A Gestão dos Museus e do Patrimônio

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A GESTÃO DOS MUSEUS E DO PATRIMÔNIO CULTURAL Maria de Lourdes Parreiras Horta – maio 2002 A tarefa de gerenciar, dirigir, conduzir, coordenar e promover o desenvolvimento dos museus e do patrimônio cultural, no alvorecer do século XXI, configura-se numa prática embasada em um “saber” e em uma experiência profissional para as quais ainda não se formularam teorias, reflexões, críticas ou avaliações em nível mais amplo, e sobre as quais ainda não se pode “aprender na escola”. Este aprendizado e conhecimento, ao longo dos últimos 80 anos de vida institucional dos museus, casas históricas e de organismos de preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro, tais como o IPHAN, no âmbito federal, vem sendo adquirido na prática constante e quotidiana de seus dirigentes, técnicos e administradores, transformando-se e renovando-se ao longo do tempo, de acordo com as mudanças na administração pública e na própria demanda da sociedade. Estas mudanças se aceleraram nitidamente, na última década, não apenas nos modelos e modos de gestão desses organismos, como principalmente no crescimento em importância do papel dos museus e das ações patrimoniais no espaço público da vida cultural em nosso país. A complexidade e especificidade destas tarefas gerenciais dos serviços prestados pelos museus e órgãos de patrimônio, no cumprimento de sua missão legal e institucional, não podem ser confundidas com a “gerência de projetos culturais”, em sua expressão mais comum e popularizada, através de ações de animação e promoção cultural, ou de “captação de recursos” e montagem de projetos, para o que um número cada vez maior de agentes tem atuado e se qualificado através de cursos de curta duração. O caráter específico da gestão do patrimônio e dos museus requer uma abordagem e uma definição ainda não estabelecidas no universo das ações culturais, que enfatizem e reforcem a necessidade imprescindível de uma formação técnica 1

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A GESTÃO DOS MUSEUS E DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Maria de Lourdes Parreiras Horta – maio 2002

A tarefa de gerenciar, dirigir, conduzir, coordenar e promover o desenvolvimento dos museus e do patrimônio cultural, no alvorecer do século XXI, configura-se numa prática embasada em um “saber” e em uma experiência profissional para as quais ainda não se formularam teorias, reflexões, críticas ou avaliações em nível mais amplo, e sobre as quais ainda não se pode “aprender na escola”. Este aprendizado e conhecimento, ao longo dos últimos 80 anos de vida institucional dos museus, casas históricas e de organismos de preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro,tais como o IPHAN, no âmbito federal, vem sendo adquirido naprática constante e quotidiana de seus dirigentes, técnicos e administradores, transformando-se e renovando-se ao longo do tempo, de acordo com as mudanças na administração públicae na própria demanda da sociedade. Estas mudanças se aceleraram nitidamente, na última década, não apenas nos modelos e modos de gestão desses organismos, como principalmente no crescimento em importância do papel dos museus e das ações patrimoniais no espaço público da vida cultural em nosso país.A complexidade e especificidade destas tarefas gerenciais dos serviços prestados pelos museus e órgãos de patrimônio, no cumprimento de sua missão legal e institucional, não podem ser confundidas com a “gerência de projetos culturais”, em suaexpressão mais comum e popularizada, através de ações de animação e promoção cultural, ou de “captação de recursos” emontagem de projetos, para o que um número cada vez maior deagentes tem atuado e se qualificado através de cursos de curta duração.O caráter específico da gestão do patrimônio e dos museus requer uma abordagem e uma definição ainda não estabelecidasno universo das ações culturais, que enfatizem e reforcem a necessidade imprescindível de uma formação técnica

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especializada, da clarificação e determinação de conceitos básicos que orientem essas ações, da discussão da legislaçãoe das normas existentes, ou a serem formuladas, das implicações legais, éticas, profissionais e sociais delas decorrentes.No Brasil, e em todos os países do mundo ocidental, a necessidade de gestores de museus e de patrimônio, capacitados e identificados como tal, vem se fazendo sentir de modo cada vez mais premente, para atender a uma crescentedemanda e popularização da utilização e do usufruto dos bensculturais e patrimoniais, preservados ou não pelas instituições competentes, em especial como decorrência do crescimento da indústria do turismo cultural, e da tendênciaurbanística, em grandes metrópoles e mesmo em cidades de médio porte, de revitalização e re-aproveitamento dos centros históricos, das áreas portuárias, ou de áreas degradadas, visando sua “re-funcionalização” e re-apropriação por parte das comunidades locais, do comércio, da indústria cultural e do fluxo turístico. Não são poucos os projetos nesse sentido, em muitas cidades do Brasil e do exterior, como por exemplo a utilização de armazéns na área portuária para instalação de restaurantes, shoppings, cinemas e centros culturais (como em Lisboa, Nova Iorque, Buenos Aires, Manaus, Belém, Rio de Janeiro, entre outras), ou a construção de grandes museus, cuja arquitetura de impacto e ações de grande alcance podem modificar o panoramaurbano em centros decadentes ou deteriorados (o caso de Bilbao, na Espanha, vem a ser o mais recente e conhecido, mas podemos ainda citar o polêmico projeto da construção de um Museu Guggenheim, no Rio de Janeiro).Na Espanha e em Portugal, para citar países com os quais o Brasil mantém estreitos laços históricos e culturais, já existem cursos de mestrado e teses de doutorado sobre o temada Gestão do Patrimônio, que buscam a formação de pessoal específico para essas atividades, dada a crescente demanda de técnicos com esse perfil e capacitação, sem que ainda a profissão de “gestor de patrimônio” esteja formalmente reconhecida nos quadros dos órgãos públicos ou de grandes empresas empreendedoras de projetos nessa área. Na Espanha,

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entretanto, foi criada uma “Associação Espanhola de Gestores do Patrimônio Cultural”, que vem a ser pioneira na discussão e promoção desta área específica de experiência e atividade.É assim premente a necessidade de se discutir no Brasil a questão da formação, capacitação e definição profissional dos “gestores do Patrimônio Cultural”, entre os quais se situam os “gestores de Museus”.Este artigo se propõe assim a lançar uma primeira discussão sobre o tema, de uma forma ainda limitada e superficial, como um instrumento de provocação do debate e da reflexão sobre o que pode significar o exercício da “gestão” de museus e do patrimônio cultural, tomando como ponto de partida minha experiência pessoal de trabalho neste campo, nos últimos vinte anos, e em especial de minha vivência pessoal e profissional como diretora do Museu Imperial, desde 1991. Para iniciar a discussão, começamos com uma pergunta básica:

O que é ser um “gestor” de uma instituição museológica ou patrimonial?

