Intervenção em patrimônio construído: da teoria à prática

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Intervenção em patrimônio construído: da teoria à prática Diego Nogueira Dias Graduando em Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ RESUMO A preservação do patrimônio, no que se refere a bens tombados e de importância histórica no Brasil, é um assunto com uma grande variedade de pontos de vista. Entre os pontos mais polêmicos está a real necessidade de se preservar a originalidade da edificação e os limites de sua adequação para novos usos. Para abordar essa questão,

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Intervenção em patrimônio construído: da teoria à prática

Diego Nogueira Dias

Graduando em Arquitetura e Urbanismo

Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ

RESUMO

A preservação do patrimônio, no que se refere a bens tombados e de importância

histórica no Brasil, é um assunto com uma grande variedade de pontos de vista. Entre os

pontos mais polêmicos está a real necessidade de se preservar a originalidade da

edificação e os limites de sua adequação para novos usos. Para abordar essa questão,

este trabalho passa em revista as teorias de restauro, explicitando as diretrizes atuais de

preservação e intervenção em patrimônio edificado. Com isso, se possibilita um

entendimento das adaptações de tais teorias ao longo dos anos e se esclarece como

cada caso deve ser analisado individualmente. Como estudo de caso tomamos o Museu

da Liturgia, em Tiradentes (MG), que nos permite perceber que, mesmo com toda base

teórica amplamente divulgada, intervenções são realizadas de maneiras adversas em

bens tombados, corroborando para entendimentos errôneos sobre a real preservação do

patrimônio.

Palavras chave: Teorias do restauro; intervenção em patrimônio edificado, Tiradentes.

ABSTRACT

Different opinions emerge from the conservation of tangible cultural heritage in terms of

Brazilian cultural property. A real need for conserving its originality and to define the

restrictions on the changes to a different usage are among those opinions. This paper

brings the theories of building restoration, its chronology and makes current guidelines for

conservation and intervention in tangible cultural heritage clear, enabling the

understanding of adaptations of those theories through the years, and enhancing that

every case must be analyzed individually. The case study makes possible the perception

that despite current theory, interventions in tangible cultural heritage are made in different

ways, what support the wrong beliefs in the conservation of the cultural heritage.

Key-words: conservation; restoration; cultural heritage, Tiradentes city.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca discutir, através de um estudo de caso, as técnicas de

conservação, preservação e restauro de edificações de valor histórico/cultural. Para isso,

foram pesquisadas referências desde os primeiros teóricos do restauro, como John

Ruskin e Viollet-Le-Duc, até Brandi, cuja teoria foi utilizada como foco para o estudo de

caso do Museu da Liturgia, localizado em Tiradentes, Minas Gerais.

2 TRAJETÓRIA DAS TEORIAS DO RESTAURO

Pode-se dizer que a conservação, restauração e preservação teórica começaram em

meados do século XIX. Nesse mesmo século a ciência se firma como caminho para a

revelação da verdade e para análise da realidade, além da ampliação do acesso público

à cultura (GRANATO; CAMPOS, 2013, p. 2). Assim as obras arquitetônicas e artísticas

nacionais começam a receber incentivo, sendo reconhecidas como de extremo valor para

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a sociedade e o romantismo passa a valorizar o artista como indivíduo especial,

exaltando a beleza das ruínas e as artes e dando ênfase especial aos artistas.

Influenciados por tudo que acontecia nesse período, que também se marcava pela

Revolução Industrial, na Inglaterra, e pelas guerras Napoleônicas, na França, surgem os

primeiros teóricos da conservação, John Ruskin (1819-1900) e Eugène Emmanuel

Viollet-le-Duc (1814-1879). Possuíam posições opostas, mas que se complementavam

em diversos aspectos. Ruskin foi um escritor inglês, que, como inúmeros seguidores

amantes das artes, possuía ideias voltadas para o socialismo, e gostava de defender

causas sociais. É considerado um dos primeiros teóricos da restauração: publica em

1849, o livro The Seven Lamps of Architecture, obra que trouxe grande repercussão para

suas ideias, e, dois anos depois, o primeiro volume de The Stones of Venice, livro em que

defendia as ruínas como forma principal, banalizando a restauração.

