Relevância, Ressonância, Engajamento – a Museologia e o Patrimônio em ação.

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Relevância, Ressonância, Engajamento – a Museologia e o Patrimônio em ação. Maria de Lourdes Parreiras Horta Lisboa, novembro 2014 Como analisar as ações da Museologia e do campo do Patrimônio Cultural na era da realidade virtual e das redes intangíveis que parecem hoje controlar a vida em sociedade? Como avaliar o papel das instituições patrimoniais e museológicas e sua potencial contribuição para o desenvolvimento individual e coletivo? Acreditamos que é unicamente através e a partir da prática que encontraremos os fundamentos das teorias que embasam, na atualidade, essas disciplinas e campos do saber. Os conceitos de Relevância, Ressonância e Engajamento podem ser alguns dos parâmetros que podemos utilizar para aferir a importância e a efetividade da Museologia e do Patrimônio, quando postos em ação. Antes de abordar as questões acima, gostaria de contar algumas histórias, falar de algumas experiências, que podem melhor explorar estes conceitos, em diferentes casos e momentos: o caso do Museu de Brasília... "museu é coisa de branco”... e a questão da “relevância”; o caso dos elefantes brancos... e a questão da “ressonância”; e a preocupante questão do futuro do Alberto...

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Relevância, Ressonância, Engajamento – a Museologia e oPatrimônio em ação.

Maria de Lourdes Parreiras Horta

Lisboa, novembro 2014

Como analisar as ações da Museologia e do campo doPatrimônio Cultural na era da realidade virtual e dasredes intangíveis que parecem hoje controlar a vida emsociedade? Como avaliar o papel das instituiçõespatrimoniais e museológicas e sua potencial contribuiçãopara o desenvolvimento individual e coletivo? Acreditamosque é unicamente através e a partir da prática queencontraremos os fundamentos das teorias que embasam, naatualidade, essas disciplinas e campos do saber. Osconceitos de Relevância, Ressonância e Engajamento podemser alguns dos parâmetros que podemos utilizar para aferira importância e a efetividade da Museologia e doPatrimônio, quando postos em ação.

Antes de abordar as questões acima, gostaria de contaralgumas histórias, falar de algumas experiências, quepodem melhor explorar estes conceitos, em diferentes casose momentos: o caso do Museu de Brasília... "museu é coisade branco”... e a questão da “relevância”; o caso doselefantes brancos... e a questão da “ressonância”; e apreocupante questão do futuro do Alberto...

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O caso do museu de Brasília...

Há alguns anos atrás uma intensa polêmica explodiu emBrasília, em torno da instalação de um museu de artecontemporânea no belo edifício circular criado por OscarNiemeyer para originalmente abrigar um Museu Nacional doÍndio. A disputa entre os defensores da causa indígena eos representantes da arte “ilustrada” na capital federalchegou a tal impasse que um bem intencionado representanteda “mídia" resolveu ouvir a opinião dos própriosindígenas. A resposta de um de seus líderes veio rápida econclusiva: “Façam o que quiserem com o prédio. Museu écoisa de branco...”.

O fato acima descrito, e seu desenrolar, podem ser tomadoscomo uma parábola exemplar da natureza, da história e dopapel dos museus na configuração sócio-política e culturaldo Brasil, e que por extensão poderia ser aplicada aocontexto dos demais países da América Latina, em suatrajetória ao longo dos últimos séculos. Nestes contextosmultifacetados, os museus podem ser “lidos” como “textos”,ou “intertextos” que refletem em seu vocabulário,gramática, sintaxe e semântica os “discursos” dominantes ehegemônicos que permeiam a trama, as atitudes e as inter-relações dos diferentes grupos que compõem nossassociedades, neste vasto continente.

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Se quisermos analisar o “sistema de museus” no Brasil, eseu funcionamento, no passado e no presente, e estabeleceruma análise comparativa, aplicada aos demais paíseslatino-americanos, poderíamos começar pela observação desuas origens, ou de sua “pré-história”, a partir do séculoXVI, no momento em que tem início o processo de conquistados territórios pelos colonizadores europeus. A fraselapidar do cacique indígena pode sintetizar a situação:“museu é coisa de branco”, ou melhor, de europeu, quedescobre o Novo Mundo.

A ideia e o modelo de “museu” que começam a tomar forma emnosso continente naquele momento correspondem à ideia e aomodelo, ainda privados e privilégio de uns poucos, que sedifundiram na Europa no final da Idade Média, com adesignação de “gabinetes de curiosidades”, ou “câmara dasmaravilhas”, para deleite dos príncipes e senhoresrenascentistas.

