pôs a mão no quadril. ― Asmulheres são vingativas; estamos acostumadas a mover por despeito... Massua mulher não é nada que eu tenha visto antes. É a criatura mais fiel a simesmo com a qual cruzei. Sorte para ti.

Mariette piscou um olho ao Graham, que fingia não escutar a conversa, eabandonou o saguão deixando Sebastian inseguro sobre seus pés. Não estavatão convencido do que a madame jurava, até sendo uma iminência no que sereferia a assuntos do amor, nem tampouco ousaria ofender-se por escolher aque ele entendia por verdade: se Ariadna, depois de conhecer o paradeiro deCorban, tinha decidido alimentar seus sentimentos em segredo enquantocompartilhava sua vida com ele, não poderia julgá-la. A essas alturas nãoestava em posição de pontuar ao coração de um ser humano calculador oumaníaco, quando ele mesmo se via traído por este continuamente, procurandoem manhãs e noites a uma mulher que não lhe correspondia.

― Estou preparada.Sebastian se voltou para olhar à proprietária de seus pensamentos. Não se

deteve em parvoíces tais como um vestido que fazia mais de véu traidor entre oespectador e a maravilha de decoração; seus olhos foram o destino. Perguntou-se por que não poderia simplesmente deixá-lo estar, ignorar a nova informação

e lhe oferecer seu braço. A resposta chegou veloz a seu pensamento: amava-a.― Parece que durante a caça animal, o senhor Corban Areleous capturou

uma esposa. ― Disse com humor. Observou a reação de Ariadna, que selimitou a uma piscada. Temeu sua resposta mais que tudo na vida, e foirecompensado pela primeira vez com a suavidade que necessitava paratranquilizar seus instintos.

― Senhor Talbot, é um pouco desagradável que se refira às mulheres comobestas que lançam um arpão.

― Acredito que a senhora Areleous não se queixaria se o amor que sentepor ele é tão grande como outros que se viram. ― Repôs, olhando-aintensamente. ― Talvez inclusive algumas de suas próximas sentissem invejade ter sofrido elas a perfuração de suas flechas.

― É muita hipótese. Opino que as que já sofreram o abandono por seuscaprichos estão bem-curadas da melancolia.

Sebastian lhe sustentou o olhar, deslocado. Esperava que franzisse ocenho, ou lhe jogasse uma dessas cantilenas melódicas em que a última coisaa fazer era pendurar a cabeça.

― Não está zangada por ter procurado informação sobre ele?Ela demonstrou não saber do que estava falando, inclinando a cabeça.― Por que teria que me zangar?― Por... ― Ariadna o calou apoiando a cabeça em seu braço. Piscou,

incrédulo, sentindo-se estúpido por ter sido tão fácil. ― Por nenhum motivo.Sebastian fez o grande esforço de não olhá-la mais do que devido, temendo

que não conseguissem pôr um pé fora de casa, e lhe ofereceu seu braço nãomuito convencido. Além de ter demonstrado «não» ter a força de vontadenecessária para resistir a ela, posto que viajou sentada em seus joelhos porordem direta dela, tinha outras graves preocupações que lhe faziam temer aprimeira visita a um acontecimento público depois da morte do duque.Evidentemente, Ariadna não foi ao enterro de sua excelência, e, por desgraçapara todos, aquilo só alimentou alguns dos falatórios que percorriam Londres.

Sebastian tinha aprendido a ignorar comentários irritantes, desconjuradoou diretamente falsos, e lhe constava que Ariadna não temia tampouco ashumilhações, mas não gostava da ideia de expô-la a que duvidassem de suanatureza bondosa. Por isso chegou a escutar de parte de seus conhecidos, ―concretamente aos que foi para lhes pôr a par de suas intenções de levantar denovo o estaleiro ― alguns supostos românticos tinham a desfaçatez de declarar

a morte de Winchester como um suicídio.Descobriu-se que dedicava cartas no nome de Ariadna Swift chorando por

havê-la perdido, o que rapidamente trouxe a atenção a ela e a sua maldadeescolhendo outro homem quando aquele a amava seriamente. É obvio, aSebastian era indiferente que pusessem em dúvida seu respeito para comAriadna, coisa da que se falava por suas visitas a Sodoma. Era seguro de simesmo, e enquanto ela soubesse a verdade, não importava nada mais.Entretanto, a mudança de atmosfera quando se apresentaram no salão foi tãoradical que se perguntou se não teria que fazer algo a respeito... E, em casoafirmativo, qual seria a solução?