As questões que serão aqui levantadas se referem a uma experiência específica na área dos museus federais, mas poderão ser aplicadas, com a devida consideração dos diferentes contextos operacionais, a outras esferas de atuação institucional, públicas e privadas.A palavra “gestor”, que pode ser sinônimo de “diretor”, “coordenador” ou “responsável” pelos serviços e pela administração de uma instituição museológica ou patrimonial,não se resume apenas, como pode parecer, ao exercício de uma“função de comando”, ao “dar ordens” ou “determinar que as coisas aconteçam”, a um grupo de subordinados. A raiz etimológica deste termo nos remete ao verbo “gerir”, “manejar”, conduzir um processo através de instrumentos, mecanismos e procedimentos adequados para que se obtenha um resultado, um “produto final”, no mínimo satisfatório, e queatenda às intenções e expectativas de seus “promotores” e deseus “usuários”. O processo de “digerir” um alimento, através do aparelho “digestivo”, pode ser uma boa metáfora

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para o exercício da “gestão” de uma instituição. O processo de digestão de alimentos é bastante complexo, desde a “ingestão” dos mesmos, seu “processamento” em diferentes partes do organismo, com a ação de enzimas e ácidos, até a absorção dos elementos ingeridos e sua transformação em energia vital, garantindo a sobrevivência e o bom funcionamento orgânico do indivíduo.A “gestão” de um organismo público pode ser vista, assim, como uma atividade processual, como o desenvolvimento sistêmico de um processo que visa garantir a sobrevivência ea funcionalidade da instituição. Esta atividade, que não é uma teoria, como veremos adiante, mas uma prática que acontece em um contexto dado, requer a participação de inúmeros e complexos fatores e elementos que entram em jogo ao longo do processo. A atividade da “gestão” se refere ao “gerenciamento”, ao “management”, na expressão universalizada do termo anglo-saxão, ao “manejo” dos recursos e instrumentos disponíveis de modo a que estes venham a operar em nível ótimo, com resultados verificáveis,eficientes e eficazes, garantindo um resultado previsto.O “gestor” de uma instituição museológica ou patrimonial é assim um profissional que conhece e está capacitado para o “manejo” dos recursos e instrumentos disponíveis em sua instituição, para impulsionar o desenvolvimento dos processos específicos em sua área de competência e atuação, para coordenar e equacionar as diferentes atividades e ações, buscando sua operacionalização em nível ótimo, com resultados verificáveis, eficientes e eficazes, e visando ocumprimento da “missão institucional”, definida por leis, normas éticas e profissionais, e pela própria demanda e expectativa da sociedade.

Passamos assim a uma segunda questão:

O que é o gerenciamento? o que caracteriza o “gerenciamento público?” quais as suas especificidades e implicações, no contexto dos museus e órgãos patrimoniais?

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Para os autores franceses Serge Alecian e Dominique Foucher,que elaboraram o Guia de Gerenciamento no Setor Público 1, o gerenciamento é, antes de tudo, uma atividade, ligada à prática (e à reflexão sobre a prática), e não uma teoria. Osdois autores aliaram seu conhecimento ao longo de uma grandeprocesso, promovido pelo Governo Francês na reforma de sua burocracia, à sua experiência na iniciativa privada, e a um interesse específico na relação entre CULTURA e GERENCIAMENTO, o que lhes permitiu cautela e rigor nas transposições de conceitos e ferramentas para a gerência pública.2 O gerenciamento é antes de tudo uma atividade prática, como dizem os autores, mas sua qualidade depende dereflexão e elaboração de conceitos abrangentes e ferramentasúteis, que venham a garantir a coerência dessas práticas, como um dos pilares para o sucesso, a eficiência e a eficácia do serviço público.

A grande maioria dos gerentes de museus e do patrimônio no Brasil atingiu esta posição sem uma formação específica para o exercício da atividade gerencial, e, normalmente, foram indicados para os cargos de direção e/ou de gerência intermediária por suas qualificações nas diferentes áreas técnicas e especializadas em que desenvolveram suas carreiras profissionais. Entretanto, é no exercício quotidiano de sua missão gerencial, a frente de órgãos públicos da área museológica ou patrimonial, que estes técnicos têm que aprender, na prática, como exercer suas funções no emaranhado e na complexidade da burocracia, da legislação e das normas administrativas implantadas, com os recursos e limitações que configuram e determinam o seu campo de atuação, com as mudanças e a imprevisibilidade nas

1 ENAP – Editora Revan, 2001, RJ. Titulo original: Guide du management dansle service public, Les Éditions d’Organization, Paris, 1994.2 Alecian e Foucher contribuiram para o desenvolvimento desta área no Brasil, animando cursos e seminários gerenciais na ENAP, desde 1997, em cooperação com o SIFOM – Secteur Interministériel de Formation à l’Organisation et auManagement, do governo francês.

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conjunturas organizacionais e políticas, e que vão adquirir,à custa de muito suor e lágrimas, angústias e intuições, fracassos e sucessos, a experiência e o conhecimento do que significa ser um “gestor de museus” ou de “patrimônio” em nosso país, no alvorecer do século XXI. Na busca, e com o ideal, de aperfeiçoamento e desenvolvimento da eficácia e daeficiência dos serviços pelos quais são responsáveis, estes profissionais vão adquirir um “fundo de competência”, para usar os termos de Marc Cabane no prefácio ao livro citado, sobre o qual se apoiam para exercer suas funções e sua tomada de decisões, construído na prática e com base na experiência de cada um, e que muito poderia lucrar com o aprofundamento do conhecimento e da reflexão sobre as ferramentas e estratégias do gerenciamento, voltadas para a sua modernização e aprimoramento, e em última instância, para a melhoria da qualidade no serviço público; em nosso caso específico, da ação dos museus e dos órgãos patrimoniais, visando a preservação dos valores e bens culturais, da memória coletiva e de sua correta apropriação e usufruto por parte da sociedade brasileira.De um modo geral, assistimos no Brasil e em todo o mundo um florescimento de experiências que se traduzem em uma práticagerencial específica do serviço público, e de um modo especial e particular no gerenciamento dos museus e dos benspatrimoniais.Na falta de conhecimentos aprofundados na área gerencial, com relação a teorias, métodos e ferramentas, este artigo pretende exprimir o que pude perceber e detectar ao longo de37 anos de trabalho, por mais de 20 anos no exercício de funções de chefia e direção, na área dos museus federais, bem como minhas observações sobre a questão no campo mais vasto dos museus e do patrimônio no Brasil, com base nas experiências com as quais tive contacto, ao longo de minha vida profissional.O que pretendo relatar e comentar aqui, portanto, é a minha prática e a minha vivência do problema, procurando em linhasgerais traçar um mapa de orientação neste emaranhado de experiências, que me permita uma reflexão crítica e talvez esclarecedora para minhas próprias dúvidas e angústias, que

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podem ser úteis a outros profissionais, com base naquilo queficou sedimentado em minha percepção, ao longo do tempo.