A descoberta das terras americanas veio trazer umincremento incalculável à coleção de espécimes exóticos eraros, de riquezas inesperadas à visão deslumbrada dossenhores do norte. A estratégia da conquista dos novosterritórios teve como um dos seus eixos principais ademarcação do solo e a realização de “inventários” dasriquezas encontradas, vivas ou inertes.

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A descrição e a “nomenclatura” dos elementos e espaçosencontrados é a missão fundamental das viagensexploratórias que se sucedem ao descobrimento, e aliteratura de viagens, baseada em relatórios minuciosos,elaborados de acordo com regras precisas, configura-se emum “corpus” literário cuja importância até hoje não foisuficientemente explorada e reconhecida, como analisaDaniel Defert (Defert, 1982), em um ensaio sobre a “coletado mundo” para o Museu de Etnografia de Neuchâtel.

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Poderíamos sugerir que estes relatos e crônicas de viagemconstituem o documento de nascimento, ou de “fundação”, dogrande e imaginário “museu americano”, que começa aconstituir-se, virtual e concretamente, a partir destemomento. Nesta interpretação, é possível explicar aexistência, em museus e arquivos europeus, de um acervooriginal de fundamental importância para a história e acultura dos povos sul-americanos, recolhido em suas formase manifestações originais no momento da conquista, e quejamais voltaram ao seu local de produção, nem sequer foramvistos por seus verdadeiros herdeiros; basta lembrar, comoexemplo, que as peças mais antigas e exemplares daartesania Tikuna, do Alto Amazonas, encontram-se em museuse arquivos da Alemanha e da Áustria, e nunca puderam servistos pelos antropólogos brasileiros ou pelos própriosindígenas, que hoje procuram recuperar suas origens etradições culturais. O Museu Magüta, em Benjamin Constant,no estado do Amazonas, criado e desenvolvido pelos Tikuna,de modo especial pelo nosso colega Constantino CupeatükuRamos Lopes, falecido prematuramente em 2012, teve a ajudae colaboração da antropóloga Jussara Gruber para seconstituir em um dos mais genuínos e relevantes museus dacultura indígena do país, consagrado como o “museu do ano”pelo Comitê Brasileiro do ICOM, em 1993. Infelizmente,depois de alguns anos, e por interferências indevidas, aenergia do Museu Magüta se perdeu, “embranqueceu”...

A questão da RELEVÂNCIA...

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O conceito de relevância é estudado em muitos camposdiferentes, inclusive o das ciências do conhecimento, dalógica e das ciências da informação. Maisfundamentalmente, ele é estudado na epistemologia - ateoria do conhecimento. Diferentes teorias do conhecimentotêm implicações diferentes com relação ao que éconsiderado relevante. Estas visões fundamentais diversastêm da mesma forma implicações em todos os outros campos.

De acordo com a mais simples definição:

“Alguma coisa (A) é relevante para uma tarefa (T) casoaumente a probabilidade de se atingir o objetivo (O), queestá implícito em (T).” (Hjorland & Sejer Christensen,2002).

Uma coisa pode ser relevante, um documento ou umainformação podem ser relevantes. A compreensão básica de“relevância” não depende de que falemos de “coisas” ou de“informações”.

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Em 1986, Dan Sperber e Deirdre Wilson (Sperber e Wilson,1986) chamaram a atenção para a importância central dasdecisões baseadas na relevância, no raciocínio e nacomunicação, e apresentaram o relato do processo deinferir informação relevante de qualquer proposição. Parafazer este trabalho, usaram o que chamaram de “Princípioda Relevância”: notadamente, a proposição de que qualquerfrase dirigida a alguém carrega automaticamente apresunção de sua própria relevância máxima. A ideiacentral da teoria de Sperber e Wilson é a de que todas asexpressões se encontram em algum contexto, e que a corretainterpretação de uma expressão específica é aquela quepermite que o maior número de novas implicações possa serfeitas naquele contexto, com base no menor número deinformações necessárias para transmiti-las. Para osautores, a relevância é concebida como relativa ousubjetiva, pois depende do nível de conhecimento doouvinte quando se depara com uma expressão.

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Sperber e Wilson afirmam que esta teoria não visa explicartodas as aplicações intuitivas da palavra “relevância”.Relevância, como um termo técnico, está restrito arelações entre expressões e interpretações, e desse modo ateoria não pode responder por intuições tais como as querelações de relevância obtêm em problemas envolvendoobjetos físicos. Se um mecânico precisa consertar umatorneira pingando, alguns objetos e ferramentas sãorelevantes (por exemplo, uma chave de fenda) e outros nãosão (por exemplo, uma máquina de waffle). E ainda, estaúltima é irrelevante de um modo que não depende do nívelde conhecimento do mecânico, ou das expressões usadas paradescrever o problema.