Sebastian deu uma olhada ao redor. O conde de Ashton celebrava seuaniversário, e embora assegurava ter convidado expressamente a seus amigosmais íntimos, ao ser um homem sociável não era de sentir estranheza que alista de convidados transbordasse os cento e cinquenta. Desse número, umaboa parte tinha os olhos postos nele... e em Ariadna, que se aproximava parasaudar suas irmãs. Sebastian pensou em adiantar-se para cobri-la com seucorpo, temendo que se sentisse violada ao ser a fofoca dos arredores, masoptou por reclinar-se a um extremo da sala. As Swift eram as únicasdefenderiam Ariadna muito melhor que ele mesmo.

― Ouviste as últimas notícias? ― perguntou uma voz a suas costas.― Ah, é você.― Sim, sou eu. O homem que deslocaram, você e seu amigo o herói, de

uma missão em que poderia me ter convertido no novo salvador. ― exclamouBlaydes dramaticamente.

― Isso não é uma blasfêmia?― Teria direito o burro a me falar de orelhas? ― contra-atacou. Sebastian

pôs os olhos em branco.― Quais são as últimas notícias?― Vou sentir na alma me pronunciar assim num salão de baile e com este

tom lhe exasperem, mas me parece que dadas as circunstâncias é melhor rirque chorar. Por isso se vê, um grupo de aristocratas aborrecidos soltou ao arque você poderia ter provocado o incêndio para assassinar Winchester. Nãotem por que preocupar-se, ― acrescentou ― isto só comentou um bêbado nacrème de la crème dos clubes de cavalheiros, e todos riram da graça. Mas deu acasualidade de que estava ali o aqui presente para exclamar que SebastianTalbot não teria o pouco gosto de matar um homem por sua esposa. Os ciúmes

são um sentimento, e só os pobres os têm; isso disse que exclamou uma vez.Igualmente, e pela forma em que lhe olham alguns... não acredito que otenham esquecido. E sua esposa tampouco.

Sebastian dirigiu os olhos à figura de Ariadna, que observava seu entornocom o cenho levemente franzido.

― Não é nenhuma estúpida. ― Disse ― Se o rumor crescer, ela se inteirará.E lamento te dizer que sim teria muito gosto de matar a um homem por minhaesposa. ― Acrescentou, voltando-se para seu amigo. Os olhos azuis de Blaydeso estudaram com um brilho especial. ― Mas não o tenho feito.

Blaydes suspirou.― Menos mal, Talbot. ― Pôs-lhe uma mão no ombro. ― Se tivesse ocorrido,

teria que te eliminar de minha lista de convidados. Eu não gostaria deintroduzir na vida de minha mulher e meus filhos um assassino... Embora, éobvio, estava convencido de que não o faria.

― Aparentemente todo mundo sabia. ― Repôs com irritação. ― Todosmenos eu. Já que estavam tão seguros poderiam ter intervindo antes de queardesse meu maldito navio.

― Esse navio precisava arder, meu amigo. Igual a todo seu desprezoacumulado. ― Fez uma pausa para observar o fundo. ― Não sei como faz asenhora Talbot, mas sempre acaba rodeada de homens que a tratam comatenção.

Sebastian apreciou que assim era. Ariadna se tinha transladado a outroponto do salão com suas irmãs maiores, onde um grupo de cavalheiros de rostopálido a escutavam falar sem pronunciar uma palavra. A simples vista nãopareceu que ocorresse nada estranho, mas se fixou que apertava ligeiramenteos lábios e negava com a cabeça, como se lhe estivessem dizendo algo que nãogostasse. Um par de aristocratas se retiraram... E outros se aproximaram,curiosos, quando Ariadna pôs um pé no degrau próximo para fazer-se maisalta.

Inquieto, Sebastian imitou aos bisbilhoteiros e se dirigiu a ela. Blaydes secolocou a sua altura em seguida, com esse impermeável sorriso estranho quegostava de levar a todas as partes. Os olhos de Ariadna voavam por cima dascabeças que a atendiam quando Sebastian conseguiu fazer um espaço entreeles.

