MENES CORDEIRO, A. M. da R. Da boa-fé no Direito Civil. 2ª-imp., 2001.

100
ANTONIO MANUEL DA ROCHA E MENEZES CORDEIRO DA BOA FE NO DIREITO CIVIL DISSERTA9A0 DE DOUTORAMENTO EM CritNCIAS JURIDICAS NA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA REIMPRESSAO) - trtdc --- )Ektco 135 7fJo~ ALMEDINA

Transcript of MENES CORDEIRO, A. M. da R. Da boa-fé no Direito Civil. 2ª-imp., 2001.

ANTONIO MANUEL DA ROCHA E MENEZES CORDEIRO

DA BOA FE

NO DIREITO CIVIL DISSERTA9A0 DE DOUTORAMENTO EM

CritNCIAS JURIDICAS NA FACULDADE DE

DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

REIMPRESSAO)

-trtdc---)Ektco

135 7fJo~

ALMEDINA

User
Máquina de escrever
MENEZES CORDEIRO, Antínio Manuel da Rocha e. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra, Portugal, 2001.

TITULO:

AUTORES:

EDITOR:

DISTRIBUIDORES:

EXECUO 0 GRAFICA:

DA BOA FE NO DIREITO CIVIL

ANTONIO MANUEL DA ROCHA E MENEZES CORDEIRO

LIVRARIA ALMEDINA — COIMBRA

www.almedina.net

LIVRARIA ALMEDINA

ARCO DE ALMEDINA, 15

TELEF. 239 851900

FAX 239 851901 3004-509 COIMBRA — PORTUGAL

LIVRARIA ALMEDINA — PORTO

RUA DE CEUTA, 79

TELEF. 22 2059773

FAX 22 2039497 4050-191 PORTO — PORTUGAL

EDIcOES GLOBO, LDA. RUA S. FILIPE NERY, 37-A (AO RATO)

TELEF. 21 3857619

FAX 21 3844661 1250-225 LISBOA — PORTUGAL

LIVRARIA ALMEDINA ATRIUM SALDANHA

LOJA 31 PRAcA DUQUE DE SALDANHA, I

TELEF. 21 3712690

[email protected]

G.C. — GRAFICA DE COIMBRA, LDA.

PALHEIRA — ASSAFRAGE

3001-453 COIMBRA Email: [email protected]

DEPOSITO LEGAL:

SETEMBRO, 2001

111867/97

Toda a reproducao desta obra, por fotocepia ou outro qualquer

processo, sem previa autorizacao escrita do Editor, a ilicita e passivel

de procedimento judicial contra o infractor.

16 Da boa fe no Dircito civil

CPP — Codigo de Processo Penal

CR — Constituicdo da Repliblica

CRC — Codigo de Registo Civil

CRC /1967 —Codigo de Registo Civil de 1967

CRP — Codigo de Registo Predict!

CRP/1967 — Codigo de Registo Predial lie 1967

CS — Codigo Civil de 1867 (de Seabra)

D. — Digesto

EG — Einfiihrungsgesetz zurn Biirgerlichen Gesetzburhe

EheG — Ehegesetz

esp. — espanhol

Est. — Estudos

Et. — Etudes

FG — Festgabe ou Finanzgericht, conforme o contexto

fr. —frames

FS — Festschrift

GBO — Grundbuchordnung

GG — Grundgesetz

GS — Geditchtnisschrift

HGB — Handelsgesetbuch

I. — Institutiones

it. — italiano

KO — Konkursordnung

Mel. -- Mélanges

MP — Ministerio Panto

NF — Neste Folge

rec. — recensrio

reimpr. — reimpressio

Sc. — Scritti

sep. — separata

St. — Studi

trad. — traducdo

TVG — Tartftertragsgesetz

UWG — Cesetz gegen den unlauteren Wettbewerb

VHG — Gesetz fiber die richterliche Vertragshilfe

VHGO — Vertragshilfeverordnung

ZGB — Zivilgesetzbuch (suico)

ZGB /DDR — Zivilgesetzbuch (da RDA)

ZPO — Zivilprozessordnung

1.° INTRODUCAO

1. A boa fe no Direito civil

I. A boa fe surge, corn frequencia, no espaco civil. Desde as fontes do Direito a sucessio testamentiria, corn incidencia decisiva no negocio juridico, nas obrigacOes, na posse e na constituicao de direitos reais, a boa fe informa previs5es normativas e nomina vecto-res importantes da ordem privada. As figuras de ponta da civilistica estio-lhe associadas: a culpa na formacio dos contratos, o abuso do direito, a modificacio das obrigacoes por alteracao das circunstancias e a complexidade do conteddo obrigacional. Institutos antigos e cria-goes do pensamento juridico cristlo tern-na como referencia: a posse, a aquisicao de frutos, as benfeitorias e o casamento putativo. Figuras variadas, num regresso constante e inesperado, incluem-na, a niveis diversos, nas regulacOes que estabelecem: a morte presumida, a condi-cio, a simulack, a accio pauliana, o enriquecimento sem causa e a acessao.

Tanto basta para justificar um estudo. Este livro prop5e-se faze-1o, em termos de Direito positivo:

pergunta pelas solucOes concretas, promovidas, na ordem civil vigente, pela boa fe e oferece respostas.

II. Corn implicag5es de toda a ordem, o tema da pesquisa anuncia-se complexo. A dificuldade pode ser minorada corn o antecipar de alguns dados: os vectores integrativos da boa fe, a sua posicao no COdigo e a terminologia que ela informa, o sentido da segunda codificacao portuguesa, as coordenadas da Ciencia do Direito utilizada, o lugar da boa fe na cultura juridica actual e o piano do tra-balho, corn as suas razoes.

Sendo uma criacio do Direito, a boa fe ao opera como um conceito comum. Em vao se procuraria, nas piginas que seguem,

2

18 Da boa fa no Direito civil § 1.. Introduciio 19

uma definicao lapidar do instituto: evitadas, em geral, pela metodo-logia juridica, tentativas desse genero seriam inaptas face ao alcance e riqueza reais da nocao. A boa fe traduz urn estidio juscultural, manifesta uma Ciencia do Direito e exprime urn modo de decidir prOprio de certa ordem sOcio-juridica.

A natureza juscultural da boa fe implica o seu assumir como criacao humana, fundada, dimensionada e explicada em termos hist6- ricos. Os jurisprudentes romanos intentaram descobrir, num mar de decisoes empiricas, encontradas na busca de um equilibrio, capaz de suscitar consenso, manifestacoes de regularidade que, permitindo tra-tar o igual, por igual, e o diferente, de modo diferente, de acordo corn a medida da variacao, tornassem previsiveis as saidas para liti-gios futuros. Fazendo-o, fundaram a Ciencia do Direito onde, de imediato, se incluiu a boa fe. A tradicao romanistica evoluiu ao longo de seculos, recebeu contributos cristios e germanicos e foi inflectida pelos germes cientificadores que, desde o seculo xvi, dariam a cultura do Ocidente urn cunho que conserva. No Direito, isso traduziu-se pelo dominio do pensamento sistematico consciente, em progressao, ate hoje. Para enquadrar e conhecer esta sequencia, explicando a situacao actual, vai apresentar-se uma interpretacao critica da HistOria e uma teoria da evolucao dos sistemas e da sua aplicacao.

A cientificidade da boa fe, tratando-se da Ciencia do Direito, corresponde a possibilidade efectiva de, corn ela, resolver questoes concretas. Ha que partir destas para determinar a regulacao em jogo. Em tal desempenho, vai propor-se, corn auxilios nas fontes, na dou-trina e, em especial, na jurisprudencia, o regime actual da boa fe, nas suas aplicacoes variadas.

A integracao da boa fe, numa ordem sOcio-juridica, obriga a sintese dos elementos colhidos e ao isolar das traves materiais que informem o todo.

A histOria da boa fe é a do seu regime e este emana da ordem onde se aplique. Os tres vectores retratados entrelacam-se, progredindo em avancos e recuos. Correndo, embora, lado a lado e presentes, por isso, em todo o desenvolvimento, eles constituem o cerne prOprio de cada uma das tres partes que formam este escrito.

III. 0 Direito privado portugues a urn Direito codificado. A boa fe tern, no COdigo Civil, uma presenca mtiltipla que, nao constituindo um dado exclusivo sobre o seu sentido e natureza, apre-

senta urn relevo que recomenda o levantar-previo das mencoes exis-tentes e a ordenacao terminolOgica das consagraceies em jogo.

Em apanhado geral, o C6digo menciona a boa fe nas disposicoes que seguem.

Parte geral: 3.0/1 — os usos que nao forem contrarios aos principios da boa fe sac) juridicamente atendiveis; 119.° — regressando o ausente declarado morto presumido, devem ser-lhe devolvidos os bens no estado em que se encontrarem e ainda certos outros, dentro dum esquema de subrogacao real; mas, /2, havendo ma f6 dos sucessores, ele deve ser indemnizado do prejuizo, consistindo, /3, a ma fe, neste caso, no conhe-cimento de que o ausente sobreviveu a data da morte presumida; 179.° — a anulacio. das decisoes da assembleia geral duma associagio nao prejudica os direitos que terceiro de boa fe haja adquirido em execucao das deliberav3es anuladas; 184.0/2 — na fase de extingio, a associagao s6 responde pelas obrigageies assumidas pelos administradores para corn terceiros de boa fe, desde que nao tenha, ainda, sido dada publicidade extincao; 227.0/1 — nos preliminares e na formacao dos contratos, deve proceder-se segundo as regras da boa fe; 239.° — na integracao da declaracao negocial, ha que seguir a vontade presumivel das partes ou os ditames da boa fe, quando outra seja a solucao por des imposta; 243.°/1 — a nulidade proveniente da simulacao nao pole ser arguida pelo simulador contra terceiro de boa fe — /2 — a qual consiste na ignorancia da simulacao ao tempo da constituicao dos direitos respec-tivos e — /3 — considerando-se sempre de ma fe o terceiro que haja adquirido o direito posteriormente ao registo da accao de simulacao; 25942 — ao representado de ma fe nao aproveita a boa fe do represen-tante; 272.° — na pendencia de condicao, deve agir-se segundo os ditames da boa f6 para nao comprometer, em neg6cios transmissivos, a integridade do direito da outra parte; 274../2 — havendo lugar a restituicao do que, na pendencia de condicao, tenha sido -alienado, 6 aplicavel, quanto a perda da coisa, frutos e benfeitorias, o regime da posse de boa fe; 27542— a veri-ficacio ou o impedimento da condicao, provocadas, contra as regras da boa 1.6, por aquele a quem aproveita, tarn-se por nao verificada; 277.0/3 — a aquisicao de frutos por beneficiario de direito sujeito a condicao resolutiva aplica-se o regime do possuidor de boa fe; 291.0/1 — a nulidade e a anulacao de neg6cios juridicos, relativos a im6veis, nao prejudicam, em certas condicOes, os direitos adquiridos por terceiros de boa fe, /3, sendo considerado de boa fe o terceiro adquirente que, no momento da aquisicio, desconhecia, sem culpa, o vicio do neg6cio invilido; 334.° — 6 ilegitimo o exercicio de urn direito, quando o titular exceda mani-festamente os limites impostos pela boa fe.

Direito das obrigacOes: 437.°/1 — a resolucao ou modificagio do contrato por alteracao das circtuutancias tem lugar quando, entre outros requisitos, a exigencia de obrigacOes assumidas, afecte gravemente os principios da boa fe; 475.° — no enriquecimento sem causa, nao hs lugar a restituicao se, ao efectuar a prestacao, o autor sabia que o efeito corn ela

20 Da boa fe no -Direito civil

previsto era impossivel, ou se, agindo contra a boa fe, impediu a sua veri-ficacio; 481.°/2 — verificando-se os pressupostos do agravamento da obrigacao de restituir o enriquecimento, e sendo a coisa a restituir alienada, a titulo oneroso, o adquirente, se estiver de ma fe, responde nos mesmos termos do enriquecido; 612.°/1 — a impugnacio pauliana de acto oneroso requer ma fe do devedor e do terceiro, sendo, /2, a ma fe a consciencia do prejuizo que o acto causa ao devedor; 61341, b) — a impugnacao pauliana, nos transmissOes onerosas posteriores, requer ma fe do alienante e do posterior adquirente; 616.°/2 — o terceiro adqui-rente, na situacio pauliana, responde, quando de ma fe, pelo valor dos bens alienados ou perecidos, embora corn relevancia negativa da causa virtual; quando de boa fe, /3, responde na medida do enriquecimento; 726.° — para efeitos de perda da coisa, frutos e benfeitorias, o terceiro adquirente de coisa hipotecada e havido por possuidor de boa fe; 756.0, b) — nao ha direito de retenclo a favor dos que tenham realizado, de ma fe, as despesas de que proveio o seu credito; 762.°/2 —no cumpri-mento da obrigaciao e no exercicio do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fe; 765.0/1 — o credor de boa fe pock impugnar o cumprimento quando haja ilegitimidade do devedor; o devedor, /2, de boa ou ma fe, nao o pock fazer sem oferecer nova presto*); 892.° — o vendedor nao pode opor a nulidade da venda de bens alheios ao comprador de boa fe e o comprador doloso no pock faze-lo ao vendedor de boa fe; 894.0/1 — o comprador de bens alheios, em venda nula, pode, se dc boa 16, exigir a restituicao integral do preco, ainda que haja perda do valor da coisa; 897.°/1 — na venda nula de bens alheios, o vendedor a obrigado a convalidacao, no caso de boa fe do comprador; 898.° — na venda nula de bens alheios, tendo urn contraente procedido de boa fe e o outro dolosamente, tern o primeiro direito a ser indemnizado de todos os prejuizos que no teria sofrido se o contrato fosse valido desde o principio ou no tivesse sido celebrado, conforme venha, ou nao, a haver convalidacio; 899.° — em qualquer caso, o vendedor deve inde-mnizar o comprador de boa fe, ainda que nao tenha agido corn dolo ou culpa, compreendendo a indemnizacao, apenas, os danos emergentes que nao derivem de despesas voluptuarias; 901.° — o vendedor responde solidariamente pelo pagamento das benfeitorias devidas pelo dono da coisa ao comprador de boa fe; 903.° — os arts. 894.°, 897.°/1, 899.°, 900.°/1 e 901.° cedem perante convene -ao em contrario, excepto se o beneficiario da convencio houver agido corn dolo e, o outro contraente, de boa fe; 938.°/2 — na venda de coisa em viagem, figurando, entre os documentos entregues, a mencio dessa circunstancia e de ap6lice de seguro contra os riscos de transporte, o vendedor que soubesse da deterio-raga.° ou perda da coisa, ao tempo do contrato e, dolosamente, o tao tenha revelado ao comprador de boa fe, nio tem direito ao preco nem a anulabilidade do contrato; 956.0/1 — o doador de bens alheios nao pock opor a nulidade ao donatario de boa fe devendo, ainda, /2, em certas circunstancias, indemniza-lo; 957.0/2 — o donatario de boa 16 pode requerer a anulacao da doacao, havendo onus ou vicios na coisa doada; 1009.0/2 — depois de dissolvida a sociedade, esta e os socios s6 respondem

§ 1.° Introducao 21

pals obrigaceies assumidas por administradores perante terceiros de boa fe; 1046.°/1— o locatario, salvos certas excepcbes, 6 equiparado a possui-

dor de ma fe, para efeitos de benfeitorias; 1138.. — o comodatario

equiparado da mesma forma, para efeito identico.

Direito das coisas: 126041 — a posse diz-se de boa fe quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem,

restunindo-se , /2, a posse titulada, de boa fe e a nao titulada, de ma fe e sendo, a posse violenta, /3, sempre de ma fe; 1269.° — o possuidor

de boa fe s6 responde por perda ou deterioracio da coisa se houver agido corn culpa; 1270.°/1, 2 e 3 — o possuidor de boa fe faz seus os frutos percebidos e tern o direito a ser indemnizado pelos frutos pendentes, ainda que vendidos; 1271.° — o possuidor de ma fe responde pelos frutos produzidos e por aqueles que um proprietario diligente poderia ter obtido; 1273.°/1—o possuidor de boa ou de ma fe, tem o direito de ser indemni-zado das benfeitorias necessarias e de levantar as titeis, sendo, /2, na impossibilidade do levantamento, indemnizado segundo as regras do enri-quecimento sem causa; 1275.0/1 — o possuidor de boa fe pode levantar, sendo possivel, as benfeitorias voluptuarias, podendo, /2, o possuidor de ma fe faze-lo; 1294.° — a usucapiao de im6veis, corn titulo e registo, tern prazos diferentes de acordo corn a boa ou ma fe do possuidor, sucedendo outrotanto, 1295.°, no caso de registo da mera posse ou, 1296,0 , na falta de registo; 1298.° — a usucapiao de m6veis sujeitos a registo 6 encurtada havendo titulo, registo e boa fe, por parte do possui-dor; 1299.0— a usucapiao de m6veis, nao sujeitos a registo, a encurtada havendo titulo e boa fe, por parte do possuidor de boa fe; 1300.° —

possivel a usucapiao de moveis, corn posse violenta ou oculta, desde que ela passe a terceiro de boa fe; 1301.° -- quem comprar coisa, de boa fe, a comerciante que negoceie corn esse tipo de coisas, deve receber o preco por parte de quem the exija a coisa; 1333.° e 1334.° — os regimes da uniao e da confusao variam consoante a boa ou ma fe do autor da operacao, outrotanto, 1336.° e 1337.0, sucedendo corn a especificacio; 1340.° e 1341.° — os regimes da acessao em terreno alheio variam consoante a boa ou ma fe do autor da operacao, entendendo-se, ai, haver boa fe, 1340.°/4, se ele desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporacao pelo dono do terreno; 1342.0/1 — na aces-sac) em terreno e corn materiais alheios, cabem, ao proprietario deles, os direitos atribuidos ao autor, independentemente da boa ou ma 16 deste, sendo o autor, /2, quando de ma fe, solidariamente responsavel corn o proprietario dos materiais, que tenha culpa, e repartindo-se, entre ambos, o enriquecimento, quando a sua restituicao deva ter lugar; 1343.0/1 — a aquisicao, por prolongamento do edificio, de terreno alheio, actua na boa fe do autor; 1450.0/2 — o usufrutuario 6 equiparado ao possuidor de boa fe, quanto a benfeitorias uteis e voluptuarias.

Direito da familia: 1647. °/1 — o casamento putativo requer boa fe por parte dos cOnjuges ou, /2, por parte daquele que dele queira benefi-

164841 ciar; — para o efeito, esta de boa fe o conjuge que desconhe-

22 Da boa fe no Direito civil - § 1.. Introducilo 23

cesse desculpavelmente o vicio causador da nulidade ou anulabilidade ou que tivesse sido coagido, sendo ainda, /2, da competencia exclusiva dos tribunais do Estado, o conhecimento da boa fe, a qual, /3, se presume; 1687. (13— a anulabilidade da alienagao ou oneragio de m6vel, feita por um cOnjuge, apenas, quando devesse levar consentimento de ambos, nao pode ser oposta a terceiro adquirente de boa fe; 1737.°/2 — o cOnjuge que, na constancia do matrim6nio entre, com oposigio, na administragio dos bens do outro, responde, perante o proprietario, como possuidor de ma f6 ( 1); 1827.0/1 — a anulacao de casamento civil, ainda que contraido de ma fe por ambos os cOnjuges, nao exclui a presuncao de paternidade; 1902. °/1 — a falta de acordo dos pais, no exer-cicio do poder paternal, nao a oponivel a terceiro de boa fe; 1920.° C — as decisoes judiciais relativas ao poder paternal nao podem ser invocadas contra terceiro de boa fe, enquanto no se mostrar efectuado o registo.

Direito das sucessoes: 2037.0/1 — tendo havido devolugio que seja tida como inexistente, por indignidade, fica o indigno equiparado a possuidor de ma fe; 2076.0/2 — a acgao de peticao de heranga nao pode ser posta contra terceiro de boa fe que haja adquirido de herdeiro apa-rente, sendo ainda este, quando de boa fe, responsavel, apenas, nos termos do enriquecimento sem causa; 2077.°/1— o suposto herdeiro, em decla-raga° de nulidade ou de anulagao de testamento, quando tenha cumprido legados de boa fe, fica quite, para corn o herdeiro verdadeiro, restituindo, a este, o remanescente da heranga; 2115.° — havendo colagio, o donati-rio a equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de boa fe; 2177.° —havendo reducao por inoficiosidade, o donatirio 6 equiparado, quanto a frutos e benfeitorias, ao possuidor de boa fe.

IV. As referencias expressas, ha que juntar uma serie de remissOes, fcitas para locais onde a boa ou a ma fe sao mencionadas.

Salientem-se as mais significativas: 147.°, remete para o 1920.° C — a interdicao definitiva nao pode ser invocada, contra terceiro de boa fe, enquanto nao se mostrar registada; 194.°, remete para o 184.° — a fundagao, depois de extinta, so responde por obrigagOes assumidas pelo administrador, perante terceiros de boa fe se, a extingio, nao tiver sido dada a devida publicidade; 252.0, remete para o disposto sobre resolucio ou modificagao do contrato por alteracao das circunstancias — ao erro sobre a base do neg6cio aplica-se determinado regime quando a

( 1) A reforma civil de 1977, operada pelo DL 486/77, de 25 de Novembro, ao pretender abolir o regime dotal — art. 1738.° a 1752.° — revogou os art. 1737.° a 1752.0. Trata-se sem dilvida, de lapso material, uma vez que o art. 1737.° em nada contunde coin a filosofia legislativa quo presidiu a reforma. 0 art. 1737.°/2, que menciona a boa fe, cones-ponde as regras gcrais aplicadas a situacio ncle prevista, di° provocando, o scu eventual desaparccimcnto, problemas de maior; pelo contririo, o art., 1737. 0 /1, portador de uma norma especial, deixaria, a dcsaparecer, ulna lacuna dificil de colmatar. Dada a inequivocidade do espirito legislative, deve entendcr-sc q ue o art. 1737.°, redaccio initial, esti em vigor.

exigencia das obrigageies assumidas, pelo declarante em erro, afecte grave-mente os principios da boa fe; 278. °, remete para o 272.° — nas obri-gagOes ou direitos a termo, o titular deve agir segundo os ditames da boa fe, por forma a nao comprometer a integridade do direito da outra parte; 289.°/3, remete para os 1269.° ss. — nas restituigoes por nulidade ou anulacao, aplica-se o regime da posse, de boa ou de ma fe, conforme os casos; 305.°/2, remete para os requisitos da impugnacao pauliana — tendo o devedor renunciado a prescricao, os credores so podem invoci-la dentro dos pressupostos em causa, entre os quais, em certos casos, a ma fe do deve-dor e de terceiro; 670. °, b), remete para o 1273.° — aplica-se, ao credor pignoraticio, o regime cominado para as benfeitorias necessarias e 6teis, por parte de possuidor, de boa ou de ma fe; 758.°, remete para os direitos e deveres do credor pignoraticio — o retentor de movel integra, nomeadamente, a previsio do art. 1273.°, corn os efeitos apontados; 1490.° remete para o regime do usufruto — ao usuario e ao morador usuario aplica-se, assim, quanto a benfeitorias, o regime (la posse de boa fe; 2123.0, remete para o preceituado acerca da venda de bens alheios — a partilha de bens no pertencentesa heranga aplica-se o regime refe-rido, que faz mengOes largas a boa fe.

V. A consideracao destes preceitos permite intuir uma diversi-dade de significados, pelo menos aparente, da boa fe. 0 prOprio COdigo define-a, nalguns casos.

Assim: 11943: A ma fe, neste caso, consiste no conhecimento de que o ausente sobreviveu a data presumida; 243.0/2: A boa fe consiste na ignorancia da simulagao, ao tempo em que foram constituidos os respec-tivos direitos; 291.0/3: considerado de boa fe o terceiro adquirente que, no momento da aquisiglo, desconhecia, sem culpa, o vicio do negocio nulo ou anulavel; 61242: Entende-se por ma f6 a consciencia do prejuizo que o acto causa ao credor; 1260.°/1: A posse diz-se de boa fe, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem; 1340.°/4: Entende-se que houve boa fe, se o autor da obra, sementeira ou plantaglo desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporaclo pelo dono do terreno; 1648.°/1: Considera-se de boa fe o cOnjuge que tiver contraido o casamento na ignorancia desculpavel do vicio causador da nulidade ou anulabilidade, ou cuja declaragio de vontade tenha sido extorquida por coaccao fisica ou moral.

As sete definicoes de boa fe, constantes do U:lig°, andam todas em tomb de estados de ciencia ou de ignorancia da pessoa, quanto a certos factor. Nao sao coincidentes: nuns casos a lei fala em mero conhecimento ou ignorancia — 119.°/3, 243.°/2, 1260.°/1 e 1340. el4

noutros em desconhecimento sem culpa ou ignorancia descul- pavel — 291.°/3 e 1648. °/1 — e noutro, ainda, em consciencia — 612. °/2. SO atraves dum estudo parcelar das figuras em causa e, depois,

§ 1.° Introduolo 25 24 Da boa fl no Direito civil

da teorizacao dos resultados obtidos, 6 possivel aclarar se do mesmo conceito se trata ou se, pelo contririo, ha flutuacoes. De qualquer forma, 6 presente uma primeira linha significativa da boa fe, em que esta tern a ver corn estados relativos a pessoa ou, se se quiser, ao sujeito de direitos. A boa f6 subjectiva.

Da boa f6 subjectiva pode aproximar-se a maioria das referen-cias legais acima indicadas. Algumas dessas mence3es nao tern, porem, a ver corn estados do sujeito. Assim sucede sempre que a lei remeta par os principios — 3../1 — regras — 227.0/1 — ditames — 239.. e 272.' — ou limites da boa f6 — 334.. — ou, simplesmente, mande as pessoas agir de boa fe — 762.0/2. A boa f6 surge, agora, como algo de exterior ao sujeito, que se the impae. a boa fe objectiva, que a lei nunca define.

A contraposica'o entre a boa fe objectiva e a subjectiva, ao con-trario do resultante de alguma literatura, nao se confunde corn uma outra, entre boa fe psicolOgica e etica. Ambos estes termos abrem na boa f6 subjectiva: o primeiro, traduz urn estado factico de mera igno-rancia, presente, por exemplo, na letra do art. 1260.°/1; o segundo, manifesta urn estado de ignorancia valorado pelo Direito, corn refiexos praticos em que releva, apenas, se for desculpivel, como ocorre no art. 291.°/3. A distincao, na subjectiva, da boa fe psicologica e erica, 6 historica; apenas uma analise da problematica envolvida permitira revelar se mantem actualidade no Direito portugues.

2. A codificacao portuguesa de 1%6

I. 0 COdigo Civil de 1966 constitui urn marco fundamental na historia do Direito privado portugues. Preparado corn cuidado, durante um periodo largo (2), ele traduz a consagracao definitiva dos elementos juscientificos mais evoluiclos, dentro do romanismo, dispo-niveis aquando da sua elaboracao: operou a recepcao da Ciencia do Direito que, desenvolvida no espaco juridico alemao, na sequencia de SAVIGNY e aprofundada na teoria e na pratica da pandectistica, acabaria por frutificar na codificacao de 1896, corn novas evolucoes

(2) Preambulo do DL 33908, de 4-Set.-1944, DG I, 196 (1944), 830 ss., VAZ SERRA, A revisit.° geral do C6digo Civil lAlguns factor e comentOrios, BMJ 2 (1947), 24-76 = BFD 22 (1947), 451-513, e ANTUNES VARELA, Do projecto ao Ccfcligo Civil (1966) e C6cligo Civil, Enc. Polls 1 (1983), 929-944 (931ss.), quanto a preparacao do Codigo de 1966.

depois do primeiro pos-guerra. . 0 teor de varios desenvolvimentos ulteriores assenta neste dado basico. Requerem-se algumas anteci-paceies, a seu tempo demonstradas.

Uma recepcao 6 um fenomeno caracteristico juscultural. Traduz a adopt-ao, por uma comunidade, de elementos juridicos proprios de outra, presente ou passada, corn independencia de situagoes de dominacao politica ou economica. A ocorrencia, num piano positi-vista, era entendida como mera deslocacao de normas juridicas. Tal concepcio e, hoje, reconhecida como insatisfatoria, na sequencia, a aprofundar, dos estudos de WIEACKER, sobre a recepcao do Direito romano, atraves das universidades medievais. As proposicOes nor-mativas nao tern uma existencia autonoma que lhes permita trans-posicoes. A recepcao corresponde nao a urn movimento objectivado de preceitos, mas a aprendizagem dos dados tecnicos e cientificos que lhes estejam subjacentes. Concluido esse processo de divulgacao, pode haver coincidencias formais entre a ordem dadora e a receptora; mas 6 seguro que, na sua falta, a adopcio de modelos estrangeiros, carecida de substancia, conduz, sob a similitude, a vigencia objectiva de esquemas diferentes.

0 legislador civil de 1966 veio coroar uma evolucao juscientifica operada ern profundidade, corn raizes bem anteriores. Fe-lo, por isso, corn eficacia especial.

II. 0 Direito civil portugues viveu, no seculo xlx, dominado por contributos culturais franceses, consubstanciados no COdigo de 1867. A passagem do seculo foi assinalada por uma viragem funda-mental, a nivel de jusprivatismo. A disponibilidade, atraves de tra-ducoes italianas, das obras mais significativas da pandectistica tardia, corn relevo para WINDSCHEID, determinante na codificacao alema, permitiu a GUILHERME MOREIRA iniciar urn ensino diferente: a exegese tradicional do C6cligo Civil, modelada pelo estilo napoleonico, subs-tituiria o metodo «sintetico» (3); os temas eram agrupados em moldes cientificos e aprofundados corn mestria crescente, sob contributos importantes de alem-Reno.

A presenca, no Direito, de urn sistema de exposicao determinado Igo 6, a prazo, in6qua para corn o seu contetido material. A ideia

(3) CI. GUILHERME BRAGA DA CRUZ, A Revista de Legislaclo e de JurisprudencialEshow da sua hist6ria (1975), 1, 431 1°51 ss. (434) e elementos al indicados, bem como ORLANDO DE

CARVALHO, A teoria geral da relacdo jurldica I seu sentido e limites2 (1981), 76.

26 Da boa fe no Direito civil § 1.. Introduccio 27

contraria, bastante comum e radicada, de modo directo, no positi-vismo heckiano, cede perante a integracao sistematica actual, perante o relevo substantivo da linguagem e perante um conhecimento efec-tivo do evoluir recente da dogmatica civil. Aceitando e divulgando a moldura pandectistica e redistribuindo, a sua luz, a materia privada, GUILHERME MOREIRA foi levado a novos arranjos, a descoberta de lacunas e necessidades ocultas e a interpretaca'o criativa de textos, na aparencia estaticos. 0 fenOmeno documenta-se, por exemplo, pelas posicOes que assumiu a propOsito da pressuposicao — logo retomada por J. G. PINTO COELHO — impossiveis, end° como hoje, a face da Ciencia Juridica francesa.

Apesar de retrocessos pendulares, a Ciencia Juridica alema que, ao cuidado de GUILHERME MOREIRA, iniciou uma difusao prolon-gada no espaco portugues, caracteriza-se, em tracos largos, por pos-tular urn sistema que, operando reducoes centrais, admite desenvolvi-mentos perifericos, inovadores, tecidos face a problemas inesperados para o micleo inicial. Ha, aqui, urn modo especifico de ser do Direito, que a breve trecho abriria as portas a novos institutos e a solucoes mais aperfeicoadas. Atraves do ensino ministrado nas Faculdades, na direccao delineada por GUILHERME MOREIRA e aceite, pela sua superioridade tecnico-cultural manifesta, por contemporaneos e suces-sores, os juristas portugueses aprenderam a Ciencia evoluida a partir da pandectistica. 0 fenomeno intensificou-se quando, gracas a juscientistas COMO MANUEL DE ANDRADE, VAZ SERRA e ANTUNES

VARELA, houve acesso directo a literatura alema. Uma elaboracao autOnoma dos dados recebidos teve lugar, reforcada por PAULO

CUNHA e GALVAO TELLES. Este cenario possibilitou a recepcao real que o legislador de 1966 veio rematar.

III. A recepcao da doutrina alema nao foi linear. Contra ela, jogaram manifestacoes normais de continuidade cultural, ricas em elementos tradicionais, com relevo para a exegese napoleonica. Certos institutos permaneceram iritocados pelas correntes novas, enquanto outros originavam sinteses variadas. 0 COdigo Civil, embora integrado, de modo decisivo, na Ciencia do Direito, originada por SAVIGNY, acusa, assim, uma variedade de influencias: a alema, junta-se a tradicao portuguesa do Direito comum e o pensa-mento frances, devendo acrescentar-se-lhe o figurino italiano, ele proprio fruto de contributos gauleses e germanicos e de uma elaboracao autonoma assente em estudos romanisticos. Esta varie-

Jade agravada, ate certo ponto, pela multiplicidade de jusperitos

que intervieram na sua elaboracao, mas minorada nas reviseies suces-

sivas efectuadas ate ao projecto final, actua, no entanto, mais a nivel de institutos formais. 0 Direito existe na sua Clencia, acessivel pela aprendizagem. No dominio cientifico, as correntes culturais dispares silo reduzidas a favor da tecnica mais apurada. Mantem-se, contudo, fracturas, corn reflexos na boa fe: a Parte geral do UK:lig° e o Direito das obrigagoes ligam-se a Ciencia alema, enquanto o Direito das coisas manteve relac6es mais estreitas com as ideias tradicionais; a boa fe objectiva, em termos muito gerais, liga-se a primeira e a subjective, a segunda. .Na encruzilhada de contributos jusculturais variados, a boa fe exprime a sintese complexa que, ao Direito civil portugues, di uma identidade.

IV. Os bastidores que, numa aprendizagem prolongada por geraceies de juristas, possibilitaram a substancialidade da codificacao de 1966, nao tirain, a esta, a sua importancia. Por tenues que, a luz de alguns entendimentos jusmetodolOgicos, se apresentem, os vin-culos, entre a lei e o Direito, existem. Em certos circulos e salvas situacoes de ruptura, onde a jurisprudencia, coin recurso, alias, a boa fe, em exemplos historicos conhecidos, como o da revalorizacao monetaria, tern ensaiado saidas contra legem, nao a possivel, aos juris-tas, concretizar solucoes idoneas, seen previa adaptacao a nivel de fontes.

0 COdigo Civil consagrou institutos que, embora admitidos, antes dele, sob pressio da doutrina, surgiam duvidosos, a mingua de apoio na lei. De entre eles, a maioria conecta-se corn a boa fe objectiva: a culpa na formacao dos contratos, o abuso do direito e a

gdaag

ec modbeuiofisincaacavoezdaoprcoovnatdroato por alteracao das circunstancias; outros

aspectos, como o da integracio dos contratos e a execucao das obri- rfe6n(o4)v.ados pelo legislador de 1966, foram-no, ainda, a luz

, urn COdigo novo torna-se o centro da acti-vidacdiejuciaridica do sector. 0 entender dos seus textos incita ao estudo da en

es Ciencia. A recepcao, iniciada com GUILHERME

ficou MOREIRA,

nao que os corporiza; o aplicar dos seus preceitos torna-se a

efectivacao dessa concluida em 1966; nessa data, principiou uma

(4) Confrontem-se as inovacEies introduzidas pelo Codigo Civil de 1966, em ANTUNES VARELA, Codigo Civil cit., 935-937: a grande maioria reporta-se, de facto, a boa fe.

28 Da boa fi no Direito civil § 1.° IntroducaO 29

fase nova no processo juscultural cujos frutos mais completos, a nivel jurisprudential, comecaram a surgir nos tiltimos cinco anos, num movimento que deve ser intensificado.

0 COdigo Civil de 1966 nasceu sob o signo da boa fe. 0 seu aproveitamento pleno nao deve tardar mais.

V. A existencia actual de movimentos poderosos de recepcio juridica, que apenas aos poucos vao ganhando uma perspectiva suficiente para se tornarem perceptiveis, contribui para enfraquecer as barreiras nacionais e linguisticas entre as doutrinas continentals. A Ciencia do Direito, como Ciencia, desconhece fronteiras.

0 estudo do COdigo Civil e o conhecimento da Ciencia que o produziu e que o vai, em termos evolutivos, aplicar. Justifica-se o recurso a doutrina alema; mais do que urn prisma comparatista destinado, a, atraves de 4cortes horizontais em sistemas juridicos* diferentes, determinar o alcance dos principios ( 5), ou, simplesmente, a aumentar o conhecimento ( 6), procura-se uma apreensio directa dos dados culturais que slo hoje patrimOnio alargado do Ocidente. Outras doutrinas podem ser compulsadas, tambem, corn vantagem.

Mas se a utilizacao da doutrina europeia do continente nao vai servir, aqui, uma perspectiva comparatistica frontal, esta deve ser mantida como factor sindicante dos resultados obtidos ( 7). 0 Direito portugues, apesar de alinhado, para mais depois de 1966, por uma visa° dominante oriunda de alem-Reno — mas que, por intensamente romanica, nao a estranha a nossa cultura — recebeu outros contributos e encetou elaboracoes prOprias, a acompanhar e incentivar. As particularidades locais nao devem ser esquecidas, sobretudo quando permitam soltiOes mais perfeitas. Havers oportunidade de apontar excessos doutrinarios na transposicao de esquemas alemies. Compete, entao, ao Direito comparado, detectar as clivagens impedientes e definir as razoes da ocorrencia.

(5) JOSEF ESSER, Grundsatz und Norm in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts (1956; existem reediciies posteriores inalteradas), 28.

(6) KONRAD ZWEIGERT/HEIN Korz, Einfuhrung in die Rechtsvergleichung auf dem Gebiete des Privatrechts, I — Grundlagen (1971), 14; WOLFGANG FIKENTSCHER, Gedanken zu einer rechtsver-gleichenden Methodenlehre, FS C. Heymanns Verlag 150. (1965), 141-158 (145).

(7) Cf W. FIKENTSCHER, Methoden des Rechts in vergleichender Darstellung, 1 (1975), 3 ss. (8).

3. Postulaclos juscientificos

1. A Ciencia do Direito ( 8 ) 6 urn modo voluntario, sujeito a

regras, de resolver casos concretos ( 9), aos quais, no momento historic° considerado, seja atribuida a dimensio da juridicidade. Esta depende de factores divulgados, ainda quando discutidos, em que nao cabe, agora, insistir. Tern natureza constituinte: fora do caso concreto decidido, menos do que Filosofia do Direito — pois esta, porque Filosofia, considerando o todo ( 10), nao esquece a sua reali-zacao — ha especulacao teoretica que, mesmo iluminada, nao é

rDevireeliTat:urn elemento. Mas nao se esgota na ordem, como dado: o Direito positivo ( 11 ): existe na ordenacao social, de que

na sua onticidade, aberta ao exterior ( 12), a pcssoa apreende o Direito cuja existencia e a regularidade da sua concretizacao ( 13 ). Comunicada pela linguagem, a realidade juridica sofre uma apreen-sac, intelectiva cuja elevacio, acima de meras conjuncoes de forca, a situa no campo do espirito ( 14).

0 Direito deve estar disponivel para a comunicacao e para a aprendizagem. A complexidade das situacoes sociais, em que se

(8) A expressio, como tern sucedido nas paginas anteriores, e usada cm sentido prOprio,

equivalence a Jurisprudenz, que inclui canto os aspectos teoreticos como a sua pratica; cf. RALF DREIER, Zur Theoriebildung in der Jurisprudenz, FS Schelsky (1978), 103-132 (104).

(9) P. ex., HELMUT COING, Die Auslegungsmethoden und die Lehren der allgemeinen Hermeneutik (1959), 23, LARENZ, Aufgabe und Eigenart derJurisprudenz, JuS 1971, 449-455 (450), J. LLOMPART, Juristisches und Philosophisches Denken, em Le raisonnement juridique (1971), 85-91 (86) e RALF DREIER, Zum Selbstverstandnis derJurisprudenz als Wissenschaft, RTh 2 (1971), 37-54 (43 e 45).

(10) Recorde-se ARTHUR KAUFMANN, Zur rechtsphilosophischen Situation der Gegentvart, JZ 1963, 137-148 (138).

(n) ERIK WOLF, Des Problem der Naturrechtslehre I Versuch ether Orientierung3 (1964), 126 SS., ARTHUR KAUFMANN, Gesetz und Recht, FS E. Wolf (1962), 357-397 (363) e Analogie

und «Natur der Sache* / Zugleich em Beitrag zur Lehre vom Typus (1965), 8 e, entre nos, OLIVEIRA

ASCENSAO, 0 Direito Unfrock& e teoria geral2 (1980), 171. Noutra perspectiva, mas em NIXLAS LUHMANN, Positivital des Rechts als Voraussetzung einer modernen Gesellschaft

(1970) = Ausdifferenzierung des Rechts / Beitrage zur Rechtssoziologie und Rechtstheorie (1981), 113-153 (113 ss.).

(52) MARTIN HEIDEGGER, Seitt und Zeit'° (1963), § 13 (62). (13) Utiliza-se, pois, a convolacio de ERICH FECHNER, Rechtsphilosophie / Soziologie and

Metaphysik des Rechts 2 (1962), 230, da formula heideggeriana sobre a existencia da lingua-gem — cf. Sein u. Zeit cit., §§ 34 e 35 (166 e 167) e, do mesmo A., Brief tiber den Humanismus (1946) = Wegmarken (1967), 145-194 (149 ss.).

(14) Einqsr von HIPPEL, Zur Ontologie des Rechts, StG 12 (1959), 69-76 (72).

30 Da boa fi no Direito civil § 1.° Introducio 31

exprime, exige a sua reducio ( 15 ): assiste-se, pois, a urn processo de elevacio, com recurso aos tracos tipicos mais caracteristicos e a urn reconduzir do conjunto aos vectores que o informem, de modo a permitir, seja um entender, seja urn decidir de novas situagoes: 6 a dogmatica juridica. Nas palavras de ESSER: a dogmatica 6 o caminho de tornar questOes de justica, nos seus diversos imbitos, juridicamente operacionais ( 16). A dogmatica no constitui, apenas, um elemento decisivo na captacio do material juridico; ela permite a verificacio rational das soluciies encontradas e a sua critica ( 17); pressupondo um nivel organizatorio elevado da ordem juridica, ela deve servir as necessidades da vida ( 18). Neste sentido entende-se, aqui, a dogma-tica ( 19) e nio num outro, algo difundido e fonte de confuseies pelas criticas indiscriminadas que possibilita, no qual dogmatica se identifica corn axiomatismo ou conceptualismo, postulando uma deducio logica de proposicoes a partir de um nticleo central, e culminando na

(15) NIILLAS LUEIMANN, Vertrauen / Ein Mechanismus der Reduktion sozialer Kompleziat (1973), 1 ss. (5), Legitimation durch Verfahren 2 (1975), 38 ss. c Systemtheoretische Beitreige zu Rechtstheorie (1972) = Beitrale cit., 241-272 (270-271); cf. KARL Lerma, Die Bindung des Rich- .

tern an das Gesetz als hermeneutisches Problem, FS Er. Htler (1973), 291-309 (293) e Methodenlehre der Rechtswissenschaft 4 (1979), 210 ss. (213) e JURGEN HABERMAS, Eine Auseinandersetzung mit Niklas Luhmann (1971): Systemtheorie der Gesellschaft oder Kritische Gesellschaftstheorie? = Zur Logik der Sozialwissenschaftens (1982), 369-502 (378).

(16) JOSEF ESSER, Moglichkeiten und Grenzen des dogmatischen Denkens im modernen Zivilrecht, AcP 172 (1972), 97-130 (113); cf. 0. BACHOP, Neue Tendenzen in der Rechtsprechung zum Ermessen und zum Beurteilungsspielraum, JZ 1972, 641-646 (641).

(17) ESSER, Dogmatisches Denken cit., 101, LARENZ, Entrvicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik, JZ- 1962, 105-110 (105) e DIETER DE LAZZER, Rechtsdogmatik and Kompro-missformular, FS J. Esser (1975), 85-112 (105). Na perspectiva particular de THEODOR VIEHWEG, Zwei Rechtsdogmatiken, FS Emge (1960), 106-115 (107), a dogmatica, nunca deixando o nao assume natureza ztretica. Recorde-se que a zetitica, na terminologia de VIEHWEG, perante urn problema, estuda nao o esquesna da dells -ao, mas o da investigacio; cf., dole, Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechuforschung, FS OLG Zweibriicken (1969), 327-338 (331) = St. sue Wissenschafstheorie (1968), 96-104 (cita-se pelo primeiro local). Em ILMAR TAAshmo, Zetetische Verfahren fur juristisches Aufweisen, RTh 9 (1978), 421-428 (422), utiliza-se a zetftica num sentido nio coincidence, de modo rigoroso, com o de VIEHLVEG: os processos zetiticos assegurariam a materialidade do pensamento, por oposicio a mesa logi-cidade; cf. porem, at, 423.

(18) NIXLAS LUHMANN, Rechtssystem and Rechtsdogmatik (1974), 17 e 15; cf. rec. de JURGEN Scmamr, RTh 5 (1974), 223-228.

(19) Ensaiou-se esta orientacio em MENEZES CORDEIRO, A situacdo juridica laboral ; pers-pectivas dogmdticas do Direito do trabalho, sep. ROA 1982, 11-12; cf. KURT BALLERsTRDT, Problem, einer Dogmatik des Arbeitsrechts, RdA 1976, 5-14 (6).

subsunoo (2o) A dogmatica radica na positividade do Dircito.

sein ela ou, pelo menos, sem utilizar os elementos postos, por ela, disponibilidade do estudroso, qualquer debate e alheio ao Direito

e IsIu.a CAi8ureccli:cao dogmatica global da ordem juridica di lugar ao sistema. 0 ambito e o teor dos comportamentos, proibidos ou prescritos, em termos de Direito, a comunicado aos sujeitos actuantes mediante proposicoes: as normas ( 21 ). Estas, por agora, podem ser entendidas como apoio dogmatic° da decisio do caso - a norma do caso (22) - como •egra generica ou como possibilidade de a

encontrar. Em qualquer hipOtese, traduzem a abstraccio de accOes juridicamente relevantes, podendo, pelo alargar de pontos comuns que as transcendam, tornar acessivel a ideia dos principios. Arruma-das em fungi() de urn - ou mais - pontos de vista ordenadores, as normas e os principios dao lugar ao sistema juridico ( 23 ). Adiante-se ja que este compreende dois aspectos - o da exposiclo

(29 P. ex., ULRICH MEYER-CORDING, Kann der Jurist heute noch Dogmatiker scan? Zum

Selbstverstandnis der Rechtswissenschaft (1973), 20 e 47-49, p. ex.. Quanto a sreabilitacio. da

dogmatica, cf. SEIROS Simms, Die Bedeutung von System and Dogmatik - dargestellt an rechtsge-

schaftlichen Problemen des Massenverkehrs, AcP 172 (1972), 131-154 (147 e 154), onde, no entanto, ao ligar-se a justeza dogmatica a racionalidade formal, nit> se enfoca o seu contoldo

material, nos niveis do entendimento, da decisio e do controlo e FRANZ BYDLINSKI, Gedanken ilber Rechtsdogmatik, FS Hans Floretta (1983), 3-15 (3 e 14-15). A dogmatica nao pude, por si, obter todos os conhecimentos da realidade social; estes sao necessirios I aplicacio do Direito - REINHARD DAMM, Norm und Paktum in der historischen Entwicklung der juristische Methodenlehre, RTh 7 (1976), 213-248 (213) - devendo-se, por isso, lecorrer a outros ramos do saber - do mesmo A., •Dialektik der Auflekirup / Zum Erfordernis der Kooperation zivischen Jurispruaenz und Sozialwissenschaften, JZ 1972, 309-311 (310 e 311); cf. KLAUS F. Rout, Aufkle-rung statt Dialetik, JZ 1972, 311-312 (312).

(21) HANS HAFERKA.MP, Entstehung and Entwicklung von Normen, ARSP 67 (1981), 217-232 (219), embora num prisms sociologic° mais marcado.

(22) FnamscHER, Methoden 4 (1977), 202 ss.; cf. as observasoes de LARENZ, MethL 4 cit., 475 ss..

(23) CLAUS-WILHELM CLIMB'S, Systemdenken and Systembegriff in der Jurisprudenz co-wukelt am Beispiel des deutschen Privatrechts 2 (1983), 11 ss., corn rec. de J. ESSER, RabelsZ 33 (1969), 757-761 e de WIEACXER, RTh 1 (1970), 107-119, ambas a 1.' ed., de 1969; a de WLEACXER surpreende pelo torn critico, elevado na forma e modest() na substdncia - cf p. ex.,

RTh 1970, 118 e 119 - sendo curioso coteja-la corn a rec. a ESSER, Grundsatz tr. Norm cit. - WIRAczER, Gesetzesrecht and richterliche Kunstregel, JZ 1957, 701-706 - e corn o livro antigo, eambim de WIEACKER, Zum System des deutschen Vermogensrechts / Erwitgung und Vorschlage (1941), 5 SE.

32 Da boa fe no Direito civil

§ 1.° Introdufao 33

e o do teor decisOrio material — cindiveis, para efeitos de analise, na linha de HECK, em sistema externo e interno, mas corn estreitas relacoes de dependencia entre eles, de modo a constituir uma sintese Ontica inseparavel.

Expresso pensada da ordem juridica, a qual, por seu turno, se liga a ordem social, o sistema a possivel porque a sociedade — logo organizacao humana — existe ( 24). No a um mero conjunto resul-tante da soma dos seus elementos basicos individualizados: tern exis-t'encia prOpria, dada pela estabilidade do conjunto, expressa na repe-ticao das suas manifestacoes e e, ele prOprio, constituinte; integra, alias, a Ciencia do Direito. Afasta-se, pois, uma visa° sociolOgica mais marcada, em que o sistema juridico surge como integrante do sistema social (25): ele releva, nos termos ontolOgicos de ERNST von HIPPEL, ji assinalados (26), do espirito e, constitui, sendo produto da Ciencia criativa humana, sujeita a aprendizagem, corn o Direito, urn dado cultural (27). Recusa-se, tambem, urn sistema como mero agregado lOgico-conceptual: abstraido da ordem juridica, logo social, em termos de reduca'o, ele comports a substancialidade decisOria e legitima decisoes novas. A derivacao de HABERMAS, assente num Direito orientado numa politica moral ( 28), no que pode ser enten-dido como outra leitura sociolOgica ( 29), tao pouco pode ser utilizada:

(24) LUHMANN, Rechtssystem cit., 12 — fala em sistema de accoes — Ausdifferenzierung des Rechtssystems, RTh 7 (1976), 121-135 "(121) = Beitrage corn o mesmo nome cit., 35-52 (cita-se pelo primeiro local) — fala em sistema de comunicacOes sociais — e Kommunikation fiber Recht in Interaktionssystemen (1980) = Beitrage cit., 53-72 (65) — fala em subsistema da socie-dade — manifestando; dente modo variado * as bases integrantes do sistema juridico. Cf., tam-bem, WERNER KRAWIETZ, Juristische Entscheidung und wissenschaftliche Erkenntnis / Eine Unter-suchung zum Verhaltnis von dogrnatischer Rechtswissenschaft und rechtswissenschaftlicher Grundla-genforschung (1978), 88-89.

(25) Algumas afirmacoes de N. LUHMANN Vi0 nesse sentido — p. ex., Rechtssystem cit., 11 e 12; cf. J. SCHMIDT, RTh 5 (1974), 223 — embora possam ser entendidas mais como uma critics ao sistema como conjunto de conceitos, do que como sociologismo primirio.

(26) Supra 2914 . (27) Recorde-se ARNOLD GYSIN, Rechtsgedanke und Kulturgodanke im Verhaltnis von Geset-

zesethik und Wertethik, em Rechtsphilosophie und Grundlagen des Privatrechts (1969), 96-125, (97, 122 e 124), focando, no entanto, o que tern por exigencias diferentes do Direito e da cultura, que traduzem apenas a especificidade daquele, dentro desta.

(") Portanto numa auto-reflexio intrapolada de uma consciencia de actuacbo sistemi-tics econdmica sociologica e politica; cf J. HABERMAS, Erkenntnis und Interesse (1981), 79, 85, 213-214, 261 e 400, p. ex..

(29) HELMUT SCHELSKY, Die Soziologen und das Recht, RTh 9 (1978), 1-21 (12 ss., 16).

nao conduz ao sistema juridico — logo dogmatic° — por nao

comportar o material decidendo do caso concreto. Nem pretende

faze-lo.

W. 0 processo juscientifico a dito em crise ( 30). A afirmacao, repetida, a nao ser ja uma formula vazia , radica em dois polos distintos, sediados, urn na prOpria metodologia juridica em si, e outro, no nivel mais vasto do sentido das Ciencias Humanas.

A metodologia juridica sofreu, neste seculo, a falencia do concep-tualism° — reducao do sistema a conceitos, corn recurso simples a lOgica formal — o fracasso do positivismo legalista exegetic° — solu-cao de casos concretes corn recurso a lei como texto — e os Obices da subsuncao — passagem mecanica, passiva, do facto para a previsao norrnativa, de modo a integrar a premissa menor do silogismo judi-ciario. A critica ao pensamento pressuposto nestes ties pontos a facil; esti concluida, alias, ha mais de meio seculo ( 31 ), em termos que ninguem contraditaria. Surpreende que, ate hoje, se retome, a cada passo, sem intencio de colocacOes histOricas, uma argumentacao contra teses ha tanto derrotadas ( 32). Duas justificacoes para tal insOlito: batidas na teoria, as orientaceies conceptualistas, positivo--legalistas e subsuntivas, reapareceriarn na pritica jurisprudential; carentes de autonomia existential, as teses que as substituam necessi-tam, para se afirmar, de partir da negativa. Estas razoes sao debeis. A sobrevivencia pratica dos esquemas tao criticados nao a linear: o seu colapso adveio, na generalidade, da demonstracao da sua impra-

(30) P. ex., JosEF ESSER, Zur Methodenlehre des Zivilrechts, StG 12 (1959), 97-107 (103) e W. KRAWIETZ, Zur Einleitung: Juristische Konstruktion, Kritik und Krise dogmatischer Rechtswis-senschaft, em Theorie und Technik der Begriffsjurisprudenz (1976), 1-10 (5) e, entre nos, embora corn sentidos e fitos diferentes, CASTANHEIRA NEVES, Questdo-de-facto — questio-de-direito ou

o problema metodologico da juridicidade (Ensaio de uma reposicdo critica) I— A crise (1967), 62 e passim e Gomm CAtrortmo, Constituicdo dirigente e vinculacdo do legislador / Contributo pare a

compreensdo das normal constitucionais programkicas (1982), 7-9. (32 ) Por autores como VON Bikow, KAmorrowrcz, Focus, Isnx e HECK, numa linha

juspositiva, e por STAMMLER, ERICH KAUFMANN, BINDER e LARENZ, na primeira parte da sua obra, numa linha metajuridica. Hayers oportunidade de referir, de modo mais detido, o pensamento dos autores em causa.

(32) Qllartd0 VIERWEG, Topik und Jscrispnidenzs (1974), § 7 (81 ss.), para chegar topica juridica, retoma as crfticas ao axiornatismo, sujeita-se, nas observacoes de UWE DIEDFIRICSISEN, Topisches and systematisches Denken in der Jurisprudenz, NJW 1966, 697-705, (700, 1.' col.), a lutar contra moinhos de vento.

3

34 Da boa fe no Direito civil § 1.° Introduciio 35

ticabilidade (33 ). A impossibilidade de afirmacao, pela positiva, de urn pensamento novo, nao e crivel: decenios intensos de tentativas confluentes tinham, a evidencia, oportunidades largas de criar uma linguagem alternativa. Resulta, daqui, a imagem da crise: sem razoes validas, o discurso metodol6gico comum parte de criticas a concepcOes indefendiveis — e, a born ver, nunca assumidas, corn clareza, por ninguem — deixando, pela aceitacao, nessas censuras, do espaco e dos quadros removidos de contend°, uma fraqueza expo-sitiva, no campo da reconstrucao. E porque, arvorada em percurso obrigatorio, a critica ao conceptualismo decorre em moldes meta-cientificos — isto 6, sem atender as solucoes reais — chega, ao termo, sem contributos dogmaticos. A Teoria do Direito — como discurso sobre a metodologia — constitui uma segunda abstraccao perante a ordem juridica, num esquema em que a primeira advem do sistema: implica um metaplano de averiguacOes sobre as abstraccoes, obtidas por reducao dogmatica (34). A presenca de niveis superiores de discuss-a°, face a realidade investiganda, conduz, como a natural, a possibilidade de discursos autOnomos, num afastamento crescente do objecto de investigacao. Quando um desenvolvimento desse tipo incidiu no piano sistematico, desembocou-se no conceptualismo. Esta derivaca'o artificial foi superada pela critica; mas manteve-se — como se mantem, agravada mesmo, pela natureza te6rica das criticas movidas em permanencia, as construcoes anteriores — uma aporetica no sector metassistematico, isto 6, no discurso metodologico. Evite-se, pelo desgaste, falar de crise. Mas ha, pela manutencao de desenvolvimentos metassistematicos, sem conexao corn o Direito aplicavel, urn cientismo estranho it dogmatica e logo it metodologia real. Neste pont°, que traduz a inoperancia dos desenvolvimentos te6ricos em yoga, face it necessidade de solucoes reais, reside a fraqueza do processo juscientifico actual. 0 diagnostico, que aqui se antecipa, pois, por definicao, s6 a dogmatica juridica, demonstrando a disparidade entre afirmacoes metodolOgicas e saidas concretas, pode comprovi-lo, sera traduzido pela ideia de irrealismo metodologico.

(33) Recorde-se que o essential das criticas a metodologia conceptual, corn as sequelas conhecidas, assents na demonstracio da existencia de lacunas e de enormas carecidas de preenchimenton e na inoperacionalidade do emetodo da inversion.

(34) Cf. N. Lurtunror, Rechtssystem cit., 12-13 e Selbstrejiexion des Rechtssysterns / / Rechtstheorie its gesellschaftstheoretischer Perspektive, RTh 10 (1979), 159-185 (159) = Beitrdge cit., 419-450 (cita-se pelo primeiro local) e THOMAS SCHLAPP, Zur Unterscheidung von Objekt-sprache und Metasprache, RTh 10 (1979), 502-505 (502 e 503).

O segundo polo da crise — como se disse, ele alarga-se as Cien-

cias Humanas prende-se com diferendos ideolOgicos. A presenca

(testes, ainda que como hipotese, 6 inevitivel em qualquer sociedade,

dada a impossibilidade de, no limite, os dirimir corn argumentos absolutes. 0 Direito nao lhes escapa: traduzindo o racionalizar de fracturas intra-sociais, que constituem os litigios postos t sua apre-

eiacao, ele equivale ao institucionalizar de urn donunio, por alargado e

consensual que se apresente ( 35). Enquanto os conflitos ideolOgicos

tiverem saida juridica — ntaxime constitucional — o Direito pode

enquadra-los, ate ao limiar de uma Revolucao; nao mais do que isso. Em termos reais, o problema pode ser minimizado, no palco dogmatic°. Ha, neste final de seculo, salvas situacOes pontuais de descompressio, sinais de dedinio de confrontos ideolOgicos puros, reduzidos a expressoes de luta pelo poder, corn ou sem ligacao aos blocos. Uma dogmatica dinamica deve ter capacidades de aderen-cia a realidade, enquanto o convergir de sociedades tecnicas reduz a margem de oscilacio. A possibilidade de evitar rupturas depende, em Ultima analise, da margem constitucional, face a abertura da socie-dade correspondente. 0 restringir progressivo das ideologias, apli-cadas a temas de exercicio e natureza do poder ou a aspectos quanti-tativos da apropriacio, deixa o Direito civil numa area pouco sensivel, sobretudo no domino das obrigacoes, cujo regime, oriundo de Roma, tern sobrevivido aos sistemas politico-sociais mais diversos (36). Crises do Direito, de origem ideolOgica, a haver, manifestar-se-iam, assim, no campo constitucional, embora seja de notar, por uma amostragem national e estrangeira, que face a constituiOes conside-radas idOneas, a tendencia Ira para o reforco da interpretac5o conven-tional, num neopositivismo juridico-constitucional, ao arrepio do que sucede no Direito privado. No entanto, como instincia de controlo, o piano ideoleigico nao deve ser esquecido: nas areas de largo consenso, como no da liberdade ou no da igualdade, ele pode reforcar

(35) Cf. JURGEN HABERMAS, Technik und Wissenschaft als eldeologieoll (1981), 48 ss.: Quanto a crise da eauto-compreensioe do Direito, crise interna e ideologias, cf. FRANz

W mem, Von Mazes and Nachteil des Szientismus in der Rechtswissetuchaft, FS Schelsky (1978), 745-764 (746 e 747 ss.).

(36) Veja-se a permanencia do BGB na DDR — 'CLEMENS PLEYER, Die Bedeutung von

.System und Dogmatik fur die Rechtsfragen des Massenverkehrs in der DDR, AcP 172 (1972), 155-171 (155) — apesar das alterao5es sofridas, ate ao ZGB de 1975; este ultimo diploma man-tern, nas obriga45es, os quadros romanisticos; nao se esqueca, porem, o papel diferente apon-tado ao Direito, nas sociedades socialistas do Leste europeu.

36- Da boa fe no Direito civil § 1.° Introthicilo 37

a jussubjectivacao ou a proscricao do arbitrio, base de qualquer sistematica, por exemplo; nas areas de consenso menor, ele deve permitir uma maleabilidade acrescida de saidas, como forma de man-ter o essential.

IV. A Ciencia do Direito — num produto, ainda nao assumido, do irrealismo metodolOgico — tem consciencia das insuficiencias da dogmatica classica; a partir dal, porem, perde-se uma inequivocidade de orientacoes (37). Nao cabe aqui referir o seu processamento, mas, tao so, sublinhar os tracos mais salientes que enquadram o desenvol-vimento que segue, no qual, imanente, se encontra uma imagem mais completa.

A consideracao do Direito como modo de solucionar casos concretos, ja justificada, constitui urn cerne imprescindivel, do qual, aos poucos, surge uma consciencia (38). Nao ha outra forma de superar o irrealismo metodolOgico. No domino hermeneutic°, sobressaem os fenOmenos do pre-entendimento e do circulo ou espiral de pensamento. No campo funcional, .sobrelevam as unidades pre-visao-estatuic'ao e interpretacao-aplicacao, enquanto as concepc5es teleolOgicas das normas, elas pr6prias, ji, uma superacao do con-ceitualismo traditional, devem ser complementadas pelas estruturas

(37) Cf. R. DREIER, Zur Theoriebildung in der Jurisprudenz cit., 103, ILMAR TAMMELO Was ist von der Rechtstheorie heute zu erwarten? RTh 11 (1980), 9-15 (9).

(38) Cf. HEINRICH HENKEL, Recht und Individualikt (1958), 12, Jose ESSER, Ink-ressenjurisprudenz heute, Judi) 1 (1960), 111-119 (111), MARTIN KIUELE, Theorie der Rechtsgewinnung entwickelt am Problem der Verfassungsinterpretation (1967), 43 ss., LARENZ, Fall-Norm-Typus Eine rechtslogische Studie, FS Glockner (1966), 149-164 (153) e Wegweiser zu richterlicher Rechtsschopfung / Eine rechtsmethodologische Untersuchung, FS Nikisch (1958), 275-305 (297), WERNER ROTHER, Elemente und Grenzen des zivilrechtlichen Denkens (1975), 12 e HUBERT Rarri.zuenut, Pladoyer far eine empirische Argumentationslehre, ARSP BH NF 14 (1980), 87-118 (118). HANS ALBERT, Traktat fiber rationale Praxis (1978), 22 ss. e 65 ss. (67-68), fixa que «a Ciencia do Dircito parece, desde a sua origem, ser uma ciencia virada, em grande

medida, para a pratica, tendo uma doutrina cientifica, orientada num puro interesse de conhecimento, urn significado escasso.. MARTIN KRIELE, Recht and praktische Vernunft (1979), 18, sublinha, a prop:nit°, a clivagem entre scientia e prudentia: esta, embora ligada I primeira, por nao poder dispensi-la, tem sempre, como subquestio, temas facticos. WERNER KRAWIETZ, Das positive Recht und seine Funktion / Kategoriale und methodologische (Jberlegungen zu eines funktionalen Rechtstheorie (1967), 16, considera que «o pensamento juridico da actualidade deve orientar-se mais fortemente para a facticidade da sociedade industrial modern ► . Cf., ainda o prolog° de W. MAIHOFER I sua colectbnea Begriff und Wesen des Rechts (1973), IX-XXXVIII, bem como CASTANHEIRA NEVES, A unidade do sistema juridico, Est. T. Ribeiro, II (1979) 73-184 (73 ss.).

de urn discurso sin6pico, dirigido ao ponderar das consequencias da

numa linha de consenso. Destes temas, inesgotiveis, propoe-se o use que segue. A ideia de pre-entendimento (39) poe a nil a realidade herme-

n8 (40). Perante urn texto, o sujeito cognoscente apreende-o pourticcoanhecer, de antemao, a materia nele tratada e a linguagem que a

carreia (41 ). 0 sentido final do texto surge como produto do encontro das prefiguracoes do interprete corn o material percebido, reinte-

grado no seu espirito. E o circulo, ou, melhor, espiral hermeneutica,

uma vez que o sujeito tera de efectuar tantas idas e regressos, quantos os necessarios para integrar pre-entendimento e entendi-

mento (42). No Direito, o circulo hermeneutic° testa na relacio das colocaceies de problemas corn as respostas, no entendimento de normas, portanto, no facto de que, sem pre-julgamento sobre a necessidade de ordenacao e a possibilidade de solucio, a linguagem da norma nao poder, de todo em todo, dizer o que 6 perguntado: a solucio ajustada) (43 ). Estas consideracoes, evidentes, depois de formuladas, dio urn lugar significativo aos aspectos histOricos, inter-rompidos durante o iluminismo: pelo seu peso no pre-entendimento, reabilita-se a tradicao ( 44) — a experiencia, no domino da aplicacao jurisprudential (45) — num fenOmeno a ter presente, para a limpidez da consciencia cientifica. 0 processo de aprendizagem mostra, a nivel de dead°, o seu papel fundamental, no modelar do pre-entendimento, enquanto a interpretacio assume, de vez, o aspecto activo da comtmi-

(39) Prefere-se, para exprimir o Vorverstandnis, o termo pre-entendimento a «pre-

-compreensio., usado por CANOTILHO, Constituicio dirigente, cit., 11 ss.: comprecnsio traduz,

dum conceito, o conjunto das caracteristicas que the podem ser reconduzidas. Embora correcta em si, a tpre-compreensio. presta-se, assim, a confusoes evitiveis. A descoberta da 4pre-

-estrutura do entender. deve-se a HEIDEGGER, Sein u. Zeit" cit., §§ 32 e 63 (148 ss. e 310 ss.).

(40) 0 aproveitar hcrmeneutico, em t‘rmos efectivados, pertence, sabidamente, a HANS-

-GEoac GADAMER, Wahrheit und Methode 4 (1975), 250 ss., que veio aclarar aspectos intuidos

pelos juristas.

(41) LARENZ, MethL 4 cit., 185; FRIEDERICH MULLER, Normstruktur und Normativitat I I Zum Verhaltnis von Recht und der juristischen Hermeneutik, entwickelt an Fragen der Verfas-sungsinterpretation (1966), 50; JOACHIM HRUSCHXA, Das Verstehen von Rechtstexten (1972), 43.

(42) LARENZ, MethL 4 cit., 184. (43) Jose ESSER, Vorverstandnis und Methodettwahl in der Rechtsfindung IRationalitatsgrund-

lager* richterlichen Entscheidungspraxis2 (1972), 137; sobre esse livro, cf. HANS JOACUIM KOCH,

Zur Rationalitat richterlichen Entscheidens, RTh 4 (1973), 183-206 (197-198).

(44) GADAMER, Wahrheit u. Methode4 cit., 256 ss. e 261 ss..

(45) Cf. LARENZ, MethL 4 cit., 187-188.

38 Da boa fe no Direito civil § I.° Introducdo 39

cacao entre o sujeito e a fonte ( 46). 0 fenOmeno do pre-entendi-mento juridico nao se queda pelo apreender de textos: a deteccao dos problemas carecidos de regulacao — que vai, de si, corn a prOpria regulacao — e, em grande parte, obra dos pre-julgamentos do inter-prete-aplicador. As perspectivas desta instrumentacao, a aprofundar nos prOximos anos, ji que, so aos poucos, a tematica, nao nova, vai chegando a dogmatica, sao consideraveis. Explicam a intuicao judi-cial no encontrar, com deficiencias de fundamentacao, de solucoes acertadas e permitem alargar as potencialidades sindicantes do sistema. Como se anteve, o relevo do pre-entendimento é maior face a fontes pouco expressivas, como as que remetam para a boa fe.

A unidade da previsio e da estatuicao normativas ( 47) e a inseparabilidade das classicas interpretacao e aplicac'alo ( 48), no pro-cesso juridico decisOrio, conectam-se corn o relevo do caso concreto e corn a tematica do pre-entendimento. Face a uma fonte, o sujeito dirige-Ihe uma interrogacao real, em termos problematicos, visando, com consciencia ou sem ela, encontrar uma resposta para um caso, ainda que hipotetico. Interpretar e decidir esse caso. Tudo joga: o caso e a norma, o pre-entendimento de ambos, a vontade cons-tituinte, o circulo e a solucao. A descoberta de operaciies diferenciadas pode ser meritOria como modo de, por reducoes excessivas, evitar empobrecimentos jusculturais do instrumentarium disponivel. Mas a fragmentacao obtida deve ser destruida por nova sintese, no processo

(46) Cf. LARENZ, Die Bindung des Richters an das Gesetz cit., 292. (47) Defendidas ji, entre nos, por ISABEL DE MAGALHAES Conn°, Da qualficacio em

Direito internacional privado (1964), 31 e por CASTANHEIRA NEVES, Questito-de-facto cit., 408-409, em termos a examinar posteriormente.

(48) GADAMER, Wahrheit u. Methode 4 cit., 291, explicando a unidade do entender, do interpretar e do aplicar; GADAMER considera, na hermeneutica jurfdica, urn significado exemplar para a hermeneutica em geral, afirmando: rrik tarefa da interpretacao e a da concretizacio da lei em cada caso, portanto a tarefa da aplicaciov; cf. Wahrheit u. Methode 4 cit., 307 ss. (311 e 312), LARENZ, MethL 4 cit., 189 ss. e Aufgabe und Eigenart der Jurisprudenz cit., 453 e F. MULLER, Normstruktur cit., 39. LARENZ, MethL 4 cit., 191, acaba por considerar, em GADAMER, urn minimizar do papel de bitola da norma juriclica, corn o subsequente avaliar, por criterios identicos, de todos os casos. dificil, nestes termos, tomar posicao entre LARENZ e GAMBLER: este Ultimo nao dogmatiza o seu pensamento, i.e, nas palavras, ji referidas, de ESSER, nao o toma juridicamente operacional, de modo a poder comprovar-se a critica que the é dirigida. Pode, no entanto, dizer-se que, em abstracto, o reconhecimento de uma unidade ontica entre interpretacao-aplicacao nao impede a manutencao do momento--bitola-generalizacao, constituinte, embora nao exclusivo, do todo. 0 mecanismo da aplicacio pode, em qualquer caso, coin LARENZ, MethL 4 cit., 192, dizer-se de dialectic°. Evita-se a locucao, pela multiplicidade de sentidos que, de ARM- I:STELES a HEGEL, ela assume.

de conhecimento, que, assumindo, das operacoes analiticas previas, os aspectos relevantes, exprima, no final, uma realidade diferente, mais rica, do que os elementos antecedentes.

A ponderacao teleolOgica das proposicoes juridicas, corn raizes no utilitarismo, de BENTHAM a JHERING, foi reanimada pelo psicolo-gismo bierlingiano, ao focar a necessidade de indagar o escopo pros-seguido pelo legislador (49). Objectivada, a interpretacao teleolOgica ordena-se, hoje, por operar de acordo corn os fins e as ideias funda-mentais da regulacao considerada ( 50). Ora, numa conexao que, a min-gua de investigaceies globais, nao tem sido feita, mas a significativa, urn debate sobre a teleologia da norma e o avaliar das consequencias da aplicacao, portanto, da decisao, sob pena de metadogmatismo, dada a integracao, no sentido gadameriano, entre entendimento, interpretacao e aplicacao. A necessidade de, na apreciacao da justeza da regra, ponderar, da sua efectivacao, as consequencias sociais, enfocada, de modo repetido, por PonucH ( 51 ) e aproveitada, por TEUBNER, na exigencia de uma dogrnitica responsiva ( 52) que, num modelo cibernetico, trabalhe na base da seleccao e apreciacao das respostas que, da periferia, receba como efeito das propostas que dimane, constitui um dado importante ( 53) no dominio da Ciencia actual. Pode, assim, desenvolver-se toda uma metateoria — pois incide sobre dados previamente teorizados, para o caso, dogmatizados — que averigua efeitos, opensando em consequencias», a cujo conjunto de regras se vai, na linha de FIKENTSCHER, chamar de sinepica ( 54).

(49) ERNST RUDOLF BIERLING, Juristische Prinzipienlehre, 4 (1911, reimpr. 1961), 276, numa orientacio a examinar posteriormente, pelo prisma da boa fe.

(50) LARENZ, MethL 4 cit., 321, JURGEN BAUMANN, Einfiihrung in die Rechtswissenschaft 6 (1980), 95-96.

(5 9 ADALBERT PODLECH, Wertungen und Werte im Recht, AoR 95 (1970), 185-223 (198 ss.) e Recht und Moral, RTh 3 (1972), 129-148 (138).

(52) GUNTHER TEUBNER, Folgenkontrolle und responsive Dogmatik, RTh 6 (1975), 179--204 (182 e 200-201).

(53) Cf. ERICH DoHRING, Die gesellschaftlichen Grundlagen der juristischen Entscheidung (1977), 33 e REINHARD DAMM, Norm und Faktuni in der historischen Eutwicklung der juristischen Methodenlehre, RTh 7 (1976), 213-248 (228).

(54) FIKENTSCHER, Methoden cit., 5 (1977), 30 e 32 e Synepeik und eine synepeische Defi-nition des Rechts, Entstehung und Wandel (1980), 53-120 (57-58 e 85, p. ex.,). 0 termo filia-se no grego cruvendlievov — consequencia; FIKENTSCHER, numa ligacio corn synepeia,

propee como transposicao rigorosa, <,sinepeica», — Synepeik cit., 58 10 — desagradavel a pro-nUncia portuguesa. Propoe-se, pois, o neologismo csinepicv.

40 Da boa fe no Direito civil § 1.° Introductio 41

Explicite-se, por fim, que se o alicercar, nestes pressupostos, da Ciencia do Direito, aumenta o ambito onde se move o interprete--aplicador — tnaxime, o juiz — isso di-se antes a nivel de conscien-cializacao de uma ordem de factos ji existente, do que no preconizar de nova distribuicao, a nivel de poderes do Estado. A decisio juridica, porque dogmitica, é controlivel. A praticabilidade do con-trolo assenta na obrigatoriedade da sua fundamentacao ( 55). Se a sua legitimidade, mais do que num processo institucionalizado em termos de, dele, retirar uma convencibilidade impossivel de, na corn-plexidade actual da sociedade, ser conseguida em cada decisio ( 56), implica, mesmo em cenirios tOpicos, atraves da autoridade especial de algum dos argumentos ( 57), uma participacao actuante na justeza global do sistema, torna-se seguro que a operacionalidade — ou nao disfuncionalidade — da decisao conflui no seu integrar no nivel juri-dic° da ordem social. A essa luz, entenda-se o consenso que a aplicacio do Direito deve concitar ( 58). Ora o sistema corresponde, por reducao, a ordem juridico-social, enquanto as fortes representa-goes psicolcigicas e comunitirias do principio da identidade, corroiem a credibilidade de saidas ilOgicas ou paradoxais.

0 alargar do espaco decisOrio nao deve ser interpretado como reptidio da construcao juridica, util em virios vectores ( 59), nem como ignorancia da necessidade da lOgica formal ( 60). Oferece-se--lhes, no entanto, para alem de uma delimitacao nova, urn desem-penho diferente.

(55) EssER,Juristisches Argumentieren im Wandel des Rechtsfindungskonzepts unseres Jahrhun-derts (1979), 5-6; cf. JORGEN SCHMIDT, oBegrandunti — Einige Probleme eines rechtstheoretischen Problems, FS Schelskir (1978), 549-578 (550) — fala em processo cientffico de justificar uma afirmacio — e WIEACKER, Cher strengere und unstrenge Verfahren der Rechtsfindung, FS W. Weber (1974), 421-423 (423-424) — a aplicacio do Direito E a decisio e a fundamentacio.

(56) Veja-se, assim, a critica de ESSER, Vorverstandnis 2 cit., 205 ss. (207) a LUHMANN,

Legitimation durch Verfahren 2 cit., 30 ss., bem como as de R. ZIPPELIUS Legitimation durch Verfahren? FS Larenz (1973), 293-304 (302 e 304) e de J. LLOMPART, Gerechtigkeit und geschicht-liches Rechtsprinzip, ARSP 67 (1981), 39-60 (50-51).

(57) NORBERT HORN, Rationalitat mid Autoriat in der juristischen Argumentation, RTh 6 (1975), 145-160 (150, 151, 154, 156 e 160): a autoridade argumentativa assume-se como estrutura caracterfstica da racionalidade juridica.