Uma teoria da relevância que parece ser mais facilmenteaplicável em tais instâncias de resolução de problemasfísicos foi sugerida por Goraskaya e Lindsay (Goraskaya eLindsay, 1993) em uma série de artigos publicados nos anos90. Um item (por exemplo, uma expressão ou um objeto) érelevante para um objetivo se, e apenas se, ele pode serum elemento essencial de algum plano capaz de atingir oobjetivo desejado. Esta teoria abarca tanto o raciocínioproposicional como as atividades de resolução de problemasdas pessoas, tais como os dos mecânicos, por exemplo, edefine a relevância de tal modo que o que é relevante édeterminado pelo mundo real (porque se os planos darãocerto, é uma questão de um fato empírico) e não pelo nívelde conhecimento ou crença de um solucionador de problemasqualquer.

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A partir desses conceitos e exemplos poderíamos analisarqual a relevância dos museus e do patrimônio cultural parase atingir o objetivo do desenvolvimento local, damelhoria da qualidade de vida dos cidadãos, do reforço daautoestima, da sustentabilidade destes valores. Epoderíamos nos perguntar que objetivo, ou objetivos, têmnos museus e na ação patrimonial elementos essenciaisúnicos e específicos para sua consecução. Que planosestratégicos para a ação museológica e/ou patrimonialseriam os instrumentos ou elementos essenciais para seatingir estes objetivos?

Em determinado momento de sua história, o Museu Magüta foifundamentalmente relevante para o reforço da identidade eda cultura do povo Tikuna; as estratégias de suaimplantação foram essenciais para os resultadosafirmativos de sua ação social, cultural e identitária.

Que tipo de relevância teriam os museus e o patrimôniopara a vida social, para os indivíduos e as comunidades...Este é um grande tema de pesquisa, cujo desenvolvimentopode nos trazer grandes revelações... Mas a teoria é uma ea prática é outra. E esta relevância só pode ser avaliadaem seu efeito sobre o mundo real...

Passemos à segunda história:

O insólito caso dos elefantes brancos...

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Há mais de 20 anos atrás fiz uma palestra em um Semináriosobre os Museus Nacionais, em que eu comparava estasgrandes instituições com “elefantes brancos”, como eracomum se ouvir em críticas feitas por diferentes pessoas,relativas ao seu alto custo e pouca presença na vidacoletiva. A maioria das pessoas ignorava então a função, ointeresse e a importância dos grandes museus para asociedade, em contraste com todos os problemas que apopulação tinha que enfrentar em seu quotidiano, como aprestação sempre insatisfatória dos serviços públicos, ecom todas as carências nas áreas fundamentais como asaúde, a educação, o emprego, a segurança e assistênciasocial.

Acredito que hoje essa visão tenha mudado bastante, pordiferentes fatores, como inclusive o estímulo da mídia emrelação às grandes exposições internacionais que atraemhoje públicos diversos e em números impressionantes, com apossibilidade das pessoas de viajar ao exterior, e defazer filas quilométricas nos grandes museus, nas grandesmetrópoles, e ainda a melhor compreensão, por uma grandeparcela da população, da importância dos eventos eexposições promovidas pelos museus para o futuro de seusfilhos e de si própria. É aí que vem ao caso...

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O caso do futuro do Alberto... Naquela época, porocasião da realização de uma primeira grande mostra, noRio de Janeiro, do tipo que classificamos como“blockbusters”, com obras de Rodin, vindas diretamente daFrança, registramos um diálogo exemplar entre uma repórtere uma senhora que, acompanhada do filho de uns oito ounove anos, aguardava já há umas quatro horas na fila paraingressar no Museu Nacional de Belas Artes. Respondendo àpergunta sobre os motivos que a faziam estar ali, vindo deum subúrbio distante do centro da cidade, para ver aquelaexposição, e se sabia da importância do artista cuja obraestava prestes a conhecer, a mãe respondeucategoricamente: “Esse tal de “Rodinho” eu não sei quem énão, não conheço, mas sei que isso vai ser muitoimportante para o futuro do Alberto!”. Esta afirmação jáfoi tema de uma longa palestra que fiz em outro encontrode museólogos em Buenos Aires, enfocando o papel social eeducativo dos museus, cujas questões são ressonantes portoda a América Latina... E já nos aproximamos da discussãoda palavra e do conceito de “ressonância” que aplicaremosao tema! Mas voltemos aos nossos elefantes:

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A imagem dos elefantes brancos, ou dos grandes museusnacionais, muitos ainda hoje perfeitamente enquadrados nametáfora que escolhi para falar dessa questão, num dosquais trabalhei, vivi boa parte da minha vida, e assumi adireção por mais de 17 anos, parece-me ainda pertinente eútil: estes elefantes (os nossos grandes museus, públicosou privados) se equilibram, numa pata só, no meio de umacorda bamba esticada entre dois pontos. A clássica imagemque até alguns anos atrás era a propaganda dos grandescircos, oferece-nos um bom tema para discutir o assunto: oproblema não se resume apenas em saber como cuidar dessesbelos monstros de estimação, como alimentá-los, escová-los, tratá-los, e colocar curativos nos seus arranhões, eainda conseguir que façam gracinhas para o público. Édifícil até mesmo explicar como chegaram até lá, no meioda corda bamba. O problema maior, entretanto, é saber comofazê-los descer, e coloca-los em terra firme, para poderemcontinuar caminhando.