Ruskin era tão fixado com o passado que acabava por ignorar o presente, em certos

aspectos. A pátina, para ele, era considerada mestra e a chamava mancha dourada do

tempo (RUSKIN, 2008, p. 28). Ele se dizia contrário a qualquer restauração que fosse

executada nos monumentos, e dizia que a beleza não estava no padrão imposto. Para

ele, tudo que fosse original da construção deveria ser mantido, e restaurações ou

intervenções eram “consideradas a mais completa destruição que um edifício poderia

sofrer” (CHOAY, 2001, p. 155). Um dos seus seguidores mais radicais, o famoso William

Morris, que nasceu em 1834 e faleceu em 1896, difundia com exaustão as premissas de

seu mestre, classificando como imorais os que queriam restaurar ou intervir em obras,

mesmo que para uma manutenção para aumentar a vida das mesmas.

Enquanto esse era o contexto vivido na Inglaterra, na França os monumentos góticos

estavam aos pedaços devido às guerras napoleônicas, e o povo francês se sentia na

obrigação de restaurar e conservar o que um dia tinha sido a arquitetura gótica. Assim

desponta Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc, arquiteto que restaurou e conservou muitas

obras, como A a Catedral de Notre Dame de Paris, entre muitas outras. Se sentia na

obrigação de conservar o que tinha sido destruído, não conseguia aceitar que as grandes

obras arquitetônicas iriam se desfazer sem ninguém tomar nenhuma atitude. Foi o

primeiro a reunir em um documento os princípios de uma teoria de restauração

arquitetônica, como nos apontam Granato e Campos (2013, p.3). Para ele a edificação

deveria ser restaurada ao melhor estado possível, para uma condição que poderia nunca

ter existido, desde que coerente com a natureza verdadeira da concepção original da

construção, pensamento contrário ao de Ruskin, mas que ampliava as poucas teorias já

existentes e de certa forma complementava-o.

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Depois de muito intervir e ganhar experiência e embasamento teórico cada vez mais

aplicado, publica em 1866 o livro Dictionnaire Raisonné de l'Architecture Française du

XIème au XVIème Siècle, no qual coloca o significado do termo restaurar, de acordo com

suas premissas - “Restaurar um edifício não significa repará-lo, reconstruí-lo ou mantê-lo.

Significa restabelecê-lo no seu estado mais completo, que pode até nunca ter existido”

(VIOLLET-LE-DUC, 2000, 17).

Le-Duc se sentia à vontade corrigindo certas imperfeições em seus trabalhos de restauro,

mesmo que modificando a originalidade das obras, como, por exemplo, tornando reta

uma parede antes torta, se julgasse a mesma feia ou defeituosa. Entretanto era a favor

de documentar tudo que acontecia na edificação, todas as reformas e alterações, para

um melhor entendimento da mesma e das mudanças que sofreu, com pesquisas desde

sua construção, princípios estes que são seguidos e difundidos até hoje, de vital

importância em um projeto de intervenção ou restauração.

No meio de tanta confusão com duas opiniões de cunho tão oposto, como eram as de

Ruskin e de Violet-le-Duc, se destaca, na virada do século XX, entre vários outros, o

arquiteto italiano Camillo Boito (1836-1914) que difundiu de acordo com suas pesquisas,

baseado em Ruskin e Le-Duc algumas características, muitas delas empregadas até

hoje, como nos diz ainda Granato e Campos (2013, p.3): a necessidade clara de

diferenciações entre as partes originais e as restauradas; a mínima intervenção ou

reversibilidade, dentre outros. Para Boito, os acréscimos incluídos ao longo do tempo

nas edificações deveriam sim ser considerados e mantidos, pois constituem parte

significativa na história da mesma. Ele apresentou em Roma, no Congresso de

Engenheiros e Arquitetos, em 1884, uma série com oito princípios básicos dos restauro,

dos quais só foram aceitos dois: apenas a consolidação e reforma para restabelecer os

bens danificados e a conservação, como meio de evitar a necessidade de restauro,

seguindo alguns dos preceitos de Ruskin.

Já no início do século passado, afloram e ganham força os ideais do historiador da arte

austríaco Alois Riegl, que considerava que o objeto existe enquanto um elemento a ser

preservado quando lhe é atribuído um valor histórico, artístico e cultural. Para ele os

critérios adotados para preservação dos monumentos eram aplicados para qualquer obra

humana com certa antiguidade e simbolismo sentimental ou social e não só pela

característica do edifício em si, não só pela arquitetura ou sua monumentalidade (RIEGL,

2006).