(58) Cf. ESSER, Vorverstandnis 2 cit., 13 e Juristisches Argumentieren cit., 10 e 15. (59) GERHARD HASSOLD, Rechtsfindung durch Konstruktion, AcP 181 (1981), 131-142

(132 e 141). (60) Tenha-se presente a demonstracio da sua imprescindibilidade em Utrucx KLuc,

Juristische Logik4 (1982), 9-11. HANS-JOACUIM Kocx, Das frankfurter Projekt zur juristischen Argumentation: zur Rehabilitation des deduktiven Begriindens juristischen Entscheidungen, ARSP

4. A boa fe na cultura juridica actual

1. A boa fe sofre, na actualidade, as consequencias do divOrcio entre os discursos metodolOgicos oficiais e a dogmitica juridica. E de mod° agravado: nocao vaga, carregada de histOria, rica em implica-goes emotivas e objecto de utilizacao alargada, embora de con tornos pouco conhecidos, ela presta-se, por excelencia, a desenvolvimentos verbais, numa aporetica dominada por uma linguagem grandiloquente e vazia de conteddo. Hi uma mitificacao da boa fe.

Numa opiniao difundida, a boa fe, no Direito civil, estaria forte-mente representada na literatura. Nao é assim. Nunca houve, sobre ela, um estudo global, que tratasse os diversos quadrantes da sua His-tOria, a sua dogmitica e os aspectos metodolOgicos dai decorrentes. No dominio histOrico-monogrifico, a boa fe, foi, bem ou mal, anali-sada no Direito romano classic°, no Direito canonic° e no Direito germanico, em separado. A conexao entre esses aspectos esti por fazes, tal como esti por estudar a boa fe do Direito romano vulgar, do Direito justinianeu, da recepcao e da pandectistica. Os aspectos dogmiticos da boa fe nao merecem, desde ha mais de meio seculo, urn tratamento global (61 ). Exceptuam-se os grandes comentirios a codificacao alema que, por definicio, assumem urn teor descritivo, prejudicial a integracao juscientifica, e sem atingir o que, de

tenham as outran ordens juridicas. 0 panorama vive dominado por intimeros estudos parcelares os quais, aos poucos, tem permi-tido o surgir de investigacOes sectoriais mais alargadas ( 62). 0 discurso sobre a dogmitica — portanto, a Teoria do Direito — carece de bases capazes de the alicercarem o desenvolvimento, no que respeita

BH NF 14 (1980), 59-86 (61 e 62), explica que a fundamentacao pelas consequencias irnplica um reabilitar do processo dedutivo, enquanto K. ENGISCH, Aufgaben eines Logik und Methodik des juristischens Deafens, StG 12 (1959), 76-87 (87), conclui que a vcrificacio da afirmacio juridica carece da lOgica e da ponderacio metodolOgica.

(61) 0 Ultimo estudo desse tipo d o de MAX HAMBURGER, Treu and Glauben im Verkehr EM Handbuch (1930). Nio se considera como analise dogmatica global o escrito importante de WIEACXER, Zur Rechtstheoretischen Prazisierung des § 242 BGB (1956), nem o trabalho mais recente de ERNST ZELLER, Treu and Glauben and Rechtsmissbrauchsverbot. Prinzipiengehalt und Konkretisierung von Art. 2 ZGB (1981), criticado, corn razio, por JthrcEN Smimihr, na rec. de AcP 182 (1982), 379-381.

(62) Exemplo paradigmitico é, ainda hoje, a investigacao fundamental de C. W. CANARIS no dominio da confianca: Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht (1971. reimpr. 1981).

42 Da boa fe no Direito civil 1.° Introduoio 43

boa fe. Quando surge, 6 parcelar, escasso e alheio a realidade efectiva que pretende averiguar.

Sem que isso represente urn retorno a grandes sistemas, versados ern tratados, ha, na actualidade, um movimento para a consideracao alargada de varios sectores juscientificos ( 63). Essa tendencia foi tornada possivel pelo proliferar de estudos especializados, no segundo pos-guerra.

A situacao, na boa fe, descontados certos aspectos metodolo-gicos enfraquecidos pelo irrealismo que atinge toda a Teoria do Direito, 6 muito favorivel a uma ponderacao de conjunto, dado o vasto material disperso disponivel.

II. Os paradoxos que dominam o entendimento comum da boa fe tern, na verdade, a nivel de algumas das suas caracteristicas, a sua razao de ser.

A boa fe objectiva nao comporta uma interpretacao-aplicacao classica. Desde cedo, teen sido tracado o seu paralelo corn as lacunas( 64). A disposicao que remeta para a boa fe nao tern, ela propria, urn criterio de decisio ( 65): a interpretacao tradicional de tal preceito nao conduz a nada. Na sua aplicacao, o processo subsuntivo torna-se impossivel (66 ). As criticas habituais a subsunclo nao retiram signi-ficado a essa impossibilidade. Embora ontologicamente nao haja

(63) A esta luz dove ser entendida a tendencia em yoga de, atraves da criagao de novas estruturacoes do saber, corn recurso a nominaceies de sabor isoterico como zetetica ou sinepica, captar, em tortes horizontais, conhecimentos que corriam lado a lado, compartirnentados na distribuicao classica dos ramos cientificos. A afirmacao pode, ainda, ser ilustrada corn a inet6dica. Na acetic -air de FRIEDRICH MULLER, Juristische Methodik 2 (1976), 19, a metodica teria a tarefa de esclarecer as diferentes funcoes da realizacio do Direito — legislacao, governacio, administracio, jurisprudencia e ciencia. Cf. BERNHARD SCHLINK, Juristische Methodik zwischen Verfassungstheorie and Wissenschaftstheorie, RTh 7 (1976), 94-102(95) e ainda, sobre a integracio da Ciencia do Direito corn outran Ciencias sociais, FRIEDRICH MULLER, Recht-Sprache-Gewalt /

Elemente einer Verfassungstheorie I (1975), 9. (64) CI , p. ex., ERICH DANZ, Richterrecht (1912), 191-192 e 201. Esta orientacao seria,

como se vera, muito acentuada pelo juspositivismo da jurisprudencia dos interesses. (65) ENGISCH, Logik u. Methodik cit., 77, falando na dificuldade de aplicacao de conceitos

indeterminados como a boa fe; A. KAUFMANN, Gesetz u. Recht cit., 386, dizendo ser a regra tao abstracta que nab teria conterido; S. Simms, Bedeutung vom System a. Dogmatik cit., 140, explicando que a boa fee regras similares podern desempenhar uma funcao de legitimacao, mas nao compreendem urn programa.

(66) WIEACKER, PriLZiSierittig cit., 14, considera-o ingenuo. Fala-se, assini, num conceito carecido de preenchimento corn valoracees; cf. K. ENGISCH, Einfiihrung in das juristische Denken 7 (1977), 125.

subsuncoes, pode entender-se, na generalidade dos casos, que a consti-tuicao da premissa menor do silogismo judiciario 6 conseguida por operacoes expeditas, consistentes na determinacao da similitude entre a figuracio dogmatica, obtida da previa() normativa, e o caso concreto (67). Em imager, admita-se a subsunclo como corrente na maioria das decisi5es ( 68 ). A boa fe corresponde, nesta Optica, a minoria.

A boa fe objectiva é entendida como do dominio do Direito jurisprudencial: o seu contetido adviria nao da lei, mas da sua apli-cacao pelo juiz (69). Torna-se, nessa medida, impraticavel locubrar sobre os textos que a consagrem. 0 estudo do litigio concreto, a comparacao de casos similares ( 70 ), a sua dogmatizacao e a sistematizacao subsequente formam a base essencial duma inves-tigacao sobre a boa fe. Essa necessidade, dificulta, face a especializaclo dos juristas, o conhecimento juscientifico — logo real — da boa fe por parte dos cultores que, a nivel de Ciencia do Direito, se pro-nunciam sobre o tema.

A boa fe objectiva, embora juridica, parece escapar a lei ( 71 ). Na fase anterior a forma* de um Direito jurisprudencial seguro, ela implica uma actividade judicante que, sem mediacoes normativas, deixa face a face o sistema global e o caso a resolver. E como o Direito jurisprudencial, a formar-se, 6 sempre parcelar, deixando, em crescimento permamente, areas por cobrir, o fenomeno man tern-se.

(67) A. KAUFMANN, Analogie u. iNatur der Sachet cit., 29. Anteriormente, KARL

MICHAELIS, Ober das Verhdltnis von logischer and praktischer Richtigkeit bei der sogenannten Subsumtion (Eine Kritik der Kritiken am Subsumtionsbegr, FS OLG Celle (1961), 117-149 (130), falou na comparacao entre dois juizos, urn sobre urn objecto concreto e outro sobre urn abstracto.

(68) Segundo MEYER-CORDING, Kann der Jurist heute noch Dogmatiker sein? cit., 39-40, 90% dos casos seriam resolvidos por subsuncio; cfr EssER, Dogmatisches Denken cit., 109 e

G. HASSOLD, Rechtsfindung durch Konstruktion cit., 139. (69) Nas palavras de ESSER, Grundsatz u. Norm cit., 150-151, regras como a boa fe

mao representa nenhuma regra de Direito legislado, mas pontos de partida para a formacio concreta de normas judiciais. Os comentarios dizem a verdade: que a norma aqui nao a encon-trada interpretativamente atraves do principio, mas sim obtida por sintese judicial ► . Cf. HORST

G25PRINGER, Das Ermessen des Richters, JurJb 9 (1968/69), 86-125 (97), LARENZ, Richterliche

Rechtsschopfung cit., 279 WIEACXER, Gesetzsrecht and richterliche Kunstregel cit., 702. (70) LARENZ, Entwicklungstendenzen d. heat. Zivitrechtsdogtvatik cit., 106, Fall-Norm-

-Typus cit., 159-160 e Wegweiser zu richterlicher Rechtsschopfung cit., 292.

(71) 0 juiz pode recover a ela para mostrar obediencia a lei — cf. CLAUSDIETER

SCHOTT, 4Rechtsgrundseitzes and Gesetzeskorrektur / Ein Beitrag zur Geschichte gesetzlicher Rechts-findungsregeln (1975), 13 — mas nao pode retirar-]he o que ela nao tern.

44 Da boa- p no Direito civil § I.° Introducdo 45

Nas ordens juridicas que, como a portuguesa, dotadas de codificacoes mais avancadas onde, em vez de uma referencia Unica a boa fe surja uma certa reparticao institucional dos setts campos de aplicacao, corn mencoes multiples , tenham efectuado uma recepcao legal de Direitos jurisprudenciais de outros ordenamentos, o problema fica apenas sim-plificado a nivel de ordenacao. A boa fe continua indefinida, incapaz de delimitacao conceitual ( 72) e corn largo espaco a construir.

0 vivo sucesso que, na sequencia de VIEHWEG, a tOpica assumiria no Direito, teve, pela sua impossibilidade de conceptualizacao comum, repercussoes directas na boa fe. Pode detectar-se mesmo uma certa tendencia para, independemente de uma consideracao cabal do tema, considerar a boa fe como relevando da topica ( 73). Previna-se contra tais inversoes. VIEHWEG nao lancou uma doutrina no panorama juridico da actualidade; fez uma constatacao, cuja procedencia, na boa fe como noutras latitudes, exige uma dogmatizaca'o previa do tema.

III. A boa fe objectiva nao corresponde a imagem comum da interpretacao-aplicacao do Direito continental. Alicercada, no seu desenvolvimento, em latitudes muito prOximas da periferia juridica, ela mais se afasta, merce do irrealismo metodologico, da instrumen-tacio teorica habitual. Numa realidade que, tantas vezes, a mingua da aplicacao, do conhecimento ou da praticabilidade das directrizes teoreticas actuais, vive, num «positivism° da resignacao» ( 74), a ausen-cia de urn texto, na verdadeira acepcao, pare interpretar, e a impossi-bilidade de confeccionar conceitos cristalinos nos quais se possa, ainda que de modo figurado, praticar uma subsuncio, deixa um vicuo considerivel.

Esse vicuo Mende a ser preenchido a nivel linguistico, corn metiforas sucessivas destinadas a suprir carencias substanciais (75).

(72) UWE DIEDERICHSEN, Zur Begriffstechnik richterlicher Rechtsfortbildung im Zivilrecht, FS Wieacker (1978), 325-339 (326-327), em geral. As grandes figuras derivadas da boa fe objec-

tiva — a culpa na formacao dos contratos, a violacao positiva do contrato ou a eficicia juridica

da alteracao das circunstancias, p. ex. — constituiriam teorias assentes em normas nao escritas — cf R. DREIER, Zur Theoriebildung in derJurisprudenz cit., 107. As disposicoes que, no C6cligo

Civil, vieram receber essas figuras, limitam-se a remete-las para a boa fe, sem especificar uma

regulacio capaz de suportar conceitos tradicionais. Nem poderiam, alias, fazer outra coisa. (73) P. ex., J. L. DE LOS Mozos, El principio de la buena fe (1965), 15-22. (74) ARTHUR KAUFMANN, Rechtsphilosophische Situation cit., 140. (75) Recorde-se o fundamento da Filosofia da linguagem: o discurso pode incidir sobre

o objecto — linguagem — ou sobre a propria linguagem em si — metalinguagem. A confuslo

entre as duas a comum no Direito — cf FRITJOF HAFT, Juristische Rhetorik (1978), 66-67. No

A *fuga para as imagens» a que o processo conduz pode seguir uma de duas vias. Ou se assimila a boa fe a justica, a equidade, ao equilibrio, a lealdade e assim por diante, numa serie de locucoes juridicas cuja abstraccao pouco ou nada fica a dever a da prOpria boa fe e das quais o retirar de solucOes praticas seria igualmente vao, ou se ye, nela, uma remisslo para complexos ordenadores metajuri-dicos, como a Etica, a Moral, o Direito natural — nas suas variantes nao positivas — ou certas deontologias scctoriais, que, a abstraccao continua, somam, na sua miscegenacao corn o Direito, dificuldades suplementares (76). Nao admira, por isso, que tenham feito a sua aparicao doutrinas negativistas, que recusam a boa fe qualquer papel juridico efectivo, pela impossibilidade de contelido que the advem da sua extend° figurativa ( 77).

Corn particularidades que a afastam, em moldes definitivos, das placidas interpretacao e aplicacao tradicionais, remetida para uma realizacao judicial a qual nao se dao directives reais e pejada de soluc5es linguisticas, a boa fe teria ficado no limbo das referencias jusfilosoficas moralizantes, nao fora a presenca de fortes necessidades do sistema.

caso da boa fe, este fenomeno traduz-se em desenvolvimentos metalinguisticos, assentes na

palavra •boa fee e nao no objecto desta, indeterminivel em termos aprioristicos. Gera-se, desse

modo, todo um metadiscurso, corn transposic8es operosas da boa fe para a justica, a equidade,

a Etica ou ideias similares, que apresenta como solucoes reais meras composicoes de linguagem,

as chamadas solucOes linguisticas. Este aspecto tern o maior relevo: pois se o universo do

juridico, cujas previsoes e consequencias sao, sempre, puras pouibilidades linguisticamente

descritas — H. W. ERDTMANN, Eine eigensandige Rechtssprache, RTh 9 (1978), 177-200 (179);

cf. HANS Orro FREITAG, Gewohnheitrecht und Rechtssystem (1976), 113, coin rec. de FRIEDRICH

LACHMEYER, RTh 9 (1978), 381-383 — e relativizadas mesmo a linguagem utilizada — JAN

BROMCMANN, Juristischer Diskurs und Rechtstheorie, RTh 11 (1980), 17-46 (17) — depende, na

sua expressio onticamente constituinte, pela regularidade da consubstanciacio no espfrito e pela

aprendizagem, da linguagem, as soluc8es linguisticas podem, corn facilidade, passar por refe-

rences ao objecto. A situacao poderia, corn certa facilidade, ser controlada pela dogmitica, corn

urn teste definitivo no momento da decisao. Mas as cadeias linguisticas, assentes, deste feita,

numa metalinguagem descendente, nao se quedam por entendimentos vazios e coloridos da

boa fe: elas podem prolongar-se ate a justificacao do proprio processo decisorio, o qual, nao

podendo, por definicio, retirar do local linguistico a sua legitimidade material, vai, de facto,

assentar em cripto-causalidades, como sejam a justica do caso concreto, o puro arbftrio ou o

sentiment° do juiz, numa possibilidade agravada pelo efeito emocional das palavras — cf. DIETER

HORN, Studien zur Rolle der Logik bei der Anwendung des Gesetzes (1962), 74 ss. — potenciado

pelas locucoes que, em regra, acompanham a boa fe.

(76) 0 tema tern uma importincia, no domfnio da boa fe, que justifica uma referencia mais cuidada. De novo, porem, hi que abdicar de apriorismos, dando-se, 3 dogmitica da boa boa fe, o papel de fio condutor.

(77) ERNST WOLF, SchuldR (1978), 291.

46 Da boa fe no Direito civil § 1.° Introduccio 47

IV. 0 Direito, no que surge ji como lugar-comum (78), esti sujeito as modificacoes sociais; ainda quando a lei nao reaja, a ordem juridica deve faze-lo. A diversidade de situagOes, carecidas de regu-lacao, nao pode, por outro lado, ser dogmatizada corn recurso simples as reducoes normais, sob pens de torcoes (79); deve salvaguar-dar-se uma margem minima para integrar, no sistema, ocorrencias impossiveis de prefigurar nos meios legislativos clissicos, com a linguagem disponivel. 0 dever de julgar, em quaisquer circunstan-cias, deu, a boa fe, urn relevo dogmatic° real: ela assegura a reproducio do sistema, seja conquistando para o seu seio areas que ganham a caracteristica da juridicidade, seja adaptando a nova reali-dade, cientifica ou social, dispositivos arcaicos, seja, por fim, reali-zando, na vida real, um projecto que o legislador deixou a meio ou, apenas, indiciou.

Compreende-se, por isso, que a boa fe surja, corn vigor, em zonas nao reguladas pelas codificacoes, por delonga do legislador, como nas condicoes negociais gerais, ou por impossibilidade tecnica ou linguistica ou, ate, por inconveniencia, como no abuso do direito. Entende-se, tambem, o interesse por ela assumido em periodos de alte-raga° radical dos dados sociais e econOmicos (80). 0 lugar da boa fe na criacao e adaptacao do Direito, pelas necessidades dogmiticas do sistema, fica assegurado.

Forcado, pelos factores referidos, a recorrer a boa fe, o j ul-gador vira-se, como reftigio ultimo, para a Ciencia do Direito e para o discurso que sobre ela incida. 0 teste a decisivo; nele estacam as doutrinas mais conceituadas. E como, na falta de apoios, as solucOes nao podem deixar de ser encontradas, a dogmitica desenvolve-se num desvio crescente do discurso metodolOgico oficial, em termos deconhecidos desde o jusracionalismo. 0 desvio no a tio grande que implique o descientificar da aplicacao juridica que, assim,

(78) Cf. JURGEN SCHMIDT, Privatrecht und Gesellschaftsordnung, RTh 6 (1975), 33-63 (33). (79) HANS-RUDOLF Hoax, Die Natur der Sache als juristischer Argumentationstopos im

situativen Bezug / Zur Grundlegung des Rechtswidrigkeitsurteils im Zivilrecht und Straliecht, RTh 8 (1977), 165-183 (170), falando da adequacao da boa fe e de outras loctic5es, na adaptacao das proposiciies juridicas abstractas ao caso concreto.

(80) EBERHARD SCHMIDT, Gesetz und Richter / Wert und Unwert des Positivismus (1952), 11, aponta o relevo assumido na problematica das relaclies entre o juiz e a lei no period() posterior a catistrofe de 1914-18. Uma serie de aplicacties importances da boa fe datam, alias, do periodo entre os dois conflitos mundiais. Em Portugal, urn aproveitamento mais cabal da boa fe, constante da codificacao de 1966, iniciou-se depois das alteracoes sdcio--economicas ocorridas em 1974-75.

perderia a prOpria possibilidade de dogmatizavio. A aprendizagem do Direito, as exigencias do sistema e o pre-entendimento integrado, dos casos a enquadrar na boa fe e das solucaes harmonicas, prolongam, no Direito jurisprudencial, as caracteristicas de racionali-dade que, desde a recepcio do Direito romano, dominam o pano-rama juridico europeu.

V. 0 desenvolvimento, corn base na boa fe, de um Direito jurisprudencial que, ainda quando a revelia das doutrinas comuns, demonstrou, numa experiencia temperada pelo corrigir de desvios, sempre possiveis, capacidades dogmiticas reais, permite atingir urn dos niveis mais nobres e delicados da cultura juridica actual: o da correccio das leis injustas ou inconvenientes.

0 controlo, com referencia a bitolas tidas por superiores, das leis, insuficientes porque humanas, e tio velho como o Direito. As limitacoes da instrumentacao disponivel nesse dominio, por natureza ou por conjuntura, deixam aparecer como bastiao seguro e eficaz, o prOprio Direito e a sua Ciencia. A lei ao se confunde corn o Direito (81 ). Uma dogmitica juridica, radicada na cultura que a suporte e na seguranca das convicceies cientificas dos juristas que a sirvam, coloca, entre a fonte e a solucao do caso concreto, urn percurso que nenhuma lei pode dispensar e que o legislador nao pode corromper (82). A boa fe permite a consolidacao dessa dogmitica que, no sistema juridic° e nao, apenas, na lei, tenha a sua forca: por outro lado, pela sua vocacao expansiva, pode

(81) PAUL BOCRELMANN, Richter und Gesetz, FS R. Smend (1952), 23-39 (39); A. KAUF-

MANN, Gesetz und Recht cit., 381, dizendo: «A lei é uma norma geral para uma pluralidade de casos possiveis; o Direito, pelo contrario, decide uma questa() efectiva, aqui e agoras; ADoLF Amax, Gesetzesrecht und Richterrecht, NJW 1963, 1273-1284 (1273); OTTO BACHOF, Grund-gesetz und Richtermacht (1959), 9, 15, 27, 37 e 43-44, sem deixar de vincar os limites da actuacao do juiz.

(82) Cf. NORBERT ACHTERBERG, Rechtstheoretische Grundlagen einer Kontrolle der Gesetz-gebung durch die Wissenschaft, RTh 1 (1970), 147-155 (150 e 151), embora sem referir a boa fe e E. Dihnumc, Die gesellschaftlichen Grundlagen der juristischen Entscheidung cit., 38 ss. e 48 ss., falando na possibilidade de valorar elementos actuais nao compreendidos na 16 e na perda da lealdade a lei, tal como era entendida no sec. xix. M. L. HIGLER, (Jberlegungen zuns Richterrecht, FS Larenz (1973), 109-123 (112), nao deixa de indicar a diversidade de situagoes em que legislador e juiz se encontram: o primeiro submete-se a Constituicao e o segundo a Constituicao, a todo o Direito e a ordenacio de valores legais. Assim C. 0 juiz, quando tempere, gracas a dogmatica, os excessos da 16 estrita, nab esti no exercicio de uma actividade discricionaria, fazendo-o antes por exigencia do Direito ou, de modo directo, da Constituicao. Cf. FOLKS SCHMIDT, Zur Methode der Rechtsfindung (1976), 49.

§ 1 .° Introducilo 49 48 Do boa fe no Direito civil

ser chamada a intervir em qualquer caso. As codificacoes evoluidas quando, como a portuguesa, admitam, por exemplo, a possibilidade de exercicios abusivos dos direitos, reconhecem as potencialidades moderadoras e correctoras da boa fe no dominio da lei estrita, numa posicao que, embora importante mesmo para efeitos de aprendizagem, nao é necessiria, por traduzir apenas a existencia, como cientifica, duma dogmitica juridica.

Mas estas consideracoes, reportadas, em grande parte, a boa fe objectiva, nao devem levar ao esquecimento da aplicacao subjectiva do conceito, dominada, pelo menos na aparencia, por um grau muito superior de concretizacao e precisao.

A boa fe tem, em si, os paradoxos, as conquistas e as aspiraco'es da cultura juridica contemporanea.

5. Plano de pesquisa e sua justificacio

I. 0 cerne da pesquisa a constituido pelo estudo da boa fe enquanto factor dogmatic°, susceptive) de proporcionar soluc5es para os problemas situados no seu ambito. Quanto se disse, explica a opcao; mas justifica, tambem, uma ponderacao cuidada e previa dos aspectos que exprimam e susten tern a Ciencia onde se corporiza a regulacao efectiva adveniente da boa fe. Em jogo esti a dimensio histOrica do fenOmeno, nos seus aspectos multifacetados.

A necessidade de reflexao cultural, em dimensao histOrica, cor-responde a prOpria concretizacao da boa f6 como ideia (83 ), confere, quando praticada, urn ponto de vista novo, capaz de quebrar o ponto morto a que chegou uma serie de querelas que animam, ainda hoje, o panorama juscientifico ( 84 ) e elucida, de modo decisivo, o pri--entendimento (85 ) possivel da boa f6 e a sua prOpria compleicao nas codificacoes da actualidade. Merece, hoje, urn reconhecimento geral, nao sendo dispensada em monografias dogmiticas ou em trata-mentos metodolOgicos globais.

A pritica da critica histOrica como instrumento da Ciencia do Direito inicia-se, em regra, a partir da referencia a SAVIGNY e

(83) Cf. GERRARD DULCSEIT, Philosophic der Rechtsgeschichte I Die Grundgestalten des

Rechtsbegriffs in seiner historischen Entwicklung (1950), 9-28, ern geral, bem como HEL?AUT

COING, System, Geschichte und Interesse in der Privatrechtswissenschaft, JZ 1951, 481-485 (482). (84) J. LLOMPART, Die Geschichtlichkeit der Rechtsprinzipien (1976), 125 ss.. (88) GADAMER, Wahrheit u. Methode 4 cit., 250 e ss..

sua escola (8 6 )• Tratando-se da boa fe, hi que it mais longe. As recepcOes sucessivas do Direito romano, corn relevo para a elabo-raga° pandectistica do Corpus Iuris Civilis, determinante na codifi-cacao alema, dao uma actualidade grande as concepcOes jusculturais antigas. 0 papel da boa fe na codificacao napoleOnica, cern os hibitos duradouros dela advenientes, requer o conhecimento dos cenirios jusracionalistas. A pujanca que, para alem da lei ou contra ela, a boa fe revestiria, na praxe do principio do seculo, requer urn discorrer sobre as priticas, pouco conhecidas, da pre-codificacio. Entende-se, daqui, como, a partir da criacao, no Direito romano, da boa fe como realidade juridica, devem ser considerados os seus componentes histOricos mais diversos, os quais, pelo significado par-ticular da nocao, que ira tomando corpo ao longo do desenvolvimento, sao, afinal, os factores histOricos da cultura juridica portuguesa actual.

As consideracoes histOricas a que se ira proceder pretendem-se criticas, porque histOricas, mas, ainda, numa perspectiva funcional mais alargada. A mitificacao da boa f6 invadiu largamente a histOria, sobretudo no entendimento da bona fides romana. A procura da verdade histOrica, corn apoio nos textos, na medida da instru-mentacio utilizivel, constitui urn banco excelente para, nas raizes, desfazer os niveis linguisticos de desenvolvimento da boa fe. Critica, ainda, 6 a analise da realidade, obtida atraves do estudo histo-ric°, corn os meios dogmiticos actuais (87). Consegue-se, assim, urn conhecimento historic° juridicamente operacional, que ganha dimen-sk corn o seu inserir no pensamento cientifico em progressio, sobretudo desde o momento em que os modelos sistemiticos, em evo-lucao dialectica, passaram a integrar, em definitivo, a capacidade humana de raciocinar em termos juridicos.

II. No estudo dogmatic° da boa fe, hi que efectuar uma recusa decidida de consideracoes centrais do problema, traduzidas em dis-cursos sobre a prOpria nocao como ideia. Esse processo, a ser utili-zado, mais iria agravar os metadesenvolvimentos, de cariz teoretico ou linguistic°, que afligem o panorama juscientifico actual, corn incidencia particular na boa fe.

(88) Recorde-se o escrito fundamental de LA-RENZ: a sua Methodenlehre.

(97) Sobre as possibilidades e limites deste procedimento, E. BErrt, Moderne dogmatische

Begriffsbildung in der Rechts- und Kulturgeschichte / Ist die Benatzung moderner Rechtsdogmatik bei

der rechtshistorischen Auslegung berechtigt?, StG 12 (1959), 87-96 (93, p. ex.).

4

50 Da boa fe no Direito civil

Preconiza-se, por isso, uma anSlise assente nas suss aplicacoes concretas, agrupadas por institutos historicamente consagrados e que, o mais das vezes, mereceram, na codificacac portuguesa de 1966, mencoes autOnomas. Na'o se pretende uma reflekao dispersa sobre cada uma das disposicoes que, no C6cligo vigente, albergam a boa fe — embora, mesmo que de modo ilustrativo, todas sejam estudadas — mas antes uma anilise dos lugares que o use e a HistOria permitem ter por exemplares.

As manifestacoes subjectivas da boa fe, ainda que exploradas a partir do caso modelar da posse, podem, corn comodidade, ser agru-padas numa rubrica prOpria. A boa fe objectiva, pelo contrario, bem mais complexa, requer uma averiguacio separada dos tres gran-des grupos dotados de autonomia institucional: a actuacio de boa fe, que inclui a culpa na formacio dos contratos, a execucao das obri-gacoes e outras figuras, o exercicio inadmissivel de posicoes juridicas, ainda conhecido por abuso do direito e a modificacio das obrigacoes por alteracao das circunstincias. A unidade destes institutos a dogma-tica e resultara do seu conhecimento.

A apreciacio dos elementos dogmiticos obtidos pelo estudo parcelar da boa fe permite a sua reduclo global e a sua insercio, em termos substanciais, no sistema. Obtem-se, por esta via, a comple-mentacio e a contraprova dos resultados conseguidos.

III. 0 estudo que segue desenvolve-se, por tudo isto, em tres partes: historico-critica, institucional e sistematica. As teses defendidas sao autcnomizadas no final.

I

PARTE HISTORICO-CRITICA

370 Da escola historica as tendencias. actuais

IsAy; este A. explica, corn plausibilidade, que «...a norma juridica nao como tal, imediatamente, a regulagio do caso concreto necessitando, para isso, ainda da decisio*. 0 que seria tanto mais claro quanto a certa a presenca de disposiceies que, remetendo o juiz para a boa fe ou para os bons costumes, no compreendem qualquer regulacio para o caso concreto. 0 conteildo da decisio nao surge atraves de um acto cognitivo, mas volitivo; norma e decisio no podem ser separadas de modo estrito. Os factores subjectivos, como a prOprio do nivel decisOrio, imperam, atraves do sentimento juridico, ainda que corn outran justificagoes :

a decis5o segundo os bons costumes soluciona urn conflito de interesses, considerando urn deles como contrArio a essa o que nao e, em si, o caso; a norma referente aos bons costumes é, ela propria, uma norma em branco, incapaz, por isso, de assegurar o controlo da decisao encon-trada, a seu pretexto, ao abrigo do sentimento juridico, outrotanto sucedendo corn a boa fe ( 414).

A escola do Direito livre tern sido mal entendida: o periodo dos totalitarismos que atravessou, as perseguicoes movidas em 1933 a KAN-TOROWICZ e a incontinencia verbal de FUCHS, para alem do peso das construcoes tradicionais, levaram a esquecer que, mais do que defender uma determinada doutrina, ela apenas referenciou uma realidade exis-tente, demonstravel pela observacio. Dois pontos importantes con-tam-se no seu activo: IsAv, corn os antecedentes apontados, vibrou, na teoria da subsuncio, urn golpe decisivo, enquanto que a impossibili-dade de, da prOpria boa fe, encontrar um controlo para as decisoes nela baseadas ficou, desde entio, demonstrada.

Ao admitir, num voluntarismo subjectivo, a decisio de acordo corn o sentimento juridico, num aspecto comummente assacado e criti-cado ao Direito livre (415), os seus seguidores tocaram num ponto que bem poderiam ter documentado corn Areas extensas da jurisprudencia segundo a boa fe, designadamente na area da alteracao das circunstancias. Mas claudica em dois aspectos: por urn lado, a liberdade do juiz, no dominio do seu proprio sentimento é, em muito, aparente, visto que vitirnada por uma aprendizagem dominada por proposicoes legais e pela insercio em determinada cultura; por outro, ha toda uma proble-matica a nivel de efeitos da decisio e de factores que a pre-condicionam, nos quais a Ciencia do Direito pode e deve intervir.

A mingua de obras viradas para problemas, o Direito livre nao teve grande influencia; nesse sentido, actuaram, tambem, os factores negativos da epoca, acima apontados. Na medida, contudo, em que se tratou de descrever uma realidade efectiva, o Direito livre permanece, na boa fe como noutros sectores, como farol a nao esquecer.

(414) H. ISAY, Rechtsnorm and Entscheidung (1929, reimpr. 1970), 20, 21, 27, 35, 142, 175 e 216, respectivamente.

(415) Cf , p. ex., LARENZ, MethL 4 cit., 68; JURGEN BAUMANN, Eityiihrung in die Rechtswis-sensvhaft 6 cit., 77; OLIVEIRA ASCENSAO, 0 Direito2 cit., 503.

§ 14.° A UNIVERSALIZAcA0 DA BOA FE; 0 IRREALISMO METODOLOGICO

41. A expansio da boa fe em dominios n543 civis

1. Antes de ponderar a projeccao efectiva das orientacoes metajuridicas e positivistas na pratica da boa fe, no dominio da segunda codificacao, cabs conhecer da sua expansio fora do Direito civil. Essa expansao e notavel e denota a compleicao da boa fe nao como um instituto juridico comum, mas como factor cultural importante, ligado, de modo estreito, a urn certo entendimento do juridico.

0 radicar da boa fe em zonas privadas nao civis, designada-mente no Direito comercial e no Direito do trabalho reveste dimensoes problematicas especificas. Ao Direito comercial deve-se a HistOria moderna da boa fe (417 ). A sua nao consagracao expressa no COrligo Comercial alemao de 1862 e na revisao de 1897 (418) tera determinado urn certo desinteresse por parte dos comercialistas que, deste modo, cederam o primado do seu estudo aos cultores do Direito civil. De mencao hesitante (419), a boa

(416) Tem-se em mira o Direito do contrato de trabalho que constitui, num prisms dogrnatico, Direito privado; cf. MENEZES CORDEIRO, Da situtudo juridica laboral cit., 8-9 e 62, p. ex .

(417) Recorde-se a jurisprudencia do OAG Lubeck e do BONG /ROHG — supra 11.° 37 — e as primeiras mencoes que the foram feitas por comercialistas, como Tntir. e GOLD-

SCHMIDT.

(418) Tambem tratado como C6digo Comercial novo, o HGB ainda em vigor. A revisit), embora atingindo aspectos substanciais no Direito maritimo e no das socicdades, visou, no essencial, uniformizar a codificacio comercial corn o BGB. A sublinhi-lo, BGB e HGB entrariam ern vigor na mesma data. Cf. MAx PAPPENHEIM, Das tteue deutsche Handelsgesetzbuch,

ZHR. 46 (1897), 375-389 (375, 377, 383 e 387-388). (419) E pouco sistematizada. H. SCHUMANN, HandelsR (1954) 1, 18, 51, 96 e 225 — urn

dos AA. comercialistas que main espaco concede a boa fe — aponta, sucessivamente, que ela ji no Direito roman dominava o trafego comercial, que, a prop6sito do comerciante aparente, a boa fe estabelece a proibicio de venire contra factum proprium e a proteccio da confianca, que, a Prop6sito do Direito da concorrencia, a boa fé determina a inadmissibilidade do abuso de

(416) ao

372

Da escola histdrica as tendencias actuais

fe constitui, contudo, urn principio generico no Direito cornercial, corn aplicaceies similares as do Direito civil. Sublinhe-se, apenas, alguma especificidade no Direito das sociedades, onde a boa fe tern sido dinamizada como fonte de urn dever de lealdade dos socios uns para corn os outros e para corn o ente societario colectivo (420) .

0 Direito do trabalho receberia, por seu turno, a boa fe, desde a sua autonomizacao sistemitica do Direito das obrigaceles ( 42 1) ; as vias de concretizacao e os resultados corn elas obtidos sao semelhantes, de qualquer modo, nos dois campos juridicos (422).

) A defesa, em regressio clara, mas ainda maioritaria , da relaclo de trabalho como uma realidade «comunitario-pessoal», provocou um certo esmo-recer pratico da boa fe laboral, uma vez que boa parte dos efeitos a eta imputiveis eram reconduzidos a alegada «comunidade de trabalho» (423). 0 transcender dessa orientacao, corn um reconheci-mento da natureza obrigacional pura da situacao laboral, conduz a uma aplicacao renovada da boa fe na situacao de trabalho; os seus

posiciies formais e a possibilidade da suppressio e que, nos contratos, é inadmissivel atentar contra a boa fe. CAPELLE/CANARIS, HandelsR19 (1980), abordam, por seu turno, como aplicacoes da boa fe no comercio, a proteccao da confianca - 95 - as inalegabilidades formais - 99 - o abuso do direito - 101, 106 e 112 - e o papel da boa fe na correccio de certos conterldos contratuais - 137. Faltam, no entanto, referencias a boa fe em pains v. GIERKE, HandelsR8 (1958), em PAUL HOFMANN, HandelsR (1977) e em HERBERT WIEDMANN, HandelsR (1979), 33-34, local onde poderia ter ocorrido.

(420) HACHENBURG, Aus dem Rechte der Gesellschaft mit beschrdnkter Haftung, LZ 1907, 460-472 (466 e 467) - foca, em especial, o papel integrador e complementador da boa fe e a proibicao do abuso; HEINRICH FRIEDLANDER, Konzernrecht (1927), 291 - acentua as adstricoes que a boa fe impae ao accionista influente; HEDEMANN, Flucht cit., 21 - menciona, ainda, o abuso do direito de votar; A. HUECK, Der Treuegedanke im Recht der offenen Handelsgesellschaft, FS Hiibner (1935), 72-91 (74); E. FECHNER, Die Treubindungen des Aktiondrs cit., 62 ss. (88); R. FISCHER, Die Grenzen bei der Ausiibung gesellschaftlicher Mitgliedsschaftsrechte, NJW 1954, 777-800 (777 e 779) - refere o dever de lealdade e o abuso do voto, mas nio sublinha a boa fe. A lealdade, por forca da boa fe, tern ainda sido salientada na relacao de seguro, sobretudo na sequencia de RG 8-Out.-1935, JW 1936, 177-178, corn an. favorivel de RA. HENNICKE, idem 178. Cf. W. Kim", Treu und Glauben im Versicherungsverkehr, JW 1936, 149-151 (149), que refere a adveniencia, pela boa fe, de deveres para ambas as partes, no contrato de seguro e R. FISCHER, Treu und Glauben im Versicherungsrecht, VersR 1965, 197 ss..

(421) GUSTAV RUMELIN, Dienstvertrag und Werkvertrag (1905), 265, LOTMAR, ob. cit. infra 374429, 2, 859 e OERTMANN, Deutsches Arbeitsvertragsrecht (1923), 138.

(422) No Direito do trabalho, a boa fe suporta, de acordo corn a doutrina actualizada, o contend° mais significativo dos ch. deveres de lealdade e de assistencia, a cargo do trabalhador e do empregador, respectivamente. Vide irtlict, 607.

(423) Remete-se para MENEZES CORDEIRO, Da situacdo juddica laboral cit., 13 ss. e 19 ss., bem como para a bibliografia ai citada.

§ 14.° A universalizacdo da boa fe; o irrealismo metodolOgico

efeitos, embora adaptados a especificidade da problematica laborallo

l,

ordenam-se, rem dificuldades, pelo figurino obrigacional ( 424).

Direito portugues vigente, a aplicaco, o nos dominatios co

a mercial

fe, e

laboral, das disposicoes que, no Codig Civil, tram boa

nao oferece dtiviclas (425) (426).

IL A aplicacao da boa fe Direito ptiblico levan

ataboa fe

culdades maiores. Em principio, Tao haveria problemas: conquistou urn Lugar especifico como dado juscultural, nao depen-

d.enclo, pois, fronteiras academicas internas. A prOpria ciao entre Direito piiblico e privado ganhou forma estrita, apenas, com o jusli-

'424, Em especial, PETER SCHWERDTNER, Fiirsorge und Entgelttheorie im Recht der Arbeits-

bedingungen I Eirl Beitrag zum Gemeinschafts- und Vertragsdenken im Individualarbeitsrecht und

allgemeinen Zivilrec (197), 80 ss., corn rec. favoriveis de

HERBERT BUCHNER, Fiirsorgetheorie

und Ent gelttheorie im

ht Recht

0 der Arbeitsbedingungett, RdA 1970, 214 ss. e HERBERT FENN, Fiirsor-

getheorie und Entgelttheorie im Recht der Arbeitsbedingungen, AuR 1971, 321 ss..

(425) A boa fe, tal como resulta dos institutor civis, tern aplicacao no ambito corner-

cial, por forca do art. 3.° CCm, uma vez que, sendo extensiva a problematica mercantil, nao tern, es comrciais, tratamento prOprio. Repare-se que, nessa aplicacio comercial,

a boa fe em font perde ae natureza civil e que os principios do Direito comercial nab apresentam

diferencas grander em relacio aos civis - A. FERRER CORREIA, D. Comercial, 1 (973, polic.),

44 ss. e 40. E Curios° notar que, na literatura portuguesa, aspectos importantes

1 da aplicacao

da boa a foram abordados a proposito de questoes comerciais - d, p. ex., MANUEL DE

ANDRADE, Sobre a validade das cldusulas de liquidactio de partes sociais pelo tiltitno

207-

balanc,o,

225-

Rij 86

(1954), 369-375 e 87 (1954/55), 3-5, 17-20, 33-35, 49-52, 65-68, 81-84, 211 228,

241-3, 7-260, 77, 289-292, 305-309 (305

Amortizactio de quotas, RLJ 93

(1960-2461) 25, 228-233

273-2 33 (232) e, anteriormente, brocANcso GALVAO TELLEs,

Amortizacio de quotas,

ROA 1946, 3-4, 64-69 (69), ambos propondo, a materia, o regime do abuso do direito. Esta tradicio silo deu frutos; nao se encontra, na producio juscomercialista portuguesa, tal como na estrangeira, urn desenvolvimento dedicado a boa fe. E isso apesar de serem frequentes as cipio ao relevo da boa fe na lide comercial - p. ex.,

FERRER CORREIA,

D referencias de prin . Comercial c., 1, 36-37, FERNANDO Ouivo, D. Comercial 12 (1970), 22 e A. PEREIRA DE

Ammon, D. Comercial 1 (1976/77 polic.) 25. A mencao falta, porem, em L.

BRITO CORREIA,

D. Comercial 1 (1978 /79, polic.).

(426) 0 Direito do contrato de trabalho é, dogmaticamente, Direito privado, laboral

maxime 64; cf. L. BRITO CORREIA, D. Trabalho 1 (1980181, polic.). 35, para quem o Direito do

trabalho seria, inicialmente, Direito privado Tambern aqui faltam, nas especidades jusla-borais, institutor particulares que permitam. prescindir dos instrumentos civis, entre os quo's, o ntrastando corn o desenvolvimento adquirido noutras literaturas, a boa fe

laboral nil) é ref da boa fe. Co erida na escassa doutrina portuguesa sobre Direito do trabalho, faltando mesmo

quando se fala nos deveres acessOrios - cf A. L. MONTEIRO FERNANDES, Nocoes fundamentais

7, 77 ss.. A in.cipiencia mais requer, a nivel civil, um estudo ino-

de Direito do trabalho (19

vador da boa fe.

374 Da escola' histdrica ns tendbicias actuais

beralismo c corn as codificacoes civis por ele impulsionadas. Anterior-mente, as normas oprivadas» e opublicas» entrelacavam-se, a todas interceptando a boa fe (427). Feita a biparticao, a boa fe, sobretud o

no que respeita ao scu entendimento objectivo, vocacionado para a criacao de institutos juspositivos, veio a centrar-se em torno do comportamento contratual das partes c da interpretacao dos actos efectivados nesse ambito (428‘. ) Imperam, ai, a liberdade c a igualdade, contrapostas a competencia c a sobcrania, que dominam o Direito pUblico (429 ). Tanto podcria bastar para impedir a transposicao

(427) A distincio entre Direito privado e public° tem sido reportada ja. a ULPIANUS, D.1.1.1.2; cf., 12.Ain. VENTURA, Manual de Direito Romano cit., 210. Apesar de, desde sc ter retido a possibilidade de considerar o Direito por esses dois prismas, nit) pode falar-se numa contraposicao Clara. No que toca a boa 16, recorde-se que, a partida, a fides podia infor-mar situacoes privadas e pablicas — supra n.° 4 7 e 8 — numa situacao que reapareceria na evo-lucao posterior, corn um exemplo claro em GROTIUS — supra, n.° 28.

(428) No ambito da primeira codificacio, supra n.° 32 e, da segunda, supra, n.° 28. (429) Mantem-se a distincao entre Direito ptiblico e privado, preconizada em MENEZES

CORDEIRO, D. Reais Cit., 1, 13 e D. Obri;qacjes cit., 1, 14; Cf MARTIN BULINGER, Offentliches Recht and Privatrecht (1968), 75 ss.. A intervenclo do Estado em situacoes privadas e a utilizacao pelo Estado, de tecnicas privadas de gestio, levantam, como tantas vezes 6 repetido, dificul-dades a uma separacio rigida entre Direito privado e public°. Esta deve ser entendida como uma caracterizacao global a nivel de subsisternas, i. 6, cons° uma coloracio regulativa do subsis-tema privado, informado por vectores de liberdade a igualdade c do subsisterna publico, domi-nado por regras de competencia e por ius imperii. A natureza aberta desses subsisternas permite, cm cada urn deles, a erupcao de normas do outro, em obediencia a fenOmenos de absorcio teleolOgica. Nao deve ceder-se a tentacio facil de, num modernism° aparente que insiste em ignorar a evolucao juscientifica registada no Leste Europcu, a partir de 1945, tirar o signi-ficado a contraposicao entre Direito privado e public°. Apesar dos problemas levantados distincio por ramos juridicos mais recentes — isms velhos, afinal, de quase um seculo — como o Direito do trabalho e o Direito economic° — recorde-se que Orro VON GIERKE, Der Entwurf tines barge:lichen Gesetzbuchs and das deutsche Recht (1889), 245, ja havia criticado o projecto do BGB por ter, segundo ele, esquecido os postulados classicos da situacio laboral alema, enquanto que unaa das mais extensas exposicaes de Direito do trabalho 6, ainda hoje, a de PHILIPP Lo-rmAK, Der Arbeitsvertrag nadt den: Privatrecht des Deutschen Retches, 1 (1902) e 2 (1908) e que o Direito economic°, apesar das suas raizes anteriores, tern sido imputado as necessidades de intervencao do Estado na economia, aquando do primeiro conflito mundial— G. RINK, WirtschaftsR 5 (1977), 10 ss., e, corn pormenores, J. W. HEDEMANN, Das Wirtschnftsrecht, FS. A. HuEcK (1959), 377-412 (378 ss.) — ela 6 de manter. Justificans-no razoes culturais, teOricas, praticas e ideologico-significativas. Ent ponderacio cultural, o Direito privado assenta numa seric de contributor romanisticos, fundidos no Direito comum europeu e ordenados, aquando das codificacoes, em obediencia a lei turas determinadas. 0 Direito public° deriva do jusracionalismo, depois liberalizado e nao apresenta uma sedimentacio cultural capaz de suportar tuna codificacao• A nivel teOrico, o Direito privado traduz aspectos funcionais estiveis das relacoes entre pes-soas; sofre pouco corn as intervencoes legislativas e afirma-se mais por um modo de procurar

§ 14.° A universalizayclo da boa fe; o irrealismo metodologico 375

de principios intrinsecamente privados, como o da boa fe ( 430).

rlao impediu. Do Direito public°, o primeiro sector atingido pela boa fe

foi o do Processo civil. A sua natureza instrumental perante o

Direito civil e uma certa tradicao literaria de escrita sobre a boa fe em Processo ( 431 ) terao facilitado a transposicao. A jurisprudencia foi receptiva ao movimento, fazendo, desde cedo, aplicacao da boa fe no campo processual.

Em RG 14-Out.-1905, numa primeira incursHo das clausulas gerais do BGB em processo, restringiu-se, em nome delas, o prOprio caso julgado formal. Uma pessoa conseguira a condenacio de outra no paga-mento de determinada quantia; o R. neste primeiro processo fora citado corn editais, formando-se, contra ele, caso julgado. 0 R. aparece e, corn nova acc5o, pretende suster a execuglo da decisio condenatoria; alega que a divida tinha, na sua base, uma #exploracio usuraria* e que o

soluceies do que pelas prOprias solucoes em si. Este aspecto, da maior importancia, prova-se pela leitura do ZGB/DDR — o Codigo Civil da Republica Democratica Alemi, de 1975 — que, representando o expoente mais evoluido de urn jusprivatismo tido por diferente, acaba. malgrado reconversOes linguisticas — p. ex., em vez de boa f6, fala ens .Moral socialistap —

por manter incOlumes os grandes vectores do ius roma:Lunt actual. 0 Direito pUblico integra

uma area organizatOria de nivel superior, bulindo corn relacties de submissao entre pessoas, de dominio do Estado e de controle directo sobre a producao e distribuicao de riqueza. Torna-se muito sensivel as conjunturas e, merce das suas flutuaceies, deve surpreender-se pelos resultados

que consiga, mais do que pelas vias que preconize. A nivel pratico, o qualificar de uma situacao como privada ou publica decide do seu destino academic°, literario, legal e judicial. A nivel significativo-ideologico, ha que assumir o facto de, na existencia de um Direito comum, resis-tente ao arbitrio do contingente, residir a sarvaguarda mais relevante do desenvolvimento livre da pessoa humana. Esse papel a desempenhado pelo Direito privado. Compreende-se, por isso, a preocupacao sempre demonstrada pelas tendencias totalitarias politicas, coin ilustracao classica no nacional-socialismo alernio, em minimizar ou, se possivel, preterir, a distincio, no juridic°, do privado e do public°. Nada disto deve, contudo, ser interpretado como ausencia de perinea-bilidade entre os dois subsisternas ou como minimizacao do Direito public°, decisivo, afinal, para a definicao das socicdades e para a efectivacio definitiva dos valores concebidos, no inicio,

a nivel privado. Entendida aqui, ao gosto da pos-codificacio, como principio paralelo ao da auto-

nomia privada e destinado a reforci-la.

(431) A partida, a clivagem entre os bonae fidei e os stricti iuris iudicia — recorde-se o

trabalho decisivo de KRUGER Cit. sup. 544 — era de origein processual. Antes da codificacao

alema, ha que apontar o livro de JOSEF TRUTTER, Bona fides int Civilprozesse / Eht Beitrag zur

Lehre von der Herstellung der Urteilsgrunde (1892, reimp. 1972), seguido do de KONRAD SCHNEIDER,

Treu and Glauber: in: Civilprozess (1903) cit.; estas obras, apesar de defenderem teses opostas,

introduziratn, na literatura processualista, o habit() de referir e tratar a boa 16.

§ 14.° A universalizaccio da boa fe; o irrealissno metodologico 377 376 „Da escola hisarica as tendencias actuais

seu paradeiro, conhecido de todos, fora, na propositura e decurso da accao em que fora condenado, Bloemfontein, na Africa do Sul. 0 RG decidiu: «0 caso julgado formal da decisio anterior nao se opeie cacao do § 826 BGB. A eficacia do caso julgado deve cessar, onde el a seja, corn consciencia, usada para escopos aos quais nao se deve dar o cunho do Direito) ( 432). 0 § 826 BGB reporta-se aos bons costumes e nao a boa fe. Nos primeiros tempos da vigencia do BGB, foi frequents a confusio entre boa fe e bons costumes, sobretudo no dotninio do exer-cicio inadmissivel de posigoes juridicas ( 433). A equacao encontrada pelo RG é, no entanto, de tipica boa fe.

Muito claras seriam as consideracoes de RG 1-jun.-1921. Numa accao de condenacao no pagamento de quantia determinada, o R. vein dizer que acordara corn o A. a retirada dessa accao. Disse o RG ....deve aceitar-se que tambem a relagao processual das partes, assim como o seu relacionamento jusmaterial, a dominada pelo principio da boa fe, tai como a exceptio doli generalis, reconhecida para o Direito do Codigo Civil se dirige precisamente contra o comportamento do credor no processo (434).

A doutrina, apesar das hesitacoes de KONRAD SCHNEIDER (438), que mais nao representaram, alias, do que o reflexo das posicoes restritivas assumidas por ele no campo civil ( 436), aceitaria a recepcao da boa fe, tal como emergia do § 242 BGB, ao Processo civil ( 437).

RG 14-Out.-1905, RGZ 61 (1906), 359-366 (361 e 365). Quanto a distincio final entre boa fe e bons costumes, infra, n. ° 113. RG 1-Jun.-1921, RGZ 102 (1921), 217-223 (217 e 222-223). KONRAD SCHNEIDER, Treu und Glauben im Civilprozess (1903) cit., 21-22, p. ex..

CE sup. nota 329. K. SCHNEIDER teve o apoio de K. H. GoRRES, Uber das Verschulden in; Pro-zesse, ZZP 34 (1905), 1-106 (7), o qual, em particular, critica Teurree -cf., tambem GoRRES, ob. cit., 79. Tambem a respeito do ch. dever de verdade, esse A. nega aplicacao a boa fe. Em compensacio, Murree, Bona fides im Civilprozesse cit., p. ex., 155 ss., infere, da bona fides, um dever geral de honestidade processual, de onde retira deveres processuais de relevo. T. pro-nunciou-se, como foi salientado, antes do pr6prio BGB.

(436) Cf. supra, 354-355329 . (437) BENRENDORF, Treu und Glauben im Zivilprozess, JW 1933, 2870-2872 (2872)

- foca o relevo da boa f6 no processo, mas chama a atencio para a sua indeterminabilidade, que tern por semelhante a que reinaria no Direito civil; WILHELM BELTZ, Treu und Glauben und die guten Sitten nach neuer Rechtsauffassung und ihre Geltung in der ZPO (1937) - defends a aplicacio geral da boa fe ao processo - ob. cit., 22 ss. - tom relevo particular para a exceptio doli - ob. cit., 31 ss.; BERNHARDT, Auswirkungen von Treu und Glauben im Prozess und in der Zwangsvollstreckung, ZZP 66 (1953), 77-100 (95, 99 e 100, p. ex.)-sublinha, em particular, que sem a boa fe, as formas processuais transformam-se em formalismos. A nivel geral, embora corn valia heterogenea, refirani-se Sari:Nee /Sciuctinee/Niese, ZivProzR 8 (1956), 25, HORST THEUERRAUF, Beweislast, Beweisfiihrungslast und Treu und Glauben, MDR 1962,449-451 (449-450),

Perante tentativas de transposicao pura e simples e sublinhando a necessidade de adaptar a regra da boa fe a realidade processual, que

requereria, no campo deixado aberto pela lei, uma liberdade especial

dos litigantes, pronunciar-se-ia BAUMGARTEL (438 ). Na doutrina pro-

cessual, tomou, entretanto, proporcOes translativas um agrupamento em quatro tipos dos casos de aplicacao da boa fe ( 439 ): a proibicao

de consubstanciar dolosamente posicoes processuais (440), a proibicao

KucHINKEIScitotiltE, ZivProzR 9 (1969), 10 e 150, BLOMEYER, ZivProzR (1963), 148-149,

W. ZEISS, ZivProzR 4 (1980), 73 e 74, JAUERNIG, ZivProzR" (1981), 96, ROSENBERG /SCHWAB.

ZivProzR" (1981), 10 e 374-375, P. ARENS, ZivProzR 2 (1982), n. ° 216 (144-145) e K. SCHELL-

HAMMER, ZivProzR (1982), n.° 585 e 1128-1129 (290 c 584-585). Em compensacio, faltam refecencias dignas de nota - embora sem se assumir tuna posicio negativista - em NIRISCH,

ZivProzR 2 (1952), em R. BRUNS, ZivProzR (1979) e em F. BAUR, ZivProzR 4 (1982). A nivel

monogrifico predomina, tambetn, corn as precisties proprias de cada A., a idcia da aplicabilidade da boa fe preconizada no § 242 BGB ao processo. Cf infra os escudos de BAUMGARTEL, DOLLS,

ZEISS, W. HENCREL e H. KONZEN. Esta posicao domina, de igual modo, os comentarios,

corn destaque para STEIN/JONAS /SCHUMANN, ZP020, Introducio (1980), n.° 242 (144).

(438) BAUMGARTEL, Treu und Glauben, Bute Sitter; und Schikaneverbot im Erkerintnisver-

fahren, ZZP (1956), 89-131 (119 ss. e 131), contra um certo simplismo anterior, presence, p. ex.,

em BELTZ - cf. infra, 745378 - reconhece a aplicacao da boa fe no Direito processual civil, mas redama que se proceda as adaptacoes necessirias, dado o espirito especifico desse ramo

juridico. (439) Na origem desta tetraparticao, aplicada ao processo, encontra-se a monografia de

WALTER Zeiss, Die arglistige Prozesspartei I Beitrag zur rechtstheorctischen Prdzisierung eines Ver-

botes arglistigen Verhaltens inn Erkenntnisverfahren des Zivilprozesses (1967), 41, 52 ss., 100 ss., 123 ss.

e 150 ss., retomada pelo prdprio ZEISS, em ZivilProzR 4 cit., 73-74, pOr ROSENBERG/SCHWAB,

ZivProzR 13 cit., 375, por BAUMGARTEL, Treu und Glauben im Zivilprozess, ZZP 86 (1973),

353-372 (362-366), por SCHELLHAMMER, ZivProz cit., 584-585, por STEIN /JONAS /SCHUMANN,

ZPO" cit., n. ° 248 ss. (146 ss.) e ainda, embora corn intencoes critical mais ou menos extensas,

por outros AA. A mencio a esses grupos aparece urn canto misturada em BLOMEYER, ZivProzR,

cit., 148-149. Complementando um pouco essa tetraparticio, embora the respeite or quadros,

surge o agrupamento sugerido por WOLFRAM HENCKEL, Prozessrecht und materielles Recht (1970),

370-374; este A. preconiza cinco grupos: venire contra factum propriwn, falta de interesse justi-

ficado no exercicio, dolo agit . - i. 6, dolo facie, quid petit, quod redditurus est, no sentido de ser

contraria a boa fe a exigencia do que, de seguida, deva ser restituido - cf. infra § 320 - a aqui-

sicio desonesta de urn direito e o abuso de posicoes juridicas. A influencia de urn certo discurso civil, prOprio do tema do exercicio inadmissivel de posicoes juridicas, nurna fase em que se

apresentava, ainda, fraccionariamente, é manifests.

(440) Exemplo deste tipo de concretizacio da boa fe em processo seria dado pela decisao do BGH, em 23-Nov.-1977, NJW 1978, 426-427 (426) = ZZP 91 (1978), 486-488, coin an.

favorivel dc KLAUS SCHREIBER, 488-490 (488). Entendeu-se ai que, por forca do dever de comportamento honesto em processo, derivado da prescric5o da boa fe - § 242 BGB -

uma parte nao pode beneficiar do n -ao decurso de urn prazo cuja notificaclo, que produziria a interrupcio, foi dolosamente Unpedida. No Direito portugues, hipoteses semelhantes tern

(432)

(433)

(434)

(435)

378 Da escola historica as tendencias actuais

de venire contra factum proprium (441), a proibiclo de abuso de podere & processuais (442 ) e a suppressio (443). Neste elenco, mal se esconde utna

recepcio da sistematica interna do exercicio inadmissivel de posio es civis, tal como tern vindo a ser isolado pela doutrina privatistica .

As especificidades ensaiadas por alguns processualistas, reconduzind o, por exemplo, o consubstanciar doloso de posicoes processuais a um terra de interpretacio de normas, duvidando da probicao de venire contra factum proprium como tal, ou pondo entrave ao preterir dos prazos estritos processuais atraves da suppressio, sac) apenas um reflexo,

contemplacio legal expressa; p. ex.: art. 321.° CC ou 203.0/2 CPC. Contra a configuracao deste grupo como carp de aplicacio da boa le pronunciam-se ZEISS, Arglistige Prozesspartei cit., 52 ss. (58 ss.), BAUMGARTEL, Treu and Glauben im Zivilprozess cit., 362-363 e Holm. KoNzEN, Rechtsverhaltnisse zwischen Prozessparteienl Studien zur Wechselwirkung von Zivil- und Prozessrecht bei der Bewertung und den Rechtsfolgen prozesserheblichen Parteiverhaltens (1976), 252; cf. STEIN/ /JONAS/ SCHUMANN, ZP020 cit., 14616. Estes AA. entendem, no essential, que nao haveria, nos casos que integrariam este grupo, a violacio da boa fe, mas antes o contornar de disposicaes legais, devendo, pois, resolver-se pela interpretacio. Corn alguns desses casos, pclo menos, assim serf. 0 grupo em causa tern sido aprofundado no Direito civil em torno da locucio to quoque; trata-se de uma via que poderia ser aproveitada com merit° no processo. Cf. infra, § 31.°.

(44 ') Exemplo Inuit° citado de vcfp em processo é o decidido em BGH 20-Mai.-1968, BGHZ 50 (1968), 191-197 (192 e 196): uma parte nega a competencia do tribunal arbitral e, citada perante o tribunal comum, excepciona o compromisso arbitral; o BGH entendeu haver comportamento contraditOrio, em violacio da boa fe 242 BGB. 0 vcfp em Process° é questionado por ZEISS, Die arglistige Prozesspartei cit., 100-122, por BAUMGARTEL, Treu und Glauben im Zivilprozess cit., 363-365 e 372 e por H. KONZEN, Rechtsverhaltnisse zwischen Prozess-parteien cit., 237-238, 239-240 e 254. Tambem ROLF STORNER, Die Aufklarungspflicht der Par-teien dcs Zivilprozesses (1976), 91-92, tern o vcfp como construcio artificial. No fundo, subjaz a limitagio excessiva que adviria de uma permanente vinculacio das partes aos comportamentos processuais que porventura assumissem urn dia, corn prejufzo para a possibilidade de se poderem adaptar a evoluclo processual. Esta dificuldade surge tambem no Direito civil; cf. it!fra, § 28° .

(442) Esta figura 6 urn tanto residual, abrangendo hipoteses de chicana e de arrastamento injustificado do processo; STEng/JoNAs/SolumANN, ZP0 20 cit., Introduclo, n.° 254-257 (148, -149), ROSENBERG/SCHWAB, ZivProzR 13 cit., 375, ZEISS, Die arglistige Prozesspartei cit., 150, KONZEN, Rechtsverhaltnisse zwischen Prozessparteien cit., 270-273 e HENCREL, Prozessrecht and materielles Recht cit., 373-374. Cf HANS MLLE, Pjlicht zur redlichen Prozessfiihrung?, FS RrEse (1964), 279-294 (287).

(443) Suppressio 6 a expressao proposta para traduzir a Verwirkung, i. e, a situacio em que incorre a pessoa que, tendo suscitado noutra, por forca de urn nio-exercicio prolongado ,

a confianca de que a posicao em causa nio seria actuada, nao pode mais faze-lo, por imposicio da boa fe — cf. infra, § 30°. A sua aceitacio ern Process° 6 pacifica, levantando apenas davidas quando, atraves dela, se tente flexibilizar a presenca dos prazos rigidos, tfpicos do direito adjec-tivo. A problemitica real escondida pela suppressio — cf. infra, n.° 76 — nio aconselha tuna transposicio simples do Direito civil pars o Processo, neste domfnio.

§ 14.° A universalizacdo da boa fe; o irrealismo inetoctolqico

379

paid() alias, das discussoes que t444 ern animado, na doutrina civil, os

tipos concrctizadores da boa fe ( ). No Direito processual portugues, esta expresso atraves do

art. 456.°/1 CPC, embora mediante a cominacio dc sancOes pela

prCVatiCaciO, o dever de comportamento segundo a boa fe, no pro-cesso. Em torno deste preceito desenvolvem-se, em Portugal, uma casuistica corn cunho prOprio, muito rica. Merece referencia.

III. 0 Direito processual portugues desenvolveu uma nocio de ma f6 especifica, que so a nivel de grande abstraccao — corn uma utili-dade discutivel — pode ser reconduzida a urn conceito que integre a boa e ma fe civis. E importante sublinhar que csta especificidade adveio mais da aplicacio dela feita, do que dos textos legais implicados. 0 art. 264.°/2 CPC, corn a mesma numeracao no CPC/1939, dispae que as partes tern o dever de 0...conscientemente, nao formular pedidos ilegais, nao articular factos contrarios a verdade, nem requerer diligencias meramente dilatOrias». Este preceito deve ser aproximado ( 445) do art. 456.° /1 CPC, que determine a condenacio, da parte que 4te5n11a11itocigpaqduoe

de ma fe, em multa e em indemnizacio, definindo o art. 6.02

CPC,

correspondente ao 465.° CPC/1939, o litigante de ma fe como 4...

tiver deduzido pretensio ou oposicio cuja falta de fundamento no igno-rava., ,...° que tiver conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciaiso e a...0 que tiver feito do processo ou dos meios processuais urn use manifestamente reprovivel, corn o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a accio da justica ou de impedir a descoberta da verdadm Correspondendo ao termo de uma larga tradicio

'444,; Cf. isyia, § 28.° ss.. Outras aplicacoes da boa fe no Direito privado, tais como o

seu papel no dominio da constituicio de deveres autonomos, tem levantado resistencias na

sua transposic5o para o processo. STORNER, Die Aufklarungspfliela der Parteien des Zivilprozesses

cit., 87-92, vem dizer que o dever de informacties, a cargo das partes no processo, ficaria mail clam se fosse derivado, por analogia, de disposicOes legais diversas, cm vez de assentar na boa fe. Como se vera, a tentativa de assacar os institutos concretizados a partir da boa fe a diversas disposicoes legais, alargadas pela analogia, foi ji urn lugar-comum na Ciencia privada. Esse procedimento, que depara sempre coin as limitaciies prOprias da aplicacio analogica, nao permite, porem, tratar todos os casos que integram os institutos em causa, ao mesmo tempo que tolhe soluceies novas. Por outro lado, areas especificas do Direito processual civil tern provocado manifestacOes contririas I interferencia da boa fe, mesmo por parte de AA. que

sio favoriveis aplicacio processual da bona fides; assim, no tocante ao onus da prova, veja-se

a recusa de THEUERKAUF, Beweislast, Beweisfahrung und Teen und Glauben cit., 451.

(445) ALBERTO DOS REIS, Comeradrio, 3 (1948), 4 ss. (5), sublinha que as nes hipeteses

de ma fe, ent5o compreendidas no art. 465.° CPC /1939, correspondem aos tres deveres positiva-mente indicados no art. 264.°: o de nao formular pedidos ilegais, o de nao articular factos contrarios I verdade e o de di° requerer diligencias meramente dilatorias. Estes aspectos pode-

tram ser reconduzidos a urn dever de probidade e a outro de colaboraclo. Desse A., tambem

Cod. An. 1 3 (1948), 366.

380 Da escola histdrica ds tendencias actuais

§ 14." A universalizaccio da boa j'; o irrealismo metodologico 381

historica portuguesa (446), o art. 45642 CPC permite, no seu seio, dis_ tinguir os ch. dolo substancial do dolo processual; no dolo substancial, deduz-se pretensio ou oposicao cuja improcedencia nao poderia se r

desconhecida — dolo directo — ou altera-se a verdade dos factos ou omits-se urn elemento essential — dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se, dos meios c poderes processuais urn uso manifestamente repro-vivel (447). Mas, como se infere, alias, do uso, a tal propOsito, do termo «dolo*, tudo isto a entendido de modo restrito. PAULO CUNHA explicara que, apesar de a boa fe ser uma constante em today as relacties juridical, incluindo as processuais, ela nao deveria, nestas, ser entendida de modo ilimitado: a ideia de luta, subjacente, segundo P. CUNHA, a de processo, implicaria, de modo forcoso, a asticia, lancando maos de meios que, embora legais, nao correspondem ao ideal de justica; a boa fe processual deveria ser limitada, aproximando-se a ma fe do dolo (448).

(449 Remonta as Ordenacoes Afonsinas, em cujo Liv. V, tit. XXVIIII = Collage cit., 5, 109-110, se dispunha: riE se o juiz achar, que o accusador querellou maliciosamente,

ou que he revoltoso, ou useiro de fazer taes querellas e accusacooes, ainda que aja per hu cor-regua, e pague as custas, den-Ihe de mais algua pena arbitraria, qual merecerio. Cf. PAULO CUNHA, Simulaccio processual e anulacio do caso julgado (1935), 33-34 e A. FURTADO DOS SANTOS, A punk& dos litigantes de mei-fe no direito potrio, BMJ 4 (1948), 44-56 (53). Mais proximamente, DIAS FERREIRA di conta de que, apesar da lei de 12-Nov.-1822, da Constituinte, que acabara corn tal regra, grassou, durance o sec. xtx, a pratica de, no termo do processo, condenar em multa a pane vencida, ainda que de boa fe. A comissao que preparou o CPC/1876, por puras razoes financciras, manteve essa norma odiosa que, tendo passado na Camara dos Deputados, acabaria por ser revista na dos Pares — cf. Dins FERREIRA, Cddigo de Processo Civil anotado 1 (1887), 204. Nessa linha, o art. 121.° do CPC/1876 dispunha: aquando o juiz entender que a parte vencida litigou corn ma fe, impor-lhe-a na sentenca a multa de 10 por cento do valor em que decair•.

Quanto a pratica desse preceito — que nao suscitou o interesse dogmatic° pela boa fe processual, dado que ela apareceria evidence — informa D. FERREIRA, Cod. Pr. Civ. an., loc sup. cit., que rt...tao grande 6 a repugnincia dos tribunals em impor multa, mesmo aos liti-gantes de ma fe, que 6 preciso ser esta evidentissima para decretarem a condenacaoo. Explica-se, destc modo, tambern na Hist6ria, a tendencia que, desde o inicio, levou os tribunals a restrin-gir as potencialidades conferidas pelos textos legislativos, acabando por confeccionar urn conceito processual aut6nomo de boa e ma fe: sob o influx') da experiencia desagradivel ante-rior, que obrigava a condenar na niulta a parte que decaisse, mesmo de boa fe, as condenacoes em multa foram, no todo, evitadas, desde que essa possibilidade legal foi aberta.

(447) FURTADO DOS SANTOS, A puniciio dos litigantes de mei fe cit., 48; CECILIA DA SILVA DE SOUSA RIBEIRO, Do dolo ern geral e do dolo instrumental em especial no processo civil, ROA 9 (1948), 3-4, 83-113 (101) — esta A. indica al outras classificacoes do dolo processual a traduz o dolo substancial simplesmente como o que se reporta ao proprio merit° da causa e o instru-mental como o que se prende ao uso dos meios e poderes processuais; J. G. SA CARNEIRO, Mb fe, RT 62 (194.4), 194-197 (194 e 196), que foca as dificuldades de determinacio do dolo substancial.

(448) PAULO CUNHA, Simulafik processual cit., 21-24 C ALBERTO DOS REIS, Ma' fe no litigio, RIJ 85 (1953), 329-332 (332).

De facto, e independenternente do considerar-se o processo como uma luta entre as partes, concepgao que regride, o dispositivo apontado do CPC deve ser aplicado coin habilidade. Em rigor, qualquer parte vencida na produclo de prova acaba, afinal, por deduzir pedido ou oposicao nao fundamentaclas, sendo ainda de ter ern conta que so atraves da prova exterior pode o juiz convener-se de que a parte ignorava, ou

nao, a falaciosidade da sua posicao. Outrotanto sucede corn o ch. dolo instrumental; este, alias, so questionavelmente pode ser separado do substancial, uma vez que o abuso dos meios processuais pods, apenas, aferir-se pela sua improcedencia material (449). ALBERTO DOS REIS exige, assim, para a ma fe processual, nao a simples ausencia dc fundamentos que, por si, nao e, dolo, ou, sequer, o erro grosseiro ou a culpa. grave: o autor teria de fazer «...urn pedido a quc conscientemente, sabe nao ter

direito; e que o reu contradiga uma obrigacao que conscientemente sabe que deve cumprir*. A jurisprudencia do Supremo firmou, de modo claro, a ideia, dizendo que «SO a lide essencialmente clole3a, a nao meramente temeraria ou ousada, justifica a condenacao como litigante de ma fe, ( 49.

(449)• Ha, no entanto, exemplos de dolo instrumental onde, apesar da impossibilidade de abdicar da apreciacio de merit°, surge, em primeira linha, a idcia de uma actuacao processual abusiva. Assim, em STJ 30-Nov.-1948, BMJ 10 (1949), 225-228, condenou-se como litigants de ma fe o advogado que, em causa propria: agrava do saneador; reclama contra o questionario; recorre do despacho que the indeferiu essa reclamacio e de um outro que the desatendera certos requerimentos; deixa desertos esses recursos por nao pagar as custas; agrava da decisao de que estavam desertos; reclama da conta entretanto organizada, no que 6 desatendido; agrava desta alma decisio; subindo o process6 para apreciacio dos recursos e negado o seu provimento pela Adagio, argui o relatorio em causa de nulo, no que foi considerado improcedente; interp6e, daqui, urn confuso recurso para o Supremo, onde levanta questoes desconexas e sent indicar disposicoes violadas; pede, alem disto tudo, esclarecimentos de quase todos as despachos pro-feridos na 1.' instancia; e consegue, corn esta actuacio, que ulna accio proposta em Junho de 1943 estivesse, a data do oairdao do STJ — Novembro de 1948 — ainda na fase do questionario! Em STJ 12-NOv.-1948, BMJ 10 (1949), 218-219, condenou-se, tambenr, como

litigante de ma a, a parte quc reclama da conta, apresentando numeros corn ela coinci-dentes, s6 para protelar o andamento da causa, c, em STJ 1-Jul.-1949, BMJ 14 (1949), 167-168

(168), aquela que reclama e cuja reclamacio, ainda que atendida, de nada the aproveitaria. As

multas severas aplicadas pelo Supremo, nestes casos, redo surtido efeito pois nao se cncon-

tram situagOes similares recentes.

(45°) Quanto a formula do Supremo, cf. STJ 17-Nov.-1972, BMJ 221 (1972), 164-169

(167). Anteriormente, o conterldo da ma 16 processual nao era entendido corn tanta clareza;

assim, em STJ 24-Jun.-1949, BMJ 13 (1949), 291-294 (294), decidiu-se que t...a recorrente, corn o intuito de se locupletar a custa das recorridas, alegou factos que, por verdadeiros, bem sabia que rid° poderia provar c que fez, do presence, uso manifestamente reprovivel, corn

0 mesmo objectivo ilegal, para protelar a accio da justica. Estes dolos substancial e instrumental,

Previstos no art. 465.° CPC, merecem severa puniciot Como se ye, nao lia, aqui, uma deli-mitacao inequlvoca ao dolo, sendo certo que a impossibilidade de provar certos elementos se deveu, afinal — como em todos os litigios onde haja controversia quarto aos factos — a terem

382 Da escola historica as ten&ncias actuais

Na verdade, o esquema da chamada ma fe processual evoluiu, por obra da jurisprudencia, ja que a doutrina tern sido parca, passando o assunt o em branco nas obras gerais (451), no sentido que a levou a areas proxima s

da ilicitude como dolo; basta ver que o art. 457.° CPC, sobre o contetido da indemnizagio por ma fe, faz, dela, uma obrigacio de ressarcir os dados a parte lesada. Tern, contudo, urn cunho proprio, pois assenta no que ALBERTO nos REIS chamava de deveres de colaboracio e de probidad e, ainda que entendidos como de inobservincia relevante, apenas, no dolo e pressupee a violaca'o de interesses publicos, base da multa a que da, tambem, lugar.

Uma jurisprudencia recente tern vindo a tornar mais elastica e mais exigente, nalguns casos, a nocio de boa fe processual. 0 dever de ver-dade agudiza-se nas accties de estado, dados os valores em jogo: tem sido condenados por litigancia de ma fe os investigados que neguem ter tido relag -oes corn as macs dos investigandos,contra o que se venha a pro-var (452). Deste modo, sem ser redutivel a urn misto de ilicitude e de

sido provados factos contririos. Tambem em STJ 12-Jul-1949, BMJ 14 (1949), 212-216 (215),

se viu litigIncia de mi fe na alegacao de factos falsos; cf., ainda, STJ 7-Jan. 1949, BMJ 11 (1949), 116-120 (119-120).

Salva a evolucio a que, no texto, se faz, depois, referencia, a jurisprudenc -ia sobre liti-gancia de mi fe fixou-se em tcrmos bastante mais estritos. A formula de que ela co.responde a elide essencialmente dolosa, e nio meramente temeriria ou ousada* foi retornada noutras

decisaes; p. ex., STJ 13-Fev.-1979, BMJ 284 (1979), 176-185 (185). Noutro acordao, expli-

cou-se que a mi fe processual corresponde ao dolo e nio a culpa grave no pleito ou a lide teme-

riria - STJ 28-Out.-1975, BMJ 250 (1975), 150-158 (158). 0 tipo de materia que, najurispru-

dencia do Supremo, justifica tal assercao é, sempre, de teor gritante: p. ex., em STJ 5-Abr.-1979,

BMJ 286 (1979), 200-205 (205), viu-se mi f6 no alegar da realizacao de uma assembleia geral

inexistence, corn exibicao de acta ficticia e em STJ 24-Jul.-1979, BMJ 289 (1979), 267-270 (269), entendeu-se ser tclificil, sem dOvida, encontrar-se uma situacao t5o vincadamente de mi fe como a dos autos, [o italico a do texto do acordaol nos quais um senhorio movera tuna

accao de despejo contra uma pessoa, obtendo o competente mandato de despejo, verificando-se,

na execucao, que no local arrendado permanecia, na realidade, nao o R. no despejo, mas outra pessoa, autorizada, por escrito, pelo proprio senhorio.