Como roteiro para esta viagem expositiva/exploratória (porque ao expor minhas observações e idéias sei que muito me surpreenderei ao descobrir novos aspectos que só o distanciamento crítico nos permite perceber), optei por seguir aproximadamente a estrutura do “Guia de Gerenciamento” citado, bem como alguns pontos focais de outra publicação inspiradora, “ISO 9000-2000 – Calidad y Excelencia” de Andrés Senlle. Esta última leitura configurou-se de grande interesse para oaprofundamento da discussão do que significa “qualidade” e “excelência” na gestão dos museus, na circunstância em que oMuseu Imperial, sob a minha direção no presente momento, aceitou o desafio proposto pelo Ministério do Planejamento para se inserir, como projeto-piloto, no Programa de Qualidade no Atendimento ao Usuário”, que vem sendo implantado no âmbito dos órgãos públicos federais.

A NATUREZA DO SERVIÇO PÚBLICO NOS MUSEUS E NO PATRIMÔNIO

Segundo os autores franceses citados, a definição de “serviço público” sempre apresenta problemas, e pode ser múltipla de acordo com o enfoque que adotemos: jurídico, financeiro, econômico... não importa o enfoque, adotamos o escolhido pelos autores, e que mais interessa à questão do GERENCIAMENTO, definindo como “serviço público” qualquer organização que se dedique à “missão do serviço público, e cujos recursos sejam constituídos majoritariamente de impostos, taxas, ou algo semelhante (cotizações compulsórias, fundos governamentais formados por contribuições especificadas em lei, etc.). Esta definição é a mais apropriada, no caso em questão, já que a ORIGEM DOS RECURSOS determina ao mesmo tempo:

a) a natureza das relações com os destinatários das atividades das organizações consideradas (usuários, administradores, subordinados, ...)

b) a aplicação correlativa das regras da contabilidade pública;

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c) e a do estatuto da função pública para o pessoal...

Estes três aspectos, decorrentes da ORIGEM DOS RECURSOS, configuram claramente os pontos cruciais que determinam, orientam e impõem limitações e obstáculos ao exercício da GERÊNCIA DOS MUSEUS E DO PATRIMÔNIO, constituindo-se igualmente como os CONCEITOS BÁSICOS sobre os quais se orienta a prática gerencial, no contexto do serviço público.As vantagens, as dificuldades, e os obstáculos que podem serapontados dentro deste quadro serão explicitados mais adiante, mas, de um modo sucinto, podemos traduzi-los como:

a) os recursos aplicados na manutenção e funcionamento dosmuseus e dos órgãos patrimoniais, no âmbito federal, são oriundos da sociedade como um todo, através dos impostos, taxas e contribuições compulsórias feitas ao Estado. Os usuários destes serviços são portanto os verdadeiros “patrões” do serviço público a eles prestado através dos organismos e agências institucionais, por delegação de competência. Assim, osusuários devem e podem exigir a qualidade, a eficiênciae a eficácia destes serviços, e de modo especial no serviço de proteção, preservação e difusão, acessibilidade e valorização de seu PATRIMÔNIO CULTURAL, sob a guarda dos museus e das instituições depatrimônio criadas com esta finalidade;

b) a operacionalização e aplicação destes recursos estão sujeitas às normas ditadas pela legislação, e à fiscalização por parte dos organismos federais de controle interno. A gestão dos recursos públicos requero conhecimento aprofundado destas normas e leis, e dos mecanismos apropriados para sua aplicação. Na gestão dos museus, e na do patrimônio, a aplicação destas normas e mecanismos, mesmo necessária e obrigatória, gera problemas operacionais com relação a atividades que, por seu caráter específico e excepcional, não seenquadram nas características gerais de outras atividades do serviço público, e para as quais não há previsão normativa e/ou legal.

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c) a questão do “estatuto da função pública” para o pessoal em serviço, no quadro dessas instituições, tem uma importância fundamental na prática gerencial em museus e órgãos patrimoniais. Nem todos os funcionários“estatutários” em atividade na instituição têm consciência do significado e do valor agregado à sua vida profissional por sua condição de “servidores públicos”, isto é, servidores da sociedade, buscando atender às suas necessidades, interesse e demanda. As atuais e já antigas circunstâncias que levam à diminuição gradual do número de servidores, pela ausência de concursos públicos para o preenchimento doscargos vagos, a inexistência de um plano de carreiras para a área dos museus e do patrimônio, e a prolongada defasagem salarial, vêm contribuindo para o desestímuloe a auto-desvalorização dos funcionários em atividade, que não conseguem ver perspectivas de desenvolvimento ou o reconhecimento de seus esforços e capacidades. Umaboa parte desse pessoal consegue manter a moral elevadae a energia para produzir e realizar suas tarefas profissionais, seguramente porque acreditam em sua “missão pessoal”, inserida na “missão institucional”, como fonte de gratificação e realização individual e degrupo. Mas sabemos que um grande contingente de servidores não “escolheu” o serviço público, por opção profissional e pessoal, e muitos ingressaram nas carreiras públicas por diferentes motivos, tais como: uma oportunidade eventual de um concurso, um estágio que redundou em contratação temporária, depois efetivada, ou mesmo o remanejamento de um órgão para outro, por diferentes circunstâncias; de um modo geral não têm a “mística” da instituição, e não vêem maior sentido em suas tarefas rotineiras, sentindo-se igualmente desvalorizados, “mal aproveitados”, sem perspectivas de crescimento, e ao mesmo tempo, sem a compensação moral e psicológica que mobiliza e motiva oprimeiro grupo.

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Dirigir, conduzir, motivar e mobilizar o quadro de pessoal existente numa instituição (e não apenas no caso dos museus e dos órgãos de patrimônio) para o alcance dos objetivos da organização e o cumprimento de suas metas estratégicas requer do dirigente ou gestor uma capacidade extraordinária de mobilização das energias, de apaziguamento de conflitos,de compreensão e paciência no trato individual, de diplomacia e habilidade para o encaminhamento dos problemas e das necessidades do pessoal sob sua direção. O peso da tradição ou da “cultura institucional”, que reage fortementeàs mudanças e inovações, a transformação da mentalidade do “funcionário público” para uma nova visão do “serviço público”, na busca da melhoria e da qualidade deste serviço,a aceitação de visões diferenciadas sobre os modos de gestãode uma instituição, são desafios e obstáculos constantes ao desempenho do gestor público, que se fazem sentir de modo especial na gerência dos museus e do patrimônio, organismos em que a tendência à conservação, como objetivo final das ações, se transforma, por contaminação, na conservação de hábitos e mecanismos cristalizados no tempo, e numa persistente resistência às inovações, de qualquer nível. Falaremos mais sobre este aspecto, ao longo deste texto.