O elefante branco pode assim ser uma boa metáfora doperfil e da natureza dos museus nacionais, espécimes rarose talvez em extinção, mantidos a um enorme custo e esforçode muita gente, cuja memória, como se sabe, é fabulosa,exercendo um indiscutível fascínio sobre as gentes,misteriosos, poéticos, atraindo adultos e crianças, e cujoinquestionável e inquestionado poder mitológico faz comque pareçam tão naturais e prováveis em qualquer esquinados zoológicos urbanos das grandes capitais quanto eram osseus colegas cinzentos que atraiam invariavelmente asplateias dos velhos circos.

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A imagem pode também ser explorada com uma funçãometonímica – representando uma parte da realidade pelotodo – que não é só o todo dos museus e das instituiçõesculturais e patrimoniais, mas dos sistemas sociais,políticos e econômicos do meu país. Um todo que sesustenta, em última análise, em sistemas de valores ecritérios capazes muitas vezes de gerar espécimes tãoaberrantes e exóticos quanto os nossos pequenos, pobreselefantes.

Algumas questões fundamentais são relevantes aqui:

Porque os elefantes estão na corda bamba? Como fazê-losdescer de lá, com que instrumentos e métodos, e quais sãoas perspectivas de sucesso para tal operação? E que cordaé essa, e quem a esticou?

Comecemos com a corda, para depois chegar à caçamba e quemsabe cheguemos até à água no fundo do poço. No planopuramente teórico que nos remete à natureza e à função dosmuseus, esta poderia ser a fronteira entre a Lógica e aPoesia, a linha tênue e oscilante sobre a qual sedesenvolve e se equilibra a arte, a linguagem e a açãomuseológica e patrimonial. Ensinar ou Emocionar? Preservarvalores ou sensibilizar para os valores? Informar ouConscientizar? Questões que dariam motivo a uma longadiscussão.

Quantas questões já colocamos aqui ... E ainda vêm de lávocês com a questão da sustentabilidade? Ora, pois, comose sustenta um elefante branco numa corda bamba?

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Voltemos assim objetivamente à situação. No plano concretoe real, o desastre parece iminente. Pela lei da gravidadee pela lei das probabilidades, é possível se prever duasalternativas: ou a corda arrebenta, ou o elefante sedesequilibra - para as quais teríamos algumas soluções ourecursos que não são absolutamente seguros: ou se estendemmais cordas e se constrói uma rede, suficientemente forteque aguente o peso do animal, ou podemos tentar colocarescadas – para cima do telhado, ou do muro, e o problemacontinua, ou para o chão, e resta perguntar se elefantesdescem escadas.

Deixando de lado o simbólico e buscando um enfoquesemiológico da fábula aqui proposta para analisarmos aforma desse conteúdo e a substância dessa imagem, que vosproponho aqui, é preciso desviar a colocação para outroplano, que não é tão visível e concreto quanto o elefante,a corda, o chão ou a escada. Invisível, mas real como o arque se respira, porque é justamente o plano do espaço queexiste entre esses elementos e em torno deles: o espaço daprodução cultural, no qual os museus se situam comoagentes cujo peso, importância e efetividade ainda nãoforam devidamente explorados. Podemos assim tomar a cordaesticada como uma medida desse espaço, o que nos permitevárias interpretações:

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A primeira seria considerar os dois pontos que a limitamcomo a Teoria e a Prática. Seria quase óbvio dizer que háuma longa distância entre esses dois pontos. Mas já nãoseria óbvio dizer, contrariando as leis da Geometria, queo caminho entre esses dois pontos não é uma linha reta (epor isso dizemos que é “bamba”), cheio de curvas, meandrose oscilações. Talvez se possa dizer até que é uma espiralou mesmo um labirinto.

Não seria, portanto, óbvio dizer o que Pierre Bourdieu(Bourdieu, 1987:112/116) desenvolve como uma teoria – ateoria da distância entre a Teoria e a Prática, a teoriado espaço social e do poder simbólico que nele sedesenvolve – o que talvez possa explicar porque oselefantes balançam, mas não caem!