(451) Registe-se, apenas, uma referenda incidental em MANUEL DE ANDRADE/ANTUNES VARELA, Nocaes eletnentares de Processo Civil, 1 (1963), 355-356, numa transcricao de CALA- MANDREL

(452) Em STJ 1-Fev.-1974, BMJ 234 (1974), 246-249 (248), condena-se como litigante de mi fe o investigado que negou as relacaes corn a mac da investiganda, que vieram a pro-

var-se, outrotanto sucedendo ens STJ 21-Fev.-1978, BMJ 274 (1978), 269-272 (271). No

mesmo sentido, pode apontar-se uma serie de ac. da RCb: RCb 16-Jan.-1979, 24-Jan.-1979 e os dois prizneiros sumariados no BMJ 284 (1979), 294 e o terceiro no BMJ 29 0

(1979), 476. Esta orientacio mais firme no campo das accoes de estado das pessoas foi alargada por STJ 21-Jun.-1968, BMJ 178 (1968), 176-177 (177), onde se teve por de mi fe a atitude

do R. que, numa separacao judicial de pessoas e bens, negou certas ofensas feitas a A., que vie-ram a provar-se. Porem, em STJ 14-Nov.-1978, BMJ 281 (1978), 219-221 (220), No se yin

§ 14.° A universalizacao da boa fe; a irrealismo metodologica 383

culpa - ao estilo da ,falta* francesa - de que tern, no entanto, elemen-tos, a ma fe processual constitui urn instituto autonomo, dotade de potencialidades que a jurisprudencia tem vindo a aprofundar. Na'o corresponde, tambem, a ma fe civil, nod -ao cujas implicacees, been mais complexas, se ira investigar.

IV. No Direito public° material, em particular no Direito

administrativo, a penetracio da boa fe pareceria, a uma primeira

consideracio, mais delicada. Contra ela, poderia ter jogado o enten-dimento liberal da no intervencio do Estado na Vida civil. Essa intervencio, a verificar-se, teria sempre natureza exceptional e care-ceria, caso a caso, de apoio expresso na lei. A ocorrencia de espacos vazios contrariaria o espirito do Direito ptiblico que nao admitiria lacunas (453 ). Na falta destas, nao quedaria campo de aplicaclo para a boa fe, tanto mais que, nos inicios da p6s-codificacio, ela foi, no pr6prio Direito privado, confinada a aspectos integrativos. Este

mi fe na R. que, era accao de divorcio, nega o adulterio que se vein a provar; nab obstante,

o Supremo nits alterou, aqui, a sua jurisprudencia: explica, no texto do acordao cit., corn

clareza, que o facto alegado nao relevava para o andamento da causa e que, sendo torpe, nio

tinha de ser confessado.

(453) KATHARINA SAMELI, Treu und Glauben int affendichen Recht / Einige grundsdtzliche

Betnerkungen anhand der Rechtsprechung des Schweizerischen Buttdesgerichts, SchJV 111 (1977),

289-390 (303-304) e MARCEL BAUMANN, Der Begriff von Treu und Glauben its offentlichen

Recht (1952) cit., 71. A aplicacao da boa fe no Direito pUblico material, maxime no Direito

administrativo, foi, ainda, contraditada pelas orientacoes que entenderam dtfender uma sepa-

racio rigida entre os Direitos privado e pablico. Assail, HARTMANN, Ueber die Zulassigkeit

gegenseitiger Aufrechnung Offentlichrechtlicher and privatrechtlicher Forderungen, VwA 25 (1917),

389-409. Este A. explica - idem, 392-393 - que, enquanto o Corpus luris Civilis e o ALR

incluiam, em conjunto, normas privadas e pUblicas, o BGB teria cstabelecido uma separacao

estrita; mesmo na hipOtese de lacuna - idem, 396-397 - nao seria licito recorret ao Direito

civil, havendo que a integrar a face das regras de Direito public°, except() havendo remisslo

para normas privadas; como fundamento para esta compartimentacio, HARTMANN - idem,

403 - apresenta os ch. «interesses publicos*, que nada teriam a ver coin os privados, que

preencheriam todo o Direito civil. Tambem OTTO MAYER, DeutVwR 3 (1924, reimpr. 1964)

1, § 115, II (115, 117 e 118), defende que as relacaes entre o Estado e os administrados se regem, apenas, por Direito public°, que a inadmissivel proceder, no seio deste, a operacoes de melhoria

ou de complementacao atraves da analogia corn disposicaes civis, que nib hi institutos comuns

privados e publicos e que nio hi nem institutos publicos coin efeitos civis nem institutos esta-

duais mistos. Tais entendimentos, que corresponderam a uma necessidade historica da auto--afirmacio do publicismo, nao colhem, embora tenham deixado sequelas na literatura posterior.

Normas privadas e ptiblicas entrelacam-se e modificam-se no espaco juridico, desmentindo qualquer isolamento de sectores. A nivel cientifico, o Direito privado s6 tern ganho corn os

contributos recebidos do publicismo. E tera, porventura, algo para dar.

384 Da ,escola histOrica as tendencias actuais

raciocinio nunca teria urn peso efectivo na teoria c na pratica juspu- blicisticas. Para tanto, terao contribuido a sua natureza fragmen- tiria e dificuldades praticamente inultrapassiveis de sistematizaci o

interim. Visto por esse prisma, o Direito public° material precisava , mais do que qualquer outro ramo juridico, de principios dotado s

de contetido, isto 6, de proposicoes que, sendo suficientemente elis-ticas para poder acudir a quaisquer falhas a nivel de fontes, fossem, em simultineo, dotadas de sentido bastante para evitar a queda na discricionariedade pura. A boa fe fez, assim, a sua aparicao n o

Direito public° material.

Na implantacao da boa fe no Direito pUblico, a possivel ensaiar uma reparticao de fundamentacoes em metajuridicas e positivistas. As primeiras, conduzidas por AA. como STAMMLER e SAUER, assentando a boa fe cm factores extra-positivos, como o Direito justo ou a ideia de justica, nao tem dificuldades em encontra-la, por essa ordem de ideias, tambem no Direito pUblico. As segundas tentam transpor a boa fe para o Direito pUblico, atraves de canais juspositivos. Recorrem, para tanto,

analogia, a mediagao de uma «Parte gerals do Direito ou a existencia de principios comuns a todos os ramos juridicos. Este Ultimo entendimento obteve, cedo, o apoio do Tribunal do Reich, embora em materia nao ligada it boa fe: em duas decisOes, de 2-Jun.-1916 e •15-Dez.-1916, respectiva-mente, decidiu-se que o § 618 BGB, que prescreve urn dever de assistencia a cargo do empregador, tinha, subjacente, urn principio desse teor, pelo qual o Estado ficaria adstrito a assistencia dos seus funcionarios ( 454).

0- impulso decisivo para a transplantacio da boa 16 no Direito ptiblico foi dada, mais uma vez, pela jurisprudencia. Apesar de algumas dccisoes negativas iniciais, que no deixariam sequelas (455), breve surgiu uma jurisprudencia convicta favorivel a boa fe.

A decisio do RG de 11-Dez.-1925, embora decidindo de modo negativo a pretensao apresentada e defendida no processo, corn base na boa f6, reconheceu a vigencia desta no Direito public°. Discutia-se ai a questa° posta pela pessoa que, tendo sido detida, fora solta mediante

(454) RG 2-Jun.-1916, LZ 1916, 1102 (n.° 18) e RG 15-Dez.-1916, LZ 1917, 740-742 (741-742) (n.° 4). A evolucao de que, no texto, se deu noticia breve, documenta-se, alem de nas obras referidas na nota anterior, em ADOLF SCHOLE, Treu und Glauben im deutschen Vw.R,

VwA 38 (1933), 399-436 c 39 (1934), 1-41 (404 ss., em especial), em ICAIU. HERMANN semen., Treu und Glauben im Zugleich ern Beitrag zur juristischen Methodenlehre (1935), 31 ss. ,

e em BAUMANN; Treu und Glauben im offR cit., 49 ss., akin de nas obras inf. cit.. 455) KARL HERMANN SCHMIDT, Treu und Glauben im VwR cit., 31-3289 .

§ 14.° A universalizaciio da boa fe; o irrealismo metodoliSgico 385

caucio. Realizado o julgamento, foi absolvida. Vem exigir que, na resti-tuicao da quantia entregue como garantia, se tivesse em conta a inflacio elevada que grassava, emit), na Alemanha, revalorizando-a. Adiante-se que, nessa altura, a possibilidade de, tendo em conta a depreciacio mone-taria, revalorizar urn debito pecuniario, fora ja admitida na jurisprudencia civil, corn base no principio da boa fe (456). 0 RG, focando nao haver, neste caso, uma relacio contratual com as suas exigencias de equilibrio entre as prestacOes, explicou que, embora o § 242 BGB tenha aplicacio no Direito pUblico, de nao deveria funcionar no caso vertente ( 457).

Em 2-Fev.-1926 discutia-se o seguinte. 0 Estado, por suspeita de especulacio indevida, apreende oito caixas de banha e vende-as, em termos legais. No processo competente, o ex-proprietario das caixas 6 absolvido. Alegando a inflagio, recusa a simples entrega do dinheiro realizado corn a venda, pretendendo que a quantia respectiva fosse revalorizada. 0 RG, contra as instancias, concede a revalorizaclo explicando que =ban o Estado, nos seus deveres de pagamento, esti submetido it boa fe, con-sagrada no § 242 BGB (458).

Verifica-se, dente modo, que a crise economica complexa que, no periodo de entre os dois conflitos mundiais, provocou um

aprofundar, no Direito privado, das potencialidades da boa fe, foi tuna base importante do seu enraizamento no Direito paha:. (459 ).

Data ainda dessa epoca, uma serie de monografias sobre a boa fe no Direito administrativo (460) . Essas monografias, em conjunto com varios estudos parcelares, revelam urn certo debate em torno da natureza da boa fe e das suas vias de concretizacIo, sem correspondencia no panorama oferecido pelo Direito processual. Desse debate, num certo efeito de retorno, adviriam mesmo contri-butor titeis para a boa fe civil.

Embora aquem das suas pretensties, cabe referir, em primeiro lugar, o livro de KARL HERMANN SCHMITT. SCHMITT quis integrar o movimento de «renovagio do Direito*, langado depois do advento do nacional-socia-

(454) A partir da celebre decisio do KG de 28-Nov.-1923, RGZ 107 (1924), 78-94

.°J.CV 1924, 38-43 = DJZ 1924, 58-65. Cf. infra, n.° 95.

(457) RG 11-Dez.-1925, RGZ 112 (1926), 221-226 (221-222 e 224-225).

(459) RG 2-Fev.-1926, RGZ 113 (1926), 19-25 (19, 20 e 24).

(459) Embora n-ao exclusiva nem, com probabilidade, necessaria. A boa fe teve outras

aplicac8es que n-ao se ligam, de modo directo, a temas econ6micos; assim, em RG 3-Abr.-1925,

RGZ 110 (1925), 385-388 (387), entendeu-se a boa fe como bitola de interpretacio dc declara-

Vies pfiblicas.

(460) Corn relevo para ADOLF ScHtYLE, K.H. SCHMITT, THEODOR PRAUN,W. JELLINEIC,

WriaNza KNIEZER t FERDINAND GOWA, ji citados ou a citar.

25

386 Da escola historica as tendencias actuais

lismo e que teve, entre outras caracteristicas, uma predileccao parti-cular pelo desenvolvimento das clausulas gerais (461). A contestagio ao positivismo pretendeu ser, tambem, urn dos fins condutores dessa linh a juspolitica (462). SCHMITT procede, assim, a uma critica de concepcOes juspositivas anteriores e, em especial, da jurisprudencia dos interesses de HECK, a quern acusa, corn razio alias, de nao indicar, em Ultima analise, urn criterio que, permitindo uma graduacio dos interesses em confront°, concitasse saidas materiais para os problemas. SCHMITT acrescenta que, para tanto, HECK teria de se apoiar numa mundivivencia, o que nao fez (463). Analisando a jurisprudencia e a literatura do seu tempo, Scmirrr expae que a pritica juridica da boa fe socobrava no empirismo (464). Por outro lado, a reconducio da boa fe a urn papel integrativo de lacunas, ao gosto, como se sabe, da metodologia heckiana e dos seus seguidores, representaria um desvio desnecessario e levaria a dispensar a boa fe (465). Quanto a ordenacio e agrupamento dos casos de manifestacio da boa fe, Sciparr acolhe, na pratica a proposta de GOWA (466): uma triparticao em tees campos: o da interpretacao da vontade, o da determinando da prestacio onde se integraria o caso importante da ch. clausula rebus sic stantibus — e outros, corn inclusao, al, de vectores relacionados corn a revogabilidade dos actos administrativos e corn a proteccao da con-fianca (467). SCHMITT, num decalque pouco conseguido da letra, ji eneio muito ultrapassada, do BGB, acaba por cair num positivismo mais intenso do que aquele que, por vezes corn interesse, criticara. Na parte afirmativa da sua construcio laboriosa, SCHMITT nada acrescenta de valido. Corn remissoes abundantes para o caso concreto, acaba por remeter o conte6do da boa fe para *os juizos de valor dos membros da comunidadm A boa fe no seria, assim, uma norma juridica; permitiria antes, na falta de normas ou nos casos em que estas nao correspondessem ao sentir popular, encon-trar saidas consentaneas corn o convencimento juridico do povo (468).

(4 9 BERND RUTHERS, Die unbegrenzte Auslegung / Zum Wandel der Privatrechtsordnung im Nationalsozialismus (1968), 145 ss. e 237 ss., p. ex.; existe uma 2.' ed. de 1973, sem alteracties; cita-se pela 1.'. Ainda sobre esta obra, cf. a rec. de EGON LORENZ, RTh 1 (1970), 242-247 (245).

(462) K. H. Sousirr, Treu und Glauber; cit., 12 ss. e 26 ss.. (463) K. H. Sormirr, Treu und Glauben cit., 18. HECK tentaria responder a essa critica

em Rechtserneuerung und Interessenjurisprudenz cit., e noutros locais, alegando, em especial, a neutralidade filostifica da sua orientacio.

(464) K.H. Scramix.r, Treu und Glauber; cit., 27. (465) K.H. ScruArr-r, Treu und Glauben cit., 37 e 39. (466) FERDINAND GOWA, Die Rechtsnorm von Treu und Glauber, im Verwaltungsrecht (1933),

em especial 24. (467) K.H. Scramirr, Treu und Glauben cit., 127-142. (468) K.H. Soimirr. Treu und Glauber, cit., 98 e 145-146, p. ex. Uma posicio semelhante

assumida por WERNER WEBER, Zum Grundsatz von Treu und Glauben im Verwaltungsrecht, ZAKDR 7 (1940), 223-224 (223), que fala em econsciencia juridica do sentimento popular sios.

§ 14.° A universalizociio da boa fe; o irrealismo inetodologico 387

Repare-se, que na apresentaglo da boa fé como correctivo, nao ha novidade; embora seja uma posicao aprazivel, para combater o juspo-sitivismo anterior, nao se indica, porem, urn criterio material para ope-rar, fazendo-se, apenas, uma remissao para o convencimento juridico do povo. A Hist6ria deinonstraria as prevers6es encobertas por tal esquema.

Embora menos significativas, merecem ainda mencio as monografias de PRAUN, de GOWA e de KNIEPER. PRAUN entende a boa fe como uma remissio para a equidade: ao contrario do Direito, que contemplaria as situagoes num nivel de generalidade, esta procuraria a justica e o equi-librio no caso concreto (469). No que respeita a suas vias de concretizaclo, PRAUN releva a revalorizacao, a boa fe nos contratos de Direito publico( 470),

no funcionalismo e nas relacoes puras de soberania, determinando, ai, a proibick de arbitrio e de falsidade, a consideragio pelos interesses dos cidadlos, a imputacIo a Administracio e a clausula rebus sic stantibus(471 ). GOWA, negando que a boa fe tenha urn conteado etico, utiliza-a para acentuar o factor da lealdade nas relagOes entre Administracio e adminis-trados (472). Triparte os tipos de aplicacio da boa fe pelos ambitos da interpretacio, da fixaga'o do dever de prestar e dos comportamentos sin-gulares (473); patente, pois, a letra do BGB. KNIEPER, muito apoiado em KONRAD SCHNEIDER, de quem retem, em especial, a afirmacio de que a boa fe exigiria uma ponderacio aparticlaria dos interesses em jogo, garante que a boa fe, nab tendo conte6do etico, a urn instituto comum aos Direitos privado e pUblico, comportando embora efeitos diferentes nos dois dominios respectivos (474). Quanto a aplicacOes concretas, refere a vin-culabilidade dos comportamentos anteriores — venire contra factum pro-prium — a revalorizacao, os deveres de assistencia aos funcionarios, a cargo do Estado e de lealdade, a cargo daqueles e a necessidade de nao contornar a lei (475).

(469) THEODOR PRAUN, Treu und Glauben in der Verwaltungsrechtsprechung (1933), 2-5, 10

e 54; a boa fe poderia preterir, segundo este A., o Direito positivo. (470) Neste campo, dado o patalelismo corn situacoes juridicas privadas, a utilizacio

da boa fe surge como facilitada. Cf., p. ex., as aplicacEies da boa fe no Direito public°, seriadas por A. SCHULE, Treu und Glauben cit., VwA 39, 1 ss..

(471) PRAUN, Treu und Glauben cit., 30-50.

(472) GOWA, Die Rechtsnorrn von Treu und Glauben cit., 60 e passim.

(473) GOWA, Die Rechtsnorm von Treu und Glauben cit., 24, 44 ss., 51 ss., 59 ss. e 75-76.

(474) WERNER KNIEPER, Treu und Glauben im Verwaltungsrecht (1933), 19, 20, 21, 24

e 29; o A., na linha, alias, de K. SCHNEIDER, enquadra a boa fe no campo da integracio

de lacunas. (475) KNIEPER, Treu und Glauber, cit., 55-57. Analise importante da boa fe no

Direito administrativo é, ainda, a de ADOLF SCHULE, Treu und Glauben deutschen Verwal-

tungsrecht cit.. Esse A., que procede a uma aproximacio da boa fe corn a Etica — ob. cit., 401,

404, 405 e 429, p. ex. — regista as dificuldades de transposicio para o Direito pdblico, dada a esPecificidade dos escopos prosseguidos por este, mas conclui pela possibilidade de principios

388 Da escola histdrica as tenderscias actuais § 14.° A universalizacio da boa fen; o irrealismo metodoldgico 389

A literatura publicistica sobre a boa fe sintetiza-se, no periodo de expansao dense instituto, numa recusa marcada de construct-5es metajuridicas — desconto feito a K.-H. SCHMITT, corn o seu recurso formal ao «convencimento do povo* — na admissibilidade de cor-rectivos as normas juspositivas, por forgo da boa fe, e numa aderencia marcada aos esquemas descritivos proporcionados pelo BGB (476). Surgem referencias I necessidade de adaptar a boa fe as realidades juspublicisticas, corn enfoque particular para os chamados interesses ptiblicos*. Haveria, daqui, uma limitagio a certas saidas

proporcionadas pela boa 1.6 no Direito civil (477).

V. A evolugio posterior determinaria uma quebra progressiva no nivel das referencias a boa fe, por parte da literatura publicistica geral. As mencoes a bona fides quedam-se por sectores ligados ao

comuns — ob. cit., 405-409. Indica, depois, regras informativas da aplicacio da boa fe no Direito administrativo, corn relevo para a sua incidencia na Administracio como nos particulares e para a sua inaplicabilidade numa side de COOS, como sejam a necessidade de forma esptcffica, a presenca de disposicoes estritas ou o estar em jogo uma fungi° essential de Administracio, e acaba por conduir pela natureza subsidhria da boa fe — ob. cit., 425-434. Numa parte espe-cial do seu estudo, Saitha alinha jurisprudencia da boa f6 que revele nesta, sucessivamente, uma regra de interpretacio, uma norms de cumprimento, uma sada para o impediment° indevido de verificacio de condicio, a proibitio de

venire contra faction proprium e a suppressio — ob. cit., 1 ss., 11 ss., 15 ss., 21 ss. e 32 ss..

(476) Aspectos mais distantes da letra do BGB nao ocuparam muito os AA. acima examinados. Nio obstante, efts nio deixaram de estar representados na literatura do Direito public°. Assim, W. JELLINEX, Treu und Glauben im VwR cit., 807, aponta o tema dos com-portamentos contraditorios, enquanto a suppressio mereceria o interesse, mais tarde, de RUDOLF FRANZ STICH - Die Verwirkung prozessualer Befugnisse im Verwaltungsstreitverfahren, DVBI 1956, 325-330 (327) e Die Verwirkung im Verwaltungsrecht 1 Eine kritische Bilanz der neueren Rechtsprechung, DVBI 1959, 234-239 (235) — que, na linha da sua intervenclo na materia — Vertrauensschutz im Verwaltungsrecht (1954), 26-27 e 56 ss., p. ex. — a reconduz a um prin-dpio de proteccio da confianca.

(477) Ponzscx-HEFFrPst, 4Treu und Glaubera und Sitten. im offentlichen Recht, DJZ 38 (1933), 739-743 (741) — ulna os limites que o interesse public° poe I aplicacio da boa f6 — HELLER, Nochmals: Unzulossige Rechtsausabung und iffentlich-rechtlithe Ausschluss-

fristen, NJW 1957, 1222-1223 — foca a necessidade de respeitar os prazos administrativos, contrariando pois a sua correctibilidade pela boa f6 — e KLtus TIPHE

, Gesetzmissigkeit der Verwaltung und Treu und Glauben, StuW 35 (1958), 737-752 (737 e 750, p. ex.) — sublinha o facto de a boa fe poder, no Direito public° e, em especial, no Direito fiscal, subverter a regra da conformidade legal da Administracio. Esta necessidade de adaptacio E acusada, tam-bent, pela jurisprudencia; em RG 9-Jul.-1935, RGZ 148 (1935), 266-270 (269), le-se, assim, que a aplicacao da boa fe ao Direito ptiblico E limitada pelos interesses publicos que at dominam.

Direito privado (478) e pelo Direito fiscal (479), proximo, em certos aspectos tradicionais, da cultura juridica obrigacional. A discussio sobre a natureza e a extensio da boa fe desapareceu das piginas da literatura publicistica.

A essa afirmaclo, deve exceptuar-se a doutrina publicistica suica. Motivado pela generalidade por que o art. 2 ZGB consagrou a boa fe ( 480), o espaco cultural helvetico mantem, no Direito ptiblico, referencias intensas a urn discurso sobre boa fe. Na sua monografia sobre a boa fe no Direito pliblico, BAUMANN entende esse instituto como radicado no Direito natural e, nas suas relaceies corn o Direito positivo, afirma que apenas ela pode assegurar a prossecucio dos objectivos deste ( 481). Em tal base, confere uma aplicagio lata a boa fe, corn poderes vinculantes perante o proprio legislador, corn capacidade para manobrar intra, praeter e contra legem e corn aplicagoes sugestivas no Direito administrativo, designada-mente no campo da proscricio do arbitno, do venire contra factum pro-prium, da revogagio de actos administrativos e do funcionalismo ( 482). Seduzido, de igual modo, por considerandos morais, GIACOMETTI afianga que a boa fe no a urn principio autonomo, mas urn «componente enco de cada proposigio juridica* ( 483); atribui-lhe, em consequencia,

(478) o caso, em particular, dos negeocios do Direito privado celebrados pelo sector public° estadual. Pos-se, depois da Guerra de 1939-45, o problema de saber se o Estado, face

boa fe, poderia alegar nulidades negociais por de provocadas, por falta de forma, por vfcio de representacio o6 por carencia de autorizacio. H.C. NIPPERDEY, Formmangel, Vertretungsmackt, f ehlende Genehmigung bei Rechtsgeschaften der offentlichen Hand und Treu und Glauben, JZ 1952, 577-581 (578-581), pronuncia-se pelo primado da boa fe, enquanto GiYNTHER Barrzxx, Treu und Glauben bei Privatrechtsgeschaften der offentlichen Hand, MDR 1953, 1-3 (3), impressionado pela necessidade de tutelar .interesses ptiblicont, opina em sentido contrario. FRANZ SCHOLZ, Treu

und Glauben bei Privatrechtsgeschaften der offentlichen Hand, NJW 1953, 961-963 (961 963), chama, a esse propesito, a atencio para a vigencia universal da boa fe no Direito public°, para o predorninio da moralidade sobre a lei e para a natureza grave da violacio da boa fe, conec-tada corn a confianca. WALTER HAMEL, Formen und Vertretungsmacht bei Rechtsgeschaften der offentlichen Hand, DVBI 1955, 796-800 (797 e 800), entende que os efeitos da boa fe sio menores perante corpos pilblicos do que face a outros sujeitos jurfdicos e que a Administracio silo poderia, em nome da boa fe, ficar adstrita a meras declarac5es orais, feitas por agentes seus, enquanto H. W. WILD, Treu und Glauben bei Privarechtsgeschaften der offentlichen Hand, NJW 1955, 693-696 (6%), corn larga casuistica, recomenda urn respeito particular pelas normas de competencia.

(479) Cf. infra, 392 ss.. (48°) Cf. !vim, Berner Komm. cit., Art. 2, n.° 72 ss. (246-247). (481) MARCEL BAUMANN, Der Begriff von Treu und Glauben im offentlichen Recht (1952)

cit., 24 ss., 27, 32 e 38. (482) BAUMANN, Der Begrff von Treu und Glauben cit. 80, 87, 102, 105 115, 118 ss.

e 141 ss.. (483) ZACCARIA GIACOMETTI, VwR 1 (1960), 220-221.

390 Da escola histdrica as tendencias actuais § 14.° A universalizafilo da boa fe; o irrealismo metodoldgico 391

urn papel de relevo em dominios semelhantes aos sublinhados por BAUMANN (484).

Estes entendimentos metajuridicos de boa fe no Direito pUblico sumo, corn recurso directo ao Direito natural ou a Etica, nao tem correspon-d8ncia nos seus congeneres alemies (485). Apesar das dificuldades metodo-16gicas e de concretizacao que se adivinham, agravadas pelos ambitos de aplicacio extensor que, para a boa fe, preconizam, eles deixam rastos na literatura posterior. SAMELI, corn uma certa ligacao a Moral, ve na boa fe urn mandamento da justica material, embora the atribua urn papel subsidiario (486). No tocante as suas aplicaceies, a A. suica distribui-as pelo abuso do direito e pela proteccao da confianga o que, como se depreende, the permite abarcar um leque alargado de figuragoes (487). PICOT, corn menos especulaciies quanto a natureza da boa fe, reparte as aplicacoes privadas do art. 2.° ZGB em cinco pontos: o principio da confianca, as regras de comportamento que derivam desse principio, a posicao do juiz perante o que actue corn demasiada habilidade, as conse-quencias das accoes levad2s a cabo sem interesse juridico, mas por chicana pura e o problema da clausula rebus sic stantibus (488). Depois de proceder a uma analise das consagragoes jurisprudenciais da boa fe pelos diversos ramos do Direito priblico, PICOT entende nao haver contradicao entre elas e os cinco pontos antes isolados (489).

Os desenvolvimentos da doutrina publicistica suica sao possibilitados, em parte, pela consagracao jurisprudencial da boa fe nessa arer juridica (490). Deve contudo reconhecer-se que, como desenvolvimento cientifico, o discurso sumo padece de insuficiencias decisivas. As concepcoes meta--juridicas da boa fe, corn remissOes globais e incolores para o Direito natural e a Etica, levantam, como sempre, mais problemas do que os resolvidos. Acresce que ess2s orientacoes, quando cotejadas corn o pen- samento de STAMMLER e de EIUCH KAUFMANN, sic) de um simplismo ingenuo. No campo da concretizacao da boa fe, corn ressalva para algumas

(484) GIACOMETTI, VwR cit., 1, 289-292. (485) Exceptue-se A. SCHULER, Treu und Glauben irn deutVwR cit., 401 e 404, p. ex.,

que admite uma proximidade entre a boa fe e a Etica. (486) SAMELI, Treu und Glauben im offentlichen Recht cit. (1977), 297, 307-309 e 313. (487) SAMELI, Treu and Glauben itn Offentlichen Recht cit. 315 ss. e 347 ss.. (488) FRANcOIS Prcor, La bonne foi en droit public, SchJV 111 (1977), 119-197 (136). (489) Picot La bonne foi en droit public cit. 142 ss. (177 ss.). (490) ERWIN Rucx, Treu und Glauben in der offentlichets Verwaltung, FS Simonius (1955),

341-350 (p. ex., 3423, onde se di conta que o SchwBG, depois de, no infcio, ter acolhido bem a boa fe no campo pUblico, comecou a admitir restricoes). Apontem-se, alem disso, SchwBG 10-Fev.-1928, BGE 54 I (1928), 188-207 (188 ss. e 204), onde, embora sem referir, de modo expresso, a boa fe, se admitiu a clausula rebus sic stantibus, como condicao ticita, numa qucsdo entre entidades publicas e SchwBG 13-Dez.-1940, BGE 64 I (1940), 299-316 (300, 312 e 313), onde se rejeitou, no entanto, a pressuposicao windscheidiana. Note-se o arcaismo das coloca-cOes postas pelas dual decisoes, ji no tempo em que foram encontradas.

considerac&s referentes a proteccio da confianca -- a qual, alem de nada ter a ver corn metajuridicismos, fora impulsionada, tambem na Suica, por AA. corn a craveira de SIMONIUS (491) — pouco ou nada se avanca. Este estado de coisas abre, em regra, as portas da equidade. A regra funcionou e, por elas, entrou a jurisprud8ncia (492).

Nas obras gerais de Direito administrativo, encontram-se, apenas, referencias escassas e desalinhadas a boa fe (493). Embora ela seja ignorada, faltam desenvolvimentos que tratem a sua natureza, as suas aplicac5es e as suas formulas de concretizacao. Tal situacao 6 surpreendente, pois traduz uma quebra efectiva perante os estudos realizados em tempos. Poderia ser inOqua se represen-tasse o confinar da boa fe ao privatismo: o Direito publico contra-por-lhe-ia, entao, outros principios prOprios. E como nao se vislumbra que a boa fe, no ambito alargado de aplicacao que the veio a ser conferido pela evolucao juridica registada nos tihimos cem anos, esteja indissociavelmente, ligada apenas a valores e representacifies juridico-privados — provam-no, alias, a literatura e a jurisprudencia

(491) AUGUST SIMONIUS, Ube► die Bedeutung des Vertrauensprinzips in der Vertragslehre,

FG BasljuristFak zum SchJT (1942), 235-282. (492) Cf. supra, 39049o,

(493) Assim, W. MEAIC, VwR (1970) 2, 1681, 1967 e 2105, WOLF MACHO., VwR 9 (1974) 1, 122 e 178 — fica-se, em ambos, sem saber se a boa fe é um principio do Direito admi-nistrativo e qual o seu papel —ErucissEN/MARTENs, Das Verwaltungshandeln, &immix/MAR-

TDB, A11gVwR 8 (1981), 121-300 (146-147) — mencionam a suppressio que imputam a boa fe. Esta orientacao imprecisa quanto a boa fe denotava-se ji em obras antigas; p. ex., W. jEL-

LINER, VwR3 (1931) 31 e 254 — refere a boa fe, conjuntamente corn outras realidades, para documentar que a indeterminacio conceptual rile, é discricionariedade livre e menciona o terra da clausula rebus sic stantibus, sem tomar posicio; FLEINER, Inst. d. deutVwR 8 cit., 5627 e 200 —

di a boa fe como exemplo de instituto susceptivel de aplicac -ao nos Direitos privado e public° e afirma, corn laconismo, que ela deve valer no Direito publico; MEvER/Dootow, VwR 4

(1913) 1, 16 — apesar de entender possfvel uma vigencia de institutos nos campos privado e pnblico, nao menciona a boa fe; HATSCHEK/KURTZIG, VwR7-8 (1931), 15 — assumem uma posi-

o semelhante a de MEYER /DOCHOW. As referencias mais extensas a boa fe, em obras gerais de Direito administrativo, sio as de FORSTHOFF e de LANDMANN/GIERS /PROKSCH. FORSTHOFF,

VWR/AT 8 (1961), 155-159, entende que, apesar de razes de autoridade, apontadas para a nao vigencia da boa fe, nao deverem ser desconhecidas, a consagracao dela, pela jurisprudenda, leva

sua admissio. Admitida a boa fe, F. pergunta pelo seu ambito; aponta, designadamente, as ch. inalegabilidades formais, a suppressio, que reconduz ao venire contra factum propriunl

e temas de interpretacao. LANDMANN/GIERS /PROKSCH, AllgVwR 4 (1969), 108-111, que tern a boa fe por uma das regras mais marcantes do Direito public°, conferem-lhe urn ambito de aplicacao amplo e discriminado. Nab obstante o cuidado relativo posto por estes AA. nas suas referencias, a incipiencia mantem-se.

392 Da escola histdrica as tendencias actuais

que consagram a boa fe no Direito priblico seria de esperar que, entre os tais principios de Direito publico

, figurasse algum em tudo semelhante a era. Na verdade, isso nao acontece, aparecendo varios institutos dependentes da boa fe - abuso do direito, suppressio, alteracio das circunstancias, certos deveres de comportament o e proteccio da confianca - tratados sem conexio entre si. A situaci o

agrava-se, ainda, porque a jurisprudencia administrativa decide com recurso a boa fe caindo, na falta de concretizacoes, no sentimento e na equidade (494). Tais falhas sic), porem, muito compensadas pela profundidade corn que o juspublicismo tern tratado outros principio s gerais - como o da igualdade - enriquecendo, desse modo a Cien- cia do Direito.

VI. A boa fe conhece uma implantacio significativa, tambem, no Direito fiscal (495). Como pano de fundo, deve ter-se presente que o Direito fiscal mantem ligacoes importantes corn o priva-tismo (496), que a jurisprudencia tem, no campo tributirio, urn relevo particular, dada a desconexao das leis e a sua antiguidade, bem como as exigencias constitucionais ( 481 e que a producIo jusmeto-dologica geral, elaborada em ligacao estreita corn a dogmatica civil,

(494) Assim, em BVwG 25-Jan.-1974, BVwGE 44 (1974), 294-302 (298-299), expli-cando-se que a boa fe nao se limita a formula da suppressio, considera-se que a atitude da pessoa que, tendo ou devendo ter conhecirnento de certo acto, pretenda que de nao the foi comuni-cado, contraria aquele principio e em BVwG 23-Mai.-1975, BVwGE 48 (1975), 247-251 (251), reafirma-se o instituto da suppressio e o principio geral da boa fe, apesar da falta de base legal.

(495) A nivel de obras gerais, d, p. ex., GIERSC:HMANN/ZoLLER, SteuerR 1 (1959), 129-130, KRUSE, SteuerR IAT 3 (1973), 69 e TIPRE, SteuerR 9 (1983), 550. (496) Foca-se, assim, a subordinacao, nos diversos campos, do Direito fiscal, aos prin-

dpios crais do Direito - W. Hiorrz, Die Auslegung von Steuergesetzen / Inhalt und Grenzen der wirtschaftlichen Betrachtungsweise (1958), 37, 43 e 44 e KRUSE, SteuerR/AT 3 cit., 68 - elabo-rados, tantas yens, no Direito civil, cuja funcao ordenadora a reconhecida - W. HARTZ, Wandlungen im Steuerrecht und im Steuerprozess unter dem Eiqfluss des Grundgesetzes, JurJb 3 (1962/63), 100-130 (106) e Steuerrecht und Gesamtrechtsordnung Gedanken fiber Erscheinungen und Entwicklungen im Steuerrecht heute, JurJb 10 (1969/70), 48-82 (53 ss.). Aspectos primordiais do Direito fiscal, como a obrigacao tributiria ou a tipicidade evocam instrumentos operados no Direito privado.

(497) Faurisucri BURCHARDI, Moglichkeiten der dritten Gewalt, zur Vereinfachung des Steuerrechts beizutragen, StuW 1981, 304-321 (308 e 311), que foca a complicacio e o aperfei-coamento advenientes da jurisprudencia fiscal; W. HARTZ, SteuerR und Gesamtrechtsordnung cit., 49 e 51 e Wandlungen im SteuerR cit., 103 ss., que sublinha o relevo da jurisprudencia face I insuficiencia da lei; CHRISTIAN HERDEN, Die Entwicklung des Steuerrechts, NJW 1983, 546--554 (54.6-547), corn indicacao breve da temitica constitutional-fiscal, sempre actuante.

§ 14.° A universalizacad da boa fe; o irrealismo metodoldgico 393

tern merecido, aos fiscalistas alemies, a maior atencio ( 498). Recor-

ae-se, ainda, que se aspiraciies profundas de justica irrompem,

continuamente, no Direito fiscal ( 499), ha af, em paralelo, necessidades prementes de seguranca e previsibilidade, que jogam contra os conceitos de determinacio dificil, como a boa fe ( 500 ).

Embora sob o condicionalismo geral favorivel apontado, foi a jurisprudencia que, corporizando exigencias praticas, acolheu a boa fe no dominio fiscal ( 509. Entre outros, a boa fe foi chamada para vedar, a Administracio, os comportamentos contraditOrios, de modo a nao incorrer em venire contra factum propriuni, corn o reflexo pratico importailte de vincular os servicos as promessas e informaceies

(498) Confronte-se, p. ex., o teor geral de HEINRICH BEISSE, Die wirtschaftliche Betrach-tungsweise bet der Auslegung der Steuergesetze in der neueren deutschen Rechtsprechung, StuW 1981, 1-14. 0 Direito fiscal pode, ainda, ser uma fonte de contributos gerais &els, como, p. ex., a possibilidade de, dos efeitos advenientes da aplicacao de norrnas fiscais, retirar conclu-sties de tipo experimental; cf. Wpm/saw VOGEL, Steuerrechtliche Theorien auf dem Priffstand des rechtswissenschaftlichen Experiments, RTh 9 (1978), 317-347.

(499) A doutrina fiscal chama mesmo a atencao para o relevo dos factores eticos no dominio tributirio; BOGEHOLZ, Mehr Ethos im Besteuerungsverfahren, FR 1958, 289-290 (290), sublinha o substracto &lc° da tributacao; GERHARD MArrERN, SteuerR und Steuermoral,

StuW 35 (1958), 257-258 (257) e Treu und Glauben im SteuerR / ein Beitrag zur Lehre von der

Besteuerungsmoral unter besonderer Beriicksichtigung der Rechtsprechung (1958), 1 ss. e 12 ss. e 26, que entende, de modo repetido, a boa fe fiscal como influx° da Moral; HEINRICH WILHELM

KRUSE, An der Grenzen von Tress und Glauben, StuW 35 (1958), 719-738 (730 ss.). (500) Este factor é, em regra, apontado como contrariando a boa fe, no £mbito fiscal.

HANS VOGEL, Treu und Glauben im Steuer- und Zollrecht (1960), 9, consegue, no entanto, retirar da boa fe urn papel favorivel a seguranca jut-Mica. Assim seri, de facto, na medida em que era proscreva os comportamentos contraditOrios.

(sot) Quanto aos efeitos mais significativos imputados, no sector tributirio, a boa fe, cf. HELMUT MULLER, Bindung an Auskiinfte und Zusagen der Finanzbeharden (1973), 48 e GERHARD

REffiliaaterH, Auskii4te und Zusagen im System des Verwaltungshandelns (1967), 125, p. ex.. Alguns exemplos de aplicacao da boa fe pela jurisprudencia fiscal recente: BFH 4-Nov.-1975, DB 1976, 803-804 (803), onde se entendeu que a boa fe visava contradiciks de comportamentos; BFH 5-Fev.-1980, DStR 1981, 91, onde se defendeu o mesmo entendimento no dominio alfandegirio, embora sem aplicacao quando o interessado, perante o qual a Administracio mudou de atitude, soubesse da ilegalidade do primeiro comportamento; FG Dusseldorf 16-Set.--1980, DStR. 1981, 625 (so o sumirio), onde se decidiu que, pela boa fe, a Administracio ficava vinculada por uma informacao dada, ainda que apenas verbal; BFH 25-Ag.-1981, HFR 1982, 3, onde se le que as disposicoes dos servicos fiscais devem ser entendidas segundo a boa fe; BFH 9-Mar.-1982, HFR 1982, 477-478, onde se declarou que uma modificacao na taxacio, ji efectuada, nab contraria a boa fe quando, antes da importacao, o obrigado omits 0 pedir informaciies.

394

Da escola histdrica as tendencias actuais

que tenham dado (502), para proibir a chicana ou para explicar a s alteracOes de circunstancias juridicamente relevantes (503 ). A aplicacao, no Direito fiscal, da boa fe, desamparada de estudos em profundidad

e, levantou dtividas de extensao: ela nao poderia, segundo alguin

a doutrina, originar deveres fiscais autOnomos (504), so se justificaria na falta de normas aplicaveis em directo (505) e nunca teria, de qualquer modo, urn campo ilimitado de aplicacao fiscal (506). Com estas res-triceies, a boa fe mantem-se, no sector fiscal, ganhando uma certa autonomia (507). Capaz de munir a justica fiscal corn um instrument o

provado ao servico de urn funcionamento melhor do Direito (508), desde que usada corn cautela, a boa fe tern ainda a vantagem de atrair, para o debate cientifico-tributario toda uma problematica que, sem

(502) Kiutt. E. BACHMAYR, Die Selbstbindung der Verwaltung im SteuerR, StuW 35 (1958), 561-584 (584), onde se diz que a Administracio nao pode, sem mais, modificar as as suas praxes; W. HARTZ, Wandlungen im SteuerR cit., 108; MArrERN, Treu und Glauben inn SteuerR cit., 25; GIERSCHMANNgoLLER, SteuerR 1 cit., 129; TWICE, SteuerR 9 cit., 550. 0 problema pode ser reduzido dogmaticamente coin a consideracio de que se trata de proteger a confianca — p. ex., REIFENRATH, Auskiinfte und Zusagen cit., 126 ss. — numa visa° ensaiada

muito pela publicistica — p. ex., jOHANNES MAINKA, Vertratienssrhutz im offentlichen Recht (1963) 1 ss.. A afirmacio de que a vedado, no Direito fiscal, o venire contra factum proprium

feita coin uma tranquilidade inexistente no Direito civil. Nao admira, pois, que se levan-tassem dificuldades.

(503) W. HARTZ, Die Auslegung von Steuergesetzen cit., 41-42. (504) H. W. KRUSE, An den Grenzen von Treu und Glauben cit., 734. (59 REIFENRATH, Auskiinfte und Zusagen cit., 111; TIPKE, Gesetzmassigkeit der Verwal-

tung and Teen und Glauben, StuW 35 (1958), 737-752 (742) e Bindung an Zusagen und Auskiinfte, StuW 39 (1962), 696-716 (715), onde se diz mesmo quc a boa fa so se poderia aplicar no campo da discricionariedade da Administiacio; H. VOGEL, Treu und Glauben im Steuer-und ZollR cit., 6.

(506) TIME, Gesetzmassigkeit der Verwaltung und Treu und Glauben cit., 750. (59 H. W. KRUSE, An den Grenzen von Treu and Glauben cit., 728, entende que a boa Fe fiscal d independente da formulacio do § 242 BGB; MATTERN, Treu und Glauben cit., 26, contesta, tambem, a aplicacao imediata dessa disposicao a questoes fiscais, no que e acompanhado por H. VOGEL, Treu und Glauben cit., 7.

(508) 0 interesse fiscal pela boa fe atingiu a propria literatura francesa atraves do livro de EMMANUEL KORNPROBST, La notion de bonne foi / application au droit fiscal franfais (1980) cit.. 0 A. considers a boa fe, sucessivamente, como uma crenca legitima do contribuinte, como tuna sua coerencia na administraclo dos bens e como a sua lealdade, no sentido primor-dial da ausencia de dolo — La notion de bonne foi cit., 65 ss., 141 ss. e 267 ss.. Constatam-se, pois, as limitacaes metodolOgicas da segunda sistematica, coin uma subjectivacao permanente da boa fe. Essa situacao é normal, dado o estidio em que a boa fe se encontra no espaco juridic° fiances e considerando a nab utilizacao

, por KORNPROBST, dos contributos de outros espacos.

§ 14.° 'A universalizaaTo da boa fe; o irrealistno metodoldgico 395

grande justificacio teOrica, tem escapado a ramos juridicos conside-

rados menores. Em Portugal, esse papel duplo seria muito acrescido.

VII. Esta expansio da boa fe fora do campo civil, complemen-

tada por uma difusao larga no Direito internacional ptiblico, cujas

especificidades de base levam a dispensar, aqui, uma analise, permite falar na sua universalizacao. Mais do que urn instituto privado, a boa fe exprime urn vector geral de todo o sistema juridic°.

A presenca da boa fe nos diversos ramos do Direito nao tern, a1, sido acompanhada por urn desenvolvimento doutrinario corres-pondente. As mencOes surgem esporadicas, sem preocupacOes siste-maticas e carentes, em geral, de referencias substanciais. Nao fora a sua consagracao jurisprudencial e a boa fe nada mais seria do que urn lugar comum linguistico. A incipiencia cientifica implica, no domi-nio da aplicacao, uma liberdade que, limitada apenas pelo prOprio caso concreto, desemboca, corn facilidade, na solucio de equidade.

Este estado de coisas, algo insOlito, recomenda o levantamento conclusivo da situacao, no Direito civil, da boa fe.

42. 0 progresso do Direito civil coin base na boa fe; o irrealismo metodologico

I. A expansio da boa fe em areas nao civic, corn inclusao do Direito public° material, avesso, por natureza, a aplicacao directa de vectores privados frontais, teve, como element° galvanizador, o seu vivo sucesso no Direito civil.

No BGB, a boa fe fora incluida corn o fito de apoiar, a nivel figurativo, o fenOmeno contratual. 0 estadio da Ciencia do Direito, aquando da codificacao alema, nao permitira urn aproveitamento da experiencia comercial anterior, como se viu. Nao obstante e nuns ritmo que deixou para tras a metodologia juridica, oscilante, de modo frenetic°, entre urn juspositivismo cerceador e urn metajuridicismo incontrolivel, desenvolveu-se, corn base na boa fe, toda uma jurisprudencia civil (509), que ultrapassou em muito as intenceies dos

codificadores.

(509) As formulas cm que este movimento se consubstancia seri° examinadas na parte institutional, a propOsito de cada uma das figuras em jogo. A «conjuntura aka* da boa fe no

A partir dessa jurisprudencia, sem outro apoio, em regra, d o que o adveniente das prOprias decisoes e, muitas vezes, contra utna

doutrina hostil, surgiram figuras como a culpa na format ao dos contratos, a violacao positiva do contrato, o exercicio inadmissivel de direitos — com ramificacoes largas e variadas — e a eficacia juridica da alteracao das circunstancias. Salvo o campo, tambern importante, no Direito alemao, dos progressos obtidos em materia delitual, corn recurso as clausulas respectivas, constantes do BGB ( 51 0), pode considerar-se que o avanco do civilismo, a nivel de solucoes concretas, durante o seculo presente, actuou corn recurso a boa fe. No Direito civil portugues, foi chamada a atencao (511) para o papel dessa nocao na maioria das inovaceies substanciais introduzidas pela codificacao de 1966.

A pressao doutrinaria, que determinou o radicar na doutrina e, depois, na lei portuguesas, da boa fe e das suas concretizacoes mais notiveis actuou, tambem, na codificacao italiana de 1942. Desse modo, contrastando corn uma consagracao magra no dominio do C6digo italiano de 1865, a boa fe irrompe, de subito, em cerca de setenta das disposicoes do novo c6digo ( 512). 0 sucesso de tal profusao foi limitado (513). Por urn lado, deve ter-se presente o vigor da cultura juridica italiana subjacente ao Codice de 1942 e que assentou mais

Direito civil era dado adquirido no inicio da decada de trinta — cf. o classic° de Junin WILHELM HEDEMANN, Die Flucht in die Generalklauseht Eine Gefahr far Recht und Stoat (1933), 12 — tendo lido batidos, logo no inicio, tendencias expansionistas dos bons costumes — idem, 6 ss.. As figuras por que ela se espraia, ainda hoje, estavam, anti°, ha muito consa-gradas na pratica judicial, carecendo, apenas, de debate doutrinirio. 0 fenOmeno assumiu tais proporcoes que cerca de quinze por cento das sentences do Reichsgericht eram, entio, reportadas a boa fe, alargando-se pelas diversas disciplinas privadas. No que toca aos Direitos Reais, refira-se VON DER TRENCK, Treu und Clauben beim dinglichen Anspruch und Vertrag, DJ 96 (1934), 1241-1243 (1243).

(510) Cf. ERNST VON CAEMMERER, Wandlungen des Deliksrechts, FS 100. DJT (1960), 1, 49-136 (52 ss.) e HERMANN WEITNAUER, Entwicklungslinien des Haftungsrechts, JurJb 4 (1963/64), 214-242; assinale-se que os progressos em causa foram exigidos pelo caricter fragmentario do Direito delitual alma° — cf. CANARIS, Schutzgesetze — Verkehrspflichten-Schutzeichten, FS Larenz/80. (1983), 27-110 (29)—nao sendo necessarios no Direito portugues, dado o ambito global do art. 483.°/1 e que, quando os progressos em causa se revelam insatisfat6rios, e ainda a boa fe que se recorre p. ex., vox CAEMMERER, Wandlungen cit., 56-58.

("I) Cf. supra, 27. (512) RODOLFO SACCO, La buona fede nella teoria dei fatti giuridici di diritto privato

(s/d, mas 1949), 12. (513) GIUSEPPE STOLFI, II principio di buonafede, RDComm 62 (1964), 163-176 (163 e 165).

num afinar da tradicao romanistica, do que num desenvolvimento das clausulas gerais, entio por cientificar. Criou-se, por essa via, urn lastro cuja continuidade, a rningua de uma aprendizagem, despoletavel, sem d6vida, por lei, mas dependente, na sua efectivagio, de outros factores, que a conjuntura nao• favoreceu ate a 6ltima, havia de perdurar. Por outro, e no que pode ser considerado urn reflexo, na pre:96a codificacao, dessa continuidade cultural, o legislador italiano de 1942 veio consignar a boa fe a pontos secundarios, deixando-a arredada das duas areas mais importantes, em termos de consequencias praticas: a do exercicio inadmis-sivel de posicoes juridicas — tabus° do direitos — e a da alteragao das circunstancias. No prOprio campo da actuacio das obrigagOes, a boa fe vem referida numa teia tal de outras clausulas gerais — o sdever de diligencia* e o •de correccao* — que a doutrina transalpina, como a seu tempo sera visto, se tem esgotado na tarefa de as distinguir, enquanto a jurisprudencia, insiste, serena, na aplicacao do vinculum iuris de cariz romanistico.

Nao pode negar-se urn certo influxo italiano na largueza que, ao C6digo portugues de 1966, mereceu a boa fe. Determinante seria, no entanto, o contributo juscultural alemio, captado em termos dire ctos.

II. Na actualidade, as zonas de crescimento do Direito civil, cujas novidades mais sensiveis se centram na doutrina da confianca, no controlo judicial dos contetidos contratuais e nos deveres de pro-teccio, mantem-se conectadas corn a boa fe.

As razoes deste desenvolvimento sao complexas. As alteracOes da realidade social, face ao envelhecimento prematuro do BGB — recorde-se que, ainda em projecto, ji the eram apontadas falhas no dominio social (514) — tea°, sem dtivida, contribuido para liber-tar a jurisprudencia, designadamente aquando da grande inflacao dos anos vinte. Mas se os dados econOmicos sao determinantes de inovac5es juridicas, des ao bastam para explicar as feicoes que, no concreto, elas venham a assumir; as proprias solucoes de fundo, perante os problemas, parecem conservar, na HistOria recente, uma panoplia de hipOteses, numa liberdade socio-cultural que a fatalidade econ6- mica nio destroi. A confirms-lo, surge o espaco jusdoutrinario

(51 ') P. ex. Orro VON &ma, Die soziale Aufgabe des Privatrechts (1889, reimpr. 1948),

23. Cf. MAX GUTZWILLER, Ober Gegenwart und Zukunft der Privatrechtswissenschaft (1927), 6, HEDEMANN, Das Wirtschaftsrecht cit., 411, WIEACKER, Pandektenwissenschaft und industrielle

Revolution (1966) = Industriegesellschaft und Privatrechtsordnung (1974), 55-78 (72-73), ERNST

WOLF, Dee Kampf gegen das BGB, FS G. Muller (1981), 863-882 (873 e 874) e HARALD

XINORRMANN, Die Antwort des bargerlichen Gesetzbuchs auf die soziale Frage, RTh 12 (1981), 209-225 (209).

396 Da escola histdrica as tendgncias actuais § 14.° A universaliza0o da boa fe; o irrealistno ntetodologico - 397

398

Da escola hisdrica its tenclencias actuais

napoleOnico que, em conjunturas similares, nao buscou, numa juris- prudencia de boa fe, as saidas que uma codificacao, mais velha, nu m seculo, do que a alema, the negava.

A andlise histOrico-critica, ji realizada, permite, gracas a teoria historica dos sistemas, al desenvolvida, uma explicacao. A chave do enigma reside numa Ciencia do Direito assente numa sistemitic

a de tipo integrado, capaz de reagir sobre dados culturais perifericos ,

eles prOprios cataliziveis por rupturas econOmico-sociais, recondu- zindo-as, em termos particulares, ao riticleo dogindtico essencial do sistema.

Dispondo, atraves da tradicao de estudo e meditacao do Direito romano actual, de um modo, no centralizado, de pensar o juridic°, a actividade judicial admitia a busca de saidas indedutiveis do micleo sistemdtico. Por certo, as solucoes preconizadas inseriam-se num determinado contexto juscultural, traduzindo, em termos mais ou menos distantes, uma reproducao do sistema. Mas tudo isso enca-deou-se corn as criacoes concretas a nivel de mero pri-entendimento. Fora as amarras advenientes da insercao sOcio-cientffica do interprete--aplicador e a intuicao prefigurante de um consenso final determinado, considerado Optimo, o sistema recebeu, mais do que impulsionou, uma aplicacao da boa fe que, ate hoje, nem foi capaz de justificar cabalmente.

III. Durante a decada de trinta houve, a nivel de intervencao juspolitica, urn certo ambiente favorivel as clausulas gerais. Na origem, pode apontar-se o metajuridicismo stammleriano cujos prolongamentos, substancializados, desde cedo, por RADBRUCH, corn os seus apelos a «eticizacao* do Direito

(515) e pelo social--romantismo da Constituicao de Weimar, pressupunham flexibi-lidade na aplicacao do Direito. A linha de KANTOROWICZ, Fucns e IsAv, a desembocar na critica da subsuncao e no voluntarismo pode-ria, em teoria, ter reforcado essa tendencia. Relevante, ainda, ter sido a linguagem heckiana, forte, apesar das suas carencias materiais, na critica ao juiz-automato. E tudo isto foi coroado pelos juristas — e muitos foram — que, alinhando pelas bitolas do nacional-socia-lismo, vieram, nas clausulas gerais, a procurar apoios para a nova

(515) GUSTAV RADBRUCH, Der Mensch im Recht (1927), 14; cf. GUTZWILLER, Ober Gegen-wart und Zukunft der Privatrechtswissenschaft cit., 9 e 11.

§- 14.° A universalizapio da boa fe; o irrealismo metodolOgico 399

ideologia (516), necessitada de uma codificacao anti-romanistica que

os sucessos histOricos subsequentes acabariam por nao possibilitar. juiz deveria dispor de urn maior poder, como modo de dar

conteado ao ahtersprinzip ; o Fiihrer, imagem da ideia concreta

de Direito e de Estado e guarda maxim° da Constituicao, exprimia,

dizia-se, o sentir juridico do espirito do povo — a velha locuclo savignyana foi redescoberta, mas agora corn urn sentido reificado —

a que os tribunais dariam voz (5").

Estes factores no intervieram na expansao da boa fe. Aquando

do advento nacional-socialista, os institutos mais significativos em

que esse conceito se manifesta estavam, ha muito, consagrados pela jurisprudencia. Acresce que, num fenomeno comum em sociedades totalitarias, enquadradas em partidos de massas, assentes na propa-ganda, surge todo urn desenvolvimento linguistico sem expresso no real que, muitas vezes, visa mascarar. Se, como informa hoje WIEACKER, foi possivel, no Direito privado, ainda que a troco de cedencias linguisticas, preservar o essencial, ha que ter presente as limitacoes de uma justica dobrada, corn facilidade, por esquemas inconcebiveis de composicao extra-judicial e que, quando necessario, foi directamente inflectida no sentido pretendido pelo poder politico

absoluto (518

). Pelo contrario: a fraseologia nacional-socialista s6 poderia, terminado o segundo conflito mundial, ter dificultado a expansao da boa fe e das suas soluciies, o que, pela sua indepen-dencia real dessa ideologia, na'o sucedeu.

0 Direito livre documenta-se, na verdade, na boa fe. Pelos factores apontados, nao 6 de admitir urn influxo seu no desenvolvi-

(516) LUBEN DIILOW, Die Neugestaltung des Deutschen Bargerlichen Rechts (1937), 44 ss.

(49), WIEACKER, Richtermacht und privates Rechtsverhaltnis cit., 11, 11-12, 15 e 18, ERNST

WOLF, Der Kampf gegen das BGB cit., 879 e MICHEL &mums, Die Rechtsordnung des

NS-Staates, JuS 1982, 645-651 (649).

(517) Estas construct-5es, hoje estranhas, podem confrontar-se, p. ex., em LARENZ,

Deutsche Reclaserneuerung und Rechtsphilosophie cit., 31 ss., Rechts- und Staatsphilosophie der

Gegenwart2 cit., 139 ss. e Ober Gegenstand und Methode des volkischen Rechtsdenkens cit., 23 ss.

(25), onde se chega a preconizar a atribuicao, ao juiz, do poder de corrigir a lei expressa, em

obediencia a factores racicos, e em Dixow Die Neugestaltung des Deutschen Burgerlichen Rechts

cit., 32. Cf., tambem JULIUS BINDER, Der deutsche Volksstaat (1934), maxime 34-35 e System

der Rechtsphilosophie (1937) — apresentado como 2.' ed. da Philosophic des Rechts cit., da

qual diverge muito, porem, no contend° e na forma, constituindo uma obra autonoma — 3617 ,

onde se nega o conceito abstract° de pessoa.

(515) No dominio criminal, os tribunais tornaram-se responsiveis por dezenas de milha-

res de condenacOes a 'none por crimes politicos e delitos de opitilio. A cifra e pouco

significativa, face a eventos extra-judiciais conhecidos.

400

Da escola historica cis tendencias actuais

mento da nocao. Ha construcoes, razoiveis c plausiveis a reflexao, que granjeiam a animosidade dos sew destinatirios; nesse sentido, sac) decisivos factores de disfuncionalidade externa, claros na prOpria locucao «Direito livre», cuja inoquidade, contra o que poderia parecer para os pensadores integrados na heranca heckiana, a contraditada. Num prisma sinepico, o Direito livre, a no ser considerado urn incidente metodolOgico, foi contraproducente: nenhum juiz seria capaz, mesmo a nivel de pre-entendimento, de prescindir de represen-tacoes sistematico-cientificas para, apoiando-se nas coloridas tiradas fuchsianas, decidir, contra legern, em nome da boa fe.

De algum relevo tera lido a jurisprudencia dos interesses ( 519).

A ela ficou a dever-se a generalizacao da ideia de lacuna e a desele-gancia de um juiz-autOmato, dedicado, em exclusivo, a uma subsuncao mecanica. Corn a sua carga positivistica, empenhada, em profun-didade, em combater o influxo de factores estranhos no dominio juridico, a jurisprudencia dos interesses nao veiculou elementos materiais susceptiveis de, a boa fe, apontar rumor materiais de concre-tizacao. Deve-se-lhe, to so, urn alargamento das figuracoes manie-tadas pelo conceptualismo estrito anterior e uma linguagem na qual uma certa liberdade de movimentacao decisOria foi possivel. Os factores jusculturais que provocaram o desenvolvimento, na terceira sistematica, da boa fe, deixam adivinhar que, mesmo na ausencia dos escritos heckianos, o fenOmeno teria conhecido exit°.

IV. As metodologias, oficiais ou desmarcadas, que, desde o inicio do seculo, acompanharam, no tempo, o desenvolver do Direito civil, corn base na boa fe, nao esti°, para corn esse evento, numa relacao de causalidade. 0 neo-kantismo stammleriano e as suas superacoes, seja pela via do neo-hegelianismo de BINDER, E. KAUF-MANN e LARENZ, corn a subsequente preversio nacional-socialista, seja atraves das materializacoes sudocidentais alemas, nao ditaram, a mingua de concretizacoes substantivas, uma evolucao processada sob o signo da decisao efectiva. Tao pouco o fez o juspositivismo inicial, contrario a boa fe e desautorizado pelos factos, enquanto as doutrinas psicolOgica e sociolOgica, entregues mais a leituras da

(519) LARENZ, MethL 4 cit., 63-64 e REIMER SCHMIDT, Die Bedeutung der Entwicklung von Wirtschaft and Wirtschaftsrecht fur das klassische Privatrecht / Eine Skizze, FS Nipperdey I (1965), 687-399 (688). Referindo, em geral, a pouca inliuencia da discussio metodo1O-gica na aplicacio actual, vide PAWLOWSKI, Gedanken zur Methode der Gesetzesauslegung, AcP 160 (1961), 209-237 (210-211).

§ 14.° A universalizacilo da boa fe; o irrealismo metodologico 401

realidade do que a sua assunclo, em termos de Ciencia do Direito, passavam ao largo do § 242 BGB. Mais considerada, a juris-

prudencia dos interesses e suas sequelas compatibilizou-se corn uma fenomenologia que, em muito, a ultrapassou desde o inicio; carente de bitolas materiais, a doutrina de HECK deixou, a nivel de lingua-

gem, urn certo espaco para o crescer da boa fe. No entanto, nao o

amparou. Nem podia faze-lo. De STAMMLER a SAUER e de E. KAUFMANN a LARENz — uma

vez que, para ji, nao se cura dos desenvolvimentos metodolOgicos mais recentes — houve contributos importantes para a analise e o entender da boa fe. A todos se deve recorrer. A progressio da boa fe nao se lhes deve, contudo: esta ocorreu, de facto, em termos de Ciencia Juridica, mas sem conexao com niveis metodolOgicos.

Nao actuante, em prisma genetic°, sobre a boa fe, a metodologia to pouco o foi, a nivel explicativo. No Direito privado, o domino da boa fe e das suas aplicacoes constituiria, para a especulacao jusfilo-sOfica, urn terreno de eleicao onde todas as esperancas sac) possiveis. Descontadas as linhas escassas, de que acima foi dada conta, as orientacoes diversas nao recorrem a boa fe para comprovar as suas teses ou, sequer, para se documentarem.

A conclusIo a segura: desde HECK, e corn as limitacoes apontadas, ao ha, por parte da metodologia juridica, uma influencia constativel na Ciencia do Direito privado e, dal, na interpretacao-aplicacao: a boa fe constitui urn ponto sensivel para tal diagnostic°. As diversas construcoes jusfilosOficas nao curam, por outro lado, de explicar, em termos capazes, o crescimento do Direito civil corn base na boa fe, nem a sua expansao nas areas juridicas restantes.

E o irrealismo metodolOgico.

V. Urn fenOmeno corn a importancia do irrealismo metod °logic° tern passado desapercebido nas Teoria e Ciencia do Direito. Trata-se de urn dado relevante a comprovar a ciao em que ele assenta.

As causas sac. complexas. A Ciencia do Direito, na medida em que o seja, lida corn questoes concretas e corn a sua solucao efectiva; a ciao kantiana entre ser o dever-ser retira-lhe, sem que disco os juristas se apercebam, urn amparo mais abstracto, acantonado no segundo dos termos referidos, contra o primeiro, onde a interpreta- cao-aplicaca° se abriga. A auto-consciencia metodolOgica, presente na heranca de SAVIGNY, encerrou os juristas num campo funcional possivel, dotado de instrumentacao bastante para, sem contributos de

28

402 Da escola histdrica as tendencias actuais

areas diversas, operar e evoluir. A cristalizacao na jurisprudenci a dos conceitos e a tendencia histOrica normal para, ao transcende-la,

tomar posicaes opostas e nao, em substancia, diferentes, corn queda verbal em voluntarismos varios, mais acentuaram a divergencia entre a Ciencia viva e os considerandos metodolOgicos. Quando STAMMIER empreendeu uma actuacao, fe-lo num nivel e numa linguagem que em pouco tocava ja os juristas. A sua continuacao, pela critica neo--hegeliana, agravou o problema: agora, a aprendizagem juridica comum trio basta ji para aceder ao discurso metodolOgico: reservado a iniciados, este exige uma aprendizagem especifica.

A separacio entre ciencias aplicadas e teoricas, a nivel cultural, corresponde a urn dado da actualidade, perceptivel na politica e na prOpria Moral. No dominio juridico, sendo geral, adquiriu, no espaco da terceira sistematica e da evolucao que se the seguiu, uma feicao particular: enquanto em Franca, no pantano da exegese, a Ciencia do Direito progredia em pouco, no espaco alemao, dis-pondo de urn sistema integrado, ela avaacou, contribuindo, por si, para a divergencia desencadeada pelos pianos jusmetodolOgicos.

0 irrealismo metodolOgico retira a Teoria do Direito a eficacia que, desde o jusracionalismo, ela nao parou de perder. Cerceia, tambem, as possibilidades de captar o significado da boa fe, o que é dizer, do progresso real recente do Direito civil. A falta de conexaes histOricas agrava o problema: a raiz romanistica da bona fides e o impulso por ela recebido na jurisprudencia comercial do seculo xxx sac. ignorados. Mas porque a boa fe mantem-se, a nivel juscientffico, como fonte efectiva de solucoes novas, a impossibilidade cientifica de captar o fenomeno, num retrocesso gnoseolOgico surpreendente, ocorreu a mitificacao do conceito. Na falta de um captar da nocio, procedeu-se ao seu arvorar linguistico em principio todo poderoso, em regra fundamental que tudo domina, em teor etico-social do Direito ou em cerne imanente de limitacoes internal de posicaes juridicas (520 ). Esta linguagem grandiloquente,

(520) Urn levantamento destes enunciados grandiosos — que se pode documentar, p. ex., corn ENNECCERUS /LEHMANN, SChU/d/2 15 (1958), 18, corn PALANDT/HEINRICHS, BGB42 (1983), § 242, 1, a), aa) (206) ou corn W. WEBER, Treu u. Glauben cit., A 1 (1-2), constituindo urn autentico lugar comum — confronta-se em ERNST WOLF, SchuldR/AT cit., 290-291 e aTreu and Glauber'', 4Treue* and rTiirsorges in: Arbeitsverlailtnis, DB 1971, 1863-1868 (1864-1865), que os considera de conterldo impossivel. A mitificacio da boa he fora ji denunciada por CARCATERRA, Bonae fidei iudicia cit., 158 ss., face is consideracoes comuns sobre a nocio, no Direito romano.

§ 14.° A universalizacio da boa fe; o irrealismo tnetodologico 403

pitoresca, que domina a literatura e os espiritos dos juristas quando

da boa fe se trate é, quanto ao contetido, profundamente vazia. A sua prOpria descaracteriza-o de tal modo que impossi-bilita o retirar de quaisquer solucoes reais. As remissoes para ordens

ou sentimentos extra-juridicos mais acentuam o mito, rematado pela ideia comum, de que, por inomeaveis implicacaes jusfilos6ficas, a boa

fe, de aplicacoes mukiplas e incomportiveis, se torna de estudo dificil ou impossivel. E entretanto, num remate do divOrcio, os tribunais progridem, encontrando solucoes bem reais, corn base na boa fe. Destas ha que partir para transcender o irrealismo metodolOgico, cientificar, a nivel superior, as conquistas mais recentes do Direito civil e pew termo ao anacronismo da mitificacao da boa fe.

§ 24.° 0 dever de actuar segundo a boa fe' 633

SEccAo III

A BOA FE COMO REGRA DE CONDUTA

§ 24.° 0 DEVER DE ACTUAR SEGUNDO A BOA FE

61. Reduc5es dogmaticas; 'ambito

I. 0 comportamento das pessoas deve respeitar urn conjunto de deveres reconduzidos, num prisma juspositivo e numa Optica histOrico-cultural, a uma regra de actuacao de boa fe. As incursoes anteriores permitiram detectar esses deveres — e logo o aflorar dessa regra — no periodo pre-negocial, na constancia de contratos vAlidos, em situacoes de nulidades contratuais e na fase posterior a a extinclo de obrigagoes.

Tudo isto operou sem nenhuma deducao a partir da boa fe ou de quaisquer outros principios centrais: os deveres em causa impu-seram-se merce de problemas sectoriais ou de teorias parcelares que, neles, encontram uma base de subsistencia e de expansao. A boa fe veio a ser utilizada, de modo repetido, para fundamentar, no Direito positivo, as diversas solucoes propugnadas: a sua consagracao legal, a sua carga histOrico-cultural e a sua disponibilidade davam-lhe, para tanto, as qualidades requeridas. A existencia efectiva de consa-gracoes reais, traduzida na aplicacao dos aludidos deveres dispersos, faculta uma possibilidade histOrica impar de penetrar no contetido material do vago dever de agir segundo a boa fe.

0 conhecimento dos meandros materiais acolhidos a boa fe, como regra de conduta, pressupoem uma apreensio juridica do fen6- meno, o que é dizer, a sua reducao dogmatica. Sob era, perfilam-se problemas ligados a possibilidade de tratamento unitario do tema, a genese dos deveres em causa, ao seu regime c a sua extensa.o.

II. A necessidade de, aos deveres acessOrios, manifestados nos

diversos quadrantes, ser dado um tratamento unitirio foi despo-

letada por CANARIS, a prop6sito dos deveres de proteccio. Viu -se

como esses deveres foram judicialmcnte consagrados, no campo

da culpa in contrahendo e no da violacao positiva do contrato (356).

medida quc se deu a sua consagracio, os deveres de proteccao

in contraliendo assumirarn natureza legal: fundados na boa fe, nao havia qualqucr contrato que, sem ficcao, os pudesse originar. Os deveres de proteccao acessOrios, pelo contririo, podiam, corn como-didade, ser imputados ao pr6prio contrato que acompanhassem.

Ate aqui, a diversidacle dogmitica nao suscitava mais do que uma

assimetria de construclo; no primeiro caso, a violacao levaria

responsabilidade obrigacional extra-contratual, ao passo que no segundo, o caso stria de responsabilidade contratual pura: mas em ambos, o regime stria o mesmo, uma vez quc os Cddigos modernos tratam, dc modo indiferenciado, a responsabilidade obrigacional, independentemente de saber se, na sua fonte, esti a inobservancia

de obrigacOes contratuais ou legais ( 357 ).

A evolucao posterior demonstaria, porem, a nao inoquidade

da variacao dogmatica initial. A separacao sistemitica dos deveres

de - proteccao in contraliendo c acessorios levou, noutros pontos que nao

os tratados, de forma expressa, pela lei, a diversidades de regime. Assim sucedeu corn a responsabilidade do representante ou do auxiliar. Pelas regras gerais, no dominio obrigacional, os actos praticados por representante ou auxiliar repercutem-se, para todos os efeitos, na esfera juridica do representado ou auxiliado (355 ).

Na culpa in contraliendo, esse esquema levantou chividas. A dou-

trina que, desde JHERING, se habituara a tratar a responsabilidade dela emergente como contratual, entendia que, pelos actos pre-negociais praticados pelo representante, respondia o representado; a jurispru-dencia do RG veio, contudo, nessas condicoes, a admitir uma res-

ponsabilidade autdnoma do representante ( 359). A responsabilidade

(336) Veja-se a jurisprudencia referida supra, 547 ss. e 604, respectivamente.

(357)No COdigo portugues jogs o art. 798.°: «O devedor que falta culposamente ao

cumprimento da obrigacio torna-se responsivel...”.

(358)No Codigo portugues, funcionaram as regras dos arts. 258.° e 800.°/1.; no BGB

os s5 164 e 278. (359) K. M1ELKE,

Die Voraussetzungen der Hartung des reeltsgeschaftlich bestellten Stellver-

freers Jiir culpa in contraliendo cit., 76-77, que sublinha mesmo a forte oposicSo da doutrina,

a tal orientacio; T. STICHT, Zur Hafting des Vertretenen and Vcrrreters tins Verschuiden bei

634 A boa fe coma regra de conduta

autOnoma deste ocorria, na justificacao das decisoes que, na decade de vinte, primeiro a reconheceram, quando existisse urn interesse

prOprio pessoal na conclusao do contrato e logo na conducao d as respectivas negociacoes (360) . Esta orientac3o manteve-se na juris-prudencia do BGH (361 ). BALLERSTEDT, em conhecida investiga cao

sobre o tema, tentou urn aprofundamento da distribuicao das respon_ sabilidades entre o representante e o representado; fundamentando a culpa in contrahendo na situacao de confianca gerada, BALLERSTEDT distingue varias situacoes tipicas, nas quais a entrega confiante se faria para corn o representante, por se ignorar a situacao real deste, ou para corn o representado; conforme os casos, assim a responsa-bilidade (362). Corn estas achegas doutrinirias, a responsabilidad e prOpria do representante, no dominio da culpa in contrahendo, 6 hoje reconhecida (363).

Esta evolucao, particularmente atenta as necessidades da vida e as final exigencias do sistema juridico, possibilitada pela inexistencia, no dominio da culpa in contrahendo, de soluceies legais dispensadoras de aprofundamentos, nao se deu a propOsito da violacao positiva do contrato. A incongruencia nao tardaria.

Em BGH 10-Jun.-1964, discutia-se o que se segue. A A. queria vender urn predio contra uma renda. Contactou urn agente imobiliirio que se esforgou por encontrar interessados na compra; suspendeu, porem, o trabalho. Este viria a ser ietomado por urn irmio dcsse agente, clue' dirigia uma filial da agenda em causa, e que se podia considerar auxiliar; estava, alern disso, interessado, pessoalmente, no negOcio. Encontrou uma compradora e promoveu o negocio so que, por razoes no determinadas,

Vertragsschluss sowie des Erfiillungsgehilfen aus positiver Vertragsverletzung cit., 73; LARENZt A11gT3 cit., 557 e SchuldRIAT13 cit., 109-110.

(36°) K. MinucE, Cir. cit., 78; T. SI1CHT, Cic cit., 73; HILDEBRANDT, Erklarungshaftullg cit., 136. Esta orientacao foi assumida, pela primeira, vez por RG 1-Mar.-1928, JW 1928, 1285-1286 (1286) = Recht 1928, n.° 1035 = RGZ 120 (1928), 249-256 (253), apoiada na boa fe. Mereceu, de imediato, uma an. desfavorivel de HEINRICH STOLL, JW 1928, 1285-1286, n.° 3, que explica nao poder, uma pessoa, ser, em simultineo, representante e pane.

(361) BGH 27-Jul.-1963, NJW 1963, 2166-2168 (2167), p. ex.. (362) K. BALLERSTEDT, Zur Haftung fir culpa in contrahendo bei Geschaftsabschluss durch

Stellvertreter cit., 507, 508, 512 e 517 ss., p. ex.. (363) K. MIELKE, Cic cit., maxim 134; CREZELIUS, Culpa in contrahendo des Vertreters

ohne Verfretungstnacht, JuS 1977, 796-799 (797); EGBERT Prima, Uberschreiteit der Vertretungstnach t and Haftung des Vertretenen fur culpa in contrahendo, FS R. Reinhart (1972), 127-136 ( 135);

ULRICH MOLLER, Die Haftung des Stellvertreters bei culpa in contrahendo trod positive, Forderunr verletzung, NJW 1969, 2169-2175 (2169); LARENZ, AllgT3 cit., 558.

§ 24.° 0 dever de actual segundo a boa fe 635

desistiu-sc de uma garantia real a favor da A.; essa compradora onerou o predio corn uma divida fundiaria e arrendou-o, a longo prazo, contra pre-pagamento; depois, suspendeu as suas prestagOes; a A. rescindiu o contrato e accionou o agente e o auxiliar pclos danos sofridos, alegando a sua inexperiencia; eles deve-la-iam ter prevenido do perigo em renun-ciar a garantia real. 0 BGH deu provimento a acgio contra o agente, por violagio de um dever de esclarecimento a cargo do auxiliar, por que

de era responsivel; denegou-a, porem, contra o auxiliar em si, afir-mando que, se na culpa in contrahendo, se podia reconhecer uma responsa-bilidade autOnoma do auxiliar, outrotanto nao sucederia na violagio positiva do contrato, dada a natureza contratual dos deveres em jogo (364).

Esta solucao, diz CANARIS, 6 arbitraria(365 ). Tem razio: se nunca tivesse havido urn contrato entre a vendedora e a agencia, mas apenas

negociacoes preliminares e, por uma violacao de deveres semclhantes,

ocorressem danos, haveria responsabilidade do agente e do scu auxi-liar; celebrado o contrato, este iliba-se, piorando, em consequencia, a situacao da contraparte (366 ).