― Olá a todos. ― Saudou Ariadna com voz calma. Entrelaçou os dedos dasmãos e se atreveu a esboçar um sorriso cortês, que Sebastian deduziu que não

lhe iludia mostrar. ― Sei que este não é o momento nem o lugar para fazerelucidações, e que na realidade, nestes casos, não revistam fazer-se exposições.Normalmente nós, vocês e eu, tendemos a pensar o que desejamos, semimportar os fatos objetivos ou os sentimentos alheios... Mas acredito que nuncaestá de mais tentá-lo. Eu... ― levou a mão à garganta e os olhou a todos, um aum. ― Não me dá bem falar durante muito momento, assim serei breve.

» Sei que o senhor Talbot não é um exemplo de boa educação, maneiras,protocolo... e suas origens não são puras, tal e como se define a pureza. Seique pode ser grosseiro, soberbo, mentiroso e cínico, que não lhe custa fazersentir a seu interlocutor como um estúpido e.… provavelmente tenha depenadoa cada homem desta sala ao menos uma vez. Quando se zanga pode ser muitoveemente, e quando está feliz, também... Não, certamente que não o poria comoum exemplo de elegância ou estilo. Mas sim como um de humanidade. Éhumano, ― recalcou ― cometeu enganos, ganhou inimigos, bebeu muito... ―levantou-se um coro de risadas nervosas ― mas como todos nós. E não por terdefeitos ou nos ter equivocado no passado merecemos que nos julguem até oponto de nos acusar de um acidente corroborado por mais de cincotestemunhas.

Fez uma pausa e baixou um degrau para estender a mão a um cavalheiro.― Você, visconde Grayson... Pensa que não tenho dignidade?O homem abriu os olhos como pratos.― É obvio que não, senhora Talbot. Sabe perfeitamente que a avalio e

admiro profundamente...― E você, lorde Weston? ― voltou-se para outro ― Acredita que sou uma

mulher irreverente e mal-educada?― Justamente o contrário, senhora Talbot...Ariadna perguntou a três ou quatro homens mais, que se desfizeram em

adulações na hora de defini-la, muito mais com sua expressão que com aspalavras que saíam de sua boca. Quanto a Sebastian, que seguia ali de pé,tinha deixado de buscar sentido ao que estava ocorrendo... Mas ela nãodemorou para dar-lhe voltando a subir um degrau.

― Imaginava que assim seria. Alguns de vocês me pediram em matrimônionão faz muito tempo, ou anunciaram suas intenções de iniciar um cortejo, oume encheram de lisonjas, ou me convidaram a dançar, ou a passear... Símbolode que me respeitam, ou inclusive me têm em estima. Se não me equivocar eseus afetos ou sua consideração para minha pessoa superam os limites

assinalados, por que não tratam com os mesmos olhares ao senhor Talbot? ―perguntou.

Soou como se para ela fosse estúpido perguntar aquilo, como se nãopudesse compreender que tivesse que fazer essa pontuação. Sebastian a viuofuscada, ferida dessa maneira em que somente Ariadna podia está-lo, e pelaprimeira vez em sua vida odiou que o odiassem se isso de algum modo aafetava.

― Porque têm que saber que se desprezarem ao senhor Talbot... se omaltratarem, se o ignorarem, se forem descorteses com ele... estão sendo-ocomigo. ― Levou uma mão ao coração. ― Sebastian Talbot é uma parte de mimmuito maior do que poderiam imaginar. E se não lhes pareço uma pessoainsossa e estúpida, se valorizam meu ser e minha alma, não desdenharão queadmita que tudo o que sou, tenho e amo está com ele ou nele. Se me quiserem,entenderão que eu queira a ele... E que não o quereria se não merecesse.

Sebastian não aguentou mais e empurrou o cavalheiro que atendiaadiante para chegar a ela. Ariadna seguia falando, mas já não tinha ouvidospara nada que não fosse repetir uma e outra vez a declaração de seussentimentos. Ao plantar-se frente à jovem, esteve tão seguro de que morreriada impressão e do amor que guardava dentro que não lhe ocorreu nenhumamaneira de expressá-lo, salvo agarrando-a nos braços.

― Pode-se saber o que faz? ― perguntou em voz baixa, baixando-a ao chão.Ela o olhou muito séria.

― Estavam falando mal de ti, e pensei que...― Pensaste que seria boa ideia fazer isto, totalmente fora de contexto...― Não gostei que se referissem a ti dessa maneira, ― confessou com

honestidade ― e como vão falar sempre, acredito que é melhor que o façamcomentando este momento. Por quê? Está zangado comigo?

Aquela pergunta, enunciada com a inocência de uma menina, rachou-lheo coração mais ainda se podia para enchê-lo de um sentimento que cruzava ostérminos do amor. Sebastian sustentou seu rosto entre as mãos, sem deter osorriso que ia deformando suas bochechas.