Numa conferência pronunciada em Strasbourg, a propósito doHomo Academicus, em dezembro de 1984, Bourdieu (1987a)propõe-se a objetivar o sujeito objetivante – no caso, aUniversidade: objetivar a situação a partir da qual somoslegitimados a objetivar. Uma proposta com um duplo objeto:em primeiro o objeto aparente, o “objet naif”, segundo oautor. “O que é a Universidade? Como é a Universidade?” Nonosso caso poderíamos perguntar: “O que são os Museus?Como são os museus, para quem são?”. Em segundo lugar, aação particular de objetivar, e de objetivar umainstituição que é socialmente reconhecida como destinada aoperar uma objetivação, com a pretensão de objetividade euniversalidade. No caso dos museus, instituições que tempor fundamento a objetivação das evidências concretas darelação do homem com a realidade.

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Aplicando a experimentação sociológica de Bourdieu (apropósito do trabalho da sociologia), ao campo de trabalhomuseológico e patrimonial, é possível ampliar a esfera dodebate aqui proposto a um nível que interessa a todas asdisciplinas e áreas de conhecimento e de produção culturalaqui representadas.

Quando se diz, “os museus nacionais representam aideologia das classes dominantes” ou “são a expressão deuma burguesia ascendente”, comete-se o erro do “curto-circuito”, como diz Bourdieu. Erro que consiste emrelacionar dois termos bastante afastados, suprimindo umamediação muito importante – o espaço no interior do qualas pessoas produzem, ou seja – o campo da produçãocultural.

Este subespaço não deixa de ser um espaço social, no qualse estabelecem jogos sociais de um tipo particular, einteresses que podem estar bem distanciados daquilo queacontece no mundo exterior a ele. Entretanto, além dosinteresses e determinantes sociais associados a posições eenfoques específicos, existem, segundo o filósofo,determinações bem mais fundamentais e bem maisdespercebidas que são inerentes à postura intelectual, àposição do “sábio”.

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No momento em que observamos o mundo social, ou umaparcela dele, nossa percepção está sujeita a um desviofundamental: o fato de que, para falar do mundo social, oupara estudá-lo para falar sobre ele, é preciso que nosdistanciemos dele. Para falar do elefante equilibrado emcima da corda, ou para estudarmos as possibilidades detira-lo dessa situação, é preciso que estejamos no chão,ou na janela, ou até mesmo em cima do muro.

O desvio que se pode chamar de “teoricista”, ouintelectualista consiste, segundo Bourdieu, em esquecer-sede inscrever, na teoria que se faz do mundo social, o fatode que ele é produto de um olhar teórico (Bourdieu,1987a). Para fazer uma ciência justa do mundo social épreciso não só construir uma teoria (modelos, estruturas erelações) como também inserir na teoria final uma teoriada distância entre a teoria e a prática. Entre a nossaobjetivação do elefante e o seu ponto de equilíbrio.

É nesse espaço social, como em todos os universos sociais– espaço como sistema de relações, que os problemas secriam e se resolvem. Na Teoria, existem hipóteses, naPrática encontram-se soluções. Quaisquer que elas sejam –rede, escada, asas ou até mesmo a queda e odesmoronamento. Na análise e objetivação de um fenômenosocial, é preciso estar atento ao objeto, mas também aotrabalho que se faz sobre esse objeto.

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O campo social é também um campo de poder. No mundouniversitário, como no museológico, há uma luta pelaúltima palavra, por dizer a verdade mais definitiva sobreo mundo universitário, o mundo museológico e sobre ouniverso social de um modo geral. Uma luta que opõe osociólogo ao antropólogo, o psicólogo ao médico, oarquiteto ao museólogo, como também os sociólogos,antropólogos, psicólogos, arquitetos e museólogos entresi.

O pseudo-objetivismo teórico e acadêmico, diz Bourdieu,abriga a tentação de esmagar os concorrentes, o que geraerros, e erros técnicos (Bourdieu, 1987a).

É preciso assim ultrapassar o conflito entre os opostos –estruturas objetivas e representações subjetivas – eaplicar ao fenômeno o que Bourdieu chama de revoluçãoestruturalista, que consiste em aplicar ao mundo social ummodo de pensar relacional, que é aquele da matemática e dafísica modernas, e que identifica o real, não asubstâncias, mas a relações (Bourdieu, 1987b: 150). E paranão dizer que fiquei em cima do muro com o meu olharteórico, volto mais uma vez à análise da corda esticadapara tentar estabelecer algumas dessas relações.

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No plano horizontal eu poderia falar da posição relativados Museus entre a Universidade e a Escola, (centros depesquisa e produção de conhecimento e centros de ensino),e que não sendo nem uma coisa nem outra acabam poresquecer o seu lugar específico, a meio caminho entreessas duas instituições, na terceira ponta do triânguloeducacional.