Em 1912, com o surgimento da Teoria do Restauro Científico, de Gustavo Giovannoni,

Luca Beltrami e Camillo Boito, dentre outros, estabelece-se que antes de se pensar no

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restauro, deve-se buscar a conservação das edificações, para que o restauro chegue a

ser uma alternativa quando já degradados, e que sempre que possível, conservar para

que os monumentos e edificações se mantenham por mais tempo, necessitando menos

de restaurações.

Começam então a ser discutidas todas as opiniões e preceitos que giram em torno do

restauro e conservação, e o teóricos, com intuito de estabelecer um documento que

tivesse uma linha de raciocínio a ser seguida, minimizando as confusões e diferenças de

interpretações criaram as tão conhecidas “Cartas Patrimoniais”, documentos com normas

que resultam do acordo entre especialistas e conservadores profissionais.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, essas normas começaram então a se

mostrar ineficazes, pois era urgente a necessidade de se restaurar os monumentos e

edificações que foram largamente danificados com as batalhas. Assim surge o Restauro

Crítico, em que os arquitetos puderam ter uma postura mais flexível em relação à forma

de restaurar/conservar.

Dezenove anos depois, num congresso em Veneza, na Itália, os preceitos do Restauro

Científico, que tinham sido deixados parcialmente de lado em 1945 voltam a se firmar,

revistos por Cesare Brandi na Carta Italiana de Restauro de 1972. Brandi, enunciador de

diretrizes que serão aqui por mim focadas para análise do estudo de caso, é natural da

Itália, foi professor universitário, crítico de arte e musicólogo, e o primeiro diretor do

Istituto Centrale di Restauro, a primeira instituição desse tipo, fundada em Roma em

1939. Foi Brandi que se debruçou com mais vontade e entusiasmo sobre as teorias já

existentes, e depois de muito pesquisar, formulou o primeiro sistema de pensamento

completo e orgânico na área de restauração. A sua teoria do restauro foca extremamente

no caráter transiente, parcial e relativo de qualquer restauração, mesmo a mais

habilidosa, devendo sempre ser sempre marcada pelo clima cultural no qual é realizada,

levando em consideração toda sua história e características específicas.

Nesse ponto, os autores Granato e Campos possuem uma visão distorcida de parte da

teoria brandiana, cuja explicação vem em seguida:

Brandi dividia os objetos, em relação à restauração, em dois grupos: os produtos

industriais e as obras de arte. Em relação ao primeiro grupo, o propósito

fundamental da restauração seria restabelecer as propriedades funcionais do

produto. Nesse aspecto a teoria de Brandi é limitada e cabe ressaltar que também

devem ser considerados aspectos estéticos e históricos na conservação desse

tipo de objetos que compõem em grande parte o patrimônio científico e técnico.

Ele definia restauração como o momento metodológico no qual a obra de arte é

apreciada em sua forma material e dualidade histórica e estética, com uma visão

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de transmiti-la para o futuro. Essa visão humanista, que sublinha sua concepção

de restauração, é um aspecto muito valioso da teoria de Brandi. Para ele a

restauração não é uma técnica auxiliar, mas um momento de apreciação crítica do

objeto; em outras palavras, é um aspecto da pesquisa estética e filológica em

direção à sua compreensão. (GRANATO; CAMPOS, 2013, p. 4)

Brandi aponta claramente que a restauração deve restabelecer a unidade do projeto que

pode ter sido perdida com o tempo ou com restaurações anteriores, mantendo os traços

da passagem do tempo nos elementos construtivos, mas também removendo

acabamentos errados e intervenções que fossem consideradas inapropriadas ao contexto

de cada edificação ou monumento. Publicou em 1963 a Teoria do Restauro, em que

defende a relevância de um fator quase sempre negligenciado na conservação científica:

o valor artístico do objeto.

Conhecendo o objeto já em estado deteriorado, não é possível ter certeza de como havia

sido quando novo, sendo necessária uma intervenção baseada no estado em que se

encontra quando restaurado e não no que se pensa ter sido seu “estado original”, o que

levaria o espectador a incorrer em um erro de interpretação. Isso, para Brandi, é o “falso

histórico”. Ele nos fala que

(...) a restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra-

de-arte, desde que isso seja possível, sem cometer um falso artístico ou um falso

histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra-de-arte no

tempo.”(BRANDI, 2004, p. 33).