― Como vou zangar-me, se for o primeiro que adora chamar a atenção?Não negarei que foi uma boa ideia, mas se pretendermos que falem disso parasempre, podemos fazê-lo melhor.

― Ah, sim? ― inquiriu, abrindo os olhos ― Co...?Sebastian se inclinou para frente e a beijou na boca à vista de todos.

Jogou-lhe a cabeça para trás, sustentando-a contra seu corpo, e se separousozinho quando soube que lhe tinha roubado o fôlego. Intercambiaram um sóolhar cúmplice antes de sorrir. Só então, Sebastian a tomou nos braços, e sempreocupar-se com as falações que se levantaram ao redor, pôs rumo à saída.No silêncio que seguiu, só se notava o olhar emocionado da senhora Doyle elady Ashton. A primeira suspirou, incrédula, e a outra encolheu os ombros.

― Até o diabo se apaixona. ― Reagiu Megara.― Não, querida... ― negou Penélope, agarrando-a pelo braço. ― Até o diabo

sabe apaixonar.

Epílogo

― «E assim o disse, consolando-a. Tremeu de gozo a moça, arroj... ar...Jan.…» ― Sebastian pigarreou e entreabriu os olhos ―. «jogando no mar todalembrança de Teseo ao receber de um PR.… pet.… perendiente. Pendente». ―Bufou e negou com a cabeça ―. «Pretendente? Sim. Um pretendente divino... apromessa do MA.… trimonio.»

Sebastian levantou a cabeça e olhou ao menino que dormiaprofundamente com a mãozinha encolhida no peito.

― Não posso acreditar. ― Resmungou o pai ― Tentando decifrar esteestúpido texto clássico para que me deixe falando sozinho.

Do outro lado da cama, Ariadna agasalhava seu filho com infinito cuidado,como se fosse romper-se. E, na realidade, qualquer material teria combinadomelhor com ele que o cristal. Até tendo somente cinco anos, Elton era ummenino inquieto. Insistia em acompanhar seu pai em todas suas encomendas,realizar com ele as tarefas, e estando o estaleiro recém reformado, já tinhaganho a avaliação de todos os moços que trabalharam arduamente no projetoque agora navegava a toda vela. Foi ideia do Elton e de ninguém mais queSebastian e Ariadna empreendessem uma viagem pelo Mediterrâneo, paraconhecer com preferência as ilhas gregas.

― Passa o dia todo correndo daqui para lá, ― repôs Ariadna ― é lógico queestivesse cansado.

Embora ao princípio lhe custasse demonstrar amostras de carinho comseu moço, Elton saiu a seu pai, manifestando em seguida o constante desejo dereceber amor por parte da mãe: agora, Ariadna se desfazia em afetos para ele, eum exemplo foi o beijo que depositou em sua bochecha.

Sebastian assentiu, mas não apagou o cenho franzido e ficou olhando asdiminutas letras que meses depois de começar sua aprendizagem ocontinuavam a irritar. Seguiu tentando ler para si mesmo, decifrando asestranhas palavras que aquele sábio grego plasmou fazia séculos. Sentia

especial ilusão ler aquilo; Os grandes feitos de Dioniso, esse deus a que tantasvezes tinham associado para burlar-se dele.

Sentiu uma mão lhe roçando o ombro, e um braço magro envolvendo-lhe acintura. Sebastian fechou os olhos um instante e se recostou para trás,procurando a suave carícia dos lábios de Ariadna. Ela a concedeu à altura dopescoço, ativando a bomba de desejo que nem sequer anos depois tinhadiminuído.

Sebastian se levantou, com cuidado para não incomodar ao intrépidoElton, e se voltou para olhar sua esposa com consciência. Ela o fez a sua vez, epor um segundo pareceu que estavam se medindo, decidindo se davam certo.Ariadna já não estava tão magra graças à maternidade, embora a palideznunca poderia abandoná-la e isso fazia que a fragilidade a envolvesse até tendodemonstrado que era tudo menos vulnerável. Para ela, Sebastian seguia sendoum animal perigoso, de garras afiadas e focinho comprido que, entretanto,agora procurava todas as noites.

Ariadna o pegou pela mão e o tirou do quarto. Havia um estreito corredoraté chegar à habitação que lhes correspondia, e Sebastian já sabia que o anjonão atracaria em seu destino sem perder as forquilhas. Ela também deveriasuspeitar; nem o assombro nem a surpresa turvaram seu olhar limpo quandoele puxou seu braço, deu-lhe a volta e apoiou suas costas na parede.