Poderíamos ainda tomar o plano da estrutura administrativaem que se inserem, no âmbito governamental, e discutir deque maneira a sua relativa autonomia se reflete na suarelativa autossuficiência. O plano burocrático refletindopor sua vez a estrutura político/econômica do país, queencurta cada vez mais os recursos financeiros para a cordada Cultura. Relativa autonomia e relativa autossuficiênciaredundam em relativa responsabilidade na eficiente gestãodos assuntos públicos. Responsabilidade que recai, assim,em última instância, na autoridade máxima da administraçãopública, que normalmente está a uma relativa econsiderável distância das áreas finalísticas. Se a cordabalança numa ponta ao sabor dos ventos políticos fica essaresponsabilidade pairando no ar, por lapsos de temposuficientes para provocar instabilidade e descontinuidadede ação.

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Mas se quisermos entender porque os Museus são elefantes,e porque estão pairando a muitos metros do chão, temos queanalisar a distância cronológica que separa as duas pontasda corda e que corresponde ao Tempo Social em continuamutação. A medida deste espaço correspondeproporcionalmente à distância que separa os elefantes daplateia, ou melhor, os Museus do seu público.

Que papel podem realisticamente assumir as instituiçõesmuseológicas hoje, num contexto social e natural emevolução tão rápida que não permite ao menos um espaçopara a sedimentação histórica? Que garantia podem osMuseus oferecer ao conceito tradicional de representaçãoda identidade cultural de um povo, especialmente de umpovo em desenvolvimento, quando as múltiplas identidadesse constroem e reconstroem, e simultaneamente se esfacelama cada minuto? Que sustentabilidade podemos pretender paraas nossas ações? Temos aqui mais algumas questões a seremdebatidas...

O fato é que para que os elefantes ponham seus pés no chãoe encontrem seu lugar no espaço social da produção e davida cultural, é preciso que sua presença e ação tenham umefeito concreto, um efeito vibratório como acontece com ochão, na passagem desses belos paquidermes. Podemos chamara esse efeito de Ressonância. Ressonância cultural,ressonância social, ressonância afetiva. Para entendermoso significado desta proposição, exploremos o conceito e adefinição de...

RESSONÂNCIA:

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- a qualidade de um som que permanece alto, claro eprofundo por um longo tempo…

- a qualidade que faz alguma coisa particularmentesignificativa ou importante para alguém...

- um som ou vibração produzida em um objeto que é causadopelo som ou vibração produzido em outro objeto.

A “ressonância” ocorre em ampla escala na natureza, e éexplorada por muitos mecanismos feitos pelo homem. É omecanismo pelo qual virtualmente todas as ondassinusoidais e vibrações são geradas. Muitos sons queouvimos, como quando batemos forte em objetos de metal, devidro ou madeira, são causados pelas breves vibraçõesressonantes no objeto.

Ondas curtas da radiação eletromagnética são produzidaspor ressonância em escala atômica, tais como os elétronsnos átomos. É o que se utiliza modernamente na medicina,com os equipamentos de ressonância magnética para exploraras profundezas de nosso organismo.

Aplicando este conceito, metaforicamente, à prática daMuseologia e da ação patrimonial, podemos ter um critériopara avaliar nossas instituições, programas e projetos:que tipo de “ressonância”, que tipo de impacto e de efeitoelas têm sobre a sociedade em que estão inseridas, a nívelnacional, regional, local? Que tipo de vibração provocam?

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Uma medida deste impacto é verificar que alterações decomportamento em relação ao museu, à instituição, aoinstrumento de preservação, seja tombamento ou simplesregistro, ao patrimônio monumental, integrado, imaterialse pode constatar... na verdade, cada experiência é única,cada comunidade é única, cada visitante de museu é único.Devemos ser capazes de estabelecer uma comunicação e umainteração com todos e com cada um, considerando todas aspeculiaridades, necessidades, expectativas. Assim, apesquisa do público antes do início do projeto ou da açãomuseológica ou patrimonial é um instrumento fundamentalpara orientar o planejamento e o design de nossasrealizações.