O QUE SIGNIFICA “GERENCIAR”?

De acordo com os autores citados, o sentido atual da expressão “management”, gerenciamento, embora de origem latina, é fixado habitualmente em inglês, para designar a atividade que consiste em conduzir, dirigir um serviço, uma instituição, uma empresa. De um modo geral, o termo anglo-saxão, que pode ser traduzido como “gerenciamento”, ainda é visto com desconfiança no serviço público, por se relacionar com o modo de gestão próprio das empresas privadas, e supostamente não corresponder à realidade administrativa e à missão pública. Duas idéias estão subjacentes a este termo:

- a de treinamento, de exercício, isto é, de aprender autilizar instrumentos com competência e habilidade;

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- a de saber conduzir uma “família”, uma “casa” pela qual somos responsáveis.

Um bom administrador, um bom gerente, é assim aquele que sabe utilizar os talentos colocados à sua disposição para dirigir da melhor forma a “casa” que lhe foi confiada. Se aceitarmos esta primeira definição de gerenciamento propostapor Alecian e Foucher, constataremos, como afirmam os autores, que cada um, seja qual for o seu papel, seja qual for o seu trabalho, está inserido no gerenciamento: como responsável de um serviço, como membro de uma equipe. Assumindo assim a definição proposta acima, podemos dizer que:

“o gerenciamento é a atividade que consiste em conduzir, a partir de um contexto dado, um grupo de homens e mulheres que busquem o alcance comum de um ou diversos objetivos, de acordo com as finalidades da organização.” (op.cit.p.22).

Por conseguinte, para sintetizar, o gerenciamento é...

- um trabalho, uma ocupação, uma prática....- exercido com e junto a outras pessoas

(superiores e subordinados administrativamente)...

- um ofício de “conduzir” as pessoas envolvidas na instituição...

- a atingir metas de acordo com os objetivos da organização...

- num contexto “dado”...

No meu modo de ver, este trabalho é parecido com o de um maestro de uma orquestra...em inglês, o “conductor”... é preciso conseguir tirar o melhor de cada um dos músicos, de seus talentos, e estes, por sua vez, de sua habilidade, musicalidade, e da qualidadede seus instrumentos específicos... é preciso conseguir a harmonia e o equilíbrio do conjunto, sem que uns se sobreponham aos demais, é preciso conhecer profundamente a

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partitura, e principalmente, é preciso compreender e produzir a música que vai deleitar e encantar a platéia... a“afinação” de cada instrumento em relação aos demais, a compreensão de cada músico de sua participação na orquestra,de seu momento exato de atuar, e a energia e entusiasmo do “maestro”, são elementos fundamentais para o sucesso do espetáculo. Se não houver afinação, se não houver harmonia, se cada um resolver tocar seu instrumento na hora em que lheaprouver, se os músicos não tem a música na alma, o resultado certamente será um desastre... esta é uma boa metáfora para a gerência dos museus, na produção de seu “espetáculo” destinado ao usufruto de seu público. Tudo conta, nos mínimos detalhes, e cada funcionário, cada servidor, cada profissional (inclusive os que não são permanentes no quadro) é responsável pela música que se vai oferecer à platéia...

DECODIFICANDO O GERENCIAMENTO DE MUSEUS (E DO PATRIMÔNIO)...

Para entrar no âmago da questão específica do gerenciamento,ou da gestão dos museus, ou de órgãos de preservação do patrimônio cultural, podemos decodificar cada item acima, exemplificando o que se passa no quotidiano e no contexto emque devemos atuar...

O gerenciamento é um trabalho, uma ocupação, uma prática...

Como indicam os autores franceses citados, todo gerentede uma equipe deve exercer dois ofícios: aquele oriundo de sua técnica de base, e o de gerente.Na direção e gerenciamento de museus, é imprescindível a formação técnica em Museologia, ou em áreas afins, como a Antropologia, a Arqueologia, a História, a História da Arte,a Sociologia, a Arquivologia, a Biblioteconomia, a Arquitetura, com conhecimentos especializados na área de museus. O mesmo se aplica ao gerente de patrimônio, cuja formação de base pode ser a Arquitetura, a História da Arte,a História, a Antropologia, a Sociologia, a Arqueologia, a Museologia, com áreas de especialização voltadas para o

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patrimônio cultural. Esta formação técnica específica é fundamental em dois aspectos: em primeiro lugar por garantira validade dos conceitos e princípios que deverão ser acionados na definição de programas, projetos e ações, das diretrizes e da missão institucional, e finalmente, na tomada de decisões técnicas e estratégicas...em segundo lugar porque, sendo um técnico especializado, um “primus inter pares”, tem legitimidade em sua área de atuação e junto aos colegas profissionais, bem como junto à sociedade, que espera que seu “patrimônio” esteja em mãos competentes e adequadas, e não em mãos de amadores e de “aventureiros”, como tem acontecido em muitos casos.

A começar pela “gerência” das coleções, dos critérios de aquisição e descarte, dos princípios éticos da Museologia, pelo conhecimento das leis e decretos de proteção ao patrimônio, o preparo técnico do gerente de Museus (e do Patrimônio) atinge outras esferas mais amplas da atuação e da missão institucional, tais como, a definição das diretrizes para o desenvolvimento da instituição, a definição dos objetivos e metas a serem alcançadas, e sua implementação gradativa e sistemática, assunto que não pode eximir a competência técnica do dirigente e de seus colaboradores imediatos. A programação das exposições e demais atividades culturais, a determinação das prioridades na aplicação dos recursos, o controle da execução e da qualidade das atividades específicas, a alocação das tarefase a avaliação das competências disponíveis na equipe, são responsabilidades eminentemente “técnicas” que não podem dispensar a formação especializada e a competência correlataa essas funções e responsabilidades.A partir da implantação do sistema de “gerenciamento por objetivos”, configurados em projetos distintos, a responsabilidade gerencial é compartilhada entre o diretor eos vários “gerentes de projetos”, e entre estes e os membrosde sua equipe... mas isto não exime o diretor ou “gerente geral” da responsabilidade por cada uma das ações, atividades e decisões que ocorrem neste processo operacionaleminentemente “técnico”.