Sebastian a olhou com uma sobrancelha elevada, e levantou AsDionisíacas para que pudesse ver o título. Ela estirou o pescoço, as pernas einclusive ficou na ponta dos pés para estar mais perto dele.

― Você ainda não está adormecida, pequena sereia. ― Concluiu comhumor ― Não quer saber como acaba o conto?

― Tenho-o lido. Já sei como acaba.Sebastian sorriu como o gato que comeu ao canário, e se inclinou sobre

seu ouvido.― Não acredito. ― Sussurrou. Rodeou-lhe os ombros com a mão,

afastando-a da superfície para pregá-la a seu peito, e colocou o volume às suascostas para ler enquanto a abraçava. ― «ao redor das fontes, a Ninfa Náyadecantava sem véu e descalça pela união de Ariadna com a divindade dos cachos.Eros, como adivinho fogoso, teceu uma coroa da mesma cor que as estrelas edançou um enxame de Amores. Adornou para Dioniso a câmara nupcial...» ―Fez uma pausa. Afastou o livro, deixando-o cair ao chão com um golpe sonoro,e levantou o queixo de Ariadna com um dedo. Seguiu falando com a entonação

de leitura ―. «E Dioniso guiou à câmara nupcial a sua doce, formosa e amadaesposa, para levantar sua saia, rasgar-lhe as meias e assegurar-se de quenenhuma parte de seu corpo ficava sem beijar.»

Beijou-a na mandíbula, e penetrou uma mão no decote.― Isso não está no livro. ― Sussurrou sem voz.― Mas se dá a entender. ― Atravessou ele ― Não acaba aí. «Ariadna diria o

nome de seu amado entre suspiros, e tremeria violentamente sendo vítimabendita da melhor tortura existente.» ― Deslizou as mangas do vestido pelosbraços, lenta e dolorosamente. ― «Aproveitaria também para elogiar adesenvoltura de seu marido, sua maestria entre almofadões, e o quanto tinhasaudades de seus beijos da noite anterior. Ariadna não deixará nunca de dizerque o ama mais do que acreditava remotamente possível... E lhe devolverá cadacarícia com a mesma paixão.»

― É curioso que o Nono senhor de Panópolis começasse escrevendo sobreo passado Y... ― mordeu o lábio, sentindo os dedos de Sebastian riscandodesenhos em seu ventre. ― e tenha acabado predizendo o futuro.

Sebastian sorriu e dedicou um delirante segundo a sugar o lóbulo daorelha.

― Não lhe dariam bem os tempos verbais. ― Sussurrou. separou-se uminstante para olhá-la, captando a tempo sua expressão de seriedade.

― E não põe nada sobre o Dioniso confessando seu amor?― É obvio que sim. ― Replicou. Agachou-se e a agarrou nos braços para

seguir o caminho da luxúria. ― Dioniso confessará seu amor com palavras ecom atos, fazendo-o durante toda a presente noite... Até que sua bendita egloriosa Ariadna deixe de acreditar em deuses e lendas para aceitar aexistência de um único deus... Aquele chamado êxtase.

Notas

[←1]Pombas mensageiras – expressão para designar as matronas da época.

[←2]Deusa da vingança.

[←3]Os Cockney têm um dialeto e sotaque distintos e com frequência empregam o calão rimado

[←4]Planta crucífera. Dá pelos nomes comuns de goiveira ou aleli. É conhecido como aegean wallflowerem inglês, giroflée e revenelle em francês, goldlack em alemão, alheli em espanhol e violacciocca emitaliano.

[←5]A arte nazarí, também chamada de arte granadina, constitui a última etapa da arte hispano-muçulmana da Península Ibérica, durante os séculos XIII, XIV e XV, contribuindo para o surgimentoda arte mudéjar.

[←6]Onde está, meu belo tesouro?Quem te arrancou de meu coração?Se não vir, morrerei,pois não resisto a dor.

[←7]Cro-Magnon são os restos/fósseis mais antigos conhecidos na Europa de Homo sapiens (espécie àqual pertencem todos os humanos modernos).

[←8]Já não resisto mais, minhas pernas trememe em tão amargo instante sinto no peitodesfalecer minha alma tremente.

[←9]O deus do êxtase é Dioniso.

[←10]O conceito de morte como uma pessoa