Como conseguir este “engajamento participativo” por partede nosso público, de nossas comunidades, de nossasautoridades e organizações locais? A moda hoje é o “crowdfunding”, uma expressão globalizada para nos referirmos àsnossas famosas “vaquinhas”, que bem pode ser traduzidacomo “vaquinha virtual”... esse instrumento, que sesustenta nas redes sociais virtuais, pode ser um dosrecursos da moda, o que não impede que outras ações, maisbásicas e reais (não virtuais) possam acontecer. É o queveremos adiante, nas ideias de Nina Simon (Simon, 2010),uma jovem designer de museus americana, e publicadas emseu livro “O Museu Participativo”. Uma das constataçõesdesta autora é surpreendente:

“Uma pesquisa feita nos EUA revelou que nos últimos vinte anos opúblico dos museus, galerias e salas de espetáculo diminuiu, e tornou-semais velho e mais branco que a maioria da população. Apesar dasinstituições culturais proclamarem que seus programas oferecemvalores cívicos e culturais únicos, cada vez mais pessoas estão se

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voltando para outras fontes de entretenimento, aprendizado e diálogo.Elas compartilham suas obras de arte, música e histórias entre si naWeb. Elas participam na política e são voluntárias em númeroscrescentes. Elas inclusive estão lendo mais. Mas não estão frequentandoexposições e performances dos museus como costumavam”.

“Como podem as instituições culturais se reconectar com o público edemonstrar seu valor e relevância na vida contemporânea? Acredito queelas possam fazer isto convidando as pessoas a engajarem-seativamente como participantes culturais, e não consumidores passivos.Quanto mais as pessoas usufruem e se tornam acostumadas aoaprendizado participativo e a experiências de entretenimento, elasquerem fazer mais do conjunto fabuloso de ferramentas e modelos dedesign que fazem a participação cada vez mais acessível".

Os visitantes esperam ter acesso a um vasto espectro de fontes deinformação e de perspectivas culturais. Eles esperam ter a habilidade deresponder e de ser levados a sério. Eles esperam ter a capacidade dediscutir, compartilhar e “remixar” o que eles consomem. Quando aspessoas podem participar ativamente nas instituições culturais, esseslugares se tornam centrais para a vida cultural e da comunidade”. É oque propõe Nina Simon.

Vendido em seu blog pessoal ou pela internet, o livro deNina Simon propõe várias técnicas para convidar ovisitante a participar das instituições culturais e aomesmo tempo promover os objetivos institucionais. “Oengajamento da comunidade é especialmente relevante em um mundo queoferece cada vez mais oportunidades de participação, na rede social.Entretanto, propostas de participação da audiência nas instituições culturaisdatam de ao menos cem anos”.

Há três teorias fundamentais na base deste livro:

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- a ideia da instituição centrada no público, que é tãorelevante, útil e acessível quanto um shopping ou umaestação de metrô. (com agradecimentos da autora a JohnCotton Dana, Elaine Heumann Gurian e Stephen Weil);

- a ideia de que os visitantes constroem seus própriossignificados de suas experiências culturais (comagradecimentos a George Hein, John Falk e Lynn Dierking);

- a ideia de que as vozes dos usuários podem informar erevigorar tanto o desenho dos projetos quanto os programasdirecionados ao público (com agradecimentos a KathyMcLean, Wendy Pollock e a firma de design IDEO).

As propostas de Nina Simon, baseadas nas ideias de váriosimportantes museólogos e pensadores da museologiainternacional, servem para embasar várias ações nasinstituições de hoje, e são explicadas em casos de estudo.Não é preciso ter auditórios modernos ou exposições“blockbusters, mas sim que as instituições tenham umrespeito genuíno e um interesse real nas experiências,histórias e habilidades dos visitantes. Nina define aindauma instituição cultural participativa como um lugar ondeos visitantes podem criar, compartilhar e se conectar comoutros visitantes em torno de conteúdos. Criar significaque os visitantes contribuem com suas próprias ideias,objetos e expressões criativas para a instituição e paraoutras pessoas. Compartilhar significa que as pessoasdiscutem, levam para casa, remixam e redistribuem tanto oque elas vêm quanto o que elas fazem durante a visita.Conectar significa que os visitantes socializam com outraspessoas - técnicos da instituição e visitantes – quecompartilham seus interesses individuais. Em torno de

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conteúdos significa que as conversas e criações dosvisitantes estão focadas na evidência, nos objetos e nasideias mais importantes para a instituição em questão.

O objetivo das técnicas participativas é não só atender asexpectativas dos visitantes por um engajamento ativo comotambém fazer isto de uma maneira que incentive a missão eos valores fundamentais da instituição. Ao invés deoferecer o mesmo conteúdo para todo mundo, uma instituiçãoparticipativa coleta e compartilha conteúdos diversos,personalizados e mutáveis, coproduzidos com os visitantes.Ela convida os visitantes a responder e a acrescentar aosobjetos culturais, à evidência científica, aos registroshistóricos em exposição. Ela exibe as criações e opiniõesdiversas dos leigos. As pessoas usam a instituição comolocais de encontro para dialogar sobre os conteúdosapresentados. Ao invés de serem “sobre” alguma coisa, ou“para” alguém, as instituições participativas são criadase administradas “com” os visitantes.