Para cvitar situacOes de torcao destc tipo, CANARIS propOs

uma teoria dos deveres unitarios de proteccio: desdc o inicio das

negociac5cs preliminares, constituir-se-ia, entre os intervenientes, um clever especifico de pro teccao, derivado da situacao dc confianca suscitada e fundado, positivamente, na boa fe; esse dever subsistiria, corn essa tnesma natureza legal, durante a vigencia do contra to, podendo sobreviver-lhe, e estendendo-se, ainda, as hipOteses de nulidade contratual e dc proteccao de terceiro (367). A ideia de

CANARIS, nao obstante algumas objeccoes (368), tern tido aceita-

(364) BGH 10-Jun.-1964, VersR 1964, 977 = NJW 1964, 2009 = JZ 1964, 654.

(363) C. W. CANARIS, Haftung Drifter aus positiver Forderungsverlezung cit., 115.

(366) Outro exempla de incongruencia similar a criado por F.-S EVANS-VON KRBEE,

Nichterfillungsregebi ouch bei tveiteren Verhaltens- oder Sotgfaltspfikhtverletzung?, AcP 179 (1979),

83-152 (87-88): o vitivo V mandata a advogada A para alienar o seu predio; esta convoca a nteressada I para uma conferencia, no scu escritOrio, sobre as modalidades do contrato; na entrada, I escorrega no soallio demasiado encerado e pane uma moo; como variance, Pk-se a hipotese de a convocataria ter tido lugar depois de efectivada a venda, para esclareci-mentos subsequentes. Pais bem: no caso-base, a A seria responsivel, por cic, como representante

Interessada; na variante, a natureza contratual dos deveres envolvidos conduziriam a responsa-

bilidade exdusiva de V. (367) C. W. CANARIS, Anspriiche tvegen epositiver Vertragsverletzung* and *Schutzwirkung

fur Dritte* bei nichtigetz VertKigen cit., 476, 477 e 478 ss..

(368) Assign, em SrAuDirmEn/LOwiscu l2 (1979), prenot. §§ 275-288, u.° 22, defende-se que o dever unitirio de proteccio, de natureza legal, nao seria contestivel nas hipoteses de nulidade do contrato; tornar-se-ia, porein, desnecessirio na constIncia dc ulna relacio obriga-

637 636 A boa como regra de conduta

0 aparecimento, corn o vigor c o relevo demonstrados, dos deveres de proteccao, devc ser colocado nos espacos historic° e dogmatic°

pr6- prios; quando nao, o fenomeno nao e entendido, podendo ser obje ct° de transposicoes apressadas e imprOprias. Retenha-se a printeira decisio judicial que detectou deveres de pr o._ teccio, fazendo-o, alias, in contrahendo: o caso do linoleo (371 ), onde urn comerciante a responsabilizado porquc, por descuido de urn seu empregado,

uma cliente, que pretendia adquirir lin6leos, a atingida por dois robs que cairans, ferindo-a. Ulna analise despreconceituada desta factualidade revela quc o acontecido pouco tern a ver coin o contrato projectado ou coin a sua preparagao. Uma pessoa ferida por negligencia de outra, concretiza uma situacao tipica de responsabilidade delitual, enquadrivel, p. cx., no art. 483.0/1 do C6d. Civil portugues; tirando um aspecto de importancia secundaria relativa, a que se voltara, essa responsabilidad e

delitual, por violacao culposa de inn direito alheio, em pouco difere da responsabilidade obrigacional, emergente da inobservancia de deveres especificos.

Nao assim no Direito akmao; a responsabilidade obrigacional tern, de facto, urna clausula geral: o devedor responde por dolo ou negli-gencia, pelo § 276 BGB, pressupondo:se, pois, a presenca previa de uma relacao obrigacional especifica (372). Mas a responsabilidade aquiliana resulta de tres clausulas que, embora gerais, nao cobrem todo o universo delitual possivel (373): responde o agente que, corn dolo ou negligencia, viole urn direito de personalidade, real ou semelhante — § 823/1 — que, nas mesmas condicoes, viole uma norma destinada I proteccao de outran

(369) U. MULLER, r VV cit. , ITT

c.t., W OLFGANG THIELE, Lei-CM/WHO/UV Cit., 654; W. GERIIARDT, Gesetzliches Schutzverhaltnis cit., 598, LARENZ, SchuldRIAT 23 cit., 100 ss. e, corn pormenores, MARINA FROST, oVorvertraglichco mid «vertragliclu, Schutzpflichten (1981), IllaXinle

212 e 241. Antes de CANARIS, ja era possivel notar alguns passos, nesta direccao, cm W. WEBER, Trete It. Glauber cit., A 770 (306).

(370) Esta ideia fora jd expressa em MENEZES CORDEIRO, A pos-cficacia cit., 0.° 9; procede-se, agora, ao seu aprofundar, corn tuna aplicacio mais lata.

(371) RG 7-Dez.-1911, RGZ 78 (1913), 239-241. (372) PALANDT/HEINRICHS, BGB42 cit., § 276, 1) (302); LARENZ, SchuldR/AT 13 cit., 267. (373) ERNST VON CAEMMERER, II/auditor/gm des Deliktsredits, FS DJT 100 (1960), 2, 4 9-136

(65 ss.), Korz, Deliktsrecht 2 (1979), 36-37 c MEPTENs 1 Akinch-Komm, prcnot. §§ 823-853, n.° 3 (1109).

Sc 24.0 0 clever do actuar scgundo a boa

- § 823/2 -- on que, dolosarnente, provoque danos, atentando contra os

bons costumes — § 826. Por este csquema, um dano patrimonial, que no

caia no § 823/1 e nao integre uma previa° normativa especifica, s6 seria

reparado se fosse contra bonos mores e, ainda entao, havendo dolo (374).

Para akin desta variagio de base, existe outro ponto real de distincao,

no BGB, entre a responsabilidade obrigacional c a aquiliana: o regime cia responsabilidade por actos de auxiliares. Na primeira, o devedor 6 responsivel pelos actos dos que, no cumpritnento, o representem on auxiliem, como manda o § 278 BGB (375); na segunda, pelo contrario, o comitente responde pelos actos dos auxiliares, mas apcnas dentro das

regras da culpa in eligendo, i. é, podendo ilibar-se, nos termos do § 83111

BGB, provando que, na escolha dos auxiliares, pos o cuidado neces-

sari° (37 6). A luz destas particularidades, entende-se o caso do linoleo:

o RG teve de julgar violados deveres espccificos de cuidado para, nos

termos do § 278 BGB, poder responsabilizar o proprietario do estabele-cimento; se se quedasse pela responsabilidade delitual, cste exonerar-

p provando que pusera a diligencia requerida na escolha do empre-gado. Uma responsabilidade contra este teria poucas possibilidades de

efectivacao econ6mica. Os deveres de proteccao, na sua genese e na sua evoluclo c scndo

eles in contraltendo, acess6rios, post pactum finitum, de proteccao a terceiros ou subsistentes na nulidade, destinam-se, conic hoje 6 reconhecido, a suprir as deficiencias do Direito delitual alma° (377). Na'o constituem, na

versa° aperfeicoada de CANARIS, uma formulacio artificial: a pessoa quc, a pretext° de um relacionamento negocial on similar, suscite, noutra, uma entrega confiante, ve nascer deveres especificos de nao lire causar prejuizo; mas torna-se, seguramente, uma duplicacao liana nuns sistema onde o mesmo resultado pratico pudesse, cons comodidade, ser obtido atraves das regras da responsabilidade aquiliana.

No Direito portugues, as diferencas denotadas no BGB, entre as responsabilidades obrigacional e aquiliana nao existem. 0 devedor responde por dolo ou negligencia, quando nao acate os seus deveres — art. 798.°; o agente, no entanto, respondc de igual modo, sempre que viole o direito de outrem, sem distincao — art. 483.°/1. Tam- hem no tocante a responsabilidade por actos de auxiliares, o regime

(374)Em rigor, seria possivel, a face do Direito alcmao, ensaiar urn alargamento do

S 823/1 do BGB, por modo a obter uma clausula geral de responsabilidade civil semelhante is

napole6nicas. 0 passo nao tern, no entanto, sido efectuado.

(375) LARENZ, SCilUld12. /AT" cit., 273-280.

(376) Focando a diferenca, ESSER/SCHMIDT, SchuldRIAT 5 cit., 2, 47-48.

(377) Cf. VON CAEMMERER, Wandlungen d. DeliksR cit., 57, falando no alargamento

Indevido da ck, por forca do § 831 BGB; FRANK PETERS, Zur Veljahrung der Anspriicht aus

csapa its contrahendo find positiver Vertragsvertetzting, VersR 1979, 103-111 (111). seetindo o anal

tic e vpc teriam surgido para integrar lacunas do Direito delitual.

cao (369). Na verdade, tern coerencia dognthica e resolve as clu es_ toes que se the poem, como e de apreensao imediata.

Vzilida no Direito alemao, a doutrina do dever unitirio legal de proteccao, de CANARIS, nao tern aplicacao no Direito p ot._ tugues (370).

638 A boa fe como regra de conduta

é diferente: o devedor e responsavel — art. 800.0/1 —Inas o age nte d-o, da mesma forma; o art. 500.° deterrnina urn regime puro

responsabilidade, pelo risco, do comitente, sem que este possa exo_ nerar-se corn recurso as rcgras da culpa in eligendo.

No Direito portugues, existem, por6m, outras diferencas ent re as ch. responsabilidades obrigacional e aquiliana ( 378); tais diferencas, embora consideradas, pela doutrina mais atenta, como insuficientes pa ra manter a duplicacao entre os dois tipos de responsabilidade (379), been poderiam justificar a recepcio dos deveres unitarios de proteccao, apura-dos na doutrina alemi por CANAIUS. Nao e assim. No dominio d a responsabilidade cm si, a diferenca limita-se ao onus da prova: consta-tada a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso, presume-se a culpa do devedor — art. 79941; pelo contrario, no dominio delitual, .ao lesado incurnbe provar a culpa do autor da lea°, salvo havendo pre-suncao legal de culpa, — art. 48741. As hipoteses de presuncao legal de culpa proliferam, alias: arts. 491.0, 492.0, 493.°... No que respeita ao regime da responsabilidade por actos de auxiliares, a diferenca tambem, muito cscassa, devendo o art. 80041 considerar-se como uma concretizacio do art. 50041 ( 389; uma Unica e timida diferenca tern sido apontada entrc os dois preceitos, por alguma doutrina ( 381): no primeiro caso, dispensar-se-ia uma relacio de subordinacio entre o auxiliar e o devedor, relacao essa que, pelo contrario, seria exigida na segunda. Se bem se atentar, ver-se-a que essa diferenca, a proceder ( 382), apenas revelaria a diversidade prcvisiva de situagoes em que uma mesma figura de impuracio objectiva de danos 6 usada: no campo aquiliano, a liberdade dos intervenientes a total, uma vez que des deparam corn deveres gene-ricos ncgativos, cm principio; no obrigacional, devedor e auxiliares estao subordinados a obrigacio em si, tornando-se desnecessario exprimir, em termos normativos, o nexo de imputacao corn recurso a vinculos subordinativos suplementares. Nio se branda, como exemplo de diferenciacio, o • caso do representante, que responsabilizaria, pelo art. 800.0/1, o devedor, mas nao, pelo art. 500. °, necessariamente, o corms-

24.° 0 clever de actuar segundo a boa fe 639

sario: viu-se como, na experiencia juridica alema, o ambito de responsa-bilidade assim conseguido, contra o devedor, levou a jurisprudencia e, depois, a doutrina, a restringir a aplicacio do § 278, admitindo uma

responsabilidade prOpria do representante em si ( 383). Em Portugal,

toda essa complicacio poderia ser afastada, corn comodidade, desde que, ao caso, se aplicasse o art. 500.° e o 80041.

A face do COdigo Civil portugues, as violacoes dos chamados deveres de proteccao tem urn enquadramento directo na clausula geral da responsabilidade aquiliana, emergente do art. 483.0/1. Como resulta de toda a casuistica que esti na base da figura, os deveres de proteccao visarn assegurar que, a coberto de relacoes obrigacionais ou factores que, corn elas, tenham semelhancas — cada vez mais dilui-das, alias, pela evolucao subsequente — os intervenientes se inflijam danos, uns aos outros, nas suas pcssoas ou patrimOnios. Como de reconhecimento generalizado, este ambito nada tern a ver corn os interesses obrigacionais em si: esti em causa a proteccao geral asse-gurada pelo Direito, atraves dos esquemas que, hoje, representam a velha Lex Aquilia de damno. No Direito portugues nao jogam, em desfavor da saida aquiliana, os meandros da culpa in eligendo; pelo contrario: a aplicacao do regime delitual generic° evita as confusi5es increntes a necessidade de, cm certos casos, quebrar o vin- culo de imputaclo, ao representado, por actos do representante. Perante isto, a Unica alteracao adveniente do adnutir os aludidos deveres de proteccao estaria no onus da prova: passaria a jogar con-tra o devedor, obrigado a demonstrar, em caso de violacao, que esta nao operara por culpa sua, enquanto que, no cenario aqui-liano, tal onus estaria a cargo do prejudicado — art. 799°/1 e 487.0/1, respectivamente. Uma vez assente que os valores em jogo na violacao dos deveres de proteccao correspondem ao objecto vicado pela tutela delitual, nao se vislumbra, na alteracao em causa, qualquer vantagem; pelo contrario: tratando o igual de modo diferente, era iris introduzir, a titulo gratuito, uma distorcao inexis-tente a partida. Acresce que a aludida 4vantagem* seria aparente: ficaria tragada na dificuldade bem maior, a cargo do lesado-credor, de provar a existencia dos prOprios deveres de proteccao (384).

(383) Cf. supra, 633-634.

(384) Discords-se, assim, de MOTA Parro, Cessao cit., 411 e passim, que admite a trans-

posicao dos deveres de proteccao para o Direito portugues, em concurso, se necessario, corn

a responsabilidade aquiliana. Esse A. nao atenta, alias, na supressio entre os dois tipos de respon-

(378) VAZ SERRA, Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual, sep. BMJ (1959), Responsobilidade civil, 110 ss., procede a longa enumeracio das diferencas possfveis, de que acaba por discordar.

(379) Recorde-se a linha formada por PAULO CUNHA, GOMES DA SILVA, PESSOA JORGE C OLIVEIRA ASCENSAO, cit., sup. 575 181 , a que tambern se aderiu.

(380) MENEZES CORDEIRO, D. Obrigaoes cit., 2, 393. (381) ANTUNES VARELA, ObrigacifeS Cit., 23 , 100-101 3 ; PESSOA JORGE, Pressupostos cit.,

145-146, mcnos abertamente; MOTA PINTO, Cessifo cit., 411. (382) A esubordinacio» exigida pela imputacio ao comitente nao emerge da lei, sendo

mantida na doutrina — cf. MENEZES CORDEIRO, D. Obrigapies cit., 2, 371 — por razdes de tradicao. Bastaria a exigencia de urn minimo de liberdade do comitente na escolha do comis-sario pars integrar a previao legal e satisfazer, do sistema, os vectores em jogo.

640. A boa fa cow regra de conduta

IV. A doutrina do dever de proteccao unitario ficou a mein caminho (385). As razocs que levaram ao scu aparccimento e a o

seu sucesso estendem-se, afinal, aos deveres de informacao c leal-dade. Uma vez admitidos — e isso ji nao sc discute — des teriam :

na fasc pre-negocial, natureza legal: na constancia da convencao, natureza contratual; na fase p6s-eficaz, natureza contratual ou legal, conforme a sede (386); na nulidade, supervenientemente apurada, do pacto, natureza legal recobrada, perdendo a contratual; na pro-jeccao face a terceiros, por fim, a natureza scria legal ou contratual consoante sejam alegados contra eles ou por des c, no primeiro caso, ainda conforme a saida encontrada para a chamada eficacia externa das obrigacoes.

Esta complicacao escusada corresponde a uma fasc pre-sistematic a do tema. A instrumentacao proporcionada, hoje em dia, pela Cien-

cia do Direito, permite pOr cobro a tal incipiencia. Os deveres de lealdade e de informacao tem uma estrutura unitaria nos diversos quadrantes por que se manifestant e, assentes na boa fe, tern natureza legal. Ou, numa optica mais prccisa, face a teoria das fontes das obri-gagoes: resultam de mero facto juridico — o inIcio de negociacoes, a existencia dum contrato, v6lido ou invilido, actual ou passado e a conexao de terceiros COm as obrigacoes — e nao de vontade humana, considerada como tal. Esta conclusao surge Clara nas hipoteses de culpa in contrahendo e de nulidade de contrato onde faltam, salvas ficcoes, quaisquer contratos validos, susceptiveis de explicar deve-res. Mas impoe-se, tambem, a analise, no caso dos deveres acessorios e nas outras projeccoes da figura: a: exigencia duma actuacao de boa fe deriva do sistema c nao de qualquer vontade das partes, que mais nao podem do que conformar-se, querendo permanecer no dominio do juridico.

sabilidadc que o Direito national consagrou — cf. supra, 575 181 . Pode ainda informar-se que o proprio C. W. CANAR1S, perante a exposicio do esquelna portugues da responsabilidade aquiliana, concorda cons a desnecessidade, nesse sistema, dos deveres unitarios de proteccio.

(385) Como resulta, alias, da simples ponderacao de BGH 10-Jun.-1964, que serviu de base ao escudo de CANAR1S, Haftung Drifter cit.. De facto, os deveres ai ens causa, cujo trata-nsento diferenciado na ric e na vpc requeria a reformulacio do tema, nao cram de proteccio, mas de informacio.

(389 Para certa doutrina portuguesa — Mom PINTO, Cessdo cit., 354-356 e ALMEIDA COSTA, Obrigatdes3 cit., 269 — que pretende chegar 1 cppf atraves da integracao negocial, esses deveres teriam natureza contratual.

§ 24.° 0 dever de actuar segundo a boa .M 641

Uma regra gcral de conduta segundo a boa fe, concretizada em

deveres de inforrnacao c lealdade, comeca a tomar corpo. Ela nao 6 prejudicada pelo facto natural de tais deveres assumirem objectivos diferentes, nas divcrsas ocorrencias em que se manifestem: na fase

pre-contratual, tern escopos imediatos distintos dos revelados na constancia contratual. Correspondem, no entanto, aos mesmos

vectores.

V. Partindo de deveres dispersos por varios quadrantes, obte-

ve-se uma certa unidade em torno da sua natureza legal e da ideia de boa fe. Tern agora interesse estender a indagacao a aspectos previsivos, isto é, averiguar ate que ponto podem ser concatenados entre si os factos cuja verificacao desencadeia a constituicio dos deveres em causa.

Uma tentativa de explicacao poderia residir nas relaceies contra-

tuais de facto. Esta figura, criacao de HAUPT, foi encontrada a pro-posit° da culpa in contrahendo (387); verificou-se como, nesse dominio, atraves de H. MLLE e BALLERSTEDT, ela evoluira para a normativi-dade da confianca, nos preliminares contratuais. Importa, agora, considerar o seu ambito explicativo geral.

Em DoLLE, os «deveres de prestacio extra-legais8 repartiam-se pelos tres grupos referidos de protecgio, assistencia e manutenglo, de indicgio, esclarecimento e comunicaclo e de entrega patrimonial, assentando, os primeiros, em interpretacio criativa integradora de lacuna, requerida pela confianca, os segundos, na vontade das partes e na boa fe e, os ter-ceiros, em ponderacties especificas feitas, no caso concreto, a luz da boa fe (388). Este esforco, a que MLLE negou o qualificativo de «rely -5es contratuais de facto*, mas que, de um prisma material, se coloca na sequen-cia nitida dos estudos de HAUPT, pode, agora, ser apreciado: a parte inte-grativa da construcio corresponde, afinal, aos deveres de proteccio de CANARIS, cuja desnecessidade, no Direito portugues, deve ser tidy por assente (389); os deveres de indicacio, esclarecimento e comunicacio aproximam-se dos de informacio e lealdade, nio se lhes podendo atribuir natureza negocial; os de entrega patrimonial, por fim, devem ser escla-recidos.

(387) Supra, 555 ss.. (388) H. Dais, Aussergesetzliche Schuldpflichteu cit., 73,75, 81, 83, 86,88-89, 90 ss. e 101.

(389) LARENZ, Culpa in contrahendo, Verkehrsithentngspflicht and gsozialer Kontakt", MDR.

1954, 515-518 (517), critics este aspecto por outro prisms: sublinha que a confianca, sd por si, sent uma ligacio a outros momentos, n'ao poderia elevar a responsabilidade acima do nivel da

delitual.

642 A boa fe corm regra de conduta

Urn aspect() significativo das relacocs contratuais de facto foi mantido e reelaborado por LARENZ; este aprofundou, numa meira fase, o tema dos comportamentos sociais tipicos, base de situa- goes de tipo contratual, mas que nao poderiam integrar as classica l

oferta e aceitacao (390).

A orientacao em causa conheceu urn stibito influxo jurisprudenti al atraves de BGH 14-Jul.1956, o celebre caso do parque de estacionament o de Hamburgo. 0 R. utilizou varias vezes o parque em causa, concedido

em exploracao, atraves do pagamento de quantias por estacionament o horirio; declarou sempre que nao pagaria qualquer importancia e man-

teve a palavra. Interposta uma accao para condenacao nas importancia s ern divida e nas que resultassem, no futuro, de novas utilizagoes, o Tri-

bunal Federal, considerando a inadequacao de quaisquer dos instrumentos ji consagrados para solucionar o problema, e citando HAUPT, TASCRE eLARENZ,entendeu existir, no comportamento do utente, urn facto gerador de uma relacio contratual de facto, que o obrigaria ao pagamento, independentemente de qualquer contrato em sentido proprio ( 391 ). Apareceram outras consagraceles jurisprudenciais no dominio de con-trams nulos por falta de forma on que, ate, nunca foram claramente celebrados, mas a que foram reconhecidos efeitos ( 392).

Esta construclo obteve aplausos de alguma doutrina; entre os seus meritos, sublinha-se o de, sem ficcoes, solucionar a ocorrencia inegavel de efeitos contratuais sem contrato ( 393). Cedo entraria,

(390)Um; ScbuldRIAT , (1953), § 4, II, 27-28. (391)BGH 14-Jul.-1956, MDR 1957, 149-151 = BGHZ 21 (1956), 319-334 = NJW

1956, 14764477 = JZ 1957, 58-61 = DB 1956, S17 = FIKENTSCHER, ESJ / SchuldRAT 2 (1977), caso 5 (17.24). Esta decisao foi muito comentada• assists as an. de Kau. AUGUST

BErreamaiin, MDR 1957, 151-153, quanto aos aspectos administrativistas, de A. BLOMEYER,

MDR. 1957,153-154, ceptico, de WIEACKER, JZ 1957, 61-62, que ye no caso tuna manifestacio de vontade contratual c ainda de: LARENZ, Sozialtypisches Verhalten all Verpflichtungsgrund, DRiZ 1958, 245-248 (248), favorivel; H. C. NIPPERDEY, Faktische Vertragsverluitnissel MDR 1957, 129-130(130), que opina pela presenca de urn contrato; F. WIEACKER, Willenserkldrung and sozialtypisches Naito!, FS OLG Celle (1961), 263-286 (265), reservado; cf , desse A., tambem, a bibliografia referida sobre o problema da tsucessio na (pinta*, infra, n.° 72.

(392)Cf. i1 fra , n.° 72. (393)Cf. E. BErrt, fiber sogenannte faktische Vertragsverhaltnisse, FS Lehmann 80•

(1956), 1, 253-270 (270), W. FLUME, Das Rechtsgescheift und das relevante Verhalten, AcP 161 (1962), 52-76 (53, 59, 60, 61 c 75-76), BODO BORNER, Faktische Vertrdge im Energierecht 1 Ein Beispiel fur die Aufgaben der tvissenschaftlichen Behandlung eines Sonderrechtsgebietes, FS Nipper-dey I (1965),185-209 (189-190) e, anteriormente, JOISANNES BXstataNta, Typisierte ZivilrechU -ore/ruing der Daseinuorsorge (1948), 87. Tambem CANARIS, Atypische faktische Arbeitsverhdltnisse ,

BB 1967, 165-170 (170), admite a relacio de trabalho de facto como realidade dogmStica autonoma, embora corn eficacia limitada.

§ 24.° 0 dever t(e actuar segundo a boa fe 643

porem, em declinio. A eficacia dos factos que cla integraria foi reconduzida seja a vontade das partes, mediante urn alargamento das eventuandades susceptiveis de representar o exercicio da autonomia

privada (394), seja a responsabilidade (395) , seja a outros elementos,

entre os quaffs a confianca (396).

Nada disto é satisfatOrio. Como se intentou dcmonstrar noutro

nao ha processo de evitar que surjam efeitos semelhantes aos contratuais, em conjunturas impossivcis de reconduzir a autonomia privada, quer por, de todo em todo, faltar a vontade das partes, quer por, como no caso do parque de estacionamento de Hamburgo, haver uma vontade clara em contrario ( 397 ).

0 Direito portugues, ao exigir, de modo expresso e inequivoco, a consciencia da declaracio, para que se produzam quaisquer efeitos negociais - art. 246.. - numa disposicao que nao tern paralelo no BGB,

mais dificulta a possibilidade de assentar a autonomia privada em aspectos puramente funcionais, como quereria RAISER e, ao que parece, MOTA

PINTO (398). Ou, pelo =nos, numa visa° funcional estrita que abdique da imputabilidade, ao sujeito livre e consciente, da vontade dos efeitos juridico-privados desencadeados.

No espaco alemao, existe uma polemica antiga quanto a saber se, para a presenca de uma declaracao de vontade negocial, 6 necessiria a consciencia da declaracio, i. 6, a consciencia de emitir uma declaracao negocial ou se, pelo contrario, basta a possibilidade de tomar o sentido do comportamento como o de uma declaracio de vontade, coin um papel decisOrio, pois, interpretaclo normativa ( 399). A doutrina

(394) LUDWIG RAISER, Vertragsjunktion stud Vertragsfieiheit, FS 100 DJT (1960), 1, 101-

-134 (101 ss., 124 ss., 133), numa posicio aceite por G. S. RICHTER, Contribloto allo studio

del rapporti di fatto nel diritto privato, RTDPC (1977), 151-204 (194) e por MOTA PINTO,

Cessdo cit., 256-2613 (261) e D. Obrigacoes cit., 201.

(395) EsSER, Gedanken zur Dogmatik der • faktischen Schuldverhaniss•, AcP 157 (1959),

89 ss., que trabalha, tambern, corn a ideia de need° jurldico tacit° - ob. cit., 95; Lucto

Sui cosidetti rapporti contrattuali di fatto (1965), 109.

(396) H. Kamm, Vertrag und sozialtypisches Verhalten 1 Betrachtungen zurn gegenwartigen

Stand von Lehre und Rechtsprechung gegettiiber den sogenannten faktischen VertrOgett bei tarifnuissig

zu vergutenden Versorgungsleistungen, JR 1968, 1-6 (6). Cf. outras hipoteses em ESSER/SCHMIDT,

SchuldRIAT 5, 1, 112-113, W. Tams, Die Zustimmung in der Lehre vom Rechtsgeschaft (1966),

111314 e Rum, AIIgT, 23 (1979), 97-101.

(397) MENEZES CORDEIRO, D. Obrigactles cit., 2, 40-41.

(398) Cf. supra, 643394 .

(39 ) Cf. LARENZ, AligT 5 cit., 320 ss..

§ 24.° 0 lever de actuar segundo a boa fe 645 644 A boa fe como-regra de conduta

tem-se pronunciado ora a favor da primeira posicao (400), ora segunda (401). da

Para indicar os pontos altos das argumentaceies em presenca, refi.„ ram-se CANARIS e BYDLINSRI, respectivamente. Diz CANARIS: quando algu6m nao esti consciente de ter dado uma declaracio negocial,

lugar, em auto-determinagio, a uma relacio juridica (...). Na f aha da consciencia da declaracio, nao se trata, portanto, a respeito da respon-

sabilidade, de um problema da doutrina do negOcio juridico, mas da doutrina da aparencia juridica* (402). BYDLINSRI, por seu turno, avail% a partir do regime da impugnabilidade dos negOcios por erro. Segundo, o § 119/1 BGB, a declaraeao pode ser impugnada por erro «... quando

seja de admitir que de [o declarante] corn conhecimento dos factos e corn tuna apreciacao razoivel do caso nao a teria emitidos. Como se ve, o erro, em si, nao di lugar I invalidade; apenas a sua imputaca o' segundo bitolas objectivas, permite faze-lo. Pois bem, segundo BYraNsru,

casos do erro da declaracio e de falta da consciencia da declaragi o devem ser postos de modo inteiramente igual. Entre aquele que, negocial-

mente, nada quer e o que, negocialmente, quer algo de diferente nao existe, no ponto decisivo, qualquer diferenca: as consequencias as quaffs se deve manter adstrito nao foram queridas, end° e ai, pelo interessado; de no estava, emit) e ai, consciente da sua ocorrencia• (403). A imputgio da declaraelo, a fazer em termos normativos, decide; nao a sua cons-ciencia.

0 quadro legal alemao a especifico. Mas sempre se dirt que, na oposicao apontada entre CANARIS e BYDLINSICI, ambos argumentam em pianos diversos. 0 primeiro, desde que se aceitem os seus pressupostos — i. 6, os de que o neg6cio juridico, fruto da vontade das pessoas, 6 uma forma efectiva de auto-determinacao — que nao se ye como recusar, tern razao: os efeitos que se atribuam a uma ideclaracio* nao-consciente derivam da eficacia da aparencia e nao da vontade. Mas o segundo tern-na, tambem: se, nao obstante o erro, e merce de regras objectivadas de impu-tacio, uma declaracao produz efeitos, podendo ser impugnada, haveria distorcao caso, de outro modo, fosse tratada a declaragio sem consciencia. A consciencia da declaracio deve ser exigida, no proprio

(400) Assisi as indicacaes dadas por LARENZ, AllgT 5 cit., 3203 , onde avultam nome como os de WIEACICER, NIPPERDEY e OERTMANN; cf. CIIIIISTOF KELLMANN, Grundproblesne der Willem' erklifrung, JuS 1971, 609-617 (612-613).

(401) LARENZ, Die Aferlsode der Auslegung des Rechtsgeschafts / Zugleich ein Beitrag Theorie der Willenserklarung (1930), 82, FLUME, AI1gT 2 3 cit., 450, PALANDT/HEINRICH42 pren. § 116, 4, b (78), e G6Tz VON CRAUSHAAR, Der Einfluss des Vertrauens auf die Privatrochts-Wishing (1969), 63.

(402) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 427-428. (4°3) BYDLINSKI, Privatautonomie cit., 163; cf. KELLMANN, Willenserklaning cit., 613•

Estes AA. slo utilizados, tambem, por LARENZ, AllgT 5 cit., 321, para exemplificar as dull posic8es.

Direito alemao, em nome da materialidade cia conceitologia negocial, para que se possa falar no exercicio efectivo da autonomia privada; a exigencia de igual tratamento a temitica do erro leva apenas a que, em certos casos de declaracoes nao conscientes, se produzam efeitos em nome da tutela da aparencia, enquanto que, nas hip6teses de erro inimpugniveis, hi proteccio da confianca e nao autonomia privada efectiva.

0 legislador portugues cortou em frente, de modo lapidar, assu- mindo uma defesa completa da autonomia privada: o erro di sempre lugar I anulagio, desde que recaia sobre urn element° essential cons-tativel pela outra parte (404) — art. 247.° — e a consciencia da declaragio 6 exigida, sob pena de nao haver a producao de quaisquer efeitos — art. 246.°.

Neste ponto como noutros, o recurso a contributos jusculturais estrangeiros deve ter ern coma as especificidades do Direito portugues.

A tais conjunturas, insusceptiveis de, num prisma dogmatico, integrar a ideia de negOcio, mas cujos efeitos desta se aproximam, pode-se bem chamar, aguardando melhor, de relacOes contratuais de facto. A clas acolhem-se duas situagoes: a dos contratos sociais tipicos, prOprios do trafego nacional de massas, em que as pessoas se vio encontrar investidas em ocorrencias contratuais, seja qual for a sua vontade, apenas por assumirem comportamentos tipificados que, no -decurso social, a isso conduzem: assim, por exemplo, no ingresso num transporte pdblico ou numa auto-estrada sujeita a portagem (405); e a das situaccies contratuais de facto, como a dos fomecimentos de servicos essenciais, antes de celebrado o contrato respectivo, ou da subsistencia de certos efeitos, nao obstante a nuli-dade ou, ate, inexistencia dos contratos que the estejam na origem, como nos casos da sociedade, do trabalho ou da locacio (406).

VI. As relacoes contratuais de facto nao podem, no cntanto, corresponder a situacoes cuja ocorrencia provoque o surgir dos deveres de actuacio segundo a boa fe (407). No imago daquelas relaciies

(404) Quanto ao problema do regime portuguos do erro, cf. supra, 518-522263 .

(4°5) A posicao de LARENZ evoluiu, neste campo, desembocando no negativismo;

cf. MENEZES CORDEIRO, D. Obrigaciies cit., 2, 39534 .

(406) Cf. SPIROS Simms, Die faktischen Vertragsverluilutisse (1957), 463 ss., WOLFGANG

SIEBERT, Faktische Vertragsverhaltnisse (1958), 12 ss. e NIKISCH, Ober faktische Vertragsverluilinisse,

FS Mille (1963), 86 ss.. (407) Matiza-se, no texto, a posicao assumida em MENEZES CORDEIRO, D. Obrigafees

tit., 2, 37-39.,

646 A- boa fe coma regra de conduta

situa-se a ocorrencia de factos que, nao podendo, por raz5es materiais ou juridicas, reconduzir-se a contratos requerem, pelo seu pap el, a aplicacao do regime contratual. Em termos tecnicos, as relacOe s

contratuais de facto correspondem ao detectar, face a determinadas situagoes sociais, duma lacuna, integrada pela aplicacao do regime contratual.

Nada disto ocorrc nos factos que levem ao aparecimento dos deveres filiados na boa fe: nao hi lacuna, ji que, embora em termo s

vagos, as situac5es em causa tern assento legal claro, nos arts. 227.0/i c 762.°/2; nao hi regime contratual, visto que cstao cm jogo deveres de ordem legal.

A fonte destcs deveres nao esti na boa fe, em boa teoria das fontes das obrigacoes. A boa fe apenas normativiza certos factos que, estcs sim, sao fonte: mantenha-sc o paralelo corn a fenorne-nologia da eficicia negocial: a sua fonte reside nao na norma que mande respeitar os negOcios, mas no prOprio negOcio em si. A enu-meraclo dos factos-fonte dos deveres de actuar de boa fe resulta dos estudos efectuados: o inicio de negociacoes preliminares, a exis-tencia de um contrato, ou da sua aparencia, a conexao de terceiro corn uma obrigacio ou o desaparecimento de urn negOcio. Todos eles tem cm comum a verificacio de um relacionar entre duas ou mais pessoas, atraves duma dinamica que pressupoe uma conjugaclo de esforcos que transcende o cstrito ambito individual (408% . ) 0 Direito obriga, entao, a que, nessas circunstancias, as pessoas nao se desviem dos propOsitos que, em ponderacao social, cmerjam da situacao em que sc achem colocadas: nao devem assumir comportamentos que a contradigam — deveres de lealdade — nem calar ou falsear a actividade intelectual externa que informa a convivencia humana — deveres de informacao. Embora as estrutura e teleologia bisicas sejam as mesmas, adivinha-se a presenca de concretizacoes diversas, consoante os factos que Ihes deem origem. Na constancia de urn contrato, o dever de informacao poderi ser mais intcnso do que In contrahenclo ou post pactutn finitum. Mas 'testa base, nao se alcanca a materialidade desta fenomenologia. 0 contrato e fonte efectiva dos deveres contratuais; no entanto, para efcitos de aplicacao da boa fe — art. 762.°/2 — ele funciona conio mero facto juridico ern

(408) Aflora, aqui, a ideia de relatividade que, de inodo sucessivo, se encontra SOS sittiaci3es informadas pela boa fé.

§ 24.. 0 clever de actuar segundo a boa fe 647

sentido estrito. Dal que, por hipOtese em negociaciies delicadas,

Os deveres de lealdade e informacao possam ser bem mais intensos

do que na vigencia de urn contrato comum. Os criterios para a

determinglo material dos deveres de comportamento devem ser procurados noutras latitudes.

VII. Pode p6r-se o problema de saber se, por forca da boa fe, sur-gem deveres especificos fora de situacoes de relacao. A pergunta agudi- za-se no domino da ch. efickia externa das obrigac6es, redundando, • em apurar se, na base da bona fides, urn terceiro fica adstrito a nao

violar urn credit°, ou a nao agravar uma obrigacio. A questio foi examinada noutro local; as posicoes ai assumidas mantem-se ( 409), corn

o aditamento que segue. A possibilidade de defender os creditos contra terceiros — numa

necessidade ditada, contra o formalismo, pelo proprio sistema juridico e pela natureza das coisas e que hoje, por uma via ou por outra, ji admitida por toda a doutrina nacional ( 410) — corn recurso Is ch. clau- sulas gerais, entre as quais, a boa fe, adveio, no espaco portugues, de uma recepcio de elementos doutrin4rios e jurisprudenciais alemies. Essa recepcio nao teve em conta a diversidade existente entre os dois ordenamentos, a nivel de responsabilidade civil. No Direito alemio, as previsoes fragmen- drias da responsabilidade delitual — designadamente a do § 823/1 BGB, ji examinado — nao dao cobertura clara aos creditos. Dai a oportuni-dade, tornada necessaria, de procurar soluc6es corn recurso a outros lugares normativos, vindo os bons costumes, havendo dolo — § 826 — a assumir posiclo pioneira (411). Nib assim no Direito portugues onde o art. 483.0/1 garante, sem distincOes, a proteccio aquiliana a todos os direitos subjectivos, corn inclusio dos creditos.

0 sistema portugues de responsabilidade civil, mais aperfeicoado do que o alma°, assegura a proteccio dos creditos contra terceiros ( 412);

o recurso a boa 16 torn-se dispensavel.

(4°9) MENEZES CORDEIRO, D. Obriga0es cit., 1, 251 ss. c D. Reais cit., 1, 417 ss., corn

bibliografia e jurisprudencia. (450) Designadamente atraves do abuso do direito, numa posicab partilhada por MANUEL

DE ANDRADE, FERRER CORREIA, ANTUNES VARELA C ALMEIDA COSTA.

(4") R. KRASSER, Der Schutz vertraglicher Rechte gegen Eingriffe Driller (1971), 318;

cf. H. Koziot, Die Beeintnichtigung frander Forderungsrechte (1967), 34 ss. e LARENZ, SchuldR1 AT 13

cit., 17". (412) Tem interesse registar como em Franca, na presenca de urn sistema igualmente

amPlo de responsabilidade civil e dada a ausencia de interferZncias jusculturais alernis, neste

1:41s0 perniciosas, a .responsabilidade do terceiro climplices impeis-se desde os principios do

sec. xlx. Em Italia, onde o jogo de influencias é diferente, na decada de setenta deste s6culo

foi possfvel um aproveitamentb luaus consequente do sistema, no sentido, hoje aceite, da pro-

tecsio integral dos creditos.

648 A boa fe como regra de conduta

Para alert' disso, a boa fe nunca deveria ser utilizada em tal con-juntura. As seas ji examinadas, bem como a sua base legal no COdigo Civil de 1966 — como no BGB — deixam antever um ambito limitado a situagoes de relacionamento especifico entre duas ou mais pessoas. E esse relacionamento especifico que determine os deVere s de lealdade e de informacao a terceiro ou de terceiro, quando devam ocorrer. Nao oferece dificuldades reconhecer, em situac5es desse tipo, caracterfsticas proprias que exijam um tratamento diferenciado, do ponto de vista material. Nos sistemas que, como o portugues, admitam virias clausulas gerais, hi todo o interesse em diferencii-las por campos mate-riais distintos, base natural, depois, para regimes proprios.

A boa fe intervem em situaciies de relacionamento especifico entre as pessoas. Para as pessoas nao relacionadas, ou estranhas ao relacion ar entre outros, esti disponivel a cliusula dos bons costumes (413).

62. 0 contend° material; da ponderaciio teleologica a projec- cao do sistema; controlo do contend° dos contratos pelo juiz

I. A actuacao de boa fe concretiza-se atraves de deveres de informacao e de lealdade, de base legal, que podem surgir em situa- coes diferenciadas, onde as pessoas sc relacionem de modo especifico. Esta proposicao, facultada pelas investigacoes anteriores, propicia uma arrumacao tecnica minima e permite, nessa medida, urn apoio para o aprofundamento material do tema.

A informacao e a lealdade, por si, pouco dizem. Convertidas em objecto de deveres, elas deixam por esclarecer os seus tcor e extensio e designadamente: o que visa a informacao e corn que dili- gencia deve ser exercida e a que obedece a lealdade e quais os seus objectivos. Vai-se avancar nesta linha.

Uma primeira constatacao prende-se corn a delimitacao nega-tiva na aplicacao da boa f6, como regra de conduta. Na fase dos preliminares, impera, como pano de fundo, a autonomia privada, a entender como permissao generica de produzir efeitos juridicos, atraves de propostas e aceitacoes. Essa permissao pode cessar cm certos pontos, merce de normas especificas, que imponham restric8es a liberdade de contratacao. Quando isso suceda, as disposicoes em causa encontram a sua aplicacao normal, nao havendo que falar

(413) Cf. L Jra , n.° 113.

§ 24.° 0 dever de actuar -segundo a boa fe 649

em boa fe. Outrotanto sucede na pendancia contratual, na nulidade do contrato, nos efeitos perantc terceiros corn etc conectados e na p6s-efickia: a boa f6 no funciona sempre que surjam normas legais ou convencionais. Como regra de conduta, a boa f6 tern uma natu-reza supletiva tendencial.

Essa supletividade tern, como contraponto, uma grande extensio. I\150 6 possivel, em termos abstractos, detcrminar areas imunes boa fe; eta 6 susceptive! dc colorir toda a zona de perinissibilidade, actuando ou nao consoantc as circunstancias. Impae-se, assim,

a reflexao, um nivel instrumental da boa fe: cla reduz a margem de discricionariedadc da actuacao privada, cm fungi° de objectivos

externos.

II. A primeira c mais basica reducao imposta pcla boa fe livre actuacao privada 6 de ordem juscientifica: imp& uma considc-racao teleolOgica c nao arbitriria das permissOes cm causa. No campo da autonomia privada — espaco em jogo na culpa in contrahendo — eta obriga a considcrar de modo finalista os comportamentos que prctendam ocorrcr no scu scio: trata-se de formar ou nao contratos, de acordo corn a vontadc dos intervcnientes e os seus intcresses, c nao de, a seu cobcrto, desencadcar atitudes nocivas. E importante subli-nhar a manutencio da permissividade: a transformacio dos dircitos em deveres deriva, historicamente, de tentativas mais ou menos assumidas de suprimir ou restringir a autonomia individual, base do jusprivatismo. Da boa fe advem, pois, apenas urn dever generic°, in6quo mas relevantc, ate para a preservacao da permissao generica em jogo, de considerar pelo scu escopo os actos concretos de autono-mia, vedando os que tenham objectivos prejudiciais cstranhos a pro-ducio de efeitos juridicos, nunca imposta.

A ponderacao teleolOgica intensifica-sc nos casos em que a per-missao de agir seja substituida por obrigaceies. Quando estas se exprimam, em termos linguisticos, de forma descritiva, deve enten-der-se o seu cumprimento na prossecucao do escopo visado e nao na mcra conformacao exterior da actividade desenvolvida, corn a prescrita. A boa fe nao contemporiza, pois, corn cumprimentos formais; exige, numa atitude metodolOgica particular perante a rca-lidade juridica, a concretizacao material dos escopos visados. Este aspecto releva no dominio dos deveres acessOrios, em boa parte des-tinados a promover a realizac5o material das condutas devidas, sem

frustrar o fim do credor e sem agravar a vinculacio do devedor;

650 A boa fe coma regra de conduta

cal e , alias , o sentido primario do art. 762.°/2 do COdigo Civil, e do prOprio § 242 BGB. A mesma ponderacao teleolOgica leva a

quc, em face de certos contratos, a posicao de terceiros deva ser tida em conta pelas partes e, de forma reciproca, aqueles se encontrezn

adstritos a corresponder; em paralelo, encerrada, pelo cumpriment o ou por outro modo, uma situa0o contratual, mantem-se, como rea-

lidades a preservar, no relacionamento das partes, os escopos alcan-cados no processo contratual extinto.

III. A ponderacao teleolOgica das proposicoes juridicas corres-ponde a urn papel fraco da boa fe. PrOpria de urn estadio juscul-tural quc tenha superado o formalismo estrito, a necessidade de promover uma concretizacao material efectiva das situacoes devidas, e apenas uma pura conformacao cxterna, nao requer, bem vistas as coisas, a formulacao de principios autOnomos como o da boa fe. Uma interpretacao conveniente das normas em jogo levaria ao mesmo, sendo a boa fe apenas uma referencia impressiva, destinada a reforca r

essa realidade. Quando, porem, escasseiem ou faltem as normas em questa°, como sucede no periodo pro-negocial, a boa fe afirma-se como locucao Unica destinada a recordar que, ainda ai, é do Direito

da sua Ciencia que se trata. A boa fe tern papeis mais profundos e relevantes. Tome-se

o caso da interrupcao injustificada das negociacoes: nao ha al — salva a hipOtese de os preliminares terem sido encetados corn a intencio inicial de nao concluir, em qualquer circunstancia, um contrato valido , mas tao so de prejudicar a outra parte, alutra em que, por rigor, o, seu inicio e nao a interrupcao, caiem nas malhas do art. 227.'11 — um desrespeito pelos escopos da autonomia pri-vada, que, por definicao, exigem apenas uma orientacao de actos corn vista a formacao do contrato como possivel e nao como neces-sario; tao pouco existe uma violacio de urn dever de contratar, que a boa fe, contra a autonomia privada, nao iria, neste caso, estabelecer; verifica-se, antes, uma proteccao concedida a confianca da parte que, perante o comportamento da outra, acreditou, corn justificacao, no concretizar do contrato projectado e, por isso, suportou danos. A confianca surge noutras circunstancias: nos contratos nulos, no prOprio contrato valid°, face aos modos de o entender e aplicar, na situacio de terceiros e post pactum finitum. Trata-se de uma ocor-rencia potencialmente perigosa; por isso, a boa fe comina deveres de informacao, que a evitem, em termos preventivos, quando, a par-

,§ 24.° 0 dever de traitor segundo a boa fe 651

rervn co eespclito

tida, seja injustificada, c deveres de lealdadc quc, uma vez forme da, a pser

pcla confianca criada — ou, se sc quiser, o clever de nao a facultar — corresponde a urn dado material autOnomo, carreacio pela boa fe, corn tanta mais oportunidade quanto é certo que essc papel ja foi identificado na boa fe subjectiva. A concretizacao da confianca c das iegras que a protejam, fundadas na boa fe, e uma tarefa juscicntifica complexa, que obriga a lidar corn o conjunto das suas manifestacoes e corn todo o sistema juridico. Ma, outros

existe m. recolhida cm local oportuno mostrou a exis-

A m i.

tencia, a cargo da parte experientc c sabcdora e perante o contratante debil, dc deveres particulares de informacao, seja in contrahendo, seja na pendencia contratual, seja post pactum finitum. Ha, aqui, urn vector claro no sentido duma justica comutativa, pois a violacao de tais deveres results clara em conjunturas de injustice objectiva a que se tenha chegado. 0 Direito nao procura uma igualdade nego-cial absoluta como regra: basta ver que admite a figura dos negOcios gratuitos. Mas o desequilibrio deve ser esclarecido c livremente querido por quem o sofra. Esta necessidade de conhecimento, face a dcsvantagein, estende-sc as vicissitudes que, supervenientemente, possam atingir situacoes contratuais ou similares, cm principio esta-ticas. Desenham-se vectores que, nao correspondendo, em rigor, a situacoes de confianca, se aproximam de principios gcnericos que constituem as traves mestras da ordem juridica.

Pode, nestcs termos, dizer-se quc a boa fe projecta, na sua mate-

rialidade, nas varias situacoes, cm que actue, na aparencia indiferentes, a imagcm geral do sistema; assegura que os desenvolvimentos vec-toriais dos sujeitos nao o ultrapassem mas antes, mantendo-se nas balizas que ele lhes atribui, se mantenham identificaveis como per-tencentes ao sistema que os rcconhece.

Dobrando uma seric de regras singulares, a boa fe transcen-

deu-lhes a teleologia particular, projectando o sistema material onde se aplique.

IV. A exist'encia de uma regra de conduta segundo a boa fe

e a sua evolucao permitem colocar o problema do controlo do contelido dos contratos, a efectuar pelo juiz. Tal problema enun-cia-se como o saber se, e ate que ponto, pode o tribunal, quando solicitado, examinar os clausulados contratuais e corrigir, suprimindo

652 A boa fi como regra de conduit.,

ou inodificando, os aspcctos que, face a bitolas determinadas, sejam considerados injustos.

0 contend° dos contratos, para alem dos vicios genericos quc possam nunca foi indiferentc ao Direito. No COdig o Civil, regras como as do art. 282.°/1 — negOcios usurarios do art. 694.° — pacto comissOrio — e do art. 994.° pacto leonin o

cxprimem preocupacOes antigas quarto a orientacoes contratuai s tidas como inconvenientes. Nuin prisma material, csscs preceitos

ou outros semelhantes, sac) modestos: apcnas no primciro se con-cede ao juiz ulna margem valorativa na apreciacao real da justica do contrato; Os restantes exclucm a simples possibilidade de certas elausulas, sem, em concreto, se curar dc saber se clas merecem urn juizo de desfavor. E mesmo no campo dos ncgOcios usurarios, a invalidade é abordada mail como vicio na formacao — «...quando alguem, aproveitando conscientemente a situacao de necessidade, inexperiencia ou deficiencia psiquica de outrem...* — do quc, coin° consequencia de uma injustica absoluta.

A primeira codificacao, bem como a prOpria segunda ( 414 ), correspondiam a urn modelo liberal classic° em que o Direito, confiando em absoluto no jogo livre das vontades individuais, numa liberdade entendida, tan como a igualdade, cm sentido formal, abdicava, de modo voluntario, dc intervencoes nos clausulados nego-ciais. Este estado dc coisas era reforcado por uma reaccao pendular aos entraves quc as regulamentaceies complexas dos regimes pre--liberais haviam colocado a contratacao livre c que se revelara nociva a revolucao industrial. Nesse cenario, o juiz limitava-se a conferir a legalidade formal dos contratos e a sua correspondencia corn a vontade inicial das partes, indiferentc, por officio, a justcza material dos arranjos de intercsses por des prosseguidos.

0 funcionamento livrc da autonomia privada, mesmo em perio-dos histOricos anteriores onde esse principio nao ocupava, no sistema juridico-privado, o papel primordial que lhe atribuiu o liberalismo, sempre conduzira a injusticas potenciais. Elas nao suscitaram pro-blcmas, enquanto nao encontraram pela frente uma cultura que, corn projeccoes juridicas, comecou a encarar, como colectivo — e logo

/414s j 0 BGB vein, assim, a ser considerado como o vfilho tardio do liberalism° clissico. — WIEACKER, Dns Sozialmodell der klassischen Privatrechtsgesetzbiither und die Entwirklung der modernen Gesellschaft (1952) = Industriegesellschaft und Privatrechtsordnung (1974), 9-35 (cita-se pelo primeiro local), 16.

24.^ O. de ver de actuar segundo a boa .k.'1 653

corn uma vocaclo cmancmc para a juridicicladc — um trama quc (In si, relevaria dc uma problernatica individual. 0 catalizat, cm grupos sociais de extensao crescents, de problemas postos pela con-tratacao livre, obrigou ao perguntar pela efectividade da autonomia privada. Se, formalmente, ela sc contents corn a inexistencia de

entraves ao seu desenvolvimento, de facto, cla rcquer a possibilidade

de opcio efectiva, aquando da celebracao. Tal possibilidade pode ser frustrada pela ignorancia do contratante, pela sua dcpendencia econOmica ou outra, por situacoes de monopOlio, pela necessidade impreterivel de contratar de imediato ou, sirnplesmente, por a con-traparte Sc rccusar a alterar a proposta on a contraproposta quc tenha formttlado.

A percepcao colectiva dcste fenOmeno em areas privilegiadas, cm termos de consciencializacao, provocou fracturas conhecidas; os Estados, querendo salvar o essential ( 415), foram levados a inter-vir, limitando a autonomia formal, de modo a orientar, em termos materiais, os contendos dos contratos a celebrar. 0 todo, dobrado por nivcis de autonomia colectiva, em que se reconhece, como modo de contrabalancar o poderio de uma das partes, a coligacio dos contratantes debeis, deu origem ao Direito do trabaiho. Ao sector laboral, seguiram-se outros Como os da locacio e do urba-nismo (416 ).

Estas intervencoes, num prisma juscultural e cientifico, sao pouco profundas. As restricoes directas a autonomia privada tra-duzem a necessidade de uma conforma car) dos contratos corn os modelos preconizados pelo Estado, por acto directo de soberania e sem dependencia dc uma busca, no caso, dc justica real, a procurar atraves da Ciencia do Direito c das suns luzcs. 0 reconhecimento das autonomia e negociacio colectivas repo= a urn nivc1 superior a liberdade contratual frustrada, na pratica, a nivel individual, sem a submetercm ao crivo dos valores sistematicos: a autonomia colec-tiva vale por si, sem dependencia dos resultados concretos que per-mita atingir.

Mantem-se em aberto, por isso, a possibilidade de urn controlo judicial dos contetidos contratuais, independente, por defmicao, das restricoes legais especificas a autonomia privada, que possam,

(415) WIEACKER, Soziahnodell cit., 15.

(416) WIEACKER, Sozialmodell cit., 21-22.

654 A boa fe onto regra de conduta

por lei, ser estabclecidas, bem como dos niveis colectivos de neg o_ ciac5o que, na pritica, sc tenham feito reconhecer.

V. A colocacao, no Direito privado, do tcina do control°, pelo juiz, do contetido dos contratos, pressup& o abandono, tam... b6m no Direito privado, da autonomia, como mcro dogma formal, c a sua substituicao pela rcgra da autonomia efectiva (417). 0 passo era, no inicio, dificil, dada a falta da problematica colectiva que jogara no Direito do trabalho. Foi, no entanto, facultado, atraves das ques-toes postas pelas condicaes negociais gerais (418) .

As condicOes negociais gerais correspondent a urn processo de formacao iiegocial em que uma pessoa peie a aprovacao de uma generalidade de outras urn modelo contratual, de que estas nao se podem afastar, limitando-se a aceitar ou nao. 0 rccurso a condicOes negociais gerais, utilizado, em regra, por entidades poderosas, num prisma economic° c social, e, para mais, conhecedoras profundas do Direito e dos papeis reais desempenhados pelas diversas cliusulas, face a parceiros fracos e inexperientes, provoca injusticas que, desde cedo, levaram os tribunais a intervir (419). Essa intervencao, num primeiro tempo, cifrou-se cm afastar as clausulas mais gritantemente injustas quando, na celebraclo, o contratante debil nao tivesse podido delas tomar conhecimento ou, mama evolucao, delas nio tivesse conhecido, materialtnente ou no seu significado (420 ).

(417) Este tema sera retomado a proposito da evolucio do sistema privado. (452) Quanto as condicoes negociais gerais (cng), a sua evoluclo tipificada em quatro

estidios, documentados nas experidncias portuguesa, francesa, italiana e alemd, a sua natureza e aos seusefeitos, remete-se para MENEZES CORDEIRO, D. ObrigacOes cit., 1, 96-113. Este aspecto 6, aqui, versado apenas para alcancar o team do controlo judicial do contefido do contrato; nao se curs, pot isso, de outros fen6menos exigidos pela materializacio da autonomia privada, como o lever de contratar ou a contratacio provocada.

(419)H. Korz, Munch-KommIAGBG (1978), intr. n.° 6 (1934); Komi/STORING, AGBG -Komm (1977), Intr. n.° 35 ss. (48 ss.); num primeiro tempo, entendeu-se que, dado 0 principio de liberdade contratual, nao seria possivel o controlo do contefido; desde logo, porern, recorreu-se I clausula dos bons costumes e I da boa fe, como modo de ressalvar o sisteina em conjunturas inadmissfveis; cf. SCHMIDT-SALZER, Ailgemeine Geschaftsbedingungen 2 (1977), A. 16 ss. (9 ss.) e ERNST A. Karam, Die iiKrises des liberalen Vertragsdenkens (1974), 15 e 17. 0 recurso aos bons costumes mantem-se hoje em zonas que n -ao pressupoem a eke-tivacio de relacoes especfficas entre as partes, como no domfMo da concorrencia; cf. BERND Rue, Privatrecht and Wirtschaftsordnung Zur vertragsrechtlichen Relevanz der Ordnungsfunktionen dezentraler Interessenkoordination in einer LVettbewerbswirtschaft (1978), 102 ss..

(420)A jurisprudencia francesa ficou-se por este estadio; cf. MENEZES D. ()brisk cit., 1, 108 e elementos of referidos.

24.° 0 dever de actuar segundo a boa f 655

0 ensejo para tais intervencoes era superficial e fraco. Afinal, o

grande problema nos contratos assentes cm condiciks negociais gerais

reside na injustica possivel de alguma ou algumas das suss clausulas

e nao na forma da sua celebracao. Isso em doffs niveis: estivcsse cons-ciente da prcjudicialidade das clausulas a aceitar, a parte debil pouco rnais poderia fazer, na mesma, do que submeter-se, pois nem o utili-zador das condiciies gerais vai, por definicao, alters-las, nevi, por via de regra, 6 possivel encontrar outro parceiro que nao use condi-c'Oes semelhantes; houvesse consciencia da liberdade frustrada, a parte forte nao poderia abdicar do processo: as condicOes negociais gerais sac) hoje explicadas como factor de racionalizacao e progra-macao irrenunciaveis, por exigencia das sociedades tecnicas modernas e nao como puro abuso proporcionado por quaisquer modelos

econOmico-socials (421). 0 controlo judicial efectivo dos contratos obtidos pela utili-

zacio de condicOes contratuais gerais implica uma apreciacao de merit° face as cliusulas questionadas e nao um confronto de acordo

com o modo de formacao.

VI. A experiencia de ponta, no dominio do controlo do contend° dos contratos, obtidos atraves de cng, 6 representada pela lei das condieoes

negociais gerais alerni de 1976 — o AGBG (422). 0 cerne dense diploma, verdadeira codificac5o de toda uma experiencia judicial anterior, assente, no essencial, na boa fe (423), a constituldo pelo dispositivo dos seus §§ 8-11 que visam o controlo judicial das cng que se tornaram parte de

urn contrato. Esse controlo limita-se, como regra, as cliusulas que alas-tern ou complementem os preceitos legais — § 8: recorde-se que o Direito

(421) BROX, AllgSchuldR" cit., 11.° 47 (30). Para urn apanhado dos varios factores que,

do exterior, condicionam os contratos, segundo orientacoes diversificadas, KLAUS F. Rom,

Ober ausservertragliche Voraussetzungen des Vertrages, FS Schelsky (1978), 435-480.

(422)Sobre o aparecimento e sistemitica deste diploma, em vigor desde 1-Abr.-1977,

remete-se para MENEZES CORDEIRO, D. Obrigalles cit., 1, 109-111 224-227, na ed. polic.

de 1978). (423) MEDICUS, AIIgT cit., n.° 398 (139); BRox, AllgSchuldR" cit., n.° 48 (31-32),

H. GOTZ, Rechtsfolgen des teiliveisen Verstosses closer Klausel gegen das AGB-Gesetz, NJW 1978,

2223-2226 (2223); CANARIS, Zivilrechtliche Probleme des Warenhausdiebstahls, NJW 1974, 521-

-528 (526); HORST-DIETHER HENSEN, Das AGB-Gesetz, JA 1981, 133-141 (133); WALTER

Lown, Das Gesetz zur Regelung des Rechts der Allgemeinen Gescheiftsbedingungen (AGB-Gesetz),

JuS 1977, 421-429 (426); SCHLOSSER /COESTER-WALTJEN/GRABA, AGBG-Komm (Goma),

S 9 (1977), n.° 12 (208); ULMER/BRANDNERIHENSEN, AGBG-IComm 3 (Bambino), § pren. §§ 10

e 11 (1978), n.° 3 (232). Cf. LARENZ, AllgTs cit., 514 e FRANcEsarstufLEnnteror, La nuova

legge tedesca smile condizioni generali di contratto, sep. Fl 101 (1978), 13. CORDEIRO,

656 A boa Jr corny regra de conduta

§ 24.° 0 clever de actuar segundo a boa fe 657

das obrigackies é, por natureza, supletivo; as cliusulas correspondenc es a essas normas tern, como é logic°, o apoio do Direito, sem carecer de um controlo suplementar. Escapam ao controlo as cliusulas acordadas directamente pelas partes -estranhas, pois, ao mecanismo das cng - e as referentes as prestagoes principals em si - nas palavras de LARENZ, pretendeu evitar-se aos tribunais o terem de proceder a controlos de precos (424), que integram, alias, o tnicleo indispensivel da autonomia privada.

A regra fundamental do controlo em causa consta do § 9/1 AGBG: .Sao ineficazes nas condicOes contratuais gerais as disposicoes que, contra as regras da boa f6, prejudiqucm o parceiro contratual do utilizado r de forma desproporcionada.. 0 § 9/2 precisa: «Na dtivida, 6 de considerar urn prejuizo desproporcionado quando uma disposicao: 1. seja incon-ciliivel corn principios fundamentals da regulaclo legal a que se entendeu rigo acordar; 2. limite de tal modo direitos ou deveres que rcsultem da natureza do contrato quc a obtencao do escopo contratual seja posta em perigo.. As normas do § 9 surgem um tanto vagas, prestando-se a conjugagao entre a boa fe e o oprejuizo desproporcionado* pela vaguidade acrescida, a objeccoes criticas (425). Compreende, para alem de toda a

recepcio cientifica e cultural que a remissao solene para a boa 16, s6 por si, implica, duas precisties importances: o manter, como bitola de decisao, as regras supletivas que, ao caso, teriam aplicacao e o acentuar, corn o mesmo papel, a teleologia contratual, considerando como criterio o tipo contratual normal (426).

Sempre na base de uma rica jurisprudencia anterior, os §§ 10 e 11 AGBG vieram concretizar, numa serie de preceitos, o que, de algum modo, era ji implicado pela mencao a boa fe. No § 10, enumeram-se cliusulas proibidas nas cng, desde quc, sujeitas a urn juizo de valor do tribunal, essa proibicao deva ter lugar. Neste juizo de valor intervem, de novo, a boa fe (427) o que a dizer, as linhas concretizadoras, ja definidas no § 9/2, atraves das regras supletivas gerais e da ponderagao teleologica do tipo contratual em jogo. No § 11, a enumeracao atinge, tambem, urn certo ntimero de cliusulas que, delta vez, sao proibidas em absoluto, sem necessidade de juizos judiciais nesse sentido (428). As listagens dos §§ 10 e 11 nio se aplicam is cng apresentadas a comerciantes, no exer-cicio da sua actividade, ou a instituicOes de Direito pUblico, nos termos do § 24/1 do AGBG: entendeu-se que, nesse caso, a limitacao is autonomia privada poderia ser excessiva (429); alem de que, em tal eventualidade nao se verifica, em igual grau, a ignorancia e a inexperiencia que justi-ficam a proteccio dispensada ao interveniente debil.

0 sentido geral das bitolas em jogo, no conteado dos contratos obtidos na base de condicoes negociais gerais, c afiancado pelo seu regime: (424) LARENZ, AIIgT 5 cit., 515, retomando o relatOrio que acompanhou o projecto de

lei; cf. BRANDNER Schranken der Inhaltskontrolle cit., 3. Quanto aos contratos em cujo conteado ambas as panes tenham tido a possibilidade efectiva de intervir, fora, cm princlpio, do controlo determinado para os resultantes das cng, GUNTHER STEIN, Die Inhaltskontrolle vorfinnulierter Vcrtrage des allgemeinen Privatrechts / Zuni Spannungsverhaltnis der KontrollverJahren aufgrund des AGB-Gesetzes mid § 242 BGB (1982), 44.

(425) PETER-CHRISTIAN MOLLER-GRAFF, Das Gesetz zur Regelung des Rechts der AlIse-whim Geschigisbedingungen JZ 1977, 245-255 (253); SCHLOSSER /COESTER-WALTJEN/GRAHA, AGBG-Kamm (GRABA) cit., § 9, n.° 15 (211), chama, a atenclo para a desnccessidade da referencia a boa fti ai fcita; a sua inclusao deu-se corn a justificacao, nos preparatorios, de que szrviria a continuidade da jurisprudencia; como explica GRABA, cssa continuidade nao depende de preceitos legais. Tens razio; silo obstante, dada a fungi°, acessOria mas efectiva, que a lei assume no donsinio da pedagogia juridica, as menciks dense tipo obrigam os juristas a estudar e a praticar a Ciencia quc as implica. As rcferencias feitas a boa fe objectiva pelo Codigo Civil portugues serials), em rigor dispensiveis; e sao fundamentals.

A cstas razoes gerais, hi quc atentar, para decidir da oportunidade e do relevo da remissao, fcita no § 9/1 AGDG a boa fe , na colocacao historica do preceito e na sua economia. Como explica STAUDINGER/SCHLOSSER, AGBG cit., § 9, n.° 1 (134), o legislador dedicou-se, nesse diploma, a concretizar e a sistcmatizar o controlo do contetido desenvolvido a partir do § 242 BGB; tal tarcfa, por definicao, dados os factores ens jogo, ficaria, necessariamente, incompleta; daf a fatalidade de, junto das enumeracoes constantes dos §§ 10 e 11, anexar ulna referencia a claussila geral. Cf. Kdrz Afiinch-Komm AGBG cit., § 9, n.° 3 (1448) e HENSEN, AGBG cit., 137, focando a natureza residual do § 9 em jogo.

A remissao pars a boa 16, feita nos termos gerais do AGBG, pode levantar 0 problema dc saber qual a aplicaclo concretizadora al prevista. PALANDT/HEINRICHS 42 cit., AGBG § 9, 1) (2242) inclina-se para a hipotese do abuso do direito, na versao do abuso institu-

clonal - cf. quanto a esta nocao e sua critica, infra, n.° 82. Nao 6. No abuso do direito - ou,

de modo mais lato e correcto, no exercfcio inadmissivel de posicoes juridicas - a boa 16 actua no ambito de permissoes normativas especificas. No controlo do conteudo contratual, a boa 16,

sem se integrar num instituto complexo, actua na conduta das partes, desenvolvida em termos livres na permissio generica de actuacao juridica, o que 6 dizer, de autonomia privada.

(426) LOWE, AGBG cit., 426; SCHLOSSER/COESTER-WALTJEN/GRABA, AGBG-Komm

(GRABA) cit., § 9, n.° 23 ss. e 30 ss. (215 ss. e 219 ss.); ULMF4BRANDNER/HENSEN, AGBG-

-Komi (BRANDNER) cit., § 9, n.° 57 ss. e 61 ss. (213 ss. e 215 ss.); KealMiinch-Komm

AGBG cit., § 9, n.° 12 e 13 (1453-1454); STAUDINGER/SCHLOSSER, AGBG cit., § 9, n.° 20 ss.

(142 ss.). (427) ULMER/BRANDNER/HENSEN, AGBG-Komm 3 (BRANDNER) Cit., prenot. §§ 10 e 11,

n.° 6 (233) e HENSEN, AGBG cit., 138. Tern o maior interesse a leitura das cliusulas

atingidas. Cf., focando a aproximacio corn o § 9/2, PALANDT/HEINRICHS 42 , AGBG § 10,

nota previa (2249). Dado, precisamente, o pressupor urn juizo complementar de valor, o § 10 compreende, em comparacio corn o § 11, bastantes mais conceitos indeterminados -

MOLLER-GRAFF, AGBG cit., 253.

(428) Kocif/STUBING, AGBG-Komm, cit., prenot. §§ 8-11 n.° 3 (134), consideram as

cliusulas do § 11 como tendo caricter definidor; as do § 10 te-lo-iam, antes, precisador -

cf. thatzat/BRANDNER/HENsEN, AGBG-Komm 3 (BRANDNER) cit., prenot. §§ 10 e 11, n.° 4 (232).

(429) UWE, AGBG cit., 426; SCHLOSSER/COESTER-WALTJEN/GRABA, AGBG-Komm

(ScHLossER) cit., § 24, n.° 1 (637 e 638); ULMER/BRANDNER/HENSEN, AGBG-Kortn 3

(BRANDNER) cit., § 24, n.° 7 (626-627).

42

658 A boa fe como regra de conduta

a clausula viciada a ineficaz, aplicando-se, em sua substituicio, seja a regra supletiva que se quis afastar, seja a norma correspondente ao tipo

contratual em causa, seja, por fim, o que resulte dos esquemas da gragao negocial, cede intervem, tambem, a boa fe.

VII. A lei alemi sobre as condicoes negociais gerais, de inte- resse muito especial por assentar na codificacio de uma jurispruden cia

experiente e nao numa inspiracio legislativa stibita, demonstra o papel da boa fe no controlo dos conteticlos contratuais, obtido s pela ades3o a essas condicoes. Como concretizac3o da boa 16, colo- ca-se a bitola de urn certo equilibrio material entre as vantagens auferidas, gracas ao contrato, pelas partes: nao se admitem prejuizos desproporcionados. Esta ideia 6, por seu turno, precisada seja atraves da regulacao legal supletiva, afastada pelo contrato em causa, e tomada como modelo de equilibrio, seja mediante o cotejo com o tipo con- tratual corrente, considerando o confronto em termos teleolOgicos.

Este esquema vigora por lei expressa; quando ela no existia, funcionava ji, por via da jurisprudencia, assente na clausula geral da boa f6. Em Portugal, a vigencia desta orientacio 6 possivel, na base do art. 762.°/2 e, se necessario fosse, na do art. 334.° ( 430): o dever

(430) Em Portugal, a utilizacao da boa fe — ou ate de esquemas mais simples, por vezes possiveis — para controlar o conteudo dos contratos, mesmo quando estejam cm causa cng, encontra-se num estado confrangedor. Isso apesar de, desde Jost TAVARES, a doutrina aludir aos scontratos de adesio* e aos seus perigos, corn remodios destinados a fazer-lhes face; para urn apontamento de literatura portuguesa sobre o tema, cf. MENEZES CORDEIRO, D. Obri-gacdes cit., 1, 98114. N4o ha jurisprud8ncia que documente o tema, embora se tenha conhecimento, a nivel de primeira instincia, de que quaisquer tentativas de sensibilizar o tribunal para a injustica ou o abuso de certas condicoes gerais, tern sido votadas ao fracasso. Refira-se, contudo, o ac. antigo do STJ 3-Jul.-1945: uma pessoa celebrara, corn uma seguradora, urn seguro de rcsponsabilidade por danos advenientes de automcivel; ao faze-lo, pretenders urn seguro contra todos os riscos; simplesmente, a seguradora exclufra, desse 3mbito

, nas cng, os danos causados a passageiros, em termos que o segundo afirma desconhecer, dado nao the terem sido contrapostos, quando solicitara urn seguro geral, e constarern, em letra miOda, sob o titulo, bem legivel, «apolice pars todos os riscov►; alegou-se, ainda, a boa fe contratual, nit) obstante nao vir expressa no Cedigo de Seabra. 0 Supremo decidiu nab repreender tal contrato, considerando que o segurado sabia ler, tivera em mios a apolice, durante muito tempo e celebrara livremente o contrato — STJ 3-Jul.-1945, ROA 5 (1945), 3-4, 335--337 e 341); houve, no entanto, urn voto de vencido, onde se entendeu haver disparidade entre a vontade do segurado e o contrato alcancado atraves do mecanismo das condicoes gerais. Em an., ACACIO FURTADO, ROA 5 (1945), 3-4, 343-348 (348), mostra-se surpreendido: a propria escritura palica pode ser alegada de nulidade, por nao respeitar a vontade

§ 24.° 0 dever de actuar segundo a boa fe 659

de actuacio segundo a boa fe implica, seguramente, o de no preju-

dicar, mediante condicoes negociais gerais, de modo desproporcio-

nado, a contraparte: a desproporca- o pode ser determinada, de forma cOmoda, tomando por bitola a regulacio supletiva normal, consa-

grada na lei ou o tipo contratual normal, atentos os fins deste c os que o contrato questionado permita obter.

A ligacio desta forma de controlo aos contratos celebrados atra-ves de condicoes negociais gerais radica, por urn lado, na acuidade

especial que esse processo formativo, pela sua projeccio social e pela facilidade de abusos, reveste; por outro, no pensamento jusliberal que entende intocivel a autonomia privada: os contratos so poderiam ser corrigidos por ter havido falhas na sua celebracao o que, dada a adeFlo, estaria facilitado. Tudo isto pode ser dobrado pelo reconhe-cimento, a pessoa que ponha a aceitacio de uma generalidade de outras as condicoes gerais, de urn dever especial de moderacio e equilibrio. Deve-se ter em conta, ainda, o facto de o Direito no pretender, contra a vontade das partes, o equilibrio: a possibilidade de con tratos a titulo gratuito demonstra-o; ponto 6 que as partes disso estejam sabedoras e desejosas.

Corn estas precisoes, no ha rail° definitiva para limitar aos contratos oriundos de condicoes negociais gerais o controlo do con-teOdo. A mediacio entre os contratos obtidos por essa forma e os que advenham de actividades singulares, destinadas, de modo espe-&lc°, a procura de negOcios particulares, a assegurada pelos con-tratos pre-formulados (431

). Nestes, independentemente da gene-ralidade que domina o funcionamento das condicoes negociais gerais, assiste-se ao apresentar, por uma das partes a outra, de um clausulado rigido, que ela se limita a aceitar ou a recusar (432).

das partes; as cng, pelo contario, Sao, pelo Supremo, consideradas inatingiveis. Tern taxa();

o Supremo decidiu mal. 0 problema posto em Portugal pelas cng e pelos abusos registados, a nfveis cads vez

mais extensos, como, p. ex., no comercio autom6vel ou na venda de habitacaes, exigem uma resposta jurfdica. Na iinpossibilidade de se alcancarem resultados pela disseminacio juscien- tffica de soluc'Oes assentes na boa fe, justifica-se uma intervencao legislativa cuidada.

(431) G. STEIN, Die Inhaltskontrolle vorformulierter Vertrage cit., 47, 48, 50 e 53, p. ex..

(432) G. STEN, Die Inhaltskontrolle vorformulierter Vertrage cit., 96, 97-98, 99, 114-115

e 139. Nao interessa examinar corn pormenor os aspectos que, do AGBG podem ser aplicados, de forma directs, a contratos nit) provenientes de cng e as areas onde se coma necessido recorrer

aos principios gerais. Sobre o tema vide STEIN, ob. e loc. cit..

660 A boa fe como regra de conduta

0 passo seguinte nao oferece dificuldades: os vicios substanciais, por um prisma de justica material, nao podem depender de tipifi-cacoes a operar no modo de formacao dos contratos, sob pena de se chegar a estereotipos ou a novos formalismos. A boa fe, como regra de conduta, nao admite prejuizos graves, infligidos por via contra-tual, salva a presenca de animus donandi ou similar. Este nunca se presume na hipOtese de condicoes negociais gerais que, por isso, se sujeitam a um controlo acrescido; em grau menor, sucede outro-tanto nos contratos pre-formulados; no limite, ocorre em todos. A culpa in contrahendo aparece vocacionada para enquadrar estas hip6- teses: a pessoa que aceite - urn contrato desfavorivel nao foi esclare-cida, nos prcliminares, competindo a parte forte e experiente faze-lo. Mas a regra da conduta segundo a boa fe, é geral.

A concretizacao da boa fe, aqui em jogo, prende-se nao, em directo, corn a proteccao da confianca, mas corn dados fundamcntais do sistema, como o equilibrio das prestacoes, que a lei, de modo expresso, faz intervir na interpretacao negocial — art. 237.° —ou a producao de efeitos reais, por oposicao a simulacros que inuti-lizem os escopos pretendidos, face ao tipo contratual eleito.

O controlo do contetido dos contratos revela facetas da boa fe que se confirmam atraves do estudo de outras das suas aplicacoes institucionais.

CAPITULO HI

0 EXERCICIO INADMISSIVEL DE POSIOES JURiDICAS

sEcc7.0

0 ABUSO DO DIREITO

S 25.° PRESSUPOSTOS DOGMATICOS DO ABUSO DO DIREITO

63. A previsio legal do acto abusivo; o Direito subjectivo

I. 0 COdigo Civil fere, no seu art. 334.°, determinados actos como abusivos. Preve, para tanto, o titular que exceda manifes-tamente, no exercicio do direito, limites impostos pela boa fe, pelos bons costumes ou pelo seu fim social ou economic°. 0 elemento literal exprime urn ambito unificado por parte da previa° — o exer-cicio do direito e o seu excesso manifesto perante certos limites — por uma qualificacao, em epigrafe — o abuso — e pela estatuicao — a ile-gitimidade ou, melhor dizendo, a proibicao; reparte-o, podem, por tees areas atinentes a previsao: em causa ficam limites impostos pela boa fe, pelos bons costumes ou pelo fim social ou economic° dos direi-tos. Do enunciado, por deducao, retira-se que a boa fe e os bons costumes impoem, ou podem impor, limites ao exercicio dos direitos e que ester tern, ou podem ter, um fim social e economic° o qual, por seu turno, limita tambem, ou pode limitar, o seu exercicio. Este Ultimo limite a especifico — cada direito tem, ou pode ter o seu fim social e econOmico; os dois primeiros sao gerais: a boa fe e os bons costumes nao emergem, na formula legal, de cada direito em si.