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Configurando-se como um “serviço público” que deve atender, propiciar e beneficiar o interesse “público”, os museus são em princípio instrumentos de comunicação e diálogo com a sociedade. Outras capacidades e habilidades são assim necessárias aos gerentes de museus e do patrimônio (em suas ações comunicativas e de promoção dos bens culturais) que não dependem de uma formação específica, mas que requerem outros conhecimentos relacionados ao campo da Comunicação Social. Não basta contar com um excelente “assessor de imprensa” ou “relações públicas”, para que esta competência possa ser exercida... cabe ao gerente de museus e ao gerentede patrimônio a responsabilidade pela manutenção da “imagem”da instituição, como entidade detentora de credibilidade e responsabilidade perante a sociedade, bem como pela determinação de sua forma de relacionamento e de diálogo coma população e com seus usuários imediatos... A imagem da instituição perante a comunidade de seu entorno e na esfera mais ampla da opinião pública, o “modo” com que o museu se relaciona com seus usuários e visitantes, os critérios de “acessibilidade” e de receptividade aos seus serviços, o estabelecimento de formas de comunicação direta e de obtenção de “feedback”, ou de avaliação de sua atuação juntoao público, os instrumentos, e a rapidez e eficiência de resposta às demandas e críticas recebidas, o cuidado com as instalações e o conforto dos usuários, a veiculação de informações precisas e fidedignas sobre a instituição e suasatividades, refletem a “mentalidade” do gerente da instituição e de seus colaboradores, e são parte inerente desuas responsabilidades gerenciais, compartilhadas com todos os funcionários.

A qualidade e a excelência do serviço dos museus e dos órgãos de patrimônio vai depender da capacitação, da competência, da eficiência e da eficácia operacional de seusgerentes e de todo o pessoal da instituição, em suas esferasespecíficas. E acima de tudo, vai depender da vontade e do comprometimento de cada um dos atores institucionais de

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aprimorar cada vez mais essas qualidades, visando o melhor serviço do público.

“O gerenciamento é um trabalho, uma atividade, uma prática, exercidos com e em conjunto com outros (colaboradores, colegas, superiores e subordinados hierárquicos)...

Neste aspecto, gerenciar é conduzir, um termo genérico que pode ser traduzido em diferentes estilos de gerenciamento possíveis... dirigir, comandar, coordenar, fazer participar... não importa o termo ou o “estilo” escolhidos, o que importa é a difícil missão de fazer com que a equipe sob sua responsabilidade atinja os objetivos comuns da instituição. Nesta proposição encontramos a maior dificuldade do gerenciamento, como discutem os autores citados: nem todos os membros da equipe tem a mesma visão com relação ao que deveriam ser os objetivos da instituição,aos métodos e sistemas de gestão mais adequados para a mesma, aos resultados e produtos dos serviços a serem oferecidos ao público. Da mesma forma, nem todos os servidores tem os mesmos objetivos pessoais e profissionais no exercício da “função pública”, que entendem de modo diferenciado e, muitas vezes, opostos. Nem todos compartilham o mesmo grau de “comprometimento” com a instituição, ou do mesmo histórico de “escolhas” profissionais, como já mencionamos acima. Para completar, nem todos estão devidamente preparados e capacitados para asfunções que exercem, ou não estão exercendo as funções para as quais estariam capacitados e motivados. Sabemos que esta situação comum, originária das circunstâncias no modo de ingresso no quadro institucional, gera inúmeras distorções efrustrações entre os membros da equipe, mas que nem sempre podem ser corrigidas por impedimentos e restrições legais (exigência de concurso para ascensão funcional de um nível intermediário para um nível técnico superior, inexistência de formação regular do profissional, e até mesmo a carência de pessoal no quadro institucional que impede o remanejamento de pessoas e de funções).

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É indiscutível que, uma “reengenharia humana”, no quadro depessoal, aliada a uma “reengenharia de processos”, em sua operacionalização e estrutura organizacional, são instrumentos eficazes e necessários para a melhoria da qualidade e do desempenho da instituição. A aplicação destesinstrumentos, entretanto, muitas vezes esbarra em resistências motivadas pelo hábito, pela cultura institucional (“sempre se fez assim, para que mudar?), ou por impedimentos de ordem regimental e organizacional: no caso, estruturas obsoletas e que já não correspondem à dinâmica da instituição, mas que só podem ser modificadas por determinação das esferas administrativas hierarquicamente superiores à dos “gestores”, à frente de suas unidades institucionais. Outro fator de resistência é o medo da mudança, a insegurança ante uma nova situação funcional, que implica em novas responsabilidades e novos modos de inter-relacionamento com os colegas e os diferentessetores da casa. Toda mudança traz em si um fator de “desestabilização” da situação anterior, normalmente cristalizada ao longo dos anos e da história institucional. É preciso coragem, determinação e persistência, aliadas a umgrande esforço de motivação e de mobilização para a transformação, para que uma equipe estabilizada comece a mudar a “mentalidade” instituída pela tradição, e passe a perceber que as mudanças podem ser um fator positivo de satisfação e de descoberta dos talentos e capacidades individuais e de grupo, de abertura de horizontes profissionais antes insuspeitados, e de possibilidade de umamaior gratificação e realização pessoal no próprio ambiente de trabalho. Muitas frustrações e sentimentos auto-depreciativos poderiam ser sanados com a implementação desta“reengenharia” de pessoas e de processos de trabalho. Como conseguir isto? é a pergunta que todos os gestores de museuse de patrimônio passam a se colocar, ante estas proposições...

“o gerenciamento é um trabalho, uma atividade, uma prática, exercida come em conjunto com outros (colaboradores, colegas, superiores e subordinados hierárquicos), num contexto dado...”

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O contexto dado, no qual exercemos a função de gestores dos museus e do patrimônio, é o chão da realidade que limita, pela lei da “gravidade” determinada pela “natureza” do serviço público, a altura de nossos sonhos e do nosso “planejamento estratégico” . Uma descrição exaustiva desse contexto seria inviável nos limites deste texto, e seria mais adequada para uma monografia ou trabalho de tese. Limito-me assim a colocar alguns aspectos dessa “moldura” que delimita o nosso campo de trabalho, impondo-lhe restrições e obstáculos ao avanço, à modernização e à melhoria da qualidade nestes serviços específicos:

Voltamos assim ao ponto de partida: a “origem dos recursos” e suas decorrências em termos operacionais:

a) contando com recursos prioritariamente do Tesouro Nacional, isto é, do orçamento da União, para a manutenção de suas atividades finalísticas, os museus eórgãos patrimoniais estão sujeitos às limitações, restrições e “contingenciamentos” que são inerentes à gestão orçamentária do governo federal; constatando-se que a CULTURA e o PATRIMONIO não são prioridades básicas na distribuição do orçamento, em relação a outras áreas fundamentais como a Educação, a Saúde, as Obras Públicas, os Serviços Sociais, para não falar em outras áreas “estratégicas” na política governamental, sabemos que inevitavelmente estes “recursos” serão sempre inadequados ao atendimento das necessidades operacionais da área museológica e patrimonial. Nos últimos dez anos, os recursos disponibilizados não atingem 10% da demanda reprimida e expressa nos programas e planos de trabalho encaminhados anualmente aos órgãos centrais (Ministérios da Cultura e do Planejamento);

b) a insuficiência dos recursos para o funcionamento dos serviços mínimos e fundamentais dos museus e dos órgãospatrimoniais é agravada com a imprevisibilidade de sua liberação, ao longo do ano. De um modo geral, as verbas

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aprovadas no orçamento do órgão central – no caso, o IPHAN, já reduzidas pelos cortes efetuados pelo Ministério do Planejamento, e “contingenciadas”, isto é, não liberadas para execução por motivos estratégicosda área financeira governamental, começam a ser disponibilizados a partir do segundo trimestre de cada ano, mas podem eventualmente ainda atrasar (como acontece neste ano de 2002). Nessas circunstâncias, o planejamento feito pelas unidades operacionais – os museus e unidades regionais de gestão do patrimônio – em seu programa de trabalho anual, e a implementação e desenvolvimento das ações e projetos ficam prejudicados, e freqüentemente inviabilizados ou protelados. O desestímulo para o corpo técnico, envolvido e comprometido com os serviços e atividades previstas e necessárias ao bom desempenho da instituição, gerando um profundo sentimento de frustração profissional, é um dos fatores de maior impacto, apesar de “silencioso”, na gestão dos museus edo patrimônio.

OS DESAFIOS E AS ALTERNATIVAS

O desafio para o gestor, nesta conjuntura, é conseguir segurar a “moral das tropas”, reavaliando os projetos em curso, otimizando os recursos básicos disponíveis, redirecionando os esforços coletivos para o que “é possível”ser feito nas circunstâncias dadas, e, principalmente, buscar alternativas para a captação de recursos extra-orçamentários para a continuidade e manutenção dos serviços.Nos últimos anos, os museus e órgãos de patrimônio têm recorrido com sucesso aos mecanismos de patrocínio e mecenato para seus projetos de maior importância, e para os quais não se poderia contar apenas com recursos do governo federal. As leis de incentivo fiscal, as fundações de amparoà pesquisa e de apoio a projetos museológicos e patrimoniais(como a Fundação VITAE, por exemplo, a Fundação Roberto Marinho, e outras mais), os programas internacionais de financiamento, as parcerias com os órgãos estaduais e

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municipais na área da cultura, têm sido importantes instrumentos para a viabilização de projetos institucionais.Esta forma de financiamento e de apoio às ações patrimoniaisé entretanto episódica e irregular, dependendo das circunstâncias, tais como a concorrência com outros projetosapresentados às agências financiadoras ou patrocinadoras, a disponibilidade limitada das verbas destes organismos, e a coincidência de interesses entre patrocinadores e instituições proponentes, nem sempre existente. Esta fórmulaé interessante e eficaz para o desenvolvimento de projetos específicos que de um modo geral garantem a “visibilidade” do mecenas ou instituição financiadora. O financiamento e o patrocínio de projetos sistemáticos, que não têm o mesmo atrativo que outros de grande impacto externo, é bem mais raro de ser conseguido.Para que os projetos de maior visibilidade possam acontecer,entretanto, no âmbito da instituição, é preciso que uma série de atividades de rotina e de longo prazo estejam sendorealizadas, tais como: a identificação e o inventário dos acervos (passíveis de se apresentarem em exposições, publicações e catálogos, CD-Roms, etc.); a conservação e restauração das coleções e monumentos; a melhoria e boa manutenção dos espaços da instituição, de modo condizente com as normas técnicas internacionais (tais como os aspectosde segurança, de iluminação, de climatização, dos espaços derecepção do público, de acondicionamento e de reservas técnicas, etc.); a fotografia e a digitalização das peças doacervo; a pesquisa e os estudos temáticos especializados; a produção, a efetividade e qualidade dos mecanismos de comunicação com o público, os usuários e a mídia especializada.

Para o cumprimento destas tarefas são necessários, fundamentalmente, técnicos e profissionais capacitados a um nível de excelência, o que raramente é o quadro que se apresenta atualmente nas instituições museológicas e patrimoniais que devemos gerir.Apesar de reunirem ainda hoje os quadros técnicos de maior competência e de excelência na área patrimonial e

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museológica, a redução dramática (em torno de 70%) , nos últimos dez anos, desta força de trabalho, formada e capacitada pelas instituições, tem levado a ação e as atividades dos museus e órgãos do patrimônio federais a uma situação “limite”, que se não for corrigida em breve tempo (com a realização de concurso público para o provimento das vagas e a implantação de um Plano de Carreira específico para esta área), levará estas instituições à beira de um colapso, de conseqüências inestimáveis. O conhecimento técnico e especializado na área museológica e patrimonial sóse adquire na prática, e ao longo de muitos anos de formaçãono exercício das diversas funções, e é indispensável que este conhecimento e capacitação, que esta “cultura museológica e patrimonial”, sejam transmitidos aos novos profissionais, através da prática conjunta com os veteranos na carreira, para que tenham continuidade e sejam cada vez mais aprimorados, garantindo a sustentabilidade e a manutenção da excelência técnica dos serviços.

As associações de amigos dos museus e do patrimônio...

Frente ao desafio de garantir a prestação adequada, eficiente e eficaz de sua “missão institucional”, os museus,de modo especial, e os órgãos de patrimônio, em muitos casos, têm se beneficiado de um recurso estratégico, que já está sedimentado e em franco desenvolvimento : as “associações de amigos” dos museus e do patrimônio, que de modo voluntário e sem finalidades lucrativas vêm colaborandoem todos os aspectos da vida institucional. Hoje seria impensável, para os museus que já contam com uma Sociedade de Amigos, abrir mão deste apoio fundamental, que se configura não só através de doações regulares de contribuições financeiras, em geral de pequena monta, como também através da operacionalização de atividades geradoras de receita, para as quais as instituições não dispõem de recursos e meios de viabilização. As lojas dos museus, por exemplo, as cafeterias, os eventos culturais, os serviços deguias e monitores especializados, a produção de material para divulgação e venda (tais como postais, folhetos,