A principal marca da obra de Brandi é o rigor crítico-cultural que situa o ato de restauro

como responsável pelas futuras interpretações estilísticas e históricas da obra de arte. Se

for executada sem critérios, a restauração pode causar danos à obra que irão perpetuar-

se por várias gerações. A partir dessas teorias, a preservação do patrimônio cultural em

suas diversas formas e aspectos consolidou seu espaço na sociedade contemporânea,

contribuindo para a democratização no acesso e na fruição da cultura.

3 ESTUDO DE CASO – MUSEU DA LITURGIA

A partir da análise da história e evolução das teorias de restauro e preservação do

patrimônio cultural, passamos a analisar agora uma obra de intervenção em uma

edificação oitocentista localizada na cidade de Tiradentes, em Minas Gerais, para dar

novo uso a tal imóvel.

3.1 HISTÓRIA DA EDIFICAÇÃO

Conforme estudo da pesquisa feita por Olinto Rodrigues dos Santos Filho, o atual Museu

da Liturgia , se localiza à Rua Jogo de Bola, considerada por muitos como uma das mais

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antigas da cidade. O nome da rua se deve ao fato de que nesse espaço, no século XVIII,

os moradores tinham como lazer uma competição em que bolas eram jogadas para

derrubar estacas, de acordo com o site do Museu. O casarão que o abriga fica ao lado

da casa de Câmara, bem no núcleo setecentista, de frente a uma pequena praça onde

supostamente foi instalado o pelourinho, praça esta que faz junção com a Rua do

Chafariz e data da primeira metade do século XVIII (In: www.museudaliturgiacom.br).

A casa foi erguida para servir de residência, tendo tido essa função ao menos até 1894,

quando os paroquianos a compraram e doaram à paróquia local, de Santo Antônio, que

lhe deu a função de presbitério, de acordo com os levantamentos feitos pela empresa

Século XXX Arquitetura e Restauro (2009, p. 23-25) e pelo pesquisador Olinto Rodrigues

dos Santos Filho.

Em 1924 o lote totalizava 1035 m². O casarão original tem a parede frontal em taipa de

pilão, mesma técnica construtiva utilizada na construção da Igreja Matriz de Santo

Antônio, localizada bem próxima. A frente possui ainda porta de entrada e quatro janelas

de arco abatido, decoradas com sobrevergas de alvenaria, com um portão em um nível

inferior na ponta esquerda, que dá acesso ao quintal (fig. 1). Por seu terreno se localizar

em declive a edificação tem uma base alta, com porão, e tem o formato de L. O telhado

possui quatro águas com beiras em beira-seveira. Ela seguiu os parâmetros das

moradias típicas de Tiradentes, diferindo, por exemplo, dos sobrados – casas de dois

andares – que predominam nos traçados antigos de São João del-Rei e Ouro Preto.

Fig. 1 - Casa paroquial em sua conformação original, em 1943. Fonte e liberação: IPHAN Tiradentes. Imagem

originalmente publicada pela Graphicars F. Lanzara, em 1946, no livro Relíquias da Terra do Ouro, de Edgar

Cerqueira Falcão.

A partir de 1950 dá-se início às intervenções. A primeira delas, executada pelo Padre

José Bernadino de Siqueira, foi o espelhamento de parte da fachada original, com mais

três janelas (fig. 2), fachada que permanece a mesma até hoje. Internamente foram

construídos os banheiros - ausentes em toda edificação original, pois não era prática se

construir banheiros internos em casa no século XVIII – e uma capela dedicada a São

José. As paredes originais internas foram substituídas por paredes de alvenaria e foram

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feitos reforços no porão. Essa parte, que na edificação atual constitui o centro, também

foi concebida em formato de L espelhando também a planta da edificação original - com

um cômodo aos fundos.

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Fig. 2 - Casa paroquial da Matriz de Santo Antônio de Tiradentes, já com os acréscimos construídos na

década de 1950. Fonte: Acervo pessoal Olinto Rodrigues dos Santos Filho.