§ 28. ° Venire contra faceun: proprium 743

§ 28.° VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM

70. Os comportarnentos contraditorios e a sua inadmissi-bilidade

os quadros dessa proposigio nos Direitos romano, ingles e alemao, mencionando, ainda, o Direito canonic°, os glosadores, os conciliadores e a evolucao posterior, ate A pandectistica (365) . No Direito romano,

nao havia uma regra geral que vedasse o vcfp ( 366), mas apenas casos

singulares onde esse tipo de comportamento era proscrito ( 367). De igual modo, a casuistica canonica existente sobre o terra, mais do que a urn principio geral de Direito, deve ser imputada aos valores que informam o Direito canonic° (368). Os glosadores criaram a formula .venire contra proprium factum nulli concediturs, embora nem sempre a

aplicassem (369). Ji o Direito ingles, apesar da diversidade que aparenta em relacio aos Direitos continentais, consagrou, atraves do instituto do estoppel (370), a proibicao de contrariar o comportamento anterior e que tern larga aplicacao. No Direito alemio, por fim, RIEZLER comecou por deixar claro que a proibicao de vcfp, ao contrario, por exemplo, da de contrariedade aos bons costumes, nao constitui um principio que retire de si pro/3d°, como postulado etico, uma justificac -ao juridico--politica, e dai tenha pretensio de validade geral. Coloca-se, subjacente A sua existencia, urn problema de interesses em confiito, que o Direito pode resolver muito diferentemente ( 371). 0 BGB nao soluciona o problema corn generalidade, embora se possam apontar preceitos que vedam comportamentos contraditOrios. A questa() nao pode ser resol-vida em termos genericos; RIEZLER, numa metodologia prepria da ter-

I. A locucao venire contra factum proprium traduz o exercicio de uma posicio juridica em contradicio corn o comportamento assumido anteriormente pelo exercente (360). Esse exercicio é tido, sem contestacao por parte da doutrina que o conhece, como inadmis-sive'. A articulacao interna do venire contra factum proprium, o seu ambito, a sua fundamentaclo, as suas ligacoes as outras regulacoes tipicas do exercicio inadmissivel dos direitos e, ate, a sua reconduclo a boa fe suscitam, pelo contrario, controversias acesas (361 ). A prOpria inadmissibilidade basica do venire no pode afirmar-se regra, a partida.

A situacao do vcfp, na doutrina, apresenta-se insolita, dentro da vasta claboracao dedicada A boa fe. Por um lado, integra urn sector sugestivo das actuacoes inadmissiveis, sendo muito citado e corn urn ambito consi-derivel (362); por outro, concita urn aprofundamento modesto e cienti-ficamente insatisfatOrio, tendo sido necessario aguardar as investigagOes de CANAR1S, em 1971, para atraves da sua integraclo na doutrina da proteccio da confianga, dinarnizar a formula ( 363).

A presenca do vcfp na Ciencia do Direito moderna deve-se A monografia de RIEZLER, publicada no principio do seculo ( 364). R. traca

(433) RIEZLER, Venire contra factum proprium cit., 1 ss., 55 ss., 110 ss., 40 ss. e 43 ss..

respectivamente. (434) RIEZLER, Venire contra factum propriurn cit., 1; o A. documenta a sua afirmacao

atraves da existencia do precariurn, da possibilidade de revogar a oferta ate a aceitac5o, do direito de recesso na cessio bonorum, da condictio propter poenitentiam e do poder de renun-

ciar a prossecucio de uma restitutio in integrutn. (435) RIEZLER, Venire contra factum propriutn cit., 4-40; o A. exemplifica coin a servidao,

ineficaz por nao ter sido confirmada na sua constituicio, por todos os comproprietirios do pridio serviente, mas a que aqueles que ji haviam consentido podem por obstaculo

— 6 — corn a ch. emaucipatio tacita, segundo a qual o pater, apesar de nao ter emancipado a

filha do seu poder, nao devia, morta a filha, impugnar o testamento dela, por incapacidack, se sempre a houvesse tratado como emancipada — 13 — coin a exceptio eel venditae et traditae,

muito conhecida, concedida ao comprador contra o vendedor que reivindicasse a coisa vendida e entregue,-com pagamento do preco, por Niel° formal — 17 ss. — corn a ratihabitio

(ratificacio) da gestio, feita extemporaneamente e, em principio, ineficaz, mas seguida de accio contra o gestor — 31 — cons a quebra de promessa carecida de eacacia juriclico--formal, mas que, causando danos, obrigaria a reparaclo — 32 — e corn a aceitacio de um cumprimento de obrigacio invilida por falta de forma, que constituiria um factual proprium,

ens termos de nao poder ser contrariado — 38. (436) RIEZLER, Venire contra factum proprium cit., 42.

(437) RIEZLER, Venire contra factum proprium cit., 43 ss.. R. aponta, na evolucio subse-

quente, que a expressao so apareceu muito esporadicamente na pandectistica.

(3") Cf. ZWEIGERT/KOTZ, Einf i. d. Rvgl cit., 2, 301 ss.

(371 ) RIEZLER, Venire contra factutn proprium cit., 110 ss..

(360) WEBER, Teen und Glauber cit., D 323 (821). (361) CANARIS, Die Vertrauettshaftung int deutsche,, Privatrecht (1971), reimpr. (1981),

287, WIELING, Venire contra factuns proprium und Verschulden gegen sick selbst, AcP 176 (1976), 334-355 (334) e AK/BGB/TEurniER, § 242, n.° 32 (50).

(362) P. ex., ESsER/SCIimmT, SchuldRIAT 5 cit., 1, 49, FIKENTSCHER, SchuIdR 6 cit., § 27, II, 3 (118), BROx, AllgSchuldR" cit., n.° 87 (55) e LARENZ, SchuldR/AT' 3 cit., 123 e, quanto a comentarios, p. ex., WEBER, Tres, und Glauben cit., D 323 (821), SOERGEL/SIEBERT / /KNOPP, BGBI° cit., § 242, is.° 228 (67) e Rom' Miinch-Komm cit., n.° 295 (146).

(363) CANARIS, Vertrauenshaftung cit. 287. 0 estudo de CANARIS provocaria o artigo de WIELING, dc sinal contrario e, depois, a grande reformulacio empreendida por JURGEN SCHMIDT, abaixo analisada.

(364) RIEZLER, Venire contra facing,: proprium / Studien im romischen, englischen und deutsche,: Zivilrecht (1912), cons rec. apreciativa de HEINRICH TITZE, ZHR 77 (1915), 233-242 (241).

744

0 exercicio inadmissivel de posicoes juridicas

ceira sistematica e da doutrina posterior a segunda codificagao, passa a analisar varias situagoes tipicas onde a proibicao de vcfp pode ester presente. Descobre quatro: 1) 0 negocio juridico invalido 6 cumprid o voluntariamente, sendo a repetigio dificil; 2) Por decisao de uma pessoa, em regra de tipo potestativo, constitui-se uma situagao juridica; 3) Alguer n cria uma aparencia juridica na qual pessoas confiam; 4) Alguem cria um a situagio de risco conexa a uma relagao juridica (372).

0 livro de RIEZLER teve, nos anos subsequentes ao seu aparecimento, algum efeito. LEHMANN aperfeigoaria dogmaticamente certos contorno s do vcfp, tentando a sua aplicagio ao problema da desoneragio dos sOcios que abandonem sociedades em nome colectivo pelas vinculaciies emergentes de contratos de fomecimento pendentes (373). L. afirma que os comportamentos contraditorios podem ser agrupados numa formula dupla: ninguem pode fazer valer urn poder em contradigao corn o seu comportamento anterior, quando este comportamento, a luz da lei, dos bons costumes ou da boa fe, se deva entender como renrincia conco-mitante ao poder ou quando o exercicio posterior do poder contunda corn a lei, os bons costumes ou a boa fe. Na primeira proposicao, reunem-se os casos em que urn comportamento determinado é, de ante-ago, inconciliavel corn a manutenglo de urn poder — casos ditos, corn impropriedade, de remincia tacita; na segunda, ordenam-se as hipoteses de arguigao de nulidade de um negocio, depois de se ter patenteado a sua validade, de actuagio da realidade, depois de se ter criado uma aparencia e de comportamentos que apenas pelas suas consequencias se vem a apresentar como contraditOrios (374). A construgao de L., sem avangar muito na via de uma concretizagao verdadeira, peca ainda por nao auto-nomizar o papel da boa fe, colocada lado a lado corn a lei e os bons costumes.

Tambem RUNDSTEIN dedicaria urn escrito ao vcfp (375); trata-se, mais precisamente, de um artigo sobre Direito frances. Mas sem novi-dade cientifica: R. analisa um certo ntimero de regulagoes francesas, muitas de base puramente legal, quc traduziriam, de algum modo, a proibigio de vcfp (376) e coteja, a face do Direito frances, as quatro-ou cinco — situagoes tipicas de vcfp, ponderadas por RIEZLER (377).

(372) RIEZLER, Venire contra factunr propriunt cit., 110 ss. (131-132) e 134 ss.. R. acrescenta ainda um quinto grupo de casos, que reconhece nao serem de vcfp, embora corn de se relacio-nem: o recurso ao prOprio nao-direito que, contrariando os bons costumes, di lugar a maxima turpitudinem mats allegans non auditur.

(373) HEINIUCH LEHMANN, Die Enthaftung des ausgeschiedenen Gesellschafters der offenen Hantagesellschaft von Verbindlichkeiten aus schwebenden Lieferungsvertragen / Zugleich ein Beitrag zur Lehre vont gegensatzlichen Verhalten, ZHR 79 (1916), 57-103.

(04) H. LEHMANN, Enthaftung des ausgeschieden Gesellschafters cit., 98. (315) S. RUNDSTEIN, Der Widerspruch mit dem eigenen Verhalten in der Theorie des

franzosisthen Privatrechts, AbiirgR 43, (1919), 319-379. ("') S. RUNDSTEIN, Der Widerspruch mit dem eigenen Verhalten cit., 326-344. (7 S. RUNDSTEIN, Der Widerspruch mit dem eigenen Verhalten cit., 344-379.

§ 28. ° Venire contra factunt propriuni 745

De entao para ca, o vcfp viveu, na pratica, de referencias em obras gerais e em comentarios, corn relevancia para o de STAUDINGER/

/ WEBER" (378), sem progressos ate a decada de setenta. 0 sucesso do vcfp deve-se, por urn lado, a impressividade da prOpria

formula e a divulgagao do escrito de RIEZLER; a sua incipiencia deriva da complexidade natural da materia e da vasticlao nela figurada: afinal e em Ultima analise, como a maioria das situagoes juridicas tom base voluntaria, nao sera qualquer litigio em que o titular as contrarie, vcfp?

II. Venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, licitos em si e diferidos no tempo. 0 primeiro — o factum proprium — é, porem, contrariado pelo segundo. Esta fOrmula provoca, a partida, reaccoes afectivas que devem ser evitadas. Na linha de investigacao preconizada, ha que comecar por situacaes singulares redutiveis, eventualmente, ao venire contra factuni proprium e indagar da sua valoracao, a luz do Direito vigente.. Ponderar varios tipos de facta propria coloca um problema de sistematizacio. As ten-tativas realizadas ate hoje (379) nao sao satisfatOrias, quando entendidas

(378) W. WEBER, Treu and Glauben cit., 821-840. 0 vcfp estendeu-se, corn a boa fe,

fora do Direito civil, por vezes, ate, indevidamente. Assim, BELTZ, Treu and Glauben rand die

guten Sitten nach neuer Rechtsauffassung rand ihre Geltung in der ZPO cit., 79, prop& a sua

transposicio para o Direito processual civil, em 1937; contradi-lo BRumarrEL, Treu

and Glauben, guten Sitten and Schikaneverbot ins Erkenntnisverfahren cit., 119-123, para quem, salvas as relacaes corn comportamentos extraprocessuais e certas situagoes-limite, as partes devem conservar, em processo, grande latitude de actuacio. Teri razio. S6 que, tambem no Direito civil, nab existe, a partida, uma regra geral de nio-contradicio, como se vai ver.

(379) Referiu-se, supra I, a dassificacio proposta por RIEZLER e utilizada, ainda, por

RUNDSTEIN; W. WEBER, Teen rand Glauben cit., D 326 (823), considera-a como nao exaustiva,

enquanto CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 2873, afirma compreender ela proposicoes concreti-

zadoras escassas. 0 pre:Trio CANARIS trata o problema pelo prisma do vcfp como caracteris-tica-base de pretensoes, distinguindo: 1. pretensoes em negocios corn nulidade formal; 2. pretensoes em neg6cios corn outras falhas; 3. pretensoes em negOcios interpretados corn erro;

pretensoes em situacaes derivadas da prestacio voluntaria — Vertrauenshaftung cit., 288-372

—e realiza, nessa base, o maior estudo existente sobre a materia; antes, MERz/Berner Komm,

havia ordenado, no vcfp: 1. a alegacbo inadmissivel do desaparecimento do direito do credor, causado contra a confianca suscitada; 2. alegacio inadmissivel da invalidade formal; 3. a sup-

pressio; 4. certos casos de comportamento contraditorio. MERZ desenvolve, depois, em especial,

a alegacio inadmissivel de nulidades formais e a suppressio — Berner Komm cit., Art. 2,

335-343, 346 ss. e 361 ss., respectivamente. RoTHIMiinch-Komm dassifica as situagoes de

contradicao corn o comportamento anterior cm: 1. comportamentos originadores de confianca, depois contrariada; 2. comportamentos contraditarios, independentemente da confianca;

3• suPPrerno — Miinch-Komm cit., § 242, n.° 301-371 (148-162). STAUDINGER / SCHMIDT, BGB18

Cit., que, das aplicacaes da boa 1 .6, di urn esquema muito diferente do comum, integra vcfp, sucessivamente como, sempre em conjunto corn outros, factor de normal novas para o

746 0 exercicio Madmissivel de poskoes juridicas

como verdadeiras sistematizacoes internal do fenomeno. Qualquer ordenacao corn pretens5cs a sistematica deve transcender puros aji- nhamentos empiricos de realidades sortidas. E por rigor metol& gico, deve evitar-se fazer intervir, na arrumacao dos tipos de venire

contra factum proprium, criterios que pressuponham a natureza do fen& meno ou a determinacao do seu ambito, quando estas devam ser concluidas da sistematizacao engendrada: a inversao seria manifesta.

0 ambito extenso de que o venire contra facturn proprium se pode revestir requer uma delimitacao previa, ainda que empirica e provi-sOria, do alcance figurativo da fOrmula. Desse modo, só se considera como venire contra factinn proprium a contradicao directa entre a situa-cao juridica originada pelo factum proprium e o segundo comporta-mento do autor (380). Por outro lado, afasta-se, tambem, a partida, a hipOtese de o factum proprium, por integrar os postulados da autono-mia privada, surgir como acto juriclico (381 ) que vincule o autor em termos de o segundo comportamento representar uma violack desse dever especifico; accionar-se-iam, entao, os pressupostos da chamada responsabilidade obrigacional e nao os do exercicio inadmis-sivel de posicoes juridicas (

382 ). Feitas estas precisoes, ha venire contra

formar de direitos subjectivos, factor negativo novo na previa:, de surgimento de direitos subjectivos e factor de normal novas para modificacao de direitos existentes — STAUDINGER/

/Scsraurn., BGBI 2 cit., § 242, n.° 553 ss., 580 ss. e 606 ss.; avance-se ja que J. SCHMIDT chega, nos tres casos, a conclusio da inutilidade do vcfp. Outros autores tratam o vcfp por forma pura-mente topico-casufstica, sem fazerem arrumacaes nos casos que reconduzam a essa formula, assim procedeu SOERCEL/SIEBERT/KNOPP, BGB 1 ° Cit., § 242, n.° 228-240 (67-69), ERMAN/SIRP,

BGB6 cit., § 242, n.° 79 (470), BGB/RGRK/ALFF 12 cit., § 242, n. ° 93-119 (29-35) e AK/BGB / /TEUHNER Cit., § 242, n: ° 31-32 (50-51). Este Ultimo A., exemplificando, opina a incapacidade de generalizacio dc casos tidos por de vcfp, enquanto STAUDINCER/SCHMIDT, BGB12 Cit.,

§ 242, n.° 554 (188), sublinham uma al. heterogeneidade dos comportamentos contraditorios. Ambas as afirmacoes sari exageradas: é possivel encontrar tracos comuns nos exemplos de vcfp que a pratica indica, embora seja preciso pOr de parte, em definitivo, uma metodologia juridica conceptual-dedutivistica. No que coca, porem, Is sistematizacoes acima apontadas, dove sublinhar-se que a de STAUDINGER/SCHMIDT é, reconhecidamente, uma classificacio que nada tern a ver corn a boa fe e, por conseguinte, com o vcfp, como resulta das conexoes existences mitre as duas realidades; nas restantes, a hesitacao, a nao uniformidade e o empirismo sao patentes.

(380) Exdui-se, pois, no fundamental, a suppressio, a actuacio por conta prOpria, a situa-Cab dita de to quo que e a do ch. dolo initial; quanto ao sentido destas figuras, cuja ponderaclo a luz do vcfp, uma vez determinado, nao deixara de ser feita, cf. infra, §§ 30.°42.°.

(3st) Mantem-se a dogmatizacio fixada em MENEZES CORDER°, D. Obrigacoes cit., 1, 49 ss..

(382) 0 concurso seria possivel, eon termos reais, caso o venire contra factum proprium nao tivesse alcance supletivo.

28.° Venire contra factum proprium 747

faction proprium, em primeira linha, numa de duas situacoes: quando

Iona pessoa, em termos que, especificamente, nao a vinculem, manifeste a intencao de nao it praticar determinado acto e, depois,

o pratique e quando uma pessoa, de modo, tambem, a nao ficar especificamente adstrita, declare pretender avancar corn certa actuacao

e, depois, se negue. Estas hipOteses compreendem sub-modalidades. A pessoa que manifeste a intencao de nao praticar determinado

acto e, depois, o pratique, pode ser condenada, em certas circuns- ancias, ainda quando o acto em causa seja permitido, por integrar o contetido de urn direito subjectivo. Pode ordenar-se a vasta casuis-

tica existente em tres grupos. Num primeiro, o titular-exercente manifesta a intencao de nao

exercer urn direito potestativo, mas exerce -o.

Assim, em BAG 8-Jun.-1972, discutiu-se o seguinte: um traba-lhador — o A. — pretende despedir-se; o empregador — os RR. — opoe-se ao despedimento; urn mes volvido, os RR., alegando o mats estado da empresa, despedem-no; o BAG entendeu haver aqui violas -ao da boa fe, por vcfp, uma vez que, aquando do primeiro comportamento — a recusa — os RR. ji sabiam do mau estado da empresa; nessa base, os dois comportamentos sio, de facto, contraditorios (383).

Em AG Minster, 21-Mar.-1972 decidiu-se haver exercicio inadmis-sivel do direito por parte do senhorio que, depois de ter afirmado, ao inqui-lino, a possibilidade de ere permanecer no local arrendado ate certa data minima veio, antes dela, rescindir o contrato de arrendamento (384).

Em OLG Koln, 8-Nov.-1972 decidiu-se que o comprador de um veiculo pesado que aceita, em negociacio, a reparagio de certo vicio, nao pode, por vcfp, devolver o veiculo contra o preco, alegando outro vicio adveniente (385).

(383) BAG, 8-Jun.-1972, NJW 1972, 1878-1880 (1879). 0 regime da demincia do con-

trato de trabalho 6, como se ve, diferente do portugues.

(384) AG Miister, 21-Mar.-1972, WuM 1975, 32. ROTH, no Munch-Kotnin cit., § 242,

11.0 301 (148), aponta, como semelhantes, as decisoes AG Hannover, 9-Fev.-1972 e AG Köln,

8-Mar.-1971. Nio e assim. Na primeira, decidiu-se apenas que celebrado urn arrendamento por prazo indeterminado, nao pode o senhorio, por forca da regra da boa fe, denunciar o contrato apenas ties meses e mei° volvidos sobre a sua celebraclo, depois do inquilino ter realizado certos melhoramentos — WuM 1973, 19; poderi ser urn caso de exercfcio inadmissi-

vel de direito, mas nao de vcfp; a face do art. 334. 0, a hipOtese seria, alias, de contrariedade ao

8In social e economic° do direito e n-ao de violacio da boa fe. Na segunda, decidiu-se, tambem,

que, celebrado urn contrato similar nao pode, o senhorio, denwacia-lo findo apenas urn ano.

0 tribunal deixou alias, neste ultimo caso, em aberto a hipotese da violacbo da boa fe, a decidiu favoravelmente ao inquilino, corn base noutros lugares normativos — WuM 1971, 156-157.

(385) OLG Köln, 8-Nov.-1972, MDR 1973, 314.

0 exercicio inadmissivel de posiclies juridicas

No segundo, o titular-exercente indicia nao ir exercer uni direito subjectivo comum, mas exerce-o (386).

Em BGH, 23-Abr.-1969, urn agente obtivera urn mandato em exclusivo; simplesmente, na assinatura correspondente, declarara ser apen

as uma formalidade, sem esse sentido; a exigencia posterior de uma indemnizacio por violagio do exclusivo é vcfp, ainda quando nao }raj a dolo na formacio do contrato (387).

No terceiro, finalmente, a pessoa age ao abrigo de uma permissao generica de actuacao e nao de urn direito subjectivo, potestativ o ou comum; nesse ambito — autonomia privada, liberdade de deslo-cacao, por exemplo — declara nao ir tomar determinada atitude, mas acaba por assumi-la. Esta hipOtese de venire contra factum proprium nao tern sido suficientement e esclarecida pela doutrina e pela juris-prudencia. De facto, ela prende-se corn a possibilidade de constitui-cao de obrigacoes atraves de comportamentos concludentes ( 388) ou corn a simples discussao em tomb dos modos de produzir declara-

748

(386) Muitos casos que poderiam ser reconduzidos a esta rubrica ganham autonomia como fenomenos de suppressio. Urn exemplo curioso, dos poucos em que o venire contra factum proprium

foi expressamente reconhecido na jurispruckncia do Codigo Civil de 1966, 6 dado por RLd 17-Jul.-1970, AcRLd 1970, 492-496 (493-494); urn senhorio estimula a insta-Ina° de uma inch:atria domestica no local arrendado e, corn o fundamento na existencia dela, move uma accio de despejo.

(387) BGH 23-Abr.-1969, NJW 1969, 1625-1626. A decisio BGH 18-Abr.-1966, NJW 1966, 1404-1405, de que um agente, beneficiario, tambem, de uma clausula de exclusivo, nio pode mover pretensoes contra o mandante por violacio do exclusivo, depois de, tendo cessado a actividade, ter dado a entender que o exclusivo ja nao vigorava, parece integrar antes uma hipotese de suppressio. SOERGEL/SIEBERT/KNOPP, BGB13 cit., § 242, n.° 234 (68), consideram-na, porern, como de vcfp, sendo certo que esses autores, separando a partida as duas figuras, acabam, afinal, por proceder a uma aproximacao — ob. cit., n.° 281 (81).

Em situacoes de vcfp, quando esteja em causa urn direito subjectivo comum — este tern, corn frequencia, natureza contratual — o factum proprium pode consistir numa interpretacio erronea do contrato. Pelo que segue. Uma interpretacio erronea do contrato leva, em prin-cipio, I aplicacio superveniente do verdadeiro regime e, disso sendo caso, ao funcionamento dos esquemas prOprios da viQ1a4ao contratual. Havendo erro bilateral, ficaria ainda em aberto a hipotese da alteracao do contrato por consentimento nnituo, expressa ou concludentemente manifestado. Pock, no entanto, suceder que nenhuma das saidas acima pre-figuradas seja aplicivel: por mecessidade etico-juriclica• (CANARIS), urn comportamento assente em interpre-tacit) inexacta do contrato e perante a qual a contraparte tenha, de algum modo, assentido, salvaguarda-se por, de outro modo, haver vcfp. Assim, CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 336 SS.,

(388) Os quais se relacionam, alias, coin a forma de constituicio de obrigacoes ch. xrelacoes contratuais de fiat's.; cf. supra, 555 ss. e 642 ss..

§ 28-.° Venire contra factum proprium

749

A sua reconducao ao venire contra factum

proprium ri :Me g °Pei arims i(9) t3i8ri;, corn vantagem, esclarecer certos casos de

fronterra.

III. A pessoa que manifeste a intenc'ao de praticar urn acto e,

a isso, no fique vinculada, integra, normalmente, a previsio de urn negOcio inexistente ou invalid°. A hipOtese mais corrente 6 a da nulidade. Considerar-se que essa pessoa, caso se retrate, incorre

em venire contra factum proprium, representa uma limitaclo a prOpria

estatuicao de nulidade, em termos de ponderacao delicada. 0 agrupamento de facta propria opera, neste campo, corn base

no tipo de nulidade, podendo ser antecedido de classificacao previa que atenda a natureza do negOcio ferido ( 390). Tres exemplos, apenas, tocando a nulidade por contrariedade a lei, a ilegitimidade e a

anulabilidade de deliberacoes sociais.

BGH 26-Out.-1955: urn advogado estipula, corn o constituinte, determinados honorarios de montante muito inferior ao prescrito legal-mente e para valer em caso de exito; a convencio 6 nula por contrariar a lei; porem, tendo perdido a causa, o advogado reclama os honorarios legais; o BGH decidiu a improcedencia do pedido por vcfp, visto a exigencia do advogado contrariar a sua tomada de posicio anterior, sendo, de acordo corn o § 242 BGB, um exercicio inadmissivel de direito (391).

OGHBrZ 2-Dez.-1948: urn pai entrega, em vida, a urn filho do seu primeiro casamento, uma quinta que tinha em comum corn a segunda mulher, da qual tinha varios filhos; estes concordaram na altura; bas-tante tempo volvido, morto o pai, urn dos filhos do segundo casamento vein impugnar a transmissio, alegando a falta de consentimento formal de todos os interessados; o BGH decidiu a improcedencia do pedido: entendeu que o R. ja no podia contar corn o exercicio de cal pretensio, e que este constituiria exercicio inadmissivel de direitos, contrariando o § 242 BGB (392).

(389) Nio se devendo esquecer, a este proposito, a pedra de toque constituida pela neces-

sidade da consciencia da dedaracio, acima enfocada. (390) A doutrina nil) tern, como se viu, elaborado uma sistematizacio satisfatOria.

Vide WIELING, Venire contra factum proprium cit., 339-340.

(391) BGH 26-Out.-1955, BGHZ 18 (1955), 340-350 (341-343 e 347).

(392) OGHBrZ 2-Dez.-1948, OGHZ 1 (1949), 279-285 (279, 280 e 284). 0 proprio

OGHBrZ considerou o caso como de suppressio; os factos que descreve enquadram-se, porem,

no vcfp; cf. WIELING, Venire contra factum proprium cit., 339-340. Em BGH 11-Jan.-1966,

49

750 0 exercicio inadmissivel de posicoes juridicas

BGH 21-Abr.-1960: o director de uma sociedade pretende celebraz, um contrato corn a propria sociedade, o que a possivel nalguns cas

o3. para evitar o contrato consigo proprio, celebrou-se o convenio ar roes da assembleia geral quando, para o efeito, seria competente o conselho fiscal; o BGH recusou a hip6tese de, por todos os socios terern participado na assembleia geral em causa, se entender existir uma deli_ beracao tacita do conselho fiscal; simplesmente, dada a participacio ge rai, seria contririo 1 boa fe permitir a impugnacio posterior da deliberacie em causa, por incompetencia do 6rgio implicado (393).

Pelo relevo pritico que tern e pela delicadeza do problem a, deixa-se para rubrica autOnoma a questa.° das nulidades form* .

IV. Os casos apontados para documentar o venire contra factum proprium nao permitem, de forma alguma, concluir, sem mais, pela natureza inadmissivel do comportamento contraditOrio. Pelo con- trario: 6 importante focar a inexistencia, na Ciencia do Direito actual e nas ordens juridicas por ela informadas, de uma proibicao gene'rica de contradicao ( 394). Apenas circunstincias especiais podem levar a sua aplicacio.

A proibicao de venire contra factum proprium tem, a partida, urn grande poder convincente. Como explica WIEACKER, «o principio do venire contra factum proprium radica fundo na justica pessoal a cujo elemento mais intrinseco pertence a veracidadel (395). Sociologica-camente, o comportamento contraditOrio configura-se como um atentado «contra expectativas fundamentais de continuidade da auto--representacio que respeitam tambem a identidade do parceiro e a

decidiu-se uma questio semelhante, embora suscitada em torn de urn problema de mcapaci-dade. Urn pai celebra certo negocio, corn assentimento do filho; algum tempo depois 6 inter-ditado por dem8ncia serail; mais tarde, o filho vem impugnar o negocio em causa: o BGH decidiu haver, no pedido feito, atentado 3 boa f6, por violacio da confianca criada, na outra parte, dado o comportamento dos implicados — BGHZ 44 (1966), 367-372 (368 c 371). Repare-se, por fim, numa demonstracio tiara do fern:men° da sobreposicio dos tipos previsivos de exercfcios inadmissiveis de posicoes juridicas, que ambos estes casos integram, tam-bem, hip6teses ditas de inalegabilidades de vfcios formais.

(393) BGH 21-Abr.-1960, WM 1960, 803-805 (804 e 805). (394) MEralBerner-Komm, Art. 2 cit., n.° 401 (333); ji TITZE, rec. cit. a RIEZLER,

ZHR 77 (1915), 241. (395) WIEACKER, Preizisierung cit., 28; cf. ERMAN/SIRE, BGB6 cit., § 242, n.° 79 (470),

CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 288.

§ 28.0 Venire contra factum proprium

stia relacao bilateral», nas palavras de TEUBNER (396 )• Bin suma:

a proibicao de venire contra factum proprium traduz a vocacao

psicolOgica e social da regra pacta sunt servanda para a uispositividade, mesmo naqueles casos especificos em que a ordem

jur

idica estabelecida, por razoes estudadas, por desadaptacio ou por incompleicao, iha negue. Este ambiente pre-juridico especial-tante favorivel a admissio do proibir generic° de comportamentos cuutraditOrios nao deve, porem, fazer perder de vista o resultado real de tal aceitacio: todos os comportamentos humanos acabariam por ter acolhimento e proteccao juridicos. Pelo seguinte: o vincular uma pessoa as suas atitudes faz sentido, em particular, quando tenham

usn beneficiirio; este, por seu turno, nao poderia recusar as necessirias

contrapartidas. As permiss'oes normativas esgotar-se-iam no primeiro exercicio e todo o relacionamento social converter-se-ia num

edificio rigido de deveres irrecusiveis. A essencia do juridico contra-diz, por si, tal possibilidade: numa critica classics mas ainda actual, as tentativas de reducao do Direito a sociologia, deve ter-se presente que o Direito nao sanciona o que esti; tern uma vocacao efectiva para dirigir, num sentido ou noutro, os comportamentos humanos. Entre os meios disponiveis para isso, e dos mais avancados pelo prisma da evoluclo social, esti o nao reconhecer relevancia juri-dica a determinados comportamentos. Assente a admissibilidade de tal orientacao — e isso, hi que sublinhi-lo, nos prOprios campos etico, psicolOgico e social —nao seria saida correcta aceitar, por norma, a total irrelevancia juridica de comportamentos que, no entanto, produziriam efeitos apenas contra o seu autor.

factum proprium permite decidir de acordo corn o Direito, o qual,

desde documentam-no — em que o actuar da proibicao de venire contra

Hi, contudo, situacties reais — os exemplos acima indicados

a superacio dos positivismos legalistas mais radicais, nao se identifica corn cads uma das normas juridicas em vigor.

(396) AK/BGB, § 242, 11.° 31: TEUBNER coloca-se na linha de N. LUHMANN, para

quern nio deixa de remeter. Explica N. LUELMANN que etoda a auto-representacio obriga —

t6 porque ela representa urn (auto* que seri aproveitado para a identidade. Se se quer ficar o

memo, deve-se permanecer como sempre se mostrous — Vertrauen2 cit., 69; tamb6m 90-91.

751

0 exercicio inadmissivel de posifiks juridicas

71. ConstrucCies dogmaticas; apreciacio; extensio excessiva da figura

I. 0 equacionar dogmatic° do venire contra factum proprium, como e de esperar perante a incipiencia denotada pela sistematica da figura (397

), apresenta flutuacoes grandes, dobradas por uma imp re, cisao de linguagem, que na.o facilitam o falar-se em tendencias. Sob a reserva do desenvolvimento posterior vai, contudo, ordenar-se a doutrina, distinguindo a reconducao do venire contra factum proprium a boa fe, a confianca, ao negOcio juridic° ou, simplesmente, a su

a dissolucao. A afirmacao de que o venire contra factum proprium e aplicacao

da boa fé ou, se se quiser, que o assumir de comportamentos contra-ditOrios viola a regra da observancia da boa fe, a comum na dou-trina (398) e na jurisprudencia (399). Assim apresentada, a justificaCl o

(397) Recorde-se que dogmatica e sistematica nao devem ser confundidas: dogmatica 6 a reconduclo de normas e principios de urn espaco juddico aos parametros ou valor's que o informem; sistematica 6 a ordenacao dessas normas e principios sob um ponto de vista. Ou, por outras palavras: a sistematica 6, aqui, formal; a dogmatica é uma isistematica. material.

(398) Em RIEZLER, pela natureza fragmentaria do seu estudo, na parte positiva, escasseiam as menc6es a boa fe — desse A., Venire contra factum proprium cit., 133, 138 e 168, p. ex.. Mais tarde, elas dominariam o panorama do vcfp; assim L. SCHULTZ, Venire contra factum proprium im Riickerstattungsrecht, NJW 1949, 570-572 (571); ERMAN/SIRP, BGB 6 cit.,

242, n.° 79 (470); Ltinnizz/StudK-BGB 2, § 242, 4, d) (141); Rom' Miinch-Komm cit., § 242, n.° 93 (29-30); LARENZ, AllgTeils cit., 206 e SchuldRIAT 13 cit., 123. Alguns destes AA., procedem a precisoes ulteriores.

(399) Na doutrina actual, o vcfp tern, contudo, uma presenca mais intensa do que na jurispruclincia. Embora este fenOmeno nit) seja relevado pela literatura, ele deve ser subli-nhado: boa parte das decisoes judiciais citadas como consagrando, substancialmente, a proi-bicao de vcfp, nao referem essa expressao, embora nit) deixem de apelar para a boa fe. Assim: RG 28-Nov.-1923, RGZ 107 (1924), 357-365 (363) — refere a exceptio doll; BGH 12-Jul.-1951 , BGHZ 3 (1951), 94-110 (93) — recorre a boa fe e aos bons costumes; BGH 2-Mar.-1972, NJW 1972, 940-942 (941) — entendeu-se, aqui, nao contrariar a boa fe o alegar a falta de poderes de urn &gaga de ente public°, para celebrar urn contrato de empreitada; materialmente, rejeitou-se haver vcfp indevido; AG Minster 21-Mar.-1972, WuM 1975, 32 — fala ern exerd-do inadmissivel. Em compensacao, a inadmissibilidade de comportamentos contradit6rios, reportada a boa fe, 6 isolada noutras decisties. Assim: BGH 20-Mai.-1968, BGHZ 50 (1969), 191-197 (192 e 196) — o R. alega, em tribunal arbitral, que o processo deveria seguir em tribunal comum; neste, op& a excepcao do compromisso arbitral; OLG ICCiln 8-Nov: 1972, MDR 1973, 314; BGH 5-Mai.-1977, BB 1977, 919-921 (920) — onde se diz «nem todo 0 comportamento contraditorio 6 inconciliavel corn a boa fe. Isso so pode acontecer quando uma

§ 28.° Venire contra factum proprium

fraca. 0 venire contra factum proprium, porque dotado de carga

tica , psicolOgica e sociolOgica negativa atenta, necessariamente,

contra a boa fe, conceito portador de representacao cultural aprecia-

tiva e que, para mais, esti, na tradicao romanistica do Corpus Iuris

Civilis, num estado de diluicao que a torna omnipresente. 0 recurso

put° e simples a uma boa fe despida de quaisquer precis -6es torna-se,

perante essa relacao de necessidade, num expediente insatisfatOrio para a Ciencia do Direito e insuficiente para a pritica juridica:

explica as soluceies encontradas e nao permite, por si, solucionar

casos concretos novos. No fundo, a boa fe funciona, ai, como apoio

linguistic° para soluceSes encontradas corn base noutros raciocinios ou na pura afectividade — ou como esquema privilegiado de con-

seguir amparo numa disposicao legal — a que consagra a boa fe —

para a solucao defendida.

II. Como expressio da confianca, o venire contra factum pro-

prium situa-se ja numa linha de concretizacao da boa fe. Referencias incidentals a confianca, no ambito da proibic -ao de comportamentos

parte criou uma inevisio de confianca na qual a outra se pudesse fiar, c o tenha feito, ou quando o comportamento anterior esteja em contradicao insoltivel corn o posterior*. Esta decisao tern,

como se ye, um interesse doutrinario especial. Nio faltaram tentativas de transpor o esquema de pensamento pressuposto pelo vcfp

para outras areas juridicas, como, p. ex., o Direito penal. Ponto de partida foi a decisio do LG Kaiserslautern 14-Jul.-1955, JZ 1956, 182-183: o R. cometera o crime de estupro — § 182 StGB, na versao em vigor na altura — tendo posteriormente renovado varias vezes as relacoes corn a ofendida, de catorze anos; em defesa, vem dizer que, na primeira vez, desconhe- cia a idade da ofendida e, que, nas vezes subsequentes, embora tivesse obtido esse conhe- cimento, faltava ja o requisito da virgindade, por parte da mesma ofendida. 0 LG Kai- serslautern nao aceitou este argumento, decidindo que o R. nit, podia recorrer I falta de urn

requisito que de prOprio suprimira. HANS-JURGEN BRUNS, Venire contra factum proprium ins

Strafrecht?, JZ 1956, 147-153, escrito a propOsito desta decisao, sem deixar de levantar algumas aplaude o que considera como primeira manifestacio de vcfp em Direito penal — 153.

De facto, ocorre, neste caso, uma certa desconformidade nas actuaceies do P..., na medida ern que vem alegar urn comportamento seu desvalorizado, cuja eficacia nit> surte por raz -oes

references ao proprio R., para evitar a reprovacao das suas atitudes posteriores. Mas isto rrao 6 vcfp, pelo menos no sentido comum que the di o Direito privado. Mesmo processualmente, o R. nao volta was corn os comportamentos assumidos; apenas the di urn

ceeto enquadramento juridico-penal. 0 caso solucionado pelo LG Kaiserslautern explica-se, preferencialmente, atraves de instrumentacao penal classica: o P..., numa situacao de crime con- tinuado, nao beneficia da causa de excusa adveniente da nab consciencia da ilicitude se,

durante a accio, adquiriu essa consciencia.

752 753

754 0 exercicio inadmissivel de posicaes juridicas

contraditOrios, surgiam em RIEZLER (400). Seth preciso aguardar esforco de EICHLER no sentido de, a partir da boa fe, confeccion ar doutrina juridica da confianca /401 para dar outra din-Lena° is referencias dense tipo.

A ligacio entre o vcfp e a doutrina da confianca tornou-se bastante frequente, na doutrina. WIEACKER, no seu conhecido escrito sobre 0 precisar do § 242 BGB, afirma que «...o principio do venire é uma aplicacio das proposicaes da confianca no trafego juridico e nio ulna proibicio especifica de dolo e de mentirao (402). WEBER, na sua exteasa digressio sobre a boa fe, anuncia, a prop6sito do vcfp, a regra de que minguem pode exercer um direito ou tomar uma posicio juridica corn

consequencias, em contradicao corn o comportamento anterior, quando este justifique a condusio de que nao o iria fazer e de,

rtSa ocasiio, tenha despertado na outra parte uma determinada confianca„ ( 403). MEnz assegura que «no Direito actual 6 de afirmar o atentado contra a bo a fe, sobretudo quando o comportamento anterior tenha provocado con-fianga digna de proteccio legal* ( 4°4). SIEBERT/KNOPP asseveram que, a proposito de vcfp, «verifica-se a violacao da boa fe, corn consideracio pelos costumes do trifego, sobretudo quando a outra parte pode confiar numa determinada situacio juridica ou material proveniente do compor-tamento anterior do titular do direito e actuou na base disco* (405). LENZ conclui que o principio da proteccao da confianca a uma concre-tizacio do vcfp (406). VON CRAUSHAAR atesta que «0 comando de que nin-guem deve colocar-se em contradicio corn o seu comportamento tern a sua origem, fmalmente, na proteccao da confiancai CANA1US, comecando por apoiar a afirmacio de WIEACKER, acima transcrita (408), formula uma construclo desenvolvida do vcfp baseado na confianga (4°9). LUHMANN, nao obstante omitir referencias expressas ao vcfp, associa a necessidade de identidade do comportamento prOprio corn a con-

§ 28.° Venire contra factum proprium

(410). ERNIAN/Sria, escrevem que «quando o titular atraves das suas

jedaracties ou pelo seu comportamento, consciente ou inconsciente, to provocado que a outra parte se pudesse confiar em si e, tambem,

*le o tenha feito, end() nao deve esta ser desiludida. Atentaria contra

a boa a e minaria a confianca no trafego juridico que o titular se 'tine incorrer em contradicio corn as suas declaracoes ou compor-

tatnentos anteriore ► (411). ALFF afirma que «exercicio inadmissivel do direito em consequencia de comportamento contradit6rio de um parceiro num contrato verifica-se, pois, quando a outra parte tenha confiado na

atitude tomada pelo seu parceiro e se tenha apoiado nela de tal maneira

que a adaptagio a uma situacio juridica alterada nao the possa ser

exigicia, segundo a boa felo (412). Rom exige, para o funcionamento do

vcfp, que a contraparte tenha, efectivamente, integrado uma previa° de (413) TEUBNER tern esse factor, tambem, por decisivo (414).

conftanga

A reconducao do venire contra factum proprium doutrina da confianca revels um estadio elevado nas tarefas ascendentes, da sistematizacio da casuistica gerada em torno dos comportamentos

contraditOrios, e descendente, da concretizacio da boa fe. 0 trabalho nio se limita ao ambito do venire; outras areas juridicas delicadas e, ate

decada de sessenta, ou ignoradas ou tratadas de modo puramente tOpico-empirico, tern sido organizadas corn base nessa doutrina (415 ).

(410) N. LUHAIANN, Vertrauen2 cit., 40-41. Diz L.: cDigno de confianca 6 aquele

que permanece no que, consciente ou inconscientemente, comunicou de si preprio•.

(411) ERIAANN/SIRP, BGB6 cit., S 242, n.° 79 (470).

(412) AuP/BGB/RGRK12 cit., § 242, 11.° 93 (29-30).

(413) Rons/Miinch-Komm cit., § 242, n.° 299 (147). ROTH admite, no entanto,

a possibilidade de haver casos de vcfp que nio se possam reconduzir I problematica da confi-

anca - idem, n.° 321 (153). Recorda BGH 5-Mai.-1977, BB 1977, 919-921 (920) - supra, 7523"

- que admite como contriria i boa a, para alem dos casos que suscitem a confianca, a contraclicao insolavel de comportamentos. Das outras decisoes citadas por Rom, apenas BGH 20-Mai.-1968, RGHZ 50 (1969) 192 - o caso da pessoa que faz valer, sucessivamente,

a incompetencia do tribunal arbitral e, uma vez no comum, o compromisso - quadra uma hip6tese efectiva de .vcfp sem conftanca, em termos claros. 0 facto deve-se a Rom

utilizar urn conceito amplo de vcfp; este foi aqui - supra, 746 - restringido. Em BAG 14-Dez.-

-. 1968, BB 1968, 306, p. ex. - urn trabalhador alega uma norma juridica para pedir uma mdeinnizacio, quando ele pr6prio viola uma norma - concretiza-se o tipo mais restrito

dm° de to quoque e nio urn vcfp.

(414) TEusNER /AK /BGB cit., § 242, n.° 31 (50). (411) A conftarKa, sob o epfteto initial, depois abandonado, de .doutrina da aparencio

Ja havia merecido ciclos anteriores de estudos, designadamente no principio do seculo, corn

WHLLSPACHER, HERBERT MEYER, KRUM...JP/PM C P. OERTMANN e, no segundo pOs-guerra, corn

EICHLER, BALLERSTEDT C STICH: os primeiros nao tiveram, contudo, em linha de conta a necessa-.

755

(400) Venire contra factum proprium cit., 167. RIEZLER ocupa-se, al, do problems da apa-rencia juridica provocada, mais precisamente da teoria de STAUB, muito citada, do comer-ciante aparente. CoING, Allgemeine Rechtsgrundscitze in der Rechtsprechung des Reichsgerichts zum Beet' der fguten Sitters*, NJW 1947/48, 213-217 (215), aproxima tambem o vcfp da confianca; move-se, porem, no ambito dos bons costumes e nao da boa ff. Nao tern razio.

(401) EICHLER, Die Rechtslehre vom Vertrauen (1951). (402) WIEACBER, Prdzisierung cit., 28. (403) WEBER, Treu and Glauben cit., D 323 (821). (404) Mmtz/Berner Komm cit., Art. 2, n. ° 402 (334); tambem n.° 410 (336) e, corn indi-

caceies jurisprudenciais, n.° 431 ss.. (340-342). (405) SOERGEL/SIEBERT/KNOPP, BGB 1° Cit., § 242, n. ° 229 (67). (406) K.-H. LENZ, Das Vertrauensschutzprinzip (1968), 32. (407) VON CRAUSHAAR, Der Einfluss des Vertrauens auf die Privatrechtsbildung (1969), 56. (408) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 270-271. (409) CANAIUS, Vertrauenshaftung cit., 287-372.

756 0 exercicio inadmissivel de posicoes jurfdicas § 28.° Venire contra factum proprium 757 -

A apreciacao definitiva deve englobar a doutrina em causa, na sua extensao total (416). Algumas consideraceies sao oportunas.

Substituir uma referencia amorfa a boa fe pela mencao da confianca nao 6 trocar uma formula vazia por outra similar. A confianca permite um criterio de decislo: um comportamento nao pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confianca das pessoas. A confianca contorna, ainda, o problema dogmatico, de solucao intrincada, emergente da impossibilidade juri-dica de vincular, permanentemente, as pessoas aos comportamentos uma vez assumidos. Nao 6 disso que se trata, mas tao sO, de imputar aos autores respectivos as situaceies de confianca, que de livre vontade, tenham suscitado (417 ).

A confianca di um criterio para a proibicao de venire contra factum proprium. Mas nao funciona se); mantem-se, basica, a regra oposta de que falta, nas ordens jurIdicas, urn principio firme de nao contradicao (418), enquanto que, em certos casos, aflora outro vector que nao o da confianca. A existencia de principios contraditOrios-neste caso, proibicao de venire contra factum proprium e permissao de contraditoriedade — nao deve confundir: 6 conquista da Ciencia do Direito moderna a possibilidade de oposicoes desse tipo, sem ruptura do sistema e sem quebra de validade para nenhum dos prin-cipios em presenca (419). Fica em aberto a oportunidade da sua aplicacao, em cada caso concreto. Utilizando, no venire contra factum proprium, a metodologia apurada por CANARIS no estudo geral da confianca (420), poder-se-iam apresentar tres linhas tendentes a

ria integracio da confianca no sistema juridic°, excedendo-se nas conclusoes, enquanto os segun-dos trabalharam corn vis6es demasiado parcelares. S6 no dobrar da decada de sessenta para setenta surgiram trabalhos envolventes, que tocaram os diversos prismas em jogo; recorde-se LENZ (1968), N. LITHAIANN (1968, a primeira edicio), V. CRAUSHAAR (1969) e CANA-RIS (1971).

/416, Infra, § 49.0. (417) Nesse sentido, a afirmaclo de WIEACKER citada supra, 7544°2 . (41 °) Cf. supra IV, bent como MERZ al cit., 750194. (419) CANARIS, Systemdenken 2 cit., 53 e 115; DWORKIN, Is law a system of rules? em Essays

in legal philosophy (1968), 47 ss.; MENEZES CORDEIRO, Da constituictio patrimonial privada, em Escudos sobre a Constituicio, publ. JORGE MIRANDA, 3, (1979), 365-437 (368) e D. Reais cit., 1, 60.

(420) Veja-se, assim, a concepcio sistemitica a que obedece o livro Vertrauenshaftung cit., de CANARIS.

sua aplicacao: a presenca de uma disposicao especifica coin o seu con-teddo, a aplicacao analOgica — corn inclusao de analogia iuris — de disposiOes desse tipo a outros casos, ditos analogos, e a actuacio directa do prOprio principio em si.

CANARIS da dois passos que nao podem ser acompanhados, a partida: circunscreve o vcfp ao que chama de «respondencia pela confianca por necessidade etico-juridica) e aponta, como base da proibicao de vcfp

021) . Como explica ROTH, existem a aludida necessidade etico-jun'dica situac5es inadmissiveis de vcfp que no se prendem corn a confianca: assim, a da pessoa que recorre, sucessivamente, a incompetencia do tribunal arbitral e ao compromisso arbitral para evitar submeter-se aos arbitros e ao tribunal comum (422): este caso, como se vera, a redutivel gracas a interaccio do tipo to quoque. Acresce que o vcfp — e o atentado a confianca tantas vezes implicit° — e combatido por disposicoes legais precisas e nao apenas pela ch. «necessidade etico-juridican recorde-se, p. ex., o art. 228.°/1 e o seu equivalente § 145 BGB, sem correspondencia nos Cod. Napoleao e italiano (423) que, estabelecendo uma regra de irrevogabilidade das propostas contratuais, devem corn vantagem, ser interpretadas a luz do principio que exprimem. Por outro lado, o vcfp pode ser objecto de permissio especifica — p. ex., o art. 231141, sobre a revogabilidade do testamento. Na derivacao do vcfp existem, pois, outras referencias que no as proporcionadas por principios totalmente abstractor como o da «necessidade etico-juridica•. Tambem no se deve apontar como base do vcfp a aludida mecessidade etico-juridica*, numa linha presente em WIEACKER (424), e que se liga, de algum modo, a tendencia para ver na boa fe urn ch. principio etico-juridico. Numa manifestagio sectorial dos inconvenientes acarretados por estudos parce-lares, tal formulacao levanta dificuldades excessivas aos sistemas que, como o portugues e, com clareza ainda maior, o alemao, consagram uma

distincao entre bons costumes e boa fe (425).

(421) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 266 ss. e 287 ss..

(422) Rom I Munch-Komi; cit., § 242, n.° 321 ss. (153 ss.). Cf. supra, 755413 . ROTH nao

se preocupava, porem, em apreciar CANARIS, nem apresenta uma concepcio propria da con-

fianca. (423) Em Franca, a jurisprudencia tens, contudo, vindo a corrigir a possibilidade de

revogacio, ate 1 aceitacSo, das propostas negociais; cf. RUNDSTEIN, Der Widerspruch mit dent

eigenen Verhalten cit., 326. No que coca ao regime do Direito italiano, anote-se que esta sua particularidade, tao sendo tida em conta, tem provocado equlvocos na doutrina portuguesa, quando se trata de determinar a natureza da proposta contratual: transfere-se, sent niais, a concepcio italiana dita «pre-negociab, assente numa ausencia de efeitos por forca da

revogabilidade, para o espaco juridico portugues, onde tal revogabilidade nao existe.

(424) WIEACKER, Prdzisierung cit., 28.

(425) Cf. infra, n.° 113.

0 exercicio inadmissivel de posiclies juridicas

A hipOtese de urn exercicio inadmissivel de direitos postula, contudo, que a posicao juridica de cuja actuaca'o se trate nao seja, directamente, interferida por normas juridicas, ainda qu e de aplicacao analogica. Por isso, das tres linhas de aplicacao referid

as por CANARIS, apenas a Ultima releva para uma actuacao criativa do venire contra factum proprium, embora possa ser auxiliada e preci sada pelas duas outras.

No essential, a concretizacao da confianca, ela propria concre-tizacio de um princlpio mais vasto, preve, como resulta da amostr a_ gem jurisprudential realizada: a actuacao de urn facto gerador de confianca, em termos que concitem interesse por parte da order( ' juridica; a adesio do confiante a esse facto; o assentar, por parte

dele, de aspectos importantes da sua actividade posterior sobre a con-fianca gerada — urn determinado investimento de confianca ( 426) — de tal forma que a supressao do facto provoque uma iniquidad e sem remedio. 0 factum proprium daria o criterio de impuracao da confianca gerada e das suas consequencias.

Esta via, longamente testada por CANmus, fica enriquecida co rn o alargar das hipOteses de confianca consideradas, que transcendem em

muito o vcfp (427). Fique claro, desde ja , que 6 possivel alcancar resultados muito satisfatorios no caminho da concretizacio, embora nao se ponha a hipotese de subsuncties clissicas lineares. No que toda aos factos geradores de confianca, ha que distinguir os naturais dos artificiais; os naturais resultam da natureza das coisas; os artificiais criacao do Direito (428). A proteccio da confianca gerada por estes tiltimos a regulada expressamente — pense-se nos efeitos do registo — e, por isso, escapa ao problema aqui em estudo, embora permita paralelos enriquecidores. Os factos naturais, pelo contrario, devem ser ponderados a base de principios.

Os principios que, a face do Direito civil portugues, permitem detectar a presenca de um facto gerador de confianca podem ser induzidos das regras referentes as dedaracoes de vontade, tom relevancia para a normalidade — art. 236.°/1 — e o equilibrio —art. 237.°: o quantum de credibilidade necessario para integrar uma previsao de confianca, pot parte do factum proprium, 6 pois fungi°

(426) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 338-339 e 510, p. ex.. (427) Cf. infra, § 49.°. (428)k CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 492. A distincio remonta a WELLSPACHER ■

Das Vertrauen auf aussere Tatbestonde im biirgerlichen Recht (1906), 22 ss. e 58 ss..

§ 28.° Venire 'contra factum proprium 759

do necessario para convencer uma pessoa normal, colocada na posiclo

do confiante e do razoivel, tendo em conta o esforco realizado pelo

usesrno confiante na obtencao do factor a que se entrega. Obtem-se,

assitu, o enquadramento objectivo da situacio de confianca. Reque-

re_se, porem, ainda urn elemento subjectivo: o de que o confiante

adira, na realidade, ao facto gerador de confianca. Repare-se, que

bent poderia suceder, nao obstante a presenca de elementos objectivos suficientes para justificar a proteccao da confianca, que o beneficiario

em potencia, por razoes especificas, nao tivesse, de facto, confiado na situacio que se oferecia. Nao cabe, end°, conceder-lhe a proteccao juridica. 0 Direito portugues di indicacoes importantes para solucionar, corn facilidade, a configuracao dente elemento subjec-tivo, visto consagrar, de modo repetido, uma boa fe etica: basta que o confiante ignore a instabilidade do factum proprium sem ter desa-catado os deveres de indagacao que ao caso caibam ( 429). 0 investi-mento de confianca, por fim, pode ser sinteticamente explicitado como a necessidade de, em consequencia do factum proprium a que aderiu, o confiante ter desenvolvido uma actividade tal que o regresso

a situacio anterior, nao estando vedado de modo especifico, seja impossivel, em termos de justica. Manifesta-se, no fundo, aqui, mais uma consequencia da natureza subsidiaria da proibicao de venire contra factum proprium; outras consequencias prendem-se corn o afastamento do regime da confianca, sempre que normas especificas atribuam, a situacao gerada, quaisquer outros efeitos.

A articulacio destes requisitos entre si nao opera em termos cumulativos comuns: a falta de algum deles pode ser suprida pela intensidade especial que assumam os restantes. Neste dominio como noutros, a concretizacao da boa fe impoe o abandon de subsun-coes conceptualisticas como modo de aplicar o Direito. A concate-nacao elastica em que des se encontram pode ser expressada atraves da ideia de sistema mOvel, a que se fara oportuna referencia ( 430).

Os requisitos acima apontados para uma proteccio da confianca, base de uma proibicao de vcfp, sio reforcados por indicios objectivos normativos, insuficientes, porem, por si, para uma base juspositiva global da figura, mas titers, somados aos acima referidos, para a concretizar.

(429) Cf. supra, n.° 50. Este elemento da, ao regime do vcfp, uma elasticidade particular,

Permitindo afastar todos os casos ern que, perante o sistema, a confianca surja injustificada.

(430) Cf. infra, n.0 119.

758

760

0 exercicia inadmissivel de posiOes juridicas

Deve, assim, entender-se que a protecgao da confianga baseada eni factos naturais nao pode ser superior a que o Direito conceda a emergent

e dos factos artificiais, i. é., dos factos que a propria ordem juridica estabeleee para gerarem credibilidade no meio social. Desta forma, a proteccao resultante da chamada aquisigao pelo registo predial (431) requer, Coln fac.. tor objectivo de confianca, a inscrigio previa do direito que o beneficia

tio vai registar: a uma base normal em que qualquer pessoa acredi 0 elemento subjectivo taria traduzido pela exigencia da boa fe. 0 Via' timento de confianca exprime-se na necessidade, para haver protecgae, de que o acto praticado pelo beneficiirio o tenha sido a titulo oneroso.

A base legal para uma aplicacao da doutrina da confianca, no Direito portugues, por forma a vedar o venire contra factum proprium, nas suas manifestacoes mais correntes, reside no art. 334.°, e, d e entre os elementos previsivos nele enunciados, na boa fe.

Apresenta-se, para ji, uma justificagio provisOria. A derivagio histOrico-dogmatica do art. 334.. demonstrou a sua filiagio na doutrina da terceira sitematica e da segunda codificagio. Nesse espaco juridico, a boa fe serve de cobertura a doutrina da confianca em geral e ao vcfp em particular. Por dual razoes: na falta de disposigio legal expressa, havia que recorrer, para dar satisfagao as exigencias eticas, psicologicas e sociolOgicas inerentes a inadmissibilidade de vcfp a urn preceito disponivel — o § 242 — e que nao implicasse exigencias incomodas como os §§ 226 e 826; a distincao, melindrosa quanto ao contetido, entre a boa fe e os bons costumes, fez-se, embora sem unanimidade, em torn da ideia de que, na boa fe, regulam-se relagoes especificas entre pessoas, enquanto os bons costumes tratam o comportamento geral do sujeito, independen-temente de relagao (432); ora essa relagao especifica existe no vcfp. A introdugao, atraves do Codigo Grego, do art. 334.° representa mass do que uma mera transposigao de formula sem conteddo; subjaz-lhe, como se sabe, uma recepcio real da Ciencia juridica que ele representa, e, corn ela, um certo sentido da boa fe. As mesmas razoes utilitinas que, noutras doutrinas, levam a distinguir a boa fe dos bons costumes, recomendam a adopgao da clivagem acima retratada, para alem da simples derivacao historica. Finalmente as ideias de credibilidade, de normalidade e de equilibrio, que norteiam, no caso concreto, o vcfp, estao associadas, desde o ius romanum, a bona fides; é urn dado cultural importante, a nao minorar na interpretacio dos preceitos que, na actualidade, a consagram.

IV. A reconducao laboriosa do venire contra factum proprium a doutrina da confianca e ao principio da boa fe nab a pacifica. Na base da sua natureza, coloca-se urn problema de regime, corn

(";) Tem-se em 'mine o regime da aquisicao tabular, referido supra, 461 ss.. ( 432) Recorde-se .HuEcx, Der Treugedauke modernen Privatrecht cit., 9 ss..

§ 28.° Venire contra factum proprium 761

ties toes deste tipo: pode urn incapaz venire contra factum proprium ?

se houver simulacao, reserva mental, falta de seriedade, falta de

orisciencia ou coaccao fisica, erro, dolo, coaccao moral ou incapa-

cidade acidental, aquando da producao do factum proprium? A dou-

trina a uniforme em tomar a previa° de venire contra factum propriuni por meramente objectiva: no se requer culpa, por parte do titular exercente, na ocorrencia da contradicao (433 ). Nao se pode, contudo,

it tao longe nessa via que, ao factum proprium, se de mais consistencia

do que ao prOprio negOcio juridico: tambern este, afinal e por maioria de razao, suscita, no espaco juridico, confianca digna de proteccao e, nab obstante, cede perante vectores que, em casos determinados, se apresentem corn peso maior.

A derivacao da proibicao de venire contra factum proprium

a partir da boa fe implica a natureza legal dos deveres que, caso a caso, dela promanem (434). 0 peso da necessidade, acima apontada, de nao esquecer uma serie de valores acautelados pela regulacio dos negocios juridicos leva, no entanto, a que o prOprio CANARIS, defensor acerrimo da reconducao dos comportamentos con-traditOrios a violacao da boa fe e da confianca, admita uma aplicacao tendencial, embora por analogia, das disposicoes referentes as declaracoes de vontade, a formacao das previsoes de confianca (435 )

e portanto, ao factum proprium. A base da analogia, sempre segundo CANARIS, estaria em que a respondencia pela confianca se deve participacio no trafego negocial, desempenhando uma funcao seme-lhante (436 ). Mas sendo o factum proprium urn facto voluntario, ao qual se aplicam as disposicoes respeitantes as declaracOes de vontade, era inevitivel o aparecimento de teorias que defendessem, no venire

contra factum proprium, a violacao de situac5es de tipo negocial. Curiosamente, o inevitivel surgiria apenas atraves de WIELING (437 ) .

WIELING ye no vcfp a perda de uma posigao juridica propria. «A perda do direito deve verificar-se porque o titular comportou-se de tal modo que a contraparte teve de concluir pela rentincia. 1st° nao

n i433) cit., 4

R30r3N. /Mtinch-Kamm cit., § 242, n.° 297 (147) e WIELING, Venire contra factum

proprium

(434) ENN. /LEHMANN, SchuldR 15 cit., §§ 6, IV e 236, III, 2, c) (33 e 959) —note-se,

Porern, que no primeiro dos lugares citados, ENNAEHMANN reconduzem o vcfp a boa fe, e. no segundo, fazem-no aos bons costumes —e FLUME, AllgTeil 3 cit., § 10, 3 (124).

(435) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 451-452.

(436) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 452.

(97) WIELING, Venire contra factum proprium and Verschulden gegen sich seibst cit. (1976).

762 0 exercfcio inadmissivel de posicoes jurfdicas

mais do que uma ocorrencia juridica negocial atraves de comporta m concludentes (438). Aos argumentos contrarios de FLUME — 6 ism ettto vel a ficcao de declaracoes de rentincia ( 439) — e de CANARIS

w rao

pode atribuir ao comportamento do titular-exercente o sentido d e to , declaracab negocial, por falta de consciencia da declaracio ( 440) -__Nyrauti; contrapae a inexistencia, salvo nalgumas decis8es, de ficcao e a d esk cessidade de consciencia da declaracao, para que esta se realize (441) W. tern, no entanto, de enfrentar outro problema: a ser, o fachm; proprium, uma rentincia, como evitar a regra da contratualidad e da remiss-ao — § 397 BGB e art. 863.°R ? (442) W . propOe a consagracio de uma saida contra legetn: a propOsito de vcfp, tem-se ultrapass ado disposicOes legais de indole diversa (443); porque rao admitir frontalmente a possibilidade de perda unilateral de direitos, tarnbem no Direito das obri-gag5es? (444). Este 6 o ponto fraco do trabalho de W. Para

CANAR/S

(438) WIELING, Venire contra factum proprium cit., 335. (439) FLUME, AligTeil3 cit., § 10, 3, 121 ss. (123). (44°) CANAIUS, Vertrauenshaftung cit., 427-428. (441) WIELING, Venire contra factum proprium cit., 335. (442) WIELING, Venire contra factum proprium cit., 338. (443) P. ex., contorna-se a disposicio referente ao calculo de honorarios devidos

a advogado — BGH 26-Out -1955, BGHZ 18 (1955), 347 — a disposicio sobre os requisitos para transmissees a filhos — OGHBrZ 2-Dez.-1948, OGHZ 1 (1949), 284 — ou as prescriceoes que distribuern as competencias pelos Orgios societarios BGH 21-Abr.-1960, WM 1960, 805.

(444) Este problema, que nio tern concitado estudos recentes, maraca alguma ponders-Sao. A sua valoracio, a luz do Direito positivo portugues, nio pode ser feita corn a linearidade que deriva do art. 863.°/1. A natureza contratual da reminio era considerada, ji por DERNBURG /BIERMA/YN, Pandekten7 cit., 1 § 83 a (188), como mera relfquia do Direito romano. Tentando uma justificacio para ena natureza, Corm, Erlass und Verzicht nach dem BGB, Gruchot 47 (1903), 221-287 (229), numa posicio que seria retomada por muitos AA., imputa a natureza contratual da remissio a preopria lOgica das relacoes obrigacionais —cf. DU CHESNE, Begrig und Arten des Verzichtes, AbilrR 42 (1916), 296-318 (296). Dir-se-ia, antic), qua, undo uma obrigacao urn relacionar especffico entre duas pessoas, qualquer alteracio desse estado so seria possivel corn a intervencio de ambas. Esta construclo é puramente dogmaticista e postula, alem disso, a inversio consistence no introdurir escamoteado da premissa indemonstrada, segundo a qual uma rein.% entre duas pessoas nlo pode ser alterada por apenas uma delas. A questio da reminds dos direitos em geral analisa-se em dois pontos, consoante considerada pelo prisma do renunciante ou pelo do beneficiario eventual da rendncia. 0 princfpio de que os direitos disponfveis podem extinguir-se Pal vontade do seu titular deve constituir regra geral do Direito patrimonial privado. Essa regra radica fundo nos niveis tecnico e significativo-ideoleogico da jussubjectivacio: por um lado, sendo o direito subjectivo uma perminio normativa, implica, sob pena de se converter em dever, a hipOtese da nao-actuacio; por outro, visando-se, por enencia, corn a jig.- subjectivacio, conceder vantagens aos beneficiirios, tern de se possibilitar a rentIncia para nio subverter a filosofia do sistema, quando factores extrinsecos, casuals ou provocados — como Ma ,

neste siltimo caso, um agravamento desmesurado da carga fiscal — a transformem em sacra-few. A limpidez do Direito, a todos os niveis, requer que os deveres se apresentem como 0 art. 6241 CR, quando garante a propriedade privada e a sua transmissibilidade, coin°

§ 28.° Venire contra factutn proprium 763

e restantes seguidores da doutrina da confianca, as disposicoes legais concretas que regulam nulidades, impugnabilidades e ilegitimidades

efectivamente, contrariadas por certas manifestacOes de vcfp. A ultra-passagem da-se, porem, por forca da regra da boa fe e do § 242. No haveria, para des, no fundo, o contradizer directo da lei mas, tao so, urn fen6meno ha muito conhecido pelos juristas mais comedidos: o de que urn preceito nio se interpreta nem se aplica sozinho, mas antes

direito, assegura, por maioria de razio, a possibilidade de renancia. Tal como o exercicio do direito subjectivo 6 individual, no sentido de corresponder a vontade do seu titular, assim a

remincia do direito tenderia a se-lo, se pesasse, apenas, a lOgica da junubjectivacio. porem, que ponderar a situacio do beneficiirio eventual da rentincia. No sector dos

direitos disponiveis, a mesma logica jussubjectiva que postula a possibilidade de desistencia de urn direito, inclui a inadmissibilidade de beneficios nit) requeridos ou, pelo menos, nio rece-bidos voluntariamente. Este vector sistematico da jussubjectivacio, pouco focado, transpa-

race, corn clareza, na estrutura contratual da doacao — art. 940.°/1— e na necessidade de aceitacio na sucessio por morte — art. 2032.°/2, 2046.° e 2049. °/1, p. ex.. Tais exigencias sio materiais e nio apenas 16gico-conceptuais: o beneficiario, seja de rentincia, seja de liberali-dade, pode ter interesses efectivos, materiais ate, como os que se prendem corn a sua credibilidade no trafego juridico, em acatar a letra as suas obrigaceies ou em nio aceitar, sem contrapartida, certos beneficios. Mas este vector nio tern, forcosamente, de ser satisfeito por naturezas contratuais dos actos implicados: em rigor, basta estender a todos a faculdade de desistencia de posiOes jussubjectivas, para que o beneficiario possa livrar-se da vantagem indesejada; o Direito regularia, depois, o destino dos bens repudiados, determinando o seu regresso ao A. da liberalidade ou — como acontece necessariamentc na sucessio por morte — a ma passagem a outras pessoas.

Os codigos civis nio consagram, de modo unitario, a possibilidade de renfmcia ou desistencia a posicoes jussubjectivas; aparecem, na literatura, largo descricoes das virias modalidades previstas — H. WALSMANN, Der Verzicht I Allgemeine Grundlagen einer Verzichts-

lehre und Verzicht im Privatrecht (1912), 217-308; para uma enumeracio, Coax, Erlass und

Verzicht cit., 249 — corn tentativas de agrupamento — DU CHESNE, Begriff und Arten des Ver-

zichts cit., 313 ss. (318). Ponderando, sem exaustio, o C6digo Civil, no que toca ao Direito das obrigagoes e a Direitos Reais, pode isolar-se, urn pouco na linha de DU CHESNE, tree grupos de formas expressas de desistencia de posicoes jussubjectivas, atendendo a natureza das posicaes atingidas. Assim: Extinclo de posicoes potestativas: rejeicio da proposta contratual — art. 233.°, implicitamente; ren6ncia a prescricao — art. 302. 0 /1 e 2 e, tambem,

530.°/2 e 636.°/3; rentincia a meios de defesa, quando sejam potestativos — art. 637. 0 /2;

rentincia posterior aos meios proprios do credor — art. 809.°, a contrario; rentincia ao beneficio

da excussio — art. 640. 0, a); rentincia as garantias, quando sejam potestativas — art. 867.°; Extincio de posicoes relativas, obrigacionais ou associativas: renfincia a procuracbo —

art. 365.0/1 e 1179.° — e sua revogacio — art 265.0/2; rejeicio, pelo terceiro, da promessa a seu favor — art. 447.°/1; rentincia a solidariedade, a favor de urn ou mais devedores

art. 527.0; remincia a meios de defesa quando sejam relativos — art. 637. 0 /2; renfincia

Posterior aos meios proprios do credor, quando sejam relativos — art. 809. 0, a contrario;

remissio — art. 863.° ss.; rernincia as garantias, quando sejam relativas — art. 867. 0; exonera-

dio das sociedades — art. 1002.°; revogacbo do mandato — art. 1170.°/1; desistencia da

empreitada — art. 1229.0; c) Extinclo de direitos reais: renimcia a consignacio de renclimentos

765 764

0 exercicio inadmissivfl de posiciies juridicas

em conj unto corn todos aqueles que, ao caso, tenham aplicacao. Quando, pois, ocorra uma ilegitimidade, nao deve aplicar-se, isolado, o artigo que comina a nulidade mas, em simultaneo, o que manda proce-der de boa 16. E se o resultado final nao for a nulidade, nao ha que falar em saidas contra legem: houve, tart so uma aplicagao integral de todos os preceitos respeitantes ao caso. Para W., porem, a solucao implica ulna complementacao juridica verdadeiramente contra legem. E nao apenas

— art. 663. 0/3; rentincia ao penhor — art. 677.°, aplicavel a retencao, pelos arts. 758.0 e

759.0/3; rentincia a hipoteca — art. 731.0; rentincia as garantias, quando tenham natureza real — art. 867. °; extincio da posse por abandono — art. 1267.0/1, a); rentincia ao direito sobre muro ou parede comum — art. 1375. °/5; rentincia a comunhao — art. 1411.°; rentincia ao usufruto — art. 1476.°/1, e), aplicivel ao use e habitacio, ex vi art. 1485.0; rentincia servidio, art. 1569.°/1, d). Atente-se, agora, no modo de funcionamento das extincoes citadas. Nos direitos reais, a renfincia a sempre unilateral, seja por cominacao legal expressa — art. 73(0, aplicavel arts demais direitos reais de garantia por remissiies legais sucessivas, art. 663,0, 677. 0, 758.° e 759. 0/3 — seja por cominacio legal implfcita — art. 1411. 0, aplicavel ao 1375. °/5 — seja por maioria de razao, nos casos restantes. 0 regime estende-se I propriedade — MENEZES CORDEIRO, D. Reais cit., 2, 783-786; OLIVEIRA ASCENSAO, D. Reais4 cit., 316-317 — e tende a ser explicado pela situacio de independencia em que se encontra o beneficiario do direito real, face a quaisquer intermediirios— A. BErroN, Theorie generale de la renonciation aux droits reels, RTDC 1928, 280. Nas posicoes potestativas, a rentincia 6, da mesma forma, sempre unilateral, seja, tambem, por cominacao legal expressa — art. 265. °/2, 302. °/2 e 640.°/a) — ou implfcita — art. 233. 0. A generalizacio a todas as posicoes potestativas flirt oferece clvi-das, pois, tal como nos direitos reais, o direito potestativo nab tern contraparte. 0 regime da rentincia, nas situacaes relativas, a mais duvidoso. 0 C6cligo determina a natureza con-tratual da remiss -ao, em termos indubitiveis — art. 863.0. Mas a rejeicao, por terceiro, de promessa a seu favor, corn o efeito prick° de exonerar o promitente dum debito que ji the assistia —444. 0 /1 — e unilateral —447. 0/2. Do mesmo modo a rentincia I solidarie-dade — corn o efeito de sujeitar o devedor a uma prestacio menor, dada a natureza das obrigacoes subjectivamente complexas, MENEZES CORDEIRO, D. Obrigaciies cit., 1, 384-386 —e unilateral, como resulta do cotejo entre os arts. 527.° e 864.°. Tambem a rentincia procuracao e a sua revogacio, a exoneracio de sociedades, a revogaclo do mandato e a desistencia da empreitada — que liberam as contrapartes dos deveres correspondentes — sac, unilaterais, como se infere dos arts. 265. 0 /1 e 2, 1002. 0, 1170. 0 /1 e 1229. °. As garantias pessoais, pelo paralelo corn as reais, pela forma indiferenciada por que a lei, conjuntamente corn as reais, as refere — art. 867.0 — e pelo facto de, em relacao a elas, utilizar, corn clareza, o termo orenusnciao e nao gremissaco, extinguem-se, tamb6m, de modo unilateral; tal como nas garantias reais, ha urn beneficiario imediato, que nit) deu o seu assentimento. Pode, pois, conduit-se; a desistencia 6 uma faculdade geral que acompanha todos os direitos subjectivos disponfveis; sempre que a lei flirt disponha de outra forma, mesmo nas posicoes relativas, ela funciona de modo puramente unilateral. Nesse sentido concluiram, alias, COHN, Erlass and Verzicht cit., 287 e WALsEtENN, Der Verzicht cit., 215.

Todo o sistema tern de ser revisto. Ha, de facto, urn vector derivado da logica jussubjectiva que imp& a aquiescencia do beneficiario, sempre que the sejam atribuidas certas vantagens. Mas esse vector traduz-se, apenas, na possibilidade de o beneficiario renunciar, pot

§ 28.° Venire contra facturn proprium

contra a disposicao que, corn pouco vigor e em desconexao corn outros preceitos, consagra ainda, nalguns c6digos da actualidade, a natureza

contratual da re ( 445): mantendo os exemplos acima apresentados e evitando sofismas, rema-se contra os preceitos que estatuiem as conse-quencias da contraditoriedade a lei, da ilegitimidade e da incompetencia organica, no seio das sociedades. W. acusa as saidas corn recurso is boa fe de semearem a inseguranca, por servirem o «contomar incontro-lado de disposicoes legais) ( 446). Mas nao: a inseguranca alegada seria bem major se, no referido contomar, nem houvesse a directriz dada pelo prin- cipio da boa fe.

V. W. procede, ainda, a uma interessante aproximacao entre o vcfp e a culpa contra si pr6prio (447), resumida como segue.

seu turn, is posicoes que the sejam concedidas, extinguindo os direitos que as exprimam ou as englobem. Em todos os casos de rentincia, excepto no abandono de coisas 'novels,

como se infere do art. 1318. 0, em que estas ficam nullius —na rentIncia a lino:Weis, da-se

uma reversio pars o Estado, segundo o art. 1345.°, a fortiori, o qual tact tern de dar qualquer

assentimento — hi sempre um beneficiario directo; apenas nas obrigacoes comuns, por6m,

a renfincia — remissio — tem natureza contratual. Na natureza contratual da remissio, o COdigo cedeu I tradicio cultural romana, tendo

ainda em conta os interesses muito vivos que, nests zona, podem levar o devedor a querer

prescindir da vantagem — VAZ SERRA, Remissio, reconhecimento negativo de divida e contrato extin-

tivo da relactio obrigacional bilateral, BMJ 43 (1954), 6. Estes poderiam ter sido salvaguardados

corn a adopcio do esquema italiano — art. 1236 C. it. — o qual postula uma remissio

unilateral, podendo ser recusada pelo devedor — PERLINGIERI, Il fenomeno dell'estinzione ?idle

obbligazioni (1971), 91-92; TILOCCA, Remission del debito, NssDI 15, 402 ss.; MENEZES COR-

DEIRO, D. Obrigacdes cit., 2, 234. 0 vector• jussubjectivo que requer a nao atribuicio de beneffcios, sem o assentimento

do interessado, deve ser posto em causa. Isso nit) implica a ruptura do sistema, uma vez que a faculdade de rentincia se mantem, por igual, no beneficiario. Corresponde, porem, a urn esmorecer de uma certa feicao radical e fraccionista do jussubjectivismo e permite a consagracio, corn caricter de generalidade — apesar da tipicidade legal aparente — dos actos unilaterais e dos contratos a favor de terceiro, de relevo social importante —

MENEZES CORDEIRO,

D. ObrigaitTes cit., 1, 555-562 e 535-538 — em detriment° do ch. principio do contrato, pelo

qual so de mutuo acordo poderiam surgir relac5es voluntarias entre as partes. 0 reconhecimento de que, por regra, as posicoes jussubjectivas se extinguern pela

vontade unilateral do beneficiario e a constatacbo das alteracoes registadas no concatenar da sistematica baseada no direito subjectivo, reforcada pelo enfraquecimento do ch. principio do, contrato, leva a admitir, como possivel, a consagracbo de formulas nao contratuais de extin-

cao de obrigacties, ao lado da remiss -ao. Requer-se, apenas, que, do contexto, nao seja esta a

figura aplicavel. ("5) Toma-se duvidoso, como se viu na nota anterior, que assim suceda, imperiosa-

mente, no C6digo Civil portuguEs.