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Porque uma instituição cultural convidaria os visitantes aparticipar? Como todas as técnicas de design interativo, aparticipação é uma estratégia que se dirige a problemasespecíficos. “Vejo as estratégias participativas”, dizNina (Simon, 2010) “como maneiras práticas de reforçar,não de substituir, as instituições culturais tradicionais.Planejando oportunidades explicitas para o diálogointerpessoal, as instituições culturais podem se destacarcomo locais do mundo real onde se possam discutir assuntosimportantes referentes aos conteúdos”.

O desafio é saber como fazê-lo. Buscando técnicasparticipativas que se alinham com os valores fundamentaisda instituição é possível ampliar a sua ressonância sociale garantir o engajamento do público, visando asustentabilidade da instituição e do seu patrimôniocoletivo.

Como podem as instituições culturais usar técnicasparticipativas não apenas para dar voz aos visitantes, maspara desenvolver experiências mais valiosas e profundaspara todo mundo? Isto não é uma questão de intenção oudesejo; é uma questão de planejamento e de design. Quer oobjetivo seja promover o diálogo ou a expressão criativa,aprendizado compartilhado ou trabalho co-criativo, oprocesso de planejamento começa com uma simples questão:que instrumento ou técnica produzirão a almejadaexperiência participativa?

Não temos espaço, aqui, para explorar as múltiplaspossibilidades, instrumentos ou propostas desse processo

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de experiência participativa, mas o importante éaceitarmos que, se quisermos que os museus e as açõespatrimoniais tenham relevância e ressonância para asociedade, nos dias atuais, é imprescindível que possamproporcionar ao público esta “experiência”: e mais, quepossam seduzir e conquistar o público e a sociedade paraum verdadeiro “engajamento” neste trabalho. Um dosprincípios da Educação Patrimonial é a ideia do “aprenderfazendo”... a participação no trabalho dos museus, dopatrimônio e da educação cultural através do patrimônio,por parte da comunidade, é um poderoso instrumento deaprendizado e conhecimento, cujos caminhos levam ao“empowerment”, ao “empoderamento” individual e coletivo,proposto por Paulo Freire.

O livro de Hugues de Varine, “Raízes do Futuro, o PatrimônioCultural a serviço do desenvolvimento” (De Varine, 2012) lançadoem português recentemente, e do qual tive a honra de fazera tradução, traz um série de estudos de caso em que o usoe a apropriação do patrimônio cultural e natural, materiale imaterial, de diferentes comunidades revelam resultadosefetivos e extraordinários no sentido da solução deproblemas e crises e da busca de caminhos para odesenvolvimento sustentável. O caso da Quarta Colônia deImigração Italiana no sul do Brasil é um desses exemplos,em que o engajamento das autoridades (no caso prefeitos esecretários de cultura locais), mobilizados por um líder,José Itaqui, provocou um fenômeno excepcional detransformação de uma situação de pobreza e estagnação paraum cenário de novas oportunidades e perspectivas, ao longode várias décadas. O programa “Arca de Noé”, elaborado paraenfrentar um dilúvio anunciado, com a construção da

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hidroelétrica de Itá, no alto curso do rio Uruguai, tambémno sul do país, foi construído com o engajamento de váriossegmentos da sociedade, desde os arquitetos da empresaconstrutora aos prefeitos das áreas atingidas pelabarragem, aos professores e líderes comunitários, noresgate dos elementos culturais relevantes para apreservação da memória comum e de todo o processo detransformação profunda a que foram submetidas estaspopulações.

Mas há um ponto fundamental a colocar, como final destacomunicação, e que deve estar no âmago de qualquerestratégia institucional direcionada a envolver e aengajar o público nos destinos da instituição: museu,sítio histórico, galerias e espaços culturais. É precisoque não nos afastemos da missão e do propósito originaisque justificam a existência dessas instituições. Seacreditamos em nossa missão publica e institucional, nãopodemos abandonar o seu conteúdo e proposta originais emtroca de temas mais amenos e mais atraentes, no sentido davulgarização da ação institucional. A questão dos valoresinstitucionais e dos significados atribuídos às coleções esítios patrimoniais deve ser respeitada e debatida, emdiálogo democrático, com as comunidades detentoras destepatrimônio. O “valor público” das instituições e dosprogramas de patrimonialização é também um fatorfundamental a ser considerado, contribuindo para avalidade e a sustentabilidade do debate, em especialquando verbas públicas estão em jogo, como discutido porCarol Scott (Scott, 2013).

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Neste aspecto, são muitas as questões, que poderiam ocupara extensão de muitos simpósios como este de queparticipamos hoje. Ficamos por aqui.

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