Em 1970 têm-se a segunda intervenção, feita pelo Padre Lourival de Salvo Rios, anexa à

de 1950, com fachada em uma porta e uma janela no mesmo estilo das existentes. Essa

parte da edificação já teve inúmeras funções: estreou como maternidade, que funcionou

por minguado tempo, passando por usos como posto de saúde, consultório odontológico,

creche e por último a APAE, que há alguns anos foi transferida para prédio próprio. Ainda

na década de 70 a edificação sofreu outras reformas para sua adaptação para residência

das freiras da “Fraternidade Coração de Maria”, com construção de banheiros internos,

acréscimos na cozinha e lavandeira, além da substituição das janelas originais por

esquadrias de ferro e vidro.

Assim, depois de tantas adaptações, a fachada da edificação apresenta-se com

composição única, colonial, que pode ser dividida em quatro áreas, cada uma de uma

época diferente (figs. 3, 4 e 5). A primeira intervenção, destacada na quarta hachura da

esquerda para a direita, data da primeira metade do século XVIII, com quatro janelas e

uma porta. A segunda, (terceira hachura da esquerda para a direita), foi feita na década

de 1950 e compõe-se por três janelas que imitam as quatro originais. Já a terceira

(segunda hachura da esquerda para a direita), feita na década de 1970, tem uma porta e

uma janela, deixando clara a predominância dos cheios sobre os vazios. A última

intervenção (primeira hachura da esquerda para a direita), não possui registro de data, e

se localiza em um platô mais elevado, limítrofe com a Casa de Câmara, possuindo

platibanda de linhas retas coberta por fiada de telhas e um grande portão, sendo usada

como garagem. Junto à anterior (segunda hachura da esquerda para a direita), essa

parte compõe a área hoje dedicada à Casa Paroquial.

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Fig. 3 - Planta da edificação antes da intervenção. Fonte: Século XXX Arquitetura e Restauro.

Fig. 4 – Hachuras das etapas construtivas da edificação, da esquerda para a direita: hachura 1 – intervenção

sem registro de dada; hachura 2 – intervenção de 1970; hachura 3 – intervenção de 1950 e hachura 4 –

edificação original da primeira metade do século XVIII. Fonte: Século XXX Arquitetura e Restauro,

modificada.

Fig. 5 – Fachada frontal com hachuras das etapas construtivas da esquerda para a direita: hachura 1 –

intervenção sem registro de dada; hachura 2 – intervenção de 1970; hachura 3 – intervenção de 1950 e

hachura 4 – edificação original da primeira metade do século XVIII. Fonte: Século XXX Arquitetura e

Restauro, modificada.

Percebe-se facilmente a transição da parte original do casarão para as outras,

observando as esquadrias, que se destacam em detrimento das implantadas nas

intervenções ocorridas ao longo do século XX.

3.2 O PROJETO DE INTERVENÇÃO

A empresa Santa Rosa Bureau Cultural foi a responsável pela obra realizada para a

instalação do Museu da Liturgia, que se tornou o único da América Latina. Foram

investidos R$ 8,8 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

(BNDES) nas reformas e adequações, que duraram dois anos e meio. A empresa

responsável pelo projeto, de acordo com o site do Museu da Liturgia

(www.museudaliturgia.com.br), manteve os 553 m² da edificação anterior, construindo um

anexo ao fundo, de 185 m² para abrigar as instalações de funcionários, a reserva técnica,

o núcleo de pesquisa e o espaço educativo (fig. 6). Entretanto, nem todos os elementos

característicos da construção foram mantidos, como veremos mais adiante. Na parte

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externa, onde havia um quintal, localiza-se o pátio, espaço expográfico guarnecido por

um muro de pedra, que foi restaurado e teve sua extensão original recuperada.

Fig. 6 – Anexo ao museu, que abriga as instalações de funcionários, núcleo de pesquisas, entre outros, já em

funcionamento. Fonte: Século XXX Arquitetura e Restauro.

As obras expostas, totalizando mais de 430 peças dos séculos XVIII a XX, tombadas pelo

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, foram restauradas e

representam grande parte da história religiosa da Paróquia de Santo Antônio de

Tiradentes. Segundo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB, 2012) O pátio

externo do museu possui uma área de cerca de 260 metros quadrados aberta ao público,

sendo um espaço de acolhimento e reflexão, de uma ruptura com o mundo cotidiano,

como informa do site do Museu (www.museudaliturgia.com.br).