(446) WIELING, Venire contra factum proprium cit., 342.

(447) WIELING, Venire contra factum proprium cit., 345-352.

60

766 0 exercicio inadmissivel de posiceies jaridicas

0 Direito civil consagra situageies de encargo ( 448), i. e, deveres de comportamento que, funcionando embora tambem no interesse de outr an pessoas, nao possam por estas, ser exigidos no seu cumprimento (449) . Perante o nao acatamento dos encargos, a ordem juridica reage, apenas,

corn sancOes enfraquecidas, relacionadas corn a diminuicao da posicao juridica da propria pessoa ligada ao encargo. 0 C6digo portugues, apesar de nao tao rico, neste aspecto, como o alemao, possibilita algu ns

exemplos. Assim, segundo o art. 916.0/1, o comprador deve denunciar ao vendedor o vicio ou a falta de qualidade da coisa, salvo dolo dente; a dentincia deve ter lugar dentro de certos prazos 916.°/2. E se nao for feita? Nessa altura, caduca a accao de anulagao por erro — 917... Repare-se que o «clever» de denunciar vicios ou falta de qualidades da coisa vendida, dentro de certo prazo, 6 instituido no interesse do vendedor que, desta forma, nao fica indefinidamente sujeito a que, por tais falhas, the sejam pedidas contas; ek nao pode, porem, exigir o cumpri-mento desse *dever* uma vez que a sanclo estabelecida tem natureza diversa (450). Ha dtividas quanto a natureza desta figura: segundo a teoria da vinculacao ( 451), o encargo seria urn dever juridico de sail* enfraquecida; a teoria do encargo ( 452), dita dominante, entende que existe aqui uma figura aut6noma: o onerado nao esti adstrito ao comportamento prescrito, devendo satisfazer o encargo no seu interesse. Esta Ultima afirmacao nao 6, alias, de subscrever por inteiro: estivesse em causa, apenas, o interesse do onerado, nao haveria que falar em encargo mas em onus (453). Nao obstante, 6 de acolher a teoria do encargo:

(448) Utiliza-se a express-ao vencargoo para significar a Obliegenheit. Nao se confunda encargo corn onus; este — que a doutrina alema recente, num esforco correcto de defirnitacio, circunscreve ao processo nao traduz urn dever no proprio interesse mas antes, como E sabido, tuna pen:nisei° na adopt -ao de certa conduta, conduta essa, porOm, que deve ser exercida para obtencio de certa vantagem, facultativa tambem, naturalmente.

(449) REIMER SCHMIDT, Die Obligenheiten (1953), 104 e 314. A expressio e o seu contetido foram originados no Direito dos seguros tendo, a partir daf, lido generalizados ao Direito civil, coerce da investigacio de R. SCHMIDT; tambim LARENZ, SchuldRIATI 3 cit., 179 e SchuldRis cit., § 3, II (14).

(450) Outros exemplos de encargos encontram-se nos arts. 921. 0/3 e 4, 925. 0/2 e 3 — estas disposicoes aplicam-se aos demais contratos onerosos, por forca do art. 939. ° — e 1033.% Urn caso tfpico estaria consignado no art. 229.0/1, caso o dever de avisar of consagrado, em vez de estatuir a responsabilidade do proponent; mandasse considerar eficaz a aceitacio tardia, como faz o § 149 BGB; o C6digo instituiu, assim, apenas um dever comum.

(451) Defendida por FIKENTSCIHER, SchuldR 6 cit, § 16 II 2 b (49). (452) Defendida por LARENZ, SchuldRIATI 3 cit., 4952 e AllgTeils cit., 179, por

WIELING, Venire contra factum proprium cit., 347 e por GituNsrY I Manch-Komm cit., § 254, n.° 2 (344).

(453) Nao se inverta a questa°, como WIELING parece fazer, em Venire contra faction proprium cit., 348, afirmando que o beneficiario nao tem qualquer interesse na concretizacl° tempestiva do encargo; o interesse do beneficiario esti na constituicio do encargo, embora atinja um maxima de satisfacbo no caso do nao acatamento.

§ 28.° .Venire contra factum proprium 767

trata-se de uma modalidade de adstricao que, nao podendo ser concre-tizada por via judicial, nao se reduz aos deveres comuns mas que, surgindo acompanhada de sancOes particulares, tambem nao 6 uma obrigacao natu-ral. 0 tipo de sancio, ligado, de modo directo, ao comportamento do adstrito, justifica bem a designacao de encargo. Assentes estas nocaes, diz-se aculpa contra si proprio* a *culpa* que o Direito exija, no nao acatar dos encargos, para a actuacao das sancoes respectivas; simplesmente resultando, da *culpa* em causa, uma vantagem imediata para a contra-parte, dado o funcionamento dos encargos, nao cabe falar num juizo de reprovaclo legal associado a certo facto causador de danos ( 454). A tculpa contra si pr6prio* nao 6, assim, culpa em sentido tecnico; W. recondu-la a urn vcfp: o onerado, nao acatando, por sua vontade, o encargo, nao pode, depois, pretender, sem contradicao, exercer, em toda a plenitude, o seu direito (455).

Esta tentativa de WIELING de reconduzir a culpa contra si prOprico ao vcfp a um exemplo excelente de como a maleabilidade figurativa lin-guistica pode, dentro da mesma ordem juridica, cindir fen6menos pr6ximos ou aproximar ocorrencias longinquas. Surgem, porem, difi-culdades. 0 nao acatamento de encargos tem a ver, nv essential, pelo prisma das sancOes respectivas, corn o desrespeito de prazos de caducidade. Perante estes, W. diria simplesmente que o nao exercicio de urn direito, dentro do prazo de caducidade, 6 uma rentincia unilateral; a ten-tativa intempestiva de exercicio 6, entao, urn vcfp. Mas, pelo Direito alemao como pelo portugues, nao se aplica, 3 caducidade, o regime prOprio das declarageks de vontade — art. 328.° ss.. A transposicao da «culpa contra si proprio , para o Direito legislado portugues levanta, tambem, dificuldades. Ao contrario do que sucede corn o BGB e, ainda este, apenas nalguns casos (456), o C6digo portugues nao fala, a prop& silo de encargos, em culpa pr6pria. Retomando o exemplo acima referido do art. 916.0: se o comprador, tendo conhecimento do vicio, nao puder, contra sua vontade, denuncia-lo ao vendedor dentro do prazo legal, quid iuris? A lei classifica o prazo como de caducidade — art. 917.°; o regime desta 6 rigido, nao prevendo, em geral, solucties que contemplem o problema focado — art. 328... Sendo assim, 6 de admi-tir o decurso dos prazos referidos no art. 91642 como imperturbavel por ausencia de *culpa propria.•. Naturalmente, se por facto imputivel ao vendedor ou a terceiro, o comprador nao puder acatar o «clever* de dentincia, no prazo legal, nao fica indefeso: cabe-lhe a accio de inde-nmizacio contra o responsivel, podendo mesmo, verificados os pressupostos respectivos, ser bloqueado, por exercicio inadmissivel p. ex., por vcfp! — a aleggio da caducidade, por parte do vendedor. 0 fink° caso claro de *culpa contra si proprio*, no C6digo, seria o do art. 570.0. Essa

(454) Mantem-se a norelo de culpa fixada em MENEZES CORDE/I0, D. Obrigages cit.,

2, 308. Qualquer outra das versbes em yoga permitia, porim, alcanor resultados similares.

(49 WIELING, Venire contra factum proprium cit., 349, 351 e 352. (456)Wmmo, Venire contra factum proprium cit., 347.

§ 28. ° Venire contra factum proprium

769

inovar, as teses de WIELING sobre a negociabilidade do vcfp, e que sera apreciado de seguida; urn nivel sistematico onde J. SCH., a pretext° de uma geografia nova, altera, de modo informe, uma paisagem que nao substitui. J. Sur. partira, na sua exposicao sobre boa fe, do pressuposto de que esta surge de tal forma carecida de concretizacao que nao ela propria, qualquer criterio de ordenacio interim ( 462). Mas este pressu-posto nao se aplica aos actos negociais ou, pelo menos, J. Sm. nem justifica nem afirma tal assercao. Ao repartir os casos de vcfp em torn duma dinamica empirica do direito subjectivo, indiferente ao facto de ter de repetir-se, quer na pro/36a expressio vcfp, quer nos argumentos para a sua negocializacao, J. Sof. vai longe de mais: exagera.

VII. A decislo Ultima sobre a valia da reconducao do venire contra factum proprium ao desrespeito de actos juridicos depende da posicao assumida quanto aos comportamentos concludentes como modo de manifestar uma vontade negocial.

0 problema analisa-se em dois pontos: na univocidade do prOprio comportamento em si, capaz de motivar, por isso, a confianca da contraparte e na consciencia da declaracao que de, ao comportamento, o sentido de uma autonomia efectiva. Na falta de tal consciencia, quaisquer efeitos que se atribuam as atitudes das pessoas nao exprimem ji a autonomia privada do prOprio mas, tao só, a tutela da confianca de terceiroS. Viu-se como WIELING, intuindo o escolho, se apressou a afastar a consciencia da declaracao como requisito negocial. Ainda quando discutido na Alemanha, esse tema foi decidido, no born sentido, pelo legislador portugues: sem consciencia da declaracao nao hi exteriorizacao negocial ( 463 ). Fazer, dela, depender o venire contra factum proprium, entao assumido como inacatamento de urn negOcio comum, tiraria, a figura, qualquer interesse e nao corresponderia dinamica jurisprudential analisada, que ponders a situacao do con-fiante. Tanto basta para afastar as orientacoes negociais.

A proibicao de venire contra factum proprium representa urn modo de exprimir a reprovacao por exercicios inadmissiveis de direitos e posicoes juridicas. Perante comportamentos contraditOrios, a ordem juridica nao visa a manutencao do status gerado pela primeira actuacao, que o Direito nao reconheceu, mas antes a proteccao da pessoa que teve por boa, corn justificacao, a actuacao em causa. 0 factum pro-prium impoe-se nao como expressao da regra pacta sunt servanda,

(462) STAUDINGER /SCHMIDT, BGB 12 cit., n.° 168 (68). (463) Art. 246.9; cf. supra, 643 ss..

exercicio inadmissivel de posic5es juridicas

disposicao nao se reporta, porem, nem a culpa ern sentido pr6prio, nern, proprium (457). necessariamente, a urn acto humano, base minima de qualquer

factum

VI. A tentativa de WIELING teve um certo acolhimento na Ultima edicao do comentario de STAUDINGER. Al, nega, sucessivamente, que o vcf J. SCHMIDT p possa traduzir, com expressio boa fe, novas previsoes de constituicao de direitos subjeco

tivos, novas da pr negativas — i. é, impeditivas — dessa constituica evisti o e novas previsoeess de modificacao de direitos. No primeiro caso,

ser irrelevante SCHMIDT proclama , copara a constituicao de direitos, a nature

J. SCHMID

contradit6ria em si dos dois mportamen tos ou o alcangar de previsoesza de confianca; decisiva 6 a formacao, atraves do primeiro comportamento, de urna

adstricao juridica do titular exercente ( 458). 0 segundo, que J. SCHMIDT exemplifica corn OLG Koln, 8-Nov.-1972 (459), tern a ver corn a don-mina geral das declaracoes de vontade ( 489. 0 terceiro dispensa i gual-mente o recurso ao § 242 e ao vcfp: os problemas ai incluidos sac) explicados, corn vantagem, atraves da doutrina negocial, tal

c al como propeie WIELING (461). Na aparencia, J. SCHMIDT segue a linha de WILLING, reconduzindo

a autonomia privada e ao seu poder vinculativo os casos agrupados sob a sigla vcfp. W. mantem, contudo, uma sisteica ordda ftingao dos comportamentos contraclitdrios, que emit

nriquece, aenalias, corn

em o acrescento da ch. culpa contra si proprio; permite uma aproximaca entre fen6menos que, embora redu dveis, pela sua 6ptica, ao Campo mais vasto da autonomia privada, tern, ainda, especificidad

es em comum. Corn J. SCHMIDT, as quesdies reunicias como vcfp repartem-se em tomo

de tuna dinamica descritiva centrada no direito subjectivo. Sem projeccao domitica — nao informa solucoes — e sem papel sistemitico — nao agrupa solucoes informadas pela autonomia privada — o vcfp dissolve-se e desaparece.

A orientacao irnprimid a por J. SCHMIDT ao diSSiC0 STAUDINGERS' Komm, no tocante a boa fe, exige uma apreciagao global, a fazer oportunamente. No que respeita ao vcfp, notam-se dois niveis de desenvolvimento. Urn nivel dogmatic°, em que J.

SCH. retoma, sem

(457)0 art. 570.0, mantido em homenagem I velha figura da ecompensacio de culpasa tern a ver, como ji se havia observado em Mar zEs CoRDEnto, D. Obrigacjes cit., 2, 409, mais corn a delimitacao de danos, i. é, corn o saber ate que ponto des devens ser imputados ao agente, do que corn juizos de censura a forrnular contra o lesado.

(458) SuuDINGER/Scitiapz BGB 12 cit., n.° 560 (189). A vinculacio ao primeiro com-portamento nao depende, naturalmente, da contradicao posterior e, no momento initial, pode nao haver que falar em confianca.

(459) MDR. 1973, 314. (460) (461)

i STAUDINGER /SCHMIDT, BGB 12 Cit. n.° 595-596 (19697). 4 STAUDINGER/SCHMIDT, BGB12 Cit., n.° 600-601 (199), maxima.

770 0 exercicio inadmissivel de posifaes juridicas

mas por exprimir, na sua continuidade, um factor acautelado p ela concretizacao da boa fe. As grandes linhas da proibicao do

venire contra factum proprium correspondem ao cenirio, acima bosquejado, a propOsito da concretizacao da doutrina da confianca. Exceptua-se urn grupo marginal de situagoes, em que aflora o principio da materialidade das regulacoes juridicas, conectado, tamb6m, com a boa fe e patente no to quoque.

0 tipo de exercicio inadmissivel de posicoes juridicas, insito nos comportamentos contraditOrios e, porem, muito extenso. Ele capta os dados perifericos disponiveis em termos de grande generali-

dade, com dificuldades imaginiveis na obtencao de solucoes novas. Embora vocacionado para resolver casos concretos, sempre que nao seja afastado, ele nao pode ter em conta as especificidade s de todas as hipOteses multiplas que, para ele, apelem, deixando, nessa medida, um espaco largo a decisao do interprete-aplicador. 0 esta-belecer de linhas dedutivas corn base no venire contra factum proprium 6, em particular, inviavel. Corn atencao a novos elementos perifericos constitutivos e enriquecedores do tema em estudo, ha que procurar tipos mais restritos de regulacoes de actos inadmissiveis e ver em que medida eles corroboram ou infiectem as linhas depreendidas dos comportamentos contraditOrios.

s 29.° A INALEGABILIDADE DE NULIDADES FORMATS

72. 0 dado jurisprudencial; necessidade de recurso a ideia de sistema !novel

I. As ordens juridicas da actualidade vivem, em teoria, domi-nadas pelo principio da consensualidade na formacao dos actos juridicos: a simples exteriorizacao da vontade das pessoas, efectuada por qualquer meio idOneo, 6 suficiente para integrar as previseies normativas relacionadas corn a autonomia privada. 0 Direito requer, contudo, em sectores delimitados, formas especificas, normalmente solenes, para a dimanacao de declaracoes negociais (464). Quando a forma prescrita no seja assumida nas declaraceies das partes, o Direito nega-lhe, salvas excepcoes, o reconhecimento juridico, cominando a nulidade. Nesse sentido dispeie o art. 220.°. Nao obstante as apregoadas justificac5es da forma legal, quando prescrita — a reflexao das partes, a facilidade de prova e a publicidade — o seu desrespeito nao concita, nos niveis 6tico, psicolOgico e social, a reprovacao en6rgica que o Direito the conecta. As mesmas razoes extra-juri-

dicas que se viu militarem no sentido da proibicao de venire contra

factum proprium (465) incitam, na sociedade, ao cumprimento dos negOcios livremente celebrados, ainda que sem observancia da forma legal. A desconsideracao comum pelos valores juridicos associados a forma 6 agravada pelo arcaismo dos regimes modernos, no tocante ao sistema da sua prescricao: oneram-se actos de relevo social e economic° em regressio, enquanto outros, da maior importancia, se mantem consensuais.

Pode, pois, falar-se de pressao sobre o dispositivo legal que prescreve as nulidades formais. Essa pressao acentua-se por forca do prOprio regime da nulidade, no que toca a sua alegaca'o: qualquer interessado pode faze-lo — art. 286. 0. No limite uma pessoa pode, com dolo ate, induzir outra a celebrar urn negOcio sem a forma

(4") Cf. MENEZES CORDEIRO, D. Obtigatiks cit., 1, 415.

(465) Cf. supra, 750-751.

770 ' 0 exercicio inadmissivel de posifees juridicas

mas por exprimir, na sua continuidade, urn factor acautelado p eia concretizacao da boa fe. As grandes linhas da proibicao do venire

contra factum proprium correspondem ao cenario, acima bosquejado, a proposito da concretizacao da doutrina da confianca. Exceptua-s e

um grupo marginal de situacOes, em que aflora o principio da materialidade das regulaceies juridicas, conectado, tambern, corn a boa fe e patente no to quoque.

0 tipo de exercicio inadmissivel de posicoes juridicas, insito nos comportamentos contraditOrios é, porem, muito extenso. El e

capta os dados perifericos disponiveis em termos de grande generali-dade, corn dificuldades imaginiveis na obtencao de solucoes novas. Embora vocacionado para resolver casos concretos, sempre que nao seja afastado, ele nao pode ter em conta as especificidades de todas as hipOteses miiltiplas que, para ele, apelem, deixando, nessa medida, urn espaco largo a decisao do interprete-aplicador. 0 esta-belecer de linhas dedutivas corn base no venire contra factum proprium é, em particular, inviivel. Corn atencao a novos elementos perifericos constitutivos e enriquecedores do tema em estudo, ha que procurar tipos mais restritos de regulacoes de actos inadmissiveis e ver em que medida des corroboram ou inflectem as linhas depreendidas dos comportamentos contraditOrios.

s 29.° A INALEGABILIDADE DE NULMADES FORMALS

72. 0 dado jurisprudencial; necessidade de recurso It ideia de sistema move!

I. As ordens juridicas da actualidade vivem, em teoria, domi-nadas pelo principio da consensualidade na formacao dos actos juridicos: a simples exteriorizacao da vontade das pessoas, efectuada por qualquer meio idOneo, a suficiente para integrar as previfoes normativas relacionadas corn a autonomia privada. 0 Direito requer, contudo, em sectores delirnitados, formas especificas, normalmente solenes, para a dimanacao de dedaracCies negociais (464). Quando a forma prescrita nao seja assumida nas declaracoes das partes, o Direito nega-lhe, salvas excepcoes, o reconhecimento juridico, commando a nulidade. Nesse sentido dispoe o art. 220.0. Nao obstante as apregoadas justificacoes da forma legal, quando prescrita — a reflexao das partes, a facilidade de prova e a publicidade — o seu desrespeito nao concita, nos niveis etico, psicolOgico e social, a reprovacao energica que o Direito the conecta. As mesmas razoes extra-juri-dicas que se viu militarem no sentido da proibicio de venire contra

factum proprium (465) incitam, na sociedade, ao cumprimento dos negOcios livremente celebrados, ainda que sem observancia da forma legal. A desconsideracao comum pelos valores juridicos associados a forma 6 agravada pelo arcaismo dos regimes modernos, no tocante ao sisterna da sua prescricao: oneram-se actos de relevo social e economic° em regressio, enquanto outros, da maior importancia, se mantem consensuais.

Pode, pois, falar-se de pressio sobre o dispositivo legal que prescreve as nulidades formais. Essa pressao acentua-se por forca do prOprio regime da nulidade, no que toca a sua alegacao: qualquer interessado pode faze-lo — art. 286.0. No limite uma pessoa pode, corn Bolo ate, induzir outra a celebrar urn negOcio sem a forma

(464) Cf. MENEZES CORDER°, D. Obrigaples cit., 1, 415.

(465) Cf. supra, 750-751.

772 0 exercicio inadmissivel de posicoes juridicas

29.0 A inalegabilidade de nulidades formals 773

prescrita, retirar, da aparencia dal emergente, os beneficios que the aprouver e, em qualquer momento que the convenha, alegar a nulidade.

Desde o antigo Direito romano, todo o progresso juridico tem operado contra o formalismo, na busca de solucaes materials verdadeiras (466

). 0 combate nao esti ganho, embora se deva reconhe-

cer a possibilidade da permanencia justificada de urn minimo de forma, em casos especificos. Entendem-no, pelo menos, os Codigos, em ter-mos que no deixam dtividas.

II. As injusticas resultantes, em certos casos, da nulidade formal, tern levado o Direito a, de urn modo ou doutro, intervir para minorar o problema. Desaparecido o negocio, as partes no ficam desamparadas no que, ao seu abrigo, hajam prestado: assistem--lhes pretensOes de restituicao, tratadas, em termos aperfeicoados, com autonomia, pelo art. 289...

0 Direito portugues conhece outros meios de minorar o ius

strictum das nulidades formais. Assim, a lei exceptua, ao regime da forma, boa parte das ch. estipulaceies acessOrias — art. 221.0; admite que o sentido da declaracao possa ter apenas um minimo de correspondencia no documento requerido pelo regime formal ou, ate, nem ter qualquer correspondencia — art. 238.0, 1 / e 2/; aceita a conversio de negocios nulos, corn viabilidade, pois, de passagem para negocio coin requisitos formais menos rigorosos (467) — art. 293.0; limita, por fim, em dispo-siciies extravagantes, as possibilidades de arguicao de certas nulidades formais (468).

(466) LORENZ, Das Problem der Aufrechterhaltung formichtiger Schuldvertrage, AcP 156

(1957), 381-413 (385-398) e Cam, Form und Billigkeit im modernen Privatrecht, DNotT 1965,

29-50 (29-30). (467)Este dispositivo tern o major relevo pritico, no direito portugues, para ressalvar,

em termos de justica material, negocios nulos por carencia de forma. Assim sucede, designa-damente, no dominio da alienacio de imOveis, feita por escrito particular: possibilita-se a sua reducio em contratos-promessa — art. 293.° — e depois, disso sendo caso, a execuclo especifica destes — art. 830.*.

(4") A nulidade formal de arrendamentos para comercio, indastria ou exercicio de prof ssio liberal, sujeitos a escritura p6blica, so a arguivel pelo locatario — art. 1029. 0/3, redaccio do DL n.° 67/75, de 19 de Fevereiro; o mesmo ocorre corn a nulidade formal do arrendamento urban para habitacia, sujeito a escrito, — art. 1. °/1 do DL n.* 188/76, de 12 de Marco; cf. MENEZES CORDEMO, Arrendameuto, Enc. Polis (1983). Ficou, pois, legalmente esclarecido que a enulidadas em causa nestas duas situac5es nao pode ser constatada, de °Brio, pelo tribunal, nem arguida por qualquer terceiro. Tambem o DL n.° 236/80, de 18 de Julho, no seu art. 1.0, ao pretender introduzir urn regime especffico no contrato-promessa

Em termos conceptuais, estas disposicoes e a evolucao que deno-tam tanto podem representar o enfraquecimento geral das nulidades formais, como o seu fortalecer nas areas onde, deliberadamente, o legis-lador nao queira intervir.

No caso concreto, as apregoadas razoes justificativas da forma podem mostrar-se salvaguardadas. A soluclo mais perfeita para suprimir os inconvenientes da nulidade seria, como se adivinha, a manutencao do acto nulo por vicio de forma, ainda que numa saida contra legem. 0 que foi tentado, no ambito da segunda codificacao, atraves da exceptio doli.

As disposicoes legais que impoem, nos codigos moderns, a nulidade por falta de forma — no BGB, o § 125 — nao consentem excepcees que nao as previstas na prOpria lei — art. 220... A possibilidade de recurso I exceptio doli 6, porem, em teoria, universal, desde que o Direito justinianeu aboliu, na realidade, a clivagem entre bonae fidei e stricti iuris iudicia: a exceptio nao tern de constar da formula para ser actuada; to pouco deve ser inserida em todos os preceitos legais que possam ser utilizados contra a boa fe.

0 emprego da exceptio perante nulidades formais, contrariando, de modo frontal, a vontade do legislador ( 469) nao foi conseguido sem hesitacoes (470). Inicialmente, o RG entendeu que sonde intervenham prescricties de forma, nao pode, quando essas prescricoes nab devam conservar o seu sentido de outro modo, ser concedido o recurso I

de compra e venda para habitacio, tera querido estabelecer uma nulidade formal so arguivel pelo prornitente-comprador. Esse diploma adesastradoss — ArrruNes VARELA, D. das Obrigacdes4

cit., 270 — entendeu desviar-se da linguagem utilizada pelos DL n.° 67/75 e 188/76; assim, vem diner que o vicio formal nele tratado n -ao pode ser arguido pelo promitente-vendedor, obrigando a uma interpretacio correctiva para se concluir, corn as duvidas inerentes a este procedimento, que o vicio em causa trio pode ser, tambem, constatado de officio pelo tribunal ou arguido por qualquer terceiro interessado. Cf. MENEZES CORDEIRO, 0 nova regime do

contrato-promessa, BMJ 306 (1981), n.° 3. (469) Motive cit., 1, 183: oQuando para negocios singulares se encontre prescrita uma

forma especial, isso basta para considerar que as raz5es para a necessidade da observincia da forma pesam mais do que a consideracio pelo dever 6tico da palavra dada,. Cf., ainda Conic, Formund Billigkeit cit., 33 — segundo o qual o legislador apenas quis, no § 242, reforcar as vinculacoes, tal como fez o art. 1134 do Cod. Napolelo e nao limitar o § 125 — e D. REINICKE, Rechtsfolgen formwidrig abgeschlossener VertrOge (1969), 29-30, que refere a justi-ficacio de motivos.

(470) SToRMER, Die sog. exceptio doli generalis gegendber der Berufung auf Formichtigkeit cit., 20; WEBER, Treu und Glauben cit., D 427 (852); BOEHMER, Grund1BiirgR cit., 2, 2, 95; FLUME, AllgT cit., 2 3 , 272; REINICKE, Rechtsfolgen formwidrig abgeschlossener Vertrege cit., 29-30; HASEMEYER, Die gesetzliche Form der Rechtsgeschafte (1971), 37; LORENZ, Das Problem der

Aufrechterhaltung formnichtiger Schuldvertrage cit., 399.

774 0 excrcicio inadmissivel de posiccies jurldicas

boa fev (471), voltando a frisar, pouco depois que •0 Reichsge ri e ht mantem que o recurso boa fe perante prescriceies de forma tern d e ser negado, porque de outro modo as prescrigoes de forma ficariam seni significado* (472). A doutrina sufragaria, de algum modo, esta orient, tagio (473). 0 RG alterou, depois, as suas teses. Em 15-Nov.-1907,

a embora reconhecendo que, em principio, as disposigoes referentes I formnao podem ser contrariadas pela exceptio doli, decidiu concede-la ao R. em accao de nulidade, por o proprio A. ter induzido o R. redugio de determinada alteragIo num arrendasnento de coisa produtiva a escrito (474). Em RG 28-Nov.-1923, discutia-se a situagao criada pela celebracio de um contrato simulado, corn prego, por comp ra de predio, inferior ao verdadeiramente acordado. 0 A. pedia a declaracio de nulidade do contrato dissimulado, por falta de forma; no entanto, fora de que, como experiencia de transacgoes imobiliirias, ainda que sem o intent() de gerar uma nulidade, declarara ao R. a juridicidade do neg6cio, assim celebrado. 0 RG concedeu a exceptio (475). Esta decisio foi modelar em relagab a numerosas outras (476).

(471) Cf. W. WEBER, Treu and Glauben cit., D 421 (850). (472) RG 7-Jun.-1902, RGZ 52 (1902), 1-5 (3); tratou-se de uma venda de irnOvel na

qual o assentimento do marido fora meramente verbal. Refira-se, tamb6m, RG 7-Jan.-1910, RGZ 72 (1910), 342-343 (343), oxide se 18: (A contra-parte contratual que alega a nulidade faz apenas use do scu direito; quem faz isso nao atenta contra a boa fen e RG 22-Mai.-1913, RGZ 82 (1913), 299-305, onde, a proposito duma contribuicao durn s6cio, para a sociedade respective, de um imovel, sem a forma adequada, se decidiu que o recurso a nulidade em causa nit) atentava contra o § 826 - bons costumes - (pots de outra forma tornar-se-ia insitil, atrav6s de urn desvio, o mandamento legal, que exige a observancia de uma forma especial para determinados contratos e convencoes, - RGZ 82, 304. A argumentacio patente nestas dues decisOes releva de um certo radicalismo superficial: o exercicio de urn direito formal nio impede o atentado a boa fe material, constituindo abuso do direito enquanto, por outro lado, a aceitacact de restric8es especfficas ao alegar de nulidades formals nao inutiliza naturalmente, o dispositivo legal que prescreve a forma e a nulidade pela sua inobservincia.

(473) Vejam-se os AA. e obras cit. infra notas 482-485; a doutrina deixou, por6m, sempre uma pore aberta ao que viria a ser a orientagio posterior do RG.

(474) RG 15-Nov.-1907, SeuffA 63 (1908), 349-350 (349) = Recht 1907, 1527, n.° 3757-- Gruchot 52 (1908), 1044-1046 (1044-1045). Cf. supra, 727295.

(479 RGZ 107 (1924), 357-365 (364-365). Este caso reveste-se de circunstancias parti-culates, que ajudam a entender as posicoes do RG, contra legem e contra a doutrina. 0 =gado simulado estipulava uma venda por 200000 RM, quando o preco real fora de 227500 RM. A diferenca - de 27500 KM - havia sido paga de antecipado e, por isso, foi o R. comprador convencido de que nio valia a pens induf-la no documento notarial. Inutilizar um contrato, nestas circunstincias, era, de facto, clamoroso, nio sendo crfvel a inexist8ncia de meios jurfdicos para o obviar. Acresce que a impugnagio em causa teria por objecto ultimo tirar partido da inflacio muito grande, emirs ocorrida na Alemanha: na restituicio do que houvera sido prestado, o vendedor-impugnante receberia urn imovel monetariamente muito valorizado e restituiria urn preco que ji silo corresponderia, em termos reais, ao na realidade pago. A inflacio conduziria, alias, a uma serie de impugnacoes desse tipo as quais 0 RG fez frente corn a exceptio doll - ARNDT., Zur exceptio doll bei Schwarxkiiufen, DJZ 31

§ 29.0 A inalegabilidade de nulidades fortnais 775

III. Verificou-se uma certa evolucao jurisprudential (477), que

corresponderia, alias, a decadencia da exceptio dolt. As primeiras deci-s'oes judiciais que instituiram a inalegabilidade de nulidades formais fizeram-no quando o A. causara directamente o vicio na forma e, depois, pretendeu aproveitar-se dele (478). De seguida, porem, veio

a requerer-se, apenas, a simples negligencia do A., aquando da

celebracio do contrato (479). Por fim, a alegacio de nulidades

(1926), 805-806 (805). Numa faceta interessante do problema, que nit) tern sido salientada

pela doutrina - vide, contudo, FLUME, AllgT cit., 2 3 , 272 - deve, pois, salientar-se que a

jurisprudencia relativa 3 inalegabilidade de nulidades formais tern a sua origem em situayOes sociais delicadas, que tinham de see resolvidas imperiosamente.

Como se sabe, este caso teria, face ao Direito portugu8s da simulacio, um regime

RG 21-Mai.-1927, RGZ 117 (1927), 121-127, RG 12-Nov.-1936, RGZ 153

di(19fe3re7)n,(t4e6) 5;9-61 (61), RAG 15-Jun.-1938, JW 1938, 2426 e RG 4-Dez.-1942, RGZ 170 (1943),

203-20E7m(2°co4-m2p0e5ns), apcaoe,x6. RG nab aceitou a paralisacbo de nulidades formais causadas por simulacaes corn o fito de defraudar o fisco. Assim ern RG 19-Abr.-1926, LZ 20 (1926), 696-697 (697), entendeu-se, num caso desses, que o A. pretenders atentar contra disposicaes legais e nit) contra a outra parte; ambas as partes actuaram contra a prescricio legal que determina a forma, corn consciencia, pelo que nio ha, na alegacao da nulidade, atentado contra a boa fe. Da mesma maneira, decidiu-se, em RG 21-Jun.-1927, Recht 31 (1927) n.° 2197 (661):

focou-se, af, a .necessidade, pars mover a exceptio, de o adquirente estar convencido de que,

observara a forma legalmente prescrita. (477) SOME'. /SIEBERT /KNOPP, BGBI° tit., § 242, n.° 340 ss. (95 ss.); REINICXE,

Rechtsfolgen formwidrig abgeschlossener Vertrage cit., 30 ss.; Sonstm/HEFEnonn., BGB 11 cit..

§ 125, n.° 23-25 (570-571); StsunnicEs/Ducies, BGE1 12 cit., § 125, n.° 38-41 (332-334).

(478) Foi o caso, ja conhecido, de RG 15-Nov.-1907, SeuffA 63, 258 = Recht 1907, 1527 = Gruchot 52, 1045. Merece ainda mencio RG 10-Out.-1919, RGZ 96 (1919), 313-316: a proposito da renovacao de urn contrato de locacio de coisa produtiva, viciado por carencia de forma legal, fora alegada a nulidade formal e contraposta a inadmissibilidade desse recurso. 0 R0 recusaria, neste caso, a inalegabilidade, defendendo que esta so deveria ser concedida quando o alegante impeca, propositadamente, a concretizacao da forma ou quando declare, I outra parte, a inutilidade da providencia; nio bastaria; pois, a men negligencia na observincia

das disposic5es legais (315). (479) RG 21-Mai.-1927, RGZ 117 (1927), 121-127 (124); a proposito de urns

compra e venda relativa a urns case, alegara-se a nulidade formal do contrato respectivo.

0 RG considerou, at, ser de exigir, por parte da pessoa que se vem opor a alegabilidade do vicio de forma, o erro sobre a necessidade da formalidadc e, por parte de quern o alega, que, pelo menos corn negligencia, o tenha causado. Esta linha tem antecedentes daros;

ern RG 28-Nov.-1923 - supra, 774475 - prescindira-se ja do dolo ou equivalentes para

bloquear uma nulidade formal. Em RG 1-Jul.-1924, Recht 28 (1924), n.° 1443 (2, 407-408),

le-se 4A culpa propria tambern nit) é necessaria; basta que o A. tenha querido a nib realizacio da forma escrita c que no tempo subsequente tenha tratado o contrato como validon

o RG decidiu, alias, negativamente a contra-alegacio do A..

776 0 exercicio inadmissivel de posioies juridicas

formais veio a ser coarctada, independentemente de qualquer culp a do A., quando, dadas as circunstancias do caso, se constate que o pro-

vimento da nulidade iria atentar contra a boa fe (480) .

Este desenvolvimento vigoroso da jurisprudencia, alem de contra legem, processou-se em certa discordancia com a doutrina. Desde inicio, chamou-se a atencao para a natureza cogente das disposiceies que cominam formas necessarias para certas declaracoes negociais bem como das que, a inobservancia das primeiras, associam a nulidade. Havendo dolo ou procedimento similar por uma das partes, corn uma nulidade formal por resultado, poder-se-ia, quando muito, chega r

a uma indemnizacio a arbitrar ao prejudicado, seja por culpa In contrahendo, seja por pratica delitual, atentatoria, eventualmente, dos bons costumes.

Uma reaccio grande por parte da doutrina foi desencadeada por RG 15-Nov.-1907 (481 ): HOENIGER (482), REICHEL (483), JOSEF (484)

(49 RG 12-Nov.-1936, RGZ 153 (1937), 59-61 (60-61) — a proposito de locacao de coisa produtiva que previa, para depois do fim do contrato, uma clausula de nit) concorrencia do locatario em relacao ao locador, vem aquele, no final, arguir a invalidade formal; o RG decidiu ser de admitir a inalegabilidade, porque «esta é tambem dada quando o R., ainda que sem intencao, assuma uma atitude que, de acordo corn o sentir geral do povo, seja inconci-liivel com um comportamento anterior por ere perpetrados; RAG 15-Jun.-1938, JW 1938, 2426 — aquando da discussio sobre nulidade formal de urn contrato de trabalho corn redactor, o RAG decidiu que a excepcao de dolo era de conceder perante a alegacio de nulidade, quando o A., ainda que trio sendo contratante de ma fe, se tenha comportado de tai modo quc a arguicao superveniente atente contra a boa fe e os bons costumes; esta decisio mereceu uma an. desfavorivel de MArtirssEN, JW 1938, 2426-2427; RG 4-Dez.-1942, RGZ 170 (1943), 203-207 (204-205) — corn referencia a nulidade formal de venda de heranca, o RG entendeu a inviabilidade da alegacio por contrariedade i boa fa, ainda quando nao tivesse havido ma intencao por parte do A.

(481) Supra, 775478 . (482) HOENIGER, Arglist herbeigefiihrte Formnichtigkeit, ZNotV 1909, 673-688 (675).

H. entende que a exceptio so pode ser concedida contra quern alegue nulidade formal quando o A. que o faca the tenha dado azo atraves de delito. Precisa H.: Os pressupostos pan o conceito em analise [a exceptio doll] sac) duplos: positivamente; que o provocar da nulidade formal atraves duma das partes preencha em pleno a previsio de urn delito civil e negativamente, que a outra parte nio conheca a nulidade formal, trio a silencie e, tambem, nem corn era con-corde nem a desconheca por negligencia — idern, 681; tambem HOENIGER, Einrede der Arglitt gegen Formnichtigkeit, ZNotV 1910, 907-909.

Reticcnte perante a hipotese de bloquear nulidades formals mostrar-se-ia, ainda, WEISSLER, Rechtsprechung in Urkundsachen, ZNotV 1909, 70-118 (75). Ai, precisamente a

proposito de RG 15-Nov.-1907, cscreve que t...na simples alegacbo da disposicao legal de forma nunca pode ser visto urn dolo*.

§ 29:° A inalegabilidade de nulidades formals 777

e OERTMANN (485) asseguram, no essential, que o Tribunal do Reich

colocara a alegacao de nulidade formal ao nivel das condutas nao permi-tidas, contrariando, pois, a letra e o espirito da lei. A ocorrincia de manobras condeniveis, na origem do vicio, apenas permitiria ao lesado obter uma indemnizacio pelo interesse negativo — o interesse da con-fano. — do contrato (486) ; nunca, porem, validar uma nulidade. Mesmo AA. que, como HELDRICH, concordam corn a jurisprudencia do RG, distanciam-se deste no que respeita a justificacio (487).

IV. A jurisprudencia do BGH manteve, num primeiro tempo alinha do RG (488). Estendeu-a mesmo a areas antes tidas por imu-nizadas, como a dos negOcios post mortem (489 ).

(483) REICHEL, Zur Behandlung fornmichtiger Verpflichtungsgeschafie, AcP 104 (1909),

1-150; R. explicita, com clareza, quo de urn negocio nulo, nao podem emergir pretens8es de cumprimento; sendo a nulidade formal, por maioria dc razio nao é o negOcio viciado

susceptive' de ser feito valer — ob. cit., 2 e 33. Esta situacao nao pode ser entravada pela

exc. doll ou pela boa fe — ob. cit., 40. Concede, do so a 5112 interposicio quando uma parte,

de modo contrario a 16 ou aos bons costumes, provoque a nulidade corn dolo e, depois,

procure fazer vale-la — ob. cit., 44.

(484) JosEr, Arglistige Herbeifiihrung der Formnichtigkeit, AbingR 36 (1911), 60-70. Tam-

bem J. foca que apenas o provocar, com delito doloso, da nulidade, pode facultar I outra parte a excepcio de dolo; doutra forma, o recurso a nulidade formal seria urn comportamento nao permitido, o que contraria a lei; o causar nulidades nao permite, na falta desses requisitos, mais do quo a indemnizacio por interesse negativo ou interesse da confianca — ob. cit., 68-70,

62-63 e 65. (488) OERSMANN, Arglistige Herbeifiihrung der Formnichtigkeit, Recht 1914, 8-12. 0., estra-

nhando igualmente quo o recurso a nulidade possa integrar uma hipotese de comportamento indevido, admite, como margem para a interposicio da exceptio, a situacao em que uma das

panes, ji corn o intento de, mais tarde, arguir a nulidade, tenha dado lugar I sua verificacio.

(486) Viu-se supra, 585 o que pensar delta orientacio, em termos gerais.

(487) HELDRICH, Die Form des Vertrages, AcP 147 (1941), 89-129 (112).

(488) Curiosamente, o porno maxim° da evolucio jurisprudential do RG no sentido da superacio, por via da boa fe, dos requisitos legais de forma, foi alcancado atraves de uma decide, do OLG Dresden, 22-Mar.-1949, portanto na ender Zona de Ocupacio Sovietica, hoje DDR, NJ 1949, 256-257 = JR 1950, 24-25. Fora ecelebrado* urn contrato de compra e venda de imOvel, mediante a aceitacao duma proposta formulada por carta; a formalizacio notarial ficou para mais tardc. Nio se realizando esta, o comprador acciona o vendedor para que faculte a inscricio; o R. alega a nulidade formal. 0 tribunal de apelacao eat:rider' quo o requisito de forma se prendia a urn forte conceito de propriedade, em especial fundiiria. Ora c... uma necessidade de proteccio tao extensa e especial da propriedade, perante uutros direitos, nao E mais sentida no desenvolvimento ulterior do nosso Direito. A proprie-

dade tem de aceitar mtiltiplas limitacoes e intervene es, mais ou menos sem proteccbo, na ordem nova das relaceies econdmicas e sociais. A concepcio jurfclica actual nao se indina ji, tarab6m, para atribuir I forma um significado decisivo, perante a palavra inequfvoca que

778 0 exercicio inadmissivel de posico-es juridicas

Existe, na Rep. Fed. Alema, corn especificidades nalguns estados, urn regime sucessorio especial para a sucessio em bens rtisticos

o regime das quintas ou Hofeordnung. Esse regime permite, para salvaguarda da empresa rural, que nests suceda apenas urn dos herdeiros mantendo os restantes simples pretens5es em dinheiro. Compete ao' proprietario da quinta determinar, por testamento, de entre os restantes o sucessor na quinta, corn inteira liberdade, desde que se trate de pe sso; corn capacidade de continuar a exploragio. A quinta pode, tambem, set entregue ao futuro herdeiro, ainda em vida do titular, atraves de contrato de entrega de quinta, de natureza formal, a celebrar perante o notario

(490) . Em torno deste regime, gerou-se uma jurisprudencia limitativa da forma legal, corn uma serie de artigos doutrin4rios subsequentes (491). Discu-tiu-se no BGH a situagio que segue. Urn agricultor de setenta e quatro anos, corn nove filhos, deixou o filho terceiro viver na quinta, formar-se como agricultor e trabalhar nela contra habitaclo, comida e algum dinheiro; else filho casou, continuando a viver e a trabalhar na quint a

e vindo a ter cinco filhos. Posteriormente, houve desavencas entre pai e filho por causa da direccio da empresa rural; o pai, por document° notarial, decide, entio, entregar a quinta a uma filha, residents corn o marido noutro sitio e exigir, do filho, o abandono do local. As instancias

vincula*. Posto o que afasta o § 313 BGB, em nome do § 242 - NJ 1949, 257 = JR 1950, 25. 0 OLG Dresden nio refere a jurisprudenda do antigo RG, embora a pressuponha.

Na' transposicao do RG para o BGH, foi importance a decisio do OGHBrZ,

7-Out.-1948, OGHZ 1 (1949), 217-222. Discutia-se a evendu de uma casa, feita por escrito

particular, quando o ovendedon, arguindo nulidade formal, veio reivindica-la. 0 R. alegou pensar a formalizacio perante o notario como operacio habitual, mu nao obrigatOria, tendo confiado no A., oficial de polfcia. 0 OGHBrZ entendeu que em casos especiais, de consequencias insuportiveis para os RR., 6 de bloquear o dispositivo que prescreve dedaracoes formais, atraves da boa fe - OGHZ 1 (1949), 218-219.

(489) Sector que, segundo GERNHUBER, Formtsichtigkeit und Treu und Glauben cit., 157, constituira um cfrculo «tabu».

(490) Kiee/Convc, Erb/2 19 (1978), § 131 (738 ss.; 742 ss.); LANCE/KUCHINEE, ErbR2 (1978), § 55 A VII (936 ss., especialmente 941-942); BARTHOLOMEYCZIIC/SCHLOTER, ErbRn (1980), 256; QUADFLIEC/ WEIRAUCH, Das Landwirtschaftliche Sondererbrecht gemdss der Novelle zur Hofeordnung, FamRZ 1977, 228-235 (233).

(491) P. ex., R. KRAUSE, Kann eine formmangelhafte Verfugung von Todes wegen rechts-gultig sein? FamRZ 1955, 161-163; F. J. GEROCENS, Zum Missbrauch der Testierfreiheit ins Landwirtschaftsrecht, FamRZ 1955, 163-164; HEINZ HUMBERT, Die formlose Bestimmung des Hoferben, NJW 1956, 1857-1860; W1EACKER, Stillschweigende Hoferbenbestimmung, DNotZ 1956, 115-125 e Hoferbenbestsmmung durch schliissiges oder sozialtypisches Verhalten? FamRZ 1957, 287-291; SCHULTE, Formlose Bestimmung des Hoferben, RdL 1956, 177-181 e Formlose bauetikhe Obergabe- und Erbvertrage, NJW 1958, 361-364; Rownza, Zur formlose HoferbenbestimmunS in der Rechtsprechung des BGH, DNotV 1957, 283-295; HERMINGHAUSEN; Formlos bindende Hofzusagen, DNotZ 1958, 115-139; SCHULTE, corn obserraceoes a HERMINGHAUSEN, de no" Formlose bauerliche. Ubergabe- und Erbvertroge, NJW 1958, 820-821.

§ 29.. A inalegabilidade de nulidades formats 779 ,-

consideraram nulo tal contrato, por abuso de liberdade de testar; o BGH

confirmou a decislo, abordando o problema pela positiva: dadosos factos, o Mho R. teria celebrado urn contrato de entrega da quinta em vida corn o pai, embora sem forma legal, tendo ficado decidido o seu destino post mortem (492). Urn ano volvido, entendeu de novo o BGH a possibilidade de urn agricultor, atraves do seu comportamento duradouro e indubit4vel, independentemente das formalidades legais, ter indicado a urn dos herdeiros que devia receber a quinta (493).

Esta orientagio suscitou, por parte da doutrina, porventura maiori- taria, uma serie de criticas (494), embora tenha merecido, tambem, ade-

saes (495). No essential, as criticas radicam no ultrapassar de disposiceies legais injuntivas, corn a inseguranca subsequente e na dificuldade pratica de determinar a vontade das pessoas. Este tiltimo aspecto 6 puramente probatorio; quanto ao primeiro, queda apenas dizer que a natureza sucessoria da situacio nio a qualitativamente diferente das restantes: admitida a inalegabilidade, ha que estende-la ate as fronteiras naturals.

(492)BGH 16-Fev.-1954, BGHZ 12 (1954), 286-308 (287-288, 305-306 e 307-308)

DNotZ 1954, 307-313 (307-308 e 313) = NJW 1954, 121 (s6 o sumirio) = RDL 1954,

153-159 (153 e 158).

(493) BGH 9-Fev.-1955, DNotZ 1956, 134-138 (135 e 137) = FamRZ 1955, 171-172,

corn an. de F. W. Boscx, que chama a atenclo para o perigo de inseguranca resultante da

dews-ao (172) =-- NJW 1955,1065-1066, corn an. de G. e D. REINICKE, que levantam dificuldades

(1065) = RdL 1955, 109-112 (110 e 112). Os artigos de R. KRAUSE e de F. J. GERCZENS,

Cit. supra, 778491 , tiveram, como causa imediata, esta decisio. Podem ser confrontadas outras

decisbes em ROEMER, Zur fonnlosen Hoferbestimmung in der Rechtsprechung des BGH cit., 286,

HERMINGHAUSEN, Formlos bindenden Hofzusagen cit., 1151 . Antecedentes desta jurisprudencia

constam de ScHum, Formlose bduerliche Obergabe- und Erbvertnige cit., 361.

(494) Assim: ALFRED PutALo, an. BGH 16-Fev.-1954 cit. supra, 779492, RdL 1954, 193-

-196 -- P. sublinha, ern especial, o desvio em mini° aos prindpios gerais e i liberdade de

indicar o sucessor na quinta, ob. cit., 195-196; Farrz RIEDEL, Die Rechtsprechung in Landwirt-

schaftssaehen im Jahre 1954, JZ 1955, 109-114 (110) - R. aponta a natureza individual da

justica feita; W1EACKER, Prazisierung cit., 2962, 3575 e 49101 , focando, sucessivamente, o ter sido

preferfvel derivar a solucio dos bons costumes, a limitacio ao poder de livre disposicio do

proprietario da quinta e o ultrapassar das funcoes judiciais, perante alterac5es efectivas na ordem

jut-Um; tambem de WHACKER, cf. Stillschweigende Hoferbenbestimmung? cit., 1 18; HEINZ

HUMBERT, Die fonnlose Bestimmung des Hoferben cit., que explica, entre outros aspectos, a falta

de precisio das al. dedaracOes negociais e a subversio introduzida em dispOsicbes injuntivas

que, no Direito das sucess5es, determinam formal legais - ob. cit., 1858 e 1859; ROEMER,

Zurformlosen Hoferbenbestimmung in der Rechtsprechung des BGH dr., 288, apontando, entre outras

objeccoes, a indeterminacio da vontade do titular da quinta. Cf., tambem, Bosca e

Rumors cit. supra, 779193 .

(495) Assim: Rtinu.o&ANN, an. BGH 16-Fev.-19)4, tambEm cit., supra, 779492, RdL 1954,

311412, satisfeito corn a salvaguarda de um minimo Etico, exigido pela dareza de intenc6es

das partes - ob. cit., 311; SCHULTE, Formlose bduetliche Ubergabe- und Erbvertrdge cit., que, nao

obstante alguns reparos, frisa a necessidade de nem sempre a justice. material ser preterida pela

seguranca - ob. cit., 364.

/ 0 1 780 0 exercicio inadmissivel de posicoes juridicos

Em rigor, ficariam a margem apenas contratos corn efeitos pessoais, conk, o casamento (496) (497).

Outra area ligada, por excelencia, aos negocios post torten - a do testamento - mereceu a KEGEL uma atencio especial. Na base do pro.. blema esta o caso da heranca dupla, discutida em BGH, 6-Jul.-1965. Urn pai de sessenta e nove anos pretendia instituir herdeira a sua fazendo ainda pequenos legados. A filha leva urn advogado amigo

presenca do pai; este recusa elaborar, ele proprio, o testamento, pelo que o advogado, tendo tornado nota, em esquema, da vontad

e do pai, ficou de regressar corn urn notirio. Apesar de insistencias, a vinda do advogado corn o notirio tardou; chegaram a combinar-se tees encon-tros, todos adiados, por impedimentos, urn do notirio e doffs do advogado. 0 pai morre e, em consequencia das demoras, sem testar. Segue-se, depois, a sucessio legitima, sendo a heranca repartida entre a Ora e uma sobrinha. 0 advogado enviou, ainda, uma nota de honoririos. A filha acciona o advogado, pedindo o equivalente a metade da heranca que perdera corn a negligencia deste. 0 BGH, considerando ter sido violado urn contrato - entre o pai e o advogado - corn efeitos protectores a terceiros - a filha - decide tal accio procedente ( 498). Urn caso dcstes da lugar a duplicagio da heranca: o patrimonio deixado pelo de cuius e a indemnizagio correspondente. Hi, pois, que, em situacoes extremas, possibilitar a libertacao formal dos actos juridicos, desde que se mostrem salvaguardados os outros valores em jogo ( 499).

Apesar desta expansio, real ou preconizada, em sectores onde, sem uma justificacio clara, tem dominado urn formalismo radical, o BGH restringiu subtilmente a possibilidade de bloquear as nulidades

(496) Tern, pois, impact() pouco mais do que afectivo a observacio de WmAcm, Prazisierung cit., 49, de que os proprios contratos de casamento poderiam ficar, pela via ini- ciada, na situacio de serem viaveis sem a forma legal, dada a diferenca qualitativa das relacoes que implicam.

(497) As objeccoes levantadas por HERMINGHAUSEN, Fonnlos bindende Hofzusagen at., 134 e retomadas por REINICKE, Rechtsfolgen formwidrig abgeschlossener Vertrage cit., 86, segundo as quais a pretericio de formas legais poria em causa a posicao de terceiros, nio colhem: as mesmas disposicoes que protegem os terceiros perante contratos formais a que sio estranhos - e que nio se confundem corn o registo - funcionariam sempre perante as situa-coes reconhecidas I margem da forma legal.

(498) BGH, 6-Jul.-1965, JZ 1966, 141-143 (141 e 142) = NJW 1965, 1955-1958 (1955--1956 a 1957), corn. an . LORENZ, JZ 1966, 143-145, focando a ausencia de uma clausula de responsabilidade delitual generica, no Direito alemio, como base de decisio - 145 - e de EMIT. Bowan, Schutzwirkung eines Vertrages zwischen Rechtsanwalt and Erblasser zugunsten der benachteiligten Erbin?, MDR 1966, 468-469. 0 contrato corn efeitos protectores de terceiro pressupbe, por pane de urn ou de ambos os contratantes, deveres de proteccio a favor de terceiros, radicados na boa fd. Cf. supra, 619 ss..

(499) GERHARD KEGEL, Die lachenden Doppelerben: Erbfolge beim Versagen von Urkunds-personen, FS Flume 1 (1978), 545-558 (547-548 e 555).

§ 29.° A inalegabilidade de nulidades fortnais

forrnais (500). A superacio definitiva da exceptio doll pode conside-

rat_se consolidada, na medida em que a inalegabil dot lo

d (501

ade do vicio

formal, embora facilitada, nalguns casos, pelo ), depende mais da situacio da pessoa contra quem 6 feiA extensao

ta valer a

nulidade, do que dos feitos e intencoes do A. alegante (5°2 ).

daqui resultante 6, apenas, aparente. Em varias logo da equidade decisoes tern sido

ado, corn corn a major clareza, que nao na base - e

de uma justica do caso concreto - que se pode proceder nap apli- cacio das disposicoes sobre a forma das declaracOes negociais (

503 );

efeito, atentas as necessidades de seguranca juridica ( 504), justifi-

ca-se apenas em casos extremos e excepcionais ( 505 ).

(500)Esta evolucao, apesar da sua importancia, riga tem sido suficientemente estu

SOERGEL

dada;

cf., porem LORENZ, Rechtsfolgen formnichtiger Schuldvertrage,

JuS 1966, 431 e

/14sesimon., BGB12 cit., § 125, n.° 25 (570).

(501)BGH 3-Dez.-1958, BGHZ 29 (1959), 6-13 = NJW 1959, 626-627 = WM 1959,

273- = BB 1959, 215 = DB 1959, 595 (ssio se refere, nesse (skim° local, o que interessa

para 275 as inalegabilidades formais); houvera, al, urn documento notarial corn da as inexactas,

devendo-se esse facto a intencio de uma das panes tirar, depois, vantagem sobre a outra; o BGH concedeu a inalegabilidade, frisando, contudo, que a situacio do R.., na nulidade, seria nio apenas

dura, mas insuportivel. (5

9 Admite-se, pois, a inalegabilidade mesmo sem a vontade, directa ou necessaria, de prejudicar a contraparte, no que parece ser a heranca do RG; assim BGH 9-Out.-1970, NJW 1970, 2210-2212, onde o A. calara apenas algumas circunstancias; cf.

KROGER-

-Ma/ago /BGB /RGRKI 2 (1982), § 125 n.° 57 (249).

("3)BGH 29-Jan.-1965, NJW 1965, 812.815 (813) - venda nula de preclio; em an.,

v. BIEBERSTEIN, NJW 1965, 1014-1016, di° identifica, porem, devidamente, a clivagem entre

a jurisprudencia do RG e do BGH e toma posiceies criticas; BGH 9-Out-1970, NJW 1970,2211.

("4)BGH 3-Dez.-1958, BGHZ 29 (1959), 10 - interesse geral; BGH 29-Jan.-196

5 ,

NJW 1%5, 813 - interesse da seguranca juridica; BGH 10-Jun.-1977, NJW 77, 2072-2073 =

= WM 1977, 1144 - celebrada compra e venda de predio corn obrigacio, pelo vendedor, de proceder a uma construcio, o qua nao constava do documento; foca-se, al, as exigencias 6s it

da

seguranca; BGH 16-Nov.-1978, NJW 1980, 117-119 (118) - sublinha-se, tambem, a propo de promessa sem forma efectuada pot urn burgomestre, as necessidades da seguranca. Trata-se, pois, de urn vector que tern vindo a crescer na jurisprudencia mais recente.

("5)BGH 27-Mai.-1957, WM 1957, 883-886 - trata-se de uma fianca cuja dedaracio

negocial respectiva fora feita por telegrama, o que se considera nao integrar a forma exigida por lei; decidiu-se nao ser de bloquear a nulidade, por esta medida so poder ocorrer

em circunstincias especiais, ausentes deste caso concreto; esta decisio tern a particularidade

de historiar a evolucio jurisprudential do problema - WM 1957, 886; BGH 28-Nov.-1957 ,

WM 1958, 71-74 - outra questio de fianca, ern cuja decisio de rile, obstar a nulidade por

"rancia de forma legal se frisa a excepcionalidade de tal medida; o BGH acentuou, ainda, que

.madmissibilidade de alegacio da nulidade formal ocorre apenas quando o A., por longo tempo, nio

,

thsfrute, corn vantagens, do contrato que venha, depois, iinpugnar o qua, pot natureza

51

782 783 0 exercicio inadmissivel de posiccies juridicas

V. A criacao jurisprudencial do Direito é, naturalmente, cisa; a sistematizacao doutriniria tem, para mais, tardado n

este caso (506 ). No obstante, o conjunto das decisoes compulsadas,

ocorre na fianca (74); BGH 16-Abr.-1962, WM 1962, 575-576 — de novo uma fianca sem a forma prescrita; a mais alta instlncia federal alema acentua, delta feita, que uma excepcio e

x § 242 so pode ser concedida em casos muito especiais; na ocorrencia, entendeu-se que o A depois de «celebrados o contrato, nab dera mostras de aceitar o debito (576); BGH 29-Jan.-1965"

NJW 1965, 812-815 (813) — so. excepcionalmente; BGH 22-Jun.-1973, NJW 1973, 1455.-1457' — alienacio de urn imOvel por documento privado; o BGH afirma que a nulidade presente so em casos muito especiais pode ser contornada, o que ocorreu, alias, nesse caso, dado que o A. aceitara, durance catorze anos, o contrato por eficaz (1456); BGH 16-Nov.-1978, NJW 1980, 118 — uma excepcao.

( 506) Mais claramente: falta uma sistematizacao doutrinaria na materia, versada ens termos pouco menos do que tOpicos. Assim: GERNHUBER, Forninichtigkeit und Treu und Glauben cit., limits-se a citar decisoes em apoio das afirmacoes que vai proferindo, sem, delas, procurar extrair elementos para uma ordenacio dos pontos comuns que as informem; G. dis-corda, alias, das decisoes que admitem a inalegabilidade das nulidades formais — ob. cit., 164, p. ex.; LORENZ, Das Problem der Aufrechterhaltung forinniditiger Scluildvertrage cit., que centra o fulcro da questa() na forma em si — e nao na boa f6 — tio pouco procede a urn levantamento — ob. cit., maxime 413, tal como COMIC, Form und Billigkeit im modernen Privatrecht cit.; ambas os autores tomam posiceies criticas perante a jurisprudencia do BGH e do seu antecessor, SOERGEL/SIEBERT/KNOPP, BGB 10 Cit., § 242 — que entendem ter a jurisprudencia recente, i. 6, anterior a 1969, ampliado a fundamentacao das inalegabilidades de vicios formais (1); ob. cit., n.° 345 (96), sem, no entanto, deixar de apontar a linha restritivista da jurisprudencia — idem, n.° 346 — fazem, ao estilo do seu tratamento da boa f6, uma seriacio ampla de casos concretos. Nab obstante o apontar de vectores interessantes como o escopo da forma — SIEBERT /ICNOPP nbo se reportam, ai, a firths. GERNHUBER/WIEACRER, atingindo, embora, resultados semelhantes — ob. cit., n.° 356 (99) — ou a clivagem, dogmatica alias, entre a culpa na formacao dos contratos e a ch. limitacio imanente das prescricoes de forma — ob. cit., n.° 357 — falta, no seu escrito, urns sistematizacao do dado jurisprudencial que, possivelmente, nem considerariam viavel; D. REINICRE, Rechtsfolgen formwidrig abgeschlossener Vertrage cit„ tents, 41-75, ordenar, de acordo corn determinados criterios, os casos de inalegabilidade. Apura cinco grupos, alguns subdivididos, em funs-ao dos factores seguintes: 1.° conhecimento ou desconhecimento, pelas parses, da necessidade de forma do contrato, tripartido, consoante ambas, apenas uma ou nenhuma tenham conhecimento dessa necessidade; 2.° cumprimento ou nab cumprimento do contrato, tripartido, tambem, consoante ambas, apenas uma ou nenhuma tenham cumprido; 3.° impossibilidade de restituicao material das prestacaes; 4.° prescricOes de forma a favor, apenas, de uma das partes; 5.° outros. Apesar do seu empirismo, Run-mica consegue uma panoramica envolvente e sugestiva dos dados da questio. Ommius di, pel° contrario, urn tratamento mais marcadamente cientifico ao problema — Vertrauenshafrung cit., 274 ss. e 288 ss.. Distingue C. as hipateses de dolus praeteritus — § 25 — e as de dolus praesens que reduz ao venire contra faction proprium — § 27 —, ambas integradas numa regra geral de respondencia, pela confianca. A primeira hipOtese daria lugar a ulna regra muito simples: quem enganar propositadamente o parceiro sobre as necessidades

§ 29.° A inqlegabilidade de nulidades formais

cam atencao particular as mais recentes, e os comentarios sobre elas

tecidas pela doutrina permitem firmar aspectos importantes. Primor-

dial e, como foi dito, a posicao da pessoa contra quem se pretende

fazer valer a nulidade formal. Esta posicao equaciona-se em dois

aspectos (501): a sua relacao corn o vicio formal e as consequencias

para ela emergentes da nulidade, caso seja declarada. Quanto ao pri-

ineiro, deve entender-se a necessidade de boa fe subjectiva por

parte de quem queira fazer valer a inalegabilidade ou seja, de desconhecimento, aquando da «celebracao» do contrato, da necessidade

formal (508). A boa fe subjectiva comporta, aqui, deveres de inda-

de forma de urn contrato sujeita-se ao cumprimento dente, ainda quando, em principio, devesse ser nulo. A simplicidade desvanece-se, porem, se se atinar em que a evolucio jurispru-dencial se processou, contra o requisito do dolo e em que uma col:struck , tipo Joists

praeteritus deixa na sombra a situacio do beneficiario da inalegabilidade bem como os requisitos

que, a este, dizem respeito. 0 praprio C., aliis, ao entender o (loins praeteritus como mero

criterio de imputacao da respondencia e nio como seu fundamento — Vertrauenshaftung cit.,

276 — e ao sublinhar a necessidade de enfrentar o problema pela posicio do confiante

— idem, 277 — retira-lhe a eficacia ordenadora. Tem, assim, mais interesse o segundo termo da

distincio de CANARIS, a que se fara mencio no texto. FortsomER/Miinch-Komm cit., § 125,

n.° 60 (735), declara trio faltarem tentativas de elaboracio de casos tipicos onde se consubs-tanciaria a possibilidade de inalegabilidade formal, embora pouco mais cite do que R.EINICRE

e nao refira CANARIS. Na sequencia da sua exposicao sobre o problems, FoRSCHLER adopta,

corn pequenas alteracems, o esquema de REINICKE — Munch-Komm cit., § 125, n.° 64-72.

HEPERNIEHL, ern SOERGEL/HEFERMEHL, BGBli cit., § 125, corn posicaes restritivas sobre inale-

gabilidades de vicios formais — ob. cit., n.° 29 (572) — apesar do fino tratamento do problema

a que procede, expeie indiferentemente casos tlpicos e fundamenta95es das inalegabilidades

referidas. DILCHER, em STAUDINGER/DILCHER12 Cit., § 125, n.° 38 ss. (332 ss.), nao sistematiza

enquanto KitticER-Ntnumm/BGB/RGRK12 cit., § 125, n.° 56 ss. (249 ss.), recorre, corn ampu-

tacbes, a linha de REINICICE. Nas obras gerais, por fim, o tema da inalegabilidade das nulidades

formais 6 versado sem preocupacdes de sistematizacio. Sirva de exempla LARENZ, AllgT 5

cit., 376-378. (507) Embora por forma Trio expressa, esta clivagem 6 pressuposta, de algum modo,

por BGH 10-Jun.-1977, NJW, 2072-73 = WM 1977, 1144. (5°8) BGH 29-Jun.-1966, BGHZ 45 (1966), 376-380 (379-380), onde, a prop6sito

de tuna nulidade partial, se recusou a inalegabilidade por ambas as partes estarem cientes da mvalidade, quando concluirams a clausula viciada. Este requisito permite afastar, como defini- tivamente nulos, todos as contratos em que as partes desrespeitaram a forma prescrita pars 2eontliunon.rar492di7spRosiecchaest 3lfiscais — recordem-se RG 19-Abr.-1926, LZ 20 (1926), 696-697 e RG

(1927), n.° 2193 (661). RzancxE, no grupo de casos que isolou

em torno do conhecimento ou desconhecimento da nulidade — Rechafolgen formwidrig abge-

schlossener Vertrage cit., 41 ss. — conclui pela permanencia da nulidade sempre que ambas as Panes conhecam o vicio; a nulidade seria obstada quando a parte alegante tivesse induzido a out a cometer a falta, ficando em aberto as hipateses de desconhecimento negligence ou nab

784 0 exercicio inadntissivel de ppsiciies juridicas

gaga() e informacao ( 509 ) de intensidade acrescida, dada a rigidez das normas em jogo, e visto o conhecimento generalizado que e xiste

da necessidade de formalidade para certos actos. A evidencia da falta de forma ou a negligencia grosseira prejudicam sempre ( 51 0) pois,

estando presentes ou havendo conhecimento do vicio, a razoivel que o contratante corra o risco de ver declarado nulo o seu con-trato ( 511 ). Quanto ao segundo, tern vindo a ser sublinhado, pela jurisprudencia mais recente, que a inalegabilidade surge justificad

a apenas quando a destruicao do negOcio tivesse, para a parte contra quem a actuada, efeitos «nao apenas duros, mas insuportiveis# (512). Na concretizacao jurisprudencial desta formula, pode chamar-se em auxilio a construcao de CANARIS (513 ): requere-se que a parte protegida tenha procedido a um «investimento de confianca, fazendo assentar, na ocorrencia nula, uma actividade importante ( 514), que a situacao seja imputivel a contraparte, embora nao necessariament e a titulo de culpa, que o escopo da forma preterida no tenha sido defraudado; pela negativa, exige-se ainda que nenhuma disposicao ou principio legal excluam, em concreto, a inalegabilidade e que nao haja outra solucao para o caso: a inalegabilidade das nulidades formais teria, pois, natureza subsidiaria ( 515 ). Compulsada, contudo, a jurisprudencia, constata-se que nem sempre estes requisitos esti()

provocado pela parte que vem, depois, arguir o yid° — ob. cit., 53-54; contra REINICIE, observe-se, porem, que a boa fe subjectiva é, apenas, urn requisito negativo, no sentido de, sendo insuficiente para, por si, justificar uma inalegabilidade, bastar, pela ausencia, para prejudicar qualquer veleidade de manutencao de negocios formalmente nulos. Tambem GERNHUBER, Formnichtigkeit und Treu und Glauben cit., 176, SOERGEL/FIEFERMEHL, BGB 11

§ 125, n.° 33 (374) e KnticEn-NIELAND/BGB/RGRK12 cit., § 125, n.° 56-58 (249-250). (509)Cf supra, 759. (510) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 295.

GERNHUBER, Formnichtigkeit and Treu und Glauben cit., 172; FoRscHLERI Manch--Komm cit., § 125, n.° 64 (736).

(512)BGH 3-Dez.-1958, BGHZ 29 (1959), 10 = NJW 1959, 627 = WM 1959, 275 = = BB 1959, 215 = DB 1959, 595; BGH 27-Out.-1967, BGHZ 48 (1968), 398 = NJW 1968, 39; BGH 10-Jun.-1977, NJW 1977, 2072 = WM 1977, 1144; BGH 16-Nov.-1978, NJW 1980, 118.

(513) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 295-301. (514)Cuja frustracao, complementando CANARIS, acarrete, para a parte a proteger, as

consequencias insuportiveis de que fala a jurisprudencia do BGH. P. ex., as situacoes de pessoas que, confiantes no contrato nulo, abandonaram a habitacao ou o posto de trabalho, sem possibilidade de recuperacio.

(515) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 300-301; corn observaccies crfticas, baseadas, porem, me citacaes que nao conferem, refira-se STAUDINGER/DILCHER12 Cit., 5 125, 42 e 43 (334).

§ 29.° A inalegabilidade de nulidades formais 785

todos presentes. Consciente do problema, CANARIS afirma a impossi-

bilidade de firmar uma previa() consistente de inalegabilidades; os diversos criterios articular-se-iam nos termos de urn sistema

inOvel (516). A concretizacao do venire contra factum proprium nas inalegabili-

dades de vicios formais implica, como se ye, distorcoes em dois pontos: requere-se aqui uma boa fe subjectiva com elementos normativos ligados a exigencias de indagacio e cautela mais fortes e acrescenta-se, como factor de relevo, a necessidade de respeito efectivo pelo escopo que a forma presente pretenderia prosseguir. 0 sistema move! nas inalegabilidades formais torna-se, pois, mais complexo e, como exprime o dado jurisprudencial, mais necessario, ainda, para o

explicar.

73. Dificuldades juscientificas; inaplicabilidade ao Direito portugues; solucio alternativa

I. Apesar do dado jurisprudencial, ainda que explicitado corn recurso a ideia de sistema move!, a doutrina encontra dificuldades para, em nome da boa fe, formular uma regra de restricao as nulidades fOrmais (517 ). A partida, deve ser ponderado urn factor de regime, mas corn a maior importancia dogmatica: no Direito alemao como no portugues as nulidades, alem de arguiveis pelas par-

(516) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 301-305. 0 conceito de sistema movel deve-se a

W1LBURG, Entwicklung eines beweglichen Systems ins bargerlichen Recht (1950), 14, p. ex., e foi

precisado por CANARIS, SyHeMdenket12 cit., 74 ss., que faria dole varias aplicaceies em

Vertrauenshaftung cit., 301 ss., 312, 373, 389 e 529. No essential, diz-se sistema movel aquele que se ordena em tomb de varias proposicees insusceptiveis de graduacao entre si, mutua-mente intercambiaveis e susceptiveis de, concretamente, nao actuarem, sem prejuizo para a

identidade do sistema. VIEHWEG, Topik und Jurisprudenz 5 cit., 105, considera a ideia de

WILBURG como integrante do pensamento topico. Nit) tern talk.. 0 tema sera retomado

it fra, §§ 44.° e 51.°. (517) Ji BOEHMER, GrundbiirgROrd cit., 2, 2, 99 e WIEACKER, Pritzisierung cit., 2962 .

tinharn entendido que, nessa jurisprudencia, o BGH fora longe de mail. Outras observactres

critical constam, p. ex., de GERNHUBER, Formnichtigkeit und Treu und Glauben cit., 154, de

LORENZ, Das Problem der Aufrechterhaltungformnichtiger Schuldvertrdge cit., 398-408, corn uma aria-

hse critica da jurisprudencia do RG c do BGH, de COING, Form und Billigkeit ins modernen

Privatrecht cit., 35, de HASEMEYER, Die gesetzliche Form der Rechtsgeschafte cit., maxime 294 ss.

e de LARENZ, Methodenlehre 4 cit., 383, Al1gT 5 cit., 377-378 e SchuldR/A T13 cit., 134-135.

786 0 exercicio inadmissivel de posicoes juridicas § 29.° A inalegabilidade de nulidades formais 787

tes ou por interessados sao, de officio, cognosciveis pelo tribunal (518) . As leituras que, no fenOmeno dito da inalegabilidade, veem apenas uma concretizacao da inadmissibilidade, como principio, duet exer-

cicio contrario a boa fe, ficam comprometidas: de nada valeria, ao beneficiario, bloquear a alegacao da nulidade, pela contraparte, quando, afinal, o prOprio juiz teria, por dever de funcao, d e a

declarar. No fundo, a alegabilidade das nulidades trio esti em causa. Questiona-se antes, a aplicacao seja das disposicoes legais que

prescrevem formas para certas declaracoes, seja da regra que, a inobser-vincia dessas disposicoes, associa a nulidade (519). Tais disposicoes sao, porem, lapidares (520), sendo duvidoso que a simples superacao de metodos formais axiomitico-dedutivos na interpretacao e aplica-cao de proposicoes juridicas permita contorni-las.

As tentativas de reducao dogmitica do problema sao menos discursos explicativos, mais do que teorias susceptiveis de agrupamento e classificacao. Para alem das versoes, já referidas, segundo as quais haveria que lidar apenas corn um comum exercicio inadmissivel de direitos, deve mencionar-se a doutrina da confianca, o recurso a saidas negociais e o acentuar da prOpria filosofia inerente as prescri-goes formais.

A doutrina da confianca traga o tema das inalegabilidades de vicios formais na orientacao de CANARIS. Como este Autor explica, o Adoloso provoca, na outra parte, a impressio de que o negocio 6 eficaz e assume, assim, a confianca desta: deve responder, pois, pela situacao de confianca obtida» (521 ). A concessio de uma pretensao de cumprimento seria, entao, uma necessidade etico-jurf-dica (522). A base positiva da confianca esti na prescricao geral da boa fe — art. 334. °, tambem, para as obrigacoes, 762. °/2 e § 242 BGB;

(515) Art. 286.0. (519) Nesse sentido v5o observacoes, p. ex., de GERNHUBER e de LARENZ, ob. e loc. cit.

supra, 785517. (520) MERZ, Auslegung, Lfickenerfiillung and Normberichtigung / Dargestellt an den Bei-

spielert der unzuliissigen Berufung auf Formungultikgeit and des Missbrauchs der Verjahrungseinrcde, AcP 163 (1963), 305-345 (314).

(521) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 277; tambem 289-290. Recorde-se que CANARIS

cinde o problema das inalegabilidades em respondencia por confianca derivada de compor-tamentos dolosos — Vertrauenshaftung cit., 273 ss. — c de comportamento contraditorio

—Vertrauenshaftung cit., 287 ss. — correspondences aus doli prateritus e praesens. Sem grande utilidade.

(522) CANARIS, Vetinnief/Shaftting cit., 278. CANARIS sujeita-se, neste ponto, Is criticas ji formuladas supra, 757.

jai que, na chamada inalegabilidade de vicio formal, se assistiria nao

ao fazer valer de urn contrato nulo — impossibilidade juridica acen-

tuada pelo dever funcional do tribunal declarar, de officio, a nulidade mas sim a actuacao de deveres legais similares aos do contrato malo-

grado (523 ): a inalegabilidade seria uma sub-hipOtese da proibicao

de venire contra factum proprium, corn a particularidade /524

de, por factum

proprium, aparecer um contrato formalmente nulo ). Ji se viu que tal orientacio tern, pelo menos, o merito de sistematizar, ainda que em termos moveis, o dado jurisprudential.

Esta construcao implica, como se sabe, a aplicacao, ao factum

proprium, por analogia, das disposicoes prOprias dos negOcios juridi-

cos (525). Fecha-se, pois, o circulo, proclamando que o contrato nulo 6, pela sua natureza voluntiria como pelos seus regime e efeitos, urn contrato verdadeiro, ao qual, por razeies que compete aos defensores do fenOmeno explicar, nao sao apliciveis as disposicoes cominadoras

de fopeserrnan(v52016 ); Desenvolve-se, num terceiro vector, o tema do escopo visado

pelas disposicoes que impeiem formas determinadas para certos actos juridicos, e que foi sublinhado, em especial, por LORENZ e por COING (527 ).

Corn base no escopo da prescricio de forma, COING isola uma serie de casos onde a necessidade de forma n -ao poderia ser afastada. Sao des: o registo, a forma que visa a proteccio de certos terceiros, os casos em que a lei prescreve, para a nulidade, procedimentos particulares —como no despedimento — as disposicoes de i.ltima vontade, os actos da administracio ptiblica e a estatuicio de certas sanceies de tipo especifico ( 528)

(521) Cf CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 267-268, 279 e 293.