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cartazes, etc.), a contratação de consultores em comunicaçãoe marketing, em pesquisa de público, em “design” e iluminação, são alguns exemplos de ações que têm sido viabilizadas nas instituições, como o Museu Imperial, por exemplo, através das sociedades de amigos, que reinvestem a íntegra dos recursos auferidos nestas atividades no atendimento à demanda da instituição, da qual têm sido os melhores parceiros. A vantagem extra da colaboração das associações de amigos é a de que sua presença e atuação têm um caráter constante, e não episódico, como é o caso de eventuais patrocínios e apoios do mecenato. Em momentos de crise, com o atraso e a insuficiência dos recursos governamentais, as associações de amigos têm contribuído de modo fundamental para a manutenção das atividades básicas dainstituição, como verdadeiros “amigos nas horas adversas”; bem mais do que isso, a atuação e colaboração dos “amigos”, dentre os quais estão inclusive os próprios funcionários da instituição, vem significar um apoio moral inestimável, uma vez que sua presença e colaboração, voluntária e dedicada, reafirmam a confiança que a sociedade civil confere à instituição, compartilhando as dificuldades e o esforço exigido para sua gestão eficiente. Neste tocante, é imprescindível que o papel das sociedades/associações de amigos dos museus e do patrimônio venha a ser devidamente reconhecido e oficializado, por parte dos administradores públicos das instâncias centrais governamentais, como parceiros de primeira ordem e colaboradores indispensáveis ao cumprimento das metas e da missão institucional de proteção, preservação e promoção do patrimônio cultural brasileiro.

O contexto da Lei...

Ainda no campo dos desafios e obstáculos decorrentes da “origem dos recursos” para a manutenção e funcionamento dos museus e órgãos do patrimônio, problema que se aplica não sóao âmbito federal como também aos órgãos de governo estaduais e municipais, estão as limitações e normas correlatas à aplicação dos recursos públicos, entre os quais

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impera a famosa Lei 8666, que regula os contratos, compras elicitações. Sem querer aqui discutir a validade e a pertinência da Lei, como garantia da lisura, da igualdade decondições e de concorrência no fornecimento e prestação de serviços aos órgãos públicos, é preciso lembrar que a especificidade do trabalho dos museus e da preservação do patrimônio apresenta algumas exigências e requerimentos que dificilmente podem ser atendidas do melhor modo ao se cumprir as determinações legais: é o caso, por exemplo, da aquisição de materiais e equipamentos para a restauração do acervo, que muitas vezes não existem no país, e requerem a importação do exterior. Só muito recentemente é possível adquirir uma boa parte desses materiais em firmas estabelecidas no país, com um custo bastante onerado pelos impostos de importação e comercialização de produtos que sãoaplicados a estas mercadorias. Os procedimentos legais para a importação direta pela instituição são complicados e extremamente burocratizados, e a isenção de impostos, garantida aos órgãos públicos, só se aplica no caso de não haver produto similar nacional. A questão da “qualidade” destes produtos é essencial para a qualidade dos trabalhos técnicos de conservação e restauração, e a impossibilidade de se privilegiar este aspecto, dentro das normas gerais de compras e licitações, é a meu ver um obstáculo à excelência do desempenho institucional. O mesmo pode se aplicar à contratação de especialistas em diferentes áreas, em que o fator de “qualidade” e “excelência” não pode ser consideradono processo, a não ser em raras ocasiões e condições em que se pode justificar a “dispensa de licitação”. Caberia ao Ministério da Cultura buscar as garantias e os mecanismos deisenção de impostos no tocante à aquisição de materiais e equipamentos específicos, e a flexibilização da legislação no tocante aos especialistas, com as devidas normas e condições de excepcionalidade. Ainda neste tocante, a contratação de serviços de artesãos e artífices para pequenos serviços também encontra dificuldades em sua execução, por motivos irrisórios, mas muitas vezes insuperáveis, como por exemplo, o caso do sapateiro/artesão que confecciona as “pantufas” usadas no Museu Imperial há

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sessenta anos, como recurso para a conservação dos assoalhosdo Palácio; não existem fornecedores de pantufas em nível industrial ou comercial, e o Seu José, que mora em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, não tem CPF, não declara Imposto de Renda, e não sabe como chegar a um órgão da Receita para se inscrever no SICAFE (Sistema de Cadastro de Fornecedores da Administração Pública Federal). São pequenosproblemas como esse que têm que ser enfrentados na rotina deum museu, mas cujo entendimento não pode ser captado pelas esferas centrais da administração, distanciadas e desconhecedoras das rotinas diárias, muitas vezes quase “domésticas”, da “cozinha” das instituições.

A insuperável distância...

Este distanciamento das instâncias decisórias e supervisoras, no que se refere à distribuição dos recursos ena priorização dos programas de trabalho, em relação ao que acontece no dia a dia dos órgãos patrimoniais, é um dos fatores básicos geradores de dificuldades na gestão dos museus e do patrimônio. O desconhecimento, por parte dos administradores, inclusive dos responsáveis pela área jurídica da instituição, da complexidade das atividades necessárias ao bom desempenho do museu ou do trabalho de preservação do patrimônio, que faz com que várias tarefas e ações sejam interdependentes e necessárias umas às outras, gera uma grande parte do “stress” gerencial dos responsáveispelas unidades executoras da ação institucional. É difícil “priorizar” uma ação em detrimento de outras, como normalmente é sugerido pela administração central aos dirigentes de unidades, uma vez que o funcionamento das mesmas é “A Prioridade”, fundamentada em um conjunto de atividades sistêmicas e interdependentes. Não se pode priorizar “o braço direito”, em detrimento do “esquerdo”, por exemplo, a “perna direita” ou o “olho esquerdo”, sem prejudicar todo o desempenho e a atividade de um indivíduo –no caso, um “ente institucional” que se apresenta como um museu ou um órgão de gestão de ações patrimoniais, cujo

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universo de atuação implica, como sabem todos, de responsáveis a técnicos, ações de proteção, preservação, estudo e documentação, promoção, exposição, educação e valorização dos bens culturais sob a guarda destas instituições.

A conclusão inevitável...