Logo ao entrar no Museu, o hall estabelece uma relação entre a liturgia, a cultura e a

comunidade civil, prestando uma homenagem à população tiradentina. O mosaico no

chão representa os tradicionais tapetes de serragem confeccionados para festejos

culturais e religiosos da cidade e a “tela trilho” – conjunto de monitores dispostos

verticalmente na parede – exibe imagens de celebrações filmadas durante o ano passado

em igrejas e nas ruas de Tiradentes e região. De pé direito alto, o hall é o único espaço

que liga a parte térrea (o antigo porão da Casa Paroquial), onde estão as salas ‘Liturgia

da Palavra’ e ‘Eucaristia e Páscoa’, ao piso superior do museu, com as salas

‘Sacramentos e Sacramentais’, ‘Devoção Popular’ e ‘Gestos Litúrgicos’.

O projeto de restauração manteve a fachada intacta (fig. 7), preservando as cores

características e os materiais das esquadrias, como informa o site do Museu

(www.museudaliturgia.com.br). Contudo, o interior foi totalmente modificado, alterando

drasticamente a planta original da edificação. A nosso ver, a arquitetura original também

é patrimônio e deveria ser preservada como todo o resto, como marco de uma época e

das formas de viver. O que se percebe, no entanto é que a maioria das paredes internas

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foi derrubada para dar espaço a amplos salões que expõe o acervo. A fachada continua

setecentista, mas o interior é contemporâneo, fragmentando a memória da edificação.

Fig. 7 – Fachada atual do Museu da Liturgia, depois das obras de intervenção. Fonte: Jomar Bragança, 2012.

Logo ao adentrar o pátio lateral, podemos perceber uma total harmonia com a paisagem,

privilegiando a vista da Serra de São José, ao fundo. Esse foi um dos melhores pontos do

projeto: a relação com o entorno.

Durante o projeto de restauração, muito da construção original se perdeu, visando uma

consolidação da edificação para atender aos objetivos do projeto. Haveria muitas outras

formas de se intervir sem destruir tanto o patrimônio edificado, mas parece que essa

possibilidade não foi nem cogitada pela empresa que fez o projeto, como mostra a fig. 8,

da época das obras de intervenção, que mostra claramente as paredes muito danificadas

e o piso original sendo removido, e um novo implantado (fig. 9). Foi instalada uma escada

interna, em estrutura metálica, pois o único acesso ao piso superior além da porta

principal era por uma escada lateral no quintal, ainda presente, mas desativada.

Figs. 8 e 9 – Foto do interior da edificação durante e depois da intervenção, em que muitas paredes foram demolidas e o piso original substituído. Fonte: Tiradentes Informa, 2012.

Somente algumas das paredes internas foram preservadas, como a de pedras ao fundo

da fig. 10. Nessa imagem ainda notamos que o piso foi trocado para um de cimento, e as

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paredes originais demolidas para dar lugar a algumas de alvenaria, criando espaços mais

amplos.

Fig. 10 – Vistas de cômodos do porão da edificação, com piso modificado e paredes originais derrubadas e novas erguidas em locais diferentes. Fonte: Santa Rosa Cultural, 2012.

Outras alterações feitas: o piso do pavimento superior foi refeito em tábuas corridas de

madeira, apoiadas em estrutura metálica; forros de madeira com tratamento acústico

foram instalados em ambos os pavimentos para que se alcançasse uma melhor condição

sonoro-ambiental; a cobertura de telhas curvas dos dois módulos originais foi

recomposta. O restante do telhado, que era coberto com uma mescla de amianto, laje e

telhas francesas, foi refeito de modo a preservar a harmonia do conjunto e todas as lajes

foram impermeabilizadas.

3.3 ACORDOS E DESACORDOS DO PROJETO, SEGUNDO A TEORIA

BRANDIANA

Intervenções em patrimônio edificado para abrigar museus quase sempre apresentam

projetos que não respeitam a edificação e sua história. Em projetos desse porte, deve

sempre haver distinguibilidade entre o novo e o antigo. O estudo de caso é um exato

exemplo do contrário: ao percorrer a edificação, não conseguimos separar o colonial do

contemporâneo. No interior da casa, a noção de localização fica vaga, pois as paredes

originais foram, em sua maioria, derrubadas. Portas e janelas tiveram suas esquadrias

substituídas, isso quando não excluídas da parede para dar lugar a um quadro. Toda a

estrutura que sustenta a casa foi modificada, não sendo mais possível percebê-la quando

passamos pelo porão. Perdeu-se totalmente a originalidade da planta baixa. A entrada

principal hoje não é mais acessível, alterando todo um fluxo que já tinha sido pensado

para funcionar de outra forma.