(524) A reconducio das nulidades formais ao vcfp constava ji de BOEHMER, Grund-

burgROrd 2, 2, 96 e 99, de WIEACKER, Pazisierung cit., 28 e Hoferbenbestimmung durch

schliissiges oder Sozialtypisches VerhaIten? cit., 289, de ARNDT, Zur exceptio doll bei Schwarzkaufer

cit., 805, de Comic, Form and Billigkeit im modernen Privatrecht cit., 37 e de LORENZ,

Rechtsfolgen formnichtiger Schuldvertrage cit., 436; cf., tambem STAUDINGERMILCHER, BGB12

Cit., § 125, n.° 40 (333) e SOERGEL HEFERMEHL, BGB11 cit., § 125, n.° 32 (573-574).

(525) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 452.

(526) WIELING, Venire contra factum proprium cit., 342.

(527) LORENZ, Das Problem der Aufrechterhaltung formnichtiger Schuldvertrage, maxime 413

e Rechtsfolgen formnichtiger Schuldvertrage cit., 436 e COING, Focus and Billigkeit im modernen

Privatrecht cit., 35 e 48 ss.. (828) COING, Form and Billigkeit im modernen Privatrecht cit., 48-50. A enumeracio de

Conic é urn tanto heterogenea, incruindo aspectos como o registo, que n -ao se liga a forma

das declaracoes, e a situacio de terceiros, tutelada mesmo perante negocios vilidos.

788 0 exercicio inadmissivel de poskaes juridicas

II. Tudo isto a pouco satisfatOrio ( 529). 0 venire contra factum proprium constitui um tipo nao compreensivo de exercicio inadmis-sivel de direitos. Como tal, tern grande extensao. Uma parte importance das inalegabilidades formais 6-lhe, pois, redutivel, corn a especificidade, apenas, de, ern vez de se inovar so contra a regra geral da nao vinculabilidade dos comportamentos no destinados, especifi-camente, a criar direito, se actuar, tambem, contra as normas que prescrevem a forma e contra aquelas que associam, ao desrespeito pelas primeiras, a nulidade. Mas se em muitos casos o alegar nuli-dades formais 6, de facto, venire contra factum proprium, isso no cons-titui regra absoluta: tenha-se em mente todo o ciclo jurisprudencial tecido em tomo da «sucessio na quinta onde a inalegabilidad e is atingir terceiros, estranhos, por definicao, ao factum proprium. A hip6- tese pode ser ampliada sem dificuldades. Como nao faria sentido bloquear a alegaeao duma nulidade pela contraparte para permitir, afinal, o mesmo efeito, atraves da sua invocaeao per qualquer terceiro interessado, deve admitir-se uma inalegabilidade geral. Os terceiros nao praticaram quaisquerfacta propria. A reconducao da alegac'ao indevida de nulidade formal a proibicao de venire contra factum proprium, so por si, nao explica todo o fenOmeno em jogo. Mas isso nao perde toda a construcao de CANARIS. Ficou assente a viragem da jurisprudencia mais recente para o tema da proteceao do reu em accao de nulidade e, portanto, para a necessidade de ponderacao da sua situ* concreta como forma de valorar se 6, ou nao, de conceder a inalegabilidade. Consequentemente, esmoreceu a posielo do autor, o que, correspondendo a decadencia da exceptio doll atinge, tambem, o venire contra factum proprium. Ora esta atitude equivale, por excelencia, a indagar do «investimento de confianca* realizado pelo beneficiirio da paralisacao da nulidade e a proteger a sua confianca, quando haja bloqueio efectivo dessa nulidade. A doutrina da confranca transcende o venire contra factum proprium nos seus efeitos estritos. A sua aplicacao as inalegabilidades formais, so possivel dentro das coorde-nadas prOprias da sistemitica mOvel proposta por WILBURG/CANARIS, representa um avanco considerivel. Uma ponderacao definitiva tern, contudo, de ser global; far-se-a, por isso, oportunamente (530) .

(us) Outros institutos vem tratados a proposito das nulidades formats, como, p. ex., a culpa in conirahendo. Embora ela possa, de facto, acompanhar os efeitos de contratos corn yid° formal, nao ha que menciona-la a proposito de inalegabilidades, de que se distingue conceptualmente.

(5") Infra, § 49...

29.0 A inalegabilidade de nulidades formais 789

III. As saidas negociais, tipo WIELING, para o problema das inalegabilidades formais nao se poem, tambem, em termos identicos aos bosquejados para o venire contra factum proprium. Neste, como

se viu, a decisio pela porta negocial depende da natureza a atribuir aos chamados comportamentos concludentes e do relevo dado a

eonsciencia da declaracao ( 531 ). Nos negOcios nulos por vicio de forma salvo o caso pouco mais do que academic° de ser feita uma

declaraeao conscientemente nula e, como tal, conscientemente nao negocial — e de admitir tal consciencia, sendo ainda certo que des so dependem de comportamentos concludentes no negociais se as normas que determinam a forma e prescrevem, para o seu desrespeito, a nulidade, lhes impuserem tal natureza. Tudo esta, pois, em saber ate que ponto as normas referentes a nulidade podem ser contor-nadas por comportamentos negociais: possa uma interpretacao restri-tiva abrir as portas, em areas formais, a declarac5es que, nao tendo os requisitos de forma exigidos, respeitem contudo o espirito da lei, e as obrigacoes derivadas do acto assim ressalvado tern natureza negocial; demonstre-se, pelo contririo, a impossibilidade dogmitica de tais restricoes e apenas obrigacoes legais — por muito semelhantes que sejam a regulacao falhadamente planeada pelas partes — podem emer-gir, vivas, da nulidade. A solucao depende, em Ultima anilise, do que for encontrado em sede de normas referentes a forma e a nulidade.

IV. A anilise das disposicoes legais que prescrevem certas for-mas e, em caso de inobservancia, a nulidade, dada a linearidade das proposicoes respectivas, recorre, como 6 sabido, a factores teleo-lOgicos. Trata-se de indagar o escopo preconizado por tais normas: estando esse escopo assegurado, a aplicacao dessas normas poderia ceder, sem incorreccao, a de outras regras. Estes raciocinios nao estao claros na doutrina que os preconiza: hi, pois, que deles dar uma imagem mais precisa antes de proceder a uma apreciacao. A nao aplicacao das regras referentes a forma pode derivar da sua limitaeao imanente pela boa fe ou de reducao teleolOgica. Na primeira hip6- tese, parte-se da ideia de que as normas juridicas nao comportam interpretacoes e aplicac6es microcOsmicas: é sempre o Direito, em conjunto, que se aplica. As regras respeitantes a forma funcio-nam, assim, em simultaneo, corn todas as restantes que, ao caso, se

(531) Supra, 769.

790 0 exercicio inadmissivel de posioks juridicas § 29.° A inalegabilidade de nulidades formals 791

possam reportar. Se, aparentemente, nao ha mais nenhum a nessas nessas circunstancias, na realidade, a boa fe, omnipresente em tod

a ordem privada, tern sempre vocacao para se aplicar. A orrinipresenc; da boa fe deve entender-se em termos sensatos. Se, como quer GERNHUBER — embora acabe, afinal, por apresentar solucCies diversas — as normas que prescrevem formas, associando-lhes, em caso d

e inobservancia, a nulidade, tern urn teor e uma valoracao inequivocos nao queda, no esparto estrito que elas visam regular, margem para uma'

erupcao da boa fe ( 532). A reducao teleolOgica consiste em restrin gir a aplicacIo de uma norma por exigencia da teleologia juridica.

Distingue-se da interpretacao restritiva porque esta implica, qu ando a letra da lei transcenda o seu espirito, o primado deste sobre

aquela (533); na reducao teleolOgica, pelo contrario, letra e espirito da norma sao restringidos em funcao do seu escopo ou, se se quiser, das suas razoes justificativas. Como explica LARENZ: a reducao

teleolOgica esta para a interpretacao restritiva assim como a analogia esta para a interpretacao extensiva ( 534). A hipOtese de uma reduclo teleolOgica das normas referentes a forma nao tem sido considerada, apesar de, a partida, ela surgir mais convincente do que a sua limitacao imanente pela boa fe. Para a concretizar, bastaria coligir os escopos visados pela prescricao de forma, de que se recordam: a defesa contra precipitacoes das partes, a clareza do contetido, a publi-cidade e o acautelar da posicao de terceiros. Sempre que tais escopos estivessem assegurados no caso concreto, a pretensao legal ficaria satisfeita. A forma, so por si, nao se explicaria; a sua pretericao nao justificaria, de modo algum, a sane ao radical da nulidade ( 535). Este

(532) GERNHUBER, Formicktigkeit and Treu and Glauber: cit., 161. Explica-se af, designada-mente, que onde existe ius strictum o legislador, no conflito entre equidade e outros valores, tomou posicio a favor dos tiltimos).

(533) OLIVEIRA ASCENSAO, O Direitoz cit., 379. (534) LARENZ, Methodenlehre 4 cit., 377. Cf ENN. iNIPPERDEY, AllgT 15 (1959) § 59, II

(347-348), falando, por6m, em restricio. (535) Ocorre criticar aqui as posicoes assumidas por HAsobtAvER, Die gesetzliche Form

der Rechtsgeschafte cit., 307 maxime, segundo o qual *a nulidade de negOcios formals por falta de forma 6 expressio da unidade do negocio juridic° e forma*. De facto, como dia esse A., o neg6cio juridic° 6 forma — ob. cit., 21; mas a forma nib 6, isoladamente tornada, 50-

tema externo. De modo que, mesmo alcancando as posicoes ji avancadas, de que a ordenacio dos factos, ainda que para meros efeitos expositivos ou, como tal, apresentados, tem efectivamente influxo na sua substancia, nao se conclui que a via de comunicacio utl -lizada — oral, escrito particular, escritura publica interfira no contetitio. Ou, se se prefenr ,

otendimento, caso fosse propugnado, representaria uma fOrmula consistente na defesa de inalegabilidades formais. Levantam-se, porem,

obsticulos. A analogia tern limites. Em principio, nao a possivel

a aplicacao analOgica de normas excepcionais — art. 11.° — nem de normas integrantes de tipicidades taxativas — art. 1306.°/1 ( 536 ). Subjacente a essa impossibilidade, nao deve apontar-se uma con-

junclo dogmaticista derivada de simples jogo logic°, tecido em torno do principio da identidade ou da nao contradicao — embora esse jogo tenha consistencia e nao deva, por isso, ser rejeitado de animo ligeiro; a analogia pressupoe lacuna e, a nivel de normas excepcionais ou tipicas, por definicao, nao ha lacunas: uma ausencia eventual de regulacao 6, automaticamente, uma permissao de agir, fonte, por exemplo, de licitude no campo do Direito penal ou de efeitos juri-genas obrigacionais, no campo do Direito civil ( 537). Na mesma linha,

a reducao teleolOgica tern limites. A reducao opera porque existe uma falha na regulacio aparentemente plena: urn ponto que, por fora de razoes justificativas diversas, devia ter merecido urn tratamento diferente e que foi englobado na norma a reduzir ( 538). A reducao

impossivel nas regulacZies intrinsecamente plenas, isto 6, nas areas onde o legislador, de modo declarado, desistindo de tratar o igual,

a ch. *forma legal* das declaracoes nio 6 verdadeira forma negocial mas, do s6, via de exteriorizacio. Duas condusOes: o mesmo neg6cio pode revestir virias formas, sem prejufzo da regulacio que estabeleca — p. ex., o testament° — e a sancio para o vicio na forma nao necessariamente, a nulidade — p. ex., as invalidades mistas dos arrendamentos. Uma pretensa unidade entre forma e negocio nao implica, so por si, a inadmissibilidade de limitacoes, como

como pretende HASEMEYER, Die gesealiche Form der Rechtsgeschafte cit., 294; tal inadmissibilidade,

a ocorrer, deriva do regime extrinseco atribuido a forma e nao de urn inexistente potential

intrfnseco delta. (536) OLIVEIRA ASCENSAO, A tipicidade dos direitos reais cit., 58

(537) Por isso, os actos celebrados em contravencio a tipicidade dos direitos reais sio, legalmente, convertidos em actos obrigacionais. A concepcio, aqui perfilhada, quanto Impossibilidade de lacunas — e portanto de analogia — nas areas onde, por imposicao da lei,

imperem regimes de tipicidade taxativa foi defendida em MENEZES CORDEIRO, Da constituicdo

fiscal, (1977, dact.) e em D. Reais cit., 1, 462 ss.. A sua extend. ° a normas excepcionais

nio oferece chividas. (535) A reduclo teleologica pode, por isso, ser usada na determinacao de lacunas ocultas;

cf. CANARIS, Die Feststellung von Liicken im Gesetx (1964), 82 ss. (83-84); como explica

CANAzus, Feststellung von Likken cit., 87, a reducio teleologica aparece associada intimamente a analogia, uma vez que a norma de aplicacio analogica permite detectar a necessidade de reducbo e, em simultineo, soluciona a lacuna oculta. Por maioria de ratio, pode associar-se

a reduclo teleolOgica a aplicacio directa de outras normas.

793 0 exercicio inadmisstvel de posicaes jurtdicas

igual e o diferente, diferente, de acordo com a medida da dife_

renca, impOs uma saida uniforme. Ou, se se quiser manter o pri-mado da teleologia: a finalidade do legislador ao instituir a forma

em certos negOcios juridicos e ao associar-lhe, ern caso de inobservancia,

a nulidade, nao a prosseguir os valores de reflexao, seguranca e publi-cidade atribuidos ao formalismo clissico no direito

(539). Esses factores traduzem apenas elementos de politica legislativa, que o legislad

or tera ponderado antes de, em concreto, restringir o consensualismo, neste ou naquele caso. A finalidade do legislador foi, simplesmente, igualizar, sob a forma, todas as declaracoes negociais atinentes a certos sectores e uniformizar, sob a nulidade, todas as violacOes a regra anterior. A reducao teleolOgica de normas deste jaez equivale a violacao do seu escopo. Como tal, é impossivel.

A aplicacao dos arts. 220.° e 286.°, bem como de todos aqueles que, corn primado para o art. 875.°, prescrevam forma

s legais para certos actos juridicos nao pode ser bloqueada.

V. 0 problema das inalegabilidades de vicios formais carece de uma revisao de conjunto. 0 desenvolvimento anterior demonstra uma situacao de aprofundar periferico ainda muito incipiente: certos casos de inalegabilidades ou determinados aspectos da questa° encontram-se estudados, sem que as solucoes preconizadas num local possam, sem mais, aplicar-se noutros. Nio fora a sua efectiva consa-

(539) HAsEritEvER, Die gesetzliche Form der Rechtsgeschiffte cit., 166 e 167, embora para efeitos nao coincidentes corn. os que figuram no texto, entende que os escopos das prescricoes sobre forma nab s5o relevantes. Contra, manifesta-se K.-H. BERNARD, Formbedinftige Rechts-geschafte / hihaltsermittlung, Wang mid Fassung der Urkundenerkleirung

(1979), 34; explica al, designadamente, que as disposicoes references a forma precisain, como quaisquer outras, de ser interpretadas e, para isso, a ponderacio do escopo a imprescindivel. Apenas entende os escopos das prescricaes de forma como irrelevantes, quando se trate de apreciar a validade de mu negocio que nao assuma a forma por de determinada — K.-H. BERNARD, Formbediirftige Rechtsgeschajie cit., 48. E. preciso, de facto, distinguir. Quando se tram de ponderar a interpretaclo das disposicoes legais que cot/linen, formas especificas para negOcios determinados, cm especial pars verificar o ambito de aplicacao, o escopo da forma 6 um elemento relevante, como manda, alias, o Codigo portugues — art. 221. °. Uma coisa 6, porem, utilizar o escopo da prescricio de forma para ver se certos actos s5o ou nib abrangidos e outra 6, depois de se ter concluido pela inclusio de actos no ambito formal, ressalvar, em nome da obtencio, por outra via que nib a da forma legal, dos escopos prosseguidos pela prescricao de forma, actos com vicio formal. As prescricoes de forma sic) plenas: essa plenitude so se revela depois de concluida a aplicabilidade das normas que contenham.

bS 29.° A inalegabilidade de nulidades formals

gracao jurisprudencial, o problema teria, provavelmente, sido classi-

ficado impossivel, pela doutrina (540 ). Deve considerar-se como adquirido que, na alegaclo, por parte

do co-contratante ou de terceiro, de uma nulidade formal, nao ha

exercicio de direito nem de posicaso juridica similar (541 ): o facto de

tal nulidade ser constatavel, de oficio, pelo tribunal, demonstra,

insofismavelmente, o haver, nela, uma situacao externa indisponivel, que transcende conjunceies subjectivas. Acresce ainda, como foi visto, que as normas implicadas tern natureza plena, insusceptivel de reduclo teleolOgica. Esta realidade nao deve permitir, contudo, urn rejeitar apressado das regras atinentes ao exercicio inadmissivel de direitos, por contrariedade a boa fe, embora obrigue a sua

recolsoubca iacclo; nte a nulidade havers sempre uma ou mais situacOes

jussubjectivas que, perante tal nulidade, se mantem. Na venda nula, por exemplo, conserva-se o direito de propriedade do vendedor.

Esta situacao jussubjectiva é de exercicio voluntario e, como tal,

sujeita-se a certas regras. 0 dever de officio do juiz nao vai ao ponto de, por este, substituir a liberdade de actuacao; mas compete-lhe averiguar se essa liberdade nao a usada por forma a ultrapassar os limites que o Direito objectivo the comete (542). A posicao subjectiva

initial, presente porque ha nulidade, nao pode ser mais absoluta do que qualquer outra situacao comum. Por isso, como todas, ela nao pode ser exercida de modo inadmissivel, ou seja, pelo esquema do art. 334.°, ela nao deve ser actuada, manifestamente, contra a boa fe, os bons costumes ou o fim social ou economic° que, ela

(940) Explica-se, assim, as dificuldades sentidas pela tematica das inalegabilidades de

vIcios formais na sua expansbo; na pritica, esti circunscrita a Alemanha e a Suica: p. ex.:

Comm, Form and Billigkeit im modernen Privatrecht, 40 ss. (45); quanto ao tratamento do pro-

blema da doutrina suica, muito aquern do alemio, /vim/Berner Komm cit., Art. 2, n.° 462-510

(346-361). (541) Existe, apenas, o ch. direito de accio judicial ou, corn exacticlio maior, a possi-

bilidade de colocacio judicial do problema; esta, sendo generalizada, permite exprimir, dentro de uma linha de interaccio funcional entre processo e Direito material — cf.

TEIXEIRA

DE SOUSA, 0 objecto da sentence; e o casojulgado material (0 estudo sobre a funcionalidade processual),

BMJ 325 (1983), 49-230 (maxime, 216) e Sobre a teoria do processo declarativo (1980), 123 ss.

— a supra-jussubjectivacio da realidade subjectiva.

(942) Assim, quando o art. 243.°/1 impede o arguir da simulacio, pelo simulador,

contra terceiro de boa fe, visa tutelar o direito deste ou, se se quiser, impedir o exercicio do direito material do simulador por forma a prejudicar o terceiro em causa, nos termos ja

analisados.

792

a situacao do direito exercido durante urn

S por, se-lo or de outra

que, nao tendo sido, determinado lapso de forma, se contrariar

-796 0 exercido inachnissivel de posifiies juridicas

contriria a regras juridicas, incluindo a prOpria boa fe, altura em que ocorre a cu/pa in contrahendo, podem, corn facilidade, constituir- se

os pressupostos da responsabilidade civil: o dano — e nao a sua imputa-cao — tomaria corpo aquando da alegacao da nulidade, ou do seu proprio reconhecimento, por officio, pelo tribunal. Tern, entao, cabimento o arbitrar de uma indemnizacao em especie — art. 562.• e 566../1, a contrario — que, procurando reconstituir a situacao a que se teria chegado se nao tivesse havido prevaricacao, corresponda, materialmente, ao cumprimento do contrato nulo, mediante a contra-prestacao acordada, devida agora a titulo de compensacao necessiria para evitar enriquecimentos indevidos. Em termos de mera descricao, pode afirmar-se que, constatando a iniquidade da ocorrencia, o tri-bunal, embora adstrito as regras plenas da nulidade, tem a possi-bilidade de, a titulo indemnizatorio, determinar o acatamento do contrato. As obrigagoes dai derivadas tem, no entanto, origem na situacao de responsabilidade civil e nao no contrato viciado, assumindo, por isso, natureza legal. 0 seu regime, no que nao tenha sido inflectido pela sentenca condenatOria, pauta-se pelo do contrato fracassado, pois essa é a medida exacta do dano a ressarcir. Tudo isto pressupoe como assente a assercao, ji demonstrada, de que, perante conjunturas danosas contratuais, hi, pelo Direito portugues, que considerar todo o dano provocado e nao, apenas, o chamado interesse negativo, relegado para a HistOria do Direito.

A solucao alternativa aqui preconizada para as clissicas inalega-bilidades formais deve ler-se dentro de um esquema geral que, aflorando na culpa in contrahendo e noutros institutos, como as pro-prias conversao e reducao dos negOcios, traduz a actualidade do combate contra o formalismo, numa linha de que quaisquer injusticas — para o caso, danos ilicitos — tern sempre solucao de Direito, den-tro ou fora do sistema legal estrito.

§, 30.° A «SUPPRESSIOD E A «SURRECTIO*

74. A «suppressio»; evolucao jurisprudencial; colocacio dou-

trinaria

I. Diz-se suppressio em certas circunstancias, tempo, nao possa mais a boa fe.

Pretende introduzir-se o termo suppressio para exprimir a Verwirkung. Na doutrina portuguesa ji foram utilizados, corn esse efeito, os termos caducidade ( 545) e exercicio inadmissivel do direito ( 546). Mas sem razio: «caducidade* é a extinclo de uma posicio juridica por decurso de um prazo a que esteja sujeita e que, nada tendo a ver corn a boa fe, goza de regime explicito — art. 328.° ss.; «exercicio inadmissivel do direito* 6 a expresso consagrada para, no dominio da doutrina da segunda codificaclo, designar o que em Franca se diz de «abuso do direito*, embora em termos mais amplos. Poderiam ser feitas outras tentativas: «decaden-ciax, «inibicao*, «paralisacao*, precluslo* ou «perda•. Porem, a «decadencia* 6 usada por AA. brasileiros com o sentido de caducidade ( 547), a «inibicIo*

(343) VAz Sena, Abuso do direito cit., 331, que reconhece, alias, a inconveniencia de

tal traducio e MANUEL DE ANDRADE, Algumas quest5es ern materia de injsirias graves cit., 743, quo

constata, tambern, a impropriedade dos termos oparalisacio*, eperda* e oprecluslon cf. CUNHA

DE SA, Abuso do direito cit., 6548 . A expressio gcaducidado surge ainda na trad. port. cit. de

WIEACRER, Hist. D. Pr. Moderno, 596-597, com o sentido de Verwirkung, sendo ainda, corn essa

mesma finalidade, usada por CAsTAmmitA NEVES, Licaes de introducio ao escudo do Direito

(1968.69, polic.), 157203 .

(546) CuNkrA DE Si, Abuso do direito cit., 65.

(547) tambitn esse o sentido que .ciecadencia• tern no direito italiano; cf. art. 2964-

-2969 do Cod. it.. Apesar disso, a Vertvirkung surge, em livros de doutrina italianos, expressa

como decadenza, o que nao a correcto. NABHOLZ, Verjohrung and Verwirkung als Rechts-

untergangspinde it folge Zeitablaqfs (1961), suico, n5o obstante ser citado na doutrina a

propOsito da Verwirkung em sentido pr6prio, utiliza o termo como caducidade — ob. cit., 72

— e considera-a equivalente a decadenza italiana, congratulando-se por, a esta, o C6d. it.. ter

52

798 0 exercicio inadmissivel. de posicOes juridicas

implica uma ideia de nao possibilidade transitoria de exercicio, tendo conotagOes tecnicas corn sectores espedficos, como ocorre corn a inibica o ao exercicio do poder paternal, a inibicao de exercicio da advocacia ou a inibicao do direito de conduzir, p. ex. ( 548), a oparalisagio, associa-se ao funcionar de uma excepcio de Direito material, podend

o ser usada apenas em termos descritivos, a «preclusio« liga-se ao efeito emergente do decurso do prazo ou a outros efeitos igualmente impediti-vos, mas sempre determinados e a operda«, para alem de ji ter um sentido tecnico especifico nos direitos reais ( 549), equivale a extincao, seja ela qual for, de urn direito. 0 recurso a expressties compostas levaria a introducao de qualquer coisa como «extincao de um direito por exercicio tardio contrario a boa fen o que, sendo incomodo, postula-ria de imediato o tratar-se de extincao, o que nao a certo.

Para o progresso de uma Ciencia, ha que, a realidades autanomas, atribuir expressoes proprias e a conceitos novos, nominacoes novas, sem confusao corn factores ji existentes. Fique, pois, aguardado melhor, uma traducao latina de Verwirkung, nao comprometida: a suppressio.

IL A suppressio tern origem jurisprudential. As suas manifes-tacoes mais antigas deram-se no dominio da venda de did() corner- cial, a favor do comprador, ficando consignadas em decisoes do entio

dado tratamento expresso nos arts. 2964-2969 — oh. cit., 55. A doutrina suica conhece bem, no entanto, a diferenca, ficil alias, entre as duas figuras. Cf. MERz/Berner Komm cit., Art. 2, n.° 513 (362). Note-se, contudo, que antes, tambem na Suica, BLUMENSTEIN, Verwirkung and Ablauf der Befristung als Endigungsgriinde von Privatrechten nach modernen Gesetzen (1901), tentara firmar, para a Verwirkung, urn sentido tecnico preciso que, desta feita, nada teria, sequer, a ver corn o decurso do tempo, directamente. A Verwirkung seria, para BLUMENSTEIN, a perda de urn direito associada, pela lei, a determinados comportamentos do seu titular — Verwirkung, cit., 6 — distinta do mero decurso do prazo — idem, 76. CAS-TANHEIRA NEVES, Questsio-de-facto cit., 28933, di, da Verwirkung, que nio traduz, uma definiclo semelhante a esta; n -ao indica, porem, as suas fontes. Em livros franceses aparece, tambern, o termo dicheance, como formula para traduzir o al. Verwirkung.

(548) Tendo, nos dois 61timos exemplos, conotacoes punitivas estranhas d suppressio. M. DE ANDRADE, Algumas questdes em matiria de injarias graves cit., 743, afirma que, na Verwirkung, o titular do direito coma-se como que indigno de o exercer, o que se poderia ligar a ideia da inibi43o , tanto mais que o termo Verwirkung surgia, nos antigos §§ 1676 e 1679 do BGB, hoje revogados, corn ease sentido, que nada tern a ver corn a Verwirkung na boa fe; cf. KRUCK/vIANN, Verwirkung, Besitzstand, getarnte Ausschulssfrist, Unzluassigkeit der Rechtsausiibung, ZHR 104 (1937), 106-156 (107), que estabelece, ainda, a ligacio corn a indigni-dade sucessoria, § 2333 BGB e WIPPERMANN, Die Verwirkung, ein neuer Rechtsbegriff (1934), 2 ss.. 0 proprio M. DE ANDRADE, ob. e lot. cit., acaba por utilizar o termo «paralisacico, que nao se acolhe pelas razaes abaixo apontadas, no texto.

(343) Significa, al, a saida fortuita de uma coisa do poder material de uma pessoa, tendo, como consequencia, a extinclo da posse — art. 1267. °/1, b) — e a possibilidade de achamento — art. 1323.°; cf. MENEZES CORDEIRO, D. Reais cit., 2, 699 e 777.

.§ 30.° A <■ suppressio* e a ssurrectios 799

1Zeichsoberhandelsgericht. A questa() esquematiza-se desta forma: os

§§ 346 ss. HGB, na versao em vigor na altura, permitiam ao vendedor na compra e venda comercial, havendo mora do comprador no levantamento da coisa, a sua venda de oficio, atribuindo-lhe, ainda, uma pretensao pela diferenca do preco ( 550). A lei nao fixava, porem, urn prazo para o exercicio destas faculdades. Podia, pois, acontecer que o vendedor, dando a impressao de se ter desinte-ressado do contrato viesse, mais tarde, inesperadamente, a actuar as

suas pretensoes, de modo ruinoso para o comprador. Entendeu-se,

bete, haver ai, em certas circunstancias, uma demora desleal no exercicio do direito, contraria a boa fe.

Uma primeira decisio do ROHG, de 8-Abr.-1873, que represents um caso claro de suppressio, nao se reporta, no entanto, ao tema das vendas de oficio. Discutia-se a situaclo emergente dos factos seguintes: num contrato de fornecimento, o comprador queixa-se de ma qualidade do produto: o vendedor envia-lhe uma carta pedindo provas concretas dos defeitos alegados e afirmando que, ate ter uma resposta, suspendia os fornecimentos; o comprador no responde; dois anos volvidos, exige o cumprimento do contrato, nos termos acordados; o ROHG decidiu que sum tal procedimento a totalmente inconciliavel corn a boa fe, tal como a requerida no trafego comercial* ( 551).

Em ROHG 10-Iun.-1876 decidiu-se perante estes factos: a A. tinha vendido ao R. urn certo ntimero de acceies, que este nao levantara; a A. vende-as de oficio e acciona o R. pela diferenca; o tribunal, corn transito em julgado, recusa a accao por se demonstrar que o R. nao estava, afinal, ainda, em mora; dois anos volvidos, o A. adquire o mesmo mimero e tipo de accoes e, sem sucesso, pede ao R. que as levante; vende-as, end°, de oficio e acciona-o pela diferenca em relacio ao prep acordado no contrato inicial. 0 ROHG constata a ausencia de prazo legal para o exercicio da posicao juridica em jogo;

mas acrescenta: «Pode, contudo, existir urn tal limite [temporal] atraves

da consideracao pela bona fides e pela natureza das coisas, o que se verifica neste caso (552).

E em ROGH 20-Out.-1877: num contrato de fornecimento, o A. vende de oficio a mercadoria e acciona o R. comprador pela

(59 Dispoem, actualmente, os §§ 373-374 HGB; a venda de (Akio requer, pars alem da

mora do comprador, que se trate de coisas insusceptiveis de dep6sito, que se proceda a licitacio

pablica e que esta tenha lugar no sitio do cumprimento — cessr..u3/cAbrArus, HandelsR19

(1980), 180-181; BAUMBACH/DUDEN/HOPT, HGB 24 (1980), § 374, n.° 7-8 (762-766); Wihum.r-

GER /Roraima /Grosskomm HGB3 (1970), §§ 373-374, n.° 40-61 (303-310); SCHLEGEIBERGER,

HGB4 (1965), n.° 20-39 e 39 ss. (2042-2048).

(539 ROHG 8-Abr.-1873, ROHGE 9 (1873), 406-413 (412; cf., tamb6m 413). , 552, ROHG 10-Jun.-1876, ROGHE 20 (1877), 335-339 (335 e 336).

800 0 exercicio inadmissivel de posicaes juridicas

diferenca de preps; perde a accao corn transit° em julgado; Um ano volvido, o A. acciona de novo, o R., desta feita para cumprimento do contrato; o ROHG acentuou que a pretensao de cumprimento do A

emergira, em principio, intacta da primeira accao, perdida apenas por nao. se verificarem os pressupostos respectivos; simplesmente, o atraso regis-

tado no seu exercicio prejudica-a em definitivo; o exercicio de urn direito. contratual spode ser limitado no tempo, quando em tal limite derive d

a consideragio da boa fe e da natureza das coisas, sempre que o exerci cio retardado desse direito contratual conduz a uma desvantagem injus-tificada para a outra partea ( 553).

Como se calcula, todos estes casos tem em comum alteragoes substanciais no valor das mercadorias, que tornavam os pregos acordados, nos contratos iniciais, ruinosos para os vendedores, no primeiro caso,

e compradores, nos dois A orientaclo do ROHG foi confirmada em varies decisoes do

RG (554). Alguma doutrina da decada de trinta, na sequencia, em especial, de ENDEMANN (555) e de KRAUSE (556) pretendeu reportar a suppressio ao velho instituto medieval alemao da Verschweigung (557) Pela Verschweigung — poder-se-ia dizer ssilenciamento* — quern, perante o estorvar do seu direito, se calasse durante ano e dia, deveria calar-se para sempre (558); embora esta proposicao nao constituisse regra geral, (553) ROHG 20-Out.-1877, ROHGE 23 (1878), 83-87 (83 e 85). (554) Assim, em RG 8-Nov.-1893, RGZ 32 (1894), 61-65 (62 e 64), entendeu-se ser

inadmissivel uma demora desleal no exercfcio da faculdade de vender de officio, nomeadamente quando o preco da mercadoria tivesse, entretanto, descido em terinos consideraveis. Decisio semelhante, corn referencia a bona fides, foi tomada em RG 11-Dez.-1895, RGZ 36 (1895), 83-89 (88). Algumas das decisoes acima referidas vem tratadas em OTTO-WOLFGANG FISCHER, Die dogmatischen Grundlagen der Verwirkung (1936), 3, ens 'CAR/MANTAS, Die Verwirkung / EM Beitrag zur Lehre von den zeitlichen Schranken der Ausiibung der subjektiven Rechte (1938), 16 — K. considera ROHG 10-Jun.-1876, ROHGE 20 (1877), 336, como a primeira consagracao da suppressio, o que nao é exacto — em POTOTZRY, Die Verwirkung irn Patentrecht (1933), 15, em HELMUT SCHMIDT, Die Rechtsnatur der Verwirkung I Eine kritische Utnersuchung zur Lehre missbniuchlicher Rechtsausiibung nach heutigen Recht (1938), 14, em WIPPERMANN, Die Verwirkung cit., 5-6 — foca a natureza de criacio jurisprudencial da suppressio, embora s6 mention decisOes do RG e em R. GEIGEL, Die Verwirkung von Rechtett durch Nichtausiibung (Eine rechtsvergleichende Utnersuchung) (1938), 14-15.

(555) ENDEMANN, Die Verschtveigerung des Aufwertungsanspruchs, DJZ 1928, 693-696 (694), citando o Sachsenspiegel, (556) HERMANN KRAUSE, Schweigen ins Rechtsverkehr Beitrage zur Lehre vom BestsIti-

gungsschreiben, von der Vollmacht and von der Verwirkung (1933), 171 ss. (171). ( 59 Assim, OVEREECK, Verwirkung irn geltenden Recht (1934), 34-35 e WIPPERMAN, Verwirkung cit., 4; ao sabor da epoca, esta conexao ligava-sea proclamada necessidade de

firmar um Direito verdadeiramente alemao, o qual teria sido submerso pelo Direito roman° da recepcao OVERBECR, Die Verwirkung cit., 13.

(558) KRAUSE, Schweigen in Rechtsverkehr cit., 171; OVERBECX, Verwirkung cit.,. 34 ; WIPPERMANN, Verwirkung cit., 4. Contra a aplicacio do osilenciamento» I suppressio, p. ex. , TSCHISCHGALE, Verwirkung cit., 44.

§ 30.° A Qsuppressio e a «surrectim> 801

ela apareceria repetidamente numa serie de institutor singulares, como o achamento e a usucapiao. A analise das primeiras deciseies judiciais que marcara.m a suppressio nao revela, porem, tacos culturais e, muito menos, dogmaticos, coin institutes germanicos antigos; ela surge, pelo con-tririo, como esquema novo destinado a cnfrentar problemas novos. Os niveis justificativos verbais, que comportam, remontatn a tradicao

romanistica, o que é, alias, demonstrado pelo recurso a bona fides.

III. Foram, no cntanto, as perturbac5es econOmicas causadas

pela primeira grande guerra e, sobretudo, pela infiacao, que levaram

a consagracio dogmitica definitive da suppressio. No primeiro caso, registaram-se alteraceies imprevisiveis nos precos de certas mercadorias, ou dificuldades acrescidas na realizacao de determinados forneci-mentos (559). Em consequencia dessas alteraciies, o exercicio retardado de alguns direitos levava a situac5es de desequilibrio inadmissivel entre as partes (560). 0 segundo, atraves do chamado direito da valorizacao monetiria, marcaria, pelas aplicacoes permitidas a suppres-

sio, a sua consagracao definitiva (561 ). A revalorizacao monetiria conta-se entre os avancos mais signi-

ficativos proporcionados pela boa fe a Ciencia do Direito (562). Na sua base esta a superacao, por raloes sociais imperiosas, do principio nominalista, fixado por lei, atraves da pura accao jurisprudencial. Admitindo a possibilidade de revalorizacao monetiria, por forca da inflacao, o RG protege, no essential, a posicao do credor. A suppressio

vai funcionar como contrapeso dessa proteccao, assegurando, desta feita, o interesse do devedor (563 ): a boa fe requer, pela equivalencia das prestacoes e pelo equilibrio das situac5es das partes, que se proceda a reajustamentos destinados a compensar a depreciacao monetiria;

(556) Assim em RG 2-Mai.-1919, RGZ 95 (1919), 307-310 (310), dccidiu-se, designada-

mente, corn referencia a boa fe, que o direito extinto por outras vias nao mais poderia funcionar gse atraves da demora, a situacao economics do devedor se tivesse alterado de modo tao desfavorivel que o cumprimento a. distancia nao possa ser mais exigido".

(560) Sobre as relacoes emergentes da guerra e a suppressio, corn outras indicaceies,

KARAXANTAS, Verwirkung cit., 17-18.

(561) O.-W. FISCHER, Verwirkung cit., 5; H. SCHMIDT, lierWirkting cit., 15; WIPPERMANN,

Verwirkung cit., 7; MX0tE, Die Verwirkung (1935), 14; cf. WEBER, Treu mid Glauber; cit.,

D 562 (901); SOERGEL/SIEBERT/KNOPP, BGB 10, § 242, n.° 286 (82); TSCHISCHGALE, Verwirkung

Ot., 7; LARENZ, Vertrag und Unrecht, I — Vertrag und Vertragsbruch (1936), 142-143.

(562) RG 28-Nov.-1923, RG 107 (1924), 78-94 = JW 1924, 38-43 = DJZ 1924,

58-65. Cf. Mfra, n.° 95.

(563) SIEBERT, Verwirkung und Unzuhissigken der Rechtsausiibung cit., 221 ss.; Mk-RE,

Verwirkung cit., 20 ss..

802 0 exercicio inadmissivel de poskdes juridicas

a mesma boa fe exige que as pretensoes de reajustamento, quand o barn, sejam exercidas num prazo razoivel, sem o que atingiriam

montantes corn que o devedor nao poderia contar (564). Da extensa jurisprudencia sobre a suppressio no direito de revalorizacl o (565)

deve salientar-se a preocupacao do juiz em ponderar os interesses' das duas partes em termos de equilibrio (566) e em apurar 0 efeito que, nesse equilibrio, tern o decurso do tempo

(567).

IV. 0 Ambito da suppressio levantou dtividas, num momento initial (568). A sua aplicacao em areas especificas do Direito do comercio, onde a lei omitira a consignacao de prazos especificos, requeridos pelas conjuncaes de interesses of verificadas ou no dot/If-ni° da revalorizacao, ela propria uma concretizacao jurisprudencia) da boa fe, estava, de algum modo, facilitada. Nao assim noutros sectores juridicos onde a suppressio teria de concorrer com forma s

classicas de repercussao do tempo nas situagoes juridicas, como a caducidade e a prescricao. Progressivamente, acompanhando, alias, o alargar sofrido pela boa fe, a suppressio estendeu-se a outros ramos do Direito; num primeiro tempo, apenas ao Direito da concorrencia e do trabalho (569); depois, aos diversos sectores do Direito pri-

(564) RG 9-Dez.-1927, RGZ 119 (1928), 231-237 (235) = JW 1928, 488-492 (491), corn an. STOLL, 488-491, que aproveita o ensejo para tracar o quadro das situac8es em que a revalorizacio E rejeitada.

(565) MUGEL, Die Redasprechung des Reichsgerichts fiber die Verwirkung von Aufwertungsan-spriichen, JW 1930, 1042-1049 (1042).

(566) RG 11-Jan.-1928, RGZ 118 (1928), 375-378 (377-378) = JW 1928, 650-651 (651). (567) RG 26-Nov.-1931, RGZ 134 (1932), 357-359 (358). (568) KUCHENHOFF, Rechtsverwirkung ausserhalb des Aufivertungsrecht, DJZ 1930, 1194-

-1196 (1194), afirmando que, se no Direito da revalorizacio, a suppressio ji fora reconhecida, existiriam ainda dtividas fora desse ambito, onde imperaria a prescricao; KUCHENHOFF discorda de tais drividas, explicando que a regra da boa fe 6 geral e nao especial. TEGTMEYER, Der Geltungsbereich des Verwirkungsgedankens, AcP 142 (1936), 203-232 (203), afirma que, pars as posiciies restritivas, de que, igualmente, discorda, a suppressio justificar-se-ia apenas em areas especfficas, como a da revalorizacio, prOprias, tao so, de epocas corn predornfnio de inse-guranca economics.

(569) WEBER, Treu und Glauben cit., D 562 (901). MAcxs, Die Verwirkung cit., moxime 48, defende a suppressio como urn instituto especifico do Direito de revalorizacio e da concor-rencia, negando, nomeadamente, a sua extensao ao Direito do trabalho; baseia-se, para tanto, no estado da jurisprudencia ao tempo em que escreveu (1934). A suppressio fora tratada, no ano anterior, no Direito das patentes, por POTOTZKY, Die Verwirkung im Patentrecht cit., integrado, pelo A., nas regras do Direito da concorrencia — ob. cit., 29 ss.. LETZGIM

Ausdehnung oder Einschrankung des Verwirkung von Leistungsanspnichen? DR 1941, 2324-2326

30.° A ouppressio e a scsurrectio 803

Tao (570), ao Processo (575 ) e ao Direito public° (572). No entanto,

clove sublinhar-se que, apesar de uma aplicabilidade tendencial-

(2324), exp5e que a inseguranca limitou a suppressio ao Direito da revalorizacio, ao Direito

trabalho e ao Direito da concorrencia; contra o que se teria manifestado a doutrina —

ob. di., 2325. Justificando, face a tendencias restritivas anteriores, uma aplicacao geral da

s„lprusio, RG 10-Dez.-1938, RGZ 159 (1939), 99-108 (105).

(570) TEGTMEYER, Der Geltungsbereich des Verwirkungsgedankens cit., 231, maxime; da

mumeracio of feita, fica dara, porem, a maior aplicario da suppressio aos sectores economica-

te mais movimentados. GErso., Die Verwirkung cit., 72-73, que explica a expansio da

figura pelo dinamismo da boa fe, que dominaria toda a vida juddica, sublinha serem os sectores do Direito da valorizacio, do Direito do trabalho e do Direito da concorrencia apenas zonas de aplicacio mais frequente, mas 1110 exdusiva. A doutrina da decada de

auto, na sequencia, sobretudo, de SIEBERT, Verwirkung und Unzulassigkeit der Rechtsausiibung

cit., que, dando a suppressio uma fundamentacio te6rica geral, facultou uma difusio ficil, vas ampliando o seu domfnio de aplicacbo, embora sem deixar de vincar a sua maior incidencia nos tres sectores acima apontados; assim, Kastsxstrrss, Verwirkung cit., 18-21 e H. SCHNUDT,

Verwirkung cit., 20 ss., sublinhando, como zonas mais significativas, o Direito das marcas, o Direito das patentes e o Direito dos modelos.

(571)Embora conhecida hi muito pela jurisprudencia, a suppressio, no Processo

civil, foi objecto de investigacao tardia; o primeiro estudo de conjunto 61he dedicado por

BAIJNIGKRTEL, Die Verwirkung prozessualer Befugnisse im Bereich der ZPO und des FGG,

ZZP 67 (1954), 423-451; cf., of 423-424 e 424 10 . ALFRED Roots/THAL, Vorschldge zum Problem

der Verwirkung des Klagenrechts, LZ 1932, 581-586 (581-582), apesar do tftulo que deu ao seu

artigo, trata a questa° pelos seus aspectos materiais. A suppressio em Processo foi, curiosamente,

elaborada primeiro no dominio do Processo penal. Na sua base, coloca-se a dedsio do BGH, 7-Jun.-1951, BGHSt 1 (1951), 284-286; ocorrera o seguinte: no decurso de certo processo do foro criminal, fora omitida, de modo indevido, a convocaclo de urn defensor para a audicbo de um perito; com base nisso, 0 R. tenta o recurso de revista; decidiu-se, porem, que o R. ace-deu, desde o infcio, ao relat6rio do perito, tendo podido contrarii-lo; nal° o fazendo, no decurso do processo, mais nio o poderia fazer, apesar da tempestividade do recurso. Cornea-tando a decisio, JESCHECS, Die Verwirkung von Verfahrensriigen im Strafprozess, JZ 1952,

400-403 (402), mostra-se limitativo, escrevendo: (0 preceito da observancia da boa fe no processo conduz a inadmissibilidade de revisio por falhas processuais quando, excepcionalmente, se determine que o recorrente provocou, pela sua prepria actuacio, a falha formal, corn a mteacio de, mais tarde, basear nisso o recurso. Urn dever de colaboracio a prop6sito da manutencio dos preceitos processuais atraves do tribunal Lilo respeita, porem, nem ao R. nem ao seu defensora. Cf., ainda, a noticia de WERNER NrEsE, Die Rechtsprechung des Bundes-

gerichtshofs in Strafsachen, JZ 1953, 219-224 (221) e o artigo de WOLFF, Verwirken der

Verfahrensriige durch den Angeklagten, NJW 1953, 1656-1658. Mas no Direito portugues, e dada a existencia de todi uma teia rigida, de prazos processuais, dobrada por urn prazo supletivo geral — art. 153.° CPC — nao a de introduzir a ideia de suppressio processual: os poderes das

partes vac, sendo precludidos ao longo do processo e o recurso a sempre via indicada para apreciar irregularidades do tribunal.

(572) 0 alargamento da boa fe ao Direito ptIblico — cf. supra, 373 ss.; recorde-se, p. ex.,

W. KNIEPER, Treu und Glauben int'Verwaltungrecht cit. (1933), 29 — implicaria a transferencia,

mente global (573 ), a suppressio e sign' econOmico especial como o Direito do-se, ai, ainda, nas marcas (575) e

ificativa em zonas de dinamismo da concorrencia (574), acentuan-

nas patentes (576), em sectores

804 0 exercicio inadrnissivel de posifiks juridicas • § 30.° A ktsuppressio* e a «surrectio* 805

para o ambito deste, da problematica conhecida por 4abuso do direito0 - p. ex., K. S Treu und Glauben ins offentlichen Recht cit., (1977), 315 ss. - corn inclusio da suppressio Treu und Glauben cit., D 741 (948). A transferencia foi, alias , facilitada pela relevancia que o tema da revalorizacio monetaria assumiria no Direito publico - TampooR

PRAnN, Teen und Glauben in der Verwaltungsrechtsprechung cit. (1933), 13 ss.. Apesar das dificuldades de sistematizacio proprias Besse sector - M. BAUMANN, Der Begriff von Treu and Glauber: is offentlichen Recht cit., (1952), 79 - pode apontar-se o domfnio da revogacio dos act os

administrativos e o do funcionalismo como areas de relevo especifico da suppressio -.WEBER, Treu und Glauben cit., D 744 ss. e D 750 ss. (951 e 952) e HAUEISEN, Unzultissige Reek s. ausiibung und offentlich-rechtliche Ausschlussfristen NJW 1957, 729-731 (729).

(573) Assim, as descricoes de WEBER, Treu und Glauben cit., D 636 ss. (920 ss.) e de SOERGEL /SIEBERT/KNOPP, BGB1 ° cit., § 242, n.° 303 ss. (86 ss.).

(574) SIEBERT, Verwirkung und Unzulassigkeit der Rechtsausiibung cit., 8-25, e 191-198. Quanto ao exercicio inadmissfvel de direitos, em geral, no Direito da concorrencia, SIEBERT, ob. cit., 158-168. No Direito da concorrencia, a suppressio assentou, juspositivamente, na norma fundamental, compreendida no § 1 UWG: *Quern, no trafego negocial, assuma comportamen-tos corn o escopo da concorrencia, que contrariem os bons costumes, pode ser accionado pars que se abstenha e indemnizeo. No projecto, muito discutido, de alteracio ao UWG, essa disposicio manter-se-ia corn a supressio, apenas, da referencia especffica a indemnizacio - cf. BAUMBACH/HEFERMEKL, WettbetverbsR 13 (1981), 20. Essa norma provocou urn largo desenvolvimento jurisprudential - p. ex., v. GODIN, WettbetverbsR 2 (1974), U § 1, n.° 1-293 (1 ss.). Mais tarde, dada a pressio doutrinaria e jurisprudential recebida do Direito civil, a suppressio foi imputada, tambem neste sector, a boa fe - v. GODIN, WettbewerbsR 2 cit., U § 1, n.° 272 e BAUMBACH/HEFERMEHL, WettbetverbsR 13 cit., UWG Einl n.° 404 (388).

(575) H. DROSTE, Die Verwirkung von: Unterlassungsanspriichen ins Warenzeichenrecht, GRUR 1950, 560-567; DROSTE faz notar, com certa oportunidade, a natureza demasiado fad do recurso a boa fe para solucionar problemas dificeis e a necessidade de delimitar conter o ambito da suppressio; no caso das marcas, terra havido urn alargamento da suppressio que, de marcas nio usadas, passou a abranger tambern as restantes - ob. cit., 560, 561 e 562. O caso mais claro de suppressio nas marcas traduz a situacao do titular que, pelo seu comporta-mento, deixou entender a outras pessoas que de aceitava ou tolerava a utilizacao, por elas, de marcas similares; cf. BAUAtBACH/HEFERMEHL, WettbewerbsRo cit., UWG Einl n.° 406 (398)- 0 ac. STJ 11-Dez.-1979, BMJ 292 (1980), 391-394 = RIJ 113 (1980), 283-285, cons an. ORLANDO DE CARVALHO, favorivel - fuj 113 (1980), 285-301 - e que deu lugar ao artigo de OEHEN MENDES, Da proteccilo do Home contercial estrangeiro em Portugal, sep. ADI (1981), tambem favorivel, segundo o qual o nome comercial estrangeiro nunca usado, em Portugal, hi mais de dez anos e nao conhecido notoriamente, nio tern proteccio, por incorrer no prazo de caducidade do art. 161. 0 /4 CPI; o problema poderia ter sido encarado, ainda, pelo prisms da suppressio. De OEHEN MENDES cf, ainda, Fragen des Benutzungsztvangs ins portugiesischen Markenrecht, GRUR/Int 1984, 11-19.

(576) BEIER/WIECZOREK, Zur Verwirkung ins Patentrecht, GRUR 1976, 566-573 (566), imputando a figura ao exercicio inadmissivel dos direitos e baseando-a, positivamente, na boa fé prescrita no § 242 BGB. Tambem aqui, no inicio, houve dtividas quanto a possibilidade de

de transicao, como o Direito autoral (577 ), em areas juridicas de sensibilidade social bastante acentuada, como na locacio (578 ) e em

sectores de relacionamento dificil, como nos contactos corn a antes chamada Zona de Ocupaclo Sovietica (579 ) ou nas relaceies emer-gentes da guerra ou do imediato pOs-guerra (580). 0 legislador inter-veio, por outro lado, para evitar a sua aplicacao de modo indesejavel, como sucederia no Direito do trabalho (581 ).

V. A natureza da suppressio suscitou uma das literaturas mais

abundantes de quantos temas se prendem corn a area, ji de si prolixa, da boa f6 (582). Nos primeiros tempos da sua consagracao

recurso directo a boa fe do BGB; assists POTOTZKY, Die Verwirkung itn Patentrecht cit. (1933),

19; cf., pores's, 23 e 25, acabando - 29 ss. - por defender a aplicabilidade, as patentes, do

regime geral da concorrencia. (577) V. GAMM, Verwirkung ins Urheberrecht, NJW 1956, 1780-1782 (1781), acentuando

as diferencas da suppressio no Direito de autor, no das patentes e no das marcas;

L. HEYDT, Greuzen der Verwirkung im gewerblicheu Rechtsschutz turd Urheberrecht, GRUR 1951,

182-186 (184), focando a inaplicabilidade da suppressio aos casos em que o exercente fique

obrigado a indemnizar - o que implica, pois, a sua natureza suplctiva; H. KLEIN, Zinn

Eintvand der Verwirkung, insbesondere ins Wettebewerbs- und Urheberrecht, JZ 1951, 9-12 (9), subli-

nhando a extensio da suppressio a todo o Dircito privado, por ser urn caso de exercicio

inadinissivel, ligado ao § 242 BGB. (578) BRUMBY, Verwirkung ins Mietrecht, JR 1951, 590-591; W. WEIMAR, Verjaltrung

mid Verwirkung ins Mietrecht, WuM 1974, 249-252 - W. chama a atenclo para a necessidade da

suppressio, imposta pela boa fé, dada a longs duracio de numerosos prazos de prescricao e a

uao aplicabilidade desta a direitos potestativos, pelo Direito alma's), oh. cit., 250; W. SCHMIDT-

-FurrERER acentua, corn base na jurisprudencia, aspcctos especificos da suppressio na locacio

ens Die Verjiihrung und Verwirkung der Attspriiche turf Heizkosten, BB 1971, 943-944, focando,

tambem, que as posicoes das dual partes presentes podem. set afectadas.

(579) H. RABELINC, No:we Rechtsentivicklung zur Auswirkung ostzonaler Verfiigungen

fiber westliches VentrOgen &wand der Verwirkung, MDR 1951, 715-717; estuda-se, aI, a apli-

cacao da suppressio face a actos praticados por entidades sitas na zona lestc, as quais, por actos de imperio, foram transferidos direitos referentes a bens das zonas ocidentais.

(sso) BENKE, Verwirkung und Griegs- mud Nachkriegsverholtnisse, BB 1951, 405-406.

(581) BORRMANN, Ausschluss der Verwirkung tariflicher Rechtc, BB 1951, 1011-1012.

A lei aleml dos contratos colectivos de trabalho afasta expressamente, no sets § 4/2, 2, a possi-

bilidade de suppressio de posiceies emergentes desses contratos - WIEDEMANN/STUMPF, TVG5

(1977), § 4, n.° 349-352 (591-594). E, pois, o reconhecintento legal dessa interessante criacIo

da jurisprudencia. A exclusio da suppressio tens, contudo, messno neste doniInio, sido

entendida como exceptional. As pretensoes que ultrapassem o montante fixado no contrato colectivo estio-lhe sujeitas, na diferenca; dcfendens-no BORRMANN, ob. e loc. cit., e WiEDENIANN/

/Srumpr, TVG 5 cit., n.° 353 (594).

(582) Assim, so na decada de trinta, e corn referencia, apenas, a disscrtaciks de

doutorarnento, ji foram citados nove livros, de POTOTZKY (1933), OVERBECK (1934), WIPITR-

806 0 exercicio inadmissivel de posicoes juridicas

jurisprudencial ampliada, a suppressio foi objecto, por parte de alms autores, de posicoes negativistas (583). Na base destas posicOes esti a

afirmacao da inseguranga que, pela suppressio, se poderia instituir (584) ; este elastro conhecido de resistencia a todas as inovacoes material_ mente justas* (585) foi de pouca dura, dada a realidade insofismivel da consagracio jurisprudencial. Tentou-se entab, mas sem m ajor

sucesso, restringir a aplicacao da suppressio a zonal especificas (586). PrOxima, ainda, do negativismo, seguiu-se a defesa da suppressio como remincia ao direito por parte do exercente (587); trata-se, porem,

MANN (1934), MAcKE (1935), FISCHER (1936), TSCHISCHGALE (1937), GEIGEL (1938), ICAxitraorrAs (1938) e H. SCHMIDT (1938). Acrescente-se-lhes, ainda, Szocxs, Die Verwirkung und des Verbot gegensotzlichen Verhaltens (1939, dact.).

(553) SIEBERT, Verwirkung und Unzassigkeit der Rechtsausiibung tit., 7-8. (584) BEST, Verwirkung?, JW 1932, 1801-1805 (1804) - B. comeca por entender a

suppressio como a demon, no exerdcio do direito, por mais tempo do que o tribunal entenda admissfvel, acrescenta parecer justificado que o § 242 imponha 'finites temporais no exerdcio dos direitos e, depois de frisar o perigo da inseguranca, remata que, do atraso, so pode emergir a caducidade, a prescricio ou a excepcio de dolo, ob. tit., 1801, 1802 e 1805. Tambem HAMBURGER, Zum Begrif f der Verwirkung, LZ 1928, 1588-1594, tendo sublinhado a concordlncia de apenas uma pequena parte da doutrina - em 1928 - e as dtividas manifes-tadas na jurisprudencia - ate 1 referida data - afirma a desnecessidade da suppressio -cit., 1589, 1590-91 e 1594. 0 mesmo HAMBURGER, em Treu und Glauben cit. (1930), 84-98, assume posicOes que, embora muito restritivas, denotam ji uma certa abertura; reconhecendo a persistencia da sua consagracio jurisprudencial, H. recorda, no entanto, que a exceptio deli permitia efeitos similares e que, na utilizaclo da suppressio, havia que actuar corn extrema cautela - Treu und Glauben cit., 84 u. e 97. De modo semelhante, AEPONS ROTH, Die Verwirkung des Aufwertungsanspruchs I, JW 1928, 1335-1337, que bate insistentemente na tecla da inseguranca, se manifestara contra a suppressio e o arbftrio que the imputa, reclamando medidas legislativas; explica -que o § 242 conduzira I possibilidade de valorizacio e, agora, o mesmo 5 242 levava ao coarctar dessa possibilidade, em incerteza completa - ob. tit., 1336 e 1337; posicio semelhante a assumida por CARL BEISLER, Die Verwirkung des Aufwertungsan-spruchs II, JW 1928, 1337-1339, que tern a suppressio na conta de rentincia ticita que nio convence - ob. cit., 1338. Com indieac5es diversas, SIEBERT, ob. e loc. cit. supra, 806583 . Note-se, contudo, que a suppressio n-ao mereceu, apenas, no infcio, a desaprovacio da doutrina; assim G. HEINEMANN, Die Verwirkung als Rechtsvernichtungsgrund, LZ 1928, 935-942, apresenta a suppressio como forma nova de extincio de direitos, separa-a da rentincia e da caducidade, aponta-lhe os pressupostos e deriva-a da boa fe - ob. cit., 936. 937 e 939-941.

(585) CASTANHEIRA NEVES, Questlio-de-facto cit., 513, a proposito das reticencias postal por alguns AA. ao abuso do direito, em nome da seguranca.

(586) Supra, 802-803569 e, especialmente, MAcXE, at cit.. (59 MANIOC, Das Problem der Verwirkung, DJZ 1936, 350-360 (359); FRANKENBERGER,

an. RG 2-Mar.-1928, JW 1928, 2635-2636 (n.° 20), chama a atencao para o facto de, na jurisprudencia da epoca, nem sempre estar Clara uma diferenca entre suppressio e renuncia.

§ .30.° A osuppressio» e a «surrectio 807

de tuna ficcao clara ( 588) que, mesmo na sua dogmatica interna, levanta

ulna serie de problemas.

0 atribuir, a uma tese, a natureza de ficcao nao basta, so por si, para a rejeitar: tal afirmacao deve ser complementada e justificada. Ficcao 6, conscientemente, dar a uma realidade um qualificativo que nao 6 o set. Faltando essa consciencia, nao ha ficcao: ha erro; havendo essa

consciencia, cabe indagar o porque da transposicao e, perante ele, decidir.

As acusacoes de ficcio sae, pois, na sua maioria, acusaciies de erro na qualificaclo. o que ocorre no caso vertente: a suppressio nao pode,

de facto, ser qualificada como remincia, por nao reunir os pressupostos respectivos. A ponderaclo da metodologia inerente as decisoes que

consagraram a suppressio mostra que falta uma indagacao das condicOes que permitiriam decelar, no titular exercente, uma vontade de reruincia.

Desde o inicio, a estudada a situacio apenas nos seus efeitos objectivos, sem contemplacao da vontade dos intervenientes. E bem se compreende esse procedimento: pretender, do puro silencio ou da mera inaccao, retirar actuagOes negociais, coloca dificuldades de construcio, teoricas e praticas que, as dos comportamentos concludentes, somam as inerentes a uma actuacao que prima, afinal, pela ausencia (589). No entanto, ainda

que se alcancasse a nao actuacao do titular como uma manifestacao de vontade em renunciar, a suppressio nao ficaria deslindada: seria necessario reunir ou acrescentar uma serie de factores, tais como a forma e a

aceitacao da contraparte, para que se pudesse falar de uma figura verda-

deiramente negocial.

Ultrapassadas essas primeiras tentativas, a suppressio foi recon-

duzida, corn unaninndade crescente da doutrina (590) e da jurispru-

dencia (591) a boa fe. Da boa fe ao exercicio inadmissivel de

(588) C. BEISLER, Die Vertvirkung des Aufwertungsanspruchs II cit., 1338; DANzza-vANorn,

Die Verwirkung, DRZ 1932, 74-76 (74); TSCHISCHGALE, Die Rechtsnatur der Verwirkung cit., 33.

(589) Em geral, CANARIS, Scitweigen ins Rechtsverkehr als Verpjlichtungsgrund, FS

Wilburg (1977), 77-97. C. faz depender o problema, entre outros, da consciencia da decla-

rack), que dificilmente poderia ser ponderada na suppressio.

(590) Como mero exemplo, BEIER / WIECZOREC, Zur Verwirkung im Patentrecht cit.,

566, DkrzEs-VArtorrl, Die Verwirkung cit., 74 e Die Verwirkung infolge verzegerter Geltendtna-

chung eines Rahn, DJZ 1936, 1455-1462 (1462), 0.-W. FISCHER, Verwirkung cit., 29,

KARANKANTAS, Verwirkung cit., 15 e 48, H. KLEINE, Zum Einwand der Verwirkung cit., 9,

NARITOMI, Die .Verwirkung im japanischen Recht, NJW 1958, 492-493 (492) e W. WEImmt,

Verjohrung und Verwirkung im Mietrecht cit., 249.

(591) A boa fe vinha referida pela jurisprudencia, a proposito da suppressio, ainda

antes do aparecimento do BGB; assim ROHG 8-Abr.-1873, ROHGE (1873), 412-413, ROHG

10-Jun.-1876, ROHGE 20 (1877), 336, ROHG 20-Out.-1877, ROHGE 23 (1878), 85 e RG

11-Dez.-1895, RGZ 36 (1895), 88; mantem-se no tide das relacees atingidas pela Grande

808 0 exercicio inadmissivei de posicoes juridicas

direitos por demora do titular vai, no entanto, urn caminh o que deve ser explicitado (592). Nessa linha ensaiou-se, primeiro, a exceptio doll (593 ). A exceptio corresponde, porem, a uma regulaclo demasiado fluida do problems para permitir uma concretizacao minima; acarreta, alem disso, desvantagens ja sumariadas (594). Mais sucesso teve, p ur isso, a reconducao da suppressio a proibicao de venire contra factuni proprium: o titular do direito, abstendo-se do exercicio durante

Guerra — RG 2-Mai.-1919, RGZ 95 (1919), 310 — c e constantemente referida aquando da suppressio no Direito da revalorizacio — RG 9-Dcz.-1927, RGZ 119 (1928), 235 =JW 1928, 491; RG 11-Jan.-1928, RGZ 118 (1928), 378 = JW 1928, 651; RG 2-Mar.-1928, JW 1928, 2635; RG 30-Jan.-1931, RGZ 131 (1931), 225-236 (232); RG 26-Nov.-1931-, RGZ 134 (1932), 358. Sedimentada a refere'ncia a boa fe como fundament° juspositivo da sup-pressio, cla manter-se-ia ate a actualidadc. Assim, como exemplos: RG 4-Jun.-1937, RGZ 155 (1937), 148-154 (152) — ligado, ainda, a questens de revalorizacio monetaria; RG 10-Dez.-1938, RGZ 159 (1939), 99-108 (104-105) — suppressio de pretens8es de restituicao do enriquecimento ;

OGHBrZ 2-Dcz.-1948, MDR 161-162, corn an. favoravel de BEITZKE, idem, 162-163 —considera a suppressio cons() manifestacao do exercicio inadmissivel de direitos, por contrariar a boa EC; BGH 3-Dcz.-1957, DB 1958, 193 — idem; BGH 31-Jan.-1963, BGHZ 39 (1963), 87-96 (92-93) — accita a regra da suppressio por exercicio tardio contrario a boa fi embora, no caso vertente, a tail= afastado cm mina° a obrigacao de prestacio de contas, dada a natureza especial desta; BGH 30-Jun.-1976, BGHZ 67 (1977), 56-69 (68) — vines a suppressio como modalidade dc exercicio inadmissivel de direitos, por contrariedadc a boa fe c sublinha a sua apli-cacao aos Direitos de Autor; funcionaria ai, por6m, nao perantc o pre:Trio direito dc utilizacao do autor, mas a face de pretenses originadas por violacrses cometidas contra o autor em causa.

Note-se, por fin., quc a propria boa fe c as regras corn ela conectadas constitucm o factor mais significativo de delimitacio da suppressio. Assim, BGH 27-Jun.-1957, BB 1957, 979, afasta uma hipcitese de suppressio por =tender que ela nao deveria funcionar contra o titular que, por confiar nas contrapartes, nao exercera o sett direito.

(592) DROSTE, Die Vertvirkung vont Unterlossungsanspriichen im Warenzeicheurecht cit.. 560, chatna, a esse proposito, a atenclo para o facto de minims principiantes recorrerem, corn facilidade, a boa ft:, para resolver os problemas dificeis.

(593) Rccorde-se HAMBURGER, Tress und Glauber cit., 97; em especial, RosENTRAL. Vorschldge zum Problem der Verwirkung des Klagerechts cit., 583.

(594) Supra, 741. Surgem criticas inexactas ou incorrectas a leitura da suppressio como exceptio doll, que importa afastar. Assisi], POTOTZKY, Die Verwirkung int Patentrccht cit., 31, vem dizer quc, na exceptio doll, a violacao da boa fe ocorrcria na formacao do direito, enquanto quc, na suppressio, cssa violacao scria posterior. Mas nao: POTOTZKY so tern em mente o dolus spccialis ou praeteritus ; no gencralis ou pracsens, a violacio da boa fe surge aquando do exercicio. H. ScHminr, Verwirkung cit., 107, afirina a natureza poste° alema da exceptio: o Direito alemao nao seria aktionenrechtlich mas sim weltanschaulich ; H. SCH. reclamava, alias, ao sabor do tempo cm que cscreveu (1938) urn novo Direito alemao — ob. cit., 163. Tambem nao: H. Scx. poc a questa() cm termos quase afectivos, ens vcz de estudar as possibilidadcs actuais do emprego das excepciaes materiais c de, a elas, reconduzir a velha exceptio doll.

§ 30.' A «suppressio e a ..surrectio,, 809

urn certo lapso de tempo, criaria, na contraparte, a representacao

de quc esse direito nao mais seria actuado; quando, supervenientc-

temente, viesse agir, entraria em contradicao ( 595 ). 0 sucesso do apelo

ao venire contra factum propriunz deve ser conjugado corn a tese de

SIEBERT, sobre a suppressio. SIEBERT defendcu que a suppressio,

privada de autonomia verdadeira, era apenas uma sub-hipOtese de exercicio inadmissivel de direitos (596 ) por contrariar a boa fe. 0 entendimento da suppressio como venire contra faction proprium

firmou-se contra a tese de SIEBERT. A construcao laboriosa por ele operada, tendente a reconduzir a suppressio ao exercicio inadmis-sivel dos direitos, ligada, ainda, a ideia da relatividade do contetido dos direitos subjectivos, scria puramente formal (597 ): nao daria, ao interprete, qualquer criterio material para indagar, concretamente, hip6teses de suppressio. SIEBERT (598 ) e os setts seguidores (599 ) nao deixaram, porem, de criticar a reducao da suppressio ao venire contra

factutn proprium: SIEBERT acentua a possibilidade de o venire contra

faction proprium nao ter na sua base o exercicio de qualquer direito e

duvida que o factum proprium possa implicar uma mera inactividade; BENDER sublinha, como elemento cssencial da suppressio, que nao do venire contra factuni proprinin, o decurso do tempo. A tendencia

(595) Assim, ji as afirmacoes de BANK, Zur Lehre von der Verwirkung, JW 1934,

2437-2438, H. LEHMANN, Zur Lehre von der Verwirkung, JW 1936, 2193-2197 (2194 e 2197),

0.-W. FISCHER, Verwirkung cit., maxime 52, 5rocxs, Die Verwirkung und das Verbot gegenoitzli-

chen Verhaltetts cit., maxime 30 ss. e 50 ss., LETZGUS, Atudehnung oder Einschrsinkung der Verwir-

kung von Leistungsanspriichen? cit., 2325 e H. GUNTHER, Die gesetzliche Verwirkung der Feiertags-vergutiing and die terrninologische Erweiterung des Verwirkungsbegriffs int Sinne unzuldssiger Rechtsausiibung, AuR 1957, 17-19 e 42-48 (43) c Gesctzliches und richterliches Billigkeitsrecht,

unzuldssige Rechtsausiibung und Vertvirkung in; Arbeitsrecht, AuR 1957, 169-182, 321-330 e

364-371 (172). CE ANTON GEISENHOFER, Die Verwirkung (1948, dact.), 33.

(596) SIEBERT, Verwirkung und Unzulassigkeit der Rechtsausiibtmg cit., 172; SIEBERT teve

um peso decisivo na doutrina e na jurisprudencia — GEISENHOFER, Verwirkung cit., 31 — ate

aos nossos dins. Como meros exemplos: KLEINE, Zum Einwand der Verwirkung cit., 9; KNORN,

Die Verwirkung des gesetzlichen Unterhaltsanspruchs, FamRZ 1964, 283-285 (283); RABELING,

Neuere Rechtsentwicklung zur Auswirkung ostzonaler Verfugungen cit., 716. WEIMAR, Verjeilsrmig

und Verwirkung cit., 251; BEIER/WIECZOREK, Zur Verwirkung On Patentrecht cit., 566; RG 4-Jun.-

-1937, RGZ 155 (1937), 152. (597) LEHMANN, Zur Lehre von der Verwirkting cit., 2193-2194; GEISENHOI'ER, Verwir-

kung cit., 33. (598) SIEBERT, Verwirkung und Unzultissigkeit der Rechtsausiibung at., 183-185.

(599) BENDER, Die dauernde ausserordentliche Einrede der unbilligen verspitteten Geltensima.

cluing is allgenteinen biirgerlichets Rah: (1944, dact.), 14. Ji anteriormente, entre maims, 1.zutENz, Vertrag und Unrecht, 1-Vertrag und Vertragsbruch (1936), 143-144.

810 0 exercicio inadmissivel de posiceTes juridicas

posterior de reconduzir a prOpria proibicao de venire contra factum proprium a urn tipo de exercicio inadmissivel de direitos acabou p or

retirar interesse a discussao: a suppressio torna-se uma forma de exer-cicio inadmissivel de direitos, por venire contra factum proprium (600) .

0 panorama doutrinirio actual sobre a suppressio vive dorni-nado pela sua reconducao ao exercicio inadmissivel dos direitos ;

nuns casos, porem, a sua localizacao dogmitica fica-se por ai (601)• noutros, pelo contrario, mantem-se a mediacao do venire contra factum proprium (602).

VI. 0 regime preciso da suppressio, tal como e hoje entendida, na sequencia da evolucao acima tracada, nao tern codificacao ficil. Tendencialmente, pode afirmar-se que todos os direitos subjectivo s

the estao sujeitos — salvas excepcOes (603 ) — que a necessario urn determinado periodo de tempo sem exercicio do direito e que se requer, ainda, indicios objectivos de que esse direito nao mais seria exercido (604). 0 tempo sem exercicio a eminentemente variivel, consoante as circunstancias, para que possa haver suppressio (605);

(600) WEBER, Treu und Glauben cit., D 602 (911-912). (601) Assim, ERMAN/SIRY, BGB6 cit., § 242, n.° 84 (471), Aus/BGB/RGRKI 2 cit.,

§ 242, n.° 136 (38) e Lihasiuxz/StudK/BGB 2 cit., § 242, 4, f) (141). (609 SOERGEL/SIEBERT/KNOPP, BGBI° cit., § 242, n.° 281 (81), de forma discreta, reme-

tendo para o a.* 228 (vcfp) e, curiosamente, desviando-se do pensamento expresso por SIEBERT, ob. e loc. cit. supra, 809598 CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 372, RoTHIMiinch-Komm cit., § 242, n.° 333 (155) e LARENZ, SchuldRIAT" cit., 123-124. Boris afirma, contudo, de seguida, quo a suppressio ganha autonomia no seio dos comportamentos contradit6rios: por urn lado, os pressupostos de imputacio ao titular tem um peso menor; por outro o investi-mento de confianca pela contraparte ganha major significado — Miinch-Kamm cit., § 242, n.° 335 (155-156).

(603)Entre as excepcaes, apontam-se os direitos quo prescrevem em perfodos curtos por, no prazo de prescriglo, ser sempre de contar corn o seu exercicio — LARENZ, SchuldR/ATI 3 cit., 124 — os direitos legalmente exdufdos da suppressio — na RFA, os direitos emergentes de contratos colectivos de trabalho, cf. supra, 805381 — certos direitos existenciais dos trabalhadores, como o direito ao salirio — Rons/Miinch-Komm cit., § 242, n.° 365 (162). Outros direitos eventualmente nessa situacio e as discussoes travadas em casos duvidosos nas doutrina e jurisprudencia alemas podem ser confrontados em STAthansicss/SoisinaT, BGB 12

cit., .§ 242, n.° 482 (163-164). (604) SrAtnamcss/Sassunr, BGB 12 cit., § 242, n.° 487-503 (167-170). (605) No BGB pode falar-se em lapso de tempo flexivel 3 imagem do § 121/1; est a

disposicio manda que a impugnacio de um negOcio celebrado corn erro ou na base de comunicacio inexacta, tenha lugar, desde que haja conhecimento do vfcio, sem den l°ra

culpavel. Nio fixa, pois, urn prazo rigido para essa impugnacio — SosaGEL/HErsame

§ 30.° A osuppressio# e a osurrectio* - 811

o segundo factor — o dos indicios objectivos de que nao havers mais actuagoes — cuja necessidade 6 muito sublinhada ( 606 ), mas

de contaido pouco explicitado ( 607), pode ter, na sua determinacao,

urn papel fundamental. Outro aspecto do regime da suppressio, focado corn insistencia na doutrina, 6 a desnecessidade de culpa ou de quaisquer outros elementos ditos subjectivos, por parte do

BG1311 cit., § 121, n.° 5 (534), STAUDINGERMILCHER, BGB12 cit., § 121, n.° 4 (290)

e KROGEs-NrELAND/RGRK 12 cit., 121, n.° 6 (206). 0 dado jurisprudencial deixa algumas indicacaes embora, por definicio, nao possam

set precisas. Assim, pretensoes sujeitas ao prazo normal de prescricio — trinta anos no BGB,

5 195 — podem incorrer na suppressio em onze anos, segundo Hof 18-Mar.-1970, WM 1971, 882-884 (882) — caso de uma depositante de determinados tftulos que deixa passar onze anos sobre a 6ltima comunicacio recebida do banco e move uma accio de indemnizacio por eks terem sido remetidos para determinada dependencia; seis anos ou seis anos e tees meses constituem, porem, lapsos de tempo insuficientes, de acordo corn BGH 22-Mai.-1975, BauR 1975, 424-427 (427) a BGH, 22-Nov.-1979, NJW 1980, 880-881 (881), respectivamente — no primeiro caso, o mandante acciona o construtor para a restituicio de certa importbncia por este recebida em excesso; no segundo, o Estado acciona, tambem, urn construtor para restituicao de determinada quantia. As relacoes duradouras caiem em suppressio num ou dois anos, conforme Mannheim, 29-Nov.-1977, MDR. 1968, 417 e Diisseldorf, 18-Mar.-1971, MDR 1971, 1013-1014 (1014) — trata-se de dois casos de locacio; no primeiro silo fora exercida a tempo uma pretensio de elevacio de renda; no segundo, uma pretensio de reembolso de determinadas quantize dispendidas polo locador; em ambos fazem, as sentencas respectivas, apelo, ainda, aos ch. deveres de lealdade. Os neg6cios importantes, relativos, pot exemplo, a imoveis, requereriain mais tempo pars incorrer em suppressio, nas posiceoes respectivas; STAUDINGER/SCHMIDT, BGBI2 cit., § 242, n.° 484 (165-166).

(606) RENEE, Verwirkung und Kriegs- und Nachkriegsverhanisse cit., 405 — nao basta o decurso do tempo, antes sendo de ponderar todo o comportamento do titular; DANzEs-VANarri, Verwirkung cit., 75 — requer a ponderacio dos interesses de ambas as partes; GAMM, Verwirkung

im Urheberrecht cit., 1782 — uma serie de factores, entre os quais a natureza da relacao, fazem variar as condiciks da suppressio; HEINEMANN, Die Verwirkung ale Rechtsvernichtungsgrund

cit., 939 — cf., tamb6m, 941; RABBLING, Neuere Rechtsentwicklung zur Auswirkung ostzonaler

Verfugungen cit., 716 — foca a necessidade de ponderar os interesses em preset:Ka; RossmrstAL, Vorschldge zum Problem der Verwirkung des Klagenreches cit., 584-585 — para a suppressio

tens de haver, sem ela, urns situacio abertamente injusta; WEIMAR, Verjiihrung und Verwirkung

ins Mietrecht cit., 250 — silo basta o decurso do tempo; 6 necessirio quo, do conjunto das circunstlncias presentee, o credor tenha dado ao devedor a impress -ao de que mais

(aria vales o direito. (607) GIUEBELING, Die Verwirkung prozessualer Befugnisse cit., 28, analisa, corn merit°,

o condicionalismo a aditar ao decurso do tempo, para que, de suppressio, seja o caso, em:

a) comportamento exterior: o titular deve comportar-se como se nao tivesse o direito ou 1210 mais quisesse exerce-lo; b) previslo de confianca: a contrapatte confia em que o direito Silo mais sera feito valor; c) desvantagem injusta: o exercicio superveniente do direito acarretaria, pars a outra parte, urns desvantagem infqua.