Ante o exposto acima, é possível concluir que a gestão eficiente e eficaz dos museus e do patrimônio não pode prescindir de recursos e mecanismos alternativos, de ORIGEM e MODELO diferentes dos existentes e vigentes no contexto atual em que atuam essas instituições. A parceria com as Associações de Amigos, que poderiam ser configuradas como OPNEs, prestadoras de serviços e captadoras de recursos em nível continuado, como analisa Morales 3em artigo sobre os diferentes tipos de Organizações Públicas não Estatais, e asrelações entre o “público” e o “privado”, parece-me um caminho claro e consistente para a superação de muitos obstáculos e limitações acima explicitados. Ao mesmo tempo, é possível também concluir que a gestão desses organismos culturais e patrimoniais não pode prescindir dos recursos e dos mecanismos de controle públicos governamentais, configurando a responsabilidade do Estado pelo patrimônio público que lhe é confiado pela sociedade, por sua preservação, proteção e promoção adequadas e eficientes, e com o nível de qualidade que lhe é exigido por esta sociedade. Nenhum museu ou instituição patrimonial pode sobreviver, no Brasil ou em qualquer lugar do mundo, sem o suporte e o subsídio governamental, e nenhum museu ou instituição patrimonial pode se desenvolver e cumprir sua missão com qualidade e eficiência sem a parceria com organizações sociais de interesse público não governamentais. A qualificação dessas organizações não governamentais, ONGs ou Associações Civis voltadas para o

3 Carlos Morales, “Provisão de serviços sociais através de organizações públicas não estatais – Aspectos Gerais” in O público não-estatal na reforma do Estado, org.Bresser Pereira e Nuria Cunnil, FGV, 1999 (pp..51-86). O autor é atual Diretor de Planejamento e Administração do IPHAN.

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serviço público, como OSCIPs, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, nos moldes determinados por lei específica, e autorizada pelo Ministério da Justiça, me parece um caminho interessante e viável para a formalização e regulamentação das parcerias já existentes e implantadas no universo dos museus e do patrimônio. O modelo das ORGANIZAÇÕES SOCIAIS, criado e implantado na gestão do Ministro Bresser Pereira no Ministério da Administração e Reforma do Estado, também me parece um caminho viável e interessante, aplicável a alguns tipos de instituições, mas que implica em mudanças radicais nas estruturas e modelos degestão vigentes, fator que provocou e ainda provoca forte resistência na cultura institucional “cristalizada” no âmbito do serviço público. Não importa aqui o “modelo” escolhido, mas sim a mudança fundamental que vem se constatando cada dia com mais evidência e impacto, representada pela inserção ativa, dinâmica, comprometida e voluntária da sociedade civil organizada na execução e aprimoramento dos serviços públicos, de sua penetração irreversível na gestão das instituições, sob a forma de parcerias e apoio financeiro e humano, o que vem trazendo um“arejamento” benéfico e renovador às estruturas até então fechadas e “encasteladas” em sua “natureza pública governamental”, cujas carências e deficiências estão cada vez mais expostas ao conhecimento e ao “domínio público”. A maior transparência na gestão destes serviços, quando deles participam os cidadãos, contribui para a maior flexibilidadenos modelos e padrões até então cristalizados, e estimula a sociedade a cobrar dos órgãos públicos governamentais a qualidade e a eficiência que ela pode e deve deles esperar.

O fator inevitável...e imprescindível...

Para finalizar, no elenco das dificuldades e obstáculos à qualidade e excelência da gestão dos museus e do patrimônio,é preciso não esquecer que as instituições são as PESSOAS, que as mantém vivas e atuantes... Não se pode bem administrar se não se pode escolher as pessoas com quem se vai trabalhar, se não se pode demitir os

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funcionários inoperantes e descomprometidos com a função pública e institucional, se não se pode reconhecer e premiaro mérito, se não se pode punir a inoperância e a irresponsabilidade... estas palavras podem parecer “duras”, porque na verdade fazem parte de um dos “tabus” do serviço público... mas devem ser ditas, com objetividade e a bem da justiça, pois fazem parte da difícil tarefa dos “gestores”, em qualquer organização, entre os quais se situam os gestores de museus e de patrimônio, como gestores de entidades e recursos públicos (ou deveriam fazer parte, se as limitações e a natureza do serviço público não fossem como são, na realidade). Entretanto, a boa gestão do pessoal em serviço na instituição, por mais esforços de motivação e “mobilização das energias”, como preconizam os manuais de gerenciamento, de diálogo e compreensão, passa pela existência de mecanismos estratégicos que permitam ao gerente escolher seus colaboradores imediatos, estimular os técnicos, promover sua capacitação e crescimento profissional, bem como o desenvolvimento dos quadros de pessoal como um todo, em todos os níveis. No sistema vigente do funcionalismo público, estes mecanismos, se existem na teoria, não existemna prática, pois é impossível a contratação de pessoal qualificado sem a realização de concurso público, a contratação temporária por projetos é uma forma precária e sem continuidade ou lastro para a instituição, a punição dasfaltas é complicada e só acontece em casos muito graves. A defasagem salarial a que estão submetidos os funcionários federais (pelo menos em alguns segmentos da administração), a ausência de gratificações por desempenho de cargos de chefia (insuficientes no quadro atual de distribuição das chamadas FCTs, funções técnicas comissionadas), impedindo o reconhecimento das responsabilidades e atribuições específicas, e fundamentalmente, ainda, a inexistência de uma estrutura organizacional e de um regimento interno para as unidades museológicas administradas pelo IPHAN (extintas com o governo Collor), estão na origem das maiores dificuldades encontradas na gestão dos museus e do patrimônio no atual panorama institucional.

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Acredito que a qualidade e a excelência almejadas pelos técnicos e responsáveis por este setor do serviço público sópoderão ser uma realidade concretizada, e em constante aperfeiçoamento, no momento em que os problemas apontados, etantos outros não relatados aqui, venham a ser enfrentados pelas autoridades competentes, de modo a transformar o panorama atual, e a renovar a esperança e a fé em sua missão, naqueles que optaram por dedicar a esta missão seu percurso de vida profissional, apoiado em um grande investimento pessoal. Pois, como disse acima, as instituições são as PESSOAS, e são elas que as podem modificar e aperfeiçoar...Se acreditarmos que a busca da qualidade e da excelência no serviço público é viável e necessária, não podemos esquecer do que ensina Andrés Senlle4:

A qualidade é um caminho...A qualidade não se improvisa...

A qualidade é feita pelas pessoas capacitadas, e que nela acreditam...

4 Senlle, Andrés.ISO 9000-2000 – Calidad y Excelencia. Ediciones Gestión2000, SA.; Barcelona,2001 p.162.

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BIBLIOGRAFIA

Alecian, Serge, Foucher, Dominique. Guia de Gerenciamento noSetor Público. Prefácio de Marc Cabane, tradução de Márcia Cavalcanti. Rio de Janeiro: Revan; Brasília, DF: ENAP, 2001.

Morales, Carlos. “Provisão de serviços sociais através de organizações públicas não estatais” in O Público não-estatalna Reforma do Estado, org. Bresser Pereira e Nuria Cunnil, FGV, 1999, pp.51-86.

Senlle, Andrés. ISO 9000-2000, Calidad y Excelencia. Ediciones Gestión 2000, S.A.; Barcelona, 2001.

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