A teoria contemporânea diz claramente também que devemos preservar a planta original

da edificação. A arquitetura também é patrimônio e deve ser preservada. A edificação

não foi pensada, à época de sua construção, só como uma fachada, não se justificando

apenas a sua manutenção como original. Um monumento que guarda um acervo não

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precisa ser demolido. Como nos aponta Beatriz Kühl (Notas de aula), o uso jamais vai

determinar a intervenção. A intervenção deve se adequar ao monumento, que está ali

previamente, e não o contrário. No estudo de caso percebemos que para abrigar um rico

acervo da Igreja Católica mineira um escritório demoliu toda a referência de planta baixa,

distribuição de cômodos, a própria materialidade do local, relegando a arquitetura a um

segundo lugar, a uma terceira instância, não sendo ela em nada protagonista, mesmo

tendo total conhecimento de que sem ela ali nada teria validade.

4 CONCLUINDO

Houve um considerável avanço desde as primeiras teorias do restauro de John Ruskin e

Viollet-Le-Duc até a de Carbonara, de ênfase brandiana. Em nosso estudo de caso,

pudemos entender e aplicar os conceitos estudados, percebendo-se então, que o projeto

de intervenção e restauração proposto e executado no Museu da Liturgia não respeitou

as teorias contemporâneas da restauração que regem todas as diretrizes para

intervenção em patrimônio construído. Assim, nos perguntamos: Como tal obra pode

classificar-se como restauração quando nem a originalidade da planta baixa foi

respeitada? Como pôde ser aprovada pelo IPHAN, órgão responsável pela preservação

do patrimônio? Percebe-se que a maioria das características originais do casarão se

perdeu, e com elas toda uma história de um modo de viver.

Definindo-se museu de acordo com o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM):

É uma instituição com personalidade jurídica própria ou vinculada a outra

instituição com personalidade jurídica, aberta ao público, a serviço da sociedade e

de seu desenvolvimento e que apresenta as seguintes características:

"I - o trabalho permanente com o patrimônio cultural, em suas diversas

manifestações;

"II - a presença de acervos e exposições colocados a serviço da sociedade com o

objetivo de propiciar a ampliação do campo de possibilidades de construção

identitária, a percepção crítica da realidade, a produção de conhecimentos e

oportunidades de lazer;

"III - a utilização do patrimônio cultural como recurso educacional, turístico e de

inclusão social;

"IV - a vocação para a comunicação, a exposição, a documentação, a

investigação, a interpretação e a preservação de bens culturais em suas diversas

manifestações; entre outros. (IBRAM, 2014).

Se um museu tem e deve seguir essas diretrizes em nosso país, como uma entidade

pode querer abrigar todo um acervo religioso de importância nacional em um espaço,

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ignorando totalmente a história prévia desse espaço, que, no caso em estudo, tinha

utilidade para a própria paróquia? Um museu deve preservar o patrimônio, seja ele

material ou imaterial. Assim, a restauração e intervenção estudadas negam as premissas

básicas que devem ser atribuídas a um museu.

Sempre, ao se intervir em qualquer obra edificada, principalmente as já classificadas

como de valor histórico, devemos nos embasar nas teorias existentes. Afinal, os teóricos

estudaram e questionaram a sociedade em diversos aspectos para hoje podermos ser

detentores do conhecimento pleno de valor arquitetônico, cultural e histórico do meio em

que vivemos.

5 LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 - Casa paroquial em sua conformação original, em 1943. Fonte e liberação: IPHAN Tiradentes. Imagem

originalmente publicada pela Graphicars F. Lanzara, em 1946, no livro Relíquias da Terra do Ouro, de Edgar

Cerqueira Falcão. Disponível em: <http://museudaliturgia.com.br/edificacao/historia.php>. Acesso em 16 de

junho de 2014.

Fig. 2 - Casa paroquial da Matriz de Santo Antônio de Tiradentes, já com os acréscimos construídos na

década de 1950. Fonte: Acervo pessoal Olinto Rodrigues dos Santos Filho. Disponível em:

<http://museudaliturgia.com.br/edificacao/historia.php>. Acesso em 16 de junho de 2014.