812 0 exercicio inadmissivel de poskJes juridicas

titular nao-exercente ( 608). A suppressio e prejudicada pela ocorren-cia dos factores voluntirios que interrompem ou suspendem decurso dos prazos de prescricao ou de caducidade, uma vez que eles destroem a figuracao, por parte do interessado, de que o direito nao mais seria exercido (6 p9 ). No que toca ao seu relacionament o corn outros remedios juridicos, a suppressio é, por fim, apontada como saida extraordinziria, insusceptivel de aplicacao sempre que a ordem juri-

(61 0 \ ) dica prescreva qualquer outra solucao Tern, pois, natureza subsidiiria.

75. Complementacio da caducidade e da prescricao ou cons-tituicao de direitos incompativeis?; a IsurrectioD

I. 0 debate em torno da natureza juridica da suppressio, centrado na possibilidade da sua reconducao ao venire contra factum proprium, esmoreceu na doutrina recente (611 ). porem, cedo de mais. Por um lado, nao chegou a ser alcancada uma solucao que, por defi-nitivamente plausivel, desaconselhasse novas investigacaes sobre o terra (612); ) por outro, nunca se retirou, da discussao, pelo seu apro-fundament°, a natureza verdadeira dos valores em jogo.

Numa abordagem superficial, a suppressio nao integra, de facto, o venire contra factum proprium: falta, neste, como elemento consti-tutivo, o factor tempo, enquanto que a pura inactividade no

(608) NARITOMI, Die Vermirkung, 493, foca, ern especial, a desnecessidade de elementos subjectivos — dc dolo, de culpa ou de ma fe; tambim de NARITOMI, Die Verteilung der Beweislast bei der Verwirkung, Nip/ 1959, 1419; ALFE/BGB/RGRK" cit., § 242, n.° 136 (38).

(609) STAUDINCER /SCHMIDT, BGB 12 cit., n.° 498 (170-171). (610) Ji FRIEDRICHS, Geltungsbereich des Verwirkungsrechts, JR 1934, 46-47 (47), havia

afirmado que a suppressio nab operaria nos direitos corn prazos fixados na lei; esta afirmacio so sera de esstender-se exacta nos casos em que, dadas as circunstancias, o prazo deva ser considerado curto; HEYDT, Grenzen der Versvirkung im gewerblichen Rechtschutz and Urheber-recht cit., 184, exdui, no imbito em que escreve, a suppressio, sempre que o violador esteja a obrigado a indemnizacao.

(611) Desconte-se BYDLINSXI, referido irfra, 814618 e J. SCHMIDT, referido infra, 816 ss.; este Ultimo coloca, alias, o problems cm termos diferentes dos da possibilidade, ou tan, de recurso so vcfp.

(612) Os estudos dedicados so problema datani, ainda hoje, praticamente, todos da dicada de trinta. Acresce que o debate processou-se em bases incorrectas: as de saber se a suppressio seria uma proscricao de vcfp ou urn caso de exercfcio inadmissfvel de direitos. Como a primeira e redurfvel ao segundo, a discussio encerrou-se num cfrculo de superffcie.

§ 30.° A 4suppressioh e a 4surrectio* 813

constitui, em termos claros, um factum proprium (613). Subjaz, contudo,

a esta leitura, a ideia de que o titular exercente nao poderia contradi-zer-se por ter ficado vinculado ao fact= proprium. Trata-se, pois, de uma saida negocial nao assumida e, por isso, insuficientemente justificada. 0 aparecimento de orientacoes negociais confessas —

recorde-se o esforco de WIELING em 1976 — e a critica aberta que possibilitam (614

), permitem colocar o problema numa dimensio diferente. Desde o momento em que o venire contra factum proprium

opere nao na base da alegada vinculacao voluntiria ao comportamento initial, mas por forca da situacao de confianca suscitada na contra-

parte (615), que o Direito entenda dever proteger, desaparece a necessi-

dade de, no factum proprium, ler urn comportamento prOprio do titu-

lar exercente. Factum proprium pode, afinal, ser qualquer eventualidade que, constituindo a base da imputacao, a uma pessoa, de certas conse-quencias, the seja prOpria. A nao actuacao de urn direito subjec-

tivo é, pois, facto prOprio do seu titular. A realidade social da suppressio, que o Direito procura orientar, esti na ruptura das expectativas de continuidade da auto-apresentacao

(616 ) praticada

pela pessoa que, tendo criado, no espaco juridico, uma imagem de nao-exercicio, rompe, de sail°, o estado gerado. E precisamente o que se viu ocorrer no venire contra factum proprium (617 ). Norteada

a questao nestes termos, o tempo, requerido pelo funcionar da suppressio, ganha uma inclinacao diferente. Em qualquer manifestacao

de venire contra factual proprium existe, por minimo que seja, urn lapso entre os dois comportamentos do sujeito. Na suppressio,

porem; o tempo tern uma segunda projeccao, do maior relevo: apenas pela sua continuidade pode, o nao exercicio, suscitar as

expectativas sociais de que essa auto-representacio se mantem. 0 que é dizer: o decurso do tempo e a expressao da inactividade traduzindo, como tal, o factum proprium.

(613) Cf. BENDER e SIEBERT Cit. supra, 809599 e 809595 .

(614) Supra, 761 ss..

(615) Supra, 753 ss. e 769.

(616) AK/BGB/TEusNER cit., § 242, n.° 33 (51); KoNDGEN, Selbstbindung ohne Vertrag

iZur Haftung aus geschaftsbezogenen Handein (1981), 170, chama, contudo, a atencio para o

facto de que a suppressio, gerando uma autorepresentacio corn base numai abstencio,

levantar dificuldades como atipo de autovinculacioi). Neste ponto, KoNDGEN parece, pois

aproximar-se de safdas negociais.

(617) Cf. supra 750-751 e, em especial, N. LIJIIMANN.

63

814 0 exercicio inadmissivel de posicoes juridicas

A suppressio pode, pois, considerar-se uma forma de proscrever os comportamentos contraditOrios.

A possibilidade de interprerar a suppressio como hip6tese de inadmis-sibilidade de vcfp foi criticada por Bvrartysiu, em termos diversos dos classicos. B. poe, como hipotese, o acentuar do exercicio retardado com o fulcro da contradicao, base de um vcfp. Ora, explica ele, enquant

o o direito exista, pode ser exercido, seja qual for a orientacao perfilhada quanto a essencia do fenomeno jussubjectivo — e que limita, alias, a sua concepclo como poder ou como interesse juridicamente tutelado (618).

Perante este raciocinio, pareceria, pois, que para B., a suppressio nao seria urn vcfp porque, quando se intentasse urn exercicio tardio, ja nao haveria direito e, quando o direito tivesse desaparecido, ainda nao teria havido contradicao de comportamentos; a (mica atitude assumida pel o

titular seria, Zuni, a inaccao. B. turva, porem, esta via possivel de complementacao do seu prOprio pensamento afirmando que «a tinica possibilidade, logicamente viavel, de formula ao da problematica do abuso do direito a de que se trata, nele, da descoberta de limites do direito subjectivo e nao da proibicao de exercicio de urn direito ate entao existente...* (619). Estes raciocinios devem ser repelidos, nao tanto pelos efeitos que acarretam em relacao a suppressio — o primeiro, sobre-tudo, faz salientar aspectos interessantes do seu funcionamento, embora nao permita conclusoes de essencia — mas por implicarem uma metodologia conceptualistico-dedutivista, inaplicavel a boa fe. 0 vcfp nao traduz uma contradicao entre comportamentos licitos, ainda que, porventura, o seja: a contradicao 6 infra-juridica e ocorre entre dois comportamentos tomados, inicialmente, como puros factos nao juridicos. Havendo proibicao de vcfp, a contradicao estabelece-se entre o factum propriwn — licito — e a tentativa — ilicita — de o desfazer. A ilicitude-contra-dicao pode consistir na tentativa de exercicio de um direito que ja nao exista: ilicitude porque nao ha , afmal, direito, e contradicao porque essa nao existencia se prende corn urn nao-exercicio anterior. No se deve, por outro lado, afiimar que o abuso do direito s6 pode admitir limitacoes nao aparentes a urn exercicio e, nao, o nao-exercicio, sob pena de nao haver direito: a limitacao pode consistir na possibilidade de extincio ou, se se quiser, o eabuso* pode traduzir uma forma nao aparente de extincao.

II. 0 poder considerar-se a suppressio como uma forma de evitar certos venire contra facta propria nao deve, automaticamente, enten- der-se como fatalidade de tal qualificacao exclusiva. Recorde-se

(618) BYDLINSKI, Privatautonomie and objektive Grundlagen des verpflichtenden Rethtsge-schaftes (1967), 186.

(619) BYDL1NSKI, Privatautonomie cit., 187.

§ 30.° A “uppressio e a 4surrectio»

que os comportamentos contraditorios integram um tipo muito

ectenso — e logo com pouco contetido — de actuacoes abusivas.

A possibilidade de determinar, na suppressio, um tipo regulativo mais cornpreenswo — corn mats caracteristicas —e logo de major precisio, nab deve ser esbanjada.

A discussao circular sobre a reconducao da suppressio aos

comportamentos contraditOrios ou ao exercicio inadmissivel de direi-tos encobre uma outra: a de saber se a suppressio veda, como escopo, o comportamento do titular exercente ou se, pelo contrario, protege, como fim, a situacao da contraparte. Nao se responda que a primeira hip6tese encobre a segunda e vice-versa: nao existe, entre ambas, uma relacao nem de equivalencia, nem de correspondencia autornatica. Conforme se encare uma ou outra das dual possibilidades, assim

os pressupostos sac, diferentes, os regimes, diversos, e os efeitos, dis-tintos. Acresce que, ainda quando uma envolva a outra, cada uma 6 atingida em medida diferente consoante esteja directamente na alcada do direito ou, apenas, por via reflexa. Assim, se na suppressio

pretende evitar-se a ruptura representada pela quebra stibita de um nao-exercicio estivel, o Direito ocupar-se-a do comportamento do exercente, dos seus condicionalismos subjectivos e objectivos e da necessidade de o nivelar perante regras de justica generalizante; o decurso do tempo ganha importancia primordial e tende a ser igualizado. Ha uma complementacao das regras prOprias da pres-erica° e da caducidade o que, naturalmente, beneficia outras pessoas. Se, pelo contrario, a suppressio visa proteger a situacao da contraparte — a sua confianca — havera que atentar no condicionalismo interno e externo que a rodeie: a sua boa fe subjectiva, ou seja, o conhe-cimento que tenha do direito da contraparte, a impressividade da aparencia que a iluda e as dimensoes alcancadas pelo seu inves-timento de confianca; o decurso do tempo esbate-se e torna-se requi-suoirregular, perante o objectivo de o adaptar as exigencias de uma justica individualizadora. Ha a constituicao de posicoes juridicas acti-vas da contraparte beneficiiria que acarretam, por incompatibilidade, caso e na medida em que esta se de, o prejudicar da situacao do titular exercente (629.

1620% Trata-se de uma forma de extincio dos direitos e outras situacoes subjectivas, nao expressamente tratada na lei, mas por ela pressuposta, e a que se pode chamar de extincio por constituicao de direito incompativel. Pense-se, por exemplo, nas situavies dos titulares de direitos sobre coisas em que outrem, por usucapiio ou pot acessio, constituiu direitos de proprie-

dade novos. Cf. MENEZES CORDELRO, D. Reais cit., 2, 787.

815

816 0 exercicio inadmissivel de posicks juridicas

III. A ordenacao da suppressio como dispositivo destinad o a complementar as regulacoes legais sobre a influencia do tempo nas relacOes juridicas foi preconizada por JURGEN SCHMIDT, dentro da reformulacao geral da boa fe, por ele proposta, em 1981 (621).

Na base do problema esta a possibilidade de discrepancia entre o sentido social de uma regulacao juridica e a efectividade social. A prolongar-se, o Direito esforca-se por eliminar a discrepincia, seja adequando as relacOes facticas a regulacao juridica, seja aceitand o

o influxo da efectividade social sobre as normas juridicas, adaptando estas em funcao daquela. Esta Iiltima via a servida pela prescricao e,

ainda, por outros institutos, como sejam certos prazos legais e a usucapiao (622) . 0 conjunto das regras destinadas a adequar o direito

efectividade social nao 6 harmonica a face do BGB.

Assim 6. A prescricao reporta-se, apenas, a direitos subjectivos que integrem a ideia de pretensao, corn exclusao, p. ex., da propriedade, de direitos imateriais e de direitos potestativos; so pode ser feita valer como excepcio e tern urn prazo rigido. As regras de preclusio dos §§ 121 e 124 — trata-se do exercicio da faculdade de impugnar certos negOcios — atinge, tao s6, certos direitos potestativos. A usucapiao 6 privativa da propriedade (623).

da Para JURGEN SCHMIDT, as regras codificadas quanto ao influxo

efectividade sobre a regulacao juridica constituem, ate pela sua diversidade, leges speciales. Sobre elas, como complementacao do Direito legislado, ergue-se a lex generalis, susceptivel de revestir dois aspectos: ora faz desaparecer urn direito que nao corresponda efectividade social — 6 a suppressio — ora faz surgir um direito Rao existente antes, juridicamente, mas que, na efectividade social, era tido como presente — 6 a surrectio.

(621) STAUDINGER/SCHMIDT, BGB12, § 242, n.° 463 ss. (158 ss.). J. Sof. equaciona, porem, o problema em termos antiteticos, como figura no texto: para ele, o surgimento de direitos e, ainda, complementacio das regras que tratam a repercussio do tempo nas situacoes juridicas. KoNDGEN, Selbstbindung ohne Vertrag cit., 171, atribui antecedentes, nessa linha, a BYDLINSKI e a SOERGEL/SIEBERT.

(622) K. SPIRO, Die Begrenzung privater Rechte durch Verjahrungs- Verwirkungs- and Fatalfristen (1975) — apud rec. favorivel de W. HABSCHEID, AcP 178 (1978), 334-336 —atribui a prescricao simplesmente duas fungi:3es: a de proteger o devedor e a de estimular o credor. Dada a sua extensio, elas tocam, no entanto, o essential do problerna.

(623) STAUDINGER/SCHMIDT, BGB 12 Cit., § 242, n.° 464-467 (159).

§ 30.° A «suppressio* e a «surrectio* 817

Por surrectio pretende exprimir-se a ideia comportada pelo termo alma() Erwirkung. A Erwirkung é, ela prOpria, urn neologismo proposto

por CANARIS, em 1971 (624\ , ) com sucesso crescents ; foi, p. ex., adoptado

por LARENZ, a partir da decima segunda edicao do seu Schu/dR (625)

e, com grande desenvolvimento, por JURGEN SCHMIDT, na decima segunda

edicao do comentario de STAuturiGER ( 626).

Finalmente, as prOprias leges speciales sao susceptiveis de comple-mentacao pela boa fe: sao as inalegabilidades da prescricao ou do decurso de certos prazos, por inadmissibilidade do seu exercicio ( 621 ).

IV. 0 quadro preconizado por JURGEN SCHMIDT consegue uma panoramica integrada de aspectos antes obscuros. Ele prOprio carreia, porem, elementos importantes para a sua superacao. Vai defender-se, aqui, que tal quadro nao exprime a essencia da repercussao do tempo nas situacZies juridicas, que ele corresponde mal ao dado juridico alemao e que trio se adapta nada ao portugues.

Sendo ponto de partida, para o debate, a possibilidade de discrepancia entre o sentido social das normas e a efectividade dos factos, nao a exacto que do Direito promane, como lex generalis,

o fazer corresponder o primeiro a segunda. Pelo contrario: o Direito tem vocacao real para interferir no dado sociolOgico, alterando-o. A discrepancia entre uma efectividade social e a regulacao juridica correspondente resolve-se, em condicoes normais, a favor da segunda. E esta — e nao a inversa — a lex generalis. Quando o Direito entenda dar a primazia a efectividade social ha, pois, lex specialis. Nao deve, dal recorrer-se ao conceptualismo facil de afirmar que, na falta de regu-lacao especial, cai-se na geral, o que acarretaria, desde logo, a impos-sibilidade de quaisquer complementac -oes e, ao arrepio de meio sect& de aperfeicoamento juscientifico, a inviabilidade da suppressio. Nao

pode, porem, escamotear-se uma inter -10o normativa prima de manter, uma vez concedido, o direito subjectivo: a permissao juridica que o consubstancia, porque permissio, nao implica exercicio necessario e, porque juridica, nao tolera interferencias exteriores que, do per-

(624) CANARIS, Vertrauenshaftung cit., 372. Como se le al, SIEBERT ja houvera, inciden-

talmente, utilizado o termo; foi, porem, C. quern the deu urn sentido cientifico preciso.

(625) LARENZ, SChti/dR/AP 2 (1979), § 10.

(626) STAUDINGER/SCRMIDT, BGB12 Cit., § 242, n.° 514 ss. (176 ss.).

(627) SOERGEL/SIEBERT/KNOPP, BGB1° cit., Cit., § 242, n.° 268 ss. e 275 ss. (78 ss. e

80 ss.); cf HAUEISEN, Unzulassige Rechtsausiibung and Offentlich-rechtliche Attsschlussjiisten cit., 729.

818 0 exercicio inadmissivel do. posicoes juridicas

mitido, facam proibido. To pouco deve ignorar-se a condenaoo natural em que incorre o comportamento nao permitido : a sua

manutencao no tempo apenas reforca a determinacao normativa de o proscrever, associando-lhe consequencias gravosas crescentes Da eficicia destas proposiceies depende a possibilidade de intervencao* do Direito na sociedade, o que a dizer, depende o prop • opno Direito. SO principios contraditorios ou diversos, dotados de potencialidades normativas muito intensas podem, aqui e ali, quebrar essa lOgica. Duas consequencias, pois: a pura efectividade social, quando dela nao se desprenda uma normatividade, nao vai, a titul o

de complementacao ou outro, mudar, a seu favor, a regulaclo juridica alcancada, correctamente, pela interpretacao; o influxo da efectividade social sobre o juridico, quando ocorra, a lex specialis, com o sentido axiolOgico-material, mais do que conceptual, que esse qualificativo implica. Esse sentido e o da repercussao do tempo nas situacoes juridicas.

0 dado juridico alemao sobre a suppressio presta-se a equivocos. Hi que eviti-los, o que nao foi conseguido por JURGEN SCHMIDT. 0 desenvolvimento, em extensao, da suppressio, que a levaria, de contrapeso equitativo para urn direito de revalorizacao monetiria conseguido contra legem, a forma de extincao possivel em todos os direitos di, desta, uma ideia de generalidade. Mas essa ideia a super-ficial. Defender, da generalidade, a possibilidade de uma aplicacao a urn grande mimero de situacoes é ter, do fenomeno, uma represen-

(628N . ) tacao quantitativa A generalidade de um regime implica a qualidade que tenham os valores, por ele propugnados, de, por si, estarem presentes, repetidamente, sempre que valores de outra ordem e, no concreto, mais intensos, nao os afastem. A jurisprudencia da suppressio fez, da mesma, uma aplicacao parcimoniosa. Os valores que ela comporta — e que se discute quais sejam — nao estao pre-sentes, em primeira linha, na generalidade das situacoes juridicas. Pelo contrario: eles surgem apenas em condicoes especiais afastando entao, esses sim, valores genericos evidentes ligados a observancia dos direitos devidamente constituidos e a inexistencia de direitos quando faltem as previseies de constituicoes normais. A suppressio

tida, na jurisprudencia e, tambem, na doutrina, como um remedio

(628) E mesmo nesta perspectiva quantitativa, a generalidade levantaria chividas; dc facto, a suppressio surge, na pratica, predozninantemente, em certas areas ji referenciadas; cf...supra, 804-805.

§ 30.° A «suppressi• e a «surrectio* 819

extraordinirio e, nessa medida, excepcional. Outrotanto sucede

com a surrectio (629 ). A adaptacao do esquema de JURGEN SCHMIDT ao direito portugues

nao seria possivel. 0 COdigo civil, mais perfeito, neste campo,

do que o BGB, estabelece urn sistema harmonioso de repercussao do tempo nas situacoes juridicas. Assim, em vez de limitar a prescricao

pretensoes — § 194 BGB — estende-a, como regra, a todos os direitos, corn inclusao, pois, dos potestativos e dos imateriais; apenas os direitos indisponiveis ou as excepceies legais se desviam dessa regra — art. 29841. A caducidade corresponde ao instituir de prazos especiais — art. 298.0/2 — e tern um regime diferente do da prescricao —.arts. 328.° ss. e 300.° ss., respectivamente. Das excepceies regra da prescricao, a mais notivel e a dos direitos reais de gozo; a lei sujeita-os, no entanto, genericamente, ao nao uso o qual segue as regras da caducidade — 298.. /3 (630) . que dizer: o Direito q portugues codificou a influencia do tempo nas situacoes juridicas em termos conclusivos; todos os direitos subjectivos esti° sujeitos ao tempo, de acordo com regras precisas (631 ). Nao se poe, por isso, como tal, urn problema geral de complementacao das regras que, atraves da repercussao do tempo nas situacoes juridicas, visem adequar a regulacao normativa as realidades ficticas; qualquer complementacao teria de ser pontual. Acontece, porem, que o regime firmado pelo legislador portugues quanto a prescricao, a caducidade e ao nao uso e pleno, no sentido, acima firmado, de nao comportar reducoes teleologicas (632). Ou seja: ao dimanar as normas respectivas, foi escopo patente do codigo o nivelar, em torno de regras uniformes, a penalizaca'o pelo nao exercicio e nao o permitir, no caso concreto, uma busca individualizadora de justica (633). A natureza extensiva do regime, corn reserva de lei para os casos que requeiram tra-

(629) P. ex., LARENZ, SchuldR I AT" cit., 132.

(630) MENEZES CORDEIRO, D. Reais cit., 2, 790 e 793, quanto a interpretacio desse pre-

ceito, no sentido apontado no texto.

(631) Corn inclusio do proprio direito de propriedade, contraditando a sua por vezes

alegada perpetuidade como caracteristica essential; MENEZES CORDEIRO, D. Reais cit., 2, 896-897.

(632) Supra, 791. (633) As justificacUs classicas da prescricao — p. ex., DIAs MARQUES, Prescript& exalt-

tiva (1952), 11 ss. e SPIRO Cit., supra, 816622 — tern a ver com escopos de politica legislativa

que, historicamente, levaram a consagracio do instituto e nao corn o fim objectivo e actual que ressalta da lei; ou melhor: as justifica:c0es classicas em causa fa° prosseguidas, em primeira linha,

atraves da uniformizacio apontada no texto.

30.° A «suppressio* e a «surrectio* 821

tamento diferenciado — art. 298.0/1 — atestam-no e a natur eza injuntiva da prescrica'o — art. 300.. e 302.0/1 — confirma-o. Na-0 ha pois lugar, no Direito portugues, para complementaciies directas,

ainda que pontuais, a repercussao do tempo nas situacties juridical, tal qual emerge da regulacao civil (634).

A isso acresce que a boa fe, vocacionada para intervir n as situacoes de relacao (635 ), nao se liga, directamente, a problernatica

do tempo nas situagoes juridicas: esta é entendida de modo absoluti-zado, isolada, so reflexamente atingindo as contrapartes.

V. Cabe, pois, examinar a segunda via: a de, na suppressio, se pretender apenas proteger a situacio da contraparte. Urn aspecto sintornitico, que nao tern sido sublinhado, prende-se corn a irregu-laridade dos lapsos de tempo requeridos pela jurisprudencia para a sua verificacao (636 ). Procurasse a suppressio penalizar o nao exercicio, num esforco para defesa da justica generalizante, e a tendencia seria para a uniformidade: o nao exercicio seria urn desvalor em si mesmo e todos os nao-exercicios se assemelham. Pelo contrario, a irregularidade dos 4prazop indicia uma justica individualizadora que, do nao-exercicio, retem a projeccao na contraparte. As circunstancias determinantes do tempo requerido prendem-se, pois, corn o bene-ficiario da suppressio. Elas devem inforrnar uma situacao tal que o exercicio retardado do direito surja, para a contraparte, como injus-tica, seja, em sentido distributivo, por the infringir uma desvantagem desconexa na panoramica geral do espaco juridico, seja, em sentido comutativo, por the acarretar um prejulzo nao proportional ao bene-ficio arrecadado pelo exercente, tendo em conta a distribuicao normal a operar pelo direito implicado. A chave da suppressio esta, pois, na alteracao registada na esfera da contraparte, perante o nao-exercloo. Protege-se a confianca desta, em que nao havers mais exerciaos; a bitola pode ser procurada no sentido que o destinatirio normal daria ao nao exercicio — art. 236.0/1.

(634) No Direito alem3o seria provavelmente possivel, atraves de uma interpretacio adequada das normas fragmentarias que integram o BGB, chegar a conclusoes semelhautesi o problema raiz) tem ocupado a doutrina germinica, mas nao tem de ser aqui reso1vid°-

(639 Cl. supra, 760. (636) Cl. supra, 811605.

Chega-se, assim, por uma via independente, a conclusoes para-

Was as alcancadas no estudo do venire contra factum proprium (637 ).

Nao apenas coincidencia.

VI. Estabelecida a vantagem metodolOgica em considerar a

suppressio pelo prisma do seu beneficiario ha que, nessa linha, deter-

minar-lhe os efeitos.

A doutrina alema nao tern dado este passo por razoes que se prendem, provavelmente, corn uma tradicao juscultural ligada a dece-nios de consagra* jurisprudential da suppressio, que cabe preservar.

Quando trata da surrectio, JURGEN SCHMIDT nao deixa, porem, de apontar como sua manifesta* primeira a vantagem conferida a outra parte pelo funcionamento da suppressio (638). Elsa manifesta*, acrescenta J. ScH., nao a problematica, uma vez que se ampara na pr6pria suppressio,

ji consagrada.

Perante urn fenOmeno de suppressio, o beneficiario pode encon-trar-se numa de duas situaceies: ou, tendo-se livrado de uma adstricao antes existente, recuperou, nessa area, uma permissio generica de actuacao ou, tendo conquistado uma vantagem particular, adquiriu uma permissio especffica de aproveitamento, ou seja, um direito subjectivo. A surrectio tern sido utilizada para a constituicao ex novo

de direitos subjectivos (639). Fale-se, ai, de surrectio em sentido prOprio ou estrito. Nao deve, no entanto, operar-se uma autonomizacao em profundidade da surrectio estrita, uma vez que a primeira possibi-lidade do beneficiario, portanto a mera recuperacao duma liberdade de movimentos, antes perdida, — chame-se-lhes a liberacao — the esta prOxima (640). Englobando esta Ultima pode, pois, falar-se de uma surrectio ampla.

VII. Equacionando os requisitos da surrectio, JURGEN SCHMIDT

remete, praticamente, para a suppressio (641 ): exige-se urn certo lapso

(637) Cf. supra, 752. (638) STAUDINGER/SCHMIDT, BGB" cit., § 242, n.° 514 (176).

(639)E a posh* patente em CANARIS, Vertraueruhafiutig cit., 372 e LARENZ, SchuldR I AT' 3

t•, 132. Esses AA. nao defendem, contudo, expressamente, que a surrectio so possa

Implicar direitos; repare-se que a comum, em Direito, falar-se em direitos subjectivos pars

designar genericamente, situacifies vantajosas para as pessoas. (640) J . SCHMIDT, ob. e loc. cit. supra, 821635 .

(641) STAUDINGER /SCHMIDT, BGB' 2 Cit., § 242, n.° 517-520 (177).

820 0 exercicio 4nadmissivel de posic3es jurldicas

822 0 exercicio inadmisstvel de posioies juridicas

de tempo, por excelencia variivel, durante o qual se actua uma situacao juridica em tudo semelhante ao direito subjectivo que vai surgir; requer-se uma conjuncao objectiva de factores que concitern, em nome do Direito, a constituicao do novo direito; impoe-se

a ausencia de previsoes negativas que impecam a surrectio. Mais preciso, CANARIS aponta (642): a presenca de uma previsao de confianca,

a imputacao da situacao a criar — uma vez que a surrectio de uni direito vai sempre atingir as situacoes pre-existentes —ao prejudicado,

a titulo de culpa ou de risco, a boa fe subjectiva do beneficiirio, no sentido de este ter, pelo menos como provivel, a regularidad

e da situacao fictica subjacente e ausencia de quaisquer outras soluciies impostas pelo Direito, como sejam obrigacoes de indemnizar ou de restituir enriquecimentos. Tal como a propOsito das previsoes de confianca, patentes no fenomeno do venire contra factutn proprium, ester factores nao sac), em absoluto, necessirios; o seu funcionamento processa-se dentro das regras, ji definidas, da sistemitica move! ( 643).

Como exemplos jurisprudenciais de surrectio em sentido estrito tem sido apresentadas algumas decisoes judiciais que nem sempre surtem, corn grande evidencia, o efeito pretendido. Refiram-se, no entanto, as mais claras.

Em BGH 17-Jan.-1966 discutia-se a situacao criada por, numa sociedade, durante mais de vinte anos se ter, corn o acordo unanime de todos os socios, procedido a uma distribuicio de lucros no correspon-dente ao pacto social. Este so poderia ser alterado corn certas formali-dades, o que nunca foi feito. 0 BGH, atentas as circunstancias, entendeu que a distribuicao nao official deveria ser mantida para o futuro (644).

Em BayObLG 16-Jun.-1971 tratou-se o problema posto pelo use de titulo nobiliirquico, ao abrigo do Direito antigo, aplicavel ao caso, mas corn presenca concomitante de principios actuais. Uma familia bavara acabara por se transferir para a Rtissia; os seus descendentes vieram, muito mais tarde, requerer o titulo (duque de Leuchtenberg), em termos contestados. 0 BayObLG decidiu que, no havendo, nos interessados, qualquer ligacao a Baviera, nao surgira qualquer confianca digna de pro teccao

(642) CANAIUS, Vertrauenshaftung cit., 372-373. LARENZ, por seu turno, que too, alias, uma remissio generica para CANARIS, refere, em especial, a necessidade de condicoes muito ponderosas para que possa haver surrectio — SchuldRIAP 3 cit., 132.

(643) Supra, 759. (644) BGH 17-Jan.-1966, WM 1966, 159-160. (645) BayObLG 16-Jun.-1971. BayObLGZ 21 (1971), 204-217 (205-206 e 216).

30.° A 4suppressio* e a .surrectio 823

Em BGH 2Q-Dez.-1971 decidiu-se a questa() levantada pela pessoa que, tendo construido uma casa corn urn emprestimo ao abrigo de

regulamentacao que s6 o autorizava para venda como habitagio prOpria, o arrendara corn obrigagao de venda, ao locatario. Mais tarde, a regula-mentacio a alterada, desaparecendo essa exigencia. Nao obstante, o BGH entendeu que, por exigencia da boa fe, a transferencia devia ter lugar ( 646).

A aplicacao dos requisitos, deslindados para a surrectio estrita, a

surreal° ampla, o que d dizer, a suppressio, tornam-na bastante mais

clara e consistente: a suppressio desenha-se como uma consequencia

da formacio, por surrectio ampla, de situacao incompativel com a atingida; por outro lado, apaga-se, em definitivo, o tempo, como

requisito autOnomo (647 ).

76. Reformulacao; o problema a face do codigo civil; o acOr-dao do STJ, de 26 de Marco de 1980

I. 0 desenvolvimento anterior permite afirmar a necessidade de uma reformulacao global da suppressio, em termos de conclusio. Embora indirectamente, CANARIS e JURGEN SCHMIDT deram ele-mentos que, sendo aproveitados, facilitam essa tarefa. 0 primeiro apresenta o conceito de surrectio e afina-lhe os requisitos. 0 segundo

tenta defender a suppressio e a surrectio como complementacOes

ao que, por comodidade de expressao, se tern chamado de repercussao do tempo nas situaciies juridicas. 0 caminho iniciado por CANARIS pode desenvolver-se da forma seguinte: na suppressio, no esti em jogo

a extincao gratuita do direito do titular nao-exercente, mas antes o beneficio reconhecido a contraparte; apura-se, assim, a ideia de surrectio ampla a qual se aplicam os factores isolados por CANARIS, na Optica da sistemitica move!. A via trilhada por JURGEN SCHMIDT explora-se pela negativa: chamando a atencao para as normas que

(646) BGH 20-Dez.-1971, NJW 1972, 536-537. Em decisoes antcriores como, por ex.,

RAG 12-Dez.-1934, ARS 23 (1935), 37-43, an. favorivel de HUECK, 10C. cit., 42-43 z RAG

27-Jun.-1944, ARS 47 (1944), 221-224 — onde, respectivamente, se ncgou urn direito osurgidc, ,,

a uma reforma por pane de trabalhador despedido ao fim de trinta e dois anos de servico, alegado corn base em convencio ticita e urn direito a provisoes entregues a urn representante--viajante — esti menos clara a ideia de surgimento possivel corn base na boa fe.

(6 9 JURGEN SCHMIDT mantem-no, como se viu. Hi, no entanto, que ter em conta o

facto de esse A. pretender imputar a suppressio e a surrectio a necessidade de complementar as

normas references 1 prescricio e 3 caducidade.

(645) .

824 0 exercicio inadmissivel de posiroes juridicas

regulain o tempo nas situacoes juridicas, ScHmarr permite constatar, afinal, a natureza plena das mesmas; estas tornam-se, deste modo, insusceptiveis de reducao teleolOgica e, por isso, de complementaca o . 0 fenOmeno da suppressio, traduzido no desapareciment o de posicoes juridicas que, nao sendo exercidas, em certas condigoe s, durante determinado lapso de tempo, nao mais podem se-lo, sob pena de contrariar a boa fe, corresponde a uma forma invertida de apresentar a realidade. A suppressio é, apenas, o subproduto da for-maclo, na esfera do beneficiario, seja de um espaco de liberdade onde antes havia adstricao, seja de urn direito incompativel corn o do titular preterido, seja, finalmente, de urn direito que vai adstringir outra pessoa por, a esse mesmo beneficiario, se ter permitido actuar deste modo, em circunstancias tais que a cessacao superveniente da vantagem atentaria contra ab oa fe. 0 verdadeiro fenOmeno em jogo

o da surrectio, entendida em sentido amplo. E nesta que devem ser procurados requisitos. Estes, ainda que aproveitando as investigagoes de CANARIS, devem ser ampliados de modo a adaptarem-se extensao verdadeira do problema englobando, pois, quer a surrectio propriamente dita, quer a liberacao. Assim, o beneficiario tern de integrar uma previsao de confianca, ou seja, deve encontrar-se numa conjuntura tal que, objectivamente, urn sujeito normal acreditaria quer no nao exercicio superveniente do direito da contraparte, quer na excelencia do seu prOprio direito. Subjectivamente, ele deve estar de boa fe, no sentido de nao ter consciencia de prejudicar outrem e de ter acatado os deveres de indagacao que, no caso, ocorressem. Esta situacao deve ser imputivel ao prejudicado pela surrectio, seja porque este, em directo, the deu lugar, seja porque ela acompanha, corn concomitancia, outras situacoes relativas ao mesmo prejudicado, em termos tais que fazem surgir a ideia de risco. No concreto, algum ou alguns destes requisitos podem faltar, desde que os restantes assumam uma intensidade tal que supram a sua ausencia: integram urn sistema move]. A surrectio, por fim, nao deve ser afastada por normas especificas ou por outros principios que, pontualmente, se the sobreponham e e supletiva, no sentido de postular a inaplicabilidade, ao caso em causa, de quaisquer outros remedios que satisfacam a necessidade juridica imperiosa que ele visa contemplar. A base legal da surrectio reside no preceito que mande actuar de boa fe.

§ 30.° A 4suppressio» e a «surrectio» 825

II. Estas conclusOes alicercam-se na jurisprudencia alema e nas

consideracOes que, sobre ela, a doutrina foi tecendo. Serao aplicaveis ao Direito portugues?

0 ambiente juridico-cultural do Direito privado portugues

e favorivel a uma resposta positiva. Recorde-se que o COdigo Civil de 1966 operou, em aspectos fundamentais, uma recepcao de formulas alemas, corn incidencia particular na boa fe; sublinhe-se que, no tocante ao exercicio inadmissivel de direitos, esse fenOmeno foi particularmente claro, embora tenha operado corn a mediacao do COdigo grego; acentue-se, por fim, que uma transposicao de

formulas pressupoe, para ser coerente, a aprendizagem da Ciencia que lhes esteja subjacente, isto é, implica uma verdadeira recepcao. As especificidades do Direito portugues reforcam, ainda, a aplica-bilidade, a sua luz, das concepcoes tecidas em torno da suppressio

e da surrectio. Como foi focado, o Direito portugues firma urn regime de

repercussio do tempo nas situacoes juridicas que, mais claramente ainda do que o alemao (648), veda, por plenitude, a sua complemen-

tacio. A suppressio, como formula da repercussio do tempo, ainda que dificultada pelo aditamento de outros requisitos, nao tem possibili-

dades de singrar.

Importa rejeitar desde ji, embora a questa° tenha de ser retomada em termos genericos, a eventual defesa de uma suppressio baseada na neces-

sidade, posta pelo art. 334.0, de no ultrapassagem, no exercicio dos direi-tos, de forma manifesta, dos limites postos pela fungi() social e econ6- mica dos direitos em causa. 0 raciocinio falacioso seria qualquer coisa como: a ordem juridica, ao conceder, um direito, fá-lo, naturalmente, corn a funcao social e econOrnica de que de seja, de facto, exercido: no o sendo, passa-se o limite posto por essa fungi°, extinguindo-se o direito. Este esquema no procede por tres razoes. Em primeiro lugar,

porque uma extincrao arquitectada nestes termos postula uma efectiva reciticao teleolOgica da regulaclo referente aos efeitos do tempo sobre as as situacoes juridicas; viu-se que isso nao 6 posslvel. Seguidamente, porque a funcao social e econOmica dos direitos — e o que, a essa formula, se abrigue ( 649) — 6, por natureza, igual para todos os direitos da mesma especie. Ora a suppressio varia, no seu funcionamento, consoante as circunstancias de cada caso. Por fun, porque o remedio indicado para o direito, alegadamente no exercido em contradicao

(649) Cf. supra, 819. (649) Infra, n.° 115.

826 0 exercicio inadmissivel de, posiciies juridicas

coin a fling-4'o social ou econornica corn que tivesse sido concedido, seria nao a sua extincao, mas o seu exercicio por terceiro, em nome e p ot conta do titular prevaricador (650).

A surrectio, pelo contrario — e, assim sendo, a suppressio, mas ape.. nas como subproduto e corn urn sentido diferente do habitual

— 6, de forma directa, pressuposta pelo art. 334.°, nalgumas das suas manifestacoes. Quando o art. 334.° considera ilegitimo determinados exercicios postula, automaticamente, a existencia de beneficiario s: todos aqueles que nao devam ser atingidos pelo acto abusivo, por este nao dever ter lugar (651 ). A lei nao distingue o tipo de beneficio positivo implicado na vantagem, formulada pela negativa, como «nao poder ser atingido por actos ditos abusivos*. Por imperativo logic°, no entanto, esse beneficio sera ora a recuperacao de uma liberdade generica de actuacao onde antes faltava, isto 6, onde antes havia adstricao, ora a formacao de uma permissio especifica de apro-veitamento onde antes existia ou, apenas, uma permissao gene-rica (652) ou, ate, uma adstricao. Em regra, estas alteraceies norma-tivas conduzem, tao so, ao ampliar de posicoes jussubjectivas ji pre-sentes na esfera do beneficiario, isto 6, a acrescentos feitos no contetido dos seus direitos e, na Optica do titular exercente, as restricaes correspondentes nos direitos que nao devam ser exercidos de modo abusivo. Quando, porem, o beneficiario incorra numa vantagem especifica e autOnoma, ha, para ele, um direito subjectivo novo: ocorre um fenOmeno de surrectio. Paralelamente, sendo esse direito novo urn direito relativo, adstringe-se a contraparte a urn dever. Da mesma forma, o titular-exercente pode, por forca das regras que vedam o abuso do direito, ver um direito seu de tal forma coarctado pela restricao ou, simplesmente, incompatibilizado corn um novo direito surgido na esfera da contraparte beneficiaria, que caiba falar de uma verdadeira extincao.

0 art. 334.° permite pois que, por forca do abuso do direito, sejam restringidos — ou mesmo se extingam — direitos do titular

(650) MENEZES CORDEIRO, D. Reais cit., 2, 820-822, corn uma enumeracio exemplifica-tiva de outras sanclies possfveis, mas sempre peculiares.

(661) Possibilita-se, assim, tambem uma proteccio refiexa; historicamente, no entanto, o abuso firmou-se, corn nitidez, contra uma pessoa, a favor de outra.

/652, ) A permissio genErica — p. ex., a autonomia privada e a liberdade de actuacao

material — nao di, ao contrario da especffica, lugar a direitos subjectivos em sentido proprio. Cf. MENEZES CORDEIRO, D. Obrigailes cit., 1, n.°' 16-17.

§ 30.° A 4suppressio* e a esurrectio» 827

exercente e, concomitantemente, que sejam ampliados — ou mesmo direitos da contraparte. Ainda por forca do abuso do

sdeirecirtioem — , pode o titular exercente incorrer em vinculacoes, como corres- pectivo do direito surgido na esfera da contraparte.

0 COdigo civil admite, pois, pelo art. 334.°, em mera ponde-

racao dedutiva, a suppressio e a surrectio. 0 que nao admira, tuna vez que esse resultado foi conseguido no Direito alemao, corn apetrechos normativos bem inferiores aos proporcionados pelo

legislador de 1966.

Esta problematica nab se prende com as ch. sancoes pelo abuso do direito. Qualquer sancao postula situagOes materiais previas cuja violacao vise impedir ou remediar. E irnportante sublinhar que, ana-liticamente, o papel do abuso do direito nao se limita, apenas, a urn dever informe de nao abusar ou a urn direito, tambem informe, a que nao se abuse. Recordem-se algumas decisoes celebres relativas ao abuso do direito. A construcio de uma chamine falsa para tirar o dia ao predio vizinho 6 abusiva (653):

o beneficiario ye ampliar o seu direito de propriedade, acrescido da faculdade de beneficiar da luz natural vinda do predio vizinho; a contraparte ye limitar o seu direito de propriedade, nao podendo construir chamines falsas. A proibicao, imposta pelo pai a um filho, de visitar o tfunulo da mae, situado no castelo daquele, 6 abu-siva (654

)::,o filho tern urn direito de visitar o tumulo e o pai o dever de tolerar a intromissao; o nao assumir, por parte do construtor, das medidas necessarias para precaver os interesses comuns dos moradores 6 abusivo (655):

os moradores tem um direito a que tais medidas sejam tomadas e o construtor tern o clever de o fazer.

Esta experiencia na repressao do abuso, que se estende por mais de urn seculo 6, assim entendida, esclarecedora no sentido pratico efectivo propugnado pelo instituto. Nas decisoes respeitantes a suppressio, o vector

positivo, i. é, constitutivo de posicOes juridicas favoriveis novas do abuso do direito fica mais claro ainda: nao sf trata, de modo algum, de penalizar pessoas, numa operacao punitiva estranha, em absoluto, ao espi-rito do Direito civil, mas antes de a:segurar vantagens, tidas por justas; estas poderao, depois, inutilizar posicOes adversas, corn elas incompativeis. Na jurisprudencia directamente ilustrativa da surrectio em sentido res-trito (656

), nota-se a particularidade, quase linguistica, de se abordar decisoriamente o tema pelo prisma do beneficio a atribuir, em vez de

(633) C. Imp. Colmar, 2-Mai.-1855, D 1856, 2, 9-10.

(634) RG 3-Dez.-1909, RGZ 72 (1910), 251-255.

(655) Casslt 15-Nov.-1960, Fl 1961, 1, 256-261.

(656) Recordem-se BGH 17-Jan.-1966, WM 1966, 159-160, BayObLG 16-Jun.-1971, BayObLGZ 21 (1971), 204-217 e BGH 20-Dez.-1971, NJW 1972, 536-537.

828 0 exercicio inadruissivel de poskiks juridicas § 30.° A «suppressio» e a «surrectio* 829

o fazer pela porta das inibicoes corn isso conseguidas. E importante, neste campo como noutros, surpreender, sob os esquemas comunicativos formais, os aspectos materiais em jogo.

III. Resta aclarar, dentro da logica interna do art. 334 . ., como se ordenam a surrectio e a suppressio. A experiencia jurispru-dencial que esta na base dessas figural demonstrou o lidar-se, nelas, corn uma justica individualizadora, que pondera as circunstancias especificas de cada caso concreto, no que tenham de particularizador. Exclui-se assim, que exista aqui uma aplicacio da funcio social ou econOmica que tenha presidido a atribuicao dos direitos envolvidos: este factor, como se frisou, conecta-se corn todos os direitos da mesma especie os quais, tendo fungi() identica, revelam a intencio normativa de uma justica generalizadora (657). To pouco os bons costumes tern utilidade: eles esdo vocacionados para valorar situacoes isoladas, independentemente, pois de relacao (658). Todas as situacoes ditas de suppressio ou de surrectio implicam dois sujeitos relacionados entre si, em termos cujo equilibrio o direito pretende assegurar. Sup-pressio e surrectio operam contra o titular de urn direito por este no dever, no seu exercicio, exceder os limites impostos pela boa fe (659). 0 Codigo exige ainda que o excesso seja manifesto: visa, corn isso, vincar a ji aludida natureza extraordiniria dessas medidas.

IV. Urn caso nitido de surgimento em sentido estrito, tal como foi deslindado por CANARIS, a dado pelo acordao do STJ de 26 de Marco de 1980 (660) . Julgou-se, ai, corn base nos factos que seguem, sintetizados.

A A. a proprietiria de urn predio composto de casa com quatro pavimentos e quintal. 0 R. adquire urn predio vizinho, tambern edi-ficado, e pratica, riele, obras de demolicao. Visava, com isso, construir um novo edificio, recuado de 35 m2, segundo o alinhamento imposto pela Camara Municipal. Os edificios contiguos tinham, na situacao initial, uma parede comum ate ao primeiro andar e, dal para cima, duas paredes justapostas, uma de cada casa. Por forca do recuo requerido na construcao do edificio novo, o edificio da A. ficou corn uma parede exposta ao tempo. Em consequencia da demolicao ocorreram, na casa da A., determinados danos; esses danos foram aumentando, sobretudo por forca de infiltracoes na parede exposta. 0 R., antes da accao, prometera mandar reparar os danos, o que nao fez. No termo destes

(657) Cf. supra, 825. (658) Cf. infra, n.° 113. (659) CI supra, 824. (660) RTJ 114 (1981), 35-40.

factos, a A. teve de executar obras de reparacao e de revestimento, com um dano global de 237 800500, montante da indemnizacio que, judi-

cialmente, vem exigir ao R. Perante estes elementos, o Supremo decidiu a aplicacao do art. 334. °.

As obras de demolicao do R. foram causa efectiva dos danos sentidos pela A.: nao foram levados a cabo corn as precaucoes necessarias.

0 R. ((exerceu o seu direito, movendo-se ao abrigo do disposto no art. 1305.° do COdigo Civil. Excedeu, porem, os direitos. que a lei the facultavas. E o acOrdao cita, a esse proposito, o art. 334.0. Focando o facto de o R. haver prometido reparar os danos, o que nao fez, o acordao considera, no R., urn gcomportamento antijuridico capaz de determinar a obrigacao de indemnizar* (661).

V. Antes de apreciar criticamente esta peca judicial, a todos os titulos notivel e premincio feliz dum activar definitivo das potencialidades contidas no COdigo de 1966, cabe fazer algumas consideracEies sobre tecnica de decisao judicial, nomeadamente quando se trate de concretizar disposiceies altamente genericas, como o art. 334.°, ou os valores ai contidos. Mais importante do que a construclo teOrica — essa vem depois — é a colocacao do problema, i. é, o isolar, numa massa de factos, qual, exactamente aquele — ou aqueles — que carece de uma traducio a nivel juridico. Ha, pois, um pre-entendimento da causa sem o qual nao se pode falar de quaisquer aplicacties (662). Assim, no caso da chamine falsa de Colmar, o tribunal Os o dedo no problema e decidiu bem; mal sabia que estava a fundar a teoria do abuso do direito — cuja expresso demoraria meio seculo a aparecer — e que ainda hoje agita a doutrina. Tambem nas decisoes que fundaram a suppressio (663) e a surrectio (664), nao houve, nas instancias judiciais respectivas, qualquer ideia geral do significado teorico das decisoes tomadas. Mas elan nao foram puramente intuitivas. Do conjunto conhecido da ordem juridica, os juizes isolaram o que.nio se coadunava satisfatoriameate corn os elementos doutrinirios

i i dd iur existentes — evitando, pois, uma decisio errada — e, a face do sistema, édecn bv amitiemasentido material conveniente e logo justificado. 0 consenso

Nao e, pois, de estranhar que o STJ, ao decidir, em 26 de Marco de 1980, nao tenha mencionado a surrectio, neologismo corn que se pretende designar a Erwirkung, cla propria uma expresso nova na doutrina alema, embora corn urn contetido conhecido pela jurisprudencia. 0 essen-tial nao esta nas qualificacoes, que compete a doutrina, paulatinamente, it trabalhando, mas antes na fma percepgao do juridico, adequado ao momento juscultural vivido.

(661) RI.J 114 (1981), 37-39 e 39-40.

(662) Cf. EssER, Vorverstdndnis 2 cit., 137 e H.J. Koos, Zur Rationalitdt richterlichen

Entscheidens cit., 197 ss.. Cf. supra, 37 ss..

(663) Recorde-se ROHG 8-Abr.-1873, ROHGE 9 (1873), 412.

(664) Recorde-se BGH 17-Jan.-1966, WM 1966, 160.

54

830 0 exercicio inadmissivel de poskaes juridicas

A materia de facto sobre que se debruca o acordio cornpreende elementos que permitiriam trilhar uma de tees vias: a responsabilidade deli- tual, o venire contra factuin proprium e a surrectio (665). A responsabilidade delitual resultaria de, na demolicao, o R. ter actuado corn negligencia, pro- vocando, por actuacao directa — trepidacoes, material projectado, p

an, cadas — danos no edificio da A.. Aplicar-se-ia, entao, o art. 483.0/1, por violagao da propriedade. Embora alguns factos constantes do relatorio do ac6rdio deixem antever danos causados desta forma ( 666), des teat) sido consumidos pela situagio de exposicao em que ficou o edificio d

a A.. 0 venire contra factum proprium resulta de o R. ter prometido reparar os danos e de ter faltado. 0 Supremo fez bem em nao deixar de valorar este aspecto que, ainda quando o R. nao estivesse ji em falta, seria bastante para concluir pela violacao da boa 16 preconizada no art. 334. °. Ao prometer essas reparagiSes, o R., para mais nas condicOes em que o fez, criou, na A., a conviccao de que assim seria. Integrou-se, pois, uma previsio de confianca, imputivel ao R., e corn boa 1.6 subjectiva da A., convicta de ser esse o seu direito. Corn base nessa previa:), a A. fez o investimento de confianca requerido por CANARIS e por JURGEN SCHMIDT: nao tomou, ela propria, as medidas imediatas de reparacao, acabando por faze-lo apenas mais tarde, quando os danos eram subs-tancialmente maiores, quer pela progressio das infiltracoes, quer pelo encarecimento dos materiais e da mao de obra. Esta situagao, mesmo na ausencia de uma verdadeira obrigagao contratual que tenha advindo da «promessa* do R., di origem a uma obrigacao legal, fundada positivamente, na boa f6 e corn o conterido do factum proprium, cuja proibicao de contradicao resulta, como se viu, no Direito portugues, do art. 334.° (667). Tambern esta via ficou consumida no conjunto da situa-cao: por urn lado e independentemente do factum proprium, o R. ji estava, como se vai ver, vinculado a determinadas reparacoes, antes de ter feito a «promessan por outro, o factum proprium reportava-se aos danos existentes num momento recuado, altura em que eram apenas uma fraccao do que atingiriam no fim.

Fica, pois, a .hip6tese da surrectio. Repare-se que a essencia do pro-blema reside, nao ern accoes directas do R. contra o edificio da A., mas em de nao ter tornado medidas necessirias para defender esse edificio da situacao de exposicao a que ficou sujeito pela demolicao c, depois, pela construcao recuada: o grosso dos danos parece, afmal, obra das infiltracoes; mas todos des resultam de se ter retirado o edificio contiguo. Tinha a A. urn direito a proteccao que the era assegurada pelo edificio contiguo, em termos tais que, sendo de demolido pelo seu proprietirio, caberia a este tomar medidas que substituissem o amparo

(665) Uma quarta possibilidade, a de terem sido violados deveres de seguranca no trafego. vem suscitada por ANTUNES VARELA, an. a STJ 28-Mar.-1980, RIJ 114 (1981), 40-41 e 72-79 (77). Sera examinada infra, VII ss..

(666) RLJ 114 (1981), 38. (667) Cf. supra, 760.

§ 30.° A «suppressioo e a ourrectio 831

agora desaparecido ? 0 Codigo Civil, nao obstante compreender uma regulacao extensa e aperfeicoada das relacoes de vizinhanca, nao con-

templa, expressamente, esta hip6tese (668)• Ha que ponderar o problema, i face dos principios gerais. Urn edificio contiguo a urn outro traz-lhe desvantagens, mas, tambem, alguns beneficios. Destes avulta uma proteccao, seja pela maior estabilidade do conjunto, seja por deixar

a parede sobreposta ao abrigo do tempo. A vantagem 6, alias, reciproca e comprova-se, no caso do acordlo, pelas desvantagens que, da demolicao, derivaram para o edificio da A.. A partida, nenhum dos vizi-nhos tern direito ao beneficio assim recolhido; a possibilidade de se constituir urn direito desse tipo, corn conteirdo real — o que 6 viivel, na forma da servidao — nao vem considerada nos autos nem pode ser ponderada, por falta de elementos. A permanencia dessa situacao, em termos objectivos de reconhecimento ficil, a de molde a suscitar a confianca, neste caso, da A.. Ela nao tern de se preocupar corn a sua parede justaposta, pois, a do edificio contiguo da-lhe proteccao: e o investimento de confianca. A situacio a imputivel ao R. a dois titulos: o edificio protector era dele e a demolicao foi operada por de. Nestas condigoes, destruir o edificio contiguo sem tomar as precaucoes para proteger a casa vizinha, excede manifestamente os limites impostos pela boa f6: hi, na linguagem do COdigo, abuso do direito. Analiticamente, a boa fe, em conjunto corn os factos acima alinhados, levou a que surgisse, na esfera da A., urn direito a proteccao, a cargo do R., o qual, havendo demolicao, se traduz no dever de tomar as precaucoes necessarias para que, ern consequencia do desaparecer do predio contiguo, ocorram danos no edificio subsistente ( 669) art. 3m. .. . A base legal desta solucao 6 o

VI. 0 acOrdio do STJ de 26-Mar.-1980 foi anotado, na RLJ, por ANTUNES VARELA. A anotagio 6 importante, por dugs raz'Oes: por urn lado, traduz mais urn apoio doutrinirio (670) no sentido da aceitacao, nos creditos, de uma proteccao contra terceiros, o mais nao seja atraves da figura do abuso do direito ( 671); por outro porque, partindo dos arts. 492.° — danos causados por edificios ou outras obras — 493.° — danos causados por coisas, animais ou actividades — 502.° — danos cau-sados por animais — 1347.° — instalacoes prejudiciais e dever de inde-

(668) Art. 1346.° ss.; cf. MENEZES Coananto, D. Reais cit., 1, 590 ss..

(669) Outra leitura possivel seria a de que, em consequencia do facto econtiguidade*,

teriam surgido deveres m6tuos tendentes a evitar que, da supresslo repentina do facto, causada

por ulna pessoa, derivem danos. a doutrina da enormatividade dos factos', cuja ponde-

7acio dogmitica, pela necessidade reconhecida da reducio dos problems, passa pelo sistema.

(67°) Neste momento, e contrastando coin o panorama doutrinario portugues ainda vevido M poucos anos, pode falar-se ji em unanimidade em torno de uma proteccao

alargada dos creditos. t de esperar, tambem, a sensibilizacio da jurisprudlncia para esta

threctiva tiara do Direito vigente. (671) ArrrumEs VARELA, RIJ 114 (1981), 76, 2.' col..

832 0 exerc(cio inadmissivel de posiceies juridicas

mnizar por danos dal emergentes — 1348. °— dever semelhant e por for de escavaciies — 1350.° — ruina de construcao — e 1352.° — obras defer )... sivas das Aguas — o seu Autor vem defender, a face do Direito portuguess urn dever geral de prevencao do perigo, sempre que uma pessoa crie 01; mantenha uma situacao especialmente perigosa (672).

0 dever geral de prevengio do perigo representa uma transposicau feliz da doutrina dos deveres de seguranca no trafego ou, em terminologia mais recente, dos deveres do trafego (673). Essa doutrina tern a sua origem contemporanea (674) no Direito penal, corn base no § 367/12 StGB, segundo o qual 6 punido aquele que, gem estradas, caminhos o u

pracas ptiblicas, em patios, em casas e, em geral, em locais onde circulem pessoas, deixe pocos, caves, fossas, aberturas ou escarpas de tal modo escondidas ou descuidadas que possa, dal, haver perigo para outrem* (675). No Direito civil, a historia actual dos deveres do trafeg o

(672) ANTUNES VARELA, RI-) 114 (1981), 77-79 (79). (673) Portanto, Verkehrspflichten em vez de Verkehrssicherungspflichten; LARENZ, que uti-

lizava a segunda express -ao em SchuldR1BT 11 (1977), § 72, I, d) (541), mudou para a primeira em SchuldR1BT 12 (1981), § 72, I, d) (611) — esta ed. trio estava ainda publicada ao tempo em que ANTUNES VARELA escreveu a anotacao a STJ, 28-Mar.-1981: na base da alteracio esti o estudo decisivo de CHRISTIAN VON BAR, Verkehrspflichten 1 Richterliche Gtfahrsteuerungsgebote im deutsche,: Deliktsrecht (1980), 43 ss., que mostra ser a expressao antiga demasiado restritiva, sendo, ainda, de assinalar outros escritos, como o de HANS-JOACHIM MERTENS, Verkehrspflichten mid Deliktsrecht Gedanken zu einer Dogmatik der Verkehrspftichtverletzung, VersR 1980, 397-408 e o de Eruct STEFFEN, Verkehrspflichten im Spannungsfeld von Bestandssschutz and Handlungsfieiheit, VersR 1980, 409-412; por Ultimo, CANARIS, Schutzgesetze — Verkehrspflichten — Schutzpflichten cit., 77 ss.. Os deveres do trafego ja eram, contudo, mencionados na jurisprudencia, hi muito. Em Portugal, onde nao existe nenhuma tradicio a preservar, 6 de aceitar a terminologia proposta por Arirrums VARELA.

(674) Embora corn antecedentes romanos; cf. C. v. BAR, Verkehrspflichten cit., 6 ss.. (675) V. BAR, Verkehrspflichten cit., 11 ss. A doutrina penal contemporinea trata este .

tema na categoria dos crimes omissivos. Requer-se, no que agora interessa, a eidstencia de norma que mande praticar o acto omitido — JEscHEatiLeipzKomml° (1970), prenot. § 13, n.° 83 (43) e RUDOLPHI/SK/StGB 4 (1982), prenot. § 13, n.° 10 (5) — o que a dizer, de deveres de actuacio concretamente violados. Para que, em geral, se possa considerar a odstencia de determinados deveres de actuacio, sob cominacio penal, a necessiria a presenca de urn fimda-mento juridico especial que implique, para o agente, a imposicao juridica de defender certos bens jurIdicos, i. 6, que de esteja na itsituacao de garantea; este requisito dispensa-se Pars 05 sdelitos omissivos preprios* os quais, postulando disposicoes legais expressas e nao incluindo, na previsao, o resultado, tem cobertura juridico-penal imetliata — JEscHEat/LeipzKomm l°

cit., § 13, n.° 19 (62); cf. idem, prenot. § 13, n.° 84 (45) e RUDOLPHI/SK/StGB 4 cit., prenot. § 13, n.° 8-9 (4-5). De entre virias situacoes de garante possiveis, saliente-se a de proteges bens juridicos alheios de perigos que provenham do imbito pr6prio do agente, ou por de controlado. Distinguem-se, aqui, tres subgrupos: a) a situacao de garante derivada de actuagio previa do agente — p. ex., o condutor que, num acidente, poe em perigo a vida de outrem deve providenciar assistencia adequada; 6) a situacao emergente de fontes de Peril!' sob controle do agente JESCHECK, LeipzKomml° cit., § 13, n.° 35 (69), estabelece,

§ 30.° A gstippressio*- e a tsurrectio* 833

deriva de duas decisoes do Reichsgericht, tomadas no principio do seculo. Na primeira, foi condenado o proprietario de uma arvore podre que caiu num caminho publico, causando danos num edificio do A.; o RG considerou, a esse propOsito, que o § 836 do BGB nao compreende uma , norma singular, mas antes urn principio geral ja conhecido pelos romanos (676). Na segunda, foi condenada uma comuna; tunas escadas ptiblicas nao tinham sido devidamente limpas de neve e de gelo, vindo uma pessoa cair nelas (677).

As linhas de evolucao mais recentes do institute . seguem tres rumos, todos ligados ideia de prevencao do perigo e ao alargamento da proteccio requerida corn esse escopo (678). Passou-se de perigos prOprios de locais ptiblicos, documentados nas decisoes acima referidas, para riscos atinentes a sitios privados, quando seja de prever a intromissao de pessoas no local perigoso (679). Numa segunda linha, estendeu-se a res-ponsabilidade a danos negligentemente causados por terceiros, mas em conexao corn o ambito do garante (680). Finalmente, os deveres de segu-rano chegaram a cobrir perigos provocados pela actuacio dolosa de terceiros sobre a coisa do respondente (681). Os deveres de prevencao do perigo tern extensao consideravel.

a ligacio corn os deveres de seguranca no trafego civis; p. ex., o proprietirio de urn predio arrendado deve cuidar da iluminacao nas escadas, para que ninguern se fira; c) a situacao

originada por relacoes de autoridade — p. ex., o professor deve assegurar a nao pritica de actos criminosos, pelos alunos, durante as aulas. Seguiu-se, aqui, a ordenacio de JESCHECK/ 1LeipzKommlo cit.,§ 13, n.°30-45 (66-72); cf. tambem, Rtroormu /SK/StGB 4 cit., § 13, n.° 24 ss..

Retenha-se, no tocante a situacao de garante por forca de fonte de perigo controlada pelo agente, a necessidade de haver, de facto, perigo em jogo e nao danos corn outra origem qualquer.

(676) RG 30-Out.-1902, RGZ 52 (1903), 373-379 (374 e 379). Quanto a origem

jurisprudential da figura, mas SCM especificar, cf. LOTHAR VOLLMER, Haftusigsbefiviende Uber-

tragung von Verkehrssicherungspflichten, JZ 1977, 371-376 (371).

(677) RG 23-Fev.-1903, RGZ 54 (1903), 53-60 (53 e 58-59).

(678) V. BAR, Verkehrspflichten cit., 46 ss.. Cf., corn linhas diversas, H.-J. MARTENS,

Verkehrspflichten cit., 401 ss.. •

(679) Assign BGH 9-Mar.-1959, VersR 1959, 467-469 (467 e 468), condenou o responsive! por urn predio em mina, junto a via pablica; nao foram tomadas precauceies, de modo que um transeunte, de noise, tendo-o penetrado ligeiramente, caiu num respiradouro.

(680) Foi o caso conhecido de RG 19-Jun.-1914, RGZ 85 (1915), 185-189 (185 e 187--188): o fregues de um cafe jogava as cartas; chegou, depois, urn grupo de joveps que iniciou uma partida de bilhar; a mesa de bilhar estava colocada a pequena distancia das mesas normais; o fregues veio, assim, a apanhar corn urn taco de bilhar na cabeca, ficando permanentemente diminuido; foi condenado o proprietirio do local por nao ter dado, as mesas, uma disposicao de que nao resultasse perigo.

(681) BGH 16-Set.-1975, VersR. 1976, 149-151 (149 e 150); acontecera o seguinte: durante a noite, desconhecidos furtaram uma grelha de quarenta e sete quilos que tapava uma claraboia de urn armazein sobre o qual se podia transitar; de manna cedo, uma senhora cal pela abertura assim exposta, ferindo-se corn gravidade; a entidade proprietiria do armazem

834 0 exercicio inadmissivel de posicoes juridicas

Descritivamente, os deveres de prevencao do perigo compreende ni: a) deveres destinados a possibilitar ao ameacado enfrentar o perigo, como sejam deveres de aviso, de proibicao de acesso ao local perigoso e de

instrucao; b) deveres de actuagao sobre o foco do perigo, tais com o deveres de controlo do perigo — o caso da ruin da construcao deveres

escolha criteriosa de pessoas que lidem corn o perigo e de vigilancia, deveres de organizacao — numa empresa, p. ex., onde haja perigos deveres de formagao e de participacao — o exemplo do tecnico que deve manter os seus conhecimentos actualizados para prevencao do perigo e da pessoa que, no podendo controlar o perigo, deve prevenir entidades competentes deveres de cuidado — p. ex., a cargo do expedidor de arma de cap — e de assistencia — similares, mas reportados a pessoas; p. ex., deve-se evitar incitar a participacao de urn activista, particular-mente excitivel e agressivo, numa manifestagao, quando seja de esperar incidentes ( 682).

No que toca a constituicao destes deveres, pode apontar-se a criacao ou manutencao de urn perigo, a proteccio da confianca — esta tambem

factor de perigos —, a possibilidade de controlar o perigo e a ponderaclo das utilidades ligadas a fonte do perigo ( 683). Do jogo destes factores retira-se, sem dificuldade, a pessoa a cargo da qual se formam os deveres em causa.

Sublinhe-se, por fim, a nivel geral, que os deveres do trafeg o desenvolveram-se desempenhando tres papeis fundamentais: a constituicao

e desenvolvimento da responsabilidade por omissio, a inclusio da responsabilidade do Estado no ambito civil e a transferencia da 16gica fundamental da responsabilidade pelo risco para a responsabilidade por negligencia, corn o alargamento proporcionado pelo desvalor insito nests Ultima situacao (684) Em qualquer dos casos, o factor essencial desta fenomenologia é, sempre, a situacao de perigo (685).

foi condenada, por violaclo dos deveres do trafego, que exigiriam a tomada de precaucoes para evitar o ocorrido.

(682) Esta enumeracio a retirada de V. BAR, Verkehrspflichten cit., 83-100, que procede a larga ilustracao jurisprudencial. Uma enumeracio alfabetica pode ser confrontada ern PALANDT /THOMAS, BGB42 (1983), § 823, 14 (855 ss.); algumas indicacoes veem-se em DualscHAR/AK/BGB (1979), § 823, n.° 25-29 (931-932) e em LARENZ, SchuldRIET12 cit., 615 ss..

(683) V. BAR, Verkehrspliieliten cit., 112-128. MERIENs/Miinch-Kotnni, § 823 (1980), n.° 185-188 (1202-1204), aponta como previsoes de deveres de prevencSo do perigo, o domInio de um determinado ambito material, a abertura ou organizacio de trafego, a criacao de uma fonte particular de perigo e situacOes particulares ligadas a profisseies ou a funcoes perigosas.

(684) V. BAR, Enuvicklung and rechtsstaatliche Bedeutung der Verkehrs(sicherungs)flichten, JZ 1979, 332-337 (332), retomado por MERTENsIMunch-Komm, § 823 cit., n.° 182 (1201). (683) P. ex., DusiscatR/AK/BGB, § 823 cit., n.° 7 (928), PALANDT/THOMAS, BGB42 cit., § 823, 8 (850), MERTENsIManch-Konon § 823 cit., n.° 183 (1201), LARENZ, SchuldRIBT", p. ex., 612 e v. BAR, Verkehrspflichten cit., p. ex., 113 ss.. Em abono pode, ainda, sitar-se ANTUNES VARELA; basta atinar na expressio, por ele proposta, de odever de prevencao do perigos para designar o fenomeno no espaco juridico portugues.

§ 30.° A «suppressio* e a «surrectio* 835

VII. A recepcao de um dever de prevengio do perigo, elaborado nas condicoes acima esbocadas, merece todo o apoio da doutrina e da jurisprudencia portuguesas. Corresponde, tal como afirma ANTUNES

VARELA, ao sistema geral que se depreende de varias disposicoes do COdigo Civil — mais rico, alias, neste campo do que o BGB — e integra-se no movimento geral da recepclo da doutrina da segunda codificacao, coroado pelo legislador de 1966. Sublinhe-se, porem, uma diferenca entre o sistema portugues e o alemao, a ter em conta na recepcio desta doutrina. No BGB, a consagracao dos «deveres do trafego*, por via jurisprudencial, visou, alem dos objectivos ji apontados, enfrentar dois escolhos tecnicos: a inexistencia de uma clausula geral de responsabilidade civil (686) e a nao consagracao de urn dever generic° de actuacao. No COdigo Civil, o panorama a diferente: o art. 483.°/1 comma a responsabilidade civil a todas as violacoes culposas de direitos; nao é, portanto, necessario, ao contrario do alemao, encontrar deveres especificos de nio o fazer, para conseguir uma aplicacao capaz das regras da responsabilidade. No tocante a consagracao de urn dever generic° de actuagao, o paralelo entre os dois sistemas a mais nitido: o art. 486.°

claro ao requerer, para a responsabilidade por omissao, a violacao de um dever de agir. 0 clever geral de prevencao do perigo, de natureza legal, integra essa necessidade.

A situacao de responsabilidade criada pela violacao do clever de prevencao do perigo distingue-se, dogmaticamente, da imputagao pelo risco porque exige a culpa — ainda que sob a forma de negligencia — ao contrario da segunda; e, a manter-se a distincio entre responsabili-dades obrigacional e delitual (687) ela corresponde a primeira ( 688), uma vez que postula a violacao de deveres especificos — obrigacoes — e no do dever geral de respeito, pressuposto no art. 48341. Quer isto dizer que, perante a violacao desse dever, presume-se a culpa do obrigado, nos termos do art. 79941 o qual, como se sabe, respeita, tambem, as obrigacoes legais. Materialmente, no entanto, a diferenca sensivel entre a imputacao por violacao do dever de prevencao do perigo e pelo risco reside em que, na primeira, ha a situacao de perigo efectivo, enquanto na segunda se trata, so, de risco. Toda a diferenciacao de regimes apontada deriva de uma qualificacao inicial assente neste ponto. 0 elemento perigo deve, pois, ser mantido muito claro. 0 facto de a lei cominar, por certos perigos, a responsabilidade pelo risco — p. ex., 1348.°/2 — traduz apenas, nessas ocasiOes urn concurso de regimes: o imputado deve prevenir o

(686) P. cx., MERTENs/Mancli-Komm, prenot. §§ 823-853, n.° 3 (1109) e BERNHARD

MoSCHEL, Der'Schutzbereieh des. Eigentums nach § 823 I BGB,JuS 1977, 1-6 (1); cf. MENEZES

CORDEIRO, A pds-eficdcia cit., n.° 9 c supra, 636-637. (687) 0 que no deve ser feito a face do Direito portugues, sem prejuizo de se ter em

conta a Unica diferenca de regimes — o onus da prova da culpa — que subsiste, praticamente, dessa antiga distincio — cf. supra, 573 181 e 638.

(688) Este aspecto nio rein silo focado na doutrina alma embora tenha ai uma impor-tancia ainda maior do que na portuguesa.

836 O exercicio inadmissivel de posicaes juddicas

perigo, nos termos conhecidos; se o nao fizer,- corn culpa, responde pelos arts. 483. ° /1 e 486.0; fazendo-o, mas havendo, nao obstante, danos, responde pela disposicao espedfica que determine a imputacio pel o risco.

VIII. Pode aplicar-se o dever geral de prevencio do perigo aos facto r tratados por STJ 26-Mar.-1980? ANTUNES VARELA assim o entende, escrevendo 4uma vez aceite no nosso Direito esse principio geral segundo o qual a pessoa que cria ou mantem uma situacao especial de perigo tem o dever juridico de agir, tomando as providencia s necessarias para prevenir os danos corn ela relacionado — nenhurna censura havera a fazer a decisao do Supremo. A fundamentacao d o

acordao nao estari certa; mas certo estari o resultado final* (689) . Mas nib. A subtileza do ac6rdio — e isso the di todo o interesse

— reside, precisamente, em que os danos nao derivaram do perigo ine-rente a demolicao em si, i. é, embora tenham sido consequencia necessiria da demolicao, surgiram, de imediato, devido a situaclo de exposicao em que ficou o predio da A., e nao pela actuacao directa, sobre o bem da A., dos efeitos conexos a demolicao (690). Deve-se ter ainda presente que, a assim nao ser, a solucao seria ficil e dispensaria, tambem, o recurso ao dever geral de prevenca'o do perigo. A pessoa que realize uma demolicao sem precaucoes, causando, com isso, danos a outrem, responde pelo art. 492.°/1: a norma que penalize os efeitos da ruina de construe-ao por vicio ou defeito de conservacao atinge, por maioria de rail°, a demolicao propositada sem precaucoes (691 ). 0 cerne da ques-tao gira em torno de qualquer perigo — elemento fundamental e imprescindivel, como se viu, dos deveres do trafego, transpostos para a doutrina portuguesa corn o termo, de aplaudir, ddever de prevencio do perigo, — mas antes de saber ate que ponto o titular de uma constru-cab que, pela natureza das coisas, dava apoio a edificio contiguo deve, em caso de demolicao, substituir, de algum modo, o apoio que vai remover. Uma resposta a esta questa° s6 pode ser dada pelo exercicio inadmissivel dos direitos — o abuso do direito — pela boa fe e pelo instituto da surrectio. A chave esta, no Direito portugues, no art. 334...

0 Supremo decidiu bem.

(689) ANTUNES VARELA, Rij 114 (1981), 79, 2.' col.. (690) A subtileza nao escapou, alias, a ANTUNES VARELA, tot. Cit., 75, 1.' col.. Refe-

re-se, al, tambem, a utilizacao de ferramentas inadequadas. Caso estas tenham causado danos, o caso 6 de responsabilidade comum, i. 6, nao haveria que recorrer nem a urn dever de prevencio do perigo nem ao abuso. Este aspecto, como se viu, tern, no entanto, sido consumido no essencial dos danos implicados, causados pela exposicao ao tempo do edificio da A.

(691) 0 proprio art. 483.°/1 bastaria, para obter a solucao. Uma busca na jurisprudencia alema sobre «deveres do trafego*, muito rica no campo das constnigoes de edificios, nab compreende exemplos compariveis aos do acOrdao, como 6 natural. Cf., p. ex., MxxxENs/ /Munch-Komm cit., § 823, n.° 204 (1211) e PALANDT/THOMAS, BGB42 Cit., § 823, 14 (855 ss.).

31.° 4TU QUOQUE*

77. Generalidades; o atu quoque» contratual; natureza

I. A formula tu quoque traduz, corn generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma juridica no poderia, sem abuso, exercer a situacao juridica que essa mesma norma the tivesse atribuido (692). Est em jogo um vector axiolOgico intui-tivo, expresso em brocardos como turpitudinem suam allegans non auditor ou equity must come with clean hands. A sua aplicacao requer a maior cautela. Fere as sensibilidades primarias, Ctica e juridica, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir exigir a outrem o seu acatamento. Nio 6 liquido, contudo e sempre a priori, que urn sujeito venha eximir-se aos seus deveres juridicos alegando violacoes perpetradas por outra pessoa.

Nenhuma das codificacoes compreende uma consagracao expressa e de alcance geral da fOrmula tu quoque (693 ). As varias mencoes

existentes tanto podem, axiomaticamente, traduzir o aflorar de uma regra geral subjacente, como exprimir desvios a urn principio inverso.

No C6cligo Civil, a regra-mae do tu quoque tern consagracoes disper-ses multiplas. 0 beneficiario da condicao nao pode aproveitar-se da sua verificacao quando, contra a boa fe, a tenha provocado; o prejudicado nao pode, da mesma forma, beneficiar da nao verificacio quando, contra a boa

(692) Na formulacao mais generica, ainda, de TEUBNER, Gcgenseitige Vertragsuntreue I I Rechtsprechung and Dogmatik zum Ausschluss von Recker; oath eigenem Vertragsbruch (1975), 1, tu quoque, exprimiria a regra pela qual Ilperante violacoes de normas, as possibilidades de sang-a° sao limitadas para aquele que perpetrou, ele prOprio, violacoes de normas". 0 alcance da formula pode ser restrito a aspectos contratuais — portanto I regra de que, queue seja infiel ao contrato, nao pode, em principio, derivar direitos da violacao, praticada pela contraparte ao mesmo contrato — LORENZ, Der Tu-quoque-Einivand bent Rucktritt der selbst vertragsuntreuen Partei gegen Vertragsverletzung des Gegners, JuS 1972, 311-315 (311).

Tern interesse, contudo, introduzir o alcance amplo da formula, embora a jurisprudencia a tenha consagrado no campo contratual..

(693) RIEZLER, Berufitng auf eigenes Unrecht, JhJb 89 (1941), 177-276 (193), limitado embora a alegacao de flick° prOprio.