Fig. 3 - Planta da edificação antes da intervenção. Fonte: Século XXX Arquitetura e Restauro. Disponível em:

<http://museudaliturgia.com.br/arquivos/pdf/catalogo-ml-v3-13abril.pdf>, p. 42-43. Acesso em 16 de junho de

2014.

Fig. 4 – Hachuras das etapas construtivas da edificação, da esquerda para a direita: hachura 1 – intervenção

sem registro de dada; hachura 2 – intervenção de 1970; hachura 3 – intervenção de 1950 e hachura 4 –

edificação original da primeira metade do século XVIII. Fonte: Século XXX Arquitetura e Restauro,

modificada.

Fig. 5 – Fachada frontal com etapas construtivas: roxo (edificação original da primeira metade do século

XVIII), verde (intervenção de 1950), amarelo (intervenção de 1970) e rosa (intervenção sem registro de data).

Fonte: Século XXX Arquitetura e Restauro. Disponível em:

<http://museudaliturgia.com.br/arquivos/pdf/catalogo-ml-v3-13abril.pdf>, p. 43. Acesso em 16 de junho de

2014.

Fig. 6 – Anexo ao museu, que abriga as instalações de funcionários, núcleo de pesquisas, entre outros, já em

funcionamento. Fonte: Santa Rosa Cultural, 2012. Disponível em:

<http://www.santarosacultural.com.br/projects/museu-da-liturgia?lang=>. Acesso em 19 de junho de 2014.

Fig. 7 – Fachada atual do Museu da Liturgia, depois das obras de intervenção. Fonte: Jomar Bragança, 2012.

Disponível em: < http://viagensinesqueciveis.wordpress.com/2012/05/29/museu-da-liturgia-unico-da-america-

latina/>. Acesso em 19 de junho de 2014.

Figs. 8 e 9 – Foto do interior da edificação durante e depois da intervenção, em que muitas paredes foram

demolidas e o piso original substituído. Fonte: Tiradentes Informa, 2012. Disponível em:

<http://tiradentesinforma.blogspot.com.br/2012/04/tiradentes-inaugura-hoje-seu-museu-

15

da.html>;<http://www.santarosacultural.com.br/projects/museu-da-liturgia?lang=>. Acesso em 19 de junho de

2014.

Fig. 10 – Vistas de cômodos do porão da edificação, com piso modificado e paredes originais derrubadas.

Fonte: Santa Rosa Cultural, 2012. Disponível em: <http://www.santarosacultural.com.br/projects/museu-da-

liturgia?lang=>. Acesso em 19 de junho de 2014.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANDALORO, Maria. La teoria del restauro nel Novecento da Riegl a Brandi, Atti del Convegno Internazionale

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_ CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo, UNESP, 2001.

_ CNBB. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Museu da Liturgia é inaugurado em Tiradentes (MG)

exibindo acervo tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, 2012. Disponível em:

<http://www.cnbb.org.br/regionais/leste-2/9892-museu-da-liturgia-e-inaugurado-em-tiradentes-mg-exibindo-

acervo-tombado-pelo-patrimonio-historico-e-artistico-nacional>. Acesso em 19 de junho de 2014.

_ GRANATO, Marcus. CAMPOS, Guadalupe do Nascimento. Teorias da Conservação e Desafios

Relacionados aos Acervos Científicos. MIDAS, 2013. Disponível em: <http://midas.revues.org/131; DOI :

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- IBRAM. O que é um museu? Instituto Brasileiro de Museus. Disponível em:

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_ KÜHL, Beatriz Mugayar. Ética e Responsabilidade Social na Preservação do Patrimônio Cultural. In: KÜHL,

Beatriz Mugayar. História e Ética na Conservação e na Restauração de Monumentos Históricos. Revista

CPC, São Paulo, 2005.

_ KÜHL, Beatriz Mugayar. Restauração Hoje: Projeto e Criatividade. AUH 412 - Notas de Aula.

_ Museu da Liturgia. Disponível em: <http://museudaliturgia.com.br/>. Acesso em 12 de junho de 2014.

_ RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese. Tradução Elaine R. Peixoto e

Albertina Vicentine. Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2006.

_ RUSKIN, John. A Lâmpada da Memória. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.

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_ VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Artes & Ofícios. Cotia: Ateliê Editorial, 2000.